Trechos de livros
Leia trechos de obras, entrevistas, palestras dos principais filósofos.
Responsável - Equipe de ensino do Instituto Packter.
(07/Jan) A Ordem do Discurso, de Michel Foucault |
Ela congrega numa única figura todos os constrangimentos do discurso: os constrangimentos que limitam os seus poderes, os que refreiam os seus aparecimentos aleatórios, os que selecionam os sujeitos falantes. No início do século XVII, o Shogun tinha ouvido dizer que a superioridade dos europeus — na navegação, no comércio, na política, na arte militar — era devida ao conhecimento das matemáticas. Quis apoderar-se desse saber tão precioso. Como lhe tinham falado de um marinheiro inglês que possuía o segredo desses discursos maravilhosos, fê-lo vir ao seu palácio e aí o reteve. A sós com ele, recebeu lições. Aprendeu as matemáticas. Guardou para si próprio o poder destas e viveu até muito velho. Só houve matemáticos japoneses no século XIX. Mas a anedota não fica por aqui: tem a sua vertente europeia. Com efeito, a história pretende que o marinheiro inglês, Will Adams, era um autodidata: um carpinteiro que, por ter trabalhado num estaleiro naval, tinha aprendido geometria. Será necessário ver nesta narrativa a expressão de um dos grandes mitos da cultura europeia? Ao saber monopolizado e secreto da tirania oriental, a Europa oporia a comunicação universal do conhecimento, o intercâmbio indeterminado e livre dos discursos. |
(10/Ago) Sobre Jardins |
Deus Todo-Poderoso foi quem primeiro plantou um jardim. Na verdade, plantar jardins é o mais puro dos prazeres humanos, isto é, aquele que constitui maior repouso para o espírito do homem; sem jardins, edifícios e palácios não passam de construções grosseiras; e vemos sempre que, .à medida que os tempos desabrocham para a civilizarão e para a elegância, os homens se preocupam em construir edifícios grandiosos e a jardinar delicadamente, como se a jardinagem fosse o complemento máximo da perfeição. Eu deduzo da maneira como estão ordenados os jardins reais, os quais devem ser jardins para todos os meses do ano, durante os quais, frequentemente, belas flores devem então estar no seu tempo.
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(23/Jul) Ensaio Sobre o Entendimento Humano |
A FILOSOFIA MORAL, ou ciência da natureza humana, pode ser tratada de duas
maneiras diferentes; cada uma delas tem seu mérito peculiar e pode contribuir para o entretenimento, instrução e reforma da humanidade. A primeira considera o homem como nascido principalmente para a ação; como influenciado em suas avaliações pelo gosto e pelo sentimento; perseguindo um objeto e evitando outro, segundo o valor que esses objetos parecem possuir e de acordo com a luz sob a qual eles próprios se apresentam. Como se admite que a virtude é o mais valioso dos objetos, os filósofos desta classe pintam-na com as mais agradáveis cores e, valendo-se da poesia e da eloquência, discorrem acerca do assunto de maneira fácil e clara: o mais adequado para agradar a imaginação e cativar as inclinações.
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(30/Jun) O Existencialismo é um humanismo |
“Ao concebermos um Deus criador, identificamo-lo, na maioria das vezes, com um artífice superior, e, qualquer que seja a doutrina que considerarmos – quer se trate de uma doutrina como a de Descartes ou como a de Leibniz -, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos o entendimento ou, no mínimo, que o acompanha, e que Deus, quando cria, sabe precisamente o que está criando. Assim, o conceito de homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de corta-papel, no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo determinadas técnicas e em função de determinada concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Desse modo, o homem individualmente materializa certo conceito que existe na inteligência divina. No século XVIII, o ateísmo dos filósofos elimina a noção de Deus, porém não suprime a idéia de que a essência precede a existência.
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(11/Mai) A Arte Poética |
Da poesia e da imitação segundo os meios, o objeto e o modo de imitação
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(26/Mar) A PESTE |
"A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um de nossos concidadãos continuara suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deu-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se. Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio.
