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Trechos de livros

Leia trechos de obras, entrevistas, palestras dos principais filósofos.

Responsável - Equipe de ensino do Instituto Packter.

(24/Fev) MICROFÍSICA DO PODER
A CASA DOS LOUCOS



"No fundo da prática científica existe um discurso que diz: nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar. Mas achamos também, e de forma tão profundamente arraigada na nossa civilização, esta idéia que repugna à ciência e à filosofia: que a verdade, como o relâmpago, não nos espera onde temos a paciência de emboscá-la e a habilidade de surpreendê-la, mas que tem instantes propícios, lugares privilegiados, não só para sair da sombra como para realmente se produzir. Se existe uma geografia da verdade, esta é a dos espaços onde reside, e não simplesmente a dos lugares onde nos colocamos para melhor observá-la. Sua cronologia a é a das conjunções que lhe permitem se produzir como um acontecimento, e não a dos momentos que devem ser aproveitados para percebê-la, como por entre duas nuvens. Poderíamos encontrar na história toda uma tecnologia desta verdade: levantamento de suas localizações, calendário de suas ocasiões, saber dos rituais no meio dos quais se produz.


Exemplo desta geografia: Delfos, onde a verdade falava, fato que surpreendia os primeiros filósofos gregos; os lugares de retiro no antigo monarquismo; mais tarde, a cátedra ou do magistério, a assembléia dos fiéis. Exemplo desta cronologia; aquela que achamos de forma elaborada na noção médica de crise, e cuja importância se promulgou até o fim do século XVIII. A crise, tal como era concebida e exercida, é precisamente o momento em que a natureza profunda da doença sobe à superfície e se deixa ver. É o momento em que o processo doentio, por sua própria energia, se desfaz de seus entraves, se liberta de tudo aquilo que impedia de completar-se e, de alguma forma, se decide a ser isto e não aquilo, decide o seu futuro – favorável ou desfavorável. Movimento em certo sentido autônomo, mas do qual o método pode e deve participar. Este deve reunir em torno dela todas as conjunções que lhe são favoráveis e prepara-la, ou seja, invoca-la e suscita-la. Mas deve também colhê-la como se fosse uma ocasião, nela inserir sua ação terapêutica e combate-la no dia mais propício. Sem dúvida, a crise pode ocorrer sem o médico, mas se este quiser intervir, que seja segundo uma estratégia que se imponha à crise como momento da verdade, pronta a sub-repticiamente conduzir o momento a uma data que seja favorável ao terapeuta. No pensamento e na prática médica, a crise era ao mesmo tempo momento fatal, efeito de um ritual e ocasião estratégica.
Numa ordem inteiramente diversa, a prova judiciária também era uma ocasião de se manipular a produção da verdade. O ordálio que submetia o acusado a uma prova, o duelo no qual se confrontavam acusado e acusador ou seus representantes, não eram uma maneira grosseira e irracional de detectar a verdade e de saber o que realmente tinha acontecido quanto à questão em litígio. Eram uma maneira de decidir de que lado Deus colocava naquele momento o suplemento de sorte ou de força que dava a vitória a um dos adversários. O êxito, se tivesse sido conquistado conforme o regulamento indicava em proveito de quem devia ser feita a liquidação do litígio. E a posição do juiz não era a de um pesquisador tentando descobrir uma verdade oculta e restituí-la na sua forma exata, devia sim organizar a sua produção, autenticar as formas rituais na qual tinha sido suscitada. A verdade era o efeito produzido pela determinação ritual do vencido.


Podemos então supor na nossa civilização e ao longo dos séculos a existência de toda uma tecnologia da verdade que foi pouco a pouco sendo desqualificada, recoberta e expulsa pela prática científica e pelo discurso filosófico. A verdade aí não é aquilo que é, mas aquilo que se dá: acontecimento. Ela não é encontrada mas sim suscitada: produção em vez de apofântica. Ela não se dá por mediação de instrumento, mas é provocada por rituais, atraída por meio de ardis, apanhada segundo ocasiões: estratégia e não método. Deste acontecimento que assim se produz impressionando aquele que o buscava, a relação ambígua, reversível, que luta belicosamente por controle, dominação e vitória: uma relação de poder".



FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 9 ed. Tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 113-114


(15/Fev) O SER E O NADA. ENSAIO DE ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA
O Passado


"Toda teoria sobre a memória encerra uma pressuposição sobre o ser do passado. Tais pressuposições, nunca elucidadas, obscureceram o problema da memória e da temporalidade em geral. É preciso, então, de uma vez por todas, colocar a pergunta: qual é o ser de um ser passado? O senso comum oscila entre duas concepções igualmente vagas: o passado, diz-se, não é mais. Desse ponto de vista, parece que se quer atribuir o ser somente ao presente. Esta pressuposição ontológica engendrou a famosa teoria das impressões cerebrais: já que o passado não é mais, pois desvaneceu-se no nada, se a recordação contínua existindo, é preciso que seja a título de modificação presente de nosso ser; por exemplo, uma impressão marcada agora em grupo de células cerebrais. Assim, tudo é presente: o corpo, a percepção presente e o passado como impressão presente no corpo; tudo está em ato porque a impressão não tem existência virtual enquanto recordação; é integralmente impressão atual. Se a recordação ressurge, é no presente, em conseqüência de um processo presente, ou seja, como ruptura de um equilíbrio protoplasmático no grupo celular considerado. Eis o paralelo psicofisiológico, que é instantâneo e extratemporal, para explicar como esse processo fisiológico é correlato a um fenômeno estritamente físico mas igualmente presente: a aparição da imagem-recordação na consciência. A noção mais recente de engrama não faz mais que adornar esta teoria com uma terminologia pseudocientífico. Mas, se tudo é presente, como explicar a passividade da recordação, ou seja, o fato de que sua intenção, uma consciência que se rememora transcende o presente para visar um acontecimento lá onde ele foi? Assinalamos em outra obra que não há meio algum de distinguir a imagem da percepção se começamos fazendo da imagem uma percepção renascente. Encontramos aqui as mesmas impossibilidades. Mas, além disso, nos privamos do meio de distinguir imagem e recordação: nem a ‘fragilidade’ da recordação, nem sua palidez, nem seu caráter incompleto nem as contradições que ostenta frente aos dados da percepção podem distingui-la da imagem-ficção, pois esta apresenta os mesmos caracteres; e, por outro lado, esses caracteres, sendo qualidades presentes da recordação, não poderiam fazer-nos sair do presente para ir ao passado. Em vão se invocará a qualidade de pertencer-a-mim da recordação.
A consciência popular, por outro lado, tem tal dificuldade de negar existência real ao passado que admite, juntamente com esta primeira tese, outra concepção, também imprecisa, segundo a qual o passado teria uma espécie de existência honorária. Ser passado, para um acontecimento, seria simplesmente estar recolhido, perder a eficiência ser perder o ser. A filosofia bergsoniana retomou tal idéia: entrando no passado, um acontecimento não deixa de ser, apenas deixa de agir, permanece ‘em seu lugar’, em sua data, para toda a eternidade. Assim, restituímos o ser ao passado, e está certo; até afirmamos que a duração é multiplicidade de interpenetração e que o passado se organiza continuamente com o presente. Mas com isso não encontramos qualquer razão para esta organização ou esta interpenetração; não explicamos como o passado pode ‘renascer’ e infestar-nos, em suma, como podemos existir para nós".


JEAN-PAUL SARTRE, (1905 - 1980), filósofo francês, escritor e crítico, conhecido representante do existencialismo. Era um artista militante, e apoiou causas políticas de esquerda com a sua vida e a sua obra.


