Herbert Spencer – A Justiça ÍNDICE PREFACIO DO AUTOR CAPÍTULO I. - Moral animal II. - A Justiça infra-humana III. - A Justiça humana IV. - O Sentimento de Justiça V. - A ideia de Justiça VI. - A fórmula da Justiça VII. - A autoridade da fórmula da Justiça VIII. - Os corolários da fórmula da Justiça IX. - O direito à integridade física X. - O direito à liberdade de movimentos e de deslocação XI. - Direitos ao uso dos agentes naturais XII. - O direito de propriedade XIII. - O direito à propriedade incorpórea XIV. - O direito de dar e de legar XV. - O direito de trocar e contratar livremente XVI. - O direito à liberdade do trabalho XVII. - O direito à liberdade de crenças e o direito à liberdade de cultos CAPÍTULO XVIII. - O direito à liberdade da palavra e o direito à liberdade de publicação XIX. - Exame retrospectivo e argumentação nova XX. - Os direitos das mulheres XXI. - Os direitos das crianças XXII. - Os chamados direitos políticos XXIII. - Da natureza do Estado XXIV. - A constituição do Estado XXV. - Os deveres do Estado XXVI. - Os limites dos deveres do Estado XXVII. - Os limites dos deveres do Estado (continuação) XXVIII. - Os limites dos deveres do Estado (continuação) XXIX. - Os limites dos deveres do Estado (fim) APÊNDICE A - A concepção de Kant acerca do Direito B - A questão da propriedade da terra C - O Motivo Moral D - A consciência nos animais PREFACIO DO AUTOR Alguns avisos, repetidos nestes últimos anos com intervalos mais breves e com mais clareza, dizia eu no Prefacio das Bases da Moral Evolucionista (The Data of Ethics), publicadas no mês de junho de 1879, demonstraram-me que eu poderia ficar privado das minhas forças - supondo mesmo que a minha vida se prolongue - antes de ter acabado a tarefa que a mim próprio me impus. E acrescentava que sendo «a última parte desta tarefa – a filiação da Moral na doutrina da Evolução – aquela para a qual todas as partes precedentes não são mais, em meu entender, do que uma preparação, era-me penível prever que não chegaria talvez a pô-la em prática. Eis o motivo por que me decidi a escrever imediatamente e por antecipação a obra sobre a Moral evolucionista. Uma doença, cujos caráteres se aproximavam da catástrofe prevista, abateu-se gradualmente sobre mim. Durante anos a minha saúde e a minha potência para o trabalho declinaram: este declínio chegou, em 1886, a um esmorecimento completo, parando todo o progresso na elaboração da Filosofia Sintética até aos primeiros dias de 1890. A partir desta época pude novamente assegurar-me cada dia duma parte de trabalho sério. Breve surgiu a pergunta: Por onde começar? Sem hesitar decidi-me a completar primeiro os meus Princípios de Moral, pois que as grandes divisões dos Princípios de Sociologia estavam já terminadas. Mas uma nova questão se apresentava: «A que parte dos Principias de Moral dar a primazia?» Como o resto da minha energia não me sustentará provavelmente até ao final da minha tarefa, conclui que seria acertado começar pela parte mais importante da minha obra inacabada. Deixando provisoriamente repousar a segunda parte - «As Induções da Moral» - e a terceira - «A Moral da Vida Individual», consagrei-me a quarta: «A Moral e a vida Social: A Justiça», que neste momento tenho a felicidade de acabar. Se a continuação das melhoras da minha saúde persistirem, espero poder fazer aparecer, lá para o fim do ano, a segunda e a terceira parte, que formarão o complemento do primeiro volume; se ainda estiver em estado de prosseguir no meu trabalho, abordarei a quinta parte: «A Moral da Vida Social: A Beneficência Negativa», e a sexta parte: - «A Moral da Vida Social: A Beneficência Positiva». A presente obra abrange um âmbito que coincide, em grande parte, com o da minha Estática Social, publicada em 1850. Entretanto, estes dois livros diferem pela extensão, pela forma e, até certo ponto, pelas ideias. Diferem principalmente nisto: tudo o que, no meu primeiro livro, era interpretado como sendo de ordem sobrenatural, desapareceu do segundo, em que tudo interpretei sem sair da ordem natural, isto é, evolucionaria. Mais, a Estática Social não ia além da indicação da origem biológica da Moral, ao passo que a exponho agora com precisão: a elaboração das consequências desta origem imprime o seu caráter primacial ao meu presente livro. Também fiz assentar cada vez mais a dedução sobre a indução. Para cada caso particular, provei que a corrente do progresso humano tem, um a um, confirmado todos os corolários do primeiro princípio que enunciei. Creio dever acrescentar que os cinco primeiros capítulos deste livro já foram publicados na Nine-teenth Century (n.05 de março e abril de 1890). Londres, junho de 1891. H.S. A JUSTIÇA CAPÍTULO I Moral animal § 1. - A epígrafe deste capítulo surpreenderá, talvez, aqueles dos leitores que não conheçam a primeira parte da minha obra: «As bases da moral evolucionista,» mas os que, tendo-a lido, se lembrarem da matéria expendida nos capítulos intitulados «a conduta em geral» e a «evolução da conduta» avaliarão imediatamente o que eu entendo pela expressão - Moral animal. (Eis alguns extratos das passagens a que o autor se refere: ... A conduta, na acepção lata do termo, deve ser considerada como abrangendo todas as adaptações dos atos aos fins, desde os mais simples aos mais complexos, qualquer que seja a especial natureza destes e quer a consideremos em conjunto, quer em separado. (As Bases da moral evolucionista, pag. 3). ... A definição de Conduta a que somos levados é esta: ou o conjunto de vários atos concernentes a um mesmo fim, ou a adaptação de diversos atos a diversos e respectivos fins... (id. Pag. 3). ... Do exposto se infere, que a Moral tem por embrião a forma que reveste a conduta universal nas últimas fases da sua evolução (id. Pag. 15) ... Abstraindo agora de outros dos seus fins, podemos desde já concluir que é boa a conduta que damos da conservação dos indivíduos e má a conduta que tende para a destruição deles (id. Pag. 20)). ficou demonstrado nesses capítulos que a Conduta de que a ciência da Moral trata, não deve ser separada da ciência da Conduta em geral, e que a mais perfeita conduta é aquela que assegure mais duradoura, mais ampla e mais complexa vida. Esclarecido ficou também que cada espécie de animais tem as suas regras privativas de conduta, regras duma bondade relativa e que atuam nessa espécie da mesma maneira que atuam na espécie humana as leis de conduta moral que lograram unânime assentimento. Há muita gente que pensa que a Moral tem por objeto o estudo da Conduta sob o ponto de vista da aprovação ou de censura que os atos determinam. Não é, porém, assim: o seu primordial objetivo é o da conduta, qualquer que ela seja, e embora produza bons ou maus efeitos para quem a exerce, ou para outrem, ou para quem a exerce e para outrem conjuntamente. Com efeito, as próprias pessoas que assinalam à Moral como única missão: a de distribuir elogios ou vitupérios, reconhecem tacitamente que existe uma moral aplicável aos animais, por que os atos desses animais ocasionam nelas umas vezes simpatia e antipatia, outras. A ave que voa solícita à busca de alimento para a sua companheira, enquanto esta fica retida no ninho a chocar os ovos com o calor do seu corpo, merece-lhes louvores. Quando uma galinha come os ovos que pôs, ou não os choca, é censurada; e, ao contrário, provoca admirativas frases o facto de defender com bravura de inimigos ataques, os seus pintainhos. Os atos egoístas ou altruístas dos animais são, pois, classificados como boas ou más ações. Aplaude-se e acha-se natural que o escorialo faça durante o estio as suas provisões para o inverno e consideram-se como justiceiramente castigados, pela sua imprevidência, aqueles destes roedores que morrem de inanição em resultado da sua falta de previdência. É frequente apodarmos de covarde o cão que abandona sem luta o osso que estava roendo e que outro cão lhe arranca. É, portanto, certo que julgamos como bons ou como maus os atos dos animais, consoante estes são úteis ou nocivos para conservação da espécie, ou do indivíduo. § 2. - Estes exemplos de atos egoístas e de atos altruístas conduzem-nos à descoberta dos dois princípios cardiais e opostos da ética animal. Durante a infância dos animais, o auxílio e o mimo é-lhes prestado na razão inversa da aptidão para subsistirem por si próprios. O membro mais favorecido do grupo familiar é exatamente aquele que menos mereceria sê-lo, se o seu merecimento fosse avaliado pelos serviços que presta. Dá-se o contrário na idade adulta; então, as vantagens estão na razão direta do mérito, sendo este determinado pela adaptação às condições da existência. Os mais fortes e os mais hábeis gozam os resultados da sua adaptação perfeita; os que o são menos sofrem as consequências de uma adaptação defeituosa. Tais são as duas leis às quais uma espécie deve conformar-se para lograr duração. Nos tipos animais inferiores, os pais não se ocupam da progénie senão para colocarem ao alcance dos germens diminutas quantidades de alimentos. A grande fecundidade contrabalança neles a grande mortalidade. Quanto, porém aos tipos animais superiores, é certo que a espécie teria pouca dura se as vantagens obtidas pelos mais pequenos fossem proporcionais aos serviços por eles prestados; e, se, por outro lado, as vantagens concedidas aos adultos estivessem na razão direta da sua fraqueza, a espécie decresceria e extinguir-se-ia ao fim de poucas gerações. § 3. - Como devem ser apreciados estes princípios à luz da ética? Primeiro que tudo convêm dizer que - excepção feita para as espécies mais ínfimas - estes princípios tem sido a salvaguarda da vida animal. Pondo de lado os protozoários, cuja vida é rudimentar e mal perceptível, vê-se que sem os benefícios assegurados gratuitamente à juventude do grupo familiar e sem as vantagens alcançadas aos esforços dos adultos, a vida animal teria deixado de existir. Em segundo lugar, convêm salientar que foi em virtude ainda dos dois princípios exarados que a vida evoluiu gradualmente até às suas mais elevadas formas. Pela solicitude de que tem sido rodeada a progenitura - solicitude que vem gradualmente. engrandecendo com os progressos da organização das mesmas espécies - pela sobrevivência dos adultos mais aptos para a concorrência, a qual também se torna mais frequente em razão dos progressos da sua organização, tem sido perpetuamente favorecido o aperfeiçoamento da vida animal e novos e sucessivos progressos incessantemente lhes serão assegurados. Por outra banda, é necessário salientar que a solicitude para a menoridade, que diante de nenhum sacrifício recua, e a luta pela existência entre os adultos, tem espalhado a carnificina e a morte desde os primórdios da evolução da vida, tornando-se uma das características dessa evolução. A conservação e o desenvolvimento da vida de umas espécies realizam-se à custa da vida de outras e pela vitória alcançada contra seres menos hábeis, ou mais fracos. Convêm frisar além disso que a evolução progressiva devida à persistência e prevalecimento dos dois mencionados princípios é a responsável pela gestação e multiplicação dos parasitas cruéis, cujo número excede enormemente o dos outros seres conhecidos. O conhecimento destes princípios há de irritar os pessimistas que se dediquem ao estudo da vida animal. Todavia, quem encarar a vida pelo seu aspecto de conjunto e através do prisma otimista ou melhorista e que aceite o postulado do hedonismo encontrará neles motivos para uma satisfação mais ou menos completa e aplaudirá a sua execução. A crença popular considera os princípios expostos como manifestação da vontade divina; para o agnóstico revelam eles a ação do Poder Incognoscível que rege o Universo. Qualquer das duas opiniões representa afinal uma justificação. § 4. - Não nos envolveremos, por agora, numa controvérsia a fundo entre o pessimismo e otimismo; basta que tomemos para ponto de partida um postulado hipotético e que o limitemos a uma espécie isolada. Da hipótese de que a conservação e a prosperidade dessa espécie são desejáveis, tirar-se-á uma conclusão de caráter genérico. Por seu turno, dessa generalidade advirão três outras conclusões de mais restrita extensão. A conclusão de caráter genérico é a de que, na hierarquia das obrigações, a conservação da espécie prefere à conservação do indivíduo. Verão que a espécie não é senão um agregado de indivíduos, o bem-estar da espécie só constitui um fim pelo que ele constitui para o bem-estar dos indivíduos que a formam. Mas a desaparição da espécie implica a de todos os indivíduos e a impossibilidade absoluta de realizar esse fim, ao passo que a perda de indivíduos, embora em elevada quantidade, pode permitir a existência de um número suficiente para que, graças à continuação da espécie, a realização do fim básico dessa espécie se torne realizável. Em caso de conflito, a preservação do indivíduo, deve, pois, subordinar-se à preservação da espécie, numa gradação variável com as circunstâncias. Os corolários são: 1 - Os adultos devem subordinar-se à lei que lhes assegura vantagens na direta proporção dos méritos que possuam, avaliando-se estes pelo seu maior ou menor poder de auto sustentação. No caso contrário, a espécie perigaria dos dois modos seguintes: arriscava-se num futuro próximo à perda dos indivíduos superiores que seriam sacrificados aos inferiores e daí adviria um prejuízo para a soma total de bem-estar; e sofreria num futuro mais longínquo a propagação de seres inferiores que entravaria a dos superiores, determinando um enfraquecimento geral da espécie da qual adviria, como consequência última, a extinção duma espécie. 2 - Durante a menoridade, em quanto o auto sustento não é possível, e mesmo depois quando ele se realiza ainda imperfeitamente, o auxílio prestado deve ser tanto maior quanto menor for a aptidão dos novos membros familiares. As vantagens devem, pois, ser na razão inversa das aptidões, tornando-se para escala destas o poder de auto sustento. Sem a concessão gratuita de auxílio à progenitura, gratuidade completa ao princípio e que depois vai sucessivamente afrouxando à medida que o indivíduo se aproxima da idade adulta, a espécie extinguir-se-ia pela extinção da prole. É quase inútil acrescentar, por obvio, que o que dito ficou implica, da parte dos adultos, uma subordinação proporcional e voluntária. 3 - A esta subordinação do indivíduo imposta pelos liames do parentesco, junta-se, em vários casos, uma subordinação do indivíduo ulterior. Quando a constituição da espécie e as suas condições de existência são tais que o sacrifício total ou parcial de alguns dos seus membros contribua para a prosperidade comum, assegurando à espécie um número maior de indivíduos, esse sacrifício tornou-se justificado. Ficam formuladas as leis às quais uma espécie se deve subordinar para lograr duração. Se a conservação duma espécie, constitui um desideratum, resultará daí para ela uma obrigação de se conformar com essas leis, obrigação que, conforme as circunstâncias, designaremos por ética ou quase ética. CAPÍTULO II A Justiça infra-humana § 5. - Dos dois princípios, essenciais, mas opostos, cujo exercício persistente assegura a conservação da espécie, ocupar-nos-emos aqui tão somente do segundo. Pondo de parte, a lei que rege a família constituída por adultos e menores, vamos estudar exclusivamente a lei que se impõe à espécie ou que se refere aos adultos. Acentuámos já, que em conformidade com esta última lei, os indivíduos de mais perfeita adaptação às condições da existência gozam de maiores proveitos, ao passo que os indivíduos inferiores obtêm vantagens menores, sofrem males maiores, ou, são simultaneamente vítimas duma e doutra coisa. No ponto de vista biológico, esta lei implica a sobrevivência dos mais aptos e pode, em linguagem científica formular-se assim: Todo o indivíduo tem que sujeitar-se aos efeitos da sua própria natureza e à linha de conduta que essa natureza lhe impõe. O princípio que acabámos de expor impera sem restrição alguma em todos os domínios da animalidade, por que não há forças que consigam modificar as relações entre a conduta e as consequências que dela se derivam. No intuito de melhor podermos apreciar o alcance deste princípio, deter-nos-emos por uns instantes no estudo duma lei análoga, ou antes, da mesma lei, mas manifestando-se noutro campo. Com efeito, o princípio da subordinação do indivíduo à linha de conduta que a natureza lhe dita não a impõe unicamente aos indivíduos duma mesma espécie, - bem ou mal providos conforme a sua atividade está bem ou mal adaptada, - efetua-se também nas relações recíprocas entre os órgãos e sistemas dum mesmo indivíduo. Os músculos, as glândulas, as vísceras, recebem uma irrigação sanguínea proporcional à função que exercem. Se um órgão se torna preguiçoso, desocupado, o afluxo do sangue diminui e esse órgão atrofia-se; se um órgão exercer a sua função com atividade, a sua alimentação sanguínea aumenta e esse órgão desenvolve-se. Deste equilíbrio entre o desgaste pelo exercício e a nutrição sanguínea dum órgão resulta um outro equilíbrio entre as funções relativas das diferentes partes dum organismo. No seu conjunto, um organismo torna-se apto para a vida, em resultado das adaptações parciais de cada uma das partes que o constituem para os serviços que lhes incumbe desempenhar. Salta aos olhos que este princípio da auto adaptação, privativa de cada indivíduo, é paralela à lei de adaptação do conjunto da espécie ao seu habitat. A mais abundante e melhor nutrição e a prolificidade maior dos membros das espécies que gozem de atividades e faculdades mais perfeitamente adaptadas às suas necessidades, coincidindo com a sustentação defeituosa e causante de detrimento para eles próprios e para a sua progénie, dos indivíduos dotados de faculdades, atividades de menos perfeita adaptação, determinam o predomínio de expansão da espécie melhor dotada, assegurando-lhe a sobrevivência nas condições do meio que os cerca. Tal é, pois, a lei da justiça infra-humana: cada indivíduo receberá os proventos e sofrerá os prejuízos inerentes à sua própria natureza e derivados da conduta que essa natureza estabelece. § 6. - A justiça infra-humana é, tanto em conjunto como em pormenor, extremamente imperfeita. É imperfeita em conjunto, porque existem inumeráveis espécies cuja subsistência se efetiva pela destruição em globo doutras espécies e ainda porque estas últimas servindo em globo de presa às primeiras, dão margem a que não persistam senão para um mínimo número de indivíduos as relações entre eles e a sua conduta e entre essa conduta e as consequências que dela deveriam resultar. Podemos, em verdade, considerar a perda prematura da vida da quase totalidade dos membros exterminados pelos seus inimigos, como uma consequência da sua incapacidade para a luta contra as forças destrutivas a que estão expostos. Todavia, não devemos deixar de reconhecer que esse violento extermínio duma enorme maioria de indivíduos de certas espécies atesta que a justiça, tal como a concebemos, poucas ocasiões têm para se afirmar. A justiça infra-humana é imperfeita em pormenor por que as relações entre a conduta e as consequências que dela derivam são perturbadas a cada passo, por catástrofes que os vitimam indistintamente, seja qual for o grau da sua adaptação para a luta em circunstâncias normais. A vida animal sofre inumeráveis mortandades causadas pelos rigores da temperatura e que tanto ferem os indivíduos fracos dessa espécie como os mais resistentes. Outros morticínios inumeráveis têm a fome por motivo e anulam em larga escala tanto os indivíduos de boa adaptação como os de má. Os inimigos dos tipos menos elevados da série animal são também causa da destruição indistinta desses tipos. Surgem contra eles invasões de parasitas, muitas vezes devastadoras, que a todos atacam sem distinção das suas melhores ou piores qualidades de adaptação. A grandíssima prolificidade dos animais inferiores, necessária para compensação da sua enorme mortalidade, mostra que para eles a superioridade não assegura uma prolongada sobrevivência. Nestes estados da série animal, a justiça infra-humana, constituída pela relação contínua entre a conduta e os resultados, só excepcionalmente rege os casos individuais. § 7. - Chegámos enfim a uma proposição elevadamente significativa e é que: a justiça infra-humana se acentua à medida que a organização animal se vai tornando superior. Pouco importa que a andorinha abique no espaço tal ou tal inseto, que o ichneumon faça uma devastação num ninho de lagartas, que um cetáceo engula este ou aquele arenque. Esses acontecimentos dão-se independentemente das qualidades particulares das vítimas; quer tenham boas quer más qualidades de adaptação orgânica estão expostas às mesmas contingências perante o inimigo. Já não sucede o mesmo com os seres de mais elevado tipo. A acuidade dos sentidos, a sagacidade, a agilidade etc. dão a certos carnívoros uma especial facilidade para se apoderar da vítima; mas num rebanho de herbívoros, o animal dotado de mais fino ouvido, de mais penetrante vista, de mais subtil olfato, ou de maior celeridade, é também o que terá mais probabilidades de escapar ao duro ataque. É evidente que à medida que as qualidades físicas e mentais duma espécie se aperfeiçoam e, com elas, a sua aptidão para evitar os perigos que surjam, a continuação da existência de cada indivíduo tornar-se-á, cada vez, mais independente dos acidentes de força maior. Quanto mais se acentuarem os resultados desta superioridade geral, tanto mais relevo adquirirão também os resultados das superioridades especiais. As diferenças entre as faculdades individuais terão uma influência mais preponderante sobre a sorte deles. Assim, a falta ou a inferioridade duma faculdade abreviar-lhes-á a vida; opostamente, possuindo essa faculdade com grande grau de desenvolvimento, a sua vida tem condições superiores de duração. Quer isto dizer que à medida que vão ascendendo na série animal os indivíduos se tornam, cada vez mais, vassalos da lei de relação entre a sua natureza privativa e a conduta que essa natureza impõe. Noutros termos: a justiça aparece na escala animal tanto mais nítida quanto mais alto é o grau dessa escala. § 8. - A natureza da justiça infra-humana ficou suficientemente explicada pelo que respeita aos seres que passam vida solitária. Passando, porém, destes aos que vivem em agrupamentos, descobre-se. um elemento novo. Pelo simples facto dum agrupamento, tal como o dum rebanho de gamos, o indivíduo e a espécie só adquirem vantagens pela salvaguarda mais eficaz que resulta da superioridade duma grande quantidade de olhos, de ouvidos e de narizes sobre os olhos, os ouvidos e o nariz dum indivíduo isolado. Sendo dado a tempo o aviso de alarme, todos põem em jogo para a defesa os seus mais perspicazes sentidos. Por vezes, esta cooperação a que chamaremos passiva, transmuda-se numa cooperação ativa, como, por exemplo: nos bandos de corvos em que um fica de vigia enquanto os outros se alimentam; nos cimarrões (J. Oswald, Zoological Sketches, 61), variedade óvidea muito perseguida, das regiões montanhosas da América central que distribuem também sentinelas pelos pontos eminentes dos locais onde pousam; nos castores que organizam postos avançados de vigilância em quanto realizam os seus admiráveis trabalhos de engenharia hidráulica; nos lobos (Animal intelligence, de Romanes, Londres 1882, pag. 436) que preconcebem um plano de ataque em que se distribui a cada um, ou a cada grupo, um objetivo especial a realizar e, conseguindo assim, apossar-se de presas que lhes escapariam diferenciada cooperação. Estes fados demonstram que estamos em presença de crescentes vantagens para os indivíduos e para a espécie, o que nos permite fazer a afirmação genérica de que o estado de agregação, ou de cooperação mais ou menos ativa, tem como única determinante as vantagens que desse estado ou dessa cooperação advém para os indivíduos e para a espécie que organiza esses estados. Do contrário, o predomínio dos mais fortes opor-se-ia a que tais estados se efetuassem. Note-se que esta vantajosa associação só em determinadas condições se torna possível. A procura do sustento de cada um é, por vezes, mais ou menos perturbada pela presença doutros indivíduos da mesma espécie e com o mesmo intuito, o que dá lugar a lutas reciprocas e mais ou menos enérgicas. Se estas incompatibilidades se multiplicarem, a associação deixa de tornar-se util. Para que ela continue a sê-lo é necessário que essas dissenções fiquem restritas, de modo a subsistir um excedente de vantagens. Caso contrário, o predomínio dos mais fortes extirpará na espécie a variedade que na associação havia começado a formar-se. E aqui nos aparece um fator novo da justiça infra-humana. Submetendo-se aos benefícios e inconvenientes inerentes à sua natureza e a conduta que essa natureza lhes prescreve, cada indivíduo só pode seguir essa conduta até ao limite em que ela não embarace, pelo excesso, a conduta pela qual os outros indivíduos da associação colhem benefícios ou evitam contrariedades. A conduta média não deve, pois, ser agressiva até ao ponto de anular as vantagens derivadas da associação. Assim, ao elemento positivo da justiça infra-humana acresce para os agregados animais um elemento negativo. § 9. - A necessária observância do preceito de que cada membro do grupo, obtida a alimentação para si próprio e para sua prole, não deve entravar a ocupação dos associados, contribui para a educação da espécie em que a associação se estabelece. Os inconvenientes experimentados a cada violação destas restrições exercem uma ação disciplinadora e contínua e ensinam os associados por modo que um respeito às regalias dos outros se transforma num lema genérico e dominante, um traço caraterístico e natural da espécie. Com efeito, é obvio que a transgressão habitual de tais restrições implicaria a dissolução do agrupamento. Só podem permanecer no estado agregativo as variedades em que prevalece a tendência hereditária para respeitar a conduta média dos demais associados. Desenvolve-se assim pouco a pouco, uma apreciação consciente e geral da necessidade de manter esses limites e criam-se castigos para os membros que os transgridem, os quais são infligidos não apenas pelos membros lesados, mas por todo o agrupamento. O elefante «vagabundo» (isto é, o que se distingue pela sua maldade) sofre a expulsão do rebanho, de certo pelo seu génio agressivo. Ha quem afirme que os castores preguiçosos (Dallas in Cassell's Natural History, III, 99) são rechaçados pela colónia para que não logrem benefícios gratuitos do trabalho alheio. É sabidíssimo que as abelhas operárias matam os zangãos que se tornaram inúteis. Tem-se observado em diversos países que as gralhas (Romanes. - Animal Intelligence, 323-5) depois de acalorada e longa discussão executam sumariamente o associado que se tornou culpado. Uma testemunha ocular assegura que, quando um casal de corvos rouba aos outros os materiais para a construção do ninho, estes lhe destroem violentamente para castigo da violação praticada. A condição a priori da cooperação harmônica é, pois, tacitamente reconhecida como uma quase lei, visto que se estabelecem penalidades para a sua transgressão. § 10 - Nos animais que passam vida solitária, o lema primordial da justiça infra-humana, que exige que cada indivíduo se sujeite às consequências favoráveis ou prejudiciais da sua natureza privativa e da linha de conduta que ela implica, princípio que conduz ao predomínio dos mais fortes e mais hábeis, só implica obrigações para a prole. Os atos puramente egoístas, de auto sustentação que prevalecem nestes animais são dominados durante o período da vida consagrado à reprodução, pelas restrições que se tornam necessárias para a educação da progenitura. Além destas restrições, nenhumas outras se dão neles. No período do nascimento dos vitelos, os bisões (bois selvagens da América) formam um círculo à volta do rebanho das vacas e dos vitelos afim de os proteger contra os ataques dos lobos e doutros animais de presa. Esta tática defensiva pode ocasionar a perda dalguns machos adultos, mas assegura a conservação da espécie. Antes que um bando de elefantes saia da floresta para se dessedentar numa corrente de água, é enviado primeiramente um deles para proceder ao reconhecimento do trajeto. Se este não descobre algum perigo, constitui-se uma guarda avançada que forma na frente do bando e bastante distanciada dele. Só então o bando parte. Também neste caso, um diminuto número de indivíduos se expõe a um perigo, para aumentar a segurança da comunidade. Esta precaução evidencia-se nos macacos, com maior intensidade ainda. Não somente se associam para livrar do ataque um dos seus, mas organizam habilmente a defesa coletiva organizando retiradas, em que as fêmeas e os filhos novos abrem a marcha e em que os machos adultos fazem face ao perigo, constituindo-se em guarda combatente da retaguarda. Pode acontecer que nalguns casos de excepção estes processos defensivos não deem satisfatórios resultados e que a mortandade da espécie seja grande: todavia, com o decorrer da experiência que o tempo dá à execução de tais meios ir-se-á aperfeiçoando e tornará o ataque perigoso para os assaltantes. Esta conduta defensiva não pode deixar de ter uma certa sanção, porquanto, ao passo que numa certa variedade da espécie associada os seus números se mantêm e aumentam, noutras variedades em que esta subordinação é desconhecida, não se alcança igual resultado. Visto que a conservação da espécie é o seu fim supremo, sempre que essa conservação se efetive de melhor maneira pela mortandade dalguns associados vitimados na defesa geral do que pela preocupação individual de procurar cada um as suas exclusivas vantagens, a justiça infra-humana deve submeter-se a esta segunda restrição. § 11. - Falta-nos determinar a prioridade e a esfera de ação dos princípios expostos. A lei primordial para todos os seres é a da relação entre a conduta e as consequências dela derivadas. Esta lei assegura em toda a extensão do reino animal a prosperidade dos indivíduos que, pela sua estrutura, estão melhor adaptados às condições da existência. No ponto de vista da moral, afirma-se ela pelo princípio de que todo o indivíduo deve alcançar os benefícios e os inconvenientes inerentes à sua natureza privativa. É aplicável aos seres de vida solitária sem outra restrição que não seja, para os que ocupam na escala animal um grau elevado, a da educação da prole. Para os seres que vivem em comum, esta lei primordial combina-se com a segunda, na ordem do tempo e da autoridade, por um modo proporcional ao desenvolvimento do espírito de cooperação. Dessa conjunção dos dois princípios resulta que cada indivíduo associado, procurando as suas vantagens particulares e evitando os seus inconvenientes privativos deve levar estes atos somente até ao limite em que não prejudique os atos análogos dos demais companheiros. O "invariável respeito a esta lei é, na maioria dos casos, a condição indispensável para que a associação perdure. Torna-se, portanto, uma lei imperativa para os seres que procuram os benefícios dela. É evidente, todavia, que esta segunda lei não passa dum aspecto especial que a primeira toma quando é posta em presença das especiais condições da vida em comum. Com efeito, afirmando que as ações e as reações da conduta e das suas consequências devem, para cada indivíduo, restringir-se pela maneira que indicámos, afirmado fica, implicitamente pelo menos, que essas ações e reações devem submeter-se às mesmas restrições nos outros indivíduos, isto é, em todos os indivíduos da coletividade, indistintamente. A terceira, e última na data, das leis referidas, é dum alcance mais restrito. Sanciona ela o sacrifício dalguns membros duma espécie quando esse sacrifício se torne favorável para o conjunto da dita espécie. Como a segunda, constitui também uma restrição à primeira lei que exige de cada indivíduo que só obtenha as vantagens e sofra os inconvenientes da sua natureza privativa. Para remate, convém acentuar que a primeira lei é absoluta para os animais em geral, que a segunda é absoluta para os animais que vivem em comunidade, e que a terceira somente é aplicável às espécies que, nas lutas contra os seus inimigos, ganham mais do que perdem com o sacrifício dalguns dos seus membros. A ausência de inimigos faz com que desapareça a restrição que ela impõe. CAPÍTULO III A Justiça humana § 12. - O conteúdo deste capítulo continua-se embrionariamente no do capítulo anterior, pois que no ponto de vista evolucionista a vida humana é um desenvolvimento ulterior da vida infra-humana e a justiça humana é também um desenvolvimento ulterior da justiça infra-humana. Separam-se de ordinário para maior facilidade de estudo, mas são essencialmente da mesma natureza e constituem duas partes dum só todo. A conservação da espécie é assegurada, tanto na humanidade como nos seres inferiores, pela lei em virtude da qual os indivíduos adultos melhor adaptados às condições da existência que lhes é própria são os que mais prosperam, em quanto que os piores adaptados são os que prosperam menos. Quando não surjam obstáculos, esta lei assegura o predomínio dos mais aptos e a expansão das espécies melhor adaptadas. Como precedentemente, esta lei entendida no seu sentido ético, implica que cada indivíduo colherá os resultados favoráveis ou desfavoráveis da sua natureza privativa e da conduta que dela deriva; que não será privado dos efeitos normalmente favoráveis dos seus atos e que não poderá empurrar para outrem as consequências desses atos. Não é preciso examinar por agora até que ponto pode convir voluntariamente uma parte das más consequências de atos alheios. Mais tarde estudaremos os efeitos restritivos da piedade, da clemência e da generosidade, ao tratarmos da «beneficência negativa» e da «beneficência positiva». Aqui ocupar-nos-emos unicamente da «Justiça Pura». A Justiça desta lei tem a confirmá-la, na sua origem e na sua expressão ética, a aceitação comum. As apreciações e os comentários que diariamente ouvimos a respeito dos atos ocorrentes da vida implicam a compreensão de que as consequências da conduta se não devem dissociar dessa conduta. Se uma pessoa sofre um prejuízo e se diz que ela só de si própria e de ninguém mais tem a queixar-se, esta frase implica a opinião de que o referido prejuízo foi uma lógica e natural consequência da conduta do indivíduo prejudicado. Quando alguém se vê a braços com os maus resultados da sua falta de juízo, da sua conduta irregular, acode naturalmente este comentário que se transformou em ditado popular: «quem má cama faz nela tem que se deitar». A relacionação das causas da conduta com os seus efeitos, mostra o povo também na expressão correntia: «cada um tem o pago que merece». Uma análoga convicção se subentende quando se trata de consequências vantajosas dum ato e se ouve dizer: «teve a recompensa devida» ou «não foi recompensado como merecia». Estas frases exprimem o sentimento de que deve existir uma relação proporcional entre o esforço empregado e o benefício colhido, e que a justiça reclama essa proporcional idade. § 13. - Vimos no capítulo anterior que a justiça vai sucessivamente acentuando-se com os progressos da organização. Esta proposição, transferindo-a da justiça infra-humana para a justiça humana esteia-se e confirma-se em novos exemplos. O grau de justiça e o grau de organização caminham a par tanto na raça humana - tomada no seu conjunto - como nas suas variedades superiores em oposição com as variedades inferiores. Tivemos já ensejo de mostrar que uma espécie animal superior se distingue duma espécie animal inferior pela característica de que, no seu conjunto, sofre uma menor mortalidade causada por forças destrutivas e acidentais. Cada um dos membros duma espécie superior está, em média, submetido durante um mais prolongado espaço de tempo a relação normal que existe entre a conduta e as suas consequências. Vamos notar agora que a espécie humana, em globo, está sujeita a um menor coeficiente de mortalidade que a da maioria das espécies animais e que os membros da espécie humana permanecem durante mais tempo sujeitos a influência dos resultados bons ou maus, da sua conduta bem ou mal adaptada. Verificámos também já que nos animais superiores a maior longevidade média permite aos diferentes indivíduos expandirem a sua ação e experimentar lhe os efeitos durante períodos mais longos; donde resulta que os destinos diversos dos indivíduos são, num grau muito mais nítido, determinados pela relação normal entre a conduta e as consequências que dela emanam, relação normal que constitui a justiça. Na agregação humana, a diversidade das faculdades contribui num grau mais reforçado ainda e durante períodos ainda maiores, para favorecer os seres superiores e deprimir os inferiores, uns e outros submetidos a influência contínua da relação entre a conduta e as suas consequências. O mesmo sucede nas variedades civilizadas do gênero humano comparadas com as suas variedades selvagens. O coeficiente de mortandade decrescente implica uma proporção crescente de indivíduos que aproveitam as vantagens dos seus atos bem adaptados e sofrem as dos seus atos mal adaptados. É também manifesto que dos períodos mais prolongados da longevidade individual e das diferenças de situação social resulta para as sociedades civilizadas, postas em confronto com as selvagens, que as diferenças de conduta produzem mais apropriadamente os seus resultados, bons ou maus. § 14. - A constituição dos agregados sociais na raça humana é muito mais claramente perceptiva do que nas raças animais inferiores, por ser, para as variedades humanas mais vantajosa favorecendo-lhes a segurança geral e facilitando-lhes, em parte, o trabalho da sustentação. O grau de tendência para a agrupação é determinado pelo grau de utilidade que ela traz para os interesses da variedade que a adopta. Assim, se os membros duma variedade se alimentam de substâncias no estado natural, a associação constitui-se em grupos restritos, porque a caça e os frutos espalhados por áreas extensas só asseguram a subsistência a grupos que, sejam pouco numerosos. Pelo contrário, a agricultura, que permite a alimentação dum maior número de indivíduos numa área mais restrita, e os progressos industriais concomitantes que originam cooperações numerosas e variadas, impelem a humanidade para agrupamentos densos. Ha a salientar ainda uma verdade entrevista apenas no estudo dos seres inferiores, mas acentuadamente acusada nos seres humanos e é que: as vantagens da cooperação só se lhes tornam acessíveis com a condição de se submeterem a certas condições que a associação impõe. É preciso assinalar aos conflitos mútuos que surjam entre indivíduos agremiados, na persuasão dos seus fins particulares, limites tais que fique subsistindo um saldo de vantagens para a coletividade. Alguns raros tipos humanos, como os Abors (Dalton. journal of the Asiatic Society, Bengal, XIV, 426), por exemplo, fazem vida solitária, porque o seu génio é por tal maneira feroz que se opõe à vida em comunidade. Prova este caso excepcional que se nos agrupamentos primitivos surgem frequentes conflitos, tais agrupamentos se mantêm a despeito disso porque os membros associados tiram da agremiação um saldo de vantagens concretizado, principalmente, sob a forma dum aumento de segurança. É evidente que o desenvolvimento das coletividades implica uma divisão de trabalho mais complexa e um aumento de mutualidade de serviços e produtos. Para esses estádios sociais as vantagens da cooperação só podem ser asseguradas pela manutenção, tanto mais firme, quanto mais intensa e extensa for a atividade da agremiação, dos limites postos à atividade de cada homem em especial pelas atividades simultâneas dos outros homens. O estado de decadência e de miséria das comunidades em que os atentados recíprocos dos seus membros são tão frequentes e tão violentos que os impedem de colher o resultado normal dos seus labores torna duma patente verdade o enunciado desta proposição. Vimos atrás que vários seres inferiores que vivem em comunidade reconhecem tão claramente a necessidade da restrição mútua das atividades individuais que infligem castigos aqueles dentre os membros da associação que se não restringem suficientemente. Nos agregados humanos, esta necessidade, torna-se mais sensível e mais imperativa e origina o hábito de castigos aos delinquentes. Nas comunidades primitivas, cabia frequentemente ao ofendido a incumbência de se vingar do ofensor. Mesmo em períodos, relativamente mais adiantados da humanidade, como nas sociedades feudais europeias, pertencia em muitos casos a cada indivíduo lesado a defesa e manutenção dos seus direitos. Com o aumento da perfectibilidade social vai sucessivamente crescendo a compreensão da necessidade de manter a ordem interior e com essa compreensão aumentam também outros sentimentos correlativos, como o da justiça, passando os castigos a ser sentenciados pelo conjunto social ou pelos seus ministros autorizados. Da intensificação da vida social, resulta naturalmente um sistema de leis em que se preceituam as restrições e conduta individual e as penalidades correspondentes à infração dessas restrições. Este conceito das restrições da conduta individual generaliza-se e amplifica-se, e assim, acontece que, em numerosas nações constituídas por homens pertencentes aos mais diversos tipos são concordes em considerar os mesmos atos como atentados e em reprimi-los com uma igualou idêntica interdição. Desta série de fatos, depreende-se um princípio, senão reconhecido teoricamente, reconhecido, pelo menos, na pratica: que todo o indivíduo que realiza os atos que asseguram a sua existência e colhe os resultados normais, bons ou maus, derivados de tais atos deve, na pratica desses atos sujeitar-se às restrições impostas pelo exercício dos atos da mesma índole, praticados pelos outros indivíduos, os quais, como ele, devem colher também os respetivos resultados normais, bons ou maus. É nisto que consiste de uma maneira vaga, senão definida, o que se chama justiça. § 15. - Como expusemos, a justiça na forma universal e simples que ela assume entre os seres inferiores que vivem em agrupamentos é caracterizada, em primeiro lugar, pela subordinação do indivíduo à educação da prole e em segundo lugar pela restrição da conduta privativa dos associados às vantagens da comunidade. Ha, como também vimos, uma terceira restrição na vida animal por agrupamento, que é a constituída pelo sacrifício parcial ou total de alguns indivíduos à salvação da espécie agremiada. Esta última característica da justiça infra-humana adquire mais vastas proporções nos agregados humanos. Com efeito, nos homens não é só necessário organizar a defesa contra indivíduos de diferentes raças é preciso opô-la também aos inimigos de raça igual. Tendo-se espalhado por todas as regiões do globo em que encontraram meios de sustento, os agrupamentos humanos entrechocam-se em conflitos múltiplos e as vítimas causadas pelas guerras são incomparavelmente maiores que dos seres agrupados inferiores, na defesa das suas respectivas coletividades. Todavia, a destruição do grupo ou da variedade não implica a da espécie, nem nas raças inferiores nem na raça humana; donde se deduz que a subordinação do indivíduo aos interesses do grupo ou da variedade é uma obrigação inferior à de dispensar à prole educação e cuidados sem os quais a espécie desapareceria e à de restringir cada um os seus atos privativos por modo a que não lesem o interesse coletivo: o não cumprimento parcial ou total destas últimas obrigações causaria a dissolução do grupo. Não obstante a obrigação da defesa da coletividade deve ser considerada como uma obrigação na medida em que a existência de cada um dos grupos que a constituem assegure a duração da espécie. Esta obrigação assim justificada e tornada num certo sentido obrigatória não vai, porém além das exigências da guerra defensiva. Porque a conservação do grupo, considerada no seu conjunto, assegura a conservação da vida dos seus elementos componentes é lhes proporciona a realização do seu objetivo de vida - é que existe uma razão que justifica o sacrifício de alguns indivíduos em benefício da coletividade. Esta razão cessa se em vez de uma guerra defensiva se trata de uma guerra ofensiva. Poder-se-á objetar que as guerras ofensivas contribuem para o povoamento da terra e que favorecem os interesses da raça, isto com o argumento de que tais guerras terminam pela destruição dos grupos mais fracos. Dando mesmo de barato que os grupos vencidos se compõem sempre de homens mentalmente ou fisicamente menos aptos para a guerra (o que não é verdadeiro, visto que o elemento numérico tem no caso uma decisiva influência e visto também que os grupos menos numerosos podem ser constituídos por mais valentes guerreiros) nem assim daríamos assentimento a essa objeção. O desenvolvimento do vigor, da coragem e dos ardis guerreiros só tem capital importância nos primeiros estados do progresso humano. Com a formação de sociedades numerosas e com o desenvolvimento do espírito de subordinação necessário para a constituição e persistência delas, as lutas violentas pela existência deixam de assegurar o predomínio dos mais aptos. Falhou aos persas a conquista da Grécia e as hordas tártaras não conseguiram submergir a civilização europeia. A guerra ofensiva só servirá, pois, os interesses de uma raça à qual faltem aptidões para uma vida social elevada. Á medida que as sociedades se desenvolvem e aperfeiçoam, a guerra ofensiva deixa de assegurar o progresso humano e não faz senão retardá-lo. Pode, pois, afirmar-se seguramente que, chegados ao nível em que se tornam acessíveis a considerações morais, os homens atingem o limite em que a guerra ofensiva deixa de ser justificável, porque se torna incerto que ela assegure o predomínio das raças aptas para uma vida social elevada e é certo que provoca reações morais nocivas, conjuntamente, para os vencedores e para os vencidos. Fica somente a guerra defensiva com títulos de justificação quase moral. A este propósito, observaremos ainda que as restrições do princípio abstrato da justiça que as guerras defensivas implicam, pertencem ao período transitório em que o conflito físico das raças se não pode evitar. Tais restrições deverão desaparecer quando a humanidade atingir o estado pacífico, o que implica que todos os assuntos que se relacionam com a maior ou menor latitude dessas restrições são do domínio do que dissemos constituir a moral relativa; estão fora do âmbito da moral absoluta que apenas trata dos princípios da justa conduta de homens perfeitamente adaptados à vida social. Convêm insistir nesta distinção, porque nos capítulos seguintes, há de ela ajudar-nos a destrinçar os complicados problemas da moral política. CAPÍTULO IV O Sentimento de Justiça § 16. - A adopção da doutrina da evolução orgânica implica certas concepções morais. Em razão do seu incessante comércio com as necessidades da vida, os numerosos órgãos de cada uma das inumeráveis espécies de animais têm-se adaptado direta ou indiretamente a essas necessidades da existência. É por isso que os roedores, quando encerrados numa coelheira, fazem um uso incessante dos seus músculos maxilares e dos seus dentes incisivos, dilacerando o que encontram mais a jeito. É por isso também que animais que vivem em agrupamentos sofrem quando afastamos deles e os pomos em sequestro o pesar de não poderem juntar-se aos companheiros. É por isso ainda que os castores cativos manifestam a sua paixão pelas construções dos diques, em pilhando os ramos e as pedras que encontram ao alcance. Parou no homem primitivo este processo de adaptação mental? São os seres humanos incapazes de adaptar progressivamente os seus sentimentos e as suas ideias às modalidades de existência que lhes impõe o estado social que atingiram? Devemos considerar a sua natureza, que se adaptou às exigências do estado selvagem, como insuscetível de mudança progressiva sob a influência das exigências da vida civilizada? Ou devemos afirmar que o desenvolvimento de certos caráteres e a supressão de outros aproximam cada vez mais a sua natureza aboriginal duma natureza que encontre o seu ambiente apropriado numa sociedade desenvolvida e em que as atividades exigidas pelo ambiente dela se transformem em atividades normais? Ha alguns adeptos da doutrina evolucionista que se inclinam a negar a adaptabilidade contínua da espécie humana. Após um sumário e desatento exame dos dados fornecidos pelas comparações feitas entre as diferentes raças humanas e entre os estados sucessivos da mesma raça em diferentes épocas, rejeitam em globo a indução tirada dos fenómenos da vida geral. Ora isto é um tão grande abuso do método indutivo como o feito do método dedutivo. O que pensar dum homem que, desprezando as observações anteriores, se recusasse a acreditar que são precisos catorze dias para que a lua nova se transforme em lua cheia e entrar em seguida no quarto minguante e que desse como motivo da sua caturrice a circunstância de não ter podido observar pessoalmente as sucessivas fases do nosso satélite de modo a formar uma opinião segura? Não seria levar o amor da indução até à caturrice? Coisa parecida é de dizer a respeito das pessoas que, pondo de lado a prova indutiva da adaptabilidade ilimitada, tanto física como mental, que nos é revelada pelo conjunto do mundo infra-humano a não admitem para a natureza humana em relação à vida social pelo motivo de que a essa adaptação só verificável depois de consumada e como se os dados que atestam que tal adaptação continua a produzir-se em torno de nós, fossem de nenhuma valia! A nossa opinião -, considerando como uma inevitável dedução da doutrina da evolução orgânica que os tipos mais elevados dos seres vivos se vão, como os tipos inferiores, adaptando sucessivamente às necessidades impostas pelas circunstâncias, - é a de que as evoluções morais devem ser incorporadas com as evoluções meramente orgânicas. § 17. - A indigestão causada por um prato predileto determina a aversão a esse prato. Tal fenómeno mostra como, na região das sensações, a experiência cria associações que influem na conduta. A casa em que nos morreu uma pessoa de família, a companheira dos nossos dias ou um filho estremecido, ou em que sofremos uma doença grave fica por vezes, tão intimamente associada ao estado mental doloroso que esse acontecimento nos desperta, que nos vemos obrigados a mudar de residência. Estes exemplos esclarecem por suficiente modo como, na região sensorial, os atos são suscetíveis de ser determinados por conexões mentais que se formam no decurso da vida. Quando as circunstâncias ambientes acostumam uma espécie a determinadas relações e entre a sua conduta e as, consequências dessa conduta derivadas, os sentimentos que com a conduta e as respectivas consequências se relacionam podem transformar-se, pela persistência, em caraterísticas dessa espécie. Quer pela transformação hereditária das modificações causadas pelo costume, quer pela sobrevivência de maior número de indivíduos cuja estrutura nervosa se modificou num sentido mais azado, formam-se gradualmente tendências diretrizes que determinam uma conduta mais apropriada substituindo-se a outra que o era menos. Para exemplificação destas adaptações, citaremos o contraste observado entre as aves que vivem nas ilhas despovoadas que não manifestam temor algum a aproximação do homem, ao passo que as das nossas regiões fogem dele logo desde abandono do ninho. É assim que, com a amplitude que lhes é própria, se produzem nos seres inferiores e continuam a produzir-se nos seres humanos, os sentimentos de adaptação à vida social. Os atos agressivos, habitualmente prejudiciais ao grupo no seio do qual surgem, são muitas vezes prejudiciais também aos indivíduos que os cometem, por que o prazer que eles procuram alcançar com a prática desses atos, não é raro ser anulado e excedido por desgostos e sofrimentos. Pelo contrário, uma conduta que não ultrapasse os devidos limites e que não provoque nenhuma paixão antagonista favorece a harmonia da cooperação, é vantajosa para o grupo e torna-se, por igualdade de motivos, vantajosa para a maioria dos indivíduos que o constituem. Em condições de igualdade, os grupos constituídos por membros dotados desta adaptação têm maior tendência para sobreviverem e se expandirem. Dentre os sentimentos sociais elaborados pela evolução, o sentimento de justiça é de capital importância. Examinemo-lo: § 18. - Quando se tapam as ventas a um animal, esforça-se violentamente para desprender a cabeça e respirar à vontade. Quando lhe comprimimos os membros, molestando-os, sacode-se com raiva para recobrar a liberdade. Quando o prendemos com uma corda ou com uma corrente, pelo pescoço ou por uma perna, estica-a e procura fugir até se convencer da inutilidade do seu esforço. Se o enclausurarmos, entrará numa incessante agitação. A generalização destes exemplos permite-nos reconhecer que quanto mais violentas são as restrições impostas aos atos que asseguram a vida, tanto mais violenta se torna a reação que eles suscitam. Inversamente, o alvoroço com que a ave engaiolada aproveita o ensejo para voar do seu cárcere e a alegria dum cão quando se vê solto, provam o apreço que dão a liberdade dos seus movimentos. O homem manifesta sentimentos análogos, por uma, forma mais extensa e mais variada. Ha invisíveis contrariedades que o incomodam tanto como as contrariedades visíveis, e à medida que vai subindo na escala da evolução é afetado cada vez mais por circunstâncias e atos que, provindos de afastadas vias, favorecem ou dificultam a consecução dos seus fins. Um paralelo elucidará esta verdade. O amor primitivo da propriedade contenta-se com a posse de alimentos, dum abrigo e, um pouco posteriormente, de vestuário. Mais tarde, aprecia sucessivamente: a posse das armas e dos instrumentos com a ajuda dos quais as obtêm; a dos materiais com que se fabricam essas armas e esses instrumentos; a da moeda com que pode comprar os referidos e outros objetos; a dum compromisso convertível em dinheiro; e, por fim, a dum cheque desligado dum livrete e pagável num banco. Um conceito de ordem cada vez mais abstrata e cada vez mais distanciada da posse material vem pois pouco a pouco modificar os originários sentimentos da posse. O mesmo se dá com o sentimento da justiça. Inicia-se pelo contentamento que o homem experimenta ao colher, mediante o emprego da sua força física as vantagens que procurava; associando-se a irritação provocada por extorsões diretas chega gradualmente a corresponder a mais extensas relacionações, e a insurgir-se contra a servidão pessoal e contra a servidão política. Mais tarde expande a sua indignação contra os privilégios de classes e manifesta o seu modo de sentir em face das mesmas alterações políticas. Por fim, este sentimento, tão embrionário no negro, que censura o seu companheiro emancipado, por ter perdido a proteção do seu senhor, desenvolve-se até aos mais altos graus. O cidadão inglês, por exemplo, protesta com violência contra a mais leve infração das medidas e formalidades parlamentares e contra qualquer medida coercitiva do direito de reunião: essas infrações, não o atingem a maior parte dos casos, pessoalmente; mas combate-as pela possibilidade de que venham afeta-lo diretamente, se der margem com o seu indiferentismo, a que uma autoridade se arrogue poderes que não possui para lhe impor encargos e restrições imprevistas. É, pois, evidente, que o sentimento egoísta da justiça é um atributo subjetivo e que esse sentimento corresponde às exigências objetivas que constituem a justiça e que exigem que cada adulto colha os resultados dos atos derivados da sua natureza privativa. Com efeito, se as diversas faculdades de cada indivíduo não tiverem inteira expansão, não serão colhíeis nem avaliáveis resultados plenos. A ausência do sentimento que exige a asseguração dessas faculdades com toda a amplitude em que elas são exercíveis sem prejuízo da coletividade compromete a liberdade de condutas e entrava a sua efetivação. § 19. - É de fácil traço o esquema do desenvolvimento do sentimento egoísta da justiça; mas o da evolução do seu sentimento altruísta, esse, é mais difícil. Os fatos demonstram que, por um lado, este último sentimento só pode aparecer no decurso da adaptação ávida social e que, por outro lado, a vida social não pode efetivar-se senão pela manutenção de relações de equidade que implicam a já existência do sentimento altruísta da justiça. Como foi que estas recíprocas necessidades encontraram realização? Responderemos que o sentimento altruísta da justiça não pôde começar a existir senão com a ajuda de um sentimento que temporariamente o suprisse, reprimindo os atos instigados pelo egoísmo puro. A esse sentimento suplente, chamar-lhe-emos o sentimento pró altruísta da justiça. Vamos passar sucessivamente em revista os vários elementos em que ele se decompõe. O temor das represálias, que nos animais atua já, é o primeiro móbil que dissuade da agressão. O receio da vingança, que se seguiria a um ato de apoderação violenta, basta para desviar a maior parte dos seres de uma mesma espécie de se apoderarem dos alimentos ou de um benefício já apropriado por um deles. Nos homens, e em especial nos pertencentes a estados atrasados da vida social, é principalmente esse temor que assegura um livre campo às atividades individuais e ao gozo exclusivo dos bens que elas alcançam. Um outro travão é o do receio da reprovação provável dos membros desinteressados do grupo. Ainda que a expulsão da manada, do elefante, «vagabundo» e a execução de um membro culpado de um bando de corvos ou de cegonhas nos tenham permitido verificar que, mesmo entre os animais, os indivíduos têm de sujeitar-se a sentença da opinião pública, não é provável que a previsão da reprovação coletiva baste para prevenir as extorsões. Mas no homem, que é um ser mais apto a fixar e a prever, a ideia do desprezo social constitui um freio a mais nos atentados de indivíduo contra indivíduo. A estes sentimentos, que atuam anteriormente a toda a organização social, veem juntar-se os sentimentos que nascem depois do estabelecimento da autoridade política. Quando um chefe vencedor na guerra e tendo adquirido a soberania permanente, toma a peito a manutenção do seu poder, começa a sentir o desejo de prevenir os atentados de uns contra os outros dos seus subordinados, pois que as dissenções enfraquecerão a tribo. Daí a restrição do direito de vingança pessoal, e, na época feudal, das guerras privadas - e da interdição dos atos que suscitavam essas vinganças particulares e nas lutas de fações intestinas. O estabelecimento das penalidades que fazem tais infrações vem constituir receio adicional. Geralmente, o culto dos antepassados que o desenvolvimento das sociedades transforma em culto propiciatório especial dos manes do chefe e, subsequentemente do rei morto, reforça o caráter sagrado das injunções que formulou em vida. Quando o estabelecimento do culto o ergue à categoria de um deus, as suas injunções adquirem o caráter de ordens divinas revestidas da sanção de castigos temidos que adviriam da sua violação. Estas quatro categorias de receios atuam cumulativamente. Combinados em proporções variáveis, o temor das represálias, o temor da aversão social, o temor dos castigos legais e o temor da vingança divina formam um corpo de sentimentos que põem em cheque a tendência para a apoderação de objetos desejados sem entrar em linha de conta com os interesses alheios. Este sentimento pro-altruísta da justiça, que não encerra parcela alguma da justiça altruísta serve temporariamente para conservar em respeito aos direitos de outrem e torna assim possível a cooperação social. § 20. - Os seres em via de passarem ao estado de agrupamento tornam-se acessíveis à simpatia, em razão do desenvolvimento da sua inteligência. Não quer isto dizer que a tendência para a simpatia que desse desenvolvimento intelectual resulta seja excessivamente inclusive, ou mesmo numa parte considerável, na categoria dos sentimentos que de ordinário a palavra simpatia implica: referimo-nos apenas à simpatia pelo medo, de certos animais, e a simpatia pela ferocidade, de outros. É provável nos seres agrupados, que o sentimento manifestado por um deles excite sentimentos análogos nos seus companheiros e que essa excitação se dê precisamente em proporção do grau de inteligência que lhes permite apreciar a manifestação de tal sentimento. Nos dois capítulos: «A sociabilidade e a simpatia» e «Os sentimentos altruístas. dos Principias de Psicologia, tentei mostrar como a simpatia se origina, em geral, e como se forma a simpatia altruísta. Concluiremos, pois, que se tendo mantido nos homens estado de sociedade, graças ao influxo do sentimento pro-altruísta de justiça, as condições que permitem o desenvolvimento do sentimento altruísta da justiça se mantiveram também. Em todo o grupo permanente se produzem de geração em geração acontecimentos que determinam da parte dos seus membros a manifestação simultânea de comoções análogas: por exemplo, explosões de alegria seguidamente a vitórias alcançadas, a desgraças evitadas, a capturas feitas em comum, ao descobrimento de víveres no estado natural; e lamentações a propósito da perda de uma batalha, de fomes, de flagelos meteorológicos, etc. A estas grandes alegrias e a estas grandes dores sentidas em comum por todos e expressas de maneira a que cada um reconhece nos outros os sinais reveladores de sentimentos análogos aos que os agitam, veem juntar-se os gozos e dores secundários inseparáveis da vida quotidiana; as refeições em comum, os divertimentos, os jogos, os acidentes desgraçados e frequentes que atingem e afetam conjuntamente vários indivíduos da coletividade. Assim se engrandece a simpatia, que permite a existência do sentimento altruísta da justiça. Mas este sentimento só muito lentamente adquire uma forma elevada, isto, em parte, porque o desenvolvimento acentuado do seu elemento primordial coincide com uma fase tardia do progresso, e em parte, porque sendo relativamente complexo, implica um poder de imaginação que não está ao alcance de inteligências inferiores. Examinemos cada uma destas causas de retardação. Pressupõe todo o sentimento altruísta a experiência do sentimento egoísta correspondente. Assim como para partilhar o prazer da música é preciso ter um ouvido musical, assim também para se sentir simpatia pelas dores alheias é necessário tê-las sofrido. Da mesma maneira o sentimento altruísta da justiça não pode nascer senão depois do seu sentimento egoísta. Resulta daqui que nos casos em que este não haja adquirido um grau elevado de desenvolvimento, ou em que se encontre comprimido por uma vida social de tendências opostas, o sentimento altruísta da justiça permanece no estado rudimentar. A complexidade do sentimento altruísta de justiça torna-se patente se considerarmos que não abrange somente os gozos e sofrimentos concretos, mas que se estende também até às circunstâncias que tornam aqueles acessíveis ou que permitem evitar estes. Como o sentimento egoísta de justiça se regozija com o respeito das condições favoráveis a livre realização das nossas necessidades e se irrita com a sua violação, resulta daqui que para despertar o sentimento altruísta da justiça não basta a ideia dessa realização de necessidades. É necessário ajuntar-lhe a ideia das condições respectivas que ora são violadas, ora respeitadas. Por tal motivo, é evidente que a faculdade de representação mental deve estar relativamente desenvolvida, para poder dar a este sentimento uma forma elevada. Os animais agregados de ordem superior podem manifestar ocasionalmente simpatia se ela tiver por determinante dores e prazeres simples: a espaços, sentem como os homens, piedade e generosidade. Porém a concepção simultânea, não somente dos sentimentos produzidos em outro, mas também da complicação de atos e de imagens concorrem para a produção desses sentimentos, pressupõe um trabalho de concatenação mental de um número de elementos muito elevados para que um animal possa abrangê-los em conjunto. Se remontarmos às formas mais abstratas do sentimento da justiça, as que se relacionam com a ordem pública, compreenderemos sem dificuldade que só as variedades humanas superiores são suficientemente capazes de compreenderem o modo por que as leis e as instituições, boas ou más, afetarão definitivamente a sua esfera de ação e para se manifestarem defendendo-as ou atacando-as. O sentimento simpático de justiça, que impele os indivíduos a tomarem parte nos interesses políticos dos seus concidadãos, é unicamente acessível às variedades superiores da raça humana. Existe uma relação intima entre o sentimento de justiça e o tipo social. O predomínio do regime militar implica uma forma coercitiva de organização, tanto para os agrupamentos dos combatentes como para a sociedade que provê a sua subsistência. O regime militarista não deixa o mínimo campo ao sentimento egoísta de justiça, calca-o incessantemente aos pés, ao mesmo tempo que pelo contado das atividades guerreiras faz mirrar inteiramente as simpatias geradas do sentimento de justiça. Por outro lado, à medida que o regime do contrato se substitui ao regime do estatuto ou, noutros termos, à medida que a cooperação voluntária que caracteriza o tipo social industrial se substitui a cooperação imposta que caracteriza o tipo militar, as atividades individuais são sucessivamente menos apertadas e o sentimento que se disfruta pelo alargamento do âmbito dessa atividade adquire um encorajamento gradualmente maior. Simultaneamente, as circunstâncias em que é preciso reprimirmos simpatias vão-se tornando cada vez mais frequentes. Daqui se depreende que o sentimento de justiça recua durante os períodos guerreiros da vida social, ao passo que se desenvolve nas suas fazes pacíficas e que só poderá expandir-se plenamente num estado de paz perpétua (Existe nalgumas raras regiões o estado de paz perpétua; e onde ele existe, o sentimento de justiça é intensamente vivaz e impressionável. Sinto-me feliz em poder afirmar novamente que dentre os homens ditos não civilizados, alguns há que se distinguem pela inteira ausência de propensões guerreiras e cujos costumes são uma vergonha para as nações que se jactam de civilizadas. Citei nas minhas Instituições Políticas (§§ 437 e 574) oito espécimes pacifistas, pertencentes a raças de tipos diferentes). CAPÍTULO V A Ideia de Justiça § 21. - O estudo do sentimento de justiça desbravou-nos o caminho para o estudo da ideia de justiça. Vamos ver que é fácil distinguir a segunda do primeiro, a despeito da sua intima conexão. Qualquer indivíduo, a quem a carteira caia do bolso, ficará indignado se a pessoa que lhe vir cair e a apanhar, não quiser restituir-lhe. A má fé dum lojista que nos mande para casa artigos diferentes daqueles que apartámos provoca os nossos protestos. Se num intervalo dum espetáculo alguém vai ocupar o nosso lugar e se nega a erguer-se dele ao voltarmos, censuramos esse abuso e queixamo-nos. Insurgimo-nos quando um ruído incómodo -da vizinhança nos acorda em sobressalto alta manhã. Lamentamos um amigo que por enganosas informações se envolveu numa empresa que o arruinou, ou, que por chicanices judiciais, perdeu uma demanda. Em todos estes casos, o nosso sentimento de justiça sofre uma lesão; mas sucede que a maior parte das vezes não conhecemos a modalidade específica dessa lesão, por possuirmos em toda a sua plenitude o sentimento de justiça, não tendo, porém, da ideia de justiça mais do que uma vaga e imprecisa compreensão. A existência da relação que liga o sentimento a ideia de justiça é, todavia, incontestável. Os modos porque os homens se lesam uns aos outros tornam-se mais numerosos e complicam-se de mais em mais, à medida que a vida social se intensifica; torna-se preciso que sucessivas gerações as sofram nas suas múltiplas formas para que a análise consiga estabelecer a demarcação que separa os atos lícitos dos ilícitos. A ideia emerge e vai-se tornando nítida com o decurso de experiências sucessivas que nos ensinam que a prática dum ato pode realizar-se, sem despertar cóleras alheias, a dentro de certos limites, para além dos quais essa cólera surgirá. As experiências acumulam-se e, ao lado da repugnância que as reações penosas determinam, engrandecendo gradualmente a concepção dum limite para além do qual cada categoria de ações se pode expandir livremente. Mas como essas categorias são muito numerosas e se diversificam à medida que a vida social se desenvolve, abre-se um longo intervalo antes que se torne possível conceber a natureza geral do limite com um de todos os atos possíveis (A gênesis da ideia de que os atos simples têm limites igualmente simples é-nos dada pelos animais dotados de inteligência e serve para nos elucidar acerca dos seus progressos relativamente a atos mais complexos e de limites menos evidentes. Citarei, a propósito, os cães de Constantinopla que reconhecem a asserção tácita de certos direitos e das penalidades infligidas pela sua violação, senão entre indivíduos pelo menos entre grupos de indivíduos. No livro do major T. C. Johnson: On the Track of the Crescent, corrobora-se dum modo impressionante este facto, aliás bem conhecido: "Uma tarde, conta ele (pag. 58 e 59) em que passeava por Constantinopla com um inglês, oficial da polícia turca, aproximou-se de nós uma cadela que lhe lambeu as mãos ... Seguiu-nos durante algum tempo e depois estacou de repente no meio da rua ... Agitava a cauda e seguia-nos avidamente com o olhar, mas não avançava quando a chamávamos. Dias passados, a cadela reconheceu-me ... e seguiu-me até ao limite do seu bairro”). Existe um outro motivo da lentidão com que esta concepção se desenvolve. Tanto as ideias, como os sentimentos devem, em geral, adaptar-se ao estado social. Ora como a guerra tem constituído um estudo frequente ou habitual em quase todas as sociedades, as necessidades contraditórias do estado de amizade no interior e de inimizade no exterior, mantêm constantemente em confusão as ideias existentes de justiça. § 22. - Somos chegados a assinalar à ideia de justiça, ou, pelo menos, à ideia humana de justiça, dois elementos: o elemento positivo que implica o reconhecimento do direito de cada homem a atividades livres de toda apeia; e o elemento negativo, que implica o sentimento consciente dos limites que impõe a presença de outros homens gozando de análogos direitos. Ha nestes elementos dois caráteres opostos que devem deter a nossa atenção. A primordial ideia sugerida é a da desigualdade, porquanto devendo, em princípio, colher cada um as vantagens e desvantagens resultantes da sua natureza privativa e da conduta dela derivada, as diferenças de faculdades que os diversos homens possuem, produzem correspondentes diferença? entre os resultados das suas condutas. As somas de vantagens obtidas serão, pois, desiguais. A delimitação mútua das ações humanas sugere-nos uma ideia oposta. O espetáculo dos conflitos que surgem quando um procure realizar os seus fins sem se preocupar com os direitos do vizinho, dá origem à consciência dos limites que é preciso estabelecer, para se evitarem colisões de interesses, aos esforços de cada homem. Mostra a experiência que esses limites, em média, são os mesmos para todos. O pensamento de que todas essas esferas de ação se limitam umas às outras implica a concepção de igualdade. Cada um destes dois fatores da justiça humana tem dado margem a divergentes teorias morais e sociais de que vamos ocupar-nos. § 23. - As concepções de alguns selvagens não ultrapassam o nível que mostrámos terem os animais inferiores que vivem em agrupamentos. Entre os dogribes, o mais forte apodera-se do que lhe agrada, com detrimento do mais fraco, e sem que isso concite a reprovação geral; os fogueanos praticam com a tácita aprovação coletiva o comunismo, ou coisa semelhante. Quando a organização política tenha sido determinada pelo estado de guerra, a desigualdade não pode deixar de predominar, senão nos vencidos, por passarem a escravos, pelo menos nos vencedores que, naturalmente, por uma ideia de conveniência no que respeita aos seus interesses, desenvolvem, na concepção de justiça, o elemento que implica que a toda a superioridade deve corresponder um proporcional acréscimo de benefícios. Os diálogos de Platão não nos dão, por completo, o modo de ver geral dos gregos sobre este assunto. Podemos, porém, encontrar neles alguns indícios do que os gregos pensavam acerca da justiça. Ouçamos a exposição feita por Glaucose da opinião corrente no seu tempo: Eis o que constitui a origem e a natureza da justiça: existe um meio termo, ou compromisso, entre o que se lhe prefere (isto é, a liberdade de praticar, mas não suportar a injustiça) e o que se evita com ela (a obrigação de tudo suportar sem poder fazer uso da vingança). Meio termo entre estes dois extremos, a justiça é tolerada, não a título de supremo