Herbert Spencer – Lei e Causa do Progresso A ideia que se faz comumente do progresso tem alguma cousa de incompreensível e de indefinido. Algumas vezes dá-se este nome somente ao simples aumento, - por exemplo quando se trata duma nação, do número de seus membros e do território em que ela se estende, Outras vezes refere-se à quantidade dos produtos materiais, - quando se fala dos aperfeiçoamentos da agricultura e da indústria, Em outras ocasiões, tem-se em vista a qualidade desses produtos, que torna-se superior; e, em outras ainda, os processos novos ou aperfeiçoados, graças aos quais se obtiveram esses produtos. Por outro lado, se se fala de progresso moral ou intelectual aprecia-se o estado do indivíduo ou do povo em que o progresso se mostra; mas se é questão de progresso do conhecimento, da ciência, da arte, tem-se em consideração certos resultados abstratos do pensamento e da atividade humanos. E, entretanto, não é o único defeito da ideia corrente do progresso, ser ela mais ou menos vaga, é, além disso, falsa em muitos sentidos. Não se prende tanto ao progresso em si mesmo como às suas dependências, á presa como a sombra. O progresso intelectual, em virtude do qual forma-se da criança o homem e do selvagem o filosofo, esse progresso, fazem-no consistir no número crescente de fatos conhecidos e de leis compreendidas, entretanto que o verdadeiro progresso consiste nas mudanças intimas, cuja acumulação de conhecimentos é apenas o indicio. O progresso social consiste, como se crê, em produzir uma quantidade crescente de artigos mais e mais variados, para satisfazer as necessidades do homem; para aumentar a segurança das pessoas e das propriedades; para estender nossa liberdade de ação: mas, para quem o compreende bem, o fundo do progresso social, é as mudanças da estrutura do organismo social, as quais trouxeram essas consequências. A ideia corrente é causa final. Somente se vê nos fenômenos as suas relações pela felicidade humana. Reserva-se o nome de progresso para as mudanças que tendem unicamente, diretamente ou não, a aumentar a felicidade dos homens. E julga-se progresso por isso só que elas tendem a aumentar a felicidade dos homens. Ora para bem compreender o progresso, precisamos indagar qual é a natureza dessas mudanças, abstração feita de nossos interesses. Deixemos, por exemplo, de considerar as mudanças geológicas que tiveram lugar sucessivamente na terra, como mudanças que a tornaram gradualmente morada conveniente para o homem, e de ver nelas, por essa razão, progresso geológico; e procuremos determinar o caráter comum de todas essas mudanças, a lei que todas elas seguem. E da mesma maneira em todos os outros casos. Desviemos nossas vistas dos acidentes concomitantes e dos resultados benéficos, e vejamos o que é o progresso em si mesmo. Se se trata do progresso que se observa nos organismos individuais no curso de suas evoluções, os alemães resolveram já a questão. As pesquisas de Wolff, Goethe e Von Baer o demonstraram: a serie das mudanças operadas por um grão que se desenvolve e torna-se arvore, por um ovo que se torna animal, não é outra causa mais do que a passagem de uma estrutura homogênea para uma estrutura heterogênea. Em estado primitivo, o gérmen é apenas uma substancia absolutamente uniforme, tanto pela contextura como pela composição química. O primeiro passo é a aparição de uma diferença entre duas porções dessa substancia; ou para empregar o termo dos fisiologistas, uma diferenciação. Depois, cada uma dessas porções diferenciadas começa por sua vez a revelar contrastes entre as suas partes; pouco a pouco essas diferenciações secundarias tornam-se tão definidas como a primeira. Este processo repete-se continuamente e, ao mesmo tempo, em todos os pontos do embrião crescente; e, graças a uma infinidade de diferenciações semelhantes, produz enfim essa combinação complexa de tecidos e de órgãos que constitui o animal ou a planta adulta. Tal é a história de todos os organismos sem exceção. - Assim eis que é fora de dúvida: o progresso orgânico é a mudança do homogêneo em heterogêneo. Pois bem! nós nos propomos, em primeiro lugar mostrar que esta lei do progresso orgânico é a lei de todo o progresso. Trata-se embora do desenvolvimento da terra, do desenvolvimento da vida na sua superfície, do desenvolvimento da sociedade, do governo, da indústria, do comercio, da linguagem, da literatura, da ciência, da arte, sempre o fundo é esta mesma evolução que vai do simples ao complexo, através das diferenciações sucessivas. Desde as mais antigas mudanças cósmicas de que há notícia, até os últimos resultados da civilização, vamos ver que a transformação do homogêneo em heterogêneo é a própria essência do progresso. Vamos mostrar que, se a hipótese nebular é verdadeira, a gênesis do sistema solar nos fornece um exemplo apropriado para esclarecer esta lei: admitamos, pois, que a matéria da qual são feitos o sol e os planetas esteve outrora em estado difuso; que, graças à gravitação, seus atamos gradualmente se concentraram. Na hipótese, o sistema solar em estado nascente tinha a forma de um meio indefinidamente extenso e quase homogêneo pela densidade, temperatura e outras propriedades físicas. O primeiro passo para a consolidação teve por efeito uma diferenciação entre o espaço cheio, que a massa nebulosa enchia ainda, e o espaço vazio que ela precedentemente encheu. Ao mesmo tempo, resultou uma diferenciação de densidade e de temperatura, entre o interior e o exterior da massa. Então também tiveram nascimento os movimentos de rotação, cujas velocidades variam na razão da distância dos pontos considerados no centro. Estas diferenciações cresceram em número e em grau, até que se desenvolveu o grupo organizado do sol, dos planetas e dos satélites, tais como os vemos hoje, grupo cujos membros oferecem entre si, quanto á estrutura e ao modo de ação, contrastes numerosos: contrastes enormes entre o sol e os planetas, quanto ao volume e peso, contrastes secundarias entre um e outro planeta, entre um planeta e seus satélites; contraste não menos notável entre a imobilidade quase completa do sol e é a revolução muito rápida dos planetas em torno dele; e aqui ainda, contrastes secunda rios entre as velocidades e os períodos dos diversos planetas por um lado, e, por outro, entre suas revoluções que são simples, e as dos seus satélites, que são duplas, porque é-lhes preciso moverem-se em torno de seus planetas ao mesmo tempo que se movem em torno do sol; contraste ainda mais notável de temperatura, entre o sol e os planetas; enfim é razoável supor que, entre o calor próprio do planeta e o do seu satélite, há uma diferença, como há entre as quantidades respetivas de calor que eles recebem do sol. Recordemo-nos que, além destes diversos contrastes, os planetas e os satélites diferem ainda em relação das distancias respetivas aos seus centros de revolução; em relação ás inclinações de suas orbitas, ás inclinações de seus eixos, da duração de suas rotações sobre os eixos, de seus pesos específicos e de suas constituições físicas; vemos por isto qual é o grau de heterogeneidade que o sistema solar atinge, se atendermos a homogeneidade quase completa da massa nebulosa de onde se supõe que ele nasceu. Deixemos este exemplo hipotético, que se deve tornar pelo que ele vale, sem prejuízo do resto da argumentação, e desçamos a uma ordem de provas mais solidas. Os geólogos admitem em geral, hoje, que a terra foi primitivamente uma massa de matéria em fusão e que ela é ainda fluida e incandescente na distância de algumas milhas abaixo da superfície. Na origem, pois, ela foi de consistência igual por toda a parte e, em virtude da circulação que se opera nos fluidos incandescidos, devia ter temperatura comparativamente homogênea; por outra, devia estar envolvida por uma atmosfera formada em parte dos elementos do ar, da água e, em parte, por esses diversos outros elementos que, em alta temperatura, afetam a forma gasosa. O resfriamento lento pela irradiação, que continua ainda de maneira insensível, e que, apesar da sua rapidez muito maior na origem, teve, entretanto, necessidade de tempo excessivo para produzir uma mudança notável, originou enfim a solidificação da parte mais-exposta a perder o calor, isto é a superfície. A tênue crosta assim formada nos oferece a primeira diferenciação notável. Depois, prosseguindo o resfriamento, a crosta devia tornar-se mais consistente, os elementos solidificáveis contidos na atmosfera se depositaram e finalmente a água, até aí vaporizada, se condensou. Assim devia aparecer uma segunda diferenciação notável: e como a condensação devia ter lugar nos pontos mais frios da superfície, em redor dos polos, resultou a primeira distinção de regiões geográficas. Embora estes exemplos de heterogeneidade crescente sejam deduzidos de leis conhecidas da matéria, pode-se, contudo, achá-los mais ou menos hipotéticos; a geologia adiciona sem cessar quantidade de outras leis estabelecidas pela indução. Estas pesquisas mostram que a terra se tornou mais e mais heterogênea, graças à multiplicação dos estratos que formam a crosta; por outra, ela tornou-se mais e mais heterogênea em relação à composição desses estratos, dos quais os últimos, sendo formados dos detritos dos antigos, são pela maior parte, graças à mistura dos materiais que contêm, de extrema complexidade; e que esta heterogeneidade foi acrescentada consideravelmente pela ação do centro ainda em fusão no seu involucro: daí resultou, com efeito, primeiramente grande variedade de rochas ígneas, depois a inclinação dos estratos sedimentários segundo todos os ângulos possíveis, a formação das soluções e das veias metálicas, a produção das deslocações e das irregularidades sem fim. Do mesmo modo ainda, os geólogos nos ensinam que a superfície da terra foi variando cada vez mais suas sinuosidades, que os mais antigos sistemas de montanhas são os menores, os Andes e o Himalaia os mais modernos, entretanto que; segundo toda a probabilidade, o leito do Oceano sofreu mudanças correspondentes. Em consequência destas diferenciações ininterruptas vemos hoje que nenhuma parte considerável da superfície visível da terra se assemelha à outra, tanto nos contornos e estrutura geológica, como na composição química, e que, em muitas partes, ela muda, nestes diversos sentidos, de milha em milha. Por outra, não o esqueçamos, produziu-se simultaneamente uma diferenciação gradual de climas. A medida que a terra resfriava e que a sua crosta se solidificava apareciam notáveis diferenças entre as temperaturas dos diversos pontos, segundo eles se achavam mais ou menos expostos ao sol. Pouco a pouco, o frio aumentando, essas diferenças tornaram-se mais sensíveis; até que enfim resultaram os contrastes entre as regiões do gelo e neve perpétuos, as regiões onde o inverno e o estio reinam alternativamente, durante períodos que variam com a latitude, e as regiões onde o estio sucede-se ao estio, quase sem variação apreciável, ao mesmo tempo as elevações e os abaixamentos sucessivos de diferentes porções da crosta terrestre, tendendo, como faziam, a produzir esta distribuição irregular da terra e do mar que vemos, originavam diversas modificações do clima, além daquelas produzidas pela latitude; entretanto que uma nova série de modificações iguais foram produzidas pelas diferenças crescentes do nível das terras, de maneira que em muitos lugares o clima ártico, o temperado e o tropical se acham reunidos em um espaço de algumas milhas. E o resultado geral destas mudanças é que não somente toda a região de alguma extensão tem suas condições meteorológicas próprias, mas cada localidade da região difere mais ou menos das outras em relação dessas condições quer pela sua estrutura, contorno ou terreno. Assim entre a nossa terra de hoje, cuja crosta tão variada oferece fenômenos que os geógrafos, os geólogos, os mineralogistas, os meteorologistas, ainda não acabaram de enumerar, e o globo em fusão do qual ela se originou, o contraste na heterogeneidade é assaz sensível. Se da própria terra passamos às plantas e aos animais que viveram ou que vivem ainda na sua superfície, vemo-nos um pouco embaraçados, faltos de fatos. Qualquer organismo, inclusive os de hoje, passou por via de desenvolvimento de um estado simples para um estado complexo: tal é seguramente a primeira de todas as verdades demonstrada acerca deste ponto; todos os organismos que existiram em qualquer tempo seguiram o mesmo caminho, conclusão que nenhum fisiologista hesitará tirar. Mas, quando passamos dos indivíduos vivos a vida em geral e que indagamos se a mesma lei aparece no conjunto de suas manifestações, se as plantas e os animais modernos têm estrutura mais heterogênea que seus antepassados e se a Flora e a Fauna atuais da terra são mais heterogêneas do que a Flora e a Fauna d'outrora, não encontramos mais do que fragmentos de provas, de modo que qualquer conclusão se presta a crítica. Dois terços da superfície terrestre estão cobertos de água; uma grande parte da terra descoberta é inacessível ou ainda desconhecida ao geólogo; a maior parte do resto tem sido apenas tocada; e mesmo as porções mais familiares, como a Inglaterra, têm sido tão imperfeitamente exploradas que nestes quatro últimos anos uma nova série de estratos foi adicionada ás antigas: nos é pois manifestamente impossível dizer com alguma certeza quais foram os seres vivos que existiram e quais os que não existiram durante um período dado. Tenhamos em consideração a fragilidade de um bom número de fôrmas orgânicas inferiores, da metamorfose de muitos estratos sedimentários e das brechas que apresentam os outros: há aí uma razão de mais para duvidarmos de nossas deduções. De uma parte, a descoberta reiterada de restos de vertebrados nos terrenos que se acreditava até então não os conter, de répteis onde se imaginava que havia unicamente peixes, de mamíferos onde se supunha não encontrar seres mais elevados do que os répteis, tudo isto põe, de dia em dia, mais em evidencia o pouco valor de qualquer prova negativa sobre este ponto. De outra parte, não é tão pouco razoável acreditar que tenhamos descoberto os mais antigos ou qualquer cousa que se possa julgar os mais antigos restos orgânicos; esta suposição cai por incompreensível. As mais antigas rochas sedimentares conhecidas foram extremamente mudadas pela ação do fogo e outras, mais antigas ainda, foram totalmente transformadas por essa ação: é o que já não se pode mais negar. Por outra, se se admite que as camadas de sedimento excedendo em antiguidade todas as camadas conhecidas liquefizeram-se, então confessemo-lo, não podemos fixar, no passado, a época até onde se prolongou a destruição das camadas de sedimento. É, pois, visível que, dando o título de Paleozoicas ás camadas fossilíferas mais antigas conhecidas, emprega-se um sofisma; pelo contrário, tanto quanto podemos saber, foram somente os últimos capítulos da biografia da nossa terra os que puderam conservar-se até ao presente. Assim nem de um lado, nem de outro, a demonstração é concludente. Não obstante, há uma ideia que não podemos rejeitar: por muito raros que sejam, os fatos, tomados em seu conjunto, tendem a provar primeiramente que os organismos mais heterogêneos se desenvolveram nos períodos geológicos mais recentes; depois, que a vida em geral se manifestou com heterogeneidade crescente de momento a momento. Tomemos um exemplo único: os vertebrados. Os restos conhecidos dos vertebrados mais antigos são os dos peixes; e os peixes são os mais homogêneos dos vertebrados. Mais recentes e mais heterogêneos são os repteis. Ainda mais recentes e ainda mais heterogêneos, os mamíferos e os pássaros. Se nos disserem, como estão no direito de fazê-lo: que apesar dos depósitos paleozoicos (postos de parte os depósitos dos estuários) não conterem provavelmente restos de vertebrados terrestres, todavia estes seres podem muito bem ter existido na época destes depósitos; então nós responderemos que temos em consideração simplesmente os fatos capitais, tais como eles se oferecem. Mas para evitar qualquer crítica deste gênero, tomemos somente a subdivisão dos mamíferos. Os restos conhecidos dos mamíferos mais antigos são os dos pequenos marsupiais, os quais estão colocados no grau mais inferior do gênero mamífero; entretanto que inversamente o ser mais elevado desse gênero, o homem, é o mais recente. Mas, quanto á fauna vertebrada em geral, pode-se provar com muito mais força, que ela cresceu em heterogeneidade. Se partimos da ideia que a fauna vertebrada do período paleozoico, composta unicamente, segundo sabemos, de peixes, era menos heterogênea que a fauna vertebrada moderna, que compreende repteis, pássaros e mamíferos de uma multidão de espécies, poderiam, como acima, replicar-nos que os depósitos dos estuários do período paleozoico, se