Na verdade, uma das consequências mais importantes do fechamento das portas foi a súbita separação em que foram colocados seres que para isso não estavam preparados. Mães e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns dias antes, a uma separação temporária, que se tinham beijado na plataforma da nossa estação, com duas ou três recomendações, certos de se reverem dentro de alguns dias ou algumas semanas, mergulhados na estúpida confiança humana, momentaneamente distraídos de suas ocupações habituais por essa partida, viram-se, de repente, irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem ou de se comunicarem. Sim, porque as portas tinham sido fechadas algumas horas antes de ser publicado o decreto do prefeito e, naturalmente, era impossível levar em conta os casos particulares. Pode dizer-se que essa invasão brutal da doença teve, como primeiro efeito, o de obrigar nossos concidadãos a agir como se não tivessem sentimentos individuais. Nas primeiras horas do dia em que o decreto entrou em vigor, a prefeitura foi invadida por uma multidão de requerentes que, ao telefone ou junto aos funcionários, expunham situações igualmente interessantes e, ao mesmo tempo, igualmente impossíveis de examinar. A bem da verdade, foram necessários vários dias para que nos déssemos conta de que nos encontrávamos numa situação sem compromissos e que as palavras ”transigir”, ”favor”, ”exceção” já não tinham sentido. Até mesmo a leve satisfação de escrever nos foi recusada. Por um lado, com efeito, a cidade já não estava ligada ao resto do país pelos meios de comunicação habituais e, por outro, um novo decreto proibiu a troca de qualquer correspondência, a fim de evitar que as cartas pudessem transformar-se em veículos de infecção. A princípio, alguns privilegiados puderam chegar às portas da cidade e entender-se com sentinelas dos postos de guarda que concordaram em facilitar a passagem de mensagens para o exterior. Isso era ainda nos primeiros dias da epidemia, em que os guardas achavam natural ceder a sentimentos de compaixão. No entanto, ao fim de algum tempo, quando os próprios guardas se convenceram realmente da gravidade da situação, recusaram-se a assumir responsabilidades cuja extensão não podiam prever. As comunicações telefónicas interurbanas, autorizadas a princípio, provocaram tal congestionamento nas cabines públicas e nas linhas, ;ue foram totalmente suspensas durante alguns dias e, depois, estritamente limitadas aos chamados casos urgentes, como morte, nascimento e casamento. Os telegramas tornaram-se, então, nosso único recurso. Seres ligados pela inteligência, pelo coração e pela carne ficaram reduzidos a procurar os sinais dessa comunhão antiga nas maiúsculas de um telegrama de dez palavras. E como, na realidade, as fórmulas que se podem utilizar num telegrama se esgotam depressa, longas vidas em comum ou paixões dolorosas resumiram-se rapidamente numa troca periódica de fórmulas feitas como ”Estou bem. Penso em ti. Saudades”. Alguns, contudo, obstinavam-se em escrever e, sem trégua, para se corresponder com o exterior, imaginavam estratagemas que acabavam sempre por se revelar ilusórios. Mesmo quando alguns dos meios que tínhamos imaginado obtinham êxito, ficávamos sem sabê-lo, por não recebermos qualquer resposta. Durante semanas ficamos, então, reduzidos a recomeçar sempre a mesma carta, a copiar as mesmas informações e os mesmos apelos, se bem que, depois de um certo tempo, as palavras de sangue, ditadas pelo coração, perdiam o seu sentido. Então, nós as copiávamos maquinalmente, tentando, por meio dessas frases mortais, dar sinais de nossa vida difícil. E, finalmente, a esse monólogo estéril e teimoso, a essa conversa árida com uma parede, o apelo convencional do telegrama parecia-nos preferível. Aliás, alguns dias depois, quando se tornou evidente que ninguém conseguiria sair da cidade, alguém teve a ideia de perguntar se o regresso dos que haviam partido antes da epidemia podia ser autorizado. Depois de alguns dias de reflexão, a prefeitura respondeu afirmativamente. Mas logo estabeleceu que os repatriados não poderiam, em caso algum, voltar a sair da cidade e que, se eram livres para vir, não o seriam para tornar a partir. Algumas famílias, poucas aliás, não levaram a situação a sério e, sobrepondo a qualquer prudência o desejo de rever os parentes, convidaram estes últimos a aproveitar a ocasião. No entanto, os prisioneiros da peste logo compreenderam o perigo a que expunham os parentes e resignaram-se a sofrer a separação. No momento mais grave da doença, só se viu um caso em que os sentimentos humanos foram mais fortes que o medo de uma morte torturada. Ao contrário do que se poderia esperar, não eram dois amantes, que o amor atirava um para o outro, acima do sofrimento. Tratava-se apenas do velho Dr. Gastei e de sua mulher, casados há tantos anos. Alguns dias antes da epidemia, Mme Gastei dirigira-se a uma cidade vizinha. Não eram sequer um desses casais que oferecem ao mundo o exemplo de uma felicidade invejável, e o narrador está em condições de dizer que, segundo todas as probabilidades, esses esposos, até então, não tinham a certeza de estarem satisfeitos com a sua união. Mas essa separação brutal e prolongada os capacitara a afirmar que não conseguiam viver afastados um do outro e que, diante dessa verdade subitamente revelada, a peste era coisa sem importância".