bem, mas a título de menor mal. E acrescenta a seguir: «Só pela força da lei, os homens enveredam pela senda da justiça». É conveniente insistir nalguns pontos destas significativas passagens. Em primeiro lugar, encontra-se nelas o reconhecimento do facto já enunciado de que nas épocas primitivas a prática da justiça tem por única determinante o receio das represálias e a convicção, baseada na experiência, de que é afinal mais razoável a abstenção de agressões e o respeito pela delimitação que o princípio enunciado implica. Ninguém, nesses tempos, se preocupa com a criminalidade intrínseca da agressão, mas somente com as consequências perigosas que da agressão adviriam. Quando se afirma que «só a força da lei» fixa o limite imposto aos atos de cada homem, os Diálogos consideram a lei como «um meio termo, ou compromisso» e acrescentam que só ela impõe o respeito da justiça e impele os homens para o caminho pela justiça demarcado. A lei não é encarada como sendo uma expressão da justiça, mas como sendo ela própria, a fonte da justiça. Daqui resulta o sentido dado na preposição anterior de que é justo obedecer à lei. Além disto, a transcrição feita implica que, se não fossem as represálias e as penalidades legais, o mais forte teria o direito de oprimir o mais fraco. No primeiro termo formulado, nos períodos extraídos aos Diálogos, aceita-se metade da opinião de que a superioridade deveria gozar de todas as vantagens ao seu alcance. A ideia de desigualdade entra pois nalguma consideração; a da igualdade permanece inteiramente apagada. Também não é fácil descobrir qual seja a opinião de Platão, ou antes a de Sócrates. As ideias dos gregos não adquirem em muitos assuntos, uma forma rigorosa e os pensamentos dos Diálogos são de contornos pouco nítidos. A justiça ora tem neles por origem a probidade, ora é considerada como «primeiramente, a ordem universal, ou o bem do Estado, e secundariamente, a do indivíduo». (Cito o sumário de M. Jowet in Platon. Republic, Oxford 1881, pag. 229). Esta última frase implica o predomínio de uma classe governante e a sujeição a ela das classes restantes. A justiça consiste «em que cada uma das três classes cumpra a missão que a essa respectiva classe incumbe; que o carpinteiro, o cordoeiro, etc., se entreguem exclusivamente ao seu mister» e que todos obedeçam à classe que tem a missão de governar (Encontra-se numa outra pagina, um exemplo típico do raciocínio socrático. Diz-se nela «que há um justo princípio que exige que os indivíduos se não apoderem do bem alheio, nem se apoderem do seu». Deste princípio é, depois, tirada a dedução de que a justiça consente «em que cada um possua e faça o que lhe agrada»; mais adiante, infere-se que é injusto que um homem se apodere do mister de outro homem e o «expulse, pela força» duma classe para outra. Uma igual conclusão é, pois, tirada do emprego de uma só expressão para designar a relação que existe entre um homem e o seu bem ou o seu mister. Ha nela dois erros: um é o de que se pode possuir um mister como quem possui a roupa que se traz no corpo; outro o de que um homem não pode ser despojado do seu mister, pela mesma razão por que não pode ser despojado das suas vestes. Erros deste género, causados pela confusão das ideias e das coisas, entre a unidade de nome e a unidade da natureza, indicam a cada passo os Diálogos de Platão). Desta maneira, a ideia de justiça alicerça-se na ideia da desigualdade. Embora se entreveja uma tendência para o reconhecimento da igualdade de situações e de direitos entre os membros da mesma classe, as leis, por exemplo, concernentes à comunidade das esposas na classe governante, estabeleciam, maiores privilégios para os membros desta classe que desempenhavam funções superiores. Em geral entre os gregos a noção de justiça que acabamos de expor, pois que se encontra também em Aristóteles, no capítulo quinto da sua Política, onde se defende como justo e útil o domínio dos senhores sobre os escravos. Conquanto a ideia da desigualdade predomine, nos gregos, sobre a ideia da igualdade que persiste apagada, é de notar que esta desigualdade se não relaciona com a atribuição natural das maiores recompensas para os maiores méritos, mas com a sua atribuição artificial. É uma desigualdade estabelecida principalmente pela concepção do autoritarismo. Nas coletividades gregas, a organização civil é de natureza igual à da organização militar: o espírito de arregimentação penetra-as a ambas e a ideia da justiça conforma-se com elas, adquirindo caráter da estrutura social de onde derivou. Os fatos históricos posteriores da vida europeia veem demonstrar que é bem essa a ideia de justiça própria do tipo militar em geral. Assim o atesta suficientemente o confronto entre as penas pecuniárias pagas nas composições criminais e que são graduadas de harmonia com o grau hierárquico da parte lesada e com os privilégios conferidos pela lei às diferentes classes sociais. Para se ver até que ponto a noção das desigualdades de direitos influíram na noção de justiça, basta dizer-se que os servos que se refugiavam nas cidades eram condenados por se terem subtraído «injustamente» ao domínio dos seus senhores. Como era de presumir que se tivesse dado, enquanto a luta pela existência entre as sociedades se conserva em atividade intensa, o reconhecimento do fator secundário da justiça só muito imperfeitamente restringe o reconhecimento do seu fator primário que é comum a toda a vida em geral, tanto humana como infra-humana. O elemento humano atenua, mas de modo frouxíssimo o que nós designaremos: o elemento animal desta concepção. § 24. - Todos os movimentos são rítmicos, inclusive os movimentos sociais e o das doutrinas que os acompanham. Seguidamente à concepção de justiça baseada nas ideias de desigualdade excessiva, surgiu uma concepção da justiça em que as ideias da igualdade predominam em excesso. A teoria moral de Bentham proporciona-nos um exemplo dessa reação: No extrato seguinte do Utilitarismo feito por M. Mill (pag. 121 da tradução francesa, edição de 1889) a ideia de desigualdade desaparece de todo. «O princípio da felicidade máxima tornar-se-á numa amalgama de palavras sem significação racional, se a felicidade de uma pessoa suposta igual em intensidade (compartida pela qualidade) não for avaliada em tanto Como a felicidade de uma outra pessoa. Nestas condições, a fórmula de Bentham: «Cada um deve contar para um e ninguém deve contar para mais de um» poderia ser escrita sob o princípio benthiano da utilidade, para lhe servir de comentário explicativo. Embora Bentham combata a proposição de que é preciso tomar a justiça por guia quando diz que a justiça constitui um fim por todos concebível, ao passo que a justiça não constitui senão um fim relativamente ininteligível, - afirma implicitamente a justiça do seu princípio: «cada pessoa deve contar para um e ninguém deve contar para mais de um», aliás seria forçado a confessar que esse princípio é injusto e não é de supor que ele conviesse em tal. A doutrina do utilitarismo implica, pois, que se deve entender por justiça uma igual repartição dos proventos materiais e imateriais provenientes da atividade dos homens. Não é, portanto, aceitável que Bentham concordasse em que pudesse haver nas comparticipações da felicidade humana desigualdades provenientes das desigualdades das faculdades e dos caráteres. É esta a doutrina que o Comunismo pretendia pôr em prática. Um dos amigos do príncipe Kropotkine contou-me que ele invetiva os socialistas ingleses por não tomarem como lema a regra popular da «divisão obrigatória e igual». Laveley, num artigo recente, define o comunismo como sendo um princípio em virtude do qual «o indivíduo, trabalhando para o benefício do Estado lhe entrega o produto da sua atividade para que este o divida igualmente por todos». Na utopia comunista descrita por Bellarny no seu livro Looking Backward, diz-se «que todos serão obrigados a fazer igual esforço» e que se em virtude desse igual esforço físico ou mental o produto da atividade de um se tornar duplo do produto da atividade de outro, a diferença não será tomada em conta. Os que forem física ou intelectualmente fracos, receberão tanto como os válidos e os fortes. O atual regime, acrescenta Bellarny, «não provendo às necessidades dos incapazes assenta sobre a violação do evidente direito deles». Esta escola rejeita, pois, in limine o princípio da desigualdade e acha injusto que uma superioridade natural determine resultados materiais superiores. Como parece não estabelecer diferença alguma entre as qualidades físicas e as qualidades morais ou intelectuais, subentende-se que não só o forte e o fraco devem ser equiparados, mas que também o doido e o sábio, o homem honesto e o “escroc”, o homem de caráter vil e o homem de caráter nobre, devem ser tratados no mesmo pé de igualdade. Assim leva a concluir a doutrina comunista, pois que, se em conformidade com ela se não deve entrar em linha de conta com os defeitos naturais, físicos ou intelectuais, o mesmo deve concluir para os defeitos morais, visto que todos tem por origem primária a hereditariedade. O comunismo aboliu, pois, com deliberado propósito a distinção cardeal entre a moral da família e a moral do Estado, em que sempre temos insistido, abolição que conduzirá à decadência e à desaparição da espécie ou da variedade no seio da qual se dê. § 25. - O anterior estudo das concepções divergentes da justiça, na qual as ideias de desigualdade e de igualdade se excluem mutuamente, no todo ou em parte, facilitou-nos o meio de podermos abordar a sua verdadeira concepção. Mostrei algures que a melhor forma de se chegar a atingir a verdade é pela coordenação dos erros antagonistas. Assim, a teoria da associação aplicada aos fenómenos da inteligência harmoniza-se com a teoria transcendental, desde o momento em que apreendamos que as duas teorias formam afinal uma só e se ao produto das experiências individuais ajuntarmos os resultados herdados da experiência dos nossos ancestrais. Da mesma maneira, reconhecendo que uma natureza moral adaptada tem por causa a conformidade harmónica dos sentimentos com as necessidades tidas de geração em geração, vimos a teoria empírica da moral reconciliar-se com a sua teoria intuitiva. Agora aqui, presenciamos uma correção mútua, inteiramente semelhante e que se produz sob a influência dum elemento especial da moral que está sob nossos olhos. Com efeito, se cada uma das concepções opostas da justiça é aceita como sendo duma verdade parcial, mas que deve ser completada pela outra, a sua combinação produzirá a concepção da justiça que resulta do exame das leis da vida, tal como ela se manifesta no estado de sociedade. A igualdade deve reger as esferas de ação mutuamente limitadas e indispensáveis para que os homens que vivem possam agir harmonicamente. A desigualdade aplica-se aos resultados que cada um consegue livremente obter, respeitando os limites demarcados a sua liberdade. Nenhuma incompatibilidade ficará existindo entre ambas, se uma (a primeira) se aplicar aos limites e a outra (a segunda) se aplicar aos resultados obtidos. Bem ao contrário, ambas devem afirmar-se conjuntamente. Não nos preocuparemos presentemente com outras imposições da moral. As necessidades e as delimitações da conduta privada que cada um se impõe a si próprio entrarão na grande divisão da ciência da moral de que trataremos na terceira parte. Atualmente, vamo-nos preocupar apenas com as exigências e os limites que devem ser mantidos como condição duma harmoniosa cooperação e que a sociedade pode impor em virtude da sua capacidade corporativa. § 26. - É conveniente entendermo-nos sobre a aceitação geral da ideia da justiça assim definida. Não é ela apropriada senão a estados sociais de adiantada perfectibilidade e, consequentemente, os nossos estados sociais transitórios só em parte podem aceita-la, visto que as ideias dominantes devem ser compatíveis com as instituições e as atividades existentes. Vemos que aos dois tipos essencialmente diferentes da organização social- o tipo militarista e o tipo industrial- tendo por bases respectivas: o estatuto e o regime contratual, correspondem sentimentos e crenças próprias que se ajustam a cada um deles em particular. As crenças e os sentimentos mistos apropriados aos tipos intermediários modificam-se continuamente em razão do predomínio dum destes tipos sobre o outro. Como em outros sítios mostrei durante os trinta ou quarenta anos de paz de que o século XIX gozou e durante o período de enfraquecimento da organização militar que dessa paz proveio, a ideia da justiça fortificou-se: as leis coercitivas abrandaram permitindo que cada um tratasse mais livremente e à vontade dos seus interesses. O despertar subsequente do espírito militarista modificou a direção em que se encaminhava a vida social e, invocando sempre os princípios de liberdade e pugnando o seu desenvolvimento, diminuíram-na com restrições e exações múltiplas. O espírito de rígida disciplina, própria do tipo militar, invadiu a administração da vida civil. Consciente ou inconscientemente, prega a organização dum exército de trabalhadores com uma tarefa imposta e uma com participação regulamentar do produto do seu trabalho. É a introdução na vida civil do regime dum exército de soldados que recebam rações fixas e que tenham uma ordem a executar. Toda a lei que se apodere do dinheiro dum indivíduo com um fim e que o distribui transformado em vantagens coletivas, tende a assimilar as duas organizações. É a Alemanha que nos oferece o quadro de mais carregadas cores militaristas. O espírito de caserna é nessa nacionalidade acentuadíssimo e por isso também, o socialismo tomou nela o desenvolvimento considerável, tão considerável que o chefe do sistema militar alemão propôs a submissão de todas as classes operárias da Europa a regulamentos regimentários. Aqui há vinte anos a simpatia revestia o caráter de justiça. Presentemente retrogradou para a forma de generosidade e essa generosidade manifesta-se pela prática da injustiça. A legislação operária importa-se diminutamente com que cada um receba o que lhe pertence, preocupando-se ao contrário, mais em lhe dar o que pertence a outrem. Não se manifesta o empenho enérgico de reformar a nossa administração judiciária de modo a assegurar a cada homem a totalidade dos seus ganhos legítimos, mas procurou com todo o afã prove-lo, a ela e aos outros, de vantagens para a comutação das quais se não esforçaram. Ao lado do «deixa andar» mesquinho que vê impassível a ruina de tantos homens que não conseguiram a promulgação de um corpo de leis que evitem as suas fundadas queixas, desperdiça-se a atividade em lhes proporcionar grátis e á custa alheia, o prazer da leitura de romances! CAPÍTULO VI A fórmula da Justiça § 27. - Temos acompanhado a evolução da justiça desde a sua forma simples, objetivamente considerada como condição da conservação da vida. Vimos que um fator novo a modificou, com a constituição de agrupamentos animais, modificação que se tornou mais acentuada nos agrupamentos humanos. Depois de termos verificado os seus correspondentes produtos subjetivos: o sentimento de justiça e a ideia de justiça, nascidos ao contado dessa condição nova, achamo-nos finalmente habilitados a dar uma forma definida a conclusão a que somos chegados. falta-nos apenas, para isso, encontrar a expressão precisa para a cooperação a que fizemos referência no capítulo anterior. A fórmula deverá conter um elemento positivo e um negativo. Ha de ser positiva pela afirmação da liberdade de cada homem, pois que os homens devem colher os resultados, bons ou maus, das suas ações, Ha de ser negativa pela afirmação de que essa liberdade de cada homem implica que eles não possam agir a seu discricionário talante, mas com a restrição que lhes impõe a presença doutros homens que tem direito a igual liberdade. O elemento positivo é, evidentemente, o que exprime a condição realizável da vida em geral. O elemento negativo vem restringir esta condição realizável quando, em vez duma vida isolada, há várias vidas em comum. Precisamos, pois, formular com exatidão a maneira pela qual a liberdade de cada um tem de ser limitada pelas liberdades análogas de todos os outros. Essa fórmula redigi-la-emos assim: Tem todo o homem a liberdade de proceder como melhor entenda, com tanto que não infrinja a igual liberdade de quem quer que seja. § 28. - Arredemos um erro possível. A fórmula precedente tem por objetivo presumido excluir certos atos de agressão que parecem não estar excluídos dela. Podia-se bem argumentar: se A fere a B e se B não ficando impossibilitado com a agressão de A, o fere por seu turno, o primeiro não usa duma liberdade superior a do segundo. Dir-se-á ainda, talvez: se A invadiu a propriedade de B, o preceito permanecerá integro desde que B invada também a propriedade de A. Semelhantes interpretações afastam-se do sentido essencial da fórmula. Verifica-se isso remontando a sua origem, por que a lei que procuram fixar é a de que os atos de cada homem constituindo a sua vida no presente e assegurando-lhe a conservação no futuro, não devem ter outros limites senão os exigidos pela prática de atos análogos que assegurem a vida dos outros homens. Essa lei não permite pois que uma ingerência supérflua na vida doutrem seja desculpada com uma ingerência igual a título de compensação. O interpretar-se assim a fórmula indicada, implicaria, para a vida de todos e de cada um, deduções superiores aos que a vida em agrupamentos necessariamente impõe. Interpretá-la assim, seria, em suma, perverter-lhe o sentido. Não perdendo de vista que a maior soma de felicidade é, senão o nosso fim imediato, pelo menos o fim longínquo, e claramente discerniremos que a esfera para além da qual é defeso a cada um procurar a felicidade tem um limite confinante com as esferas de ação semelhantemente limitadas dos seus vizinhos e que ninguém pode invadir a esfera de ação do seu vizinho que este pode usar de igual faculdade invadindo a do invasor. A fórmula, portanto, não justifica a agressão acompanhada de contra agressão; fixa um limite que ninguém deverá transpor nem para um lado, nem para o outro. § 29. - Os fenómenos do progresso social propiciam-nos comentários instrutivos acerca deste erro e da sua retificação. Mostram-nos eles, com efeito, que ao ponto de vista especial da justiça, a humanidade partiu duma interpretação errada para se aproximar da interpretação verdadeira. Nos primitivos estados das sociedades, o hábito da agressão seguida de contra agressão, tanto entre indivíduos como entre as coletividades, transforma-se em costume. As tribos vizinhas disputam umas com as outras, à mão armada, os limites violados dos seus territórios primeiramente por umas e em represália depois, pelas outras; a necessidade de vingar mortos duma banda, com morticínios na outra em desforço das mortes causadas pelos do primeiro lado provocam guerras novas. Vai, portanto, raiando através destas vinganças e represálias um vago reconhecimento da igualdade e prepara-se o reconhecimento de limites fixos, tanto para o território como para a efusão do sangue, de modo a manter, em certos casos a equinumeração entre os mortos dum lado e os do outro. Foi o temor da represália quem primitivamente manteve um certo respeito pelas pessoas e pelos bens alheios. A ideia da justiça era a duma compensação de injustiças: «olho por olho, dente por dente.» Esta ideia persiste em todo o decurso dos primeiros períodos da civilização. Quando a parte lesada deixou de exercer por suas mãos uma justiça assim compreendida, ficou persistindo ainda na pretensão de a fazer cumprir pela autoridade constituída. Os gritos com que se invocam os magistrados que aplicam a justiça são clamores com que reclamam o castigo e a inflição dum prejuízo igual, pelo menos, ao prejuízo recebido, ou, na impossibilidade de ser assim, uma compensação equivalente a esse prejuízo. O pedido de equiparação, na medida do possível, das violações da igualdade não se apoia ainda noutro critério que não seja o da asserção tácita da igualdade de direitos. Falta-nos explicar unicamente como é que a concepção definitiva da justiça tende a desembaraçar-se gradualmente desta grosseira concepção. A experiência dos males originados por uma ideia falsa dá lugar ao aparecimento da ideia verdadeira. A compreensão dos justos limites da conduta torna-se naturalmente mais clara, à medida que o respeito dessas restrições se impõe aos homens e que se torna habitual e mais geral. As incursões mutuas dos indivíduos nas esferas dos seus vizinhos realizam-se conforme uma espécie de oscilação violenta, a princípio, e que vai gradualmente diminuindo de amplitude com o avanço para um estado social relativamente pacifico. Tanto mais as oscilações decrescem, quanto mais nos aproximamos do equilíbrio; quanto mais nos aproximamos do equilíbrio tanto mais nos acercamos duma teoria exata do equilíbrio. E assim que a ideia primitiva da justiça segundo a qual uma agressão se compensa com agressão, se apaga do pensamento a medida que a contra agressão desaparece da prática, cedendo lugar a ideia de justiça que acabámos de formular e que reconhece delimitações de conduta que absolutamente excluem qualquer agressão. Nota - Relativamente a opinião de Kant sobre o princípio último do direito, veja-se o Apêndice A. CAPÍTULO VII A autoridade da fórmula da Justiça § 30. - Antes de prosseguirmos, detenhamo-nos um pouco a examinar a fórmula precedente sob todos os seus aspectos, afim de avaliarmos o que poderá vir a dizer-se a favor dela, ou contra. Os discípulos da atual escola política e moral desdenham toda e qualquer doutrina que ponha travões às exigências da utilidade imediata, ou aparente. Tem, porém, uma ilimitada fé em tudo o que dimane de mal amalgamadas assembleias votadas por fações eleitorais nas quais os eleitos são meros fantoches cujos cordõezinhos ficam em mãos ignorantes e fanáticas. Tem nelas uma fé tamanha, que acham intolerável - seja de que maneira for - a subordinação da obra dos legisladores assim escolhidos às deduções tiradas das verdades morais. É estranhável que no mundo da ciência reinem cumulativamente este entusiasmo pelo empirismo político e esta incredulidade pelos que tentam encontrar outras expressões do princípio fundamental da harmonia na vida social. Embora o espírito científico tenha por base o reconhecimento da universalidade da causalidade e conquanto, implicitamente e conseguinte mente, admita que a causalidade abrange as ações dos homens constituídos em sociedade, nem por isso estes princípios basilares deixam de permanecer letra morta. É evidente, todavia, que se os negócios públicos não estivessem sujeitos à causalidade, tanto valeria uma política como qualquer outra e que, a não querer admitir-se este absurdo, ter-se-á que concordar em que existe uma causa determinante da bondade ou dos perigos de tal ou tal política. A despeito disso, nenhum esforço empregam para investigar as causalidades da política e apodam, pelo contrário, de ridículos os que as procuram. Insiste-se mais nas diferenças que nos pontos de contado das opiniões políticas. Naturalmente como os casuístas das crenças religiosas dominantes que só se preocupam com as divergências que separam os diversos homens de ciência, em vez de atentarem nos pontos essenciais em que estão de acordo. Convêm, portanto, antes de mais nada, que destruamos as mais importantes objeções contra a fórmula que enunciámos. § 31 - Caminha toda a evolução do indefinido para O definido; a concepção nítida da justiça só pois lenta e gradualmente se pôde formar. Já mostrámos que o reconhecimento prático da justiça implica o correspondente avanço para o seu reconhecimento teórico. Bom é que nos demoremos alguns instantes neste ponto para observarmos mais de perto a expansão do sentimento consciente pelo qual as atividades privadas que têm por objeto a conservação do indivíduo devem ser restringidas no contado com as atividades análogas de todos. Notemos primeiramente um fado que poderia ser enunciado no final do último capítulo e é que: quando os homens estão somente sujeitos à disciplina social pacífica, sem intervenção da disciplina proveniente do tipo militarista e das lutas violentas entre sociedades, não tardam a ter a plena consciência da necessidade de restringirem as suas atividades no limite em que elas lesam atividades análogas. Algumas tribos inteiramente pacíficas, ainda que não civilizadas no sentido usual do termo, mostram possuir uma percepção muito mais nítida da equidade, do que os povos civilizados em que os hábitos da vida militar restringem ainda mais ou menos os hábitos da vida industrial. O consciencioso e meigo Lepcha (Campbell. Joumal of the Ethnological Society, Londres, julho de 1869), que evita a morte, mas que recusa a ajudar a dá-la; o Hos (Dalton. Descriptive Ethnology of Bengal, Calcutta, 1872. Pag. 206) tão rico de virtudes sociais que se suicidaria se se visse objeto da desconfiança dum furto; o Veddah (J. C. Tennant. Ceylon, an Aconnt of the Island, Londres, 1859, II, 444) das florestas que mal concebe que um homem possa ferir outro ou apoderar-se do que lhe não pertença; todos estes e outros ainda, atestam que a ausência de uma inteligência suficiente para a elaboração de uma concepção da lei social fundamental, não impede a existência de um sentimento enraizado que condiz com esta lei e a compreensão das suas aplicações práticas. Quando a vida da tribo decorre em condições tais que o respeito mútuo dos direitos dos membros da tribo não seja acompanhado por violações frequentes aos direitos dos estrangeiros, verifica-se que cada indivíduo vai adquirindo uma compreensão simultânea sucessivamente mais nítida dos seus próprios direitos e dos direitos alheios. As necessidades resultantes das mútuas restrições não trazem confusão de ideias referentes à conduta senão quando a moral da amizade se mistura com a moral da inimizade. O hábito da agressão aos de fora dá pouco azo ao hábito da não agressão aos de dentro e a que seja aceita e respeitada a lei que implica a não agressão. Um povo que por eufemismo chama aos seus soldados “defensores da pátria” e que só se serve deles para invadir os países estrangeiros - um povo que a dentro das suas fronteiras aprecia o valor da vida humana até ao ponto de proibir as lutas dos jogadores de boxe e que, para além dessas fronteiras frequentemente suprime centenas de vidas para vingar uma só - um povo que no seu território repele a ideia de que a inferioridade deve suportar os males que a inferioridade são inerentes, mas que não tem o menor escrúpulo em empregar a esmo as balas e as baionetas para subjugar os povos não civilizados invocando o pretexto de que os seres superiores devem tomar o lugar aos seres inferiores, um tal povo, repito, tem opiniões bem incoerentes acerca do justo e do injusto. Guiando-se ora por princípios apropriados à sua política interior ora pelos que lhe facilitam a sua política exterior, é incapaz de abraçar um conjunto coerente de ideias morais. No decurso do conflito de raças que, assegurando o povoamento da terra pelas raças mais vigorosas, constituiu o preliminar de uma civilização adiantada, vemos que a persistência destas atividades incoerentes tornam necessária a existência de sistemas e crenças incoerentes e fazem repelir todo o sistema coerente. Todavia, logo que as circunstâncias lhe permitiram, a concepção da justiça evoluiu lentamente até um certo ponto, dando ensejo a que chegassem a exprimi-la em fórmulas de uma verdade aproximada. Os mandamentos de decálogo hebraico promulgam proibições que, sem reconhecerem abertamente o elemento positivo da justiça, afirmam minuciosamente o seu elemento negativo, especificam limites às ações e, prescrevendo esses limites a todos os hebreus, afirmam tacitamente que a vida, a propriedade e a reputação alheia devem ser respeitadas. A máxima cristã «não façais a outrem o que não quereis que se vos faça», é uma forma que não distingue entre a justiça e a generosidade, implica vagamente a igualdade de direitos entre os homens. Implica-o mesmo de uma maneira excessiva, pois que não reconhece nenhuma razão que possa justificar a desigualdade da partilha de benefícios respectivamente colhidos pelos homens. Não reconhecendo diretamente o direito de cada homem aos frutos da sua atividade privativa, não implica em reconhecimento senão nos outros homens pela prescrição dos limites a observar. Sem nos determos nas fórmulas intermediarias da concepção da justiça, citaremos, entre as modernas, a de Kant. É assim a regra de conduta que ele formulou: «Não procedais senão em conformidade com uma regra tal que possais desejar que ela se transforme em lei universal». É, afinal, o processo cristão, sob uma forma alotrópica. Ainda que Kant seja classificado como anti-utilitarista, a sua regra presume indiretamente que o bem-estar de todo outro homem deve ser considerado como de valor igual ao do sujeito da ação, hipótese que não só abrange as exigências da justiça, mas que em muito as ultrapassa. Deixemos, porém, as ideias dos pensadores que tem tratado este assunto sob o seu aspecto moral e religioso para examinarmos as opiniões dos que o encararam sob o ponto de vista jurídico. § 32. - Inútil será dizer que quando os juristas enunciam ou invocam os primeiros princípios da sua ciência, os consideram como a base da justiça, isto embora não digam; pois que os diferentes sistemas de exercer a justiça em geral e em especial constituem a matéria das suas obras. Vejamos as doutrinas sucessivamente aparecidas: Fazendo alusão aos perigos que pareciam ameaçar o direito romano, escreveu Henry Mayne: «Todavia, os romanos teriam encontrado lima proteção adequada na sua teoria do direito natural, porque os jurisconsultos tinham uma perfeita compreensão do direito natural, como sendo um sistema destinado a absorver gradualmente as leis civis, sem se substituir a elas enquanto estivessem em vigor. O valor desta concepção e os serviços que prestou, resultavam de que ela constituía um tipo de Direito perfeito e a esperança de que as leis civis se aproximariam indefinidamente desse tipo (Ancient Law, pago 76-7, 3.a edição)». Fiel à orientação da jurisprudência romana, um dos antigos juízes ingleses, o celebre Hobart sustentou vigorosamente a afirmação seguinte: «Um ato do Parlamento oposto a equidade natural como o que decidisse que alguém pudesse ser juiz na sua própria causa, traria em si a origem da sua própria nulidade, por que jura naturae sunt immuiabilia e constituem leges legum. (Hobart's Repports, Londres, 1641 pago 120). Eis o que pensava uma autoridade menos antiga que os legistas romanos. Dominado pela crença de que um poder sobrenatural rege as coisas naturais, Blakstone exprime-se nestes termos: «A lei natural ditada pelo próprio Deus e tão antiga como a humanidade é evidentemente uma obrigação superior a todas as outras. Nenhuma lei humana terá validade se a contradisser. As únicas leis válidas são aquelas cuja força e cuja autoridade mediata ou imediata deriva toda desta fonte primária. (Blakstone, ed. Chitly vol. 1, pag. 37-8). A mesma doutrina foi enunciada por um autor que estudou a legislação sob o ponto de vista filosófico, James Mackinstosh. Definiu ele assim a lei natural: «É uma regra suprema e invariável de conduta que obriga a todos os homens. Chamasse-lhe e é «lei natural» porque os seus preceitos gerais são essencialmente apropriados para fazerem a felicidade dos homens..., porque a razão natural a descobriu e porque é a que mais convém à nossa constituição natural. É também «lei natural» porque os seus benefícios e a sua sabedoria se fundam na natureza geral dos seres humanos e não nas situações temporárias e acidentais desses mesmos seres» (Mackintosh Works, Obras diversas vol. I, pag. 346). O próprio Austin (John Austin. The province of jurisprudence deterrnined. Londres 1861, pag. 30) o ídolo dos legistas ingleses contemporâneos que tão apaixonados se mostram pela teoria do poder legislativo ilimitado elaborada pelo seu espírito propenso ao despotismo, vê-se obrigado a confessar que a justificação capital do absolutismo governativo que ele defende é de natureza moral. Em face, pois, de qualquer autoridade, monárquica, oligárquica ou parlamentar, promulgando leis apresentadas como supremas, todos concordam em que essa autoridade está subordinada a uma outra autoridade de que a primeira deriva e que é constituída senão da vontade divina, pelo menos da própria natureza das coisas. Não implica, portanto, credulidade ingênua e precisa de lógica o manifestar-se algum respeito por essas opiniões, ás quais ajuntareis as dos juristas alemães sobre o Naturracth. Pode razoavelmente presumir-se que a essência de tais opiniões é verdadeira, embora a sua forma se preste muitas vezes a ser criticada. § 33. - Parece-me estar ouvindo já esta desdenhosa objeção: «Tudo isso se reduz, afinal, a convicções a priori que são trazidas como reforço do vicioso método filosófico que pretende extrair as verdades da profundeza da nossa consciência». É este o argumento que empregarão aqueles a quem as verdades gerais só se tornam acessíveis depois de uma consciente indução. Por uma curiosa confirmação da lei do movimento rítmico a fé absoluta que houve nos tempos idos pelos raciocínios a priori transmudou-se numa incredulidade também absoluta aceitando-se unicamente os produtos do raciocínio a posteriori. Para quem tenha observado a marcha ordinária do progresso humano é quase certo que esta violenta reação será seguida de uma segunda reação e dessa lei pode-se inferir que, não obstante o abuso que se tem feito de cada um deles, os dois métodos antitéticos do raciocínio prestam um ao outro importante auxílio. Como se formaram e donde procedem as convicções a priori? Não me refiro, está bem de ver, a convicções particulares de certas pessoas e que podem ser o resultado de perversões intelectuais. Refiro-me às crenças gerais, senão universais - às convicções que todos ou quase todos têm por seguras, independentemente de indução. A origem dessas convicções é, ou natural ou sobrenatural. Se é sobrenatural - a não ser, como poderá suceder aos crentes do diabo, que se considerem demoniacamente sugeridas aos homens para os perder - é forçoso considerá-las como implantadas por Deus nas nossas consciências para nos servirem de guia. Nesse caso têm todo o direito à nossa confiança. Se por falta de crença nesta origem sobrenatural, procurarmos a origem natural, a nossa conclusão será que foi a apreciação das relações das coisas que determinou essa maneira de pensar. Os que concordam com as ideias correntias de que há agentes do bem e do mal não têm motivos plausíveis para negar o valor das doutrinas a priori, mas o evolucionista que necessita ser coerente com o seu processo filosófico só pode admitir as doutrinas a priori aceitas pela generalidade dos homens e que tenha promanado senão da experiência de cada indivíduo em particular, pelo menos das experiências comuns da raça. Tiremos um exemplo da geometria: afirma-se nela que duas linhas não fecham um espaço. Como é fácil de compreender, esta verdade não se forma a posteriori porque nunca houve nem lia modo de prolongar duas linhas retas até ao infinito afim de observar o que sucederá ao espaço entre elas compreendido. É inevitavelmente necessário, pois, admitir que a experiência que os homens têm feito com as linhas retas (ou melhor dito com os objetos aproximadamente retilíneos para abrangermos nessas experiências os tempos primitivos e ainda porque as linhas retas são uma idealidade dos geômetras) é tal que nos não permite a concepção de um espaço fechado por duas linhas retas. Essas experiências anteriores obrigam-nos imperativamente a acreditar que, a não ser que se curvem, as duas linhas não podem fechar o espaço. No ponto de vista da doutrina do evolucionismo esta intuição fixou-se por motivo da sequência de relações dos homens com as coisas exteriores, relações que durante um imenso lapso de tempo direta ou indiretamente determinaram a organização do sistema nervoso e as necessidades resultantes do pensamento. As convicções a priori determinadas por estas necessidades diferem simplesmente das convicções a posteriori em serem o produto das experiências de uma inumerável sucessão de indivíduos em vez de serem o de um indivíduo isolado. Se a doutrina do evolucionismo aceita as cognições simples, assim formadas acerca do Espaço, do Tempo e dos Números, não é inferir que também assim e em maior escala se formaram cognições mais complexas que têm por objetivo as relações humanas? Em mais larga escala disse, não só porque neste caso as experiências se efetuaram mais variada e mais confusamente e porque os seus efeitos na organização nervosa não se exerçam tão nitidamente; mas também porque, em vez de serem realizadas por uma série incomensurável de antepassados, remontam a épocas mais recentes da vida humana. Mal perceptíveis nas primeiras épocas, essas experiências só se acentuaram e adquiriram coesão, quando uma cooperação social mais perfeita se realizou na vida social. Tais cognições deverão ser, portanto comparativamente indefinidas. Segue-se daqui que as instituições morais precisam ser submetidas a processos críticos muito mais metódicos que as cognições matemáticas. Se os conhecimentos baseados nas percepções imediatas de linhas retas, linhas curvas, ângulos, etc., necessitavam ser fiscalizados por processos elaborados pela razão consciente (nós vemos se uma linha é aproximadamente perpendicular à outra, mas só em teorema geométrico pode demonstrar a perpendicularidade completa) é evidente que as percepções internas e relativamente vagas que temos da justiça das relações humanas, não devem ser aceites senão depois de refletidas comparações, de rigorosas contra investigações, de provas minuciosas e variadas. Esta conclusão ratifica os numerosos desacordos, a respeito de pormenores, que acompanham o acordo fundamental sobre o assunto. Portanto, se as opiniões atrás reproduzidas e, com elas, a lei de igual liberdade que formulámos tivessem unicamente uma origem a priori (o que não é assim) seria racional, em todo o caso, considerá-las senão como verdades literalmente rigorosas, pelo menos como esboços da verdade. § 34. - Censurando um sistema por tomar para ponto de partida uma intuição a priori sujeitar-nos-emos que essa censura nos venha ferir de ricochete. Em filosofia, em política, em ciência, a escola indutiva está obcecada pela reação violenta contra a escola dedutiva até ao ponto de afirmar que a indução consciente é para tudo suficiente e que nunca é preciso aceitar a validade dum axioma. O processo de que se servem os adeptos do exclusivismo do processo indutivo para demonstrar a verdade duma proposição consiste em provar que ela está compreendida numa verdade mais extensa e já conhecida e se esta for contestada em repetir e usar do mesmo processo para demonstrar que essa última verdade se filia, por seu turno, numa verdade mais extensa. Subentende-se que esta maneira de raciocinar pode prolongar-se indefinidamente sem nunca se chegar a verdade mais extensa, à que não pode filiar-se em nenhuma outra e que é, por consequência impossível demonstrar. O resultado de tão irrefletida hipótese é o de conduzir a teorias que por não terem por base as noções a priori ficam afinal sem base alguma. Tal é o caso. dos sistemas utilitários de moral e de política (Ha pessoas que se recusam a admitir, não somente a existência de verdades necessárias, mas a existência da própria necessidade. Parecem não dar conta de que em qualquer raciocínio, cada passo que vai das premissas de conclusão, não dispõe doutra garantia que não seja a percepção da necessidade da relação de dependência. Negar a existência da necessidade equivale a negar a validade de toda a argumentação, inclusive a de que se propõe demonstrar a não existência da necessidade. Ainda noutro dia li várias considerações sobre o estranhável assunto duma teoria que o articulista dizia ter estado morta durante muito tempo. A ser verdade, o facto é deveras notável. Mas mais o é ainda que um sistema que se suicidou ressuscitasse dentro de espíritos cultivados). O que vem a ser afinal o utilitarismo? Visto que se põe de parte todo e qualquer guia que não seja o empirismo, para onde é que nos querem encaminhar? Se o caminho a seguir deve sempre ter por balizas os méritos da espécie, qual o critério para apreciar esses méritos? Respondem-nos que pelo critério do bem-estar social, ou da felicidade coletiva. Claro que não hão de dizer-nos que o fim a atingir deveria ser o de aumentar a miséria ou de nos manter num estado estacionário de indiferença sensacional. De maneira que não podem deixar de responder que é o acréscimo da soma de felicidades. Afirmando isto, afirmam implicitamente que a maior soma de felicidade que é a maior soma de felicidades que a ação individual e a ação pública devem no todo e simultaneamente procurar obter. Mas qual é a origem deste postulado? Constitui ele uma verdade indutiva? Nesse caso, donde veio essa indução e quais são os homens que a instituíram? É uma verdade de experiência, fruto de observações rigorosas? Onde estão elas, essas observações? Quando foi que se juntou esse vasto repositório de observações generalizadas nas quais deve alicerçar-se toda a ciência da política e da moral? Não só essas experiências, essas observações e esta indução não existem, mas nem sequer se pode mostrar um único vestígio delas. Ainda mesmo que a doutrina utilitária fosse universal (que o não é, por que a rejeitam os ascetas de todos os tempos e de todos os lugares e uma escola de moralistas contemporâneos se recusam igualmente a aceitá-la) não teria ela outro fiador a dar-nos a não ser o de constituir uma afirmação imediata da consciência. Não é tudo, porém: a doutrina utilitarista subentende uma outra convicção a priori. Citámos já a regra de Bentham: «Conte cada um para um e ninguém conte para mais de um» e o comentário de Mill, de que o princípio da máxima felicidade ficará vazio de sentido «se a felicidade de uma pessoa é contada como devendo ser igual à felicidade de qualquer outra pessoa». A teoria moral e política de Bentham assenta pois nesta proposição, como sendo uma verdade fundamental e evidente por si mesma. Esta hipótese tácita de que à felicidade dum homem qualquer vale a dum outro qualquer homem, foi apresentada sob uma mais concreta forma por Bellamy, ao escrever: «Será em breve reconhecido que o mundo, assim como tudo o que ele encerra, é propriedade comum de todos, destinada a ser explorada e administrada para benefício igual de todos» (Stuart Mill. Utilitarisnism. Londres, 1864, pago 93, e Bellamy Contemporany Rewiev, julho, 1890). Isto equivale a afirmar, - quer seja o próprio Bentham que o diga, quer o seu comentador Stuart Mill, quer o seu discipulo comunista de que o escreveu - que todos os homens têm iguais direitos à felicidade. Mas esta afirmação não tem, nem pode ter outro fundamento que não seja o de constituir uma percepção intuitiva, o que o mesmo é que considerá-la como uma cognição a priori. «Não constitui uma cognição propriamente dita», apressar-se-ão a coonestar os que, desejosos de repelir a consequência comunista que ela implica, entendem, todavia, que devem rejeitar qualquer raciocínio a priori. «Esta pretendida cognição é o produto duma imaginação desvairada. A felicidade não pode repartir-se em partes iguais ou desiguais e a maior soma de felicidades não pode obter-se pela repartição igual dos meios conducentes a felicidade, ou dos benefícios, como modernamente se diz. Ter-se-á maiores probabilidades de realizar esse desideratum conferindo uma larga parte desses meios aos homens que forem mais capazes de felicidade.» Sem nos preocuparmos sobre se isso é ou não praticável, perguntaremos simplesmente qual é a sanção desta asserção? É uma sanção indutiva? Fez alguém um certo número de comparações entre sociedades que adaptassem o primeiro método da partilha de felicidade com os que adoptassem o segundo método? Tal hipótese não tem, portanto, outro fundamento que não seja aquele que os seus defensores rejeitam. A falta duma sanção a priori ficará sem sanção alguma. Vejam em que situação se colocaram os nossos adversários. Rejeitando a hipótese que eles dizem não possuir outra sanção além da intuição direta, os sectários do empirismo, emaranham-se através dum maior número de hipóteses eivadas do mesmo vício que o do sistema que combatem. O empirismo implica uma destas hipóteses na asserção de que a felicidade deve ser o fim a atingir e outra em cada uma das duas asserções de que os homens têm ou não têm iguais direitos à felicidade. Note-se ainda que nenhuma destas intuições pode invocar um consentimento tão extenso como o da intuição que os utilitaristas rejeitam como indigno de aceitação. Henry Maine fez a este respeito a seguinte observação: «Nenhuma dúvida há de que tanto a literatura latina propriamente dita como a literatura jurídica de Roma propuseram a felicidade dos homens para objeto de todas as reformas legislativas, mas é de salientar quanto são fracos os depoimentos em favor desse princípio se os compararmos com as homenagens continuamente prestadas às reivindicações triunfantes da lei natural». (Ancient Law, pag. 79, 3ª edição). Depois da época romana - quase escusado era dizê-lo - tem persistido a mesma oposição entre o reconhecimento restrito da felicidade como fim e a ampla atribuição desta qualidade à equidade natural. § 35. - Recordemos que o princípio da equidade natural prescrevendo, como dissemos no capítulo anterior, que a liberdade de cada homem devia ter por único limite a liberdade de todos os outros homens, não é exclusivamente uma noção à priori. Conquanto num certo ponto de vista seja o veredito imediato da consciência humana disciplinada pela longa influência da vida social, apresentar-se igualmente sob o aspecto de uma opinião que se pode deduzir das condições necessárias primeiramente da conservação da vida em geral e em segundo lugar da duração da vida social. O exame dos fatos tem-nos demonstrado que a lei fundamental que prescreve a cada indivíduo adulto a sujeição às consequências da sua natureza privativa e das suas ações, assegurou a sobrevivência dos melhores adaptados e que a sua influência fez evoluir a vida das suas formas inferiores para as suas formas superiores. Essa lei fundamental implica necessariamente a plena liberdade de ação que constitui o elemento da nova fórmula da justiça, porque, se faltar a liberdade plena as relações entre a conduta e as suas consequências não poderão subsistir. Confirmámos com variados exemplos a conclusão, clara em teoria, de que nos seres que vivem em agrupamento essa liberdade individual de agir tem que submeter-se a restrições cuja não existência produziria entre os atos O facto de os animais inferiores que vivem agrupados infligirem penalidades aos infratores dessas restrições, para eles relativamente incompreensíveis, mostra como o respeito por elas se estabeleceu inconscientemente como condição de persistência e continuidade de vida social. Destas duas leis, a primeira aplica-se a todos os seres sejam eles quais forem, a segunda a todos os seres sociais, e avigorando-se de mais em mais à medida que a evolução ascende, encontrou no seio das sociedades humanas a sua suprema e mais vasta esfera de manifestação. Acentuámos também que o desenvolvimento da cooperação pacífica coincide com a submissão crescente a esta lei compósita, tanto sob o seu aspecto positivo como sob o seu aspecto negativo e salientámos além disso que o desenvolvimento simultâneo da sua percepção intelectual e da sua apreciação emocional. Baseamo-nos, pois, noutras razões além das enunciadas nos §§ deste capítulo para concluir que esta crença a priori tem a sua origem nas experiências da raça. É lícito além disso filiá-la nas experiências do conjunto dos seres vivos e convencermo-nos de que constitui a correspondência consciente às exigências de relações que a ordem natural torna necessárias. Não se pode imaginar sanção mais alta. Acentuando, também, a lei de igual liberdade como princípio moral último e possuindo uma autoridade superior a todas as outras, ficamos preparados para retomar o curso deste nosso trabalho. CAPÍTULO VIII Os corolários da fórmula da Justiça As atividades humanas dividem-se em numerosas categorias e produzem relações sociais complexas. Para que a fórmula geral da justiça possa servir de permanente guia, é, pois, necessário que as suas deduções sejam adaptáveis a cada categoria especial e distinta. A afirmação de que a liberdade de cada um tem por limite as liberdades análogas de todos, ficaria letra morta não se sabendo quais as restrições particulares próprias das diversas séries de circunstâncias. Quem admite que todo o homem deve gozar duma certa soma de liberdade assim limitada, afirma, consequentemente, que todo o homem tem o direito de gozar dessa soma de liberdade limitada. Provado que o homem tem liberdade de ação até a um certo limite, mas não para além dele, essa prova implica que é justo que o homem possua a liberdade assim limitada. É, pois, racional que se deem às diversas liberdades particulares demonstradas na dedução o mesmo nome de direitos que têm na linguagem usual. § 37. - O abusivo emprego de certas palavras lança-as muitas vezes num grande descrédito. As ideias exatas que elas exprimem, com o andar do tempo, associam-se intimamente a ideias falsas no contado com as quais as primeiras perdem uma grande parte do seu caráter próprio. Aconteceu isso, duma forma patente, com a palavra direitos. Tem-se feito correr muitos rios de sangue-para a defesa dos direitos ao trono de fulano V ou de beltrano VI. A antiga legislação inglesa relativa à pobreza apoiava habitualmente as reivindicações dos sem pão invocando o seu direito à subsistência tirada da terra. Todos nós estamos já familiarizados com a ideia do direito ao trabalho espalhada pelo operariado francês, tomando-o já se vê, como o direito que o operariado se arroga de obter trabalho. Os comunistas usam e abusam presentemente da palavra direito, perturbando lhe o sentido que se lhe havia dado. O emprego dessa palavra divulgou-se e relaxou-se por tal modo que os jornalistas que fazem profissão de devassar e mexericar a vida privada das personagens em evidência, defendem-se das arguições feitas ao excesso de reportagem, objetando que o público tem o direito de ser informado. Tudo isto produziu num grande número de espíritos uma reação que era inevitável e que obstinada e levantadamente contestam desses pretensos direitos. «Não ha, dizem, outros direitos além dos conferidos pela lei.» Seguindo na esteira de Bentham, afirmam que o estado é a única fonte de direitos. Mas se a desmedida elasticidade dada ao sentido das palavras denota falta de senso, falta de senso é também não discernir o verdadeiro sentido delas quando este está imiscuído com acepções abusivas. § 38. - Resulta do exposto, que os direitos propriamente ditos são corolários da lei de igual liberdade e que é impossível deduzir dela direitos falsos. Vamos agora estudar esses corolários, acentuando em primeiro lugar que todos eles sem excepção coincidem com concepções morais ordinárias e em segundo lugar que todos eles também correspondem a leis positivas. Veremos também que longe de derivarem da lei escrita são os direitos propriamente ditos que lhe conferem autoridade. CAPÍTULO IX O direito a integridade física § 39. - Peço vénia para esta epigrafe aparentemente pedantesca, mas não encontro outra que enuncie de adequado modo tudo o que vai ficar compreendido neste capítulo. Usamo-la para podermos abranger todos os prejuízos, desde a violência que lese os outros fisicamente até às simples desavenças de vizinhança. Pondo de parte agora outras das suas restrições, a lei de igual liberdade tem como corolário, evidente por si mesmo, que os atos de todo e qualquer homem não devem ir senão até onde não causem diretamente a outrem algum prejuízo físico, ligeiro ou grave. Os atos em que se ultrapasse este limite implicam, salvo o caso de represálias, o exercício duma liberdade mais extensa dum lado do que de outro e, como vimos, a lei que formulámos quando bem interpretada não autoriza a agressão nem a contra agressão. Considerado como o enunciado duma condição indispensável para assegurar a maior soma de felicidade, também essa lei introduz todo o ato em sofrimento ou perturbação física. § 40. - Por ser de primacial evidência, quase seria dispensável incluirmos na epigrafe adoptada o direito à vida e a interdição do homicídio voluntário que esse direito implica. Este crime, considerado pelas nações civilizadas como o mais negro dos atentados, não é inconscientemente, mas conscientemente considerado assim por constituir a violação extrema da lei de geral liberdade, visto que o homicida não se contenta com perturbá-la, mas vai o mais além possível anulando por completo a liberdade de ação do indivíduo que assassinou. É inútil pois insistir na primeira dedução da lei natural, atribuindo à vida um carácter sagrado. Será, todavia, de instrução e vantagem o observarmos os progressos sucessivos pelos quais se efetuou o reconhecimento desse carácter sagrado. Registrando como mais excessivo, o exemplo dos Fidjens (Williams and Calvert. Figi and the Fijians, 1858, I, pag. 112) que consideram ou consideravam o homicídio como uma ação honrosa, iremos passando em revista vários outros exemplos colhidos em tribos selvagens que arrastam os seus ascendentes quando atingem a velhice, os seus doentes e os seus inválidos. Assim procediam diversos povos da Europa primitiva. Grimm conta que os Wendes (Grimm. Deutsche Rechtsalterthumer, 488) «matavam os pais, assim como os outros membros idosos da família e todos os que se tornassem inaptos para a guerra ou para o trabalho e que os cosiam e comiam, ou os enterravam vivos ... Os Hérulos matavam igualmente os seus velhos e doentes ... Na Germânia setentrional conservaram-se traços desses costumes até épocas relativamente pouco afastadas de nós.» Não se encontra a par desta destruição deliberada dos membros inválidos da tribo, destruição que tivesse geralmente como desculpa a necessidade de conservação dos membros válidos, a opinião habitual e pública de que o assassinato constituísse um crime. Diz Grote, (Grote. A History of Grece, 4ª edição, II, pag. 33) que o homicídio nenhumas outras consequências traziam aos gregos dos tempos homéricos «além da vingança pessoal dos parentes e dos amigos da vítima», podendo estes aceitar uma indenização maior ou menor consoante o pagamento que se estipulasse: neste último caso a missão dos chefes limitava-se a vigiarem o cumprimento rigoroso do trato. Iguais ideias, iguais sentimentos e iguais práticas continuaram a prevalecer na Europa até época mais próxima. Não era tanto a perda da vítima, como o prejuízo causado à família ou clã que constituía o mal: o prejuízo é que era punido ou compensado. Paga a indemnização, tornou-se quase indiferente matar, em represália, o assassino em pessoa ou algum membro inocente da família deste. Sem dúvida foi este modo de ver que determinou, pelo menos em parte, que a graduação da indemnização variasse consoante a qualidade da vítima, indemnização que depois de ter sido nos tempos primitivos objeto de transações privadas passou mais tarde a ser fixada e fiscalizada pela lei. A concepção do caráter sagrado da vida humana estava tão pouco desenvolvida que se não estipulava preço de sangue para o escravo; o senhor dele podia matá-lo a seu belo prazer e se outra pessoa lhe tirava a vida, só o valor mobiliário era exigido do assassino. Num insensível progresso, o homicídio torna-se alguma coisa mais do que um atentado de ordem privada, quando o rei passa a receber uma parte do preço do sangue. Permanecia-se ainda, sob o quase inteiro domínio das ideias anteriores, pois que a destruição de um dos vassalos do rei equivalia à destruição de uma parcela do seu poder sobre os súbditos, eliminando-lhe o efetivo das suas forças guerreiras. A graduação das indenizações segundo a categoria da vítima que ficou persistindo, mostra a pouca importância que se ligava à criminalidade intrínseca do homicídio: a distinção estabelecida no chamado benefício de clérigo, mostra bem que era esse o critério corrente. Na dinastia dos Plantage-netos um homicida que soubesse ler tinha apenas um castigo leve. A República inglesa realizou um grande progresso abolindo por completo o benefício de clérigo. Um ato especial do Parlamento aboliu o combate judiciário e puniu severamente o duelo. Esta legislação reconhecia enfim a criminalidade intrínseca do homicídio. Podemos agora abordar os tempos modernos em que não é admissível nem a escusa proveniente da distinção de classes, nem qualquer outra forma de imunidade. Três fatos significativos convêm marcar no decurso desta evolução. Nos tempos primitivos a conservação da vida é, como entre os animais, uma questão de ordem puramente privada e em nada se relaciona com a ideia de culpabilidade o ato de matar. Á medida que a agregação e a organização social se desenvolvem, vão sendo, de mais em mais, consideradas como um prejuízo que afeta primeiramente só a família ou o clã e épocas depois, a sociedade. Pune-se o homicídio mais como atentado à sociedade do que como atentado ao indivíduo. Pouco a pouco, sem apagar a concepção da sua criminalidade como violação da lei de preservação da ordem social, a concepção da sua criminalidade como incomensurável prejuízo causado à vítima, afirma-se e torna-se dominante. Este sentimento da culpabilidade intrínseca implica um sentimento consciente do direito intrínseco à vida, no indivíduo: o direito à vida toma desde então o lugar primacial no pensamento humano. § 41. - A relação entre o grau de prejuízo físico a que o homicídio dá causa e o grau maior ou menor de prejuízo físico causado pela incapacidade variável de poder realizar as condições da vida, tem sido bastante nítido para que não pudesse passar-nos desapercebido. A asserção tácita do direito à integridade física que o castigo do homicídio implica tem sido acompanhada pela afirmação tácita ulterior que as penalidades por mutilações, ferimentos, etc., implicam. Estabeleceu-se naturalmente um certo paralelismo entre a evolução dos dois casos a partir da máxima: «vida por vida, olho por olho, dente por dente» que foi o ponto de partida desse paralelismo. Quando à saída do primitivo período, em que as represálias são um assunto puramente particular, se chega ao período imediato em que elas passam a constituir um assunto de família, ou de clã, vemos que o clã vinga a morte de um dos seus membros com outra morte de um membro do clã agressor, compensando assim a perda de uma vida com a eliminação de outra vida e se a lesão não foi mortal exigir uma equivalente por substituição, em vez de um equivalente efetivo. Realiza-se assim a adopção do sistema das reparações pecuniárias; a família ou a casa do ofensor passa a ser obrigada a pagar não somente o preço de uma vida, mas o de uma mutilação à família ou à casa da parte lesada. Um fado ulterior implica a mesma concepção. Nas tribos germânicas (Stephen. A History of the Criminal Law of England. 1883. H, pag. 204. 209) e entre os ingleses primitivos (Henry Maine. Ancient Law, 1866, pag. 370) a indemnização por homicídio, graduada segundo a categoria da vítima, completava-se por uma série de indenizações, calculadas de igual maneira, e aplicável a prejuízos de menor importância. Segue-se daqui que a preocupação dominante em ambos os casos era o prejuízo sofrido pela família ou pelo clã e não o prejuízo do próprio indivíduo lesado ou morto. Igual concepção se encontra nos antigos russos (Vietmannsdorf. Handbuch des Deutschen Strafrechts. Berlim, 1871, I, pag. 225-6). Á medida que a vida social dos clãs, ou pequenos agrupamentos sociais, se funde na vida social de agrupamentos mais extensos, ou nações, a ideia do prejuízo causado à nação suplanta a do prejuízo causado ao clã. O Estado principiou por cobrar primeiro uma parte e depois a totalidade da indemnização paga pelo agressor. Conquanto nos casos de violência pessoal a simpatia da consciência pública se preocupe principalmente com a vítima e com a exprobração do culpado que infligiu o sofrimento e causou o prejuízo, o Estado abandona essa vítima à sua desgraça e arrecada a indemnização pecuniária. As indemnizações da legislação contemporânea para reparação de prejuízos causados por negligência revelam uma concepção mais elevada da justiça. Há já muitos séculos que o direito a uma indemnização do cidadão lesado fisicamente e voluntariamente por um dos seus concidadãos alargou-se até aos prejuízos físicos por imprudência ou incúria. Nestes últimos anos a aplicação deste princípio tem-se estendido sucessivamente: as companhias dos caminhos de ferro foram tornadas responsáveis pelos prejuízos causados em razão da falta de vigilância e cuidado dos seus empregados e os patrões respondem pelos acidentes nos seus operários, ocasionados por aparelhos defeituosos, faltas de precaução, ou perigo inerente ao seu trabalho. Este progresso legal implica uma apreciação mais elevada do direito do indivíduo à sua integridade física. A companhia ou o patrão responsável pelo prejuízo causado é obrigado a dar a indenização não ao Estado, mas à parte lesada, o que prova que o direito do indivíduo à sua integridade física prevalece na consciência coletiva aos detrimentos sociais que resultariam do desconhecimento deste último direito. Não omitamos uma outra prova da crescente estima em que vai sendo tido esse direito a que chamámos sagrado. As leis modernas consideram como vias de fado, não só os atos de violência propriamente ditos, mas toda e qualquer coerção física e até as ameaças que não chegam a traduzir-se em fados: um beijo dado sem consentimento tornou-se um delito punível. § 42. - Um outro progresso que acerca do assunto se efetuou nos nossos dias é o de se considerar a comunicação duma doença como um atentado contra a integridade física. Todavia esse delito, embora grave e em parte considerado como tal pela lei, não ocupa ainda nos nossos códigos o lugar que lhe deve ser marcado em motivo das consequências nocivas que produz. Umas vezes é um pai que foi buscar um filho atingido por um mal contagioso, e que viaja com ele em caminho de ferro sem se preocupar com o perigo da infeção provável a que ele expõe os passageiros do mesmo vagão. Outras vezes é uma mãe que pretende contrariar as prescrições do médico, enviando os filhos à escola quando eles não estão inteiramente restabelecidos da doença. fados desta natureza são na verdade puníveis, mas passam-se geralmente duma forma tão pouco comprovável e compreende-se tão pouco o mal que possam causar, que a opinião não os considera por ora como delitos. Devem considerar-se pois senão como delitos atuais, pelo menos como delitos potenciais. Com efeito, a lei e a consciência publica reconheceram enfim que se é culpado, não só mente fazendo sofrer fisicamente o próximo como também o expondo a males físicos potenciais. Assim se chegou ao estado que assimila a pessoa de cada homem a um território, considerando-se como delito todo o ato que possa ocasionar a violação. § 43. - É incontestável que este primeiro corolário da fórmula da justiça se foi afirmando gradualmente com o decurso da evolução social e da paralela evolução da natureza mental do homem. Um prolongado comércio com as condições necessárias para a realização harmónica da vida social, moldou lentamente os sentimentos, as ideias e as leis em conformidade com a verdade moral primária que dimana dessas condições. (Um advogado que há muito tempo se dedica ao estudo da evolução do direito, quis ter a paciência de anotar neste livro tudo o que se relaciona com as leis positivas do passado e do presente. Eis a nota que juntou ao parágrafo acima: No processo que se seguiu ao rapto de Clitera foi decidido que um esposo não tenha o direito de reter a sua mulher pela força. Esta interessante decisão vem em apoio da doutrina deste parágrafo. Nesse processo o direito das mulheres casadas à sua liberdade física foi pela primeira vez reconhecido num aresto dum tribunal superior e isso contrariamente à opinião de dois magistrados distintos que, em primeira instância, interpretaram a lei antiga em sentido oposto. As penalidades aplicadas pelos juízes aos professores primários que castigam os seus alunos com palmadas e outros castigos corporais, constituem uma outra manifestação de desenvolvimento que refaz as leis na convicção de que se interpretam apenas). Convém acentuar que o assassinato, o homicídio voluntário, as mutilações, as vias de fado e todos os atentados contra a integridade física desde os mais graves até aos mais leves se tornaram crimes e delitos não por que as leis ou os mandamentos que se tem atribuído origens sobrenaturais interdigam, mas porque foram sendo consideradas como violações de certas restrições de origem natural. falta-nos dizer que enquanto a moral absoluta deixa intacta a autoridade do corolário que há pouco tirámos, este, num sistema de moral relativa permanece submetido às restrições impostas pelas necessidades da auto conservação social. Como já tivemos ocasião de ver, a lei primária que exija que cada indivíduo se sujeite às vantagens e aos inconvenientes derivados da sua natureza e da sua conduta a dentro dos limites impostos pela sociedade, deve, em presença de grandes perigos, ser modificada pela lei secundária que exige dum indivíduo o sacrifício necessário para assegurar ao agrupamento social a possibilidade de agir e de colher os resultados dos seus atos. A guerra defensiva justifica, pois, o sacrifício eventual da integridade física imposto pela defesa efetiva da sociedade, caso, bem entendido essa defesa efetiva seja realizável, pois que esta lei secundária parece implicar que o sacrifício dos indivíduos não se justifica se os invasores dispuserem duma superioridade esmagadora. Como nos capítulos precedentes também neste se vê que só um estado de paz permanente pode assegurar a conformidade completa com as exigências da moral absoluta. Enquanto à superfície da terra existirem povos que exerçam o bandoleirismo político e militar, só as exigências da moral relativa poderão alcançar satisfação. CAPÍTULO X O direito à liberdade de movimentos e de deslocação § 44. - Seria quase dispensável a inclusão, nas deduções diretas da fórmula da justiça, do direito que todo o homem tem a usar, sem peias, dos seus membros e a deslocar-se livremente. O pensamento apreende num instantâneo relance (e mais facilmente de que todos os outros, portanto) que estes dois direitos são corolários da fórmula mencionada. Salta aos olhos que quem amarra e amordaça outro homem, quem o prende a um poste, quem o encerra num calabouço estreito, arroga-se uma liberdade de ação superior à do seu cativo. Claro é também que, no caso de impedir com ameaças que ele se desloque à vontade, infringe de idêntica maneira a lei de igual liberdade. Se em vez de um homem isolado, um grupo de homens, destroem ou diminuem a liberdade de ação dum outro homem, por qualquer dos modos enunciados, se as leis formuladas pelas classes superiores despojam as classes inferiores duma parte do seu poder de moção e de locomoção, é manifesto que cada um desses indivíduos violou o princípio último da equidade. O seu grau de culpabilidade é que fica reduzido. § 45. - Tivemos já ocasião de verificar que o instinto que impele à fuga e à ruptura do cativeiro denota, tanto nos seres infra-humanos, como nos seres humanos, a presença de uma impulsão que, com o progresso social, acaba de concretizar-se sob a forma de reivindicações conscientes da liberdade da moção e da locomoção. O elemento positivo do sentimento profundamente enraizado que corresponde a esse direito cedo se manifesta, mas o elemento negativo que determina os limites impostos, só pode adquirir um grande desenvolvimento depois de a disciplina social se ter constituído e firmado. Os seguintes exemplos mostram que a falta ou a excessiva fraqueza da fiscalização governamental determina, a reivindicação tácita, mas resoluta, da inteira liberdade de moção, tanto nas raças de génio afável como nas de natureza selvagem. Os Abores (Dalton. Joumal of the Asiatic Society, Bengala, XIV, 426) são tão ciosos da sua independência que não podem viver em comum. Os Nagas (Stewart. foumal of lhe Asiatic Society, Bengala, XXIV, 608) têm tal repugnância pela subordinação que acolhem com sorrisos de desprezo a ideia da escolha de um chefe. Os Lepechas (Campbell. Journal of the Ethnological Society, Londres, julho, 1869) atrás citados, embora afáveis como são, preferem refugiar-se nos bosques e sustentar-se de raízes, a submeterem-se à autoridade de quem quer que seja. Os Yakuns (E. Favre. Journal of the Indian Archipelago, vol. II. Singapura) são ótimos criados, mas abandonam subitamente a casa e o amo se os submeterem a uma disciplina excessiva. Estes indivíduos que possuem um comum e intenso sentimento de liberdade pessoal, diferençam-se, porém: os do tipo guerreiro veem nele o sentido egoísta, ao passo que os do tipo pacífico têm-no também no sentido altruísta e conjugam-no com o respeito pela liberdade individual dos outros homens. Foi pela guerra que se efetuou a passagem do estado de agrupamentos primitivos, com pouca ou muita organização, ao estado de agrupamentos organizados e poderosos. Este processo implica diminuto respeito pela vida e pela liberdade e dele resulta que, durante o período da formação das nações, o reconhecimento do direito à liberdade e do direito à vida encontra-se numa situação de subalternidade: como sentimento é constantemente violado e repelido; como ideia existe indecisa e vagamente, apenas. Só com a realização de grandes progressos foi quando a organização social se tornou largamente industrial e quando por ter a guerra deixado de ser um estado constante o tipo militar enfraqueceu, o sentimento e a ideia de liberdade acusam e adquirem um caráter acentuado. Examinemos rapidamente alguns dos períodos de evolução necessários para o gradual estabelecimento do reconhecimento ético e legal do direito à liberdade de moção e de locomoção. § 46. - A escravatura, não há nega-lo, foi, no ponto de vista prático uma delimitação restritiva do canibalismo. Assim encarada, representa um progresso. Permitindo ao cativo que viva e trabalhe, em vez de o matar e comer, deixou de negar-se por completo ao cativo o princípio fundamental da equidade, visto que a continuação da sua existência, não obstante as condições opressivas da escravatura, tornava possível até um certo ponto a manutenção da lei de relação entre a conduta e as suas consequências. Por vezes os prisioneiros escravos e as suas crianças alimentadas e tratadas como animais de estábulo, estão - exemplo, entre os Figis (Erskine. Joumal of a Cruize) - sujeitos a todo o instante a serem convertidos em alimento: neste caso o canibalismo pouca atenuação tem. Mas vários povos não civilizados tratam o escravo, sob muitos pontos de vista, como uma pessoa de família. Citaremos unicamente os fatos que melhor permitem avaliar o modo de crescimento da concepção moral e jurídica da liberdade individual. No povo judaico, (Êxodo XXI; Deuteronômio, XV; Levítico, XXV, 45, 46.) ao passo que os escravos de raça estrangeira podiam ser comprados e os filhos deles transmitidos como herança, os homens da raça hebraica que se vendessem quer a outros hebreus quer a estrangeiros residentes, ficavam submetidos apenas a uma servidão temperada como rigor e limitada como duração: servos de Deus, não eram alienáveis a título definitivo. Não existia porem reconhecimento algum da injustiça inerente à escravidão, nem do direito correlativo à liberdade. Desta falta dos sentimentos e das ideias que tão grande império adquiriram nos tempos modernos persistiu com o aparecimento do cristianismo, que, aliás, em nada o modificou. Nem Cristo, nem os seus apóstolos, censuravam a escravatura e quando estes, falando da liberdade, disseram: “Usai antes dela do que da escravização” (Primeira carta aos coríntios, VII, 21) este aviso não implica o pensamento manifesto de qualquer direito inerente ao indivíduo e de molde a justificar a liberdade sem peias de moção e de locomoção. O mesmo se passou com os gregos e com a maior parte dos povos durante os seus primitivos estados. Nos tempos homéricos (Grote, History of Grece, 4ª edição II, pag. 37, 468-9) os cativos aprisionados na guerra ficavam reduzidos à escravidão e podiam ser vendidos, ou resgatados a dinheiro. Durante todo o período da civilização grega, que coincidiu com um estado de guerra crónica, a escravidão foi considerada como fazendo parte normal da ordem social. Considerava-se uma infelicidade o cair na escravidão, por captura numa batalha, por dívidas, ou por outra qualquer causa, mas em nenhuma censura se incorria pelo facto de ser proprietário de escravos. A concepção