pudéssemos descobri-los, conteriam talvez outras ordens de vertebrados. Mas é impossível que nos façam esta replica, raciocinando nós do seguinte modo: em tanto que os vertebrados marinhos do período paleozoico eram todos peixes de esqueleto cartilaginoso, os vertebrados marinhos de períodos mais recentes compreendem numerosas espécies de peixes de esqueleto ósseo; assim pois, as faunas marinhas vertebradas mais recentes são mais heterogêneas que a mais antiga conhecida. Da mesma maneira, é impossível fazerem-nos uma réplica do mesmo gênero, se alegamos que os restos dos mamíferos das formações terciarias pertencem a ordem e gêneros muito mais numerosos que os das formações secundarias. Se desejássemos somente explicar o fato mais favorável, poderíamos apoiar-nos na opinião do Doutor Carpenter que diz: "os fatos gerais da paleontologia parecem consagrar a crença, de poder-se descobrir o mesmo plano, no que se chama a vida geral do globo, e na vida individual de cada uma das formas organizadas que atualmente o habitam." Ou poderíamos citar, como decisivo, o parecer do professor Owen; na sua opinião, em cada grupo de seres, os tipos primitivos se afastavam menos do tipo geral do grupo do que sucede com os mais recentes; diferiam menos da forma ideal, por cujo modelo era talhado o grupo no seu conjunto: isto é, formavam um grupo de seres menos heterogêneos; ora, M. Owen sustenta a doutrina que considera estar a vida em progresso. Mas, por deferência com uma autoridade que nos inspira o mais profundo respeito e, segundo a qual, as explicações até aqui reunidas não são decisivas, nem em um sentido, nem em outro, nós nos contentaremos em deixar o debate pendente. De mais, seja que, na história da vida do globo, haja ou não passagem do homogêneo para o heterogêneo, em todo o caso, essa passagem é assaz visível no progresso do ser mais recente e mais heterogêneo, o homem. É incontestável que, desde que a terra se povoou, o organismo humano cresceu em heterogeneidade, entre as partes civilizadas da espécie; e que a espécie no seu conjunto cresceu em heterogeneidade, graças ao aumento das raças e a diferenciação dessas raças entre si. Em apoio da primeira destas teses, podemos citar o fato seguinte: que, no que é concernente ao desenvolvimento proporcional dos membros, o homem civilizado se afasta do tipo geral dos mamíferos placentários mais do que sucede às raças humanas inferiores. O papua, com corpo e braços frequentemente bem desenvolvidos, têm pernas de uma pequenez extrema: por isto ele nos recorda os quadrúmanos, nos quais não há grande diferença de comprimento entre os membros anteriores e os posteriores. Mas no europeu a superioridade das pernas, quanto ao cumprimento e a grossura, tornou-se muito notável, os membros anteriores e posteriores são mais heterogêneos entre si. Um outro exemplo da mesma verdade, é a relação dos ossos do crânio com os ossos do rosto, a qual vai crescendo. Nos vertebrados, em geral, o efeito deste progresso é a heterogeneidade crescente da coluna vertebral e mais particularmente das vertebras que formam o crânio: o que distingue as formas mais elevadas é a grandeza crescente dos ossos que protegem o cérebro, e a diminuição relativa dos que formam o queixo, etc. Presentemente este característico, que é mais acentuado no homem do que em qualquer outro ser, é mais notável no europeu do que no selvagem. Por outra, a julgar pelas faculdades mais desenvolvidas e mais variadas das quais ele é a" prova, pode-se concluir que o homem civilizado tem o sistema nervoso mais complexo, mais heterogêneo que o selvagem; e na realidade este facto se revela, em parte, pelo aumento da relação que há entre o cérebro e os gânglios subjacentes. Se temos necessidade de mais explicações, encontramo-las no quarto de qualquer criança recém-nascida. A criança europeia assemelha-se em muitos pontos com as raças humanas inferiores; observa-se o achatamento das azas do nariz, a depressão da sua raiz, a forma das narinas que são achatadas e abertas para a frente; a dos lábios, a ausência do seio frontal, o afastamento dos olhos, a pequenez das pernas. Presentemente, o processo do desenvolvimento, graças ao qual suas feições se transformam nas do europeu adulto, é a continuação da passagem do homogêneo para o heterogêneo, que precedentemente o embrião completou durante sua evolução: qualquer fisiologista não duvidará admitir isto; segue-se pois que o processo paralelo do desenvolvimento, pelo qual os traços das raças barbaras têm, por via de transformação, produzido os traços correspondentes das raças civilizadas, foi igualmente a continuação da passagem do homogêneo para o heterogêneo. A verdade da segunda tese - a saber que a humanidade, no seu conjunto, tornou-se cada vez mais heterogênea - é tão visível que não tem necessidade de ser esclarecida. O primeiro tratado de etnologia que vier às nossas mãos, com as suas divisões e subdivisões de raças, basta para fazer fé. Quando devêssemos admitir a hipótese de uma humanidade saída de muitas camadas independentes, seria ainda verdade que de cada uma dessas camadas nasceram diversas tribos agora bem diferentes e que são, entretanto, irmãs (a filologia o prova); e que assim a raça em seu conjunto é muito menos homogênea do que foi outrora. Acrescentai a isto que nós temos, nos anglo-americanos, um exemplo da nova variedade que surgiu no espaço das últimas gerações; e que, se podemos confiar nas descrições dos observadores, teremos provavelmente bem cedo um novo e semelhante exemplo na Austrália. Passemos da humanidade, considerada nos indivíduos, a humanidade, formada em corpos de sociedade: aqui encontraremos exemplos ainda mais variados da lei geral. A passagem do homogêneo para o heterogêneo é igualmente visível, quer se trate do progresso da civilização em seu conjunto, ou do progresso de cada tribo, de cada nação; e prossegue hoje mesmo com rapidez crescente. Assim como vemos nas tribos barbaras atuais, a sociedade na sua forma primitiva, e mais grosseira, é um agregado homogêneo de indivíduos possuindo as mesmas faculdades e as mesmas funções: a única diferença notável nas funções é a que resulta da diferença dos sexos. Todo o homem é guerreiro, caçador, pescador, fabricante de utensílios, construtor; toda a mulher exerce certos trabalhos, os mesmos para todas; toda a família se sustenta a si própria e, salvo quando se trata de atacar ou defender-se, pôde muito bem viver sem o auxílio das outras. Bem cedo, entretanto, na evolução da sociedade, viu-se apontar uma diferença entre o governante e o governado: a aparição de uma espécie de poder parece contemporânea do primeiro progresso, pelo qual do estado de famílias separadas e errantes a humanidade elevou-se ao de uma tribo nômada. A autoridade do mais forte se fez sentir na reunião de selvagens como no rebanho de animais, ou no bando de estudantes. A princípio, entretanto, era indefinida, incerta, partilhada por outros cujo poder era pouco menor; e não se acentuava por nenhuma diferença nas ocupações, nem no trato da vida: o primeiro soberano matava por suas proporias mãos a caça, fabricava suas armas, edificava a sua choupana e, quanto ás condições econômicas da vida, não diferiam em cousa alguma das do resto da tribo. Gradualmente, à medida que a tribo fazia progressos, o contraste entre o governante e os governados acentuava-se cada vez mais. O poder supremo torna-se hereditário em uma família; o chefe dessa família, deixando de prover por si próprio suas necessidades, é servido pelos outros: e o governo torna-se a sua única função. Ao mesmo tempo nasceu um governo de espede correlativa: a religião. Como o provam as recordações e as tradições antigas, os chefes primitivos eram considerados personagens divinos. As máximas e as ordens que eles ditavam em vida eram, depois da sua morte, tidas por sagradas e impostas por seus sucessores, descendentes dos deuses; estes por sua vez eram colocados no panteão nacional e, aí, recebiam o mesmo culto, as mesmas orações que seus predecessores; o mais antigo de todos se chama deus supremo, os outros são deuses subordinados. Durante longo tempo, essas formas de governo, nascidas de uma mesma origem, governos civil e religioso, conservam-se estreitamente associados. Durante muitas gerações, o rei continua a ser soberano pontífice, e todos os poderes são de raça regia. Durante longos séculos, a lei religiosa continua a conter regulamentos mais ou menos civis, e a lei civil a ter sanção mais ou menos religiosa. Mesmo entre as nações mais adiantadas, estes dois poderes diretores não são inteiramente diferenciados um do outro em todos os pontos. Um outro poder diretor, que vemos ainda sair da mesma raiz que os precedentes, e separar-se gradualmente, é o das maneiras, ou do cerimonial. Os termos de respeito foram na origem os nomes de Deus-rei; depois de Deus e de rei; ainda posteriormente, de pessoas de alta hierarquia; e, finalmente, empregam-se, alguns ao menos, de homem para homens. Os cumprimentos pelos quais se dirigiam uns aos outros foram primeiramente expressões de submissão do prisioneiro para o seu vencedor, ou do súdito para o seu soberano, homem ou deus, - expressões que depois foram empregadas para captar as autoridades de menor hierarquia, e pouco a pouco desceram às relações ordinárias. Todas as espécies de saudação foram, outrora, homenagens prestadas ao monarca e sinais de adoração que lhe dirigiam depois da sua morte. Depois, outros personagens da raça divina foram saudados semelhantemente e, pouco a pouco, muitas dessas saudações chegaram a tal ponto que eram outorgadas a primeira pessoa que encontravam. Assim, apenas da massa social primitivamente homogênea começa a desprender-se por via de diferenciação dois grupos, os governados e os governantes, que entre estes últimos se fez logo uma diferenciação de religiosos e seculares, a Igreja e o Estado: no mesmo momento começa também a distinguir-se dos dois outros, o governo de gênero menos definido, que regula nossas relações quotidianas, governo que não existe sem ter órgãos visíveis: prova os colégios de arautos, (Colégio de arautos é um corpo de funcionários encarregados de registrar tudo o que é concernente a genealogia e ás armarias das famílias nobres,) os livros de brasões, os mestres de cerimonias. Estes governos, cada um por sua vez, estão sujeitos a diferenciações sucessivas. No correr dos séculos, forma-se, como entre nós por exemplo, um organismo político muito complexo, com um monarca, ministros, lordes e comunas, depois os departamentos administrativos submetidos a eles, os tribunais de justiça, o fisco, etc., os quais têm para os representar nas províncias, as administrações das municipalidades, dos condados, das paroquias e das uniões (Associações de paroquias para a conservação de um asilo de mendicidade); e estas administrações são, elas também, mais ou menos complicadas. Ao lado, cria-se um organismo religioso muito complexo, com toda a sua hierarquia de ministros, depois os arcebispos até aos sacristães, com colégios, assembleias do clero, tribunais eclesiásticos, etc.; a. tudo isto, é preciso acrescentar as seitas independentes, que vão multiplicando-se, cada uma provida das suas autoridades gerais e locais. Ao mesmo tempo, se desenvolve um corpo muito complexo de costumes, maneiras e modas efêmeras, que a sociedade em seu conjunto sanciona. e cuja função é presidir às transações secundarias de homem para homem, que não são reguladas pela lei civil nem religiosa. Notemos mais que esta heterogeneidade, crescente nas instituições governamentais de cada nação, foi acompanhada de uma heterogeneidade crescente entre as instituições governamentais das diferentes nações; porque elas se afastam todas mais ou menos umas das outras por seus sistemas e legislações políticas, por seus dogmas e instituições religiosas, por seus costumes e cerimonial. Simultaneamente se produziu uma segunda diferenciação de gênero mais familiar, a saber que dividiu a massa da comunidade em classes e ordens distintas de trabalhadores. Enquanto a parte governante se desenvolvia segundo o processo complicado acima exposto, a parte governada se desenvolvia de maneira não menos complicada, e assim atingia essa divisão minuciosa do trabalho, caraterística das nações adiantadas. E inútil seguir esse progresso desde seus primeiros passos, através das divisões orientais das castas e das corporações da Europa, até ao organismo tão complexo pelo qual entre nós se operam a produção e a distribuição. Os economistas têm desde longo tempo descrito esta evolução que começa com a tribo, na qual cada membro executa os mesmos trabalhos por sua conta própria, e termina na comunidade civilizada, na qual cada membro executa trabalhos especiais por conta dos outros; eles apontaram além disto as mudanças através das quais, ao produtor solitário de um objeto útil dado, se substitui uma combinação de produtores, agregados. a um mestre e tendo cada um seu papel próprio na criação do objeto. Mas há ainda outras fases, e mais elevadas, dessa passagem do homogêneo ao heterogêneo, na organização industrial da sociedade. Quando, desde longo tempo, a divisão do trabalho entre diversas classes de operários fez progresso considerável, o trabalho estava ainda pouco ou nada dividido entre as porções da comunidade separadas por grandes distancias; a nação conserva-se relativamente homogênea, no sentido de cada distrito proporcionar, a todos, os mesmos trabalhos uns dos outros. Mas, quando as estradas e os outros meios de comunicação tornaram-se bons e numerosos, os diversos distritos chegaram a dedicar-se a diversas funções e, por este modo, a depender uns dos outros. O fabrico do morim se concentra em tal condado, o dos panos em tal outro: aqui fabricam-se as sedas, ali as rendas; em tal lugar as meias, em outro o calçado; a louça, a quinquilharia, a cutelaria se estabelecem em cidades próprias; e finalmente cada localidade chega a distinguir-se mais ou menos das outras por tal trabalho que torna-se negócio importante. Ainda mais, esta divisão das frações não se faz somente entre as diversas nações. A circulação dos objetos uteis, cuja livre permuta nos garante o desenvolvimento rápido, terá por fim de contas como efeito especializar mais ou menos firmemente a indústria de cada povo. Deste modo, o progresso, que começou com a tribo barbara, quase homogêneo se não absolutamente, quanto às funções de seus membros, tendeu e tende ainda a produzir uma união econômica da raça humana inteira; esta raça tornar-se-á mais e mais heterogênea, em relação ás funções distintas assumidas, quer pelas diversas nações, quer pelas diversas localidades de uma mesma nação, quer pelas diversas espécies de produtores e comerciantes de cada cidade, quer finalmente pelos operários associados para o fabrico de um objeto dado. Não é somente na evolução do organismo social que encontramos exemplos muito claros da lei, é também na evolução de todos os produtos abstratos ou concretos, reais ou ideais, do pensamento e da atividade humana. Para fixar as ideias, consideremos em primeiro lugar a linguagem. A forma mais humilde da linguagem é a exclamação, pela qual uma ideia completa é transmitida, em estado vago, por meio de um único som; assim como nos animais inferiores. A linguagem humana consistiria alguma vez unicamente em exclamações, de modo que fosse estritamente homogênea em relação às partes do discurso? nós não temos prova, mas podemos remontar-nos a um período em que a linguagem tem por únicos elementos nomes e verbos: é fato provado. Depois destas partes primitivas do discurso, nasceram outras múltiplas; - os verbos se diferenciaram em ativos e passivos, os nomes em abstratos e concretos; - as distinções de modo, tempo, pessoa, número e caso, aparecem; - formam-se verbos auxiliares, adjetivos, advérbios, pronomes, preposições, artigos; - vê-se a distinção dessas diversas ordens, gêneros, espécies e variedades das partes do discurso, pelas quais as raças civilizadas exprimem as gradações do pensamento; - e em todos estes fatos se nota a passagem do homogêneo para o heterogêneo. E, pôde-se observar incidentemente, é sobretudo porque esta divisão das funções se estendeu e completou mais nela do que nas outras que a língua inglesa é superior a todas as línguas. Podemos considerar de outro ponto de vista o desenvolvimento da linguagem: ver como se diferenciam as palavras vizinhas pelos sentidos. A filologia desde longo tempo descobriu esta verdade que, em todas as línguas, as palavras podem ser grupadas em famílias tendo origem comum. Um nome primitivo, que se aplicava indiferentemente a cada uma das coisas ou ações de uma classe extensa e mal definida, sofreu agora modificações que exprimem as divisões principais dessa classe. Estes diversos nomes saídos da raiz primitiva dão