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(15/Mar) O desespero Humano |
Desespero virtual e desespero real
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(02/Mar) ESCRITOS POLÍTICOS DE TOMÁS DE AQUINO |
ARGUMENTO DA OBRA
1. Ao cogitar eu do que ofereceria digno da vossa excelência real e conveniente à minha profissão e ofício, ocorreu me que, melhor havia de fazê-lo, escrevendo um livro sobre o governo régio, no qual expusesse acuradamente a origem do reino e quanto compete ao ofício de rei, segundo a autoridade da divina Escritura, os ensinamentos dos filósofos e os exemplos dos príncipes mais dignos de louvores, consultando o que possa a minha inteligência e confiando o princípio, progresso e consumação da obra ao auxílio daquele que é Rei dos reis e Senhor dos senhores, pelo qual reinam os reis: Deus, grande Senhor e rei magno sobre todos os deuses.
Capítulo II
2. Para pôr em obra o nosso intento, cumpre começarmos pela exposição do que se há de compreender pelo nome de rei. Ora, em todas as coisas ordenadas a algum fim, em que se possa proceder de um modo ou doutro, é mister haver algum dirigente, pelo qual se atinja diretamente o devido fim. Com efeito, um navio, que se move para diversos lados pelo impulso dos ventos contrários, não chegaria ao fim de destino, se por indústria do piloto não fora dirigido ao porto; ora, tem o homem um fim, para o qual se ordenam toda a sua vida e ação, porquanto age pelo intelecto, que opera manifestamente em vista do fim. Acontece, porém, agirem os homens de modos diversos em vista do fim, o que a própria diversidade dos esforços e ações humanos patenteia. Portanto, precisa o homem de um dirigente para o fim. Tem todo homem, dada naturalmente, a luz da razão, pela qual é dirigido ao fim, nos seus atos. E, se conviesse ao homem viver separadamente, como muitos animais, não precisaria de quem o dirigisse para o fim, senão que cada qual seria rei para si mesmo sob o supremo rei, Deus, uma vez que, pela luz da razão, a ele dado divinamente, a si mesmo dirigiria nos seus atos. É, todavia, o homem, por natureza, animal sociável e político, vivendo em multidão, ainda mais que todos os outros animais, o que se evidencia pela natural necessidade. Realmente, aos outros animais preparou a natureza o alimento, a vestimenta dos pêlos, a defesa, tal como os dentes, os chifres, as unhas ou, pelo menos, a velocidade para a fuga. Foi, porém, o homem criado sem a preparação de nada disso pela natureza, e, em lugar de tudo, coube-lhe a razão, pela qual pudesse granjear, por meio das próprias mãos, todas essas coisas, para o que é insuficiente um homem só. Por cuja causa, não poderia um homem levar suficientemente a vida por si. Logo, é natural ao homem viver na sociedade de muitos.
3. Ademais: têm os outros animais inato o discernimento natural do que lhes é útil ou nocivo, como a ovelha vê, naturalmente, no lobo, um inimigo. Há, até, certos animais que, por aptidão natural, conhecem ervas medicinais e outras coisas necessárias à vida deles. O homem, no entanto, possui somente em geral o conhecimento natural do que lhe é necessário à sua vida, como quem possa chegar, dos primeiros princípios universais, ao conhecimento das coisas particulares necessárias à vida humana. Ora, não é possível abarcar um homem todas essas coisas pela razão. Por onde é necessário ao homem viver em multidão, para que um seja ajudado por outro e pesquisem nas diversas matérias, a saber, uns na medicina, outro nisto, aqueloutro noutra coisa.