da liberdade como direito inalienável nenhum ou estreitíssimo lugar ocupava na moral ou na lei. De resto, era coerente que se recusasse a liberdade aos escravos propriamente ditos, visto que os próprios homens que se diziam livres não passavam, em realidade, de escravos do Estado: cada cidadão pertencia mais à cidade do que a si próprio. Em Esparta, (Grote. History of Grece, 4ª edição, pag. 309) que foi o estado grego mais guerreiro, a condição do ilota não somente era mais degradante que no resto da Grécia, mas os próprios senhores deles tinham maiores restrições, que em geral por outra parte, de entrarem e saírem à sua vontade da cidade. Confirmado está, pois, que, em geral, nos estados cujas dimensões e estrutura se desenvolveram consideravelmente, o seu crescimento implicando natural e invariavelmente a conquista e a agressão exterior, manteve em compressão a individualidade, não permitindo que ela deixasse de si senão diminutos vestígios nas leis e nos costumes. § 47. - Para explicar o aumento nos costumes e nas leis da concepção da liberdade humana, que hoje está implantada no consenso das raças mais civilizadas, bastará passar em rápida revista alguns dos principais progressos realizados no decurso da própria civilização inglesa. As hordas sucessivas de invasores guerreiros que ora subjugando, ora rechaçando os possuidores antecedentes, povoaram a Inglaterra nos tempos afastados (Green, Short History of the English. People, 1880, pp. 56, 90, 91 e 247) deviam necessariamente ter escravos, classe que tinha a captura por origem, e cujo número aumentava periodicamente pela adjunção dos devedores remissos e dos criminosos. Com a expansão da população, e com o paralelo desenvolvimento da organização política, os habitantes que haviam formado uma classe de homens livres, consoante o sistema original da Mark perderam gradualmente uma parte da sua liberdade, umas vezes por efeito de conflitos entre grupos, conflitos em que alguns dos membros adquiriram preponderância; e outras vezes, a maior parte, em resultado de conflitos exteriores que originaram a conquista do território e a subjugação dos habitantes pelos chefes da conquista que se transformaram em seus senhores. Os camponeses foram subjugados pelos thanos e os thanos pelos nobres. No tempo de Alfredo estatuiu-se que ninguém passasse de senhor, o que implicava a privação da liberdade não somente para os membros da classe mais ínfima (os escravos que se vendiam e compravam), mas até para os membros das classes superiores. Durante as modificações provenientes da conquista normanda esta delimitação da liberdade continua, como se subentende do juramento de fé e de homenagem; agravou-se mesmo mais, salvo no que respeita a abolição parcial da compra e venda dos escravos. Uma das transições do estado de servidão para o estado de liberdade imperfeita resultou do progresso das cidades no século XI pelo desenvolvimento concomitante das instituições industriais e pela substituição que este desenvolvimento implicava das relações reguladas pelo estatuto por outras relações que tinham por bases os contratos. Um século depois a Magna Carta pôs um travão ao arbítrio governativo e às restrições de liberdade que dele resultavam para os cidadãos. A influência crescente das classes mercantis traduzia-se na liberdade de circulação concedida aos negociantes estrangeiros. E, quando um século mais tarde o laço que prendia o servo à terra se afrouxou primeiro e se rompeu definitivamente depois, o trabalhador integrado na posse plena da sua liberdade adquiriu o direito de locomoção sem peias. Mas, em verdade, tornou a perder uma parte deste direito quando em razão do despovoamento e da grande elevação dos salários causados pela peste grande se promulgou o estatuto que tarifava o preço do trabalho e fixava coercitivamente o trabalhador ao âmbito da sua paróquia. Todavia com a resistência violenta por eles efetuada, estas restrições determinaram uma intensa afirmação de igualdade que se estendeu a outros direitos além do da liberdade de locomoção. No decurso desse movimento insurrecional, excepção aberta para o rei que aconselhava a que se atendessem as suas reclamações, viu-se quanto era diminuto nas classes dirigentes o direito dos camponeses a liberdade. Afirmando que os seus servos eram os seus bens, os proprietários de terras declararam que antes queriam morrer todos nesse mesmo dia do que consentirem na emancipação reclamada. Assim como o aumento da atividade e da organização industrial produzira um acréscimo de liberdade, assim também os vinte anos conhecidos sob o nome da guerra das duas rosas, fizeram perder uma grande parte das liberdades já obtidas. Contudo o camponês não ficou anexado à terra e foi-lhe concedida a faculdade de se deslocar. As perturbações sociais ocasionadas pela queda do feudalismo e a participação que nela tiveram as classes obreiras, conduziram a uma desagregação industrial que se procurou remediar por um novo regime de coerção parcial e por uma nova sujeição parcial do obreiro ao lugar do domicílio, mas sem de nenhuma outra forma restringir a liberdade de deslocação. A liberdade assim obtida faltavam todavia salvaguardas e nos fins do século XVII o ato do habeas corpus, veio reforçar as precauções contra a detenção arbitrária que já haviam sido tomadas pela Magna Carta mas que tinham sido violadas frequentes vezes. Em 1824 foram abolidas as últimas restrições secundárias da liberdade de deslocação constituídas pelas leis que interdiziam aos operários o viajarem à procura de trabalho. (H. Martineau. History of England during the Thirty Years Peace, 849-50, I, p. 343) Desde então salvas perturbações pouco profundas devidas a pânicos temporários a liberdade pessoal permanece intacta na Inglaterra. Não esqueçamos que paralelamente ao estabelecimento legal da liberdade pessoal e tão lentamente como ele engrandeceu o sentimento correspondente, e que a afirmação altruísta da liberdade se foi pouco a pouco juntando à sua afirmação egoísta. As mudanças que no decurso dos séculos modificaram a organização social transformando a escravidão completa dos humildes e a escravidão atenuada das classes superiores num estado de liberdade absoluta para todos produziram conjuntamente durante a época do seu desenvolvimento o sentimento e a lei que afirmam esta liberdade não só em favar dos cidadãos ingleses, mas em benefício também dos estrangeiros submetidos à lei inglesa. Começou-se por emancipar os escravos vindos para Inglaterra e acabou-se por emancipar os que habitavam as colónias inglesas, findando-se pelo empreendimento sem canseiras da abolição universal da escravatura. § 48. - A não se considerar a civilização como um movimento retrógrado, torna-se preciso admitir que a indução confirma a dedução tirada do princípio fundamental da equidade. Ha pessoas que pensam que as sociedades antigas eram de um tipo superior ao nosso e que asseguravam melhor o bem-estar humano. Para elas, a organização feudal com a sua vassalagem hierárquica sobreposta à vilanagem produzia uma soma total de felicidade superior àquela que nós gozamos. Seguem a opinião de Carlyle e evocam saudosamente os idos tempos do abade Sampson, desejando que voltassem de novo, e aplaudindo a obediência dos russos ao Kzar. Os que assim pensam podem sem se desmentirem contestar que o aumento do sentimento da liberdade e implantação legal da liberdade pessoal confirmem a dedução abstrata que fizemos neste capítulo, mas para quem prefira o nosso tempo àquele em que os nobres viviam entre os cintos de muralhas dos seus castelos e usavam cotas de malha; para quem prefira a um estado social que teve por apanágio os cárceres subterrâneos e os instrumentos de tortura àquele em que administração da justiça não distingue entre um príncipe de um indigente; para quem prefira um regime "que ocasionou as revoltas agrárias ao dos tempos atuais em que há inumeráveis associações cujo objetivo é o bem-estar popular - é forçoso admitir que a lei geral extraída do conjunto das experiências humanas concorda com o corolário que acabamos de tirar da fórmula da justiça. Contudo, as afirmações da moral absoluta são modificadas pelas exigências da moral relativa. Desde o começo deste trabalho temos vindo reconhecendo o princípio de que a preservação da espécie, ou da variedade da espécie que se constituiu em sociedade, é um fim que deve prevalecer ao da conservação do indivíduo. Resulta daqui que o direito à liberdade individual, assim como o direito à vida individual tem de atender às modificações que originem medidas necessárias para a segurança nacional. Toda a infração à liberdade exige que a preservação da liberdade se muna de uma sanção quase ética. Submetida unicamente à condição de que todos os membros capazes, pertencentes a comunidade, lhe ficarão igualmente sujeitos, a restrição dos direitos da liberdade de moção e de locomoção torna-se legítima quando determinada pelas exigências da guerra defensiva. Mas já assim não é se a guerra for ofensiva. CAPÍTULO XI Direitos ao uso dos agentes naturais § 49. - Um homem pode não ser lesado fisicamente por outros homens e ter a inteira liberdade de se deslocar à vontade sem que, todavia, possua a livre atividade precisa para realizar os atos necessários à conservação da vida, por motivo de obstáculos criados por eles às suas relações com o «meio» físico ambiente. Destas relações depende, com efeito, a sua existência. Tem-se sustentado que alguns dos agentes naturais não são suscetíveis de ser submetidos ao estado de posse comum. «Certas coisas, são por natureza, incapazes de apropriação. De maneira que é impossível submetê-las ao poder de um indivíduo. O direito romano chamava-lhes res communes e definia-as: coisas cuja propriedade não é de ninguém, mas cujo uso pertence a todos. Assim a luz, o ar, a água corrente etc., são de tal modo adotados ao uso comum da humanidade que ninguém pode adquirir a propriedade delas, nem privar outrem do seu uso.» (An Instituie of the Law of Scotland, por John Erskine, ed. Macallan I, 196). Mas conquanto se não possa monopolizar nem o ar, nem a luz, é possível a um homem interceptar a sua distribuição até ao ponto de privar de parte delas um outro homem, causando-lhe assim um sério prejuízo. Nenhum ato desta natureza se pode exercer sem gravame da lei de igual liberdade. A intercepção habitual da luz por uma pessoa de modo a privar habitualmente uma outra pessoa duma parte igual de luz, implica o desconhecimento ou a violação do princípio de que a liberdade de cada um é limitada pelas liberdades idênticas dos outros: o mesmo é de dizer a respeito do livre acesso do ar. Nesta categoria geral a que damos aqui uma amplitude muito maior que a costumada, incluiremos também uma coisa que é suscetível de apropriação: a superfície da Terra. Considerada como fazendo parte do habitat físico, esta deve ser necessariamente compreendida entre os «meios» de que todos podem, em virtude da lei de igual liberdade, exigir o uso. É impossível privar alguém inteiramente do uso da superfície da Terra, sem sustar as atividades necessárias à vida. Sem terreno em que se firme, é impossível ao homem fazer o que quer que seja. Mesmo para voar indefinidamente, precisaria dum ponto de apoio no solo para se alçar aos ares. Parecerá, pois, que a lei de igual liberdade interpretada estritamente, deve ter por corolário que a superfície da Terra não pode, no sentido absoluto do termo, ser apropriada pelos indivíduos e que só deve ser ocupada por eles com o reconhecimento de que é também pertença dos demais homens: noutras palavras só a sociedade, em conjunto, se pode apropriar da Terra. Embora não tencionemos demorar-nos longamente no estudo do reconhecimento ético e legal do direito ao uso dos agentes naturais e com quanto só o último exija mais refletida analise, vamos, todavia, examiná-los sucessivamente. § 50. - Nos primitivos estados, quando a vida urbana não tinha surgido ainda, tornava-se difícil opor uma prejudicial obstrução à luz de outrem. Nos acampamentos selvagens e nas aldeias das tribos agrícolas, o modo de construção e a posição relativa dos habitantes opunha-se à prática de semelhantes agressões: todos podiam realizar os seus fins privativos sem obscurecerem a habitação do vizinho. Posteriormente, quando as cidades se foram formando, não é provável que os seus habitantes se preocupassem grandemente com os direitos dos respectivos vizinhos a respeito do ar e de luz. Nestes estados da evolução social, em que tão pouco direito havia pela liberdade e pela vida alheias, não é de presumir que entrasse em linha de consideração, quer como transgressão moral, quer como delito legal, o prejuízo relativamente mínimo resultante da construção duma casa que afrontasse e obscurecesse a do vizinho. A existência de ruas estreitas e sombrias das velhas cidades do continente, bem como as edificações e as guelhas e becos que caracterizam os antigos bairros das cidades inglesas, indica bem que na época em que foram construídas, ninguém supunha que houvesse mal em privar alguém da sua parte de ar e de sol. É até razoavelmente admissível a impraticabilidade de se poder punir esses atos, pois que, nas cidades fortificadas, as habitações à medida que a povoação se desenvolvia se iam apertando e encavalando cada vez mais a dentro do cinto das muralhas. Nos modernos tempos, os espíritos tornaram-se acessíveis à compreensão de que ninguém deve impedir a distribuição natural da luz. As leis que proíbem a elevação de muros e de casas ou de outras quaisquer construções a distâncias de casas fronteiras ou do lado que não sejam as prescritas, não evita absolutamente a interdição da luz, mas opõe-se que essa interdição se realize num grau prejudicial, procurando conciliar, quanto possível, os direitos das propriedades adjacentes. Equivale isto a dizer que a lei não sanciona abertamente ainda o corolário da lei de igual liberdade ao qual nos vimos referindo, mas que o reconhece tacitamente. § 51. - Todo o impedimento posto à propagação da luz importa um certo grau de impedimento posto à circulação do ar. A interdição do primeiro impedimento implica até um certo ponto a interdição do segundo. A lei inglesa, porém, que reconhece o direito ao uso do ar no que respeita a moinhos de vento, não a reconhece, todavia, no mais, duma tão positiva maneira decerto por causa dos inconvenientes pouco notáveis causados por esta obstrução. Não obstante, reconhece nitidamente o direito à não recepção do ar viciado. Ainda que os atos que diminuem a provisão do ar de outrem, não estejam ainda patentemente classificados como delitos, o critério moderno inclui já os atos que viciam a qualidade de ar na categoria das agressões. Tais atos tem umas vezes a reprovação moral apenas; outras vezes, porém são puníveis por disposições legais. Claro é que, até um certo limite, não há maneira de impedir que um homem vicie o ar que outros homens respiram. Basta seguir na rua um fumador para verificar até que distância se espalham as exalações dos nossos órgãos respiratórios e até que ponto, principalmente no interior das casas, as pessoas próximas são forçadas a respirar o ar já respirado. Mutua porém como é, esta viciação não constitui uma agressão. Esta só se produz quando a viciação causada por um ou por vários indivíduos atinge pessoas que para ela não contribuem igualmente. É o que sucede nos caminhos de ferro quando pessoas que se prezam de bem-educadas fumam em compartimentos que não são destinados a fumadores. Pode ter obtido dos seus companheiros de viagem um consentimento mais ou menos forçado; mas, em todo o caso, não tem a consideração que devia merecer-lhes por indivíduos que viajam com eles em vagões empestados pelo cheiro do tabaco. Uma consciência delicada considera essa sem cerimónia como contrária a boa civilidade. Com este fundamento, os regulamentos dos caminhos de ferro estabelecem multas para os indivíduos que incomodarem com o fumo os demais passageiros. Passando de exemplos deste gênero a casos mais graves, notaremos a interdição legal de outras viciações da pureza do ar, como a dos odores mefíticos de certas indústrias, a dos vapores perniciosos de vários produtos químicos e da fumarada que sai das chaminés das fábricas. Proibindo estes atos, a legislação implica o direito de cada cidadão a respirar um ar contaminado. É agrupavel na mesma categoria um outro gênero de abuso, ao qual o meio ambiente serve de intermediário: a produção de ruídos incômodos, tão leves como intensos. Conquanto não haja lei proibitiva que impeça que um indivíduo fale e gesticule acaloradamente à mesa dum hotel interrompendo, abafando e prejudicando a conversação dos outros comensais, condena-se este ato como contrário às boas maneiras, ou, o que o mesmo é dizer, aos bons costumes, porque as primeiras fazem parte dos segundos. Quem num teatro, ou num concerto conversa alto, ou doutro qualquer modo, incomoda os outros espectadores e incorrem também em censura. Quando incómodos desse gênero se tornam públicos ou contínuos, como a música das ruas, sobretudo a música má, o ruído de certas indústrias e o dos sinos das igrejas, que, tocando a horas impróprias, ou por tempo demasiado, a lei reconhece então o seu caráter agressivo e fere-os com penalidades. Todavia a legislação conveniente à salubridade e ao sossego público não considera ainda muitos casos como puníveis, e, entre eles os silvos das locomotivas nas estações centrais que, sem necessidade alguma, perturbam o sono de milhares de pessoas e agravam o sofrimento dos enfermos. Para o uso da atmosfera chegou-se, pois, com o tempo, senão a impor, pelo menos a afirmar tacitamente a limitação de liberdade de cada um perante as liberdades semelhantes dos outros. A moral atual reconhece largamente este princípio e a lei vigia-o com atenção. § 52. - O estado de coisas produzido pela civilização não contraria a aceitação dos corolários que deduzimos da lei da justiça. Bem ao contrário, abre-lhes um caminho cada vez mais amplo. No tempo em que o canibalismo estava espalhado e em que frequentemente se sacrificavam vítimas aos deuses, os povos pouco apreço e solicitude podiam mostrar pelo direito à vida; mas as ideias e as práticas desse tempo desapareceram e em nada entrava já a inteira liberdade das nossas opiniões. Quando o escravagismo e a servidão se haviam enraizado fundamente na organização social, a afirmação do direito à liberdade teria suscitado uma violenta oposição. Hoje, nos povos de mais elevada civilização pelo menos, nenhum uso contradiz o princípio de que todo o homem é livre de se servir dos seus membros e de se deslocar à vontade. Os fatos pouco acentuados que impedem o aprovisionamento do ar e da luz a cada um, fatos cujas consequências nós herdámos do sistema da construção das cidades antigas, os incômodos ocasionados pela fumaceira das fábricas e os outros a que fizemos referência, em nada contradizem a proposição de que os homens têm iguais títulos ao uso dos agentes naturais em cujo seio se encontram. Ao contrário disso, há ideias e instituições que o passado nos transmitiu que erguem uma barreira impedindo que os homens tivessem títulos iguais ao uso da terra, desta parte do nosso habitat a que, em verdade, se não pode rigorosamente chamar um «meio». Essas ideias e essas instituições nasceram numa época em que as considerações de equidade não influíam no modo por que se efetuava a possessão da terra e que não influíram também na possessão dos homens como escravos, ou como servos. Atualmente, ainda elas suscitam dificuldades na aceitação da nossa proposição. Se os nossos contemporâneos possuidores dos sentimentos éticos produzidos pela disciplina social, se encontrassem em presença dum território ainda não repartido individualmente, não hesitariam em afirmar a igualdade dos seus direitos a esse território, assim da mesma maneira como não hesitam em afirmar a igualdade dos seus direitos ao ar e à luz. Mas uma apropriação que vem de longe, uma cultura contínua, as vendas e as compras complicaram as coisas ao ponto- de que a afirmação da moral absoluta se tornou incompatível com o estado produzido por essa múltipla série de fatos e a põem em risco de absoluta rejeição. Antes de averiguarmos o que as circunstâncias nos determinam a decidir, vejamos algumas das provas da expropriação da terra no passado. Nas primeiras idades agrícolas, a ocupação dessa terra rapidamente esgotada deixava de ser útil, e consoante o costume dos povos pouco civilizados, ou semicivilizados, os indivíduos abandonavam-na para se transportarem a outras paragens antecipadamente escolhidas. Esta causa produziu somente uma influência restrita sobre o facto de não haver nos primeiros tempos propriedade individual, mas somente usufruto da terra. Quaisquer, porém que tenham sido as outras causas, o facto é que a propriedade individual da terra não existia ainda. O solo era propriedade da tribo. Assim é ainda hoje em Sumatra e noutros pontos. Os nossos antepassados eram proprietários, a título pessoal, apenas do produto das parcelas de terreno por eles agricultadas. Os membros da mark também não tinham a propriedade da área cultivada. Como os indivíduos que constituíam a tribo eram membros da mesma família, da mesma gens ou do mesmo clã, poder-se-ia sustentar em rigor que a propriedade de cada parcela ou propriedade privada, ao passo que a superfície total pertencia a um grupo familiar; mas por isso que o mesmo regime cultural persistiu depois que a população da mark deixou de ficar sujeita aos laços agrícolas determinados pelo parentesco, esse regime era bem o da propriedade comum doado e não o da propriedade individual. Compreenderemos melhor o que era um tal regime, estudando o que se passa na Rússia onde um idêntico modo de propriedade territorial não desapareceu ainda inteiramente. «As terras duma aldeia pertenciam em comum a todos os membros da associação (mir); o mujik só possuía individualmente a colheita e o dvor e o quintal em volta da casa. Este estado inferior da propriedade, que persistiu na Rússia até aos nossos dias, vigorou nos primitivos tempos de todos os povos europeus. Rambaud, Histoire de Russie, pag. 35». Extrairei também do livro de WalIace a respeito da Rússia algumas passagens em que se descreve o estado original da propriedade territorial e o que depois se lhe seguiu. Notando o facto de que enquanto os cossacos do Don foram inteiramente nômades «a agricultura era por eles castigada com a pena de morte, decerto por que restringia a facilidade e a proliferação dos animais e a sua caça, acrescenta: «O cossaco, desejoso de obter colheitas fazia a sementeira e o amanho da terra onde mais azado lhe parecia e conservava a terra de que se havia apropriado tanto tempo quanto lhe convinha; quando o solo principiava a dar sinais de esgotamento abandonava o seu campo e ia semear noutro lugar. O aumento do número de cultivadores ocasionou frequentes disputas. Outros e mais sérios inconvenientes advieram também do estabelecimento de mercados nas propriedades. Nalgumas staitzas, ou aldeias cossacas, as famílias ricas apropriaram-se de imensas superfícies de terra comum, lavraram-na com emprego de juntas de bois e contrataram nas aldeias vizinhas camponeses para as amanharem. Em vez de abandonarem os campos depois da segunda ou terceira colheita, retiveram-nos na sua posse, foi assim que a totalidade da terra arável, ou pelo menos a melhor parte dela, se tornou, de facto senão de direito, propriedade privada de algumas famílias. E informa que em seguida a um movimento quase revolucionário a comunidade, fazendo valer os direitos dos membros privados da terra agricultável, confiscou aquela de que se tinham apropriado muitas famílias e organizou um sistema de partilhas periódicas em virtude do qual cada adulto macho ficaria tendo uma parcela do solo para agricultar. «Na estepe um mesmo lote de terreno não era geralmente cultivado senão três ou quatro anos consecutivos. Passado esse tempo era abandonado por um tempo pelo menos duplo e os cultivadores transportavam-se para uma outra parte do território comunal. Este regime impede que o princípio da propriedade privada crie raízes; cada família tem mais a posse duma quantidade determinada do que a dum lote determinado de terreno e contenta-se com um direito de usufruto; o direito de propriedade fica nas mãos da comuna». Posteriormente nas regiões centrais, que eram as que mais tinham progredido, abandonou-se este costume antigo, mas sem lhe destruir inteiramente o carácter essencial. «Em conformidade com este sistema (de cultura trienal) os cultivadores não emigram periodicamente duma parte do território comunal para outra, mas amanham constantemente o mesmo campo e obrigam-se a adubar os lotes que ocupam. Ainda que o regime da cultura trienal esteja em uso desde há muitas gerações nas províncias centrais, o princípio comunal da lotação da terra permanece intacto». Estes e outros fatos análogos e numerosos excluem toda a dúvida de que anteriormente às modificações introduzidas pelo progresso da organização social nas relações entre o indivíduo e o solo, estas relações baseavam-se na propriedade coletiva e não tinham o mínimo apoio na propriedade individual. Como foi que essa relação se modificou? Qual a única maneira por que pôde efetuar-se? Não foi, certamente, em virtude dum consentimento livremente dado, porque é impossível admitir que todos ou que mesmo alguns dos membros da comunidade abandonassem os seus respetivos direitos. Pode ter acontecido, de tempos a tempos, que um criminoso perdesse a sua parte da propriedade comum, mas esses fatos em nada modificaram a relação entre o solo e o resto dos membros agrários. Uma dívida pode ter dado causa às mesmas perdas, se o facto de existir a dívida não implicasse o de haver credores. Ora não é admissível que a comunidade em massa tivesse esse credor; a dívida de um membro da comuna a outro membro dela não conferia, pois, ao devedor o poder de pagar, alienando uma coisa que não possuía em próprio nome e que não era susceptível de ser adquirida a título pessoal. É, portanto, provável que a mesma causa que vimos atuar no regime agrícola da Rússia determinasse iguais modificações noutros pontos. Houve homens que cultivaram superfícies mais vastas, acumularam a riqueza com o poder que ela confere e adquiriram possessões de extraordinária extensão. Mas essa prosperidade excessiva e as consequências que dela advieram ocasionaram na Rússia um movimento insurrecional e o regresso ao regime originário. De calcular é, portanto, que nos outros pontos haja provocado a reação também. O exercício direto ou indireto da força, umas vezes no interior, mas na maioria dos casos vinda do exterior, deve ser a causa principal da mudança de regime. As disputas e as lutas que surgiam no seio da comunidade preparavam predomínios (assegurados em certos casos pela possessão de locais fortificados) e facilitaram usurpações parciais. Os Suanetas (Freshfield. Procedings of the Royal Geographical Society, junho, l888, pag. 335) dão-nos ainda hoje o exemplo de aldeias em que cada família possui uma torre fortificada. É fácil de compreender que no seio das comunidades primitivas, as lutas intestinas deviam determinar supremacias individuais e que estas acabassem por subordinar os direitos coletivos a direitos especiais. Mas a conquista vinda do exterior foi em toda a parte o instrumento principal da despossessão da propriedade comunal. No tempo em que os prisioneiros de guerra eram reduzidos à escravidão e as mulheres retidas como presa de guerra, não é de presumir que se professasse um grande respeito pelos títulos preexistentes da propriedade do solo. Os anglos rapaces que nas suas incursões às costas das ilhas que hoje constituem o reino inglês estrangulavam os padres junto dos altares, incendiavam as igrejas e chacinavam as multidões que se refugiavam nelas seriam uns seres incongruentes se tivessem quaisquer contemplações com os direitos territoriais dos habitantes que escapavam às suas mortandades. Os piratas dinamarqueses que mais tarde subiram pelos cursos dos rios, assolaram essas ilhas, incendiando as habitações, matando os habitantes, violando as mulheres, pendurando as crianças nas lanças e vendendo-as no mercado de escravos, só por miraculosa transformação, respeitariam os direitos territoriais dos proprietários da mark. O mesmo deve ter sucedido quando os conquistadores normandos chegaram, depois de um intervalo de dois séculos, durante o qual as guerras intestinas incessantes tinham já feito surgir os chefes militares que impuseram os seus direitos quase feudais aos ocupantes do solo. O direito de conquista alterou uma vez mais os direitos de posse que se tinham formado e apagou a propriedade comunal em benefício do especial regime de propriedade individual próprio do feudalismo. A afirmação da expropriação total - mais ou menos atenuada pelas conveniências políticas - segue, adaptando-se à natureza da raça conquistadora e conquistada, no encalço da vitória que confere um poder ilimitado sobre os vencidos e seus bens. Algumas vezes, como no Dahomey (Burton. Mission to Gelete, King of Dahomey, I, 260) a vitória confere ao rei o monopólio absoluto, não somente da terra, mas de quanto nela assenta e se desloca. Noutros casos, como na Inglaterra, concedia à coroa o domínio supremo, ficando os nobres e os vassalos com direitos sobrepostos e possuindo a terra uns dos outros sob a condição de prestarem serviços militares. O rei estava, pois, implicitamente investido no direito de propriedade supremo; os nobres e os vassalos tinham sucessivamente e decrescentemente a emfiteuse, ou propriedade imperfeita. Este primitivo regime e as modificações subsequentes por que passou, deixaram acentuados vestígios nas leis fundiárias atuais da Inglaterra e de outros países europeus. Vários dos direitos locais da Grã-Bretanha e Irlanda remontam a uma época em que «a propriedade territorial a título privado, tal como nós a entendemos presentemente, era uma novidade excessivamente combatida». (The Land Laws, por fred. Pollock, pag. 2). «Os aldeãos que tem direitos comunais, gozam-nos em virtude desse título que, se fosse possível remontar à sua primitiva origem, veríamos ser mais antigo que o do lord. Os seus direitos são os mesmos que pertenciam aos membros das antigas comunidades rurais e tem data muito anterior à da menção dos direitos territoriais adstritos aos castelos e aos lords castelães. Nos atos de vedamento de muro nas propriedades comunais testemunham ainda hoje pouco respeito pelos direitos dos habitantes das com unas. Seria, pois, necessária uma ingénua credulidade para se acreditar que nos rudes tempos da transformação dos direitos comunais nos direitos individuais se efetuasse com equidade. O direito individual à propriedade ficou, todavia, quase sempre incompleto e sujeito aos direitos do suserano imediato e aos do suserano supremo, implicando assim a subordinação do direito de propriedade ao direito do chefe da coletividade. «As nossas leis não reconheciam o direito absoluto de propriedade imobiliária senão na Coroa. Todas as terras eram consideradas como possuídas, mediata ou imediatamente pela Coroa, embora lhe não competisse receber dos proprietários delas quaisquer rendas ou serviços e independentemente de haver ou não, nos arquivos do reino, algum título de concessão dimanada da Coroa.» (Land Laws, pago 12). Esta concepção da propriedade fundiária sobrevive tanto em teoria, como na prática, porque frequentemente os Estados autorizam a expropriação de parcelas do solo para fins de utilidade pública. Poder-se-á objetar que o direito de propriedade suprema do solo atribuído ao Estado está compreendido no direito de propriedade geral e suprema pelo qual ele se atribui o direito de se apoderar de quaisquer bens, mediante indemnização. Mas o uso que o Estado faz do primeiro destes direitos é habitual e amiudado, ao passo que o segundo está unicamente consignado no papel e não passa de letra morta, por que não faz uso dele. Com efeito, nas compras de quadros, feitas pelas nações, os Estados entram em concorrência com os compradores particulares e só os adquire quando o seu lanço é maior que o dos outros concorrentes. Falta-nos demonstrar que as mudanças políticas que tem lentamente substituído o poder supremo do monarca pelo poder supremo da nação, substituíram o direito supremo da propriedade fundiária da nação. Assim como o corpo representativo herdou, de facto, os poderes governativos de que o passado tinha investido o rei, assim também aquele herdou o direito de domínio iminente de que o rei estava investido também. O poder representativo, sendo, como e, de delegação, é um mandatário da coletividade e nela se concentra hoje o antigo direito supremo de propriedade de que os reis antigos estavam investidos. Os próprios proprietários territoriais não contestam isso; e, para prova, citarei o relatório publicado em dezembro de 1889 pelo conselho da «Liga Inglesa da defesa da Liberdade e da Propriedade», conselho de que fazem parte vários magistrados judiciais e pares do reino. Esse documento, depois de declarar que a Associação tem por princípio essencial «baseado na experiência do passado» a desconfiança do «funcionalismo do Estado e dos Municípios», prossegue nestes termos: «Tal princípio aplicado a possessão do solo é favorável ao direito da propriedade individual, submetido à suserania do Estado. É claro que a terra podia ser «retomada» mediante o pagamento duma indemnização plena e administrada pelo «povo» se isso se tornasse vontade sua. O Relatório não dá outras razões em apoio do sistema fundiário existente além dos defeitos do sistema de administração de que aquele é substituto, e abertamente reconhece o direito pertencente à comunidade do direito supremo da «terra». Assim, enquanto que nos primitivos estados, vemos a coexistência da liberdade individual e a da propriedade comunal do solo, vê-se também durante os dilatados períodos em que se efetuou a transformação das pequenas comunidades em grandes agrupamentos, a atividade militar, que foi quem efetuou essa transformação e consolidação, tornar-se a causa da perda simultânea da liberdade individual e da participação da propriedade da terra. Paralelamente à declinação do poderio militar e ao desenvolvimento do industrialismo, dá-se nos nossos dias uma dupla reaquisição: a da liberdade individual e a da participação da propriedade da terra que se manifesta pela parte dela que o poder representativo expropria e torna pertença coletiva. Este facto implica, em favor dos membros da comunidade, que exercem habitualmente pela pessoa dos seus representantes o poder de alienar uma qualquer porção da terra e de usar dela, o direito de se apropriar sem quebra de equidade, da totalidade dela e de a destinar aos usos que julgue convenientes. Mas a equidade e o costume implicam igualmente que os atuais detentores da terra não poderão ser desapossados dela sem receberem o preço em que foi avaliada. Daqui se infere que a aquisição pelo Estado de todas as terras em globo, envolve a do pagamento do seu valor total. Se a comunidade reouvesse sem esse pagamento, o exercício direto do seu direito de propriedade, adquiriria como uma coisa que lhe pertence uma soma imensamente maior de coisas que lhe não pertencem. Os direitos teóricos dos homens tiveram de século para século uma tão inumerável série de complicações; mas, reduzindo mesmo o problema à sua mais simples expressão, não poderemos deixar de admitir que a única coisa que a comunidade tem direito a reclamar, é a superfície do território no primitivo estado inculto. A coletividade nenhum direito tem ao acréscimo de valor dado ao solo pelo arroteamento, pela cultura prolongada, pelas vedações, pelas drenagens, pela abertura dos caminhos, pela construção para os agricultores e para animais, etc., etc., acréscimo que constitui a quase totalidade do seu valor e que é um produto do trabalho pessoal, do trabalho retribuído, do trabalho dos antepassados. Tudo isto representa dinheiro legitimamente ganho para quem o embolsou. Os proprietários atuais estão investidos no acréscimo de valor comunicado à tuna pelo trabalho e pela arte: despoja-los dele seria um ato de gigantesco latrocínio. A violência e a fraude presidiram bastas vezes as operações que deram e dão origem aos direitos existentes da propriedade territorial, mas muitíssimo maior seria a violência e a fraude praticada pela comunidade se confiscasse o valor que o trabalho e a arte de milhares de anos deram à terra. 53. - Regressando ao tema geral deste capítulo os direitos ao uso dos agentes naturais, convém acentuar que estes direitos vêm gradualmente obtendo a sanção legislativa à medida que as sociedades se aproximam do tipo superior. No início do capítulo, vimos- que a asserção legal de igualdade dos direitos dos homens ao uso da luz e do ar é dos tempos modernos. Nenhuma forma de organização social ou de interesses de classe se opõe hoje ao reconhecimento desse coro lá rio da lei de igual liberdade. Acabamos de verificar que atualmente se manifesta, embora por um modo talvez inconsciente e velado, o reconhecimento da igualdade de direitos de todos os eleitores à propriedade suprema da ária habitada, direitos que, conquanto latentes, se subentendem nos Atos do Parlamento que alienam a terra. Ainda que as disposições em vigor entravam esse direito ao uso da terra inerente a todo o cidadão, torna-se, todavia, impossível o negar a equidade dos seus títulos, sem que isso implicasse a afirmação de que as expropriações efetuadas pelo Estado são contrárias à equidade. O Estado não pó de equitativamente passar a outrem o direito do detentor atual senão por virtude de um direito anterior, em benefício do direito da comunidade, direito que é igual à totalidade dos direitos individuais dos seus membros. Nota. - No apêndice B se encontrarão várias considerações concernentes ao discutidíssimo assunto da propriedade do solo. Transferi-as para lá, afim de não dar a este capítulo uma extensão muito maior que a dos demais. CAPÍTULO XII O direito de propriedade § 54. - Do facto de serem tirados da terra todos os objetos materiais suscetíveis de apropriação, deduz-se que o direito de propriedade é, pela sua origem, dependente do direito ao uso da terra. Esta inevitável conexão permaneceu incontestada em quanto não houve produtos artificiais e os naturais foram os únicos de que o homem se apropriava. No atual e desenvolvido estadia social, existem inumeráveis objetos suscetíveis de posse, tais como casas, móveis, vestuários, obras de arte, notas de banco, ações de caminhos de ferro, títulos de hipoteca, fundo de Estado, etc., cuja origem se não relaciona diretamente com o uso da terra. Não obstante, como são ou produtos de trabalho ou sinais representativos de trabalho e como o trabalho seria impossível sem a subsistência e como a subsistência é tirada da terra, é de reconhecer que a existência da conexão acima referida continua a dar-se por mais afastada e deturpada que pareça. A justificação ética completa do direito de propriedade eriça-se das mesmas dificuldades que vimos haver para a justificação ética completa do direito ao uso da terra. O ensaio da justificação de Locke (Locke. Two Treatises of Gouvernement, 5ª edição. Londres, 1728. Tratado segundo, § 27) não é satisfatório. Diz ele que «embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos, todo o homem tem direito à propriedade da sua própria pessoa" e daí infere «que o trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos» devem pertencer-lhe como coisas de que se apropriou. «Incorporando o seu trabalho - continua Locke - em todas as coisas que tirou do estado da natureza, o homem comunicou-lhe alguma coisa que é bem dele e que as torna propriedade sua." Poder-se-á objetar-lhe que atentas as suas premissas de que «a terra e todos os seres inferiores são pertença de todos os homens» é necessário o consentimento de todos os homens para que um objeto possa equitativamente «ser subtraído ao estado de bem comum em que a natureza o pôs.» O ponto a discutir é este: o trabalho destinado a fazer um objeto do seu estado natural dá ao homem que efetuou esse trabalho um direito superior à soma dos direitos preexistentes de todos os homens? A dificuldade que a pergunta contém não é irremovível. Consoante o homem que se encontre em presença de condições selvagens, semisselvagens ou civilizadas, três maneiras diferentes ha de demonstrar que os direitos pessoais de propriedade podem constituir-se sem violação dos direitos iguais dos outros homens. Os ocupantes duma região que recolhem ou captaram os seus produtos podem tacitamente, ou mesmo declaradamente convir que em consideração das iguais probabilidades que todos têm de se apropriar desses objetos, o assentimento passivo de todos os ocupantes sancionará a apropriação efetuada por um deles. Este acordo geral é o que observam os membros das tribos caçadoras. Convêm, todavia, notar que várias dentre elas afirmam a restrição prática, se não teórica, que acima enunciamos; o costume reconhece a toda a tribo o direito de partilha da caça abatida por um dos membros da coletividade, isto sem dúvida em resultado da convicção de que a presa antes de morta, pertencia em parte a todos. «Os Comanchos, informa Schoolcraft (Schoolcraft. Information respecting the Indian Tribes of the United Estates, 5 vol., Londres, 1853-6, I, pag. 232) não aceitam a distinção do meu e do teu senão para os bens mobiliários. Pretendem que o território por eles ocupado assim como a caça que nesse território vive e que só pode ser apropriada por captura, são pertença de toda a tribo. O Comancho que matou uma peça de caça guarda a pele, mas a carne divide-se proporcionalmente às necessidades do grupo. Cada indivíduo tem obrigação de admitir, sem oposição, que os membros restantes da tribo recebam a parte precisa para a sua subsistência.» Iguais usos e ideias reinam entre os cipaios. «Quando um grupo de caçadores mata a caça num recinto fechado, é dividida por todos os que tomaram parte na caçada. Se a caça cai numa armadilha particular, consideram-na como propriedade privada. É, todavia, permitido a todo o caçador que passe e a quem a fortuna não foi propícia apoderar-se dum veado nestas condições, contanto que deixe a cabeça e a pele do animal ao proprietário da armadilha. Os colocatários dum direito de pesca, ou mesmo qualquer indivíduo que tenha tomado parte numa pescaria podem testemunhar a quase completa equidade que há nos preceitos por que se regulam e que têm vagamente, senão expressamente, força de lei. É ver-se a irritação que provoca um colocatário ou um companheiro de pesca que infringe as praxes estabelecidas, irritação que se tornará maior se em vez dum ataque descortês ao prazer dos outros pescadores, se tratar de uma abusiva apropriação de alimento. Passando da vida dos caçadores à vida semi-sedentária, encontram-se costumes que implicam as mesmas ideias gerais. O território, em vez de estar à disposição de todos para que recolham e capturem nele uma parte igual da subsistência, está à disposição dos ocupantes para o cultivarem e colherem a sua subsistência. Neste segundo caso, como no anterior, os produtos do trabalho são adquiridos pelos membros da coletividade que o efetuaram. A subsistência obtida por meio da cultura duma parcela do solo por um membro da comunidade torna-se propriedade sua com o assentimento da tribo, assentimento que implica o reconhecimento de análogos direitos analogamente estabelecidos em benefício de todos os outros membros da tribo. Como vimos no capítulo precedente quando estudámos os antigos regimes agrários da Rússia, o acordo indefinido do começo veio depois a transformar-se num acordo definido, e prescreve a divisão da terra em lotes iguais, atribuição a cada possuidor do direito de agricultar o lote que lhe foi designado e, o direito de propriedade aos produtos da cultura. Um acordo parecido vigorou na Irlanda durante o reinado de Henrique II e posteriormente. «Os membros da tribo partilhavam entre si a terra, corrigindo-se a divisão de anos a anos» (Green. A Short History of the Englistt People, 1880, pag. 431). Em virtude deste acordo geral, o indivíduo gozava de um direito exclusivo de propriedade sobre tudo quanto, nas condições estabelecidas, extraía da terra. Também neste caso como no anterior, o direito de propriedade teve uma origem harmónica com o direito de igual liberdade. O direito de propriedade originado assim não resultou, certamente, de um contrato explícito e ultimado entre a comunidade de uma parte e cada um dos seus membros da outra. Ao estudá-lo, achamo-nos, contudo, em presença de uma estipulação que se assemelha a um contrato virtual e que teria podido transformar-se num contrato formal se uma parte da comunidade, entregando-se a outras ocupações, deixasse à parte restante a continuação da cultura declarando com comum acordo, que uma parte do produto da cultura dos lotes cedidos seria reservada para os membros que haviam deixado de ser cultivadores. Nada prova, contudo, que semelhantes estipulações se hajam feito entre os ocupantes e a comunidade e sancionado a propriedade do produto da ocupação, mediante a entrega de uma parte equivalente à renda fundiária. Surgem quase invariavelmente, agressores pertencentes à comunidade ou vindos do exterior que usurpam o direito original de propriedade da comunidade e passaram a receber a renda em trabalho ou em serviço militar e não em géneros: esse estado de coisas fez tábua rasa nos direitos de propriedade fundados na equidade, assim como em todas as outras categorias de direitos da mesma origem. Dessas usurpações derivou, contudo, o sistema de propriedade em virtude do qual o Estado confere a retenção da terra, sistema suscetível de dar origem a um direito de propriedade equitativo em teoria. Na China (S. W. Williams. The Middle Kingdom, 2 vols., Nova York, I, pag. 1-2), «onde a posse total da terra deriva diretamente do Estado mediante o pagamento de uma taxa anual e de uma estipulação para o resgate do serviço pessoal devido ao Governo», a hipótese de que o imperador representa a comunidade é a única que pode invalidar a propriedade legítima do excesso que fica disponível depois do pagamento da renda reservada à comunidade. Na Índia (Laveleye. Primitive Property - Contemporary Review, Londres. 1878, pag. 310 e seguintes), o governo é o proprietário supremo e até se instituírem os zemindarse, recebeu diretamente a renda. Só por uma forçada interpretação se pode relacionar neste regime o direito de propriedade com um contrato realizado entre a comunidade e o indivíduo. As exigências da moral não são, entre nós, mais respeitadas, pois que a doutrina de que todo o proprietário de imobiliário o é por delegação revogável da Coroa, tem um valor puramente teórico. Apenas nalguns raros países em que a propriedade não é virtualmente do Estado, mas sim expressamente reconhecida, e em que as rendas ordinárias são cobradas pela Coroa (que neste caso está identificada com a comunidade), foi que se estabeleceu o sistema de exploração da terra que dá ao direito pessoal de propriedade uma base teoricamente válida. Encarado pelo prisma da ética, o estabelecimento de um direito completo de propriedade apresenta as mesmas dificuldades que as que ha para o estabelecimento de um direito completo ao uso da terra. Não obstante, o exame dos fados das primitivas sociedades nascentes, fados que se reencontram na história dos estados remotos das sociedades atuais, basta para mostrar que o direito de propriedade é, pela sua origem, relacionável com a lei de igual liberdade e que a infração dos outros corolários desta lei foi que rompeu essa ligação. § 55. - Á medida que a sociedade se desenvolvia, esta dedução foi-se elaborando e foi sendo, de mais em mais, posta em vigor; o costume cedo a reconheceu e, logo após, formulou-a o legislador. Primitivamente, o direito de propriedade considerou-se como reivindicação válida pelo trabalho executado sem lesão alguma dos direitos de outrem nem do próprio agente do trabalho. Os povos mais broncos, aqueles em quem a concepção do direito de propriedade se desenvolveu menos, admitem a propriedade das armas, dos utensílios, do vestuário, e dos enfeites; o trabalho confere a todos estes objetos um valor proporcional notavelmente superior ao da matéria prima de que são feitos. As palhotas são num menor grau o produto do trabalho individual, por serem geralmente construídas com a intervenção de auxiliares, a título de reciprocidade. Com isto não enumerámos todos os objetos possuidores de um valor que, nesta época, resulta muito mais do trabalho efetuado neles do que do valor intrínseco da matéria prima, porque o valor intrínseco dos alimentos colhidos ou capturados no estado natural é muito inferior ao do esforço feito para os obter. É por isso, certamente, que nas sociedades menos civilizadas o direito de propriedade dos bens mobiliários se encontra muito mais nitidamente definido que o dos outros objetos. O reconhecimento do direito de propriedade foi, pois, na sua origem, o reconhecimento da relação que deve existir entre o esforço empregado e o resultado obtido. Embora, como o afirma Henry Maine (Henry Maine. Ancient Law, 3ª edição, Londres, 1866, pag. 184), o chefe do grupo tenha primeiramente sido o senhor nominal de todos os bens, esse chefe não agia de fado, senão na qualidade de mandatário, e cada um dos membros que contribuíam com a sua parte para o trabalho comum, recebia a sua parte do produto. Este regime quase socialista para os membros da tribo, mas que admitia a concorrência de indivíduos de fora dela, não nos dá a expressão nítida do direito de propriedade individual; subentende, todavia, que o trabalho implica para o trabalhador um aproximado equivalente de produtos. Esta asserção tácita transforma-se em asserção explícita quando os membros do grupo adquirem a propriedade de bens em virtude de um trabalho efetuado fora do trabalho dos outros membros. Torna-se dispensável seguir o desenvolvimento do direito de propriedade, tal como os legisladores o formularam e como os seus agentes o interpretaram e remontar até aos mandamentos dos Hebreus para virmos depois pelos tempos fora até aos tempos modernos em que as leis formulam os mais diversos direitos de propriedade com infinitos pormenores e com uma grande precisão. Por agora, bastar-nos-á salientar que esta consequência do princípio da justiça pôde, desde os inícios do progresso social mais claramente compreendido que as suas outras consequências, e que com o decorrer dos tempos vem sendo aceita duma forma sucessivamente mais nítida, tomando paralelamente um caráter cada vez mais peremptório. Atualmente a violação de um direito de propriedade pela apropriação não autorizada duma folha de couve ou de uma acha de lenha constitui um crime, e o direito de reprodução de um romance, dum modelo, ou duma marca de fábrica constitui uma propriedade. § 56. - Ha muita gente que procura demolir este direito na suposição de que tem por si um princípio moral que o justifica e os obriga a esse empreendimento. Os que assim pensam acham injusto que todo o homem colha vantagens proporcionais ao seu esforço, negam a cada um que possa honestamente guardar a totalidade do produto do seu trabalho e forçar os menos aptos a contentarem-se com a soma menor de bens que o trabalho deles produza. Esta doutrina é assim resumível: «Quantidades e qualidades diferentes de trabalho devem obter a mesma parte do produto. Procedamos à partilha igual dos produtos desiguais». É evidente que o comunismo implica a violação da justiça tal como foi definida nos capítulos precedentes. Afirmando que a liberdade de cada um não tem outro limite que não seja o da igual liberdade de todos sustentamos que cada um tem direito a todos os proventos e a todas as fontes de proventos que procura e encontra sem violar a esfera de ação dos seus vizinhos. Se, pois, um vigor maior, um espírito mais inventivo ou uma superior aplicação dão a um homem um acréscimo de proventos ou de fontes de proventos. a lei de igual liberdade confere-lhe o exclusivo título desse acréscimo com a condição de que não invada as esferas de ação de outrem. As instituições do passado permitiam a alguns raros homens superiores enriqueceram à custa dos seus inferiores. Atualmente há quem brade por instituições que enriqueceriam a grande multidão dos inferiores à custa duma minoria de homens superiores e raros. Os defensores do antigo regime social partiam da hipótese de que ele tinha um caráter equitativo; os defensores do projeto do regime novo pretendem igualmente que ele se alicerça na equidade. Convencidos do fundamento do seu direito julgam que a força, cujo emprego justificam sem o confessarem, poderá equitativamente impor uma nova partilha de bens. Tal como a natureza humana se tem manifestado sempre no passado e tal como ela se manifesta à volta de nós, nenhum homem abandonará de bom grado os seus ganhos que ultrapassem os dos outros homens quando tenha adquirido esses ganhos pela superioridade das suas qualidades físicas ou mentais ou por uma superior faculdade de trabalho; alguns raros indivíduos consentirão nisso talvez mas o número deles estará longe de representar a média da humanidade. O facto de que a média superior não abandonará voluntariamente acréscimo de proventos adquiridos pela sua superioridade implica o emprego de meios coercivos e arrasta ao uso necessário da força. Os dois partidos sabem-no; a multidão dos inferiores está na posse dum superior poder físico de constrangimento e os comunistas pretendem que a equidade justificará a coerção necessária exercida contra a minoria afortunada pelos que até agora tem estado colocados numa situação de vida menos vantajosa. Depois do que dissemos nos primeiros capítulos, apenas se torna preciso recordar que um sistema que se inspirasse nesta doutrina causaria a degenerescência dos cidadãos e decadência da comunidade. A supressão da disciplina natural que mantem toda a criatura no estado de adaptação às atividades que as condições da vida exigem, conduziria inevitavelmente á inaptidão para a vida e ao desaparecimento lento ou rápido das raças que a ele se submetessem. § 57. - A moral absoluta afirma, pois, o direito de propriedade, e, por seu lado, a moral relativa, que faz entrar em linha de conta as necessidades transitórias, não admite a violação que os projetos comunistas implicam. Todavia, a moral relativa autoriza a delimitação do direito de propriedade na medida necessária para se fazer face às despesas concernentes a proteção nacional individual. Enunciámos já o princípio de que a conservação da espécie ou da variedade organizada em nação constitui um fim que prevalece sobre o da conservação individual. Vimos que este fim justifica a subordinação do direito á vida que resulta do perigo de morte em caso de guerra defensiva. Justifica esse princípio também a subordinação do direito à liberdade de que carecem o serviço e a disciplina militares. A lei da conservação da espécie legitima, a apropriação da porção dos bens e das receitas dos indivíduos necessária para se prover às necessidades duma resistência adequada em face do inimigo. Toda a violação do direito de propriedade cujo motivo sejam as exigências da guerra defensiva tem uma justificação quase ética; já o mesmo se não dá com as infrações cometidas por motivo duma guerra ofensiva. Falta-nos enumerar uma última restrição, também legítima, do direito de propriedade. A propriedade deve contribuir para a manutenção das instituições públicas incumbidas de assegurarem o respeito pela propriedade e pelos demais direitos em geral. Esta restrição parcial do direito de propriedade tornar-se-ia supérflua numa sociedade inteiramente constituída por homens que respeitassem os seus reciprocas direitos; com tudo, em sociedades tais como as que existem hoje e tais como as que provavelmente existirão por muito tempo o melhor meio de nos aproximarmos do cumprimento da lei de igual liberdade, é o de sacrificar aos direitos que até aqui deduzimos, a parte menor necessária a conservação da parte maior. A moral relativa sanciona, pois, uma taxação equitativamente repartida e precisa para a manutenção da segurança e da ordem. CAPÍTULO XIII O direito à propriedade incorpórea § 58. - O cão não morde apenas para defender o osso que encontrou, também arremete contra quem pretenda apossar-se da capa, ou doutro qualquer objeto, que o dono tenha confiado à sua vigilância. Basta um diminuto coeficiente de inteligência para a compreensão do direito à propriedade material; mas para uma propriedade que não seja visível, nem tangível é necessária uma inteligência de mais vasto alcance. A concepção da existência dum produto mental exige a intervenção duma imaginação construtiva, e só uma imaginação construtiva de grau muito elevado chega a conceber que o produto dum trabalho mental possa, tão legitimamente como o produto de qualquer trabalho manual, constituir uma propriedade. É, todavia, demonstrável que tanto sob o ponto de vista positivo do direito como sob o seu ponto de vista negativo, estas duas propriedades assentam num e mesmo alicerce. Se nos recordarmos de que a justiça encarada pelo seu aspecto positivo exige que cada indivíduo colha os benefícios e desvantagens inerentes à sua natureza privativa e às consequências que derivam da conduta que essa natureza privativa importa, torna-se logo claro que todo e qualquer indivíduo cujo trabalho mental produza um resultado, tem direito a colher a totalidade de benefícios que desse trabalho naturalmente dimane. Tal como a definimos, a justiça exige, neste caso particular e em todos os demais em geral, que nada destrua a conexão que existe entre a conduta e as suas consequências: o direito aos proventos dum trabalho é, pois, um direito cuja validade é incontestável. O elemento negativo da justiça que nos seres associados restringe a atividade de cada um deles até aos limites impostos pelas atividades de todos os restantes membros da organização, interdiz igualmente a apropriação do produto mental doutrem, ou melhor, interdiz o seu uso sem o consentimento do produtor, sempre que tal produto seja daqueles cujo uso possa conferir proventos a outrem. Suponhamos que B, C e D usam em seu proveito e sem o consentimento de A dum produto mental elaborado por este último. Todos três violam a lei de igual liberdade, pois que cada um, em particular, aproveita da utilização do produto do trabalho mental de A, sem lhe oferecer a compensação de se utilizar dos benefícios de qualquer produto equivalente, mental ou material, fruto das suas próprias atividades. Aos que argumentem que A B e C, pelo facto de se aproveitarem do produto mental de A o não despojam dele, replicarei que o uso que alguém faça de um produto qualquer, material ou mental, do trabalho alheio, pode ser para esse alguém uma fonte de provento. O construtor duma casa destinada a locação, duma carruagem destinada a transportar passageiros, não seria lesado se os inquilinos e os passageiros se servissem duma ou doutra sem lhe pagarem? Certamente. Esse construtor não efetuou o seu trabalho tendo em mira aproveitar-se diretamente dele, mas realizou-o para o uso alheio; é, pois, justo que receba a retribuição que tinha em vista e que o determinou a fazer a casa ou a carruagem. Ainda mesmo independentemente de se ter ou não realizado um contrato de arrendamento do prédio ou do aluguer da carruagem, no qual se estipularam expressamente as condições de pagamento, o consenso será o de que esse proprietário teve um prejuízo injusto. Embora o autor dum produto mental não seja despojado pelos que desse produto se aproveitam e a despeito de qualquer contrato, há uma lesão ao direito do produtor sempre que outros utilizem o seu trabalho sem lhe proporcionarem o benefício que teve em mira ao realizá-lo. Os produtores contam com os proventos resultantes do uso ou da utilização por outrem de duas categorias de trabalhos de espírito: a dos produtos que são incorporados nos livros, nas composições musicais, nas obras de arte plástica, etc., e a dos que são incorporados em invenções mecânicas ou outras. Passemos a estudar separadamente cada uma destas categorias. § 59. - Um homem pode ler, ouvir e observar indefinidamente sem que isso atente a liberdade que os outros tem de fazer o mesmo. PÓ de assimilar e reorganizar os conhecimentos assim adquiridos e extrair deles novos conhecimentos sem lesar os direitos alheios. Ninguém ultrapassa os limites da liberdade individual se guardar para si as conclusões e os pensamentos que elaborou, não obstante essas conclusões poderem ter um valor, como meio de direção, e a beleza desses pensamentos poder tê-lo igualmente. Se, porém, esse indivíduo, em vez de os guardar para si, se decidir a publicá-los, deve ter a liberdade de impor condições; não atenta, por esse facto, contra os direitos alheios. Os outros homens ficam, por seu turno, com a liberdade de aceitarem ou repelirem essas condições. Os que as recusam permanecem na mesma situação em que estavam; mas os que as aceitam, adquirindo exemplares de um livro seu, quer diretamente, quer por intermédio de um agente, sob o império do acordo tácito de que em troca da soma recebida lhes cede, com o papel impresso, o direito de lerem e emprestarem a obra - ficam impedidos de o reproduzir; se o fizerem violarão as condições tacitamente aceitas e cometem um delito, pois que essa violação dar-lhes-ia um benefício muito superior àquele que o autor ou o proprietário do livro tinha em mente ao receber o preço pelo qual foi vendido. É para admirar que haja espíritos inteligentes que sustentem que o facto da publicação de uma obra torna essa obra propriedade pública e que, em virtude de um corolário da liberdade de trabalho, qualquer tem o direito de reimprimir e de vender em seu proveito os exemplares dessa reimpressão. Os que pensam deste modo afirmam que os direitos de autor constituem um monopólio e não uma forma da propriedade privada. A ser porem assim, como é que a obra de que o contrafator se apodera pode ter um valor, não sendo tal obra, como os nossos opoentes afirmam, pertença individual de ninguém? Se a obra não tem valor o que se apodera dela nada perderia em ser impedido de o fazer. Se esse impedimento lhe acarreta perda é porque tem valor a coisa de que se apodera. E como essa coisa de algum valor não é um produto natural, torna-se óbvio que só pôde ser obtido à custa do esforço de alguém que a produzisse. formulei há anos na Edinburgh Review (outubro de 1878, pago 329-330) a seguinte argumentação sobre o assunto: «Aqueles dos membros da comissão da propriedade literária e artística, bem como as pessoas por ela ouvidas sobre a matéria, que pretendem se não abolir os direitos de autor, rodeá-los pelo menos de restrições que quase equivaleriam à sua supressão, invocam, em favor da sua opinião, os interesses da liberdade de comércio e pretendem desacreditar os direitos de autor, tais como atualmente são reconhecidos, chamando-lhes um monopólio. No sentido económico, um monopólio é um privilégio pelo qual a lei confere a uma pessoa ou a uma corporação o uso exclusivo de certos produtos, de certas facilidades ou de certos agentes naturais, que a não existir tal lei estariam à disposição de todos. O adversário do monopólio é o que, não reclamando do monopolizador assistência direta ou indireta, só reivindica a faculdade de usar, em condições de igualdade, dos produtos, das facilidades e dos agentes naturais monopolizados. A natureza não colocou a indústria que o reclamante pretende exercer, sobre a dependência do monopolizador e esse reclamante é capaz de a exercer também com resultados iguais ou superiores aos do monopolizador independentemente do privilégio do monopólio, isto é, em livre concorrência. Tomemos a indústria literária e confrontemos o pretendido partidário da liberdade comercial com o pretendido monopolizador. O pretendido monopolizador (autor) acaso interdiz ao pretendido partidário da liberdade de comércio (reprodutor) que use de algum dos processos ou de algum dos meios para a produção de livros? não: esses processos ficam acessíveis a todos. Por seu lado, o pretendido partidário da liberdade comercial desejará simplesmente e sem aproveitar nada que seja de outrem, fazer uso dessas facilidades acessivas a todos tal qual como usaria delas se o pretendido monopolizador e as suas obras não existissem? Ao contrário. O que ele deseja é aproveitar-se do trabalho deste último e obter proventos que não colheria se o pretendido monopolizador e as suas obras não existissem. Em vez de se juntar aos verdadeiros partidários da liberdade comercial para se queixar dos obstáculos com que o monopolizador entrava o caminho da boa produção, este pseudo partidário da liberdade de comércio lastima-se por não poder utilizar de um esforço que teve por origem aquele a quem apoda de monopolizador. O verdadeiro partidário da liberdade comercial só reclama as facilidades naturais e só protesta contra os obstáculos artificiais. Não se contentando com as facilidades naturais, os pseudo partidários da liberdade lastimam-se pelo facto de se verem obrigados a pagar o preço de um auxílio devido às aptidões de outrem. Vários dos adversários da propriedade literária manifestaram à Comissão os seus espantos por verem os autores obcecados pelos seus interesses até ao ponto de não compreenderem que a defesa dos seus atuais direitos implicava a defesa de um monopólio. Maior motivo de espanto teriam tido os autores vendo esses opoentes invocarem princípios económicos, confundir o caso de um homem que, desejoso de exercer uma indústria, reclama unicamente condições iguais às que existiriam se ele e a sua obra não existissem, com o caso de um homem que pretende exercer uma indústria de um modo que só é possível quando exista essa outra pessoa. A argumentação com que se combate a propriedade literária baseia-se toda na confusão entre duas coisas perfeitamente distintas, radicalmente opostas, e desaparece logo que sobre a matéria incida a luz dessa distinção.» Parece-me, pois, que o direito à propriedade literária, considerado como dedução do princípio fundamental da justiça, não pode ser posto em dúvida por um só instante que seja. § 60. - O costume primeiramente, e as leis depois, abriram o direito às reivindicações dos produtores intelectuais. Nos tempos antigos, do auditório ou do patrocínio das pessoas ilustres a quem os autores recitavam as suas obras, é que provinha a remuneração aos autores. Era incorreta, ou mesmo talvez desonesta, a esquivança a essa obrigação. Em Roma (W. A. Copinger. The Law of Copgright, 2ª edição, pag. 2), o direito de propriedade chegou já a adquirir valor mercantil. Copinger cita diversos autores que venderam as suas obras, entre os quais Terêncio que vendeu o Eunuco e o Hecyro e Stacio que vendeu o seu Agave. Os copistas adquiriram consuetudinariamente, se não aos olhos da lei, o direito exclusivo da reprodução dos manuscritos. Na Inglaterra os direitos de autor estão assegurados desde há dois séculos (Robertson. Artigo «Copyright», na Enciclopédia Britânica, 9ª edição). Um Ato de Carlos II proíbe a impressão de qualquer obra sem o consentimento do autor; sob o império desta lei os direitos de autor eram suscetíveis de compra e venda. Em 1774 decidiu-se que a Lei Comunal tinha conferido perpetuamente ao autor e aos seus auxiliares o direito exclusivo de publicação, mas que um Estatuto o restringiu posteriormente a um período determinado. Um artigo de Robertson mostra pormenorizada e cronologicamente como este princípio se estendeu a outros produtos da inteligência: às obras de arte no reinado de Jorge II (Ato dos ano 8º, capítulo 13) e no reinado de Jorge III (Atos dos anos 7º e 38º, capítulos 38 e 71, este último para os modelos e para as moldagens); no reinado de Guilherme IV, às produções dramáticas (3º e 4º anos, capítulo 15) e aos cursos e conferências (5º e 6º anos, capítulo 65); no reinado de Vitória, às obras musicais (5º e 6º anos, capítulo 45); às litografias (15º e 16º anos, capítulo 12), e, finalmente, às obras picturais em 1862. O legislador e os pensadores que se tem dedicado ao estudo deste assunto no seu ponto de vista ético, preocuparam-se e preocupam-se com a duração que convêm marcar aos direitos de propriedade literária e artística. O problema não é de fácil solução. Deve-se marcar para essa duração a vida do autor e seus descendentes sem limite algum, ou a vida do autor e um certo número de anos posteriores à sua morte, ou a vida do autor somente? Não há razão alguma que recomende para este género de propriedade um regime legal de propriedade e de transmissão testamentária diferente daquele que rege toda a outra propriedade. A língua, a ciência e os demais produtos da civilização anterior de que o autor se serviu, pertencem, como se tem dito, à comunidade, mas esses produtos intelectuais da civilização social são acessíveis a todos e, aproveitando-os, o autor ou artista não diminuíram o poder que os outros tem de se utilizar deles também. Sem diminuir no que quer que seja essa riqueza comum o autor apenas combinou algumas partes dessa riqueza com os seus pensamentos, os seus princípios, os seus sentimentos e o seu talento técnico, coisas todas estas que são exclusivamente dele e que lhe pertencem mais verdadeiramente do que os objetos visíveis e tangíveis pertencem aos seus proprietários. Um produto do trabalho mental é com maior plenitude uma propriedade do que o é um produto do trabalho corpóreo, porque só o trabalhador criou o fator que torna esse produto mental valorizável. Porque há de ser pois neste caso a duração da propriedade menor do que nos casos restantes? Deixemos o assunto neste pé, fazendo notar que nos tempos recentes e civilizados a lei sancionou o direito de propriedade desta categoria de produtos intelectuais, direito que no decurso deste capítulo deduzimos da formula da justiça, e que" essa sanção legal se tem distendido e especificado à medida que o progresso social se desenvolve. § 61. - Bastará uma simples mudança de termo para que tenha aplicação às invenções o que acabamos de dizer a respeito dos livros e das obras de arte. Imaginando um aparelho mecânico novo ou parcialmente novo, dando-lhe um caráter de utilidade prática ou, inventando algum processo diferente ou melhor do que os processos conhecidos, o inventor faz das ideias, dos utensílios, dos materiais, dos processos conhecidos um uso que está ao dispor de qualquer outra pessoa e não restringe, portanto, a liberdade de ação de ninguém. Pode, pois, sem ofensa dos limites prescritos, exigir para si exclusivamente os proventos da sua invenção; se divulga o seu segredo, não ofende a liberdade de ninguém pelo facto de estabelecer condições para que os outros se possam utilizar do invento. Pelo contrário, uma pessoa que não aceitando essas condições se aproveite do invento, comete uma violação da lei de igual liberdade, pois que se apropriando de um produto do trabalho mental do inventor não permite que este se aproprie de uma parte equivalente do trabalho do aproveitante ou de um outro equivalente qualquer. Destoaria dos preceitos da consciência média dos homens o contestar-se o direito equitativo aos benefícios resultantes de uma invenção àquele que consagrou anos sucessivos de reflexões e de experiências para poder levá-la a efeito, tendo gasto também muitas vezes capitais que veem juntar-se aos importantes fatores do seu trabalho manual e cerebral; esta recusa seria tanto mais culposa quanto é certo que muitas pretensões que não implicam nem trabalho, nem sacrifício, são não somente autorizadas mas escrupulosamente impostas. O mundo está cheio de deferências pelos direitos convencionais dos especuladores felizes da Bolsa, pelos investidos em sinecuras que dão largas remunerações e nenhum trabalho, e vai até ao ponto de respeitar uma pensão tirada do erário público, para descendentes da amante de um rei. Obstina-se, porém, em negar um «direito adquirido» ao obreiro que trabalhando noite e dia, sacrificando a saúde e a fortuna, chegou enfim a conseguir aperfeiçoar uma máquina e a dar-lhe um. poder maravilhoso. Os seus concidadãos ridicularizam-no e chamam-lhe visionário enquanto sacrifica o seu tempo, o seu dinheiro e os seus esforços; quando com geral espanto de todos triunfou e os resultados benéficos dessa pacífica vitória se tornam irrecusáveis, ouvimo-los exclamar: «É um monopólio que ele reclama. Não deve ser lhe concedido». O governo toma medidas para o proteger e aos seus confrades e permite-lhe obter um privilégio de invenção contanto que pague os respectivos emolumentos (Ainda não há muitos anos que os diplomas deste género custavam em Inglaterra centenas de libras esterlinas); não procede assim por um determinado sentimento de equidade, mas por cálculo político. «Um diploma de privilégio de invenção não pode, com plena justiça, ser requerido e concedido. Deve apenas considerar-se «como um estímulo ao talento e ao