eles próprios nascimento a outros nomes, que por sua vez se modificam. E graças ao sistema dos modos que nasce ao mesmo tempo, graças ás derivações e ás composições pelas quais se exprime as diferenças mais fracas ainda, forma-se finalmente, por via de desenvolvimento, uma tribo de palavras cujos sons e sentidos são tão heterogêneos, que custa aos não iniciados acreditarem na sua comunidade de origem. Ao mesmo tempo outras raízes saíam de outras tribos semelhantes; finalmente resulta disto uma língua rica de sessenta mil palavras ou mais, todas diferentes e significando outros tantos objetos, qualidades, atos diferentes. A linguagem executa de uma outra maneira ainda a passagem do homogêneo para o heterogêneo; isto, pela multiplicidade das línguas. Seja que, segundo a opinião de Max Müller e Bunsen, todas as línguas tenham saído de um só tronco; seja que, conformemente ao dizer de outros filólogos, elas tenham saído de dois ou mais troncos, - em todo o caso é evidente que numerosas línguas da mesma família, como as da família indo-europeia, visto terem a mesma origem, se hajam distinguido umas das outras divergindo continuamente. A dispersão dos homens pela superfície da terra, que produziu a diferenciação das raças, produziu ao mesmo tempo a das suas línguas: é do que aliás temos a prova, no seio de cada nação, nas particularidades dialéticas que se observam de um para outro distrito. Assim, o progresso da linguagem conforma-se a lei geral, quer se considere a evolução das línguas, a das famílias de palavras ou das partes do discurso. Passemos da linguagem falada a linguagem escrita: encontramos aí muitas classes de fatos que todos presumem as mesmas verdades. A linguagem escrita está em conexão com a pintura e a escultura; as três foram primitivamente dependências da arquitetura e prendem-se por vinculo imediato a primeira forma de governo: a teocracia. Notemos, somente de passagem, o fato de diversas raças selvagens, tais como os austríacos e as tribos da América do Sul, terem o habito de pintar personagens e sucessos nas paredes das cavernas (estas são sem dúvida para eles lugares sagrados) e cheguemos aos egípcios: entre eles, como entre os assírios, vemos as pinturas murais servir para decorar o templo do deus e o palácio do rei (os quais, na verdade, a princípio não eram mais que um) e, como tais, faziam parte dos negócios do Estado com o mesmo título que as cerimonias públicas e as festas religiosas. Eram ainda negocies do Estado por isso que representavam o culto prestado ao deus, os triunfos do deus rei, a submissão de seus súditos e o castigo dos rebeldes. Eram-no, além disso, quando produtos de uma arte que o povo venerava como santo mistério. Da representação das cousas pela pintura, que se tornou de uso corrente, chegou-se por leve modificação e muito naturalmente a pintura escrita, tal como se encontrava ainda entre os mexicanos na época da descoberta. Graças a abreviações análogas àquelas que se produzem ainda na nossa escrita e no nosso falar, os mais familiares dentre os desenhos foram sucessivamente simplificados, e por fim formou-se um sistema de símbolos, dos quais grande número tem parecença longínqua com o objeto do qual ocupam o lugar. Os hieróglifos dos egípcios nasceram desta maneira; é indução, confirmada pelo fato, que entre os mexicanos a pintura escrita deu nascimento a caráteres ideográficos da mesma família; e entre eles, como entre os egípcios, estes caráteres diferenciaram-se parcialmente em kuriologicos ou imitativos e trópicos ou simbólicos: uns e outros eram, entretanto, empregados ao mesmo tempo em uma mesma inscrição. N o Egito, a linguagem escrita sofreu ainda uma diferenciação da qual resultam o estilo hierático e epistolográfico ou demótico, um e outro derivados do hieróglifo primitivo. Ao mesmo tempo vemos empregar, para exprimir os nomes próprios que não podiam ser representados de outra maneira, símbolos fonéticos e bem que os egípcios, segundo afirmam, nunca houvessem criado efetivamente a escrita alfabética, contudo não se pôde deixar de ver nos símbolos fonéticos, empregados oportunamente para suprir os sinais ideográficos, os gérmens de onde saiu a escrita alfabética. Uma vez separada dos hieróglifos, a própria escrita alfabética sofreu numerosas diferenciações, formaram-se alfabetos múltiplos; todavia, a maior parte tem entre si relações mais ou menos intimas que se podem ainda descobrir. E todas as nações civilizadas, atualmente, criaram para cada série de sons muitas series de sinais escritos, entre os quais escolhem segundo os casos. Finalmente, e é uma diferenciação mais importante ainda, criou-se a imprensa; e esta, uniforme na sua origem, tomou depois muitas formas. Entretanto que a linguagem escrita atravessava os primeiros graus de seu desenvolvimento, a decoração mural, da qual ela se originou, se diferenciava em pintura e escultura. Os deuses, os reis, os homens e os animais representados, foram a princípio desenhados com traços fundos e eram coloridos na maior parte dos casos os traços eram tão profundos e o objeto que eles cingiam tão bem destacado do resto, tão saliente nas suas partes essenciais, que formava um trabalho intermediário entre O entalhe e o baixo-relevo. Mas, às vezes um novo progresso se realizava - na mesma direção: os relevos entre as figuras foram arrebatados ao cinzel e as próprias figuras adornadas de cores convenientes: adquiriu-se por este modo o baixo-relevo pintado. Os pedaços de arquitetura assíria restaurados, em Sydenham, nos mostram esta arte chegada ao maior grau de perfeição: os personagens e os objetos representados, com quanto o colorido seja ainda bárbaro, são executados com mais verdade e mais detalhes; nos leões e touros alados, que colocavam nos ângulos dos vestíbulos, podemos descobrir considerável progresso em relação á giba completa; todavia, a figura é ainda pintada, e faz parte do edifício, Mas, enquanto na Assíria, não cuidavam da estatuaria propriamente dita, se é que cuidaram em algum tempo, podemos, na arte egípcia, seguir a separação gradual entre a figura esculpida e a mural. E o que se pôde ver dando um passeio ao British museum; por outro lado ali se encontrará ocasião de estudar, nas esta tuas destacadas, os traços visíveis ainda do baixo-relevo do qual elas se originaram; ali ver-se-á que quase todas têm os membros unidos ao corpo, traço caraterístico do baixo-relevo, entretanto que a parte posterior, da cabeça aos pés, assemelha-se a um pedaço de pedra aí colocado para substituir a parede de outrora. Na Grécia, o progresso teve essencialmente o mesmo adiantamento. Do mesmo modo que no Egito e na Assíria, as duas partes gêmeas desde logo se uniram uma a outra e a sua mãe, a arquitetura, e tornaram-se servidoras da religião e do governo. Nos frisos dos templos gregos, vemos baixos-relevos coloridos que representam sacrifícios, batalhas, procissões, jogos, assuntos uteis, todos relativos de alguma maneira a religião. Nos frontais, vemos esculturas pintadas que fazem mais ou menos corpo com o guarda-vento e cujos assuntos são os triunfos dos deuses ou dos heróis. Mas, quando chegamos às estátuas definitivamente separadas dos edifícios a que pertencem, as encontramos ainda revestidas de cores; sendo somente nos períodos relativamente recentes da civilização grega que a diferenciação entre a escultura e a pintura parece tornar-se completa. A arte cristã nos oferece uma repetição paralela desta gênesis. Todas as antigas pinturas e esculturas da Europa eram sobre assuntos religiosos, representavam Cristas, colocações na cruz, virgens, famílias santas, apóstolos, santos; faziam parte integrante da arquitetura das igrejas e estavam incluídas nos meios de excitar o zelo religioso, como ainda hoje nos países católicos romanos. Por outra, .as esculturas antigas representando o Cristo na cruz, as virgens, os santos, eram coloridas; recordemo-nos das madonas e crucifixos pintados, que abundam ainda no continente, nas igrejas e nas estradas e nos convenceremos do fato significativo, da pintura e a escultura terem relações tanto mais intimas entre si quanto mais intimas as têm com sua mãe. Mesmo depois da escultura cristã ter-se bem claramente distinguido da pintura, ela era ainda, pelos assuntos que tratava, um instrumento de governo e de religião; era empregada nas sepulturas, nas igrejas e nas estatuas dos reis: entretanto que, pelo mesmo tempo, a pintura, quando não era puramente eclesiástica, servia para ornamentar os palácios e, excetuada a representação das pessoas reais, era quase absolutamente dedicada ás legendas sagradas. E somente nos últimos séculos que a pintura foi dividida em pintura de história, paisagens, marinhas, arquitetura, estilo, animais, natureza morta, etc., e que a escultura se tornou heterogênea pela variedade dos objetos que trata e copia da realidade ou do ideal. Assim, por mais estranho que pareça, não é menos verdade e nós o vemos: todas as formas da linguagem escrita, da pintura e da escultura, têm por comum raiz a decoração político-religiosa dos antigos templos e palácios. Por muito pouca semelhança que haja hoje entre eles, o busto colocado no bofete, a paisagem pendurada na parede e o número do Times que está sobre a mesa são parentes remotos; e isto não pela sua natureza somente, mas pela sua extração. A figura de bronze do batente da porta, que o carteiro acaba de suspender, tem relação não só com as gravuras do Novellista illustrado de Londres que o carteiro vos entrega, mas também com os caráteres da cartinha amorosa que acompanha o jornal. Entre a janella, o livro de orações sobre o qual a luz cai e o monumento vizinho, há ares de família. As efigies das nossas moedas, as tabuletas das nossas lojas, as estampas que enchem os nossos livros, os escudos pintados nas- almofadas das portas das carruagens, os anúncios afixados nos ônibus, assim como as bonecas, os livros azuis (Os documentos oficiais são assim chamados por causa da cor da sua capa), os papeis pintados, descendem em linha reta das grosseiras esculturas - pinturas, em que os egípcios representavam os triunfos de seus deuses-reis e o culto a eles dedicado. Talvez não haja exemplo tão capaz de fazer melhor compreender a multiplicidade e a heterogeneidade dos produtos que, no correr dos tempos, podem nascer de um mesmo tronco por diferenciações sucessivas. Antes de passar a outras classes de factos, é preciso observar que a passagem do homogêneo para o heterogêneo não se acentua somente pela separação da pintura e a escultura da arquitetura, por sua separação mutua, pela variedade crescente dos objetos que elas executam, mas mostra-se ainda na composição de cada obra. Um quadro ou uma estátua moderna é de natureza muito mais heterogênea do que o antigo. Uma escultura a fresco egípcia coloca todas as figuras no mesmo plano, isto é, a igual distancia da vista; por isso é menos heterogênea que a pintura que as coloca a distancias diversas da vista. Ela reproduz os objetos como se eles estivessem todos igualmente expostos a luz; por esta razão é inferior em heterogeneidade á que confere, aos diversos objetos e ás diversas partes dos objetos, grãos diferentes de claridade. Ela apenas se serve das cores primitivas, e dá-lhes toda a intensidade; por isso é inferior em heterogeneidade a pintura que, usando com parcimônia das cores primitivas, emprega uma variedade infinita de tintas intermediarias, das quais cada uma é de composição heterogênea e difere do resto não somente em qualidade, mas em intensidade. Por outra, nós achamos, nas obras muito antigas, grande uniformidade de concepção; elas reproduzem perpetuamente o mesmo arranjo das figuras, as mesmas ações, as mesmas atitudes, os mesmos rostos, os mesmos costumes. No Egito a maneira de representar os personagens estava tão bem determinada. que era sacrilégio introduzir alguma inovação; na verdade, foi talvez somente devido a esta determinação absoluta dos tipos que se tornou possível a criação de um sistema de hieróglifos. Sempre os mesmos caracteres nos baixos-relevos assírios. As divindades, os reis, seu séquito, as figuras aladas e os animais, têm sempre posições idênticas, conservam a mesma ostentação, executam invariavelmente as mesmas ações e têm no rosto a mesma expressão ou a mesma impassibilidade. Se um bosque de palmeiras está em cena, todas as arvores são da mesma altura, têm o mesmo número de folhas e estão equidistantes. Se a água se irrita, cada onda é a repetição das outras; os peixes, quase sempre de uma só espécie, estão repartidos igualmente sob a superfície. As barbas dos reis, dos deuses e das figuras aladas são em tudo semelhantes; do mesmo modo as jubas dos leões e as crinas dos cavalos. Os cabelos são sempre representados por uma única forma de cachos. A barba do rei é construída muito geometricamente: são renques de cachos uniformes, alternando com enfiadas de tranças, colocadas em direção transversal e distribuídas com perfeita regularidade; o tufo terminal da cauda do touro é representado exatamente da mesma maneira. Não indagaremos de fatos análogos na arte cristã primitiva, bem que sejam visíveis, sem serem, contudo, tão surpreendentes. Mas, onde se manifesta distintamente o progresso da heterogeneidade, é na composição de nossos quadros atuais que são de uma variedade infinita: na diversidade das atitudes, das figuras, das expressões, nas diferenças de volume, de forma, de posição, da contextura, que oferecem os objetos secundários; no contraste mais ou menos notável que apresentam mesmo os menores detalhes. Comparemos ainda uma estátua egípcia, assentada, o corpo colocado perpendicularmente sobre uma pedra, as mãos sobre os joelhos, os dedos estendidos e juntos, os olhos fixos para a frente, os dois lados do corpo oferecendo simetria perfeita em todos os pontos, com uma estátua da época grega recente, ou da escola moderna, que não apresenta nenhuma simetria na posição da cabeça, do corpo, dos membros, no arranjo dos cabelos, do vestuário, dos acessórios, das relações com os objetos vizinhos; então a passagem do homogêneo para o heterogêneo será manifesta. Do mesmo modo, a poesia, a música e a dança estão unidas desde a origem e se diferenciam gradualmente. A linguagem ritmada, o som ritmado e o movimento ritmado, foram, na origem, partes integrantes de um mesmo todo, sendo somente na sequência dos tempos que cada um se constituiu separadamente. Entre muitas tribos barbaras nós os encontramos ainda unidos. As danças dos selvagens são acompanhadas de uma espécie de canto monótono. Sem contar o bater das palmas e o ruído dos instrumentos grosseiros, há nestes movimentos compassados, palavras compassadas, notas compassadas; e o conjunto da cerimônia, que se refere de ordinário a guerra ou a um sacrifício, tem o caráter de ato governamental. Nas mais antigas recordações das raças históricas, encontramos igualmente estas três formas da ação rítmica associadas às festas religiosas. Nas escrituras hebraicas lemos que os cantos de triunfo, composto por Moisés pela derrota dos egípcios, foi cantado com acompanhamento de dança e de pandeiros. Os israelitas dançaram e cantaram "na inauguração do vello de ouro". E como, na opinião de todos, esta representação da divindade foi extraída dos mistérios de Apis, é provável que esta dança fosse uma cópia da que usavam os egípcios nestas ocasiões. Havia em Siloh, para a festa santa, uma dança anual; David dançou diante da arca. Do mesmo modo que na Grécia, encontra-se por toda a parte a mesma conexão; nestas ocasiões, e em outras também provávelmente, o programa consistia em uma representação, por meio do canto e da mimica entremeados, da vida e das aventuras do deus. As danças dos espartanos eram acompanhadas de hinos e de cantos e em geral os gregos "não tinham festas nem assembleias religiosas nas quais não se entremeassem os cantos e as danças", porque eram duas maneiras de prestar homenagem aos deuses, diante dos seus altares. Entre os romanos, havia também danças sagradas: as danças salias e lupercaes nos são designadas como tais, E mesmo nos países cristãos como em Limoges, em época relativamente recente, viu-se o povo dançar um coro em honra de um santo. O começo da separação entre estas artes outrora unidas, e entre elas e a religião, foi cedo visível na Grécia. Viram-se nascer, sem dúvida pelo desmembramento das danças semirreligiosas, semiguerreiras, como a Coribantica, as danças propriamente guerreiras, das quais houve muitas espécies; depois originaram-se destas as danças seculares. Ao mesmo tempo, a música e a poesia, conquanto conservando-se unidas, vieram a constituir-se separadamente, independentemente da dança. Os poemas gregos primitivos, cujo assunto era religioso, não se recitavam, eram cantados; e ainda que a princípio o canto do poeta fosse acompanhado pela dança do coro, acabou por