John Stuart Mill – Considerações Sobre o Governo Representativo ÍNDICE Prefácio I - Até que ponto as formas de governo dependem de escolha II - Critério para boa forma de governo III - De como a forma idealmente melhor de governo é a representativa IV - Em que condições sociais se torna inaplicável o governo representativo V - Das funções próprias aos corpos representativos VI - Das enfermidades e perigos a que está sujeito o governo representativo VII - Da democracia verdadeira e falsa; representação de todos ou somente da maioria VIII - Da extensão do sufrágio IX - Deverá haver dois estádios de eleição? X - Da maneira de votar XI - Da duração dos parlamentos XII - Devem exigir-se garantias idos membros do parlamente? XIII - De uma segunda câmara XIV - Do poder executivo em governo representativo XV - Dos corpos representativos locais XVI - Da nacionalidade em correlação ao governo representativo XVII - Dos governos representativos federais XVIII - Do governo de possessões por um estado livre Notas biográficas PREFÁCIO Os QUE ME DERAM A HONRA de ler escritos meus anteriores não experimentarão provavelmente forte impressão de novidade ao percorrer as páginas do presente volume; pois que os princípios são os de que me venho ocupando durante a maior parte de minha vida, e muitas dentre as principais sugestões práticas outros as anteciparam ou mesmo eu. Nota-se, contudo, novidade em reuni-las e apresentá-las na respectiva conexão; bem como, parece-me, em grande parte do que se lhes exibe em apoio. De qualquer maneira, algumas das opiniões, se não são novidade, têm mui pouca probabilidade, por enquanto, de serem em geral recebidas como se o fossem Afigurasse-me, contudo, por vários indícios, dentre os quais não são menos importantes os debates sobre a reforma do Parlamento, que tanto os Conservadores como os Liberais (se me é dado continuar a chamá-los como a si se chamam) perderam a confiança nos credos políticos que professam nominalmente, enquanto nenhum dos dois lados parece ter feito qualquer progresso no sentido de conseguir outro melhor. Todavia deve ser possível semelhante doutrina melhor, que não seja simples acomodação mediante a divisão da diferença entre os dois, mas algo de mais amplo do que qualquer deles, doutrina essa que em razão da própria amplitude mereça adotada seja pelos liberais, seja pelos conservadores, sem que precisem renunciar a algo que sintam ser realmente de valia no próprio credo. Quando tantos sentem obscuramente a falta de tal doutrina, e tão poucos estão em condições de lisonjear-se por havê-la conseguido, qualquer um pode, sem presunção, oferecer quanto os seus próprios pensamentos, e a melhor parte dos que conheça de outrem, seja capaz de contribuir-lhe para a formação. ATÉ QUE PONTO AS FORMAS DE GOVERNO DEPENDEM DE ESCOLHA TODAS AS INVESTIGAÇÕES com respeito a formas de governo trazem o cunho, mais ou menos exclusivo, de duas teorias discordantes relativamente às instituições políticas, ou, para falar mais precisamente, concepções discordantes do que venham a ser instituições políticas. Espíritos há que concebem o governo como arte rigorosamente prática, que não origina qualquer outra questão que não os meios e um fim. Assimilam-se as formas de governo a quaisquer outros expedientes para a consecução de objetivos humanos. Encaram-nas como sendo totalmente um caso de invenção e ardil. Sendo devidas ao homem, supõe-se tenha ele a escolha para fazê-las ou- não, e como e de acordo com que modelo fazê-las. Conforme esta concepção, o governo é um problema, que se terá de resolver como qualquer outro assunto de negócio. O primeiro passo importa em definir os objetivos cuja promoção incumbe aos governos. O passo seguinte consiste em indagar qual a forma de governo que mais convém à realização daqueles objetivos. Tendo-nos satisfeito quanto a estes dois pontos, e determinado a forma de governo que combina o maior volume de bem com o menor de mal, resta ainda conseguir a concordância dos concidadãos, ou daqueles a quem se destinam as instituições, com a opinião a que chegamos intimamente. Encontrar a melhor forma de governo, persuadir o próximo de que é a melhor e, depois de fazê-lo, instigá-lo a insistir em realizá-lo, tal a ordem de ideias no espírito dos que adotam este modo de ver a filosofia política. Encaram uma constituição sob o mesmo prisma (desde que se leve em conta a diferença de escala) como encarariam um arado a vapor ou uma debulhadora. A estes se opõe outra classe de argumentadores políticos, que tão longe estão de assimilar certa forma de governo a uma máquina que o consideram como uma espécie de produto espontâneo, e a ciência do governo como ramo (por assim dizer) da história natural. Segundo estes, as formas de governo não dependem de escolha. Devemos aceitá-las, geralmente, como as encontramos. Não é possível instituir governos segundo planos premeditados. "Não os fazemos, surgem." Cabe-nos em relação a eles, como perante outros fatos do universo, travar conhecimento com as propriedades naturais e a eles nos adaptarmos. Esta escola considera as instituições fundamentais de um povo como uma espécie de produto orgânico da natureza e da vida desse povo; dos hábitos, instintos, e desejos e aspirações inconscientes, mas mui raramente de resoluções ponderadas. A vontade não tomou parte na questão senão indo ao encontro das necessidades do momento, por artifícios também do momento, os quais, se forem suficientemente conformes aos sentimentos e ao caráter nacionais, perduram comumente e passam a constituir mediante agregação sucessiva certa política conveniente ao povo que a possui, que seria, porém, vão tentar introduzir em qualquer outro povo cuja natureza e cujas circunstâncias não a tivessem espontaneamente originado. Difícil seria decidir qual destas doutrinas fosse a mais absurda, se supuséssemos qualquer das duas sustentada como teoria exclusiva. Todavia, os princípios que os homens reconhecem com relação a qualquer assunto controvertido constituem geralmente expoente muito incompleto da opinião que realmente esposam. Ninguém acredita que todo o mundo é capaz de fazer funcionar qualquer espécie de instituições. Leve-se a analogia com os dispositivos mecânicos tão longe quanto se quiser, ninguém escolhe nem mesmo um simples instrumento de madeira e ferro apenas por ser em si o melhor. Pondera se está de posse dos outros requisitos que se devem combinar ao instrumento para tornar-lhe o emprego vantajoso, e, em particular, se os que vão fazer uso dele possuem o conhecimento e a habilidade necessários para o manusear. Por outro lado, nem são realmente os que falam das instituições como se elas fossem uma espécie de organismos vivos, os fatalistas políticos por que se querem fazer passar. Não pretendem não disporem os homens, em absoluto, de certa margem para escolha quanto ao governo sob o qual querem viver, nem que a ponderação das consequências que defluem de várias formas de governo não seja elemento a levar-se em conta ao resolver qual delas deva merecer preferência. Todavia, embora cada lado exagere grandemente a própria teoria, por oposição ao outro, e nenhum deles se agarre sem modificação a qualquer delas, correspondem as duas doutrinas a diferença profundamente arraigada entre os dois modos de pensamento; e apesar de ser evidente que nem um nem outro esteja inteiramente certo, contudo, sendo igualmente evidente que nem um nem outro é totalmente errôneo, precisamos esforçar-nos por chegar ao fundo de cada um, valendo-nos da soma de verdade existente em qualquer deles. Lembremos então, em primeiro lugar, que as instituições políticas são obra dos homens (embora vez por outra se ignore a proposição), devendo a origem e a existência inteira à vontade humana. Não acordaram os homens em manhã de estio para com elas deparar completas. Nem se assemelham às árvores que, uma vez plantadas, "estão sempre a crescer" enquanto os homens "estão a dormir". Em qualquer estádio da existência são o que são pela atuação voluntária do homem. Como tudo mais que se deve à mão do homem, podem ser bem ou malfeitas; talvez para produzi-las, lançassem mão de julgamento e habilidade ou exatamente o contrário. Ainda mais, se um povo deixou ou, devido à pressão externa não foi capaz de estabelecer uma constituição pelo processo experimental que consiste em aplicar um corretivo a cada mal, conforme surge ou segundo os que o sofrem acumulam forças para a ele resistirem, esta demora no progresso político constitui para ele grande desvantagem, sem que, entretanto, prove não pudesse ter-lhe sido vantajoso o que se verificou vantajoso para outros, sendo-o ainda quando achar conveniente adotá-lo. Por outro lado, é preciso ter presente ao espírito que o mecanismo político é incapaz de agir por si. Sendo, de início, feito pelos homens, estes terão de fazê-lo funcionar, e até mesmo por homens vulgares. Tornasse-lhe necessária não a simples aquiescência, mas a participação ativa, que terá de ajustar-se às- aptidões e qualidades de tais homens, conforme disponíveis. Esta circunstância implica em três condições. O povo para o qual se destina a forma de governo deve inclinar-se a" aceitá-la, ou, pelo menos, não ser tão desinclinado que oponha obstáculo insuperável à sua instituição. Deve ter o desejo de fazer e ser capaz de fazer o que lhe exigirem para que o governo preencha os seus fins. Deve entender-se a palavra "fazer" como compreendendo tanto abstenções como atos. Têm de ser capazes de preencher as condições da ação e as condições de comedimento, necessárias ou à conservação em existência do governo estabelecido ou à consecução dos seus fins, cujo alcance importa em recomendá-lo. A omissão de qualquer destas condições torna uma forma de governo, por mais promissora que se tenha apresentado, inadequada ao caso particular em foco. O primeiro obstáculo, a repugnância do povo à forma particular de governo, exige pouca explanação por isso que não se pode deixá-la passar em teoria. O caso volta à baila constantemente. Somente força estranha levaria uma tribo de índios norte-americanos a submeter-se às restrições de governo regular e civilizado. Poder-se-ia dizer o mesmo, embora- um tanto menos absolutamente, dos bárbaros que invadiram o Império Romano. Foram necessários séculos de tempo e inteira alteração das circunstâncias, para trazê-los disciplinadamente à obediência regular mesmo aos próprios chefes, quando não serviam realmente sob a bandeira deles. Há nações que se não submetem voluntariamente a qualquer governo que não o de certas famílias, detentoras, desde tempos imemoriais, do privilégio de fornecer-lhes chefes. Não foi possível fazer com que certas nações suportassem um governo monárquico senão mediante conquista estrangeira; outras são por igual contrárias à república. Muita vez a dificuldade redunda, no momento, em impraticabilidade. Contudo, verificam-se igualmente certos casos em que um povo, embora não infenso à forma de governo - provavelmente até mesmo a desejando - pode mostrar-se relutante ou incapaz de preencher-lhe as condições. Será incapaz de satisfazer às que são indispensáveis à manutenção do governo até mesmo em existência nominal. Assim um povo pode preferir o governo livre, mas se por indolência, incúria, covardia ou falta de espírito público não estiver à altura dos esforços necessários para o conservar; se por ele não combater quando diretamente atacado; se se deixar enganar pelos artifícios empregados para burlá-lo dele; se for possível induzi-lo, por meio de desânimo momentâneo ou pânico temporário ou, ainda, por um acesso de entusiasmo por certo indivíduo, induzi-lo a depor as próprias liberdades aos pés mesmo de um grande homem ou confiar-lhe às mãos poderes que o tornem capaz de subverter as instituições - em todos esses casos não tem aptidão para a liberdade; e embora lhe fosse vantajoso desfrutá-la mesmo por pouco tempo, não é provável que goze dela por um longo período. Ainda mais, pode acontecer que um povo não tenha vontade ou seja incapaz de cumprir com os deveres que certa forma de governo dele exige. Um povo rude, embora até certo ponto cônscio dos benefícios resultantes de sociedade civilizada, pode ser incapaz de pôr em prática a paciência que ela exige: pode ter paixões por demais violentas ou orgulho pessoal exigente em demasia para renunciar a conflitos privados, abandonando às leis o desagravo de malefícios reais ou supostos. Em tal caso, um governo civilizado, para ser-lhe realmente vantajoso, precisa ser despótico em grau considerável: sobre ele não poderá o povo exercer qualquer controle, cabendo ao governo impor-lhe às ações enérgica limitação. Ainda mais, deve considerar-se um povo inapto para a liberdade mesmo limitada e condicional se não coopera ativamente com a lei e as autoridades públicas na repressão dos malfeitores. Um povo que está mais disposto a proteger um criminoso do que prendê-lo; que, como os hindus, jura falso testemunho para encobrir o ladrão de preferência a incomodar-se e arriscar-se à desforra por acusá-lo; que, como nalgumas nações da Europa até pouco tempo, se um homem apunhala outro na via pública, passa para o outro lado, porque incumbe à polícia tratar do assunto e é mais seguro deixar de interferir no que não lhe diz respeito; povo que se revolta ante uma execução, mas não se abala com um assassínio - merece autoridades públicas revesti das de poderes de repressão muito mais severos do que em qualquer outra parte, visto como os primeiros requisitos indispensáveis à vida civilizada nada terão que lhes sirva de base. Estes estados deploráveis de sentimentos, em qualquer povo que tenha emergido da vida selvagem, resultam, sem dúvida, usualmente de mau governo anterior, que lhes ensinou a considerar a lei como feita para outros fins que não o próprio bem dele e os administradores como inimigos piores que quantos a violem abertamente. Todavia, por menor que seja a responsabilidade que caiba àqueles em quem se desenvolveram tais hábitos mentais e muito embora seja possível finalmente conquistá-los por meio de melhor governo, entretanto, enquanto existirem, não se poderá governar um povo com essa disposição mediante o exercício de tão pouco poder sobre ele como um povo cujas simpatias estiverem do lado da lei, inclinado a dar assistência ativa ao seu funcionamento. Ainda mais, de reduzido valor serão as instituições representativas, tornando-se mesmo mero instrumento de tirania ou intriga se a generalidade dos eleitores não está suficientemente interessada no seu próprio governo para dar-lhe votos ou, se chegarem a votar, não confiram os sufrágios levados pelo interesse público, mas os vendam por dinheiro ou votem ao aceno de alguém que os controle, ou a quem desejam favorecer devido a razões particulares. A eleição popular praticada por essa forma, ao invés de ser a garantia contra os maus governos, nada mais é do que uma roda adicional na máquina deles. Além desses empecilhos morais, dificuldades mecânicas se apresentam muita vez como obstáculo insuperável às formas de governo. No mundo antigo, embora pudesse existir e muitas vezes existisse, grande independência individual ou local, nada havia de parecido com um governo popular regulado, além dos limites de uma única cidade-comuna; porque não existiam as condições físicas para a formação e propagação da opinião pública, exceto entre os que era possível reunir para discutir questões públicas na mesma ágora. Em geral pensam que este obstáculo desapareceu com a adoção do sistema representativo. Para superá-lo, porém, completamente, era necessária a imprensa, equivalente real, embora não adequado em todos os sentidos, do Pnix ou do Fórum (Pnix, lugar de encontro da assembleia ateniense; Fórum, a principal praça de Roma). Existiram estados da sociedade nos quais era impossível mesmo a uma monarquia de extensão territorial um tanto grande subsistir, dividindo-se inevitavelmente em pequenos principados, ou mutuamente independentes, ou mantidos juntos por meio de laços precários como o feudal, porque a máquina da autoridade não era bastante perfeita para executar ordens a grande distância da pessoa do governante. Este dependia principalmente da fidelidade voluntária para a obediência até mesmo do próprio exército, nem existiam meios de obrigar o povo a pagar volume suficiente de impostos a fim de manter a força necessária à compulsão da obediência através de extenso território. Nestes e em outros casos semelhantes deve entender-se que a importância do empecilho pode ser maior ou menor. Pode ser tão grande que cause o mau funcionamento da forma de governo, sem que lhe impossibilite a existência ou impeça que venha a ser praticamente preferível a qualquer outro que se possa instituir. Esta última questão depende principalmente de uma consideração a que ainda não chegamos - as tendências das várias formas de governo no sentido de fomento ao progresso. Acabamos de examinar as três condições fundamentais da adaptação das formas de governo ao povo que por elas terá de reger-se. Se os que sustentam a teoria política que se pode chamar de naturalista querem somente insistir na necessidade dessas três condições, se querem apenas dizer que nenhum governo é capaz de existir permanentemente se não satisfizer às duas primeiras condições e até certo ponto à terceira, a doutrina que professam, assim limitada, é incontestável. Mas parece-me insustentável tudo quanto exceder ao que fica dito. Tudo quanto nos dizem relativamente à necessidade de base histórica para as instituições, de ficarem em harmonia com os costumes e o caráter nacionais, e outras alegações semelhantes, ou coincide com o que se disse acima ou é fora de propósito. Observa-se abundância de simples sentimentalidade em relação a estas e outras frases semelhantes, muito além da substância do significado racional nelas contido. Considerados, porém, sob ponto de vista prático, estes pretensos requisitos das instituições políticas constituem simplesmente outras tantas facilidades para a realização daquelas três condições. Quando se abre o caminho a uma instituição ou grupo de instituições, por meio das opiniões, gostos e hábitos do povo, a este se induz mais facilmente a aceitá-las, mas aprenderá com maior rapidez e ficará, desde o início, mais inclinado a pôr em prática o que se exige dele, não só para a preservação das instituições como também para induzi-lo a ação tal que as torne capazes de produzir os melhores resultados. Muito se enganaria qualquer legislador que não modelasse as medidas de sorte a tirar vantagem de hábitos e sentimentos pré-existentes se acaso os encontrar. Por outro lado, será exagero elevar estes simples auxílios e facilidades a condições necessárias. Induz-se mais facilmente o homem a fazer aquilo a que está já acostumado, fazendo-o com facilidade maior; aprende também, contudo, a fazer o que é novo. A familiaridade é de grande auxílio, mas a insistência em certa ideia torna-a familiar, mesmo quando estranha a princípio. Deparam-se inúmeros exemplos de ansiedade de um povo inteiro por algo que ainda não experimentou. A porção de capacidade que um povo possui para realizar o que é novo e adaptar-se a novas circunstâncias constitui, em si, um dos elementos da questão. Nesse predicado muito diferem as nações umas das outras, bem como os diferentes estádios de civilização. Com relação à aptidão de certo povo em preencher as condições de cada forma de governo não é possível estabelecer-se qualquer regra geral. Devemo-nos guiar pelo conhecimento do povo em apreço e pelo julgamento prático geral e sagacidade. Será também necessário não perder de vista outra consideração. Pode acontecer que um povo não se encontre preparado para instituições boas; mas faz parte do preparo inflamar neles o desejo de consegui-las. Recomendar e encarecer certa instituição ou forma de governo, e apresentar-lhes as vantagens sob a luz mais favorável constitui uma das maneiras, muita vez a única ao alcance, de educar o espírito da nação não só para aceitar ou solicitar, mas até para pôr em execução certa instituição. De que meio dispunham os patriotas italianos, durante a geração atual e anterior para prepararem o povo italiano para a liberdade com a unidade senão instigando-os a exigi-la? (J. S. Mill escrevia pouco depois de ter o reino do Piemonte, ao norte da Itália, conseguido finalmente (1859-61) por meios militares e diplomáticos, impor a unidade à maior parte da península italiana, - o que o nacionalismo revolucionário dos patriotas italianos desde a Revolução Francesa não pudera assinalada mente realizar. Completou-se a unificação com a ocupação de Veneza em 1866, de Roma em 1870 e do Trentino em 1918). Contudo os que metem ombros a semelhante missão precisam estar devidamente imbuídos não só dos benefícios da instituição ou da forma de governo que recomendam, mas têm de possuir a capacidade moral, intelectual e ativa, exigida para levá-la a efeito - de sorte que evitem, se possível, despertar desejos muito além do que é possível. O resultado de quanto se disse até agora é que, dentro dos limites fixados pelas três condições tantas vezes aludidas, as instituições e formas de governo são questão de escolha. Investigar qual a melhor forma de governo em abstrato (conforme se diz) não constitui emprego quimérico, mas altamente prático do intelecto científico; e introduzir em qualquer país as melhores instituições que sejam capazes, no estado presente desse país e em qualquer grau tolerável, de satisfazer-lhe às condições, é um dos objetivos mais racionais a que se possa dedicar o esforço prático. Tudo quanto se possa dizer no sentido de desacreditar a eficácia da vontade e dos propósitos humanos em questões de governo também seria possível dizer em qualquer outra de suas aplicações. Em tudo quanto existe, observam-se limites muito rigorosos ao poder humano. Só lhe é dado agir manejando uma ou mais de uma força da natureza. Devem, portanto, existir forças suscetíveis de aplicação ao objetivo em vista, e estas somente atuarão conforme as suas próprias leis. Não é possível fazer um rio correr para trás, mas por isso não vamos dizer que "não se fazem mas surgem" as rodas de água. Na política, assim também em mecânica, a força que mantém o motor em funcionamento tem de procurar-se fora do mecanismo; e se não estiver à mão ou se mostrar insuficiente para superar os obstáculos que forem de esperar razoavelmente, o dispositivo não funcionará. Não se trata, no caso, de peculiaridade da arte política, significando simplesmente dizer-se que está sujeita às mesmas limitações e condições que imperam em qualquer outra arte. Neste ponto deparamos com outra objeção ou com a mesma sob forma diferente. As forças, argumenta-se, das quais dependem os fenômenos políticos mais importantes não se submetem à direção de políticos e filósofos. O governo de um país, afirma-se, está fixado e determinado, sob todos os aspectos de relevo, de antemão pelo estado do país em relação à distribuição dos elementos de poder social. O poder mais forte na sociedade, seja qual for, conseguirá a autoridade de governar, e qualquer alteração da constituição política não será duradoura se não for precedida ou acompanhada de distribuição alterada do poder na própria sociedade. A nação não pode, portanto, escolher a forma de governo. É capaz de escolher os simples detalhes e a organização prática, mas a essência do conjunto, a sede do poder supremo, determinam-nas as circunstâncias sociais. Admito de imediato a existência de grande porção de verdade em semelhante doutrina; mas para utilizá-la, necessário se torna reduzi-la a expressão distinta e limites próprios. Quando se diz que o poder mais forte da sociedade ficará ainda mais forte no governo, o que se quer dizer por poder? Não serão nervos e tendões, senão a única forma de governo que estivesse em condições de existir seria a democracia pura. Se juntarmos à simples força muscular dois outros elementos, a propriedade e a inteligência, ficaremos mais próximos da verdade, mas ainda longe de alcançá-la. Não só um número menor mantém em sujeição número maior, mas o maior número pode ter preponderância em propriedade e individualmente em inteligência, conservando-se, entretanto, em submissão, à força ou por outro modo qualquer, à minoria sob qualquer dos dois aspectos inferior. Para que se tornem politicamente influentes estes vários elementos do poder, é preciso que se organizem; e a vantagem da organização está necessariamente com aqueles que estão de posse do governo. Um partido muito mais fraco em todos os outros elementos do poder é capaz de preponderar grandemente quando se lançam à concha da balança as forças do governo, e somente por este meio preponderar por muito tempo, embora, sem dúvida, um governo assim situado se encontre nas condições que em mecânica se chamam de equilíbrio instável, à semelhança de objeto equilibrado pela extremidade mais delgada, que, uma vez deslocado, tende cada vez mais a afastar-se do estado anterior ao invés de aproximar-se dele. Todavia, existem objeções ainda mais fortes a esta teoria do governo nos termos em que geralmente a formulam. Na sociedade o poder que revela qualquer tendência para converter-se em poder político não é quiescente, meramente passivo, mas poder ativo - em outras palavras, poder realmente exercido; o que importa em dizer, porção mui reduzida de todo o poder em existência. Falando-se politicamente, grande parte de todo poder consiste em vontade. Como será então possível computar os elementos do poder político, se se omite do cômputo uma parte qualquer que atua sobre a vontade? Pensar que, como os que exercem o poder na sociedade ao fim exercem o de governar, não havendo, portanto, qualquer vantagem na tentativa de influir sobre a constituição do governo atuando sobre a opinião, importa em esquecer que a própria opinião é, de per si, uma das maiores forças sociais ativas. Uma pessoa que possua certa crença é poder social igual a noventa e nove que têm apenas interesses. Os que conseguem dar origem à geral persuasão de que certa forma de governo, ou fato social de qualquer espécie, merece preferência, deram quase o passo mais importante para trazer-lhe em apoio as forças da sociedade. No dia em que o protomártir deixou-se lapidar até a morte em Jerusalém, enquanto o que havia de ser o Apóstolo dos Gentios estava perto "consentindo que o matassem", alguém teria suposto que o partido do lapidado se tornasse algum dia o poder mais forte da sociedade? (Refere-se a Santo Estevão, o primeiro mártir cristão, e a S. Paulo, que como Saulo, acompanhava a execução daquele (atos, 7:54-60)). E o resultado não veio provar que assim o era? Porque era deles a crença mais poderosa dentre as que então existiam. O mesmo elemento tornou um monge de Wittenberg (Martin Lutero, 1483-1546, que desafiou em Worms o imperador e os príncipes alemães recusando abjurar os próprios ensinamentos. Essa assembleia assinala o início da Reforma na Alemanha) na reunião da Dieta de Worms, força social mais poderosa do que o Imperador Carlos V e todos os príncipes aí reunidos. Mas, poder-se-á dizer, são casos que diziam respeito à religião, e as convicções religiosas são algo de peculiar na força que possuem. Vamos então tomar um caso meramente político, no qual a religião, até onde a interessava, estava do lado mais fraco. Se alguém quiser convencer-se de que o pensamento especulativo forma um dos elementos principais do poder social, reflita sobre a época em que raramente se encontrava um trono na Europa que não estivesse nas mãos de rei liberal e reformador, imperador liberal e reformador e, caso ainda mais estranho, papa liberal e reformador: a época de Frederico o Grande, de Catarina II, de José II, de Pedro Leopoldo, de Benedito XIV, de Ganganelli, de Pombal, de Aranda; (O grupo indicado era de estadistas mais ou menos sob a influência do Iluminismo. Todos eles instituíram reformas sociais e reforçaram a autoridade temporal com atitude marcadamente contrária à Ordem dos Jesuítas) quando os próprios Bourbons de Nápoles eram liberais e reformadores, e todos os espíritos ativos da nobreza da França estavam dominados pelas ideias que pouco depois haviam de custar-lhes tão caro. (Mill faz supor que as ideias do Iluminismo contribuíram para preparar o caminho da Revolução Francesa (1789-1793)). Com toda certeza exemplo concludente de como o simples poder físico ou econômico longe está de ser o poder social inteiro. Não é por meio de qualquer alteração na distribuição de interesses materiais mas pela divulgação de convicções morais que se chegou a abolir a escravidão africana no Império Britânico e em qualquer outra parte do mundo. Os servos da Rússia devem a emancipação, se não a um sentimento de dever, pelo menos à generalização de opinião mais esclareci da relativamente ao verdadeiro interesse do Estado. O que os homens pensam determinar-lhes a maneira de agir; e embora as persuasões e convicções do homem médio sejam determinadas em muito maior grau mais pela posição pessoal que pela razão, não pequeno poder exercem sobre ele as persuasões e convicções daqueles cuja posição pessoal é diferente e a autoridade conjunta das pessoas instruídas. Por conseguinte, quando se consegue trazer os instruídos em geral a reconhecerem certo arranjo social, ou instituição política ou outra qualquer, como boa e outra como má, uma desejável, outra condenável, já se fez muito para proporcionar a uma ou retirar à outra a preponderância de força social que lhe permite subsistir. E a máxima que reza ser o governo de um país o que as forças sociais em existência o levam a ser mostra-se apenas verdadeira no sentido em que favorece, ao invés de desanimar, a tentativa de proceder à escolha racional entre todas as formas de governo praticáveis nas condições existentes da sociedade. II CRITÉRIO PARA BOA FORMA DE GOVERNO PODENDO TRAZER-SE Á ESCOLHA a forma de governo de qualquer país dado (dentro de certas condições definidas), devemos passar agora a considerar qual o exame que deve presidir à escolha: quais as características distintivas da forma de governo que melhor convém para a promoção dos interesses de uma sociedade qualquer. Antes de atacar esta investigação, parecerá necessário determinar quais as funções próprias ao governo; visto como, sendo o governo apenas um meio, a escolha dos meios deve depender da sua adaptação ao fim. Esta maneira, porém, de enunciar o problema facilita menos a investigação do que seria dado supor, não chegando mesmo a descortinar a questão em toda a sua amplitude. Porque, em primeiro lugar, as funções peculiares ao governo não são fixas, mas diversas em diferentes estados da sociedade - muito mais extensas em estado atrasado do que em um desenvolvido. E, em segundo lugar, não é possível avaliar suficientemente o caráter de um governo ou de um grupo de instituições políticas se limitarmos a nossa atenção à esfera legítima das funções governamentais. Porque embora a excelência de um governo se circunscreva a essa esfera, a sua nocividade, infelizmente, não o está. Toda espécie e grau de malefícios suscetíveis de acabrunharem o homem podem infligir-lhe os maus governos; e nenhum dos bens de que é capaz a existência social pode levar-se avante se a constituição do governo não for compatível com a sua realização ou lhe permita o campo necessário. Sem falar dos efeitos indiretos, a intromissão direta das autoridades públicas só tem como limites necessários os da existência humana; e pode considerar-se ou avaliar-se a influência do governo sobre o bem-estar da sociedade referindo-a a nada menos do que o conjunto dos interesses da humanidade. Vendo-nos assim forçados a colocar diante de nós como estalão do governo bom ou mau objeto tão complexo como os interesses conjugados da sociedade, de bom grado tentaríamos alguma espécie de classificação dos interesses, a qual, apresentando-os ao espírito em grupos definidos, fornecesse indicações das qualidades por meio das quais certa forma de governo convém à promoção desses vários interesses respectivamente. Seria muito vantajoso se pudéssemos dizer que o bem da sociedade consiste em tais ou quais elementos; um desses elementos exige tais condições, outro outras diferentes; deverá então ser o melhor possível o governo que reúna, em maior grau, todas essas condições. Construir-se-ia assim a teoria do governo mediante os teoremas distintos relativos aos elementos que entram na composição de bom estado da sociedade. Infelizmente não é tarefa fácil enumerar e classificar os elementos do bem-estar social de sorte a chegar-se à formulação desses teoremas. A maior parte dos que, na geração atual ou na anterior, se dedicaram à filosofia da política com espírito amplo, sentiram a importância de tal classificação, mas as tentativas levadas a efeito estão ainda limitadas, pelo que sei, a um único passo. A classificação começa e termina com a divisão das exigências da sociedade entre as duas categorias de Ordem e Progresso (conforme a expressão de Augusto Comte); e Permanência e Progressão, nas palavras de Coleridge. Esta divisão é plausível e sedutora por causa da oposição aparentemente nítida entre os dois membros e a notável diferença entre os sentimentos para os quais apelam. Mas receio que (embora admissível para fins de exposição popular) a distinção entre Ordem ou Permanência e Progresso, empregada para definir as qualidades necessárias a um governo, não seja científica nem correta. Por que, em primeiro lugar, o que é Ordem, o que é Progresso? Quanto ao Progresso não há dificuldade, ou nenhuma aparente à primeira vista. Quando se fala de Progresso como uma das necessidades da sociedade humana, pode supor-se que signifique Melhoramento. Apresenta-se como ideia toleravelmente distinta. Mas o que é Ordem? Às vezes significa mais, outras, menos, mas dificilmente o conjunto de tudo quanto a sociedade humana tem necessidade exceto o melhoramento. Na acepção mais restrita, Ordem quer dizer obediência. Diz-se que um governo mantém a ordem se consegue ver-se obedecido. Existem, porém, vários graus de obediência, nem todos eles sendo recomendáveis. Somente despotismo absoluto exige do cidadão obediência incondicional a todas as ordens emanadas das pessoas que detêm o poder. Devemos pelo menos restringir a definição às ordens gerais, promulgadas sob a forma intencional de leis. A ordem assim entendida exprime, sem dúvida, atributo indispensável do governo. Os que não forem capazes de ver obedecidas as suas ordens não se pode dizer que governem. Mas, embora seja condição necessária, não constitui objetivo do governo. O fazer-se obedecido é requisito para que realize algum outro objetivo. Temos ainda de procurar qual este outro objetivo que o governo tem de realizar, abstratamente em separado da ideia de progresso, e que tem de cumprir-se em qualquer sociedade, seja estacionária, seja progressista. Em sentido um tanto mais extenso, a Ordem significa a manutenção da paz pela abolição da violência privada. Diz-se existir Ordem quando a gente de um país deixou de levar avante as controvérsias empregando a força privada, tendo adquirido o hábito de reportar a decisão de controvérsias ou o desagravo de ofensas às autoridades públicas. Todavia, neste emprego mais lato do termo, tanto como no anterior mais limitado, a Ordem exprime mais uma das condições do governo do que o objetivo ou o critério de sua excelência. Porquanto pode estar bem estabelecido o hábito de submissão ao governo e de reportar-lhe todos os assuntos controversos, e, contudo, a maneira por que o governo deles se ocupa e de outros ainda que lhe interessam, pode diferir pelo intervalo inteiro que separa o melhor do pior possível. Se pretendemos compreender na ideia de Ordem tudo quanto a sociedade exige do governo que não esteja incluído na ideia de Progresso, devemos definir a Ordem como a conservação de todas as espécies e quantidades de bens já existentes, e o Progresso como consistindo em aumentá-los. Tal distinção não compreende em uma ou outra seção tudo quanto é de exigir-se promova o governo. Mas, assim encarado, não oferece qualquer fundamento para uma filosofia de governo. Não podemos dizer que, constituindo-se certa forma de governo, certas medidas devem tomar-se para a Ordem e outras para o Progresso; visto como as condições de Ordem, no sentido ora indicado, e as do Progresso não são opostas, mas as mesmas. As forças que tendem a preservar o bem social já existente são as mesmas que lhe promovem o incremento, e vice-versa, a única diferença consistindo em que este último objetivo exige maior intensidade dessas forças do que o primeiro. Quais são, por exemplo, as qualidades dos cidadãos individualmente que levam em maior grau à conservação da soma total da boa conduta, da boa administração, do sucesso e da prosperidade já existentes na sociedade? Todos concordarão em que tais qualidades são diligência, integridade, justiça e prudência. Não são essas, contudo, dentre todas as qualidades, as que melhor conduzem ao melhoramento e não será em si o maior dos melhoramentos o desenvolvimento de qualquer dessas virtudes na comunidade? Se assim for, quaisquer qualidades no governo capazes de promoverem diligência, integridade, justiça e prudência conduzem igualmente à permanência e à progressão; somente será necessário maior volume dessas qualidades para que a sociedade se torne decisivamente progressiva ao invés de conservá-la tão-só permanente. Ainda mais, quais os atributos particulares dos seres humanos que parece referirem-se mais especialmente ao Progresso, sem sugerirem tão diretamente as ideias de Ordem e Preservação? São principalmente as qualidades de atividade mental, iniciativa e coragem. Não são, porém, todas essas qualidades tão inteiramente exigidas para a conservação dos bens que possuímos tanto quanto para aumentá-los? Se algo de certo existe nos negócios humanos é que as aquisições valiosas só se podem preservar por meio da continuidade das mesmas energias que as originaram. Tudo quanto se deixa entregue a si mesmo entra inevitavelmente em decadência. Aqueles a quem o êxito leva a abandonar os hábitos de solicitude e ponderação, e a disposição de enfrentar incômodos, raramente conservam por muito tempo a boa sorte no ponto culminante. O atributo mental que parece exclusivamente dedicado ao Progresso, sendo o auge das tendências nesse sentido, é a originalidade ou a invenção. Entretanto, esse elemento não mais é necessário à Permanência, visto como, nas mudanças inevitáveis dos negócios humanos, surgem continuamente novos inconvenientes e perigos, aos quais se tem de fazer frente por meio de novos recursos e artifícios a fim de que tudo marche pelo menos tão bem como anteriormente. Em consequência, quaisquer qualidades que tendem em um governo a animar a atividade, a energia, a coragem e a originalidade constituem condições tanto de Permanência quanto de Progresso; com a circunstância de que o primeiro objetivo as exigirá em menor grau do que o último. Passando agora dos requisitos mentais às necessidades exteriores e objetivas, é impossível assinalar qualquer dispositivo em política ou arranjo dos negócios sociais, que conduza somente à Ordem ou somente ao Progresso; o que tender a qualquer dos dois, a ambos promoverá. Tome-se, por exemplo, a instituição comum da polícia. A ordem é o objetivo que parece mais imediatamente visado pela eficiência desta parte da organização social. Entretanto, se é eficaz promover a Ordem, isto é, se reprime o crime e faz com que qualquer um sinta garantidas a pessoa e a propriedade, poderá qualquer situação conduzir melhor ao Progresso? A maior segurança para a propriedade é uma das principais condições e causas de produção maior, que constitui o Progresso sob o aspecto mais familiar e mais vulgar. A maior repressão ao crime limita as tendências que levam ao crime, e aí está o Progresso em sentido um tanto mais elevado. Se o indivíduo se sentir livre dos cuidados e ansiedades de um estado de proteção imperfeita, as suas faculdades ficarão em condições de se aplicarem a qualquer novo esforço em prol da melhoria do próprio estado e do de terceiros, enquanto a mesma causa, vinculando-o à existência social e fazendo com que não mais veja inimigos presente ou prováveis nos seus semelhantes, promove todos os sentimentos de bondade e de solidariedade para com o próximo e. interesse pelo bem-estar geral da sociedade, que formam parte de tão grande importância no melhoramento social. Considere-se, ainda mais, um caso familiar como um bom sistema de impostos e finanças. Em geral ter-se-ia de classificá-lo como pertencendo à província da Ordem. Entretanto, o que poderia melhor conduzir ao Progresso? O sistema financeiro que promova aquela conduz, pelas suas próprias vantagens, a este. A economia, por exemplo, conserva igualmente as reservas existentes da riqueza nacional e favorece a criação de mais riquezas. Justa distribuição de encargos, exibindo a todos os cidadãos exemplo de moralidade e boa consciência aplicadas a acomodações difíceis, bem como a prova do valor que as mais altas autoridades lhes atribuem, tende grandemente à educação dos sentimentos morais da comunidade não só quanto à força, mas também quanto à discriminação. Se se lançam impostos de tal maneira que se não criem dificuldades à diligência nem tão pouco se interfira desnecessariamente com a liberdade dos cidadãos, promove-se não só a conservação, mas o aumento da riqueza nacional, animando utilização mais ativa das faculdades individuais. E vice-versa, todos os erros em finanças e impostos que criam obstáculos ao melhoramento do povo em riqueza e moral tendem também, se em teor suficientemente sério, a empobrecê-lo e desmoralizá-lo positivamente. Em resumo, é de garantir-se universalmente que, quando se compreendem a Ordem e a Permanência no sentido mais geral, para a estabilidade das vantagens existentes, os requisitos do Progresso coincidem com os da Ordem em maior grau; os da Permanência são simplesmente os do Progresso em medida um tanto mais limitada. Em apoio da afirmativa que a Ordem é intrinsecamente diversa do Progresso, e que a conservação do bem existente e a aquisição de bens adicionais são suficientemente distintos para fornecerem base de classificação fundamental, talvez alguém nos lembre que o Progresso possivelmente exista a expensas da Ordem - enquanto estamos adquirindo ou esforçando-nos por adquirir bem de uma espécie, perdemos terreno em relação a outros; assim pode haver progresso em riqueza, enquanto se verifica deterioração em virtude. Concedendo-o, resulta não que o Progresso seja genericamente diverso da Permanência, mas que a riqueza difere da virtude. O Progresso é Permanência mais algo mais; e a isso não se responde dizendo que ele por um lado não implica em Permanência em tudo. Nem o Progresso em parte implica em Progresso em tudo. O Progresso de qualquer espécie compreende a Permanência nessa mesma espécie; sempre que se sacrifica a Permanência a certa espécie particular de Progresso, outro Progresso ainda fica mais sacrificado; e se não valer à pena o sacrifício, não somente ter-se-á abandonado o interesse da Permanência, mas ter-se-á mal interpretado o interesse geral do Progresso. Se estas ideias impropriamente contrastadas fossem suscetíveis de qualquer aplicação com o fito de proporcionarem um primeiro começo de precisão científica à noção de bom governo, seria mais correto filosoficamente abandonar a definição da palavra "Ordem", dizendo ser melhor o governo que mais conduz ao Progresso. Porque este compreende a Ordem, mas esta não inclui aquele. O Progresso é maior grau daquilo de que a Ordem é menor grau. A Ordem em qualquer outro sentido significa tão-só parte dos requisitos preliminares do bom governo, mas não a ideia ou a essência. A Ordem encontrará lugar mais conveniente entre as condições do Progresso, desde que, se quisermos aumentar o que temos de bom, nada mais indispensável do que cuidar devidamente do que temos já em mão. Se visamos a maiores riquezas, a primeira regra deverá ser não desperdiçar inutilmente os meios de que dispomos. A Ordem, assim considerada, não constitui objetivo adicional a reconciliar-se com o Progresso, mas parte e meio dele mesmo. Se o ganho em um sentido for adquirido por perda mais que equivalente no mesmo sentido ou em outro qualquer, não haverá Progresso. A capacidade de conduzir ao Progresso, assim compreendida, inclui a completa excelência de um governo. Todavia, embora defensável metafisicamente, tal definição do critério de um bom governo não se mostra adequada porque, embora encerre a verdade por inteiro, lembra apenas parte. O termo "Progresso" sugere movimento para a frente, enquanto neste caso a sua significação corresponde quase a impedir a volta para trás. Exatamente as mesmas causas sociais - crenças, sentimentos, instituições, e práticas - são tão necessárias para impedir que a sociedade retrograde como para produzir novo avanço. Mesmo que não fosse de esperar qualquer melhoramento, nem por isso a vida deixaria de ser luta incessante contra motivos de deterioração; conforme mesmo agora o é. A Política, segundo os antigos a concebiam, nisto consistia totalmente. A tendência natural dos homens e de suas obras era degenerar, a qual, contudo, por meio de boas instituições virtuosamente administradas, seria possível neutralizar por prazo indefinido. Embora não mais se sustente essa opinião, embora a maior parte dos homens professe, na época atual, credo contrário, acreditando que a tendência geral, em conjunto, é no sentido do melhoramento, é preciso não esquecer que existe fluxo incessante e contínuo nos negócios humanos para o pior, o qual consiste das loucuras, vícios, negligências, indolências e indiferenças dos homens; fluxo esse que se consegue controlar e impedir que tudo arraste tão-só por meio dos esforços que algumas pessoas fazem constantemente e outras, por intervalos, na direção de objetivos bons e dignos. Adquire-se ideia muito insuficiente da importância da luta que se trava para melhorar e elevar a natureza humana e a vida supondo que o principal valor dessa luta consiste no volume de melhoramento real que assim se consegue, devendo ser a consequência da cessação desses esforços apenas ficarmos como estamos. Diminuição mui pequena desses esforços não só poria termo ao melhoramento, mas faria voltar a tendência geral para deterioração que, uma vez começa da, continuaria com rapidez crescente tornando-se cada vez mais difícil de obstar-se, até alcançar estádio muita vez verificado na história, e no qual se arrastam porções muito grandes dos homens - quando dificilmente algo menos que poder sobre-humano parece suficiente para inverter a direção dos acontecimentos, iniciando novo movimento ascendente. Tais razões tornam a palavra Progresso tão imprópria quanto os termos Ordem e Permanência para se tornarem fundamento da classificação dos requisitos de forma de governo. A antítese básica expressa por essas palavras não está propriamente no significado, mas nos tipos do caráter humano que lhes correspondem. Sabemos que há certos espíritos em que predomina a precaução enquanto em outros se observa a ousadia: em alguns, o desejo de evitar comprometer o que se possui já patenteia sentimento mais forte do que o que leva a melhorar o antigo e adquirir vantagens novas; enquanto outros existem que se inclinam em sentido contrário, mostrando-se mais ansiosos pelo bem futuro do que cuidadosos com o atual. A estrada para um e outro fim é a mesma, mas uns e outros são capazes de se afastarem dela em direções opostas. Esta consideração reveste-se de importância quando se compõe o pessoal de qualquer corpo político: preciso se torna nele incluir pessoas de um e de outro tipo, a fim de moderar as tendências de cada um, no que tiverem de excessivo, pela proporção conveniente do outro. Não há necessidade de provisão expressa para assegurar este objetivo, contanto que se tome o cuidado de nada admitir que lhe seja contrário. A mistura natural e espontânea da mocidade com a velhice, daqueles cuja reputação está formada e dós que ainda estão para formá-la, em geral responderá suficientemente a este propósito, se não se perturbar este equilíbrio natural por meio de regulação artificial. Desde que a distinção mais comumente adotada para a classificação das exigências sociais não possui as propriedades necessárias a tal fim, somos forçados a procurar qualquer outra distinção orientadora que melhor se adapte a tal objetivo. Semelhante direção parece poder resultar das considerações que passo agora a formular. Se a nós mesmos perguntarmos de que causas e condições depende o bom governo em todos os sentidos, desde o mais humilde até o mais elevado, verificaremos que a principal dentre todas, a que transcende a todas as demais, consiste nas qualidades dos seres humanos que compõem a sociedade sobre a qual se exerce o governo. Podemos considerar, como primeiro exemplo, a administração da justiça; com tanta maior conveniência, visto como não existe parte alguma dos negócios públicos na qual o simples mecanismo, as regras e dispositivos para a condução dos detalhes da operação sejam de importância tão transcendente. Entretanto, até mesmo estas cedem em importância às qualidades dos agentes humanos empregados. Qual será a eficácia das regras de processo em assegurarem os objetivos da justiça se as condições morais do povo forem tais que as testemunhas mintam em geral e os juízes recebam propinas? Ainda mais, como podem as instituições proporcionar boa administração municipal se se verificar tal indiferença para a questão que os mais capazes de administrar com honestidade e proficiência não se possam induzir a servir, abandonando-se tais deveres aos que se encarreguem deles por terem algum interesse privado a promover? De que valerá o sistema representativo mais amplamente popular se os eleitores não se preocuparem em escolher o melhor membro para o parlamento, mas votem no que gastar mais dinheiro para eleger-se? Como pode uma assembleia representativa trabalhar proveitosamente se for possível comprar-lhe os membros, ou se a irritabilidade do temperamento, não corrigida pela disciplina pública ou pelo próprio controle privado, torná-los incapazes de deliberar calmamente, lançando mão da violência em pleno recinto ou atirando uns nos outros com fuzis? Ainda mais, como pode o governo ou qualquer reunião prosseguir de maneira tolerável com pessoas tão invejosas que, se um deles parece capaz de ser bem-sucedido seja no que for, os que com ele deviam cooperar formam combinação tácita para que fracasse? Sempre que a disposição geral do povo é tal que cada indivíduo só considera como interesses seus os egoístas, não insistindo na parte que lhe cabe no interesse geral nem com ela se preocupando, torna-se impossível, em semelhante situação, qualquer bom governo. Não será preciso dar exemplos da influência das deficiências de inteligência na obstrução de todos os elementos de bom governo. O governo consiste em atos levados a efeito por seres humanos; e se os agentes, ou os que os escolhem, ou aqueles perante os quais os agentes são responsáveis, ou os espectadores cuja opinião deve influir sobre todos eles e controlá-los, são simples massas de ignorância, estupidez, e preconceito pernicioso, qualquer operação do governo será malsucedida, enquanto que, na proporção em que os homens se elevam acima desses padrões, assim também o governo melhorará em qualidade, até o ponto da excelência atingível, mas que se não pode alcançar em qualquer parte em que os funcionários do governo, embora indivíduos de virtude e intelecto superiores, não estejam envolvidos em atmosfera de opinião pública virtuosa e iluminada. O primeiro elemento de bom governo sendo, portanto, a virtude e a inteligência dos seres humanos que compõem a comunidade, o ponto mais importante de excelência que qualquer forma de governo pode possuir consiste na promoção da virtude e da inteligência do próprio povo. A primeira indagação com relação a qualquer instituição política consiste em averiguar até onde tende a despertar nos membros da comunidade as diversas qualidades desejáveis, morais e intelectuais; ou antes (seguindo a classificação mais completa de Bentham) morais, intelectuais e ativas. O governo que melhor o conseguir mui provavelmente será o melhor em todos os outros respeitos, desde que é destas qualidades que depende, na extensão em que existem no povo, toda possibilidade de excelência nas operações práticas do governo. Pode considerar-se, portanto, como um dos critérios da excelência do governo, o grau em que tende a aumentar a soma de boas qualidades dos governados, coletiva ou individualmente; visto como, além de ser o bem-estar de todos o objeto único do governo, as boas qualidades do povo suprem a força motriz que faz funcionar o mecanismo. Desse modo fica como outro elemento componente do mérito do governo a qualidade da própria máquina; isto é, o grau em que se mostra capaz de tirar vantagem da soma de boas qualidades que existam em qualquer ocasião, fazendo-as contribuir para os objetivos adequados. Voltemos ainda uma vez à questão do poder judiciário como exemplo. Sendo dado um sistema judiciário, a excelência de administração da justiça está na razão composta da dignidade dos homens que formam os tribunais e do valor da opinião pública que os controla e sobre eles influi. Contudo, toda diferença entre um sistema judiciário bom e outro mau está nos meios adotados para fazer com que os valores morais e intelectuais existentes na comunidade exerçam influência sobre a administração da justiça, tornando-a devidamente eficaz nos resultados. As combinações para conseguir que a escolha dos juízes obedeça aos mais altos padrões de virtude e inteligência; as formas salutares de processo; a publicidade que permite observação e crítica de tudo quanto estiver errado; a liberdade de discussão e censura através da imprensa; a maneira de ouvir as testemunhas, conforme for bem ou mal adaptada à revelação da verdade; as facilidades, seja qual for o volume, de obter-se acesso aos tribunais; os dispositivos destinados a descobrir os crimes e prender os criminosos - tudo isto não constitui o poder, mas o mecanismo que traz o poder em contato com o obstáculo; e o mecanismo por si só não tem ação, mas sem ele o poder, por mais amplo que seja, ficaria desperdiçado e sem efeito algum. Distinção semelhante existe quanto à constituição dos departamentos executivos da administração. O mecanismo é bom quando se prescrevem os exames convenientes para a habilitação dos funcionários, as regras apropriadas à sua promoção; quando se distribuem os assuntos de maneira adequada entre os que devem tratar deles, quando se estabelece ordem conveniente e metódica para a operação, quando se conserva registro correto e inteligível depois de terminado o processo; quando cada indivíduo sabe pelo que é responsável, sendo conhecido aos demais como responsável; quando se provêm os controles mais bem imaginados contra a negligência, o favoritismo ou corrupção em qualquer dos atos de um departamento qualquer. Os controles políticos, contudo, não agirão por si mais do que uma rédea será capaz de dirigir um cavalo sem o cavaleiro. Se os funcionários fiscalizadores forem tão corruptos ou tão negligentes como os que eles devem fiscalizar, e se o público, mola principal de toda a máquina fiscalizadora, for demasiado ignorante, passivo, descuidado ou desatento ao papel que tem de desempenhar, pouco benefício derivar-se-á do melhor aparelho administrativo. Entretanto, um bom aparelho é sempre preferível ao mau. Permite ao poder que se move ou fiscaliza insuficientemente, conforme existir, agir com a maior vantagem; e sem ele não seria suficiente qualquer soma de poder de movimento ou de fiscalização. Por exemplo, a publicidade não impede o mal nem estimula o bem se o público não prestar atenção ao que se faz; mas sem publicidade, como poderia impedir ou animar o que não lhe permitem ver? A constituição idealmente perfeita de uma repartição pública é aquela em que o interesse do funcionário coincide inteiramente com a sua obrigação. Não existe sistema que o consiga, mas ainda menos poder-se-á consegui-lo sem sistema, convenientemente imaginado para o fim em vista. O que dissemos com respeito aos arranjos para a administração detalhada do governo ainda se torna mais evidentemente verdadeiro quanto à sua constituição geral. Qualquer governo que tenha em mira ser bom consiste de certa porção das boas qualidades existentes nos membros individuais da comunidade para a conduta dos negócios coletivos. Uma constituição representativa destina-se a trazer o padrão geral de inteligência e honestidade existente na comunidade, bem como a inteligência e a honestidade individuais dos seus membros mais sensatos, a interessar-se mais diretamente pelo governo, investindo-os de maior influência do que teriam em geral sob qualquer outro modo de organização, embora sob a influência qualquer que possam ter esteja a fonte de todo o bem que se encontre no governo, como também o obstáculo a qualquer mal que não se encontre nele. Quanto maior a soma dessas boas qualidades que as instituições de um país conseguem organizar, tanto melhor a maneira da organização e tanto melhor será o governo. Em consequência, obtivemos agora a base para dupla divisão do mérito que possa caber a qualquer grupo de instituições políticas. Consiste em parte no grau em que promovem o adiantamento mental geral da comunidade, incluindo-se nesta expressão o adiantamento em intelecto, em virtude e em atividade prática e eficiência; em parte no grau de perfeição com que organizam os valores já existentes, morais, intelectuais e ativos, de sorte a influírem com a maior eficácia sobre os negócios públicos. Julga-se de qualquer governo pela ação sobre os homens, e pela ação sobre os acontecimentos; pelo que faz dos cidadãos, e o que faz com eles; pela tendência de melhorar ou deteriorar o próprio povo, e pela excelência ou malefício da obra que faz para ele e por meio dele. O governo é, simultaneamente, grande influência atuando sobre o espírito humano e uma série de arranjos organizados para o negócio público: sob o primeiro aspecto a sua ação benéfica é principalmente indireta, mas nem por isso menos essencial, enquanto a ação maléfica pode ser direta. A diferença entre essas duas funções do governo não é, como se dá entre Ordem e Progresso, meramente de grau, mas de espécie. Contudo, não devemos supor não tenham íntima conexão. As instituições que asseguram a melhor administração dos negócios públicos praticável no estádio existente de cultura tende, tão-só por isso mesmo, a melhorá-lo ainda mais. Um povo que tivesse as leis mais justas, o poder judiciário mais puro e mais eficiente, a administração mais iluminada, o sistema de finanças mais equitativo e menos oneroso, compatíveis com o estádio por ele atingido em adiantamento moral e intelectual, estaria em condições de passar rapidamente a estádio mais elevado. Nem existe qualquer outro modo por meio do qual as instituições políticas contribuam mais eficazmente para o melhoramento do povo do que executando bem o trabalho mais direto que lhes cabe. E, inversamente, se o mecanismo foi tão mal montado que executa mal o trabalho particular que lhe cabe, sente-se lhe o efeito em milhares de maneiras pelo rebaixamento da moral idade e embotamento da inteligência e atividade do povo. A distinção é, apesar disso, real, porquanto é este apenas um dos meios de que dispõem as instituições políticas para melhorarem ou deteriorarem o espírito humano, e as causas e maneiras dessa influência benéfica ou maléfica constituem motivo de estudo distinto e muito mais amplo. Das duas maneiras de atuar pelas quais uma forma de governo ou grupo de instituições políticas afeta o bem-estar da comunidade - atuação como agência de educação nacional e arranjos para conduzir os negócios coletivos da comunidade no estádio de educação que já atingiu, este último evidentemente varia muito menos, por diferenças de país e estado de civilização, do que o primeiro. Tem também muito menos que ver com a constituição fundamental do governo. A maneira de conduzir o negócio prático do governo que mais se coaduna com uma constituição livre seria também o melhor, em geral, em monarquia absoluta: somente esta provavelmente não será capaz de pô-lo em execução. Por exemplo, as leis que regem a propriedade, os princípios relativos à prova e ao processo judicial, o sistema de impostos e de administração financeira, não precisam necessariamente ser diferentes em formas diferentes de governo. Cada um desses assuntos possui princípios e regras