trabalho». Assim, ao mesmo tempo que a subtração do mais ínfimo objeto material, por exemplo a de uma moeda de cobre que um marçano tira da gaveta, constitui um delito punível, um capitalista poderá, aproveitando-se da falta de algumas formalidades legais, apropriar-se, com imenso proveito e sem risco nem desonra, de um produto mental de valor incomparável, qualquer que tenha sido o esforço que a sua elaboração haja custado. Quando mesmo se dê a circunstância de que uma invenção só traga vantagens sociais quando todos possam usar dela, nem assim se justifica que se ponham de parte os títulos do inventor; ninguém contesta ao agricultor o direito de amanhar as suas terras e de recolher e vender em seu exclusivo proveito produtos dela sem se preocupar com as conveniências coletivas. A sociedade ganha sempre mais com qualquer invenção do que o inventor. Para que ele logre colher desembaraçadamente algum benefício do seu processo novo ou do seu novo maquinismo, é preciso que ele confira aos outros homens a vantagem duma mercadoria melhor pelos preços correntes, ou uma mercadoria igual a preços inferiores. Se naufraga, a sua invenção torna-se nula; se triunfa, presenteia a humanidade com a quase totalidade dum filão de riquezas por ele descoberto e posto à luz. Comparem-se os proventos alcançados por Watt com os registos da sua invenção aos aperfeiçoamentos por ele introduzidos nas suas máquinas de vapor e ver-se-á que os lucros do imortal mecânico foram uma parte infinitesimal dos lucros materiais que o seu invento trouxe à Inglaterra e a todas as nações do mundo. Não obstante quanta gente não desejaria ter-se apropriado dessa mínima parte de proventos que a Watt couberam! A falta de segurança desta categoria de propriedade mental origina tão desastrosos resultados como a falta de segurança da propriedade material. Numa sociedade onde a economia não tenha garantias da conservação das riquezas que acumula, os capitais tornam-se escassos e essa escassez origina a miséria. Num país que não proteja, ou assegure os direitos do inventor, os aperfeiçoamentos paralisam e a indústria estaciona porque, regra geral, os homens de engenho recusar-se-ão a torturar o cérebro, visto não lograrem alcançar uma compensação para o seu fatigante e doloroso esforço, faremos notar, todavia, que a lei vai pouco a pouco manifestando o seu reconhecimento dos direitos do inventor, embora o não faça determinada por considerações de equidade, mas por vantagens de natureza política. Em Inglaterra, as primeiras medidas protetoras de inventos, constituíram verdadeiros favores que os aproximavam dos monopólios; quando porém um Ato do parlamento declarou a ilegalidade destes em 1623, estabeleceu-se a distinção entre os monopólios e os direitos particulares e exclusivos dos inventores (Haydn's. Dictionary of Dates, edição de 1866, pag. 489). Julgou-se útil encorajar os inventores e compreendeu-se, talvez vagamente, que no caso dum monopólio propriamente dito as atividades alheias não contraem obrigação alguma com o monopolizador e que seriam realizadas tão bem ou melhor do que se o monopólio não existisse, ao passo que o pseudo-monopólio do inventor confere reais vantagens aos que se servem do seu invento. Em todo o caso, o direito de inventor, legalmente sancionado desde há séculos, é na atualidade rodeado de solicitudes cada vez maiores e uma crescente redução de emolumentos facilita sucessivamente a obtenção de diplomas de privilégio de invento, diminuindo-se assim os obstáculos que entravavam os efeitos do seu reconhecimento. As leis dos outros países e principalmente as da América talham-lhe um lugar de lei para lei mais amplo, assegurando dessa maneira um constante progresso nos processos que facilitam a diminuição do trabalho humano e o aumento da riqueza. Resta-me enumerar uma restrição ao direito acabado de expor e de justificar. A experiência dos tempos modernos demonstrou que os descobrimentos e as invenções são em parte o fruto do gênio individual e em parte o das ideias e aplicações pré-existentes. Daqui resulta - e é isso confirmado pela experiência da atualidade - que no momento em que um homem faz uma descoberta ou inventa um maquinismo, um outro homem, possuidor dos mesmos conhecimentos "e impelido pela mesma ideia, estava a termo de realizá-la também; é até quase certo, que uma descoberta feita num ponto, se repetirá dentro de curto prazo, noutros pontos ao mesmo tempo. Um direito exclusivo para o uso duma invenção poderia assim prejudicar outros direitos prováveis e equitativos e tornou-se necessário delimitar o período durante o qual o inventor tem o direito de aproveitar os proventos da sua descoberta. O problema só comporta uma solução empírica, porque é impossível fixar o número de anos que a proteção deve abranger. Para se marcar uma duração razoável seria preciso entrar em linha de conta com a média dos intervalos observados entre as invenções idênticas ou análogas feitas por inventores diferentes. Convém, por outro lado, atender a que os perseverantes esforços e a prolongada concentração que levaram uma invenção a termo e entrar em consideração com o período, a avaliar por experiência, do intervalo que será provavelmente necessário para que o uso exclusivo dum invento assegure uma remuneração adequada aos trabalhos do inventor e aos riscos em que incorreu. A relação entre o inventor, por uma parte, e a sociedade, por outra, é tão complexa e tão vaga que se torna impossível encontrar mais do que uma decisão de aproximada equidade. § 62. - Falta-nos tratar ainda duma outra categoria de propriedade que poderemos incluir no âmbito da propriedade incorpórea. Esta categoria de propriedade difere das precedentes em que ela não assegura nenhum benefício físico, mas assegura um gozo mental - o da sensação agradável que despertam os aplausos alheios. Esta forma da propriedade incorpórea é, na realidade, inseparável daquelas que tem por origem os trabalhos intelectuais. O autor considera o renome que lhe traz a publicação dum poema, dum livro de história, dum tratado científico, como uma parte e muitas vezes a parte mais preciosa da recompensa do seu trabalho. Assim como a estima pública se manifesta pelos que revelam qualidades de originalidade," ou de talento, ou de estudo, assim também censura o plagiário por se enfeitar com penas de pavão e lesar os interesses e a reputação artística dos autores de que se aproveitou. A lei não previu este gênero de roubo, para o qual a sociedade estabeleceu já uma penalidade moral; o mesmo se dá com as descobertas e invenções. A opinião sanciona não só os benefícios pecuniários colhidos pelo primitivo inventor, como também os elogios que são devidos ao seu espírito criador e à sua previdência e censura os que tentam interceptar esses benefícios e louvores fazendo-se passar indevidamente por inventores ou autores da descoberta. Um acordo tácito, senão explicito, reconhece o direito ao gozo da estima geral e condena os desonestos que tentem usurpa-lo. A reputação adquirida é, pois, considerada justamente por uma propriedade incorpórea. Ha, porém, uma propriedade incorpórea muito mais importante do que esta; é a que deriva, não dum triunfo intelectual, mas da conduta moral. Se convém considerar como propriedade incorpórea a reputação resultante das ações mentais reveladas sob a forma de produção, mais conveniente se torna ainda considerar também como tais ações mentais que produzem a retidão, a sinceridade, a temperança, numa palavra, o conjunto resultante duma conduta bem regrada que é a fonte do que se chama uma boa reputação. Se é culposo destruir a primeira, mais culposa se torna a destruição da segunda. Ha, por felicidade, pessoas para quem o prazer intimo que lhes recompensa uma boa ação que praticaram vale infinitamente mais que a posse de muitos maços de títulos financeiros ou de obrigações de caminho de ferro. Os homens que moirejando na vida tem sempre em mira a prática de nobres-seções e que obtém, a título de paga, as homenagens e a cordial simpatia da sociedade, devem gozar de tanto direito a essas recompensas como as que lhes competiriam por uma industriosa invenção. É isto aplicável a todos os homens em geral e não somente aqueles que possuem extraordinários méritos morais. Cada qual tem direito a este bem, (bem que sem repetir a banal frase de Vago, ultrapassa todos os outros) na proporção em que houver adquirido legítimos títulos a uma reputação dignificante. O produto da boa conduta diferencia-se num ponto capital dos demais produtos do espírito: pode-se fazer perdê-lo ou pode-se fazer diminuí-lo, mas o espoliador não poderá nunca se apropriar dele. É esse talvez um dos motivos por que se costuma classificar a interdição de prejudicar outrem na sua boa reputação entre as interdições que dimanam da beneficência negativa e não das que dimanam da justiça, o que prova que não é sempre possível respeitar sem quebra a classificação da moral em secções distintas. Contudo, uma boa reputação adquire-se por atos exercidos a dentro dos limites prescritos e resulta mesmo em parte do respeito desses limites, pois que um homem que destrua total ou parcialmente uma boa reputação assim adquirida por outro, prejudica a vida do primeiro de uma forma que ele não prejudica a sua: é, portanto, permissível concluir que o direito à reputação é um corolário da lei de igual liberdade. O indivíduo lesado, exerce por vezes, como sucede entre gente vulgar, a represália sob a forma de recriminações e de palavras grosseiras. Lembraremos, porém, que, consoante ficou demonstrado no capítulo VI, a lei de igual liberdade, bem interpretada, não tolera nenhuma retribuição de prejuízos: tanto reprova as represálias físicas como as represálias morais. Deste modo, a destruição de uma boa reputação, muito embora o caluniador se não possa apropriar dela, constitui uma violação da lei de igual liberdade, com título idêntico ao do incêndio de uma casa alheia ou ao da destruição do vestuário de outrem. Este raciocínio é unicamente aplicável à reputação legitimamente adquirida e deixa de o ser se ela for resultante do charlatanismo ou da hipocrisia e viver apenas à custa da ignorância alheia. Não se viola, portanto, a lei de igual liberdade deprimindo a reputação de outrem pela divulgação de fatos mal conhecidos e que lhe não são favoráveis: essa divulgação tira apenas a um homem o que ele não tinha direito a possuir. Como quer que seja encarada, essa divulgação não pode assemelhar-se aos atos que privam outrem de uma reputação legitimamente adquirida. Em frequentes casos é até útil a segurança dos outros e pode ser ditada pelo desejo de prevenir os atentados que poderiam ameaçar as reputações legítimas e sólidas. Se a lei as considerar puníveis como o são os atos que privam de uma reputação legítima, não me parece que a moral sancione as penalidades infligidas. Resta-nos fazer referência aos atos reprováveis das pessoas que contribuem para propagar a calúnia repetindo afirmações injuriosas sem se darem ao trabalho de lhes verificar a exatidão. Na atualidade, a opinião pública não liga importância alguma aos que espalharam boatos, sem informação segura, ou sem ao menos lhes medirem as probabilidades: tempos hão de vir em que se acabará por se chegar ao convencimento de que é impossível desculpar um tal procedimento. De resto, a lei não os desculpa e prescreve penalidades para eles quando envolvem ofensa ou prejuízo. Como nos casos precedentemente observados, a lei tem progressivamente validado as exigências éticas que acabámos de deduzir. Remonta a eras antigas a interdição do falso testemunho levantado contra outrem. A lei romana (J. Paterson. The Liberty of the Press, Londres, 1880, pag. 154-5) condenava a calúnia mesmo a respeito de pessoas mortas. Nos graus inferiores da civilização, o castigo dos caluniadores protegeu principalmente a reputação dos superiores: assim o código budista (J. Paterson, The Liberty of the Press, Londres, 1880, pag. 181, nota) punia com severas penas as injúrias dirigidas aos membros da casta mais elevada. Nos primitivos tempos da Europa deixava-se às pessoas altamente colocadas o cuidado de defenderem pelas armas o seu renome e os seus bens. Posteriormente, a lei protegeu os homens das classes inferiores, que não tinham o recurso ao duelo, contra as calúnias que lhes fossem assacadas. Essa regalia jurídica foi-lhe concedida, pela primeira vez na Inglaterra, no reinado de Eduardo I, tornando-se depois acentuada e ampla no reinado de Ricardo II. Cessando de ser uma lei para benefício de uma classe privilegiada, a lei contra a calúnia tornou-se numa lei posta à disposição de todos e, na atualidade, é constantemente invocada com êxito, com um êxito até excessivo, talvez, por que não é raro os tribunais equipararem uma crítica equitativa com uma calúnia. Do que deixámos dito no presente capítulo se vê que mais uma vez foi incorporada na lei, uma conclusão que dimana do princípio fundamental da equidade. CAPÍTULO XIV O direito de dar e de legar § 63. - O direito completo de propriedade implica o direito de alienação; com efeito, a sua interdição parcial ou total atribuiria implicitamente à autoridade de que essa interdição imanasse um direito de propriedade parcial ou total que limitaria ou anularia o direito individual de propriedade. O reconhecimento do direito de propriedade implica pois o do direito de doação. O direito de doação tem raízes tão profundas como direito de propriedade de onde ele imediatamente deriva. Quando estudamos as condições da sustentação do indivíduo e da espécie vimos, por um lado, que a conservação do indivíduo depende da manutenção habitual das relações naturais entre o esforço e os produtos do esforço e, por outro lado, que a conservação da espécie depende da cedência que os pais fazem aos seus filhos menores de uma parte desses produtos, umas vezes sob a forma bruta, outras depois de lhes terem dado uma adequada preparação. A vida das espécies, incluída nelas, a espécie humana assenta sobre a faculdade de dar o que se adquiriu. A razão que justifica a doação feita aos filhos menores, não é aplicável às doações a estranhos. Com relação a estas, diremos que é, conjuntamente, um corolário do direito de propriedade e um corolário do princípio fundamental da justiça. O duplo ato de dar e de receber só interessa ao doador e ao donatário e não entrava em nada a liberdade de agir dos outros homens. Conquanto a alienação em favor de B de um bem possuído por A possa afetar C, D, E, etc., sustando certas atividades que eles pretendiam realizar, isso não implica que se possam confundir atividades contingentes e dependentes de um acontecimento incerto com as atividades que se não podem violar sem que haja agressão; as esferas de ação de C, D e E ficaram intactas e, por isso, a doação feita a B não constitui uma lesão nas suas atividades. Se apenas a expediência devesse decidir do direito de dar aos outros que não sejam os filhos, poder-se-iam invocar ponderosos motivos que nos conduziriam à rejeição do direito ilimitado de dar. Pesando cuidadosamente os argumentos e testemunhos apresentados pela Sociedade da Organização da Caridade e analisando os resultados provenientes das armadilhas às pequenas esmolas, seriamos levados a acreditar que a caridade, assim chamada indevidamente, causa maiores males do que todos os crimes juntos. Mas a crença na legitimidade do direito de dar esmolas está tão universalmente espalhada, que ninguém pensa em contestá-lo invocando motivos de expediência aparente. A legislação sanciona nitidissimamente este corolário da liberdade de dar derivado da lei de igual liberdade. É provável que não exista lei alguma que afirme expressamente o direito de dar; é, porém, inútil o trabalho de investigar esse ponto, bastando-nos citar uma lei de Isabel (Leis do 13º ano de Isabel, cap. 5º, e lei do 29º ano, cap. 5º) que implica o reconhecimento desse direito. Com efeito, declarando que um ato de doação pode ser oposto ao doador, mas não pode ser oposto às reivindicações dos credores, implica que uma pessoa tem o direito de dar o que lhe pertence, mas que não tem o direito de dar o que, equitativamente pertence a outrem. § 64. - O direito de dar envolve o direito de legar, pois que o legado não é senão uma dádiva retardada. Quem pode legitimamente alienar os seus bens, pode legitimamente fixar a época em que a tradição se há de efetuar. Quem aliena por testamento, efetua, em parte, a alienação, mas estipulando que essa alienação não surtirá os seus efeitos completos se não quando expirar o prazo em que o testador cessa de ter o poder de possuir. O seu direito de propriedade importa o direito de subordinar uma doação a esta condição; aliás o seu direito de propriedade seria incompleto. A equidade não permite, portanto que se submeta a restrições a decisão que um testador faz dos seus bens, quer essas restrições digam respeito a designação dos legatários, quer à fixação das partes que o testador lhes marca. Se um grupo de homens, agindo em virtude da sua capacidade corporativa, decidem que o testador deve dar ou não dar a B, ou que deverá dar a A e a B, etc., numa proporção determinada, esses homens arvoram-se em coproprietários do testador; coagem-no às disposições que eles preferem e desviam-no das disposições que tinha em vista como testador. Mesmo em vida, pois, os seus bens seriam dessa maneira subtraídos à sua posse na medida em que o seu poder de testar fosse circunscrito. Está geralmente admitido que o homem civilizado goza de uma soma de liberdade superior à do homem pouco civilizado; assim, relativamente ao direito de legar, vê-se que ele apenas aparece indefinido e vago nos primeiros tempos, desenvolvendo-se depois gradualmente. Antes que a lei se constitua, o costume, que não é menos peremptório do que ela, prescreve de ordinário os modos de transmissão hereditária da propriedade. Na maioria dos Polinésios, a herança vai para o primogénito. Em Sumatra, os bens são partilhados pelos filhos varões. Os Hotentotes e os Damaras impõem a primogenitura na linha masculina. Na Costa do Ouro e nalguns pontos do Congo, os parentes podem herdar na linha feminina. Nos Eghas e povos vizinhos, a herança do filho mais velho compreende as mulheres de seu pai, com excepção da mãe do herdeiro. No Tombutú, a parte de um filho é dupla da de uma filha; os Ashantis, e a maioria dos fulahs, quase sempre, admitem à sucessão os filhos adotivos e os escravos: estas raças africanas superiores gozam pois de uma certa liberdade de testar. Na Ásia, o costume dos Árabes, dos Todas, dos Ohonds, dos Bodos e dos Dirnals é o da divisão da herança por todos os filhos. Os filhos de uma irmã podem herdar os bens de um Kasia; pelo pouco que se sabe a respeito dos Karens e dos Mishmis, o pai tem a liberdade de dispor dos seus bens como melhor entenda. As primitivas raças europeias proporcionam-nos exemplos análogos. Segundo Tácito, os antigos Germanos desconheciam o testamento. Belloguet chega à conclusão de que nem o costume céltico, nem o costume germânico admitiam o direito de testar e o mesmo se dava, na opinião de Kcenigswarter com os Frisões. Quando o regime da propriedade primitiva da comunidade aldeã se transformou em regime de propriedade familiar, os filhos e os demais parentes do defunto adquiriam um direito aos bens abandonados. No período Merovíngio, era permitido o dispor em testamento da propriedade mobiliária; as terras, porém, só poderiam ser legadas quando não houvesse herdeiros forçados. O feudalismo, herdando estes usos e impondo a cada vassalo a obrigação de contribuir com o seu contingente de homens convenientemente armados e comandados, inspirou-se neste último modo de ver para regular a transmissão da terra por morte do possuidor e repeliu o direito de testar com correspondentes restrições. Graças às mais livres formas das relações sociais, o industrialismo, desenvolvendo-se, proporcionou-nos maior liberdade na disposição dos nossos bens, principalmente nos países onde o espírito militar menos se manifesta, que são a Inglaterra e a América. Na França e em outros estados europeus, a lei restringe a liberdade do testador, preceituando a forma por que há de ser feita, post mortem, a partilha dos seus bens entre os membros da família. Na Inglaterra, a partilha testamentária dos bens mobiliários não é sujeita a restrição alguma; quanto aos bens imobiliários é limitado e não é reconhecido senão sob certas condições. Manifesta-se, contudo, uma certa tendência a libertá-lo deste entrave. § 65. - O direito de propriedade implica pois, conjuntamente, o direito de dar e o de legar, e reconhece ao proprietário de quaisquer bens o direito de os deixar em proporções definidas a legatários especificados. Mas de tal, por nenhum modo é licito concluir que a ética o autorize a prescrever o uso que os legatários hajam de fazer quanto a esses bens. Apresentada sem subterfúgios, a proposição de que um homem possua, seja o que for, depois tia sua morte - é patentemente absurda; não obstante, sob um disfarce de forma, o direito de propriedade póstuma foi largamente reconhecido e sancionado em épocas distantes e é-o ainda, e por um considerável modo nos nossos dias, sempre que a lei respeita a vontade do testador na parte em que ela estabelece restrições ao uso livre dos bens deixados. A imposição desses entraves implica a continuação dum certo poder sobre os bens e um prolongamento do direito de propriedade que absolve, no todo ou em parte, o direito dos herdeiros. Raras pessoas haverão, que contestem a afirmativa de que a superfície da Terra e bem assim tudo o que sobre a terra assenta devem ser propriedade plena da geração existente. A interpretação do direito de propriedade, - quando permita a uma geração que prescreva às subsequentes os usos a que tenham de consagrar a superfície da Terra, ou o que nela assenta, - deixa de ser equitativa. O mesmo acontece quando as gerações presentes se submetem às restrições que lhes foram impostas pelas anteriores. Estas conclusões mais se vincam, remontando a afinidade que existe entre o direito de propriedade e as leis que regem os fenómenos da vida. Como tivemos ocasião de mostrar, a condição fundamental da conservação da espécie é a de que: cada indivíduo colha os benefícios e experimente as contrariedades resultantes das boas ou más ações da sua conduta; a condição básica da continuidade da sustentação e a de que, sempre que se realize um esforço, o produto desse esforço não seja interceptado nem desviado. Visto que esta necessidade biológica nos faculta a justificação fundamental do direito de propriedade, segue-se que tal condição de vida cessa quando a vida cessa. Estritamente interpretado, o direito de doação sob a forma de disposição testamentária, não se estende, pois, a mais do que aos bens transmitidos e não abrange as restrições impostas ao uso desses bens. § 66. - Este direito tem, não obstante, outras restrições que resultam do fado de existirem, ao lado das relações entre cidadãos adultos, relações também de pais para filhos menores. A moral da família e a moral do Estado são, como vimos, de natureza oposta: quando as duas morais entrem em competência, verbi grátia por ocasião da morte dos pais, torna-se necessário encontrar as bases duma compensação mutua. Se a vida humana fosse normal, se não se dessem nela as anomalias próprias dos estados transitórios, a dificuldade apontada raramente surgiria, por isso que a morte dos pais dar-se-ia quando as crianças tivessem atingido já a idade adulta: os bens que lhes deixassem poderiam nesse caso ser entregues à sua plena posse e sem restrição alguma. Todavia a morte dos pais nas circunstâncias presentes, deixa frequentemente os filhos em idade de não poderem gerir por si próprios as suas pessoas e bens; afim de assegurar o bem-estar da sua menoridade os pais, no intuito de cumprirem as suas obrigações no grau que lhes é possível, veem-se forçados a especificar o uso que será feito dos bens deixados. Sendo os produtos dos esforços humanos possuídos não somente na mira do sustento do eu, mas também na do sustento da progênie, segue-se que se o progenitor tiver um fim prematuro os produtos por ele adquiridos podem, com justo título, ser deixados com o intuito de prover à prole. Como os pais ficam inibidos pela morte de praticarem, no interesse dos filhos, a gestão dos bens, tem esta de ser confiada a terceira pessoa: o prolongamento de propriedade que este mandato implica para quem o estabelece, deve naturalmente acabar quando os filhos cheguem a maioridade. As disposições testamentárias realizadas com o propósito de assegurar o futuro dos filhos menores tornam precisa a fixação da idade em que eles se tornam capazes de gerir as suas pessoas e bens. Para tal fixação, porém, de nenhum auxílio servem considerações morais, que apenas esclarecem este ponto: que o prolongamento de propriedade resultante de restrições que os pais falecidos hajam em vida marcado relativamente a administração, etc., dos bens transmitidos a filhos menores, não deve ultrapassar a idade na qual, consoante as indicações usuais da experiência, estes últimos ultrapassam o limite da menoridade. Esse limite varia conforme o tipo humano, entre os povos de idêntico tipo, e até de indivíduo para indivíduo. § 67. - Surge agora um assunto mais embaraçoso ainda. O princípio último da justiça infra-humana e da justiça humana deriva das condições necessárias para a conservação do indivíduo e da espécie; das condições dessa conservação derivam também o direito de possuir durante a vida e o prolongamento desse direito para além da morte, que as disposições testamentárias em favor dos filhos menores implicam. Fazer, porém, derivar das referidas condições o mais extenso direito de prescrever o uso que será dado aos bens transmitidos, afigura-se impossível. O mais a que se poderá chegar, será a uma transação de natureza puramente empírica. O princípio fundamental da justiça não sanciona direito algum de propriedade póstuma, a não ser no caso precitado. Mas, por outro lado, tratando-se de bens adquiridos á custa dum trabalho incessante e dum grande dispêndio de talento do qual haja advindo não só proveito individual para quem o possuía mas também proveito coletivo, graças a uma invenção que preste serviços permanentes à humanidade, - parece dureza imerecida recusar inteiramente aos proprietários nestas condições o direito de estatuir certas condições que produzam efeito post-mortem, principalmente se, por não ter filhos, estiver colocado na alternativa de deixar os seus bens ab-intestato ou de os transmitir a estrangeiros. Uma distinção se impõe. O detentor de terras sujeitas ao direito de propriedade suprema da coletividade - direito que, conforme vimos, é justificado conjuntamente pela ética e pela lei inglesa - não pode, equitativamente, prescrever disposições que envolvam a alienação permanente do direito da coletividade. Porém quanto à sucessão mobiliária, o assunto muda de aspecto, por que são numa diferente categoria os bens adquiridos pelo produto de esforços e pelo fruto da aplicação desses esforços a matéria bruta adquirida a preços que equivalem e representam uma soma de trabalho ou de economia feita nos salários: esses bens são possuídos em virtude da relação imposta pela justiça entre os atos e as suas consequências e representam a porção não consumida do que a sociedade pagou a um indivíduo como remuneração do seu trabalho. Se ele pois quiser transmitir essa porção a sociedade por intermédio de um dos seus membros ou de uma agremiação é razoável consentir-lhe que especifique as condições ás quais ele entenda dever subordinar a aceitação da sua deixa. Procedendo assim, não aliena coisa alguma que pertença a outrem; pelo contrário, os outros homens é que recebem uma coisa para a qual não tinham direito algum e colhem um benefício ainda mesmo quando sejam obrigados a dar a essa coisa um emprego previamente estipulado. No caso de se considerarem as restrições impostas como prejudiciais, tem o fácil recurso do repudio. Todavia, os bens mobiliários deixados com especificações restritivas, podem num determinado momento e por virtude de mudanças sociais, deixar de ter o uso útil para que foram transmitidos e aceitos. Neste caso, uma nova transação empírica se impõe ao raciocínio: se é natural que se conceda ao testador uma certa latitude na especificação no emprego a fazer dos bens que não deixa aos filhos, é natural também circunscrever essa latitude aos limites que a experiência indique como de mais eficazes resultados. § 68. - Visto que a conservação social prevalece sobre a conservação individual, é logico admitir a legitimidade da restrição do direito de transmitir post-mortem, restrição que resulta da necessidade em que o Estado se encontre de fazer face às despesas de proteção e defesa dos cidadãos e das coletividades em que ele superintende. Nas atuais condições, é relativamente justo que a comunidade, atuando por intermédio do seu governo, se aproprie da parte proporcional dos bens de cada cidadão que seja reclamada pelos cuidados da defesa nacional e da ordem social. As circunstâncias é que ditam a maneira pela qual essa necessária apropriação deverá ser efetuada. Não há razão ética alguma que se oponha aos motivos de conveniência que exigem que uma parte das receitas públicas provenha das quotas lançadas sobre as aquisições por transmissão. Relativamente ainda a esta restrição, acentuaremos que as deduções da lei de igual liberdade atrás formuladas, são corroboradas pelas atuais disposições legislativas e que a harmonia entre as leis da ética e as leis escritas se acentua, neste particular, cada vez mais. O direito de dar que nos tempos primitivos não era uniformemente admitido, obteve com o andar dos tempos a sanção tácita das leis que o limitam aos bens legitimamente possuídos. Mal esboçado e confusamente reconhecido nos antigos estados sociais, o direito de legar firmou-se e expandiu-se com o desenvolvimento da liberdade individual. São as instituições inglesas, e as americanas das inglesas procedentes, que mais larga sanção legislativa lhe tem dado. A lei autoriza a instituição de restrições nos bens transmitidos a filhos menores, instituição que a ética sanciona. Outras leis, como as de mão-morta, restringem essas especificações no que respeita aos bens transmitidos a outrem que não sejam menores; e essa restrição é também sancionada pela ética. CAPÍTULO XV O Direito de Trocar e Contratar livremente § 69. - Uma simples substituição de termos permitir-nos-á repetir aqui, a respeito do direito de troca, os mesmos raciocínios que fizemos no início do capítulo anterior acerca do direito de doação, e isto porque, afinal, uma troca é a mútua compensação de duas doações. Esta interpretação afigurar-se-á à maioria dos leitores como uma fantasia; não o é, porém, visto que o exame dos fados a impõe. Embora os povos mais atrasados não compreendam unanimemente o que seja uma troca, todos eles, sem excepção, admitem que se façam presentes, e com este costume vem a desenvolver-se a concepção da conveniência de oferecer um equivalente àquele que se recebeu. Encontram-se em numerosos livros de viagens bastos exemplos desta concepção. Da mutação de presentes equivalentes deriva natural e facilmente a prática de constantes trocas nas quais, a ideia dos presentes acaba por se apagar. Porém, mesmo sem fazer do direito de troca um corolário do direito de doação, claro é que um e o outro estão compreendidos no direito de propriedade, pois que a propriedade de uma coisa ficaria incompleta, se essa coisa não pudesse ser alienada e substituída por outra coisa recebida. O direito de troca pode também justificar-se a título de dedução direta da lei de igual liberdade. Quando dois homens efetuam voluntariamente uma troca, nenhum deles assume uma liberdade de ação superior à do outro, ambos respeitam os direitos de outrem e deixam ao resto dos homens a posse de igual soma de liberdade de ação. Conquanto a realização de uma troca possa obstar a que vários deles façam operações que lhes seriam vantajosas, a faculdade de as praticarem dependia do consentimento de um outro homem e não faz parte da sua esfera de ação normal. Essa esfera de ação permanece igual à que teriam se os dois contratantes não existissem. Por mais evidente que seja a legitimidade do direito de troca, a lei só tardiamente veio a reconhecê-la e está longe de um universal reconhecimento. Os chefes dos Polinésios intervêm nas trocas de múltiplas maneiras: nuns tem o monopólio do comércio com os estrangeiros; noutros fixam os preços, noutros marcam a duração do dia de trabalho. O mesmo acontece na África. Os chefes dos Bechuanas e dos negros do interior gozam do direito de preempção em matéria comercial; nenhum contrato é valido sem o assentimento real. Nos Ashantis, só à rei e os grandes tem o direito de tráfico. Em Shoa, o rei tem o exclusivo da compra de certos artigos. Os Congoleses, os Dahomeanos e os Fulahs têm chefes comerciais que regulam as compras e as vendas. Entre os Hebreus, os Fenícios, os antigos Mexicanos e os habitantes da América Central notam-se também restrições análogas. Os membros de algumas tribos americanas, como os Patagões e os Mundrucus, precisam de consentimento dos chefes para se dedicarem ao comércio. É inútil relacionar os fados semelhantes que na Europa restringiam a liberdade mercantil e que remontam à época em que Diocleciano fixou os salários e os preços: a única circunstância a notar é a de que a regulamentação das trocas vai sucessivamente afrouxando à medida que o progresso se desenvolve. Os obstáculos têm diminuído sucessivamente e, nalguns casos desapareceram por completo para os membros que façam parte de uma mesma sociedade; tem sido mesmo suprimido em parte entre membros de sociedades diferentes. As ingerências tornaram-se cada vez mais reduzidas ao contato com o desenvolvimento do tipo industrial e das instituições livres que na Inglaterra acompanham de ordinário esse desenvolvimento. Convêm, todavia, salientar que nos acontecimentos que em Inglaterra deram causa à implantação de uma liberdade comercial quase incompleta se tem invocado de preferência razões políticas a motivos de equidade. Na agitação contra a lei dos Cereais só muito vagamente se invocou o «direito» do livre câmbio. Atualmente mesmo o que mais se censura aos protecionistas, tanto em Inglaterra como no estrangeiro, não é a falta de equidade, mas o caráter ilusório da sua política. Não é, pois, para admirar que as massas populares inglesas não reconheçam ainda a liberdade das trocas em matéria de trabalho e de salários. Obcecados pelo que reputam o seu interesse, os operários recusam tacitamente ao contratante e ao contratado o direito de discutirem a soma de numerário que há de ser paga como retribuição do seu trabalho. A lei, neste particular, adiantou-se à opinião, assegurando a cada cidadão a liberdade de pactuar à sua vontade nos contratos que tenham os seus serviços por objeto. De modo que o direito escrito assegura já esta liberdade contra a qual numerosos cidadãos protestam ainda. § 70. - O direito à liberdade dos contratos confunde-se com o direito à liberdade das trocas; a transformação do direito de trocar em direito de contratar opera-se por um adiamento do cumprimento duma troca, ora subentendido, ora expresso. Para exemplo citaremos os contratos de serviços concluídos, em condições certas, os contratos de uso da terra e das habitações, os contratos tendo por objeto a execução de trabalhos especificados, os contratos de empréstimo de capitais, que são todos espécimes de contratos que os homens podem livremente realizar sem praticarem nenhuma agressão, tendo, portanto, o direito de os discutirem e ultimarem. Nos tempos idos, as restrições ao direito de trocar tinham por naturais companheiros as restrições ao direito de contratar como o atesta a inumerável multidão de leis a respeito de salários e de preços que de século para século se foi acumulando na jurisprudência das nações civilizadas. Estas intervenções, enfraquecendo pari-passa com o governo coercivo desapareceram nos tempos modernos, quase de todo. Uma dessas graduais modificações, a da lei sobre a usura, pode servir de tipo às restantes; o pagamento de juros por um empréstimo de capital era interdito pela legislação de vários povos que só realizaram frouxos progressos para a organização de instituições livres. Verifica-se isso nos Hebreus e na velha Inglaterra, na França da época do predomínio do absolutismo monárquico. Com o decorrer do tempo, nota-se a introdução de atenuações dessa restrição absoluta, sob a forma de fixação do juro máximo: Cicero estabeleceu-o na sua província; na Inglaterra Henrique VIII arbitrou-o em 10%; Tiago I, em 8 %, Carlos II e a rainha Ana em 6 %; em França, sob Luiz XV, foi fixado em 4 %. Posteriormente, desapareceram todos esses diferentes entraves e os contratantes adquiriram a liberdade de pactuarem à vontade. A lei foi-se, portanto, aproximando gradualmente da equidade. Há, todavia, um caso excepcional em que ambas se encontraram de acordo para pronunciarem uma interdição comum e que é a referente ao caso em que um homem vendesse a sua própria pessoa, tornando-se escravo. Remontando à origem biológica da justiça, verificamos, que a servidão quebra as relações que devem ser mantidas entre os produtos dos esforços empregados com o fim de se assegurar a continuação da vida. O homem que para colher um benefício imediato reduz a sua pessoa à escravidão, coloca-se assim em oposição com o princípio fundamental de toda a moralidade social. No ponto de vista imediato da ética, um contrato só se conforma com a lei de igual liberdade quando cada uma das partes entrega equivalentes exatos ou aproximados. É, portanto, evidente que, no sentido rigoroso dos termos, não pode existir um contrato cujas condições sejam incomensuráveis e é isso que se dá quando um homem a troco duma imediata vantagem abandona a outra a sua existência. A lei, recusando-se a reconhecer a validade dum tal contrato, e proibindo-o, estabelece para a liberdade dos contratos uma excepção moral que a moral impõe. A lei e a ética harmonizam-se, por conseguinte, relativamente a este assunto, mais uma vez. § 71. - Os direitos de trocar e de contratar devem, como os outros direitos, sujeitar-se às restrições impostas pelos cuidados da conservação social, exposta aos ataques dos inimigos exteriores. É legítima a suspensão da liberdade de trocas quando ponha em perigo a defesa nacional. Esta delimitação torna-se, claro é, muito maior nos períodos em que predomina o tipo militar. As sociedades que vivem num estado de antagonismo crónico com as outras sociedades, têm de organizar o seu sistema de trabalho de maneira a que ele lhes baste por si próprio. Em França, nos primeiros tempos feudais, exerciam-se num mesmo domínio rural os mais diversos misteres e os castelos fabricavam a quase totalidade dos produtos que neles se consumiam. As dificuldades de comunicações, os riscos inseparáveis dos transportes e das viagens, os perigos provenientes de incessantes guerras, tornavam indispensável que cada castelo, cada domínio rural, cada burgo, soubesse manufaturar os objetos de primeira necessidade. Isto que se dava nos pequenos agrupamentos, acontecia nos grandes agregados sociais também e por isso as trocas internacionais sofriam grandes restrições. O lema conservemo-nos independentes» que tantas vezes se bradou durante a agitação contra a Lei dos Cereais, não era inteiramente destituído de justificação. Só num período de paz firmemente assegurada uma nação pode, sem risco, comprar fora uma grande parte da sua subsistência, em vez de a produzir. A ética sanciona unicamente esta restrição aos direitos de trocar e de contratar. Apenas a considera válida a ela e classifica como um atentado qualquer outra ingerência no direito de trocar e de contratar, sejam os seus autores quem forem. O qualificativo de “agressores” pertence de direito aqueles que se intitulam protecionistas, porque a proibição feita a A de comprar a B para o constranger a comprar a C, em condições geralmente onerosas, importa evidentemente um atentado ao direito de livre troca, que vimos ser um corolário da lei de igual liberdade. O facto primacial a notar é que, na Inglaterra, são invariavelmente razões políticas que, com predomínio sobre os motivos morais, que têm dado sanção legal para esta dedução ética que a indução justificava já. Capítulo XVI O Direito à Liberdade do Trabalho § 72. - Os direitos à liberdade de moção e locomoção implicam, sob um dos seus aspectos, a liberdade do trabalho; os direitos de livre troca e dos contratos implicam-no também, sob outro aspecto. Há, todavia, um terceiro aspecto da liberdade de trabalho, que não é incluível em nenhuma das modalidades de liberdade mencionadas acima e que se torna conveniente especificar. A sua existência atual está fora de qualquer dúvida; convêm, não obstante, mostrar até que ponto foi desconhecida, até que nos modernos tempos obtivesse um reconhecimento pleno. Entendo por direito de liberdade de trabalho o direito que todo o homem tem de se dedicar a qualquer ocupação, pelo modo que julgue preferível, contanto que não lese a igual liberdade dos outros homens e que aceite as vantagens ou os inconvenientes que dele resultarem. Tal direito parece-nos incontestável e evidente, mas nem sempre assim foi considerado, e nem admira que o não fosse, visto que outros direitos de evidencia maior, eram desconhecidos. Notemos de passagem que nos tempos afastados, o trabalho estava sujeito a regras que tinham o carácter religioso: assim, o Deuteronômio (XXII, 8 etc.), prescreve aos Hebreus regras de construção e de agricultura. Na Europa, as restrições impostas à liberdade de indústria foram grandes e persistiram enquanto predominou a organização militar que punha em ação todos os meios para subordinar as vontades individuais. Na velha Inglaterra, o lorde maior verificava os produtos industriais na Court, Leet e quando a realeza se implantou, promulgou desde logo regulamentos sobre a época em que deviam ser tosquiados os carneiros e a respeito do amanho das terras e acerca das colheitas. Depois da Conquista, foi regulamentada a tinturaria. De Eduardo III a Jacques I, funcionaram comissões especiais incumbidas de fiscalizarem a boa qualidade dos produtos. fixava-se o número de oficiais que cada patrão podia admitir e impunha-se a cultura de determinadas plantas. Os curtidores eram obrigados a deixar as pules nas fossas durante um prazo de tempo pré-fixado. Havia funcionários especiais incumbidos de fiscalizarem e arrecadarem o imposto do pão e da cerveja. O número destas restrições foi diminuindo à medida que se desenvolveram as instituições próprias do tipo industrial. Os cinco sextos foram extintos nos inicias do reinado de Jorge III. Voltaram a vigorar durante o período de guerras suscitado pela revolução francesa, mas desapareceram outra vez com o restabelecimento da paz e ao ponto de se acabar por suprimir a quase totalidade das intervenções do estado em matéria de processos de produção. Pouca importância tem a reação à regulamentação do trabalho, que coincidiu com o recente despertar do espírito militarista, espírito esse que em Inglaterra é consequência do seu imenso desenvolvimento no Continente. Este flagelo dos tempos modernos, foi segunda vez dignificado pela família Bonaparte. De há trinta anos para cá, tem sido publicada numerosíssimas leis prescrevendo as condições a que tem de sujeitar-se o exercício de certas profissões. Essas leis variam desde a interdição de tomar refeições no interior das fabricas de fósforos, em sítios que não sejam os especificados até à regulamentação da construção e limpeza das habitações operarias e à imposição de serem caiados os fornos dos padeiros e às penalidades aplicáveis aos agricultores que ocupem crianças que não recebam o ensino primário. Na França, onde as atividades militares excitadas pelas circunstâncias geográficas e históricas fizeram com que o desenvolvimento do tipo de estrutura militar se tornasse enorme, as restrições do trabalho eram mais pormenorizadas e mais rigorosas ainda do que na Inglaterra. No final do período monárquico atingiram um limite inacreditáveis. «Os funcionários incumbidos de aplicar as ordenanças eram aos enxames. As ordenanças em vigor eram incessantemente modificadas ou anuladas por ordenanças novas, no intuito de remediar a insuficiência das antigas. Prescreviam por exemplo, «o comprimento que deviam ter as peças de tecidos, os modelos a adoptar para elas, o processo para fabricá-las, defeitos a evitar, etc. A Revolução concedeu ao trabalho uma liberdade maior, mas as ingerências oficiais voltaram com o tempo a multiplicar-se de novo de modo, que em 1806, segundo diz Levasseur, regulamentou-se a duração do dia de trabalho, as horas do princípio desse dia, em conformidade com as estações, as horas de refeição, de descanso, etc. É elucidativo notar que, a liberdade do trabalho individual seguiu na França o mesmo rumo que as outras liberdades, não chegando nunca a ser tão extensa como na Inglaterra, onde a conquista da glória não foi um fim tão predominante e onde a organização militar se não tornou tão acentuada. A ideia de liberdade tem sempre sido subordinada em França à ideia de igualdade. Os cidadãos, a despeito das exterioridades duma forma de governo livre, conservaram-se invariavelmente em respeitoso silêncio perante um funcionalismo administrativo e político que é tão despótico sob a forma republicana como o era sob a monárquica; por isso a regressão ao tipo completo da estrutura militar tem chegado por vezes a efetuar-se quase completamente. Pondo de parte minuciosidades inúteis e fazendo apenas um exame geral dos fatos, verifica-se que durante a marcha do progresso, e a partir dos estádios primitivos pouco respeitadores da vida, da liberdade e da propriedade, até aos estados recentes que consideram estas liberdades como sagradas, caminhou-se dum regime autoritário de regulamentação dos processos de produção para um regime que deixa ao produtor a liberdade de os escolher como melhor lhe pareça, As legislações mais respeitadoras da liberdade individual geral são as que mais amplo espaço tem aberto à liberdade de trabalho no ponto de vista por que a encarámos. CAPÍTULO XVII O Direito à Liberdade de Crenças e o Direito à Liberdade de Cultos § 73 - Se nos adstringirmos ao sentido literal das palavras que constituem a epígrafe do presente capítulo, ocioso se torna a afirmar a liberdade de crenças, por isso que autoridade alguma exterior a poderá destruir. Sob esse aspecto, a sua afirmação implica até um duplo absurdo, porque tanto a coerção interior como a coerção exterior são impotentes para restringir essa liberdade, ou destruí-la. O direito à liberdade de crenças é um evidente corolário do direito de igual liberdade. A circunstância de uma pessoa qualquer professar uma crença não determina atentado algum a profissão por outros de crenças diferentes dessa: sempre que outros indivíduos lhe imponham a profissão duma das suas crenças, arrogam-se manifestamente uma liberdade de ação maior que a dessa pessoa. A liberdade de crenças é indiscutível contanto que não atentem diretamente contra o normal funcionamento das instituições existentes. Excepção aberta para algumas sociedades não civilizadas, verifica-se que as únicas crenças que têm sido interditas são aquelas cuja profissão parecia pôr em risco a ordem social. Nos tempos e nos lugares onde o tipo de organização militar domina sem atenuações, estabelecem-se penalidades que ferem todo o indivíduo conhecido por acreditar e defender que o sistema político ou a organização social em vigor carecem de reforma. É natural que isto seja assim nas sociedades militaristas, visto que desconhecendo direitos de fundamental importância, consequente é também que desconheçam outros que, como este, são de importância, evidentemente menor. O fato de se contestar o direito de dissidência política em toda a parte aonde a generalidade dos direitos é desconhecida é um seguro argumento para considerar esse direito como uma dedução direta da lei de igual liberdade. O direito de professar uma crença religiosa tem por direito concomitante o de manifestar essa crença pelos atos do culto, quando eles possam exercer-se sem infração dos direitos análogos dos outros homens e sem infração da conservação da vida. A equidade opõe-se a qualquer intervenção, contanto que os crentes não incomodem os seus vizinhos como se dá com os toques de sinos intempestivos e prolongados nalguns países católicos e com o alarido dos cortejos do Exército da Salvação que, por vergonhosa fraqueza, são consentidos na Inglaterra. As pessoas que professam crenças religiosas diferentes das da maioria e até os que não professam crença alguma, devem ter a liberdade de praticar o culto que quiserem, ou de não praticarem culto algum. A enunciação destes direitos faz-se atualmente na Inglaterra apenas para simetria de argumentação; aliás seria quase supérflua. Mas a Inglaterra não é o mundo e algumas denegações deste direito existem ainda em diversos países e mesmo na Inglaterra. § 74 - Os selvagens, longe de possuírem a liberdade que a sentimentalidade fantasista de outros tempos lhes atribui tem crenças que o costume lhes impõe tão peremptoriamente como os outros atos da sua vida. Na Guiné, estrangulam-se os doentes que se obstinam em não melhorarem a despeito das predições favoráveis dos feitiços a respeito da cura. Essa penalidade é-lhes imposta como castigo por contribuírem para que os feitiços mintam. Inútil será acrescentar que ninguém se atreve a manifestar sobre tal matéria descabidos e perigosos ceticismos. Os Fidjens, adoradores dos deuses canibais, tinham horror aos habitantes de Samoa por não praticarem o mesmo culto: irritados por Jakson haver infringido uma das suas interdições religiosas, chamavam-lhe «o branco ímpio» e não será para admirar que não tolerem no seio da sua gente, opiniões diferentes dos locais em matéria religiosa. Porque também se não mostram tolerantes acerca de afirmações políticas que ofendam a divina autoridade dos seus chefes. É esta, pelo menos, a conclusão a tirar dum livro em que Williams conta que um Fidjen vindo da América pôs a sua vida em risco por lhe terem dito que a América era maior que Fidji. As civilizações antigas contestavam frequentes vezes direito à liberdade de crenças. Platão considera punível a manifestação de crenças diversa da dos gregos. Sócrates morreu da cicuta por ter atacado as opiniões correntes acerca da natureza dos deuses e Anaxágoras foi perseguido por afirmar que o Sol não era o carro de Apoio. Passando da época em que era um crime professar o cristianismo aos tempos em que se tornou um crime professar outra crença que não fosse aquela, faremos uma única observação a respeito da judicatura dos inquisidores e dos martírios para que mutuamente se empurravam os católicos e os protestantes - e é que a autoridade exigia unicamente a submissão exterior, contentando-se com a aceitação nominal da crença e não exigindo provas da sua aceitação real. Estas perseguições religiosas negavam tacitamente o direito à liberdade de crenças. Depois do Ato de Tolerância de 1688 que impunha o reconhecimento de vários dogmas fundamentais, fazendo, porém, uma redução nas penalidades que feriam outras dissidências, a legislação inglesa foi sucessivamente abrandando em matéria de repressão religiosa. Já não é defesa aos dissidentes exercerem cargos públicos. Os Católicos primeiramente e pouco mais tarde os Judeus alcançaram o levantamento dessa interdição. Recentemente, a substituição duma afirmação pelo juramento deixou de tornar a crença em Deus, expressa ou subentendida, uma condição legal para o exercício de determinadas funções civis. Cada qual tem a liberdade de pertencer a esta, ou aquela, ou aqueloutra ou a nenhuma religião. Está-se, por esses fatos, a salvo de qualquer penalidade legal e a penalidade social em que se incorre é diminuta ou nula. Paralelas modificações se deram gradualmente no estabelecimento das liberdades políticas. Já se não pune, nem maltrata quem não aceita um dogma político, como por exemplo, o do direito divino dos reis ou o do direito ao trono de tal ou tal personagem. Tanto os partidários do despotismo como os anarquistas confessos gozam de igual liberdade de ideias. § 75 - A liberdade de crenças e de opiniões, ou melhor, o direito de as professar livremente não deve ser submetido a restrições de espécie alguma? Não devemos inferir do postulado de que as necessidades da conservação prevalecem sobre os direitos dos indivíduos e que convém, em certas circunstancias, restringir esse direito? Essa restrição só pode ser invocada com alguma aparência de razão contra opiniões ou crenças que, quando proclamadas abertamente, tendessem a impedir a sociedade de se defender contra sociedades hostis. O eficaz emprego das forças combinadas da coletividade pressupõe a subordinação ao governo e aos agentes por ele designados para dirigirem a guerra; nesse caso é racional admitir que não seja conveniente tolerar a manifestação pública de opiniões que, generalizando-se, paralisariam a autoridade administrativa. O regime militarista por que suprime ou suspende tantos outros direitos individuais, atenta, por vezes, também contra o direito de crer livremente. Só na passagem gradual do sistema do Estatuto originado em hostilidades tornadas crónicas, para o do Contrato, que o substitui à medida que o industrialismo adquire predominância, é que deixa de ser própria e se torna possível os direitos gerais o afirmarem-se. No decurso dessa transformação sobrevém e avigora-se o direito de cada qual, escolher por si próprio a sua crença, repelindo a obrigação de aceitar crenças impostas pela autoridade. A história do direito à liberdade de crenças, assim interpretado, seguiu um caminho paralelo ao dos demais direitos. Ignorado ao começo, este corolário da lei da igual liberdade, foi sendo gradualmente reconhecido e implantou-se finalmente nas leis escritas. CAPÍTULO XVIII O Direito à Liberdade da Palavra o Direito a Liberdade de Publicação § 76. - É difícil separar o assunto deste capítulo da matéria do capítulo antecedente. A crença não é, em si mesma, suscetível de ser submetida à fiscalização desse poder exterior que só pode atuar relativamente à sua profissão permitida ou interdita pela autoridade. Deduz-se disto que a afirmação do direito à liberdade de crenças implica o da liberdade da palavra e o de cada um se poder servir da palavra para a propagação da sua crença. Como cada uma das proposições que abrangem um ou mais argumentos destinados à tolerância ou à imposição duma crença, constitui por si própria uma crença, o direito de exteriorizar essa proposição faz parte do direito de exprimir a crença que se pretende defender. Claro é que tanto um como o outro destes direitos são corolários imediatos da lei de igual liberdade. Ninguém, a não ser que recorra a obstinados clamores, impede outra pessoa de fazer outro tanto, pelo facto de usar da palavra para explicar ou defender uma crença. Se esse impedimento se der, não poderia haver equiparação no uso desse direito e, portanto, a lei fundamental de igual liberdade ficaria violada. Uma simples mudança de termos permitir-nos-á aplicar o que acabámos de dizer ao direito de publicação ou, de outro modo que vale o mesmo, à «liberdade ilimitada da imprensa». No exclusivo ponto de vista ético, nenhuma diferença essencial existe entre o ato de falar, o ato de reproduzir a palavra pelos símbolos da escrita e o ato de multiplicar os exemplares do que se escreveu. Os capítulos anteriores estabelecem, não obstante, uma restrição que convêm relembrar e aplicar aqui. A liberdade da palavra, falada, escrita, ou impressa não abrange a liberdade de usar da palavra para excitar a pratica de atentados contra outrem. Os limites da liberdade individual que demarcámos no começo deste livro, excluem evidentemente o emprego da liberdade para tais fins. § 77. - Parecerá supérfluo talvez fazer a defesa destes dois direitos - o da liberdade de palavra e da «liberdade ilimitada de imprensa» nos tempos que vão correndo e num país como a Inglaterra. É, todavia, de vantagem conhecer os argumentos pelos quais eles eram de antes combatidos na Inglaterra e são ainda hoje combatidos nalguns países estrangeiros. Os governos - diz-se - devem velar por que os súditos possuam «segurança e o sentimento de segurança: Daqui a conclusão de que às autoridades incumbe o dever de terem os ouvidos bem atentos às declamações dos oradores populares e de fazer calar os que excitem o alarme das massas. Esta conclusão tem, porém, uma dificuldade. Todas as vezes que uma considerável mudança política ou religiosa é reclamada, a maioria assusta-se e é afetada por um sentimento de terror que diminui a sua segurança. Os governos seriam, pois, obrigados a porem um dique à corrente de reivindicações feitas. Durante a agitação que precedeu a Reforma Parlamentar, uma grande parte da Inglaterra entrou num estado de alarme crónico e para acalmar esse estado teria sido necessário ordenar a supressão da agitação. Uma parte do público, impressionada pelas terríveis predições do Standard e pelos lamentos erguidos pelo Herald, teria de bom grado usado de medidas coercivas que esmagassem a propaganda da doutrina livre-cambista. Ora deveria ser permitido deixá-los pôr em prática essas medidas, se a obrigação do governo fosse a de proteger a segurança que essa parte do público havia perdido. Igual procedimento se justificaria por ocasião das ruidosas discussões que precederam a abolição de incapacidades que pesavam sobre os católicos para o acesso a cargos civis ingleses, e doutras. fizeram-se então profecias em barda acerca duma próxima regressão às perseguições exercidas pelos católicos e ao cortejo de horrores que no passado as acompanharam. Se o dever de conservar o sentimento de segurança fosse uma obrigação estrita, deveria ter proibido os discursos e os escritos que precederam essa reforma. A proposição de que é limitável a liberdade da palavra em matéria política e religiosa só seria defensável se as crenças religiosas ou políticas em vigor representassem a verdade absoluta. Como, porém, a história do passado demonstra que tal hipótese é geralmente errônea, o respeito devido à experiência não permite admitir que as crenças correntes sejam inteiramente verdadeiras. A história, pelo contrário, corrobora a afirmação de que a palavra tem sido sempre o instrumento de dissipação dos erros. Só um Papa infalível poderia arrogar-se poderes para introduzir o seu uso. Outrora, era tido universalmente por necessário que se deviam pôr entraves á enunciação de crenças religiosas e políticas diferentes das estabelecidas. Estribadas em idênticos motivos, muitas pessoas consideram como indispensável a imposição de limites para as palavras que ultrapassem o que se chama a decência ou que tendem a favorecer a imoralidade nas relações sexuais. Este problema é delicado e não se nos afigura suscetível duma solução satisfatória. Torna-se por seu lado, indubitável que a licença ilimitada poderia dar como resultado a destruição total ou parcial de ideias, sentimentos e instituições cuja manutenção é útil para a sociedade: quaisquer que sejam os defeitos do regime conjugal atual. Temos fortes motivos para acreditar nas suas vantagens gerais. Vistas as coisas por este aspecto, a publicação de doutrinas que o desacreditassem seria sem dúvida alguma nociva e deveria ser reprimida. Mas, por outro lado, é preciso não esquecer que o passado estava convencido de que a propaganda de opiniões heréticas devia ser punida e impedida de se transformar num instrumento da condenação eterna dos ouvintes. Este fado sugere-nos a dúvida de que sejam demasiadamente absolutistas as opiniões dominantes acerca das relações sexuais. Neste particular, sempre e em toda a parte os homens tiveram as suas intransigentes opiniões e os seus intransigentes sentimentos por tão legítimos, como os que impunham em matéria religiosa e política. Contudo, se somos nós homens de hoje que temos razão, foram eles os homens do passado que se enganaram. Embora os ingleses estejam convencidos da iniquidade de casamentos com pessoas de raças indianas, a maioria dos indígenas do Hindustão não partilha desse modo de pensar. Na Inglaterra os casamentos de dinheiro são matéria corrente; há, porém, povos a quem repugna efetuarem uniões com esse intuito. Em determinados sítios da África, não só a poligamia é adotada pelos homens, mas as próprias mulheres condenam a monogamia. No Tibete, os habitantes adotaram a poliandria e esta forma de relações sexuais não representa unicamente a opinião local: os viajantes justificavam-na também como sendo a mais apropriada aquelas desoladas regiões. Em presença de uma tamanha diversidade de critérios, diversidade existente no seio das próprias nações civilizadas, convêm que não nos apressemos a considerar como seguras as opiniões e os usos dominantes, porque não há modo de estabelecer provas suficientemente fortes para levarem ao convencimento de que essas restrições à liberdade de palavra não constituam um obstáculo ao progresso para costumes melhores que os atuais. A este respeito, como a respeito de política e de religião, a liberdade da palavra importa inconvenientes, mas as reflexões que no decurso dos §§ anteriores fizemos conduzem à conclusão de que esses inconvenientes devem ser aceites na previsão de possíveis vantagens. De resto, a opinião pública é até certo ponto um obstáculo a esses inconvenientes. O receio de dizer ou de escrever coisas que determinem, para quem as propaga, o ostracismo social é muitas vezes um impedimento mais eficaz que a repressão inscrita nas leis. § 78 - Os direitos à liberdade de palavra e de publicação te em uma linha de evolução paralela à dos outros direitos. Quase desconhecidos, ou não obtendo nos tempos remotos e na maioria dos países mais do que uma silenciosa adesão, conseguiram implantar-se gradualmente e triunfar por fim. Eis alguns exemplos que confirmarão a veracidade de que assim aconteceu. Havendo agora ensejo para salientar de novo alguns dos fados apontados no capítulo anterior, visto que a supressão de uma crença implica a supressão da liberdade de palavra. São frequentes, na antiguidade, os casos que significam recusas da liberdade de palavra. A cólera dos sacerdotes judaicos contra as doutrinas de Jesus Cristo e contra os preceitos contrários à antiga fé que ele pregava, levaram-no ao Calvário. São Paulo que primeiramente havia sido um perseguidor dos cristãos, foi perseguido e martirizado por ter querido convencer os homens a converterem-se ao cristianismo. Na história do império romano encontram-se muitos outros exemplos de pregadores executados por fazerem proselitismo religioso contrário ao oficial. Implantado o cristianismo, vemos aparecer a interdição de opiniões contrárias a essa religião que se tornara dominante: perseguiram-se sucessivamente os que negavam a divindade de Jesus Cristo e os aderentes públicos ao dogma da predestinação ou do maniqueísmo com os seus dois princípios do bem e do mal. Posteriormente foram perseguidos Huns e Lutero. Na Inglaterra, a partir do reinado de Henrique IV editaram-se penalidades severas contra os fautores de heresias. No século XVII o poder castigava o clero não conformista que se afastara da doutrina da Igreja anglicana e encarcerou Bunyan pelo facto de a haver pregado ao ar livre. Está ainda na memória de muitos a lembrança do último processo movido nos tribunais ingleses com fundamento na propagação de ateísmo. Todavia, no decurso dos últimos séculos, o direito à liberdade da palavra religiosa afirmou-se de mais em mais e foi sendo gradualmente reconhecido. Hoje não existe em Inglaterra restrição alguma ao direito de exprimir publicamente qualquer opinião religiosa, a não ser que seja insultante a forma de a expor. Um progresso paralelo se efetuou quanto à liberdade de opiniões políticas que os tempos primitivos se recusavam a reconhecer. No tempo de Solon, vigorou em Athenas, a pena de morte para a oposição à política deste legislador. Entre os romanos, a exteriorização de opiniões proscritas era equiparada à traição. Não a muitos séculos ainda que uma crítica política, mesmo moderada que fosse, era castigada com rigorosas penalidades. Em tempos já mais próximos de nós, verifica-se alternadamente a expansão da liberdade de opiniões e a vigilância exercida pela lei contra as doutrinas dominantes. Durante o período de guerras contra a Revolução francês a manifestou-se em Inglaterra uma tendência retrograda tanto em relação a este como a outros direitos. Um juiz proclamou em 1880 «que não era permitido tratar quaisquer assuntos a descontento do Governo». Os primeiros anos do período pacífico que se seguiu, viram decrescer as restrições erguidas contra as liberdades em geral, compreendida nelas a liberdade de discussão política. É certo que J. Burdett foi condenado a cadeia por ter protestado contra as excessivas desumanidades cometidas pelas tropas e que Leigh Hunt esteve preso também por haver apontado à execração pública o abuso das varadas na armada, mas de então para cá desapareceram, de fato, todos os entraves à manifestação de ideias políticas. Contanto que se abstenham de impelir ao crime, todos os cidadãos possuem a liberdade de dizerem o que pensam a respeito das instituições inglesas, quer na generalidade quer em pormenor. Reconhece-se mesmo a liberdade de propagandear uma forma de governo inteiramente diversa da atual ou de condenar em globo todas as formas de governo. A crescente aceitação do direito à liberdade de palavra, foi naturalmente acompanhada pelo crescente reconhecimento do direito à liberdade de publicação. Platão considerava a censura como precisa para sustar a difusão de doutrinas não autorizadas. Na idade média, o poder eclesiástico suprimia os escritos que reputava heréticos. No reinado de Isabel a publicação dos livros dependia de prévia autorização e o próprio Parlamento pôs em vigor o sistema de censura contra o qual Milton dirigiu o seu protesto célebre. Há, porém, dois séculos, que a censura oficial desapareceu e as numerosas disposições a que se recorreu para arrolhar a imprensa, foram ab-rogadas ou caíram pouco a pouco em desuso. § 79. - Nestes dois direitos, como nos estudados precedentemente, a lei de que a conservação social prevalece sobre a da conservação individual, autoriza a aplicação, às liberdades de palavra e de publicação, de restrições que em tempo de guerra se tornam necessárias para tirar ao inimigo as vantagens que dela poderia utilizar. Como vimos, a ética justifica a subordinação dos direitos mais importantes dos cidadãos, às exigências da defesa nacional; daí se segue que são igualmente permitidos estes direitos de importância relativamente menor. Mais uma vez ainda, salientaremos a conexão direta que existe entre hostilidades internacionais e a repressão da liberdade individual. No decurso da civilização, nota-se a repressão da liberdade de expressão e de publicação, tanto mais rigorosa quanto mais acentuado é o predomínio do regime militar: hoje mesmo, é suficientemente elucidativo o contraste existente entre a Inglaterra e a Rússia. Reconhecendo as legitimas restrições dos dois direitos tratados, convêm notar que, conforme se deu com os outros direitos da lei de igual liberdade, ambos eles principiaram a ser inscritos nas leis, logo que a sociedade principiou a atingir uma forma superior de civilização. CAPÍTULO XIX Exame retrospectivo e argumentação nova § 80. - Em toda a parte e sempre que as instituições se colocam em contradição com a natureza, surge uma força que determina modificações. Ora é a natureza que modifica as instituições, ora são as instituições que modificam a natureza. A influência das duas é reciproca, por vezes, mas com o decorrer do tempo, acaba-se por atingir um estado estável. As ações e reações entre o carácter nacional inglês e as instituições sociais, conduziram a esse resultado curioso. O espírito de transigência que ditou essas instituições, conquistou o favor do carácter nacional a ponto de não gozar apenas de tolerância, mas de preferência. Mantemo-nos numa perpétua desconfiança dos princípios e encaramos como suspeitos todos os sistemas. Assim, é natural que os cidadãos que proclamam a doutrina da soberania nacional e se mostram concordes com os homens de Estado que redigem com solicitude os discursos reais das aberturas das cortes em que os «lords» e os «comuns» são tratados como serventuários do monarca e onde se chama ao povo: «os meus súbditos», se irritem quando se lhes peça que façam uma política consequente e logica consigo mesma. Os cidadãos reconhecem os direitos da razão individual em matéria religiosa, mas autorizam tacitamente o parlamento a subvencionar um culto oficial. Não é por isso de espantar que se sintam pouco à vontade quando se lhes pergunta como é que eles conseguem conciliar a sua teoria com a sua pratica. forçados frequentemente a aceitarem doutrinas contraditórias, tomam inimizade a todo o raciocínio exato em matéria política, revoltam sempre que se faz a tentativa de os firmar em proposições rigorosas e recuam ante o aspecto desse princípio abstrato como o pavor duma criada lorpa, que julgasse ver um fantasma. Não há raciocínios que logrem prevalecer de todo contra estas inveteradas maneiras de ver e de sentir, produto das condições sociais inglesas. As opiniões delas divergentes, raras, ou nenhumas probabilidades tem de ser atendidas. Os leitores cujas opiniões se não tenham modificado com os argumentos miudamente expostos nos capítulos anteriores, por certo não mudarão de ideias, ou melhor, da falta delas, pelo facto de agruparmos esses argumentos e demonstrarmos que eles convergem para uma e mesma conclusão. Não obstante, convêm, antes de prosseguirmos, insistir no acordo que reina entre essas proposições. Restar-nos-á, depois, deduzir delas as naturais consequências. § 81 - As ações inorgânicas escapam à nossa concepção da ética: nenhuma ideia ética formamos acerca da condensação das nebulosas, do movimento sideral, ou da evolução planetária. Se dos fenômenos inorgânicos passarmos a abordar o estudo dos seres organizados, também não vemos que a ética se possa ocupar dos fenômenos da vida vegetal. É verdade que verificarmos que há plantas com maiores qualidades de resistência, adaptação etc. do que outras, na luta pela sua existência. Todavia não ligamos a essas qualidades, ideias de aprovação ou de desaprovação. Só quando começa a aparecer a faculdade de sentir, isto é, no mundo animal é que encontramos campo apropriado para a ética. Daqui se infere que, no ponto de vista da sua natureza última, a ética, pressupondo a existência da vida animal, e não adquirindo sentido apreciável senão á medida que a vida toma formas mais complexas, deve descrever-se em termos aplicáveis à vida animal. Estuda certos traços na conduta da vida, considerando-os como bons ou como maus e não assenta num juízo definitivo enquanto ignorar os fenômenos essenciais pelos quais a vida se regula. O capítulo respeitante à «moral animal» desvendou-nos essa conexão sob a sua forma concreta. Como vimos, fixando a nossa atenção numa espécie qualquer cuja duração seja desejável, os atos dos indivíduos dessa espécie que servem para lhes manter a vida e assegurar a da raça, são classificados por quem os observa como bons relativamente a essa espécie e considerados com uma certa aprovação, merecendo-nos ao contrário reprovação os atos com diferente tendência. No capítulo imediato que trata da Justiça infra-humana verificámos a condição previamente necessária para a realização do fim presumidamente desejável que vem a ser: que cada indivíduo colha os resultados bons ou maus da sua natureza privativa e das consequências delas derivadas. Vimos também que não existe no mundo animal inferior, força alguma que ponha obstáculos a esta condição prévia que determina a sobrevivência dos melhores adaptados. Tivemos, além disto, ocasião de demonstrar que, sendo, como é, tida por justa essa conexão entre a conduta e as suas consequências, a justiça no reino animal não é senão um aspecto ético sob o qual se apresenta a lei biológica em virtude da qual a vida em geral se mantem e evolui para formas superiores, lei que, portanto, é revestida da mais elevada autoridade possível. Com a vida em agrupamentos surge uma lei secundaria. Se um certo número de indivíduos vivesse numa intimidade e proximidade tal que haja facilidade de poderem entravar uns os atos dos outros, impedir-se mutuamente de atingirem os resultados desejados, os seus atos deverão mutuamente restringir-se de maneira a prevenirem o antagonismo e a dispersão do grupo que desse antagonismo resultaria. A realização dos atos de cada indivíduo deve sujeitar-se a uma delimitação tal que não impeça os atos dos outros indivíduos numa medida superior à do impedimento que cabe a cada um dos membros do