ser executado somente por ele. Mais tarde ainda, quando a poesia se diferenciou em épica e lírica, quando tornou-se uso cantar os poemas líricos e recitar a epopeia, então a poesia propriamente dita nasceu. Como na mesma época os instrumentos de música se multiplicaram, é de crer que a música chegasse a prescindir do auxílio das palavras. E uma e outra revestiram-se de outras formas além da forma religiosa. Poderiam tirar-se da história das épocas e dos povos mais recentes, fatos tendentes à mesma conclusão: exemplo a maneira de proceder dos nossos antigos menestréis, que cantavam na harpa recitativos, em versos de sua composição, com a música que faziam, reunindo por esta maneira as funções, hoje separadas, de poeta, de compositor, de cantor e de instrumentista. Porém, sem mais explicações, é assaz evidente que a dança, a poesia e a música têm origem comum e se diferenciaram gradualmente. Não é somente na separação destas artes entre si em relação à religião que há passagem do homogêneo para o heterogêneo, é também nas diferenciações multiplicadas que cada uma delas sofreu depois. Para não nos estendermos acerca das inumeráveis espécies de dança que estiveram em uso, no correr dos séculos, e para não ocupar muito espaço com o detalhe dos progressos da poesia, no que é concernente ao desenvolvimento das diversas formas de metro, de rima e de organização geral, reservemos nossa atenção para a música, considerada como tipo do grupo. Assim como afirma o Dr. Burney, assim como se infere dos costumes atuais das diversas raças barbaras, os primeiros instrumentos de música foram sem dúvida os de bater; baquetas, cabaças, etc., e somente serviam para marcar os compassos aos dançarinos. Nesta repetição constante do mesmo som, vemos a música sob a forma mais homogênea. Os egípcios tinham uma lira de três cordas. A lira primitiva dos gregos tinha quatro: era o seu tetracórdio. No fim de alguns séculos, empregaram liras de sete e oito cordas. E depois de mil anos decorridos, chegaram ao seu "grande sistema”; de duas oitavas. Através de todas estas mudanças produziu-se, naturalmente, uma heterogeneidade maior na melodia. Ao mesmo tempo entraram em uso os diferentes modos, Dório, Jônio, Frígio, Eólico e Lídio, cor respondendo ás nossas claves; destes modos houve finalmente quinze. Até aí, todavia, somente havia pouca heterogeneidade na sua música, quanto ao compasso. A música instrumental não era durante esse período, mais do que o acompanhamento da música vocal, e esta estava absolutamente subordinada às palavras visto o cantor ser poeta, cantar as suas próprias obras, acomodar a duração das suas notas com os pés dos seus versos. Devia por isso resultar do compasso uma insuportável monotonia, que, segundo o Dr. Burney, "nenhum recurso de melodia podia disfarçar". Na falta do ritmo complexo que nós obtemos por meio dos nossos compassos iguais e das nossas notas desiguais, somente havia o ritmo produzido pela quantidade das silabas, que com toda a evidência era relativamente monótono. Observemos além disso, que o canto que dele resultava, sendo semelhante ao recitativo, era muito menos distintamente diferenciado do falar ordinário, do que o nosso canto moderno. Não obstante, graças à extensão das gamas em uso, a variedade dos modos, às variações de compasso que produziam algumas vezes as mudanças de metro e a multiplicidade dos instrumentos, a música nos últimos tempos da civilização grega atingiu um alto grau de heterogeneidade não sem dúvida em comparação com a nossa música, mas em comparação com a que a precedeu. Até aí, entretanto só existia a melodia: a harmonia era desconhecida. É preciso remontar até a época em que a música da igreja cristã chega a certo desenvolvimento, para ver aparecer a música de muitas partes; e ainda assim chega a existência favorecida por uma diferenciação muito discreta. Custa conceber a priori como a passagem da melodia para a harmonia pôde fazer-se sem abalo repentino: não deixa, entretanto, de ser um fato, que assim aconteceu. O que abriu o caminho nesta direção, foi o emprego dos dois coros cantando alternativamente a mesma aria. Depois tornou-se uso (cuja ideia primitiva foi talvez sugerida por um erro) que o segundo coro começasse antes do primeiro ter acabado; o que produzia uma fuga. Com as arias muito simples desse tempo, não é improvável que devesse resultar uma fuga em parte harmoniosa: a fuga, mesmo de harmonia incompleta, bastava para satisfazer os ouvidos da época: conservamos exemplos disto. Uma vez dada a ideia, puseram-se a compor árias que produzissem a harmonia da fuga; do mesmo modo que houve produções para o único fato dos coros alternantes. E, da fuga para a música de duas, três, quatro partes ou mais, concertadas, a transição era fácil. Não detalhamos a complexidade crescente que resultou da introdução das notas de extensão variada, da multiplicidade das claves, do uso das diesis e bemóis, das variações de tempo e assim em seguida; basta considerar o contraste entre a música tal qual ela era e a música tal qual é, para ver o imenso passo dado em relação a heterogeneidade. E o que nos surpreende ainda se, considerando a música no seu conjunto, enumeramos seus diversos gêneros e espécies, sua divisão em música vocal, instrumental e mista; as subdivisões em músicas para vozes diferentes e para diferentes instrumentos; se observamos: as numerosas formas da música sacra, desde o simples hino, o canto-chão, o canon, o motete, a antífona, etc., até a oratória; as formas mais numerosas ainda da música secular, desde a balada até a serenata e desde o solo instrumental até a sinfonia. Colocar-se-á ainda a mesma verdade em evidencia se se comparar um pedaço qualquer da música primitiva com o primeiro que nos vier ás mãos da música moderna, ainda mesmo que seja um canto ordinário para piano; encontramos no último grande heterogeneidade relativa, não somente quanto ás variações na elevação e duração das notas, ao número de notas diferentes soando ao mesmo tempo e de concerto com a voz, e ás variações da força no som do instrumento e no da voz, mas também quanto ás mudanças de claves, ás mudanças de tempo, ás mudanças do timbre da voz e ás outras modificações da expressão. Por outro lado, entre o monótono canto dançado de outrora e a grande ópera de hoje, com suas complicações de orquestração e suas combinações vocais infinitas, o contraste quanto á heterogeneidade é tão considerável que apenas se pôde imaginar ver-se, em um, o antepassado do outro. Se houvesse necessidade, poderia se citar muitos outros exemplos. Remontemos a época antiga, em que as façanhas do deus-rei, cantadas e representadas pela mimica, além das danças, que se executavam em volta do altar, eram as mais historiadas nas escritas falantes das paredes dos templos e dos palácios e, deste modo, constituíam uma literatura grosseira. Daí podemos seguir o desenvolvimento da literatura através das fases em que uma mesma obra, como a escritura dos hebreus, oferece ao mesmo tempo a teologia, a cosmogonia, a história, a biografia, o código civil, a moral, a poesia; através de outras fases ainda em que se vê, como na Ilíada, a religião, a guerra e a história, a epopeia, o drama e a poesia lírica, identicamente entremeadas; até ao seu estado atual de desenvolvimento e de heterogeneidade, com suas divisões e subdivisões, assaz numerosas, que facilitam a classificação completa. Ou então poderíamos seguir a evolução da ciência: ela começa no período em que a ciência não estava diferenciada da arte e permanecia, como a arte, ao serviço da religião; continua durante o período em que as ciências eram pouco numerosas e tão rudimentares que os filósofos as cultivavam todas ao mesmo tempo; acaba no período em que os gêneros e as espécies são tão numerosos. que poucas pessoas conhecem toda a lista, e nenhuma pode compreender plenamente, nem mesmo um só gênero. Ou finalmente poderíamos empreender esse trabalho por meio ela arquitetura, do drama, da toilette. Mas sem dúvida o leitor está aborrecido com estas explicações e, quanto a nós, temos amplamente cumprido nossa palavra. Cremos ter posto uma causa fora de questão: é que a lei do desenvolvimento orgânico, descoberta pelos fisiologistas alemães, é lei de todo o desenvolvimento. A passagem do simples para o complexo, através das diferenciações sucessivas, é visível quer nas primeiras mudanças do universo, tanto quanto o raciocínio nos permite remontar a esse tempo, como nas mudanças mais antigas que a indução pôde demonstrar; é visível na evolução geológica e na formação dos climas, como na de todo o organismo particular que se acha na superfície da terra; é visível na evolução da humanidade, quer se observem os indivíduos civilizados ou as raças que se aglomeram; é visível na evolução da sociedade, no que é concernente a sua organização tanto poli tica como religiosa e econômica; é visível finalmente na evolução de todos os produtos da atividade humana, concreta e abstrata, em número infinito, que formam o meio no qual vivemos quotidianamente, desde o mais remoto passado que a ciência tem podido perscrutar, até ás novidades de hoje. Eis em que o progresso consiste essencialmente: na transformação do homogêneo para o heterogêneo. E agora, desta uniformidade de processo, poderemos inferir qual necessidade fundamental seria a raiz? Poderemos procurar racionalmente algum princípio de aplicação universal, que determine a marcha universal das cousas? A universalidade da lei não faz presumir uma causa universal? Que possamos penetrar semelhante causa, considerada como noumeno (Termo de filosofia, exprime os fatos que se passam em nossa alma, e que nos são revelados pela consciência. É oposto a fenômeno), é o que se não deve supor. Atingir isto, seria resolver o último mistério que deve ultrapassar a inteligência humana. Mas podemos elevar a lei de todo o progresso, acima estabelecida, do estado de generalização empírica ao estado de generalização racional. Do mesmo modo que era possível ver nas leis de Kepler consequências necessárias da lei da gravitação, assim também é possível verna lei do progresso, sob suas manifestações variadas, uma consequência natural de algum princípio igualmente universal. Do mesmo modo que a gravitação podia ser considerada como causa de todos os grupos de fenômenos que Kepler reduziu a formulas; assim também pôde haver um atributo das cousas que se designe como causa de todos os grupos dos fenômenos formulados nas páginas precedentes. Somos induzidos talvez a reunir todas essas evoluções variadas e complexas, que do homogêneo reproduzem o heterogêneo, aplicando-as a certos fatos de experiencia imediata. que, em virtude de uma repetição até ao infinito, nos parecem necessárias. E provável que haja uma causa geral e que seja possível formulá-la: isto é preceito adquirido; antes de ir mais longe, será bom considerar quais devem ser os caráteres gerais de tal causa, e em qual direção é preciso procura-la. Podemos predizer com segurança que ela será extremamente geral, porque é comum aos fenômenos infinitamente variados: será abstrata em razão mesmo da universalidade de suas aplicações. Não devemos esperar que nos forneça explicação imediata de tal ou tal forma de progresso, porque se relaciona igualmente às formas do progresso muito pouco semelhantes entre si. Achando-se relacionada a ordens de fatos muito diversas, ela não tem relação particular com nenhuma ordem especial de fatos. É a que determina toda a espécie de progresso: astronômico, geológico, orgânico, etnológico, social, econômico, artístico, etc. Deve, pois, relacionar-se a algum atributo comum a estas diversas espécies e pode exprimir-se por meio desse atributo fundamental. Todos os gêneros de progresso se assemelham a este ponto único, que todos são modos da mudança; e desta maneira a resposta procurada será fornecida por algum dos caráteres da mudança em geral. Podemos conjeturar a priori que a explicação da universal transformação do homogêneo para o heterogêneo está em alguma lei de mudança. Isto posto, chegamos por fim a enunciar a lei, como se segue: - Toda a força ativa produz mais de uma mudança - toda a causa produz mais de um efeito. Para bem compreender esta lei, devem-se primeiramente considerar alguns exemplos. Quando um corpo se choca com outro, aquilo a que ternos costume de chamar efeito é a mudança de posição, ou o movimento, de um dos corpos ou dos dois. Mas raciocinemos um instante e veremos que isto é ter ideia superficial e muito incompleta da matéria. Além do resultado mecânico visível, produziu-se um som; ou, para falar exatamente, uma vibração em um dos corpos, ou nos dois, e no ar que os cerca: em certos casos, é isto o que chamamos efeito. Por outra, não somente o ar vibrou; mas agitaram-se diversas correntes, originadas pela translação dos corpos. De mais, nos corpos, em volta dos pontos de contato, as partículas desarranjaram-se e algumas vezes tão intensamente que se tornam condensadas visivelmente. Não é tudo: esta condensação é acompanhada da expulsão do calor. Em certos casos, uma faísca, isto é a luz, é o resultado da incandescência da parte chocada e, algumas vezes, a esta incandescência reúne-se uma combinação química. Assim, a força mecânica despendida na colisão produziu pelo menos cinco espécies de mudanças, muitas vezes mais. Considerai agora a luz de uma vela. É a princípio uma transformação química, que segue a elevação da temperatura. A combinação, tendo sido impelida pelo foco de calor exterior, contínua a formar-se do ácido carbônico, da água, etc., resultado mais complexo por si mesmo do que era o calor exterior, causa primaria do resto. A combinação é além disso acompanhada da produção de calor, da produção de luz, da geração e da ascensão de uma coluna de gás quente, do estabelecimento de correntes no ar ambiente. Por outra, esta decomposição de uma força em muitas forças não para nisto: cada uma das mudanças múltiplas produzidas torna-se o princípio de novas mudanças. O ácido carbônico posto em liberdade chegará a combinar-se com alguma base ou, ainda sob a influência da luz solar, abandonará o seu carbono a folha de alguma planta. A água modificará o estado higrométrico do ar a roda dela; ou, se a corrente de gás quente em que está suspensa, encontrar um corpo frio, ela se condensará, alterando a temperatura e talvez o estado químico da superfície em que se depositar. O calor produzido derrete o sebo subjacente e dilata tudo o que ele aquece. A luz, caindo sobre diversas substancias, provoca da sua parte reações que a modificam e assim nascem as cores variadas. O mesmo acontece com as ações secundarias, das quais poderiam seguir-se as ramificações incessantemente multiplicadas, até que se tornam tão diminutas que não podem ser discriminadas. E deste mesmo modo seja qual for a mudança. Não há caso algum em que uma força ativa não desenvolva forças de muitas espécies e em que, cada uma dessas forças, não desenvolva outros grupos. É regra universal: o efeito é mais completo do que a causa. Sem dúvida o leitor prevê já a marcha do nosso raciocínio. A multiplicidade de resultados, produzida a propósito de cada sucesso atual, teve seu efeito desde o começo; e ela se aplica aos mais vastos fenômenos do universo como aos mais insignificantes. Da lei, que toda a força ativa produz mais de uma mudança, segue-se o corolário, que através dos tempos produziu-se uma complicação crescente de cousas. Partindo deste último fato, que toda a causa produz mais de um efeito, podemos facilmente ver que, através da criação, devia ter-se produzido, e produz-se ainda, uma incessante transformação do homogêneo para o heterógeno. Mas sigamos esta verdade em seus detalhes (Uma verdade correlativa, e que se deve ter em consideração, é que o estado de homogeneidade é estado de equilíbrio instável. Mas, para esclarece-lo com exemplos correspondentes aos que são alegados para o outro, seria preciso embaraçar a marcha do raciocínio. Encontra-se esta verdade desenvolvida no Esboço sobre a Fisiologia transcendental). Remontemos à evolução do sistema solar, partindo de um meio nebular (sem prestar-lhe mais fé do que se prestaria a uma hipótese, mesmo quando fosse excessivamente provável) (Dizem que hipótese nebular foi destruída porque nebulosas que se acreditava existirem converteram-se em acervo de estrelas: esta ideia quase não merece atenção. A priori é muitíssimo improvável, se não impossível, que massas nebulares possam conservar-se ainda em estado difuso, quando outras se condensaram há milhões de anos). A atracção mutua dos átomos de uma massa difusa, cuja forma não é simétrica, não produz somente a condensação, mas também a rotação: a gravitação engendra simultaneamente as duas forças centrípeta e centrifuga. Entretanto que a condensação e a rotação vão crescendo progressivamente, a