peculiares, que constituem estudo distinto. A jurisprudência geral, a legislação civil e penal, a política financeira e comercial, são ciências em si, ou antes, membros distintos da ciência compreensiva ou arte de governar; e as doutrinas mais iluminadas sobre todos esses assuntos, embora não sendo provável que sejam compreendidas ou sirvam de norma sob todas as formas de governo, contudo, se compreendidas e adota das, seriam igualmente benéficas sob todos eles. Verdade é que essas doutrinas não seriam suscetíveis de aplicação, sem algumas modificações, a todos os estados da sociedade e do espírito humano; apesar disso, em sua grande maioria somente exigiriam modificações de detalhes a fim de se adaptarem a qualquer estádio da sociedade, suficientemente adiantado para ter governantes capazes de compreendê-las. Governo a que fossem inteiramente inconvenientes deveria ser tão ruim em si ou tão contrário ao sentimento público, que fosse incapaz de manter-se em existência por meios honestos. Assim não se dá com a parte dos interesses da comunidade que atenta para o melhor ou pior treinamento do próprio povo. Consideradas como essenciais para esse fim, as instituições precisam ser radicalmente diferentes, de acordo com o estádio de adiantamento já atingido. Pode considerar-se o reconhecimento desta verdade, embora na maior parte mais empírica do que filosoficamente, como o ponto principal de superioridade das teorias políticas da época atual em comparação às da época anterior; nesta, era costume reivindicar a democracia representativa para a Inglaterra ou a França mediante argumentos que se prestariam igualmente para provar que tal forma de governo seria a única apropriada a Beduínos ou Malaios. O estado de diversas comunidades, quanto à cultura e ao desenvolvimento, desce a condições muito pouco acima do estado mais adiantado dos animais. O alcance superior é igualmente considerável, e a possível extensão futura amplamente maior. Uma comunidade qualquer somente se pode desenvolver saindo de um destes estádios para outro mais elevado por meio de um concurso de influências, entre as quais uma das principais é o governo a que está submetida. Em todos os estádios de aperfeiçoamento humano até agora atingidos, a natureza e o grau de autoridade exercido sobre os indivíduos, a distribuição do poder e as condições do mando e de obediência constituem as influências mais poderosas, se excetuarmos a crença religiosa, que os faz o que são, e permite se tornem o que podem ser. Ê possível que os detenha em qualquer ponto da progressão para diante adaptação defeituosa do governo a esse estádio particular de adiantamento. E o mérito único indispensável de um governo, a favor do qual pode esquecer-se quase qualquer soma de outros deméritos compatíveis com o progresso, consiste em que a sua atuação sobre o povo seja ou não favorável ao passo seguinte, que lhe impõe dar com o fito de elevar-se a nível mais alto. Assim (repetindo exemplo anterior) um povo que se encontre em estado de independência selvagem, no qual cada um viva para si, livre, salvo espasmodicamente, de qualquer controle externo, é praticamente incapaz de realizar qualquer progresso em civilização até ter aprendido a obedecer. Por conseguinte, a virtude indispensável em um governo que se estabeleça sobre povo dessa espécie é fazer-se obedecido. Para permitir-lhe que o consiga, a constituição do governo deve ser aproximadamente ou mesmo completamente despótica. Constituição popular em qualquer grau, que dependa da renúncia voluntária por parte dos diversos membros da comunidade à liberdade individual de ação, não será capaz de levar a efeito a primeira lição de que necessitam os discípulos, nesse primeiro estádio do progresso. Assim sendo, a civilização de tais tribos, quando não resultem da justaposição a outras já civilizadas, é quase obra de algum governante absoluto, que deriva o poder ou da religião ou da bravura militar; mui comumente de armas estrangeiras. Ainda mais, raças não civilizadas, e as mais bravas e mais enérgicas, mais ainda que quaisquer outras, não se submetem a labor contínuo de natureza pouco excitante. Todavia, tal o preço de toda civilização real; sem semelhante labor não se pode disciplinar o espírito para os hábitos exigidos pela sociedade civilizada, nem preparar o mundo material para recebê-la. Há necessidade de raro concurso de circunstâncias e, por esse motivo, muita vez, de longo período de tempo, para que tal povo se reconcilie com a diligência, a menos que a isso o obriguem por certo prazo. Por isso, a escravidão pessoal, dando começo à vida industrial e tornando-a obrigatória como ocupação exclusiva da porção mais numerosa da comunidade, vem acelerar a transição para melhor liberdade do que a de combater e saquear. Ê quase desnecessário dizer que esta desculpa da escravidão somente se aplica a estádio muito primitivo da sociedade. Um povo civilizado dispõe de muitos outros meios para levar a civilização aos que estão sob sua influência; e a escravidão, em todos os seus detalhes, é- tão repugnante ao governo da lei que constitui o fundamento de toda a vida moderna, e tão corruptor para a classe dominante quando chega a ficar sob influências civilizadas, que a sua adoção sob quaisquer circunstâncias, sejam quais forem, na sociedade moderna, importa em recaída em estado pior que a barbárie. Contudo, em certo período da história, quase todos os povos, ora civilizados, consistiram, em maioria, de escravos. Povo nessas condições exige, para que se eleve acima de tal estado, forma de governo mui diversa do que se deva aplicar a uma nação de selvagens. Se forem enérgicos por natureza, e particularmente se existir a eles associada, na mesma comunidade, uma classe industriosa que não seja formada nem de escravos nem de senhores de escravos (como se dava na Grécia), de nada mais precisarão provavelmente para assegurar-lhes o aperfeiçoamento senão que se lhes conceda a liberdade; quando livres, serão frequentemente capazes, como os libertos romanos, de serem para logo admitidos a todos os direitos de cidadania. Tal, contudo, não é a condição normal da escravidão, sendo sinal de que se está tornando obsoleta. Escravo, assim chamado propriamente, é um ser que não aprendeu a ser útil a si mesmo. Sem dúvida, está um passo à frente do selvagem. Não tem de adquirir ainda a primeira lição da sociedade política. Já aprendeu a obedecer. Obedece unicamente, contudo, a ordens diretas. Os que nascem escravos caracterizam-se pela incapacidade de conformarem a conduta a qualquer regra ou lei. São capazes de fazer somente o que lhes ordenam e somente quando o ordenam. Se alguém, a quem temem, está perto a ameaçá-los de castigo, obedecem; mas se lhe vira as costas, interrompe-se o trabalho. O motivo que os determina não tem de apelar-lhes para os interesses, mas para os instintos; esperança imediata ou imediato terror. O despotismo, capaz de domesticar o selvagem, somente confirma, no que tem de despotismo, os escravos na incapacidade que lhes é peculiar. Contudo, se lhes fosse dado controlar um governo, de maneira alguma seriam capazes de geri-lo. Deles não pode provir o próprio aperfeiçoamento, que terá de ser introduzido de fora. O passo que têm de dar e o caminho único no sentido do aperfeiçoamento consistirá em se elevarem de governo da vontade a governo de lei. Será preciso ensinar-lhes o autogoverno, e isto, no estádio inicial, significa capacidade para agir conforme a instruções gerais. O de que precisam não é governo de força, mas de orientação. Encontrando-se, contudo, em estado por demais baixo para cederem à orientação de alguém senão daqueles que consideram como senhores da força, a espécie de governo que lhes é mais apropriada será a que possuir força mas raramente a empregue: despotismo paternal ou aristocracia parecida com a forma de socialismo de Saint-Simon: (Neste trecho Mill refere-se ao plano de Saint-Simon de uma sociedade controlada pelos chefes industriais e homens de ciência, na qual cada membro tivesse emprego conforme a própria capacidade e compensação na proporção do que realizasse) que mantenha superintendência geral sobre todas as operações da sociedade de sorte li conservar diante de cada um a impressão de força presente suficiente para compeli-lo à obediência à regra estabelecida, a qual, porém, devido à impossibilidade de descer à regulação de todas as minúcias da indústria e da vida, deixa necessariamente aos indivíduos grande parte, induzindo-os mesmo a realizá-las. Esta espécie de governo, que se poderá denominar de cordéis-guias, parece o mais apropriado a conduzir tal povo o mais rapidamente possível a dar o próximo passo necessário no progresso social. Tal parece ter sido a ideia do governo dos Incas no Peru, e tal foi o que fizeram os Jesuítas no Paraguai. Não será preciso observar que só se admitiriam cordéis-guias, como meio de ensinar o povo a andar sozinho. Seria inoportuno levar por diante a exemplificação. Tentar investigar que espécie de governo convém a qualquer estado conhecido da sociedade seria compor um tratado, não só com respeito ao governo representativo, mas sobre ciência política em geral. Para o nosso objetivo mais limitado tomamos da filosofia política apenas os princípios gerais. Para determinar a forma de governo mais conveniente a qualquer povo particular, será necessário distinguir, entre os defeitos e deficiências que lhe sejam peculiares, os que constituem obstáculo imediato ao progresso, descobrir o que é que (por assim dizer) lhe obstrui o caminho. Será para ele o melhor governo aquele que melhor tender a proporcionar-lhe o que lhe está faltando para que vá para frente, ou que lhe evite ir para a frente por maneira desajeitada e claudicante. Contudo, será preciso não esquecer a ressalva necessária em tudo quanto tem por objetivo o melhoramento ou o Progresso - isto é, ao procurar o bem necessário, não se venha a causar qualquer dano ou pelo menos se cause o menor possível ao que se possui. Deve ensinar-se um povo de selvagens a obedecer, mas não de tal maneira que venha a converter-se em povo de escravos. E (para emprestar à observação maior generalidade) a forma de governo mais eficaz para conduzir um povo ao próximo estádio de progresso ainda se revelará muito imprópria se o fizer de maneira tal que impeça ou positivamente os torne incapazes, do passo seguinte à frente. Tais casos são frequentes e contam-se entre os mais melancólicos da história. A hierarquia egípcia, o despotismo paternal chinês eram instrumentos adequados para levar esses povos ao ponto de civilização que atingiram. Todavia, tendo-o atingido, viram-se reduzidos a pausa permanente por falta de liberdade mental e individualidade - condições de aperfeiçoamento cuja ausência lhes impedia inteiramente de adquirir as instituições que até esse ponto os tinham feito chegar; e como essas instituições não se desmoronaram para ceder lugar a outras, cessou todo adiantamento. Em contraste com estas nações, consideremos o exemplo de caráter oposto que nos fornece outro povo oriental, comparativamente insignificante, - os judeus. Esses tinham igualmente monarquia absoluta e hierarquia, e as instituições organizadas eram evidentemente de origem sacerdotal, como as dos hindus. Estas fizeram para eles o que também fizeram para outros povos orientais as instituições respectivas - submeteram-nos à ordem e à diligência e patentearam-lhes a vida nacional. Mas nem os reis nem os sacerdotes jamais conseguiram, como-naqueles outros países, modelar-lhes o caráter com exclusividade. A religião, que permitia a indivíduos de gênio e elevado grau religioso fossem considerados como inspirados pelo céu, deu origem à instituição não-organizada inestimavelmente preciosa - a Ordem (se assim se pode chamar) dos Profetas. Sob a proteção, geralmente embora nem sempre eficaz, do caráter sagrado de que se revestiam, os Profetas constituíam um poder na nação, muita vez antagonista à altura de reis e sacerdotes, e que conservavam, nesse cantinho da Terra, a oposição de influência, garantia única em condições de assegurar o progresso continuado. Em consequência, a religião não era aí o que tem sido em tantos outros lugares - consagração de tudo quanto uma vez se instituiu, e barreira a qualquer melhoramento ulterior. A observação de distinto israelita, M. Salvador, que os profetas eram, na Igreja e no Estado, o equivalente da moderna liberdade de imprensa, nos proporciona concepção justa mas não adequada do papel representado na história nacional e universal por esse elemento importante da vida judaica; por meio do qual, não se completando nunca o cânone da inspiração, as pessoas mais eminentes em gênio e sentimentos morais não só denunciavam e reprovavam, com a autoridade direta do Todo-poderoso, tudo quanto lhes parecia merecer semelhante tratamento, mas ofereciam interpretações melhores e mais elevadas da religião nacional, que daí por diante passavam a fazer parte da religião. Assim sendo, quem quer que se desfaça do hábito de ler a Bíblia como se fosse um único livro, hábito esse inveterado igualmente até bem pouco entre cristãos e infiéis, contempla com admiração o vasto intervalo entre a moralidade e a religião do Pentateuco ou mesmo dos livros históricos (obra inconfundível dos Conservadores hebraicos da ordem sacerdotal) e a moralidade e a religião das Profecias - distância tão grande como a que medeia entre estas e os Evangelhos. Condições mais favoráveis ao progresso não poderiam existir facilmente: assim sendo os judeus, ao invés de ficarem estacionários como outros asiáticos, foram, em seguida aos gregos, o povo mais progressista da antiguidade, e juntamente com estes formaram o ponto de partida e principal agente propulsor da civilização moderna. Impossível, portanto, compreender-se a questão da adaptação das formas de governo a estádios da sociedade sem levar em conta não só o passo seguinte, mas todos os passos que a sociedade terá ainda de dar - tanto os que se podem prever, quanto a série indefinida muito mais ampla presentemente fora de vista. De concluir-se que, para julgar do mérito das formas de governo, forçoso é construir ideal da forma de governo aceitável em si, isto é, que, se existissem as condições necessárias à realização dos seus benéficos resultados, favorecesse e promovesse, mais do que qualquer outra, não somente certo melhoramento, mas todas as suas formas e graus. Tendo-o feito, devemos considerar quais as condições mentais de qualquer espécie necessárias a facilitar a esse governo a realização das tendências próprias, e quais são, portanto, os vários defeitos que tornem um povo incapaz de colher-lhe os benefícios. Seria então possível construir um teorema das circunstâncias em que seja possível introduzir-se essa forma de governo; bem como julgar, nos casos em que fosse preferível não a introduzir, quais as formas inferiores de governo que melhor levem essas comunidades através dos estádios intermediários que terão de atravessar antes de se tornarem capazes da melhor forma de governo. Destas indagações, só nos ocuparemos aqui da última; mas a primeira constitui parte essencial do assunto, porque estamos em condições, sem precipitação, de enunciar de imediato certa proposição cujas provas e exemplos se apresentarão nas páginas seguintes - isto é, que essa forma de governo idealmente melhor deve encontrar-se em uma ou outra forma qualquer de sistema representativo. III DE COMO A FORMA IDEALMENTE MELHOR DE GOVERNO É A REPRESENTATIVA FAZ MUITO TEMPO SE DIZ comumente (talvez por toda a duração da liberdade britânica) que, se fosse possível assegurar-se de um bom déspota, a monarquia despótica seria a forma de governo. Encaro esta sentença como conceito falso e dos mais perniciosos do que seja bom governo; e enquanto dela não nos pudermos livrar, todas as nossas investigações relativamente ao governo ficarão viciadas. A suposição consiste em que o poder absoluto, em mãos de indivíduo eminente, asseguraria execução virtuosa e inteligente de todos os deveres do governo. Estabelecer-se-iam boas leis que passariam a vigorar, reformar-se-iam as leis más; colocar-se-iam os melhores homens em todas as posições de confiança; a justiça seria tão bem administrada, os ônus públicos tão leves e tão judiciosamente impostos, todos os ramos da administração conduzidos tão pura e inteligentemente quanto as circunstâncias do país e o seu grau de cultura intelectual e moral o permitissem. Inclino-me, de boa vontade, a conceder tudo isso, no interesse da argumentação; devo, porém, assinalar quão ampla é a concessão, de quanto mais se precisa para conseguir até mesmo certa aproximação de tais resultados, do que se exprime pelas simples palavras "bom déspota". Obtê-los importaria, de fato, em ter-se não simplesmente bom monarca, mas um que tudo visse. Teria de ser informado, em todas as ocasiões, corretamente, com detalhe considerável, da conduta e do funcionamento de cada ramo da administração, em todos os distritos do país, e teria de ser capaz, nas vinte e quatro horas por dia que são tudo quanto se concede tanto a um rei quanto ao mais modesto dos trabalhadores, para que dispense parte efetiva de atenção e supervisão a todos os elementos desse vasto campo; ou pelo menos terá de ser capaz de distinguir e escolher, dentre a massa dos súditos, não somente grande abundância de homens honestos e capazes, em condições de conduzirem todos os ramos da administração pública sob supervisão e controle, mas também o menor número de homens de virtudes e talentos eminentes merecedores de confiança não só para agirem independentemente de supervisão, mas para exercê-las sobre terceiros. Tão extraordinárias são as faculdades e energias exigidas para a execução dessa incumbência de qualquer maneira suportável que o bom déspota, que estamos supondo, dificilmente se poderia imaginar como consentindo em encarregar-se dela, a menos que fosse para evitar males intoleráveis e como preparo intermediário para algo por vir. Mas o argumento vale mesmo sem esta imensa relação no cômputo. Suponha-se desaparecida a dificuldade. Que teríamos então? Um homem de atividade mental super-humana gerindo todos os negócios de um povo mentalmente passivo. A própria ideia de poder absoluto importa em semelhante passividade. A nação como um todo e todos os indivíduos que a compõem ficam privados de qualquer voz potencial no próprio destino. Não exercem qualquer vontade com respeito aos seus interesses coletivos. Uma vontade que não a deles tudo decide, sendo legalmente crime desobedecer-lhe. Que espécie de seres humanos se formariam sob semelhante regime? Que desenvolvimento atingiriam o pensamento ou as faculdades ativas dês se povo? Talvez lhes permitissem investigar assuntos de pura teoria, enquanto as investigações não se aproximassem da política ou não mostrassem a conexão mais remota com a prática do governo. Sobre assuntos práticos mal lhe permitiriam tão-só alguma sugestão; e mesmo sob o mais moderado dos déspotas, apenas pessoas de superioridade já admitida ou reputada alimentariam a esperança de ver as próprias sugestões conhecidas daquelas que administram os negócios e muito menos por elas levadas em consideração. Deve ter gosto mui estranho pelo exercício intelectual em si e para si quem se der ao trabalho de pensar se o pensamento não tiver qualquer resultado exterior, ou quem se preparar para funções que não tenha qualquer possibilidade de vir a exercer. O único estímulo suficiente ao esforço mental, em qualquer espírito que não uns poucos em cada geração, cifra-se à perspectiva de algum uso prático que possa colher dos resultados. Daí não se conclua que a nação ficará totalmente privada de poder intelectual. O trato comum da vida, que cada indivíduo ou cada família tem de executar para si, necessariamente, exigirá certa proporção de inteligência e capacidade prática, dentro de certa margem limitada de ideias. Talvez exista uma classe escolhida de sábios que cultivem a ciência com vistas a usos físicos ou pelo prazer da pesquisa. Haverá uma burocracia, e pessoas que se preparem para ela, às quais se ensinem pelo menos algumas máximas empíricas de governo e de administração pública. Talvez haja, e muitas vezes já houve, organização sistemática do melhor poder mental do país em certa direção especial (em geral militar), com o fito de promover a grandeza do déspota. Mas o público em geral ficará sem informações e sem interesse sobre todos os assuntos de maior relevo prático; ou, se deles tiver qualquer conhecimento, será apenas conhecimento diletante, como têm das artes mecânicas os que nunca pegaram em uma ferramenta. Não é apenas na inteligência que sofrem. As faculdades morais ficam igualmente tolhidas. Sempre que a esfera de ação dos seres humanos fica artificialmente circunscrita, minguam e se estreitam os sentimentos na mesma proporção. O sentimento alimenta-se da ação: até mesmo a afeição doméstica nutre-se de bons ofícios voluntários. Não tenha alguém o que fazer pelo seu país e dele não cogitará. Há muito se disse do despotismo que somente existe nele um patriota, o próprio déspota; e a observação baseia-se em justa apreciação dos efeitos da submissão absoluta, mesmo a senhor bom e sensato. Resta a religião: e aqui, pelo menos, pensar-se-á, se encontra uma atividade em que é possível confiar para a elevação dos olhos e das mentes dos homens acima do pó que lhes cobre os pés. Mas a religião, supondo-a mesmo escapar à perversão para fins de despotismo, deixa de ser nessas circunstâncias interesse social para reduzir-se a questão pessoal entre o indivíduo e o Criador em que se cogita somente da salvação pessoal daquele. A religião sob essa forma coincide inteiramente com o egoísmo mais restrito e pessoal, identificando o devoto tão pouco em uníssono com os seus semelhantes como a própria sensualidade. Bom despotismo quer dizer governo em que, no que depende do déspota, não existe opressão pelos funcionários do Estado, gerindo estes todos os interesses coletivos do povo, realizando todo o pensamento que se relacione com os interesses coletivos, formando-se os espíritos pela abdicação das próprias energias e pelo consentimento nessa abdicação. Abandonar tudo ao governo, como deixar tudo à Providência divina, é sinônimo de não curar nada, aceitando os resultados, quando desagradáveis, como visitações da Natureza. Com exceção, portanto, de alguns poucos estudiosos que tomam interesse intelectual pela investigação por conta própria, abandonam-se os sentimentos e a inteligência do povo inteiro aos interesses materiais e, uma vez satisfeitos estes, entregam-se à diversão e ornamentação da vida privada. Dizê-lo, porém, importa em afirmar, se o testemunho inteiro da história tem qualquer valor, que chegou a era do declínio nacional; isto é, se a nação atingiu algum dia algo de que possa decair. Se nunca se elevou acima da condição de um povo oriental, nessa condição continuará a ficar estagnada. Mas se, à semelhança de Grécia e Roma, realizou algo de mais elevado, pela energia, patriotismo e ampliação do espírito, que, como qualidades nacionais são os frutos únicos da liberdade, em poucas gerações recai na situação dos países orientais. E essa situação não significa tranquilidade estúpida, acompanhada de garantia contra mudança para pior; muita vez significa invasão, conquista e redução a escravidão doméstica, ou por déspota mais forte ou pelo povo bárbaro mais próximo que retém com selvagem rudeza as energias da liberdade. Tais não são simplesmente as tendências naturais, mas as necessidades inerentes ao governo despótico; das quais não há como sair, a menos que o próprio despotismo concorde em não ser despotismo; até o ponto em que o déspota suposto bom se abstenha de exercer o poder, e, embora conservando-o em reserva, permite à atividade geral do governo que prossiga como se o povo realmente se governasse. Por menos provável que se afigure, imagine-se um déspota que observe muitas das regras e restrições do governo constitucional. Permitiria tal liberdade de imprensa e de discussão que conduzisse à formação de certa opinião pública, que se manifestasse sobre os negócios nacionais. Suportaria que o próprio povo gerisse os interesses locais sem a interferência da autoridade. Chegaria mesmo a cercar-se de um conselho ou conselhos de governo, livremente escolhidos pela nação inteira ou parte dela, reservando para si próprio a faculdade de lançar impostos e o poder legislativo supremo bem como a autoridade executiva. Se assim procedesse, abdicando a esse ponto dos poderes de déspota, eliminaria parte considerável dos males característicos do despotismo. Não mais se impediria de desenvolver-se a atividade política e a habilidade para os negócios públicos no corpo da nação, formando-se opinião pública que não seria simples eco do governo. Tais melhoramentos seriam, porém, o começo de novas dificuldades. Essa opinião pública, independente da imposição do monarca, teria de estar com ele ou contra ele; se não fosse uma seria a outra. Todos os governos têm de desagradar a muitas pessoas, e estas, dispondo agora de órgãos regulares e podendo exprimir os próprios sentimentos, muitas vezes exprimiriam opiniões contrárias às medidas do governo. Que deverá fazer o monarca quando acontecer que essas opiniões estejam em maioria? Deverá mudar de orientação? Deverá acatar à nação? Se assim fizer, não mais será déspota, mas rei constitucional - órgão ou primeiro ministro do povo, distinguindo-se somente por ser inamovível. Se assim não fizer, terá de dominar a oposição por meio do poder despótico, ou surgirá antagonismo permanente entre o povo e um homem, que só terá uma saída possível. Nem mesmo o princípio religioso da obediência passiva e o "direito divino" afastariam por muito tempo as consequências naturais de semelhante posição. O monarca teria de submeter-se e conformar-se às condições da realeza constitucional, ou ceder o lugar a alguém que assim o fizesse. O despotismo, tornando-se dessa maneira nominal, possuiria poucas das vantagens que se supõem caber à monarquia absoluta, enquanto realizaria em grau bastante imperfeito as de governo livre; desde que, por maior que seja a liberdade de que praticamente gozem os cidadãos, nunca esquecerão que a desfrutam por tolerância e concessão, sendo possível que a retirem de um momento para o outro sob a constituição existente do Estado, são legalmente escravos, embora de senhor prudente e indulgente. Não será muito de admirar se reformadores impacientes ou desapontados gemendo debaixo dos obstáculos que se erguem contra os melhoramentos públicos mais salutares pela ignorância, indiferença e obstinação, de um povo, e pelas combinações corruptas de interesses privados egoístas revestidos das armas poderosas que as livres instituições lhes concedem, suspirem vez por outra por alguma mão forte que deite abaixo esses obstáculos, compelindo o povo recalcitrante a ter melhor governo. Contudo (deixando de lado que para um déspota que vez por outra reforma um abuso, há noventa e nove que só fazem criá-los) os que procuram em tal direção a realização das suas esperanças deixam fora da ideia de bom governo o principal elemento, o melhoramento do próprio povo. Um dos benefícios da liberdade consiste em que, sob a sua égide, o governante não pode desprezar o espírito do povo para melhorar-lhe os negócios sem melhorar o próprio povo. Se fosse possível a um povo ser bem governado a despeito de si mesmo, o bom governo que tivesse não duraria mais do que dura comumente a liberdade de um povo libertado por armas estrangeiras independentemente de sua cooperação. É verdade que um déspota pode educar o povo; e fazê-lo realmente seria a melhor desculpa para o despotismo. Mas qualquer educação que vise a tornar seres humanos diferentes de máquinas no correr do tempo, faz com que lhes exijam venha às mãos o controle das próprias ações. Os líderes da filosofia francesa do século XVIII tinham sido educados pelos jesuítas. Parece que até mesmo a educação jesuítica era suficientemente real para despertar o apetite pela liberdade. Tudo quanto revigora as faculdades, mesmo em medida muito diminuta, dá origem a desejo mais intenso para que se exerçam mais desenvoltamente; e a educação popular fracassará se formar o povo para qualquer estado que não aquele que os levará com toda certeza a desejar, e mais provavelmente ainda a pedir. Estou longe de condenar, em casos de extrema necessidade, que se assuma poder absoluto sob a forma de ditadura temporária. Em épocas antigas, povos livres concederam tal poder voluntariamente, como remédio necessário para males do corpo político de que não se podiam livrar por meios menos violentos. Mas a sua aceitação, mesmo por período rigorosamente limitado, somente pode desculpar-se se, como Sólon ou Pítaco, o ditador utiliza todo o poder que assume para remover os obstáculos que não permitem à nação o gozo da liberdade. Bom despotismo é, em sua totalidade, falso ideal, que se torna praticamente (exceto como meio para algum fim temporário) a mais insensata e perigosa das quimeras. Mal por mal, bom despotismo em país inteiramente adiantado em civilização é mais prejudicial do que o mau; visto como desmoraliza e enerva muito mais os pensamentos, sentimentos e energias do povo. O despotismo de Augusto preparou os romanos para Tibério. Se não se lhes houvesse primeiramente prostrado o tono inteiro do caráter por meio de quase duas gerações daquela suave escravidão, provavelmente teriam tido ainda bastante espírito para se rebelarem contra o despotismo mais odioso. Não há dificuldade alguma em mostrar-se que a forma de governo idealmente melhor é aquela em que a soberania ou o poder controlador supremo em última instância se encontra investido no agregado inteiro da comunidade, tendo cada cidadão não só voz no exercício dessa soberania extrema, mas sendo chamado, pelo menos acidentalmente, a tomar parte real no governo pelo desempenho de alguma função pública, local ou geral. Para verificar esta proposição, teremos de examiná-la com referência aos dois ramos em que, conforme assinalamos no último capítulo, a investigação relativa à excelência do governo divide-se convenientemente - isto é, até que ponto promove a boa gestão dos negócios da sociedade por meio das faculdades existentes, moral, intelectual e ativa, dos vários membros, e qual o efeito que tem na melhoria ou deterioração dessas faculdades. A forma de governo idealmente melhor, quase não é necessário dizer, não se refere a que fosse praticável ou passível de escolha em todos os estádios de civilização, mas a que, nas circunstâncias em que é praticável ou passível de escolha, vem acompanhada do maior volume de consequências benéficas, imediatas e futuras. Somente pode reivindicar essa característica um governo completamente popular. Revela-se superior em ambos os departamentos em que se divide a excelência da constituição política. "É mais favorável ao governo bom atual e promove igualmente forma de maior elevação e melhora do caráter nacional do que qualquer outra. A sua superioridade em relação ao bem-estar presente repousa em dois princípios de verdade e aplicação tão universais como qualquer proposição geral suscetível de instituir-se respeito aos negócios humanos. O primeiro consiste em que os direitos e interesses de todos ou de cada um só se encontram garantidos de desconsideração quando o interessado é capaz de sustentá-los e está habitualmente disposto a fazê-lo. O segundo reza que a prosperidade geral atinge maior elevação e difunde-se mais amplamente na proporção do volume e variedade das energias pessoais interessadas em promovê-la. Formulemos estas duas proposições de maneira mais em harmonia com a aplicação atual: os seres humanos só estão garantidos dos males que outros lhes podem causar na proporção em que têm o poder de se protegerem a si mesmos; e somente conseguem grau elevado de sucesso na luta contra a natureza na proporção em que são auto dependentes, confiando no que eles mesmos são capazes de fazer, ou separadamente ou em conjunto, ao invés de confiarem no que terceiros venham a fazer por eles. A primeira proposição - que cada um é o único guardião seguro dos próprios direitos e interesses - constitui uma dessas máximas elementares de prudência que qualquer pessoa capaz de conduzir os próprios negócios segue implicitamente sempre que ela própria está interessada. Há, de fato, inúmeras pessoas que não a apreciam como doutrina política, comprazendo-se em apresentá-la à condenação como doutrina de egoísmo universal. Ao que responderei que, quando deixar de ser verdade que os homens, geralmente, dão preferência a si sobre o próximo, e aos que estão mais perto sobre os mais remotos, desse momento em diante o Comunismo não só será praticável, mas se tornará a única forma defensável de sociedade, tornando-se seguramente realidade, quando chegar esse tempo. Pela minha parte, não acreditando em egoísmo universal, não sinto dificuldade em admitir que o Comunismo (Por comunismo Mill entende o socialismo pré-marxista. Em parte alguma dos seus escritos mostra-se Mill apercebido do socialismo marxista, formulado enquanto viveu. (O primeiro volume de Das Kapital de Marx apareceu em 1867). Mill fala muitas vezes com simpatia das várias escolas pré-marxistas de socialismo, representadas por Claude Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon (1760-1825), François-Marie Charles Fourier (1772-1837), Robert Owen (1771-1858), Pierre Joseph Proudhorn (1809-1863) e outros, que os marxistas puseram de lado como não-científicos e utópicos) seria agora mesmo praticável na elite da humanidade, podendo estender-se à parte restante. Mas como esta opinião não é de modo algum popular entre os que defendem as instituições existentes que condenam a doutrina do predomínio geral dos interesses egoístas, fico propenso a pensar que acreditam realmente considerar-se a maior parte dos homens a si próprios à frente de outros. Contudo, não é necessário chegar a afirmar tanto com o intuito de sustentar o direito de todos em participarem do poder soberano. Não precisamos supor que, quando o poder reside em uma classe exclusiva, essa classe sacrifique a si com pleno conhecimento e deliberadamente as outras classes; basta que, na ausência de defensores naturais, o interesse dos excluídos está sempre correndo o risco de ser esquecido e quando o levam em conta, encaram-no de maneira mui diversa daqueles a quem diz respeito diretamente. Neste país, por exemplo, podem considerar-se as classes chamadas trabalhadoras como excluídas de qualquer participação direta no governo. Não acredito que as classes que participam do governo tenham, em geral, qualquer intenção de sacrificarem a si as classes trabalhadoras. Outrora alimentaram tal intenção - como o provam as tentativas sucessivas feitas durante tanto tempo para conter os salários por meio da lei. Nos dias atuais, porém, a atitude corrente é exatamente oposta: fazem de boa vontade sacrifícios consideráveis, especialmente dos seus interesses pecuniários, em benefício das classes trabalhadoras, e erram antes por beneficiá-las prodigamente e sem discriminação; nem creio que na história se encontrem governantes que tenham agido por desejo mais sincero de cumprir com o seu dever para com a porção mais pobre dos concidadãos. Entretanto, porventura o Parlamento ou qualquer dos seus membros encara, por um momento, qualquer questão sob o ponto de vista do trabalhador? Quando se apresenta um assunto pelo qual se interessam os trabalhadores como tais, consideram-no de qualquer ponto de vista que não o dos empregadores? Não quero dizer que o ponto de vista do trabalhador nessas questões esteja, em geral, mais perto da verdade, mas por vezes está bastante perto; e, em qualquer caso, deve-se ouvi-lo com todo respeito ao invés de, como acontece, não só simplesmente afastá-lo como ignorá-lo. Na questão das greves, por exemplo, é duvidoso que se encontre pelo menos um dentre todos os membros mais importantes de qualquer das duas Casas que não esteja firmemente convencido caber a razão indiscutivelmente aos empresários, sendo simplesmente absurdo o ponto de vista dos empregados. Os que têm estudado a questão sabem muito bem quão longe está esta maneira de ver da verdade, e por que maneira diferente e infinitamente menos superficial seria discutida a questão se as classes que entram em greve fossem capazes de se fazerem ouvidas no Parlamento. É condição inerente aos negócios humanos que nenhuma intenção, por mais sincera que seja, de proteger os interesses de outrem a torne segura ou salutar se começarmos por atar-lhe as mãos. E ainda é mais evidentemente verdadeiro que somente pelas próprias mãos se conseguirá qualquer melhoramento positivo e duradouro das suas circunstâncias na vida. Por meio da influência conjunta desses dois princípios, todas as comunidades livres aboliram a injustiça social e o crime e alcançaram prosperidade mais brilhante, do que qualquer outra, ou do que elas próprias depois de perderem a liberdade. Comparem-se os Estados livres do mundo, enquanto gozaram de liberdade, com os súditos contemporâneos do despotismo monárquico ou oligárquico: as cidades gregas com as satrapias persas; as repúblicas italianas e as cidades livres da Flandres e da Alemanha com as monarquias feudais da Europa; a Suíça, a Holanda e a Inglaterra com a Áustria ou a França de antes da Revolução. A prosperidade superior de que gozavam era por demais evidente para que sofresse contestação, enquanto se lhes prova a superioridade em bom governo e relações sociais pela prosperidade, que, aliás, se torna evidente em cada página da história. Se compararmos, não uma época com outra, mas os diversos governos que coexistiram na mesma época, nenhuma soma de desordem que até mesmo o exagero pretenda ter existido no meio da publicidade dos Estados livres será comparável, por um momento, com o esmagamento desdenhoso da massa do povo que saturou a vida inteira dos países monárquicos, ou a tirania individual repugnante que se verificava mais do que diariamente sob os sistemas de saque denominados arranjos fiscais e no segredo dos temíveis tribunais de justiça. Forçoso reconhecer que os benefícios da liberdade, até onde nos tenha sido dado desfrutá-los, obteve-os a extensão dos seus privilégios a uma única parte da comunidade; e governo no qual se estendam imparcialmente a todos apresenta-se como desiderato ainda a realizar-se. Mas embora qualquer passo nesse sentido se revista de valor independente, e em muitos casos não fosse possível dar mais de um passo no estado existente de melhoramento, a participação de todos nesses benefícios importa na concepção idealmente perfeita de governo livre. Seja quem for que se exclua dele, terá os seus interesses privados da garantia concedida aos demais, ficando-lhe reduzido o campo de ação bem como o estímulo que de outra maneira teria para a aplicação das energias ao próprio bem e ao da comunidade, em proporção ao que está sempre a prosperidade geral. Assim se apresenta a questão no que entende com o bem-estar presente; boa gestão dos negócios da geração existente. Se passarmos agora à influência da forma de governo sobre O caráter, verificaremos ser a superioridade do governo popular ainda mais decidida e indiscutível, se possível, sobre qualquer outro. Esta questão depende realmente de outra ainda mais fundamental, a saber, qual dos dois tipos comuns de caráter, para o bem geral dos homens, será mais de desejar-se predomine - o tipo ativo ou o passivo: o que luta contra os males ou o que os suporta; o que se dobra às circunstâncias ou o que se esforça por dobrá-las. Os lugares-comuns dos moralistas e as simpatias gerais dos homens vão a favor do tipo passivo. Admiram-se caracteres enérgicos, mas a maior parte dos homens prefere pessoalmente os submissos e condescendentes. A passividade dos vizinhos aumenta-nos o sentimento de segurança e favorece os planos de nossas inclinações. Os caracteres passivos, se acaso não precisarmos da atividade deles, afiguram-se-nos obstrução de menos em nosso caminho. Não se revela rival perigoso o caráter satisfeito. Entretanto, nada mais certo do que dever-se o melhoramento dos negócios humanos aos caracteres descontentes, e, além disso, é muito mais fácil ao espírito ativo adquirir as virtudes da paciência do que ao passivo revestir-se das da energia. Das três variedades de excelência mental, intelectual, prática e moral, não pode haver qualquer dúvida, com relação às duas primeiras, quanto a qual dos lados leva vantagem. Toda superioridade intelectual é fruto de esforço ativo. A iniciativa, o desejo de manter-se em movimento, de experimentar e realizar novidades para benefício próprio ou de outrem, dão origem ao talento investigador e muito mais ainda ao talento prático. A cultura intelectual compatível com o outro tipo corresponde à descrição vaga e fraca inerente ao espírito que se entrega à diversão ou à simples contemplação. A verificação do pensamento real e vigoroso, que afirma verdades ao invés de entregar-se a sonhos, consiste na aplicação bem-sucedida à prática. Onde não exista semelhante propósito para emprestar clareza, precisão, e significado inteligível ao pensamento, nada de melhor se produz senão a metafísica mística dos pitagóricos ou dos Vedas (Os discípulos de Pitágoras, filósofo e geômetra grego do século VI A. C., praticavam religião mística derivada em parte da crença de que o universo era suscetível de interpretação numérica. Os Vedas ou Vedanta, eram religião hindu que floresceu de 1500 a 600 A. C.). Quanto ao melhoramento prático, a questão é ainda mais evidente. O caráter que melhora a vida humana é o que luta contra as forças e tendências naturais, não o que a elas se abandona. As qualidades que beneficiam por si mesmas estão todas do lado do caráter ativo e enérgico; e os hábitos e a conduta que promovem a vantagem de cada membro individual da comunidade devem pelo menos formar parte dos que conduzem melhor, no fim de contas, ao adiantamento da comunidade como um todo. Mas com relação à possível preferência moral parece, à primeira vista, haver lugar para dúvida. Não me estou referindo ao sentimento religioso que tem existido tão geralmente a favor do caráter inativo, como estando mais em harmonia com a submissão devida à vontade divina. A Cristandade, tanto quanto outras religiões, favoreceu este sentimento; mas é prerrogativa da Cristandade, com respeito a esta e muitas outras perversões, ser capaz de desfazer-se delas. Distintamente de considerações religiosas, o caráter passivo, que cede aos obstáculos em lugar de esforçar-se por superá-los talvez não seja, de fato, muito útil ao próximo, não mais do que a si próprio, mas pode esperar-se pelo menos que seja inofensivo. Sempre se contou o contentamento entre as virtudes morais. Mas implica em completo erro supor-se que o contentamento acompanha necessária ou naturalmente a passividade de caráter; e a menos que o seja, as consequências morais serão perniciosas. Onde exista desejo por vantagens não possuídas, o espírito que não as possui potencialmente por meio de energia própria torna-se capaz de encarar com ódio e malícia quantos as possuem. Quem se agita com perspectivas esperançosas para melhorar as próprias circunstâncias é também quem sente boa vontade para com os que se empenham na mesma busca ou foram nela bem-sucedidos. E onde a maioria está assim empenhada, os que não conseguiram atingir a meta deram o tono aos próprios sentimentos pelo hábito geral do país, atribuindo o insucesso à falta de esforço ou de oportunidade ou à má sorte pessoal. Mas aqueles que, enquanto desejam o que outros possuem, não despendem qualquer energia para se esforçarem por consegui-lo, estão ou incessantemente resmungando que a fortuna não faz por eles o que não tentam fazer para si mesmos ou transbordando de inveja e má vontade para com quantos possuem o que gostariam de ter. Na proporção em que se encara o sucesso na vida ou nele se acredita como sendo fruto da fatalidade ou de acidente e não do esforço, nessa mesma proporção desenvolve-se a inveja como peculiaridade do caráter nacional. Dentre todos os homens os mais invejosos são os orientais. Salienta-se notavelmente o invejoso em todos os moralistas orientais, em todos os contos. Na vida real, é o terror de todos quantos possuem algo de desejável, seja palácio, filho bonito ou até mesmo boa saúde e espírito: o efeito suposto de simples olhar do invejoso constitui a superstição que a tudo invade do mau olhado. Em seguida aos orientais em inveja, como em atividade, vêm alguns europeus do Sul. Os espanhóis perseguiram todos os seus grandes homens com ela, amarraram-lhes a vida, e em geral conseguiram fazer-lhes cessar prematuramente o êxito (Limito a expressão ao passado, porque nada direi de depreciativo de povo grande e agora finalmente livre, que está tomando parte no movimento geral do progresso europeu com vigor que promete compensar rapidamente o terreno perdido. Ninguém pode pôr em dúvida o de que são capazes o intelecto e a energia espanhóis; e as faltas deles como povo são as que têm na liberdade e no ardor industrial o específico real). Em relação aos franceses, que são essencialmente povo do Sul, a dupla educação do despotismo e do catolicismo tornou, apesar do temperamento impulsivo que possuem, a submissão e a resignação o caráter comum do povo, e a ideia mais comum ente aceita da sabedoria e da excelência; e se a inveja de uns para os outros ou de qualquer superioridade, não é mais frequente entre eles, deve atribuir-se aos muitos valiosos elementos em sentido contrário do caráter francês, e acima de tudo à grande energia individual que, embora menos persistente e mais intermitente do que nos anglo-saxões lutadores e cheios de iniciativa, se tem, entretanto, manifestado entre os franceses em quase todas as direções em que o funcionamento das instituições lhes tenha sido favorável. Encontram-se, sem dúvida, em todos os países caracteres realmente satisfeitos que não só não procuram, mas não desejam o que ainda não possuem, e naturalmente estes não revelam má vontade para com aqueles que têm aparentemente sorte mais favorável. Mas a grande massa do contentamento aparente consiste em descontentamento real combinado à indolência e a indulgência para consigo mesmo, que, enquanto não lança mão de qualquer meio legítimo para se elevar, tem prazer em arrastar o próximo ao próprio nível que ocupa. E se considerarmos bem de perto até mesmo os casos de contentamento inocente, perceberemos que somente nos ganham a admiração quando a indiferença importa unicamente em melhoramento nas circunstâncias exteriores, deparando-se com o esforço para contínuo adiantamento em dignidade espiritual ou pelo menos zelo desinteressado em benefício de outrem. O indivíduo satisfeito, ou a família satisfeita, que não tem a ambição de tornar a outrem mais feliz, ou de promover o bem do país ou da vizinhança, ou de melhorar-se a si em excelência moral, não desperta em nós nem admiração nem aplauso. Atribuímos com razão essa espécie de contentamento a simples pusilanimidade e falta de espírito. O contentamento que merece a nossa sanção consiste na capacidade de passar prazenteiramente sem aquilo que não se pode ter: apreciação justa do valor comparativo de objetos diferentes do desejo e renúncia voluntária dos que menos valem quando incompatíveis com os de mor valia. Estas são, contudo, excelências mais naturais ao caráter na proporção em que estiver mais ativamente empenhado em melhorar a própria sorte ou a de outrem. Quem está constantemente medindo a própria energia contra dificuldades fica sabendo quais as insuperáveis, e quais as que, embora capaz de dominar, não valem o esforço despendido. Aquele cujos pensamentos e atividades se destinam e habitualmente se empregam em empreendimentos praticáveis e úteis, é, dentre todos, quem menos provavelmente deixa o espírito repisar com descontentamento rancoroso o que não vale a pena conseguir ou o que para ele não tem qualquer valor. Assim o caráter ativo, cheio de iniciativa, não só é o melhor, intrinsecamente, mas provavelmente o que adquire tudo quanto é realmente excelente ou desejável no tipo oposto. O caráter esforçado, empreendedor da Inglaterra e dos Estados Unidos presta-se à crítica desfavorável somente nas questões muito secundárias em que costuma desperdiçar as suas forças. Em si mesmo constitui a base das melhores esperanças de aperfeiçoamento geral dos homens. Já houve quem observasse com grande exatidão que sempre que algo toma rumo errado, o impulso do francês é dizer: "Il faut de la patience"; mas o inglês diz: "Que vergonha!" Quem pensa que é vergonha tomar rumo errado, - quem se precipita à conclusão de que era possível impedir o mal está destinado, no correr do tempo, a contribuir melhor para o aperfeiçoamento do mundo. Se os desejos com pouco se contentam, se se alongam tão-só um pouco além do conforto físico, a exibição de riquezas, os resultados imediatos da energia não importarão em muito mais do que a extensão contínua do poder do homem sobre objetos materiais; mas mesmo isto dá lugar às maiores realizações intelectuais e sociais, preparando-lhes as aplicações mecânicas; e enquanto lá estiver a energia, alguém a aplicará, e cada vez mais há de aplicar-se, para o aperfeiçoamento não somente de circunstâncias exteriores, mas da natureza interior do homem. A falta de atividade, a ausência de aspirações ou de desejos erguem obstáculo mais fatal ao melhoramento do que qualquer aplicação errônea de energia, e são elas somente que tornam possível, quando existem na massa, qualquer má orientação mui formidável por parte de alguns poucos cheios de energia. É principalmente isto que mantém em estado selvagem ou semisselvagem a maior parte da raça humana. Isto posto, não pode haver qualquer espécie de dúvida que o governo de um ou de poucos favorece o tipo passivo de caráter enquanto o governo de muitos favorece o tipo ativo, de iniciativa. Governantes irresponsáveis têm necessidade da tranquilidade dos governados mais do que de qualquer atividade senão aquela a que podem compelir. Submissão às prescrições dos homens como se fossem impostas pela natureza é a lição incutida por todos os governos sobre quantos deles não participam. É preciso ceder passivamente à vontade dos superiores, e à lei como vontade dos superiores. Mas os homens não são simples instrumentos ou materiais nas mãos dos governantes, se possuírem vontade ou espírito ou mola de atividade interna em tudo mais que tenham de fazer; e qualquer manifestação dessas qualidades, ao invés de receber estímulo dos déspotas, tem de fazer-se esquecida deles. Mesmo quando governantes irresponsáveis não têm consciência suficiente do perigo decorrente da atividade mental dos súditos, de sorte a desejarem reprimi-la, a própria situação é, em si, repressão. Restringe-se ainda mais eficazmente a diligência mediante a certeza de sua incapacidade do que por qualquer desencorajamento positivo. Existe natural incompatibilidade entre sujeição à vontade de outrem e as virtudes de iniciativa e autogoverno. Essa incompatibilidade é mais ou menos completa, conforme se reforça ou afrouxa a servidão. Os governantes diferem muito na extensão a que levam o controle da livre ação dos súditos ou na supressão desta pela ingerência nos negócios deles. A diferença é, porém, em grau, não em princípio; e os melhores déspotas chegam aos maiores extremos para acorrentarem a livre ação dos súditos. Mau déspota, quando vê satisfeitos os seus privilégios pessoais, provavelmente se incline a deixar o povo em paz; mas o bom déspota insiste em fazer-lhe o bem, obrigando-o a tratar dos seus negócios por melhor maneira do que eles mesmo sabem. As regulações que limitavam a processos fixos todos os ramos principais das fábricas francesas foram obra do grande Colbert. Mui diverso é o estado das faculdades humanas quando um ser não se sente sob qualquer restrição externa senão as necessidades da natureza, ou os mandatos da sociedade em que toma parte em impor, e dos quais tem o direito de dissentir se os julgar errôneos e de esforçar-se ativamente por alterar. Sem dúvida, em governo parcialmente popular, podem exercer essa liberdade até mesmo os que não partilham dos privilégios completos de cidadania. Constitui, contudo, grande estímulo adicional à iniciativa e confiança em si próprio de qualquer um quando sente estar em igualdade de condições, sem se preocupar que o êxito depende da impressão que venha a causar aos sentimentos e disposições de um corpo a que não pertence. Importa em grande desânimo para o indivíduo e ainda maior para uma classe, sentir-se fora da constituição - reduzido a implorar do lado de fora da porta aos árbitros do seu destino, sem que o chamem para dentro para consultá-lo. Somente se obtém o maior efeito fortalece dor da liberdade sobre o caráter quando o indivíduo sobre o qual se atua ou é ou está procurando ser cidadão tão inteiramente privilegiado como qualquer outro. O que é ainda mais importante do que esta questão de sentimento é a disciplina prática que o caráter adquire pela solicitação acidental aos cidadãos para exercerem qualquer função social, por algum tempo e por sua vez. Não se considera suficientemente quão pouco existe na vida ordinária da maior parte dos homens capaz de proporcionar-lhes qualquer largueza, seja de concepção seja de sentimentos. O trabalho deles é rotineiro; não trabalho de amor, mas de interesse próprio sob forma elementar, para satisfação de necessidades cotidianas; nem o que se faz nem o processo para fazê-lo leva o espírito a pensamentos ou sentimentos que se estendam além de indivíduos; se lhe estão ao alcance livros instrutivos, não há estímulo para lê-los; e em muitos casos o indivíduo não tem acesso a qualquer pessoa de cultura muito superior à que ele mesmo possui. Dar-lhe algo para fazer a favor do público supre, até certo ponto, todas essas deficiências. Se as circunstâncias permitirem seja considerável o volume de obrigações públicas a ele confiadas, tornar-se-á educado. Não obstante os defeitos do sistema social e das ideias morais da antiguidade, a prática da discateria e da eclésia (Tribunal e assembleia populares respectivamente, em que todos os cidadãos atenienses podiam tomar parte) erguiam o padrão intelectual do ateniense médio muito acima de quanto se possa encontrar em qualquer outro grupo de homens, antigos ou modernos. Prova-o qualquer página do nosso grande historiador da Grécia;(George Grote (1794-1871) cuja História da Grécia em 12 volumes apareceu entre 1846 e 1856) mas não precisamos ir procurar mais longe do que na alta qualidade dos discursos que os grandes oradores achavam mais adequados para atuarem com eficácia sobre o entendimento e a vontade dos seus concidadãos. Benefício semelhante, embora em grau muito menor, resulta para os ingleses da classe média da possibilidade de tomarem parte em juris e ocuparem cargos paroquiais; o que, embora não ocorra a tantos nem seja tão continuado nem os aproxime de tão grande variedade de considerações elevadas que admita comparação à educação pública que todos os cidadãos de Atenas adquiriam por meio das instituições democráticas dessa cidade, deve torná-los, apesar de tudo, seres bastante diferentes, na ordem das ideias e no desenvolvimento das faculdades, dos que nada mais fizeram durante a vida senão manejar uma pena ou vender gêneros em um balcão. Mais salutar ainda é o papel moral da instrução proporcionada pela participação dos cidadãos quaisquer, embora raramente, nas funções públicas. Vê-se convocado, enquanto assim se ocupa, a ponderar interesses que não são os dele; a guiar-se, no caso de pretensões contraditórias, conforme regra diferente das suas parcialidades particulares; a aplicar, em cada caso, princípios e máximas que têm por motivo de existência o bem público; e encontra geralmente associados a ele na mesma obra espíritos mais familiarizados do que o dele com ideias e operações, cujo estudo deverá fornecer-lhe razão ao entendimento, e estímulo ao sentimento em apoio do interesse geral. Obrigam-no a sentir parte do público, e tudo quanto for para benefício dês te sê-lo-á também para ele, Onde não existe essa escola de espírito público, raramente se alimenta qualquer ideia de que pessoas que não têm qualquer posição social elevada estão obrigadas por deveres para com a sociedade, exceto pela obediência à lei e a submissão ao governo. Não existe sentimento egoísta de identificação com o público. Todos os pensamentos ou sentimentos, de interesse ou de dever, ficam absorvidos no indivíduo ou na família. O homem não pensa nunca em qualquer interesse coletivo, de qualquer objetivo a perseguir juntamente com outros, mas somente em concorrência com outros, e até certo ponto a expensas de terceiros. Um vizinho, não sendo aliado ou associado, visto como jamais toma parte em qualquer empreendimento comum para benefício mútuo, é, em consequência, simplesmente rival. De tal maneira até mesmo a moralidade privada sofre, enquanto a moralidade pública se extingue. Fosse essa a única situação possível e universal, a aspiração mais elevada do legislador ou do moralista somente conseguiria tornar o grosso da comunidade rebanho de carneiros mordicando inocentemente a grama lado a lado. Por todas estas considerações é evidente que o único governo capaz de satisfazer inteiramente todas as exigências do estado social é aquele em que o povo todo participe; que é útil, qualquer participação, mesmo nas funções públicas mais modestas; que a participação deverá ser por toda parte tão grande quanto o grau geral de melhoramento da comunidade o permita; e que é de desejar-se, como situação extrema, nada menos do que a admissão de todos a uma parte do poder soberano do Estado. Todavia, desde que é impossível a todos, em uma comunidade que exceda a uma única cidade pequena, participarem pessoalmente tão-só de algumas porções muito pequenas dos negócios públicos, segue-se que o tipo ideal de governo perfeito tem de ser o representativo. IV EM QUE CONDIÇÕES SOCIAIS SE TORNA INAPLICÁVEL O GOVERNO REPRESENTATIVO FOMOS LEVADOS A RECONHECER no governo representativo o tipo ideal da forma de maior perfeição de governo, para o qual, em consequência, melhor se adapta qualquer porção dos homens em proporção ao grau de melhoramento já atingido. Conforme se situem em condições inferiores de desenvolvimento, menos conveniente será, para eles falando-se em termos gerais, essa forma de governo embora tal não se possa afirmar universalmente; visto como a adaptação de um povo ao governo representativo não depende tanto do lugar que ocupe na escala geral da humanidade, mas do grau em que possua certos requisitos especiais; requisitos esses, contudo, tão intimamente vinculados ao grau de adiantamento geral que qualquer diferença entre os dois é mais exceção do que regra. Vamos examinar em que ponto na série descendente o governo representativo deixa inteiramente de ser admissível, ou por incapacidade intrínseca ou em virtude de capacidade superior de algum outro regime. Em primeiro lugar, portanto, o governo representativo, por igual a qualquer outro, deve ser inconveniente em qualquer caso em que não lhe seja dado subsistir permanentemente - isto é, em que não preencha as três condições fundamentais enumeradas no primeiro capítulo. Tais condições são: (1) que o povo esteja disposto a recebê-lo; (2) que esteja disposto e seja capaz de fazer o que for necessário para preservá-lo; (3) que esteja disposto e seja capaz de cumprir com os deveres e desempenhar as funções que lhe impõe. A disposição do povo em aceitar o governo representativo somente se torna questão prática quando um governante esclarecido ou nação ou nações estrangeiras que dominem o país se inclinem a oferecer-lhe tal vantagem. É quase descabida a questão para o reformador individual, desde que, se não levantarem outra objeção ao que visa senão que a opinião da nação ainda não lhe está ao lado, poderá responder pronta e adequadamente que o conseguir é a própria meta a que visam. Quando a opinião é realmente contrária, a hostilidade reporta-se usualmente mais à mudança do que à forma do governo representativo. Encontram-se alguns exemplos do caso contrário; houve, por vezes, repugnância de origem religiosa a qualquer limitação de poder de certa linha particular de governantes; mas, em geral, a doutrina da obediência passiva significa somente submissão à vontade do poder existente seja monárquico seja popular. Em qualquer caso em que seja provável fazer-se alguma tentativa para introduzir o governo representativo, os maiores obstáculos a temer serão a indiferença para