grupo. Como mostrámos, nos animais de agrupamento praticam-se em larga escala essas restrições. finalmente, no capítulo intitulado «A justiça humana» vimos que esta lei secundaria, esboçada apenas em contornos vagos nos seres inferiores que vivem em agrupamentos, chegava a adquirir no homem, que é o primeiro dos seres de agrupamento, aplicações mais pronunciadas, mais definidas e mais complexas. Submetido às condições que a vida social impõe e afirmando-se em cada indivíduo, o princípio primário da justiça dá origem ao princípio secundário ou limitativo que se estende a todos os indivíduos existentes: as restrições mutuas de que o estado de associação carece para a realização dos atos simultâneos dos associados, constituem um elemento necessário da justiça. § 82 - A adaptação efetuada diretamente, indiretamente, ou de ambas as maneiras cumulativamente, regeu a estrutura cerebral do mesmo modo que regularizou a estrutura da parte restante do organismo: as funções mentais tendem, como as físicas, a adaptar-se às circunstâncias ambientes. O sentimento comum que impele todos os seres para a manutenção da sua liberdade de ação, acentua-se nos seres de organização superior: estes seres sentem além disso, até certo ponto, a necessidade que se impõe a cada um deles de agirem sem ultrapassarem os limites impostos pelas ações de outrem. Possuindo uma faculdade «de prever e de se lembrar» mais extensa que a dos outros seres superiores de agrupamento, o homem vai dando mostras cada vez mais nítidas destes dois traços de caráter à medida que progride a organização social de que faz parte, sendo quase nulas no estado em que o espírito de luta predomina e acentuando-se nitidamente nos períodos de paz prolongada. Manifesta-se em toda a parte onde os costumes se isentaram da herança dum conflito crónico entre a moral da amizade e a moral da inimizade, uma consciência nítida da justiça tanto no que respeita aos direitos pessoais como aos direitos alheios. Mas em todos os pontos onde os direitos dos homens, à vida, à liberdade e à propriedade, estão em incessante subordinação, e em que as populações se organizaram em exércitos para aumentarem o poder guerreiro nos pontos aonde, consequentemente, os homens adquiriram o habito de calcar aos pés os direitos de outros homens que não habitem outro território, o costume repele as sensações e as ideias que correspondem aos princípios, egoísta e altruísta, da justiça. Aparte, porém, esta restrição, a vida no estado associativo, desenvolve a influência predominante da simpatia abrindo caminho, é certo, ao sentimento egoísta da justiça, mas proporcionando também ocasião a que o sentimento altruísta da justiça se exerça e dê origem às ideias a esse sentimento correlativas. Com o andar do tempo, e à medida que os homens adquirem uma certa consciência moral dos seus direitos pessoais e dos direitos de outrem, a inteligência vai-se-lhes tornando mais apta para os compreenderem. Aparecem enfim instituições sociais correspondentes a necessidades cuja satisfação permite as atividades coletivas expandirem-se harmonicamente: essas instituições caracterizam-se na sua mais abstrata forma pela asserção de que a liberdade de cada um só pode ser restringida pelas liberdades análogas de todos. Este princípio fundamental tem, pois, uma dupla origem dedutiva. Deduz-se, em primeiro lugar, das condições anteriores à vida completa no estado de associação; e deduz-se, em segundo lugar, das formas do sentimento consciente que a natureza criou sob influxo dessas condições. § 83 - Estas conclusões atingidas por via dedutiva concordam com aquelas a que a dedução nos conduziu. Os homens, mediante a lição de acumuladas experiências foram levados a formularem leis em harmonia com os diversos corolários derivados do princípio da igual liberdade. A guerra não se preocupa com a vida humana, mas a paz atribui-lhe um caráter sagrado e os homens foram com o tempo chegados a considerar, sem exceção, como atentados, todas as usurpações mesmo as mais vulgares, dirigidas contra a integridade física. A escravidão esteve, nos tempos primitivos, quase universalmente espalhada: os progressos da civilização mitigaram-na gradualmente e, atualmente, já não há nas sociedades mais avançadas restrições para os direitos de moção e de locomoção. Tendo sido desconhecidos nos primitivos tempos, os direitos ao gozo não interceptado do ar e da luz são depois reconhecidos pelas leis. Embora durante o período de intenso predomínio da vida militar, a propriedade coletiva da terra caísse nas mãos do chefe da tribo e dos reis, tornando-se sua propriedade pessoal, o desenvolvimento do industrialismo conduziu ao reconhecimento de que o direito à propriedade privada da terra deve, em princípio, subordinar-se ao direito de propriedade suprema da comunidade e ao de que cada cidadão possui um título latente a participar do seu uso. Violado sem escrúpulos nos primitivos tempos em que se não respeitavam sequer os direitos à vida e à liberdade, o direito de propriedade veio sendo de mais em mais salvaguardado à medida que as sociedades acentuam o seu movimento de avanço. As leis modernas assegurando com um êxito crescente os direitos da propriedade material, reconhecem e mantem também, de mais em mais, os direitos da propriedade incorpórea, avigorando progressivamente as leis relativas aos inventos, à propriedade literária e ao impedimento da difamação e da calunia. Nas sociedades não civilizadas e nos inícios das sociedades civilizadas, o indivíduo, abandonado às suas próprias forças, não pó de contar senão consigo mesmo para defender a sua vida, a sua liberdade e os seus bens; porém nos estados subsequentes, a comunidade encarrega-se gradual e aumentativamente, de defender esses direitos do indivíduo, fazendo agir o governo instituído por essa comunidade. A não ser que se julgue a primitiva desordem social superior à ordem relativa que atualmente reina, torna-se forçoso admitir que a experiência dos resultados obtidos ratifica a afirmação de todos estes direitos capitais e confirma os argumentos de que nos servimos para os deduzir. § 84 - Á confirmação da experiência, vem juntar-se uma outra de natureza e de significação análogas. Ao passo que a comunidade, em virtude da sua capacidade coletiva, se incumbia gradualmente de salvaguardar os direitos de cada homem das agressões de outrem, cessou, também gradualmente, de violar ela própria esses direitos que no passado desconhecia. Os povos não civilizados e os povos de civilização primitiva negavam o direito de legar, ora em nome do costume ora em nome da lei, ou então, restringiam-no quase inteiramente, mas pelo contato com industrialismo crescente e com as formas sociais que a este são próprias, as restrições do direito de legar foram diminuindo até desaparecer quase inteiramente nas nações de mais adiantada organização industrial. Os governantes das sociedades grosseiras isolam habitualmente o direito à liberdade de troca pela imposição de monopólios, proibições e restrições; mas as sociedades modernas têm muito menor ingerência nas trocas realizadas em mercados do interior e a Inglaterra abstém-se quase inteiramente de intervir em mate ria de trocas com o estrangeiro. Os Estados europeus regulamentaram a indústria durante séculos ditando os processos que deviam empregar e os artigos que deviam fabricar: hoje, à parte as leis destinadas à proteção do operariado, todos tem a liberdade de fabricar como melhor lhes agrade os artigos que mais lhes convenham produzir. Originariamente, a autoridade regrava as crenças e os cultos; com o andar do tempo foi renunciando a imiscuir-se nesse assunto e, atualmente as sociedades mais avançadas deixam a cada um a liberdade de crê r ou de não crer e de praticar um culto ou de não praticar culto algum. O mesmo aconteceu com os direitos de liberdade de palavra e de liberdade de publicação: desconhecidos no início da civilização, os que se atreviam a exerce-los eram imediatamente condenados; pouco a pouco, porém esses direitos obtiveram a sanção das leis escritas. Os governos deixaram também de intrometer-se noutras categorias de atos privados. Antigamente regravam o consumo e a quantidade dos alimentos e prescreviam até o número das refeições. Interdizia-se às pessoas inferiores ás de certas categorias o uso de vestuário de certas cores e de certos tecidos, as peles os bordados e as rendas; e na mesma ordem de ideias enumeravam as armas que podiam trazer ou empregar. A lei designava as pessoas autorizadas a serem servidas em baixela de prata e as que podiam usar cabeleira comprida. A autoridade imiscuía-se nos próprios divertimentos: eram defesos certos jogos e condenados certos exercícios corporais. Os tempos modernos repelem estas violações da liberdade individual e admitem implicitamente o direito de cada um adoptar a maneira de viver que mais lhe quadra. A não ser pois que se queiram restabelecer as leis sumptuárias e outras análogas e que se reclame a abolição da liberdade de testar, da liberdade de troca, da liberdade de trabalho, da liberdade de crenças e da liberdade de palavra, torna-se forçoso reconhecer, uma vez mais que as nossas deduções da forma da justiça têm sido progressivamente justificadas pela verificação dos efeitos maléficos da sua violação. § 85. - A economia política proporciona-nos toda uma série de verificações indutivas, a que até agora não fizemos referência. A economia política ensina que são nocivas as ingerências do Estado, sob a forma de proibições ou de subvenções comerciais: a lei de igual liberdade condenava já em nome da justiça. A economia política demonstra as vantagens da liberdade das especulações comerciais, mesmo relativamente a géneros alimentícios; o princípio fundamental da equidade, justifica esta asserção. A economia política prova que as penalidades contra a usura, tem funestas consequências. A lei de igual liberdade havia-as condenado já, por implicarem usurpações dum direito. A economia política demonstra que as maquinas, longe de serem nocivas para o conjunto da população, contribuem para o seu bem-estar; a lei de igual liberdade, reprova de acordo com essa ciência, as medidas destinadas a restringir-lhes o emprego. A economia política, estabelece como princípio que é impossível e desvantajoso regular artificialmente as tabelas dos salários e as tarifas dos preços; a moral interdiz também essa regulamentação, em nome da lei de igual liberdade. A economia política chega noutros pontos ainda, a conclusões que a ética tinha já deduzido. Exemplo: o comercio dos bancos e a inanidade de esforços para proteger uma indústria à custa das outras. Que concordância de provas nos dão os casos apontados? provam-nos que a conformidade com a lei de igual liberdade, assegura o melhor que é possível não só a harmonia, como também a eficácia da cooperação social. § 86. - Convergem, pois, para uma mesma conclusão dois argumentos dedutivos e três argumentos indutivos. O estudo da lei da vida, tal como ela se realiza nas condições sociais e a prova que nos dá à expressão do sentimento consciente da moral, fruto da disciplina contínua que a vida social impõe, conduzem-nos por caminho direito ao reconhecimento de que a lei de igual liberdade é a suprema lei moral. As conclusões gerais baseadas na experiência comum do gênero humano e registadas na sua legislação progressiva, levam-nos indiretamente ao mesmo reconhecimento, porquanto estabelecem que o progresso da civilização teve e tem por efeito um acréscimo gradual da proteção dos direitos do indivíduo pelos governos e um decrescimento simultâneo e gradual das usurpações feitas pelos governos a esses direitos. O facto de a economia política recomendar o que a nossa teoria declara equitativo, vem ainda confirmar mais este acordo. Lisonjeia-me a esperança de ter facilitado este princípio da quíntupla raiz, provando que os argumentos a posteriori, fornecidos pela história se harmonizam com os argumentos a priori tirados da biologia e da psicologia. Se há pensadores a priori que se obstinam em rejeitar as conclusões que estão em desacordo com as suas opiniões, há também pensadores a posteriori que negam com uma obstinação igual à dos primeiros o valor das opiniões intuitivas. Tem fé nas cognições que resultam da experiência acumuladas pelo indivíduo, mas não ligam nenhum credito às experiências acumuladas pela raça. Evitemos esta dupla intolerância. O acordo da indução com a dedução, proporciona-nos uma prova de inexpugnável solidez; fortificados pela concordância de numerosas induções e deduções, foi que nós atingimos a mais sólida certeza que é possível haver. CAPÍTULO XX Os Direitos das mulheres § 87. - Pus até agora de parte um assunto que ocorria naturalmente ao espírito, nos capítulos em que nos ocupámos do princípio fundamental da justiça. Vou tratá-lo agora, porque me parece proporcionar-lhe uma apropriada introdução à matéria de que vamos versar. Dir-se-á: «Porque é que os homens não hão-de ter direitos proporcionais? Porque é que a esfera de ação do indivíduo superior, não há de ser mais vasta que a do indivíduo inferior? Um homem de elevada estatura ocupa mais espaço do que outro de pequeno talhe e tem precisão de consumir maiores quantidades das necessidades da vida e as suas energias carecem dum campo mais vasto para se desenvolverem. A razão não acha conformidade em que as atividades dos grandes e dos pequenos, dos fortes e dos fracos, dos superiores e dos inferiores sejam confinadas por limites demasiado estreitos para uns e demasiado amplos para outros.» A isto responderei em primeiro lugar que nos expomos a perder-nos se interpretarmos à letra as metáforas a que muitas vezes se é força do a recorrer. Embora tenhamos figurado as liberdades iguais dos homens como espaços em que elas se desenvolvem e delimitam mutuamente, essas liberdades não se manifestam na realidade de um modo tão simples. O homem inferior pelo facto de reclamar um direito igual ao da integridade física do homem superior em nada atenta contra a integridade deste último. Reclamando igual liberdade de se deslocar e de trabalhar, não impede também o outro de que se desloque e de que trabalhe. Conservando para si somente os ganhos resultantes do emprego da sua atividade, de maneira alguma impede o homem superior de se apropriar do produto das suas atividades, produto que naturalmente ultrapassará o das diminutas atividades do inferior. Responderei, em segundo lagar que o recusar-se à faculdade inferior uma esfera de ação igual à da faculdade superior, equivaleria a sobrepor uma enfermidade a outra enfermidade. Um corpo raquítico ou disforme, de sentidos imperfeitos, um temperamento fraco ou uma inteligência obtusa são somente motivos fortes de piedade. Se fosse possível acusar a natureza de injusta, teríamos o direito de dizer que é injusto terem uns faculdades inferiores ás de outros e estarem assim desarmados em grande parte para o combate da vida. Que dizer, pois, da proposição que pretende que juntemos à desvantagem de ser dotados de faculdades inferiores à de só dispor de mais restritas esferas para exercer as suas menores faculdades? A simpatia impelir-nos-ia antes de compensar essas incapacidades hereditárias com um campo de ação mais extenso. O menos que podemos fazer-lhe é, evidentemente, conceder-lhe a mesma liberdade de se expandir na medida dos meios que lhe seja possível empregar. Ha ainda uma terceira resposta e é que embora fosse equitativo proporcionar as liberdades dos homens às suas respectivas capacidades, seria impossível fazê-la porque não dispomos de meio algum para medir nem umas nem outras. A aplicação do princípio de igualdade não oferece, pelo contrário, na maioria dos casos dificuldade. Se A matar B sem que tenha havido agressão anterior, ou o calcar aos pés ou o encarcerar, é claro que estes dois homens se atribuíram diferentes liberdades de ação. Se A não pagar a D o preço convencionado de mercadorias que lhe comprou é obvio que os dois usaram de graus diferentes de liberdade, por isso que o contrato foi executado somente por uma das partes contratantes. A atribuição de liberdades proporcionadas às capacidades necessitaria a determinação do quantum existente de cada faculdade física e mental e a repartição proporcional das espécies particulares da liberdade que a cada faculdade competirem. Ora não há modo de executar estas duas operações. Independentemente, pois, de qualquer outro motivo exigir-nos-ia a prática que considerássemos como iguais as liberdades dos homens quaisquer que fossem as suas faculdades. § 88. - Uma simples substituição de termos permite-nos aplicar estes argumentos à relação que existe entre os direitos dos homens e os direitos das mulheres. Não vamos fazer pormenorizadamente a comparação das capacidades duns com as das outras. Não é aqui o lugar próprio para isso e basta-nos por agora notar o facto incontestável de que algumas mulheres gozam de uma força física superior à de certos homens e de que outras mulheres gozam de faculdades mentais superiores às do comum dos homens. Se o quantum de liberdade devesse, pois, regular-se pelas capacidades e se a operação fosse possível não teríamos de entrar em consideração com o sexo para a partilha. A dificuldade apresentar-se-ia sob um outro aspecto, se, pondo de parte os casos excepcionais, tomassem os para base a proposição de que a média das forças mentais femininas é, como a média das suas forças físicas, inferior à sua média nos homens. Ser-nos-ia impossível também regularmo-nos por este princípio pois que não haveria modo de estabelecer à proporção que existe entre as duas médias e de estabelecer exatamente as partes proporcionais das esferas de atividade atribuíveis a cada uma. Como já acentuámos, em face de diferenças a estabelecer, a generosidade, que é favorável à igualdade, impelir-nos-ia de preferência a compensar faculdades menores com facilidades maiores. Mas, pondo mesmo de parte a generosidade, exige a equidade que se não beneficiarmos artificialmente as mulheres não devemos fazer nada que artificialmente as prejudique. Se considerarmos isoladamente os homens e as mulheres como membros independentes de uma mesma sociedade em que cada um e cada uma deve prover às suas necessidades o melhor que possa, depreende-se que não é equitativo sujeitar as mulheres a restrições concernentes à ocupação, à profissão ou à carreira que desejam seguir. É preciso que elas gozem da mesma liberdade que os homens de se prepararem para os modos de vida que prefiram e de colherem os frutos dos conhecimentos e das aptidões que adquirirem. § 89. - A equidade ordena que as mulheres conservem depois do casamento, de entre os direitos iguais aos dos homens que antes do casamento devem ter, todos aqueles que não prejudiquem necessariamente o estado conjugal; tais são, os direitos de integridade física, à propriedade dos bens obtidos pelo trabalho ou pela sucessão, os direitos à liberdade de crenças e de manifestação de opiniões, ele. Alguns destes direitos não podem sofrer outra restrição que não seja a proveniente das cláusulas implícitas ou explicitas do contrato que voluntariamente subscrevam. Como a condição das mulheres casadas varia conforme os lugares, estas restrições devem naturalmente variar do mesmo modo. A falta de dados precisos, que só os casos particulares, infinitamente variáveis podem fornecer, contentar-nos-emos com indicações aproximadas. Para os bens, por exemplo, não é contrário à razão e à equidade assinar ao marido, todas as vezes que ele tem a seu cargo o sustento e educação da família, o usufruto dos bens que noutras circunstâncias pertenceriam à mulher; da carência desta atribuição poderia resultar que a mulher reservasse para seu exclusivo proveito esses bens e que se recusasse a contribuir para os encargos comuns do lar. Somente no caso em que ela suporte uma parte igual do encargo de sustentar a família é que parece justo que conserve um direito de propriedade igual, ou inteiro. Não pretendemos com tudo que os encargos devam ser absoluta e reciprocamente partilhados. Afigura-se à primeira vista que no caso, sendo iguais os direitos de propriedade, a sustentação dos filhos e o custeio das despesas restantes do casal tanto incumbem a um como ao outro dos esposos. Todavia, a existência de funções onerosas, para uma das partes e das quais a outra está liberta, torna-a incapaz de realizar uma vida ativa e opõe-se a regime matrimonial. A única coisa possível é um compromisso variável com as circunstâncias; o cumprimento por parte da mulher dos deveres maternais e domésticos constituirá de ordinário o equivalente justo dos esforços que o marido faz para adquirir os recursos necessários ao casal. Mais difícil é ainda precisar os direitos de fiscalização recíproca dos atos de cada cônjuge e dos atos comuns do lar. Convêm entrar em linha de conta com as posições relativas de cada um deles no ponto de vista dos seus serviços, dos bens com que entrou para o casal e da natureza de cada um destes fatores, que variam infinitamente de caso menor para casamento. É impossível também que o marido e mulher possam em cada caso particular conformar-se com a lei de igual liberdade, logo que surjam entre as vontades dos dois conflitos que não possam resolver-se de comum acordo e em que um só tenha de decidir sobre a conduta a seguir; só na média dos casos essa conformidade será realizável e, por isso, as circunstâncias decidirão a quem deve conferir-se nos casos conflituosos o direito de resolver por si só. Acrescentaremos, porém, que a balança da autoridade deverá pender para o lado do homem, dotado geralmente dum juízo mais ponderado do que o da mulher e, tanto mais que é ele quem, de ordinário, alcança os meios para realização das vontades comuns e particulares dos cônjuges. Mas nestes casos o raciocínio tem um limitado império e são de ordinário os caráteres das partes interessadas que os conseguem. A única influência que as considerações morais podem exercer é a de temperar o exercício da supremacia que se estabeleceu. Resta-nos abordar outro ponto que é tanto ou mais complicado que o anterior. Ha nos lares decisões quase quotidianas a tomar a respeito da educação dos filhos e em caso de separação dos esposos é forçoso decidir qual deles deve ficar encarregado de os educar e manter. Quais serão então os títulos relativos do marido e da mulher? Os títulos físicos diretos parecem de igual valor, conquanto a prolongada nutrição anterior e posterior ao nascimento aumente os títulos da mãe. Por outro lado, o trabalho do pai é que normalmente, permite à mãe subsistir e alimentar a criança. Sejam ou não julgados válidos estes todos contraditórios, não parece que o título da mãe possa ser inferior ao do pai. Em- face do problema da educação, a justiça afigura-se favorável a uma transação a respeito da qual o raciocínio nos permite dizer isto: convém que a autoridade materna predomine nas primeiras idades dos filhos e que a do pai predomine depois. A natureza materna adapta-se melhor do que a paterna às necessidades da primeira e da segunda infância, ao passo que o pai é um guia mais seguro e mais experimentado para preparar os filhos, especialmente os do sexo masculino, para a luta pela vida. Mas parece, por outro lado, contrário à equidade e à felicidade dos filhos que num momento qualquer a autoridade dum dos pais exclua inteiramente a do outro. O bem dos filhos dá outras indicações ainda para o caso de separação judicial e de conflito dos titulas a posse deles; efetuar-se uma partilha igual, sempre que for possível, ficando os mais novos com a mãe e os mais velhos com o pai. É evidentemente necessário procurar sempre uma transação que só as circunstâncias especiais de cada caso podem ditar. Acrescentarei que não é urgente nem na Inglaterra, nem na América conceder mais vastos direitos a mulher no ponto de vista da sua associação domestica com o homem. Nalguns casos o que se faz sentir é até uma necessidade oposta. Mas há outras sociedades civilizadas que reconhecem os direitos das mulheres com excessiva parcimônia: entre estas citarei especialmente a Alemanha. (Entre outras razões que me levaram a formular esta reflexão tenho a da lembrança duma conversa que ouvi um dia a dois alemães residentes em Inglaterra. Contavam, rindo com desdém, que tinham visto num domingo, ou num qualquer dia de festa, operários ingleses com os filhos ao colo para pouparem as forças às mulheres. Às suas chutas senti asco, mas não pelos opera rios ingleses). § 90. - Indiquemos, como precedentemente temos feito para os outros direitos, o largo caminho seguido pelo costume e pela lei para chegar a conformidade com a ética. O conjunto das tribos não civilizadas faz tanto caso do direito das mulheres como do dos animais. Não há excepção senão para alguns povos primitivos que, sem pregarem as virtudes chamadas cristãs, se contentam com praticá-las e para as raras tribos inteiramente pacificas que se encontram aqui e além e que, de harmonia com a admirável conduta geral que seguem em tudo, tratam as mulheres com tanta equidade como doçura. Mas mesmo nas mais degradadas tribos existe o respeito dos direitos da mulher na medida que permite alimentar e educar os seus filhos: se não existisse esse direito, a tribo extinguir-se-ia. Muitas vezes, porém o respeito dele reduz-se a um mínimo indispensável para prevenir a extinção. O primeiro dos direitos da vida era comumente recusado às suas mulheres pelos Fidjeanos que podiam matá-las e come-las se lhes apetecesse fazerem-no, pelos Fogueanos e os Australianos mais selvagens que sacrificavam as mulheres velhas às necessidades da alimentação e pelos numerosos povos que enviam as viúvas a procurarem e a juntarem-se com os maridos no outro mundo. Nestes estados inferiores nenhuma liberdade é reconhecida às mulheres que passam uma vida de escravas e como tais podem ser vendidas: o casamento nesses estados tem o rapto por base. Aonde os costumes consideram a mulher como um objeto possuído, o direito de propriedade distinto mal pode existir para ela. Nos inicias da civilização só vagamente pois se reconhece nas mulheres este segundo princípio fundamental. É verdade que em muitos casos a situação da mulher se modifica pela influência do sistema de descendência na linha feminina; todavia é certo também que nas sociedades grosseiras, onde o temor das represálias é a única restrição que existe às agressões entre os homens, os direitos das mulheres são habitualmente desconhecidos. Ocupar-nos-ia um largo espaço a pormenorizada filiação do estatuto da mulher. Sem nos determos nas sociedades antigas em que, como no Egypto, a descendência em linha feminina conferia às mulheres uma situação relativamente elevada, bastar-nos-á notar que nas sociedades que se formaram pela agregação de grupos patriarcais, os direitos das mulheres, que nos primeiros tempos eram pouco melhor reconhecidos que entre os selvagens, progrediram gradualmente no decurso dos dois mil últimos anos. Os Aryas, que cobriram toda a Europa, mantinham às mulheres uma situação de absoluta subordinação exceto, como refere Tácito, nos casos em que adquiriam uma situação melhor tomando parte nos perigos da guerra. Os Germanos primitivos compravam as mulheres, e o marido tinha o direito de vender ou de matar a sua. A sociedade teutónica primitiva e a primitiva sociedade romana mantinham a mulher num estado de perpétua tutela e tornavam-na assim incapaz dum direito de propriedade distinto. O mesmo acontecia na Inglaterra primitiva onde os homens compravam as noivas sem as consultarem sobre o contrato de que eram objeto. Este sistema veio a adoçar-se com o andar dos tempos pouco a pouco. Em Roma, deixou de ter observância a lei que ordenava que um cortejo fosse buscar a noiva para a conduzir ao esposo. O direito de vida e de morte extingue-se, mas para ressurgir depois, como quando Angevino o Negro fez queimar sua mulher. A observação geral dos fatos mostra que a sujeição da mulher se torna menos radical à medida que a vida se torna menos belicosa. Com o declinar do sistema do estatuto e com o descobrimento do sistema do contrato, que caracteriza o industrialismo, melhora a condição das mulheres. As assinaturas femininas que se encontram a subscreverem os documentos das guildas, esclarecem de curiosa maneira esta tendência, embora a condição da mulher fora da guilda continuasse quase a mesma do passado. Na Inglaterra e na América, em que o tipo industrial da organização social está muito desenvolvido, o estatuto legal da mulher é superior ao do continente europeu, onde o militarismo conserva uma influência maior. Principalmente na Inglaterra depois do desenvolvimento nos tempos modernos das instituições livres que caracterizam o predomínio do industrialismo, a condição das mulheres tem-se aproximado sucessiva e rapidamente da dos homens. As deduções éticas harmonizam-se, pois, uma vez mais com as induções históricas. Nos capítulos precedentes vimos cada um dos corolários da lei de igual liberdade afirmar-se de mais em mais à medida que os homens vão atingindo uma vida social elevada. O mesmo aconteceu relativamente às mulheres. Com o decurso da evolução adquiriram um conjunto de direitos que primitivamente lhe eram inteiramente recusados. § 91 - Falta ainda comparar, no ponto de vista da ética, a posição política das mulheres com a dos homens, mas é-nos impossível fazê-lo, por não termos tratado ainda a preceito dos direitos políticos dos homens. Quando tivermos abordado o exame dos chamados direitos políticos, veremos que há razão para que se modifiquem fundamentalmente as opiniões correntes. Pelo motivo apontado, não podemos tratar ainda, por forma adequada, dos direitos políticos das mulheres. Contudo um dos aspectos do problema é, desde já, suscetível de elucidação. Os direitos políticos são os mesmos para a mulher e para o homem? Presentemente há uma corrente de opinião que se inclina para a afirmativa. Sustenta-se que existe um paralelismo entre a identidade dos direitos já expostos, que resultam da comunidade de natureza dos dois sexos e a identidade dos seus direitos a intervenção nos negócios públicos. Esse paralelismo parece à primeira vista justificado, mas a reflexão demonstra que o não é. A capacidade cívica não implica somente o direito de votar e de exercer por intervalos certas funções representativas, implica também· obrigações onerosas. E, pois, que assim é deve ela abranger não só a partilha de vantagens com a participação dos encargos. É absurdo chamar igualdade a um estado de coisas que conferiria gratuitamente a umas um certo poder, em troca do qual as outras se sujeitam a riscos. Qualquer que seja a extensão dos direitos políticos, a defesa nacional submete cada homem em particular a perda da sua liberdade, a privações e ao perigo eventual da morte; no dia em que as mulheres obtiverem os mesmos direitos políticos, sem se sujeitarem às mesmas obrigações, a sua situação ficará sendo de superioridade e não de igualdade. A não ser que forneçam ao exército e a marinha um contingente proporcional ao masculino o problema da pseudo-igualdade dos «direitos políticos» das mulheres não poderá ser discutido senão quando a humanidade tiver atingido o estado de paz permanente. Logo que seja ou não desejável o estabelecimento dessa igualdade, só então poderão ser igualados os direitos políticos dos dois sexos. Esta objeção, porém, não é aplicável á com participação das mulheres no governo da administração local. Para lhes recusar tal com participação seria preciso invocar outras razões. CAPÍTULO XXI Os Direitos das Crianças § 92 - O leitor recorda-se por certo de que desde o princípio reconhecemos a distinção fundamental que existe entre a moral da família e a moral do Estado e de que o bem da espécie exige a manutenção destes dois princípios antagónicos. Resulta daqui que os direitos das crianças são de natureza inteiramente diferente da dos direitos dos adultos. Como as crianças se transformam gradualmente em adultos, a relação entre estas duas categorias de direitos muda continuamente e não pode estabelecer-se senão em resultado de transições, variáveis à medida que se opera a transformação. A conservação da raça implica a auto sustentação dos seus membros e o sustento da progenitura. Como supomos que a conservação da raça constitui um fim recomendável devemos concluir que é justo que sejam realizadas estas duas sustentações. Se as condições fora das quais estas condições se não podem realizar atingem o que nós chamamos direitos, resulta daí que as crianças têm direitos - empregamos este termo para evitarmos a confusão que poderia haver com o emprego da frase: títulos legítimos - às coisas materiais que as ajudam a viver e a crescer e que os pais têm por dever procurar-lhes. Como para os adultos os direitos são as formas especiais e correspondentes que a liberdade de ação geral necessária toma para procurarem a subsistência, o vestuário, o abrigo, etc., a menoridade terá legítimos títulos a subsistência, ao vestuário ao abrigo, mas não às formas da liberdade que tornam possível a sua aquisição. A criança por não ter ainda as faculdades desenvolvidas é incapaz de ocupar vários dos sectores da esfera da atividade preenchida pelo adulto. Durante este período de incapacidade, torna-se absolutamente preciso proporcionar-lhe gratuitamente vantagens que lhe são necessárias e que se não podem realizar senão em regiões de atividade que lhe são inacessíveis. Os seus títulos deduzem-se da mesma necessidade primária - a conservação da espécie - e tem a mesma validade que os direitos que a lei de igual liberdade concede ao adulto. Empreguei voluntariamente esta distinção verbal entre os direitos dos adultos e os títulos legítimos das crianças: a consciência associa por tal maneira os direitos às atividades e aos produtos das atividades que alguma confusão resultaria se as aplicássemos a crianças e a jovens incapazes de se entregarem ao exercício dessas atividades e de recolher os produtos delas. § 93 - Sendo o fim último a conservação da espécie, as crianças têm, pois, numa larga medida títulos legítimos aos produtos das atividades mais que às esferas de ação dessas atividades; todavia tem títulos legítimos às partes das esferas da atividade de que elas possam usar com vantagem. Se a conservação da espécie constitui um desideratum, os progenitores devem para que ela se realize prover os menores de cada geração não somente da subsistência, do vestuário e do abrigo necessário, mas proporcionar-lhes as ocasiões indispensáveis para que possam exercer e desenvolver as suas faculdades e prepara-los assim para a adaptação ávida de adultos. Os próprios seres inferiores cumprem até certo ponto esta necessidade, embora duma maneira inconsciente, excitando os seus descendentes menores a servirem-se dos membros e dos sentidos. Esta preparação já necessária à vida comparativamente simples das aves e dos quadrupedes é ainda mais indispensável à vida complexa da espécie humana; a obrigação de a prestar e de a auxiliar torna-se ainda mais imperativa. Não é possível dar uma resposta cabal à pergunta que naturalmente ocorre, sobre qual deve ser o limite até ao qual a vida dos adultos deve subordinar-se à das crianças. Ha inumeráveis espécies de seres inferiores que sacrificam por completo cada geração a geração seguinte: Os pais morrem depois de terem desovado. Essa subordinação não pode ser a mesma que para os animais superiores, os quais, precisam rodeá-los de cuidados incessantes, que se prolongam durante o período do crescimento ou que te em de educar gerações provindas de várias e sucessivas procriações. O bem da espécie exige, nestes casos, que os pais continuem a viver cheios de vigor e a alimentar e educar a sua progenitura enquanto dure a sua menoridade. Tal é o caso particular do homem, por causa da duração prolongada do período durante o qual as crianças precisam ser assistidas. Resulta daqui que na avaliação dos direitos relativos das crianças e dos pais, os sacrifícios destes últimos não devem ser ampliados até ao ponto de se tornarem incapazes para o pleno cumprimento dos seus deveres paternais. Os sacrifícios excessivos acabariam por prejudicar a prole e a espécie. O bem e a felicidade dos pais constituem, por outro lado, um fim que concorre para o fim geral; existe, pois, uma razão moral, que lhes prescreve a moderação das suas subordinações. § 94. - Passemos dos títulos legítimos das crianças em relação aos pais, aos seus deveres correlativos para com estes últimos. Teremos, neste ponto, de nos contentar outra vez com uma transação que gradualmente se modifica no decurso da evolução da infância para a maioridade. A criança tem um título legítimo ao vestuário, ao abrigo e aos demais auxiliares do seu desenvolvimento, mas não tem direito à direção do seu eu que se associa à auto sustentação. Duas razões se opõem a isso: o exercício dessa direção seria maléfico para apropria criança e implicaria o desconhecimento do direito dos pais sobre ela, reconhecimento que constitui a recíproca do título da criança em face dos pais. A primeira dessas razões salta aos olhos e apenas se torna necessário pormenorizar a segunda. Em verdade; não é possível proceder a avaliação destes títulos pela forma que a lei de igual liberdade nos permite fazer para os adultos; todavia, inspirando-nos nela, melhor ou pior, acha-se que em troca da subsistência e dos outros cuidados prestados aos filhos, os pais recebem uma equivalência sob a forma de obediência e da pratica de serviços miúdos. Não obstante, no ponto de vista do fim último, o bem da espécie, estas relações reciprocas entre maiores e menores, devem aproximar-se das relações entre adultos à medida que os últimos adquirem e desenvolvem a faculdade de auto sustentação e da direção de si próprios. Só o exercício das atividades independentes ou autónomas, pode tornar os homens capazes dessas relações: para a realização do fim último, torna-se preciso um acréscimo gradual de liberdade. A equidade, implica, por outro lado a mesma solução. A criança que antes da idade adulta consegue subsistir em grande parte por si própria não adquire um título justo a uma soma de liberdade proporcional? É claro que a discordância essencial que subsiste entre a moral da família e a do Estado, enche de dificuldades a passagem da direção pela família para a direção pelo Estado. O que se deve pretender é que em cada caso particular, não perdendo nunca de vista o bem da raça, a transigência intervinda estabeleça uma compensação dos títulos das duas partes e não sacrifique sem motivo nenhum dos dois direitos em presença. § 95. - A evolução dos tipos sociais inferiores para os tipos sociais superiores, acusa um reconhecimento crescente dos seus títulos legítimos, que é mais patente a respeito das crianças do que das mulheres: este progresso manifesta-se igualmente em relação à vida, à liberdade e aos bens das crianças. O costume e a lei autorizam ou autorizaram o infanticídio em todas as regiões do globo e em todas as variedades humanas, indo por vezes essa autorização até ao sacrifício de metade dos recém-nascidos. Essas eliminações são especialmente frequentes nos pontos onde, por falta normal de subsistência, se teme um excesso de expansão numérica da tribo: nestes casos imolam-se de preferência as filhas por serem inaptas para a guerra. Na Grécia e na Roma primitivas em que o pai tinha o direito de vida e de morte sobre os filhos, a lei também não protegia os direitos dos menores, embora o costume os tenha respeitado mais, talvez, do que a legislação. Aconteceu o mesmo com os celtas e os primeiros teutões: o costume que tinham de exporem as crianças e de as matarem assim indiretamente persistiu neles por muito tempo, a despeito de haver sido condenado pela igreja cristã. A liberdade das crianças não era, provavelmente, mais respeitada que a sua vida. Vendiam-nas frequentemente para serem adoptadas ou escravas. Na atualidade, efetuam-se trocas de crianças entre os fogueanos, os naturais da Nova Guiné e da Nova-Zelândia, os Diaks, os Malayos e muitos outros povos não civilizados, que neste particular como em tantos outros, seguem os exemplos dos antepassados dos homens civilizados. Os costumes hebraicos permitiam a venda das crianças e a sua retenção em pagamento de dívidas. Os romanos venderam-nas mesmo sob o regime imperial e depois da implantação do cristianismo. Os celtas da Gália entregaram-se a esse tráfico até à sua supressão pelos éditos dos imperadores romanos, e os Germanos até ao reinado de Carlos Magno. As liberdades dos filhos não eram violadas unicamente no que essas liberdades tinham de fundamental, mas como era natural que acontecesse, de outras maneiras secundárias. Um Romano, tivesse a idade que tivesse, não podia casar sem consentimento paterno. O desconhecimento dos direitos à vida e à liberdade era acompanhado pelo desconhecimento do direito de propriedade. Coisa alguma podia pertencer ao filho que dele não fizesse parte e foi necessário que os jurisconsultos inventassem sutilezas para permitirem aos filhos dos romanos a aquisição de direitos pessoais sobre certas categorias de bens; tais como os despojos de guerra e os emolumentos dos cargos civis. Não nos demoraremos na descrição dos estados por que passaram os títulos legítimos dos filhos antes de virem a adquirir o largo reconhecimento que tem nas sociedades civilizadas. Por sucessivas modificações, foi-se concedendo gradualmente à juventude uma grande liberdade que, em determinados países e em determinados casos, como nos Estados Unidos, ultrapassa os limites do exigível e do justo. O que principalmente convêm salientar, é que o reconhecimento dos direitos da infância caminhou mais depressa e foi até mais adiante, nos países em que o tipo industrial se desembaraçou mais completamente do tipo militar. Em França, as crianças, até à Revolução francesa, eram tratadas como se fossem escravas. Os filhos podiam ser encarcerados à requisição paterna, mesmo quando tivessem atingido já a idade adulta; havia pais que usavam, por vezes, desse poder. As filhas eram recolhidas em conventos, mesmo contra vontade. Só depois da Revolução, «os filhos foram proclamados e se subtraiu a liberdade individual ao arbítrio das cartas de prego, obtidas pelos pais injustos ou cruéis.» Na Inglaterra, embora nos séculos passados os pais fossem duros para os filhos, não tinham o direito de os fazer prender sem motivo. Todavia ainda hoje os filhos, mesmo quando maiores, transigem com a vontade paterna, quando ela se opõe ao casamento; esta oposição é, porém, desprovida de qualquer sanção legal. Enquanto que no continente, os pais desempenham um preponderante papel em matéria de casamento, é fácil em Inglaterra, casar contra as indicações paternais. A reprovação que esse facto provoca, é insignificante. Ha um enormíssimo contraste entre os estados primitivos, em que podia dar-se a morte a uma criança tão impunemente como a um animal, e os tempos modernos em que o infanticídio é equiparado ao assassinato, em que o aborto é classificado como um crime, em que se punem os pais por maus tratos e insuficiência de alimentação dos filhos, em que se estatui a tutela para os menores e em que se reconhecem capazes de propriedade. § 96. - Salientemos outra vez ainda a concordância da teoria com a prática - das injunções da moral e dos progressos da lei escrita, - das deduções dos princípios fundamentais e das induções baseadas na experiência. Sem perdermos conjuntamente de vista a moral da família e a moral do Estado e a necessidade duma transação entre estas duas morais, transação que se vai modificando no decurso da transição da infância para a idade adulta, sem desviarmos a atenção do bem do indivíduo nem da conservação da raça, chegámos a conclusões duma aproximada precisão acerca dos títulos legítimos das crianças. Os fatos históricos confirmam a posteriori as conclusões obtidas a priori e mostram-nos que a evolução dos tipos inferiores para os tipos superiores das sociedades, é acompanhada por uma adaptação crescente dos usos e das leis às exigências da moral. CAPÍTULO XXII Os chamados direitos políticos § 97 - É pecha vulgar dos homens preocuparem-se com as causas próximas e despreocuparem-se das causas distantes. Atribui-se correntiamente a força duma locomotiva à ação do vapor, quando o vapor é apenas um intermediário e não tem poder algum iniciador: o iniciador é o calórico da fornalha. Não compreendem que a máquina a vapor é na realidade uma máquina de calor, que não difere das outras máquinas movidas pelo calor, como por exemplo as máquinas a gás, senão no sistema de peças de que se serve para transformar a moção molecular em moção molar. Este incompleto conhecimento das relações diretas e esta ignorância das relações indiretas viciam de ordinário os raciocínios relativos aos negócios sociais. Um indivíduo manda construir uma casa, rasgar um caminho, enxugar um campo e a impressão primeira que se tem é a de que esse indivíduo fornece trabalho. A ideia de trabalho não se liga a ideia da subsistência que ele proporciona e o trabalho acaba por ser considerado como sendo, por si mesmo, uma vantagem. Imagina-se assim que o aumento das quantidades de objetos ou dos meios que satisfazem as necessidades humanas não constitui um bem, - e que este bem consiste na obtenção do trabalho que se procura. Daqui tantos erros que são matéria corrente. Diz-se vulgarmente que o incêndio destruidor beneficia o comercio e que as máquinas constituem um prejuízo para as classes populares. Tais erros evitar-se-iam se os relacionássemos com a causa última: o produto, em vez de os relacionarmos com a causa próxima: o trabalho. O mesmo se passa relativamente ao uso da moeda. O espírito humano associa a ideia de valor às moedas por cuja troca obtemos os objetos que desejamos e despreocupa-se dos objetos comprados com ela; todavia são os objetos que na verdade tem valor, pois que só eles nos proporcionam a satisfação das nossas necessidades. A constante experiência do seu poder de aquisição associa de tal maneira a ideia de valor às promessas de pagamento que a opinião identifica a sua abundancia à riqueza, apesar de as promessas de pagamento não terem, por si mesmas, valor algum. Supõe-se que basta emitir profusamente notas de banco para assegurar a prosperidade nacional. Tudo isto se evitaria se o raciocínio se formulasse em termos de artigos produzidos em lugar de se formular em sim bolos do seu valor. Na educação da juventude, encontra-se um outro exemplo dessa usurpação do que é próximo e dessa expulsão do que é remoto, do esquecimento dos fins e da preocupação absorvente com os meios que os produzem. Houve tempo em que o conhecimento das línguas grega e latina nas quais uma grande parte da ciência antiga havia sido expressa era o único meio de a adquirir: o estudo dessas línguas não passava pois dum simples instrumento. Hoje, porém que a ciência antiga está transladada e vulgarizada nos idiomas contemporâneos e acrescida de uma profusão de conhecimentos bem mais importantes que os que a antiguidade nos legou, persiste-se ainda em ensinar o grego e o latino, considerando-se, na prática, esse ensino como constituindo, por si mesmo, um fim e excluindo-se o primitivo ponto de vista com que o estudo dessas línguas era feito. Pelo facto de um estudante se familiarizar medianamente com essas línguas mortas, passa já por instruído embora não tenha adquirido senão o mínimo das ideias que a antiguidade transmitiu e desconheça por completo a quantidade imensamente maior e imensamente mais preciosa de ideias que das idades grega e latina para cá se foram acumulando em investigações seculares. § 98 - A observação geral feita e apoiada em numerosos exemplos no parágrafo anterior aplana-nos o caminho que vamos seguir. A confusão entre os meios e os fins, e a prossecução duns em detrimento dos outros, vicia profundamente as correntes da opinião pública e dá origem a erros que em matéria de direitos políticos passam a adquirir foros de cidade. No rigoroso emprego do termo, não existem outros direitos além dos que anteriormente enunciámos. Não sendo os direitos, como vimos, senão as partes respectivas e distintas da liberdade geral de realizar o objetivo da vida individual sem que os homens possam ser submetidos a outra restrição que não seja a que resulta da presença de outros homens que tem de realizar do mesmo modo o mesmo objetivo, conclui-se que um homem está na posse de todos os seus direitos quando a sua liberdade não é ferida por nenhuma restrição. Se ninguém lesa a integridade da sua pessoa física, se nenhum obstáculo for posto à sua moção e à sua locomoção, se goza a propriedade plena de tudo o que adquiriu ou ganhou, se tem o direito de dar e de legar a seu talante, se pode trabalhar como melhor lhe convier, concluir uma troca ou um contrato com quem queira, ter as opiniões que julgue preferíveis e exprimi-las pela palavra ou pela imprensa, nada lhe resta a exigir de verdadeiras liberdades. As suas reivindicações ulteriores pertencem a lima categoria diferente e não constituem direitos propriamente ditos. Tivemos já ocasião de verificar diversas vezes e por vários métodos que os direitos propriamente ditos têm por origem as leis da vida no estado de sociedade. As instituições sociais podem, ou reconhece-las em toda a sua extensão, ou ignora-los parcial ou inteiramente: não os criam; conformam-se com eles, ou subtraem-se lhes. As engrenagens sociais que constituem aquilo a que chamamos governo, são, mais ou menos, instrumentos da manutenção desses direitos, mas qualquer que seja o grau em que os mantenham, não passam nunca de serem instrumentos e quando dizemos que procedem em conformidade com o direito, devemos entender por essa conformidade a defesa eficaz dos direitos propriamente ditos. Todavia, pela tendência do espírito para se não preocupar senão com os meios, despreocupando-se dos fins, acontece que a opinião considera como direitos as disposições governamentais destinadas a mantê-las e marca-lhes um lugar privilegiado. Os cidadãos possuem nas nações mais adiantadas parcelas do poder político e, como a experiência demonstrou que essa possessão proporciona garantias para a defesa da vida, da liberdade e da propriedade confunde-se a sua reivindicação com o próprio direito à vida, à liberdade e à propriedade. Não existe, com tudo, afinidade alguma entre uma e outra coisa. A expressão desse voto não contribui, em si mesma, para a realização da vida do eleitor, como acontece com o exercício das diversas liberdades a que chamámos direitos propriamente ditos. O mais que se pode avançar é a que a franquia eleitoral de cada cidadão dá aos cidadãos em geral o poder de reprimirem as investidas contra os seus direitos, poder esse de que podem fazer bom ou mau uso. No assunto de que nos estamos ocupando, era quase inevitável a confusão do fim com os meios. A observação dos contrastes entre os estados das diversas nações e entre os estados sucessivos da mesma nação fizeram vincar no espírito dos homens a convicção de que quando o poder está nas mãos dum só, ou duma oligarquia, esta e aquele usam desse poder em seu benefício e em prejuízo da coletividade. Receia-se que os cidadãos que não conservem esse poder sejam obrigados a sujeitarem-se a restrições demasiadas e a encargos excessivos, privados da liberdade que a equidade reclama para cada um e que não deve ter outro limite que não seja o das liberdades análogas de todos, a opinião teme, pois, uma violação mais ou menos extensa dos direitos dos cidadãos. Ensinou a experiência que uma distribuição mais extensa do poder político determina uma diminuição de violações e em resultado dessa lição da experiência, passou-se a confundir a manutenção duma forma popular de governo com o respeito dos direitos: o poder de votar, instrumento da defesa de direitos, acabou por ser considerado como constituindo um direito e a opinião geral confunde-o com os direitos propriamente ditos. Ha motivo para que insistamos nesta distinção. Pois não é certo que os direitos propriamente ditos são postergados sem escrúpulo em países aonde os chamados direitos políticos são possuídos por todos indistintamente? O despotismo do funcionalismo francês é tão acentuado no regime republicano como o era sob o império. As exações e os enxames são atualmente tão numerosos naquele país como o foram sob o domínio dos dois Napoleões. Um delegado das Trades-Unions inglesas declarou num congresso de Paris que os atentados cometidos em França contra as liberdades dos cidadãos chegavam a um tal excesso que «constituíam uma nódoa e uma anomalia numa nação republicana.» Acontece o mesmo nos Estados-Unidos. O sufrágio universal não evita nesse país a corrupção das municipalidades que impõem elevadas taxas locais e que a poucos melhoramentos as aplicam; não impede o desenvolvimento do caciquismo eleitoral que força os eleitores a entregarem-se nas mãos dos galopins, não impede a regulamentação da vida privada dos cidadãos, aos quais é imposta a abstenção de designadas bebidas e que permite que se taxe pesadamente a generalidade dos consumidores por meio duma tarifa protecionista estabelecida em benefício duma fraca minoria de industriais e de operários. O sufrágio universal nem mesmo consegue salvaguardar a vida humana; em diversos Estados onde o sistema representativo está implantado toleram-se assassinatos que os agentes da lei dificilmente reprimem, expondo-se a tornarem-se alvos de balas se tentarem desempenhar-se da sua missão. A recente extensão do sufrágio conduziu na Inglaterra a resultados parecidos com os que acabamos de enumerar. Longe de assegurar uma mais enérgica manutenção dos direitos humanos propriamente ditos, foi essa extensão seguida por frequentes desconhecimentos deles, por mais numerosas ingerências e por mais consideráveis desfalques na bolsa dos cidadãos. Tem-se, pois, seguido uma falsa rota, tanto na Inglaterra como no estrangeiro. Não há indício algum da pretendida identidade a que aludimos e não vemos que ela exista nem mesmo nos casos extremos em que os homens usam dos seus chamados direitos políticos para se despojarem dos seus direitos propriamente ditos, como no caso do plebiscito que elegeu Napoleão III, e quando consentem que lhes torturem o cérebro dos filhos com avalanches de regras e definições gramaticais e com frivolidades das biografias dos reis, cuja aquisição é paga muitas vezes com o preço roubado à alimentação necessária e provoca o enfraquecimento da compleição fraca das crianças. Os chamados direitos políticos podem servir para a defesa das verdadeiras liberdades, mas podem servir também para outros usos, até para a implantação da tirania. § 99. - Além da confusão dos meios com os fins, causa primária de tantos erros que passam em julgado, há ainda uma outra causa de erro. A concepção desse direito é dupla; não obstante, o espírito humano, em presença dos dois fatores dos direitos, vê quase sempre só um dos fatores. Como repetidamente demonstrámos, a liberdade constitui o elemento positivo da nossa concepção, ao passo que a delimitação que implicam as iguais liberdades de outrem constituem o elemento negativo. Raramente estes dois elementos coexistem na proporção devida; em muitos casos, um deles está ausente por completo. A liberdade pode exercer-se sem restrição alguma, determinando assim agressões perpétuas e um estado de guerra geral. Inversamente, podem as restrições ser iguais na prática, mas serem, ao mesmo tempo, tão apertadas, que destruam a liberdade. Se o governo coagisse à escravidão todos os cidadãos, a restrição que eles sofreriam era igual. Se para um fim filantrópico cada cidadão em particular se despoja duma parcela da liberdade que deve subsistir depois para cada um deles, depois de ter tomado em conta as liberdades alheias, também essa restrição fica sendo igual para todos. A confusão de ideias a qual nos vimos referindo e que faz classificar os pretensos direitos políticos entre os direitos propriamente ditos provêm em parte da predileção com que se encara a igualdade que é um carácter secundário, desprezando-se o seu elemento primário: a liberdade. Os povos estão de tal maneira habituados a associar o desenvolvimento de uma ao desenvolvimento da outra, que vieram a considerá-las como intimamente unidas e a acreditar que a aquisição da igualdade assegura a da liberdade. Já mais acima demonstrei que não é assim. Os homens podem usar da sua liberdade igual para se reduzirem ao estado de escravidão. Não lograram compreender ainda que a identidade do grau de opressão e a soma igual para cada um de pesados sofrimentos, basta para dar satisfação às suas reivindicações de igualdade. Esquecem que a aquisição dos chamados direitos políticos não equivale a aquisição dos direitos propriamente ditos. A aquisição dos direitos políticos não é senão um instrumento que pode servir ou não para obter ou para defender os direitos propriamente ditos. O ponto essencial é este: Como devemos usar dos chamados direitos políticos para conservar os direitos propriamente ditos e defende-los contra os agressores estrangeiros ou nacionais? Um sistema de governo é afinal um sistema de engrenagens. O governo representativo é um desses sistemas e a escolha dos representantes confiada ao voto de todos os cidadãos, constitui um dos numerosos processos da formação de um governo representativo. Não sendo a eleição senão um método para chegar a criar uma engrenagem capaz de manter os direitos, convém averiguar se o sufrágio universal assegura a formação da engrenagem que mais fortemente os assegura. Verificamos já que não realiza eficazmente esse objetivo e teremos, mais adiante, ocasião de nos convencermos melhor de que poucas probabilidades te em nas circunstâncias existentes, de poder vir a realiza-lo. Deixaremos a discussão dessa matéria para depois de abordarmos um outro assunto mais geral: o da «Natureza do Estado». CAPÍTULO XXIII Da natureza do Estado § 100 - O estudo da evolução geral familiarizou-nos com a proposição de que a natureza das coisas está longe de ser imutável. A natureza transforma-se, sem mudar de identidade. O contraste entre a nebulosa esferoide e o planeta sólido, definitivo produto da concentração da primeira, difere dos outros contrastes que de todos os lados se apresentam aos nossos olhos e a nossa inteligência, unicamente em ser mais acentuado. Com efeito, as transformações da natureza reinam universalmente no mundo orgânico. Um pólipo, depois de um período de vida sedentária, secciona-se em fragmentos que se desprendem um por um e se transformam em medusas que nadam em liberdade. Ha pequenas larvas do tipo anelado, que depois de um período de ativa circulação na água, se fixam a um peixe, perdem os seus órgãos motores e, transformando-se em parasitas, ficam reduzidas unicamente às bolsas oriferas e ao estomago. Outras, renunciam às deslocações da sua existência primitiva e pegam-se a um rochedo, transformando-se no que vulgarmente se chama bolota do mar, nutrindo-se dos seres minúsculos que passam ao seu alcance. Outras formas vermiculares depois de terem vida e de se terem alimentado por muito tempo na água, deixam a sua concha de ninfas e voam sob a forma de insetos. É conhecidíssima a transformação das larvas em moscas vulgares, moscas varejeiras, bichos da traça etc., A mais extraordinária e a maior destas transformações é a metamorfose de algumas algas aquáticas inferiores. Durante um período muito curto, movem-se com agilidade e apresentam todos os caráteres de um animal; depois fixam-se e tornam-se vegetais. São demasiadamente abundantes e de uma variedade maravilhosa para que os possamos enumerar aqui, os fatos desta natureza. O conhecimento de uma parte deles basta, porém para nos pôr de sobreaviso contra o erro que tende sempre a formar-se de que as coisas naturais foram, são e serão invariavelmente as mesmas. Bem ao contrário, devemos ter sempre em mira a hipótese de mudanças que podem ser fundamentais. § 101 - Ha uma imensa maioria de pessoas que estão convencidas de que há só uma concepção exata de Estado. Quem, porém, repare em que as sociedades evoluem e retiver as lições que a evolução geral nos ensina, será levado, em contrário, à conclusão de que o Estado tem provavelmente naturezas essencialmente diferentes, segundo os lugares e os tempos. Vamos mostrar que existe um perfeito acordo entre esta proposição e os fatos. Não nos deteremos nalguns tipos sociais, dos mais primitivos, e caracterizados pela descendência em linha feminina e ocupar-nos-emos, primeiramente, do grupo patriarcal, tipo dum carácter intermediário entre a família e a sociedade. É fácil de estudar na horda nômade e apresentar o espetáculo duma sociedade onde as relações dos indivíduos entre si, as suas relações com o chefe comum e com os bens coletivos, conferem à estrutura e às funções do corpo social, uma natureza que contrasta singularmente com a dos corpos políticos da atualidade. Mesmo quando o grupo se desenvolve, transformando-se numa comunidade aldeã, como há na Índia, «que possuem um estado maior completo destinado a olhar pelo governo interior» a maioria, senão todas as relações entre os associados, comunicam-lhe uma natureza corporativa que oferece notáveis diferenças se a confrontarmos com a duma sociedade, em que os laços de sangue deixaram de ser o fator dominante. Subamos agora até um Estado dessa composição já superior, como a das comunidades gregas, formadas pela união de várias aglomerações de relações. Os membros das famílias, gentes e fratries misturam-se nessas aglomerações sem perderem a identidade e os grupos respectivos conservam os seus interesses distintos e, muitas vezes, antagônicos. É certo que a natureza dessas corporações, encarada no seu conjunto, difere muito duma comunidade moderna, em que uma completa amalgama destruiu as primitivas linhas de demarcação e em que o indivíduo, e não o grupo familiar, acabou por constituir nela a unidade política. Recordando o contraste que assinalámos entre o regime do estatuto e o regime do contrato, acentuaremos outra vez ainda, a dessemelhança essencial entre as naturezas das duas categorias de corpos políticos de que esses regimes derivaram. Em várias sociedades antigas «a sanção religiosa e política, unida umas vezes e outras separada, marcava a cada indivíduo o seu modo de vida, a sua crença, as suas obrigações e a sua categoria na sociedade e não deixava nenhum campo à vontade ou à razão de cada um» Atualmente, nos países adiantados, a religião e a política não gozam de poder algum aproximado e a nenhum indivíduo se prescreve qual a posição que há de ocupar, nem a carreira que há de seguir. A unificação destes fatos interdiz a razão a hipótese da unidade de natureza de todos os corpos políticos. Longe de admitirmos que a concepção geral do Estado concebida por Aristóteles em resultado das sociedades que ele conheceu, tenha conservado o valor primitivo e possa servir ainda de guia para a hora atual, pensamos que ela é presentemente, e com toda a verossimilhança, inaplicável, e que nos perderíamos se nos confiássemos à sua direção. § 102. - Esta convicção imprimir-se-á mais profundamente no nosso espírito, se em vez de compararmos as naturezas das sociedades, confrontarmos as suas manifestações ativas. Observemos, neste intuito, os diversos géneros de vida a que as sociedades se entregam. Como a evolução implica transições graduais, segue-se que por mais dessemelhantes que possam tornar-se as corporações humanas, é impossível descobrir entre essas transições uma demarcação funda. Sem perder de vista esta restrição, é, todavia, lícito afirmar que três motivos impeliram os homens, originariamente dispersos em famílias errantes, a associarem-se mais estreitamente: O desejo de saírem do isolamento foi um desses motivos e, conquanto ele não fosse universal, a sociabilidade é uma característica geral dos seres humanos que os impele para a agregação. O segundo móbil, foi a necessidade da ação combinada contra os inimigos humanos ou animais e a necessidade da cooperação para resistirem a agressões exteriores ou para as cometerem. O terceiro objetivo da sociabilidade foi o da facilidade do sustento pela assistência mútua e pela cooperação efetuada no propósito de satisfazerem mais facilmente e melhor as necessidades físicas e, posteriormente, as necessidades intelectuais e morais. Na maioria dos casos, a associação presta simultaneamente todas as três utilidades que determinaram os homens a estreitarem os laços da sociabilidade; todavia, é sempre possível distingui-los. Há, porém, exemplos, em que cada um desses três motivos nos aparece isoladamente. Os esquimós constituem um dos grupos sociais que na sociabilidade procuram apenas satisfazer o desejo de se subtraírem ao isolamento. Os membros de cada um dos seus grupos são, individualmente, independentes. Não tem necessidade de se organizarem para a defesa ou para o ataque, e abstém-se, por isso, de chefes guerreiros e de governo político: a única fiscalização a que estão sujeitos, é a da opinião expressa pelos seus vizinhos. Não adotam a divisão do trabalho e a cooperação industrial resume-se neles à do marido e da mulher no seio duma mesma família. Na sociedade dos esquimós não existe outra operação de incorporação, que não seja a da justaposição das suas partes que permanecem mutuamente e independentes. A classe dos grupos que se associaram impelidos pelo segundo móbil é numerosa. Na sua forma pura, é representada pelas tribos de caçadores, cujas atividades se alternam entre a caça e a guerra. Encontramos outros exemplos dela, nas tribos de piratas ou naquelas que, como os Masais, vivem do produto das razzias que fazem nas regiões vizinhas. Nestas comunidades não existe a divisão do trabalho ou, quando existe, é rudimentaríssima. A cooperação só se pratica para o ataque ou para a defesa e quase se não realiza na sustentação interior. É certo que nas sociedades que engrandeceram pela conquista, nasceu e foi-se desenvolvendo uma certa cooperação industrial, mas confiada aos escravos e aos sorvos que trabalham sob a direção dos seus senhores, era insuficiente para modificar profundamente a característica social. Essa característica é a dum agregado adaptado à ação comum contra outros agregados semelhantes. As vidas das unidades ficam subordinadas às necessidades da conservação e, por vezes, à expansão da vida do conjunto. De resto, em igualdade de circunstancias, as tribos ou as nações que não mantivessem esta subordinação, seriam submetidas ou defraudadas pelas tribos ou nações que as mantivéssemos. A crença dominante neste tipo social e que para ele é incontestável, é a de que a guerra constitui o único modo de vida. Este critério associa-se ao de que todo o indivíduo deve ser vassalo duma comunidade, o que os gregos exprimiam, dizendo que o indivíduo não pertence a si próprio, nem à sua família, mas à cidade. É natural que, em estados assim organizados, o indivíduo fosse absolvido nos seus direitos pelos direitos do agregado e que este o coaja, em conformidade com o critério adotado, à disciplina, aos exercícios e à direção tida como precisa para fazer dele um bom soldado e um bom servidor do Estado. É impossível citar exemplos suficientemente satisfatórios da terceira categoria de sociedades, porque elas não existem ainda na sua forma plenamente desenvolvida. As desfavoráveis condições do seu habitat impedem as raras tribos inteiramente pacíficas que se encontram nalgumas das ilhas Papuá ou nas regiões doentias da Índia, em que a malária detém em respeito as raças belicosas circunvizinhas, de se desenvolverem em grandes sociedades dedicadas ao trabalho. Os Bodos, os Dimals, os Kocchs e outros povos aborígenes da Índia vivem da agricultura e juntam-se em aldeias de dez a quarenta fogos, transportando-se para territórios novos quando esgotam os antigos. Só praticam a divisão do trabalho entre os sexos e não conhecem outra cooperação que não seja a de se ajudarem na construção das habitações e no amanho das terras. Em geral, é pelos resultados das conquistas que as pequenas comunidades se consolidam e transformam em comunidades mais importantes e que nascem as circunstâncias propícias ao desenvolvimento da dependência mútua que os homens criam entregando-se a indústrias diferentes. Durante um largo espaço de tempo, a organização industrial permanece como serventuária da organização militar e não se expande. Atualmente, porém as nações de mais adiantada civilização, estão organizadas em conformidade com um princípio fundamental diferente do da maior parte das grandes organizações do passado. Abstraindo das tendências retrogradas que prevalecem na Europa e comparando as sociedades antigas e as da idade média com as sociedades contemporâneas e especialmente com a Inglaterra e os Estados Unidos da América descobrem-se entre as primeiras e as últimas diferenças fundamentais. Nas primeiras todos os homens livres eram soldados e o trabalho reservava-se exclusivamente para os escravos e os servos. Nas segundas poucos homens livres são soldados e a quase totalidade entrega-se ao trabalho da Produção e da distribuição da riqueza. Numas os numerosos soldados eram-no quer quisessem, quer não, nas outras os soldados, comparativamente raros, são-no em virtude dum contrato. É, pois, evidente que o contraste essencial consiste em que, no primeiro caso, o agregado exercia uma poderosa coerção nas unidades que o constituíam, ao passo que no segundo a coerção que ele exerce é frouxa e tende a diminuir com o declinar do espírito militar. Que significação se deve atribuir a esse contraste circunscrito nos seus termos inferiores? Nos dois casos, o bem das unidades constitui o fim que a sociedade, na sua capacidade corporativa (o Estado) deve procurar, pois que a sociedade não é como agregado dotada de sensibilidade e a sua duração só é um desideratum enquanto presta utilidade às faculdades de sentir dos indivíduos. Como lhes presta ela, porém? Em primeiro lugar, prevenindo os estorvos à conservação e desenvolvimento das vidas individuais. Nos estados primitivos, a sociedade incorporada tem por objeto principal, senão único, prevenir a morte e o prejuízo infligido aos seus membros pelos inimigos externos e a ética sanciona a restrição que esta necessidade impõe aos seus membros. Nos estados superiores, tem principalmente, senão exclusivamente, o objetivo de proteger os seus membros contra a morte e os prejuízos resultantes das violações efetuadas no interior, e a sanção moral da restrição não vai além do que é necessário para prevenir essas lesões. § 103. - Não é agora o momento apropriado para averiguarmos se outras funções podem vir a juntar-se a esta função. O tema deste capítulo é somente a «natureza do Estado» e para acabarmos de determina-la bastar-nos-á tão somente observar a diferença radical que separa os dois tipos sociais. O princípio em que é de vantagem insistir, é este: um corpo político chamado a atuar sobre outros corpos semelhantes e devendo, para este efeito dispor das forças combinadas das unidades que o compõem é fundamentalmente diferente dum corpo político que não é destinado a agir senão nas unidades de que se compõe. Qualquer raciocínio que tome para ponto de partida a hipótese de que o Estado teve sempre e em toda a parte a mesma natureza, conduz a conclusões radicalmente erróneas. Resta-nos salientar um outro ponto. Produziram-se, produzem-se e hão de produzir-se no passado, no presente e em determinados períodos futuros alterações ora retrogradas ora progressivas, aproximando as sociedades umas vezes dum tipo e outras doutro: estes tipos entrelaçam-se pois e não tem limites nítidos. Não admira, portanto, que continuem a espalhar-se opiniões vagas e indefinidas acerca da natureza do Estado. CAPÍTULO XXIV A Constituição do Estado § 104. - As diferenças de fins implicam, de ordinário, diferenças de meios e não é provável que a estrutura melhor apropriada para realizar um determinado fim, seja igualmente apropriada para um fim diverso. No intuito de conservar a vida das suas unidades e a liberdade de cada uma poder realizar os desígnios que tem em geral as sociedades independentes, uma sociedade deve usar da sua ação corporativa contra as sociedades que a rodeiam. A sua organização deve, pois, ser tal que possa em lugar e tempo, dispor da força eficazmente combinada das suas unidades. Se essa força não atuar concordem ente, as unidades serão vencidas e anuladas ou subalternizadas; o exercício da sua ação, torna indispensável, para que se realize harmonicamente a submissão das unidades a uma única autoridade. A coação deverá assegurar esta submissão e, para que haja sequência nas ordens da autoridade coactora, as ordens deverão emanar de uma só autoridade suprema. O estudo da génese do tipo militar (Vide Principias de Sociologia, §§ 547-561) conduzem irresistivelmente à conclusão de que a centralização é necessária para o êxito da ação exterior duma sociedade em luta com outras sociedades e à de que a centralização se acentua na razão do carácter habitual da ação exterior. Devem