aproximação dos átomos produz necessariamente uma temperatura progressivamente crescente. Subindo a temperatura, a luz começa a nascer; e finalmente o resultado é uma esfera animada de movimento de revolução composta de uma matéria fluida que derrama calor e luz intensos: - o sol. Ha boas razões para acreditar-se que, em virtude da grande velocidade tangencial e da força centrífuga que esta velocidade desenvolve nas partes exteriores da massa nebular em via de condensação, desprendem-se periodicamente anéis animados de movimento giratório; e que esses anéis nebulares, vindo a quebrar-se, nascem deles massas que, no curso de sua condensação, passam pelos mesmos estados que a massa - mãe, e formam assim planetas e satélites; esta ilação apoia-se sobre boa razão: a existência atual dos anéis de Saturno. Se se chega mais tarde a estabelecer com provas satisfatórias que os planetas e os satélites foram formados por este modo, isso seria um notável exemplo da heterogeneidade dos efeitos produzidos por uma causa primaria homogênea; mas será já de utilidade para o nosso presente desígnio recordar o fato que, da atração mutua entre as partículas de uma nebulosa irregular, resulta a condensação, a rotação, do calor e -da luz. E corolário da hipótese nebular que a terra fosse a princípio incandescente; e, seja esta hipótese verdadeira ou não, a incandescência original da terra é presentemente fato estabelecido pela indução ou, quando não estabelecido, ao menos elevado a tal grau de probabilidade que constitui uma doutrina geralmente admitida na geologia. Consideremos primeiramente as propriedades astronômicas ao globo em fusão. De sua rotação resultam a forma achatada, a alternação do dia e da noite, e (graças à influência da lua) as marés aquosas e atmosféricas. Da inclinação do seu eixo resulta a preces são dos equinócios e as diferenças múltiplas das estações ao mesmo tempo simultâneas e sucessivas que obram sobre a sua superfície. De maneira que a multiplicidade dos efeitos é visível. Já especificámos muitas dentre as diferenciações devidas ao resfriamento gradual da terra: formação de uma crosta, solidificação dos elementos sublimados, condensação da água, etc., e, se os recordamos, é unicamente para observar que são efeitos simultâneos da causa única, a diminuição do calor. Todavia, verifiquemos agora as mudanças múltiplas que nascem depois da ação continua dessa mesma causa. O resfriamento da terra produz a sua contração. Logo a crosta solida, formada a princípio, é agora muito vasta para o núcleo que se retraiu; e como ela não pode suster-se por si mesma, inevitavelmente acompanha o núcleo. Mas o invólucro esferoidal não pode aluir, para conservar-se em contato com um esferoide menor, sem despedaçar-se; é, pois, necessário que encolha, como faz a casca da maçã, cuja polpa diminui pelo efeito da evaporação. Á medida que o frio aumenta e que o invólucro engrossa, as linhas da parte superior, que produzem as contrações, devem crescer e elevar-se até formar colinas e montanhas; o sistema de montanhas produzidas mais recentemente por este processo devem ser não somente as mais elevadas, como vemos que são efetivamente, mas também as mais extensas e é o que tem lugar igualmente. Assim, deixando de lado outras forças que podem modificar o resultado, vemos quão prodigiosa heterogeneidade produziu sobre esta superfície uma só causa, a perda do calor; esta heterogeneidade se produziu paralelamente, como nos mostra o telescópio, na superfície da lua, de onde estavam ausentes os agentes aquosos e atmosféricos. Mas temos a notar ainda uma outra espécie de heterogeneidade da superfície, produzida simultaneamente e por causas análogas. Quando a crosta da terra era ainda delgada, as rugas produzidas pela contração deviam ter sido pequenas, e de mais os espaços intermediários deviam continuar a apoiar-se muito exatamente sobre a esferoide liquida subjacente; e a água, nas regiões árticas e antárticas, primeiras onde ela se precipitou, devia ser distribuída muito igualmente. Mas, à medida que a crosta se tornava mais espessa e consequentemente se fortificava, as linhas de fratura que se produziam de tempos em tempos deveriam ser separadas por distancias crescentes; as superfícies intermediarias deveriam, seguir ainda com menos uniformidade o núcleo que se contraía; resultando disto mais vastas superfícies de terra e de água. Envolvei primeiramente uma laranja em papel de seda humedecido: vede como as rugas são pequenas, como as partes intermediarias se grudam exatamente na superfície da laranja. Depois envolvei-a em papel encorpado e reparai como as rugas são maiores e quanto mais vastos são os espaços em que o papel não toca na laranja. Pois bem! tendes reproduzido nesta operação aquilo que aconteceu quando o involucro da terra tornou-se mais consistente, e que as áreas de elevação e de depressão cresceram por consequência. Em vez de ilhas, dispersas de maneira mais ou menos homogênea sobre um mar que cercava tudo, formaram-se pouco a pouco diversos mares e terras intermeados, com vemos hoje. De mais, esta dupla mudança, na extensão e na elevação das terras, envolve ainda uma outra espécie de heterogeneidade: a da linha das costas. Uma superfície quase igual erguendo-se fora do oceano devia ter uma costa simples, regular; mas a superfície diversificada por planícies e entrecortada de cadeias de montanhas, devia, surgindo do oceano, ter um contorno de extrema irregularidade tanto nos traços principais como nos detalhes. Assim se acumulam indefinidamente os resultados geológicos e geográficos pouco a pouco produzidos por esta única causa: a contração da terra. Deste agente, que os geólogos chamam ígneo, passemos aos agentes aquosos e atmosféricos; iguais complicações de efeitos, sem cessar crescentes. O ar e a água que denudam as superfícies trabalharam, desde o começo, a modificá-las por toda a parte onde estavam expostas produzindo, segundo os lugares, mudanças diversas. A oxidação, o calor, o vento, a geada, a chuva, os gelos, as marés, as ondas, não cessaram de produzir desintegrações e estas ações variam em gênero e força segundo as circunstancias locais. Aqui, obrando em solo granítico, apenas produziram efeito apreciável; ali, elas produzem espoliações da superfície e, por consequência, acumulação dos detritos e das pedras; além, tendo decomposto o feldspato em argila branca, o arrastam, assim como ao quartzo e á mica seus vizinhos, formando com eles depósitos separados, fluviáteis e marinhos. Quando o terreno exposto se compõe de muitas formações dissemelhantes, sedimentares e ígneas, a denudação produz mudanças que são, guardada a proporção, mais heterogêneas: sendo as formações umas mais, outras menos acessíveis, segue-se uma irregularidade crescente da superfície. As áreas de drenagem dos diversos rios sendo diversamente constituídas, os rios acarretam para o mar combinações de ingredientes diversos e assim formam-se estratos novos de composição separada. Temos nisto o exemplo realmente muito simples de uma verdade, que vamos agora encontrar de novo em casos mais complexos, a saber que: quanto mais heterogeneidade há no objeto ou objetos aos quais se aplica uma força dada, tanto mais heterogeneidade há nos efeitos. Um continente de estrutura complexa, apresentando diversos estratos irregularmente distribuídos, que se elevam a níveis diferentes, que se inclinam em todos os ângulos possíveis, deve, sob a ação das mesmas forças de erosão, dar nascimento a uma multiplicidade infinita de efeitos; cada distrito deverá receber modificações que lhe são apropriadas; cada rio acarretará uma espécie particular de detritos; cada depósito será distribuído de maneira particular, graças ao cruzamento das correntes da maré ou outras, que banham as costas muito retalhadas; e esta modificação dos efeitos atingirá evidentemente seu máximo no lugar onde a complexidade da superfície atingir o seu. Seria sair da questão presente seguir detalhadamente a gênesis das complicações infinitas descritas pela Geologia e a Geografia física: de outro modo poderíamos achar novos exemplos desta verdade: que cada força que opera produz mais de uma mudança; a marcha das marés, as correntes do oceano, os ventos, a distribuição da chuva, a distribuição do calor e assim em seguida. Mas, para não nos tornarmos prolixos, e, todavia, completar nossos esclarecimentos sobre a aplicação desta verdade ao mundo inorgânico, consideremos as consequências que trariam uma revolução cósmica de alguma extensão, por exemplo: o desmoronamento da América Central. Os resultados imediatos desta perturbação seriam já eles próprios assaz complexos. Não falemos das inumeráveis deslocações dos estratos, das erupções das matérias ígneas, da propagação das vibrações terrestres em um círculo de muitos milhares de milhas. O oceano Atlântico e o Pacifico se precipitariam para encher o espaço deixado vazio; seguir-se-ia uma produção de enormes ondas em ricochetes que, atravessando os dois oceanos, iria transformar de mil maneiras suas margens; depois as ondas atmosféricas correspondentes, ainda complicadas pelas correntes que se formam em redor das bocas vulcânicas; enfim, descargas elétricas como as que acompanham tais perturbações. Mas estes efeitos temporários não seriam nada em comparação dos efeitos permanentes. As correntes tão complexas do Atlântico e do Pacifico sofreriam alteração em sua direção e em seu poder. A distribuição do calor, tal como operariam essas correntes oceânicas, não seria mais o que ela é. A disposição das linhas isotérmicas, não somente nos continentes vizinhos, mas até na Europa, seria mudada. As marés seguiriam marcha diferente da de hoje. Haveria modificações mais ou menos profundas na volta periódica dos ventos, em sua força, direção, qualidades. Com custo se encontraria um único lugar em que a chuva continuasse a cair nas mesmas épocas e nas mesmas quantidades. Em uma palavra, em um círculo de muitos milhares de milhas de raio, as condições meteorológicas seriam mais ou menos abaladas. Assim, sem levar em conta a infinidade de modificações que as mudanças de climas trariam a flora e a fauna terrestres e marinhas, o leitor pode julgar da prodigiosa heterogeneidade dos efeitos operados por uma única força, quando essa força se exercita em um campo já complexo e tirará facilmente este corolário: que, desde o começo, a complexidade cresceu com velocidade acelerada. Vamos mostrar como o progresso orgânico está, ele também, submetido a lei: que toda a força produz mais de uma mudança; mas antes consideremos ainda a manifestação dessa lei em uma outra espécie de progresso inorgânico, a saber - o progresso químico. As mesmas causas, que levaram a heterogeneidade da terra a compreensão do físico, produziram ao mesmo tempo a heterogeneidade no intelecto do químico. Não nos alongaremos acerca do fato geral: que as causas que aumentaram a variedade e a complexidade das formações geológicas puseram simultaneamente em contato elementos que até ali não se achavam em condições favoráveis de serem combinados e assim aumentaram o número dos compostos químicos. Cheguemos às complicações mais importantes que resultaram do resfriamento da terra. Ha motivo para crer que, em temperatura excessivamente elevada, os elementos não podem combinar-se. Mesmo, em temperaturas tais como podemos produzi-la artificialmente, certas afinidades muito poderosas, como a do oxigênio pelo hidrogênio, tornam-se inativas. E a maior parte das combinações químicas se decompõem em temperaturas muito mais baixas. Poderia se concluir com muita verossimilhança: que no período em que a terra era incandescente não havia totalmente combinações químicas; mas não insistamos, bastará para nosso desígnio apontar o seguinte fato indubitável: os compostos que podem manter-se nas mais elevadas temperaturas e que, por consequência, devem ter sido os primeiros formados, quando a terra resfriou, são aqueles cuja constituição é a mais simples. A classe dos protoxidos (compreendendo sob este título os álcalis, as bases, etc.)., é aquela cujos compostos são mais conhecidos como estáveis: a maior parte dentre eles resiste a todas as temperaturas que podemos produzir. Ora eles são formados de um átomo de cada um dos componentes e, assim, combinações da mais simples ordem; são apenas um grau inferiores em homogeneidade aos próprios elementos. Compostos mais heterogêneos que os precedentes, menos estáveis e, por consequência, mais recentemente aparecidos na terra são os bióxidos, os trioxidos, etc., nos quais dois, três, quatro átomos ou mais de oxigene o são unidos a um átomo de algum metal ou de algum outro elemento. Mais elevados ainda em heterogeneidade são os hidratos, nos quais o oxido do hidrogênio, unido com o oxido de qualquer outro elemento, forma uma substancia cujos átomos contêm cada um, pelo menos, quatro átomos primários das três espécies diferentes. Ainda mais heterogêneos e menos estáveis são os sais: porque eles se oferecem com átomos compostos dos quais um contêm cinco, seis, sete, oito dez, doze átomos, ou mais, de três espécies, quando não são de mais. Depois seguem-se os sais hidratados, cuja heterogeneidade é maior ainda e que se decompõem, em parte, em temperaturas muito mais baixas. Finalmente, seguem-se os compostos mais complicados. e cuja estabilidade é ainda inferior: sais haloides, sais duplos; e assim em seguida. Sem entrar em pormenores, para os quais nos falta espaço, acreditamos que nenhum químico desconhecerá esta lei geral dos compostos inorgânicos: apesar de todas as cousas iguais, a estabilidade varia na razão inversa da complexidade. Passando aos compostos da química orgânica, encontramos novos exemplos desta lei geral: achamo-nos em face de uma complexidade muito maior, e de uma estabilidade muito mais fraca. Assim, um átomo de albumina é feito de 482 átomos primários de espécies diferentes. A fibrina, de constituição ainda mais complicada, contém, em cada um de seus átomos, 298 átomos de carbono, 40 de azote, 2 de enxofre, 228 de hidrogênio e 92 de oxigene o, ao todo 660 átomos ou, para falar mais exatamente, 660 equivalentes. E estas duas substancias são assaz instáveis para decompor-se em temperaturas inteiramente ordinárias, como a que se acha exposto um pedaço de carne que se põe a assar. Assim, é manifesto que a heterogeneidade química atual da superfície da terra foi atingida gradualmente, à medida que a diminuição do calor o permitia, e que ela se mostrou sob três formas: primeiramente a multiplicidade dos compostos químicos; segundamente, o aumento do número de elementos diferentes contidos nos mais modernos desses compostos e, terceiramente, a grandeza e a variedade crescentes dos coeficientes de cada um dos elementos. Dizer que o progresso da heterogeneidade química tem por única causa o abaixamento da temperatura da terra, seria dizer muito, porque é claro que os agentes aquosos e atmosféricos se agregaram e, depois, que subentendemos as próprias afinidades dos elementos. A causa deste progresso não deixou de ser causa composta, sendo o resfriamento da terra simplesmente a mais geral das causas concernentes ou o lugar destas condições. E aqui pode-se fazer uma observação: nas diversas classes de fatos já mencionados (exceto, talvez as primarias), e mais ainda nestas que vamos mencionar, as causas são mais ou menos compostas e assim acontece, na realidade, em quase todas as causas que encontramos. Apenas encontrar-se-ia uma mudança que pudesse, em todo o rigor logico, ser atribuída na totalidade a um só agente, independentemente das condições permanentes ou temporárias fora das quais o agente não poderia produzir a mudança. Mas como isto não se refere ao fundo da nossa argumentação, preferimos, para mais simplicidade, usar da maneira de falar popular. Talvez objetem ainda que, atribuir uma mudança a perda do calor, é atribui-la não a uma força, mas á ausência dela. É verdade. Para falar exatamente, essas mudanças deveriam ser atribuídas às forças que entram em jogo, quando a força antagonista é suprimida. Mas, bem que haja inexatidão em dizer que a congelação da água é devida ao desperdício de seu calor, não resulta disso nenhum erro prático e mesmo semelhante negligencia de linguagem nada tira ao valor de nossas confirmações, tocantes a multiplicidade dos efeitos. Na realidade a objeção tem por única utilidade atrair a atenção para o fato, de ser preciso dizer, não somente: um desperdício de força produz mais de uma mudança; mas: a supressão de uma força produz mais de uma mudança. Do que se origina esta reflexão, que talvez a expressão mais correta do nosso princípio geral seja a mais abstrata: toda mudança é seguida de muitas outras mudanças. Reatemos o fio da nossa exposição. Temos de seguir no progresso orgânico a aplicação do mesmo princípio universal. É sob