4. Logo, se é natural ao homem o viver em sociedade de muitos, cumpre haja, entre os homens, algo pelo que seja governada a multidão. Que, se houvera muitos homens e tratasse cada um do que lhe conviesse, dispersar-se-ia a multidão em diversidade, caso também não houvesse algo cuidando do que pertence ao bem da multidão, assim como se corromperia o corpo do homem e de qualquer animal, se não existira alguma potência regedora comum, visando ao bem comum de todos os membros. Isso podendo, diz Salomão (Pr 11,14): Onde não há governante, dissipar-se-á o povo. E, por certo, é razoável pois não são idênticos o próprio e o comum. O que é próprio divide, e o comum une. Aos diversos correspondem causas diversas. Assim, importa existir, além do que move ao bem particular de cada um, o que mova ao bem comum de muitos. Pelo que, em todas as coisas ordenadas se acha algum diretivo mais elevado. E, no mundo dos corpos, o primeiro corpo, isto é, o celeste, dirige os demais, por certa ordem da divina providência, e a todos os corpos os rege a criatura racional. Igualmente, no homem a alma rege o corpo, e, entre as partes da alma, o irascível e o concupiscível são dirigidos pela razão. Também, entre os membros do corpo, um é o principal, que todos move, como o coração, ou a cabeça. Cumpre, por conseguinte, que, em toda multidão, haja um regente.
5. Assim como sucede em certas coisas ordenadas a um fim, andar direito ou não, também no governo da multidão se dá o reto e o não-reto. Uma coisa dirige-se retamente, quando vai para o fim conveniente; não-retamente, porém, quando vai para o fim não-conveniente. Um, porém, é o fim conveniente à multidão dos livres, e outro à dos escravos; visto como o livre é a sua própria causa, ao passo que o escravo, no que é, pertence a outrem. Se, pois, a multidão dos livres é ordenada pelo governante ao bem comum da multidão, o regime será reto e justo, como aos livres convém. Se, contudo, o governo se ordenar não ao bem comum da multidão, mas ao bem privado do governante, será injusto e perverso o governo. Daí ameaçar o Senhor tais governadores, por Ezequiel (34,2): Ai dos pastores que a si mesmos se apascentavam (como procurando os seus próprios interesses) ? porventura não são os rebanhos apascentados pelos pastores. Em verdade, devem os pastores buscar o bem do rebanho e os governantes o bemda multidão a eles sujeita. Caso, então, seja exercido por um só o governo injusto, buscando pelo governo os seus interesses e não o bem da multidão a si sujeita, tal governante se chama tirano, nome derivado de força, porque oprime pelo poder, ao invés de governar pela justiça; por isso também, entre os antigos, os potentados se chamavam tiranos. Fazendo-se, entretanto, não por um só, senão por vários, se bem que poucos, chama-se oligarquia, isto é, principado de poucos, dado que esses poucos, por terem riquezas, oprimem sua plebe, diferindo do tirano apenas no número. Se, porém, o regime iníquo se exerce por muitos, nomeia-se democracia, quer dizer, poder do povo, sempre que o povo dos plebeus oprime os ricos pelo poder da multidão, sendo então todo o povo como que um só tirano. Semelhantemente se há de também fazer distinção quanto ao regime justo. Se a administração está com uma multidão, se lhe chama com o nome comum de politia, como quando a turbamulta dos guerreiros domina na cidade ou no país. E, se administram poucos, mas virtuosos, chama-se aristocracia tal governo, isto é, poder melhor, ou dos melhores, que, por isso, se chamam optimates. Pertencendo, porém, a um só o governo justo, chama-se ele, propriamente, rei; donde o dizer, por Ezequiel (37,24), o Senhor: o meu servo Davi será rei sobre todos e ele ser-lhe-á, de todos, um pastor único.
AQUINO,Tomás de. Escritos políticos. Tradução de Francisco Benjamin de Souza Neto.Petrópolis, RJ : Vozes, 1995. (Clássicos do pensamento político)
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