ser submetidos ao poder despótico que governa, não só o corpo dos combatentes, mas também a comunidade que o subvenciona e sustenta. Atuando por intermédio do poder que governa e que é o produto da evolução do agregado, esse agregado calca e anula as vontades dos membros individuais e apenas lhes consente por tolerância, que usem de alguns direitos atenuados. Quando o regime militarista predomina, a constituição do Estado submete os cidadãos ordinários ou a um autocrata ou a uma oligarquia, da qual tende sempre a surgir um autocrata. Como temos acentuado desde os primórdios deste livro, esse estado de sujeição assim como a perda da liberdade e a perda contingente da vida, que a acompanham, goza duma sanção quase ética, quando é imposta pela guerra defensiva: com efeito, a suspensão parcial dos direitos justifica-se quando se trate de impedir obliteração ou a perda total que resultariam do morticínio das unidades e da conquista da comunidade atacada. São, todavia, as guerras ofensivas e não as defensivas que desenvolvem o tipo da sociedade militar; neste último caso a constituição do Estado não goza de sanção ética. Por mais desejável que seja que as raças superiores desloquem e suplantem as raças inferiores e com quanto nos estados primitivos as guerras ofensivas tenham sido prestimosas para os interesses da humanidade, certo é que, como tivemos já ocasião de dizer, essa utilidade deve ser assemelhada ao desenvolvimento geral da vida que resulta da luta pela existência nos seres inferiores: este gênero de ação está fora da jurisdição da moral. Vale notar: que quando as condições duma sociedade são tais que essa sociedade está fisicamente posta em risco por outras, se lhe torna necessária uma constituição coercitiva, a qual embora condenada pela justiça absoluta, será, todavia, relativamente justa ou a menos injusta que as circunstâncias permitem. § 105. - Sem nos determos nas formas sociais intermediarias passemos do tipo militar para o tipo industrial plenamente desenvolvido que necessita duma constituição ele Estado inteiramente diversa. O fim desses dois tipos opostos é o mesmo: assegurar as condições que permitem a manutenção da vida e o desenvolvimento das suas atividades. Porém, a sua ação contra os inimigos exteriores e a sua ação contra os inimigos interiores constituem funções inteiramente dessemelhantes e impõem, como vamos mostrar, processos inteiramente diferentes. No primeiro caso, o perigo é direto para a comunidade considerada como formando um todo e indireto para os indivíduos; no outro é direto para os indivíduos e indireto para a comunidade. No primeiro caso, o perigo é grande, concentrado, e a sua primeira incidência será local; no segundo, os perigos são múltiplos difusos e isoladamente, pouco graves. Num caso todos os membros da comunidade estão ao mesmo tempo ameaçados de prejuízo; no outro ora é tal membro, ora é tal outro que está ameaçado; o cidadão lesado hoje passará amanhã a ser agressor. Enquanto que no primeiro caso o prejuízo considerável uma vez afastado deixa de causar receios durante algum tempo, no segundo caso, os danos que é preciso evitar ainda que pouco graves, renovam-se incessantemente. Um exército seria impotente contra estes malefícios dissemináveis até ao infinito e inútil, portanto para prevenir assassinatos, roubos e burlas. A força administrativa incumbida de os reprimir deve ser difusa como o são os crimes e os delitos a evitar ou a castigar e não intermitente. O desarmamento das forças numerosas e combinadas que os empreendimentos militares exigem, permite a substituição dum governo coercivo, que é o único capaz de pôr em movimento essas forças combinadas, por um outro melhor adaptado a manter os direitos recíprocos dos cidadãos e a respeitá-los. Qual será, neste caso, a constituição de Estado apropriada? Como se parte da presunção que cada cidadão não é um agressor e que está interessado na conservação da vida e da propriedade, no cumprimento dos contratos e na manutenção de todos os direitos secundários, parece, à primeira vista, que a constituição do Estado deverá dar a cada cidadão uma parte do poder igual a cada outro -cidadão. Se a lei de igual liberdade exige que todos os homens tenham a posse de iguais direitos, parece incontestável que devem intervir em partes iguais também, na escolha do instrumento encarregado de manter esses direitos. Ficou, todavia, demonstrado no penúltimo capítulo que esta reivindicação não é um corolário legítimo da lei de igual liberdade; por variados exemplos, esclarecemos que essa reivindicação não constitui o meio de atingir o fim desejado. Investiguemos as causas prováveis desta aparente contradição. § 106 - De todas as proposições concernentes à conduta humana, nenhuma há tão segura como a que afirma que os homens, se guiam em geral pelos seus interesses e principalmente pelos seus interesses aparentes. Os governos atendem a isso, estipulando nas cláusulas que tem por objeto arredar os efeitos prejudiciais da mencionada tendência geral. Os mínimos atos, como a compra dum objeto num estabelecimento ou aquisição duma giga de fruta no mercado, atestam quanto tal tendência é universal, atuante e reconhecida. A tendência de cada um para os seus interesses positivos ou imaginários determina inevitavelmente o modo de ação de todas as formas de governo. Os homens que fazem parte das engrenagens políticas ou que direta ou indiretamente as designam, deixam-se guiar pelos seus interesses aparentes: as leis de todos os países fornecem abundantes provas desta afirmação e a história mostra concludentemente que os que assumem o poder usam dele para seu próprio e absorvente proveito. Daí tiraram os povos a conclusão de que a única maneira de assegurar os benefícios de todos é o de atribuir a todos o poder. Esse critério é errôneo que a opinião principia já a compreender, vagamente embora. Aqui há vinte anos, quando na Inglaterra se reclamou num enérgico movimento de propaganda, a extensão dos direitos políticos, os jornalistas e os oradores invectivavam a toda a hora, a «legislação de classe» da aristocracia. Nenhum previu que a deslocação do poder se tornando de predominante benefício para uma nova classe veria criar uma outra «legislação de classe» em substituição da antiga. Cada dia que passa, prova que assim tem sucedido. Se é facto averiguado que os proprietários de terras e os capitalistas da geração precedente usavam dos poderes públicos que lhes eram confiados de maneira a beneficiarem-se e a sobrecarregar indevidamente o resto da nação, não é facto menos averiguado que atualmente os artífices e os operários, atuando por intermédio dos representantes submetidos às suas ordens estão em via de rapidamente refundirem o nosso sistema social segundo um modelo que lhes assegurará o triunfo dos seus interesses com detrimento dos interesses dos outros cidadãos. O parlamento inglês e outros parlamentos estrangeiros, criam de ano para ano, engrenagens publicas cada vez mais numerosas destinadas a conferir vantagens, gratuitas na aparência, mas que na realidade pesam sobre o contribuinte geral e local: gozando dessas vantagens e exemplando-se do seu costeio, a massa popular impõe a multiplicação delas. Não é, pois, exata a afirmação de que possuindo todos o poder político a todos fica assegurada a justiça. A experiência demonstra pelo contrário - nos limites em que a previsão tem podido ser feita - que a repartição universal do sufrágio confere a classe mais numerosa asseguradas vantagens realizadas à custa da menos numerosa. Dentro em breve tirar- se-hão às superioridades sociais os ganhos mais elevados que lhes traz a sua mais produtiva atividade para desviar deles indiretamente uma parte destinada a suprir os ganhos inferiores dos menos diligentes e dos menos capazes; daí uma violação inevitável e proporcional da lei de igual liberdade. Torna-se assim evidente que a constituição de um Estado que for apropriado ao tipo social e industrial chamado a realizar plenamente a equidade estabelecerá a representação dos interesses em vez da representação dos indivíduos. Com efeito o equilíbrio das funções é necessário para a saúde do organismo social e para o bem-estar dos seus membros, e é impossível mantê-lo dando a cada função um poder proporcionado ao número dos funcionários que essa função contém. Como a importância relativa das diferentes funções se não mede pelo número das unidades que as constituem, o bem geral não é assegurado com a atribuição às diversas partes do corpo político, de poderes proporcionados ao espaço que elas ocupam. § 107 - Constituir-se-á um dia uma forma de sociedade na qual se possam conferir poderes políticos iguais a todos os indivíduos sem dar assim às diversas classes poderes de que elas façam mau uso? É impossível responder a esta pergunta. Pode ser que sim graças ao desenvolvimento das organizações cooperativas que até ao presente não apagam a distinção entre capitalistas e operários senão teoricamente, o tipo industrial chegue a produzir modos de ser sociais em que os antagonismos de interesses das classes cessem de existir ou sejam atenuados de maneira a não causarem complicações sérias. Talvez chegue um tempo em que o respeito reciproco dos interesses refreie nos homens a procura imoderada dos seus interesses pessoais a tal ponto que a divisão igual do poder político não determine em grau apreciável uma legislação de classe. Mas o que é inevitável e que no seio da humanidade tal como ela existe e como existirá por muito tempo ainda, a igualdade dos direitos políticos não assegura a manutenção dos direitos propriamente ditos. Demais, toda a constituição do Estado que sanciona somente a moral relativa deve por uma outra razão afastar-se consideravelmente da que sanciona a moral absoluta. As formas de governo apropriadas às sociedades civilizadas atuais são necessariamente formas transitórias. Como o implica toda a nossa argumentação, a constituição dum Estado dedicado ao regime militarista é inteiramente diversa da dum Estado apropriado ao industrialismo: durante as fases da evolução escalonada entre estes dois regimes tem que se passar sucessivamente por formas de constituição mistas variadas e adaptando-se por influência dos acontecimentos ora a uma destas séries de necessidades ora a outra. Já demonstrei noutra parte (Princípios de Sociologia §§ 547-575) que excluindo os tipos humanos não progressivos e cuja organização social se tornou instável e voltando a nossa atenção para os tipos dotados duma plasticidade superior e ainda em via de evolução individual e social, verificamos que o desenvolvimento dum ou doutro gênero de atividade social não tardará a determinar uma correspondente modificação de estrutura. Estas constituições mistas de Estado apropriadas a necessidades mistas são providas duma sanção quase moral. Sendo o fim supremo a manutenção das condições que permitam a efetivação da vida individual e das suas atividades, e estando esse fim em perigo, ora por efeito das massas de inimigos exteriores, ora por inimigos interiores isolados, segue-se que existe uma justificação quase ética para as constituições políticas mais aptas a desviarem em dados momentos estas duas categorias de perigos. Torna-se necessário pois aceitar o grau de inaptidão para um dos fins da inaptidão, inaptidão que é determinada pela adaptação a outro fim. § 108. - O título deste capítulo envolve um outro assunto que não podemos deixar em silêncio: a dos direitos políticos das mulheres. Vimos já no capítulo XX que nas sociedades militares ou parcialmente militares não é estritamente conforme com a equidade a atribuição do direito de sufrágio às mulheres a não ser que elas suportem cargos iguais, condição única em que se tornará justificável que tenham poderes iguais. Partindo da hipótese de que a supressão do regime militar fará desaparecer um dia este obstáculo será então vantajoso dar-lhes o direito de sufrágio? Emprego o termo vantajoso porque, como tivemos ocasião de verificar não se trata duma questão de justiça pura e simples. Trata-se de investigar a influência que a atribuição do sufrágio às mulheres virá a ter na defesa dos direitos propriamente ditos. Há razões que nos fazem propender para a opinião de que a estabilidade destes direitos ficará enfraquecida. A facilidade relativa com que as mulheres cedem a sua impulsividade, faria do acréscimo da sua influência um fator perturbante do trabalho legislativo. Tais como são constituídos na época atual, os seres humanos estão já demasiadamente subjugados pelo império das suas emoções especiais quando temporariamente excitados e não reprimidos pela soma das suas emoções. Ora a impressão de momento atua muito e predomina muito mais nas mulheres do que nos homens. Esse traço do seu carácter está em contradição com a impassibilidade judiciária que deveria presidir à elaboração das leis. A condição prévia e evidente para bem legislar é a de afastar as paixões excitadas por causas temporárias ou interesses particulares. Presentemente esta condição prévia realiza-se por uma forma imperfeita, que mais imperfeita se tornaria ainda se o direito de sufrágio se estendesse às mulheres. A esta diferença moral associa-se uma análoga diferença intelectual. Ha poucos homens e muito menos mulheres ainda que formem opiniões em que o geral e o abstrato ocupem o lugar que lhes é devido. As suas ideias limitam-se unicamente ao particular e ao concreto. Nove por dezena dos legisladores e noventa e nove por cento dos eleitores preocupam-se unicamente com os resultados imediatos da medida que discutem e nem por sombra pensam nos resultados indiretos, no precedente que essa medida vai abrir ou na influência que ela vai ter no carácter humano. Se as mulheres votassem, a preocupação com as causas próximas e pessoais e em consideração das causas afastadas e impessoais acentuar-se-ia notavelmente e os imensos males produzidos pelas condições atuais aumentariam muitíssimo por certo. Demonstrámos noutra parte deste livro que, entre a ética da família e a ética do Estado há uma oposição radical e que é nocivo intrometer uma na esfera da outra: o perigo pode mesmo tornar-se mortal se essa intromissão se tornar extensa e duradoura. Ora o carácter é que, em definitivo, determina a conduta. A inteligência é uma companheira do carácter que serve apenas de instrumento para procurar satisfazer o conjunto de sentimentos pelos quais o carácter é constituído. Atualmente os sentimentos dos homens e das mulheres impelem-nos já a viciar a moral do Estado e a intrometer nela a moral da família. Mas as mulheres em virtude das suas funções maternais são mais atreitas que os homens a conceder benefícios mais em razão da ausência de méritos do que em razão dos méritos e a darem o mais à menor capacidade. O amor do ser sem defesa - é assim que se pode em síntese qualificar o instinto da paternidade mais poderoso na mulher do que no homem e que predomina na conduta dela tanto dentro como fora da família - arrastá-las-ia mais ainda do que aos homens para uma ação pública cuidadosa em excesso dos seres inferiores que elas oporiam aos seres superiores. A tendência atual dos dois sexos é para encarar os cidadãos como possuindo títulos que lhes são conferidos pela pobreza, quando essa pobreza é habitualmente a consequência dos seus deméritos. Se esta tendência mais acentuada na mulher que no homem aumentar no exercício da política, determinará uma solicitude em favor dos incapazes e em detrimento dos mais capazes. Em vez do respeito dos direitos que, como tivemos ocasião de ver, constitui a condição prática e sistemática da realização do princípio que exige que cada um colha os resultados bons ou maus da sua conduta pessoal ver-se-á esse princípio sofrer mais gerais e mais repetidas infrações. Os bens adquiridos pelos superiores ser-lhes-ão tirados com menos escrúpulo ainda para os destinarem a assistência dos inferiores, e os males que estes últimos só por si mesmo atraíram serão mais frequentemente ainda postos a cargo dos superiores. Um outro traço distintivo das mulheres é não já proveniente da relação maternal, mas da relação conjugal. Ao passo que os seus sentimentos se adaptaram à função especial da criação e da educação das crianças, esses sentimentos adaptaram-se também à escolha dum esposo, no pé em que as circunstâncias lhe permitam escolhê-lo, O traço do carácter masculino que mais atrai as mulheres é o vigor físico ou mental ou a união duma e doutra dessas qualidades: esta preferência tem de resto favorecido a multiplicação dos mais vigorosos porque em igualdade de circunstâncias, as variedades em que esta preferência instintiva se tornou menos acentuada foram suplantadas por outras variedades. Daí o culto da mulher pela força sobre todas as suas formas; e daí também o seu relativo conservantismo. As mulheres são mais afetadas do que os homens pelo ascendente da autoridade sob qualquer forma que ela se manifeste - política, social ou eclesiástica. - Esta tendência atua nelas em todos os graus do desenvolvimento social. Ainda mesmo nas circunstâncias em que os seus sentimentos instintivos pareceriam dever produzir um efeito oposto, as mulheres permanecem mais fieis do que os homens aos costumes santificados pelas injunções dos ancestrais; é assim que as mulheres dos Juangs continuam a andar nuas não obstante os homens terem já adoptado o uso da tanga. A mulher foi sempre mais atreita do que o homem ao fanatismo religioso que não é senão a expressão duma subordinação extrema a um poder tido por sobrenatural. Os gregos notaram esta diferença entre os dois sexos; foi também observada no Japão; e os índios proporcionam-nos exemplos dela; e em toda a Europa se manifesta. Se se conferisse o sufrágio às mulheres este sentimento que o poder e o seu aparato sob todas as formas nela desperta propenderia para a defesa de todas as autoridades políticas e eclesiásticas. Nas condições atuais uma influência conservadora desta natureza seria talvez benéfica se não fosse o traço de carácter a que primeiramente aludimos. Mas, vindo essa influência juntar-se à predileção da mulher pela generosidade em detrimento da justiça, o culto da força que ela tem contribuiria, a ser-lhe concedida uma maior liberdade de expressão, para aumentar a tendência que já sentem os poderes públicos por desrespeitarem os direitos individuais sempre que se trata de fins reputados como sendo de beneficência. O problema mudará de aspecto depois da desaparição das complicações políticas atuais, que são provenientes dum estado de transição. É muito possível que no futuro a obtenção do direito do voto pelas mulheres dê benéficos resultados. Os partidários das franquias eleitorais imediatas para sexo feminino, invocam a razão de que, sem ele, as mulheres não poderão alcançar o reconhecimento legal dos seus direitos de igualdade. A experiência não confirma este argumento. Nestes últimos trinta anos tem sido ab-rogadas muitas das incapacidades femininas sem grandes resistências da parte dos homens. O sentimento da justiça, tem aperfeiçoado nos tempos modernos a conduta dos homens para com as mulheres, consideradas no ponto de vista do seu confronto político e jurídico, com o sexo masculino. As classes dos homens oprimidos lutaram muito mais tempo do que elas para arrancarem às classes dominantes as concessões que reclamavam; as mulheres obtiveram as diversas liberdades que exigiam, quase sem luta contra os homens. Conquistaram-na já em grande parte, não obstante estarem privadas do poder político; e sem dúvida alcançarão remédio para as injustiças de que ainda tem razão de queixar-se - principalmente no ponto de vista da guarda dos seus filhos - sem exporem a sociedade às gigantescas perturbações políticas que custaram algumas das reivindicações dos homens. Pela mais simples das formas: as das suas esperanças, esta probabilidade torna-se pelos fatos uma certeza. Reclamar abertamente que as mulheres têm necessidade do direito do sufrágio para obterem os seus justos direitos, equivale a afirmar que os homens lhes concederão o sufrágio, sabendo que esta concessão determinará a concessão dos justos direitos das mulheres, mas que, todavia, se recusam a conceder-lhes estes últimos em especial. A (o sufrágio), implica a aquisição de B (os direitos.) a preposição é, pois, esta; os homens estão em via de conceder A mais B, mas não querem conceder somente B. § 109. - Falta-nos tratar ainda, a propósito da constituição do Estado da repartição dos cargos dele. Há tantas razões para insistir na repartição equitativa do custo do governo, como sobre a repartição equitativa da sua direção. O problema, no ponto de vista abstrato parece não oferecer dificuldades embaraçosas. As cotizações individuais, deviam ser proporcionadas às vantagens individualmente colhidas. Os cargos deviam ser análogos, em razão da analogia das vantagens, e diversos, em razão da sua diversidade. Resulta daqui uma distinção entre as despesas políticas que tem por objeto a proteção das pessoas e as que tem por objeto a proteção dos bens. Geralmente falando, os homens ligam igual valor à sua vida e à sua segurança pessoal; os gastos públicos feitos com este intuito, devem, pois, recair sobre todos igualmente. Por outro lado, como o valor dos bens dum operário colocado numa das extremidades da escala social, difere enormemente do valor dos bens de um milionário, a participação das despesas a fazer com a defesa da propriedade, deve ser proporcionada ao valor dos bens possuídos e variar mais ou menos, consoante a natureza deles. Estas considerações dão-nos os elementos aproximados duma justa repartição, no ponto de vista da proteção no interior. Já é menos simples formular uma justa repartição no ponto de vista da proteção exterior. A invasão coloca conjuntamente em perigo a pessoa e os bens: o cidadão fica exposto a ser despojado destes últimos, a ser prejudicado na sua integridade física e a ver-se privado, mais ou menos da sua liberdade. A justiça da distribuição depende, portanto, da importância relativa que cada um ligue a estes prejuízos e, não parece possível exprimir o valor geral ou especial dessa importância relativa. Contentemo-nos com dizer que, enquanto persistir o regime militarista ou parcialmente militarista, só será realizável a aproximação grosseira duma justa incidência dos cargos públicos. Uma conclusão se impõe, todavia. Todos têm obrigação de suportar os encargos públicos, qualquer que seja a maneira por que a divisão deles se efetue. Todo aquele que participa dos benefícios do governo, deve dar-lhe direta e não indiretamente a sua parte para as despesas do Estado. Esta última condição é de capital importância. Os homens políticos preferem os sistemas da arrecadação de imposto, em que as cotas cobradas do cidadão, lhes passem despercebidas o mais possível. Defendem frequentemente os direitos alfandegários e os impostos de consumo, com o argumento de que este sistema de cobrança de receitas, permite à nação o obter quantias superiores às que obteria, se cada cidadão entregasse a sua cota nas recebedorias. Este sistema é de condenáveis resultados, porque se apodera furtivamente de somas que diretamente não seriam obtidas. A resistência ao imposto é assim capciosamente evitada; essa resistência seria, todavia, salutar, porque poria um travão aos exageros das despesas públicas. Se cada cidadão tivesse sido obrigado a pagar a sua quota parte dos impostos, sob uma forma visível e tangível, o montante dessa quota tornar-se-ia tão elevado que todos se uniriam para impor economias na realização de funções necessárias e resistiriam à criação de funções inúteis. Atualmente acontece o contrário disto; como se oferecem a cada cidadão vantagens que ele supõe não lhe custarem dispêndio algum, sente-se naturalmente inclinado a aplaudir o desperdício e deixa-se levar, com uma improbidade mais ou menos consciente pela tendência de colher benefícios à custa alheia. Quando foi da agitação que em Inglaterra se ergueu em favor do alargamento das franquias eleitorais, repetia-se continuamente a máxima: «a taxação sem a representação, é um roubo. A experiencia tem ensinado de então para cá, que a representação sem a taxação era a mãe da espoliação. CAPÍTULO XXV OS DEVERES DO ESTADO § 110 - A maior parte dos meus leitores quer aceite quer não os princípios éticos expostos nos primeiros capítulos deste livro, por certo estará de acordo relativamente às aplicações práticas que foram expostas nos capítulos seguintes. Ha pessoas por tal modo inimigas do método dedutivo que rejeitariam essas aplicações práticas se pela indução não fossem verificáveis. Tivemos, porém, ocasião de mostrar a respeito de todos os resultados a que chegámos pelas nossas deduções que o conjunto dos homens civilizados os tem sucessiva e empiricamente adotado e que a experiência acumulada os fez inscrever nas leis e os revestiu de uma autoridade que se tornou cada vez mais acentuada. Na atualidade, mal se pode pensar em contestá-los. Vamos abordar agora assuntos a respeito dos quais reinam as mais contraditórias opiniões. A fim de prevenirmos as objeções que possam fazer às nossas conclusões em razão dum método que se não julgue satisfatório, vamos proceder em conformidade com um método que ninguém condenará e que todos por mais insuficiente que ele por si próprio pareça, admitirão até certo ponto como tendo autoridade. Dito isto, entremos na investigação indutiva concernente aos deveres do Estado. O tão gabado filósofo Hobbes ter-se-ia abstido de publicar a sua teoria do Estado se em vez de a deduzir duma ficção pura se tivesse preparado para ela reunindo os dados obtidos pelo estudo dos homens primitivos ou dos homens contemporâneos dos primeiros estados da vida social. Se Hobbes tivesse visto o que os selvagens são na realidade, não lhes teria atribuído a respeito da ordem social e dos benefícios dela, ideias que são o produto duma vida social desenvolvida e teria visto também que a subordinação a um poder dirigente não foi, nos tempos primitivos, ditada pelo móbil que julgou descobrir. Em vez de proceder como Hobbes a priori, procedamos à posteriori e interroguemos os testemunhos de que podemos dispor. § 111 - O primeiro ponto verificável é o de que na ausência de guerra passada ou presente os homens dispensam o governo. Já anteriormente dissemos que os Esquimós onde as guerras de tribo para tribo são desconhecidas, não se dão entre os membros de uma mesma tribo os conflitos que na opinião de Hobbes têm necessariamente de surgir entre homens privados de governo. Quando acontece que um Esquimós tenha motivo de queixa contra outro Esquimó, apela para a opinião por meio duma canção satírica. Os Fogueanos que vivem em tribos de vinte a quarenta pessoas não têm chefe: "parecia, diz Weddell, não terem necessidade alguma de chefe para garantir a paz interior da sua sociedade.» Os Vedas traçam nas suas florestas linhas de demarcação honrosamente mantidas e o chefe, isto é, o homem mais considerado de cada acantonamento não exerce, afirma Tennant, outra autoridade que não seja a de na estação própria vigiar a partilha do mel colhido pelos membros do agrupamento. O segundo ponto é o de que sempre que a guerra surge entre tribos pacíficas aparecem chefes guerreiros que adquirem uma influência preponderante. Quando na guerra um homem se distingue dos restantes, pela sua força, pela sua coragem, habilidade, ou pela sua sagacidade, a tribo obedece-lhe e aceita-o como chefe. Como sucede nos Tasmanianos o homem que durante a guerra adquiriu predomínio, perde-o com o restabelecimento da paz; esta marca o regresso a um estado de igualdade e de ausência de governo. Todavia como as guerras entre as tribos tendem a tornar-se crónicas acontece geralmente que aquele que exerceu a qualidade de chefe em várias guerras acaba por adquirir uma autoridade permanente; a deferência que lhe testemunham estende-se não só aos períodos da guerra, mas aos intervalos que a separam: assim começa a soberania. Estas relações de estrutura social desenham-se nitidamente na tribo dos Shoshonos ou Serpents, da America do Norte, tribo que se divide em três ramos. Os Serpents das Montanhas não têm governo algum: vivem em bandos errantes e dispersos, e nunca se unem senão para resistirem aos ataques dos seus irmãos hostis. Os War-are-aree-Kas ou Comedores de Peixe não tem organização social a não ser no período da pesca do Salmão em que se juntam nas margens das ribeiras e se subordinam mais aos conselhos do que à autoridade dum chefe temporário por eles adotado. A soberania é mais acentuada nos Shirry-Dikas gente já melhor armada e que se ocupa na caça dos bisões; a autoridade é entre eles facilmente transmissível e liga-se unicamente ao vigor pessoal do chefe. Nos Comanches, que são relativamente guerreiros, os chefes têm um poder mais extenso, conquanto o seu oficio não seja hereditário, mas resultante «de superior talento, de maior habilidade, ou de triunfos guerreiros». A partir destes graus primitivos é fácil seguir o desenvolvimento crescente de chefe à medida que a guerra entre as tribos se torna crónica. O terceiro ponto é que a supremacia do chefe se consolida com a sequência das guerras em que pela sua valentia foram subjugadas as tribos adjacentes e que por sucessivas conquistas se constituiu e avigorou uma sociedade mais extensa; o aumento do seu poder permite-lhe impor a sua vontade para além da ação militar. Quando no decurso desta evolução as nações se constituíram e os chefes se tornaram reis, o poder governamental tornou-se absoluto e generalizou-se a toda a vida social. Mas, note-se, o rei era antes de tudo o chefe de guerra. Os anais dos Egípcios e dos Assírios harmonizam-se com os anais das nações europeias, na documentação de que o rei era em toda a parte o chefe dos soldados. Agrupando diferentes fatos secundários para extrair deles um quarto testemunho, verifica-se que embora o chefe do Estado nas nações modernas já não comande sempre os seus exércitos no campo da batalha, delega, contudo, esse comando. Os reis recebem uma educação militar ou naval e são nominalmente soldados. As supremas magistraturas civis só se encontram nas republicas e nelas mesmo têm tendência para readquirir o carácter militar. Basta uma guerra prolongada para que o governo torne ao seu primeiro tipo de ditadura guerreira. A indução coloca, pois, fora de toda a dúvida que as ações ofensivas e defensivas duma sociedade contra outras sociedades dão origem aos governos e favorecem o seu desenvolvimento. A função primária do Estado, ou do agente que centraliza os seus poderes é pois a de dirigir as atividades combinadas dos indivíduos incorporados para a guerra. O primeiro dever do agente que governa é a defesa nacional. As medidas tomadas para a manutenção da justiça de tribo para tribo têm um carácter mais imperativo e são de origem anterior á das medidas que visam a manutenção da justiça entre os indivíduos. § 112. - A subordinação dos súbditos ao soberano não teve nem a origem nem o intuito que Hobbes imaginou. Decorreu um tempo bastante longo antes que se tentasse realizar o fim a que Hobbes atribui a formação do governo. Tem existido mais de uma sociedade de estado elementar e mais duma sociedade complexa tem vivido durante longos períodos, sem que o soberano tomasse qualquer medida destinada a prevenir as agressões de indivíduo para indivíduo. A necessidade da ação combinada contra inimigos da tribo é evidente e peremptória; convindo a obediência ao chefe, mas não existe nenhuma necessidade evidente de defender um membro da tribo contra outro membro. A querela não é considerada como pondo em perigo a prosperidade comum, ou pelo menos, este perigo era considerado de importância demasiadamente mínima para determinar uma intervenção. Enquanto não houve soberania e enquanto só houve soberania no tempo de guerra, cada membro da tribo mantinha os seus direitos pessoais o melhor que podia: se um indivíduo era prejudicado, esforçava-se por lesar o agressor. Esta grosseira administração da justiça, em vigor nos animais de agrupamento e nas primitivas hordas humanas, passou ao estado de costume reconhecido muito anteriormente ao estabelecimento de qualquer regra política e prolongou-se por muito tempo no estado de costume transmitido pelos antepassados e consagrado pela tradição. A lei de Talião regeu todas as sociedades primitivas, umas vezes fora da ação do soberano e outras sancionada por ele. Na América do Norte, entre os Serpentes, os Creeks e os Dacotas, os indivíduos lesados ou as suas famílias é que vingavam as ofensas e lesões privadas; os Comanches, conquanto as suas assembleias dirimissem algumas vezes sem resultado, questões particulares entre os seus membros, praticavam de ordinário este sistema de represálias. Os Iroquês, que possuíam um governo comparativamente adiantado, autorizavam a solução privada dos prejuízos e agressões individuais. Na América do Sul os Uaupes, os Patagões, e os Araucanios vivem num estado de sujeição política mais ou menos acentuado e coexistente, com uma administração primitiva de justiça e que cada indivíduo atua por sua conta e risco ou por conta e risco da sua família. A África com as suas populações de variados níveis de civilização, oferece-nos o espetáculo da mistura destes sistemas. Um rei ou um chefe dos Bechuanas não pune, apesar do seu poder, senão os crimes praticados contra a sua pessoa ou contra os seus serviçais. Entre os Africanos de Leste, o indivíduo lesado, ora se vinga por si próprio, ora se queixa ao chefe. Nalgumas tribos negras da Costa de Oiro, existem penalidades judiciarias, ao passo que noutras, a vingança incumbe à família da vítima; igual diversidade se encontra na Abissínia. Passando à Ásia, vemos prevalecer entre os Árabes, um ou outro modo de repressão, conforme o grupo e nômade ou sedentário: nos nômades o uso prescreve as represálias privadas e restituição forçada, ao passo que nas povoações, o direito de punir é geralmente confiado ao chefe. Os Bheels estabelecem em a ação penal do chefe e a do indivíduo, uma proporção que varia com a extensão do poder do chefe; os Khonds, pouco respeitadores da autoridade, deixam à ação privada o cuidado de impor a justiça. O costume dos Kareens é o de que cada homem faça justiça pessoal, tendo porém, de se conformar com o princípio da igualdade do dano sofrido e do dano infligido. Existia um análogo estado de coisas nas tribos arianas, que invadiram a Europa nos tempos primitivos. A vingança privada e castigo público, associavam-se em proporções variáveis, diminuindo uma e aumentando outro, à medida que as tribos se aproximavam dum estado de civilização mais adiantado. A legislação teutónica Kemble, baseava-se inteiramente no direito de guerra privada... tinha cada homem livre plena latitude de se vingar por si, pela família e pelos amigos, das agressões ou prejuízos que sofressem. Todavia, em vez de continuar a ser como no começo, juiz de si mesmo, quanto à extensão das represálias a exercer, o costume submeteu-o dentro em breve a restrições e fixou uma tarifa de indenizações graduadas, conforme a categoria. Quando a autoridade política se tornou maior, começou por impor as penas pecuniárias que o costume havia estabelecido; em caso de não pagamento a autoridade permitia o regresso à represália privada: que a família seja indenizada ou que mova guerra ao agressor. Durante o estado de transição, que algumas das tribos germânicas atravessavam, na época em que foram descritas pela primeira vez, a indemnização era entregue em parte à vítima ou à família lesada, e em parte ao soberano. Na época feudal, só quando o governo central se fortificou, o sistema da reparação privada começou a ceder lentamente o lugar ao sistema da retificação pública. O direito de guerra privada durou, para os nobres, na Inglaterra até ao século XII e XIII. Na França prolongou-se muito mais tempo. Estava de tal modo enraizado nos costumes, que os senhores feudais consideravam quase sempre como uma vergonha, sustentar os seus direitos de outra maneira que não fosse com as armas na mão. Assinalemos também a persistência prolongada dos duelos judiciários e dos duelos privados. Convêm estudar estes fados sob dois outros aspectos. A função primária do governo é de combinar as ações dos indivíduos incorporados para a guerra; a sua função secundária, consistindo em defender uns contra os outros os membros da tribo, nasceu pela diferenciação da função primária e organizou-se pouco a pouco. Nos mais afastados estados a reparação privada dos danos pessoais e materiais pertencia em parte ao indivíduo lesado e em parte à sua família e aliados. A evolução progressiva que produziu conjuntamente a organização familiar e a agregação social dos grupos de família ou classe, deu origem à doutrina da responsabilidade familiar, o que equivale a dizer que as guerras privadas entre grupos de famílias se tornaram da mesma natureza que a das guerras publicas entre sociedades e que a da atividade que a justiça impõe de tribo para tribo. Daí esta ideia que o espírito de hoje encara com estranheza: em caso de assassínio dum membro do grupo tornava-se preciso matar um membro do grupo ao qual o assassino pertencia, fosse quem fosse, ou o próprio assassino ou outro qualquer membro da tribo. A exigência essencial ficava satisfeita sempre que o grupo causasse um prejuízo equivalente àquele que tinha sofrido. O segundo aspecto destes fados é este: a administração grosseira da justiça por meio de lutas privadas transformou-se em administração pública da justiça não em razão da solicitude que o soberano sentisse pela equidade das relações sociais, mas, muito antes para prevenir o enfraquecimento social resultante das dissenções intestinas. Um chefe duma tribo primitiva ou um capitão de bandidos são forçados a reprimir as rixas entre os seus homens; fazem em diminuta proporção o que os reis feudais faziam em grande quando interdiziam em tempo de guerra com o estrangeiro as guerras privadas entre os nobres do seu reino. O desejo que rei tinha de assegurar a paz social interna que servia de base ao seu poder militar, estimulava-o a transformar-se em arbitro dos conflitos que surgiam abaixo dele. Os apelos que lhe eram feitos pelos ofendidos, e aos quais ele correspondia pela razão que acabamos de enunciar tendiam a consolidar cada vez mais a sua autoridade de juiz e legislador. Uma vez estabelecida, esta função secundária do Estado desenvolve-se continuamente e ocupa uma importância imediata à da função de proteção contra os inimigos exteriores. É de notar que enquanto os outros gêneros da ação governamental se vão atualmente restringindo cada vez mais, este continua aumentando sempre. As atividades militares tendem a diminuir gradualmente o poder político que tende a renunciar a diversas ações reguladoras que dantes exercia vigorosamente, e o progresso da civilização foi alargando sucessivamente a esfera da administração da justiça e tornando esta mais eficaz. § 113. - Vejamos se a dedução nos conduziu a conclusões harmônicas com as que nos forneceu a indução e se deriva da natureza dos homens, tais como a sociedade os condicionou que estes deveres do Estado constituam os seus essenciais deveres. Vimos já que uma espécie, para prosperar deve conformar-se com dois princípios opostos respetivamente apropriados aos seus membros adultos e aos seus menores: a atribuição dos benefícios deve operar-se para os primeiros na razão inversa do seu mérito e para os segundos na razão direta. Desenharmo-nos no segundo destes princípios que é o que para o assunto vem a apelo. É claro que a manutenção numa sociedade das condições que asseguram a cada um a remuneração dos seus esforços é suscetível de ser entravada por inimigos exteriores e por inimigos interiores. Resulta daqui que para assegurar a prosperidade de uma espécie ou duma sociedade é preciso um razoável exercício de força mantenedora destas condições; a ação corporativa da sociedade indispensável para o exercício desta força, é reclamada imperativamente no primeiro caso e quase imperativamente no segundo. O conjunto dos cidadãos, exceção aberta para os criminosos, tem boas razões para aprovar este uso da força. Quais são as determinantes dessa aprovação? Todos sentem que a perda contingente da vida e a perda parcial da liberdade às quais os soldados são submetidos, assim como as contribuições lançadas aos cidadãos para custeio da força armada, se justificam porque são o instrumento que permite a cada um reclamar o seu fim supremo, exercer as suas atividades e colher os frutos delas; sacrificam uma parte para assegurarem a parte maior. É com este fim que eles autorizam tacitamente a ação coerciva do Estado. A necessidade duma tutela corporativa contra os inimigos interiores é menos vivamente sentida; contudo, o desejo de a ver estabelecer-se resulta para cada indivíduo da prossecução dos seus fins. Os membros relativamente poderosos são sempre e em todas as sociedades muito mais raros do que os membros relativamente fracos; estes são numericamente muito superiores. Resulta daqui que a retificação puramente privada dos danos materiais e ofensas corporais seria na maior parte dos casos impraticável. Quando além da assistência muitas vezes ilusória da família e dos amigos o indivíduo pôde obter a assistência dum membro poderoso, esta assistência representa um preço; o indivíduo compra-a primeiro com um presente que posteriormente se transforma num tributo e com o decorrer do tempo, chega o convencimento de que mais vale pagar o preço da segurança do que sofrer perigosas agressões. As necessidades fundamentais a que os homens no estado de sociedade estão submetidos implicam, pois, estes dois deveres, primário e secundário do Estado. § 114. - Visto que estes deveres incumbem ao Estado, segue-se que ele tem obrigação de tomar as necessárias medidas para as poder cumprir com êxito. Ninguém contesta que o Estado deve prover-se do aparelho defensivo necessário para vencer um perigo eminente. Ainda mesmo que não seja provável um ataque estrangeiro, o Estado tem obrigação de manter forças suficientes para repelir uma invasão: a falta de preparativos em tal sentido, atrairia os ataques. Ainda que na parte do mundo que habitamos não estejamos atualmente sujeitos ao perigo de hordas que se dediquem a pilhagem e aos latrocínios dos piratas, certo é, contudo, que a menor provocação é suficiente entre os povos ditos civilizados para lançarem uns contra os outros inumeráveis exércitos: mesmo as nações mais adiantadas vivem na desconfiança dos seus vizinhos! As circunstâncias determinam a soma de força militar que esta salvaguarda exige; cada caso tem de ser apreciado isoladamente. Ao passo que a opinião reconhece plenamente a necessidade de manter uma organização sem a qual o Estado não poderia cumprir o primeiro destes deveres, não dá uma tão exata conta da necessidade que há de determinar a organização indispensável a realização do segundo. Como vimos, a proteção dos cidadãos contra as agressões doutros cidadãos não incumbia ao governo, nos primeiros tempos, e este tomou a si essa incumbência a pouco e pouco. O Estado, mesmo nas nações mais adiantadas cumpre esta missão imperfeitamente e é-lhe contestado que deva realizá-la em toda a sua extensão. Não quero exprimir com isto que a opinião corrente conteste ao Estado a obrigação de defender os cidadãos das agressões qualificadas como criminais, e não pretendo afirmar que ele não se desempenha dessa missão. Pretendo dizer apenas que nem o Estado nem os cidadãos admitem que ele tenha a obrigação de os defender contra os agressores em matéria civil. Os agentes do Estado aceitam a queixa e a defesa duma pessoa que sofreu uma lesão física mais ou menos violenta e punem o culpado, mas permanecem inertes se essa mesma pessoa foi despojada dolorosamente dos bens que possuía. Nesse caso o prejudicado, ou há de aceitar resignadamente a. sua ruina, ou há de correr o risco de a agravar mais, intentando um processo e expondo-se a intermináveis formalidades e delongas. Este estado de coisas é aplaudido não só por alguns dos homens de leis, mas pela quase totalidade deles. Acolhem com sorrisos a proposição de que o Estado deveria administrar justiça gratuita, tanto em matéria criminal, como em matéria civil e esse desdenhoso acolhimento manifesta-se também contra qualquer plano de reforma tendente à realização dum progresso para a equidade: este critério geral só se modificará quando o êxito vier mostrar a sua razão de ser. Se o Estado - dizem - se incumbisse gratuitamente da arbitragem entre as partes litigantes, os tribunais ficariam de tal forma atulhados de processos que as demoras provenientes da acumulação do serviço judiciário anulariam o fim desejado, e, além disso o país ficaria sobrecarregado com despesas esmagadoras. Estas objeções partem da pressuposição errônea de que uma mudança na atual organização judiciária não influiria na marcha geral dos negócios judiciários. Tem-se por assente que se a justiça fosse gratuita e certa, o número das violações seria o mesmo que é atualmente, que é incerta e dispendiosa. A imensa maioria das infrações em matéria civil são, porém, a consequência da defeituosa administração da justiça e deixariam de ser praticadas em grande parte se a inflicção da pena estivesse sempre assegurada e fácil. Tal objeção implica uma proposição verdadeiramente inacreditável. A massa dos cidadãos tem que escolher entre o suportar em silencio os prejuízos sofridos e o arriscar-se á ruina para tentar obter uma reparação, e isto, porque o Estado a que essa massa de cidadãos paga impostos enormes não cuida deles e não quer fazer face a despesa que essa proteção acarreta. O cumprimento dessa função seria aos olhos dos nossos adversários um mal público tamanho que preferem deixar que um incalculável número de cidadãos fique nas garras da miséria e que outros sejam levados à bancarrota. Ao mesmo tempo que acontecem coisas destas com inteira despreocupação do Estado, o mesmo Estado recomenda às autoridades locais que vigiem cuidadosamente o esgoto das águas de lavagem e dos demais despojos caseiros! § 115. - Falta-nos referir um dever do Estado que indiretamente faz parte do último, conquanto se possa distinguir dela e sejam especificáveis as suas consequências; e esse dever o respeitante ao solo ocupado pela nação. É necessária a autorização do Estado para a aplicação das superfícies diferentes das que já enumerámos e que são beneficiadas para a autorização tácita da comunidade, agindo por intermédio do governo. Pertence ao governo, mandatário da nação, decidir se uma empresa projetada - estrada, canal, caminho de ferro, doca, etc. - que alterará um terreno a ponto de o tornar impróprio para os usos ordinários, apresenta garantias de utilidade pública tais, que justifiquem a sua alienação. O Estado deve fixar as condições a que subordina a aprovação da em preza e essas condições devem ser equitativas para os capitalistas que nessa empresa empregam os seus fundos, e proteger os direitos da comunidade existente, tendo em conta os interesses das gerações futuras que hão de vir a ser os supremos proprietários do território. Parece que nem a alienação permanente do território nem o direito por parte do Estado de romper sem escrúpulos e a seu mero arbítrio o contrato concluído (o que atualmente é vulgar) constituem meios equitativos de atingir os fins que devem ter-se em vista para a realização de melhoramentos públicos. Esses fins seriam melhor assegurados por meio duma alienação feita por um período especificado, reservando-se o Estado o direito de modificar ou anular as condições da concessão no terminus desse período. Ao governo incumbe também como mandatário da comunidade exercer uma fiscalização conexa com a faculdade anteriormente especificada, mas diversa dela. Compete ao corpo governativo, por si ou por intermédio dos seus delegados locais, a missão de autorizar ou proibir os trabalhos executados nas ruas e outros espaços públicos para instalação ou reparação do material dos serviços de águas, de gás, de telefones, e outros serviços análogos. Esta fiscalização é indispensável para a proteção dos interesses particulares e coletivos contra as agressões de membros ou de grupos isolados da comunidade. Claro é que, pela mesma ordem de considerações, devem ser submetidos à vigilância do Estado os rios, os lagos, e toda a mais superfície da água interior bem como o mar que banha o litoral. É legítimo impor aos que dessas massas líquidas se aproveitam, restrições que salvaguardem a comunidade que é quem tem o seu domínio eminente. § 116. - Quais são, pois, os deveres do Estado, encarados estes pelo seu aspecto mais geral? Como deve atuar uma sociedade, usando da sua capacidade corporativa para que os membros dela atuem usando das suas capacidades individuais? Estas perguntas têm várias respostas. A prosperidade duma espécie está assegurada o melhor possível quando cada um dos seus membros adultos colhe os bons e os maus resultados da sua natureza privativa e das consequências que dela dimanam, A realização desta exigência implica, para as espécies que vivem em agrupamento que os indivíduos se não imiscuam uns nas atividades particulares dos outros e que mutuamente se não impeçam de colher os frutos naturais dos seus atos e que não possam descarregar sobre outrem as más consequências desses atos. A obrigação que incumbe ao agregado social ou, melhor dito, à massa incorporada dos cidadãos, é a de assegurar o funcionamento desta lei última da vida da espécie tal como as condições sociais a restringem. O dever de todos é, para benefício de cada um, o de vigiar pela manutenção desta necessidade essencial porque nenhum indivíduo isolado bastaria para mantê-la efetivamente por si só. Nenhum conseguiria repelir isolado uma invasão de estrangeiros; regra geral a resistência dum indivíduo às invasões interiores, isolado ou com o concurso dos seus amigos seria ineficaz ou perigosa e custar-lhe-ia grande dispêndio de tempo e de dinheiro, se é que não sofria todos estes inconvenientes conjuntamente. De resto um estado universal da defesa do indivíduo implica um estado de antagonismo crónico que deteria ou entravaria, pelo menos, a cooperação e as facilidades que ela dá à vida. Relativamente à distinção a estabelecer entre as atribuições da ação corporativa e as atribuições da ação individual é claro que a ação corporativa quer ela se restrinja ao seu próprio domínio quer o ultrapasse pode em bom direito ser empregada para prevenir as intervenções que viessem sobrepor-se na ação individual aquelas de que necessita estado social. Todo o cidadão deseja viver, e viver uma vida tão plena quanto as circunstâncias lhe permitam. Deste desejo de todos resulta que todos são interessados em que ninguém sofra na sua própria pessoa uma ruptura da relação entre os atos e os fins e que ninguém viole essa relação na pessoa de outrem. A intacta manutenção das condições que permitem a realização da vida é um fim que difere fundamentalmente do que tem pôr fim a imiscuição na efetivação da própria vida quer se trate de ajudar, quer de dirigir quer de deter o indivíduo. Vamos investigar primeiramente se a equidade permite ao Estado desempenhar este papel e se há considerações políticas que venham confirmar as considerações ditadas pela equidade. CAPÍTULO XXVI Os Limites dos Deveres do Estado § 117. - A teoria do governo paternal surgiu naturalmente na época primitiva, em que a família e o Estado se não haviam diferenciado ainda, quando a obediência comum ao ascendente mais idoso, pai, avô ou bisavô reunia sob a sua direção os membros do grupo. Pondo de parte, como Henry Maine os mais antigos grupos sociais, subscreveremos a sua afirmação genérica, de que entre os povos arianos e semíticos, o poder despótico dos pais sobre os filhos, se transmitia à medida que estes últimos se transformavam em chefes de família, e que esse poder despótico imprimia um carácter geral à fiscalização exercida em todos os membros do grupo. A ideia do sistema de governo que daqui resultou, estendeu-se, como era inevitável, ao sistema que se constituiu quando os grupos de famílias se juntaram em comunidades. Este sistema persistiu também com a fusão de comunidades pouco numerosas em sociedades maiores, que não eram ligadas por qualquer afinidade de raça ou cujas afinidades eram frouxas. A teoria do governo paternal, que assim se formou, afirma tacitamente a legitimidade do governo ilimitado. A autoridade despótica do pai estendia-se a todos os atos dos filhos e o governo patriarcal que daí proveio, chegou naturalmente a exercer-se relativamente à vida inteira dos súditos. Neste estado a autoridade despótica não conhecia nem distinções, nem delimitações; e quando o grupo, tendo na sua totalidade uma origem comum, conservou alguma coisa da sua constituição originária, enquanto reteve em comunidade absoluta ou parcial o território que habitava e os seus produtos, a concepção dum governo com autoridade ilimitada ficou sendo o que provavelmente se adaptava melhor às necessidades sociais. Tal como sucede com as ideias religiosas antigas, esta velha ideia social tem sobrevivido e reaparece continuamente, em meio de condições sociais inteiramente diferentes daquela a que foi apropriado. Um vago sentimentalismo manifesta ainda a sua estima pelo governo paternal. Esse vago sentimentalismo não procura compreender o sentido preciso do governo paternal e não avalia por consequência a impossibilidade da sua aplicação a sociedades chegadas a um desenvolvimento superior. Não existe nem pode existir atualmente nenhum dos caráteres originais do governo paternal. Merece a pena observar esta oposição de condições. A paternidade implica de ordinário a propriedade dos meios de subsistência dos filhos e dos serviçais; um direito aproximado a este continua a subsistir sob a forma do governo patriarcal. Nas nações adiantadas, porém, este carácter apaga-se e cede o lugar a um caráter inteiramente oposto. O aparelho governamental já não fornece a subsistência submetida à sua autoridade; pelo contrário são estes que provêm às necessidades do governo. No verdadeiro regime patriarcal era o detentor do poder o detentor também de todos os bens existentes, o benfeitor e o senhor dos filhos. Os governos modernos, pelo contrário, recebem a maior parte do seu poder daqueles que ocupam a posição que no regime patriarcal ocupavam os filhos; não é, pois, possível que se transforme em seu benfeitor, no sentido em que empregamos esta palavra, pois que recebe das mãos deles os meios que lhe permitem agir em seu nome. Além disto os interesses dos governantes e dos governados, são quase idênticos nos grupos familiares simples ou compostos e os laços de sangue contribuem para assegurar uma ação reguladora, apropriada ao bem geral. Nenhuma das emoções que determinam o sentimento de família e de parentesco, penetra as relações políticas das sociedades adiantadas e não pode servir para pôr em cheque o egoísmo do poder, quer ele se apresente sob a forma de um rei, duma oligarquia ou dum corpo democrático, como o dos Estados Unidos. Este presumido paralelismo falha também relativamente aos conhecimentos e à sabedoria do governo. No governo paternal primitivo e no governo patriarcal que dele derivou, a autoridade associava-se em regra, a uma experiência mais vasta e a uma clarividência mais penetrante que a dos descendentes que governava. Nas sociedades desenvolvidas, não há nenhuma oposição deste género entre a superioridade mental dos membros considerados como ocupando a posição do pai e a inferioridade mental dos considerados como ocupando a posição de filhos. Pelo contrário, entre os qualificados metaforicamente de filhos, alguns há com conhecimentos e inteligência superiores à do soberano único ou múltiplo. Nos países de soberano múltiplo, quando os pretensos filhos têm de escolher os membros destinados a fazer parte do governo, deixam geralmente de lado os mais capazes. Muitas vezes, é a tolice, e não a sabedoria coletiva que governa, o que constitui um novo ensejo da relação paternal e filial. A teoria das funções do Estado que se baseia neste pretendido paralelismo, é, pois, absolutamente falsa. A analogia que ela imagina encontrar entre a relação de pai para filho e dos governantes para os governados, não tem outra base que não seja a puerilidade de espírito dos seus defensores. § 118. - Há uma outra concepção dos deveres do Estado, nascida ao mermo tempo que a precedente, mas que se foi diferenciando sucessivamente dela: criou-a a experiencia das ações governamentais, necessárias à direção duma guerra e, mesmo em tempos recentes, é principalmente sob essa forma que a ação governamental se manifesta. Nos grupos sociais anteriores ao tipo patriarcal, o chefe dos guerreiros é, de ordinário, o chefe de Estado. Esta identidade persiste nos estados seguintes e determina a natureza geral do governo. Para fazer bons soldados não basta apenas subordinar os homens de posto em posto e adestrá-los por meio de exercícios militares; é necessário também regrar a sua vida diária de modo a desenvolver a sua capacidade guerreira. Mas isto não é tudo. O soldado-rei acostumado a ver na comunidade uma reserva destinada a fornecer-lhe soldados e os recursos necessários, tende naturalmente a alargar o seu império até à vida inteira dos seus súditos. Este regime militar tem predominado e predomina ainda em várias nações da atualidade; daí a quase universalidade desta ideia de que o poder governamental e da ideia concomitante relativamente aos deveres do Estado. Esparta, o mais militar dos estados da Grécia, fazia da preparação para a guerra a grande ocupação da vida, sendo a idade dos cidadãos regulamentada de princípio ao fim com a mira nessa preparação. Embora Atenas não tenha feito esforços tão grandes para este objetivo, a guerra era nela considerada, todavia como sendo o fim predominante. Na Republica Ideal de Platão a educação devia adaptar os cidadãos às necessidades sociais, sendo a primeira delas a da defesa social: o poder do corpo coletivo sobre as suas unidades era levado a tal extremo que se regrava a procriação pela escolha dos pais e se estabeleciam preceitos relativamente às idades destes. Aristóteles, na sua Política recomenda que se tire aos pais a educação dos filhos e que se eduquem diferentemente as diversas classes de cidadãos a fim de adaptar cada uma delas às necessidades públicas: atribuía também ao legislador o direito de regular os casamentos e a procriação. foi assim que a concepção das funções governamentais, nascida do regime militar e apropriada a uma nação de combatentes, se tornou numa concepção geralmente espalhada. Temos nesta ocasião de verificar mais uma vez que sentimentos e usos apropriados aos estados primitivos do desenvolvimento humano sobrevivem e permanecem nos estados superiores aos quais já não são adaptáveis, fado este que não obsta a que a opinião e as atividades dominantes continuem a ser pervertidas por elas. A concepção dos deveres do Estado que convinha às sociedades gregas, convém ainda, na opinião de muita gente, às sociedades modernas. Sócrates imaginou uma organização social reputada por ele como a mais perfeita e aprovada por Platão como tal, em que as classes laboriosas ficavam sob a inteira sujeição das classes superiores. Aristóteles, na sua Política considera a família como devendo normalmente ser constituída por homens livres e escravos e ensina que num estado bem regulado nenhum trabalhador deve ser cidadão e que todos os cultivadores do solo devem ser reduzidos à escravidão. Ha, todavia, quem tenha a ousadia de afirmar que se faria bem em adotar a teoria helênica dos deveres do Estado. Aristóteles esclarece-nos a sua concepção do justo e do injusto com a afirmação de que é impossível a um operário ou a um serviçal assalariado praticar a virtude; e, contudo, há quem sustente que procederiam os sabiamente inclinando-nos diante da sua concepção do justo e do injusto em matéria social! As ideias apropriadas a uma sociedade unicamente baseada nas relações do Estatuto apropriar-se-ia a uma sociedade organizada na base das relações contratuais! Uma moral política pertencente a um sistema de cooperação obrigatória aplicar-se-ia a um sistema de cooperação voluntária! § 119. - Os admiradores deste sistema poderiam, em verdade, invocar a desculpa de que a vida militar goza ainda num certo grau em Inglaterra e em maior grau no continente um papel tão considerável e por vezes tão extremo que estas doutrinas tradicionais seriam atualmente apropriáveis ao estado social. A prática força a teoria e as constantes transigências entre o que é novo e o que é velho; isto é, a teoria é obrigada a conformar-se com a prática. Não é, por isso, possível que a opinião geral viesse admitir que a ação governamental deve ser sujeita a restrições imperativas. A doutrina de que o papel do Estado não pode exercer-se legitimamente senão a dentro duma esfera limitada só pode ter cabimento numa sociedade de tipo pacifico e industrial plenamente desenvolvidos. Não é apropriada nem ao tipo militar, nem aos tipos de transição entre o regime militar e o regime industrial. A existência de relações entre as unidades e a coletividade, baseadas unicamente na justiça é impossível enquanto a coletividade e as suas unidades se entregarem conjunta ou separadamente, à perpetração da injustiça no interior. Homens que aluguem os seus serviços para obedecerem ao comando e fazerem fogo sobre outros homens sem se preocuparem com a equidade da causa que defendem são incapazes de estabelecer modalidades sociais equitativas. Enquanto as nações europeias continuarem a dividir, com um indiferentismo cínico pelos direitos dos povos inferiores, persistirem em partilhar as partes da terra que estes habitam, será insensato esperar que o governo de cada uma dessas nações tenha tais deferências pelos direitos dos indivíduos que se desvie duma ou doutra medida que a política pareça recomendar. Enquanto a força que efetua conquistas no estrangeiro conferir direitos aos territórios conquistados, a opinião da mãe-pátria persistirá na doutrina de que um ato do Parlamento é onipotente e de que a vontade do agregado tem o direito de se impor, sem limite, às vontades individuais. A razão permite por certo alegar que, nas condições atuais, é indispensável a fé na autoridade absoluta do Estado. Pode defender-se a hipótese tácita de que a engrenagem dirigente, que uma comunidade escolheu ou aceitou, não deve ser sujeita a restrição alguma, pois que, a não ser assim, seria impossível assegurar a união combinada das ações individuais, união que os acontecimentos por vezes tornam precisa. Na guerra, a falta de confiança no general em chefe pode ser uma causa de derrota; semelhantemente, o ceticismo relativo à autoridade governamental pode dar origem a hesitações e a dissenções fatais. A doutrina da autoridade ilimitada do Estado prevalecerá, pois, enquanto a religião da inimizade influir poderosamente na religião da amizade. § 120. - Remontados à origem da concepção corrente dos deveres do Estado, vimos quais as causas por que ela sobreviveu, embora só parcialmente seja adaptável às condições modernas. Isso habilita-nos unicamente a prepararmo-nos melhor. Tendo nós reconhecido que é provável, se não certo, que a teoria respeitante à esfera de ação do governo, que se adaptava às sociedades organizadas sobre o princípio de cooperação obrigatória, não possa adaptar-se às sociedades modernas organizadas sobre o alicerce da cooperação voluntaria, prosseguiremos nas nossas investigações para procurarmos, para conseguirmos chegar a uma teoria apropriada às sociedades modernas. Cada nação constitui uma variedade da raça humana. O bem geral da humanidade realiza-se pela prosperidade e expansão das suas variedades superiores. Ao libertar-se do estado evolutivo baseado na depredação, quando atingir um outro estado em que a concorrência entre as sociedades se realize sem violência, a humanidade assistirá ao crescente predomínio das sociedades em que haja maior número de indivíduos superiores. A produção e a conservação desses indivíduos só pode realizar-se pela conformidade com a lei que impõe a cada um as consequências, boas ou más, derivadas da conduta que tiveram; no estado social, a conduta produtiva destes resultados deve, para cada indivíduo, confinar com o limite criado pela presença de outros indivíduos que empregam iguais atividades e colhem as consequências delas. Daqui resulta que, em igualdade de circunstâncias, o máximo de prosperidade e de multiplicação de indivíduos eficientes, se produzirá quando cada um deles possa cumprir as exigências da sua natureza, sem entravar nos outros o cumprimento das mesmas exigências. Qual será então o dever da sociedade considerada como capacidade corporativa, isto é, como Estado? Não tendo que precaver-se contra os perigos exteriores, quais as obrigações que lhe ficam para cumprir? Se o desideratum, tanto para os indivíduos como para a sociedade, como para a raça é o de que os indivíduos possam, como tais, realizar .as suas finalidades particulares, isto é, as suas vidas, submetendo-se às condições precitadas, a sociedade considerada como capacidade corporativa, terá a missão de vigiar e manter o respeito dessas condições. Inútil será acrescentar que tal missão implica a interdição de nada praticar que entrave a efetividade das referidas condições. A delimitação dos deveres do Estado é um problema cujo enunciado se reduz a isto: Pode o Estado, sem infringir os princípios do justo, arrogar-se qualquer outra missão que não seja a da manutenção da Justiça? Vamos mostrar que não pode. § 121. - Se o Estado ultrapassa o cumprimento do dever que lhe assinalámos, terá que adotar, separada ou simultaneamente um dos seguintes métodos, qualquer dos quais se opõe ao cumprimento da sua missão. Das ações ulteriores que empreenda, uma parte delas ficará incursa na categoria das ações que restringem a liberdade duns indivíduos além do que exige a manutenção da análoga liberdade dos outros; o que equivale a dizer que, procedendo assim, o Estado viola a lei de igual liberdade. Por isso que a justiça afirma que a liberdade de cada um tem somente por limites as liberdades análogas de todos, é injusto impor-lhe um limite diferente, quer o poder que imponha essa modificação restritiva seja um só homem ou milhares deles diretamente ou representados pelo Estado. Temo-lo acentuado em dezenas de páginas deste livro: a lei de igual liberdade que formulámos e os direitos especiais que dela deduzimos não existem por virtude da autoridade do Estado: o Estado não é senão um órgão incumbido de os assegurar e manter. Se em lugar de proceder assim, os entrava, pratica a injustiça em vez de a prevenir. A sociedade inglesa e, todas as contemporâneas civilizadas, consideraria provavelmente como assassinatos o facto de se matarem as crianças débeis por mandato da autoridade; a sua apreciação não se modificaria pela circunstância de serem muitos em vez dum só, os promulgadores dessas mortes. Diferentemente do que sucedeu em épocas passadas, quaisquer leis que hoje adstringissem os homens às terras em que nasceram e lhes induzisse outras ocupações além de certas pré-estabelecidas, seriam repelidas presentemente como um intolerável abuso de poder. É necessário, porém que os nossos espíritos e o dos estadistas se não deixem impressionar somente por atentados tão patentes e extremos como os que apontámos. A par desses, outros ha que importa pôr em foco. Um roubo é sempre um roubo, seja o objeto roubado uma peça de ouro ou a ínfima das moedas de cobre; identicamente, uma agressão, desde a mais grave à mais leve, é sempre uma agressão. O segundo dos dois procedimentos a que aludimos no início deste parágrafo, a injustiça de direta e especial que era no primeiro, passa a ser indefinida e indireta. Coagir o cidadão e entrar no tesouro público com o seu dinheiro para pagamento, não das despesas concernentes à proteção da sua pessoa, da sua liberdade e dos seus bens, mas para saldar gastos a que ele não deu o seu assentimento - é praticar uma injustiça em vez de a prevenir. O imposto, em razão das designações com que o crismam, das pseudojustificações com que o defendem, e da máscara com que os costumes inveterados encobrem a natureza das coisas, não é considerado como uma restrição da liberdade: todavia é-o. O dinheiro antecipadamente cobrado - e principalmente o obtido pelo imposto indireto - representa uma certa soma de trabalho; a arrecadação pelo Estado do produto dum trabalho ou deixa o indivíduo desprevenido das vantagens que dele obtivera ou obrigá-lo-á a um acréscimo de esforço para readquirir a quantia desembolsada. A servidão parcial que daqui resulta teve, nas épocas feudais a sua plenitude, quando, sob a denominação corrogata proveniente do latim barbárico, as classes inferiores eram obrigadas a efetuar ao respectivo senhor pagamentos especificados em trabalho e tempo; a comutação pecuniária de tais serviços, modificou a forma do encargo, mas não lhe alterou a natureza. Uma corrogata do Estado, corrogata fica sendo embora não seja imposta sob a forma de determinados gêneros de trabalho, mas em quantias de dinheiro que trabalho representam; como a antiga corrogata sob a forma originária e não dissimulada, a corrogata moderna é também uma privação de liberdade. De facto, as autoridades dizem (ou é como se dissessem) aos cidadãos que administram: «empregaremos uma parte do vosso trabalho a nosso belo prazer e não consoante estenderdes que deve ser aplicado»; os cidadãos são, pois, escravos do governo e são-no tanto mais quanto maiores forem a exigências daquele. «Mas é para utilidade deles que se tornam escravos, objetar-se-á; o dinheiro que são coagidos a entregar assegura de algum modo o seu bem-estar». A teoria é essa; porém aí está a contradita-la os múltiplos malefícios emanados da enorme coleção das nossas leis. O ponto que nós discutimos é, acima de tudo, um tema de justiça. Admitamos - o que não é exato - que as vantagens custeadas pelos réditos públicos extraordinários estejam equitativamente distribuídas por todos os que concorreram para o pagamento delas. Nem mesmo assim deixaria de existir uma contradição com o princípio fundamental duma ordem social equitativa. Sempre que haja coação, a liberdade fica violada, embora os coatores imaginem que o fazem para o bem dos coagidos. Quando os legisladores impõem pela força as suas vontades às vontades dos cidadãos, violam, na pessoa destes a lei de igual liberdade: o móbil que determinou tal violação importa pouco; o facto em si é que é tudo. O número dos agressores não dignifica uma agressão que, ficará sendo tão criminosa como se um só indivíduo a cometesse. A maioria dos meus leitores á certa virá lendo com pasmo esta condenação de poderes ilimitados do Estado e tê-la-á chocado a afirmativa de que os governos incorrem em culpa sempre que ultrapassem os limites que demarcámos. Em toda a parte e em todos os tempos, os adeptos das ideias relativas às instituições e aos costumes as consideraram como irrefutáveis. Em toda a parte, em que o fanatismo imperou, o furor das perseguições religiosas procurou opiar-se no falso princípio de que a dissidência das crenças recebidas implica premeditada maldade ou possessão demoníaca. Quando o papa era o senhor dos reis, revestia o aspecto dum monstruoso pecado a negação da autoridade da Igreja; e ainda hoje os indígenas de algumas regiões africanas acham que é uma monstruosidade a adaptação de outras crenças religiosas que não sejam as locais. «Estes brancos são insensatos» exclamam os pretos, comentando a incredulidade dos europeus pelos feitiços e crendices regionais. Com as rudimentares ideias políticas dos povos não civilizados dá-se o mesmo. Williams e Calvert contam no seu Tiji and the Fijians que viram um homem que estava resignadamente à espera de que lhe aplicassem a pena de morte, não obstante a facilidade que teria em fugir por isso que ninguém o vigiava e nada o amarrava ou lhe tolhia a inteira liberdade de movimentos. «A vontade do soberano tem de cumprir-se» respondeu ele às observações dos dois europeus e nem por sombras lhe passou pela cabeça que o direito dum soberano, fosse ele qual fosse, pudesse ser posto em dúvida, ou desacatado. Na Europa, enquanto a teoria do direito divino dos reis teve a aceitação geral considerava-se como o mais negro dos crimes negar que todos os homens devem obediência a um só. Não há um século ainda que uma turba esteve prestes a assassinar, aos gritos de «Viva a Igreja, viva o rei» um pregador que ousara desaprovar a forma da política eclesiástica do governo vigente. As coisas estão ainda pouco mais ou menos no mesmo pé e a maioria dos homens alcunharão de varrido de entendimento ou de fanático, o homem que rejeitar a doutrina da autoridade ilimitada do Estado. A auréola divina que cinge a cabeça dos reis substituímo-la pela aureola divina que cinge o policéfalo parlamentar. O mando dumas centenas de pessoas eleitas por uma ignorante multidão, - mando