esta forma que a evolução do homogêneo para o heterogêneo foi pela primeira vez observada; e aqui, portanto, a produção de mudanças múltiplas por uma causa única, é menos fácil de demonstrar. O desenvolvimento que tira do grão uma planta, ou do ovo um animal, é tão poupado e a força que o determina tão complexa e ao mesmo tempo tão pouco acessível, que é difícil descobrir nele a multiplicidade dos efeitos que, em outra parte, é visível. Todavia, apoiando-nos sobre provas indiretas, podemos com toda a segurança concluir que aí ainda a lei é valiosa. Observemos, primeiramente, quanto são numerosos os efeitos que produz uma mudança notável qualquer em um organismo adulto, no homem por exemplo. O rumor, um espetáculo assustador, além da impressão que produzem nos órgãos dos sentidos e dos nervos, podem originar a agitação, um grito, a contorção do rosto, o tremor produzido pela frouxidão geral dos músculos, suor repentino, palpitação do coração, congestão cerebral e, em seguida, talvez, a suspensão da ação do coração e uma sincope: se o indivíduo é fraco, isto poderá ser o princípio de uma indisposição com um longo cortejo de sintomas complicados. Do mesmo modo nos casos de moléstia. Uma partícula de vacina introduzi da no sistema poderá rigorosamente provocar, no primeiro período: rigidez, calor na pele, aceleração do pulso, língua saburrosa, perda do apetite, sede, indisposição do epigástrio, vômitos, dores de cabeça, sofrimentos nas costas e nos membros, fraqueza muscular, convulsões, delírios, etc.; no segundo período: erupção cutânea, prurido, picadas, incomodo da garganta, inflamação das amígdalas, salivação, tosse, rouquidão, dificuldade de respirar, etc.: no terceiro período: inflamações edematosas, pneumonia, pleurisia, diarreia, inflamação do cérebro, oftalmia, erisipela, etc. De todos estes sintomas, nenhum deixa de ser mais ou menos complexo. Os remédios, a alimentação conveniente, melhores ares, podem também ser considerados como exemplos de causas que produzem efeitos múltiplos. Agora, considerai que as mudanças múltiplas, assim produzidas por uma força única em um organismo adulto, terão em certa ocasião outras análogas, ao menos em parte, no embrião: neste pois a evolução do homogêneo para o heterogêneo pode ser devida ainda a lei: que uma só causa produz muitos efeitos. O calor exterior e os outros agentes que determinam as primeiras complicações do gérmen, podem, obrando no gérmen complicado, introduzir nele novas complicações; depois nestas, novas e maiores ainda e assim em seguida; cada órgão, à medida que se desenvolve, obra e reage sobre o conjunto, de maneira a produzir novas diversidades. As primeiras palpitações do coração do feto devem ao mesmo tempo ajudar todas as partes a desenvolverem-se. Cada tecido, à medida que cresce, deve, recebendo do sangue um pouco de seus diversos elementos, segundo tal proporção especial, modificar a constituição do sangue e, por esse meio, a nutrição de todos os outros tecidos. A atividade do coração faz presumir certo dispêndio: é preciso, pois, que o sangue se encarregue das mate rias consumidas, que devem obrar sobre o resto do sistema e talvez produzir a formação dos órgãos excretores. As relações, estabelecidas pelos nervos entre as vísceras, devem multiplicar suas influencias reciprocas e assim continuamente. Eis o que torna esta ideia verosímil ainda: recordemo-nos que todo o gérmen pode, desenvolvendo-se, tomar diferentes formas segundo as circunstancias. Assim, durante os primeiros tempos, o embrião não tem sexo; ele torna-se macho ou fêmea segundo as forças circunvizinhas o fazem pender para um outro. Do mesmo modo, é fato bem estabelecido, que a larva de uma abelha trabalhadeira se desenvolverá em abelha-mestra, mudando-se, em tempo, o sustento substituindo-o pelo das larvas das abelhas-mestras. Ha um caso mais notável ainda, o de certos entozoários. O ovo da tênia, deixado na sua região natural, o intestino, reveste a forma bem conhecida do pai; mas se for transportado, como acontece frequentemente, para outras partes do sistema torna-se um ser semelhante a uma bolsa, que os naturalistas chamam Echinococcos, ente tão absolutamente diferente da tênia no aspeto e na estrutura, que foram preciso cuidadosas investigações para provar a identidade da origem dos dois. Todos estes exemplos fazem crer que o progresso na complicação do embrião é efeito das forças incidentes, que obram sobre uma complicação anterior. Podemos mesmo - achar a priori uma razão para pensar que a evolução segue esta marcha. Porque está estabelecido que nenhum gérmen, de animal ou de vegetal, contém o mais fraco rudimento, traço ou indicio do organismo futuro; o microscópio nos mostrou que em todo gérmen fecundado, o primeiro progresso consiste em uma divisão e subdivisão do gérmen, para chegar a formar uma massa de células, das quais nenhuma oferece caráter especial. For consequência, só se pode supor uma causa: é que, durante o crescimento, a organização incompleta do embrião em um momento dado, é transformada por agentes circunvizinhos e torna-se a organização da fase seguinte; depois esta torna-se também da seguinte, até que, através das complicações sempre crescentes, a forma última é atingida. Assim, a subtileza das forças em jogo e a lentidão dos efeitos não conseguirão impedir-nos de provar diretamente que os diversos períodos da heterogeneidade crescente, atravessados pelo embrião, são efeito da lei que uma só força produz muitas mudanças. Temos uma prova convincente indireta de que é assim. Dissemos quanto numerosos são os efeitos produzidos por uma só causa no organismo adulto; os efeitos podem multiplicar-se inteiramente os mesmos, em um organismo que cresce: é o que vimos em diversos casos significativos; de mais, notamos que, se os gérmens semelhantes podem dar nascimento a formas dissemelhantes, as transformações sucessivas devem resultar de novas modificações acrescentadas ás precedentes; enfim vimos que, sendo todo o gérmen amorfo na origem, não há outro meio de compreender como se forma um organismo. Não é dizer que, com isto, explicamos realmente a produção de um animal ou de uma planta qualquer. Conservam-se sempre nas trevas, para nós, essas misteriosas propriedades em virtude das quais o gérmen, uma vez exposto a influencias convenientes, sofra tais mudanças especiais, ponto de partida da série das transformações. Tudo o que queremos mostrar é que, sendo dado um gérmen com essas propriedades misteriosas, a evolução do organismo que se forma prende-se verossimilmente a essa multiplicidade de efeitos, causa principal, como vimos, de todo o progresso ao menos sob as formas já consideradas. Agora deixemos de parte o desenvolvimento das plantas e dos animais individuais; cheguemos ao da fauna e da flora da terra; aqui a nossa argumentação readquire a sua marcha clara e simples. Sem dúvida, assim como reconhecemos na primeira parte deste artigo, que os fragmentos de fatos acumulados pela paleontologia não nos autorizam inteiramente a dizer que, no curso dos períodos geológicos, tenha-se visto aparecer sucessivamente organismos mais e mais heterogêneos, e aglomerações de organismos mais e mais heterogêneos; contudo, vamos ver que deve ter havido alguma tendência neste sentido. A lei da produção dos muitos efeitos por uma só causa que segundo nossas explicações precedentes não tem cessado de aumentar a heterogeneidade física da terra, exigiu depois, vamos mostrá-lo, um aumento de heterogeneidade na sua flora e na fauna, tanto a respeito do conjunto, como a respeito dos indivíduos. Bastará um exemplo para esclarecer este fato. Supondo que, por uma série de movimentos subterrâneos produzindo-se (como se sabe hoje que tem lugar) em longos intervalos, o Arquipélago Oriental Indico foi, pouco a pouco, elevado até formar um continente, criando-se uma cadeia de montanhas ao longo do eixo da elevação. Em consequência da primeira destas elevações, as plantas e os animais de Bornéo, de Sumatra, da Nova Guiné. e das outras ilhas, se achariam submetidas a condições superficialmente diferentes. Paro o clima em geral, haveria alterações na temperatura, no estado higrométrico, nas variações periódicas; entretanto que as diferenças locais se multiplicariam. Estas modificações afetariam talvez de maneira sensível o conjunto da flora e da fauna da região. A mudança de nível produziria novas modificações: as modificações obrariam diferentemente sobre as diversas espécies e sobre os diferentes membros de uma mesma espécie, segundo sua distância ao eixo de elevação. As plantas que crescem unicamente nas margens do mar, em posições especiais, deveriam ter-se extinguido. Outras que vivem somente em solos assaz húmidos, deveriam sem dúvida sofrer mudanças sensíveis em seu aspeto, se é que sobreviveram. Entretanto apareciam ainda alterações mais distintas nas plantas que, pouco a pouco, se derramavam sobre as terras novamente emergidas. Os animais e os insetos, que vivem nessas plantas modificadas, viram-se eles próprios modificados até certo ponto, tanto pela mudança de alimento como pela mudança de clima; a modificação seria mais visível quando a espécie de plantas que lhes era familiar vindo a desaparecer, tinham de nutrir-se de alguma espécie vizinha. Numerosas gerações se sucederiam antes de uma nova elevação e as alterações sensíveis ou insensíveis produzidas em cada espécie se, organizariam, isto é, as espécies se adaptariam, mais ou menos completamente às novas condições. A elevação seguinte acrescentaria novas mudanças orgânicas, os tipos se afastariam mais ainda da forma primitiva e assim sucessivamente. Ora agora, convém observar: a evolução operada por este modo não substituiria mil espécies, mais ou menos modificadas, às mil espécies originais, mas, em vez das mil espécies originais, apareceriam muitos milhares de espécies ou variedades ou formas modificadas. Cada espécie sendo distribuída em uma área de alguma extensão e tendendo sem cessar a colonizar a área novamente emergida, seus diversos membros ficariam expostos a diversas series de mudanças. As plantas e os animais, que se propagassem na direção do equador, não seriam afetadas como as outras que se propagassem partindo do equador. Os que se multiplicassem na direção das novas praias sofreriam mudanças diversas das dos que se multiplicassem do lado das montanhas. Assim, cada raça primitiva de seres organizados tornar-se-ia a raiz de onde se originariam, divergindo, muitas outras raças diferindo mais ou menos da primeira, e umas das outras, e se algumas tinham de desaparecer oportunamente, mais de uma, provavelmente, sobreviveria durante o período geológico seguinte: bastava a dispersão para aumentar as suas presunções de sobrevivência. Não somente se produziriam modificações originadas pela mudança das condições físicas e do alimento, mas também, em alguns casos, outras modificações originadas pela mudança dos hábitos. A fauna de cada ilha, povoando gradualmente os terrenos recentemente elevados, poderia aproximar-se das faunas das outras ilhas e certos membros destas novas faunas deveriam não se assemelhar a cousa alguma conhecida. Os herbívoros, encontrando-se com novos animais ferozes, seriam em certos casos obrigados a recorrer a meios diferentes dos que usavam antes, para defender-se ou para fugir; do mesmo modo os animais ferozes modificariam a maneira de atacar e perseguir. Sabe-se que, quando as circunstancias reclamam, os animais mudam por essa razão seus hábitos: isto é um fato; e, sabe-se também que, quando os novos habites tornam-se predominantes, podem muito bem alterar a organização até certo ponto. Todavia observemos agora uma nova consequência. Pode produzir-se mais do que uma tendência de cada raça para diferenciar-se em muitas raças; uma tendência para produzir a sua vez um organismo algum tanto superior. Consideradas em massa, essas variedades divergentes, produzidas pela transformação das condições físicas e dos habitats da vida, oferecerão modificações infinitamente variadas em espécies em graus e essas modificações não serão necessariamente para melhor. Provavelmente, na maior parte dos casos, o tipo modificado não será nem mais nem menos heterogêneo que o original. Em alguns casos, os hábitos da vida adotados sendo mais simples que antes, resultará uma estrutura mais heterogênea: isto equivaleria a recuar. Mas deve aqui e ali acontecer que certo ramo de uma espécie, caindo em um meio em que adquire mais rica experiencia, e onde tem necessidade de atividade mais complicada, sofra em alguns de seus órgãos novas diferenciações, relativamente fracas, tornando-se algum tanto mais heterogêneo. Assim, segundo o curso natural das cousas, ver-se-á de tempos em tempos aparecer um aumento de heterogeneidade na flora e na fauna da terra, assim como nas raças particulares de que elas se compõem. Sem entrar em explicações de detalhe, e sem esquecer que há particularidades impossíveis de precisar neste lugar, é claro, pensamos, que as mudanças geológicas têm todas e incessantemente tendido a complicar as formas vivas, quer as consideremos uma a uma ou em seu conjunto. As mesmas causas que presidiram a evolução da crosta terrestre, e a fizeram passar de um estado simples a outro complexo, dirigiram ao mesmo tempo, no mesmo sentido, a evolução da vida na superfície da terra. Neste caso, como nos precedentes, a transformação que do homogêneo deduz o heterogêneo é, como vemos, submetida ao princípio geral: toda a força em ação produz mais de uma mudança. A conclusão, por este modo deduzida das verdades estabelecidas em geologia e das leis gerais da vida, recebe muita autoridade do fato de achar-se ela em harmonia com uma indução apoiada sobre a experiencia direta. A divisão de uma só raça em raças divergentes que, segundo as nossas ilações, deve ter-se produzido sem cessar durante as épocas geológicas, é justamente a que se produziu, como sabemos, durante os períodos pré-históricos e históricos, no homem e nos animais domésticos. E a multiplicidade dos efeitos, a qual atribuímos segundo nosso raciocínio o primeiro dos fenômenos, é justamente, como vemos, o que produziu o segundo. Causas particulares, como a fome, excesso de população, guerra, trouxeram periodicamente dispersões sucessivas da humanidade e das espécies que dela provêm e cada uma destas dispersões foi o princípio de novas modificações, de novas variações do tipo. Se a& raças humanas originaram-se ou não todas de um mesmo tronco, o fato é que a filologia nos faz ver que grupos inteiros de raças, hoje fáceis de distinguir uns dos outros, foram originariamente uma só raça, que a difusão de uma raça, através de diferentes climas onde as condições de existência mudavam, produziu numerosas modificações dessa raça. Do mesmo modo quanto aos animais domésticos, Sem dúvida, entre alguns deles (por exemplo os cães) a comunidade de origem será talvez sujeita a contestações; mas em outros (por exemplo os carneiros e o gado de nosso próprio país) é fora de dúvida que as diferenças locais do clima, do alimento e do tratamento, transformaram uma raça primitiva única em numerosas raças, presentemente assaz afastadas umas das outras de maneira que seus híbridos sejam instáveis. De mais, através das complicações dos efeitos nascidos de causas isoladas, encontramos aqui, o que a indução nos faz prever, um aumento não somente de heterogeneidade geral, mas também de heterogeneidade especial. Entre as divisões e subdivisões divergentes da raça humana, se muitas sofreram mudanças que não são em cousa alguma progresso, se entre algumas o tipo se degradou, entre outras tornou-se decididamente mais heterogêneo. O europeu civilizado afasta-se mais do arquétipo do vertebrado que o selvagem. Assim, a lei e a causa do progresso, que, por falta de provas, não pode ser colocada senão como hipótese quando se trata das formas primitivas da vida no nosso globo, pode ser colocada de fato quando se trata das formas mais recentes. Se se pode atribuir a lei da multiplicidade dos efeitos o progresso pelo qual o homem se adianta para uma heterogeneidade maior, o progresso da sociedade para esse mesmo termo se explica ainda melhor por aquele meio. Considerai a marcha de uma organização industrial. Um indivíduo de alguma tribo pode mostrar às vezes aptidão extraordinária para o fabrico de um objeto de uso frequente, de uma arma, por exemplo, que cada um antes fabricava por sua própria conta; isto tende a produzir uma diferenciação que transformará este indivíduo em fabricante de armas. Seus companheiros, todos eles guerreiros e caçadores, reconhecendo quanto lhes importa ter as melhores armas que se possam fabricar, não deixarão pois de oferecer a este homem hábil tudo o que puderem, para persuadi-lo a fabricar armas. Ele de sua parte não tem somente facilidade particular, como também gosto