(05/Fev) O PRÍNCIPE
Dos ministros dos príncipes


Não é algo de pouca importância para um príncipe a escolha dos seus ministros, os quais serão ou não serão bons conforme a sensatez que ele revelar. O primeiro juízo que, por conjetura, formamos das faculdades intelectuais de um soberano ampara-se no conceito que fazemos dos homens que ele tem em torno de si. Quando estes são capazes e fiéis, podemos reputá-lo indubitavelmente inteligente, porquanto soube reconhecer-lhes as capacidades e conservá-los fiéis. Todavia, quando estes assim não são, deste soberano realmente não podemos formar um bom juízo, visto que o seu primeiro erro ele já o cometeu nesta escolha. Ninguém que haja conhecido Messer Antonio da Vanafro como ministro de Pandolfo na conta de um homem de grande mérito: um tal ministro valia-lhe essa reputação.
E porque existem três espécies de inteligência – uma, que apreende por si mesma; outra, capaz de discernir orientada pela percepção alheia, e uma terceira inepta para ambas essas modalidades de entendimento – e também pelo fato de a primeira ser excelente, de a segunda ser muito boa e de terceiro ser simplesmente inútil, fazia-se necessário que Pandolfo, não gozando daquela do primeiro e mais alto grau, fruísse a do segundo. Ora, todas as vezes em que um príncipe revelar lucidez o bastante para apreciar o bem e o mal que um outro faz ou proclama, mesmo lhe faltando o engano espontâneo ele distinguirá as boas e as más ações do seu ministro, exaltando aqueles e punindo estas, de sorte que este não poderá pretender enganá-lo e tampouco subverterá a ordem.
Mas como pode um príncipe conhecer o seu ministro? Eis aqui um método absolutamente infalível: ao veres que este ministro preocupa-se mais consigo do que contigo e que por trás de cada uma das suas ações ressai a busca do que pessoal proveito, terás o sinal de que um homem de tal feitio jamais haverá de ser um bom ministro e o de que em circunstância alguma poderás nele confiar. De fato, aquele que tem em suas mãos [um grande poder sobre] o Estado de um príncipe não deve nunca pensar em si, mas sim – e sempre – neste senhor, cuja atenção ele não ocupará com assuntos que não lhe sejam atinentes. Por outro lado, para mantê-lo em boa conduta, o príncipe deve ocupar-se do seu ministro, conferindo-lhe honras, fazendo-o rico, obrigando-o para consigo, atribuindo-lhe distinções e responsabilidades, a fim de que este compreenda não poder subsistir sem ele, de modo que as muitas honrarias não lhe agucem o desejo de outras mais, que as muitas riquezas não lhe despertem a ambição por outras mais, e que as suas altas responsabilidades animem-lhe o temor das mudanças. Destarte, quanto os ministros e os príncipes (com respeito a esse ministro) assim se apresentam, eles podem fiar-se uns nos outros; quando não, o fim será invariavelmente nefasto, para aqueles ou para estes.


Nicolau Maquiavel(1469-1527). Serviu a corte de Cesare Borgia, governante inescrupuloso, até os Médicis derrubarem a República, em 1512, anistiado, voltou a Florença, onde exerceu funções político-militares.


(01/Fev) Lógica
Há alguma dificuldade em determinar os limites onde cessa o uso comum do entendimento e onde o conhecimento racional se torna Filosofia.
No entanto, há aqui uma característica distintiva razoavelmente segura, a saber, o seguinte:
O conhecimento do universal in abstrato é um conhecimento especulativo; o conhecimento do universal in concreto, um conhecimento comum. O conhecimento filosófico é um conhecimento especulativo da razão e ele começa, pois, quando o uso comum da razão começa a fazer tentativas no conhecimento do universal in abstracto.
Com essa determinação da distinção entre o uso comum e o uso especulativo da razão é possível avaliar agora a partir de que povo é preciso datar o começo da Filosofia. Dentre todos os povos, pois, os gregos foram os primeiros a começar a filosofar. Pois eles foram os primeiros a tentar cultivar os conhecimentos racionais, não tomando as imagens por fio condutor, mas in abstrato; ao invés disso, era sempre in concreto, através de imagens, que os outros povos procuravam tornar compreensíveis os conceitos. Assim, ainda há povos hoje em dia, como chineses/e alguns indianos, que tratam, é verdade, de coisas que são derivadas meramente da razão, como Deus, a imortalidade da alma e outras que tais, mas que não procuram, no entanto, investigar a natureza desses objetos in abstrato. Entre os persas e árabes encontra-se, é verdade, algum uso especulativo da razão; só que as regras para isso, eles as tomaram emprestadas a Aristóteles, logo os gregos. No Zendavesta de Zoroastro não se descobre o menor vestígio da Filosofia. O mesmo vale também da tão louvada sabedoria egípcia, que, em comparação com a Filosofia grega, não passou de um jogo de crianças.
Assim como na Filosofia, assim também no que respeita à Matemática, os gregos foram os primeiros a cultivar essa parte do conhecimento racional segundo um método especulativo, científico, na medida em que demonstraram cada teorema a partir de elementos.