com ele e a incapacidade de compreender-lhe os processos e requisitos, mais do que oposição real. Contudo, esses obstáculos são tão fatais e podem ser tão difíceis de eliminação como aversão real, sendo mais fácil, em muitos casos, alterar a direção de certo sentimento ativo do que criar novo sentimento em qualquer estado anteriormente passivo. Quando um povo não tem bastante apreço por constituição representativa, nem lhe dispensa dedicação, quase não há possibilidade de conservá-la. Em qualquer país o executivo é o ramo do governo que exerce o poder imediato, ficando em contato direto com o povo; a ele, principalmente, dirigem-se as esperanças e os temores dos indivíduos e por meio dele encontram representação benefícios, terrores e prestígio do governo aos olhos do público. Portanto, a menos que contem com opinião e sentimento eficazes no país as autoridades a quem incumbe o controle do executivo, este disporá sempre dos meios de afastá-las ou compeli-las à subserviência, podendo contar com a certeza de encontrar apoio nesse sentido. As instituições representativas dependem necessariamente, para permanência, da presteza do povo em lutar por elas no caso de correrem perigo. Se não lhe derem apreço nesse sentido, raramente conseguirão firmar-se, e se tal acontecer, pode ter-se quase a certeza de que serão derrubadas logo que o chefe do governo ou qualquer líder partidário capaz de reunir forças para um golpe, esteja disposto a arriscar-se pelo poder absoluto. Estas considerações dizem respeito às duas primeiras causas de fracasso do governo representativo. A terceira resulta de não ter o povo nem vontade nem capacidade para exercer o papel que lhe pertence em constituição representativa. Quando ninguém ou apenas pequena fração de pessoas sente, com relação aos negócios gerais do Estado, o grau de interesse indispensável à formação da opinião pública, raramente os eleitores exercitarão de qualquer maneira o direito de sufrágio senão para servir aos próprios interesses, ou aos da localidade, ou de alguém a que estejam ligados como adeptos ou dependentes. A pequena classe que, em semelhante estado de sentimento público, conseguir o controle do corpo representativo, na maior parte dos casos empregá-lo-á somente como meio de promover o próprio enriquecimento. Se é fraco o executivo, perturbam país simples lutas por situações; se forte, torna-se despótico com pequeno custo de apaziguar os representantes, ou certos dentre eles capazes de causar incômodo concedendo-lhes parte dos despojos; e o único fruto que resulta da representação nacional consiste em que, além de quantos realmente governam, surge uma assembleia acantonada sobre o público, não havendo nenhuma possibilidade de remover qualquer abuso em que parte da assembleia esteja interessada. Quando, porém, o mal para nesse ponto, haverá provavelmente interesse em pagar-lhe o preço, em prol da publicidade e da discussão que, embora não invariavelmente, constitui acompanhamento natural de qualquer representação, mesmo nominal. No reino moderno da Grécia; por exemplo, dificilmente será de duvidar-se (Escrito antes da revolução salutar de 1862, que, provocada pela aversão popular ao sistema de governo por meio da corrupção, e pela desmoralização geral dos políticos, veio patentear a esse povo, que melhora rapidamente de condição, oportunidade nova e esperançosa de verdadeiro governo constitucional) que os que entram para a assembleia somente com o intuito de obterem uma colocação, embora nada ou muito pouco contribuam diretamente para o bom governo, nem mesmo suavizando o poder arbitrário do executivo, mantenham a ideia dos direitos populares, conduzindo em grande parte à real liberdade de imprensa, que existe nesse país. Tal benefício, contudo, depende inteiramente da coexistência de rei hereditário ao lado do corpo popular. Se, ao invés de lutar pelos favores do governante principal, essas facções sórdidas e egoístas lutassem pelo próprio lugar principal, conservariam certamente o país, conforme se dá na América do Sul, em estado de revolução crônica e de guerra civil. Ver-se-ia em exercício despotismo nem mesmo legal, mas de violência ilegal, alternadamente em mãos de uma série de aventureiros políticos, e o nome e as formas de representação só teriam por efeito impedir atingisse o despotismo a estabilidade e a segurança mediante as quais se torna possível mitigar-lhe os males ou realizar-lhe as vantagens. Os casos precedentes são aqueles em que o governo representativo não é capaz de existir permanentemente. Outros há em que provavelmente possam existir, mas nos quais seria de preferir-se alguma outra forma de governo. São principalmente aqueles em que o povo, para que avance em civilização, tem de aprender alguma lição, algum hábito ainda não adquirido, para cuja aquisição provavelmente o governo representativo se torne em obstáculo. O mais evidente desses casos é o que consideramos atrás, no qual o povo tem de aprender a primeira lição de civilização, a da obediência. Raça que tivesse recebido treino em energia e coragem pelas lutas contra a natureza e contra os vizinhos, mas que ainda não se houvesse fixado em obediência permanente a qualquer superior comum, mui pouco provavelmente adquiriria semelhante hábito sob o governo coletivo do seu próprio corpo. A assembleia legislativa que se formasse com os seus próprios elementos refletiria simplesmente a própria insubordinação turbulenta. Recusaria aprovação a todos os procedimentos que impusessem à selvagem independência de que gozam qualquer restrição visando ao aperfeiçoamento. A maneira pela qual tais tribos chegam a submeter-se às condições primárias da sociedade civilizada processa-se por meio das necessidades da guerra e da autoridade despótica indispensável ao mando militar. Somente a um chefe militar se submetem, exceto acidentalmente a algum profeta que suponham inspirado pelo céu ou feiticeiro considerado como possuidor de poder miraculoso. Estes poderão exercer ascendência temporária, mas, por ser meramente pessoal, raras vezes leva a efeito qualquer mudança nos hábitos gerais do povo, a menos que o profeta, a exemplo de Maomé, seja também chefe militar, apresentando-se como apóstolo armado de nova religião; ou a menos que os chefes militares se aliem à influência dele transformando-a em esteio do próprio governo. Um povo mostra-se igualmente não menos capaz de governo representativo pelo defeito oposto ao que se acaba de assinalar - pela passividade extrema e pronta submissão à tirania. Se um povo assim prostrado pelo caráter e pelas circunstâncias obtivesse instituições representativas, escolheria inevitavelmente os tiranos como representantes, e o jugo se tornaria mais pesado pelo dispositivo que prima fade seria de esperar-se torná-lo mais leve. Ao contrário, muitos povos emergiram gradualmente dessa situação pelo auxílio de uma autoridade central cuja posição a tornou rival e ao fim transformou-a em senhor dos déspotas locais, sendo, acima de tudo, única. A história da França desde Ruga Capeto a Richelieu e Luís XIV (Estes nomes abarcam o desenvolvimento da França desde o começo nacional até o poder mais centralizado da monarquia) constitui exemplo continuado deste curso dos acontecimentos. Mesmo quando o rei era raramente tão poderoso quanto muitos dos seus principais feudatários, a grande vantagem de ser o único foi reconhecida pelos historiadores franceses. Para ele voltavam-se os olhos de todos os oprimidos localmente; era objeto de fé e esperança através do reino inteiro, enquanto cada potentado local somente ostentava poder dentro de âmbito mais ou menos limitado. De todas as partes do país procurava-se refúgio e proteção em suas mãos, contra um primeiro e depois outro dos opressores imediatos. A marcha da ascensão foi lenta; mas resultou do aproveitamento sucessivo de oportunidades que somente a ele se ofereciam. Era, portanto, segura e à proporção que se realizava, diminuiu, na parte oprimida da comunidade, o hábito da submissão à opressão. O interesse do rei consistia em animar todas as tentativas parciais por parte dos servos no sentido de se emanciparem dos senhores, vindo colocar-se em imediata subordinação a ele. Sob a sua proteção formaram-se numerosas comunidades que somente reconheciam o rei acima delas. A obediência a monarca distante é a própria liberdade em comparação ao domínio do senhor do castelo vizinho; e o monarca viu-se forçado a exercer, por necessidade de sua posição, a autoridade como aliado mais do que senhor das classes cuja libertação ajudara a conquistar. Desta maneira um poder central, em princípio despótico embora geralmente mui restrito na prática, tornou-se decisivo na condução do povo através de estádio necessário de melhoramento, o que mui provavelmente o governo representativo, se real, não teria logrado conseguir. Nada menos que governo despótico ou massacre geral teria realizado a emancipação dos servos do império russo. As mesmas passagens da história esclarecem forçosamente outra maneira em que a monarquia ilimitada supera obstáculos ao progresso da civilização que o governo representativo teria tido tendência decisiva em agravar. Um dos obstáculos mais fortes ao melhoramento, até estádio relativamente avançado, resulta de espírito regional inveterado. Certas porções de homens, sob muitos outros aspectos capazes de liberdade e para ela preparados, não apresentam condições para se amalgamarem mesmo na menor das nações. Não só inúmeras rivalidades e antipatias repelem-nos uns aos outros, impedindo toda possibilidade de união voluntária, mas pode acontecer que ainda não tenham adquirido qualquer dos sentimentos ou hábitos suscetíveis de tornarem real a união, supondo-se esta nominalmente realizada. Muito embora tenham tido, a exemplo dos cidadãos de antiga comunidade ou de aldeia asiática, prática considerável no exercício de suas faculdades com relação aos interesses de aldeia ou cidade, tendo mesmo realizado governo popular toleravelmente eficaz, nessa escala restrita, entretanto, manifestarão fraca simpatia para algo de mais avançado, e não possuirão o hábito ou a habilidade de gerir interesses comuns a muitas comunidades desse tipo. Não é de meu conhecimento que a história forneça qualquer exemplo em que certo número desses átomos ou corpúsculos políticos se tenham fundido em um corpo, aprendendo a sentir-se um povo só, exceto mediante prévia sujeição a autoridade central comum a todos (A Itália, que é o único país que, se possa citar como exceção, só o é no estádio final da sua transformação. A passagem anterior mais difícil de isolamento urbano, de Florença, Pisa e Milão, para a unidade provincial da Toscana ou Lombardia realizou-se da maneira usual). Contraindo o hábito de acatar essa autoridade, de tomar parte nos planos dela e de concorrer para os seus fins, um povo tal como supusemos dá lugar, no espírito, à concepção de amplos interesses comuns cobrindo considerável extensão geográfica. Tais interesses, ao contrário, formam necessariamente a consideração predominante no espírito do governante central; e por meio das relações mais ou menos íntimas, que estabelece progressivamente com as localidades, estas se familiarizam com o espírito geral. O concurso de circunstâncias mais favorável, sob o qual seria possível dar semelhante passo, seria aquele em que fosse possível fazer surgir instituições representativas sem governo representativo - corpo ou corpos representativos, extraídos das localidades, que se tornassem auxiliares e instrumentos do poder central, mas tentando raramente contrariá-lo ou controlá-lo. Ficando por esse modo o povo em condições por assim dizer de aconselhar, embora sem partilhar do poder supremo, a educação política proporcionada pela autoridade central penetra muito mais eficazmente do que por outra maneira qualquer, até os chefes locais e à população em geral, enquanto simultaneamente se mantém tradição de governo por consentimento geral, ou pelo menos, não se atribui a sanção da tradição a governo que não a possua, o que, quando consagrado pelo costume, frequentemente pôs mau fim a bom princípio, podendo apontar-se como uma das causas mais frequentes da triste fatalidade que, na maior parte dos séculos, fez cessar o melhoramento em estádio tão primário, porque a obra de certo período executou-se de maneira a obstar o trabalho necessário das idades por vir. Entrementes pode formular-se como verdade política ser possível amalgamar em um povo, por meio de monarquia irresponsável mais do que pelo governo representativo multidão de unidades políticas insignificantes com sentimentos comuns de coesão, bastante poder para proteger-se de conquista ou de agressão estrangeira, e negócios suficientemente diversificados e consideráveis para ocupar dignamente e expandir em proporções adequadas a inteligência social e política da população. Por estes motivos variados, o governo real, livre do controle (embora talvez reforçado pelo apoio) de instituições representativas, é a forma de governo mais conveniente aos primeiros estádios de qualquer comunidade, sem excetuar-se a cidade-comunidade como as da antiga Grécia, nas quais, em consequência, o governo de reis, sob certo controle real mas não ostensivo ou constitucional por parte da opinião pública, precedeu historicamente por período provavelmente muito extenso e desconhecido, quaisquer instituições livres, cedendo afinal o lugar, durante lapso considerável de tempo, a oligarquias de poucas famílias. Pode-se assinalar em um povo uma centena de outras enfermidades ou deficiências que “pro tanto” o tornam incapaz de tirar o melhor proveito do governo representativo; quanto a estas, contudo, não é igualmente evidente que o governo de um ou de poucos revele qualquer tendência a curar ou remediar o mal. Fortes preconceitos de qualquer espécie, adesão obstinada a velhos hábitos, defeitos positivos do caráter nacional, ou simples ignorância, e deficiência de cultura mental, se prevalecerem em um povo, refletir-se-ão fielmente nas assembleias legislativas, e se acaso a administração executiva, a gerência direta dos negócios públicos estiver nas mãos de pessoas comparativamente livres de tais defeitos, frequentemente maior bem resultará para eles se não se virem tolhidos pela necessidade de se submeterem ao assentimento voluntário de tais corpos. Todavia, a simples posição dos governantes neste como em outros casos que examinamos, não os investe de interesses e tendências que atuem em direção benéfica. Não é provável que o Único e seus conselheiros ou os Poucos fiquem habitualmente isentos da fraqueza geral do povo ou do estado de civilização, exceto no caso de serem estrangeiros, que pertençam a povo superior ou a estado mais adiantado de sociedade. Então, de fato, poderão ser os governantes, quase em qualquer extensão, superiores em civilização àqueles que têm de governar; e a sujeição a governo estrangeiro dessa natureza, apesar dos males inevitáveis, é muita vez da maior vantagem para o povo, fazendo-o passar rapidamente através de vários estádios de civilização e afastando obstáculos ao melhoramento suscetíveis de durar indefinidamente se a população submetida ficasse desassistida e entregue a tendências e oportunidades naturais. Em país não submetido a domínio estrangeiro, a causa, talvez única, em condições de produzir benefícios semelhantes consiste no raro acidente de monarca de extraordinário gênio. Estes têm sido na história alguns poucos dos que, felizmente para a humanidade, reinaram por bastante tempo para tornar permanentes alguns dos seus melhoramentos, deixando-os sob a guarda de uma geração que cresceu sob sua influência. Pode citar-se Carlos Magno como exemplo; Pedro o Grande é outro. Contudo, tais exemplos são tão pouco frequentes que só se podem classificar como acidentes felizes, destinados tantas vezes a decidir em momento crítico se certa porção orientadora da humanidade devia dar repentino passo à frente ou mergulhar na barbárie, - possibilidades como a existência de Temístocles ao tempo da invasão persa, ou dos dois Guilherme de Orange, o primeiro e o terceiro. Seria absurdo construir instituições com o simples propósito de aproveitar semelhantes possibilidades, especialmente porque homens de tal calibre, em qualquer posição distinta, não precisam de poderes despóticos para que exerçam grande influência, conforme o provam os três mencionados acima. O caso que exige mais acurada consideração com referência às instituições é o que muita vez se depara de porção pequena, mas dirigente da população, de raça diferente, de origem mais civilizada, ou de outras particularidades de circunstância, marcadamente superior em civilização e caráter geral a todo o resto. Em tais condições, o governo pelos representantes da massa teria a oportunidade de privar o povo de grande parte do benefício que lhe adviria da maior civilização das fileiras superiores, enquanto o governo pelos representantes destas provavelmente firmaria a degradação da multidão e nenhuma esperança lhes deixaria de tratamento decente senão libertando-se dos elementos mais valiosos de adiantamento futuro. A melhor perspectiva de adiantamento para um povo composto por essa forma reside na existência de autoridade constitucionalmente ilimitada, ou pelo menos praticamente preponderante, no principal governante da classe dominante. Somente ele, pela sua posição, tem interesse em elevar e melhorar a massa que lhe não inspira zelos, como contrapeso, aos seus associados dos quais os nutre. E se certas circunstâncias felizes lhe colocarem ao lado, não como controlador mas como subordinado, um corpo representativo da casta superior, que mantenha vivos pelas objeções e dúvidas, e pelas explosões de espírito, hábitos de resistência coletiva, o qual se admita venha a expandir-se em tempo e gradativamente, em representação realmente nacional (o que é, na essência, a história do Parlamento inglês), a nação terá então as perspectivas mais favoráveis de melhoramento suscetíveis de se apresentarem a uma comunidade colocada em tal situação e de tal maneira constituída. Entre as tendências que, sem tornar em absoluto um povo incapaz de governo representativo, seriamente lhe impede de colher todos os benefícios, uma precisa de atenção particular. As inclinações apresentam dois estados, intrinsecamente mui diversos, mas que possuem algo em comum, em virtude do que muita vez coincidem na direção que imprimem aos esforços dos indivíduos e das nações: uma é o desejo de exercer poder sobre outrem; a outra é a relutância em permitir se exerça poder sobre si. A diferença entre as diversas porções de homens quanto à força relativa dessas duas disposições constitui um dos elementos mais importantes da história. Nações existem nas quais a paixão de governar a outrem é tão mais forte do que o desejo de independência pessoal que, pela simples sombra de uma estão prontos a sacrificar a outra por inteiro. Cada um deles está pronto a abdicar, como o soldado raso de um exército, da liberdade pessoal de ação nas mãos do general, contanto que o exército triunfe e vença, sentindo-se ele capaz de lisonjear-se de pertencer às hostes conquistadoras, embora importe em simples ilusão a ideia de que ele mesmo participe da dominação exercida sobre os vencidos. Não é do gosto de tal gente governo rigorosamente limitado nos poderes e atribuições, do qual se exija pouca intromissão, deixando que quase tudo marche sem que assuma o papel de guarda ou diretor. Aos olhos dessa gente dificilmente os detentores da autoridade chamarão a si parte demasiado grande, contanto que a própria autoridade fique ao encalço da concorrência geral. O indivíduo que faz parte dela prefere a eventualidade, embora distante e pouco provável, de exercer qualquer parte do poder sobre os seus concidadãos, à certeza, igualmente para ele e para os outros, de que não exerçam qualquer poder desnecessário sobre eles. Tais os elementos de um povo que só busca colocações, para o qual esta determina principalmente o curso da política; no qual somente se cura de igualdade, mas não de liberdade; no qual as controvérsias dos partidos políticos nada mais são do que lutas para decidir se o poder de meter-se em tudo deve pertencer mais a uma classe do que a outra; talvez tão-só a um agrupamento de homens públicos do que a outro; no qual a ideia que se nutre de democracia é simplesmente a de facultar cargos à concorrência de todos ao invés de a alguns; no qual quanto mais populares as instituições, tanto mais numerosos os cargos criados, e mais monstruoso o supergoverno exercido por todos sobre cada um, e pelo executivo sobre todos. Seria tão injusto quão pouco generoso apresentar esta descrição ou algo que se aproxime dela, como quadro não exagerado do povo francês; entretanto, o grau em que participam dês te tipo de caráter conduziu à decomposição por excesso de corrupção do governo representativo exercido por classe limitada, e a tentativa de governo representativo pela inteira população masculina à entrega a um único homem do poder de enviar, sem julgamento, qualquer porção dos restantes a Lambessa e a Caiena (Lambessa, aldeia da Argélia, local de uma colônia de presos; Caiena, capital da Guiana Francesa, local de outra colônia notória de presos; atualmente essas duas localidades tornaram-se sinônimos de prisão desumana), contanto que lhes permita a todos pensarem não estarem excluídos da possibilidade de partilhar-lhe dos favores. O ponto de caráter que, acima de qualquer outro, torna o povo do nosso país capaz de governo representativo é que possui quase universalmente a característica oposta ao que ficou dito acima. O povo inglês é muito cioso de qualquer tentativa de exercer-se poder sobre ele não sancionado por longo uso e pela própria opinião que tem do que é direito; mas em geral mui pouco se preocupa com exercer qualquer poder sobre outrem: Não alimentando a menor simpatia pela paixão de governar, enquanto tem pleno conhecimento dos motivos de interesse particular que levam à conquista do poder, prefere que dele se encarreguem aqueles a cujas mãos vem sem que o procurem, como consequência da posição social. Se os estrangeiros compreendessem o que aí está, dar-se-iam conta de algumas das contradições aparentes dos sentimentos políticos dos ingleses; a presteza sem hesitação de deixar-se governar pelas classes mais elevadas, conjugada à subserviência pessoal em tão pequeno grau que povo algum tem maior prazer em resistir à autoridade sempre que ultrapassa certos limites prescritos, ou tão resoluto em lembrar sempre aos governantes que só será governado pela maneira que julga melhor. Assim sendo, a busca de colocações, constitui forma de ambição a que os ingleses, considerados num ponto de vista nacional, são quase estranhos. Se excetuarmos as poucas famílias ou relações destas em cujo caminho se encontra diretamente o emprego oficial, as opiniões dos ingleses com relação à ascensão na vida tomam direção inteiramente diversa - a do êxito nos negócios e na profissão. Desagrada-lhes profundamente qualquer disputa de cargos por partidos políticos ou indivíduos: e nada lhes repugna mais do que a multiplicação dos empregos públicos - o que, ao contrário, sempre recebem com prazer as nações sobrecarregadas de burocracia do Continente, - que preferem pagar impostos mais elevados a diminuir pela menor fração possível as possibilidades individuais de um lugar para si ou para os parentes, e entre os quais o brado por economias jamais significa a supressão de cargos, mas a redução de salários daqueles que são por demais importantes para o cidadão comum ter qualquer possibilidade de vir a ocupá-los. V DAS FUNÇÕES PRÓPRIAS AOS CORPOS REPRESENTATIVOS Ao TRATAR DO GOVERNO REPRESENTATIVO é preciso, acima de tudo, não perder de vista a distinção entre a ideia ou essência e as formas particulares de que se revestiu a ideia por causa dos desenvolvimentos históricos acidentais ou a noções correntes em certo período particular. A significação do governo representativo consiste em que o povo inteiro, ou certa porção muito numerosa dele, exerce, por meio de deputados periodicamente eleitos por ele, o poder controlador extremo, que em qualquer constituição tem de residir em alguma parte. O povo tem de possuir este poder extremo em toda a sua inteireza. Tem de ser senhor, sempre que assim lhe aprouver, de todas as operações do governo. Não há necessidade que a lei constitucional lhe atribua essa supremacia. A Constituição britânica não a dá. Mas o que dá lhe equivale praticamente. O poder do controle final é tão essencialmente singular em governo misto e equilibrado, como em monarquia pura ou democracia. É esta a parte da verdade na opinião dos antigos, restabelecida por grandes autoridades da nossa própria época, quanto a ser impossível uma constituição equilibrada. Quase sempre existe certo equilíbrio, mas as conchas da balança não pendem nunca à mesma altura. Qual das duas predomina nem sempre se torna aparente na face da instituição política. Na Constituição britânica cada um dos três membros coordenados da soberania está investido de tais poderes que, se viesse a exercê-los inteiramente, poderia fazer parar todo o mecanismo do governo. Nominalmente, portanto, cada um está investido de poder igual para contrariar e obstruir os outros dois; e se, ao exercer esse poder, qualquer dos três tivesse a esperança de melhorar a própria posição, o curso ordinário dos negócios humanos nos impede de duvidar que se exercesse tal poder. Não pode haver dúvida que se empregariam defensivamente os poderes inteiros de cada um se se visse assaltado por um ou dois dos outros. O que impede então que se exerçam esses mesmos poderes agressivamente? As máximas não escritas da constituição - em outras palavras, a moralidade política positiva do país; e essa moralidade política positiva é o que temos de considerar se quisermos saber onde reside realmente o poder supremo da Constituição. Pela lei constitucional a Coroa pode recusar assentimento a qualquer ato do Parlamento e nomear para o cargo um Ministro e nele mantê-lo, em oposição aos protestos do Parlamento. Mas a moralidade constitucional do país anula tais poderes, impedindo-lhes invariavelmente o uso; e, exigindo que o chefe da Administração seja sempre virtualmente indicado pela Casa dos Comuns, torna este corpo o soberano real do Estado. Estas regras não escritas, que limitam o uso dos poderes legais, são, contudo, somente eficazes e conservam-se em existência sob a condição de se harmonizarem com a distribuição real da força política existente. Existe em qualquer constituição um poder mais forte - aquele que sairia vitorioso se se suspendessem os compromissos que fazem em geral funcionar a Constituição e se procedesse a um ensaio de força. Respeitam-se as máximas constitucionais que se aplicam praticamente a contento enquanto atribuem a preeminência na Constituição àquele dos poderes que prepondera como poder ativo do lado de fora. Na Inglaterra é este o poder popular. Se, portanto, as provisões legais da Constituição inglesa, juntamente com as máximas não escritas, conforme as quais se regula de fato a conduta das diversas autoridades políticas, não atribuíssem ao elemento popular de Constituição a supremacia substancial sobre qualquer departamento do governo que corresponde ao seu poder real no país, a Constituição não possuiria a estabilidade que a caracteriza; em breve seria preciso mudar ou as leis ou as máximas não escritas. O governo britânico é, portanto, governo representativo no sentido correto do termo; e os poderes que deixa em mãos não diretamente responsáveis perante o povo só se podem considerar como precauções que o poder governante concorda em que se tomem contra os seus próprios erros. Tais precauções têm existido em todas as democracias bem instituídas. A constituição ateniense continha muitas precauções dessa espécie: assim também a dos Estados Unidos. Mas enquanto é essencial ao governo representativo que a supremacia prática no Estado resida nos representantes do povo; é questão aberta que funções de fato, que parte precisa da máquina do governo deve caber direta e pessoalmente ao corpo representativo. A esse respeito grande variedade é compatível com a essência do governo representativo, contanto que as funções sejam tais que assegurem ao corpo representativo o controle de tudo em última instância. Existe distinção radical entre controlar a atividade do governo e realizá-la na realidade. A mesma pessoa ou corpo pode ser capaz de tudo controlar, mas não pode chegar a executar tudo; e em muitos casos o controle sobre tudo será tanto mais perfeito quanto menos se tente exercê-lo pessoalmente. O comandante de um exército não poderia dirigir eficazmente os movimentos deste se tivesse de combater nas fileiras ou levar as tropas ao assalto. O mesmo se dá com grupos de homens. Há o que somente se pode fazer por meio de grupos; há também o que estes não podem fazer bem. Uma questão, portanto, é saber o que deverá controlar uma assembleia popular, outra o que ela própria deverá executar. Deverá, conforme vimos anteriormente, controlar todas as operações do governo. Mas, a fim de determinar-se qual o canal que melhor se preste ao exercício desse controle, e qual a porção da atividade do governo que a assembleia legislativa deve conservar entre as mãos, necessário se torna considerar que espécie de atividades um corpo numeroso tem capacidade de executar convenientemente. Deve chamar a si somente aquilo que seja capaz de bem executar. Quanto ao resto, não lhe cabe fazê-lo, mas providenciar para que outros o levem a termo com perfeição. Por exemplo, o dever que se considera como cabendo mais particularmente do que qualquer outro à assembleia representativa do povo é votar os impostos. Apesar disso, em país algum o corpo representativo se encarrega, por si ou por meio de delegados seus, de preparar as estimativas. Embora somente a Casa dos Comuns possa votar créditos, e embora se exija a sanção deste corpo para a distribuição das receitas aos diversos itens da despesa pública, constitui máxima e prática uniforme da Constituição conceder verbas somente por proposta da Coroa. Sem dúvida sentiu-se que a moderação quanto ao volume e o cuidado e julgamento no detalhe da aplicação só se podem esperar quando o poder executivo por cujas mãos tudo tem de passar assume a responsabilidade dos planos e cálculos em que se baseiam as despesas. Assim sendo, não se espera que o Parlamento tome a iniciativa de qualquer imposto ou qualquer despesa diretamente, nem mesmo tal se lhe permite. Tudo quanto lhe pedem é o consentimento e o único poder que possui é o de recusa. Os princípios que se implicam e reconhecem nesta doutrina constitucional, seguidos até onde podem ir, servirão para guiar a limitação e definição das funções gerais das assembleias representativas. Em primeiro lugar, admite-se em todos os países em que se compreende praticamente o que seja o sistema representativo, que corpos representativos numerosos não devem administrar. Baseia-se esta máxima não só nos princípios mais essenciais de bom governo, mas nos da conduta bem-sucedida de negócios de qualquer descrição. Nenhum corpo de homens, a menos que se organize sob comando, é apto à ação, no sentido próprio. Até mesmo um corpo escolhido, composto de poucos membros, e estes especialmente versados no trabalho a executar, mostra-se sempre instrumento inferior a algum indivíduo que se possa encontrar no seio deles, e melhoraria em caráter se essa pessoa se tornasse o chefe, reduzindo-se todos os demais a subordinados. O que um corpo faz melhor do que o indivíduo é a deliberação. Quando necessário ou importante obter manifestações ou ponderações sobre opiniões divergentes, torna-se indispensável um corpo deliberativo. Em consequência, tais corpos são frequentemente úteis, mesmo para objetivos administrativos, mas em geral tão-só como conselheiros; tais negócios sendo, geralmente, mais bem conduzidos sob a responsabilidade de um só. Até mesmo uma companhia por ações tem sempre na prática, se não em teoria, um diretor administrativo; a gestão boa ou má depende essencialmente das habilitações de certa pessoa, e os restantes diretores, quando têm qualquer utilidade, prestam serviço pelas sugestões que lhe fazem ou pelo poder que possuem de fiscalizá-lo, contendo-o ou removendo-o no caso de mau procedimento. Não há vantagem em que partilhem igualmente com ele da direção, mas, ao contrário, tal se torna obstáculo considerável a qualquer bem que sejam capazes de fazer: enfraquece grandemente o sentimento de responsabilidade individual no espírito daquele e dos demais, perante os quais deveria salientar-se pessoalmente e indivisivelmente. Contudo, uma assembleia popular ainda é menos capaz de administrar ou de dar ordens em detalhe aos que têm o encargo da administração. Mesmo quando a intenção é boa, a interferência é quase sempre prejudicial. Cada ramo da administração pública constitui atividade especializada, possuindo princípios próprios peculiares e regras tradicionais, muitas das quais nem mesmo são conhecidas, de qualquer maneira eficaz, senão daqueles que tomaram parte, em qualquer ocasião, na administração, não sendo provável que as apreciem devidamente pessoas que não estejam praticamente em contato com o departamento respectivo. Não quero dizer que a realização das atividades públicas dependa de mistérios esotéricos, ao alcance somente dos iniciados. Qualquer pessoa de bom senso está em condições de compreender-lhes os princípios, desde que se represente ao espírito quadro verdadeiro das circunstâncias e condições a enfrentar; mas para tanto será preciso que conheça tais circunstâncias e condições; e esse conhecimento não se adquire intuitivamente. Existem inúmeras regras da maior relevância em todos os ramos da atividade pública (como também as há nas ocupações privadas) cuja razão o inexperiente ignora ou de cuja existência nem mesmo suspeita, porquanto se destinam a fazer frente a perigos ou a precaver contra inconvenientes que não lhe despertaram nunca a atenção. Conheço homens públicos, ministros, de capacidade natural acima do comum, que, ao tomarem conhecimento pela primeira vez de um departamento público até então desconhecido para eles, provocam o riso dos subordinados pelo ar com que anunciam como verdade até então desprezada, e somente por eles posta em foco, algo que talvez fosse o primeiro pensamento de quem quer que tivesse encarado a questão, para logo abandonada ao deparar com uma segunda. É verdade que o grande estadista é aquele que sabe quando deve afastar-se das tradições e quando prestar-lhes apoio. Enganar-se-á, porém, grandemente quem supuser que será melhor para ele ignorar as tradições. Ninguém que não conheça perfeitamente as maneiras de agir sancionadas pela experiência comum é capaz de julgar das circunstâncias que exigem o abandono delas. Os interesses que dependem de atos realizados por um departamento público, as consequências capazes de decorrerem de qualquer maneira particular de conduzi-lo, exigem, para ponderá-las e avaliá-las, certa espécie de conhecimento e de julgamento especialmente exercido, que se encontra quase tão raramente nos que com ele não estão familiarizados como a habilidade de reformar a lei nos que não a estudaram profissionalmente. Uma assembleia legislativa que procure decidir a respeito de atos especiais de administração com toda certeza passará por cima de todas essas dificuldades. Na melhor das hipóteses, será a inexperiência arvorando-se em juiz da experiência, a ignorância em juiz do conhecimento - a qual, não sendo capaz de suspeitar da existência do que desconhece, é por igual descuidada e pretensiosa, desprezando, se não ressentindo, qualquer pretensão a melhor julgamento mais merecedor de atenção do que o próprio. Assim acontece quando não intervêm motivos interessados; mas quando tal se dá, o resultado importa em negociata mais descarada e audaciosa do que a pior corrupção que possa ter lugar em departamento público em governo de publicidade. Não é necessário que a influência interessada se estenda à maioria da assembleia. Em qualquer caso particular é muita vez suficiente que afete dois ou três dos seus membros. Estes terão maior interesse em desencaminhar a assembleia do que qualquer outro membro provavelmente terá em orientá-la. O grosso da assembleia poderá manter limpas as mãos, mas não conservar o espírito vigilante ou o julgamento em condições de discernir em assuntos de que nada sabem; e a maioria indolente, como o indivíduo indolente, pertence a quem mais se preocupe com ela. As medidas más ou as nomeações prejudiciais de um ministro o Parlamento poderá impedir; e o interesse dos ministros em defender e dos partidários rivais em atacar, garante discussão toleravelmente equitativa; mas “quis custodiet custodes?” - mas quem há-de conter o Parlamento? Um ministro, um chefe de repartição, sente-se sob certa responsabilidade; contudo, em casos tais uma assembleia não se sente de modo algum sob qualquer responsabilidade; porque, quando se viu qualquer membro do Parlamento perder a cadeira por causa do voto que deu sobre qualquer detalhe da administração? A um ministro, a um chefe de serviço afigura-se mais importante o que se venha a pensar do seu procedimento daqui a algum tempo do que o que se pensa no momento; mas uma assembleia, se o clamor do momento lhe vem em apoio, muito embora erguido às pressas ou agitado artificialmente, julga-se e assim também a julgam todos, completamente desculpada por mais desastrosas que venham a ser as consequências. Além disso, uma assembleia nunca experimenta os inconvenientes das más medidas até que se transformem em males nacionais. Os ministros e os administradores veem-nos· quando se aproximam, e têm de suportar todo o aborrecimento e incômodo de afastá-los. O dever que incumbe a uma assembleia representativa com relação a assuntos de administração não consiste em decidi-los pelo próprio voto, mas em cuidar em que as pessoas encarregadas de resolvê-los sejam as mais capazes para esse fim. Nem mesmo isso conseguem vantajosamente pela nomeação dos indivíduos. Ato algum exige mais imperativamente execução sob forte sentimento de responsabilidade individual do que a nomeação de funcionários. A experiência de todos quantos estão familiarizados com os negócios públicos corrobora a afirmação de que raramente se encontra um ato relativamente ao qual a consciência de um homem médio seja menos sensível; raramente qualquer caso em que se dispense menos consideração às habilitações em parte porque ignorem, e em parte porque não lhes importe, a diferença em habilitações entre uma pessoa e outra. Quando um ministro faz uma nomeação que se pretende seja honesta, isto é, quando não a negocia realmente em troca das relações pessoais ou do partido, o ignorante seria levado a supor que a autoridade procura concedê-la à pessoa mais categorizada. Não há tal. Um ministro comum julga-se um milagre de virtude se o destina a um indivíduo de mérito ou que a ele tenha direito por qualquer motivo, embora direito ou mérito sejam da natureza mais contrária ao que se deseje. "Il fallait un calculateur, ce fut um danseur qui l'obtint”, é dificilmente algo mais que uma caricatura hoje do que nos dias de Fígaro; e sem dúvida o ministro julga-se não só inatacável, mas louvável se o homem dança bem. Além disso, as habilitações que adaptam certos indivíduos a determinados deveres só as reconhecem aqueles que os conhecem, ou que se ocupam em examinar e julgar as pessoas pelo que fizeram, ou pelo testemunho dos que estão em situação de julgarem. Quando essas obrigações conscienciosas recebem tão pouca atenção dos funcionários públicos superiores que podem ser responsabilizados pelas nomeações, o que acontecerá com as assembleias que não estão nessas condições? Mesmo agora, as piores nomeações são as que se fazem com o intuito de obter o apoio da oposição ou de desarmá-la na assembleia representativa; o que será de esperar-se se a própria assembleia as fizer? Inúmeras assembleias não levam nunca em consideração as habilitações especiais. A menos que mereça a forca, julga-se um indivíduo tão capaz como qualquer outro para quase tudo a que se apresente como candidato. Quando não são as ligações partidárias ou as negociatas privadas que decidem das nomeações feitas por um corpo público, como quase sempre acontece, nomeia-se um indivíduo ou porque tenha reputação, muita vez inteiramente imerecida, de capacidade geral, ou frequentemente por motivo não melhor do que ser pessoalmente popular. Nunca se julgou fosse de desejar que o Parlamento nomeasse até mesmo os membros do Gabinete. Já é bastante que decida virtualmente qual deva ser o primeiro ministro, ou dentre dois ou três qual deve ser escolhido para esse cargo. Ao fazê-lo reconhece simplesmente que certo indivíduo é candidato do partido cuja política geral lhe merece apoio. Na realidade, a única questão que o Parlamento resolve consiste em saber, dentre dois ou no máximo três, partidos ou grupos de homens, qual o que fornecerá o governo executivo; a opinião do próprio partido decide qual dos seus membros é o mais capaz de chefiá-lo. De acordo com a prática atual da Constituição britânica, tudo isso parece encontrar-se na melhor situação possível. O Parlamento não nomeia qualquer ministro, mas a Coroa indica o chefe da administração de conformidade com os desejos gerais e inclinações manifestados pelo Parlamento, e os outros ministros de acordo com a recomendação do chefe; enquanto cada ministro tem a responsabilidade moral indivisível de nomear pessoas capazes para os outros cargos da administração, que não forem permanentes. Em uma república algum outro dispositivo se tornaria necessário; mas quanto mais se aproximar na prática do que tem existido por tanto tempo na Inglaterra, tanto mais provavelmente funcionará a contento. Ou, como na república americana, o chefe do Executivo deve ser eleito por algum órgão inteiramente independente da assembleia representativa ou esta deve contentar em nomear o primeiro ministro, tornando-o responsável pela escolha dos seus associados ou subordinados. Antecipo inteiramente assentimento geral a todas essas considerações, pelo menos teoricamente, embora na prática se verifique forte tendência por parte das assembleias em interferir cada vez mais nos detalhes da administração, em virtude da lei geral que quem quer que possua o poder mais forte cada vez fica mais tentado de abusar dele; e este é um dos perigos práticos a que terá de expor-se o futuro dos governos representativos. Mas é igualmente verdadeiro, embora só recentemente e muito vagarosamente se comece a reconhecê-lo, que uma assembleia numerosa se revela tão pouco conveniente para a atividade direta da legislação como para a de administração. Dificilmente se encontra qualquer espécie de atividade intelectual que precise ser realizada não só por espíritos experimentados e exercitados, mas igualmente habilitados ao desempenho da tarefa pelo estudo longo e laborioso, como a ocupação de fazer leis. Esta é razão suficiente, se outra não houvesse, para que somente as possa fazer bem uma comissão de muito poucas pessoas. Razão não menos decisiva é que cada dispositivo de uma lei exige construção das mais precisas e percepção de longo alcance dos seus efeitos sobre todos os outros dispositivos; e a lei, quando pronta, deve ser capaz de ajustar-se em um conjunto consistente com todas as leis previamente existentes. Será impossível satisfazer a estas condições de qualquer maneira se se votassem as leis cláusula por cláusula em assembleia heterogênea. A incongruência de tal maneira de legislar impressionaria a todos os espíritos se as nossas leis já não fossem, em forma e construção, caos tão grande que a confusão e a contradição parecem incapazes de se tornarem ainda maiores por qualquer acréscimo à massa. Entretanto, mesmo agora, a inaptidão completa da nossa máquina legislativa para os seus próprios fins está-se fazendo sentir praticamente cada vez mais de ano em ano. O simples tempo necessariamente gasto na aprovação de projetos de lei torna o Parlamento cada vez mais incapaz de aprovar qualquer um, exceto relativamente a pontos isolados ou estreitos. Se se prepara um projeto que procure tratar do conjunto de qualquer assunto, (e é impossível legislar convenientemente sobre qualquer parte sem ter o conjunto presente ao espírito) arrastar-se-á de sessão em sessão pela simples impossibilidade de encontrar-se tempo para dispor dele. Não importa que o projeto tenha sido elaborado pela autoridade que se julga mais competente, com todos os dispositivos e meios a mais; ou por uma comissão especial, escolhida pelo conhecimento do assunto, que tenha empregado anos na ponderação e meditação da medida em apreço; não merecerá aprovação, porque a Casa dos Comuns não se pode privar do privilégio precioso de remendá-la com as mãos desajeitadas. Introduziu-se ultimamente o costume de, quando se confirma o projeto em segunda leitura, passá-lo para consideração em detalhe a uma Comissão Especial; mas não se verificou se essa prática faz com que se perca menos tempo depois para submetê-lo à Comissão da Casa inteira; as opiniões ou extravagâncias privadas, rejeitadas pelo conhecimento, insistem sempre em conseguir segunda oportunidade perante o tribunal da ignorância. Na realidade, tal prática foi adotada principalmente pela Casa dos Lordes, cujos membros têm menos que fazer e gostam menos de intrometer-se, e são menos ciosos da importância das suas opiniões individuais, do que os da câmara eletiva. E quando um projeto de muitos artigos não consegue discussão detalhada, como será possível representar o estado em que sai da Comissão! Artigos omitidos essenciais à aplicação dos restantes; outros discordantes introduzidos com o intuito de conciliar algum interesse privado ou algum membro extravagante que ameaça demorar o projeto; artigos impingidos por proposta de algum sabichão que possui simples conhecimento superficial do assunto, levando a consequências que o primeiro a apresentar o projeto ou os que o apoiaram no momento não previram, exigindo um ato de emenda na sessão seguinte para corrigir-lhe os malefícios. Um dos males da maneira atual de agir nesse particular está em que a explicação e a defesa de um projeto, e dos seus diversos artigos, raramente cabe a quem primeiro teve a ideia de elaborá-lo, e que talvez não tenha assento na Casa. Incumbe-se da defesa algum ministro ou membro do Parlamento que não o redigiu, que depende de estudos apressados para todos os seus argumentos menos os que são perfeitamente evidentes, que desconhece toda a importância da questão, e as melhores razões para sustentá-la, sendo absolutamente incapaz de enfrentar objeções não previstas. Este mal, no que entende com os projetos governamentais, admite remédio e foi remediado em algumas constituições representativas, permitindo-se ao governo fazer-se representar em qualquer das Casas por pessoas de sua confiança, que têm o direito de falar, mas não de votar. Se a maioria, ainda considerável, da Casa dos Comuns que não apresenta qualquer emenda nem faz qualquer discurso não abandonasse toda a regulação das atividades aos que assim procedem; se se lembrasse que existem melhores habilitações para a legislação que se podem achar se houver interesse em procurá-las, do que língua fluente e a faculdade de conseguir eleger-se por certo distrito eleitoral; em breve se reconheceria que, tanto na legislação quanto na administração, a única tarefa em que uma assembleia legislativa é capaz de ter competência não é produzir trabalho mas fazer com que o produzam; determinar a quem ou a que espécie de pessoas se deve confiá-lo, dando-lhe ou retirando-lhe a sanção nacional uma vez executado. Qualquer governo capaz de estado mais elevado de civilização deve possuir, como elemento fundamental dentre outros, pequeno grupo, que não exceda em número ao dos membros do Gabinete, para atuar como Comissão de Legislação, tendo por missão a elaboração das leis. Se se submeterem as leis deste país a revisão, como certamente em breve ter-se-á de fazer, para dar-lhes forma coerente, a Comissão de Codificação que se encarregar dessa missão deverá continuar como instituição permanente, para zelar pelo trabalho, protegê-lo de deterioração e introduzir outros aperfeiçoamentos sempre que necessários. Ninguém desejaria que esse grupo tivesse nas mãos qualquer poder para decretar leis; a Comissão somente incorporaria o elemento de inteligência em sua organização; o Parlamento representaria o elemento de vontade. Medida alguma se converteria em lei até que fosse expressamente sancionada pelo Parlamento; e este ou qualquer das duas Casas teria o poder não só de rejeitar, mas de devolver um Projeto de lei à Comissão para reconsideração ou aperfeiçoamento. Qualquer das duas Casas também poderia tomar a iniciativa, reportando à Comissão qualquer assunto acompanhado de indicações para o preparo de lei. Sem dúvida, a Comissão não teria o poder de recusar os seus ofícios a qualquer legislação que o país desejasse. Instruções, aprovadas por ambas as Casas, no sentido da elaboração de um projeto de lei que satisfizesse certo objetivo particular seria imperativo para os Comissários, a menos que preferissem demitir-se do cargo. Uma vez elaborada, contudo, o Parlamento não teria o poder de alterar a medida, mas somente de aprová-la ou rejeitá-la; ou, se a aprovasse somente em parte, teria de devolvê-la à Comissão para reconsideração. A Coroa nomearia os Comissários, que exerceriam as suas funções por certo prazo, digamos, cinco anos, a menos que fossem afastados por iniciativa das duas Casas do Parlamento, baseada em má conduta, (como no caso dos juízes) ou na recusa de elaboração de um Projeto, em obediência a pedido do Parlamento. Ao expirar o prazo de cinco anos, qualquer membro deixaria o cargo, a menos que fosse novamente nomeado, a fim de que se dispusesse de meio conveniente para despedir os que não se tivessem revelado à altura dos seus deveres, e para introduzir sangue novo e mais jovem na Comissão. A necessidade de alguma medida que correspondesse a esta instituição sentiu-se mesmo na democracia ateniense, na qual, ao tempo da ascendência mais completa, a eclésia popular podia votar psephismes (na maior parte decretos relativos a simples questões de administração) mas somente um grupo diferente, menos numeroso, renovado anualmente, denominado nomothetae podia fazer ou alterar as chamadas leis, cabendo-lhe também rever o conjunto das leis, mantendo-as em harmonia umas com as outras. Na Constituição inglêsa encontra-se grande dificuldade na introdução de qualquer arranjo novo não só na forma como no fundo, mas experimenta-se comparativamente pouca repugnância na consecução de novos objetivos mediante adaptação das formas e tradições existentes. Parece-me que se poderia descobrir o meio de enriquecer a nossa Constituição com este grande melhoramento por meio do mecanismo da Casa dos Lordes. Uma Comissão para preparar Projetos de lei não constituiria em si maior inovação na Constituição do que o Conselho de Administração da lei dos pobres ou a Comissão de demarcação. Se, em consideração à grande importância e dignidade da função, se estabelecesse a regra que qualquer pessoa nomeada para a Comissão Legislativa se tornasse Par do Reino pela vida, exceto se afastada do cargo por injunção do Parlamento, é provável que o mesmo bom senso e gosto que deixa praticamente às funções judiciárias dos Pares o cuidado exclusivo da lei, os lordes abandonariam a atividade de legislar, exceto nas questões relacionadas a princípios e interesses políticos, aos legisladores profissionais; os projetos que tivessem origem na Câmara Alta seriam sempre elaborados por estes; o Governo lhes devolveria a estruturação de todos os seus projetos; e os membros privados da Casa dos Comuns achariam gradualmente conveniente, e capaz de facilitar a aprovação de medidas através das duas Casas, se, ao invés de introduzir um projeto de lei submetendo-o diretamente à Casa, obtivessem permissão para apresentá-lo e reportá-lo à Comissão Legislativa. Porque, sem dúvida, seria facultado à Casa reportar à consideração dessa Comissão não simplesmente um assunto, mas qualquer proposta específica, ou a redação de um projeto in extenso, quando qualquer membro se julgasse capaz de prepará-lo suscetível de aprovação; e a Casa sem dúvida reportaria à Comissão qualquer redação nessas condições, quando menos fosse como material e em proveito das sugestões que porventura contivesse, como por igual maneira lhe reportariam qualquer emenda ou objeção acaso proposta por escrito por qualquer membro da Casa depois de uma medida ter deixado a Comissão. A modificação dos projetos por uma Comissão da Casa inteira cessaria, não por abolição formal, mas por desuso; não se abandonando o direito, mas guardando-o no mesmo arsenal com o veto real, o direito de reter fornecimentos e outros antigos instrumentos de guerra política, que ninguém deseja ver em uso, mas de que ninguém deseja abrir mão, com receio de que em qualquer ocasião se verificasse precisar ainda deles, em emergência extraordinária. Por meio de arranjos como este, a legislação assumiria o lugar que lhe compete como obra de trabalho capaz e estudo especial e experiência; enquanto a liberdade mais importante da nação, a de ser governada somente por leis a que deram consentimento os representantes eleitos, ficaria inteiramente mantida e se tornaria mais valiosa separando-se de inconvenientes sérios, mas de modo algum inevitáveis, que agora a acompanham sob a forma de legislação ignorante e mal ponderada. Ao invés da função de governar, para a qual é radicalmente imprópria, a função própria da assembleia legislativa é vigiar e controlar o governo; lançar a luz da publicidade sobre os seus atos; obrigar à exposição inteira e à justificação de qualquer deles que qualquer pessoa considere duvidoso; censurá-los se condenáveis e, se os homens que compõem o governo abusam do cargo ou o desempenham de maneira que entre em conflito com o senso deliberado da nação, expulsá-los dos cargos, nomeando-lhes sucessores expressa ou virtualmente. Com toda certeza tudo isso constitui amplo poder e segurança suficiente para a liberdade da nação. Além dessas funções, o Parlamento desempenha um papel que não lhes fica inferior em importância: constituir-se em Comissão de Agravos da nação e em Congresso de Opiniões - arena na qual não só a opinião geral da nação, mas a de qualquer parte e tanto quanto possível de qualquer cidadão eminente pode apresentar-se às claras e desafiar discussão; na qual qualquer pessoa pode ter a certeza de encontrar alguém que por ela fale, tão bem ou melhor do que ela mesmo falaria, não exclusivamente a amigos e partidários, mas perante opositores, que a experimentem em discussão contrária; na qual aqueles cuja opinião for desatendida, sentem-se satisfeitos porque a ouvem, sem repeli-la por simples ato de vontade, mas pelo que se julga serem razões superiores, e como tais se recomendam aos representantes da maioria da nação; na qual cada partido ou opinião do país pode exibir a própria força e ficar curado de qualquer ilusão com relação ao número ou poder dos seus partidários; na qual a opinião que prevalece na nação torna-se manifesta como predominante, e faz desfilar as suas hostes na presença do governo, que assim se vê autorizado e compelido a ceder a simples manifestação, sem ter que fazer uso de fato da força; na qual os estadistas podem assegurar-se, com muito maior certeza do que por quaisquer outros indícios, dos elementos de opinião e de força que se estão desenvolvendo, e dos que estão em decadência, ficando habilitados a formular medidas levando em consideração não só as exigências presentes, mas as tendências ao progresso. Os inimigos das assembleias representativas frequentemente as ridicularizam como simples lugares de conversa e "bavardage". Raramente se depara com ridículo tão imerecido. Não sei como uma assembleia legislativa pode empregar-se mais utilmente do que em falar, quando o assunto da conversa são os grandes interesses públicos do país, e cada sentença representa a opinião ou de certo grupo importante ou de um indivíduo em quem algum grupo deposita confiança. Lugar em que todos os interesses e matizes de opinião do país podem ver a sua causa até mesmo apaixonadamente sustentada, perante o governo e todos os outros interesses e opiniões, compeli-los a ouvir e com eles concordar ou declarar claramente porque não concordam, é em si, se mesmo não preenchesse qualquer outro objetivo, uma das instituições políticas mais importantes que possam existir em qualquer lugar, e um dos benefícios mais assinalados do governo livre. Semelhante "conversa" nunca se encararia com menos cabo se não lhe permitissem deixar de "fazer", o que nunca aconteceria, se as assembleias soubessem e reconhecessem que falar e discutir é o que lhes cabe fazer, enquanto que agir, como resultado da discussão, não é a tarefa de um grupo heterogêneo mas de indivíduos especialmente preparados para esse fim; que o papel apropriado de uma assembleia é ver que se escolhem tais indivíduos honesta e inteligentemente, não mais interferindo com eles exceto por ilimitada latitude de sugestão e crítica, e pela concessão ou recusa do selo final do assentimento nacional. É por falta dessa judiciosa circunspeção que as assembleias populares tentam fazer o que não podem fazer bem - governar e legislar - deixando de fornecer o mecanismo para a maior parte que não seja a delas, quando, sem dúvida, cada hora gasta em conversa é uma hora retirada da atividade real. Mas o próprio fato que torna tais grupos impróprios para formarem Conselhos de Legislação os habilita tanto mais para a outra função - isto é, que não formam uma seleção dos maiores espíritos políticos do país, de cujas opiniões pouco se pudesse inferir com exatidão, com respeito às da nação, mas sim, quando convenientemente constituído, exemplo satisfatório de todos os graus de inteligência entre o povo, que de qualquer modo tenha direito de fazer-se ouvir nos negócios públicos. Cabe-lhes indicar as necessidades, revelar-se órgão das solicitações populares, e lugar de discussão antagônica para todas as opiniões que digam respeito a questões públicas, tanto grandes como pequenas; e, ao mesmo tempo, controlar pela crítica e acidentalmente retirando-lhes o apoio, os funcionários públicos superiores que conduzem realmente os negócios públicos ou que nomeiam os que os conduzem. Somente a limitação da função das assembleias representativas nestes limites racionais proporcionará a fruição dos benefícios do controle popular em conjunto com os requisitos não menos importantes (que se tornam cada vez mais importantes à proporção que os negócios humanos aumentam em escala e complexidade) de legislação e administração hábeis. Não há meio de combinar tais benefícios, exceto pela separação das funções que garantem um contra aqueles que exigem essencialmente o outro; separando a função de crítica e controle da conduta real dos negócios, e entregando o primeiro aos representantes dos Muitos, enquanto se assegura aos últimos, sob rigorosa responsabilidade da nação, o conhecimento adquirido e a inteligência prática de alguns Poucos especialmente preparados e experimentados. A discussão precedente das funções que devem passar à assembleia representativa soberana da nação exigiria que se lhe seguisse uma investigação das funções atribuídas aos grupos representativos menores, que têm de existir para objetivos que interessam somente às localidades. E semelhante investigação forma parte essencial do atual tratado; mas muitas razões exigem a sua transferência até que tenhamos considerado a composição mais conveniente do grande corpo representativo destinado a controlar como soberano a promulgação das leis e a administração dos negócios gerais da nação. VI DAS ENFERMIDADES E PERIGOS A QUE ESTÁ SUJEITO O GOVERNO REPRESENTATIVO OS DEFEITOS DE QUALQUER FORMA de governo podem ser negativos ou positivos. O governo é negativamente defeituoso se não concentra nas mãos das autoridades poder suficiente para realizar as funções necessárias do governo; ou se não desenvolve suficientemente pelo exercício as habilidades ativas e os sentimentos sociais dos cidadãos. Com relação a qualquer destes pontos não será necessário dizer muito no estádio atual de nossa investigação. A falta de volume de poder no governo, apropriada a preservar a ordem e permitir o progresso no seio do povo, é inerente em geral de preferência a estado rude e selvagem da sociedade mais do que a