sucessor do exercido por um homem só, que se imaginava designado pelo céu - reclama e obtém os mesmos ilimitados poderes que aquele possuía. O direito «sagrado» da maioria, geralmente estupida, constrangendo uma minoria muitas vezes inteligente e mais instruída, exerce-se em quantas leis lhe apraza promulgar; não obstante há a considerar a organização parlamentar como duma retidão e duma utilidade absoluta. Assim como não é de esperar, por parte dos que consideram «como um dever sagrado a vingança sanguinolenta», o cumprimento do preceito que ordena o perdão das injurias; assim também não é de esperar que quem pesca votos com o engodo de inumeráveis subsídios do Estado, liguem algum apreço a uma teoria dos deveres do Estado que poria em derrocada a quase totalidade dos seus favoritos projetos. Mas a despeito das censuras e dos desdéns que pela teoria expendida possam manifestar, não nos cansaremos de insistir nela e de reafirmar que os processos de tais estadistas estão em flagrante contradição com o princípio fundamental duma vida social harmónica. § 122 - Esta parte dos «Principias da Ética» deveria, com rigor, findar aqui. Já enunciámos o vereditum da moral absoluta relativo aos deveres do Estado e já tratámos das restrições admitidas pela moral relativa ao entrar em linha de conta com as necessidades originadas pela prevenção contra agressões de além-fronteiras. Vimos que durante a passagem da forma social militarista para a forma social industrial, o Estado por uma exagerada concepção da sua autoridade (exagero natural e em grande parte necessário) foi compelido à prática de inumeráveis ações injustas. Sobre o assunto, a ética disse quanto havia a dizer. Todavia, afigurasse-nos que será vantajoso dar maior desenvolvimento à demonstração do que, além de injustas em teoria, tais ações são, na prática, impolíticas. O assunto alargado assim, torna-se vastíssimo e não poderá ser cabalmente tratado no espaço de que dispomos. O mais que atingiremos será, pois, o de escorçar as linhas principais da nossa argumentação ajuntando-lhes alguns exemplos necessários para que melhor se lhe avalie o alcance. Vamos tratar primeiramente do Estado em geral, considerado como um instrumento oposto a outros. Examinaremos em seguida se a sua natureza o torna capaz de dar remédio a outros males que não sejam os resultantes das agressões externas ou internas. Estudaremos depois o valor das razões que se invocam para lhe assinar a obrigação e lhe atribuir o poder de realizar benefícios positivos. finalmente, investigaremos se a extensão das suas atividades será favorável ou desfavorável do fim último que se tem em vista, isto é, ao progressivo desenvolvimento da natureza humana. Nota – É bom prevenir o leitor de que a realidade dos argumentos que vou passar a expor não deve avaliar-se unicamente pela matéria dos capítulos que seguem. A quem pretenda uma defesa completa e uma luta mais desenvolvida de fatos corroborativos, lembro os diversos ensaios que sobre este mesmo assunto tenho intervaladamente publicado e que estão sendo reunidos numa reedição desses mesmos ensaios que entrou no prelo. Eis os titulas deles: Do excesso de legislação. É bom o governo representativo? Da ingerência do Estado em matéria de Bancos e de Moeda. O Feitiço Político e a Administração especializada. Chamo também a atenção para os capítulos que constituem a última parte da Estatística Social, obra que retirei da circulação. mas de que tenciono dar à estampa vários trechos selecionados. CAPÍTULO XXVII Os limites dos Deveres do Estado (Continuação) § 123 - Vimos no capítulo XXIII que uma sociedade chegada a um grau superior da sua evolução pode adquirir uma natureza fundamental diferente da que tinha nos estados inferiores. Daí deduzimos o corolário de que uma teoria dos deveres do Estado apropriada à primeira data dessas naturezas deve deixar de ser apropriada a sua natureza posterior: vamos agora deduzir um segundo corolário e é que a mudança de natureza sobrevinda alivia o Estado de várias funções de que ele havia começado por ser o agente mais próprio e dá origem a novos agentes melhor adaptados a exercer as mesmas funções. Enquanto a guerra continuou a ser um dos grandes fitos da vida, enquanto a organização militar continuou a impor-se, enquanto uma regra coerciva se tornar indispensável para disciplinar os homens imprevidentes a domar as naturezas antissociais, foi impossível às forças não governamentais o desenvolverem-se. Os cidadãos não tinham nem os meios, nem a experiencia, nem os carácteres, nem as ideias que a corporação privada, quando organizada em vária escala, exige. As incumbências de maior monta estavam todas a cargo do Estado. O único instrumento capaz de rasgar canais, de abrir caminhos, de construir aquedutos era o poder governamental comandando legiões de escravos. A declinação do regime militarista, ou do sistema do Estatuto e o aumento do industrialismo, ou do sistema do contrato, foi tornando possível, pouco a pouco, e determinou a formação gradual de múltiplas associações de cidadãos constituídas para realizarem funções variadas e numerosas. Este resultado foi a consequência de modificações nos costumes, nas tendências e nas maneiras de pensar produzidas, em cada geração sucessiva, pela troca diária de serviços livremente contratados que acabaram por substituir os serviços que dantes eram coercivamente impostos. A evolução que neste sentido se realizou permite realizar atualmente, sem intervenção do poder governamental, diversos empreendimentos que em épocas passadas só ele podia levar a cabo. Devemos ter sempre em vista, na discussão da esfera própria da ação do Estado, não somente deste facto, mas também da patente consequência que dele deriva: e é que as mudanças que se tem efetuado estão longe do seu terminus e que é presumível concluir que novos progressos venham a justificar o abandono, por parte do Estado, de funções que atualmente desempenha. § 124 - Esse abandono por parte do Estado, de certas das suas funções e a sua transferência para outros agentes constituem para o espírito de quem esteja ao corrente das leis de organização, um incontestável progresso. Mas infelizmente, esta verdade parece passar incompreendida para aqueles que principiaram por fazer versos ridículos nos bancos das escolas e que na idade madura se ocupam na fatura de leis destinadas a captar a confiança das multidões. Está averiguado que o progresso dum estado inferior para um estado superior, se caracteriza, tanto para os organismos individuais como para os sociais, pela heterogeneidade crescente das estruturas e pela subdivisão crescente das funções. A mutua dependência das partes aumenta em ambos os casos à medida que o tipo se eleva e esse aumento implica, por um lado, a localização crescente de certa função na parte do organismo que lhe corresponde e, por outro, uma aptidão crescente de função. Milne Edwards deu há cinquenta anos a este princípio de desenvolvimento dos animais o qualificativo de «divisão fisiológica do trabalho» e reconheceu o paralelismo que existe entre a economia vital e a economia social. Ainda que esse paralelismo esteja sendo admitido cada vez mais, certo é que mesmo a minoria culta não tem dele ainda senão uma vaga noção, não obstante a extensão da divisão do trabalho que se expande aos olhos de todos nas partes industriais do organismo social e a despeito dos benefícios que a Economia Política lhe assinala e demonstra. Nada disto obsta a que se continue a não compreender, ou a compreender incompletamente, que esse princípio se aplica igualmente à parte governante da sociedade e ás suas relações com as partes restantes do corpo social. Independentemente porém dos múltiplos exemplos que o põem em foco, poderíamos ficar certos de que a especialização e a delimitação que dele resulta se produzem normalmente tanto nas estruturas reguladoras como em todas as outras estruturas sociais, de que essa especialização e essa especialização são benéficas e ainda de que toda a modificação em sentido contrário constitui um retrocesso. A nova conclusão permanece pois no seu mesmo pé: Um estado de funções universais caracteriza um tipo social atrasado; o abandono de funções por parte do Estado caracteriza um progresso para um tipo social superior. § 125 - Provavelmente, a maioria dos meus leitores ficou ligando, a estas conclusões gerais uma medíocre importância e crédito. Vou esforçar-me, pois, por avigora-las com argumentos de mais fácil convencimento. No § 5.0 deste livro assinalei o fado de que todo o corpo vivo depende da adaptação particular e conveniente de cada parte à sua função particular. Salientei também que a compensação necessária entre as faculdades de cada parte se efetua por virtude da sua concorrência constante em face da subsistência e do afluxo, para cada uma, da quantidade, de subsistência que corresponde ao trabalho dispendido. É supérfluo demonstrar que a concorrência assegura, nas partes industriais da sociedade, uma análoga compensação por análogos meios e que a manutenção constante, nos limites do possível, da relação entre o esforço e a vantagem obtida serve com o máximo êxito o conjunto das necessidades sociais. Esta compensação opera-se espontaneamente em todas as corporações não governamentais que constituem a maior parte da vida social moderna. Não insistirei na ação da lei da oferta e da procura que rege toda a nossa organização industrial, bastando indicar de passagem que este princípio regula todas as instituições não governamentais, tais como as associações voluntarias que tem por fim o ensino religioso, as associações filantrópicas e as uniões operarias. A atividade de todas elas aumenta, permanece estacionária, ou declina, conforme o grau de satisfação que dão às necessidades existentes. Mas isto ainda não é tudo. Torna-se preciso acentuar insistentemente que, cada uma destas organizações é forçada, pela pressão da concorrência, a realizar em troca duma dada quantidade de subsistência, o máximo possível de função. A concorrência impele-as para o aperfeiçoamento; para este intuito adotam não somente as engrenagens mais perfeitas, mas apelam para os homens mais inteligentes e mais dedicados. A direta relação que ligam o esforço à prosperidade obriga todas estas corporações voluntarias e um trabalho de alta pressão. Em vez do espetáculo da relação direta entre a função e a nutrição, as cooperações impostas realizadas pela ação governamental dão-nos, opostamente o espetáculo de relações muito indiretas. Neste último caso as funções públicas, por estarem todas arregimentadas militarmente, por serem todas mantidas com impostos arrancados à força, por serem todas unicamente responsáveis perante o chefe, nomeado na maior parte dos casos em razão de conveniências partidárias, não dependem imediatamente dos homens a que são destinadas a prestar serviço, nem relativamente aos meios de subsistência relativamente ao desenvolvimento. Nenhum temor de falência as excita ao cumprimento completo e rápido do seu dever, nenhum concorrente trabalhando em mais econômicas condições as ameaça de uma perda de clientela; nenhum aumento de benefício resulta para elas do estudo e da adoção dos melhoramentos a introduzir. Os seus defeitos patenteiam-se, por isto a toda a luz. Conversando eu ultimamente com um funcionário e aludindo à negligencia dum dos seus colegas «respondeu: ora! pagam-lhe mal e não admira por isso que não esteja para massadas». A consequência desta relação indireta entre os resultados realizados e os emolumentos recebidos é a de que as administrações governamentais continuam a viver e a subsistir quando já não prestam serviço algum durante anos e por vezes, durante gerações sucessivas. Para lhes corrigir a moleza, a lentidão, e a negligencia o único remédio que há é o de as pôr em movimento, apesar da complicada máquina governamental, por intermédio de reclamações enérgicas e repelidas com infatigável perseverança. § 126 - Todos os dias a imprensa nos proporciona exemplos que veem em apoio destas verdades, e que são aplicáveis às próprias funções essenciais que na atualidade não podem deixar de ser reservadas ao Estado. O funcionamento desordenado das engrenagens de proteção nacional e individual é uma causa de intermináveis escândalos. Vemos por exemplo, que na administração do exército inglês o comando em chefe é dado a um duque da família real e que o vasto quadro do generalato tem por único objeto a satisfação de interesses de classe e que as promoções raramente representam a recompensa do mérito. A administração oculta aos nossos oficiais aperfeiçoamentos que patenteia aos oficiais estrangeiros, os segredos dos nossos arsenais são divulgados pela inconfidência dos empregados. Citaremos ainda as espantosas descobertas feitas relativamente aos nossos depósitos de material de guerra, onde se encontraram vagonetas tortas, sabres que se quebram, cartuchos que não entram nos respectivos canhões, e projetis de dimensões mal calculadas. A comissão de inquérito de 1887 relatou a este propósito: «o nosso sistema atual não tem uma regulamentação nítida e é dirigido ao acaso; não se tomou ainda medida alguma eficaz e publica para o aprovisionamento e fabrico das nossas reservas de guerra, para a descriminação das responsabilidades dos funcionários culposos ou negligentes, e nem sequer se tem procurado averiguar os abusos existentes». Numerosas queixas, investigações e denúncias, têm vindo mostrar que o estado da marinha inglesa é igual ao do seu exército. Toda a gente se lembra do acontecido nas manobras navais destinadas à celebração do jubileu: mais de doze navios de grande e pequeno lote, sem que se tivessem sujeitado às contingências dum combate naval ficaram danificados em resultado de colisões, explosões e de acidentes nas máquinas. Pouco antes haviam-se dado nos vinte e quatro torpedeiros que faziam serviço de cruzeiro na Mancha fatos menos graves, mas não menos significativos: desses vinte e quatro barcos ficaram oito inutilizados. Ouve-se a todos os instantes falar de navios de guerra que não governam, de canhões que rebentam, de vasos com rombos abertos. O Sultan, navio de guerra de primeira classe, afundou-se depois de haver batido de encontro a um rochedo e o Almirantado considerava-o como perdido quando - significativo contraste - apareceu uma companhia que o içou e pôs a flutuar. O relatório acerca da administração do Almirantado publicado em março de 1887 declara que «a gestão dele aplicada a uma casa de comercio fá-la-ia falir em poucos meses.» O mesmo acontece relativamente aos trabalhos legislativos e da administração das leis. É tão patente a falta de tino que neles continuamente impera, que a opinião pública nem já se comove com isso. O parlamentarismo dá-nos frequentemente, provas da maior precipitação e da maior incúria: umas vezes as leis são votadas a galope e sem discussão após as leituras regimentais; outras vezes depois de terem sido retardadas por meio de uma minuciosa discussão voltam na sessão imediata a passar novamente por toda a fieira parlamentar. Querendo prever tudo, acumulam-se nos projetos de lei alterações sobre alterações e uma vez votadas essas leis, vão perder-se no amontoado caótico das leis anteriores, aumentando a confusão existente. De nada valem queixas nem reclamações. Uma comissão de legistas e de homens de Estado publicou em 1867 um relatório que concluía pela necessidade de um digesto como preliminar de um trabalho de codificação e declarando energicamente que era um dever nacional proporcionar aos cidadãos os meios de conhecerem as leis a que são obrigados a obedecer. Todavia o Estado nada fez ainda, apesar do assunto ter sido renovado por várias vezes e a despeito do exemplo que é dado por indivíduos particulares: o Index dos Tribunais de Equidade de Chitty e o Digesto da Lei Criminal de James Stephen vieram até certo ponto dar ensinamento aos nossos legisladores a respeito da sua obra e da dos parlamentares que os precederam. O hábito embotou-nos a tal ponto que nos tem impedido de discernir o carácter monstruoso deste facto: enquanto os arrestos judiciais não estabelecem regras sobre a aplicação de algumas leis novas, os próprios homens do foro ignoram como hão-de usar delas. Por seu lado os juízes antipatizam com as leis novas pelo trabalho que elas lhe dão a interpretar. Um deles disse no pretório a propósito de um artigo de lei, que não acreditava em que o sentido desse artigo não tinha sido compreendido nem por quem o redigira nem pelo parlamento que o aprovara. «Um outro declarou que não era possível ao engenho humano encontrar termos mais confusos e mais ambíguos» que os duma determinada lei. A consequência natural de tudo, isto é, a multiplicação dos incidentes e recursos judiciais, a protelação dos julgamentos e, como remate, o terem os pleiteantes pobres de ceder lugar aos pleiteantes ricos que os arruínam arrastando-os de instancia para instancia. A espantosa desproporção das condenações dá também motivo a um permanente escândalo. Um jornaleiro, foi em Faversham, condenado a pena de cadeia por se ter aproveitado para comer de uma porção de favas que subtraiu da propriedade em que andava trabalhando e que valeriam, quando muito, um vintém: um homem rico que passe numa questão com outro homem a vias de facto torna-se quite com a justiça pagando uma indenização de que a sua fornecida bolsa quase se não ressente. O tratamento dado aos inculpados anteriormente a qualquer condenação e aos acusados reconhecidos como inocentes depois de sentença condenatória é mais revoltante ainda: os primeiros são metidos na cadeia durante meses sucessivos até ao dia em que o julgamento venha mostrar a sua inocência; os outros tendo já sofrido prolongado castigo obtém quando a sua inocência vem a ser reconhecida um simples "perdão» desacompanhado de qualquer indenização pelos duros transes em que se viram e pelo perigo que correram. Os mais pequenos incidentes da vida social - o pagamento a um cocheiro ou a compra de uma gravata - patenteia-nos a toda a hora os defeitos governativos; mas onde eles mais se salientam é no fabrico da moeda. Possuímos um sistema misto de moeda decimal, duodecimal e doutra moeda indefinível. As peças de três e de quatro pences quase se não distinguiam, até há pouco, uma das outras. Ha quatro anos, por ocasião do jubileu, introduziram-se na circulação peças de seis pences que foi necessário retirar quase logo a seguir porque se assemelhavam de tal modo aos meios soberanos que bastava doura-las para os fazer passar como tais. É preciso um minucioso exame para diferençar as novas peças de quatro schilings das antigas moedas de cinco schilings. Na maioria dos casos, a informação mais indispensável, que é a do valor oficial da moeda, brilha pela sua ausência. Além de tudo isto, o Estado não procura ajustar a oferta com a procura, por isso que em toda a Inglaterra se reclamam clamorosamente as moedas de menor valor, sem que a instituição respectiva se dê ao trabalho de as cunhar e lançar na circulação. A indução confirma, pois, com acumulados testemunhos a respeito de três ramos essenciais da administração governamental e a respeito dum ramo secundário, a conclusão que tirámos das leis gerais da organização. § 127. - Falta-nos fazer notar ainda duas deduções capitais da proposição geral que expusemos sob uma forma abstrata e apoia-la em exemplos concretos. Se o público tolera a extravagancia, a estupidez, a incúria, a obstrução que se manifestam diariamente na nossa administração militar, naval e legal, mais indulgente se mostra ainda relativamente aos defeitos doutros ramos que não tem tamanha importância e que não atraem tanto as atenções. Os vícios do funcionalismo são inevitáveis em toda a espécie de organização oficial e pulularão em excesso naquelas em que a necessidade de os reprimir seja menos urgente. A razão indica-nos que o Estado se incumbe de funções não essenciais que vem, assim, juntar-se às suas funções essenciais, não se desempenhará delas insuficientemente apenas, mas deploravelmente. A segunda das deduções é a de que o Estado cuja atenção e energia deriva para funções não essenciais, realizará mais ineficazmente que antes as suas funções essenciais. A faculdade de agir num diminuto grupo de objetivos enfraquecerá quando se lhe acrescentem objetivos novos. A crítica do público disseminando-se por uma grande variedade de assuntos será menos eficaz do que quando se concentra num número restrito de pontos. Se o Parlamento, em vez de gastar a sua atenção com mil e um assuntos diversos, e se ocupasse exclusivamente dos que tivessem por fito a proteção nacional exterior e interior, ninguém se atreveria a duvidar de que esses dois ramos essenciais da ação governativa ficassem melhor assegurados. Se a imprensa e as reuniões eleitorais tivessem por tema dominante estas matérias e não perdessem tempo em questiúnculas de subalterno interesse, o público passaria, certamente, a não tolerar a incúria que atualmente suporta. Quer se procure evitar a multiplicação de funções mal exercidas pelo Estado, quer se procure simplesmente assegurar um mais eficaz desempenho das suas funções essenciais, a delimitação torna-se imprescindível. A especialização das funções assegura, diretamente, o exercício de cada função pela adaptação do seu órgão respectivo e, indiretamente, o das outras funções permitindo a cada uma adquirir o seu órgão apropriado. § 128. - A maioria das pessoas pouca importância ligará às razões que demonstram que na administração dos negócios sociais, há um completo acordo entre a justiça e a utilidade política. Nem mesmo os homens de ciência quando se trata de fenómenos vitais, manifestam muitas vezes, a devida importância à lei natural e a universalidade da casualidade. A importância que o vulgo dá a essa universalidade é mínima, quando não é nula. Só os argumentos que assentam sobre fados de ocorrência diária conseguem alcançar êxito: e ainda mesmo sendo assim, as multidões anegam-lhes muitas vezes o valor. É, pois, conveniente reforçá-las com outros argumentos baseados em testemunhos diretos e pertinentes. Vamos consagrar-lhes o capítulo imediato. Capítulo XXVIII Os Limites dos Deveres do Estado (Continuação) § 129 - «É conveniente desconfiar da percepção direta nos problemas simples. Para se chegar a conclusões seguras é necessário adotar algum modo de exercer uma fiscalização apropriada para corrigir o engano dos sentidos. A reflexão pura e simples basta, pelo contrário, nos problemas complexos. Podemos então adicionar e compensar adequadamente as provas sem as referir a qualquer verdade geral.» Esta absurda proposição faz sorrir alguns dos meus leitores? Mas porquê? Ha dez probabilidades contra uma de que, por uma forma melhor ou pior mascarada, faça parte das suas opiniões. Quando um operário se ri dos termômetros e se supõe capaz de avaliar a temperatura dum líquido introduzindo a mão dentro dele, o leitor, sabendo que a sensação do quente e do frio varia consideravelmente conforme a temperatura da mão, discerne imediatamente o absurdo da presunção do operário, que é filha da ignorância. Esse mesmo leitor não vê, talvez, nada de absurdo na tentativa de chegar, dispensando a direção de qualquer princípio, a uma conclusão exata concernente às consequências de um ato que afete de inúmeras maneiras milhões de seres humanos; neste caso, parece-lhe supérfluo adotar um critério qualquer destinado a fiscalizar a correção das suas impressões diretas. Suponhamos que se trata de recomendar o sistema da retribuição dos professores nas escolas do Estado em razão dos resultados que obtiverem: ficará certamente convencido de que esse estimulante oferecido aos mestres será benéfico para os alunos. Nem pela cabeça lhe passa perguntar a si próprio se não será excessiva a pressão que daí resultaria. Não verá que, com grandes probabilidades, favoreceria uma receptividade mecânica e que o excesso de matérias ensinadas poderá determinar uma aversão intensa pela instrução. Não considerará que os alunos inteligentes serão objeto duma atenção especial com detrimento dos alunos de menores dotes intelectuais; e em que um sistema que não estima a instrução por si própria, mas como meio de ganhar dinheiro, não produzirá provavelmente a saúde de inteligência e reduzirá a máquinas os próprios professores. Supondo compreender claramente os resultados imediatos e não procurando investigar os resultados afastados ou desprezando-os acharia excelente o projeto. Quando vinte anos mais tarde os efeitos deste fossem julgados maus até ao ponto de se abandonar o sistema depois de comprometida a saúde de milhares de crianças e infligido uma soma incalculável de sofrimento físico e mental, este insucesso nada ensinaria ao nosso homem e no dia imediato tornaria a julgar qualquer projeto seguindo exatamente o mesmo método, isto é, contentando-se com um exame superficial e com uma compensação de probabilidades. Ora foi isto exatamente o que nós dissemos no começo deste capítulo. O recurso aos princípios gerais é julgado indispensável para os problemas simples, mas reputado dispensável para os assuntos complexos. Contudo, um instante de reflexão faria ver que é provável que esses raciocínios desprovidos de direção devem ser errados, mas também que deve existir uma direção capaz de assegurar a correção dos nossos juízos. Ha nada mais contrário ao bom senso do que imaginar que os fenómenos sociais sejam subtraíveis à causalidade natural? E como repelir a acusação de denuncia quando, admitindo-se a causalidade natural, se promulguem leis em que essa causalidade não tenha entrado em linha de conta? Demonstrámos num dos precedentes capítulos que se a causalidade não existisse todas as leis seriam iguais e o legislar seria uma ocupação ridícula. Se, pois, as leis não têm igual valor é forçoso admitir que tal lei opera dum modo mais salutar que tal outra nos homens agregados em sociedade; nesse caso esta operação mais salutar implica um certo grau de adaptação à natureza dos homens e aos seus modos de cooperação. Relativamente a estes existem, pois, princípios gerais, uniformidades muito profundas e o efeito definitivo duma legislação deve depender do grau em que essas uniformidades entrem em linha de conta para se subordinar a elas. Ha nada mais insensato do que deliberar antes de conhecer essas uniformidades? § 130. - É uma insensatez, tanto por parte das sociedades como por parte dos indivíduos, o procurarem a realização da felicidade sem atenderem às condições que a tornam possível. Mas o erro das sociedades é pior ainda do que o dos indivíduos, porque o indivíduo consegue muitas vezes iludir as consequências da sua imprevidência, ao passo que a sociedade, em razão da incidência dessas consequências num grande número de indivíduos, não consegue subtrair-se a elas. O método do criminoso é o de avaliar as consequências prováveis de cada um dos seus atos, abstraindo de qualquer sanção geral que não seja a prossecução da felicidade. Decide-se a agir ou não, conforme as probabilidades de obter o gozo e evitar o sofrimento. Desprezando as condições de equidade que deviam detê-lo, dá primazia aos resultados próximos sobre os afastados, avaliando-os, muitas vezes, com tanta exatidão que acontece chegar a colher largos gozos com dinheiros mal adquiridos e subtrair-se ao castigo dessas más aquisições, Mas com o andar dos tempos as desvantagens acabam por formar déficit no confronto sobre as vantagens, não só por que não consegue eximir-se sempre das penalidades, mas também porque, em razão da natureza que as suas ações desenvolvem nele, é incapaz de elevados gozos. O político empírico segue com um desígnio altruísta a mesma linha de conduta, traçada com desígnio egoísta, pelo violador das leis. Conquanto não tenha em mira o seu bem pessoal, mas o que julga ser o bem dos outros - o político empírico calcula a probabilidade dos prazeres e dos sofrimentos e, despreocupando-se dos preceitos da equidade pura, resolve-se pelo emprego dos métodos que, no seu pensar, assegurarão os primeiros e afastarão os segundos. Tratando-se por exemplo, de dotar de livros e de jornais as chamadas bibliotecas populares, visa resultados que considera como benéficos e não pergunta a si próprio se na verdade é justo aplicar o dinheiro tirado por imposto a A, B e C afim de proporcionar vantagens a D, E e F. Tomando medidas para reprimir a embriaguez e os males que dela derivam, preocupa-se unicamente com o ponto restrito que visa e resolve impor aos outros as suas próprias opiniões, restringindo a liberdade de compras e vendas, suprimindo industrias capitais que se haviam constituído à sombra da lei e prejudicando os capitais que nelas giravam. Como o agressor egoísta, o agressor altruísta guia-se unicamente pela apreciação dos fins imediatos e a ideia de que os atos que pratica violam o princípio fundamental de uma vida social harmoniosa não consegue detê-lo. Salta aos olhos que este utilitarismo empírico que faz da felicidade o fim imediato, está em flagrante contradição com- o utilitarismo racional cujos pontos de mira são as condições de realização definitiva. § 131. - Os partidários do empirismo político não poderão invocar razões de queixa pelo facto de submetermos o método que empregam ao critério que lhe dita. Visto que, desdenhando os princípios abstratos, nos convidam a tomar só em linha de conta os resultados, quer antecipadamente previstos quer posteriormente verificados pela experiência, o melhor que temos a fazer é aplicar o método que defendem a esse próprio método. Vamos tenta-lo. Em 19 de maio de 1890, discutindo-se na câmara dos lords um projeto de lei com carácter socialista, falou o chefe do governo nestes termos: «Antes de adotar uma proposição, não inquirimos acerca da sua origem ou derivação filosófica senão até ao ponto em que um homem sensato examina os atestados de um criado de que precisa, sem se preocupar o que pudesse ter sido o avô desse serviçal». O primeiro ministro meteu assim a ridículo a hipótese da existência de princípios gerais que regem a vida social, princípios com os quais a legislação deve conformar-se. E continuando a discursar, na mesma afinação, acrescentou: «Cada caso tem uma regra especial que é a das circunstâncias». O método que lord Salysburi assim abertamente preconizou, alcançou, de resto, universal seguimento, por parte de todos os homens políticos que se jactam de práticos e que mofam dos «princípios abstratos». Desgraçadamente tem ele sido, desde há milhares de anos, o adotado pelos legisladores cujas funestas leis elevaram as múltiplas formas da miséria humana até um grau insuscetível de exata medição. O lema: «cada caso tem uma regra especial que é a das circunstâncias» foi que inspirou a Diocleciano a fixação do preço dos salários e das mercadorias. Esse mesmo lema foi também que determinou os governos europeus a determinarem, pelos séculos afora, em inumeráveis casos, qual a quantia que devia ser dada por tal ou qual volume ou peso de produtos. Baseando-se em critério idêntico, foi que na Inglaterra, depois da peste negra, se promulgou o Estatuto dos trabalhadores que deu origem à revolta dos camponeses. Norteando-se por ele, foi que tanto no nosso país, como em muitos outros, as leis se intrometeram na vida industrial, rodeando de entraves até ao extremo de prescreverem os processos de fabrico, a qualidade das matérias primas a empregar, nomeando verdadeiras chusmas de fiscalizadores da observância desses preceitos e criando pesadas penalidades para quem as infligisse. As leis que impunham aos proprietários a divisão do solo que possuíam em terras aráveis e terras de pastagem, as referentes a tosquia do gado lanígero, às trelas das charruas, à imposição de determinadas culturas e à proibição de outras - tiveram igualmente por ditame o princípio de que: «há uma regra para caso especial que é a das circunstâncias...» O mesmíssimo princípio foi que deu de si o estabelecimento de pagamentos impostos sobre a saída de certos produtos e a proibição da entrada de outros. A ele se devem as penalidades que equiparavam os usurários aos ladrões e as que reprimiam os açambarcadores de géneros alimentícios. Cada uma destas inumeráveis leis era executada por uma nuvem de funcionários, os quais em França quase chegaram a estrangular as indústrias. Esta superabundância de leis restritivas feitas a esmo foi uma das causas da Revolução Francesa; e, não obstante qualquer delas se afigurava a quem as ditou como justificadas pelas circunstâncias. Igual critério e necessidade transitória foi que originou centenas de leis suntuárias que os reis e os seus ministros impuseram a sucessivas gerações. Desde o Estatuto de Merton até 1872 foram ab-rogados na Inglaterra para cima de quatorze mil atos do Parlamento, Parte deles vieram a fusionar-se nas leis gerais; outra foi eliminada, por supérflua; outra ainda descaiu gradualmente em desuso. Quantos deles, porém se revogaram por terem produzido maléficos resultados? Metade? A quarte parte? Menos ainda? Demos de barato que se revogassem três mil atos, por motivo da confirmação, dada pela experiência, dos perniciosos efeitos provindos deles. Que dizer a respeito dessas três mil leis que entravaram a felicidade dos homens e que sobrecarregaram de miséria as gerações, durante anos e séculos? Visto que nos devemos guiar pela observação e pela experiência, qual é o veredito que a observação e a experiência pronunciam sobre tal método de governo? Não provam uma e a outra que esse método tem acumulado defeitos sobre defeitos? Mas, objetar-nos-ão talvez «esquecei-vos de que, se muitas leis foram revogadas por prejudiciais, outras muitas deram satisfatórios resultados e são mantidas ainda.» Certamente; mas, nem por isso, a objeção apresentada deixa de ser infeliz. Com efeito, o que são leis benéficas? As que se conformam com os princípios fundamentais que os políticos práticos costumam desdenhar. São as leis da filosofia social a respeito das quais lord Salisbury falou com tamanho desdém, as que sancionam os corolários da fórmula da justiça, pois que, como mostrámos em vários capítulos, a progressiva edição das leis ratificadas pela ética tem acompanhado a evolução social. Os fatos sentenciam, pois, uma dupla condenação do utilitarismo empírico e demonstram irrefutavelmente a derrota dele e a vitória do seu oposto. Note-se que nem lord Salisbury, nem os demais aderentes da escola empírica, manifestam o chamado espírito de sequência, conservando-se uniformemente fieis ao método que arvoram como bandeira. Ao contrário, para cedas categorias de fatos importantes adotam o método que ridicularizam. Se quiserdes ver a prova, é colocá-los em face de questões de solução clara e fácil e vereis que repudiam energicamente o estribilho «das circunstâncias». Investigando as causas da facilidade com que se escapam às malhas policiais os gatunos que infestam as ruas de Londres, conta o autor dum comunicado a certo jornal o seguinte: Vendo há dias passar por um indivíduo parado a uma esquina um ladrão que fugia, com o produto do seu roubo, do encalço do roubado, perguntei ao indiferente observador da ocorrência. - Porque o não deteve quando passou ao pé de si? - Eu?! Que vantagem havia nisso? O pobre diabo pela certa tem maior precisão dos objetos roubados que o dono deles. O homem da esquina, era também dos que adotava preceito: «cada caso tem uma regra especial que é a das circunstâncias». Comparou o grau relativo da felicidade do ladrão e do roubado e deduziu do confronto a justificação do roubo. «Mas o direito de propriedade deve ser defendido, retorquiria lord Salisbury. A sociedade aluiria se cada um tivesse o direito de se apropriar do que é de outrem, acobertando-se na desculpa de que está mais necessitado do que o legítimo possuidor.» Perfeitamente; falando, porém, assim, lord Salisbury não apreciará o facto de harmonia com a doutrina que proclama, põe de lado as circunstâncias especiais que diz deverem servir de lei a cada caso, e passa a regular-se por um princípio geral. A diferença essencial entre os dois métodos fica bem salientada no episódio reproduzido. As lições legadas por milhares de anos atestam que a sociedade progride em razão da conformidade cada vez mais estrita com os corolários da fórmula da justiça e que será, pois, de bom critério procurar para cada caso nova e idêntica conformação. Todavia lord Salisbury julga que tal conformação se torna inútil quando haja uma maioria que afirme que as circunstâncias aconselham "para certo caso particular» um desvio dessa conformidade. § 132 - É deveras surpreendente que a despeito dos fatos quotidianamente narrados na imprensa noticiosa, haja quem possa ainda imaginar que as consequências das medidas tomadas para cada caso especial ficam circunscritas exclusivamente a esses fatos. A leitura das gazetas não torna os homens mais avisados. A despeito do minucioso relato de todas as ocorrências nacionais e mundiais que sob os seus olhos se desenrola a cada vinte e quatro horas, não veem que uma modificação introduzi da numa parte da sociedade determina modificações em todas as outras partes dela e persistem na convicção de que um Ato do Parlamento produzira unicamente os efeitos previstos pelos que o votaram e nenhumas consequências imprevistas. Ora, não é assim, como tive ensejo de demonstrar algures quando tratei da «causalidade frutificante.» É preciso ter sempre presente à ideia de que em todo o agregado formado de partes mutuamente dependentes, os efeitos duma causa se tornam, por si próprios, causas muitas vezes mais ativas que esses mesmos efeitos. Por seu turno, os efeitos destas últimas causas transformam-se em causas novas. O que sucedeu há anos com a alta do preço do carvão? Exerceu uma pronunciada influência no orçamento de cada lar, originando enormes sofrimentos às classes populares. Ressentiram-se as oficinas, sendo baixados os salários e aumentado o preço das vendas. A exploração dos jazigos de ferro tornou-se mais dispendiosa e o preço de todos os artigos em que esta substância entra em grande proporção aumentou consideravelmente. Daí a carestia que atingiram as máquinas, a construção e conservação dos caminhos de ferro, etc., etc. A concorrência entre a indústria inglesa e as indústrias estrangeiras fez perder aquela as suas anteriores vantagens; o número de navios fretados para o transporte dos nossos produtos decresceu e, conseguintemente, a indústria das construções navais sofreu um prejuízo reflexo, bem como todas as demais indústrias com ela conexas. Igual reflexo atingiu também um sem número doutras manifestações do trabalho nacional. A este mesmo propósito, é de lembrar também o que aconteceu com a greve das docas londrinas e quais os resultados da ininteligente simpatia dos que encarando «o caso especial» somente em si mesmo, levaram o público e a polícia a tolerar as violências de que os grevistas deitaram mão para conseguirem os seus fins. O emprego impune das agressões pessoais, das ameaças, das expulsões de associações operárias deu causa a proclamação doutras greves, em que foram usados idênticos e censuráveis processos, noutros pontos do país: Southampton, Tilbury, Glasgow e Nottingham. Os pintores de construções, os surradores, os entalhadores, os fabricantes de balanças, os manipuladores de pão, os carpinteiros, os tipógrafos, os afixadores de cartazes seguiram na esteira. Da Inglaterra o movimento alastrou para a América e Austrália onde os elementos agitadores do operariado procederam a instigações cuja falta de escrúpulo foi maior ainda do que no reino unido. De tudo isto resultaram, como efeitos secundários, perturbações e paralisações imediatas em várias indústrias que diretamente foram afetadas pela greve e prejuízos mediatos noutras que com elas tinham relação. Como resultados terciários advindos desse movimento, poder-se-á apontar o incentivo que desde então adquiriu a utopia de que basta aos operários coligarem-se para alcançarem o bom êxito das suas reclamações e o impulso dado a pretensões que conduziriam o trabalho à morte. Como resultados mais longínquos, citaremos o incremento duma legislação cheia de impertinentes minúcias que entravam a livre expansão industrial; e o desenvolvimento das ideias socialistas. Multiplicando-se e reproduzindo-se, os efeitos indiretos dão muitas vezes causa, com o andar do tempo, a um estado de coisas inteiramente oposto a que se pretendia e previa. Há no presente e no passado bastos exemplos desses desvios. O Ato parlamentar do ano 8º do reinado de Isabel teve por intuito o colocar os habitantes de Shrewsbury ao abrigo da concorrência, e interdizia a todos, exceto aos burgueses, o comércio de tecidos de algodão estampado. Decorridos seis anos apenas, os próprios habitantes de Shrewsbury suplicaram ao parlamento a revogação da citada medida protecionista «por causa do empobrecimento e da miséria dos operários e dos demais interessados, em suposto benefício dos quais o Ato parlamentar fora promulgado. Com os tecelões de Spitalfields deu-se o mesmo. Quanto aos abundantes casos contemporâneos comprovativos da nossa afirmativa, indicaremos as leis votadas nos estados de Oeste da América com o fim de favorecerem o extermínio dos gaviões e dos lobos. Não obstante os benefícios que o Governador de Grant enaltecia na mensagem dirigida à Câmara Legislativa do Colorado, em janeiro de 1885, e os que os membros desta assembleia julgaram produzir com a votação das medidas reclamadas pelo referido funcionário, os lobos e os gaviões continuaram a pulular independentemente dos prémios criados para quem os matasse». É o que se infere da totalidade dos prémios pagos. Experiência semelhante e sem resultado, se fez na índia para o extermínio dos tigres e das serpentes. Desde os tempos em que a mendicidade formigava às portarias dos conventos até à época em que a nossa antiga Lei dos Pobres inundou várias paróquias de pedintes, tem a experiência provado uniformemente que as medidas ditadas pelas circunstâncias aparentes de cada «caso especial» produziram resultados de todo contrários aqueles que as promulgaram: aumentaram as dificuldades existentes, em vez de as diminuírem. Dos fados recentes ressalta igual comprovação. O presidente da União de Bradfield, diz num artigo do Spectator, de 19 de abril de 1890, que a administração daquele instituto de beneficência conseguiu no período de dezessete anos, com um critério baseado em princípios e liberto de sentimentalismos, reduzir o número dos pobres dentro da Workhollse, de 259 a 100, e, fora, de 999 a 42. O artigo finda por manifestar o convencimento de que «os socorros distribuídos nas ruas é que dão, em grande parte, aso à indigência. Arnold White, escrevendo de Tennyson Settlement, na colónia do Cabo, a propósito dos processos colonizadores, insiste na urgência de se arredar de vez o velho hábito de pretender-se remediar apenas as necessidades aparentes. «Um plano de colonização, diz ele numa carta de 10 de janeiro de 1891, publicada no Spectator, falhará inteiramente se não previr com rude, mas necessário desassombro, a morte dos inúteis, dos que se recusem a trabalhar ... A experiência de longos e amargurados anos gravou em mim, como se fosse um ferro candente, esta lição». Se em assuntos de caridade nos deixarmos guiar pelas circunstâncias aparentes de «cada caso particular» exacerbaremos o mal em lugar de o curarmos. O critério do legislador que despreza a filosofia e não quer ver se não os fados que se circunscrevem ao acanhado horizonte abrangido pelos seus olhos, merece o mesmo nenhum respeito que o operário que se junta a outros para reclamar trabalho em obras públicas com o fito único de que perante as suas exigências o trabalho lhe será dado, sejam ou não úteis as obras em que o empreguem. O operário que assim procede só atenta nas consequências imediatas e previstas do seu caso particular sem que o preocupem os resultados mediatos ou imediatos que a ele não tenham relação. Os efeitos da aplicação de capitais a uma obra que não dará um lucro financeiro ou um proveito material ou moral compensadores, importa-lhe pouco. Não se dá á canseira de investigar quais as obras mais remuneradoras e de maior vantagem a que os capitais deveriam ser aplicados; tão pouco se preocupa com o rendimento que outros operários e industriais poderiam obter juntamente com ele. Pois coisa parecida, mas em maior escala, se dá com os estadistas de acanhado empirismo. Talvez que as suas previsões vão um tanto mais além do que as do figurado proletário que trouxemos para exemplo; mas, na realidade, estão quase tão longe como ele de possuírem a concepção nítida das vibrações que duma lei irradiam, retratando-se e repercutindo-se até ao infinito no ambiente social. § 133. - O que é pior: a credulidade sem provas ou a negação contumaz em face de fados e testemunhos convincentes? A ingenuidade do que persiste em acreditar, a despeito de quaisquer circunstâncias em que firme a sua persuasão, é contraria à integridade do raciocínio; não é, porém, defeito menor o daquele que se obstina na negativa em frente de fatos acumulados que deveriam convencê-lo. Este último gênero de ceticismo é tão perigoso como a excessiva credulidade. Tal qual o vulgar dos cidadãos, o legislador vulgar não liga a mínima importância à ação benéfica das forças sociais, apesar dos infinitos exemplos que dela existem. Obstina-se em considerar uma sociedade como se fosse uma passiva máquina e não como o produto de progressivos desenvolvimentos; os seus olhos permanecem cerrados ante o facto de que os vastos e complexos organismos sociais que a vida de hoje efetiva, são o resultado das cooperações espontâneas dos homens na persuasão dos seus fins particulares. Todavia se perguntarmos a um desses estadistas como foi que a terra se desbravou e tornou fértil, como foi que se constituíram e engrandeceram as cidades, como foi que as mais variadas industrias se desenvolveram, como foi que nasceram as artes, como foi que se desenvolveu a ciência, como foi que se gerou a literatura, será forçado a reconhecer que nenhum destes progressos é obra fundamental dos governos e que vários dentre eles têm, pelo contrário, sofrido a ação entravante do Estado. Não obstante, esse estadista continuará no seu sistemático e ignorante critério de governo, invocando o Parlamento sempre que se procure realizar um benefício ou prevenir um mal. Persistirá na cegueira da sua fé a respeito de um agente cujos erros e fraquezas são sem conto e não toma em consideração uma força que, tem no seu ativo, inumeráveis triunfos. Cada categoria de sentimentos diversos que impelem os homens para a ação desempenha um papel na produtividade das estruturas e das funções sociais. Como tivemos ocasião de mostrar, o primeiro efeito dos sentimentos egoístas - ativos sempre e sempre poderosos - foi o de desenvolver os fenómenos concernentes à produção e distribuição das riquezas: toda a vez que se rasgava uma nova área de atividade suscetível de lhes proporcionar vantagens, os homens mostraram-se logo prontos a alagar-lhe os limites, expandindo-a. Quer se tratasse de romper o canal de Suez ou de lançar uma ponte sobre o Forth, de segurar prédios, ou vidas, ou fazendas das lojas de comercio ou os vidros que se emolduram nos mostruários dos estabelecimentos; quer se organizem excursões de recreio ou explorações de terras desconhecidas; quer se intente um empreendimento de resultados amplos quer o de uma instalação, de distribuidores automáticos de binóculos nos teatros ou nas estações, a iniciativa privada tem o dom da ubiquidade e varia infinitamente nos seus aspectos: quando o Estado a repele de um ponto, canaliza-se para outro. A energia das empresas particulares e o espírito obstrucionista do funcionalismo patenteia-se em milhares de casos, dos tempos antigos até aos nossos. Encontramo-los por exemplo, na supressão feita no reinado de Carlos II de uma em preza postal em que cada carta era levada ao seu destino por um preço ínfimo e manifestam-se atualmente em acontecimentos como o da recente tentativa da supressão da Boy Messengers Company. Se mais é preciso dizer em abono da iniciativa privada, citaremos ainda as American Express Companies, que dão um patentíssimo exemplo da superioridade das em prezas espontâneas. Uma delas tem 7000 sucursais, organiza os seus comboios expressos, transporta anualmente 25 milhões de fardos e outras formas de acondicionamento de mercadorias e mantêm um sistema postal, que é aproveitado pelo próprio governo por ser de superior organização à do serviço oficial das Postas. A enorme expansão de relações dessa companhia estende-se à Europa, Índia, África, América do Sul e até a Polinésia. A par dos sentimentos egoístas cujas forças combinadas tem desenvolvido o organismo que faz subsistir as sociedades, manifestam-se também nos homens o sentimento ego-altruísta e o sentimento altruísta - o amor do aplauso e a simpatia - que os incitam à prática de outras ações isoladas ou combinadas e que dão origem às mais diversas instituições. É escusado remontar ao passado para assinalar a ação desses sentimentos sob a forma de donativos para obras educativas e de caridade. O presente oferece-nos bastos testemunhos de iniciativas dessa natureza. Na Inglaterra e principalmente na América multiplicam-se os legados de grandes somas para a criação e manutenção de institutos de ensino, para o custeio de novas cadeiras, de bolsas de estudo, para a construção e desenvolvimento bibliográfico de bibliotecas públicas. Oferecem-se parques e jardins às municipalidades e deixam-se ao Estado preciosas coleções particulares. O Standard de 11 de abril de 1890, publica um mapa dos legados aos hospitais, asilos, missões e outras sociedades caritativas, cujo total atingia 300:000 libras esterlinas. No Nineteentk Century de fevereiro de 1890, Huish mostra que no decurso dos últimos anos, os donativos particulares em favor das artes atingiram 347:500 libras em edificações e 559:000 em quadros e em dinheiro; a isto poderíamos juntar um recente donativo de 80:000 libras para a criação duma galeria de arte britânica. Não esqueçamos a infatigável atividade duma multidão de filantropos que se dedicam à propaganda de beneficência em favor dos seus concidadãos. Constituíram-se e constituem-se inúmeras associações que dispõem de rendimentos consideráveis, e que se formaram para fins desinteressados: todas elas têm por mira a beneficência, com quanto a sua organização seja frequentemente imperfeita. Longe de enfraquecerem, os intentos se não exclusivamente pelo menos largamente altruístas, que determinam a sua fundação e funcionamento, ganham terreno dia a dia. São forças que muitos e ótimos resultados tem dado já e que manifestam uma crescente tendência de desenvolvimento. Devemos, portanto, contar com a sua eficácia futura e é razoável prever que venham a produzir grandes resultados cuja possibilidade mal agora podemos entrever. § 134. - Independente mesmo das restrições éticas e das deduções a tirar da especialização progressiva que se manifesta nas sociedades, temos razões igualmente sólidas para continuarmos no convencimento de que convém mais restringir do que ampliar as funções do Estado. A sua extensão para a prossecução dum bem esperado, determina invariavelmente um insucesso. A história das nações revela-nos igualmente os incalculáveis males produzidos por leis que se guiaram apenas «pelas circunstâncias de cada espécie em particular»; é pelo contrário unanime em proclamar o êxito das leis que unicamente se inspiraram em condições de equidade. Todas as manhãs nos veem parar debaixo dos olhos os testemunhos da ação que exerce no corpo político uma causalidade frutificante tão complexa que a mais vasta inteligência é incapaz de lhe prever todos os resultados. A preconizada política pratica que imagina que a influência das suas medidas não irá além dos limites do domínio que só teve em vista, é na realidade a mais quimérica das teorias. A sua constante falta de êxito, na obtenção dos efeitos esperados e na correção dos efeitos inesperados, deveria derruir a sua fé nos meios artificiais que incessantemente emprega, e, contudo, permanece incrédula a respeito das forças naturais que tanto fizeram no passado, que tão altivas são ainda presentemente e que nos prometem um resultado sucessivamente mais fecundo. CAPÍTULO XXIX Os Limites dos Deveres do Estado (Fim) § 135. - Resta-nos expor a mais imperiosa de todas as razões que exige a restrição da ação governamental. A formação do carácter deveria ser o fim que, sobre todos os outros, deveria prevalecer no espírito dos homens do Estado; era a concepção exata do que deve ser o carácter e dos meios próprios que para o formar excluem as intervenções múltiplas do Estado. «Como assim! - vão por certo exclamar. Pois a formação do carácter não é o fim para que tende toda a legislação que nós preconizamos? Não sustentamos nós que a função capital do Estado é a de formar bons cidadãos? Não foi para o aperfeiçoamento da natureza humana que se conceberam os nossos sistemas de ensino, as nossas bibliotecas gratuitas, os nossos ginásios e as nossas instituições sanitárias?» A esta réplica interrogativa, enunciada com tanto intono e com a subentendida convicção de que nada mais nos resta senão remetermo-nos ao silêncio, responderemos que o êxito depende da bondade do ideal que se alimenta e da escolha dos meios para o realizar. Ambas essas coisas estão no caso presente inquinadas de erro radical. Os períodos precedentes indicam suficientemente quais são as opiniões rivais que vamos analisar. Entremos sem mais delongas na sua discussão sistemática. § 136. - Inumeráveis exemplos atestam tanto entre as hordas selvagens como nas nações civilizadas que para produzir um bom guerreiro é necessário prepara-lo com esse fim. Deve exercitar-se no manejo das armas desde o início da juventude; a ambição da sua mocidade deve ser a de se tornar um bom atirador da flecha, de manejar a lança ou o boomerang com força e com certeza e de adquirir aptidões para a defesa e para o ataque. Deve cultivar a rapidez e a destreza na carreira e submeter o seu vigor a numerosos treinos. Tornasse-lhe preciso também para o fim que tem em vista domar-se às duras exigências da disciplina e sujeitar-se por vezes à tortura. A educação de todo o membro macho da tribo é dirigida segundo o ponto de vista da sua adaptação aos fins da comunidade e ao concurso que deverá prestar ora para a defesa dessa comunidade ora para o ataque às tribos vizinhas, ora para ambos estes empreendimentos combinados. Esta educação não constitui uma educação dirigida pelo Estado no moderno sentido do termo, mas nem por isso deixa de ser uma educação ditada pelo costume e imposta pela opinião pública, que, tácita, senão abertamente afirma que pertence à sociedade moldar o indivíduo. O progresso social, formando sociedades mais extensas e mais regularmente governadas, desenvolve sucessivamente a educação pelo Estado. Não contentes em cultivarem com deliberado propósito o vigor, a destreza e a força de resistência, os povos principiam a cultivar também a subordinação indispensável para a execução das operações militares assim como a subordinação aos chefes e aos governantes sem a qual o emprego das forças combinadas não poderia efetuar-se de maneira satisfatória. A Grécia e em especial Esparta, constituem exemplos desta fase do progresso, à qual se associou uma teoria apropriada. A crença de que o indivíduo não pertence nem a si mesmo nem à sua família, mas à cidade, abriu natural caminho a doutrina de que a cidade tinha o direito de o educar e adotar aos seus fins. Platão e Aristóteles deixaram-nos pormenorizados planos da preparação das crianças e dos jovens para o cumprimento das obrigações de cidadão e afirmam sem hesitações de qualquer espécie que num Estado bem regulado a educação é um assunto de interesse público. Enquanto a guerra constitui a principal ocupação da vida, torna-se normal que a educação dos indivíduos se efetue segundo o modelo próprio para assegurar a vitória, e que essa educação seja confiada a um agente governamental. A experiência proporciona neste caso um ideal aproximado e dirige a escolha dos métodos para o realizar. Procura-se transformar tanto quanto possível todos os homens livres em máquinas militares automaticamente obedientes às ordens que recebem: para esta transformação é indispensável uma disciplina unificadora. Por outro lado, como acontece no tipo social militar o sistema da regulamentação coerciva que a regimentação implica alarga-se dos combatentes até a comunidade que lhes fornece a subsistência e estabelece-se naturalmente a teoria de que o governo deve adaptar a estas funções, não somente os soldados, mas todos os outros membros da comunidade. § 137 - Ha muita gente que desconhecendo a fundamental distinção entre uma sociedade para a qual a guerra é uma ocupação capital, tendo a sustentação por subordinada e, uma sociedade que faz da sustentação a sua ocupação capital subordinando-lhe a atividade guerreira, pensa que uma disciplina e uma política apropriadas a primeira o são também a segunda. Mas as relações entre o indivíduo e o Estado diferem inteiramente nos dois casos. Ao contrário do grego que não se pertencia a si próprio, mas à cidade, o inglês não pertence à nação de que faz parte, mas pertence-se a si mesmo duma acentuadíssima maneira. É verdade que se tiver a idade própria o governo pode, em caso de perigo eminente apoderar-se da sua pessoa e forçá-lo a participar na defesa nacional; todavia esta eventualidade só muito ligeiramente restringe o seu direito da posse da sua própria pessoa e da direção das suas ações. Verificámos numa larga série de capítulos anteriores que de entre os direitos deduzidos da ética que progressivamente se foram estabelecendo e que a lei escrita sancionou, foi sendo nesta gradualmente incluído o uso livre pelo indivíduo da sua individualidade, não só em face de outros indivíduos como também em face do próprio Estado: sem renunciar a defendê-lo contra as agressões de outrem, o Estado, renunciou por seu lado a praticar agressões contra ele. Numa sociedade permanentemente pacífica - o corolário é evidente - a quebra de relações seria completa. Que influência exerce esta conclusão no assunto de que nos estamos ocupando? Implica que era de antes a sociedade que amoldava os indivíduos ao seu desígnio e que atualmente é o indivíduo que procura atuar sobre a sociedade e adaptá-la aos seus intuitos. A sociedade deixou de ser um corpo político solidificado que impele para a ação a massa das suas unidades combinadas. Perdeu a sua organização coerciva e não prendendo as unidades senão pelos liames da cooperação pacífica, deixou de ser «o meio» em que as suas atividades se desenvolvem. Insisto neste ponto: como a sociedade corporativamente considerada não tem a faculdade de sentir, e como esta faculdade reside unicamente nas suas unidades, a única razão que justificaria as vidas sensíveis das unidades à vida não sensível da sociedade, só pode ser invocada sob o regime militarista e unicamente porque então esta subordinação oferece o melhor meio de proteger as vidas sensíveis das unidades. Esta razão enfraquece com o declinar do regime militarista e desaparece no regime industrial ilimitado. O direito da sociedade a disciplinar os cidadãos extinguiu-se de vez e não resta autoridade alguma com poderes para prescrever a forma que deve tomar a direção individual. «Mas dir-nos-ão, a sociedade agindo na sua capacidade corporativa e guiada pelas inteligências combinadas da nata dos seus membros, não prestará um importante serviço elaborando a concepção da natureza individual melhor adaptável a uma vida industrial harmoniosa, e a concepção da disciplina mais apropriada para que tal fim se realize?» Esta alegação subentende o direito da comunidade a impor os seus desígnios por intermédio dos seus agentes, pretenso direito que está em contradição formal com as conclusões deduzidas nalguns dos capítulos anteriores. Mas, sem nos determos nesse ponto, interroguemo-nos sobre se a sociedade é realmente apta para decidir qual o caráter que convêm ao indivíduo e quais os meios apropriados para a formação desse caráter. § 138. - Quer sejam bons quer sejam maus o ideal e o processo escolhidos, o facto da escolha implica três consequências inevitáveis cada uma das quais é bastante para condenar este sistema. A escolha impele necessariamente a uniformidade. Se as medidas adotadas derem algum efeito, esse efeito será de uma certa semelhança entre os indivíduos: nega-lo equivaleria a negar a ação das medidas tomadas. Mas o progresso será retardado proporcionalmente ao grau de uniformidade obtido. Quem tenha estudado a ordem da natureza sabe que sem variedade não há progresso possível e que só a variedade permite a evolução da vida. Conclusão inevitável: a paragem da gênese da variedade implica a sustação de todo o progresso. Este sistema tem também como consequência a produção de uma receptibilidade completamente passiva que O Estado se comprazerá a imprimir ao indivíduo. Quer o espírito de submissão faça ou deixe de fazer parte da natureza que a sociedade incorporada pretenda dar às suas unidades, não conseguirá realizar os seus projetos senão encontrando ou criando essa passividade. O caráter desejado deveria incluir, ou clara, ou dissimuladamente a disposição de cada cidadão a submeter-se a disciplina que a outros cidadãos, mais ou menos numerosos agrade impor-lhe. Haverá gente que considere talvez como um traço de elevada humanidade entregar assim a formação da natureza humana ao gosto de um agregado constituído em grande parte por unidades inferiores. A esses não lhes daremos a honra de uma discussão. Este sistema implica também o dilema seguinte: ou não existe processo algum natural em virtude do qual os cidadãos estão em via de adaptação, ou é conveniente que esse processo natural seja suplantado por um processo artificial. Afirmar que não existe adaptação algum natural, e afirmar que, contrariamente ao que se passa com os outros seres, que tendem invariavelmente a adaptar-se às circunstâncias que os rodeiam, o ser humano não tende nem a adaptar-se a essas circunstâncias nem a sofrer modificações que o tornem capaz de realizar a vida que as circunstâncias lhe impõem. Isto equivaleria a dizer que as variedades do gênero humano são efeito sem causa ou que têm por causa da ação governamental. Contrariamente a esta proposição torna-se necessário admitir que os homens se adaptam natural e continuamente às exigências de um estado social desenvolvido. Quem admitir este ponto hesitará na afirmativa de que uma adaptação artificial seja preferível à sua adaptação natural. § 139. - Passemos destes aspectos abstratos a encarar O assunto nos seus aspectos concretos. Suponhamos, que se tinha decidido criar cidadãos que tivessem a forma requerida para a existência da sociedade de que eles fizessem parte. Donde devia derivar a concepção desta forma? Os homens não recebem somente em herança as constituições físicas e mentais dos seus antepassados, herdam deles também o conjunto das suas ideias e das suas crenças. A concepção correntia do que deva ser um cidadão será, pois, um produto do passado ligeiramente modificada pelo presente; isto é, o passado e o presente imporão a sua concepção ao futuro. Qualquer pessoa que encare a questão pelo ponto de vista impessoal não poderá deixar de ver que esse desideratum traria para outra esfera, os desvairamentos cometidos em todos os tempos e entre todos os povos, relativamente às crenças religiosas. Sempre e em toda a parte ao homem ordinário se afigura que a fé em que foi educado é a única verdadeira. Embora seja forçado a admitir que todas as crenças que tem sido professadas com uma confiança igual à sua devem, com exceção duma só, ser falsas, permanece todavia convencido a exemplo de cada um dos outros homens que é a sua crença que constitui essa excepção. Quem pretendesse impor ao futuro o seu ideal de cidadão estaria imbuído duma presunção tão absurda como a dos crentes. Não duvidaria de que o tipo que concebeu e que as necessidades do passado e do presente criaram fosse um tipo apropriado ao porvir. Mas os caráteres que o passado julgava convenientes, diferem daqueles que nós consideramos como tais; para nos convencermos de que é assim basta remontar ao passado longínquo que desprezava o trabalho e em que a virtude era sinónimo de ousadia, de valor e de bravura. Num tempo já menos recuado um homem de alto nascimento era qualificado de nobre, ao passo que trabalhador e vilão constituíam designações equivalentes. O primeiro dos deveres era o da submissão abjeta de cada classe a classe imediatamente superior, e o bom cidadão de qualquer dessas classes era obrigado a aceitar humildemente a crença que o Estado lhe impusesse. O que não impede que os representantes mediocremente sábios de eleitores ignorantes quase todos, de se prepararem com uma arrogância verdadeiramente pontifical para promulgarem qual é a forma de uma natureza humana desejável e para adaptarem a próxima geração a essa forma. São tão afirmativos a respeito dos meios a empregar como a respeito do fim a conseguir, embora o passado nos ateste o completo cheque dos métodos adotados de século em século. No seio duma cristandade transbordante de igrejas e de padres, de livros piedosos, de observâncias destinadas a inculcar uma religião de amor que louva a misericórdia e prega o perdão, pune-se o espírito de agressão e de vingança que se encontra nos povos selvagens nas mesmas pessoas que diariamente leem a sua Bíblia, assistem aos ofícios da manhã, consagram semanas à oração e enviam às raças inferiores mensageiros de paz, e mandam logo atrás destas expedições de flibusteiros oficiais que os despojam in continenti das suas terras; se os naturais resistem são tratados como «rebeldes» e qualificam-se como «assassinatos» as mortes que eles infligem em represálias, e chama-se «pacificação. a todo este sistema de conquista violenta. Há, pois, excelentes razões para rejeitar como erróneo o método que pretende modificar artificialmente os homens. Ha também razões igualmente convincentes para ter fé no método natural da sua adaptação espontânea à vida social. § 140 - O espetáculo do conjunto do mundo orgânico ensina-nos, por exemplos infinitos em variedade e em número que as evoluções diretas ou indiretas adaptam as faculdades de todas as espécies às necessidades da vida e que o exercício de toda a faculdade adotada se torna numa fonte de benefícios. Na ordem normal não só existe um agente para cada função, mas o sentimento consciente torna-se a resultante dos sentimentos mais ou menos agradáveis determinados pela atividade dos agentes dessas funções. Esta organização implica também que em seguida a uma perturbação a harmonia se restabelece por si própria. Quando uma mudança de circunstâncias estabelece discordância entre as faculdades e as necessidades, opera-se lentamente um acordo quer pela sobrevivência dos melhores adaptados, quer pela transmissão hereditária dos efeitos da adaptação e do desuso quer pelo concurso simultâneo das duas operações. Esta lei que vigora também para os seres humanos, implica que, se lhe não puserem obstáculos a natureza que nos transmitiu um passado não civilizado, e que não se adapta ainda senão imperfeitamente à atualidade parcialmente civilizada, se adaptaria por si própria e lentamente às necessidades de um futuro plenamente civilizado. Esta lei implica também que as faculdades diversas, às capacidades, e aos gostos que se forem gradualmente estabelecendo se associarão as satisfações procuradas no cumprimento das diversas obrigações que a vida social impõe. As sociedades civilizadas adquirem já sobre as sociedades selvagens a vantagem duma soma considerável de aptidão para o trabalho. Desenvolveu-se a faculdade de cooperação bem ordenada em seguida a um acordo voluntário. Já os homens são capazes de somas tais de restrição individual que a maioria deles exercem já as suas atividades sem violentos conflitos recíprocos. Já o interesse altruísta que os cidadãos manifestam nos negócios sociais em geral determina a combinação espontânea de esforços individuais, para a realização de fins de interesse público, e já as simpatias dos homens se tornaram suficientemente ativas, para criarem uma grande, e, talvez, excessiva quantidade de instituições filantrópicas. Visto que a disciplina da vida social chegou a tão amplos resultados em alguns milhares de anos, não é insensato considerá-la esgotada de forças e imaginar que não chegará com a ajuda do tempo até ao fim da sua missão? Resta-nos enunciar uma outra verdade. A adaptação artificial é impotente para alcançar o que obtém a adaptação natural. Em virtude da própria essência da adaptação espontânea a aptidão de cada faculdade à sua própria função cresce à medida que se vai realizando. Se a função se exerce por um agente substituto dar-se-á uma desarmonia orgânica, porque a natureza se deformará para se adaptar à modificação artificial pela qual substituiu o órgão natural e próprio. A natureza esgota-se ou debilita-se, muitas vezes com a sustentação dos agentes substituídos. Resulta dessa substituição não só uma natureza atrofiada, estiolada, e privada dos gozos resultantes da missão realizada, mas, como a subsistência dos instrumentos dirigentes prevalece à sustentação dos seres dirigidos, estes últimos definham e a sua adaptação sofre um novo entrave. Insisto, uma vez mais, nesta distinção fundamental: enquanto a guerra constitui a única ocupação da vida, a cooperação imposta que esse critério que desse regime social deriva implica que o agregado adaptará as unidades aos seus desígnios; mas depois do nascimento e do predomínio da cooperação voluntaria que caracteriza o industrialismo, é a adaptação espontânea do indivíduo à vida de cooperação voluntaria que deve efetuar essa moldagem. Nenhum outro processo será capaz de assegurar uma adaptação satisfatória. § 141. - Eis-nos chegados ao princípio geral que no começo enunciámos. Reconhecemos no decurso deste livro a inanidade de todas as razões invocadas contra a lei primária da vida social: não há salvação possível a não ser em conformidade com esta lei. Se conseguíssemos levar um dos nossos políticos apaixonados da ingerência do Estado a refletir sobre o alcance dos seus projetos, o sentimento da sua própria temeridade paralisá-lo-ia para sempre. O que ele pretende é suspender de um modo e até um ponto qualquer a marcha segundo a qual toda a vida evolui e pronuncia o divórcio entre a conduta e as suas consequências. Violando em parte a lei da vida geral, dedica-se de preferência a viola-la sob a sua forma social. Opondo a sua ingerência ao princípio de justiça comum a todas as coisas vivas, teima especialmente em resistir ao princípio da natureza humana que exige que cada indivíduo goze das vantagens que colha respeitando os limites necessários da ação, e intenta proceder a uma repartição nova das vantagens obtidas. Põe de parte os resultados das experiências acumuladas por toda a sociedade civilizada que registou nas suas leis, de idade em idade e com uma clareza sempre crescente, os direitos humanos e pretende atentar contra eles. Ao passo que no decurso dos séculos os poderes reguladores das sociedades têm, cada vez mais eficazmente, protegido os direitos recíprocos dos homens e abstido, de mais em mais, de atentar contra eles, o nosso fazedor de projetos legislativos pretende caminhar contra a corrente e comprimir a liberdade de ação que tem vindo a alargar-se continuamente. Não entrando em linha de conta com o primeiro princípio da vida em geral e com o segundo princípio da vida social em particular, a sua política esquece propositadamente as generalizações tiradas da observação e da experiência de milhares de anos. E que títulos invoca afinal? Nenhuns a não ser certas razões de utilidade aparente. Ora nós vimos já que nenhuma delas é digna de inspirar confiança. De resto, tornar-se-ia inútil refuta-lo pormenorizadamente. Que maior absurdo pó de haver do que o de pretender melhorar a vida social principiando por violar a lei fundamental que a rege? APÊNDICES APÊNDICE A A concepção de Kant acerca do Direito Poucas ou nenhumas probabilidades ha de que possam surgir doutrinas inteiramente novas. Uma longa série de inteligências têm, no decurso dos séculos, abordado os diferentes caminhos que se abrem ao pensamento humano e quase todos eles têm sido percorridos e até explorados a fundo. Estas observações são o resultado experimental de um facto acontecido comigo e foram-me sugeridas em face de uma errónea suposição. Na minha Estática Social ou Especificação das condições parciais da Felicidade humana e desenvolvimento da primeira dessas condições, obra publicada pela primeira vez, em fins de 1850, havia já exposto o princípio fundamental que no presente volume se encontra expresso no capítulo epigrafado A formula da Justiça. Supunha eu, então, ter sido o primeiro a reconhecer que a justiça, tal como ela deriva de múltiplos exemplos concretos e