particular para o fabrico de armas (o talento e o gosto caminham de ordinário juntos); está pois disposto a encarregar-se dessas funções, mediante justa compensação, porque, além de tudo, seu amor pelas honras sente-se lisonjeado. Esta primeira especialização do trabalho, uma vez começada, tende a tornar-se cada vez mais notável. De uma parte a longa pratica aumenta a habilidade do fabricante de armas e a superioridade de seus produtos; de outra parte, a perda do habito torna seus clientes cada vez mais inábeis. Assim as razões que determinam a divisão do trabalho se fortificam de uma e outra parte; e a heterogeneidade, crescente deste modo, tornar-se-á verossimilmente, na média dos casos, permanente para esta geração e quiçá para muito mais longo tempo. Notai agora que, em consequência destes fatos, não somente a massa social se diferencia em duas partes, da qual uma tem o monopólio ou o quase monopólio de certa função, e a outra perdeu o habito e até certo ponto a capacidade de preencher essa função; mas, por outra, este deve ser o ponto de partida de outras diferenciações. O progresso acima descrito faz supor a introdução da permuta: o fabricante de armas deve, em qualquer ocasião, ser pago com tais outros artigos que lhe agrade receber de volta. Ora de ordinário ele não aceitará, em troca, uma só espécie de artigos, mas artigos de todas as espécies. Ele não tem unicamente necessidade de esteiras, ou de peles, ou de utensílios de pesca, mas de todas estas cousas. De cada vez, pedirá os objetos particulares que lhe são precisos. O que se segue? Se entre os membros da tribo houver alguns um pouco mais hábeis no fabrico destes diversos objetos, e é o que não pode deixar de acontecer, o fabricante de armas tomará de cada um o objeto em cujo fabrico ele for mais perito: trocará seus produtos pelas esteiras daquele que as tiver superiores e pedirá os utensílios de pesca ao que os possuir melhores. Mas aquele que cedeu as suas esteiras ou os seus utensílios de pesca, deve fazer outras para si próprio e, assim procedendo, desenvolve a sua habilidade proporcionalmente. Por fim de contas, as pequenas aptidões naturais dos diversos membros da tribo propenderão a fortificar-se. Se estas transações se repetirem muitas vezes, as especializações tornar-se-ão notáveis. E, quer ocorram ou não diferenciações distintas, quer outros indivíduos adquiram ou não o oficio do fabrico de tais artigos especiais, o fato é que a tribo inteira experimentou começos de diferenciação: a causa primitiva simples produz, além do primeiro efeito duplo, grande número de efeitos secundários duplos, semelhantes em gênero, mas diferentes em grau. Este encadeamento de fatos, dos quais vêm se os traços em um grupo de estudantes, não pode produzir efeitos duráveis em uma tribo volúvel; mas por toda a parte onde se formar uma comunidade fixa e prospera, as diferenciações tornam-se permanentes e fortificam-se em cada geração. Uma população numerosa, e que faz pedidos, avultados para cada objeto útil, aumenta a atividade funcional de cada pessoa ou classe especializada, o que tem por efeito determinar melhor a especialização onde ela existe e firma-la onde está em estado nascente. O aumento da população faz também encarecer as substancias e isto concorre para o mesmo resultado: cada indivíduo é, efetivamente, constrangido a consagrar-se cana vez mais ao trabalho que ele exerce melhor, e que rende mais. O progresso industrial, assegurando para o futuro melhor produção, prepara um novo aumento da população, que reage por sua vez. Em tudo isto a multiplicidade dos efeitos é manifesta. Agora, graças a esses mesmos estímulos, surgem novas ocupações. Operários rivais, tendo sempre em mente produzir artigos superiores, descobrem às vezes processos ou materiais novos. Assim, para as armas e as ferramentas cortantes, a substituição da pedra pelo bronze proporciona ao inventor um grande acréscimo de pedidos, acréscimo tal que ele ocupa todo o seu tempo na preparação do bronze para os objetos que vende, vendo-se forçado a confiar a outros o cuidado de os confeccionar. Deste modo acontece que a preparação do bronze, diferenciando-se gradualmente da ocupação preexistente, torna-se ela também um oficio. Observai agora as mudanças que nascem dessa mudança e vão se ramificando. O bronze bem depressa substitui a pedra, não somente nos artigos nos quais foi a princípio empregado, mas em muitos outros: armas, ferramentas, utensílios de diferentes espécies, entrando no fabrico destes objetos. Por outra, opera sobre o manejo dessas ferramentas, e sobre seus produtos; modifica as construções, as obras de madeira, o vestuário, os enfeites. Demais, dá nascimento a muitos trabalhos antes impossíveis pela falta de matéria conveniente para as ferramentas necessárias. E todas estas mudanças reagem sobre as pessoas, aumentam sua habilidade manual, sua inteligência, seu bem-estar, apuram seus hábitos e seus gostos. Assim a evolução, que transforma uma sociedade homogênea em heterogênea, é evidentemente a consequência do princípio geral: que muitos efeitos são produzidos por uma só causa. Nossos limites não nos permitem seguir essa lei nas suas aplicações mais complexas; de outra maneira poderíamos mostrar como as mesmas causas promovem a localização de indústrias especiais em certas partes de um reino, como também a extrema divisão do trabalho no fabrico de cada objeto util. Ou, para tocar em uma ordem de exemplos um pouco diferentes, poderíamos estender-nos acerca das mudanças múltiplas (materiais, intelectuais, morais ), produzidas pela imprensa, ou ainda sobre a serie grandiosa de mudanças operadas pela pólvora. Mas deixemos de lado as fases intermediarias do desenvolvimento social e socorramo-nos de alguns exemplos das fases mais recentes ou mesmo contemporâneas. Seguir os efeitos do vapor, nas suas diversas aplicações às minas, a navegação, às manufaturas de todas as espécies, nos obrigaria a detalhes que nos perderiam. Limitemo-nos á consideração do recente engenho no qual se acha incarnado o poder do vapor: a locomotiva. A locomotiva, causa próxima do nosso sistema de caminhos de ferro, mudou a face do país, a marcha do comercio e os habitas de todos. Considerai em primeiro lugar as consequências complicadas das mudanças que precedem a instalação de um caminho de ferro: ajustes preliminares, reuniões públicas, registro, seção de experiencias, estudo parlamentar, plantas litografadas, relatórios, depoimentos locais e notas, apresentação ao parlamento, intervenção da comissão de regulamentos, primeira, segunda e terceira leituras. Cada um destes títulos indica uma multidão de atos e o desenvolvimento de muitas corporações de oficiais: engenheiros, agrimensores, litógrafos, agentes parlamentares, corretores de ações; e a criação de muitas outras: empreiteiros de transportes, indaga dores de notícias. Considerai depois as mudanças ainda mais acentuadas que traz á ideia a construção da via: escavações, aterros, tuneis, curvas, construções de pontes e de estações, colocação do lastro, dormentes, trilhos; fabrico das maquinas, tenders, carruagens e vagões. Todos estes fatos, operando sobre numerosos ramos do comercio, aumentam a importação da madeira, o corte das pedras, o fabrico do ferro, a extração do carvão, o cozimento dos tijolos, cream uma variedade de indústrias especiais, das quais se encontram todas as semanas anúncios no Jornal dos caminhos de ferro (Railway Times), e finalmente dão nascimento a muitos oficias novos: como os de maquinistas, foguistas, limpadores, assentadores da via, etc., etc. Finalmente considerai os efeitos, ainda mais numerosos e mais complexos, que produz na sociedade um caminho de ferro em efetividade. Cada oficio é mais ou menos modificado em sua organização, a facilidade das comunicações proporciona a vantagem de fazer por si mesmo o que se confiava antes a caixeiros; estabelecem-se agencias em lugares onde precedentemente não fariam nem para as despesas; fornecemo-nos nas casas distantes, que vendem por atacado, em vez de nos dirigirmos ás vizinhanças que vendem a retalho e nos servimos de mercadorias que a distância outrora tornava inacessíveis. De mais, a rapidez e o diminuto preço dos transportes tendem a especializar, mais do que nunca, as indústrias dos diversos distritos, a confinar cada fabrico nos países em que, por virtude de vantagens locais, pode ser melhor executado. Depois, a diminuição dos preços de transporte, tornando a distribuição mais fácil, iguala os preços, e abaixa a média: por este modo, põe muitos artigos ao alcance de pessoas que precedentemente não tinham meios de obtê-los, aumenta o seu bem-estar e melhora seus hábitos. Ao mesmo tempo as viagens tornam-se infinitamente mais frequentes. Pessoas, que até ali nunca tinham pensado em semelhante cousa, fazem todos os anos excursões às praias, visitam os seus amigos distantes, viajam como turista e a saúde, o coração, o espirito, lucram com isso. Por outra, a transmissão mais pronta das cartas e das notícias produz outras mudanças e é como se, no corpo da nação, o sangue corresse mais rapidamente. Finalmente as bibliotecas dos caminhos de ferro propagam a literatura a preço barato, os anúncios dos seus carros são visíveis a todos os olhos. Tudo isto prepara o progresso futuro. Ora estas inumeráveis mudanças, que indicamos em duas palavras, são consequências da invenção da locomotiva. O organismo social tornou-se mais e mais heterogêneo, à medida que os novos oficias apareciam e que os antigos se especializavam mais; por toda a parte os preços foram modificados; cada negociante mudou mais ou menos sua maneira de negociar e não há quase um só homem cujos atos, pensamentos, sentimentos não tenham experimentado a impressão deste fato. Poderia acumular infinitamente os exemplos para firmar a mesma verdade. Qualquer influência que tende a obrar sobre a sociedade produz efeitos múltiplos e o progresso da heterogeneidade é devido a esta acumulação de efeitos: é o que nos mostraria a história de qualquer comercio, de qualquer costume, de qualquer crença. Mas é inútil adicionar provas às precedentes. Um só fato merece ainda ser mencionado: é que nós vemos aqui mais distintamente ainda do que além esta verdade, já enunciada: quando o campo em que se exerce uma força é já heterogêneo, os resultados são muito mais numerosos e mais variados. Entre as tribos primitivas que foram as primeiras a conhecê-lo, o cautchu experimentou poucas mudanças; entre nós as mudanças têm sido tão múltiplas e tão diversas, que foi preciso um volume para historia-las (A origem do cautchu, ou o fabrico de goma elástica na Inglaterra, narração pessoal, por Thomaz Hancock). Introduza-se a telegrafia em uma das Hebridas, onde vive uma pequena sociedade completamente homogênea; apenas produziria algum efeito, mas na Inglaterra os que ela produz são muito numerosos. Nossos antepassados, há cinco séculos, graças à organização relativamente simples da sua sociedade, se ressentiriam levemente de um sucesso como o que acaba de ocorrer em Cantão; mas hoje a medida legislativa adotada acerca deste sucesso vai tornar-se o princípio de muitas centenas de modificações complexas, das quais cada uma dará nascimento bem cedo a muitas outras. Se o espaço permitisse, teríamos de boa vontade prosseguido nossa demonstração, considerando os resultados mais delicados da civilização. Do mesmo modo que, como acima mostrámos, a lei do progresso, se aplica, tanto aos mundos orgânico e inorgânico, como a linguagem, a escultura, à música, etc.; do mesmo modo poderíamos mostrar que a causa a qual devemos até aqui atribuir o progresso, é também a verdadeira causa nos últimos casos. Poderíamos mostrar como, na ciência, o progresso de um ramo ajuda o progresso dos outros, como a astronomia tirou grande proveito das descobertas feitas na ótica, entretanto que outras descobertas da ótica tornaram possível a anatomia microscópica e ajudaram muitíssimo os progressos da fisiologia; como a química aumentou de maneira indireta nossos conhecimentos sobre a eletricidade, sobre o magnetismo, biologia e a geologia; como a ciência da eletricidade reagiu sobre a química, sobre a ciência do magnetismo, como desenvolveu nossas ideias sobre a luz e o calor e revelou muitas leis da atividade dos nervos. Na literatura brilha a mesma verdade: vede o mistério, com seus efeitos tão diversos, porque não somente ele é o princípio do drama moderno, mas, por seu intermédio, opera sobre outras fôrmas da poesia e da ficção; vede as fôrmas sem cessar mais numerosas da literatura periódica: todas originaram-se do primeiro jornal e cada uma está vinculada, pelas ações e pelas reações, com as outras fôrmas da literatura, e especialmente com as da literatura periódica. A influência que uma nova escola de pintura, como a dos Pré-rafaelistas, exerce sobre outras escolas; as indicações dadas pela fotografia a todos os gêneros de pintura, os efeitos complexos de novas doutrinas críticas, como a de M. Kuskin; eis tantos outros exemplos dessa mesma multiplicidade de efeitos. Mas seria abusar inutilmente da paciência do leitor, prosseguir nas diversas mudanças até suas numerosas ramificações: além de que essas mudanças se tornam, a partir deste ponto, muito sutis e muito complexas, dificultando a possibilidade de acompanhá-las. Assim pois, sem aduzir mais provas, ousamos acreditar que chegamos ao fim da nossa empresa. O laconismo tornou nossas confirmações necessariamente imperfeitas: entretanto isso não destrói, cremos, as teses que temos proposto. A precisão de que se ressente um ou outro ponto, quando mesmo a fornecêssemos, não afetaria as nossas induções. Em um caso, para dizer a verdade, impossibilitado de obter prova satisfatória, não nos foi possível provar que a lei do progresso é aplicável; todavia, aí mesmo, é muito provável que a indução seja tão valiosa como para o resto da criação. Sem dúvida, descrevendo a gênesis do progresso, falamos muitas vezes de causas complexas como se elas fossem simples; verdade é, porém, que essas causas são muito menos complexas que seus efeitos. A crítica de detalhes não pode atingir a nossa tese essencial. Uma serie infinita de fatos progride e prova que todo o progresso de qualquer espécie que seja, vai do homogêneo para o heterogêneo e que a causa é a seguinte lei: toda a mudança é seguida de muitas mudanças. E é cousa bem significativa que, quanto mais acessíveis e abundantes são os fatos, mais estas verdades são manifestas. Todavia, receamos ir mais longe, além do que nos conduzem as nossas provas; contentamo-nos de dizer que tal é a lei e a causa de todo o progresso atualmente conhecido. Se a hipótese nebular nunca foi estabelecida, então é evidente que o universo inteiro, como também cada organismo, foi outrora homogêneo, que no conjunto e em todos os detalhes nunca deixou de adiantar-se para a heterogeneidade; que esta heterogeneidade vai sempre crescendo. Ver-se-á que desde o começo, como ainda hoje, toda a força despendida, decompondo-se em muitas forças, produz uma complicação crescente e eterna; que o aumento de heterogeneidade assim produzido continua ainda e continuará a produzir-se e, por este modo, o progresso não é acidente, nem cousa que esteja ao alcance do poder humano, mas uma necessidade benéfica. Convém adicionar algumas palavras atinentes á metafísica do nosso raciocínio. Mais de uma pessoa, sem dúvida, verá nisto uma tentativa para resolver as graves questões no meio das quais se emaranhou a filosofia de todos os tempos. Parece que se enganam. Seria preciso ignorar o fim e os limites da ciência, para cair em tão grave erro. As induções que precedem têm valimento, não para a gênesis das cousas em si, mas para a gênesis tal como ela se manifesta na consciência humana. Depois de tudo o que se disse, o mistério ultimo permaneceu exatamente o que era. Quando se explicou o que é explicável, nada mais se fez do que patentear à luz de um dia bem claro a ininteligibilidade do que resta além. Por maiores esforços que façamos para trazer a equação aos seus termos mais simples, não seremos capazes de descobrir a incógnita: pelo contrário, torna-se mais evidente que a incógnita nunca será descoberta e isto é tudo. A despeito das aparências, uma pesquisa intrépida tende incessantemente a estabelecer base mais firme a religião. Os sectários tímidos, amedrontados pelos progressos do conhecimento, obrigados a abandonar uma a uma as superstições dos seus antepassados, vendo de dia em dia suas caras crenças mais abaladas, receiam, sem o dizer, que um belo dia todas as cousas sejam explicadas; daí o horror que eles têm da ciência; deixam por este modo aparecer a mais profunda das incredulidades; o medo que a verdade seja má. De outro lado, o homem de ciência, contente pela sinceridade com que caminha para onde a evidencia o