qualquer forma particular de união política. Quando o povo está tão apegado à independência selvagem que não seja capaz de tolerar a soma de poder a que deve para o bem dele, submeter-se, o estado da sociedade (conforme se observou anteriormente) ainda não está maduro para o governo representativo. Quando chega a ocasião para esse governo, pode ter-se a certeza de que reside na assembleia soberana poder suficiente para todos os fins necessários; e se não se confia parte suficiente desse poder ao executivo, tal fato só pode resultar de sentimento de rivalidade por parte da assembleia para com a administração, o qual não tem possibilidade de existir senão quando o poder constitucional da assembleia não se firmou suficientemente ainda para expulsá-lo das suas funções. Sempre que se admite em princípio o direito constitucional, que atue inteiramente na prática, não há a temer que a assembleia não se disponha a entregar aos próprios ministros qualquer volume de poder realmente de desejar-se; o perigo é, ao contrário, que o concedam demasiadamente desprendidamente e por demais indefinido em extensão, desde que o poder do ministro é o poder do grupo que o faz e assim o conserva. Contudo, é muito provável, e nisso está um dos perigos de uma assembleia controladora, que se mostre pródiga de poderes, se bem que em seguida lhe interfira no exercício; pode dar o poder por atacado mas recuperá-lo a varejo, por múltiplos atos isolados de interferência nas atividades da administração. Os males resultantes dessa apropriação da função real de governar, em lugar da de criticar e vigiar os que governam, já examinamos suficientemente no capítulo anterior. Não há qualquer garantia nas circunstâncias reais que se possa prover contra essa intromissão imprópria, exceto convicção forte e geral do seu caráter pernicioso. O outro defeito negativo, que pode residir em um governo, o de não proporcionar exercício suficiente às faculdades individuais, morais, intelectuais e ativas, do povo, patenteamos em geral quando exibimos os malefícios distintos do despotismo. Como entre uma forma de governo popular e outra, a vantagem a este respeito fica com a que difunde mais amplamente o exercício de funções públicas; por um lado, excluindo o menor número possível do sufrágio; por outro, facultando a todas as classes de cidadãos, ao ponto em que se harmonize com outros objetivos igualmente importantes, a mais ampla participação nos detalhes das questões judiciárias e administrativas; como pelo julgamento por júri, admissão a cargos municipais, e acima de tudo pela maior publicidade possível e liberdade de discussão, por meio da qual não somente alguns indivíduos em sucessão mas o público todo é chamado a participar, até certo ponto, do governo, partilhando da instrução e do exercício mental que se possa dele derivar. Será preferível adiar a exemplificação desses benefícios bem como das limitações sob as quais se deve tê-los em vista, até que venhamos a falar da administração. Os males e perigos positivos do governo representativo, bem como de qualquer outra forma, podem reduzir-se a duas categorias: primeira, ignorância geral e incapacidade, ou, para falar mais moderadamente, aptidões mentais insuficientes, no grupo controlador; segunda, o perigo de ficar sob a influência de interesses que não se identifiquem com o bem-estar geral da comunidade. O primeiro desses males, deficiência de aptidões mentais elevadas, é um dos que geralmente se supõem estar sujeito o governo popular em maior grau do que qualquer outro. Pensa-se que a energia de um monarca, a firmeza e prudência de uma aristocracia contrastam mui favoravelmente com a vacilação e a curteza de vistas mesmo de democracia idônea. Tais proposições, contudo, não estão tão bem fundamentadas, de qualquer maneira, como à primeira vista pode supor-se. Comparado à simples monarquia, o governo representativo não fica em situação desvantajosa sob esses aspectos. Exceto em idade rude, a monarquia hereditária, quando assim o é realmente, e não aristocracia sob disfarce, ultrapassa em muito a democracia em todas as formas de inaptidão suposta ser a característica desta última. Digo, exceto em idade rude, porque, em estado realmente rude de sociedade, existe considerável garantia para as aptidões intelectuais e ativas do soberano. A vontade pessoal deste depara constantemente com obstáculos devidos à obstinação dos súditos, e a indivíduos poderosos no seio deles. As circunstâncias da sociedade não lhe permitem veja-se tentado ao simples luxo de indulgência para consigo mesmo; seus estímulos principais são atividades mentais e físicas, especialmente políticas e militares; e entre os chefes turbulentos e os sequazes indisciplinados dispõe de pouca autoridade e raramente está garantido por muito tempo até mesmo do trono, a menos que possua em grau elevado ousadia pessoal, destreza e energia. O motivo por que a média de talento é- tão elevada entre os Henriques e os Eduardos da nossa história pode ler-se no trágico destino do segundo Eduardo e do segundo Ricardo, e nas guerras civis e perturbações dos reinados de João e de seu sucessor incapaz (Estes quatro reis tiveram de contentar-se com a luta interna e a oposição política dos barões através dos seus reinados; Eduardo II foi deposto e Ricardo II morreu na prisão, provavelmente assassinado). O período perturbado da Reforma também produziu vários monarcas hereditários eminentes, Elizabeth, Henrique IV, Gustavo Adolfo; mas foram em grande parte educados pela adversidade, subindo ao trono pela falta inesperada de herdeiros mais próximos, ou tiveram de lutar com grandes dificuldades no começo dos respectivos reinados. Desde que a vida europeia assumiu aspecto permanente, tornou-se extremamente raro em reis hereditários algo acima de mediocridade, enquanto a média geral se manteve mesmo abaixo dela, não só em talento como em vigor de caráter. Qualquer monarquia constitucionalmente absoluta somente se mantém em existência (exceto temporariamente nas mãos de algum usurpador de espírito ativo) graças às aptidões mentais de burocracia permanente. Os governos russo e austríaco e até mesmo o governo francês, nas condições normais, são oligarquias de funcionários, nas quais o chefe do Estado pouco mais faz do que escolher-lhes os chefes. Estou-me referindo ao curso regular da administração, porquanto a vontade do senhor, sem dúvida, lhes determina grande parte dos atos. Os governos que se tornaram notáveis na história pela capacidade mental sustentada e vigor na conduta dos negócios foram em geral aristocracias. Foram, porém, sem qualquer exceção, aristocracias de funcionários públicos. Os governantes foram tão limitados que cada membro ou pelo menos cada membro influente foi capaz de tornar, como de fato tornou, a atividade pública em profissão ativa e principal ocupação da vida. As únicas aristocracias que manifestaram elevada aptidão para governar e agiram conforme a máximas firmes de política, através de muitas gerações, foram as de Roma e de Veneza. Mas nesta, embora a classe privilegiada fosse numerosa, a direção prática dos negócios concentrava-se rigidamente em pequena oligarquia dentro da oligarquia, cuja vida inteira se dedicava ao estudo e à conduta dos negócios do Estado. O governo de Roma partilhou mais do caráter de aristocracia aberta como a da Inglaterra. Mas o grupo que governava realmente, o Senado, compunha-se em geral exclusivamente de pessoas que haviam exercido funções públicas e já haviam ocupado ou estavam procurando ocupar os cargos mais elevados do Estado, incorrendo em severa responsabilidade no caso de inaptidão ou fracasso. Quando chegavam a membros do Senado, empenhavam a vida à conduta dos negócios públicos; não lhes permitiam nem mesmo deixar a Itália exceto no desempenho de alguma missão pública; e se não viessem a ser expulsos do Senado pelos censores devido a caráter ou conduta que estes julgassem ignominiosa, conservavam o poder e as responsabilidades durante toda a vida. Em aristocracia assim constituída cada membro sentia a própria importância pessoal inteiramente vinculada à dignidade e estima da comunidade que administrava e ao papel que era chamado a representar nos seus conselhos. Essa dignidade e estima eram mui diversas da prosperidade ou felicidade do conjunto dos cidadãos, sendo muita vez totalmente incompatíveis com elas. Ligavam-se porém intimamente ao sucesso externo e engrandecimento do Estado; e em consequência era na perseguição desse objetivo quase exclusivamente que a aristocracia seja romana seja veneziana manifestava a política coletiva sistematicamente sábia e as grandes aptidões individuais para o governo que a história merecidamente lhes atribuiu. Verifica-se por essa forma que os únicos governos não representativos, em que se mostraram propriamente excepcionais a habilidade e a aptidão políticas, sob forma seja monárquica, seja aristocrática, foram essencialmente burocracias. A função de governar ficou em mãos de governantes por profissão, o que é a essência e a significação da burocracia. Seja que exerçam a função porque tenham sido para ela preparados, ou para ela se preparem porque a devam exercer, importa em grande diferença a muitos respeitos, nenhuma, porém, em absoluto quanto ao caráter essencial da regra. As aristocracias, por outro lado, como a da Inglaterra, na qual a classe que está de posse do poder deriva-o simplesmente da posição social, sem que se preparem especialmente ou a ela se dediquem exclusivamente (e na qual, portanto, o poder não se exerce diretamente, mas por meio de instituições representativas oligarquicamente constituídas) colocaram-se, em respeito a dotes intelectuais, em situação de igualdade com as democracias; isto é, manifestaram tais qualidades em qualquer grau considerável durante a ascendência temporária atribuída a certa individualidade devido a talentos grandes e populares, conjugados a posição distinta. Temístocles e Péricles, Washington e Jefferson, não eram mais completamente exceções nas respectivas democracias, mas muito mais seguramente exceções mais esplêndidas do que os Chathams e Peels da aristocracia representativa da Grã-Bretanha ou mesmo do que os Sullys e Colberts da monarquia aristocrática francesa. Grande ministro, nos governos aristocráticos da Europa moderna, é fenômeno quase tão raro como grande rei. Por consequência, a comparação relativamente aos atributos intelectuais de um governo tem de fazer-se entre uma democracia representativa e uma burocracia; podem deixar-se de levar em conta todas as outras formas de governo. E neste ponto forçoso é reconhecer que o governo burocrático possui, em alguns aspectos importantes, a maior vantagem. Acumula experiência, adquire máximas tradicionais bem experimentadas e bem ponderadas, proporcionando conhecimento prático adequado aos que tomam a si a conduta real dos negócios. Não é, porém, igualmente favorável à energia individual do espírito. A enfermidade que ataca os governos burocráticos, e da qual vêm a morrer, é a rotina. Perece devido à imutabilidade das máximas; e, ainda mais, pela lei universal que tudo quanto se torna rotineiro perde o princípio vital e, não possuindo mais espírito atuante dentro de si, continua a girar mecanicamente embora a obra a que se destina fique por fazer. A burocracia tende sempre a tornar-se pedantocracia. Quando a burocracia é o governo real, o espírito do corpo (como se dá com os jesuítas) suplanta a individualidade dos membros mais notáveis. Na profissão de governar, como em outras, a ideia única que domina a maioria é fazer o que lhe ensinaram; e torna-se necessário governo popular para permitir que prevaleçam as concepções do homem de gênio original sobre o espírito intrometido da mediocridade instruída. Somente em governo popular (afastando o acidente de déspota altamente inteligente) poderia Sir Rowland Hill sair vitorioso contra o Departamento dos Correios. Um governo popular instalou-o nesse Departamento e fê-lo obedecer, mesmo a contragosto, ao impulso dado pelo homem que reunia ao conhecimento especial vigor individual e originalidade. Se a aristocracia romana escapou a esta moléstia característica da burocracia deve-se evidentemente ao elemento popular. Todos os cargos especiais, tanto os que davam assento no Senado como os que os senadores cobiçavam, dependiam do voto popular. O governo russo mostra-se como exemplo característico do bom e do mau lado da burocracia; máximas fixas, orientadas com perseverança romana para os mesmos fins perseguidos inflexivelmente de idade em idade; a habilidade notável com que se perseguem tais fins; e terrível corrupção interna e a hostilidade aos melhoramentos provindos do exterior, que até mesmo o poder autocrático de imperador de espírito vigoroso é nunca ou quase nunca capaz de superar, a paciente obstrução do conjunto sendo, no correr do tempo, mais do que antagonista à altura da energia instável de um único homem. O governo chinês, burocracia de mandarins, é, no que nos é dado conhecer, outro exemplo evidente das mesmas qualidades e defeitos. Em todos os negócios humanos são indispensáveis influências divergentes que os estimulem mutuamente e os tornem eficientes mesmo para uso próprio; e a perseguição exclusiva de um único objetivo bom, em separado de algum outro que deveria acompanhá-lo, não conduz a excesso de um e falta de outro, mas à decadência e perda mesmo daquilo que constituía objeto de cuidado. O governo por meio de funcionários preparados não pode fazer por um país o que para ele resulta de governo livre, mas pode-se supô-lo capaz de realizar algo que um governo livre, só por si, não pode levar a termo. Verificamos, contudo, que necessário se torna um elemento externo de liberdade que lhe permita executar efetiva e permanentemente até mesmo o que lhe incumbe. Assim também, a liberdade não pode produzir os melhores efeitos, e muitas vezes anula inteiramente, a menos que se encontre o meio de combiná-la com administração preparada e capaz. Não pode haver um momento de hesitação entre o governo representativo, em um povo amadurecido para ele, em qualquer grau, e a burocracia mais perfeita imaginável. Ao mesmo tempo, porém, é um dos objetivos mais importantes das instituições políticas alcançar tantos predica dos de uma quanto for possível harmonizar com os de outra; conseguir a grande vantagem da gestão dos negócios, ao ponto em que for compatível, por pessoas hábeis, formadas para isso como profissão intelectual, juntamente com a de controle geral investido em grupos representativos do povo inteiro e por eles exercido. Muito se realizaria nesse sentido se se reconhecesse a linha de separação, discutida no capítulo anterior, entre a operação do governo, propriamente assim chamado, que só se pode executar bem depois de cultura especial, e a função de escolher, fiscalizar e, quando necessário, controlar os governantes, que neste caso, como em outros, cabe propriamente não aos que realizam a operação, mas àqueles em cujo benefício deve realizar-se. Não é possível conseguir qualquer progresso no sentido de alcançar democracia hábil se esta não estiver disposta a confiar a pessoas hábeis a obra que exige habilidade. Já é ocupação bastante para uma democracia suprir-se de um volume de competência suficiente para o seu próprio funcionamento, o de superintender e controlar. Como obter esse volume e dele assegurar-se é uma das questões que se têm de levar em consideração ao julgar da constituição conveniente do grupo representativo. Na proporção em que a sua composição deixar de assegurar esse volume, a assembleia usurpará, por atos especiais, a área do executivo; repelirá um bom ministério ou elevará e sustentará um mau; será conivente em abusos de confiança ou os tolerará, será iludida por falsas pretensões ou retirará apoio aos que procuram cumprir conscienciosamente com os seus deveres; sancionará ou imporá política geral egoísta, caprichosa e impulsiva, míope, ignorante e imbuída de preconceito, seja interna, seja externa; revogará leis boas e promulgará más, introduzirá novos males ou se apegará a antigos com perversa obstinação; chegará talvez mesmo, sob impulsos desorientadores, momentâneos ou permanentes, que emanem dela própria ou do seu eleitorado, a tolerar ou concordar com processos que afastem inteiramente a lei, em casos em que justiça equitativa não fosse do agrado ao sentimento popular. Estes são os perigos que se contam entre os que confrontam o governo representativo, resultantes da constituição de governo representativo que não se assegure de volume adequado de inteligência e conhecimento na assembleia representativa. Passaremos a seguir aos males resultantes do predomínio de maneiras de agir por parte do grupo representativo ditadas por interesses sinistros (para empregar a frase usual introduzida por Bentham) isto é, interesses em conflito mais ou menos acentuado com o bem geral da comunidade. Admite-se universalmente que grande parte dos males que acompanham os governos monárquicos e aristocráticos resultam desta causa. O interesse do monarca ou o interesse da aristocracia, seja coletivo seja o dos membros individuais, promove-se ou pensam se promova, mediante comportamento oposto ao exigido pelo interesse geral da comunidade. O interesse do governo, por exemplo, está em lançar impostos pesados; o da comunidade consiste em tê-los tão diminutos quanto o necessário para cobrir as despesas do bom governo. O interesse do rei, bem como da aristocracia governante, é possuir e exercer poder ilimitado sobre o povo, obrigar, por parte deste, a completa submissão à vontade e às preferências dos governantes. O interesse do povo está em que se exerça tão pouco controle sobre ele em qualquer sentido conforme esteja em harmonia com a obtenção dos objetivos legítimos do governo. O interesse, evidente ou suposto, do rei ou da aristocracia está em não permitir qualquer censura, pelo menos sob qualquer forma que considerem ameaçar-lhe o poder ou interferir-lhe seriamente com a atuação livre. O interesse do povo consiste em que exista inteira liberdade de censura para com qualquer funcionário público e para com qualquer ato ou medida pública. O interesse de uma classe dirigente, seja na aristocracia, seja na monarquia aristocrática, está em chamar a si infinita variedade de privilégios injustos, frequentemente favorecendo-lhe o bolso à custa do povo, outras vezes tendentes tão-só a exaltá-las acima de outros ou, o que importa no mesmo por palavras diferentes, degradar os outros abaixo deles, Se o povo está descontente, o que sob tal governo é muito provável que aconteça, o interesse do rei ou da aristocracia está em mantê-lo em baixo nível de inteligência e educação, provocar dissensões no seio dele, e até mesmo impedir que fique em boas condições, para que "não engordem e escoiceiem" conforme a máxima do Cardeal de Richelieu no célebre "Testamento Político" (Testamento Político de Armand du Plessis (Amsterdam, 1687)). Tudo isso corresponde ao interesse do rei ou da aristocracia, em um ponto de vista simplesmente egoísta, a menos que se origine interesse contrário suficientemente forte pelo temor de provocar resistência. Todos esses males têm sido produzidos e muitos deles ainda se produzem, pelos interesses sinistros de reis e aristocracias, onde dispõem de poder suficiente para se elevarem acima da opinião do resto da comunidade; nem seria razoável esperar-se conduta diferente em consequência de semelhante posição. Tudo o que fica dito é superabundantemente evidente no caso de monarquia ou aristocracia; mas por vezes se supõe um tanto gratuitamente que a mesma espécie de influências prejudiciais não se encontra em uma democracia. Encarando-se a democracia pela maneira por que geralmente se a imagina, como governo da maioria numérica, com toda a certeza é possível que poder dominante venha a cair sob o domínio de interesses seccionais ou de classe, tendendo a conduta diferente daquela que seria ditada por consideração imparcial pelo interesse de todos. Suponha-se a maioria de brancos e a minoria de pretos, ou vice-versa: seria provável que a maioria concedesse justiça igual à minoria? Suponha-se a maioria de católicos, a minoria de protestantes, ou o inverso: não haverá o mesmo perigo? Ou seja, a maioria de ingleses e a minoria de irlandeses, ou o contrário: não haverá grande probabilidade de mal semelhante? Em todos os países existe uma maioria de pobres e uma minoria que, em contraposição, pode chamar-se de ricos. Entre essas duas classes, existe completa oposição de interesse evidente sobre muitas questões. Suporemos a maioria suficientemente inteligente para perceber que não lhe será favorável enfraquecer a segurança da propriedade, e que qualquer ato de espoliação a enfraquecesse. Todavia, não haverá considerável perigo que lancem sobre os possuidores do que se chama propriedade realizada e sobre os rendimentos mais avultados, o peso dos impostos; e tendo assim procedido, aumentem-lhes sem escrúpulo o volume, ampliando o processo por maneira que se suponha conduzir ao provento e benefício da classe trabalhadora? Suponha-se ainda a maioria de trabalhadores inexperientes e a minoria de trabalhadores especializados: a experiência de muitos sindicatos, a menos que sejam grandemente caluniados, justifica a apreensão de que venha a impor-se a igualdade salarial como obrigação, eliminando-se o trabalho por peça, o pagamento por hora, e todas as práticas que permitem à diligência superior ou às aptidões receberem compensação mais elevada. Tentativas de legislação para elevar salários, limitação da concorrência no mercado de trabalho, taxas ou restrições às máquinas, e sobre os melhoramentos de qualquer espécie tendentes à dispensa da mão-de-obra existente - até mesmo talvez proteção ao produtor nacional contra a indústria estrangeira - são resultados muito naturais (não me arrisco a dizer se prováveis) do sentimento de interesse de classe em maioria governante de trabalhadores manuais. Dir-se-á que nada disso favorece o interesse real da classe mais numerosa; ao que respondo que, se a conduta dos seres humanos fosse apenas determinada por nenhuma outra consideração de interesse senão as que constituem o interesse "real", nem a oligarquia, nem a monarquia seriam governos tão ruins como de fato são: porque, indubitavelmente, podem apresentar-se argumentos muito fortes, como aliás se tem feito, para mostrar que um rei ou um senado que governe estão, sob muitos aspectos, na situação mais invejável quando governam com justiça e vigilância um povo ativo, rico, esclarecido e de espírito elevado. Todavia, somente vez por outra um rei e uma oligarquia em qualquer caso têm encarado deste ponto de vista elevado o seu próprio interesse; e por que teríamos de esperar maneira mais elevada de pensar por parte das classes trabalhadoras? Não o que é o interesse delas, mas o que supõem ser, que constitui a consideração importante com relação à conduta delas; e é inteiramente decisivo contra qualquer teoria de governo supor-se que a maioria numérica faz habitualmente o que nunca fez nem se espera que faça, salvo em casos mui excepcionais, qualquer outro depositário do poder - isto é, orientar a conduta pelo interesse final e real, em oposição ao interesse imediato e evidente. Ninguém, com toda a certeza, porá em dúvida que muitas das medidas inconvenientes acima enumeradas e muitas outras igualmente más favoreceriam o interesse imediato do conjunto dos trabalhadores inexperientes. É completamente possível que favorecessem toda a geração existente da classe. A redução da indústria e da atividade, a diminuição do estímulo à economia, que seria a consequência extrema, talvez as sentissem pouco a classe dos trabalhadores inexperientes, dentro do período de uma existência. Algumas das mudanças mais fatais nos negócios humanos foram benéficas nos efeitos imediatos mais manifestos. A instituição do despotismo dos Césares foi de grande vantagem para a geração inteira em que se realizou. Fez cessar a guerra civil, reduziu de muito a corrupção da administração e a tirania por parte dos pretores e pro cônsules; estimulou muitos dos adornos da vida e a cultura intelectual em todas as áreas não políticas; produziu monumentos do gênio literário deslumbrantes para a imaginação de leitores superficiais da história, que não refletem que os homens, a quem o despotismo de Augusto (tanto quanto o de Lourenço de Médicis e de Luís XIV) deve o brilho, formaram-se todos na geração precedente. As riquezas acumuladas e a energia e as atividades mentais produzidas por séculos de liberdade ficaram para o benefício da primeira geração de escravos. Entretanto, aí teve início um regime cujo funcionamento gradativo fez com que se desvanecesse insensivelmente toda a civilização até então adquirida, até que o Império, que conquistara e abarcara sob o seu guante o mundo então conhecido, perdeu tão completamente até mesmo a eficiência militar que invasores, que três ou quatro legiões bastavam sempre para reprimir, se viram em condições de infestar e ocupar a quase totalidade do seu vasto território. O novo impulso dado pelo cristianismo chegou exatamente em tempo de salvar as artes e as letras de perecerem, e a raça humana de mergulhar de novo talvez em noite sem fim. Quando falamos do interesse de um grupo de homens ou de um único individualmente, como princípio determinante de suas ações, uma das partes menos importantes da questão está em saber o que um observador imparcial consideraria como interesse desse grupo ou indivíduo. Conforme observa Coleridge, o homem faz o motivo e não o motivo o homem. O que é do interesse do homem fazer ou deixar de fazer depende menos de qualquer circunstância exterior do que da espécie de homem que é. Se quisermos saber qual é praticamente o interesse de um homem, teremos de conhecer qual a disposição dos seus, sentimentos e pensamentos habituais. Todo o mundo tem duas espécies de interesses - aqueles dos quais cura e os de que não cura. Todo o mundo tem interesses egoístas e altruístas, e o egoísta cultivou o hábito de curar do primeiro, pondo de lado o último. Todos têm interesses presentes ou distantes, e o negligente é o que trata dos interesses presentes e não dos distantes. Pouco importa que em qualquer cálculo correto o último se mostre mais importante, se os hábitos do espírito dele fixam-lhe pensamentos e desejos apenas sobre o primeiro. Seria vão tentar convencer um homem que espanca a esposa e maltrata os filhos que seria mais feliz se vivesse em afeto e gentileza para com eles. Seria mais feliz se fosse a espécie de pessoa capaz de assim viver, mas não é, e talvez seja muito tarde para que se torne essa espécie de pessoa. Sendo o que é, a satisfação do amor à dominação e o deleite do temperamento feroz são para as suas percepções maior bem do que seria capaz de derivar do prazer e da afeição daqueles que dependem dele. Não experimenta prazer no prazer deles e não lhes dá importância ao afeto. O vizinho, que o experimenta, é provavelmente mais feliz do que ele, mas se fosse possível persuadi-lo disso, mui provavelmente o resultado da persuasão seria exasperar-lhe ainda mais a malignidade ou a irritabilidade. Em geral, quem se preocupa com outras pessoas, com o país, ou com os homens, é mais feliz do que o que assim não faz; mas que vantagem haverá em pregar semelhante doutrina a quem de nada se preocupa senão com o próprio conforto ou com a própria bolsa? Não poderia preocupar-se com outrem se o quisesse. É como se pregássemos a um verme que se arrasta pelo chão como seria melhor para ele se fosse pássaro. Acontece que é fato universalmente observado que as duas inclinações más em causa, a de preferir alguém os seus próprios interesses egoístas aos que partilha com outras pessoas, e os interesses imediatos e diretos aos indiretos e afastados, são características mui especialmente despertadas e nutridas pela posse do poder. No momento em que um homem ou uma classe de homens se acha com o poder nas mãos, os interesses individuais do homem ou os interesses distintos da classe, adquirem-lhe aos olhos grau inteiramente novo de importância. Vendo-se adorado por outros, torna-se adorador de si mesmo e julga-se com o direito de ter o próprio valor contado cem vezes mais do que o de outras pessoas, enquanto a facilidade que adquire de fazer o que quer sem pesar consequências enfraquece insensivelmente os hábitos que fazem os homens ficar na expectativa das consequências capazes de afetá-los. Tal a significação da tradição universal, baseada em experiência universal, da corrupção que ao homem traz o poder. Todos sabem quão absurdo seria deduzir-se do que um homem é ou faz quando em posição particular, que será e fará exatamente o mesmo se chegar a déspota sentado em um trono, no qual as partes más da natureza humana, ao invés de contidas e conservadas em subordinação por todas as circunstâncias da vida e pelas pessoas que o cercam, veem-se cortejadas por todos e servidas por todas as circunstâncias. Seria exatamente absurdo igual alimentar expectativa semelhante com relação a certa classe de homens, o demos ou qualquer outra. Sejam tão modestos e acessíveis à razão enquanto existir poder mais forte sobre eles, teremos de esperar mudança total quando se converterem no poder mais forte. Tem-se de instituir os governos para os seres humanos como são ou como sejam capazes de se tornar rapidamente; e em qualquer estado de cultura que os homens ou qualquer classe deles, até agora alcançaram, ou são capazes de alcançar em breve, os interesses que os conduzem, quando somente pensam em interesse próprio, serão quase exclusivamente os que forem evidentes à primeira vista, e que atuam na situação atual. É somente a consideração desinteressada por outrem, e especialmente pelo que vem depois deles, pela ideia de posteridade, da pátria, ou da humanidade, baseada na simpatia ou em sentimento consciencioso, que dirige invariavelmente o espírito e os propósitos das classes ou dos grupos de homens para interesses distantes e não evidentes. E não se pode sustentar que qualquer forma de governo seria racional se exigisse como condição que esses princípios elevados de ação fossem os motivos orientadores principais da conduta de seres humanos comuns. Pode contar-se adequadamente com certa porção de consciência e de espírito público desinteressado nos cidadãos de qualquer comunidade amadurecida para o governo representativo. Mas seria ridículo esperar que atingisse um grau tal, combinado a discernimento intelectual que se tornasse imune a qualquer sofisma plausível com tendência a fazer com que se afigurasse como ditame de justiça e do bem geral aquilo que fosse do interesse da classe. Todos nós sabemos que falácias capciosas podem apresentar-se em defesa de qualquer ato injusto que se ofereça para benefício imaginário das massas. Sabemos quantos homens, de modo algum loucos ou maus, julgaram justificável repudiar-se a dívida nacional. Sabemos quantos, não destituídos de aptidão, e gozando de considerável influência, julgam justificável lançar todo o peso dos impostos sobre as economias, sob o nome de propriedade realizada, permitindo que fiquem os que sempre gastaram tudo quanto receberam bem como os seus progenitores, inteiramente isentos de impostos como recompensa por conduta tão exemplar. Sabemos que poderosos argumentos podem apresentar-se contra qualquer herança, contra a faculdade de testar, contra qualquer vantagem que uma pessoa pareça ter sobre outra. Sabemos quão facilmente se prova a inutilidade de qualquer ramo de conhecimento para completa satisfação dos que não o possuem. Quantos homens, não totalmente estúpidos, acham inútil o estudo científico das línguas, julgam inútil a literatura antiga, qualquer erudição, a lógica e a metafísica, a poesia e as belas-artes frívolas e inúteis, a economia política simplesmente prejudicial? Até mesmo a história homens capazes pronunciaram como inútil e prejudicial. Somente o conhecimento da natureza exterior, adquirido empiricamente, que serve diretamente para a produção de objetos necessários à existência ou agradáveis aos sentidos, veriam reconhecida a utilidade se as pessoas tivessem o menor estímulo para duvidar dela. É razoável pensar que espíritos mesmo muito mais cultos do que se possa esperar sejam o da maioria numérica, disponham de consciência tão delicada, e de apreciação tão justa do que é contrário ao seu próprio interesse evidente, que rejeitem estas e outras inúmeras falácias que sobre eles façam pressão de todos os lados logo que lhes venha às mãos o poder, para induzi-las a seguir as próprias inclinações egoístas e noções acanhadas do próprio bem, em oposição à justiça, à custa de todas as outras classes e da posteridade? Um dos maiores perigos da democracia, portanto, como de todas as outras formas de governo, está no sinistro interesse dos que ocupam o poder; é o perigo da legislação a favor da classe, do governo destinado (ou realizando-o realmente ou não) ao benefício imediato da classe dominante em detrimento permanente de todos. E uma das questões mais importantes que exigem ponderação na escolha da melhor constituição de governo representativo é como suprir garantias eficazes contra este mal. Se considerarmos como classe, falando de ponto de vista político, qualquer número de pessoas que tenham o mesmo interesse - isto é, cujo interesse direto e evidente aponte para a mesma descrição de medidas más - o objetivo de desejar-se seria que classe alguma, e combinação alguma de classes que acaso se formasse, estivesse em condições de exercer influência preponderante no governo. Pode considerar-se uma comunidade moderna, não dividida no próprio seio por fortes antipatias de raça, língua ou nacionalidade, como em linhas gerais suscetível de divisão em duas seções, que, a despeito de variações parciais, correspondem em conjunto a duas direções divergentes de interesse evidente. Vamos chamá-las (em termos gerais breves) trabalhadores, por um lado e empregadores, por outro, incluindo, contudo, nesta não só capitalistas retirados de negócios e os possuidores de riqueza herdada, mas toda essa classe de trabalhadores de salários elevados (como os profissionais) cuja educação e maneira de viver os assimila aos ricos, e cuja perspectiva e ambição consiste em elevar-se a essa classe. Aos trabalhadores podem incorporar-se os empregadores de menor importância que por interesses, hábitos e impressões de educação se assimilam às classes trabalhadoras em desejos, gostos e objetivos, inclusive grande proporção de pequenos negociantes. Em estado social assim formado, se fosse possível tornar o sistema representativo idealmente perfeito, e se fosse possível mantê-la nesse estado, a sua organização deveria ser tal que essas duas classes, trabalhadores manuais e seus afins por um lado, e empregadores e seus afins por outro, ficassem igualmente equilibradas no arranjo do sistema representativo, cada uma tendo influência sobre número aproximadamente igual de votos no Parlamento; visto como, supondo que a maioria de cada classe, em qualquer discordância entre elas, fosse governada principalmente pelos interesses da classe respectiva, haveria uma minoria em cada uma delas na qual essa consideração se subordinasse à razão, à justiça e ao bem geral; e esta minoria de cada uma, juntando-se ao total da outra, inclinaria a balança contra qualquer pedido da sua própria maioria que não estivesse em condições de prevalecer. O motivo por que, em qualquer sociedade toleravelmente constituída a justiça e o interesse geral as mais das vezes veem ao fim prevalecer o próprio ponto de vista, resulta da divisão, quase sempre existente, entre os interesses distintos e egoístas dos homens, uns inclinados a favor do que é injusto, mas outros, que colocam o próprio interesse do lado do que é justo; e os que são governados por considerações mais elevadas, embora em pequeno número e sem forças para prevalecerem contra o conjunto dos outros, depois de discussão e agitação suficientes tornam-se em geral bastante fortes para inclinar a balança a favor do conjunto dos interesses privados que está do mesmo lado que eles. O sistema representativo deve constituir-se de forma tal que mantenha essa situação: não deve permitir a qualquer dos diversos interesses parciais tornar-se tão poderoso que chegue a prevalecer contra a verdade e a justiça e contra os outros interesses parciais combinados. Deverá existir sempre tal equilíbrio entre interesses pessoais que faça depender qualquer deles, para ter êxito, da possibilidade de arrastar consigo pelo menos grande proporção dos que agem por motivos mais elevados e por opiniões mais amplas e de maior alcance. VII DA DEMOCRACIA VERDADEIRA E FALSA; REPRESENTAÇÃO DE TODOS OU SOMENTE DA MAIORIA VIMOS QUE OS PERIGOS inerentes à democracia representativa eram de duas espécies: perigo de grau inferior de inteligência no grupo representativo e na opinião pública que o controla, e perigo de legislação de classe por parte da maioria numérica, se esta se compuser toda ela da mesma classe. Em seguida teremos de considerar até que ponto será possível organizar a democracia de maneira a afastar esses dois grandes males - sem interferir consideravelmente com os benefícios característicos do governo democrático - ou pelo menos reduzi-los no grau mais elevado que se possa alcançar por meio de dispositivos humanos. A maneira comum de consegui-lo consiste em limitar o caráter democrático da representação mediante sufrágio mais ou menos restrito. Há, porém, uma consideração prévia que, se se levar devidamente em conta, modifica consideravelmente as circunstâncias que se supõem tornar necessária semelhante restrição. É impossível despir de certos males uma democracia completamente igual, em nação na qual uma classe única compõe a maioria numérica, mas esses males ficam grandemente agravados se a democracia existente de fato não é igual, mas sistematicamente desigual a favor da classe dominante. Geralmente se confundem, sob o nome de democracia, duas ideias muito diferentes. A ideia pura de democracia, conforme a sua definição, é o governo de todo o povo pelo povo todo, igualmente representado. A democracia, conforme comumente concebida e até aqui praticada, é o governo de todo o povo por simples maioria do povo, exclusivamente representada. A primeira é sinônima da igualdade de todos os cidadãos; a última, que com ela se confunde estranhamente, é governo de privilégio, a favor de maioria numérica, que é a única praticamente a possuir voz no Estado. Tal a consequência inevitável da maneira por que atualmente se colhem os votos, com a inteira privação do direito das minorias. Neste ponto a confusão das ideias é grande, mas esclarece-se tão facilmente que supor-se-ia ser suficiente a mais leve indicação para trazer a questão à sua verdadeira compreensão perante qualquer espírito de inteligência média. Assim seria se não fosse o poder do hábito, devido ao qual a ideia mais simples, se não familiar, experimenta tão grande dificuldade em penetrar no espírito como qualquer outra muito mais complicada. É ideia corrente que a minoria deve ceder à maioria, o menor número ao maior; e assim sendo os homens pensam que não há mais necessidade de aplicar o espírito, não lhes ocorrendo a existência de qualquer meio intermediário que permita ao menor número tornar-se igualmente poderoso ao grande, eclipsando inteiramente o menor número. Em um grupo representativo que de fato delibere, a minoria tem, fatalmente, de ver-se dominada; e em qualquer democracia igual (desde que as opiniões dos eleitores, quando nelas insistem, determinam as do corpo representativo) a maioria do povo, por meio dos seus representantes, excederá em votos a minoria e seus representantes, prevalecendo sobre eles. Seguir-se-á, porém, daí que a minoria não deve ter qualquer representante? Porque a maioria deve prevalecer sobre a minoria, deve aquela ter todos os votos, e a minoria nenhum? Será necessário que nem mesmo se ouça a minoria? Somente o hábito e a associação tradicional podem reconciliar qualquer indivíduo razoável com a injustiça desnecessária. Em qualquer democracia realmente igual, toda ou qualquer seção deve ser representada, não desproporcionalmente, mas proporcionalmente. Maioria de eleitores terá sempre maioria de representantes, mas a minoria dos eleitores deverá ter sempre uma minoria de representantes. Homem por homem, deverá ser representada tão completamente como a maioria. A menos que tal se dê, não há governo igual, mas governo de desigualdade e de privilégio: uma parte do povo manda na outra; retirar-se-á de certa porção da sociedade a parte justa e igual de influência na representação, contrariamente a todo governo justo, mas acima de tudo, contrariamente ao princípio da democracia, que reconhece a igualdade como o próprio fundamento e raiz. Nem são menos flagrantes a injustiça e a violação do princípio por serem minoria os que sofrem por causa delas; porquanto não há sufrágio igual quando qualquer indivíduo isolado não vale tanto quanto qualquer outro indivíduo isolado da comunidade. Mas não é só a minoria que sofre. A democracia, assim constituída, nem mesmo alcança o próprio objetivo ostensivo, o de conceder os poderes de governar em todos os casos à maioria numérica. Faz algo de mui diverso: atribui-lhes a maioria da maioria, que pode ser e muitas vezes é, exclusivamente a minoria do total. Provam-se efetivamente todos os princípios por meio dos casos extremos. Suponhamos então que, em país governado mediante sufrágio igual e universal, se verifique uma eleição contestada em cada distrito, e cada eleição se decida por pequena maioria. O Parlamento que se constituir por essa forma representará pouco mais de simples maioria do povo. Esse Parlamento passa a legislar e adota medidas importantes por simples maioria no seu seio. Que garantia haverá de que essas medidas estão de acordo com os desejos da maioria do povo? Quase metade dos eleitores, tendo sido derrotada nas eleições, nenhuma influência teve na decisão; e talvez o total destes ou a maioria provavelmente seja contrária a essas medidas, tendo votado contra aqueles que as promoveram. Dos eleitores restantes, quase metade escolheu representantes que, por hipótese, votaram contra as medidas. É possível, portanto, e não de todo improvável, que a opinião que veio a prevalecer fosse agradável somente a uma minoria da nação, embora maioria da porção que as instituições do país erigiram em classe governante. Se democracia quer dizer ascendência certa da maioria, não há meio de assegurá-lo senão permitindo a cada número individual seja contado igualmente no total. Qualquer minoria que se deixe de lado, ou propositalmente ou pelo funcionamento do mecanismo, entrega o poder às mãos não da maioria, mas da minoria em alguma outra parte da balança. A única resposta que se possa talvez dar a esta argumentação é que, como opiniões diferentes predominam em localidades diferentes, a opinião que está em minoria em alguns lugares terá maioria em outros, e, em conjunto, todas as opiniões existentes nos distritos eleitorais obterão parte adequada de vozes na representação. E essa é a verdade no estado atual do eleitorado; se assim não fosse, em breve se tornaria evidente a discordância da Casa em relação à opinião geral do país. Todavia não continuaria a ser verdade se o eleitorado se ampliasse muito; e ainda menos, se se estendesse à população inteira, visto como, em tal caso, a maioria em cada localidade consistiria de trabalhadores manuais; e quando houvesse qualquer questão com respeito à qual essas classes estivessem em litígio com o resto da comunidade, nenhuma outra classe conseguiria obter representação em parte alguma. Mesmo neste momento, não constitui grande motivo de queixa que, em cada Parlamento, porção muito numerosa dos eleitores, desejosos e ansiosos por terem representação, não contem com qualquer membro no Parlamento em quem tenham votado? É justo que cada eleitor de Marylebone seja obrigado a ver-se representado por duas pessoas indica das pelos conselhos paroquiais, cada eleitor de Finsbury ou Lambeth (conforme em geral se acredita) pelos dos publicanos? (Na antiga Roma, os publicanos eram coletores de impostos de má reputação (Mat., 9:10)). Os distritos eleitorais a que pertencem, na maior parte, as pessoas de educação superior e possuidoras de espírito público do país, as das grandes cidades, ou não estão representadas agora ou estão mal representadas. Os eleitores que não pertencem ao partido político da maioria local não estão representados. Dos que pertencem, grande proporção não goza de representação, tendo sido obrigada a aceitar o candidato que tinha o maior número de adeptos no partido político, embora as opiniões dele difiram das que professam pessoalmente em um ou outro ponto. Esta situação é ainda pior, a certos respeitos, do que se não permitissem de modo algum à minoria votar, porque então pelo menos a maioria poderia ter um membro que lhe representasse o melhor espírito próprio, enquanto atualmente a necessidade de não dividir o partido, pelo temor de abrir uma brecha aos opositores, leva a todos a votarem ou na primeira pessoa que se apresente com as ideias do partido ou na que os líderes locais recomendem; e estes, se podemos fazer-lhes a cortesia de supor, o que raramente merecem, que a escolha por eles feita não está prejudicada por interesses pessoais, veem-se na obrigação, para que tenham a certeza de concentrar toda a força de que dispõem, a apresentar um candidato a que nenhum membro do partido levante objeções - isto é, indivíduo sem qualquer peculiaridade distintiva, ou qualquer opinião conhecida exceto a senha do partido. Tal se verifica principalmente nos Estados Unidos, onde o partido mais forte, nas eleições para presidente, não ousa nunca apresentar os homens mais fortes, porque qualquer deles, pelo simples fato de ter estado por muito tempo sob as vistas do público, fez-lhe surgir objeções em uma ou outra porção do partido, não sendo, portanto, carta segura para arregimentar todos os votos como aquele de quem nunca se ouviu falar até ser apresentado como candidato. Assim o homem escolhido, mesmo pelo partido mais forte, representa talvez os desejos reais somente da estreita margem pela qual esse partido excede o outro. Qualquer seção cujo apoio é necessário ao êxito pode vetar o candidato. Qualquer seção, que se apegue mais obstinadamente ao próprio candidato do que o resto, pode forçar todas as outras a adotá-lo; e tal pertinácia superior é mais provável, infelizmente, de encontrar-se entre os que defendem os próprios interesses do que os do público. É, portanto, muito provável que a escolha da maioria venha a ser determinada pela porção mais tímida do grupo, a de espírito mais acanhado e eivada de preconceitos, ou que se agarre mais tenazmente ao interesse exclusivo de classe; caso em que os direitos eleitorais da minoria, enquanto inúteis para os fins para os quais se dão votos, servem tão-só para compelir a maioria a aceitar o candidato da porção mais fraca ou pior. Não será de surpreender que, embora reconhecendo tais males, muitas pessoas os considerem o preço necessário que se tem de pagar por um governo livre: até pouco era esta a opinião de todos os amigos da liberdade. Todavia, o hábito de postergá-los como irremediáveis tornou-se tão inveterado que muitas pessoas parecem terem perdido a aptidão de encará-los como algo que gostariam de remediar se lhes fosse possível. Do desespero da cura muita vez vai somente um passo para negar-se a moléstia; e daí resulta aversão ao oferecimento de remédio, como se quem o propõe procurasse provocar um malefício ao invés de oferecer-lhe alívio. As pessoas se acostumam tanto aos males que sentem como se fosse desarrazoado, senão errôneo, queixar-se deles, Entretanto, evitáveis ou não, deve ser amante bronco da liberdade aquele em cujo espírito não pesam, que não se alegrasse com a descoberta de que fosse possível prescindir deles. Ora nada mais certo que a supressão virtual da minoria não seja consequência natural ou necessária da liberdade; que, longe de não ter qualquer ligação com a democracia, opõe-se diametralmente ao primeiro princípio desta - a representação em proporção a números. Faz parte essencial da democracia a representação apropriada das minorias. Sem ela não é possível democracia real, mas tão-só falsa sombra. Os que sentiram e viram, com certa intensidade, a força destas considerações, propuseram diversos expedientes mediante os quais pode mitigar-se o mal, em maior ou menor grau. Lorde John Russell, em um dos seus Projetos de Reforma, introduziu um dispositivo determinando que certos distritos elegessem três membros, mas só se permitisse a cada eleitor votar em dois; e o Sr. Disraeli, em discussões recentes, lembrou a medida para reprová-la, sendo evidentemente de opinião que convém a um estadista conservador considerar somente os meios, e repudiar desdenhosamente todo sentimento de camaradagem com quem quer que, mesmo uma só vez, fora pilhado a pensar nos fins. (O erro do Sr. Disraeli (do qual Sir John Pakington, o que muito o honra, aproveitou logo depois a ocasião de separar-se) constitui exemplo expressivo entre muitos, de quão pouco os líderes conservadores entendiam os princípios do partido. Sem ter a presunção de exigir, por parte dos partidos políticos, virtude e discernimento de tal monta que compreendessem e soubessem quando aplicar os princípios dos seus opositores, poderíamos, contudo, dizer que importaria em grande aperfeiçoamento se cada partido entendesse e atuasse de acordo com os próprios princípios. Bom seria para a Inglaterra que os conservadores votassem coerentemente por tudo quanto é conservador, e os liberais por tudo quanto fosse liberal. Não teríamos então de esperar muito tempo pelo que é, como as grandes medidas atuais e muitas outras, eminentemente tanto liberal como conservador. Os conservadores, sendo pela lei da própria existência o partido mais estúpido, têm de responder pela maior parte dos pecados desta natureza; e não deixa de ser melancólico afirmar-se que, se se propusesse qualquer medida, sobre qualquer assunto, verdadeiramente e largamente conservadora, e de longo alcance, mesmo que os liberais estivessem dispostos a votar a seu favor, a grande massa do partido conservador se atiraria cegamente para impedir-lhe a aprovação). Outros propuseram que cada eleitor votasse somente em um candidato. Mediante qualquer desses planos, minoria que igualasse ou excedesse a um terço do eleitorado local seria capaz de eleger um dentre três membros para o Parlamento, se não tentasse mais do que isso. Seria possível conseguir o mesmo resultado por maneira ainda melhor se, conforme propôs em hábil panfleto o Sr. James Garth Marshall, o eleitor retivesse os três votos, mas ficasse em liberdade de concedê-los ao mesmo candidato. Tais planos, embora infinitamente melhores do que plano algum, nada mais são do que paliativos preenchendo o objetivo visado mui imperfeitamente, visto como deixariam de ficar representadas todas as minorias locais de menos de um terço e todas as minorias, embora numerosas, que se compõem de diversos eleitorados. Muito de lamentar-se, contudo, que não se levasse a termo qualquer desses planos, porquanto qualquer deles teria reconhecido o princípio justo, preparando o caminho para aplicação mais completa. Mas não se obterá igualdade real de representação senão quando qualquer grupo de eleitores, somando o número médio de eleitores de um distrito, residentes em qualquer ponto que seja do país, tiverem o poder de combinar-se para elegerem um representante. Este grau de perfeição em representação parecia impraticável até que um homem de grande valor, por igual capaz de ampla visão geral e de planejamento de detalhes práticos - o Sr. Thomas Hare - lhe provasse a possibilidade traçando um plano para levá-lo a efeito, constante de um projeto de ato do Parlamento - esquema que possui o mérito quase incomparável de realizar um grande princípio de governo de maneira a aproximar-se da perfeição ideal quanto ao objetivo especial em foco, enquanto preenche acidentalmente diversos outros objetivos de importância não menor. De acordo com esse plano, a unidade de representação - a quota de eleitores que teria o direito de fazer um membro - seria fixada pelo processo comum das médias, dividindo-se o número de votantes pelo número de cadeiras da Casa; e cada candidato que obtivesse essa quota seria eleito, por maior que fosse o número de eleitores locais que congregasse. Dar-se-iam os votos, como agora, localmente; mas qualquer eleitor teria a liberdade de votar em qualquer candidato em qualquer parte do país em que se apresentasse. Os eleitores, portanto, que não desejassem ser representados por qualquer dos candidatos locais contribuiriam com o respectivo voto para eleger a pessoa que preferissem entre todas as que se tivessem apresentado ao eleitorado. Por esse modo, dar-se-ia realidade aos direitos eleitorais da minoria, por outra maneira virtualmente privada de exercê-los. Reveste-se, porém, de importância que só aqueles que recusem votar em qualquer dos candidatos locais, mas também aqueles que votem por algum deles e se veem derrotados, fiquem em condições de encontrar em outra qualquer parte a representação que não conseguiram obter no seu próprio distrito. Permite-se, portanto, que o eleitor faça constar da cédula outros nomes, além daquele que lhe merece a maior preferência. Contar-se-ia o voto dele somente para um candidato; mas se o candidato da sua primeira escolha deixasse de ser eleito, por não ter obtido quota, o segundo talvez fosse mais feliz. Pode ampliar a lista a maior número, na ordem de preferência, de sorte que, se os nomes que estão perto do alto da lista ou não completam a quota ou a completam sem o voto dele, este ainda poderá ser usado para alguém a quem venha favorecer. Para completar o número de membros necessários à Casa, bem como com o fito de impedir que candidatos muito populares acumulem quase todos os sufrágios, é necessário, seja qual for o número de votos obtidos por algum candidato, que não se conte para a sua eleição mais votos do que a quota, contando-se o restante dos votos que lhe foram dados para o candidato seguinte nas respectivas listas que precisam deles e com este auxílio cheguem a completar a quota. Propõem-se vários processos para determinar quais os votos de um candidato que se devem usar para a sua eleição, e quais os que ficam livres para outros, o que não discutiremos aqui. Sem dúvida, conservaria os votos de todos aqueles que de outro modo não conseguiriam representação; e quanto ao restante, não seria de objetar-se distribuí-los por sorteio, em falta de melhor processo. As cédulas seriam levadas a um escritório central, onde se contariam os votos, se verificaria o número de votos dados ao primeiro, segundo, terceiro ou outros candidatos, concedendo-se a quota a todos que a completassem até lotar a Casa: preferindo-se os primeiros votos aos segundos, os segundos aos terceiros e assim por diante. Colocar-se-iam as cédulas e todos os elementos do cálculo em depósitos públicos, acessíveis a todos os interessados; e se alguém que tivesse conseguido a quota não fosse proclamado eleito, ser-lhe-ia fácil prová-lo. Tais os dispositivos principais do plano. Para conhecimento mais detalhado do seu mecanismo bastante simples, devo reportar o leitor ao "Tratado da eleição de representantes" do Sr. Hare (pequeno volume publicado em 1859) (Em uma segunda edição, publicada recentemente, o Sr. Hare introduziu importantes melhoramentos em alguns dos dispositivos) e um panfleto do Sr. Henry Fawcett (atualmente professor de Economia Política na Universidade de Cambridge), publicado em 1860, e intitulado "O projeto de Reforma do Sr. Hare simplificado e explicado". Este último constitui exposição muito clara e concisa do plano, reduzido aos elementos mais simples, pela omissão de alguns dos dispositivos originários do Sr. Hare, que, embora em si benéficos, julgou-se tirar mais da simplicidade do plano do que juntar algo à sua utilidade prática. Quanto mais se estudarem essas obras, arrisco-me a prever, tanto mais forte será a impressão da perfeita exequibilidade do plano e das suas vantagens transcendentes. Estas são tais e tão numerosas que, segundo estou convencido, colocam, o plano do Sr. Hare entre os maiores aperfeiçoamentos até hoje introduzidos na teoria e na prática do governo. Em primeiro lugar, assegura representação, em proporção a números, de qualquer divisão do corpo eleitoral - não somente a dois grandes partidos, juntamente com talvez algumas poucas minorias importantes em lugares particulares, mas a qualquer minoria da nação inteira, que consista em número suficientemente grande para ter direito a um representante, em princípios de igual justiça. Em segundo lugar, nenhum eleitor seria, como se dá atualmente, representado nominalmente por alguém que não houvesse escolhido. Cada membro da Casa seria o representante de eleitorado unânime. Representaria mil, dois mil, cinco mil ou dez mil eleitores, conforme fosse a quota, cada um dos quais teria não só votado nele, mas tê-lo-ia escolhido no país inteiro, não simplesmente de um sortimento de duas ou três laranjas, talvez podres que lhe oferecessem para escolher no mercado local. Sob esta relação, o vínculo entre o eleitor e o representante adquiriria força e valor de que não temos, atualmente, qualquer experiência. Cada um dos eleitores se identificaria pessoalmente com o seu representante, e o representante com os seus eleitores. Cada eleitor que tivesse nele votado, assim o teria feito ou porque entre todos os candidatos para o Parlamento favoravelmente conhecidos a certo número de eleitores, é ele o que melhor exprime as próprias opiniões do eleitor, ou porque é aquele cujas aptidões e caráter o eleitor mais respeita e no qual confia com a maior boa vontade que pense nele. O membro representaria pessoas, não simplesmente tijolos e argamassa da cidade - os próprios eleitores, não simplesmente alguns conselheiros ou notabilidades paroquiais. Conservar-se-ia, contudo, tudo quanto fosse digno de conservação na representação das localidades. Embora o Parlamento da nação devesse ocupar-se o menos possível de assuntos puramente locais, entretanto, enquanto tiver de tratar deles, haverá a necessidade de comissionar especialmente certos membros para se encarregarem dos interesses de cada localidade importante; e estes seria fácil encontrar. Em cada localidade que completasse a quota em seu seio, a maioria havia de preferir em geral que a representasse um dos seus elementos, pessoa que conhecesse a localidade e nela residisse, se se pudesse encontrar tal pessoa entre os candidatos que de qualquer maneira preenchesse as condições para representá-la. Seriam principalmente as minorias que, sendo incapazes de eleger o membro local, procurariam alhures candidato capaz de conseguir outros votos além daqueles de que elas dispusessem. De todas as maneiras pelas quais é possível constituir a representação nacional, esta proporciona a melhor garantia às aptidões intelectuais desejáveis nos representantes. Atualmente, conforme todo o mundo admite, está-se tornando cada vez mais difícil a qualquer um que só possui talento e caráter conseguir entrar para a Casa dos Comuns. Os únicos indivíduos que conseguem eleger-se são os que possuem influência local, que abrem caminho por meio de despesas exageradas ou que, a convite de três ou quatro negociantes ou advogados, são enviados por um dos dois grandes partidos dos clubes de Londres como homens com cujos votos o partido pode contar em todas as circunstâncias. Pelo sistema do Sr. Hare, os que não gostassem dos candidatos locais, ou que não conseguissem eleger o candidato local de sua preferência, teriam a faculdade de encher a cédula com uma escolha de todas as pessoas de reputação nacional, constantes da lista de candidatos, com cujos princípios políticos simpatizassem. Quase qualquer pessoa, portanto, que se tivesse distinguido de qualquer maneira, embora sem dispor de influência local, e sem se ter comprometido com qualquer partido político, teria oportunidade equitativa de completar a quota; e com esse estímulo poder-se-ia esperar se oferecessem, em número de que atualmente não se pode ter qualquer ideia. Centenas de homens capazes, de pensamento independente, que não teriam qualquer oportunidade de serem escolhidos pela minoria de qualquer eleitorado existente, tornaram-se conhecidos por escritos ou pelos esforços em algum campo de utilidade pública e receberam louvores de algumas pessoas em quase todos os