tal como deve ser sintetizada em termos abstratos, se formula pela lei de igual liberdade. Estava, todavia, em erro, quanto à pretensa originalidade dessa formula. No segundo dos dois artigos: A teoria da Sociedade de Herbert Spencer que M. f. W. Maitland, atualmente professor de direito em Cambridge, publicou no jornal Mind, vol. VIII, pago 508 (1883), consignava-se a circunstância de que Emanuel Kant havia já enunciado, por outros termos, uma análoga doutrina. Como desconheço a língua alemã, não pude avaliar, perante as citações feitas neste idioma, qual a importância da asserção do Sr. Maitland. Ao ter de novo que abordar o assunto, procurei, quando escrevi o capítulo A Formula da Justiça, averiguar as opiniões de Kant, Recorri, para esse fim, a recente tradução (1887) de W. Hastie: A Filosofia do Direito, Exposição dos Principias fundamentais da jurisprudência considerada como ciência do Direito. Encontrei lá as seguintes passagens: «O direito é, pois, o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode harmonizar-se com o doutrem, segundo uma lei de igual liberdade». Imediatamente a seguir, deparou sê-me o que vai ler-se: PRINCÍPIO UNIVERSAL DO DIREITO (P. 44) «É conforme ao Direito ou justo toda a ação que permite, ou cuja máxima permite, ao livre arbítrio de cada um harmonizar-se, em conformidade com uma lei geral, com a liberdade de todos. Quando, pois, a minha ação, ou em geral o meu estado, pode harmonizar-se com a liberdade de cada um, segundo uma lei geral, isso implica uma lesão do meu direito (thut mir Unrecht) e causa-me entraves; porque esse entrave (essa oposição) não pode harmonizar-se com uma liberdade regrada por leis gerais. Daí se deduz que se não pode exigir de mim que esse princípio de todas as máximas, constitua ele próprio a minha máxima, isto é, que eu faça dele uma máxima de conduta; porque quando mesmo a liberdade dos outros me fosse de todo indiferente e quando mesmo não me sentisse disposto a respeita-la com sinceridade, os outros não ficam sendo menos livres desde que eu não atente contra eles, pelas minhas ações exteriores. É somente à ética que pertence exigir de mim que eu me imponha a máxima de proceder em conformidade com o direito. Assim, esta lei universal do direito: «Procede exteriormente, de maneira que o livre uso do teu arbítrio possa harmonizar-se com a liberdade de cada um, segundo uma lei geral» impõe-me sem dúvida uma obrigação, mas ela não contêm tudo, e não exige que em virtude de tal obrigação eu me imponha o dever de submeter a minha liberdade a essa restrição; apenas a razão me dita que, conforme a ideia que dessa restrição nos dá, a nossa liberdade está submetida a essa restrição e que os outros podem também constranger a sua liberdade a submeter-se a ela. Eis o que a razão proclama como um postulado que não é suscetível de nenhuma outra prova. Se, pois, se não tratar de ensinar a virtude, mas somente de expor que conforme ao direito, pôde-se e deve-se mesmo deixar de apresentar esta lei como um motivo de ação.» Demonstram transcrições feitas que Emanuel Kant chegará a uma conclusão que se relaciona estreitamente com a minha, se não é, por inteiro, a que eu formulei. Convém salientar, todavia, que, embora da mesma natureza, as duas concepções do direito diferem pela sua origem e pela sua forma. Na página anterior aquela de que fizemos o transcrito apresentado informa-nos o filósofo de que chegou a sua conclusão após «haver procurado a fonte desta espécie de juízos no domínio da Razão pura»; e de que eles «fazem parte da Metafísica da Moral». Ao contrário, na primitiva edição da Estatística Social a lei de igual liberdade primeiro esboçada e depois enunciada apresenta-se como sendo a expressão da condição primária a que devem satisfazer os seres semelhantes que vivam juntos para poderem realizar a maior soma de felicidade. Kant enuncia uma exigência a priori e abstrai de todo o fim benéfico, ao passo que para mim, a conformidade com essa exigência a priori é a única que pode assegurar a realização da finalidade dos seres. As duas fórmulas diferençam-se nisto, pois. Conquanto Kant reconheça o elemento positivo da concepção da Justiça quando declara que não existe «senão um direito inato, a liberdade» certo é também que nas passagens reproduzidas, representa-nos o direito à liberdade individual como implicitamente resultante do carácter injusto dos atos que causam lesão a essa liberdade. Para Kant, o elemento negativo, ou noutros termos, a obrigação de respeitar os limites, constitui a ideia dominante. Oportunamente, para mim, o elemento positivo - o direito à liberdade de ação - é o elemento primário e o elemento negativo, resultante das restrições que impõe a presença de outrem, é apenas o elemento secundário. Tal distinção tem importância e para verificá-la basta atender a que num estado social de restrição política rigorosa o que avulta é a obrigação, ao passo que num estado social em que o individualismo se afirme com energia o que se salienta são os direitos. APÊNDICE B A questão da propriedade da terra A «natureza de fauces vorazes e dentes ensanguentados» tem seguido no seu plano superior o mesmo caminho que a civilização. A ferro e sangue foi que se consolidaram as primeiras e frouxas aglomerações de homens, aglomerações que foram pouco a pouco aumentando de importância até que, de aglomeração em aglomeração, se constituíram em nações. Esta operação histórica, efetuada em toda a parte e sempre pela força brutal, acumulou iniquidades sobre iniquidades: as tribos selvagens fundiram-se lentamente mediante a ação de bárbaros meios. Seria impossível reconstituir a cadeia completa dos atos de desenfreada violência que desde há milhares de anos veem sendo praticados e mesmo que tal reconstituição factível fosse, tornar-se-ia irrealizável a pretensão de modificar os resultados de tamanhas violências. O direito de propriedade da terra constituiu-se no decurso desta transformação e a sua génese é transbordante de crimes cometidos não apenas pelos representantes de tal ou tal classe em especial dos nossos contemporâneos, mas pelos antepassados de todos os homens que atualmente existem. Os bisavós dos ingleses contemporâneos foram bandoleiros que esbulharam da terra outros bandoleiros que a ocupavam e estes por seu turno tinham despojado dela outros bandoleiros que os haviam precedido. A usurpação, ora parcial, ora completa, dos Normandos abrangeu as terras que no passado haviam sido confiscadas em parte pelos piratas dinamarqueses ou noruegueses e em parte, numa época ainda mais afastada, pelas hordas dos invasores anglos ou frisões. Quanto aos proprietários celtas, expulsos ou reduzidos à escravidão por estes últimos, esses tinham também principiado por expropriar os povos trogloditas da existência dos quais a ciência encontra, por vezes, vestígios. Que aconteceria, se tentássemos restituir as terras outrora apropriadas contra todos os princípios da equidade - se os Normandos tivessem de as entregar aos dinamarqueses, aos noruegueses, aos frisões, estes por sua vez de as fazer voltar à posse dos Celtas e os Celtas de largar a retenção delas para passar aos homens das cavernas e da idade de pedra? A única maneira imaginável de levar a cabo uma tal operação, seria a de restituir todo o território da Grã-Bretanha aos gauleses e aos montanheses da Escócia que não poderiam subtrair-se a uma restituição análoga, senão invocando a desculpa de que havendo acumulado o confisco da terra os aborígenes com a exterminação destes, haviam legitimado dessa forma os seus títulos de propriedade! É na verdade louvável o desejo, que frequentemente temos visto formulado, de que o direito de propriedade da terra chegue a conformar-se com as exigências da equidade pura; nalguns esse desejo é ditado pela consciência. Com tudo, bom seria também que se ouvisse e lesse a mesma coisa a respeito das regiões coloniais. Não é lógico que enquanto se anseia por esse desideratum, fronteiras a dentro, se pratiquem lá longe apropriações que são tão iniquas como as que indignadamente censuramos aos nossos antepassados. Portanto, todo o povo inglês em massa, porque é ele que apoia ou consente o predomínio político e fornece sem restrições os efetivos à força armada, é responsável pelas empresas nefastas que pelo mundo fora confiscam novos territórios e expropriam os habitantes deles. Flibusteiros de moderna data, os ingleses reproduzem, em mais larga escala, as expedições dos seus ancestrais, invectivam as expedições antigas, mas conservam-se prudentemente mudos acerca da iniquidade das expedições modernas. Assim, aprovam-nas, tacitamente pelo menos, e ajudam a efetuá-las. O passivo silêncio relativamente á espoliação das terras do universo, a qual com os seus votos poderiam sustar, e a sua prontidão em dar e pagar os soldados que as executam, implica para todo o povo inglês uma pesada responsabilidade do que se passa. Estão-se praticando, por delegação dele, injustiças bem mais clamorosas e bem superiores em número aquelas de que os antepassados foram vítimas. É natural que as maiorias, privadas da terra, pensem que a propriedade imobiliária individual tenha por fundamento a injustiça. Mas antes de examinarmos qual o acolhimento que se deverá fazer a essa afirmativa chocamos logo com esta pergunta: Quais os espoliadores e quais os espoliados? Pondo mesmo de parte o facto primário de que em conjunto os antepassados dos ingleses atuais, proprietários ou não proprietários, se apoderaram da terra pela violência expulsando dela os possuintes anteriores; e remontando unicamente à fraude e à violência pelas quais alguns desses antepassados arrancaram a posse da terra a outros que sem nada ficaram, surge de novo a interrogação preliminar: Quais são os descendentes de uns e quais os descendentes dos outros? Os nossos democratas subentendem que os proprietários atuais constituem a posteridade dos usurpadores e que os não proprietários a dos usurpados. Não é, porém, assim, e muito longe disso. Só os títulos de alguns raros membros da nobreza remontam à época da última usurpação e nenhum desses títulos está ligado com a época da usurpação primeira; de mais, os nomes de muitos proprietários demonstram que eles descendem de artífices e que não são, portanto, descendentes de espoliadores. Ao invés, um grande número de não proprietários usam nomes que indicam que os seus ancestrais pertenciam às classes elevadas; e esse número seria necessário duplica-lo para fazer entrar em linha de conta os casamentos com os descendentes em linha feminina: o que leva a concluir que entre os que não possuem terras há mais de um em cujas veias corre o sangue dos antigos usurpadores. O azedume concebido no estudo do passado com que quantidade de não proprietários encara a classe proprietária é, pois, bastas vezes, assente em falsos alicerces, por que eles próprios são, frequentemente, descendentes dos culpados e aqueles a quem deitam olhos ameaçadores descendem, quanta vez, das vítimas antigas. Mas demos de mão a tudo o que se relacione com as iniquidades do passado e atendamos somente aos obstáculos vários que se opõem a uma reparadora distribuição baseada na equidade. Entre esses obstáculos um ha que me parece andar esquecido. Concedamos - o que não é exato - que a raça inglesa primitiva tenha legitimamente adquirido a posse das terras; concedamos que os proprietários atuais constituam a posteridade dos espoliadores - o que só em parte é verdadeiro; admitamos que os não proprietários atuais representam a descendência dos espoliados - o que só também em parte é verdadeiro; restava ainda uma operação a efetuar que consideravelmente entravaria a retificação das injustiças cometidas. Se é preciso considerar o passado, necessário se torna considera-lo todo e meter em linha de conta não só que o conjunto das classes populares foi prejudicado com a apropriação da terra a título privado, mas também que essas classes têm recebido, sob uma forma especial, parte dos produtos dessas terras: é necessário, em suma, fazer entrar em consideração a assistência que lhes tem sido ministrada em virtude da Lei dos Pobres. O Sr. T. Mackay, autor de um livro relativo aos Indigentes na Inglaterra, teve a amabilidade de me comunicar a seguinte nota que revela o aproximado total dos recursos distribuídos na Inglaterra e no País de Gales a partir de 1661 (Ato da lei do 43.0 ano do reinado de Isabel): Sir G. Nicholls, no apêndice do 2º volume da sua História da Lei dos Pobres não encontrou dados seguros se não de 1688 para cá. Relativamente a esse ano, avalia ele o produto da Taxa dos Pobres em cerca de 700:000 libras esterlinas. Até ao começo deste século, as totalidades abaixo designadas são, pouco mais ou menos, exatas: Este quadro dá o total das despesas em benefício dos indigentes. Mas sob a rubrica geral «Taxa dos Pobres» lançaram-se sempre diferentes impostos «destinados a outras aplicações» - taxas descontadas, dos burgos, de polícia etc. O quadro abaixo consigna as receitas anuais desses impostos cobrados para as despesas de assistência: Ha, pois, que juntar as somas que figuram no primeiro quadro às que no século XIX foram anualmente elevadas de 1 e 1/4 a 7 e 1 /2 milhões de esterlinas e que foram desviadas para «outras aplicações». Mulhall donde colhi os elementos referentes a 1853-1875 não faz menção de verbas desviadas «para outras aplicações». É, todavia, certo, que os 734:000:000 de libras esterlinas que de ha três séculos para cá foram distribuídas em benefício dos não proprietários se cobraram, em parte, por taxações incidentes sobre prédios urbanos; preciso se torna por isso deduzir do imposto lançado sobre as terras a taxa que pesa sobre a locação. Um proprietário que é também uma das sumidades do foro inglês e muito versado em assuntos tributários, informou-me de que computando em 500:000:000 de libras a importância que é dispendida com os pobres e provinda de impostos lançados à propriedade fundiária, essa quantia será muito inferior à realidade. Se a referida quantia, mesmo assim, fosse posta a render, de alguma forma, à medida que ia sendo cobrada, teria certamente produzido uma soma muito mais considerável ainda. De maneira que, em qualquer hipótese, os proprietários poderiam opor as reivindicações dos não proprietários um pedido reconvencional excedente ao valor não só aos 500:000:000 de libras, como ao valor das propriedades reivindicadas. Note-se mais que os não-proprietários não tem nenhum fundamento atendível ao estado presente das terras desbravadas, arroteadas, fertilizadas, drenadas, irrigadas por canalização, cobertas de construções rurais, melhoradas enfim pelas mil e uma benfeitorias de que são suscetíveis. O único direito que poderiam invocar seria o direito à terra no seu primitivo estado: encostas pedregosas, florestas bravias, matos maninhos, charnecas, areais improdutivos, pântanos estéreis, etc., etc. A comunidade quando a terra lhe pertenceu, possuía a terra assim. Qual a relação que existe entre o valor da terra inculta como as campinas americanas e as somas que os mais pobres dos não proprietários receberam de ha três séculos para cá? Decididamente os proprietários não regateariam sustentando que 500:000:000 de libras são um belo preço para terras incultas e no seu estado primitivo, onde apenas havia animais selvagens e frutos silvestres. Na minha Estatística Social publicada em 1850, deduzi da lei de igual liberdade o corolário de que a comunidade não podia equitativamente alienar a terra e sustentei a opinião de que depois de ter indenizado os detentores atuais se poderia apoderar dela novamente: quando afirmei uma tal doutrina não dera o devido peso aos argumentos que exponho agora. De mais, ignorava a esse tempo o montante da indenização que os não proprietários teriam a pagar em troca do valor que um trabalho poli secular deu à terra. Mantenho pois (vide capo XI) as conclusões a que cheguei: o agregado humano coletivo é realmente o proprietário supremo do solo, conclusão que, de resto, se harmoniza com a doutrina jurídica inglesa e que diariamente serve de lema a legislação: todavia, um mais aprofundado exame conduziu-me à conclusão de que é igualmente necessário manter o direito individual de propriedade da terra, mas sujeitando-a à suserania do Estado. Dar remédio ás iniquas violências realizadas durante milhares de anos, tornar-se-ia utópico e uma nova distribuição equitativa só pode realizar-se in abstrato tomando para base um sistema de compensação dos títulos e das reivindicações tanto do presente como do passado: ora estou persuadido de que de tal distribuição adviria um estado de coisas pior do que o existente. Abstraindo de todas as objeções financeiras que se relacionam com os projetos de anexação do solo - e mostram elas que tal anexação é impraticável pois que a ser feita equitativamente, daria perda - bastará lembrar quanto a gerencia pública é inferior à gerencia privada, para nos capacitarmos desde logo de que o Estado proprietário único seria um deplorável administrador. Com o atual sistema, os que exploram a terra permanecem submetidos à relação direta entre o esforço e o resultado obtido; com o sistema da propriedade do Estado, o trato do solo ficaria ao abrigo das consequências dessa relação direta. Os vícios inerentes ao funcionarismo desentranhar-se-iam em imensos e inevitáveis males. APÊNDICE C Poucos meses depois da publicação dos cinco primeiros capítulos do presente volume na Nineteenth Century, inseriu o Reverendo Llewelyn Davies no Guardian de 16 de julho de 1890 uma crítica às matérias abrangidas nesses capítulos. Porei de lado a parte da crítica do Reverendo Davies que trata de outros assuntos e deter-me-ei apenas ante as considerações que faz acerca do sentimento do dever e relativamente á sanção desse sentimento. Diz ele assim: «Embora tenha sido convidado bastas vezes a fazê-lo, Spencer, que saiba, nunca explicou de uma forma satisfatória como é que a sua filosofia lhe permite servir-se da linguagem que usa e, ao mesmo tempo, compartilhar o comum sentimento dos homens quando falam do dever ... Sobre esse particular, repetirei uma observação que já fiz no meu precedente artigo: Spencer parece subentender aquilo que não reconhece. Na sua elaboração da ideia e do sentimento da Justiça, Spencer subentende a existência de uma lei que rege a razão humana e a conduta humana, quando sustenta que o bem da espécie é desejável de per si e que o entendimento humano aceita esta lei e corresponde a ela sem exigir outra justificação. Ora enquanto Spencer se contentar unicamente com demarcar a marcha da evolução, não terá o direito de empregar a palavra: dever. Como poderia ele modificar o vereditum de Kant e como lhe seria possível refuta-lo? Para olhos que apenas se fixam nos fenómenos da natureza o termo dever torna-se vazio de sentido. É tão absurdo inquirir o que a natureza deve ser como perguntar quais são as propriedades que deve ter o círculo. A única interrogação possível é esta: O que se passa na natureza? Assim feita não ultrapassará os limites que delimitam o evolucionismo e é equiparável a esta outra: Quais são as propriedades atuais do círculo? Quando Spencer se insurge com sincera veemência moral contra a agressão e as outras formas de maleficio, quando protesta, por exemplo, contra o «deixa correr mesquinho que encara com indiferença e impassibilidade a ruina dos que debalde procuram alcançar da lei a reparação dos mais fundados e comprovados danos, utiliza-se do raio justiceiro das nossas crenças, pede emprestado à Bíblia, sem dar por isso, o fogo celeste.» O Reverendo Davies termina a sua carta e a sua argumentação convidando-me «a justificar o emprego que faço de termos éticos ao mesmo tempo que adoto como norma não me afastar nunca de um processas natural e necessário. O artigo do Guardian foi-me enviado pelo próprio autor, e a minha resposta veio inserta, sob a forma de carta, no referido periódico de 6 de agosto. Eis qual ela foi, com excepção dumas passagens referentes a um outro assunto, as quais presentemente omito: «Fairfield Pawsey, Wilts, 24 de julho de 1890. Caro Snr. Davies, Acabo de receber o Guardian e de ler com um vivo interesse o artigo que nele firmou. Quem dera que a crítica fosse feita sempre dessa maneira! Afirmando que faço ilegítimo uso das palavras «dever, justiça, obrigação» trouxe-me à lembrança as objeções de Lilly, Não obstante as diferenças que o separam há entre o Reverendo Davies e Lilly uma comunidade de opiniões que sobre este ponto os conduz tanto a si como a ele a sustentar que a ideia do «dever» só pode filiar-se no sobrenatural. Na sua hipótese, as ações dos homens são unicamente determinadas pelo reconhecimento das suas consequências últimas e esse reconhecimento é impotente para os fazer agir em harmonia com a justiça, pois que nenhum motivo ha para que eles conformem com a justiça as suas ações. Mas as preferências dos homens, independentemente de qualquer previsão dos resultados afastados, determinam diretamente a grande massa das ações desses homens e as ações assim determinadas produzem muitas vezes o bem de outrem. Ainda que a reflexão nos mostre que essas ações se harmonizam com os fins tidos como os mais elevados não é, todavia, essa previsão a determinante de tais ações. Um exemplo familiar fará realçar melhor a relação que existe entre os motivos diretos e os motivos indiretos. Todos os pais de normais sentimentos consagram uma grande parte do seu tempo e das suas reflexões ao futuro e bem-estar dos filhos. A sua afeição imediata impele-os para essa preocupação que os absorve durante anos consecutivos, a todas as horas; mesmo que o quisessem, não poderiam deixar de proceder assim. Contudo, dado o caso de que esse impulso afetivo não seja determinado pela plena consciência do dever, se lhes perguntar porque é que se impõem esses sacrifícios, responderão que lhes incumbe fazê-lo, que é uma obrigação que tem. Aprofundando mais o interrogatório são naturalmente levados a declarar que se a generalidade dos homens assim não procedesse, a raça humana acabaria por se extinguir. Embora pois a consciência do dever possa servir-lhes para sancionar, - numa diminuta proporção para fortificar o laço natural que os prende à descendência - esse impulso é, de per si, amplamente bastante. O mesmo sucede relativamente à ideia da obrigação que regula o nosso procedimento com o próximo. Como a sua experiência, meu caro Reverendo, lhe há de ter mostrado, essa conduta é suscetível de ser fortemente incitada à realização de benefícios, sem outras preocupações, quanto às consequências da sua prática, que não sejam as que resultam dos benefícios efetuados. Aos que deste modo procedem, por um natural pendor do seu temperamento, se lhes perguntarmos porque procedem daquela maneira, responderão que é do nosso dever contribuir para o bem-estar da humanidade. Pretende V. Reverência que a minha teoria da direção moral me não autoriza a indignar-me com o espetáculo duma agressão ou dum malefício qualquer e acrescenta que, indignando-me, peço emprestado a Deus o fogo celeste. Subentende-se, pois, daqui que somente os homens que aceitam as crenças correntes tem direito a indignar-se ante a iniquidade. Por minha parte, não lhes confiro o monopólio dessa indignação. Se V. Reverência me perguntar o que me impulsiona a censurar o injusto procedimento dos civilizados ante as raças inferiores, responder-lhe-ei que sou a isso compelido por um sentimento que acorda em mim sem a mínima intervenção da noção do dever, sem a influência de qualquer preceito divino, sem consideração de nenhuma espécie acerca de castigo ou recompensa neste ou noutro mundo. Tal sentimento resulta em parte de que se deu origem a um sofrimento, tornando sê-me penoso o conhecimento que dele tive; e resulta também da irritação que em mim desperta a infração duma lei de conduta ao serviço da qual estão os meus sentimentos, lei a que o bem da humanidade exige, no meu entender, a obediência de todos. Se V. Reverência me objetar que a minha teoria me não fornece razão alguma para me interessar por esse sentimento, observar-lhe-ei que não depende da minha vontade o ser influenciado por ele; e se acrescentar que a minha teoria não me dá motivo algum para me interessar pela lei da conduta, retorquir-lhe-ei que se me torna impossível deixar de interessar-me por ela. Quando a análise vem posteriormente demonstrar-me que o respeito desse sentimento e dessa lei assegura o progresso do gênero humano por modalidades superiores e suscetíveis de maior felicidade, verifico que, conquanto o meu proceder não seja imediatamente determinado pelo sentimento da obrigação, tal proceder se conforma, todavia, com a minha ideia de obrigação. Motivos assim originados atuam utilissimamente; e para provar isso basta recordar o movimento de opinião em que tanto V. Reverência como eu nos envolvemos haverá uns oito anos, movimento em que muitos homens impulsionados pelas ideias e sentimentos que acabo de descrever, e insensíveis aos ditames das crenças religiosas, manifestaram uma solicitude bem superior à de muitos cristãos, reclamando que as nossas relações com os povos estrangeiros fossem dirigi das segundo preceitos que muita gente persiste em considerar exclusiva pertença do cristianismo. (No meu projeto de carta havia duas frases que não reproduzi com receio de suscitar uma nova controvérsia. Eram estas: «Um jornal religioso assinalou o estupendo contraste que se manifestava entre a energia dos que não professam o cristianismo e a apatia dos que o seguem.» Recuando a uns anos atrás, verifica-se, que um análogo contraste se notou na constituição do Comité da Jamaica) Sou com estima, etc. HERBERT SPENCER. P. S.- Se quiser publicar esta carta como resposta ao seu artigo e ao convite que nele me faz, desde já lhe dou, para isso e com agrado, o meu consentimento. O que não posso é levar mais longe a discussão. Outras ocupações me impedem. A minha carta foi efetivamente inserida no Guardian e o meu contraditor fê-la seguir duma réplica que vou reproduzir, omitindo lhe vários trechos referentes a assuntos diversos do ponto controvertidos. «Kirkby, Lonsdale, 28 de julho de 1890). Meu caro Snr. Spencer, Agradeço-lhe a cativante benevolência com que respondeu ao apelo que me permiti dirigir-lhe. Por certo não estranhará que, apesar do post-scriptum da sua resposta, dê a público algumas considerações que foram sugeridas pela atenta leitura dela. Presto a mais calorosa homenagem ao zelo generoso pelo bem da humanidade e à indignação contra toda a casta de opressões manifestada pelo Snr. Spencer e por outros homens que não aceitam a sanção sobrenatural por lei moral. O cristianismo contemporâneo contraiu uma dívida perante o entusiasmo pela humanidade dos sectários do evolucionismo, assim como também perante os vigorosos protestos dos discípulos de Comte contra as iniquidades sociais; e deve-lhes esse agradecimento porque lucrou. Um cristão deve obediência não ao modo de ver do mundo cristão, nem mesmo ao cristianismo, mas à lei de Cristo e à vontade de Deus; nada se opõe a que ele confesse que bastantes agnósticos sobrepujam muitos cristãos pelas suas ações e pelos seus cristãos sentimentos; é o caso do Samaritano e do levita. Nenhum constrangimento sinto em reconhecer que a simpatia e a satisfação intima de prestar benefícios determina à prática deles. Não compreendo, porém, como é que «a hipótese de que a ideia do dever tem uma origem sobrenatural» implicaria que as ações dos homens não são determinadas senão pelo reconhecimento de consequências últimas e que, se não os conduz a atuar em conformidade com a justiça, eles não podem ter motivo algum para se conformarem com essa justiça.» Nunca tive dúvidas acerca do facto incontestável que o Snr. Spencer salienta: que os homens não regulam, em grande parte, a sua conduta pelos motivos que eu defendo e que o meu antagonista nega. Desejava, porém, saber porque é que, quando surge a ideia do dever, um homem se reputa obrigado, de livre ou de má vontade, a realizar o que é de vantagem para a preservação da espécie. Compreendo muito bem que o Snr. Spencer «não possa deixar de se interessar» pela lei de conduta que talhou e que não possa também deixar de ser afetado pelos sentimentos tendentes a proteger os outros homens; o que não chego a discernir claramente é como a sua filosofia o autoriza a dirigir censuras aos que podem deixar de interessar-se. A natureza, dir-me-á, é que inspira a solicitude dos pais e é que faz com que o homem generoso se sacrifique pelo próximo. Mas a natureza cria também endurecidíssimos criminosos e pais egoístas inteiramente indiferentes aos interesses dos filhos. Se não podem deixar de ser o que são que sentido ligar à frase: fazeis o que não deveis? Parecer-lhes-á que o Snr. Spencer mostra os sentimentos do dever, quando lhes explica que, em conformidade com as leis da natureza, tenderia a raça a desaparecer se os outros homens procedessem como eles procedem? No ponto de vista filosófico de Huxley a propensão para a boa conduta pertence à mesma categoria das qualidades dum ouvido sensível para a música - possui-se ou não se tem. Permita-me, pois, que lhe pergunte Snr. Spencer, se é essa a última palavra da sua moral. Não percebo como é que um homem a quem se tenha ensinado que não proceda senão em virtude de impulsões naturais, pó de razoavelmente interrogar-se a si próprio se deve praticar um ato ou abster-se dele; menos percebo ainda como, sabendo que não age senão com a mira da satisfação dos seus desejos, poderá razoavelmente sacrificar-se em favor de outrem. Não avaliando nitidamente o que seja a «crença corrente» tomo a liberdade de resumir a minha: «O Poder invisível vai gradualmente criando o gênero humano por processos de desenvolvimento; a consciência humana é produzida de modo a corresponder à autoridade desse Poder; a justiça e a ordem progressiva que o Criador estabeleceu entre os seres humanos e obriga cada homem à medida que vai adquirindo noções dela; o homem sente que a justiça o obriga, porque é a criatura do seu Autor. Sou com estima, etc. J. LLEWELYN DAVIES. Antes que prossiga a discussão do ponto especial de que nós estamos ocupando, tenho a salientar que sobre o assunto mais geral a que alude o último parágrafo da carta do Rev.do Davies existe uma afinidade curiosa e íntima entre a sua opinião e a que eu já exprimi por mais de uma vez. Referindo-me às hesitações do filósofo, escrevi o seguinte, no § 34 dos meus Primeiros Princípios: «É para alguma coisa que ele sente em si simpatia por certos princípios e repugnância por outros. Com todas as suas faculdades, aspirações e crenças, o pensador não é um incidente, é o produto do seu tempo. Que se lembre de que se é filho do passado, é pai do futuro e de que os seus pensamentos são filhos seus e de que não deve deixá-los morrer ao abandono. Da mesma maneira que qualquer outro homem pode com justo título considerar-se como uma das milhares de forças pelas quais atua a Causa Desconhecida; e quando a Causa Desconhecida produz nele uma certa crença, não precisará doutro título para a exprimir e a divulgar.» E na Moral Contemporânea, § 62, a propósito dos diferentes tipos de doutrina ética pela qual cada um representa este ou aquele aspecto da verdade, dizia assim: «A teoria teológica contém uma outra parte da verdade. Se à verdade divina que se supõe revelada de uma forma sobrenatural nós substituímos o fim, revelado por uma forma natural, para que tendem as energias que se manifestam pela evolução, então, como a evolução tendeu e tende ainda para uma vida mais elevada, segue-se que a conformação com os princípios pelos quais se realize essa vida mais perfeita, auxilia a realização desse fim.» Voltando ao caso especial, notarei antes de mais nada que o Rev.do Davies e os seus correligionários estabelecem como princípio que a concepção do «dever» é universal e fixa. Ora tal concepção é variável e está, em grande parte, dependente das necessidades sociais da época. Num artigo sobre a «Ética de Kant», publicado em fascículos na Fortonightly Review (julho de 1888) e inserto no terceiro volume dos meus Ensaios, apontei sete autoridades em abono da opinião de que é lícito afirmar que as raças inferiores não possuem a ideia do direito»: tão pouco tem o sentimento do dever que entre nós se generalizou, se esse sentimento se encontra nelas é sob um aspecto e numa direção diferentes. Vários povos selvagens pensam que o dever da vingança de sangue com sangue é o mais sagrado de todos. Em Fiji, uma tribo de escravos declarou «que era dever deles tornarem-se os alimentos e as vítimas dos sacrifícios oferecidos aos seus chefes. Jackson cita um chefe fijiano ao qual o convencimento de que o seu Deus estava irritado por não haver um maior número de inimigos, causou um verdadeiro acesso de furor religioso. Mas não é só nas raças inferiores que se encontram concepções do «dever» inteiramente daquelas a que, na opinião do Rev.do Davies, os homens ligam a máxima autoridade. O mais cruel ultraje que em Marrocos se pode dirigir a um pirata rifenho é o de lhe dizer que o pai morreu na cama e que não sucumbiu em combate numa qualquer expedição de pirataria: Esse insulto subentende que ele deveria morrer assim. O mesmo se dá na Europa com os duelos. O insultado julga-se obrigado a desafiar o insultante; este julga-se obrigado a aceitar o desafio; todos, insultado, insultante e testemunhas se julgam obrigados a fazer o que a religião que seguem lhes condena. A recente aprovação do imperador da Alemanha aos clubes de duelistas, clubes que, na opinião do Kaiser, dão à vida «a sua verdadeira direção constitui uma sentença formal passada a favor desse uso que está em absoluta contradição com os princípios de uma reta conduta, tais como esses princípios em teoria são aceitos. No meu pensar, a concepção do dever deriva por um lado dos sentimentos predominantes do indivíduo; por outro, dos sentimentos e das crenças nele depositadas pela educação; e por outro lado ainda pela corrente da opinião pública mais dominante: todos estes fatores se combinam em proporções variáveis. A verdade é que qualquer desejo tem em mira uma satisfação e contêm em si a ideia de que essa satisfação é conveniente, ou justa. Sempre que o desejo é violento e que satisfação que procura lhe é recusada, surge a ideia de que essa recusa constitui uma injustiça. Esta afirmação é por tal modo exata, que um sentimento capaz de inspirar uma ação má, mas que foi reprimido com êxito, origina algumas vezes o pesar de a não ter cometido; inversamente, o remorso sobrevém nalguns casos a uma boa ação isolada outras ações habitualmente más: assim sucede ao avarento, quando pratica uma liberalidade. O sentimento do «dever» tal como ele existe nos homens pertencentes a tipos superiores é um órgão de certos sentimentos dirigentes que as formas superiores da vida social desenvolveram: as crenças herdadas e a opinião dominante fortificam-no em cada indivíduo e dão-lhe uma sanção bem mais poderosa do que aquela que sentimentos inferiores têm. Na minha Moral Evolucionista, dei sob diferente e mais pormenorizada forma, uma completa réplica à objeção do Reverendo Davies. O génese do sentimento da obrigação ocupa nessa obra todo o longo capítulo intitulado: -O Ponto de vista Psicológico» e, em especial, os §§ 42 e 46. O Reverendo Davies insistirá talvez em perguntar-me: Porque é que, um homem obedece, quando o possui, ao sentimento da obrigação. Essa pergunta equivale a esta outras. Porque é que, quando um homem sente apetite, se senta à mesa e come? Normalmente, uma pessoa come porque tem fome e sem a consciência definida de outro fim diferente. Todavia, se inquerirmos dessa pessoa a justificação desse ato, dir-nos-á que é necessário satisfazer o apetite, de manter a saúde, o vigor, a faculdade de viver e de trabalhar. Semelhantemente, perguntando a um homem que acaba de praticar um ato que lhe foi ditado pelo seu sentimento do dever, qual a razão por que a praticou, responderá naturalmente que cedeu a esse sentimento sem investigar as suas consequências afastadas, mas que sabe bem que na média dos casos, as consequências longínquas de atos praticados em conformidade com tais sentimentos, são benéficos não só para o próximo mas também, tarde ou cedo, para quem os realiza. Seja-me permitido repetir uma vez mais esta verdade a respeito da qual tenho por vezes insistido. Deve comer-se somente para matar a fome; proceder de modo diverso, implica um desarranjo físico. Da mesma maneira, um ato de Beneficência ou um ato obrigatório, só se realizam perfeitamente com reta intenção a não ser quando ditados por um sentimento imediato; praticando-o com a mira nas suas consequências últimas quer neste mundo quer no outro, implicam, ao contrário, um estado moral imperfeito. Nota. - Depois do aparecimento da primeira edição desta obra, recebi outra carta do Reverendo Davies contendo, entre outras, a passagem seguinte: «Consinta-me que proteste contra uma alegação do seu apêndice: «O Motivo moral». Não disse nem penso que a concepção do «dever» seja «uma concepção fixa». Penso, ao contrário, que as noções humanas do dever variam com as variações e avançam com o progresso social.» Afigurasse-me, portanto, que, neste ponto ainda, as opiniões do Reverendo Davies se não afastam das minhas tanto quanto ao princípio parecia. APÊNDICE D A consciência nos animais Pouco depois da publicação no Guardian da correspondência reproduzi da no apêndice antecedente, recebi do Devonshire a carta que segue: «Tenho executado cuidadosamente várias experiências com animais que não fazem parte do género humano. A compilação dos resultados obtidos interessá-lo-á provavelmente, por que reforça a sua afirmativa de que as ideias de «obrigação» e de «dever» não são talvez de origem «sobrenatural». Emprego este último termo no seu correntio significado, reservando a minha opinião pessoal sobre o assunto. Possuo um cão ao qual repugna maltratar um ser vivo e mesmo um objeto manufaturado. Torna-se necessária uma intensa e extrema provocação para que morda um animal. Quando apoio no lombo a ponta aguda de uma faca, volta o focinho e segura-me o punho entre os dentes; se apertasse as fauces despedaçar-me-ia a carne e os ossos, mas seja qual for a duração e a pressão que eu exerça nunca me aperta de modo que fique a mínima lesão ou sinal no pulso. Fiz indefinidas vezes esta experiência e outras análogas. Ignoro como é que a ideia do «dever» se incutiu nesse cão. Hereditária não é, porque o pai dele, conquanto não fosse mau, tinha frequentes brigas com outros cães e a mãe era muitíssimo má. Devo notar que não consenti nunca a essa cadela que se aproximasse do filho, senão quando ao anoitecer recolhia cada um à sua casota, para evitar qualquer imitação ou educação inconsciente. Até à idade de três anos nem uma só vez o «Punch» teve um latido de cólera. Um dia, porém, calquei-lhe involuntariamente a cauda; sacudiu-a com violência e soltou um latido cujo timbre era inteiramente diverso de quantos lhe tinha ouvido até então. O mais curioso do caso, foi que mal se libertou do incómodo, o «Punch» me pediu perdão da sua inacostumada cólera por uma forma que me não deixou a mínima dúvida acerca da sua intenção. Reconheceu, pois, evidentemente, que violara uma «obrigação» da qual existia no seu espírito a ideia (manifestação da consciência). Sucede que se eu lhe dou uma pontoada com a extremidade de um pau por talhar, o Punch atira-se a ele e escavaca-o; se, porém, lhe faço o mesmo com a minha bengala ou com a minha muleta (estou doente), limita-se a segurá-las com os dentes sem que deixe numa ou noutra a menor mossa. Isto que acontece com a minha bengala e a minha muleta, dá-se quando me sirvo, para o molestar, de um qualquer outro objeto trabalhado. A noção do dever pôde estabelecer-se sob a forma da ideia de uma obrigação para com um espírito superior, independentemente da excitação dos mais poderosos sentimentos dos animais. Tive, há bastantes anos, uma cadela que se mostrava muito sensível ao cio dos cães. Nunca me servi senão da voz para a obrigar a afastar-se das solicitações dos machos da sua espécie. A série de repressões que, com esse fim, exerci nesse animal fixaram nele por tal forma a ideia de «obrigação» que estou convencido de que morreu virgem com treze anos e meio de idade. Aos quatro anos, as solicitações dos machos irritavam-na e aos sete havia-se tornado uma azeda solteirona; a simples presença de um cão a irritava. Os cães são suscetíveis de adquirir a noção de uma conveniente norma de procedimento e de maneiras. A mencionada cadela nadava otimamente. Ora sucedeu termos como hóspede em casa um cãozinho terrier de pelo espesso e luzente. O minúsculo hóspede e a cadela acamaradaram com facilidade e corriam, caçavam e brincavam juntos por toda a propriedade. Uma vez fui com os dois ao cais de Street-Prince's que serve de fundeadouro aos navios que fazem carreira para Bristol. Como de costume, a cadela saltou à água; o cãozinho atirou-se também, mas esteve em riscos de afogar-se. Vendo-o em perigo, a companheira fincou-o com os dentes na nuca e nadou com ele para o cais. Acabou por esse fato a amizade que entre ambos reinava. Momentos depois do acontecimento narrado, a cadela mordeu e sacudiu violentamente o terrier e de então por diante mordia-o e repelia-o sempre que este tentava aproximar-se e brincar com ela. A razão desse desprezo foi, sem dúvida, motivado pela circunstância de verificar que faltava ao cãozinho uma aptidão que ela aparentemente considerava como normal. A faculdade da indignação não é pertença exclusiva dos homens. Divertia-me muitas vezes diante da cadela a fingir que batia numa irmãzinha minha e esta, por seu turno, afetava lamentos e choros. A cadela arremetia iradamente contra mim, ao presenciar a fictícia agressão. Quando os papeis se invertiam, então arremessava-se contra minha irmã, ladrando lhe e procurando morder-lhe. Sempre que não influísse na cadela uma aversão anterior, manifestava-se invariavelmente contra o atacante e a favor do ofendido. Como com o decorrer do tempo viesse a convencer-se de que tudo aquilo não passava de mera brincadeira, principiou a tomar parte com grande alegria no divertimento. Foram-lhe necessárias, porém repetidas observações para se convencer da simulação que praticávamos. Se estas notas se lhe afigurarem banais, desculpe-me. Só parcialmente conheço as suas obras e pode bem suceder que a extensão das experiências do Sr. Spencer seja superior às minhas. Sou, com estima, etc. T. MANN JONES. Northam, Devon, 14 de agosto de 1890. Respondi ao Sr. Jones agradecendo-lhe e manifestando-lhe o meu apreço pelo valor dos fatos que me contou. Recebi dele uma segunda carta: Faça dessa carta o uso que entender. Deixe-me, porém, preveni-lo de que comuniquei alguns dos fatos aqui descritos ao professor Romanes. Quanto á exatidão das minhas observações, peremptoriamente lhe asseguro. Aprendi a observar na escola dos naturalistas de Belfast, com os Srs. Pattison, Thompson e outros, e acostumei minha mulher, antes do casamento, a não se deixar influenciar por simples impressões. A ideia do «dever» exerce sobre o «Punch» (o cão a que me referi na primeira carta) um anormal poderio. Os seus gostos ultrapassam também as raias do habitual; prefere os doces à carne. Desde os seis meses de idade que distingue o sim do não. Centenas de vezes tenho experimentado oferecer-lhe um torrão de açúcar; quando ele vai a abocá-lo, digo-lhe: não! E o «Punch» recua. Se coloco à volta dele numerosas pedras de açúcar e digo em voz baixa: não! o «Punch» quedar-se-á sem lhes tocar até que eu pronuncie um sim. Mas como «Punch» difere do homem! Raramente se contenta com o primeiro sim; não obstante, obedece sempre ao primeiro não. Não se apressa a subtrair-se a uma obrigação, pelo facto de surgir um pretexto qualquer para se libertar dela. Quando deito ao chão com uma tentadora e grossa pedra de açúcar, nem a cadela, nem o Punch se consideram no direito de lhe tocar sequer. Se, porém, a pedra de açúcar for muito pequena, existam ambos e, caso eu deixe de pronunciar o impeditivo: não! acabam por engoli-la. Realizei sucessivas experiências, graduando o tamanho do torrão a fim de avaliar qual o volume necessário para que a ideia do «dever» atuasse nos dois animais. Verifiquei que o cão possui uma consciência mais delicada do que a cadela. Inútil será dizer-lhe que em todas as experiências mencionadas me abstenho sistematicamente de gestos e de gritos. No! Oh! Só! Go! (Não! Oh! Magnífico! Vá!) são termos equivalentes para o ouvido do cão, quando docemente pronunciados. Igualmente acontece com Yes, Bess, Press; comtudo, tanto um como o outro reconhecem a equivalência das diversas formas de expressão com que essas palavras podem ser pronunciadas. Para o «Punch» Yes (sim) ou You may have it (podes apanhá-lo) tem igual valor. Possuo um pônei que está sempre pronto a cumprir o seu dever com nervoso entusiasmo. Para ele Woh! Halt! Stop! são exclamações de idêntico valor. O cão parece-me inferior ao pônei na compreensão do tom da voz e ser influenciado de preferência pelas diferenças de som e de volume. Tanto os atos do «Punch» como os do pônei, dão-me a impressão de «atos cultuais» de formas simples. Referirei, para exemplo, o acontecimento que julgo ter-lhe contado já, do perdão pedido pelo meu cão, quando aos três anos teve o seu primeiro latido de cólera. Até esse instante, nunca reconhecera que existisse nele a noção do dever e nunca ainda, por isso, o castigara.» O sr. Jones juntou a esta carta uma série de notas, que são todas instrutivas, interessantíssimas e cujas conclusões merecem a máxima confiança pelo espírito de conscienciosa critica com que as observações foram realizadas. Vou reproduzi-las, omitindo lhes, porém, para encurtar espaço, alguns parágrafos de menos importância relativa: Noção do dever numa cadela, que viola deliberadamente um princípio de que tem a exata noção; e que simula indignar-se ante a violação do dever cometida por um gato. Já em 1885, anteriormente às observações que citei, me capacitara de que os animais domésticos têm a noção do dever. Quiz, todavia, exercer observações num animal manhoso e mau, a fim de verificar os seguintes pontos: 1º Se a ideia do «dever» não procede de duas categorias de motivos inteiramente diversas e a que eu dei as seguintes denominações: motivos reto-morais e motivos egoístas de moral-convencional. 2º Se é realmente exata a teoria de certos teólogos que afirma que os piores dos animais são inocentes e se é verdade que só o homem, entre os seres, tem responsabilidade. Por várias vezes havia visto na estação ferroviária de Mardock uma linda cadela que, ao sinal de chegada dum comboio, espantava do cais um numeroso grupo de galinhas pertencentes ao chefe. Informei-me a respeito do animal e disseram-me que tinha sido perdida, uns meses antes, por um passageiro de primeira classe. Informaram-me também de que era glutona, irascível, conquanto dissimulada e que a essas más qualidades juntava também as da lascívia e da negligencia e outros defeitos. Soube também que não criava amizade a pessoa alguma. Pareceu-me pelo que ouvi que se assemelhava ao mais aviltado espécimen da «humanidade degradada», a prostituta e fiz, acerca da cadela, estas perguntas mais: - É muito inteligente? Ensinaram-na a desviar as galinhas a horas fixas? - É inteligente, mas é péssima. Quanto às galinhas ninguém lhe ensinou a desviá-las da linha. Acostumou-se a aquilo e logo que vê o empregado dirigir-se para a alavanca dos sinais, obriga-as a afastarem-se. Faz isso à chegada de todos os comboios, como se fosse uma obrigação que tivesse. Apesar de comilona, deixa a comida para depois, se quando se lhe dá a refeição é a hora da vinda de algum comboio. Vai afastar primeiro as aves, fica de atalaia para que não se aproximem e, cumprida essa tarefa, come então até se fartar. Este último informe decidiu-me. Pensei de mim para comigo que se a comprasse e a levasse dali a cadela renunciaria à sua última e única «obrigação» não ditada pelo egoísmo e que se tornaria inteiramente má. Comprei-a efetivamente e conduzi-a para minha casa. Acompanhou-me sem medo e até sem estranheza e mal chegada não deu a menor mostra de que se não sentisse tão à vontade, como se fosse nascida e criada naquela casa. Tive-a encerrada durante vinte e quatro horas numa das dependências da casa e mandei alimentá-la abundantemente. Ao outro dia, reconduzi-a à estação, onde não manifestou a mínima alegria por tornar a ver o antigo dono e pouca vontade de recomeçar o seu antigo serviço de vigilância das galinhas. Duas semanas decorridas de sucessivas visitas à estação, mostrava uma absoluta indiferença tanto pelo chefe como pelas aves. Pouco tempo após, o meu criado Ben, veio avisar-me: - Senhor, a Judy está danada, pela certa. Andava a arranjar a cavalariça e, ao passar próximo da cadela baixei-me para a acariciar. Mordeu-me esta mão e aqui, na perna, (de ambas as feridas corria sangue) e depois recuou e agachou-se a um canto. Desci à cavalariça, falei-lhe em tom amistoso e curvei-me para afagá-la. Tentou morder-me. Num movimento curto e seco dei-lhe uma pancada seca no focinho, acima dos olhos. Quis outra vez morder-me. Tornei a castigá-la pela mesma forma. Esta luta prolongou-se durante cinco minutos e saí da cavalariça, deixando o animal atordoado e extenuadíssimo. Duas horas depois perguntei ao rapaz pela cadela. - Não há dúvida de que está com a raiva. Lá se conserva encantonada como a deixou. Rosna logo que me vê. Voltei segunda vez à cavalariça. Aproximou-se de mim para me lamber. Desde então não tornei a castigá-la e quando está na minha presença mostra-se obediente, meiga, alegre, e procura sempre agradar-me. Manifesta, pouco mais ou menos, a mesma docilidade junto de minha mulher e da cozinheira que é uma mulher de modos desembaraçados e enérgicos. Continua, porém, a ser má, como dantes, para Ben, para um outro criado, ainda rapazote e para várias pessoas mais. O carácter da judy tornou-se dúplice; mas logo que pressentia os passos tornava-se mansa como um cordeiro. Reconheci, porém, que o seu sentimento do «dever» e a sua docilidade não tinham valor moral, pois que não eram mais do que efeitos do medo e, até certo ponto, ditados pela esperança de recompensa. Nem uma, nem outra coisa faziam parte do seu carácter verdadeiro; eram ambas artificiais. Ordenei que lhe dessem comida abundante, apetitosa e variada, afim de não se lhe tornar justificável o ensejo de roubar. Mas, quinze dias depois de a levar para casa, ouvi a criada a queixar-se para minha mulher: - Oh! senhora, estão sempre a desaparecer-me coisas de cima da mesa da cozinha! Ou algum dos gatos se habituou agora a roubar, ou então a ladra é a Judy. O que não percebo é como ela pode chegar às coisas, pesada como é. Se nem para uma cadeira consegue subir, como é que ela trepa à mesa?! ... No intuito de tornar o caso mais claro, junto uma planta da cozinha. Mandei colocar sobre a mesa da cozinha vários pratos com comida e afastar a cadeira para que a Judy não pudesse subir. Depois disse à cozinheira que fosse para a sala de jantar e que se conservasse ali até novo aviso. Na cozinha ficaram os dois gatos e Judy. Esta achava-se junto da escudela onde costumava comer. Saí para o jardim e embosquei-me por detrás da janela onde uma cortina de messalina me permitia observar dissimuladamente o que se passava no interior da cozinha. Quando tudo recaiu em sossego, Judy encaminhou-se para a porta escutou com atenção e meteu depois o focinho no corredor a ver se alguém vinha por ele. Em seguida dirigiu-se para o canto alçou-se nas patas traseiras e avançou assim, ereta, até próximo da mesa, para poder examinar o que os pratos continham. Findo o seu exame, empurrou um dos gatos várias vezes para a cadeira. O bichano acabou por compreende-la e saltou para a cadeira primeiramente, e para a mesa, depois, e apoderando-se dum osso arrastou-o na boca para a escudela Judy repeliu-o, pôs-se a roer avidamente o osso assim obtido. Dei sinal e uma das criadas entrou na cozinha quase sem fazer ruído, nos bicos dos pés. Logo, porém que Judy deu por ela, isto é, quando a criada chegou ao limiar da porta, atirou-se contra o gato, a latir furiosamente e a morde-lo, perseguindo-o até à distância duns quarenta metros. Presenciei esta comedia, do começo ao fim, por duas vezes e tive, noutras, ensejo de assistir a parte dela. Além de mim, houve mais pessoas que tiveram ocasião de presenciar o hipócrita estratagema. Tanto eu como os outros observadores, verificámos que Judy tinha sempre a precaução de se assegurar de que o corredor estava deserto e, que, ora com um gato ora com o outro, reproduzia invariavelmente a mesma fingida indignação e a mesma tentativa de indicar um deles como autor do roubo. Tudo isto me levou ao convencimento de que a Judy reconhecia o maleficio do gato que saltava a mesa para furtar a comida, que o instigava a essa violação do seu dever e que se fingia indignada para endossar uma responsabilidade da qual o seu espírito possuía a clara compreensão. Lamento que não tenha tempo e espaço largo para lhe comunicar outros pormenores relativos ao caráter desta cadela. Era um tipo nitidíssimo; mas tive outros animais que, como a Judy, conheciam melhor ou pior o seu dever ou «a obrigação moral» a título de ação ou missão exigida por um superior e que, todavia, a cumpriam só pelo receio de castigo ou com a esperança de uma recompensa não em consequência de uma forma de predileção (que não é filha da simpatia), mas que provêm do gozo ou do proveito que o ato praticado traz «para o superior a quem o animal testemunha a sua predileção. Nestes casos, a ideia do «dever», da justiça, da «obrigação» é nos animais um produto de egoísmo. Por isso os classifico, na categoria dos deveres da «moral-egoísta» ou da «moral convencional», de uma moral acomodatícia e variável, ou, para sintetizar - de «Judysmo». Passo agora a fazer uma sucinta análise do senso do dever ou do sentimento de «obrigação» num cão a que já me referi noutras passagens destas cartas: o «Punch». Nos sumários informes que a respeito dele lhe comuniquei, disse que é incapaz de fazer mal a qualquer ser vivo ou a qualquer objeto trabalhado por indústria do homem. Aí vai um exemplo característico: Não consegui nunca o resolver a morder-me, ou sequer a ameaçar-me, quando, para experiência, o fazia sofrer intensa e duradouramente comprimindo lhe e até picando-lhe os nervos subcutâneos. Quando agredido por outros cães, embora com violência, não os morde. Em tal procedimento parece-me existir um sentimento do «dever» ou de «obrigação» que especialmente difere de todas as variedades desta noção que atrás classifiquei de «Judysmo». Mas porque é que o «Punch não morde? No pé de relações que entre ambos nós se mantem, não é certamente porque tenha medo de mim. Aprecio muito o mérito dele como ótimo tema de experiências que é, para que pratique a asneira de lhe incutir contra mim o sentimento do medo. Penso tão pouco em maltratá-lo, como um eletricista em manejar com rudeza e falta de jeito um eletroscópio de delicada construção. As nossas relações têm um tal carácter de amistosa intimidade que quando o «Punch« quer a porta aberta, ou livrar-se dum inseto impertinente, ou de um espinho incómodo, é de mim que se socorre. Acerca-se da minha secretária, alça, bate-me com a pata direita no ombro a chamar-me a atenção e repete o aviso tantas vezes quantas as necessárias para que me ocupe dele. Quando volto a cabeça a atendê-lo, indica-me o que deseja; quando quer que lhe arranque um espinho ou que o liberte de uma carraça, aponta-me o sitio exato em que ele está sem que o erro, quando o há, exceda a grossura dum dedo mínimo. Objetar-me-ão talvez que me não faz mal porque tem fé e confiança em mim e porque pensa que o não faço sofrer propositadamente. A primeira impressão, parece admissível essa hipótese e tanto mais verosímil quanto é certo que desde a idade de um ano um guarda de caça lhe alojou na cabeça e no corpo uns trinta grãos de chumbo que eu lhe extraí pacientemente. A recordação desse tratamento faz, sem dúvida, com que ele considere a pressão da navalha como uma operação nova. Mas que tem isso com o procedimento de «Punch», quando o molesto com a muleta ou com a bengala? Como já expliquei, deixa-as ficar intactas, ao passo que despedaça qualquer outro objeto não trabalhado que o moleste. Também não é por covardia que não exerce represálias contra outros cães que o mordam. Quando atacado, emite um latido de censura, mas não foge. Não consegui dele que se afastasse nestas circunstâncias e daí resulta ficar bastas vezes muito malferido. Um incidente acontecido há anos projeta uma intensa luz sobre a ideia de «Justiça» tal como ela existe no espírito do «Punch» ou do «Monkei» dois nomes aos quais igualmente acode. Seguia eu pela estreita rua de West-Appledose quando um cão possante e de grande marca se lançou sobre ele e o mordeu na cabeça tão violentamente que lhe fez correr sangue em profusão. Pela primeira vez na sua vida, que eu saiba, o «Punch» resistiu empregando, porém, a sábia resistência dum quaker. Segurou fortemente o contendor pelas patas, acima do calcâneo, e obrigou-o a tomar uma posição de equilíbrio instável. O outro cão ficou mudo e queda, certamente com o receio de cair de costas e de ficar assim à mercê do «Punch». Nenhum sofrimento este, porém, lhe infligiu, pois que o não mordeu, contentando-se em segurá-lo vigorosamente. Por fim, o assaltante voltou a cabeça para o morder; «Punch» defendeu-se desse novo ataque erguendo lhe mais a pata e torneando sobre si mesmo de maneira a mantê-la na linha, mas em sentido oposto ao da cabeça do adversário e de modo a guardar sempre a mesma distância. Passados uns dois minutos tive de intervir por causa duma carroça que avançava para cima de ambos. O agressor afastou-se, de rabo entre as pernas e «Punch» desatou aos pulos, juntando a essa manifestação de contentamento, entusiásticos latidos. Centenas doutros fados me convenceram de que esse animal possui um sentimento de «dever» dum gênero absolutamente diferente do que expus e classifiquei com o nome de Judysmo. É, na verdade, a pratica do preceito: faze aos outros o que queres que te façam a ti. Observei não só no Punch como também noutros animais domésticos, esta espécie de sentimento do dever, da obrigação, da moralidade, que classifiquei como «sentimento reto do dever» e que é oposta à moralidade egoísta, enganadora e de conveniência, a que chamei «Judysmo». Nunca encontrei dois tipos tão nítidos, dum e doutro sentimento, como em «Punch» e «judy». A maioria dos animais são impulsionados conjuntamente, mas em graus variáveis, pelas duas espécies de sentimentos do «dever»; outros são-no apenas pelo sentimento de moral «egoísta ou de conveniência»; outros ainda, raros, porém, parecem quase refratários tanto a um como ao outro e constituem o grupo dos totalmente «imorais». O que as minhas observações me levam a induzir é que a divisão do «sentimento do dever» em «sentimento-reto. e «sentimento convencional» abrange todos os casos. Quaisquer atos que impliquem o reconhecimento dessa obrigação entram ou numa ou na outra destas duas categorias. Os animais diferem notavelmente uns dos outros, consoante o sentimento de dever que neles predomina e a espécie de moralidade que lhes serve de norma de vida. Se é o sentimento-reto poderemos confiar neles; se for o «sentimento-convencional» procedamos com reserva, porque são versáteis e dúplices. Quanto ao que se refere à conduta exterior, acrescentarei que, no meu modo de ver, a moral convencional atua como dissolvente do espírito ou do senso moral. Tenho feito, nessa mira, algumas observações em animais, mas não me tem sido possível levá-las tão longe como era meu desejo. (Assunto: Presumo que a firmeza de carácter tem por base o senso-reto do dever; o senso «convencional» é um hábito mental adquirido). O sentimento reto do dever é, nos animais, uma força atuante que engrandece com o tempo. Alguns teólogos poderiam chamar-lhe uma força de «regeneração» ou de salvação. (Os que pensam que a profissão dum credo é a única força santificante não lhe atribuiriam, talvez, o valor de «obrigação» convencional; talvez até que, em certos casos, lhe atribuíssem um valor subalterno). Quanto à origem do senso-reto do dever, tudo quanto as minhas observações me permitem afirmar é que ela não é eivada de egoísmo algum. Este senso parece-me aproximar-se infinitamente da simpatia oposta ao género de «sentimento» que defini. Os animais superiores, aqueles que possuem o senso-reto são, segundo as minhas observações, notáveis pela sua aptidão «para se substituírem a outrem», faculdade que é a base da verdadeira simpatia. A sua uniforme tendência é para fazerem o que desejam que se lhes faça». Na maioria dos casos, esta tendência parece inata, mas desenvolve-se com a idade. Não vi ainda formulada em parte alguma a distinção da ideia do dever em moralidade-reta e moralidade convencional e, conseguintemente, de toda a moralidade que centenas de observações sobre indivíduos de espécies diferentes me permitiram estabelecer. É, contudo, provável que outras pessoas tenham notado essa distinção. A maioria dos mais antigos escritos que eu conheço, reconheciam-na tacitamente. Com efeito, o reconhecimento da moralidade-reta atravessa, como um veio de ouro no quartzo, quase todos os livros da Bíblia, assim como os livros apócrifos do Antigo e do Novo Testamento; constitui ela o elemento protagonista ou «substância central nervosa» de quase toda a doutrina de Cristo. Várias obras de teologia admitem tacitamente esta distinção, ainda que eu me julgue no direito de afirmar - salvo erro - que não reconhecem suficientemente o facto de que a principal, senão única utilidade do senso do dever «convencional» ou da obrigação «egoísta», é o de prevenir conflitos no decurso da vida humana. Certos animais (dos que não fazem parte da espécie humana) seguem não só a noção de obrigação que se formou no seu espírito, mas, mais ainda: os atos dos de inteligência superior testemunham o pressuposto de que ela exista também no espírito de certos homens. No mês de agosto de 1886, saí a passear com a minha mulher, numa carruagem tirada por um pônei de nome «Prince», que eu próprio ia guiando. Geralmente servia-me apenas da voz para o dirigir, mas como me envolvesse com a minha esposa, numa discussão científica interessante, sucedeu que principiei distraidamente a corroborar os meus argumentos com chicotadas no flanco do cavalo. O chicote tinha uma pita nova e entrançada aos nós. A terceira chicotada, o pônei estacou e, voltando a cabeça, olhou para mim. Minha mulher deu pelo caso e observou-me: O «Prince» está a olhar por o magoares com o chicote. Na sequência do passeio, por outras vezes sucedeu tornar a chicoteá-lo sem querer, reforçando com esse ato inconsciente a energia das afirmativas que a discussão me provocava. Ao voltarmos a casa e quando o desatrelaram, estava eu fora da linha reta que ele tinha a percorrer para chegar à porta da cavalariça. Em vez de seguir a direito, conforme era seu costume, encaminhou-se para mim e depois de procurar várias vezes chamar a minha atenção tocou-me com o focinho e levou-o em seguida tão perto quanto pôde das marcas que o chicote lhe havia causado. Repetiu estas indicações até que eu o mandei friccionar. Dois meses passados, procedeu, em análogas circunstancias, de igual modo. No corrente outono de 1886 fui à Ware numa carruagem tirada pelo meu pônei. Quando à porta duma loja ia a subir para a almofada notei que o «Prince seguia com os olhos os meus movimentos. De ordinário o cocheiro só subia quando a carruagem ia já em marcha. Eu disse a minha mulher que fizesse avançar o cavalo e ela tentou, mas infrutiferamente que se pusesse em marcha. Só principiou a caminhar quando viu que eu estava sentado. Esta experiência foi por várias vezes repetida e é para salientar o complicado raciocínio que determinava uma obrigação diferente conforme se tratasse dum coxo (como eu) ou duma pessoa vigorosa e sã, como o cocheiro. No referido outono, íamos de Wearside para Hadam e encontrámos no caminho um grupo de crianças, duas das quais em velocípedes. O encontro tornou-se, para nós, embaraçoso: várias das crianças acumularam-se junto a uma paliçada que marginava o lado esquerdo da estrada, outras e um dos velocipedistas achavam-se um pouco mais longe à esquerda; o outro velocipedista ainda mais para a direita. As distâncias entre c, pl e p2 e a paliçada da esquerda eram pouco mais ou menos iguais. Havia largo espaço para passar entre p1 e p2, mas as crianças tinham formado um agrupamento confuso e fugiam em todas as direções. «Vamos a ver, disse minha mulher, se o Prince consegue sair-se da dificuldade». Abandonei as rédeas. O Prince continuou no rápido trote em que vinha até 7 ou 8 yards das crianças, meteu depois a passo, desviou para a direita e passou rente da paliçada desse lado, voltando a cabeça durante essa curva para se assegurar de que a carruagem não chocava com o velocípede da esquerda. Logo que este ficou uns três yards atrás tomou bruscamente o lado esquerdo da estrada (Em Inglaterra as carruagens tomam a esquerda dos caminhos e não a direita, como por exemplo é uso em França) e, sem intervenção alguma da minha parte, recomeçou a trotar pelo caminho fora. Em novembro de 1887, depois da morte de minha mulher, veio fazer-me companhia uma parenta. Gostava de guiar o Prince; era, porém, muito surda e como não ouvisse o ruído das carruagens que pudessem vir atrás de nós, tinha o cuidado de me sentar sempre ao lado dela para a avisar de que desviasse para a esquerda, afim de dar a passagem a qualquer veículo que quisesse tomar-nos a dianteira. Ora uma vez em que a minha parenta conduzia a carruagem e em que subíamos uma íngreme ladeira da estrada de Ware e em que o «Prince» caminhava à vontade, com as rédeas bambas, ouvi uma pesada carroça que seguia no nosso encalço. O condutor vinha embriagado e, conquanto tivesse largo espaço, tomando pela direita; para nos passar adiante, deixou-se ficar atrás e de modo que o cavalo que tirava a carroça levava o focinho dentro da nossa carruagem aberta. No intuito de verificar o procedimento do Prince não dei à minha parenta o costumado aviso. O pônei parecia nervoso e agitado; voltava a cabeça o mais que podia para observar à direita e atrás; mas como a carroça vinha colada à traseira da nossa carruagem, o Prince não conseguia vê-la. Após três ou quatro minutos de angustias (sirvo-me deste termo, porque os movimentos das orelhas e a tensão dos músculos do pônei justificam o seu emprego), como não recebesse indicação alguma, parou, encostando a carruagem à berma esquerda. Logo que a carroça parou adiante de nós, o «Prince» prosseguiu no seu trote acelerado e habitual. Várias experiências que efetuei em dias intervalados levaram-me a verificar o seguinte: quando eu o guiava atendia sempre ao sinal que lhe fizesse com a rédea esquerda. Quando, porém, o guiava a minha parenta, atendia ou a esse mesmo sinal conforme a direção do ruído e o tempo que tivesse para se desviar. Insistindo nas mesmas experiências, conclui que, ao ser guiado pela minha parenta, se regulava pelas indicações que o ouvido lhe oferecia e não pelo manejo das rédeas. A surda senhora saiu, bastantes vezes, a passear sozinha na carruagem e o pônei compreendeu que uma nova espécie de obrigações lhe cumpria praticar quando quem o guiava era a minha parenta. Exemplos de animais (que não jazem parte de espécie humana) e que tomam iniciativas de cooperação moral. As circunstâncias determinam a formação simultânea da ideia do dever. Neste outono que vai correndo (1886) saíra de Baker's End para transportar na carruagem um grupo de amigos. Ao chegarmos a uma descida, envolveu-nos um nevoeiro; a luz das lanternas não irradiava até mais de seis passos e a nevoa refletia como se a claridade incidisse numa parede. Um pouco adiante da estação de Mardock a estrada faz uma curva apertada para a direita. Nem eu nem os meus amigos demos por essa brusca mudança de direção e o pônei vendo-se de encontro ao talude, ergueu-se nas patas traseiras e tombou para a beira da estrada. Apeámo-nos todos e os meus companheiros seguiram a pé para o seu destino. Eu voltei o cavalo para o lado oposto em que tínhamos vindo e subi de novo para a carruagem. O «Prince» avançou lentamente, mas puxando-me pelas rédeas a ponto quase de as fazer largar das mãos. Como estávamos habituados a conduzi-lo com a rédea frouxa, nas descidas, e como o caminho era a descer, imaginei que esta se tivesse prendido ao varal. Verifiquei, porém, que não e tirando uma das lanternas desci novamente e aproximando-me da cabeça do pônei vi que a tinha o mais baixo que lhe era possível. As suas ventas quase tocavam no dorso de «jack» (o pai do «Punch») e o cão por seu turno estava também de focinho colado à terra, farejando. Trepei outra vez para a boleia e ao dar o sinal de avanço, abandonei as rédeas. Caminhávamos a passo e por diversas vezes em pontos diferentes, fui verificando com a ajuda do chicote a distância a que seguíamos das duas bermas da estrada. O cão e o pônei seguiram sempre pela parte central do caminho, á exceção de um sitio em que existe uma profunda ravina apenas vedada por um leve parapeito: aí desviaram-se um pouco para a berma oposta à da ravina. A noite estava frigidíssima e a nossa marcha tinha o triste aspecto de um enterro; mas o pônei e o cão conseguiram conduzir-me a casa, a salvo de qualquer perigo, apesar do péssimo traçado do caminho que tem seis apertadíssimas curvas, duas das quais são tanto que duas delas nem sequer têm dez comprimentos somados do cavalo e da carruagem. Ao apear-me, o cavalo estava a escorrer em suor e o cão tinha a respiração apressada que denotava grande cansaço. Um episódio que presenciei, a seguir, na cavalariça revelou-me a analogia entre os sentimentos dos animais e os dos homens colocados em identidade de circunstâncias; o cavalo acariciava com o focinho a cabeça e lombo do Jack; este cheirava e lambia a cabeça do cavalo. Ambos se felicitavam mutuamente, e duma forma bem significativa, por terem levado a bom termo o dever que se haviam imposto,» É notável o paralelismo entre as conclusões que o sr. Jones tira das suas observações acerca dos motivos que fazem agir os animais e as respeitantes aos motivos humanos que enumerei no capítulo IV: "O Sentimento da Justiça». A distinção que estabelece entre a moral-reta e a "moral convencional» corresponde evidentemente á que eu estabeleci nesse capítulo para demarcar o sentimento altruísta do sentimento egoísta. Importa ainda acentuar que a indicada correspondência entre o modo de ver do sr. Jones e o meu, tende em ambos os casos, para justificar a convicção numa génese natural dum sentimento moral, mesmo desenvolvido que seja. Se a disciplina da vida é capaz de produzir a consciência plena do dever em certos animais inferiores, é ela também, à fortiori capaz de a produzir no homem. Por certo alguns dos meus leitores hão de ter notado que as anedotas do Sr. Jones fazem lembrar o ditado: O homem é o deus do cão» e que demonstram que o sentimento do dever nasce da relação pessoal entre o cão e o seu dono, pelo mesmo modo que o mesmo sentimento se origina na relação entre o homem e o seu criador. Esta interpretação estriba-se nas ações dos cães que o Snr. Jones classifica na categoria de «convencionais-morais», mas não naquelas a que chama reto-morais. É mais que certo que as relações entre o cão e o seu dono, não obrigariam o Punch a deixar de exercer represálias no animal que o mordera, contentando-se unicamente em colocar o adversário na impossibilidade de o agredir novamente: procedendo assim, o Punch revelava um sentimento cristão e que, entre cristãos, se encontrará em um por mil. Este caso excepcional reforça a dedução já estabelecida de que no «Punch», o sentimento do dever é independente do sentimento de subordinação. Mas, ainda quando exato fosse que um tal sentimento do dever, quando ele exista no espírito pouco desenvolvido dos animais superiores, tem como exclusiva origem as relações pessoais entre eles e os seus donos, - nem mesmo assim poderia daí concluir-se que no espírito mais desenvolvido dos homens o sentimento do dever se não possa manifestar a despeito de quaisquer relações pessoais de idêntica natureza. Mostra-nos a experiência que na inteligência mais extensa do ser humano, a par do motivo que o determina a agradar a Deus, o desejo de beneficiar os outros homens pode também intervir como causal que o sentimento do dever é suscetível de associar-se tanto a este último motivo como ao primeiro. Nenhuma dúvida pode haver de que muitos indivíduos, por natural pendor da sua boa índole se entregam com o mais louvável ardor à prática de atos filantrópicos, sem preocupação alguma de interesse pessoal. Há-os que se ofenderiam caso lhes dissessem que procedem desse modo para captarem a recompensa de Deus. FIM