Immanuel Kant. Lógica. (tradução Guido Antônio de Almeida).Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, p. 44 (Biblioteca Tempo Universitário 93)


(25/Jan) Sobre a filosofia universitária
Que se ensine filosofia nas universidades é claro de fato algo benéfico para ela sob vários aspectos. Ela ganha uma existência pública, e seu estandarte aparece estampado aos olhos dos homens, o que a traz sempre de novo à lembrança e faz com que seja notada. O principal ganho será, no entanto, que mentes jovens e capazes se familiarizarem com ela e despertem para o seu estudo. Todavia, é preciso admitir que quem tem aptidão para a filosofia, e por isso sente falta dela, também a encontrará e conhecerá por outras vias. Coisas que se amam e que nasceram umas para as outras relacionam-se facilmente: almas afins já de longe se saúdam. Qualquer livro de um filósofo autêntico que caia nas mãos de tal pessoa será para ela um estímulo mais forte e eficaz que a conferência de um filósofo de cátedra, tal como se apresenta hoje em dia. Platão também deveria ser lido aplicadamente nos ginásios, já que é o estímulo mais eficaz para o espírito filosófico. Acima de tudo, porém, fui levado pouco a pouco à opinião de que a mencionada utilidade da filosofia de cátedra é superada pela desvantagem que a filosofia como profissão traz à filosofia como livre investigação da verdade, ou que a filosofia a serviço do governo traz à filosofia a serviço da natureza e da humanidade.


Schopenhauer, Arthur. Sobre a filosofia universitária. Tradução: Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola, Márcio Suziki, 2ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2001 (Clássicos), pág. 03


(31/Dez) Péricles, O Inventor da Democracia, de Claude Mossé
Era, de fato, a uma família um tanto excepcional que pertencia o pretendente ateniense de Agariste, Mégacles, bisavô materno de Péricles. Definamos em primeiro lugar o que se entende aqui por "família". No século V, para designar os Alcmeônidas, emprega-se o termo genos*. Durante muito tempo, os antropólogos consideraram esses géne como "clãs", que revelariam uma estrutura gentílica das sociedades gregas arcaicas. Atualmente, abandonou-se essa interpretação, privilegiando-se, no genos, o caráter aristocrático1. Sabe-se, com efeito - e quanto a esse aspecto os arqueólogos trouxeram inúmeros testemunhos -, que depois da destruição dos palácios micenianos, quando se reconstituíram agrupamentos de onde viria a nascer a cidade, estes se organizaram em torno de uma ou várias "famílias", atribuindo-se freqüentemente, mas não necessariamente, um ancestral "heróico".2 No caso dos Alcmeônidas, embora essa tradição só se encontre nos autores tardios, o ancestral heróico teria sido Nestor, o rei de Pilos. Por outro lado, muitas vezes essas famílias aristocráticas estavam ligadas a um culto, o culto do herói fundador do genos ou de um herói local sobre a tumba do qual se reuniriam os membros do genos. No que diz respeito aos Alcmeônidas, não se encontra o menor sinal de tal culto. É, pois, a um Alcmêon, ancestral distante de quem nada se sabe, que a família deve seu nome.

A TENTATIVA DE CÍLON

Qualquer que seja sua origem, o fato é que essa família pertencia ao grupo dos eupátridas, "nobres" que partilhavam as funções que garantiam a direção dos negócios da cidade, e cuja linha de frente era formada pelo arcontado. No relato que compõe a primeira parte da Constituição de Atenas, o autor, Aristóteles ou um de seus discípulos, conta que o arcontado derivara da divisão do poder real primitivo para se tornar uma magistratura, a princípio, vitalícia, depois, concedida por dez anos, tornando-se, finalmente, anual. Assim, a cada ano designavam-se três arcontes*: o rei, encarregado principalmente dos assuntos religiosos, o polemarco*, comandante supremo do exército, e o arconte epônimo, que dava seu nome ao ano e presidia o Conselho do Areópago*, formado de ex-arcontes. Aos três arcontes dos primeiros tempos acrescentaram-se, posteriormente, seis tesmotetas*, guardiões das thesmoi, as regras comuns.