distritos do reino; e se fosse possível contar todos os votos que seriam dados a eles, em todas as localidades, seriam capazes de completar a quota. Não haveria outra maneira possível de sugerir-se para que o Parlamento tivesse a certeza de conter a própria élite do país. E não seria somente por meio dos votos das minorias que este sistema de eleição elevasse o padrão intelectual da Casa dos Comuns. As maiorias ver-se-iam forçadas a procurar membros de calibre muito mais elevado. Quando os indivíduos que compõem a maioria não se vissem mais reduzidos à "escolha de Hobson" (Escolha involuntária que não deixa alternativa, do nome de Thomas Hobson (falecido em 1631), dono de estrebaria em Cambridge, na Inglaterra, que forçava os fregueses a receber o cavalo que estivesse mais próximo da porta) - votar na pessoa apresentada pelos líderes locais ou não votar de maneira alguma; - quando o candidato dos líderes tivesse de fazer frente à concorrência não só do candidato da minoria, mas de todos os homens de reputação firmada do país que estivessem dispostos a servir, seria impossível por mais tempo impingir aos eleitores a primeira pessoa que se apresentasse com os lemas políticos do partido na boca e três ou quatro mil libras no bolso. A maioria insistiria em ter candidato digno de ser escolhido ou levaria os votos para outro qualquer, e a minoria prevaleceria. Chegaria ao fim a escravidão da maioria à porção menos respeitável dela própria; os melhores e mais capazes dentre a nobreza local viriam à frente por preferência; se possível, os que fossem conhecidos de alguma maneira vantajosa, além da própria localidade, para que a própria força local tivesse a oportunidade de reforçar-se por meio de votos desgarrados de qualquer outra parte. Os distritos eleitorais entrariam em concorrência pelos melhores candidatos e rivalizariam uns com os outros para escolherem, dentre os homens de conhecimento e relações locais, aqueles que mais se distinguissem sob qualquer outro aspecto. A tendência natural do governo representativo, como da civilização moderna, inclina-se para a mediocridade coletiva; e aumentam esta tendência todas as reduções e extensões dos privilégios, que têm por efeito colocar o poder principal nas mãos de classes cada vez mais abaixo do nível elevado da instrução na comunidade. Mas embora se venha necessariamente a exceder o número de intelectos e caracteres superiores, implica em grande diferença ouvi-los ou não. Na falsa democracia que dá a representação somente às maiorias locais, em lugar de dá-la a todos, a voz da minoria instruída poderá deixar de ter qualquer órgão no corpo representativo. É fato admitido que na democracia americana, que é estruturada segundo esse padrão defeituoso, os membros altamente cultos da comunidade, com exceção dos que se prestam a sacrificar as próprias opiniões e maneira de julgar para se tornarem os porta-vozes servis dos seus inferiores em conhecimentos, raramente se candidatam ao Congresso ou às Assembleias estaduais, tão reduzida é a possibilidade de serem eleitos. Se um plano como o do Sr. Hare tivesse tido a sorte de ser sugerido aos fundadores esclarecidos e patrióticos da República Americana, as Assembleias Federal e Estaduais teriam contado com muitos desses homens distintos, e ter-se-ia poupado à democracia o maior reproche e um dos males mais formidáveis. Contra este mal o sistema de representação pessoal, proposto pelo Sr. Hare, apresenta-se quase como específico. A minoria de espíritos esclarecidos, espalhados pelos eleitorados locais, unir-se-ia para eleger um número, em proporção aos seus próprios números, dos homens mais hábeis do país. Seriam levados pelo mais forte incentivo a escolher tais homens, visto como por nenhum outro modo poderiam fazer valer a própria força numérica limitada para algo de considerável. Os representantes da maioria, além de melhorarem em qualidade pela aplicação do sistema, não mais teriam todo o campo para si. Sem dúvida excederiam em número aos outros, da mesma sorte que uma classe de eleitores excede a outra no país; poderiam sempre ter maior votação, mas votariam e falariam na presença deles, sujeitando-se-lhes à crítica. Quando surgisse qualquer diferença, teriam de fazer frente aos argumentos dos poucos instruídos por meio de razões, pelo menos na aparência, igualmente convincentes; e como não poderiam, como acontece aos que falam a pessoas já concordes, simplesmente supor que tivessem razão, aconteceria frequentemente que se convencessem não assistir-lhes razão. Como em geral seriam sinceros (pelo menos isso pode esperar-se de representação nacional razoavelmente escolhida), o espírito deles se elevaria insensivelmente pela influência dos espíritos com os quais entrassem em contato, ou mesmo em conflito. Os campeões das doutrinas impopulares não apresentariam argumentos apenas em livros e revistas, somente lidos pelos seus partidários; as fileiras opostas se encontrariam face a face e braço a braço, podendo fazer-se comparação equitativa da respectiva força intelectual na presença do país. Descobrir-se-ia então se a opinião que prevalecesse pela contagem de votos também prevaleceria se se pesassem os votos tanto como se contassem. A multidão revela frequentemente verdadeiro instinto para distinguir um homem competente quando ele dispõe dos meios de exibir a própria capacidade em um campo imparcial. Se um homem desses deixa de conseguir pelo menos em parte que lhe reconheçam o valor, é devido a instituições ou costumes que o conservam fora de vista. Nas democracias antigas não havia meios de conservar fora de vista qualquer homem capaz: abria-se-lhe a bema (Plataforma para discursos públicos, cujo nome deriva da do Pnix em Atenas) não tinha necessidade do consentimento de ninguém para tornar-se conselheiro público. Assim não acontece com o governo representativo; e os melhores amigos da democracia representativa podem dificilmente alimentar qualquer suspeita de que os Temístocles e os Demóstenes (Temístocles (528-462 A. C.) estadista ateniense, e Demóstenes (384-322 A. C.) famoso orador. Os conselhos deles (infelizmente rejeitados por Atenas) mencionados por Mill eram (a) o de Temístocles para aumentar a frota e as defesas de terra na luta contra os Persas; (b) de Demóstenes contra o perigo que apresentava Filipe da Macedônia), cujos conselhos teriam salvo a nação, não fossem capazes durante toda a vida de conseguir algum dia uma cadeira. Mas se é possível assegurar a presença na assembleia legislativa de somente alguns poucos dos espíritos de escol do país, embora os restantes consistam simplesmente de espíritos médios, pode ter-se a certeza de que a influência daqueles se fará sentir decisivamente nas deliberações gerais, mesmo que se saiba serem a muitos respeitos opostas à inclinação da opinião e do sentimento populares. Sinto-me incapaz de imaginar qualquer maneira pela qual seja possível assegurar-se positivamente a presença de tais espíritos como o faz a que o Sr. Hare propõe. Esta porção da Assembleia seria também o órgão apropriado de grande função social, para a qual não existe qualquer dispositivo nas democracias existentes, mas que não se pode deixar de preencher permanentemente sem condená-lo à degenerescência infalível e à decadência. Pode chamar-se a função de antagonismo. Em todo governo existe certo poder mais forte do que o resto, o qual tende perpetuamente a tornar-se único. Em parte, por intenção e em parte inconscientemente, está sempre esforçando-se para dobrar tudo a si, não ficando satisfeito enquanto depare com algo pela frente que lhe resista permanentemente, qualquer influência em desacordo com o espírito que o anima. Entretanto, se consegue suprimir todas as influências rivais, tudo modelando segundo o seu próprio estalão, pode dizer-se que cessou o aperfeiçoamento nesse país e o declínio começou. O melhoramento dos homens resulta de muitos fatores, e nenhum poder até hoje constituído entre eles os compreende a todos; até mesmo os poderes mais benéficos somente contêm em si alguns dos requisitos do bem e o restante, se o progresso tiver de continuar, deverá derivar de alguma outra fonte. Nenhuma comunidade em qualquer ocasião continuou a progredir durante muito tempo senão enquanto se processava um conflito entre o poder mais forte da comunidade e outro que lhe fosse rival; entre as autoridades espirituais e temporais; entre as classes militares ou territoriais e as classes industriais; entre o rei e o povo; os ortodoxos e os reformadores religiosos. Quando a vitória para qualquer dos lados foi tão completa que pôs termo à luta, não lhe tomando o lugar qualquer outro conflito, seguiu-se primeiramente a estagnação e depois a decadência. A ascendência da maioria numérica é menos injusta e em conjunto menos perniciosa, do que muitas outras, mas vem acompanhada da mesma espécie de perigos, e até mesmo com maior certeza; porque quando o governo está nas mãos de Um ou de Poucos, os Muitos existem sempre como poder rival, que não é bastante forte para controlar o outro, mas cuja opinião e sentimento se constituem em apoio moral e até mesmo social de todos que, ou por convicção ou por interesses contrariados, se opõem a qualquer das tendências da autoridade que detém o mando. Mas quando a Democracia é suprema, não há Um ou Poucos bastante fortes para servirem de apoio a opiniões discordantes e interesses ameaçados ou prejudicados. Parece que a grande dificuldade do governo democrático tem sido até hoje a maneira de prover, na sociedade democrática, aquilo que as circunstâncias até agora proviram em todas as sociedades que se conservaram à frente das outras - apoio social, ponto de apoio para a resistência individual contra as tendências do poder que tem o mando: proteção, ponto de arregimentação, para opiniões e interesses que a opinião pública ascendente encara com desfavor. Por falta de semelhante ponto de apoio as sociedades mais antigas, e todas senão algumas poucas dentre as modernas, ou caem em dissolução ou ficam estacionárias (o que importa em deterioração lenta) por obra de predomínio exclusivo de uma parte única das condições de bem-estar social e mental. Ora o sistema de representação pessoal está em condições de suprir a esta grande necessidade pela maneira mais perfeita que possam admitir as circunstâncias da sociedade moderna. A única fonte a que se possa recorrer para corretivo complementar ou suplemento contra os instintos de maioria democrática é a minoria instruída; mas pela maneira ordinária de constituir-se a democracia esta minoria não dispõe de órgão; o sistema do Sr. Hare, porém, o fornece. Os representantes eleitos para o Parlamento pelo conjunto das minorias proporcionariam esse órgão na sua maior perfeição. Organização distinta das classes instruídas, mesmo quando praticável, seria odiosa e somente poderia deixar de tornar-se ofensiva se ficasse totalmente privada de influência. Mas se a élite dessas classes constituísse parte do Parlamento, por meio do mesmo título que outro membro qualquer - representando o mesmo número de cidadãos, a mesma fração numérica da vontade nacional - a sua presença não provocaria ressentimento em pessoa alguma, enquanto ela ficaria na posição de vantagem mais elevada, não só para fazer ouvir opiniões e conselhos com respeito a todos os assuntos importantes, como para tomar parte ativa nos negócios públicos. As aptidões que revelasse provavelmente lhe proporcionariam mais do que a parte numérica da administração real do governo; como os atenienses não confiavam funções públicas de responsabilidade a Cléon ou Hipérbolo (o emprego de Cléon em Pilos e em Anfípolis foi puramente excepcional), mas Nícias, Teramenes e Alcibíades estavam constantemente empregados não só no país como no estrangeiro, embora se soubesse simpatizassem mais com a oligarquia do que com a democracia. (Todos preeminentes nos acontecimentos políticos da guerra com Esparta depois da morte de Péricles. Cleon (422 A. C.) opôs a Péricles e a ele sucedeu, tendo conduzido expedições bem-sucedidas contra Esparta. Hipérbolo (411 A. C.) tornou-se líder do partido da guerra depois da morte de Cléon. Nícias (470-413 A.C.) foi nomeado comandante associado da expedição contra a Sicília. Temístocles (nascido mais ou menos em 455 A. C.) tornou-se um dos Trinta Tiranos. Alcibíades (450-404 A. C.) educado pelo tutor Péricles e amigo íntimo de Sócrates foi também um dos chefes da expedição contra a Sicília). A minoria instruída pesaria somente pelo número na votação real, mas como poder moral pesaria muito mais, em virtude do conhecimento e da influência que adquiriria sobre os demais. Dificilmente seria possível conseguir-se, pelo emprego do engenho humano, qualquer arranjo que melhor se adaptasse à manutenção da opinião pública dentro dos limites da razão e da justiça, resguardando-a das várias influências degeneradoras que assaltam o lado fraco da democracia. Por essa maneira seria possível suprir a um povo democrático, do que de outro modo lhe viria a faltar quase seguramente - líderes de grau mais elevado de intelecto e de caráter do que ele próprio. A democracia moderna teria vez por outra um Péricles, bem como o grupo habitual de espíritos superiores de orientação. Com todo este rol de motivos, do caráter mais fundamental, a favor do lado afirmativo da questão, que é que se vê do lado negativo? Nada que resista a exame quando nos é dado induzir alguém a submeter a exame real alguma novidade. Na realidade, aqueles que, se acaso existirem, visam, sob pretexto de igual justiça, a substituir tão-somente a ascendência de classe dos pobres à dos ricos sem dúvida não se mostrarão favoráveis a um plano que coloca a ambos no mesmo nível. Todavia, não acredito que exista qualquer desejo dessa natureza no seio das classes trabalhadoras do país, embora não responda pelo efeito que a oportunidade e os artifícios demagógicos podem exercer doravante em provocá-lo. Nos Estados Unidos, onde a maioria numérica tem estado há muito na inteira posse do despotismo coletivo, esta se mostraria provavelmente tão pouco disposta a abrir mão dele como qualquer déspota único ou aristocracia. Acredito, contudo, que a democracia inglesa ficaria por ora satisfeita com a proteção contra a legislação de classe dos outros, sem exigir a faculdade de exercê-la por sua vez. Entre os que se mostram ostensivamente contrários ao plano do Sr. Hare, alguns são de opinião que não se pode pô-lo em execução; verificar-se-á, porém, que são geralmente pessoas que nem mesmo ouviram falar dele ou o submeteram a exame superficial e apressado. Outros são incapazes de se reconciliarem com a perda do que denominam de caráter local da representação. Não lhes parece que uma nação consista de pessoas, mas sim de unidades artificiais, criação de geografia e estatística. O Parlamento tem de representar cidades e condados, mas não seres humanos. Todavia ninguém pensa em aniquilar cidades e países. Estes, é de presumir-se, estão representados quando o estão as pessoas que os habitam. Sentimentos locais não podem existir sem que alguém os sinta; nem interesses locais sem alguém que por eles zele. Se os seres humanos, cujos sentimentos e interesses são estes, dispõem da parte conveniente da representação, tais sentimentos e interesses serão representados em comum com todos os outros dessas mesmas pessoas. Mas não vejo por que os sentimentos e os interesses que organizam os homens segundo localidades seriam os únicos que se julgassem dignos de representação, ou por que indivíduos que tenham outros sentimentos e interesses, a que emprestam mais valor do que aos geográficos, a esses se limitassem como princípio único de classificação política. A ideia de que o Yorkshire e o Middlesex tenham direitos distintos dos dos seus habitantes, ou que Liverpool e Exeter devem ser o objeto apropriado aos cuidados do legislador, em contraposição à população desses lugares, revela-se curioso exemplo da ilusão produzida pelas palavras. Em geral, contudo, os que fazem objeção cortam a questão pela raiz afirmando que o povo da Inglaterra nunca concordará com tal sistema. Não tentarei dizer o que o povo da Inglaterra é capaz de pensar dos que lhe condenam sumariamente a aptidão de entender e julgar, achando supérfluo ponderar se uma questão qualquer é justa ou injusta antes de afirmar que com toda a certeza a rejeitará. De minha parte, não penso que o povo inglês mereça ser estigmatizado, sem julgamento, como insuperavelmente imbuído de preconceitos contra algo que se possa provar ser bom para ele próprio ou para terceiros. Também me parece que, quando certos preconceitos persistem obstinadamente, a ninguém cabe tanto a culpa como àqueles que insistem em proclamá-los insuperáveis, para se desculparem de não tomar parte em qualquer esforço para removê-los. Qualquer preconceito será insuperável se os que não partilham dele se submetem e o exaltam, aceitando-o como lei da natureza. Creio, contudo, que neste caso não existe em geral, entre os que ainda não ouviram falar da proposição, nenhuma outra hostilidade contra ela mais do que a desconfiança natural e saudável que acompanha todas as novidades, não suficientemente examinadas de modo a esclarecer todos os motivos a favor e contra a questão. O único obstáculo sério é a falta de familiaridade; esta é, de fato, formidável, porque a imaginação se reconcilia mais facilmente com grande alteração em substância do que com mudança mui pequena em denominações e formas. Todavia, a falta de familiaridade constitui desvantagem que, quando existe qualquer valor real na ideia, exige somente tempo para que se a afaste. E nestes dias de discussão e interesse geralmente desperto a favor do aperfeiçoamento, o que anteriormente era o trabalho de séculos exige apenas o de alguns anos. Desde a publicação daquele Tratado formularam-se muitas críticas contrárias ao plano do Sr. Hare que indicam pelo menos exame cuidadoso e ponderação mais inteligente do que anteriormente lhe tinham dispensado às pretensões. Tal o progresso natural da discussão de grandes melhoramentos. A princípio cego preconceito os enfrenta e por meio de argumentos a que somente preconceito cego poderia atribuir qualquer valor. À proporção que o preconceito enfraquece, os argumentos que emprega adquirem mais força durante algum tempo, porque sendo o plano mais bem compreendido, seus inconvenientes inevitáveis, e as circunstâncias que contra ele militam produzindo imediatamente todos os benefícios de que é capaz intrinsecamente, vêm à luz juntamente com os merecimentos. Mas de todas as objeções, revesti das de qualquer aparência de razão, que me vieram cair sob os olhos, não existe uma que não tenha sido prevista, ponderada e examinada pelos que apoiam o plano, verificando-se não ser real ou difícil de superar-se. Na aparência, à objeção mais séria é fácil responder em poucas palavras; a suposta impossibilidade de prevenir-se a fraude ou a suspeita de fraude, nas operações do Escritório Central. Oferece-se como garantia a publicidade e a completa liberdade de inspecionar os documentos depois da eleição, mas tais garantias, sustenta-se, seriam ineficazes porque, para verificar uma eleição seria necessário que o eleitor repassasse todo o trabalho executado pelo corpo de funcionários. Esta objeção seria de grande importância se houvesse necessidade de verificação individual da eleição por parte de cada eleitor. Tudo quanto pode esperar-se que um simples eleitor tenha de fazer consiste em verificar o uso que fizeram da sua própria cédula; e para esse fim devolver-se-iam todas as cédulas, depois de intervalo conveniente, ao lugar donde tivessem saído. Mas o que não pudesse fazer, fariam para ele os candidatos rejeitados e os seus agentes. Entre estes, os que contavam com a eleição, isoladamente ou em grupo, empregariam um organismo qualquer para a verificação de todo o processo da eleição; e se encontrassem qualquer erro importante, passariam os documentos a uma Comissão dos Comuns, à qual incumbiria rever todas as operações eleitorais da nação, a um custo de um décimo do dispêndio de tempo e dinheiro necessário ao exame de uma única eleição perante uma Comissão Eleitoral sob o sistema atualmente em vigor. Supondo-se viável o plano, pretextaram duas maneiras em que seria possível frustrar-lhe os benefícios, produzindo-se consequências prejudiciais. Primeiramente, dizem que se atribuiria poder indevido a grupos e panelinhas; a combinações sectárias, associações para fins especiais, como a Liga da lei do Maine, a Sociedade do voto ou da Liberação; ou a grupos unidos por interesses de classe ou de comunidades de persuasão religiosa. Em segundo lugar, objeta-se que o sistema se prestaria a operar para fins partidários. Um órgão central de cada partido enviaria ao país inteiro as listas dos 658 candidatos a serem votados pelo total dos que os apoiassem em cada distrito eleitoral. Os votos assim atribuídos excederiam de muito os que pudesse obter qualquer candidato independente. O sistema do "ticket", afirmam, funcionaria, conforme se dá na América, somente a favor dos grandes partidos organizados, cujos "tickets" seriam aceitos cegamente e votados integralmente; e dificilmente o excederiam em votos os grupos sectários, ou agrupamentos de indivíduos reunidos por alguma extravagância comum, de que falamos anteriormente. A resposta a estas objeções parece definitiva. Ninguém pretende que sob o plano do Sr. Hare ou sob qualquer outro a organização deixe de apresentar vantagens. Elementos dispersos ficam sempre em desvantagem comparados a grupos organizados. Como o plano do Sr. Hare não pode alterar a natureza das circunstâncias, devemos esperar que todos os partidos ou seções, grandes ou pequenos, que possuem organização, dele se prevaleceriam para reforçar o mais possível a própria influência. Mas sob o sistema existente tais influências são tudo. Os elementos dispersos nada são absolutamente. Os eleitores que não estão vinculados às grandes divisões políticas nem a qualquer divisão sectária pequena, não dispõem de meios para tornar viáveis os próprios votos. O plano do Sr. Hare fornece-lhes tais meios. Poderão lançar mão deles mais ou menos habilmente. Conseguirão a própria parte de influência ou muito menos do que isso. Mas seja o que for que adquirissem seria ganho positivo. E quando se supõe que cada pequeno interesse, ou combinação em prol de pequeno interesse viesse a organizar-se, por que haveríamos de supor que o grande interesse do intelecto e do caráter nacionais seria o único a ficar não organizado? Se tivesse de haver cédulas de Temperança ou cédulas de escolas para maltrapilhos (Diversas sociedades de temperança floresceram na Inglaterra durante o século XIX. A União das escolas para maltrapilhos conta-se entre diversas organizações que proporcionavam educação para os pobres de Londres antes de 1870) e outros que tais, não seria suficiente uma pessoa que possuísse espírito público em um distrito para pôr em circulação uma cédula de "mérito pessoal" por toda a vizinhança? E algumas dessas pessoas, reunindo-se em Londres, não poderiam escolher na lista de candidatos os nomes mais distintos, sem que levassem em conta divisões técnicas de opinião, publicando-os mediante despesa insignificante em todos os distritos? Será preciso lembrar que a influência dos dois grandes partidos, com o modo atual de eleição, é ilimitada; no plano do Sr. Hare, seria grande, mas encerrada dentro de certos limites. Nem eles nem qualquer dos grupos menores estariam em condições de eleger mais membros do que em proporção ao número relativo de partidários. O sistema de "ticket" na América funciona em condições opostas a estas. Na América os eleitores votam no "ticket" partidário porque a eleição se decide por maioria simples, lançando-se fora o voto dado a quem quer que não esteja certo de obter a maioria. Mas pelo sistema do Sr. Hare o voto dado a um indivíduo de valor conhecido tem quase tanta probabilidade de conseguir o seu objetivo como o que se dê ao candidato partidário. Seria, portanto, de esperar que cada liberal ou cada conservador que fosse algo mais que Liberal ou Conservador, - que tivesse quaisquer preferências próprias além das do partido - apagasse o nome dos candidatos partidários mais obscuros e insignificantes substituindo-os pelo de homens que honram a nação. E a probabilidade que tal acontecesse atuaria como forte estímulo junto aos que elaborassem as listas partidárias para que não se limitassem a homens partidários comprometidos, mas incluíssem entre estes, nos "tickets" respectivos, algumas das notabilidades nacionais que simpatizassem mais com o seu lado do que com o lado oposto. A dificuldade real, visto como não se deve ocultar que existe uma dificuldade, consiste em que os eleitores independentes, os que desejam votar para pessoas de mérito não comprometidas, estariam em condições de inscrever o nome de poucas pessoas nessas condições, enchendo o resto da lista com os de meros candidatos partidários, contribuindo por essa maneira para aumentar o número de votos contra aqueles por quem gostariam de ser representados. Para isso existiria remédio fácil, se fosse necessário dele lançar mão, isto é, impor limites ao número de votos secundários ou contingentes. Não é provável que qualquer eleitor tenha preferência independente, baseada em conhecimento, para 658 ou mesmo para 100 candidatos. Haveria pouca objeção a que se limitasse a vinte, cinquenta ou qualquer outro número em cuja escolha houvesse certa probabilidade de que se exercesse a própria escolha dele - de sorte a que votasse como indivíduo, não como um qualquer que pertencesse a um partido. Mas até mesmo sem essa restrição, seria possível que o mal encontrasse a cura logo que o sistema fosse bem compreendido. Frustrá-lo tornar-se-ia o objeto supremo de todos os agrupamentos e panelinhas cuja influência tanto se reprova. Partiria destes, cada um em si mesmo pequena minoria, a palavra de ordem: "Vote somente nos seus candidatos especiais"; ou, pelo menos, ponha os nomes deles à frente, de sorte a proporcionar-lhes inteira probabilidade, que lhes garanta a força numérica dos eleitores, de conseguirem a quota pelos primeiros votos ou sem que desçam muito baixo na escala." E os eleitores que não pertencessem a qualquer panelinha lucrariam com a lição. Os grupos menores disporiam exatamente do volume de poder que devem possuir. A influência que pudessem exercer seria exatamente a que o número de eleitores lhes desse direito; nem mais uma partícula; enquanto que, a fim de assegurar até mesmo isto, teriam motivo para apresentar, na qualidade de representantes de objetivos seus especiais, candidatos cujas outras recomendações lhes permitissem obter os sufrágios de eleitores que não fizessem parte da seita ou da panelinha. É curioso observar como muda de direção a atitude popular de argumentação na defesa dos sistemas existentes, conforme a natureza do ataque que sofrem. Não há muitos anos o argumento favorito em apoio do sistema então existente de representação era que sob ele todos os "interesses" ou "classes" eram contemplados. E com toda certeza todos os interesses ou classes de qualquer importância devem ser representados, isto é, devem possuir porta-vozes ou advogados no Parlamento. Mas daí se argumentava que se deve apoiar um sistema que dê aos interesses parciais não simplesmente advogados, mas o próprio tribunal. Observe-se agora a mudança. O sistema do Sr. Hare torna impossível aos interesses parciais exercerem predomínio sobre o tribunal, mas lhes assegura advogados, e até por fazer somente isso criticam-no. Como reúne os pontos bons da representação das classes e os pontos bons da representação numérica, atacam-no simultaneamente pelos dois lados. Mas não são objeções como estas que constituem a dificuldade real para a aceitação do sistema; é a ideia exagerada que se tem da sua complexidade, e a dúvida resultante se é possível realizá-lo. A única resposta completa a esta objeção seria fazer-se uma experiência. Quando se tornarem mais conhecidos os merecimentos do plano, recebendo por isso apoio mais amplo por parte de pensadores imparciais, dever-se-ia fazer um esforço no sentido de conseguir-se introduzi-lo experimentalmente em certo campo limitado, tal como a eleição municipal de alguma cidade grande. Perdeu-se uma oportunidade quando se resolveu dividir o West Riding do Yorkshire com o fito de dar-lhe quatro membros, ao invés de experimentar o novo princípio, deixando o eleitorado indivisível, e permitindo se elegesse um candidato se obtivesse, seja nos primeiros votos, seja nos votos secundários, a quarta parte do número total de votos dados. Tais experiências constituiriam verificações muito imperfeitas do valor do plano, mas serviriam de exemplo da maneira por que funciona; permitiriam ao povo se convencesse de que não é impraticável, familiarizá-lo-ia com o mecanismo dele e forneceria alguns materiais para julgar-se se as dificuldades que se julgam tão formidáveis são reais ou somente imaginárias. O dia em que semelhante experiência parcial tiver a sanção do Parlamento inaugurará, creio eu, nova era para a Reforma Parlamentar, destinada a proporcionar ao Governo Representativo forma apropriada ao período maduro e triunfante, depois de ter passado pelo estádio militante, único que o mundo até agora viu. (No intervalo entre a última edição e a atual deste tratado, ficamos sabendo que a experiência aqui sugerida foi de fato realizada em escala maior do que a municipal ou provincial, continuando-se a experiência por diversos anos. Na Constituição Dinamarquesa (não a da Dinamarca propriamente, mas a do reino inteiro) proporcionou-se representação igual às minorias por um plano tão aproximadamente igual ao do Sr. Hare que veio juntar outro exemplo de como as ideias, destinadas a resolver dificuldades surgidas de situação geral do espírito humano ou da sociedade se apresentam, sem qualquer comunicação, a vários espíritos superiores ao mesmo tempo. O Sr. Robert Lytton trouxe clara e inteiramente este aspecto da lei eleitoral dinamarquesa ante o público inglês em memória competente, que forma um dos relatórios valiosos dos Secretários de Legação, impresso por ordem da Casa dos Comuns em 1864. O plano do Sr. Hare, que agora também se pode dizer do Sr. Andrae, adiantou-se por essa forma da posição de simples projeto para a de fato político realizado. Embora até o presente a Dinamarca seja o único país em que a representação pessoal se tenha convertido em instituição, o progresso da ideia entre os pensadores tem sido muito rápido. Em quase todos os países em que se considera atualmente o sufrágio universal como necessidade, o plano está abrindo caminho rapidamente entre os amigos da democracia, como consequência lógica do princípio a que obedecem; entre os que antes aceitam do que preferem o governo democrático, como corretivo indispensável aos seus inconvenientes. Os pensadores políticos da Suíça puseram-se à frente. Os da França os seguiram. Para não mencionar outros, dentro de período muito recente, dois dos escritores políticos franceses dos mais influentes e autorizados, um pertencente à escola moderada liberal e o outro à escola democrática extrema, aderiram publicamente ao plano. Entre os que o apoiam na Alemanha conta-se um dos mais eminentes pensadores políticos desse país, que é também membro distinto do Gabinete liberal do Grão-duque de Baden. Este assunto, entre outros, partilha do importante despertar do pensamento na república americana, o qual já é fruto do grande conflito iminente em prol da liberdade humana. Nas duas principais colônias inglesas do Pacífico, apresentou-se o plano do Sr. Hare à consideração dos respectivos poderes legislativos, e, embora ainda não adotado, conta com forte partido a favor; enquanto a compreensão clara e completa dos seus princípios, revelada pela maioria dos speakers sobre política geral dos Conservadores e dos Radicais mostra quão infundada é a opinião de que seja por demais complicado para tornar-se geralmente compreendido e pôr-se em prática. Nada mais é preciso para tornar não só o plano como suas vantagens perfeitamente inteligíveis para todos, senão que chegue o tempo em que pensem valer a pena dar-se ao trabalho de prestar-lhe realmente atenção). VIII DA EXTENSÃO DO SUFRÁGIO DEMOCRACIA REPRESENTATIVA tal como acabamos de esboçar, representativa de todos e não somente da maioria - na qual os interesses, as opiniões, os graus de intelecto que são excedidos pelo número seriam apesar disso ouvidos, e que teriam a oportunidade de obter pelo peso do caráter e pela força do argumento influência que não pertenceria à força numérica - essa democracia, que é a única igual, a única imparcial, a única que seja governo de todos por todos, o tipo único de verdadeira democracia, ver-se-ia livre dos maiores males das democracias assim falsamente chamadas, que hoje predominam, e das quais se deriva exclusivamente a ideia corrente de democracia. Mas mesmo nessa democracia, o poder absoluto, se o preferisse exercer, ficaria com a maioria numérica; e essa se formaria exclusivamente de uma única classe, semelhante em inclinações, preconceitos, e maneiras gerais de pensar, e, para não dizer mais, que não seria a mais altamente culta. A constituição, portanto, ainda estaria sujeita aos males característicos do governo de classe: com toda certeza em grau muito menor, do que a do governo exclusivo por uma classe que ora usurpa o nome de democracia, mas ainda sob nenhuma restrição eficaz exceto a que se encontrasse no bom senso, moderação, e indulgência da própria classe. Se repressões dessa espécie fossem suficientes, a filosofia do governo constitucional seria tão-só solene frivolidade. Toda confiança que se deposita em constituições baseia-se na segurança que proporcionam de que os depositários do poder não só não a empreguem mal, mas não possam empregá-la mal. A democracia não será a forma de governo idealmente melhor se não se lhe reforçar este lado fraco, se não se organizar por maneira tal que classe alguma, mesmo a mais numerosa, seja capaz de reduzir tudo exceto ela mesma à insignificância, orientando o curso da legislação e da administração pelo seu interesse exclusivo de classe. O problema consiste em encontrar o meio de impedir semelhante abuso, sem o sacrifício das vantagens características do governo popular. Não se satisfaz a este duplo requisito por meio do expediente de limitação do sufrágio implicando na exclusão compulsória de qualquer porção de cidadãos de voz na representação. Entre os benefícios principais do governo livre conta-se o da educação da inteligência e dos sentimentos, que se proporcionam aos graus mais baixos do povo, quando este é chamado a tomar parte em atos que afetam diretamente aos grandes interesses do país. A este respeito já insisti tão enfaticamente que somente a ele volto porque parece serem poucos os que emprestam a este efeito das instituições populares toda a importância a que tem direito. As pessoas julgam ser fantasia esperar tanto de causa que se afigura tão insignificante: reconhecer poderoso instrumento de aperfeiçoamento intelectual ao exercício de privilégios políticos concedidos a trabalhadores manuais. Contudo, a menos que cultura mental considerável na massa do povo deva ser simples visão, é este o caminho pelo qual deve vir. Se alguém supuser que este caminho não a trará, invocarei o testemunho do conteúdo inteiro da grande obra do Sr. de Tocqueville, e especialmente a opinião que forma dos americanos (La Démocratie en Amérique (2 vols., 1835, 1840)). Quase todos os viajantes ficam impressionados por verem que cada americano é, em certo sentido, patriota e pessoa de inteligência culta; e o Sr. de Tocqueville mostrou como é íntima a relação entre essas qualidades e as instituições democráticas desse povo. Nunca se viu em parte alguma nem mesmo se imaginou como atingível, tão ampla difusão de ideias, gostos e sentimentos de espíritos educados. (O seguinte "extrato do Relatório de um Comissário inglês à Exposição de Nova York", que cito dos "Princípios de Ciência Social" do Sr. Carey, serve de testemunho notável de uma parte, pelo menos, do que se afirma no texto: "Temos alguns poucos grandes engenheiros e mecânicos, e um grande corpo de trabalhadores hábeis; mas os americanos parecem terem-se tornado provavelmente uma nação inteira de tais elementos. Já os rios enxameiam de navios a vapor; os vales vão-se cobrindo de fábricas; as cidades, ultrapassando as de qualquer Estado europeu, exceto a Bélgica, a Holanda e a Inglaterra, servem de morada a todas as artes que ora distinguem uma população citadina; e raramente se encontra uma arte na Europa que não se pratique na América com perfeição igualou maior do que neste continente, embora aqui se cultive e melhore através das idades. Uma nação inteira de Franklins, Stephensons e Watts em perspectiva, é algo de maravilhoso para outras nações contemplarem. Em contraste com a inércia e a ignorância da massa do povo da Europa, seja qual for a superioridade de algumas poucas pessoas bem instruídas e prendadas, a grande inteligência do conjunto do povo americano constitui a circunstância mais digna de atenção pública). Entretanto isso nada é em comparação ao que se poderia esperar em um governo igualmente democrático em sua exclusividade, mas melhor organizado em outros pontos importantes. De fato, a vida política na América é a escola mais valiosa, mas é escola da qual se excluem os professores mais hábeis: sendo os primeiros espíritos do país afastados tão eficazmente da representação nacional e das funções públicas em geral, como se fossem considerados formalmente incapazes. O demos sendo também na América a única fonte do poder, toda a ambição egoísta do país para ele gravita, como acontece em países despóticos em relação ao monarca: perseguem o povo, como o déspota, com adulação e bajulação, e os efeitos corruptores do poder acompanham bem de perto as influências de melhoramento e enobrecimento que possa ter. Se, mesmo com esta liga, as instituições democráticas dão origem a tão assinalada superioridade de desenvolvimento mental nas classes inferiores da América, comparadas às classes correspondentes da Inglaterra ou de outro qualquer país, o que seria se fosse possível reter a porção boa da influência com exclusão da má? E tal se pode conseguir até certo ponto; mas não excluindo a porção do povo que possui em menor número os estímulos intelectuais de outras espécies, de tão inestimável apresentação a interesses amplos, distantes e complicados como o faculta a atenção que é possível levá-los a prestar a questões políticas. É pela discussão política que se ensina ao trabalhador manual cujo trabalho é rotineiro, e cuja maneira de viver não o põe em contato com qualquer variedade de impressões, circunstâncias ou ideias, que causas e acontecimentos remotos que se realizam muito longe têm efeitos dos mais sensíveis até mesmo sobre os seus interesses pessoais; e é da discussão política e da ação política coletiva que aquele cujas ocupações diárias concentram os interesses em círculo acanhado em torno de si, aprende a sentir pelos concidadãos e com eles, tornando-se conscientemente membro de grande comunidade. Todavia, as discussões políticas passam por cima da cabeça dos que não têm votos e não se estão esforçando em adquiri-los, A posição que ocupam, em comparação aos eleitores, é a da audiência em um tribunal de justiça, comparada aos doze homens sentados à mesa do júri. Não lhes pedem sufrágios, não procuram influir-lhes na opinião; formulam-se apelos, dirigem-se argumentos a outros que não eles; nada depende da decisão a que possam chegar, e não há necessidade nem tampouco estímulo para que formulem alguma. Quem quer que, em governo de qualquer modo popular, não tem voto nem qualquer perspectiva de consegui-lo, ou ficará permanentemente descontente, ou se sentirá como quem não é afetado pelos negócios gerais da sociedade; esses negócios deverão ser geridos por outros para ele; como quem "nada tem a ver com as leis exceto obedecê-las", nem com os interesses e preocupações públicos exceto na qualidade de espectador. O que sabe ou com que se preocupa desse ponto de vista pode medir-se em parte pelo que uma mulher da classe média sabe ou cogita da política, em comparação ao marido ou irmãos. Independentemente de todas essas considerações, constitui injustiça pessoal retirar a qualquer um, a menos que seja para prevenir mal maior, o privilégio comum de que lhe contem a voz na decisão de negócios em que tem o mesmo interesse que os demais. Se é obrigado a pagar, se podem forçá-lo a combater, se lhe exigem implicitamente obediência, deve ter legalmente o direito de saber para que, de lhe pedirem o consentimento, ou de lhe contarem a opinião pelo que vale, embora tão-só pelo seu justo valor. Não devem existir párias em nação civilizada e inteiramente desenvolvida, nenhuma pessoa incapacitada, exceto por culpa própria. Qualquer indivíduo fica degradado, perceba-o ou não, quando outros indivíduos, sem consultá-lo, chamam a si poder ilimitado para regular-lhe o destino. E mesmo em estado muito mais aperfeiçoado do que o espírito humano tenha ainda alcançado, não está na natureza que aqueles de quem se dispõe por essa forma recebam tratamento igual ao dispensado aos que têm voz nos negócios. Governantes e classes governantes estão sob a necessidade de levarem em conta os interesses e desejos daqueles que têm o sufrágio; mas dos que estão dele excluídos, cabe àqueles a opção se assim procederão ou não, e, por mais honestamente que estejam dispostos, encontram-se em geral tão inteiramente ocupados com assuntos a que se veem obrigados a dispensar atenção que pouco espaço lhes sobra nos pensamentos para qualquer questão que possam deixar de lado impunemente. Nenhum arranjo dos sufrágios, portanto, pode ser permanentemente satisfatório quando dele se exclui permanentemente qualquer pessoa ou classe, e quando não se faculta o privilégio eleitoral a todas as pessoas de maior idade que desejem obtê-lo, Existem, contudo, certas exclusões, exigidas por motivos positivos, que não entram em conflito com este princípio e que, embora sendo mal em si, só é possível afastá-las pela cessação das circunstâncias que as exigiram. Considero totalmente inadmissível que qualquer pessoa participe de eleições sem ser capaz de ler, escrever e, ainda juntarei, executar as operações comuns da aritmética. A justiça pede, mesmo quando o sufrágio não depende disso, que os meios de adquirir essas noções elementares estejam ao alcance de todos, ou gratuitamente ou com uma despesa que o mais pobre que ganhe o próprio pão possa satisfazer. Se tal fosse realmente o caso, ninguém havia de pensar em dar o voto a quem não sabe ler como não pensa em dá-lo a uma criança que não sabe falar; e não seria a sociedade que o excluísse, mas a própria indolência. Quando a sociedade não cumpriu com este dever, tornando este mínimo de instrução acessível a todos, experimenta-se certa dificuldade na questão, mas é dificuldade que se terá de suportar. Se a sociedade deixou de cumprir duas solenes obrigações, terá de satisfazer primeiramente à mais importante e mais fundamental: o ensino universal terá de preceder a libertação universal. Ninguém senão aqueles em que teoria a priori fez calar o bom senso sustentará que o poder sobre o próximo, sobre toda a comunidade, deve conceder-se a pessoas que não tenham adquirido os requisitos mais comuns e mais essenciais para cuidar de si, para perseguir inteligentemente os próprios interesses e os dos indivíduos que a elas se ligam mais intimamente. Pode-se, sem dúvida, levar este argumento mais longe, fazendo-o provar muito mais. Seria eminentemente de desejar-se que fosse possível tornar outros conhecimentos, além da leitura, escrita e aritmética, necessários ao sufrágio; que se exigissem dos eleitores certos conhecimentos sobre a conformação da Terra, suas divisões naturais e políticas, os elementos da história geral e da história e das instituições do próprio país. Mas esses conhecimentos, embora indispensáveis ao uso inteligente do sufrágio, não são acessíveis neste país e provavelmente em nenhum outro, salvo os Estados Unidos, ao povo todo; nem existe qualquer mecanismo fidedigno para verificar-se se foram ou não adquiridos. Atualmente tentá-lo conduziria a parcialidade, chicana, e a toda espécie de fraude. Melhor será que se confira o sufrágio indiscriminadamente ou se retire pela mesma forma do que se conceda a um e se retire a outro segundo o critério de um funcionário público. A respeito, porém, de leitura, escrita e contas não é preciso haver dificuldade. Seria fácil exigir de todos os que se apresentarem para registro que copiassem, na presença do funcionário, uma sentença de um livro inglês ou resolvesse uma regra de três, assegurando-se, mediante regras fixas e completa publicidade, a aplicação honesta de prova de tão grande simplicidade. Esta condição, portanto, deveria acompanhar, em todos os casos, o sufrágio universal; e, depois de alguns anos, somente excluiria aqueles que tão pouco se importassem com o privilégio, que o voto deles, se dado, não serviria em geral para indicar qualquer opinião política real. É igualmente importante que a assembleia que vota os impostos ou gerais ou locais, seja exclusivamente eleita pelos que pagam alguma parcela dos impostos exigidos. Os que não pagam impostos, dispondo por meio do voto do dinheiro de terceiros, têm todo motivo de ser pródigos e nenhum a favor da economia. No que diz respeito a questões de dinheiro, qualquer faculdade de sufrágio que possuam constitui violação do princípio fundamental do governo livre - separação do poder de controle em relação ao interesse do seu exercício benéfico. Importa em permitir-lhes meter a mão no bolso do próximo para qualquer fim que julguem merecer o nome de público; o que se verificou ter produzido, em algumas cidades norte-americanas, uma escala de tributação local excepcionalmente onerosa e totalmente suportada pelas classes mais abastadas. Está de acordo com a teoria das instituições britânicas que a representação seja coexistente à tributação, não se detendo aquém, mas não indo além dela. Todavia, para reconciliá-lo, como condição que deve acompanhar a representação, com a universalidade, é essencial, e igualmente desejável por muitos outros motivos, que a tributação, em forma visível, se estenda às classes mais pobres. Neste país, como em muitos outros, não há provavelmente qualquer família proletária que não contribua, por meio de impostos indiretos, pela compra de chá, café, açúcar, para não mencionar narcóticos e estimulantes. Contudo, esta maneira de fazer frente a parte das despesas públicas sente-se dificilmente; quem paga, a menos que seja pessoa educada e ponderada, não identifica o próprio interesse com uma escala modesta de despesa pública tão intimamente como quando se lhe solicita diretamente o dinheiro necessário; e mesmo assim o supondo, sem dúvida havia de ter o cuidado de, por mais exagerada que fosse a despesa que pudesse, por meio do voto, impor ao governo, custeá-la sem que se recorresse a qualquer taxa adicional sobre os artigos que ele próprio consome. Melhor seria que se lançasse uma taxa direta, sob a simples forma de capitação, sobre cada adulto da comunidade; ou que se admitisse cada pessoa como eleitor permitindo-lhe ser cotado “extra ordinem” às taxas lançadas; ou que se exigisse de cada eleitor alistado pequeno pagamento anual, maior ou menor conforme a despesa total do país; que assim cada um sentiria que a importância contribuída ao votar lhe pertencia em parte, interessando-lhe mantê-la reduzida. Seja como for, considero como exigido pelos primeiros princípios que o recibo de auxílio paroquial importe em incapacidade peremptória para votar. Quem não pode pelo próprio trabalho bastar-se a si mesmo não tem direito a reivindicar o privilégio de servir-se do dinheiro de terceiros. Ficando na dependência dos membros restantes da comunidade para subsistir, renuncia ao direito de gozar dos mesmos privilégios a outros respeitos. Aqueles a quem tem de recorrer para continuar a existir podem com justiça exigir a gestão exclusiva dos interesses comuns para os quais ele em nada contribui, ou para os quais contribui menos do que recebe. Como condição para ser admitido a votar, dever-se-ia fixar um prazo, digamos de cinco anos anterior ao alistamento, durante o qual o nome do pretendente não figurasse nos livros da paróquia como recebendo auxílio. O falido não reabilitado ou o que recorreu ao Ato de Insolvência seria impedido de votar até ter pago as dívidas, ou pelo menos teria de provar não depender no momento ou não ter dependido por algum longo período anterior de auxílio beneficente. O não pagamento de impostos, quando prolongado por tanto tempo que não pudesse resultar de inadvertência, deveria inabilitar para o exercício de voto, enquanto durasse. As exclusões acima não são por natureza permanentes. Impõem condições que todos são capazes ou devem ser capazes de satisfazer se assim quiserem. Deixam o sufrágio acessível a todos quantos estão na condição normal de ser humano; e se alguém tiver de renunciar a elas, ou não lhes der a importância devida, de sorte a fazer por causa delas o que está comprometido a fazer ou encontra-se em condições gerais de depressão e degradação em que não sinta esta insignificante adição, necessária à segurança de terceiros, e das quais emergindo, este sinal de inferioridade desapareceria com o restante. Com o correr do tempo, portanto (supondo-se não existam outras restrições senão as de que tratamos), será de esperar que todos, exceto (conforme é de esperar-se) a classe que diminui progressivamente, composta dos que recebem auxílio paroquial, estariam em condições de votar, de sorte que o sufrágio seria universal, sujeito tão-só àquele desconto insignificante. É absolutamente necessário que se expanda assim amplamente, conforme vimos, para que se consiga concepção ampliada e elevada do bom governo. Contudo, na situação atual, a grande maioria dos eleitores, em muitos países e enfaticamente na Inglaterra, seria de trabalhadores manuais; e o duplo perigo - o do padrão demasiadamente baixo da inteligência política e o de legislação de classe - ainda existiria em grau muito perigoso. Resta ver se existem meios que permitam obviar a esses males. São suscetíveis de serem evitados se os homens assim sinceramente o desejarem, não por meio de qualquer medida artificial, mas pela promoção da ordem natural da vida humana, que a todos se recomenda no que não depare com interesses ou opiniões tradicionais em contrário. Em todos os negócios humanos, cada pessoa diretamente interessada, que não esteja sob tutela positiva, tem o direito de ser ouvida e, quando o exercício de tal direito não entra em conflito com a segurança de todos, não é possível excluí-lo dele com justiça. Todavia, embora todos devam ser ouvidos - importa em proposição inteiramente diferente que todos o sejam igualmente. Quando duas pessoas que têm interesses associados em qualquer assunto diferem de opinião, exige acaso a justiça que se considerem as duas opiniões exatamente do mesmo valor? Se, com virtude igual, um é superior ao outro em inteligência e conhecimento, ou se, com igual inteligência, um excede ao outro em virtude, a opinião, o julgamento do indivíduo de moral ou inteligência mais elevada vale mais do que o da inferior; e se as instituições do país afirmarem virtualmente serem do mesmo valor, afirmam o que não é verdade. Um dos dois, por ser mais sábio ou melhor, tem direito a importância maior; a dificuldade está em determinar qual dos dois - o que é impossível entre dois indivíduos, mas, considerando-se os homens em grupos ou por números, consegue-se fazer com certa exatidão aproximada. Não se alimenta qualquer pretensão de aplicar esta doutrina a qualquer caso que se houvesse de considerar razoavelmente como de direito privado ou individual. Em qualquer questão que interesse somente a uma de duas pessoas, uma terá o direito de seguir a própria opinião, por mais sensata que seja a da outra. Falemos, porém, do que a ambas interessa igualmente; se a mais ignorante não ceder à mais sábia, esta ver-se-á forçada a ceder àquela. Qual destas duas maneiras de vencer uma dificuldade está mais de acordo com o interesse de ambas e mais conforme à justeza geral? Se se julgasse injusto devessem ambas desistir, que injustiça seria maior: que o melhor julgamento desistisse a favor do pior ou este a favor daquele? Ora, acontece que os negócios nacionais são exatamente tais interesses associados, com a diferença que não é preciso convocar ninguém para que sacrifique inteiramente a própria opinião. É sempre possível levá-la em conta e atribuir-lhe certo valor, sendo este mais elevado atribuído aos sufrágios daqueles cuja opinião tem direito a maior consideração. Não existe, em semelhante arranjo, algo de necessariamente odioso para com aqueles a quem se atribui grau inferior de influência. É preciso não confundir a inteira exclusão de ingerência nos assuntos comuns com a concessão a outros de ingerência mais acentuada, baseada em maior aptidão para a gestão dos interesses associados. Estes dois aspectos não são simplesmente diferentes, mas não têm mesmo qualquer medida comum. Quem quer que seja tem o direito de sentir-se insultado porque o considerem um joão-ninguém, assinalado como inteiramente destituído de importância. Ninguém senão um louco, e somente um louco de certa espécie, sente-se ofendido porque reconhece que há outras pessoas cuja opinião e mesmo cujos desejos merecem maior consideração do que os deles. Ninguém gosta de não ter ingerência naquilo que em parte lhe diz respeito; mas quando o que em parte lhe diz respeito também diz respeito a outrem, e sente que este outro entende do assunto melhor do que ele, que a opinião daquele deve valer mais cede-lhe às expectativas, bem como com o curso dos acontecimentos com que está habituado a concordar em todas as outras circunstâncias da vida. Somente se torna necessário que se alegue essa influência superior baseando-a em motivos que compreenda, e cuja justiça esteja em condições de perceber. Apresso-me a declarar que considero inteiramente inadmissível, exceto com expediente temporário, que se confira a superioridade de influência à importância da propriedade. Não nego que a propriedade seja uma espécie de prova; a educação em muitos países, embora em geral proporcionada à riqueza, é, na média, melhor na parte mais rica do que na mais pobres da sociedade. Mas critério é tão imperfeito; o acidental importa muito mais do que mérito em lhes facultar elevarem-se no mundo; e é tão impossível para qualquer um, adquirindo qualquer parcela de instrução, garantir-se de elevação correspondente em posição, que este fundamento do privilégio de votar é sempre, e continuará a ser, supremamente odioso. Vincular a pluralidade de votos a qualquer condição pecuniária seria não só de objetar-se em si mas segura maneira de desacreditar o princípio e tornar-lhe impraticável a manutenção permanente. A democracia, pelo menos na Inglaterra, não se mostra atualmente ciosa de superioridade pessoal, mas naturalmente e mui justamente da que se baseia em simples circunstâncias pecuniárias. O único motivo que justifique contar-se com a opinião de uma pessoa como equivalente a mais do que uma é a superioridade mental individual; e o de que se precisa é de algum meio para averiguá-la. Se houvesse educação realmente nacional ou um sistema fidedigno de exame geral, seria possível verificar-se diretamente a educação. Faltando estes, a ocupação da pessoa serve, até certo ponto, de prova. O empregador é, em geral, mais inteligente que o trabalhador; visto como tem de trabalhar com a cabeça, enquanto o último trabalha com as mãos. O capataz é geralmente mais inteligente do que o trabalhador comum, e o trabalhador especializado mais do que o trabalhador comum. Banqueiro, homem de negócios ou fabricante é provavelmente mais inteligente do que o vendeiro, por ter interesses mais amplos e mais complicados a gerir. Em todos esses casos, não é tão-só ter simplesmente empreendido a função superior, mas a sua realização feliz que prova as habilitações; por este motivo, bem como para impedir que certas pessoas se empenhem só nominalmente em qualquer ocupação tendo em mira o voto, seria conveniente exigir o exercício da profissão durante certo período (digamos três anos). Sujeitos a condições semelhantes, podia permitir-se a concessão de dois ou mais votos a cada pessoa que exercesse qualquer dessas funções superiores. As profissões liberais, quando praticadas realmente e não nominalmente, implicam, sem dúvida, em grau ainda mais elevado de instrução; e sempre que exame suficiente ou quaisquer condições sérias de educação, se exigem de alguém antes de exercer qualquer profissão, podiam admitir-se os seus membros imediatamente à plural idade de votos. Poder-se-ia aplicar a mesma regra aos formados pelas universidades; e mesmo aos que apresentassem certificados satisfatórios provando terem realizado cursos de estudos em qualquer escola em que se ensinem os ramos mais elevados de conhecimentos, com a garantia de que o ensino é real e não simples pretexto. O exame "local" ou de "classe média" para o grau de Associado, estabelecido tão louvavelmente com espírito público pelas Universidades de Cambridge e Oxford e outros semelhantes que outras corporações competentes vierem a organizar (contanto que franqueadas a todos que se apresentarem) proporcionam uma área em que seria possível conceder a pluralidade de votos com grande vantagem aos que se houvessem submetido aos exames. Todas estas sugestões estão sujeitas a muita discussão de detalhe e a objeções que é inútil antecipar aqui. Ainda não chegou o tempo de dar a tais planos forma prática, nem desejaria eu ficar adstrito aos objetivos particulares que formulei. Mas para mim é evidente que nesta direção se encontra o ideal verdadeiro do governo representativo; e trabalhar nessa direção, pelos melhores meios práticos que se possam descobrir, é a trilha do aperfeiçoamento político real. Se perguntarem até que ponto será admissível levar o princípio ou quantos votos seriam de conceder-se a um indivíduo por motivo de aptidões superiores, responderia que tal questão não é em si de grande importância, contanto que não se façam as distinções e gradações arbitrariamente, mas de maneira a que a consciência e a compreensão comuns as entendam e aceitem. Todavia, é condição absoluta não ultrapassar o limite prescrito pelo princípio fundamental estabelecido em capítulo anterior como condição de excelência para a constituição do sistema representativo. Não se deve levar a pluralidade de votos, por motivo algum, tão longe que os por ela privilegiados ou a classe (se houver) a que pertençam principalmente adquiram mais importância por esse meio que todo o resto da comunidade. A distinção a favor da educação, justa em si, recomenda-se ainda mais e fortemente por preservar os educados da legislação de classe dos não educados, mas não deverá permitir-lhes a prática de legislação de classe em proveito próprio. Deixem-me juntar que considero absolutamente necessário, como parte do plano de plural idade, seja facultado ao indivíduo mais pobre da comunidade reivindicar-lhe os privilégios se lhe for possível provar que, a despeito de todas as dificuldades e obstáculos, a eles tem direito, no que respeita à inteligência. Deverá haver exames voluntários a que qualquer pessoa se apresente, de sorte a provar que preenche o padrão de conhecimento e capacidade instituído como suficiente, sendo admitido, em consequência, à pluralidade de votos. Privilégio que não se recusa a quem quer que mostre ter preenchido as condições das quais depende em teoria e em princípio não repugnaria ao sentimento de justiça de quem quer que seja; mas certamente assim aconteceria se, embora conferido baseado em presunções gerais nem sempre infalíveis, não lhes permitissem prova direta. O voto plural, embora praticado em eleições de conselhos paroquiais e nos dos guardiães da lei dos pobres, é tão pouco familiar nas eleições para o Parlamento que não é provável a sua adoção em breve ou de boa vontade; mas como chegará certamente a ocasião em que a única escolha possível será entre este e o sufrágio universal, quem não desejar o último não pode deixar de começar desde já a reconciliar-se com o primeiro. Entrementes, embora a sugestão, por enquanto, talvez não seja prática, servirá para indicar o que é melhor em princípio, permitindo-nos julgar da escolha de qualquer meio indireto, ou