conduz, torna-se depois de cada investigação mais profundamente convencido que o universo é um problema insolúvel. No mundo interior como no exterior, ele vê-se entre mudanças perpetuas, das quais não pode descobrir nem o começo nem o fim. Se, remontando o curso da evolução das cousas, ele se atreve a sustentar a hipótese que a matéria existiu outrora em estado difuso, acha-se depois ante a impossibilidade de conceber como ela chegou a esse estado; do mesmo modo, se inquire acerca do futuro, não pode determinar limites a essa longa série de fenômenos que se descortinam perante ele sem fim. Por outro lado, observando-se a si próprio, vê que as duas extremidades do fio da consciência estão fora do seu alcance: não pode recordar-se quando, ou como, a consciência começou e não pode também compreender a consciência que existe em um momento dado; efetivamente, é somente depois do estado de consciência ter passado que ele se torna objeto de pensamento, e não quando passa. Quando, depois da sucessão dos fenômenos exteriores ou interiores, ele considera sua natureza essencial, vê-se igualmente impotente. Em vão resolve toda as propriedades dos objetos pelas manifestações da força, nem por isso se acha em estado de definir o que é a força; percebe, pelo contrário, que quanto mais pensa, tanto mais malogrado fica. Do mesmo modo, a análise dos atos do espirito pode muito bem conduzir-nos ás sensações, como aos elementos primitivos dos quais são tirados todos os pensamentos, mas não faz por isso a ciência avançar um passo porque não pode, por fim de contas, empreender a sensação: não pode mesmo conceber como a sensação seja possível. No interior e no exterior, descobre que as cousas são igualmente impenetráveis, em sua génesis e na sua natureza últimas. Reconhece distintamente que a discussão dos materialistas e dos espiritualistas é pura questão de palavras; achando-se os adversários igualmente no absurdo, visto que cada um imagina compreender o que é impossível ao homem compreender. Em todas as direções, suas investigações o põem face a face com o incognoscível; o sábio conhece cada vez mais distintamente que é desconhecido. Aprende, ao mesmo tempo, a grandeza e a pequenez do espirito humano, seu poder perante o que é submetido a verificação da experiencia, sua impotência em relação ao que ultrapassa a experiencia. Sente, com a vivacidade que não é permitida a nenhum outro, a incompreensibilidade do mais simples fato, considerado em si mesmo. Somente ele, na verdade, vê que o conhecimento absoluto é impossível. Somente ele conhece que, sob todas as cousas, oculta-se um impenetrável mistério. Na obra de Herbert-Spencer, "Os primeiros princípios", encontra-se á pag. 302 a seguinte nota. Foi em 1852 que tive ciência da maneira porque Baer exprimia este princípio geral (lei da evolução). A universalidade da lei foi sempre para mim um postulado trazendo consigo a crença correspondente, tácita senão confessada, a unidade do processo em toda a natureza. A proposição que toda a planta e todo o animal, originariamente homogêneos, tornaram-se gradualmente heterogêneos, estabelece a coordenação em uma multidão de ideias não organizadas ou imperfeitamente organizadas. É verdade que na minha Estática Social (parte IV, § 12, 16), escrita antes que tivesse conhecimento da formula de Baer, eu fazia consistir o desenvolvimento do organismo individual e o do organismo social no progresso que parte do simples para o complexo, de partes semelhantes independentes para partes dissemelhantes mutuamente dependentes, segundo a analogia que se encontra no fundo das ideias de Milne Edwards sobre a divisão do trabalho fisiológico. Mas, se a formula de Milne Edwards pode ser aplicada aos fenômenos super-orgânicos, é muito especial para exprimir os fenômenos inorgânicos. O serviço prestado pela formula de Baer procede de ser ela muito mais geral, visto que é somente quando as transformações orgânicas encontraram a sua formula mais geral, que podemos ver o que elas têm em comum com as transformações inorgânicas. A primeira expressão sistemática da ideia que a operação de transformação, que se opera no organismo em via de desenvolvimento, opera-se também em todas as cousas, depara-se no ensaio sobre o Progresso, sua lei e sua causa, que publiquei no "The Westminster Review", abril 1857. O presente capitulo reproduz a substancia e uma parte da forma daquele ensaio. Mas devo dizer que aí cometi um erro que repeti na primeira edição desta obra: eu supunha que a transformação do homogêneo para o heterogêneo constituía a evolução; acabamos de ver que essa transformação constitui a redistribuição secundaria que acompanhou a redistribuição primaria na evolução chamada composta, ou antes, como vemos agora, constitui a parte mais notável da redistribuição secundaria. A UTILIDADE DO ANTROPOMORFISMO Qualquer alma generosa e jovem começa por indignar-se com o espetáculo dos negócios humanos, é acesso que dura; mas quando ele tem feito carreira, então pouco a pouco forma-se em nós, como um pressentimento, que as instituições, os órgãos, as formas, tão veementemente condenadas, não são inteiramente más. A reação vai mais ou menos longe! Uns chegam simplesmente a contentar-se, por comparação, do estado das cousas em que vivem. Outros vão até reconhecer que todos os povos, por mais tirânico que seja o seu governo, é o que eles merecem. Alguns persuadem-se que a escravidão, por mais detestável que ela lhes pareça, por mais injusta que seja atualmente, foi no seu tempo um benefício, e uma das fases necessárias do progresso humano. Outros por sua parte imaginam que as guerras perpetuas d'outrora foram proveitosas; promoveram a difusão das raças mais fortes e, assim, proporcionaram a civilização uma boa matéria prima. Entre um pequeno número, a reação circunscreveu-se a ideia do conjunto: que todas as maneiras de pensar e de obrar do homem, nos lugares e tempos em que elas se apresentam, têm um fim útil; más quando se consideram separadamente, são boas relativamente, e mesmo são as melhores conforme as circunstancias. Eis uma conclusão surpreendente a que nos conduz a crença, que as cousas são por essência benéficas: é que as ideias religiosas, através das quais a humanidade tem passado sucessivamente, são, cada uma para a época em que subsistiu, as melhores que eram possíveis; e isto é verdade não somente quanto às crenças mais recentes e mais aperfeiçoadas, mas ainda para as mais primitivas e mais grosseiras. Aqueles que acreditam que as religiões são impostas ao homem por um poder estranho, umas vindo do próprio Deus, outras do diabo, que consideram a sua como a única do primeiro gênero e, por conseguinte, colocam o resto no segundo, hão de achar muito ofensiva esta opinião. Mas a maior parte daqueles mesmos que rejeitaram as teologias correntes e que de agora em diante tomam as religiões por outros tantos produtos da natureza humana; que, desembaraçados da animosidade que tinham contra a sua fé da véspera, no momento em que expelem o jugo, podem ver quão grandes serviços ela prestou ás gerações passadas, e presta ainda a uma boa porção do gênero humano; pois bem! esses mesmos, creio eu, não devem estar preparados para admitir que todas as religiões, inclusive mesmo o mais ignóbil fetichismo, tenham representado papel util. Se esses homens entretanto quisessem desenvolver suas ideias, consequentemente encontrariam envolvidas nelas, essa conclusão. Porque se é verdade que a humanidade, quer se tome ela em corpo ou se examinem os indivíduos, é produto natural e não artificial, é claro que em cada momento as teologias, assim com os sistemas políticos e sociais, deveriam ser arranjados de forma que conviesse ás circunstancias. De um lado como de outro, às apalpadelas, de tempos em tempos, as cousas tomam uma nova posição, que firma melhor o equilíbrio nacional. Assim as conspirações e as lutas dos chefes fazem a cada instante subir ao pináculo o mais forte; então a sua superioridade bem comprovada tem o poder de assegurar momentaneamente o repouso e de dar á sociedade o tempo de engrandecer-se. Assim os expedientes de circunstancia produzem periodicamente uma nova divisão do trabalho que prevalece e se funda pela única razão de prover as necessidades do homem, melhor que a precedente. Do mesmo modo a crença que se desenvolve durante um período está mais em acordo com as necessidades do tempo do que estaria a anterior. Mas, para não nos limitarmos às generalidades, consideremos como isto se faz. Vejamos se, quando formam a ideia da divindade, os homens não se acham submetidos a necessidade secreta de representa-la a si próprios com os traços mais capazes de obrar sobre eles. Está agora admitido comumente que o Deus pessoal tem de ser concebido pelo modelo da humanidade, mais ou menos idealizada. O antropomorfismo é resultado inevitável das leis do pensamento. Nós não podemos esboçar um só dos traços da ideia de Deus, sem lhe fixar atributos humanos. Não podemos mesmo falar da vontade divina sem assemelhar a natureza divina a nossa; porque não conhecemos outra vontade além daquela que é propriedade do nosso espirito. Deixando aparecer esta tendência, ou antes esta necessidade antropomórfica, por sua própria conta, de maneira assaz visível, - bastante para saltar aos olhos dos homens mais adiantados, os cristãos se indignam das maneiras ainda mais grosseiras que ele afeta entre os povos não civilizados. Seguramente, são crenças assaz repugnantes, as dos polinésios, cujos deuses, segundo eles creem, nutrem-se das almas dos mortos, ou as dos gregos que imputavam aos personagens do seu Panteão todos os vícios, desde o canibalismo doméstico até outros ainda mais ignóbeis. Mas, em vez de observar as ideias exteriores, observemo-las como verdadeiros filósofos interiormente, perguntemos a nós mesmos qual o efeito que elas produziam nos crentes, e consideremos como se ligavam a sua natureza e ás suas necessidades; então começaremos a julga-las com espirito tolerante. A questão atual é, se as crenças influíam com felicidade sobre os crentes da época e não se elas teriam influencia feliz sobre nós, ou sobre homens perfeitos; a resposta deverá ser que, apesar de más absolutamente falando, foram relativamente boas. Não é evidente que o melhor freio para o selvagem será o temor que ele tenha por uma divindade selvagem? Não é evidente que, quando mais a sua natureza tiver necessidade de rigoroso constrangimento, mais ele deverá temer as consequências de uma infração da lei, se querem que eles a respeitem; não é preciso para isto, que o seu deus lhes pareça proporcionalmente cruel e vingativo? Não é bom que o hindu traidor, ladrão, mentiroso, creia no inferno em que os maus são cozidos nas caldeiras, precipitados do alto das montanhas eriçadas de facas, e serrados em dois pedaços entre postes de ferro em brasa? E para que um tal inferno possa ser arranjado, não é preciso acreditar também em uma divindade que se deleita com os sacrifícios humanos e as torturas que os faquires infligem a si próprios? Não parece evidente que nos primeiros séculos do cristianismo, quando os homens tinham o coração assaz severo, um santo padre colocasse no número das alegrias do paraíso o espetáculo dos tormentos dos réprobos? Não parece evidente que, no momento em que a simpatia estava pouco desenvolvida, houvesse necessidade, para manter os homens no seu dever, da perspectiva de todas as torturas descritas por Dante, e de uma divindade assaz implacável para aplica-las? E se, como vemos por isto, é bom ao selvagem, crer em um deus selvagem, é fácil de compreender a grande utilidade dessa tendência - para o antropomorfismo, ou, como eu já disse, dessa necessidade invencível. Achamos ainda ali um exemplo da beneficência que é essencial às cousas e que se faz ver por toda a parte através da natureza. Por sermos impotentes, em nossos esforços para conceber a divindade, para concebe-la de outra maneira do que como uma idealização daquilo que somos, segue-se inevitavelmente que, em cada época, em cada povo, e em grande parte para cada indivíduo, a ideia de Deus seja justamente a que melhor se adaptar às necessidades da circunstância. Se aquele que é dotado de natural violento e sanguinário merece um freio severo, ele terá por si mesmo a ideia de um soberano ainda mais violento e mais sanguinário e capaz de impor tal freio. Agora, depois de muitos séculos de disciplina social que tornaram os caráteres mais humanos, que não há mais necessidade de constrangimento tão severo, os atributos diabólicos deixam de ser, como antes, os primeiros da divindade. E gradualmente, à medida que o constrangimento se torna supérfluo, a ideia de Deus reduz-se a de uma necessidade benfazeja. Assim, pois, aqui como em tudo, a organização humana tem em si mesmo tudo quanto lhe é preciso para formar-se, para equilibrar-se. O espirito produz por si mesmo o regulador que lhe é preciso para seus movimentos e o faz variar a medida das suas necessidades. Sua força centrifuga e a sua força centrípeta estão necessariamente em relação porque uma produz a outra. E nós julgamos que a regra religiosa obedece, quanto á sua forma, a mesma lei que a regra secular. Do mesmo modo que o caráter nacional mal regularizado produz um governo terrestre despótico, assim também produz o governo celeste despótico, um exercendo seu poder pelo intermédio dos sentidos, o outro pelo da imaginação. No caso contrário, a mesma relação subsiste. Esta relação, conservando-se por sua origem na base de nossa natureza, não pode ser alterada profundamente por nenhuma intervenção artificial. Uma força estranha debalde tentará produzir nela vestígios de perturbação, o efeito é logo neutralizado, se não na aparência, ao menos na realidade. Isto me impressionou recentemente, lendo a narração feita por um missionário, das "Almas visitadas pela graça do Espirito-Santo em Vewa" uma das ilhas Fiji. Eis a descrição de um "meeting de penitentes", conforme essa narração: "Certamente os sentimentos das pessoas de Vewa não são ordinários. Elas rugiam em sentido literal, durante algumas horas, tal era a perturbação de suas almas. Acabavam algumas vezes por desmaiar de prostração e era esta a única dilação que tinham, enquanto não encontravam a paz. Elas só tornavam a si depois de caírem, a força de orações, primeiramente em uma espécie de agonia, depois em estado de completa insensibilidade". Pois bem! esses insulares de Fiji são os mais selvagens de todos os povos não civilizados. Entregam-se ao canibalismo, ao infanticídio, aos sacrifícios humanos; são sanguinários e traidores ao ponto dos membros de uma mesma família não se confiarem uns nos outros; também têm um deus nacional que condiz com o seu caráter, uma serpente. Não é, pois, evidente que essas violentas emoções, das quais os missionários nos descrevem o quadro, esses terrores, essas agonias de desespero das quais falam com tanta benignidade, sejam a maneira de adorar o deus antigo sob o nome do novo? Não é evidente que esses fijianos, compreenderam unicamente o que, no dogma cristão, por inspiração, lhes convinha, o espirito de vingança: as penas eternas, as ideias diabólicas, que nele se encontram; ideias que, condizendo com a sua própria concepção da natureza divina, eles as representavam a si próprios com extrema vivacidade; e esse medo terrível, que os fazia "em sentido literal rugir durante algumas horas"; tinha por causa que, compreendendo muito bem as ideias de punição, e abraçando-as, não podiam atingir ás ideias de misericórdia? Esta conclusão apresenta-se naturalmente. E ela arrasta em seu seguimento esta outra: que no fundo sua nova crença era pura e simplesmente a antiga com um nome novo; a substancia era sempre extraída da mesma ideia, com história e nomes diferentes. Assim, pois, por muito grande que pareça a mudança produzida acidentalmente na religião de um povo, nossa inclinação para o antropomorfismo, faz que ela conserve-se na superfície; ele acomoda qualquer religião nova de modo que, quanto aos efeitos, não difere da antiga; obscurece os mais nobres elementos que nela se encontram, até o momento em que o povo se erga bastante para sentir a influencia: - e com isto, restabelece o equilíbrio entre os impulsos e a oposição de que elas têm necessidade. Se querem exemplos, encontrá-los-ão em abundancia na história das modificações que o cristianismo sofreu através da Europa. Deixando pois de considerar as teologias barbaras no ponto de vista que nos é pessoal e considerando somente o papel que elas representam no seu país, nós as colocaremos a par das outras, concedendo que são boas em seus tempos e lugares; na necessidade, própria ao nosso espirito, de conceber a divindade como uma idealização do que somos, reconheceremos a força que produz e mantém, a cada momento, o acordo entre a natureza humana e sua fé religiosa.