Foi como arconte que o primeiro alcmeônida conhecido historicamente, Mégacles, veio a desempenhar um papel importante. O período de seu arcontado situa-se no último terço do século VII, sem que se possa precisar melhor (636/635; 632/631; 628/627; 624/623?). Como muitas cidades gregas, Atenas passava então por uma crise que se relacionava, pelo menos do que se depreende dos relatos posteriores, com o fenômeno do monopólio das melhores terras e, no caso de Atenas, o endividamento de uma parte do campesinato. Como aconteceu em determinadas cidades, aqueles que buscavam tomar o poder procuraram tirar vantagem dessa crise. Daí o desenvolvimento da tirania no curso do século VI.3 Mencionou-se a dos Ortagóridas de Sicione. Poder-se-iam citar também os Cipsélidas de Corinto ou ainda um certo Teágenes de Mégara. Foi justamente com o apoio desse Teágenes, de quem era genro, que Cílon, que fora o vencedor em Olímpia e gozava de grande prestígio em função dessa vitória, tentou assenhorear-se de Atenas, apoderando-se da Acrópole. Heródoto (V, 71) fala somente de tentativa, mas o relato de Tucídides, muito mais completo, dá a entender que Cílon não apenas se apoderou da Acrópole, mas também resistiu a um longo cerco. Os atenienses, convocados pelo arconte, vieram em massa dos campos para tentar desalojá-los, ele e seus sequazes.

Com o passar do tempo, os atenienses ficaram cansados do sítio e muitos deles foram embora, passando a guarda aos nove arcontes, aos quais deram também plenos poderes para resolver o caso como melhor lhes parecesse [naquele tempo, com efeito, os nove arcontes tinham em suas mãos a maior parte da administração pública]. Cílon e seus homens, sitiados como estavam, encontravam-se numa situação difícil, porque lhes faltavam água e víveres. Cílon e seu irmão conseguiram escapar. Os outros, porém, desesperados, alguns até morrendo de fome, instalaram-se como suplicantes no altar da Acrópole. Os atenienses encarregados da guarda do templo, vendo que eles morriam no santuário, obrigaram-nos a sair: tiraram-nos de lá com a promessa de não lhes fazer mal, depois os mataram; no trajeto, houve alguns que se puseram ao lado das Deusas Veneráveis e foram executados. Por aquele ato, tanto os encarregados da guarda quanto os seus descendentes foram declarados malditos e pecadores contra a deusa (I, 126, 8-11).

O relato de Tucídides, da mesma forma que o de Heródoto, não faz referência nominal aos Alcmeônidas. Mas tanto um quanto outro, considerados em seu contexto, não deixam margem a nenhuma dúvida. Heródoto situa o seu logo depois de expor as reformas de Clístenes e a petição, formulada pelo rei espartano Cleômenes, chamado por Iságoras, para que os "impuros" fossem expulsos de Atenas (V, 70). Quanto a Tucídides, ele explica, no relato da tentativa de Cílon, a exigência dos lacedemônios, às vésperas da eclosão da guerra do Peloponeso, de que os atenienses "afastem a desonra cometida contra a Deusa", aqueles lacedemônios que "sabiam que Péricles, filho de Xantipo, estava implicado na maldição pelo lado materno" (I, 127, 1). Somente Plutarco, em sua Vida de Sólon (XII, 1), cita o arconte Mégacles como sendo, junto com os outros arcontes, responsável pelo sacrilégio cometido contra os sequazes de Cílon. Mas, nessa mesma Vida de Sólon (XII, 1), Plutarco, baseando-se nos arquivos do santuário de Delfos, lembra que o estratego que comandava o contingente ateniense quando da primeira guerra sagrada era Alcmêon. A primeira guerra sagrada para defender o santuário de Delfos teria ocorrido no começo do século VI, e esse Alcmêon seria o filho de Mégacles. O que nos permite supor que o exílio dos "sacrílegos" foi relativamente breve. No entanto, esse mesmo Alcmêon também iria inaugurar uma política de aliança com Delfos, que não deixaria de ter conseqüências para os Alcmeônidas.