existente ou capaz de ser adotado, que promova por maneira menos perfeita o mesmo fim. Uma pessoa pode ter voto duplo por outros meios que não o de dar dois votos na mesma eleição: pode ter um voto em cada um de dois distritos diferentes; e embora este privilégio excepcional pertença atualmente mais à superioridade de meios do que à inteligência, eu não o aboliria onde existisse, desde que, até adotar-se exame mais conveniente para a educação, não seria prudente abrir mão de meio tão imperfeito como o fornecem circunstâncias pecuniárias. Podiam encontrar-se meios de dar maior extensão ao privilégio que o conjugasse mais diretamente à educação superior. Em qualquer projeto futuro de reforma que diminua suficientemente as condições pecuniárias do sufrágio, talvez fosse dispositivo sensato permitir a todos os que se formassem por universidades, a todas as pessoas que tivessem cursado com proveito as escolas superiores, a todos os membros das profissões liberais, e talvez alguns mais, registrarem-se especificamente nesse caráter, permitindo-se-lhes receber votos no distrito que preferissem, conservando, além disso, os votos como simples cidadãos nas localidades em que residissem. Até que se tenha imaginado e até que a opinião esteja disposta a aceitar algum modo de votação plural que venha a proporcionar à educação, como tal, o grau de influência superior que lhe é devido, e suficiente como contrapeso ao peso numérico da classe menos educada; até então não será viável obterem-se os benefícios do sufrágio inteiramente universal sem que impliquem, conforme se me afigura, em possibilidade de males mais do que equivalentes. É possível, na verdade (e tal será talvez uma das transições pela qual teremos de passar na progressão para sistema representativo realmente bom) que as barreiras que atualmente limitam o sufrágio fiquem inteiramente niveladas em certos distritos eleitorais, cujos membros, em consequência, fossem eleitos principalmente por trabalhadores manuais; mantendo-se por toda parte a habilitação eleitoral existente, ou fazendo-se acompanhar qualquer alteração nela por um grupamento tal de distritos que impedisse à classe trabalhadora tornar-se predominante no Parlamento. Por meio de tal acomodação, não só se conservariam as anomalias da representação, mas estas ver-se-iam aumentadas; esta objeção, contudo, não é definitiva, porque se o país não tiver em vista os objetivos justos mediante sistema regular que a eles conduza diretamente, terá de contentar-se com expedientes irregulares, mas adaptados regularmente a fins errôneos, ou nos quais alguns fins igualmente necessários tenham sido deixados de lado. Constitui objeção muito mais grave dizer que semelhante ajustamento é incompatível com a intercomunicação dos eleitorados locais, conforme o exige o plano do Sr. Hare; que sob ele cada eleitor ficaria aprisionado dentro de um ou mais eleitorados do qual constasse o nome dele, e, a menos que desejasse ser representado por um dos candidatos para essas localidades, não seria de modo algum representado. Ligo tão grande importância à emancipação daqueles que têm votos inúteis, contudo, porque sempre se veem excedidos pelos outros votos, como alimento a esperança de que, pela influência natural da verdade e da razão, se conseguir ser ouvida e tiver quem a defenda convenientemente - não deverei desanimar da aplicação mesmo do sufrágio igual e universal, se o tornarem real pela representação proporcional de todas as minorias, segundo o princípio do Sr. Hare. Todavia, se as melhores esperanças que nos seja dado formular neste assunto fossem certezas, ainda lutaria a favor do princípio do voto plural. Não proponho a pluralidade como algo em si indesejável, que, como a exclusão da parte da comunidade do sufrágio, pode tolerar-se temporariamente enquanto necessária à prevenção de maiores males. Não encaro a igualdade de votação como o que é bom em si, contanto que seja possível garantir-se dos inconvenientes. Considero-a somente como relativamente boa - menos admissível do que a desigualdade de privilégio baseada em circunstâncias descabidas ou adventícias, mas em princípio errôneas, porque reconhecem padrão injusto e exercem influência perniciosa sobre o espírito do eleitor. Não é útil, mas prejudicial que a constituição do país declare ter a ignorância igual direito ao poder político como o conhecimento. As instituições nacionais devem exibir tudo quanto com elas entende ante o espírito do cidadão sob o aspecto em que lhe convém encará-las; e como o favorece pensar que todos têm direito a certa influência, mas os melhores e mais preparados a mais do que os outros, é importante reconheça o Estado esta convicção, incorporando-a às instituições nacionais. Tais medidas constituem o espírito das instituições de um país: a parte da influência por elas exercida que menos levam em conta os pensadores comuns e especialmente os pensadores ingleses, embora as instituições de todos os países que não se encontram sob grande opressão positiva produzam mais efeito pelo espírito do que por qualquer outro dispositivo direto, visto como por esse meio modela-se o caráter nacional. As instituições americanas gravaram fortemente no espírito dos cidadãos que qualquer homem (de pele branca) é tão bom como qualquer outro; e sente-se que este falso credo se relaciona de muito perto com alguns dos pontos mais desfavoráveis do caráter americano. Não será pequeno malefício que a constituição de qualquer país sancione semelhante credo, porque acreditar nele, seja tácita ou expressamente, é quase tão prejudicial à excelência moral e intelectual como qualquer efeito que podem produzir muitas formas de governo. Poder-se-á talvez dizer que uma constituição que concede igual influência, homem por homem, ao mais instruído e ao menos instruído, conduz, entretanto, ao progresso, visto como os apelos feitos constantemente às classes menos instruídas, o exercício facultado às aptidões mentais, e os esforços que os mais instruídos são obrigados a fazer para esclarecer-lhes o julgamento e livrá-los dos erros e preconceitos constituem para eles estimulantes poderosos no progresso intelectual. Admito e já sustentei esforçadamente que este efeito muito desejável acompanha realmente a admissão da classe menos educada a certa parte do poder, mesmo grande. Mas não só a teoria como a experiência provam que se estabelece uma contracorrente quando esta última passa a enfeixar nas mãos todo o poder. Os que se tornam supremos sobre tudo, sejam Um, Poucos ou Muitos, não mais têm necessidade das armas da razão; estão em condições de fazer prevalecer a própria vontade, e aqueles a quem não se pode apresentar resistência estão em geral muito satisfeitos com as próprias opiniões para terem a vontade de alterá-las ou para escutar sem sentirem impaciência quem quer que venha dizer-lhes não lhes assistir razão. A situação que proporciona o mais forte estímulo ao desenvolvimento da inteligência é a de elevar-se ao poder, e não a de tê-lo conseguido; e de todos os pontos de descanso, temporários ou permanentes, na estrada da ascendência, o único que desenvolve as melhores e as mais elevadas qualidades é a posição dos que são bastante fortes para fazer com que prevaleça a razão, mas não tão fortes que prevaleçam contra ela. Tal a posição em que se devem colocar ricos e pobres, os mais educados e os menos educados, e todas as outras classes e denominações que dividem entre si a sociedade, de acordo com os princípios que estabelecemos anteriormente. E pela combinação desse princípio com o não menos justo de permitir superioridade de influência à superioridade de qualidades intelectuais, a constituição política realizaria essa espécie de perfeição relativa, única em harmonia com a natureza complicada dos negócios humanos. Na discussão precedente a favor do sufrágio universal, mas gradativo não levei em conta a diferença de sexo. Considero-a sem qualquer importância para os direitos políticos como não tem importância a diferença de altura ou da cor do cabelo. Todos os seres humanos têm interesse igual pelo bom governo; o bem-estar é igualmente afetado por ele, e todos têm igual necessidade de se fazerem ouvidos nele a fim de se assegurarem a parte que lhes cabe nos benefícios. Se houver qualquer diferença, as mulheres a exigem mais do que os homens, visto como, sendo fisicamente mais fracas, dependem para proteção mais da lei e da sociedade. Os homens há muito abandonaram as únicas premissas que podiam vir em apoio da afirmação que as mulheres não devem votar. Não há ninguém hoje em dia que sustente que as mulheres devem conservar-se em servidão pessoal, sem pensamentos, desejos ou ocupações, reduzidas à posição de escravas domésticas dos maridos, dos pais ou dos irmãos. Permite-se às mulheres solteiras, e em breve também se permitirá às casadas, possuir propriedade e ter interesses pecuniários e de negócios, por igual aos homens. Considera-se conveniente e adequado que as mulheres pensem, escrevam e ensinem. Desde que se admita tudo isso, não há como aceitar a incapacidade política. Toda a maneira de pensar do mundo moderno pronuncia-se com ênfase crescente contra a ingerência da sociedade no sentido de resolver para os indivíduos relativamente ao que são capazes ou não de fazer, e sobre o que se deve permitir-lhes tentar ou não. Se os princípios da política moderna e da economia política têm qualquer utilidade, é no sentido de provar que estes pontos só os próprios indivíduos podem julgar com justeza; e que, sob completa liberdade de escolha, sempre que existam diversidades de aptidões, o maior número se dedicará àquilo para que na média se julgue mais capaz, e somente as exceções tomarão caminho excepcional. Ou toda a tendência dos aperfeiçoamentos sociais modernos foi errônea ou terá de conduzir à abolição total de todas as exclusões e incapacidades que bloqueiam qualquer emprego honesto a um ser humano. Mas nem mesmo é necessário sustentar tanto com o intuito de provar que as mulheres devem ter direito a voto. Mesmo que fosse justo, como é injusto, que fossem classe subordinada, limitada a ocupações domésticas e sujeita à autoridade doméstica, não precisariam menos da proteção do sufrágio para garanti-las contra o abuso dessa autoridade. Os homens, tanto quanto as mulheres, não precisam de direitos políticos a fim de que possam governar, mas para que não sejam malgovernados. A maioria do sexo masculino é e será por toda a vida, nada mais do que trabalhadores em plantações e em fábricas, mas tal circunstância não lhes torna o sufrágio menos desejável, nem o direito a ele menos irresistível, quando não for provável que o empreguem mal. Ninguém pretende pensar que as mulheres usassem mal o sufrágio. O pior que se diz é que votariam como simples dependentes, conforme mandassem os parentes masculinos. Se assim for, que o seja. Se pensarem por si, grande bem se fará, e se não pensarem, mal algum há-de resultar. Importa em benefício para qualquer ser humano livrar-se das correntes, mesmo que não queira andar. Importaria já em grande melhoramento na posição moral das mulheres se a lei não mais as declarasse incapazes de opinião, sem direito a exprimir uma preferência, a respeito dos interesses mais importantes da humanidade. Para elas, individualmente, haveria certo benefício em terem algo a conceder que os parentes homens não pudessem exigir, e, entretanto, tivessem desejo de obter. Não seria menor o benefício que resultasse da discussão entre marido e mulher, não lhe incumbindo o voto exclusivamente, mas a interesses associados. As pessoas não consideram suficientemente como se elevará a mulher em dignidade e estima aos olhos de um homem vulgar, por ser capaz de exercer alguma ação no mundo exterior independentemente do marido, tornando-a objeto de respeito que nenhuma qualidade pessoal seria capaz de conseguir para uma pessoa cuja existência social ele pode absorver inteiramente. O próprio voto melhoraria de qualidade. O homem seria frequentemente obrigado a descobrir razões honestas para o seu voto, tais que induzissem a caráter mais honesto e imparcial servir ao lado dele sob a mesma bandeira. A influência da mulher muita vez o forçaria a conservar-se fiel à própria opinião sincera. De fato, frequentemente, empregá-la-iam não a favor do princípio público, mas do interesse pessoal ou da vaidade mundana da família. Mas sempre que tal fosse a influência da mulher, já exerceria por inteiro nessa má direção; e com tanta maior certeza, visto como, sob a lei e costume atuais, ela fica geralmente por demais estranha à política em qualquer sentido em que estes implicam em princípios, para ser capaz de perceber de si para si que existe um ponto de honra neles, e muita gente tem tão pouca simpatia no ponto de honra de outros quando o próprio não se reporta ao mesmo objeto, como tem pelos sentimentos religiosos dos que professam religião diferente. Dê-se voto à mulher, e ela ficará sob a influência do ponto de honra político. Aprenderá a encarar a política como assunto em que lhe permitem ter opinião, e no qual se, alguém tem uma opinião deve a ela conformar-se; adquire o sentimento de responsabilidade pessoal no assunto e não mais sentirá, como acontece atualmente, que, seja qual for a porção de má influência que exerça, se apenas for possível persuadir o homem, tudo está bem, e a responsabilidade dele tudo cobre. É somente sendo estimulada a formar opinião própria e conseguir compreensão inteligente das razões que devem dominar a consciência contra as tentações de interesses pessoais ou da família, que poderá deixar de agir como força perturbadora sobre a consciência política do homem. Pode impedir-se que a atuação indireta da mulher seja politicamente prejudicial somente tornando-a direta. Supus dependesse o direito de voto, como em boas circunstâncias aconteceria, de condições pessoais. Onde depende, como na Inglaterra e em outros países, de condições de propriedade, a contradição ainda se torna mais flagrante. Há algo mais do que ordinariamente irracional em pôr-se de lado o próprio princípio e sistema da representação baseada na propriedade, quando uma mulher é capaz de fornecer todas as garantias exigidas de eleitor masculino, circunstâncias independentes, posição de chefe da casa e da família, pagamento de impostos ou quaisquer outras condições que acaso se julguem necessárias, criando-se por esse modo incapacidade excepcionalmente pessoal com o mero propósito de excluí-la. Quando se junta que no país em que tal se dá reina lima mulher, e que o governante mais glorioso que teve algum dia foi mulher, completa-se o quadro da sem-razão e da injustiça dificilmente disfarçada (Referência à Grã-Bretanha e à rainha Vitória (1819-1901). O "governante mais glorioso" é a rainha Elizabeth I (1533-1603)). Esperemos que, perseguindo a obra de derrubar um após outro os restos da estrutura decrépita do monopólio e da tirania, não seja este o último a desaparecer; que as opiniões de Bentham, do Sr. Samuel Bailey, do Sr. Hare e de muitos outros dentre os pensadores políticos mais vigorosos, desta época e deste país (para não falar dos outros) sejam aceitas por todos os espíritos que não se tornaram obstinados pelo egoísmo ou por preconceito inveterado; e que, antes de passar outra geração, o acidente de sexo, não mais do que o acidente de pele, não se julgue razão bastante para privar o possuidor de proteção igual e dos justos privilégios de cidadão. (Jeremy Bentham (1748-1832), filósofo político inglês, amigo íntimo de James Mill, que muito influiu sobre o preparo intelectual de J. S. Mill. Samuel Bailey (1791-1870) foi filósofo e economista inglês. Mill tratou da desigualdade das mulheres em muitos dos seus escritos, mais particularmente em "A Sujeição das Mulheres" (1869)). IX DEVERÁ HAVER DOIS ESTÁDIOS DE ELEIÇÃO? EM ALGUMAS CONSTITUIÇÕES representativas, adotou-se o plano de escolher os membros do corpo representativo por processo duplo, escolhendo os eleitores primários somente outros eleitores e estes elegendo os membros do Parlamento. Destina-se provavelmente este expediente a tornar-se até certo ponto obstáculo ao inteiro alcance do sentimento popular, dando o sufrágio e com ele o poder extremo completo aos muitos mas compelindo-os a exercê-lo através da atuação de comparativamente poucos, que, supõe-se, sentiriam menos do que o demos os assomos da paixão popular; e como os eleitores, sendo já um corpo escolhido, poderia esperar-se excedessem em intelecto e caráter o nível comum dos eleitores, pensava-se provavelmente que a escolha a que procedessem fosse mais cuidadosa e esclarecida, e de qualquer maneira realizada sob maior sentimento de responsabilidade, do que a eleição pelas próprias massas. Este plano destinado, por assim dizer, a filtrar o sufrágio popular por meio de um corpo intermediário admite defesa mui plausível: visto como pode dizer-se, com grande aparência de razão, que se exigem menos inteligência e instrução para julgar quem entre os vizinhos merece mais a nossa confiança para a escolha de um membro do Parlamento do que aquele que seria mais capaz dessa função. Contudo, em primeiro lugar, se se podem julgar os perigos inerentes ao poder popular como diminuídos até certo ponto por esse arranjo indireto, também se reduziriam os benefícios; e este último efeito é muito mais certo do que o primeiro. Para que o sistema funcione conforme se deseja, ter-se-á de empregá-lo no espírito em que se projetou: os eleitores terão de usar o sufrágio pela maneira que se supõe na teoria, isto é, cada um deles não deverá perguntar a si mesmo quem terá de ser membro do Parlamento, mas somente quem ele gostaria mais que o escolhesse em seu lugar. É evidente que as vantagens supostas à eleição indireta sobre a direta exigem esta disposição de espírito no eleitor, e só se tornarão realidade se ele levar a sério a doutrina, isto é, que somente lhe incumbe escolher os que vão escolher, mas não o próprio membro do Parlamento. Supõe-se assim que não se preocupará com opiniões ou medidas políticas, ou com políticos, mas deixar-se-á guiar pelo respeito pessoal para com algum indivíduo ao qual passará procuração para agir por ele. Ora, se os eleitores primários adotarem esta atitude, invalida-se uma das principais vantagens do sufrágio - a função política a que são chamados deixa de desenvolver o espírito público e a inteligência política; deixa de fazer dos negócios públicos objeto de interesse para os seus sentimentos e de exercício para as suas faculdades. A hipótese, além disso, compreende condições discordantes; porque, se o eleitor não sente interesse pelo resultado final, como ou por que pode esperar-se que sinta algum no processo que a ele conduz? Desejar ter certo indivíduo como representante próprio no Parlamento é possível a pessoa de grau mui moderado de virtude e inteligência; e desejar escolher um eleitor que eleja esse indivíduo é a consequência natural; mas para quem não se incomode com quem seja eleito, ou se sinta na obrigação de deixar essa consideração em suspenso, interessar-se de qualquer maneira pela indicação da pessoa mais digna de eleger outra de acordo com seu próprio julgamento implica em zelo pelo que é justo em abstrato, princípio habitual do dever por causa do dever, o que somente é possível em indivíduos de grau de cultura um tanto elevado, que, pelo próprio fato de possuí-lo, mostra que se pode confiar-lhes e que o merecem, o poder político por maneira mais direta. De todas as funções públicas suscetíveis de se conferirem aos membros mais pobres da comunidade, esta é a que menos se prestará a inflamar-lhe os sentimentos, e que oferece o menor estímulo natural a que se cogite dela, a menos que se considere como resolução virtuosa desempenhar conscienciosamente qualquer dever que se tenha de cumprir: e se a massa dos eleitores se interessa bastante por questões políticas a ponto de atribuir certo valor a participação tão limitada, provavelmente não se sentiriam satisfeitos sem participação muito mais ampla. Em segundo lugar, admitindo-se que uma pessoa que não possa, pelo alcance limitado da própria cultura, julgar bem das aptidões de um candidato ao Parlamento, esteja em condições de ser juiz competente da honestidade e da aptidão de outra qualquer a quem incumba de escolher por ele um membro do Parlamento, poderei observar que, se o eleitor está de acordo nessa estimativa das aptidões dessa pessoa e deseja realmente ver a escolha feita para ele por quem lhe merece confiança, não haverá necessidade de qualquer dispositivo constitucional para esse fim; terá somente de perguntar particularmente a tal pessoa de confiança em que candidato seria melhor votar. Neste caso as duas maneiras de votar coincidem no resultado, obtendo-se todas as vantagens da eleição indireta com a eleição direta. Os sistemas somente divergem no funcionamento se supusermos que o eleitor preferisse fazer uso do próprio julgamento na escolha do representante, deixando tão-só um terceiro escolher por ele porque a lei não lhe permita maneira mais direta de agir. Mas se tal é o estado de espírito dele; se a vontade dele não está de acordo com a limitação imposta pela lei, desejando fazer escolha direta, poderá fazê-la apesar da lei. Terá somente de escolher, como eleitor, partidário conhecido do candidato por ele preferido, ou alguém que se comprometa em votar nesse candidato. E tal é tão naturalmente o funcionamento da eleição em dois estádios que, exceto em condições de inteira indiferença política, dificilmente poder-se-á esperar que atue por outra forma. É por essa maneira que a eleição do presidente dos Estados Unidos praticamente se realiza. Nominalmente a eleição é indireta: a população, no todo, não vota no presidente; vota em eleitores que escolhem o presidente. Mas escolhem-se sempre os eleitores sob o compromisso expresso de votar em certo candidato, nem qualquer cidadão vota em qualquer eleitor porque o prefira; vota na cédula de Lincoln ou na de Breckenridge. Deve lembrar-se que não se escolhem os eleitores para que procurem por todo o país a pessoa mais capaz de ser presidente ou membro do Parlamento. Haveria algo a dizer-se a favor do processo se assim fosse; mas assim não é, nem será nunca até que todos os homens sejam de opinião, com Platão, que a pessoa mais capaz de merecer o poder é a que de melhor vontade o aceite. Os eleitores terão de escolher um dos candidatos dentre os que se apresentaram; e os que escolhem os eleitores já sabem quais são os candidatos à presidência. Se existe qualquer atividade política no país, todos os eleitores que se preocupam em votar já resolveram qual desses candidatos gostariam de ter e farão dessa resolução a consideração única ao dar o voto. Os partidários de cada candidato prepararão de antemão as próprias listas de eleitores, todos comprometidos a votarem por aquele candidato; e a única indagação que se faz praticamente ao eleitor primário é sobre a qual dessas listas ele está disposto a dar apoio. O caso a que se amolda bem a eleição por dois estádios na prática é aquele em que não se escolhem os eleitores somente como eleitores, mas para que desempenhem certas funções importantes, que evitam sejam escolhidos tão-só como delegados para darem certo voto particular. Esta combinação de circunstâncias se esclarece em outra instituição americana, o Senado. Esta assembleia, a Câmara Alta, por assim dizer, do Congresso, considera-se como representando, não o povo diretamente, mas os Estados como tais, e como depositário da parte dos direitos soberanos por eles não alienados. Como a soberania interna de cada Estado é, pela natureza de federação em igualdade de condições, igualmente sagrada seja qual for o tamanho ou a importância do Estado, cada um elege para o Senado o mesmo número (dois) de membros, seja o pequeno Delaware ou o "Estado Império" de Nova York. Esses membros não são escolhidos pela população, mas pelas Assembleias Legislativas estaduais, eleitas pelo povo de cada Estado; mas como todo o trabalho ordinário da assembleia legislativa, legislação interna e controle do executivo, cabe a estes corpos, faz-se a sua eleição tendo em vista esses objetivos mais do que qualquer outro; e ao nomearem duas pessoas para representantes do Estado no Senado Federal põem em ação, na maior parte, o próprio julgamento, reportando-se em geral à opinião pública como é necessário em todos os atos de governo de uma democracia. As eleições, assim feitas, mostraram-se eminentemente bem-sucedidas e conspicuamente as melhores de todas as eleições dos Estados Unidos, consistindo invariavelmente o Senado das personalidades mais distintas entre as que se tornaram suficientemente conhecidas na vida pública (A experiência e o sentimento popular não confirmam a afirmação de Mill. Atualmente todos os senadores são eleitos por voto popular, com a condição de preenchimento de vagas por indicação governamental). Depois de tal exemplo não será possível dizer-se que a eleição popular indireta não é nunca vantajosa. Sob certas condições é o melhor sistema que se possa adotar. Mas dificilmente podem conseguir-se tais condições na prática, exceto em governo federativo como o dos Estados Unidos, no qual é possível confiar as eleições a corpos locais, cujas outras funções se estendem aos interesses mais importantes da nação. Os únicos corpos em posição análoga na Inglaterra que existem ou podem existir, são as municipalidades, ou quaisquer outros conselhos criados ou que se venham a criar para fins locais semelhantes. Poucos serão, contudo, os que julguem resultar em melhoramento em nossa constituição parlamentar, a escolha dos membros do parlamento para representarem a Cidade de Londres pelos vereadores e pelo Conselho Comum e os que representem o distrito de Marylebone pelos conselhos que compõem as paróquias, seja confessamente seja virtualmente. Mesmo que a esses corpos, considerados simplesmente conselhos locais, fosse possível fazer menos objeções do que realmente merecem, as aptidões que os habilitam aos deveres limitados e peculiares de edilidade municipal ou paroquial não lhes garantem a capacidade especial de julgar das aptidões relativas dos candidatos a uma cadeira no Parlamento. Provavelmente não se desempenhariam dessa obrigação melhor do que os habitantes votando diretamente, enquanto, por outro lado, se fosse preciso levar em consideração a competência para eleger membros do Parlamento ao se escolherem as pessoas para o cargo de conselheiro paroquial ou vereadores municipais, muitos dos que são mais capazes para exercerem essa obrigação mais restrita inevitavelmente dela seriam excluídos, quando menos pela necessidade de se escolherem pessoas cujas opiniões na política geral estivessem de acordo com as dos eleitores que votaram neles. A simples influência política indireta dos conselhos municipais já conduziu a considerável perversão das eleições municipais desviando-as do objetivo visado, por torná-las questão de política partidária. Se entre os deveres do guarda-livros ou do mordomo de alguém se incluísse o de lhe escolherem o médico, provavelmente não seria mais bem tratado do que se ele próprio o escolhesse, enquanto teria de limitar-se, na escolha daqueles auxiliares, àqueles que lhe fosse possível confiar a saúde sem correr perigo demasiadamente grande. Parece, portanto, que qualquer benefício suscetível de se conseguir pela eleição indireta pode obter-se pela eleição direta; que alguns dos benefícios que se esperam dela, impossíveis de se conseguirem pela eleição direta, deixarão igualmente de se realizarem por meio da eleição indireta, enquanto esta última apresenta consideráveis desvantagens que lhe são próprias. Não é objeção de desprezar-se a simples questão de importar em mais uma roda no mecanismo. Já insistimos em sua decidida inferioridade como meio de melhorar o espírito público e a inteligência política; e se tivesse qualquer influência eficaz - isto é, se os eleitores primários deixassem em qualquer extensão aos indivíduos escolhidos a seleção do representante parlamentar - o eleitor ver-se-ia impedido de identificar-se com o seu membro do Parlamento, e este sentiria muito menos ativamente a responsabilidade para com os eleitores. Além de tudo isso, o número comparativamente reduzido de pessoas em cujas mãos, finalmente, residiria a eleição de um membro do Parlamento somente contribuiria para aumentar as facilidades à intriga e a todas as formas de corrupção compatíveis com a posição dos eleitores na vida. Os distritos eleitorais se reduziriam universalmente, no que respeita às conveniências para suborno, à condição dos pequenos distritos atuais. Seria suficiente aliciar pequeno número de pessoas para ter certeza de eleger-se. Se disserem que os eleitores seriam responsáveis perante os que os elegeram, é evidente que a resposta que, como não ocupam qualquer posição ou cargo do conhecimento do público, nada arriscariam com um voto corrupto senão aquilo com que pouco se preocupam, isto é, não serem escolhidos novamente; e a segurança principal ainda estaria com as penalidades por suborno, cuja insuficiência, nos pequenos distritos, a experiência já demonstrou a todo o mundo. O mal seria exatamente proporcional à porção de discrição deixada aos eleitores escolhidos. O caso único em que provavelmente teriam receio de utilizar o próprio voto na promoção dos interesses pessoais seria quando eleitos sob compromisso expresso, como simples delegados, para levarem, por assim dizer, os votos do eleitorado às urnas. No momento em que o duplo estádio de eleição começasse a exercer qualquer efeito, começaria a ter mau efeito. E tal verificaremos ser a verdade em relação ao princípio da eleição indireta, seja qual for a maneira de aplicá-la, exceto em circunstâncias semelhantes às da eleição de senadores nos Estados Unidos. O melhor que se poderia dizer a favor deste expediente político é que em certos estados de opinião seria mais praticável do que o do voto plural por isso que proporciona a cada membro da comunidade voto de certa espécie, sem tornar predominante no Parlamento simples maioria numérica: como, por exemplo, se o eleitorado deste país aumentasse pela adição de porção numerosa e escolhida das classes trabalhadoras, escolhida pelas restantes. As circunstâncias tornariam semelhante plano maneira conveniente de acomodamento temporário, embora não ponha em execução qualquer princípio suficientemente perfeito para que se recomende a qualquer classe de pensadores como arranjo permanente. X DA MANEIRA DE VOTAR A QUESTÃO DE MAIOR IMPORTÂNCIA relativamente à maneira de votar é a de segredo ou publicidade; e a esta nos dedicaremos imediatamente. Seria grande erro fazer a discussão girar em torno a sentimentalidades relativas a covardia ou desejo de esconder-se. Justifica-se o segredo em muitos casos, sendo mesmo imperativo em alguns, e não é covardia procurar proteção contra os males que se evitem honestamente. Nem será possível sustentar razoavelmente não serem concebíveis os casos em que o voto secreto seja preferível ao voto a descoberto. Mas tenho de afirmar que tais casos, em questões de caráter político, são a exceção, não a regra. O caso atual é um dos muitos exemplos em que, conforme tive anteriormente ocasião de observar, o espírito de uma instituição, a impressão que faz no espírito do cidadão, é uma das partes mais importantes da sua atuação. O espírito do voto secreto, - interpretação que provavelmente se apresente ao espírito do eleitor - é que se lhe dá o direito de sufrágio a ele próprio, para uso e benefício particulares, e não como obrigação para com o público. Porque se, de fato, constitui obrigação; se o público a ele tem direito, não terá também o direito de conhecer o voto? Esta impressão falsa e perniciosa será a de todos em geral, visto como a tiveram muitos dos que nos últimos tempos advogaram manifestamente o voto secreto. Assim não entendiam a doutrina os que primeiramente a promoveram, mas demonstra-se melhor o efeito de uma doutrina sobre o espírito, não daqueles que a instituíram, mas dos que ela forma. O Sr. Bright e a sua escola de democratas julgam dever-se preocupar grandemente em sustentar que o voto é o que denominam de direito e não encargo. Ora esta ideia, criando raízes no espírito geral, causa malefício moral que excede todo o bem que o voto secreto é capaz de trazer no ponto mais elevado possível de avaliar-se. Seja qual for a maneira pela qual definamos ou entendamos a ideia de um direito, ninguém pode ter direito a poder sobre terceiros; qualquer poder que se lhe permita possuir é moralmente, no sentido mais amplo do vocábulo, encargo. Mas o exercício de qualquer função política, ou como eleitor ou como representante, é poder sobre outrem. Os que afirmam ser o sufrágio não encargo, mas direito dificilmente aceitarão as conclusões a que conduz tal doutrina. Se é direito, se pertence ao eleitor por causa dele mesmo, baseados em que nos caberá censurá-la por vendê-la ou usá-la para recomendar-se a quem quer que seja do interesse dele agradar? Não é de esperar que alguém consulte exclusivamente o interesse público no uso que faz da própria casa, ou das apólices que possui, ou de algo a que tenha realmente direito. Deve-se-lhe de fato o direito ao voto, entre outros motivos, como meio para a própria proteção, mas somente contra tratamento de que está igualmente obrigado, no que dependa do voto, a proteger qualquer um dos seus concidadãos. Não lhe cabe opção sobre o voto; tem tanto a ver com os desejos pessoais dele quanto a sentença de um jurado. É rigorosamente questão de dever; obriga-se a dá-la de acordo com a opinião mais conscienciosa do bem público. Quem quer que alimente qualquer outra ideia a respeito não está em condições de ter direito a voto; o efeito sobre ele importará em perverter-lhe não em elevar-lhe o espírito. Ao invés de abrir-lhe o coração a patriotismo exaltado e à obrigação de dever público, nele desperta e alimenta a inclinação de fazer uso de uma função pública para interesse próprio, prazer ou capricho - os mesmos sentimentos e propósitos, em escala mais humilde, que impelem a déspota ou opressor. Ora um cidadão comum em qualquer posição pública ou ao qual incumbe qualquer função social, pensa e sente, com certeza, respeito às obrigações que lhe impõe, exatamente o que a sociedade parece pensar e sentir quando a confere. O que parece esperar dele a sociedade constitui padrão abaixo do qual poderá cair, mas acima do qual raramente se elevará. E a interpretação que quase seguramente dará ao voto secreto é que não está na obrigação de dá-lo com qualquer referência aos que não se permite saibam como o dá; mas concede-o simplesmente conforme se sente propenso. Talo motivo decisivo por que o argumento não prevalece, por causa do emprego do voto secreto em clubes e sociedade particulares, para que se adote em eleições parlamentares. O membro de um clube não se encontra realmente sob qualquer obrigação de considerar os desejos ou os interesses de quem quer que seja, situação essa que o eleitor acredita falsamente ser a dele. Nada mais declara pelo voto senão que está ou não disposto a se associar, de maneira mais ou menos íntima, com certa pessoa. É assunto sobre o qual, pelo consenso universal, cabe-lhe decidir conforme lhe agrade ou se sinta inclinado; e que fique em condições de assim fazê-lo, sem arriscar-se a desavenças é melhor para todos, inclusive a pessoa recusada. Mais um motivo favorável ao voto secreto neste caso é que não conduz necessária ou naturalmente à mentira. Os interessados são da mesma classe ou posição, e considerar-se-ia inconveniente em qualquer delas insistir com outra como teria votado. O caso é mui diverso em eleições parlamentares, e possivelmente assim continuará a ser, enquanto existam relações sociais que provoquem a necessidade do voto secreto; enquanto uma pessoa se julgue bastante superior a outra para se supor com o direito de ditar-lhe o voto. E enquanto tal for o caso, o silêncio ou resposta evasiva interpretar-se-á com certeza como prova de que não se deu o voto conforme o desejavam. Em qualquer eleição política, mesmo por sufrágio universal (e ainda mais evidentemente no caso de sufrágio limitado), o eleitor está sob obrigação moral absoluta de levar em conta o interesse do público, não a sua vantagem particular, e dar o voto, conforme julgue melhor, exatamente como se fosse obrigado a fazê-lo se somente ele votasse e a eleição somente dele dependesse. Uma vez admitindo-o, resulta pelo menos como consequência prima fade que o dever de votar, por igual a qualquer outro dever público, deveria executar-se sob as vistas e a crítica do público; eis que cada pessoa não só tem interesse na maneira pela qual se executa, mas todo direito de se considerar prejudicada se executado desonesta ou descuidadamente. Sem dúvida alguma, nem esta nem qualquer outra máxima de moralidade política é absolutamente inviolável; é possível rejeitá-la por motivos ainda mais irresistíveis. Mas a sua importância é tal que os casos em que se permite afastá-la devem revestir-se de caráter marca da mente excepcional. Pode acontecer, sem dúvida alguma, que se tentarmos tornar o eleitor responsável ao público pelo próprio voto, fazendo uso de publicidade, ficará praticamente responsável por ele perante algum indivíduo poderoso, cujo interesse está mais em oposição ao interesse geral da comunidade do que o do próprio eleitor estaria se, protegido pelo segredo, ficasse inteiramente livre de responsabilidade. Quando tal for a situação, em alto grau, de grande proporção dos eleitores, o voto secreto torna-se talvez o menor mal. Se os eleitores forem escravos, tudo se tolerará que lhes permita sacudir jugo. O argumento mais forte a favor do voto secreto é quando poder maléfico dos Poucos sobre os Muitos vai aumentando. Durante o declínio da república romana eram irresistíveis os motivos a favor do voto secreto. Dia a dia a oligarquia tornava-se mais rica e mais tirânica, o povo mais pobre e mais dependente, e tornava-se necessário erguer cada vez barreiras mais fortes contra o abuso do direito de voto que o convertia somente em instrumento cada vez mais nas mãos de pessoas importantes destituídas de princípios. Tampouco pode duvidar-se que o voto secreto, enquanto existiu, teve influência benéfica na constituição ateniense. Até mesmo na comunidade menos estável de todas as da Grécia, destruir-se-ia por algum tempo a liberdade por simples voto popular obtido desonestamente; e embora o eleitor ateniense não fosse suficientemente dependente de modo a sofrer habitualmente coerção, poderiam suborná-lo ou intimidá-lo os ultrajes desenfreados de algum grupo de indivíduos, como se encontravam mesmo em Atenas entre os moços de posição e fortuna. Em tais casos o voto secreto era valioso instrumento de ordem, e conduzia à Eunomia (Comunidade bem ordenada) por meio da qual Atenas se distinguiu entre as comunidades antigas. Mas nos Estados mais adiantados da Europa moderna e especialmente na Inglaterra, o poder de coagir os eleitores declinou e está declinando; e o mau voto é menos de temer por parte de influências a que o eleitor está sujeito às mãos de terceiros do que dos interesses sinistros e sentimentos desonrosos que lhe pertencem, ou individualmente ou na qualidade de membro de uma classe. Garanti-lo contra o primeiro, a expensas do afastamento de qualquer limitação ao último, seria trocar mal menor e decrescente por outro maior e crescente. Sobre este assunto e sobre esta questão em geral, conforme se aplica à Inglaterra na época atual, me manifestei em um panfleto sobre a Reforma Parlamentar em termos que, como não me sinto capaz de manifestar melhor, me arrisco a transcrever a seguir: "Há trinta anos ainda era verdade que o mal principal na eleição de membros do Parlamento contra o qual era preciso precaver-se consistia naquilo que o voto secreto excluiria - coerção por parte de proprietários de terras, empregadores e clientes. Hoje, vejo fonte muito maior de males no egoísmo e preferências egoístas do próprio eleitor. Dá-se atualmente voto baixo e maléfico, estou convencido, muito mais comumente devido ao interesse pessoal do eleitor ou a interesse de classe, ou a algum sentimento mesquinho que lhe domine o espírito, do que em virtude de qualquer temor de consequências nas mãos de terceiros: e o voto secreto lhe permitiria ceder a essas influências, livre de qualquer sentimento de vergonha ou responsabilidade. "Em época relativamente recente, as classes mais altas e mais ricas dominavam inteiramente o governo. Esse poder constituía o principal agravo do país. O hábito de votar ao mando do empregador, ou do dono da terra, estava tão firmemente estabelecido que dificilmente se depararia com o que fosse capaz de abalá-lo senão forte entusiasmo popular, que se sabe existir raramente senão em alguma boa causa. Voto dado em oposição a essas influências era, portanto, em geral, honesto, inspirado pelo espírito público; mas em qualquer caso, e fosse qual fosse o motivo que o ditasse, era quase certo que fosse bom voto, visto como se manifestava contra o mal monstro, a influência dominadora de oligarquia. Se a esse tempo o eleitor tivesse a permissão, sentindo-se garantido, de exercer seu privilégio livremente, embora nem mesmo com inteligência ou honestidade, a reforma traria grande vantagem, porque teria rompido o jugo do poder então dominante sobre o país - que criara e mantinha tudo quanto era mau nas instituições e na administração do Estado - o poder dos senhores de terras e dos traficantes distritais. "Não se adotou o voto secreto, mas o progresso das circunstâncias fez e está fazendo cada vez mais, a esse respeito, o papel do voto secreto. Não só o estado social mas a situação política do país, no que afetam a esta questão, mudaram grandemente, e estão mudando dia a dia. Não mais as classes superiores dominam o país. É preciso ser cego a todos os sinais dos tempos para pensar que as classes médias são subservientes às mais elevadas ou as classes trabalhadoras dependam das classes superiores ou médias conforme acontecia há um quarto de século atrás. Os acontecimentos deste quarto de século não só ensinaram a cada classe a conhecer a própria força coletiva, mas situaram os indivíduos de classe mais baixa em condição de mostrar muito mais ousadia aos de classe mais elevada. Na maior parte dos casos, o voto dos eleitores, seja em oposição ou de acordo com os desejos dos seus superiores, não resulta de coerção, para a qual não existem mais os meios de empregar-se, mas a expressão de preferências pessoais ou políticas. Provam-no os próprios vícios do sistema eleitoral existente. O aumento do suborno, de que se queixam tão abertamente, e a invasão pelo contágio de lugares anteriormente livres dele, provam que as influências locais não continuam a prevalecer; os eleitores votam agora para agradarem a si mesmos e não a outrem. Ainda resta, sem dúvida, em certos condados e em distritos menores, grande soma de dependência servil, mas o temperamento da época lhe é contrário e a força dos acontecimentos tende constantemente a diminuí-la. O bom rendeiro sente agora que vale tanto para o dono das terras como este para ele; negociante próspero sente-se independente de qualquer freguês habitual. Cada vez mais, a cada eleição, os votos pertencem aos eleitores. Impõe-se agora emancipar-lhes o espírito mais do que as circunstâncias pessoais. Não mais se mostram instrumentos passivos da vontade de outrem - simples órgãos destinados a colocar o poder nas mãos da oligarquia controladora. Os próprios eleitores estão-se convertendo em oligarquia. "Exatamente na proporção em que a própria vontade do eleitor lhe determina o voto, e não aquele tal que era o senhor, é a posição dele semelhante à de um membro do Parlamento, e a publicidade é indispensável. É inatacável o argumento dos Cartistas (Os Cartistas eram membros de um movimento de classes trabalhadoras que visava a reformas políticas e econômicas mais extensas do que as que constavam do Ato de Reforma de 1832 que deu o direito de voto às classes médias. A "Carta do Povo" de 1838 expunha-lhes o objetivo em detalhe. O movimento desapareceu em 1850. Um dos expoentes mais importantes do Cartismo foi Thomas Carlyle (1785-1881)) contra o voto secreto em conjunção a sufrágio restrito, enquanto qualquer porção da comunidade não goza de representação. Os eleitores atuais e a massa dos que a eles se juntarão em virtude de qualquer Ato de Reforma provável pertencem à classe média e possuem tanto interesse de classe, distinto do das classes trabalhadoras, como os donos de terras ou fabricantes. Se o sufrágio se estendesse a todos os trabalhadores especializados, ainda estes teriam ou poderiam ter interesse de classe distinto dos simples trabalhadores manuais. Suponha-se que se estenda a todos os homens - suponha-se que o que se chamava anteriormente pela denominação mal aplicada de sufrágio universal, e atualmente pelo título imbecil de sufrágio de virilidade, se convertesse em lei; os eleitores ainda teriam certo interesse de classe, distinto do das mulheres. Suponha-se que houvesse qualquer questão perante o Poder Legislativo que afetasse especialmente as mulheres, como, por exemplo, se se deve permitir-lhes formarem-se em universidades; se as penalidades leves que se aplicam aos malvados que espancam diariamente as mulheres quase às portas da morte, fossem substituídas por algo mais eficaz; ou suponha-se que alguém propusesse no Parlamento inglês o que um Estado após outro está decretando na América do Norte, não por meio de simples lei, mas por dispositivo introduzido na Constituição reformada, - que as mulheres casadas têm direito à propriedade. Não terão a mulher e as filhas de um homem o direito de saber se ele vota a favor ou contra um candidato que apoie esses dispositivos? Sem dúvida objetarão que esses argumentos derivam toda força da suposição de estado injusto do sufrágio; que, se a opinião dos não-eleitores é capaz de fazer com que o eleitor vote mais honestamente ou mais beneficamente do que votaria se entregue a si mesmo, aqueles estariam em melhores condições de ser eleitores do que ele, devendo, assim, ter o direito de voto; que, quem quer que fosse capaz de influir sobre os eleitores, é capaz de ser eleitor; que aqueles perante os quais os eleitores devem ser responsáveis também devem ser eleitores; e sendo-o, devessem ter a garantia do voto secreto, para protegê-los da influência indevida de indivíduos poderosos ou de classes perante as quais não deveriam ser responsáveis. "Este argumento é capcioso, e houve certa ocasião em que o julguei conclusivo. Hoje afigura-se-me enganoso. Todos quantos estão em condições de influir sobre eleitores não estão, por este motivo, em condições de ser eleitores. Este último poder é muito mais importante do que aquele; podem estar maduros para função política menor aqueles a quem ainda não se pode confiar com segurança a função superior. As opiniões e desejos das classes trabalhadoras mais pobres e mais rudes podem ser muito úteis como uma influência entre outras sobre o espírito dos eleitores, bem como sobre o dos legisladores, entretanto poderia ser muito prejudicial conceder-lhes influência preponderante admitindo-os, no estado atual de moral e inteligência, ao pleno exercício do sufrágio. É exatamente essa influência indireta dos que não têm direito a voto sobre os que têm que suaviza, pelo desenvolvimento progressivo, a transição para qualquer nova extensão do direito de voto, e é o meio pelo qual, quando chega a ocasião, se procede pacificamente à extensão. Mas há outra consideração ainda mais profunda, que nunca se deverá deixar de levar em conta em investigações políticas. Não há como sustentar a opinião que a publicidade e o sentimento de responsabilidade perante o público não têm qualquer utilidade a menos que o público esteja em condições de formular juízo seguro. É maneira muito superficial de encarar a utilidade da opinião pública supor que somente é favorável quando consegue forçar a servil conformidade. Ficar sob as vistas de outrem, ter de defender-se contra outrem - é da maior relevância para os que agem em oposição à opinião de outrem, porquanto os obriga a ter bases sólidas próprias. Nada contribui tanto para a consolidação como agir contra a pressão. A menos que se encontre sob a influência temporária de excitação passageira, ninguém fará aquilo que espera encontrar reprovação, a menos que seja levado por propósito fixo e preconcebido; o que prova sempre caráter ponderado e resoluto, e exceto nos radicalmente maus, geralmente resulta de convicções pessoais sinceras e fortes. Até mesmo o simples fato de ter de dar contas da própria conduta constitui poderoso estímulo no sentido de adotar conduta da qual seja possível, ao menos, dar conta até certo ponto decente. Se alguém pensar que a mera obrigação de conservar a decência não implica em obstáculo mui considerável ao abuso de poder, não teve nunca a atenção voltada para a conduta dos que não se sentem na necessidade de observar tal restrição. A publicidade é inapreciável, mesmo quando não faz nada mais do que impedir aquilo que não é possível defender plausivelmente em qualquer hipótese - do que obrigar à deliberação e forçar a todos que resolvam, antes de agir, o que dirão se chamados às contas pelas suas ações. "Mas se não agora (dir-se-á pelo menos mais tarde) quando estiverem todos em condições de votar, e quando todos os homens e todas as mulheres forem admitidos a votar, em virtude de sua idoneidade, então não mais haverá o perigo da legislação de classe; então os eleitores, sendo a nação, não terão interesse distinto do interesse geral; mesmo se alguns indivíduos ainda votarem de acordo com influências privadas ou de classe, a maioria não sofrerá tal influência; e como não haverá não-eleitores perante os quais sejam responsáveis, o efeito do voto secreto, nada excluindo senão as influências sinistras, será inteiramente benéfico. "Não concordo nem mesmo com isso. Não posso imaginar que mesmo que o povo fosse capaz do sufrágio universal e o tivesse obtido, seja de desejar-se o voto secreto. Primeiramente, porque, em tais condições, não seria possível supô-lo necessário. Vamos somente conceber a situação em que a hipótese implica: povo universalmente educado, no qual qualquer adulto tem direito a voto. Se, mesmo quando somente pequena porção é de eleitores e a maior parte da população quase deseducada; a opinião pública já é, como qualquer pessoa agora pode ver, o poder que manda em última instância, é quimera supor-se seja possível exercerem qualquer poder sobre uma comunidade em que todos leem, e na qual todos têm votos, os donos de terra e os ricos contra a inclinação daqueles, a qual sentiriam toda dificuldade em erradicar. Mas embora a proteção do segredo fosse então inútil, o controle da publicidade seria tão necessário como nunca. A observação universal dos homens tem se mostrado muito enganadora se o simples fato de fazer parte da comunidade, sem estar em posição pronunciada mente contrária ao interesse do público em geral, é o suficiente para assegurar o cumprimento de qualquer dever público, que não conte seja com o estímulo ou a restrição derivados da opinião dos nossos semelhantes. A parte particular de um homem no interesse público, mesmo que não tenha qualquer interesse privado que o arraste na direção oposta, não é, geralmente, suficiente para que cumpra com os seus deveres para com o público sem qualquer outro atrativo exterior. Nem é possível admitir que mesmo se tivessem todos eles direito a voto os dessem tão honestamente em segredo como em público. Verificar-se-á que a afirmação de que os eleitores, quando compõem o conjunto da comunidade, não podem ter interesse em votar contra o interesse da comunidade tem mais som do que significação. Embora a comunidade como um todo não possa ter (conforme o vocábulo sugere) qualquer outro interesse senão o coletivo, qualquer ou todos os indivíduos poderão tê-lo. O interesse de um homem consiste em seja lá o que for que lhe inspira interesse. Qualquer pessoa tem tantos interesses diferentes como sentimentos, gostos ou aversões, sejam de natureza egoísta ou de espécie melhor. Não se pode dizer que qualquer deles, tomado isoladamente, constitua o "interesse" dele; é bom ou mau conforme prefere uma classe de interesse a outra. Quem é tirano em casa está em condições de simpatizar com a tirania (quando não exercida sobre ele); pode ter-se quase a certeza de que não simpatizará com a resistência à tirania. O invejoso votará contra Aristides porque o chamam de Justo. O egoísta preferirá até mesmo o benefício individual insignificante à parte da vantagem que o seu país derivaria de uma boa lei; porque os interesses que lhe são peculiares são os que os hábitos do espírito não só o dispõem a neles insistir como o tornam mais capaz de avaliar. Grande número de eleitores terá dois grupos de preferências - os que têm motivos privados e os que têm motivos públicos. Estes últimos são os únicos que o eleitor gostaria de confessar. Todos ficam ansiosos por mostrar a parte mais favorável do próprio caráter até mesmo aos que não são melhores do que eles. Os homens darão votos desonestos ou mesquinhos por malícia, por melindre, pela rivalidade pessoal, até mesmo por interesses ou preconceitos de casta ou seita, mais prontamente em segredo do que em público. E existem casos - que poderão tornar-se mais frequentes - em que quase o único freio para uma maioria de canalhas será o respeito involuntário que tiverem pela opinião de minoria honesta. Em um caso como o dos Estados da América do Norte que repudiaram não é de ver-se certa repulsa aos eleitores sem princípios com vergonha de encararem um homem honesto? Desde que todas estas vantagens seriam sacrificadas pelo voto secreto, mesmo nas circunstâncias que lhe fossem mais favoráveis, torna-se necessária conjuntura muito mais forte do que se possa agora formular (e a conjuntura vai-se tornando cada vez mais fraca) para tornar-lhe desejável a adoção (Pensamentos sobre a Reforma Parlamentar, 2ª ed. pág. 32-36). Não será necessário gastar tantas palavras com os outros pontos discutíveis que dizem respeito à maneira de votar. O sistema de representação pessoal, conforme organizado pelo Sr. Hare, torna necessário o emprego de cédulas. Mas parece-me indispensável que o eleitor assine essa cédula em um lugar público de votação, e, se não houver um lugar desses convenientemente acessível, em algum escritório aberto a todos, e na presença de funcionário público responsável. Consideraria como fatal a proposta que foi sugerida de permitir que se enchessem as cédulas em casa, enviando-as depois pelo correio ou que seriam recolhidas por um funcionário. Realizar-se-ia o ato na ausência de influência salutar e na presença de todas as influências perniciosas. O subornador poderia, ao abrigo do segredo, contemplar com os próprios olhos a execução do suborno, e quem quisesse intimidar veria a obediência extorquida realizada irrevogavelmente no mesmo instante; enquanto se afastasse a contra influência benéfica da presença daqueles que conhecessem os sentimentos reais do eleitor, bem como o efeito inspirador da simpatia dos do mesmo partido ou opinião. (Recomendaram este expediente não só sob o pretexto de economia, mas com a intenção de obter votos de muitos eleitores que de outro modo não votariam, e que os partidários do plano consideram classe particularmente desejável de eleitores. Pôs-se em execução o plano na eleição de guardiães da lei de proteção aos pobres, e apela-se para os bons resultados nesse caso particular com o fito de adotá-lo no caso mais importante da eleição de membro do Poder Legislativo. Mas a mim parece que os dois casos diferem no ponto de que dependem as vantagens do expediente. Em eleição local para espécie particular de negócio administrativo, que consiste principalmente na distribuição de fundos públicos, tem-se em mira impedir que a escolha fique exclusivamente em mãos dos que por ele se interessam ativamente: visto como sendo limitado o interesse público pertinente à eleição, e em muitos casos não mui intenso, a inclinação de se ocupar com a questão limita-se em grande parte a pessoas que esperam voltar àquela atividade em proveito próprio; sendo assim de desejarem tornar a intervenção de outras pessoas tão pouco onerosa para eles quanto possível, mesmo que somente tenham em vista absorver tais interesses particulares. Mas quando a questão em foco consiste de assunto de maior importância como o governo nacional, no qual todos que se preocupam com algo fora dos próprios interesses deve tomar parte, ou mesmo que se preocupe inteligentemente com a própria pessoa, torna-se muito mais importante impedir que votem os que são indiferentes à questão, mais do que induzi-los a votar por outro qualquer meio que não seja despertar-lhes o espírito adormecido. O eleitor que não liga bastante importância à eleição para comparecer às urnas é o mesmo homem que, se pode votar livre desse pequeno incômodo, dará o voto à primeira pessoa que lhe pedir, ou pelo motivo mais frívolo e insignificante. Quem não se importa de votar ou não, provavelmente não se importará muito com a maneira por que vote; e quem Se encontra nesse estado de espírito não tem absolutamente o direito moral ele votar; desde que, se o fizer, voto que não seja a expressão de convicção vale tanto e tem tanto alcance na determinação do resultado como o que represente os pensamentos e objetivos de uma vida). As mesas eleitorais devem ser tão numerosas que fiquem ao alcance fácil de todos os eleitores; e não se devem tolerar, sob qualquer pretexto, despesas de transporte à custa dos candidatos. Ao enfermo, somente mediante atestado médico, dever-se-á conceder transporte à custa do Estado, ou da localidade. O público deverá encarregar-se das despesas com urnas, mesários e toda a máquina necessária às eleições. Não se deverá exigir do candidato nem lhe permitir que incorra em qualquer despesa, salvo limitada e insignificante, para se eleger. O Sr. Hare acha aceitável exigir a soma de cinquenta libras de qualquer pessoa que fizer constar o próprio nome da relação dos candidatos, para impedir se tornem candidatos indivíduos que não têm probabilidade de êxito ou qualquer intenção real de tentá-lo, por capricho ou simples paixão de notoriedade, e talvez conquistando alguns votos que seriam necessários para a eleição de aspirantes mais sérios. Há uma despesa que o candidato ou os que o apoiam não pode deixar de fazer, e que se possa dificilmente esperar que o público satisfaça para todos quantos pretendem solicitá-la - a de tornar a candidatura conhecida aos eleitores por meio de anúncios, cartazes ou circulares. Para todas as despesas dessa natureza, as cinquenta libras propostas pelo Sr. Hare, se se permitir que a isso se destinem (poder-se-iam elevar para cem se necessário) devem ser suficientes. Não haverá meios de impedir que os amigos do candidato façam despesas para comissões e propaganda; mas qualquer despesa do bolso do candidato ou quaisquer outras, além das cinquenta (ou cem) libras deverá considerar-se ilegal e sujeita a punição. Se houvesse qualquer indício que a opinião se tivesse recusado a ser conivente com a mentira, exigir-se-ia uma declaração sob juramento ou sob palavra de honra de todos os membros ao serem empossados, de que não houvessem gasto nem gastariam dinheiro ou valores acima de cinquenta libras direta ou indiretamente, para os fins da eleição; e se se viesse a provar a falsidade da afirmativa, ou que o compromisso fora rompido, o candidato estaria sujeito às penalidades de perjúrio. É provável que essas penalidades, mostrando que o Poder Legislativo estava decidido, levaria a opinião pública à mesma atitude e impediria considerasse, conforme até agora tem feito, este crime dos mais sérios contra a sociedade como leve falta desculpável. Uma vez produzido tal efeito, não haveria dúvida em que se considerasse como podendo obrigar o compromisso ou o juramento. (Várias dentre as testemunhas que compareceram perante a Comissão da Casa dos Comuns em 1860, relativa à aplicação do Ato de Prevenção de Práticas corruptoras, algumas dispondo de grande experiência prática em assuntos de eleições, eram favoráveis (ou em absoluto ou em última instância), ao princípio que manda exigir uma declaração dos membros do Parlamento; e eram de opinião que, se apoiada por penalidades, seria eficaz em grande extensão. O Presidente da Comissão do Inquérito de Wakefield disse (referindo-se certamente a proposta diferente): "Se virem que o Poder Legislativo insiste no assunto, a máquina