OS ALCMEÔNIDAS E DELFOS

Aqui se coloca um outro relato tomado de empréstimo a Heródoto, que figura no livro VI, pouco antes das núpcias de Agariste. A anedota se situaria, cronologicamente, pouco antes da guerra sagrada, o que não deixa de implicar um problema, porque se trata do encontro entre Alcmêon, filho de Mégacles, e o rei da Lídia, Creso. Ora, o reino de Creso se inicia pelo menos trinta anos depois. Imagina-se, portanto, que, se a história é verdadeira, tratar-se-ia antes de Aliato. Heródoto conta, pois, que "Creso" teria convidado Alcmêon para ir a Sardes a fim de agradecer-lhe, com um magnífico presente, por ele ter ajudado, em Delfos, seus enviados que tinham ido consultar o oráculo. O presente consistia em levar tanto ouro quanto pudesse carregar sozinho, de uma só vez. A Lídia, como se sabe, era muito rica em ouro, trazido pelas águas do Patolo.

Para aproveitar-se do presente dado nessas condições, Alcmêon empregou este engenhoso estratagema: vestiu um grande chiton [túnica], deixando que se formasse um bolso bem grande na cintura; calçou botas altas, as mais largas que pôde encontrar, e penetrou assim na sala do tesouro, para onde o levaram. Lá ele se lançou sobre um monte de ouro em pó, começou por colocar ao longo de suas pernas a maior quantidade de ouro que coubesse em suas botas, encheu completamente o bolso da túnica, polvilhou os cabelos com ouro, pôs mais um tanto em sua boca e saiu da sala do tesouro mal conseguindo arrastar os pés, parecendo-se com qualquer coisa, menos com um ser humano, a boca cheia e o corpo todo inchado. Ao ver aquilo, Creso teve um acesso de riso. Ele deu a Alcmêon tudo o que ele tinha apanhado, e lhe deu outros presentes de menor valor. Foi assim que aquela casa ficou poderosamente rica, de forma que Alcmêon manteve os animais de uma quadriga e ganhou o prêmio em Olímpia (VI, 125).

Não se sabe que crédito se pode dar a essa história edificante, talvez divulgada pelos adversários da família, quando ela se tornou poderosa na cidade. Não obstante, ela revela certos traços que indicam a posição original dos Alcmeônidas na história de Atenas. Em primeiro lugar, observem-se os laços com Delfos. Foi por ter servido como uma espécie de fiador ao rei "bárbaro" da Lídia (e pouco importa que se tratasse de Aliato ou de Creso), junto aos sacerdotes de Delfos, que Alcmêon em seguida veio a se beneficiar, numa lógica que é a do contradom, da generosidade dele. Isso é de surpreender, uma vez que os Alcmeônidas tinham sido expulsos de Atenas como sacrílegos. Temos de admitir que a "política" de Delfos podia levar em conta circunstâncias outras que não as estritamente religiosas. E se, como se supõe, o Alcmêon da anedota é o mesmo Alcmêon que comandou o contingente ateniense quando da primeira guerra sagrada, há menos motivos para se espantar de uma tal influência. Sabe-se, aliás, que os laços da família com os sacerdotes de Delfos foram se tornando mais estreitos nas décadas seguintes. Quando o templo de Apolo foi destruído por um incêndio em 548, foram os Alcmeônidas que financiaram, em parte, a reconstrução - talvez com o ouro do rei lídio. E foi também depois de consultar o oráculo de Delfos que Clístenes, o filho de Mégacles e de Agariste, do qual já falamos, iniciou sua grande reforma das instituições atenienses.


(28/Dez) O caráter oculto da saúde
"É necessário refletir sobre coisas que dizem respeito não somentemente ao médico na sua formação profissional e em seus interesses profissionais, mas a todos nós. Quem não conhece as primeiras experiências consternadoras na infância? De repente, sob a autoridade dos pais, fica declarado que se está doente e não tem a permissão de levantar pela manhã. Nos anos posteriores da vida, se ganha as experiências que deixam mais claro que a verdadeira singularidade não se encontra tanto na doença, mas no milagre da saúde.
Isso me oferece o ensejo de inserir a situação teórico-científica e prática no grande contexto da sociedade marcada pela ciência moderna e de questionar como devemos nos orientar, na nossa práxis de vida, sobre a saúde e doença. Não há dúvida de que, na experiência de saúde e doença, se manifesta algo de uma problemática geral que não se limita à posição especial da ciência médica no interior da ciência natural moderna. Seria bem acolhida uma conscientização da diferença entre medicina científica e a verdadeira arte de curar. Em última análise, essa é a diferença existente entre o saber das coisas em geral e a concreta aplicação desse saber ao caso isolado. Mas esse é um tema muito antigo da filosofia e do pensamento e é também um objeto especial de meu próprio trabalho filosófico, o qual é denominado hermenêutica. É claro que o saber das coisas em geral é passível de aprendizagem. Já o outro tipo de saber não é possível de ser aprendido, mas deve ser lentamente amadurecido através da própria experiência e da própria formação de juízo.
Com isso o nosso tema se move para um contexto bem amplo que, na realidade, é colocado a todos nós como tarefa vital desde o surgimento da ciência moderna e sua relação de tensão com a riqueza de experiência da humanidade. Nós vivemos em um meio ambiente cada vez mais transformado pela ciência, um meio o qual quase já não ousamos mais chamar de natureza, ao mesmo tempo que temos de viver em uma sociedade modelada pela cultura científica da era moderna. Nela há milhares de normas e regulamentos que acabam por assinalar uma crescente burocratização da vida. Dessa maneira, como é possível não perder o ânimo para se modelar a própria vida?"