funcionará... Estou inteiramente convencido de que, se se aplicasse algum estigma à corrupção, alterar-se-ia o curso da opinião pública". Distinto membro do Gabinete (e do atual) parecia pensar dever-se objetar a que se aplicassem as penalidades de perjúrio a simples juramento de promessa, em contraposição a juramento assertivo; mas lembraram-lhe que o juramento prestado por testemunha perante tribunal de justiça é promissório; e a réplica (que a promessa da testemunha se relaciona com um ato a praticar-se imediatamente, enquanto o do membro do Parlamento seria promessa para o futuro) somente Se aplicaria ao caso, se fosse possível supor-se que quem proferisse o juramento esquecesse a obrigação assumida, ou acaso a violasse intencionalmente: contingências que, em um caso como o presente, não seriam de levar-se em conta. Uma das dificuldades mais consideráveis dentre as formas que mais frequentemente assumem as despesas eleitorais é a de subscrições para fins de beneficência ou outros objetivos locais; e teria grande influência decretar que não desse dinheiro para caridade, dentro de um lugar, o membro do Parlamento que o representasse. Quando essas subscrições são de “bona fide”, a popularidade que daí resulta constitui vantagem que parece dificilmente possível de negar-se à grande riqueza. Mas na maior parte o mal consiste em que o dinheiro assim contribuído se destina a suborno, sob o eufemismo de manter o interesse do membro. Para precaver-se contra esta alegação, deveria fazer parte da declaração do membro que todas as somas por ele despendidas no local ou para fins que a este se relacionassem ou a qualquer de seus habitantes (com exceção talvez de suas próprias despesas de hospedagem), deveriam passar pelas mãos do auditor das eleições, e por ele (e não pelo próprio membro ou pelos seus amigos) aplicada ao fim declarado. Duas das melhores testemunhas sustentaram o princípio que exige ficarem todas as despesas legítimas das eleições a cargo não do candidato, mas da localidade). "A opinião tolera o falso repúdio somente quando já tolera o que se repudia." Tal notoriamente a situação relativamente à corrupção eleitoral. Ainda não houve, entre políticos, qualquer tentativa real e séria no sentido de impedir o suborno, porque ainda não houve desejo real para que as eleições não fossem caras. O custo é vantagem para os que têm recursos para suportar a despesa, excluindo multidão de concorrentes; e aprecia-se seja o que for, embora prejudicial, que limite o acesso ao Parlamento aos ricos. Este sentimento está enraizado entre os nossos legisladores de ambos os partidos políticos, e quase o único ponto em que acredito serem realmente mal-intencionados. Comparativamente pouco lhes preocupa quem vota enquanto têm a certeza de que somente a pessoas da sua própria classe se destinam os votos. Sabem que podem confiar no sentimento de camaradagem de um membro da própria classe para com outro, enquanto a subserviência de "novos ricos" que vêm bater à porta da classe, importa em segurança ainda maior; e nada será de temer de muito hostil aos interesses e sentimentos de classe dos ricos sob o sufrágio mais democrático que seja, enquanto for possível impedir aos democráticos que se elejam ao Parlamento. Todavia, mesmo desse ponto de vista, esse equilíbrio de mal por mal, ao invés de combinar bem a bem, representa política infeliz. O objetivo deveria ser ajuntar os melhores membros de ambas as classes sob tal título que os levasse a porem de lado as preferências de classe para percorrerem juntos a trilha traça da pelo interesse comum, ao invés de permitir aos sentimentos de classe dos Muitos o controle dos distritos eleitorais, sujeitos à dificuldade de terem de agir por meio de pessoas imbuídas dos sentimentos de classe dos Poucos. Dificilmente se depara com algum modo em que sejam moralmente mais perniciosas as instituições políticas - provocar maior mal por meio do próprio espírito - do que apresentar as funções políticas como favor a conferir-se, que o depositário tem de pedir como se a desejasse para si, e até mesmo pagar como se se destinasse a beneficiá-lo pessoalmente. Os homens não gostam de pagar grandes importâncias para deixarem de cumprir qualquer dever penoso. Platão tinha opinião muito mais justa das condições do bom governo quando afirmava que as pessoas que se deveriam procurar para investir de poder político são as que se mostram pessoalmente mais contrárias a ele, e o único motivo em que seja dado confiar para induzir os homens mais adequados a chamarem a si as fadigas do governo é o temor de se verem governados por homens piores. O que deverá pensar um eleitor quando vir três ou quatro cavalheiros, nenhum dos quais observara anteriormente esbanjando o próprio dinheiro em projetos de beneficência desinteressada, rivalizando uns com os outros nas somas que despendem para que fiquem em condições de escrever M. P. depois do nome? Será provável que suponha ser pelo interesse dele que incorrem em todas essas despesas? Os políticos gostam de encarar como sonho de entusiastas a possibilidade de corromper-se o corpo do eleitorado - e assim é de fato, até que se disponham a ficar corrompidos: porque os eleitores, com toda a certeza, irão buscar nos candidatos o tono moral. Enquanto o membro eleito, por qualquer forma ou maneira, pagar pela cadeira, falharão todos os esforços para fazer da questão nada mais senão barganha egoísta de todos os lados. "Enquanto o próprio candidato, e os costumes do mundo, parece considerarem a função de membro do Parlamento menos como dever a desempenhar-se do que favor pessoal a solicitar, não terá qualquer valor o esforço que se fizer para incutir no eleitor comum a opinião de que a eleição de um membro do Parlamento também é questão de dever, não tendo ele a liberdade de conceder o próprio voto baseado em qualquer outra consideração que não a de aptidão pessoal." O mesmo princípio que exige não se solicite nem tolere qualquer pagamento de dinheiro para fins eleitorais por parte do eleito, impõe outra conclusão, aparentemente de tendência contrária, mas realmente visando ao mesmo objetivo. Nega o que muita vez já se propôs, como meio de tornar o Parlamento acessível a pessoas de todas as classes e circunstância" - o pagamento de honorários aos membros do Parlamento. Se, conforme se dá em algumas de nossas colônias, dificilmente se encontrem pessoas capazes de servirem ocupações não pagas, o pagamento deverá ser como indenização por perda de tempo e de dinheiro, não como salário. É vantagem ilusória a maior latitude de escolha que o salário viria proporcionar. Nenhuma remuneração que alguém pensasse em atribuir ao cargo, para ele atrairia os que estão seriamente ocupados em outras profissões lucrativas com a perspectiva de serem bem-sucedidos. A função de membro do Parlamento tornar-se-ia, portanto, ocupação em si, exercida, como qualquer outra, principalmente com o intuito de compensações pecuniárias, e sob as influências desmoralizadoras de ocupação essencialmente precária. Tornar-se-ia objeto desejado de aventureiros de baixa categoria; e 658 pessoas de posse, com dez ou vinte vezes tantas outras em expectativa, esforçar-se-iam constantemente em atrair ou reter os sufrágios dos eleitores prometendo de tudo, honesto ou desonesto, possível ou impossível, e rivalizando uns com outros em mexericar com os sentimentos mais mesquinhos e os preconceitos mais ignorantes da parte mais vulgar da multidão. O leilão entre Cléon e o vendedor de salsichas na comédia de Aristófanes constitui excelente caricatura do que constantemente se passaria (Aristófanes (c. de 450-c. de 385 A. C.), comediógrafo ateniense. A referência de Mill é aos "cavalheiros" (425 A. C.) na qual Aristófanes ataca Cléon como demagogo característico). Semelhante instituição seria perpétuo vesicatório aplicado às partes mais pecadoras da natureza humana. Importa em oferecer 658 prêmios ao lisonjeiro mais bem-sucedido, ao desencaminhador mais hábil, de um corpo de seus concidadãos. Sob despotismo algum existiu tal sistema organizado de lavra para a cultura de colheita abundante de viciosa bajulação. (Conforme o Sr. Lorimer observa, criando incentivo pecuniário a pessoas das classes mais baixas para que se dediquem aos negócios públicos, inaugurar-se-ia formalmente a convocação dos demagogos. Nada mais condenável do que tornar interesse privado de certo número de pessoas ativas arrastar a forma de governo na direção de sua perversão natural. Os indícios que uma multidão ou um indivíduo dão, quando simplesmente entregues à própria fraqueza, fornecem tão-só pálida ideia do que essa mesma fraqueza se tornaria quando dela tirassem proveito milhares de lisonjeiros. Se existissem 658 lugares de emolumentos certos, embora moderados, que se ganhassem persuadindo a multidão que a ignorância vale tanto quanto a inteligência, ou mais, é terrivelmente provável que acreditariam e passariam a agir de acordo com a lição." (Artigo no Fraser's Magazine de abril de 1859, sob o título "Escritores Recentes sobre a Reforma"). Quando, por motivo de aptidões preeminentes (como talvez aconteça em qualquer ocasião), é de desejar-se que uma pessoa inteiramente desprovida de meios independentes, ou resultantes da propriedade ou do exercício de profissão ou negócio, seja levada ao Parlamento para que preste serviços que nenhuma outra será capaz de prestar igualmente bem, há o recurso da subscrição pública; será possível sustentá-la, enquanto estiver no Parlamento, como se deu com Andrew Marvel, por meio de contribuições dos seus eleitores. Não há como fazer-se objeção a este processo, porquanto nunca se dispensará tal honra à simples subserviência; grupos não se preocupam tanto com a diferença entre um bajulador e outro que se sujeitem à despesa de sustentá-lo com o fito de conseguir lisonjas de um indivíduo desses. Somente se concederá tal apoio devido a qualidades pessoais notáveis e impressionantes, que, embora não constituam prova absoluta de aptidão à função de representante nacional, lhe estabelecem pelo menos a presunção e, de qualquer maneira, certa garantia de que o indivíduo possui opinião e vontade independentes. XI DA DURAÇÃO DOS PARLAMENTOS DEPOIS DE QUE PERÍODO DEVEM sujeitar-se os membros do Parlamento à reeleição? Neste caso os princípios em causa são bastante evidentes; a dificuldade reside em aplicá-los. Por outro lado, o membro não deve ocupar por tanto tempo a cadeira de sorte a esquecer a responsabilidade, relaxar no cumprimento dos deveres, conduzi-los tendo em mira a própria vantagem pessoal, ou desprezar os encontros públicos e livres como os eleitores que, esteja com eles de acordo ou deles divirjam, constituem um dos benefícios do governo representativo. Por outro lado, deve contar com tal período para o exercício do cargo que permita o julguem, não por um único ato, mas pelo curso de sua atuação. É importante que goze da maior latitude de opinião e critério individuais compatíveis com o controle popular essencial ao governo livre; e para este fim necessário se torna que se exerça o controle, como em muitos casos melhor se exerce, depois de ter tido tempo suficiente para revelar todas as qualidades que possui e provar que existe outra maneira que não a de simples eleitor obediente e advogado das opiniões do eleitorado para tornar-se aos olhos deste representante desejável e digno de crédito. É impossível de fixar, mediante qualquer regra universal, o limite entre tais princípios. Se o poder democrático na constituição é fraco ou demasiadamente passivo, exigindo estímulo; se o representante, ao deixar o eleitorado, entra logo em atmosfera cortesã ou aristocrática na qual todas as influências tendem a desviar-lhe o curso em direção diversa da corrente popular, ou a atenuar quaisquer sentimentos democráticos que tenha trazido consigo fazendo-o esquecer dos desejos e ficando frio aos interesses dos que o elegeram - será indispensável a obrigação de retorno frequente a estes para renovação da incumbência para que lhe conserve o temperamento e o caráter no ponto conveniente, Até mesmo três anos, em tais circunstâncias, seriam período por demais longo; e qualquer prazo mais dilatado seria absolutamente inadmissível. Se, ao contrário, a democracia é o poder em ascensão, tendendo ainda a aumentar, exigindo mais que se lhe modere o exercício do que animá-lo a atividade anormal; se publicidade ilimitada e imprensa diária permanentemente presente garantem ao representante que qualquer dos seus atos será imediatamente conhecido, discutido e julgado pelo eleitorado, e que está continuamente perdendo ou ganhando terreno na estima deste; enquanto, pelo mesmo meio, a influência dos sentimentos do eleitorado e todas as outras influências democráticas se lhe conservam constantemente vivas e ativas no espírito - menos de cinco anos dificilmente seria período suficiente para evitar subserviência tímida. A mudança que se verificou na política inglesa relativamente a todos esses aspectos explica por que os Parlamentos anuais, que há quarenta anos atrás estavam eminentemente à frente do credo dos reformadores mais adiantados, recebem hoje tão pouca atenção e tão raramente se ouve falar neles. Merece considerar-se que, seja longo ou curto o período, durante o último ano os membros estão na posição em que se encontrariam sempre se os Parlamentos fossem anuais, de sorte que se o período fosse muito curto, os Parlamentos seriam virtualmente anuais, durante grande parte do tempo. Nas circunstâncias atuais, o período de sete anos, embora de extensão desnecessária, seria dificilmente de alterar-se, para que acaso produzisse qualquer benefício, especialmente levando-se em conta que a possibilidade de dissolução, sempre iminente, mantém constantemente ante os olhos do membro os motivos para estar em boa paz com o eleitorado. Seja qual for o período mais aceitável para a duração do mandato, pareceria natural que o membro deixasse a cadeira à expiração do prazo a contar da data da eleição, não se fazendo a renovação da Casa por inteiro. Muito seria possível dizer-se a tal respeito se houvesse qualquer objetivo prático a seu favor. Razões muito mais fortes, contudo, o condenam do que quanto se alegue para apoiá-la. Uma seria que não haveria meio de afastar de pronto uma maioria que houvesse tomado atitude prejudicial à nação. A certeza de eleições gerais depois de certo prazo limitado, que muita vez estaria prestes a expirar, e a possibilidade daquelas eleições a qualquer tempo se o ministro o desejasse em proveito próprio ou julgasse tornar-se por esse meio popular no país, tende a impedir a ampla divergência entre os sentimentos da assembleia e os do eleitorado, a qual poderia subsistir indefinidamente se a maioria da Casa dispusesse sempre de vários anos à frente - se recebesse novas infusões gota a gota, suscetíveis mais provavelmente de lhe proporcionarem as aptidões da massa a que se viesse juntar do que de modificá-las. É tão essencial que o sentimento geral da Casa fique de acordo em linhas gerais com o da nação como o é que indivíduos distintos fiquem em condições de manifestar livremente os sentimentos mais impopulares, sem se arriscarem a perder a cadeira. Existe outro motivo, de muito mais relevância, contra a renovação parcial e gradual de qualquer assembleia legislativa. É útil que se verifique uma exibição geral e periódica de forças contrárias, a fim de sondar o espírito nacional e determinar, além de qualquer discussão, a força relativa dos diversos partidos e opiniões. Não se consegue semelhante objetivo definitivamente por meio de renovação parcial, mesmo quando, como em algumas constituições francesas, os membros deixam as cadeiras de uma vez em grande proporção, como um quinto ou um terço. Consideraremos os motivos da concessão ao Poder Executivo da faculdade de dissolução do Parlamento em capítulo ulterior, que trate da constituição e funções do Executivo em governo representativo. XII DEVEM EXIGIR-SE GARANTIAS DOS MEMBROS DO PARLAMENTO? DEVE O MEMBRO DO PARLAMENTO ficar sujeito às instruções do seu eleitorado? Deve ser órgão dos sentimentos dele próprio ou daquele? Embaixador junto ao congresso ou agente profissional, com poderes não só para agir pelo eleitorado, mas de julgar o que se deva fazer? Estas duas teorias dos deveres que incumbem ao legislador em governo representativo têm cada uma os seus defensores, e cada uma constitui a doutrina reconhecida de certos governos representativos. Nas Províncias Holandesas Unidas os membros dos Estados Gerais eram simples delegados; e a doutrina ampliava-se de tal maneira que, quando surgia algum assunto importante que não constasse das instruções recebidas, tinham de consultar o eleitorado, exatamente como faz um embaixador ao governo que representa. Neste país, como em muitos outros que possuem constituições representativas, a lei e o costume permitem a um membro do Parlamento votar de acordo com a opinião que tem do que é justo, embora diversa da do eleitorado; mas encontra-se opinião flutuante de espécie contrária, que exerce influência prática considerável sobre muitos espíritos, até mesmo de membros do Parlamento, e muita vez os faz, independentemente do desejo de popularidade ou preocupação com a reeleição, sentirem-se obrigados em consciência a manifestar, em questões nas quais o eleitorado possui opinião firme, opinião própria ao invés daquela. Abstraindo-se da lei positiva, e das tradições históricas de qualquer povo particular, qual destas duas opiniões relativamente ao dever do representante é a verdadeira? Diferentemente das questões que versamos até agora, esta não pertence ao campo da legislação constitucional, mas ao que mais apropriadamente poder-se-ia chamar de moralidade constitucional - a ética do governo representativo. As ideias que devem prevalecer como deveres morais do eleitor não entendem tanto com as instituições como com a atitude espiritual que o eleitor deve tomar para o desempenho de suas funções. Porque, seja qual for o sistema de representação, converter-se-á em simples delegação se os eleitores assim preferirem. Enquanto tiverem a liberdade de não votar ou votar se assim lhes aprouver, não é possível impedi-los de fazer o voto depender de qualquer condição que achem conveniente anexar-lhe. Recusando eleger quem quer que não se comprometa a sustentar-lhes as opiniões, e mesmo, se quiserem, consultá-los antes de votar qualquer assunto importante não previsto, podem reduzir os representantes a meros porta-vozes ou compeli-los em honra, quando não mais desejosos de atuar naquela capacidade, a renunciar à cadeira. E desde que têm o poder de fazê-lo, a teoria da Constituição deve supor desejem fazê-lo, visto como o próprio princípio do governo constitucional exige se suponha que o poder político seja mal-empregado na promoção dos objetivos particulares dos seus detentores, não porque sempre é assim, mas porque tal é a tendência natural, donde resulta o emprego especial das instituições livres como medida de prevenção. Portanto, por mais errôneo ou por mais insensato que nos pareça nos eleitores converter o representante em delegado, sendo essa extensão do privilégio eleitoral natural e não improvável, devem-se tomar as mesmas precauções como se fosse certo. Pode alimentar-se a esperança que os eleitores não agirão conforme essa ideia, relativamente ao uso do sufrágio; mas o governo representativo deve ser estruturado de tal maneira que, mesmo que o façam, não sejam capazes de levar a efeito o que não deve estar no poder de qualquer grupo - a legislação de classe em proveito próprio. Quando se diz que a questão é somente de moralidade política, não se lhe atenua a importância. As questões de moralidade constitucional não têm menos importância que as que dizem respeito à própria constituição. A própria existência de alguns governos, e tudo quanto torna outros suportáveis, reside na observância de doutrinas de moralidade constitucional - noções tradicionais no espírito de várias autoridades constituídas, que modificam o emprego que de outro modo seria possível fazer-se dos seus poderes, Em governos não equilibrados, monarquia pura, aristocracia pura, democracia pura - tais máximas formam a barreira única que contém o governo dos maiores excessos na direção de sua tendência característica. Em governos imperfeitamente equilibrados, nos quais se realizam certas tentativas para fixar limites constitucionais aos impulsos do poder mais forte, mas nos quais esse poder é bastante forte para transgredi-los pelo menos com impunidade temporária, é somente por meio de doutrinas de moralidade constitucional reconhecidas e sustentadas pela opinião, que se preserva qualquer consideração pelos controles e limitações da constituição. Em governos bem equilibrados, nos quais o poder supremo está dividido, e cada participante está protegido contra as usurpações dos outros pela maneira única possível - quer dizer, por estarem armados para a defesa com armas tão fortes como as que os outros podem manejar para o ataque - o governo somente marcha para a frente por abstenção por parte de todos os lados no exercício desses poderes extremos, a menos que provocado por conduta igualmente extrema por parte de algum outro participante do governo; e em tal caso pode dizer-se verdadeiramente que somente pela consideração dispensada às máximas da moralidade constitucional conserva-se em existência a constituição. A questão das garantias não entende essencialmente com a existência dos governos representativos, mas reveste-se de grande importância para o seu funcionamento benéfico. As leis não podem prescrever aos eleitores os princípios pelos quais devem orientar a própria escolha, mas importa em grande diferença prática determinar que princípios acham que devam orientá-la. E o conjunto desta grande questão está na dependência de saber-se se tais princípios devem estabelecer como condição que o representante abrace certas opiniões que para ele formulem os eleitores. Nenhum leitor deste tratado porá em dúvida a conclusão que resulta, a este respeito, dos princípios gerais nele afirmados. Desde o princípio afirmamos, e invariavelmente conservamos à vista, a importância coigual dos dois grandes requisitos do governo: responsabilidade perante aqueles para cujo benefício o poder político deve ser empregado e sempre o confessa; e juntamente com ele obter, na maior medida possível, para a função de governo, os benefícios da inteligência superior, formada por longa meditação e disciplina prática para essa tarefa especial. Se este segundo objetivo merece ser alcançado, merece igualmente o preço necessário. Poderes espirituais superiores e estudo profundo não têm qualquer utilidade se não conduzirem por vezes o indivíduo a conclusões diferentes das que formam poderes espirituais ordinários sem o auxílio do estudo: e se o objetivo for possuir representantes intelectuais a qualquer respeito superiores à média dos eleitores, será preciso levar em conta que o representante vez por outra terá opinião diferente da maior parte dos eleitores, e quando assim acontecer, a opinião dele será na maior parte das vezes a mais acertada. Segue-se daí que os eleitores não terão razão em insistir em absoluta conformidade às suas opiniões como condições para que o membro conserve a cadeira. Até aí o princípio é evidente; mas deparam-se dificuldades reais na aplicação; e começaremos expondo-as na sua maior intensidade. Se é importante que os eleitores escolham representante mais instruído do que eles próprios, não menos necessário é que este indivíduo mais preparado seja responsável perante eles; em outras palavras, os eleitores são os juízes da maneira pela qual se desempenha do encargo; e como poderão julgar senão pelo padrão das próprias opiniões? Como poderão escolhê-lo na primeira instância senão por esse mesmo padrão? Não dará resultado escolhê-lo por simples brilhantismo - por superioridade de talento vistoso. São mui imperfeitas as provas por meio das quais é dado a um homem comum julgar de antemão da simples aptidão de alguém; como se apresentam, reportam-se quase exclusivamente às artes da expressão, e nada ou pouco ao valor do que se exprime. Daquela não se infere este; e se os eleitores tiverem de deixar as opiniões em suspenso, que critério lhes resta para julgarem da aptidão de bem governar? Nem tampouco, se lhes fosse possível determinar, mesmo infalivelmente, a pessoa mais capaz, deveriam permitir-lhe julgar inteiramente por conta própria, sem qualquer referência à opinião do eleitorado. O candidato mais capaz pode ser Tori, e o eleitorado Liberal; ou Liberal e este Tori. As questões políticas do dia serão as da Igreja, e o candidato anglicano ritualista ou Racionalista, enquanto aquele é composto de Dissidentes ou Evangelistas; e vice-versa. As aptidões do candidato, nestes casos, o habilitarão tão-só a ir mais longe e a agir mais eficazmente naquilo em que o eleitorado acredite conscientemente ser caminho errado; e os eleitores ver-se-ão obrigados, pelas suas convicções sinceras, a julgar de maior importância manterem-se os seus representantes, relativamente a estes pontos, de acordo com o que julgam ser os ditames do dever do que serem representados por pessoa de aptidões mais do que médias. Terão igualmente de considerar não só como serão mais eficazmente representados mas como se venha a representar-lhes a posição moral peculiar a eles ou o ponto de vista intelectual. É preciso que se faça sentir no legislativo a influência de qualquer maneira de pensar pertinente a grandes porções do eleitorado; e sendo de supor-se tenha a constituição levado na devida conta a representação por igual de maneiras diversas de pensar, torna-se a questão mais importante, a que os eleitores nessa ocasião particular terão de dispensar atenção, assegurar representação conveniente àquelas maneiras de pensar. Em alguns casos, igualmente, tornar-se-á necessário amarrar as mãos aos representantes para que zelem pelos interesses do eleitorado, ou antes pelo interesse público conforme este o compreende. Tal não seria necessário sob sistema político que lhes assegurasse escolha indefinida de candidatos honestos e destituídos de preconceitos; mas sob o sistema existente, no qual os eleitores são quase sempre obrigados, devido às despesas da eleição e às circunstâncias gerais da sociedade, a escolherem os representantes dentre pessoas de posição na vida largamente diversa da que ocupam, e possuindo interesses diferentes de classe, quem afirmará que se devem abandonar ao critério dos candidatos? Será passível de crítica o eleitor das classes mais pobres que se vê forçado a escolher entre dois ou três ricos, por exigir daquele a quem vai dar o voto se comprometa pelas medidas que considera como prova de emancipação em relação aos interesses de classe dos ricos? Além disso dá-se sempre com alguns membros do eleitorado verem-se obrigados a aceitar o representante escolhido pela maioria do próprio partido. Todavia, embora o candidato de escolha própria de parte do eleitorado não tenha probabilidades de ser eleito, os votos dessa parte podem ser necessários ao sucesso do que foi escolhido por essa parte; e o único meio de que dispõem para exercerem a parte de influência que lhes cabe sobre a conduta dele será tornar dependente de compromisso por parte do candidato com relação a certas condições o apoio que lhe concedem. Estas considerações e contra considerações estão tão intimamente entrelaçadas entre si; reveste-se de tanta importância que os eleitores escolham para representantes homens de maior preparo do que eles mesmos, concordando em serem governados em conformidade a essa sabedoria mais elevada, enquanto é impossível que a conformidade com as opiniões próprias, quando os eleitores as possuírem, não entrem largamente no julgamento que formulem com respeito a quem disponha de sabedoria, e até que ponto seu presumido possuidor provou a presunção pela conduta; que parece quase impraticável estabelecer qualquer regra positiva de dever para o eleitor; e o resultado dependerá menos de qualquer prescrição precisa ou de doutrina autorizada de moralidade política do que do tono geral de espírito do corpo eleitoral, quanto ao requisito importante de deferência para com a superioridade intelectual. Indivíduos ou povos, agudamente sensíveis ao valor de sabedoria superior estão em condições de reconhecê-la, quando existe, por outros indícios do que pensando exatamente como o fazem, e até mesmo a despeito de diferenças consideráveis de opinião; e quando a reconhecerem experimentarão desejo tão forte de se assegurarem dela, por qualquer custo admissível, que não se sentirão inclinados a impor a própria opinião a pessoas a quem considerem detentores de maior sabedoria do que eles próprios têm. Por outro lado, existe certa modalidade de espírito que não respeita a ninguém, que não julga a opinião de qualquer outra pessoa superior à que tem, ou quase tão boa como a de cem ou mil pessoas. Quando é esta a atitude espiritual dos eleitores, não elegerão qualquer pessoa que não seja, ou pelo menos que não confesse ser, a imagem dos sentimentos que os animam, e não permitirão que continue a representá-los senão enquanto reflita na conduta aqueles sentimentos; e todos os aspirantes a honras políticas se esforçarão, conforme diz Platão em "Gorgias" a se conformarem ao modelo do demos, com a maior aproximação possível. Não há negar-se que a democracia completa apresenta forte tendência à formação dos sentimentos dos eleitores conforme este padrão. A democracia não favorece ao espírito de veneração. Deve contar-se entre as partes melhores de sua influência e não entre as piores que destrua a reverência para com a simples posição social, embora assim fazendo-o feche a principal escola de reverência (quanto a relações simplesmente humanas) que exista na sociedade. A democracia, porém, insiste igualmente, em sua própria essência, tão mais forçosamente naquilo a que todos têm direito a serem considerados em igualdade de condições, do que naquilo a que qualquer pessoa tem direito a mais consideração do que outra, que o respeito mesmo pela superioridade pessoal provavelmente fica abaixo do alvo. É por este motivo, entre outros, que sustento ser de tão grande importância consagrarem as instituições do país as opiniões das pessoas de classe mais educada como devendo ter direito a maior relevo do que as das menos educadas; e ainda me esforçaria pela concessão da pluralidade de votos à superioridade autêntica de educação, quando menos fosse somente para dar o tono ao sentimento público, sem levar em conta quaisquer consequências políticas diretas. Quando existir no corpo eleitoral sentimento adequado da diferença extraordinária em valor entre uma e outra pessoa, não lhe faltarão indícios que lhes possibilitem distinguir as pessoas cujo valor lhes seja de maior relevo para os fins que tenham em vista. O melhor indício será, naturalmente, serviço público real: ter ocupado posições de importância e nelas ter-se salientado, por ações cujo acerto os resultados tenham confirmado; ter sido autor de medidas que, pelos efeitos, pareçam ter sido bem projetadas; ter feito previsões que muita vez se tornem em realidade, raramente ou nunca contrariadas pelo que acontecer; ter formulado conselhos que, quando recebidos, resultem em boas consequências, quando desprezados, em más. Verifica-se, sem dúvida, grande dose de incerteza nesses indícios de sabedoria; mas temos em mira os que pessoas de discernimento comum possam utilizar. Bem lhes fará não confiarem demais em qualquer indicação, a menos que confirmada pelas demais; e na avaliação do sucesso ou mérito de qualquer esforço prático, dar importância maior à opinião geral de pessoas desinteressadas conhecedoras do assunto. As provas de que falei somente se aplicam a pessoas experimentadas, entre as quais devem incluir-se as que, embora não experimentadas praticamente, adquiriram experiência teórica; que, em discursos ou em escritos, discutiram negócios públicos de maneira que provem lhes terem dispensado sério estudo. Tais pessoas provavelmente exibirão, no simples caráter de pensadores políticos, considerável soma dos mesmos títulos à confiança como os que se revelaram na posição de estadistas práticos. Quando necessário escolher pessoas inteiramente inexperientes, os melhores critérios consistem na reputação de aptidão entre os que os conhecem pessoalmente, e a confiança neles depositada e as recomendações formuladas por pessoas já conceituadas. Mediante provas como estas, os eleitorados que prezem suficientemente a aptidão intelectual e a procurem com ardor conseguirão em geral obter homens além da mediocridade, e muita vez pessoas de que estejam certos de serem capazes de gerir os negócios públicos conforme julgamento próprio sem peias, aos quais seria afronta pedir abdicassem do julgamento a favor dos que lhes são inferiores em conhecimento. Se não se encontrarem tais pessoas, honestamente procuradas, então os eleitores terão, de fato, razão em tomarem outras precauções; pois não é de esperar difiram as próprias opiniões senão para que venham a dispor de indivíduo de conhecimentos superiores aos que têm. Não deixaria de ser-lhes conveniente, na verdade, lembrarem-se então de que, uma vez escolhido o representante, se este se dedicar às suas obrigações, terá maiores oportunidades de corrigir falso julgamento original do que muitos dos eleitores, - consideração que em geral deve impedi-los de (a menos que se vejam na necessidade de escolher alguém em cuja imparcialidade não confiam totalmente) exigir uma garantia de que não mude de opinião ou, se mudar, renuncie à cadeira. Mas quando pessoa desconhecida, não abonada em termos inequívocos por alguma alta autoridade, se elege pela primeira vez, não será de esperar que o eleitor não estabeleça como condição primordial a conformidade com os seus próprios sentimentos. Será bastante se não considerar a mudança posterior desses sentimentos, confessada honestamente, com fundamentos declarados indisfarçadamente, como razão peremptória para retirar-lhe a confiança. Supondo-se mesmo a capacidade mais experimentada e a preeminência reconhecida de caráter do representante, não se devem deixar inteiramente em suspenso as opiniões particulares dos eleitores. A deferência para com a superioridade intelectual não deve chegar ao ponto do aniquilamento da própria personalidade - à abnegação de qualquer opinião pessoal. Mas quando a diferença não diz respeito aos fundamentos da política, por mais convencido que o eleitor esteja das próprias opiniões, deve considerar que, quando pessoa capaz dele diverge, existe no mínimo considerável probabilidade de não lhe assistir razão, e que, mesmo se tal não se desse, é aconselhável que abandone a própria opinião no que não for absolutamente essencial a favor da vantagem inestimável de ter pessoa capaz para atuar por ele nos inúmeros assuntos sobre os quais não está em condições de formular opinião segura. Em tais casos tentará muita vez reconciliar os dois pontos de vista levando o homem capaz a sacrificar a própria opinião no que respeita as divergências; mas prestar-se a tal transigência constitui para a pessoa capaz traição para com o seu encargo especial, e abdicação dos deveres peculiares à superioridade intelectual, dentre os quais um dos mais sagrados consiste em não abandonar a causa contra a qual se eleva o clamor nem privar do próprio apoio as opiniões que esposa quando mais precisam dele. Homem de consciência e reconhecida capacidade terá de insistir em plena liberdade de ação, conforme julgar melhor segundo a própria opinião, e não concordar em servir em quaisquer outras condições. Os eleitores, contudo, têm o direito de saber de que maneira ele pretende agir, quais as opiniões a respeito de todos os assuntos que entendem com o dever público que pretende adotar para guiar-lhe a conduta. Se algumas dessas opiniões não forem aceitáveis, cabe-lhe provar que, apesar disso, merece representá-los; e, se forem sensatos, fecharão os olhos a diferenças numerosas e grandes entre as opiniões do candidato e as deles, a favor do merecimento geral que tenha. Existem, contudo, diferenças que não se pode esperar deixem passar. Quem quer que sinta pelo governo do seu país a soma de interesses que convém a um homem livre possui algumas convicções relativamente aos negócios nacionais que para ele são como o próprio sangue; a intensidade com que acredita na verdade delas, juntamente com a importância que lhes atribui, impedem-lhe torná-las tema de transigência ou transferi-las ao julgamento de qualquer outra pessoa, por mais acima dele que esteja. Tais convicções, quando existem em um povo, ou em qualquer porção apreciável dele, têm direito de influir em virtude da simples existência, e não tão-só porque tenham a probabilidade de se basearem na verdade. Não será possível governar bem um povo fazendo oposição às noções primárias que tenha do que é direito, mesmo que sejam errôneas em certos pontos. Avaliação correta da relação que deve existir entre governantes e governados não exige consintam os eleitores em serem representados por quem tencione governá-los em oposição às convicções fundamentais que professam. Se se prevalecerem das aptidões dele a outros respeitos, em ocasião em que não seja provável entrem em discussão os pontos pelos quais se empenha essencialmente, assiste-lhes o direito de destituí-lo no primeiro momento em que surja uma questão que os abranja, e respeito à qual não existe maioria tão certa a favor do que julgam justo que torne sem importância a voz discordante desse indivíduo. Assim (menciono os nomes para esclarecer o assunto, não por qualquer aplicação pessoal) as opiniões que se supõem alimentarem os Srs. Cobden e Bright com relação à resistência à agressão estrangeira durante a guerra da Criméia (Na guerra da Criméia (1853-56) a Grã-Bretanha e a França contrariaram os esforços da Rússia visando a aumentar a própria influência sobre o Império Turco, destinados a preparar-lhe o desmembramento para que se apoderassem de Constantinopla), poderão desprezar-se quando existir sentimento nacional esmagador a favor do lado contrário, que conduziria mui apropriadamente à rejeição pelos eleitores ao tempo da questão chinesa (Refere-se Mill às Guerras do ópio (1839-44, 1856-60) por meio das quais a Grã-Bretanha obrigou os chineses a admitirem os negociantes ingleses de ópio) (embora em si questão mais duvidosa) porque era então ponto de discussão se deveria prevalecer a maneira por que encaravam a questão. Como resultado geral de quanto precede, estamos em condições de afirmar não serem de exigir garantias de fato a menos que os eleitores, devido a circunstâncias sociais desfavoráveis ou instituições defeituosas, se encontrem tão limitados na escolha que se vejam obrigados a se decidir presumivelmente sob a influência de parcialidades hostis aos seus interesses; que têm direito ao completo conhecimento das opiniões políticas e sentimentos do candidato, e não só direito, mas muita vez obrigação de rejeitar quem deles diverge, com relação aos poucos artigos que lhes servem de fundamento às crenças políticas; que em proporção à opinião que nutrem com respeito à superioridade intelectual do candidato, têm de conformar-se com a expressão e ação dele baseadas em opiniões diferentes das que professam sobre qualquer número de questões não incluídas nos artigos fundamentais de crença; que devem manter-se irredutíveis na procura de representante de tal calibre que lhe possam confiar a faculdade inteira de obedecer aos ditames da própria consciência; que devem considerar dever para com os seus concidadãos esforçar-se o mais possível para colocar homens desse tipo na legislatura; e que é de importância muito maior para eles serem representados por um homem desses do que por um que se confesse de acordo na maior parte das opiniões; porquanto os benefícios da capacidade dele são certos, enquanto a hipótese de estar ele errado e o eleitorado com a razão em pontos de divergência é suposição bastante duvidosa. Discuti esta questão supondo que o sistema eleitoral se conformasse, em tudo quanto depende de instituição positiva, aos princípios estabelecidos nos capítulos precedentes. Mesmo nessa hipótese, parece-me falsa a teoria da delegação de representação, e prejudicial a sua aplicação prática, embora o malefício ficasse nesse caso dentro de certos limites. Mas se a Constituição não reconhecer as garantias com que procurei preservar o princípio representativo; se não se instituir a representação das minorias nem se admitir qualquer diferença no valor numérico dos votos, de acordo com algum critério da importância da educação possuída pelos eleitores - nesse caso não há palavras capazes de exagerar a importância, em princípio, em deixar discrição sem peias ao representante, porque esta seria a única oportunidade, com o sufrágio universal, para que se fizessem ouvir no Parlamento outras vozes que não as da maioria. Nesta democracia, falsamente assim chamada, que é na realidade governo exclusivo das classes ativas, não gozando qualquer outra de representação ou maneira de fazer-se ouvir, a maneira única de fugir à legislação de classe sob o aspecto mais acanhado e da ignorância política sob o mais perigoso, residiria na inclinação que tivessem os não educados para escolherem representantes educados, submetendo-se às opiniões destes. Será razoavelmente de esperar-se certa disposição nesse sentido, e tudo dependeria de cultivá-la ao ponto mais elevado. Todavia, uma vez investidas de onipotência política, se as classes ativas concordassem voluntariamente em impor por esta ou qualquer outra maneira qualquer restrição considerável à opinião e vontade próprias, haviam de revelar-se mais sensatos do que qualquer classe que possua poder absoluto se haja mostrado ou, se me é dado arriscar-me a dizê-lo, que provavelmente se venha a mostrar sob aquela influência corruptora. XIII DE UMA SEGUNDA CÂMARA DE TODOS OS TEMAS, que entendem com a teoria do governo representativo, nenhum se tem prestado a mais discussão, especialmente no Continente, do que o que se conhece por questão das Duas Câmaras. Tem ocupado maior soma de atenção dos pensadores do que muitas questões dez vezes mais importantes, considerando-se como uma espécie de pedra de toque que distingue os partidários da democracia limitada dos que são pela democracia livre de controle. Quanto a mim, pouco valor atribuo a qualquer controle que uma Segunda Câmara aplique à democracia de outro modo livre de controle; e inclino-me a pensar que, se for possível resolver todas as outras questões constitucionais com acerto, torna-se de importância apenas secundária consistir o Parlamento de duas Câmaras ou simplesmente de uma. Se existirem duas Câmaras, poderão ter composição semelhante ou dissemelhante. No primeiro caso, ambas obedecerão às mesmas influências, e quem quer que possua maioria em uma provavelmente também a terá na outra. Ê verdade que a necessidade de se conseguir o consentimento de ambas para aprovação de qualquer medida pode tornar-se por vezes obstáculo importante ao melhoramento; supondo-se as duas casas representativas e iguais em número de membros, uma parte que exceda ligeiramente a um quarto da representação total impede a aprovação de qualquer projeto, enquanto que, se houver somente uma, o projeto será aprovado se houver maioria simples. O caso suposto, porém, é mais possível abstratamente do que provável de ocorrer na prática. Não acontecerá frequentemente que de duas Casas semelhantemente constituídas, uma seja quase unânime e a outra quase igualmente dividida; se a maioria em uma rejeitar a medida, haverá geralmente grande minoria desfavorável na outra; qualquer melhoramento, portanto, que se impedisse por essa forma seria, em quase todos os casos, o que não alcançasse mais que simples maioria no corpo inteiro, e a pior consequência resultante seria a demora por algum tempo da aprovação da medida, ou daria origem a novo apelo aos eleitores para verificar-se se a pequena maioria no Parlamento correspondia à maioria efetiva no país. O inconveniente da demora e as vantagens do apelo à nação seriam considerados nesse caso como quase igualmente equilibrados. Atribuo pouca importância ao argumento em que mais comumente se insiste a favor de duas Câmaras - impedir precipitação e compelir a segunda deliberação; porquanto a assembleia representativa deve estar muito mal constituída para que as formas estabelecidas de funcionamento não exijam muito mais de duas deliberações. A consideração de mais peso, no meu entender, a favor de duas Câmaras (considero-o de certa importância) é o mau efeito produzido no espírito de qualquer detentor do poder, seja indivíduo ou assembleia, pela consciência de ter de consultar somente a um. Em grandes negócios, é importante que nenhum grupo seja capaz de, mesmo temporariamente, fazer prevalecer o "sic volo" sem pedir consentimento a quem quer que seja. Em assembleia única, quando a maioria toma caráter permanente - quando se compõe das mesmas pessoas atuando habitualmente juntas que contem com a vitória na própria Casa - facilmente se torna despótica e enfatuada se não sentir a necessidade de considerar se os seus atos merecerão a aprovação de outra autoridade constituída. O motivo que induziu os romanos a ter dois cônsules torna desejável a existência de duas Câmaras: para que nenhuma das duas se exponha à influência corruptora de poder indiviso, mesmo pelo espaço de um só ano. Um dos requisitos mais indispensáveis na conduta prática da política, especialmente na gestão das instituições livres, é a conciliação - boa vontade de transigir, de algo ceder aos opositores e dar forma a boas medidas de sorte a ofenderem o menos possível a pessoas ou opiniões contrárias; e deste hábito salutar, o mútuo "dá e toma" (como se denominou) entre as duas Casas revela-se perpétua escola, útil como tal agora mesmo, e a sua utilidade far-se-ia sentir ainda melhor em constituição do Legislativo que fosse mais democrática. Todavia, não é preciso que as Casas tenham a mesma composição; podem destinar-se a controle, uma para com a outra. Supondo-se uma democrática, a outra naturalmente será constituída de maneira a servir, até certo ponto, de freio à democracia. Mas a eficácia do sistema neste particular dependerá totalmente do apoio social que obtenha fora da Casa. Assembleia que não se baseie em algum grande poder do país torna-se ineficaz contra a que gozar de tal apoio. Casa aristocrática só é poderosa em estado aristocrático da sociedade. Outrora a Casa dos Lordes era o poder mais forte na Constituição inglesa, e os Comuns eram tão-só um corpo fiscalizador; mas tal aconteceu somente quando os Barões eram os únicos a gozar de poder extramuros. Não acredito que, em estado realmente democrático da sociedade, a Casa dos Lordes tivesse qualquer valor prático no papel de moderador da democracia. Quando, por um lado, a força é pouco importante em comparação à de outro, a maneira de torná-la eficaz não consiste em alinhar a ambas e jogar-lhes as forças em campo aberto uma contra a outra. Semelhante tática conduziria à completa derrota da mais fraca. Só atuará vantajosamente se não se isolar, compelindo a todos que se declarem por um ou outro lado, mas tomando posição no seio da multidão, mais do que a ela em posição, e chamando a si os elementos mais capazes de se aliarem a ela em certo ponto dado; não se exibindo de modo algum como corpo antagônico, que atraia contra si geral arregimentação, mas agindo como um dos elementos em massa mista, introduzindo o fermento e muita vez convertendo a parte mais fraca em mais forte por meio da influência de que disponha. O poder realmente moderador na constituição democrática terá de agir dentro da Casa Democrática e por meio dela. Já sustentei anteriormente que deve haver, em qualquer governo, um centro de resistência ao poder predominante dentro da Constituição - e, portanto, em constituição democrática um núcleo de resistência à democracia; e considero este princípio máxima fundamental de governo. Se qualquer povo que possua representação democrática estiver mais inclinado, devido a antecedentes históricos, a tolerar tal centro de resistência sob a forma de Segunda Câmara ou Casa dos Lordes do que sob qualquer outra, essa atitude constitui forte razão para que assim a tenha. Não me parece, contudo, a melhor maneira em si, nem de qualquer modo a mais eficaz para o fim em vista. Se existirem duas Casas, uma considerada como representando o povo, a outra somente uma classe ou que não seja de qualquer modo representativa, não acho que, sendo a democracia o poder governante da sociedade, a Segunda Casa possuísse qualquer capacidade para resistir mesmo às aberrações da primeira. Seria possível que lhe tolerassem a existência por questão de hábito e associação, mas não como controle eficaz. Se fizesse uso de vontade independente, teria de fazê-lo no mesmo espírito geral como a outra Casa: ser igualmente democrática e contentar-se em corrigir as inadvertências acidentais do ramo mais popular da legislatura, ou com ela concorrer em medidas populares. A praticabilidade de qualquer controle real da ascendência da maioria depende, daí por diante, da distribuição da força no ramo mais popular do corpo que governa; e indiquei o modo pelo qual, conforme julgo melhor, pode estabelecer-se nele o equilíbrio mais vantajoso de forças. Assinalei também que, mesmo se se permitisse à maioria numérica exercer completo predomínio por meio de maioria correspondente no Parlamento, se se permitisse igualmente às minorias gozar de igual direito que lhes cabe em virtude de princípios rigorosamente democráticos - o de representação em proporção aos respectivos totais - tal dispositivo asseguraria a presença perpétua na Casa, pelo mesmo título popular como os outros membros, de tantos dentre os primeiros intelectos do país que, sem que ficassem reunidos à parte ou investidos de qualquer prerrogativa odiosa, esta porção da representação nacional passaria a ter influência pessoal muito maior do que em proporção à sua força numérica, constituindo, da maneira mais eficaz, o centro moral de resistência de que se necessitaria. Não se torna, portanto, indispensável uma segunda Câmara para este fim, e não contribuiria para ele, mas chegaria talvez a impedir-lhe a realização, por algumas formas concebíveis. Se, contudo, pelas outras razões já mencionadas, se tomasse a decisão no sentido de instituir tal Câmara, seria de desejar-se a compusessem elementos que, sem se exporem à atribuição de interesses de classe contrários à maioria, a levasse a opor-se aos interesses de classe da maioria, tornando-se capaz de erguer a voz com autoridade contra erros e fraquezas daquela. Não se encontram evidentemente essas condições em um corpo constituído pela maneira da nossa Casa dos Lordes. Logo que a posição convencional ou as riquezas individuais não mais intimidem a democracia, perde a significação a Casa dos Lordes. De todos os princípios de que se poderia lançar mão para instituir um corpo sabiamente conservador, destinado a moderar e regular a ascendência democrática, o melhor parece o de que nos dá exemplo o Senado Romano, o corpo mais consistentemente prudente e sagaz que algum dia administrou negócios públicos. As deficiências da assembleia democrática que representa o público em geral são as deficiências do próprio público: falta de preparo e conhecimento especiais. O corretivo apropriado será associar-lhe um corpo que tenha como características preparo e conhecimento especiais. Se uma das Casas representa o sentimento popular, a outra deverá representar o mérito pessoal, provado e garantido por serviço público real, e reforçado pela experiência prática. Se uma é a Câmara do Povo, a outra terá de ser a dos Estadistas - conselho composto de todos os homens públicos vivos que passaram através de cargos políticos ou empregos importantes. Tal câmara seria apropriada a muito mais do que à simples função de corpo moderador. Não seria exclusivamente controle, mas força impulsora ao mesmo tempo. Nas mãos dela o poder de conter o povo ficaria investido nos mais competentes, e mais propensos em geral a conduzi-lo na direção justa. O conselho ao qual incumbisse a tarefa de retificar os erros do povo não representaria classe que se acreditasse contrária aos interesses dele, mas consistiria dos líderes naturais do povo na senda do progresso. Maneira alguma de composição aproximar-se-ia desta para emprestar influência e eficácia à função de moderador. Seria impossível vituperar um corpo sempre à frente da promoção de melhoramentos como sendo simplesmente estorvador, fosse qual fosse a soma de malefícios que viesse a obstruir. Se houvesse lugar na Inglaterra para semelhante Senado (nem preciso dizer que se trata de mera hipótese), seria viável compô-lo dos seguintes elementos: todos os que fossem ou tivessem sido membros da Comissão de Legislação, conforme se indicou em capítulo anterior, e que considero ingrediente indispensável em governo popular bem constituído; todos os que fossem ou tivessem sido ministros da Suprema Corte ou presidentes de qualquer tribunal superior; todos os que tivessem exercido durante cinco anos o cargo de juiz de categoria inferior; todos os que tivessem ocupado qualquer cargo no Gabinete durante dois anos; estes, porém, também seriam elegíveis para a Casa dos Comuns e, se eleitos, a função de par do reino ou o cargo senatorial ficaria suspensa. A condição de certo prazo é necessária para impedir a nomeação de certas pessoas para membros do Gabinete simplesmente para dar-lhes assento no Senado; e sugere-se o período de dois anos para que o mesmo prazo que lhes dá direito à pensão também lhes desse direito à senatoria; todos os que houvessem desempenhado o cargo de Comandante-chefe e todos os que, tendo comandado o exército ou a marinha, houvessem recebido agradecimentos do Parlamento por sucessos militares; todos os que tivessem desempenhado, durante dez anos, cargos diplomáticos; todos os que tivessem sido governadores gerais da Índia ou da América Britânica, e todos os que tivessem exercido durante dez anos o cargo de governador colonial. Deveria também representar-se o serviço civil permanente; seriam senadores todos os que tivessem ocupado durante dez anos os cargos importantes de Subsecretário do Tesouro, permanente Subsecretário de Estado, ou qualquer outro cargo igualmente elevado e de responsabilidade. Se fosse necessário incluir, com essas pessoas assim habilitadas pela administração pública, qualquer representação das classes especulativas - o que seria de desejar-se - seria conveniente considerar se certos professores de certos institutos nacionais, depois de exercício de alguns anos, não teriam acesso a uma cadeira no Senado. A simples preeminência científica ou literária é por demais indefinida e discutível; implicam em poder de seleção, enquanto as outras habilitações falam por si; se os escritos que contribuíram para a aquisição de reputação não se ocupam de política, não servem de prova aos requisitos exigidos, enquanto, se políticos, permitiriam a ministérios sucessivos inundar a Casa com instrumentos partidários. Os antecedentes históricos da Inglaterra dão-nos a absoluta certeza de que, excetuando-se o caso improvável de subversão violenta da Constituição atual, qualquer Segunda Câmara que viesse a existir seria estrutura da tendo por base a Casa dos Lordes. É inadmissível pensar praticamente em abolir essa assembleia, para substituí-la por um senado conforme esbocei, ou por qualquer outro; mas talvez não se deparasse com a mesma dificuldade insuperável em agregar as classes ou categorias de que acabamos de falar ao corpo existente, no caráter de Pares do Reino pela vida. Passo posterior e, conforme esta hipótese, talvez necessário, seria a faculdade que se concedesse aos Pares de representação na Casa ao invés de comparecerem pessoalmente - maneira já estabelecida no caso dos Pares escoceses e irlandeses, e que a simples multiplicação da ordem provavelmente tornará inevitável cedo ou tarde. Fácil adaptação do plano do Sr. Hare impediria aos representantes dos Pares figurarem exclusivamente pelo partido que gozasse de maioria no pariato. Se, por exemplo, se permitisse um representante para cada dez pares, seria admissível que cada dezena escolhesse um representante, e os pares teriam a liberdade de se agruparem para esse fim conforme quisessem. Assim se conduziria a eleição: todos os pares que fossem candidatos à representação da ordem teriam de declará-lo registrando o nome em uma lista. Indicar-se-iam dia e lugar para que se apresentassem os pares desejosos de votar, ou em pessoa ou pela maneira usual no Parlamento, por procurador. Tomar-se-iam os votos, cada par votando somente em um. Cada candidato que tivesse conseguido dez votos seria declarado eleito. Se qualquer um tivesse mais votos, somente se permitiria a dez a retirada de votos, ou se escolheriam dez, dentre aqueles, por sorteio. Estes dez formariam o próprio eleitorado, e o resto dos seus eleitores teria a liberdade de votar de novo em quem lhes aprouvesse. Repetir-se-ia este processo até que (tanto quanto possível) ficasse representado cada par presente, pessoalmente ou por procurador. Quando restasse um número menor que dez, se atingisse a cinco, ainda se lhe permitiria a escolha de representante; se menor que cinco, os votos seriam perdidos ou iriam a favor de alguém já eleito. Com esta exceção sem importância, cada par representante figuraria por dez membros do partido, que todos teriam não só votado nele, mas o teriam escolhido como representante, entre quantos se lhe apresentavam à escolha, porque mais o desejassem para esse fim. Como compensação aos pares que não fossem escolhidos para representantes da ordem, seriam eles elegíveis à Casa dos Comuns - direito que hoje se recusa aos Pares da Escócia e da Irlanda nessas mesmas partes do reino, enquanto se nega igualmente a ambas a representação na Casa dos Lordes a qualquer partido que não o mais numeroso. A maneira de compor o Senado que aqui se sustentou não só parece a melhor em si, mas é a que conta em maior extensão com o precedente histórico e brilhante êxito real. Não é, contudo, o único plano viável suscetível de propor-se. Outro modo possível de formar-se uma segunda câmara seria elegê-la pela primeira, sujeita à restrição de não nomear qualquer dos seus próprios membros. Semelhante assembleia, emanando como o Senado americano da escolha popular, afastada somente uma vez, não havia de considerar-se entrar em choque com as instituições democráticas, e provavelmente adquiriria considerável influência popular. Pela maneira de nomear-se, seria provavelmente impossível que despertasse a rivalidade da Casa popular ou entrasse com ela em colisão hostil. Além disso (provendo-se devidamente à representação da minoria) seria de esperar que tivesse boa composição e incluísse grande parte da classe de homens altamente capazes que, ou acidentalmente ou por falta de qualidades vistosas, não se sentiam inclinados a procurar ou não estavam em condições de obter os sufrágios de eleitorado popular. A melhor constituição de uma Segunda Câmara é a que inclui o maior número de elementos dos interesses de classe e dos preconceitos da maioria, mas que não tenha em si nada que ofenda ao sentimento democrático. Repito, contudo, que é impossível atribuir a uma Segunda Câmara de qualquer espécie a principal garantia de moderar o ascendente da maioria. A constituição da Casa popular fixa o caráter do governo representativo. Comparadas a esta, todas as outras questões relativas à forma de governo são insignificantes. XIV DO PODER EXECUTIVO EM GOVERNO REPRESENTATIVO SERIA INOPORTUNO NESTE TRATADO discutir em que departamentos ou ramos é possível distribuir mais convenientemente a função do poder executivo. A tal respeito, as exigências de diferentes governos são diversas; e pouca probabilidade há que se cometa algum erro sério na classificação dos deveres quando os homens se sentirem inclinados a começar do começo, sem se considerar obrigados por uma série de acidentes que, em governo antigo como o britânico, deu origem à divisão existente da função pública. Será suficiente dizer que a classificação dos funcionários deveria corresponder à dos assuntos, e que não deveria haver diversos departamentos independentes um do outro para superintenderem partes diferentes do mesmo todo natural, conforme se dava na administração militar até recentemente, e em menor grau até agora. Quando o objetivo visado é único (como o de possuir exército eficiente) a autoridade incumbida deve