Gadamer, Hans-Georg. O caráter oculto da saúde. Tradução de Antônio Luz Costa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.


(20/Dez) INTRODUÇÃO À CRÍTICA DO JUÍZO
Se filosofia é o sistema do conhecimento racional por conceitos, já com isso ela se distingue suficientemente de uma crítica da razão pura, que contém, por certo, uma investigação filosófica da possibilidade de um conhecimento como esse, mas não aparece, como parte, a um tal sistema, tanto que somente ela delineia e verifica a idéia do mesmo.
A divisão do sistema pode ser, primeiramente, apenas em sua parte formal e material, das quais a primeira (a lógica) contém meramente a forma do pensar em um sistema de regras, a segunda (parte real) toma sistematicamente em consideração os objetos sobre os quais se pensa, na medida em que é possível um conhecimento racional dos mesmos a partir de conceitos.
Esse sistema real da filosofia, por sua vez, não pode ser dividido de outro modo, senão, segundo a distinção originária de seus objetos e a diferença essencial, que repousa sobre esta, dos princípios de uma ciência que contém, em filosofia teórica e prática; de tal modo que uma das partes tem de ser a filosofia da natureza, a outra a dos costumes, das quais a primeira pode conter também princípios empíricos, mas a segunda (já que a liberdade absolutamente não pode ser um objeto da experiência) jamais pode conter outros do que princípios puros a priori.
Reina porém um grande mal-entendimento, e muito prejudicial mesmo para o modo de tratar a ciência, quanto àquilo que deve ser tido como prático, em uma significação tal, que merece por isso remetido a uma filosofia prática. Acreditou-se que a política e a economia, as regras de economia doméstica, assim como as do comportamento, as prescrições de higiene e dietética, tanto da alma quanto do corpo (e por que não todos os ofícios e artes?), podiam ser incluídas na filosofia prática, porque todas elas contêm, de fato, um conjunto de proposições práticas. Só que proposições práticas distinguem-se, por certo, segundo o modo-de-representação, das teorias, que contêm a possibilidade das coisas e suas determinações, mas nem por isso segundo o conteúdo, a não ser unicamente aquelas que consideram a liberdade sob leis. Todas as restantes nada mais são do que a teoria daquilo que pertence à natureza das coisas, apenas aplicada ao modo como podem ser engendradas por nós segundo um princípio, isto é, representada a possibilidade das mesmas por uma ação do arbítrio (que, mesmo assim, faz parte das causas naturais).
Em suma: todas as proposições práticas que derivam do arbítrio, como causa, aquilo que a natureza pode conter, pertencem, em seu conjunto, à filosofia teórica, como conhecimento da natureza; somente as que dão à liberdade a lei são, segundo o conteúdo, especificamente diferentes daquelas. Pode-se dizer das primeiras: constituem a parte prática de uma filosofia da natureza, mas somente estas últimas fundam uma filosofia prática em particular.


Immanuel Kant, Introdução à crítica do juízo. 2 ed, [Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho], São Paulo: Abril Cultural, 1984 (Os Pensadores)


   

Como referenciar: "Trechos de livros" em Só Filosofia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 23/11/2024 às 09:25. Disponível na Internet em http://filosofia.com.br/trecho.php?pg=11