ser única. O conjunto inteiro de meios para um único fim deve ficar sob o mesmo controle único e responsabilidade única. Se ficarem divididos entre autoridades independentes, os meios, nas mãos de cada uma, tornar-se-ão fins, e somente caberá ao chefe do governo, que provavelmente não dispõe de experiência departamental conveniente para se ocupar do fim principal. As diversas classes de meios não se combinam e adaptam umas às outras sob a orientação de qualquer ideia diretora; e enquanto cada departamento leva por diante as próprias necessidades, sem dar importância às dos demais, sacrifica-se o objetivo da obra à própria obra. Como regra geral, toda função executiva, superior ou subordinada, tem de ser dever prescrito de certo indivíduo dado. Deve ser evidente a todos quem tudo fez e a quem cabe ter-se deixado de fazer. A responsabilidade é nula se ninguém sabe qual o responsável. Nem, mesmo quando real, é possível dividi-la sem enfraquecê-la. Para mantê-la no ponto mais elevado, deve existir uma pessoa que recebe todo o louvor pelo que estiver bem feito e toda a censura pelo que for mal feito. Existem, contudo, duas maneiras de partilhar da responsabilidade: por uma somente se enfraquece, por outra destrói-se em absoluto. Enfraquece-se quando necessário o concurso de mais de um funcionário para a realização do mesmo ato. Cada um dos dois tem ainda responsabilidade real; se resultou malefício, nenhum dos dois poderá dizer não o ter feito; aparece tanto como participante quanto como cúmplice em qualquer ofensa; se houve criminalidade legal, serão os dois punidos legalmente, e o castigo não precisará ser menos severo do que se envolvesse apenas uma pessoa. Mas assim não é com as penalidades, nem tampouco com as recompensas, da opinião: estas ficam sempre diminuídas quando repartidas. Quando não houve ofensa legal definida, corrupção ou malversação, mas somente erro ou imprudência, ou o que assim se possa entender, qualquer participante terá desculpa para si e para o mundo em estarem outras pessoas envolvidas juntamente com ele. Dificilmente se encontra seja o que for, mesmo na desonestidade pecuniária, da qual os homens não se sintam quase absolvidos, se aqueles cujo dever era resistir e censurar deixaram de fazê-lo, e, ainda mais, se deram assentimento formal. Neste caso, contudo, embora se enfraqueça a responsabilidade, esta ainda existe: todos os que estão comprometidos concordaram, em sua capacidade individual com o ato e nele se juntaram. A questão se apresenta sob aspecto muito pior quando o próprio ato é somente o de maioria - de Conselho que delibere a portas fechadas, ninguém sabendo ou sendo provavelmente capaz de saber se certo membro votou a favor ou contra o ato. A responsabilidade nesse caso reduz-se à simples palavra. "Conselhos", diz acertadamente Bentham, "são biombos". O que "o Conselho" faz não é ato de ninguém; e a ninguém é possível responsabilizar por ele, O Conselho sofre, mesmo na reputação, somente em caráter coletivo; e nenhum membro só por si o sente mais do que a inclinação o leve a identificar a própria estima com a do corpo - sentimento frequentem ente muito forte quando o corpo é permanente, e a ele se sente ligado por fas e por nefas; mas as flutuações da carreira oficial moderna não dão tempo para a formação do "esprit de corps" que, se de qualquer maneira existisse, existiria tão-só nas fileiras obscuras dos subordinados permanentes. Assim sendo, os Conselhos não são instrumentos convenientes para funções executivas; e só serão admissíveis para esse fim quando, por outros motivos, fosse pior entregar a um único ministro inteiro poder discriminatório. Por outro lado, apresenta-se igualmente como máxima de experiência que existe sabedoria em multidão de conselheiros; e raramente um indivíduo julga com acerto, mesmo nos seus próprios interesses, e ainda menos nos do público, quando faz uso habitual de qualquer conhecimento que não o dele, ou do de um único conselheiro. Não existe necessária incompatibilidade entre este princípio e o outro. É fácil dar efetivo poder e inteira responsabilidade a um, fornecendo-lhe, quando necessário, conselheiros, cada um dos quais responsável unicamente pela opinião que der. Em geral, o chefe de um departamento do governo executivo é mero político. Talvez seja bom político e pessoa de merecimento; e a menos que tal se dê, o governo é mau. Mas a sua habilidade geral e o conhecimento que deva possuir dos interesses gerais do país não se farão acompanhar, senão por acidente ocasional, de conhecimento adequado, que seja possível chamar de profissional, do departamento que é chamado a presidir. Será preciso, portanto, fornecer-lhe conselheiros profissionais. Sempre que forem suficientes simples experiência e conhecimentos, - sempre que for possível reunir, em único indivíduo bem escolhido, as qualidades exigidas de um conselheiro profissional (como, por exemplo, no caso de funcionário jurídico) satisfazem-se as exigências da situação com uma pessoa dessas para os objetivos gerais e um corpo de funcionários para fornecer conhecimento com respeito a detalhes, Todavia, mais frequentemente, não é suficiente que consulte o ministro somente uma pessoa competente e, quando ele próprio não se sentir versado no assunto, aja implicitamente conforme o conselho dessa pessoa. Torna-se necessário muitas vezes ouvir, não ocasionalmente, mas habitualmente, certa variedade de opiniões e esclarecer a própria opinião por discussão no seio de um corpo de conselheiros. Tal se torna enfaticamente necessário em assuntos militares e navais. Os ministros militar e naval, portanto, e provavelmente diversos outros, deverão dispor de um conselho composto, pelo menos nesses dois departamentos, de profissionais capazes e experimentados. A fim de conseguir os melhores homens para este fim quando se muda a administração, devem eles ser permanentes, com o que quero dizer não devem, conforme se dá com os Lordes do Almirantado, ver-se na obrigação de se demitirem com o ministro que os nomeou: mas é boa regra que todos quantos ocupem cargos elevados a que chegaram por seleção, e não pelo curso normal de promoção, conservem o cargo somente por prazo fixo, exceto se forem novamente nomeados, conforme é agora a regra para as nomeações do estado-maior do exército britânico. Esta regra torna menos provável que as nomeações deem motivo a abusos, não sendo garantidas para a vida inteira, e ao mesmo tempo fornece um meio, sem a ninguém ofender, de afastar aqueles que não seja conveniente conservar, convocando pessoas mais jovens de grandes aptidões, para as quais não haveria talvez missões voluntárias. Os Conselhos deverão ser meramente consultivos tão-só porque caiba indivisivelmente ao ministro a decisão final, mas não se devem considerá-los nem tampouco devem considerar-se a si mesmos como zeros, ou como suscetíveis a se reduzirem a zeros ao sabor do ministro. Os conselheiros junto a personagem forte e talvez voluntariosa devem ficar em condições que lhes tornem impossíveis, sem descrédito, deixar de exprimir uma opinião, e impossível àquela deixar de ouvir e ponderar-lhes as recomendações, adote-as ou não. A relação que deve existir entre um chefe e esse tipo de conselheiros encontra realização bastante exata na constituição do Conselho do Governador-geral e nos das diversas presidências da Índia. Compõem-se tais conselhos de pessoas que possuem conhecimentos profissionais dos negócios da região, que em geral não têm o governador-geral e os governadores, e que não seria desejável exigir deles. Via de regra, espera-se que cada membro do Conselho dê uma opinião, que consiste, sem dúvida, frequentemente, em simples aquiescência; mas se houver qualquer divergência, cada membro tem o direito de declarar por escrito os motivos, o que constitui prática invariável, o mesmo fazendo o governador-geral ou o governador. Nos casos comuns, toma-se a decisão de acordo com a opinião da maioria; o Conselho toma, portanto, parte importante no governo; mas se o governador-geral ou o governador achar conveniente, pode pôr de lado até mesmo opinião unânime dos conselheiros, declarando as razões. A consequência é que o chefe é individualmente e efetivamente responsável por qualquer ato do governo. Os membros do conselho só têm a responsabilidade de conselheiros; mas sabe-se sempre, por meio de documentos capazes de serem exibidos e que são exibidos se exigidos pelo Parlamento ou pela opinião pública, o que cada um aconselhou, e quais as razões apresentadas para o conselho formulado, enquanto que, devido à posição importante e à participação ostensiva em todos os atos do governo, têm motivos quase tão fortes para se dedicarem aos negócios públicos, formulando e exprimindo opinião bem ponderada em relação a cada parte deles, como se a responsabilidade total lhe pesasse aos ombros. Este modo de conduzir a mais alta classe dos negócios públicos fornece um dos exemplos mais felizes da adaptação dos meios aos fins que a história política, até agora não mui prolífica em obras de habilidade e de expedientes engenhosos, não foi capaz de apresentar. Constitui uma das aquisições com que se enriqueceu a arte política pela experiência da administração da Companhia das Índias Orientais; e, à semelhança de muitas outras combinações por meio das quais se conservou a Índia para a Grã-Bretanha, e o acervo de bom governo produzido que é verdadeiramente de admirar-se se considerarmos as circunstâncias e os materiais, está provavelmente destinada a perecer no holocausto geral que as tradições do governo indiano parecem destinadas a sofrer, desde que ficaram à mercê da ignorância pública e da vaidade presunçosa de políticos. Já se ouve o clamor a favor da abolição dos conselhos como elemento supérfluo e dispendioso nas engrenagens do governo, enquanto cada vez mais se insiste e diariamente mais apoio encontra nos escalões mais elevados, a ab-rogação do serviço civil profissional destinado a formar os elementos que compõem os conselhos, e cuja existência é a garantia única de qualquer valor que possam ter. Princípio de grande relevo para bom governo em constituição popular é que não se nomeie qualquer funcionário executivo por meio de eleição popular, nem pelos votos do próprio povo nem pelos dos seus representantes. Todas as funções governamentais dependem de empregados capazes; as aptidões para desempenhá-las são de espécie particular e profissional de que não podem julgar convenientemente senão as pessoas que possuem certa parte dessas aptidões, ou alguma experiência prática das mesmas. A tarefa de encontrar as pessoas mais capazes de exercer empregos públicos - não escolher simplesmente os melhores que se ofereçam, mas procurar os melhores em absoluto, e tomar nota de todas as pessoas que se encontram, de sorte a poder convocá-las quando necessárias - é muito penosa e exige discernimento delicado e altamente consciencioso; e como não existe qualquer obrigação pública que se exerça, em geral, tão precariamente, assim também nenhuma existe para a qual seja de maior importância exigir a maior soma possível de responsabilidade, impondo-a como obrigação especial aos altos funcionários nos diversos departamentos. Todos os funcionários públicos subordinados que não são nomeados por algum modo de concurso público devem ser escolhidos pela responsabilidade direta do ministro sob o qual servem. Os ministros são todos naturalmente escolhidos pelo primeiro ministro; e este, embora indicado pelo Parlamento, deve ser, em governo de reis, nomeado pela Coroa. O funcionário que nomeia deve ser o único a ter o poder de afastar do cargo qualquer funcionário subordinado suscetível de ser afastado; tal não devendo acontecer à maior parte, exceto por prevaricação pessoal; eis que seria vão esperar que o corpo de pessoas que se incumbe de todo o detalhe das atividades públicas, e cujas aptidões são geralmente de muito maior consequência para o público do que as do próprio ministro, se dedicasse à profissão e adquirisse os conhecimentos e habilidade de que este terá muita vez de depender inteiramente, se estivessem sujeitos a serem despedidos sem ter cometido qualquer falta, para que o ministro satisfizesse ou promovesse o próprio interesse político nomeando qualquer outra pessoa. Deve ser o chefe do executivo exceção, em governo republicano, ao princípio que condena a nomeação de funcionários executivos mediante sufrágio popular? Pode considerar-se boa a regra que, na Constituição Americana, determina a eleição do presidente de quatro em quatro anos pelo povo inteiro? A pergunta não está isenta de dificuldades. Sem dúvida alguma há certa vantagem, em um país como a América do Norte, no qual não há necessidade de temer um golpe de Estado, em fazer o chefe do executivo constitucionalmente independente do corpo legislativo, tornando-se por esse modo os dois ramos do governo, enquanto por igual populares na origem e responsabilidade, controle efetivo de um sobre o outro. O plano está de acordo com o esforço perseverante no sentido de evitar a concentração de grande soma de poderes nas mesmas mãos, característica acentuada da Constituição norte-americana. Mas a vantagem, neste caso, compra-se por preço além de qualquer estimativa do seu valor. Parece muito preferível que o chefe do executivo de uma república seja indicado confessamente, como o primeiro ministro o é virtualmente em monarquia constitucional, pelo corpo representativo. Em primeiro lugar, pode ter-se a certeza, se assim nomeado, que seja homem mais eminente. O partido que tivesse a maioria no Parlamento indicaria então, via de regra, o próprio líder, que seria sempre uma das pessoas mais importantes senão a mais importante de todas, na vida política, enquanto o presidente dos Estados Unidos, desde que desapareceu o último sobrevivente dos fundadores da república americana, é quase sempre personagem obscura ou alguém que tenha adquirido a reputação de que acaso goze em campo diverso da política. E, como o observei anteriormente, não se trata de acidente, mas do efeito natural da situação. Os homens eminentes de um partido, em eleição que se estenda ao país inteiro, não são nunca os candidatos mais disponíveis. Todos os homens eminentes adquiriram inimigos pessoais ou fizeram algo ou, no mínimo, proclamaram certa opinião desagradável a certa porção considerável local ou não, da comunidade, capaz de influir com efeito fatal sobre o número de votos; enquanto um homem sem antecedentes, do qual nada se sabe senão que professa o credo do partido, recebe prontamente os votos de qualquer parte da comunidade. Outra consideração importante consiste no grande mal da eleição sem intermitências. Quando se confere a mais alta dignidade do Estado por meio de eleição popular com intervalos de poucos anos, gasta-se todo o tempo intermediário no que importa virtualmente em cabala. O presidente, os ministros, os chefes de partidos e seus seguidores são todos eleiçoeiros: mantém-se a comunidade inteira atenta a meras personalidades políticas e discute-se e resolve-se qualquer questão pública com menor preocupação pelo mérito próprio do que pela influência de esperar-se na eleição presidencial. Se fosse preciso inventar um sistema que tornasse o espírito partidário o princípio dominante de ação em todos os negócios públicos e que desse origem a motivos não só para transformar qualquer assunto em questão partidária, mas para fazer surgir questões que servissem de fundamento aos partidos, teria sido difícil imaginar qualquer meio que melhor se adaptasse a esses objetivos. Não vou afirmar que fosse desejável em todas as ocasiões e lugares que o chefe do executivo dependesse tão inteiramente dos votos da assembleia representativa como acontece com o Primeiro ministro inglês, aliás sem qualquer inconveniente. Se se julgasse preferível evitá-lo, poderia, embora nomeado pelo Parlamento, conservar-se no cargo durante certo período fixo, o que seria o sistema americano, sem a eleição popular e todos os seus males (A afirmação acima relativamente ao sistema americano de governo é um tanto errônea porquanto não leva em conta o princípio de maior importância, a divisão dos poderes - executivo, legislativo e judiciário - em base coetânea). Existe outra maneira de dar ao chefe da administração tanta independência em relação ao Poder Legislativo quanta for compatível com a essência do governo livre. Nunca ficaria indevidamente na dependência de um voto do Parlamento se tivesse, conforme tem praticamente o Primeiro-Ministro britânico, o poder de dissolver a Casa apelando para o povo - se, ao invés de ser afastado do cargo por um voto hostil, tal voto o reduzisse à alternativa de renúncia ou dissolução. Acho que seria de desejar que o Primeiro Ministro possuísse o poder de dissolução do Parlamento, mesmo sob o sistema em que lhe está assegurado o exercício do cargo durante certo período fixo. Não deve existir a possibilidade desse impasse na política, o qual conduziria ao rompimento entre o Presidente e a Assembleia, nem um nem outro tendo, durante intervalo que poderia durar anos, qualquer meio legal de livrar-se do outro. Atravessar tal período sem que se tentasse um golpe de Estado, de qualquer dos lados ou de ambos, implica em tal amor pela liberdade e hábito de auto coerção como mui poucas nações têm sido capazes de exibir; e embora se evitasse essa situação extrema, esperar que as duas autoridades não paralisassem as operações uma da outra respectivamente é supor que a vida política do país será sempre impregnada por certo espírito de tolerância e conciliação, que não chegue a perturbar as paixões e exageros das lutas partidárias mais agudas. Tal espírito poderá existir, mas será imprudente, mesmo quando exista, levá-lo longe demais. Outros motivos tornam desejável que algum poder do Estado, (que somente poderá ser o executivo) tenha a liberdade de, em qualquer ocasião, e quando assim o quiser, convocar novo Parlamento. Quando existe dúvida real sobre qual dos dois partidos em luta possui maior número de adeptos, é importante que exista meio constitucional para pôr imediatamente em prova a questão e resolvê-la. Nenhum outro assunto político terá a oportunidade de ser convenientemente atendido enquanto este não se decidir; e tal intervalo redundará principalmente em interrupção dos objetivos de melhoramentos legislativos ou administrativos, nenhum dos dois partidos depositando bastante confiança na própria força para o que provavelmente provocará oposição em qualquer ponto que disponha de influência direta ou indireta na luta pendente. Não levei em conta o caso em que o vasto poder centralizado no primeiro magistrado e a insuficiente fidelidade da massa do povo às instituições livres lhe deem probabilidade de sucesso na tentativa de subverter a Constituição e usurpar o poder soberano. Quando tal perigo existir, não será de admitir-se que o Parlamento não possa, por um único voto, reduzir o primeiro magistrado à situação de cidadão particular. Se as circunstâncias forem tais que animem esta quebra de fidelidade das mais audaciosas e condenáveis, será tão-só fraca proteção semelhante inteireza de dependência constitucional. Dentre todos os funcionários do governo, aqueles em cuja nomeação o sufrágio popular será mais de reprovar-se são os judiciários. Embora não existam funcionários cujas aptidões especiais e profissionais o julgamento popular seja menos capaz de avaliar, nenhum existe em relação ao qual sejam de tão grande importância absoluta imparcialidade e independência de ligações com políticos ou grupos de políticos. Alguns pensadores, entre outros o Sr. Bentham, foram de opinião que, embora seja melhor não nomear os juízes por eleição popular, o povo do respectivo distrito deve ter a faculdade de, em seguida a experiência suficiente, afastá-los do cargo. Não se pode negar que a inamovibilidade de qualquer funcionário público, a quem estão confiados grandes interesses, seja um mal em si. Longe é de desejar-se que não houvesse maneira de afastar juiz mau ou incompetente, senão no caso em que fosse possível responsabilizá-lo perante tribunal criminal por conduta irregular; e que funcionário do qual tanto depende que se sentisse livre de qualquer responsabilidade exceto da opinião e a própria consciência. Contudo, trata-se de saber se, na posição peculiar de juiz, e supondo-se terem sido tomadas todas as precauções praticáveis para uma nomeação honesta, não terá a irresponsabilidade, de modo geral, exceto para com a opinião e a consciência próprias, menor tendência a perverter-lhe a conduta do que a responsabilidade para com o governo ou o voto popular. A experiência há muito resolveu esta questão pela afirmativa quanto à responsabilidade do executivo; e a questão é quase tão igualmente decisiva quando a responsabilidade que se procura tornar efetiva existe em relação aos sufrágios dos eleitores. Entre as boas qualidades do eleitorado popular, as que incumbem peculiarmente a um juiz - calma e imparcialidade - não se contam. Felizmente, na intervenção do sufrágio popular, essencial à liberdade, não se exigem. Até mesmo a qualidade de justiça, embora necessária a todos os seres humanos, e, portanto, a todos os eleitores, não é o motivo que resolve de qualquer eleição popular. A justiça e a imparcialidade entram tão pouco na eleição de um membro do Parlamento como em qualquer outra transação humana. Os eleitores não têm de conceder algo a que tenham direito os candidatos, nem julgar dos merecimentos gerais dos concorrentes, mas declarar quais deles lhes merecem maior confiança ou lhes represente melhor as convicções políticas. O juiz está na obrigação de tratar o amigo político ou a quem melhor conheça exatamente como trata a qualquer um; mas seria infração ao dever e igualmente um absurdo se o eleitor assim procedesse. Não há argumento em que se possa basear o efeito benéfico produzido sobre os juízes, ou sobre quaisquer outros funcionários, da jurisdição moral da opinião; porquê, mesmo a este respeito, o que exerce realmente controle útil sobre a conduta do juiz, quando capaz do exercício do cargo, não é (com exceção de certos casos políticos) a opinião da comunidade em geral, mas a do único público em condições de julgar-lhe devidamente a conduta ou as aptidões - o foro do seu próprio tribunal. Não quero que me interpretem como afirmando que a participação do público, em geral, na administração da justiça não se revista de importância; é, ao contrário, das maiores; mas de que maneira? Pelo desempenho real de parte da função judicial, na capacidade de jurados. Este é um dos poucos casos em política no qual é melhor que o povo atue direta e pessoalmente do que por meio de representantes, sendo quase o único caso em que os erros que venha a cometer uma pessoa no exercício de autoridade se suportem melhor do que as consequências resultantes de o tornarem responsável por eles. Se fosse possível afastar do cargo a um juiz por meio de voto popular, quem quer que desejasse removê-lo havia de prevalecer-se para esse fim das decisões judiciárias dele; levaria todas elas, tão longe quanto praticável, por meio de apelo irregular, ante opinião pública inteiramente incompetente, porque não conhece a questão ou porque a conheça sem as precauções ou a imparcialidade que cabem à audiência judiciária; tiraria vantagem da paixão popular e do preconceito onde existissem, e se esforçaria por fazê-los surgir onde não existissem. E nisto; se a questão fosse interessante, e se esforçasse suficientemente, seria infalivelmente bem-sucedido, a menos que o juiz ou seus amigos descessem à arena e dirigissem apelos igualmente poderosos ao lado oposto. Os juízes acabariam por sentir que arriscavam o cargo em cada decisão que formulassem em questão suscetível de interesse geral, e que para eles seria menos essencial considerar qual a decisão justa do que a que maiores aplausos recebesse do público, ou que não ficasse sujeita a deturpação insidiosa. Receio que se venha a verificar seja a prática introduzida por algumas das novas constituições estaduais revistas da América do Norte, de submeter os funcionários judiciários a reeleição popular periódica, um dos erros mais perigosos algum dia cometidos pela democracia; e se não fosse a reação que se diz estar-se produzindo devido ao bom senso que não abandona nunca totalmente o povo dos Estados Unidos, a qual provavelmente em prazo não muito longo conduzirá ao recuo em semelhante erro, poder-se-ia com razão considerá-lo como o primeiro passo na degenerescência do governo democrático moderno. (Fui, contudo, informado de que nos Estados americanos que haviam adotado juízes eletivos, não é realmente o povo quem faz a escolha, mas os líderes dos partidos; nenhum eleitor pensando nunca em votar em qualquer candidato que não o do partido, e que, em consequência, a pessoa eleita é comumente, de fato, a mesma que seria nomeada pelo Presidente ou pelo Governador do Estado. Desse modo certa prática má limita e corrige outra; e o hábito de votar em massa sob a bandeira do partido, tão cheio de males em todos os casos em que se investe propriamente no povo a função eletiva, tende a minorar mal ainda maior em um caso em que o funcionário a eleger-se deve ser escolhido não pelo povo mas para o povo). Com relação ao corpo grande e importante que constitui a força permanente do serviço público, aquele que não muda com as mudanças da política, mas permanece para auxiliar a cada ministro pela experiência e tradições, informá-lo com respeito ao funcionamento e conduzir os detalhes oficiais que lhe cabem controlar em geral, - os que, em resumo, formam a classe dos funcionários públicos profissionais, entrando para a profissão quando ainda jovens, com a esperança de subir progressivamente para cargos mais elevados à proporção que corre o tempo; é evidentemente inadmissível que fiquem sujeitos a ver-se demitidos e privados de todo o benefício dos serviços prestados, senão em virtude de falta positiva, provada e séria. Sem dúvida, não qualquer negligência que os torne responsáveis perante a lei, mas descaso voluntário pelo dever ou conduta que implique em incapacidade de preencher os fins do cargo para que foram nomeados. Em consequência, como não há outro meio, a menos no caso de culpa pessoal, de afastá-los senão retirá-los do serviço público mediante aposentadoria, é da maior importância que sejam bem-feitas as nomeações à primeira instância; restando considerar qual a maneira de nomeá-los que melhor preencha essas condições. Quando se fazem as primeiras nomeações, deve temer-se pouco perigo decorrente da falta de aptidões e conhecimento especiais por parte dos que escolhem, mas muito da parcialidade ou de interesses privados ou políticos. Sendo nomeados, geralmente, no começo da maioridade, não tendo aprendido, mas a fim de aprender a profissão, o único ponto que servirá para distinguir quais os melhores candidatos será a eficiência nos ramos comuns da educação liberal; e tal é possível verificar sem dificuldade, contanto que os que forem indicados para investigá-la se deem ao trabalho e se revistam da imparcialidade necessária. Não é de esperar-se uma ou outra condição por parte de um ministro; este terá sempre de confiar totalmente em recomendações e, por mais desinteressado que seja quanto a desejos pessoais próprios, não poderá nunca resistir às solicitações de pessoas que possuam o poder de influir-lhe na eleição, ou cujo apoio político se revista de importância para o ministério que dirige. Tais considerações introduziram a prática de submeter todos os candidatos para a primeira nomeação a exame público, conduzido por pessoas não comprometidas pela política, e da mesma classe e natureza dos examinadores para honras das universidades. Tal provavelmente o melhor plano em qualquer sistema; e sob o regime parlamentar inglês, o único que proporciona oportunidade, não digo de nomeação honesta, mas até mesmo de abstenção em relação às que são manifesta c flagrantemente irregulares. É também igualmente necessário que se proceda aos exames por meio de concurso, nomeando-se os que melhor se saírem. Simples aprovação em exame só conduzirá, no correr do tempo, à exclusão dos absolutamente estúpidos. Quando se oferece a alternativa ao espírito do examinador entre frustrar as perspectivas de um indivíduo e desprezar o dever para com o público, o que, neste caso particular, raramente parece de grande importância; e quando pode contar será amargamente criticado na primeira hipótese enquanto ninguém em geral ou tomará conhecimento ou se preocupará com a segunda; a balança, a menos que seja homem de caráter excepcional, se inclinará para o lado da boa natureza. O afrouxamento em um caso cria o precedente para outros, tornando-se cada vez mais difícil de resistir-se a cada repetição da condescendência; cada uma delas, em sucessão, torna-se precedente para outras mais, até que o padrão de eficiência cai gradativamente a ponto quase desprezível. Os exames para formatura nas duas grandes universidades (O autor refere-se às universidades de Oxford e Cambridge) têm sido tão pouco exigentes quanto penosos e sérios os que se exigem para as honras. Quando não há estímulo para se exceder certo mínimo, este torna-se o máximo; torna-se prática generalizada não visar a algo mais, e como em tudo sempre se encontra alguém que não alcança a quanto visa, por mais baixo que se distenda o padrão, deparam-se sempre muitos que não o conseguem atingir. Quando, ao contrário, distribuem-se as nomeações aos que mais se distinguiram, entre grande número de candidatos, classificando-se os concorrentes mais bem-sucedidos por ordem de merecimento, não só se estimula cada um a realizar o mais possível, mas essa influência se faz sentir em qualquer lugar de educação liberal por todo o país. Torna-se para cada professor objeto de ambição, e senda larga ao sucesso, ter apresentado discípulos que atingiram a colocações elevadas em tais concursos; e dificilmente se encontrará outra maneira pela qual o Estado fique em condições de contribuir em tão grande escala para elevar a excelência das instituições educacionais em todo o país. Embora o princípio do exame por meio de concursos para empregos públicos tenha sido mui recentemente introduzido, e ainda se execute tão imperfeitamente no país, sendo o serviço da Índia até agora quase o único exemplo em que existe em toda a inteireza, já principiou a fazer-se notar efeito sensível em pontos de educação média, apesar do estado existente desgraçadamente baixo da educação no país, sobre o qual estes mesmos exames projetaram intensa luz. Verificou-se tão baixo o padrão de cultura entre os jovens que conseguem a indicação do ministro destinada a permitir-lhes que se apresentem como candidatos, que o concurso entre eles produz resultado quase mais pobre do que se conseguiria de simples exame; porque ninguém pensaria em fixar as condições para esse exame tão baixas como atualmente se julgam suficientes para permitir a um jovem que ultrapasse outros candidatos. Assim sendo, diz-se que os anos sucessivos revelam em conjunto declínio nos conhecimentos, despendendo-se menor esforço porque o resultado de exames anteriores provou serem os esforços então empregados maiores do que se necessários para conseguir resultado satisfatório. Em parte, devido a essa diminuição de esforço e em parte porque, mesmo em exames que não exigem indicação prévia, a ignorância consciente reduz o número de concorrentes a simples punhado, acontece que, embora se tenham visto sempre alguns exemplos de grande competência, a parte inferior da relação dos candidatos aprovados representa tão-só soma muito moderada de conhecimentos; e devemos à palavra dos Examinadores que quase todos os reprovados confessam o fracasso à ignorância não dos ramos mais altos de instrução, mas dos elementos mais humildes - soletração e contas. O clamor que continua a ouvir-se contra esses concursos por parte de alguns órgãos da opinião falam tão pouco a favor da boa-fé como do bom senso dos que o fazem. Resultam em parte da deformação da espécie de ignorância que, na realidade, conduz de fato ao insucesso nos exames. Citam com ênfase as questões mais profundas (Nem sempre, contudo, as mais profundas; porque denunciador recente dos concursos perante a Casa dos Comuns teve a simplicidade de apresentar um grupo de questões quase elementares em álgebra, história e geografia por prova da soma exorbitante de conhecimentos científicos elevados, que os examinadores tinham a extravagância de exigir) que se pode mostrar terem sido algum dia formuladas e deixam transparecer que as respostas sem qualquer exceção a todas elas constituíam condição “sine qua non” do sucesso. Entretanto, tem-se repetido à saciedade que não se formulavam tais perguntas porquê de todos se esperasse que fossem capazes de respondê-las, mas a fim de que quem estivesse em condições de fazê-lo tivesse meios de mostrá-lo e de aproveitar-se dessa parte dos próprios conhecimentos. Não como fundamento para rejeição, mas como meio adicional de sucesso, é que se proporciona essa oportunidade. Perguntam-nos então se a espécie de conhecimento suposto nesta ou naquela ou em qualquer outra pergunta se destina a ser de qualquer utilidade para o candidato depois de ter alcançado o objetivo que tem em vista. As pessoas diferem muito entre si em opinião com relação à possível utilidade do conhecimento. Indivíduos há vivos, e falecido Secretário de Estado era um desses que achavam ser a ortografia inglesa conhecimento inútil em adido diplomático ou funcionário de repartição governamental. A respeito de um ponto todos os opositores parecem unânimes: não há utilidade em cultura intelectual geral nesses empregos, seja ela de que natureza for. Se, contudo (como presumo pensar), é útil, ou se qualquer educação o é da de qualquer maneira, deve-se examiná-la pelos meios mais capazes de provar que o candidato a possui ou não. Para averiguar se foi bem-educado, ter-se-á de interrogá-la nos assuntos que conheça provavelmente, se recebeu boa educação, embora nem mesmo diretamente pertinentes ao trabalho que irá executar. Os que se opõem a que sejam os candidatos interrogados sobre os clássicos e a matemática, em um país em que o que somente se ensina regularmente são esses dois assuntos, perguntamos a respeito do que então dever-se-iam formular perguntas? Contudo, parece aplicar-se a mesma objeção ao exame nestes assuntos, ou em qualquer outro que não esses. Se os examinadores - ansiosos por abrirem uma porta de admissão aos candidatos que não passaram pela escola secundária ou que compensaram a escassez dos conhecimentos do que lá se ensina mediante maior conhecimento de algo mais - concedem pontos por competência em qualquer outro assunto de real utilidade, reprovam-nos igualmente por isso. Nada satisfará os opositores senão livre admissão à ignorância total. Dizem-nos triunfantemente que nem Clive nem Wellington teriam passado no exame exigido de aspirante a cadete de mecânica. Como se, porque Clive e Wellington não fizeram o que não se exigiu deles, não teriam sido capazes de fazê-lo se o fosse exigido. Se quisessem unicamente informar-nos ser possível a alguém tornar-se grande general sem esses requisitos, assim também se dá com muitos outros mais de grande utilidade a grandes generais. Alexandre o Grande não poderia jamais ter ouvido das regras de Vauban (Mill refere-se aqui ao sistema de Sebastien Le Prestre de Vauban (1633-1707) para construir, defender e atacar fortalezas) nem teria podido Júlio César falar francês. Em seguida informa-nos que "devoradores de livros", termo que parece se considere aplicável a quem quer que tenha a menor parcela de conhecimento livresco, não será perito em exercícios físicos nem terá hábitos de cavalheiro. Esta maneira de observar é muito comum entre os que são estúpidos por condição; mas seja o que for que os estúpidos pensem, não gozam do monopólio seja dos exercícios físicos seja do cavalheirismo. Quando estes se tornarem necessários, que se procurem e separadamente se consigam, sem a exclusão das aptidões intelectuais, mas em adição a estas. Entrementes, estou informado com segurança que na Academia Militar de Woolwich, os cadetes por concurso se mostram tão superiores aos admitidos pelo antigo sistema de indicação nestes particulares como em todos os outros; adquirem até a instrução militar mais rapidamente, como de fato poder-se-ia esperar, porque o inteligente aprende tudo mais depressa do que o estúpido; e em comportamento geral contrastam tão favoravelmente com os predecessores que as autoridades das instituições estão impacientes para que chegue o dia em que os últimos restos das turmas anteriores desapareçam da escola. Se assim for e fácil será verificar se é ou não de esperar que em breve ouçamos dizer pela última vez que a ignorância é melhor título do que o conhecimento para a profissão militar e a fortiori para todas as outras mais; ou que qualquer boa qualidade, por menos aparentemente que dependa de educação liberal, é suscetível de promover-se passando-se sem ela. Embora a primeira admissão ao emprego com o governo se decida por concurso, em muitos casos seria impossível que a promoção subsequente assim também se resolvesse; e parece conveniente que assim se fizesse, como se faz hoje usualmente, em sistema misto de antiguidade e seleção. Aqueles cujos deveres fossem de caráter rotineiro seriam promovidos por antiguidade até o cargo mais elevado a que o desempenho de tais funções desse direito, enquanto aqueles a quem fossem confiadas missões de interesse particular, exigindo aptidões especiais, seriam selecionados dentre todos a critério do chefe do departamento. E este fará em geral a escolha honestamente se as nomeações originárias se realizarem por concurso franco; porque, com esse sistema, a repartição consistirá em geral de indivíduos para os quais seria estranho se não fosse a relação oficial. Se dentre eles houver algum pelo qual ele pessoalmente ou algum dos seus amigos se interessa, será tão-só acidentalmente, e somente quando a esta vantagem de relações pessoais vier juntar-se, tanto quanto o exame preliminar o tivesse verificado, pelo menos igualdade de merecimento real. E exceto quando houver motivo muito forte para fazer negócio com essas nomeações, haverá sempre razão bastante forte a favor da nomeação do mais capaz - aquele que proporcionar ao chefe o auxílio mais útil, lhe poupe incômodos, e ajude da melhor maneira a estabelecer a reputação pela boa administração do serviço público, que redunde, necessária e convenientemente, em crédito para o ministro, muito embora grande parte das qualidades que lhe atribuem sejam as do subordinado. XV DOS CORPOS REPRESENTATIVOS LOCAIS SOMENTE PEQUENA PORÇÃO das atividades de governo de um país podem as autoridades centrais realizar bem ou tentar realizar com segurança; e mesmo no próprio governo britânico, o menos centralizado da Europa, a porção legislativa pelo menos do corpo governamental ocupa-se demasiadamente de assuntos locais, empregando o poder supremo do Estado em cortar pequenos nós que poderiam ser desatados por outros meios melhores. O enorme volume de assuntos privados que tomam o tempo do Parlamento, bem como os pensamentos dos seus membros individualmente, desviando-lhes a atenção das ocupações inerentes ao grande conselho da nação, todos os pensadores e observadores consideram grande mal e, o que é pior, crescente. Não conviria ao plano limitado deste tratado discutir amplamente a grande questão, de maneira alguma peculiar ao governo representativo, dos limites próprios à ação governamental. Disse em outro trabalho, o que me parecia mais essencial relativamente aos princípios por meio dos quais se deve determinar a extensão de semelhante ação. Mas depois de suprimir dentre as funções exercidas pela maior parte dos governos europeus as que de modo algum devam incumbir às autoridades públicas, ainda resta conjunto tão grande e variado de obrigações que, se apenas por levar-se em conta o princípio de divisão do trabalho, torna-se indispensável dividi-los entre as autoridades centrais e locais, Não só são necessários funcionários executivos distintos para o exercício de deveres locais (porção essa de separação que existe sob todas as formas de governo), mas o controle popular desses funcionários somente se pode exercer vantajosamente por meio de órgão distinto. Devem incumbir ao povo da localidade e não ao Parlamento nacional a nomeação originária, a função de vigiá-los e fiscalizá-los, e o dever de fornecer ou o critério de suspender os suprimentos de fundos necessários às operações. Em alguns dos Estados da Nova Inglaterra o povo reunido ainda exerce diretamente essas funções; dizem que com resultados melhores do que seria de esperar; e essas comunidades altamente educadas sentem-se tão satisfeitas com esse modo primitivo de governo local que não desejam de modo algum trocá-lo pelo único sistema representativo que conhecem, pelo qual todas as minorias ficam privadas de representação. Exigem-se, contudo, circunstâncias tão peculiares para que esse sistema funcione toleravelmente na prática, que se tem de lançar mão em geral do plano de subparlamentos representativos para os negócios locais. Estes existem na Inglaterra, mas mui incompletamente, e com grande irregularidade e falta de sistema; em alguns outros países muito menos popularmente governados, a constituição que lhes dão é muito mais racional. Na Inglaterra sempre houve mais liberdade, mas organização pior, enquanto em outros países existe melhor organização, mas liberdade em menor escala. Necessário se torna, portanto, que, além da representação nacional existam representações provinciais e municipais; e as duas questões que ficam para resolver são como deverão constituir-se os corpos representativos locais, e qual a extensão de suas funções. Ao considerarmos estas questões, dois pontos exigem grau igual de atenção: como se poderá melhor realizar a própria atividade local de governo; e como a sua realização pode tornar-se mais proveitosa à manutenção do espírito público e ao desenvolvimento da inteligência do povo. Em capítulo anterior deste trabalho insisti em linguagem forte - dificilmente qualquer linguagem é bastante forte para exprimir a força de minha convicção - sobre a importância da porção do funcionamento das instituições livres a que se pode chamar de educação pública dos cidadãos. Acontece que as instituições administrativas locais formam o principal instrumento dessa operação. Exceto pelo papel que lhes caiba representar como jurados na subministração da justiça, a massa da população dispõe de muito poucas oportunidades para partilhar pessoalmente da conduta dos negócios comuns da comunidade. Ler jornais e escrever para eles, reuniões públicas e solicitações de diferentes espécies dirigidas às autoridades políticas formam toda a extensão da participação dos cidadãos, como tais, na política geral durante o intervalo entre uma e outra eleição para o Parlamento. Embora seja impossível exagerar a importância destas diversas liberdades, não só como garantias de liberdade, mas como meio de cultura geral, a prática que proporcionam é mais de pensar do que de agir, e em pensar sem as responsabilidades da ação; o que para a maior parte das pessoas importa em pouco mais do que receber passivamente os pensamentos de alguma outra. Mas no caso de corpos representativos locais, além da função de eleger, muitos cidadãos têm, por sua vez, a oportunidade de serem eleitos, e muitos, seja por seleção, seja mediante rotação, desempenham algum dos numerosos cargos de funcionários locais. Nessa posição têm de agir em prol dos interesses públicos, bem como falar e pensar, e pensar não se pode fazer por procuração. Deve juntar-se que essas funções locais, não sendo procuradas em geral por pessoas de posição elevada, produzem a importante educação política que por esse meio se transmite às classes inferiores da sociedade. Sendo assim a disciplina intelectual o aspecto mais importante nos interesses locais do que nos assuntos gerais do Estado, embora não existam interesses tão importantes na dependência da qualidade da administração, pode atribuir-se maior valor à consideração anterior, e a última admite muito mais frequentemente ceder-lhe o lugar do que em assuntos de legislação geral e da conduta de assuntos imperiais. A constituição apropriada dos corpos representativos locais não apresenta grande dificuldade. Os princípios aplicáveis não diferem a qualquer respeito dos que se aplicam à representação nacional. Existe idêntica obrigação, como no caso de função mais importante, no sentido de tornar representativo o corpo; e prevalecem os mesmos motivos que naquele caso, com maior força, contudo, para que se lhes atribua base democrática mais ampla: sendo menores os perigos, e as vantagens, quanto à educação e cultura populares, ainda maiores a certos respeitos. Como o dever principal dos corpos representativos locais consiste no lançamento de impostos e aplicação da receita, o direito de votar deve caber a todos quantos contribuem para a receita local, com exclusão dos que não o fazem. Suponho que não exista qualquer imposto indireto, qualquer taxa de "octroi" ou, se os houver, sejam simplesmente suplementares; aqueles sobre os quais recair já sendo tributados diretamente. Terá de prover-se à representação das minorias da mesma sorte que no Parlamento nacional, existindo os mesmos motivos a favor da pluralidade de votos. Somente não se encontra objeção tão decisiva, tanto no corpo inferior como no superior, a fazer-se com que o voto plural dependa (como em algumas eleições locais mesmo deste país) simplesmente do critério do dinheiro; porque a distribuição honesta e moderada de dinheiro forma parte tão maior da função do corpo representativo local do que do nacional, que há justiça, bem como mais habilidade política, em permitir maior influência proporcional aos que têm maior interesse monetário em jogo. Na instituição local representativa mais recente dentre as do país, o Conselho dos Guardiães (Corpo eletivo que controla a execução da Lei dos Pobres, na Inglaterra e no País de Gales), os juízes de paz do distrito têm assento ex officio juntamente com os membros eleitos, em número limitado por lei a um terço do total. Na constituição peculiar da sociedade inglês a, não tenho dúvida quanto ao efeito benéfico deste dispositivo. Garante a presença, nesses corpos, de pessoas mais educadas do que fosse talvez praticável para os atrair por outros meios; e enquanto a limitação do número deles impede que adquiram superioridade por simples força numérica, na qualidade de representação virtual de outra classe, tendo por vezes interesses diversos dos demais, constituem um entrave aos interesses de classe dos agricultores ou dos pequenos negociantes, que formam a massa dos guardiães eleitos. Não é possível conceder a mesma recomendação à constituição dos únicos conselhos provinciais de que dispomos, os Tribunais trimestrais, que consistem somente de juízes de paz, dos quais, além dos deveres judiciais que lhes incumbem, dependem para execução algumas das partes mais importantes das atividades administrativas do país. A maneira da formação destes corpos é das mais anômalas, não sendo nem eleitos nem nomeados em qualquer sentido próprio da palavra, mas exercendo as suas importantes funções, como os senhores feudais a quem sucederam, virtualmente pelo direito dos seus acres de terras; a indicação, investida na Coroa (ou, para falar praticamente, em um deles, O Lorde Lugar-tenente) sendo utilizada somente como meio de excluir qualquer membro do corpo que se julgue poder desacreditá-lo, ou, vez por outra, o que for contrário à política dominante. A instituição é a mais aristocrática em princípio que exista atualmente na Inglaterra, muito mais do que a Casa dos Lordes, porque concede dinheiro público e dispõe de importantes interesses públicos, não em relação a uma assembleia popular, mas sozinha. A ele se agarram, com tenacidade proporcionada, as classes aristocráticas, mas, evidentemente, está em desacordo com todos os princípios que servem de base ao governo representativo. Para o Conselho do Condado não se encontra a mesma justificativa como para o Conselho de Guardiães, mesmo para a mistura de membros “ex officio” com membros eleitos; visto como as atividades de um condado, sendo objeto de interesse e atração em escala suficientemente grande para gentis-homens rurais, estes não experimentariam maior dificuldade em se elegerem para o Conselho do que em retornarem ao Parlamento como membros do condado. Quanto à circunscrição própria dos distritos eleitorais que escolhem os corpos representativos locais, o princípio que, quando aplicado como regra exclusiva e inflexível à representação parlamentar, é impróprio, isto é, comunidade de interesses locais, é neste caso o único aplicável e justo. Possuir representação local visa a permitir aos que têm interesses comuns, que não partilham com a massa dos seus concidadãos, geri-los entre si; e contraria-se esse objetivo se a distribuição de representação local segue qualquer outra regra que não o agrupamento desses interesses conjugados. Há interesses locais peculiares a cada cidade, seja grande ou pequena, e comuns a todos os seus habitantes; cada cidade, portanto, sem distinção de tamanho, deve possuir um conselho municipal. Igualmente evidente que cada cidade só deva ter um conselho. Os diferentes bairros da mesma cidade raramente ou nunca apresentam quaisquer diversidades de importância de interesse local; todos exigem que se tomem as mesmas medidas, realizando-se as mesmas despesas; e com exceção das igrejas, que é preferível entregar à simples gestão paroquial, pode fazer-se com que os mesmos arranjos sirvam para todas, Calçamento, iluminação, abastecimento de água, drenagem, regulações do porto e do mercado, não podem ser diferentes para os diversos bairros sem grande desperdício e inconveniente. A subdivisão de Londres em seis ou sete distritos independentes, cada um dispondo de arranjos distintos para a atividade local (alguns dos quais baldos de unidade administrativa mesmo dentro dos seus limites), impede a possibilidade de cooperação consecutiva e bem regulada para objetivos comuns, impossibilita qualquer princípio uniforme para o desempenho de deveres locais, obriga o governo geral a assumir a responsabilidade daquilo que melhor ficaria se deixado às autoridades locais se alguma houvesse cuja autoridade se estendesse à metrópole inteira e só serve para manter os fantásticos enfeites da união entre a moderna negociata de empregos e a antiquada peraltice - a Corporação da Cidade de Londres. Outro princípio igualmente importante consiste em que em cada circunscrição local deve existir somente um corpo eleito para todas as atividades locais, e não corpos diversos para as diferentes partes. A divisão do trabalho não significa retalhar qualquer atividade em pedacinhos diminutos; quer dizer união das operações suscetíveis de execução pelas mesmas pessoas, e separação daquelas que diferentes pessoas executem melhor. Os deveres executivos da localidade exigem de fato a divisão entre departamentos, por motivo idêntico aos do Estado; são de espécies diferentes, cada um exigindo conhecimento apropriado, e necessitando para execução perfeita a atenção concentrada de funcionário especialmente habilitado. Mas os motivos para subdivisão que se aplicam à execução não se aplicam ao controle. A função do corpo executivo não é executar o trabalho, mas verificar se foi convenientemente executado, e que não se deixou de fazer tudo quanto era necessário. O mesmo corpo superintendente é capaz de desempenhar-se dessa função para todos os departamentos, e por visão coletiva e compreensível muito melhor do que se minuciosa e microscópica. Seria tão absurdo nos negócios públicos como nos particulares se se destinasse um superintendente para cada trabalhador. O governo da Coroa consiste de muitos departamentos, havendo muitos ministros para dirigi-los, mas esses ministros não dispõem de um parlamento para cada um para que se desempenhem dos seus deveres. O parlamento local, como o nacional, tem por missão própria considerar o interesse da localidade como um todo, composto de partes que devem adaptar-se umas às outras, sendo atendidas na ordem e na proporção da importância que tiverem. Existe outro motivo de grande importância para reunir-se o controle de todas as atividades do governo de uma comunidade só num único corpo. A maior imperfeição das instituições populares locais e a causa principal do fracasso que tantas vezes as acompanha reside na capacidade inferior dos homens a quem cabe quase sempre as gerir. Parte da utilidade da instituição depende realmente do seu caráter muito heterogêneo; é principalmente esta circunstância que a torna escola de habilidade política e inteligência geral. Todavia uma escola supõe tanto a existência de professores como de alunos; a utilidade da instrução depende em grande parte da possibilidade de trazer os espíritos inferiores em contato com os superiores, contato esse que é inteiramente excepcional no curso ordinário da vida, e cuja falta contribui mais do que tudo para manter a generalidade dos homens em nível de ignorância satisfeita. Além disso, a escola é inútil, tornando-se escola do mal ao invés do bem, se por falta da fiscalização indispensável e da presença dentro dela de ordem mais elevada de caracteres permite-se à ação do corpo, como se dá muita vez, degenerar na procura inescrupulosa e estúpida do interesse próprio dos membros. Ora acontece que é quase impossível induzir pessoas de classe mais elevada, social ou intelectualmente, a tomarem parte na administração local em um canto aos pedaços, como membros de um Conselho de Calçamento ou de uma Comissão de Esgotos. A atividade inteira do governo local da própria cidade não constitui objetivo suficiente para induzir homens cujos gostos os inclinam e cujos conhecimentos os habilitam para os negócios nacionais para tornar-lhes a presença em algo mais do que disfarce para a negociação de cargos de pessoas inferiores sob a capa da responsabilidade que lhes cabe. Simples Conselho de Obras, embora compreenda a metrópole inteira, há-de compor-se, com toda a certeza, da mesma classe de pessoas como os membros dos conselhos paroquiais de Londres; nem é praticável, nem mesmo desejável, que tal seja a forma da maioria; mas é importante para todos os fins para os quais se indiquem corpos locais para servirem, seja na execução esclarecida e honesta de seus deveres especiais, seja na cultura da inteligência política da nação, que cada um deles contenha parte dos melhores espíritos da localidade, que assim entram em perpétuo contato, da natureza mais útil possível, com espíritos de nível mais baixo, deles recebendo o conhecimento local ou profissional que tenham a dar, e, por sua vez, a estes inspirando com uma parte das próprias ideias mais amplas e com os propósitos mais elevados e mais esclarecidos. Simples aldeia não tem direito a representação municipal. Por aldeia quero dizer lugar cujos habitantes não se distinguem acentuadamente pela ocupação ou pelas relações sociais dos distritos rurais circunvizinhos, e a cujas necessidades locais podem satisfazer os arranjos destinados ao território circundante. Esses lugares pequenos raramente possuem público suficiente que forneça conselho municipal tolerável; se contiverem qualquer talento ou conhecimento aplicável às funções públicas, estará todo concentrado em um único homem, que por isso se torna a figura dominante do lugar. É melhor que lugares dessa espécie se fundam em circunscrição mais ampla. Considerações geográficas determinarão naturalmente a representação local de distritos rurais; levando-se na devida conta as simpatias de sentimento que tanto contribuem para que os seres humanos ajam em concerto, e que, em parte, acompanham limites históricos, como os de condados e províncias, e, em parte, comunidade de interesses e ocupações, como em distritos agrícolas, marítimos, manufatureiros ou de exploração mineral. Espécies diferentes de negócio local exigirão áreas diferentes de representação. As Uniões de paróquias foram escolhidas como a base mais conveniente para os corpos representativos que superintendem o auxílio à indigência, enquanto que para a regulação conveniente de estradas de rodagem, prisões e policiamento será bastante extensão não maior do que a de condado. Nesses grandes distritos, em consequência, o princípio que manda tenha autoridade sobre todos os interesses locais comuns à localidade exige a modificação de outro - bem como em virtude da consideração concorrente da importância de conseguir-se para o desempenho dos deveres locais as mais elevadas aptidões. Por exemplo, se for necessário (como acredito) para a administração conveniente da Lei dos Pobres que a área de tributação não seja mais extensa do que a maior parte das Uniões atuais, princípio que exige um Conselho de Guardiães para cada União - como é provável conseguir-se classe muito mais elevada de pessoas para um Conselho de Condado do que as que compõem um Conselho médio de Guardiães, tornar-se-á, por esse motivo, conveniente reservar ao primeiro algumas categorias mais elevadas de funções locais, que de outro modo cada União em separado seria capaz de gerir convenientemente. Além do Conselho controlador ou subparlamento local, a atividade local de governo possui o departamento executivo. A esse respeito, surgem as mesmas questões concernentes às autoridades executivas do Estado; e, na maior parte, é possível respondê-las por igual maneira. Os princípios aplicáveis a todos os encargos públicos são, em substância, os mesmos. Em primeiro lugar, cada funcionário executivo deve ser único, e unicamente responsável pela totalidade da incumbência de que tiver de se encarregar. Em segundo lugar, deve ser nomeado e não eleito. Seria ridículo que se nomeasse, mediante sufrágio popular, um agrimensor, um funcionário sanitário ou mesmo um coletor de tributos. A preferência popular depende geralmente de interesse junto a alguns líderes locais, que, como não se supõe sejam capazes de fazer a nomeação, por ela não são responsáveis, ou de apelo à simpatia, tendo por motivo ser pai de doze crianças e ter exercido o cargo de cobrador de tributos durante trinta anos. Se em casos desta natureza a eleição pela população é farsa, a nomeação pelo corpo representativo local apresenta-se um pouco menos criticável. Tais corpos revelam a tendência de se tornarem associações destinadas à execução dos negócios particulares dos vários membros. Devem realizar-se as nomeações sob a responsabilidade individual do presidente do corpo, chame-se Prefeito, Presidente do Tribunal Trimestral ou qualquer outro título. Ocupará na localidade posição análoga à do primeiro-ministro do Estado, e sob sistema bem organizado de nomeações e de fiscalização dos funcionários locais seria esta a parte mais importante dos seus deveres, sendo ele nomeado pelo Conselho dentre os seus membros, sujeito a reeleição anual ou afastamento pelo voto da assembleia. Da constituição das assembleias locais, passo agora à questão igualmente importante e mais difícil das atribuições que lhes cabem. Esta questão divide-se em duas partes: quais os deveres que lhes devem incumbir e se devem ter plena autoridade dentro da esfera desses deveres ou se devem ser responsáveis perante alguma, e qual interferência por parte do governo central. Para começar, é evidente que toda atividade puramente local - tudo quanto diz respeito tão-só a uma localidade - deve caber às autoridades locais. O calçamento, a iluminação, a limpeza das ruas da cidade e, em circunstâncias comuns os serviços de esgoto das casas, só apresentam importância para os seus habitantes. A nação em geral interessa-se por esses assuntos pela mesma forma por que se interessa pelo bem-estar particular de todos os cidadãos individualmente. Todavia, entre as incumbências classificadas de locais ou desempenhadas por funcionários locais, existem muitas que com igual justeza poderiam chamar-se de nacionais, formando parte, aos cuidados da localidade, de certo ramo da administração pública em cuja eficiência a nação inteira está igualmente interessada: as prisões, por exemplo, que estão, neste país, na maior parte, sob gestão dos condados; a polícia local; a subministração da justiça, que em grande parte, especialmente em cidades autônomas, cabe a funcionários eleitos pela localidade e pagos com fundos locais. Não se poderá dizer que qualquer destas seja assunto de importância local, em contraposição aos assuntos nacionais. Não seria questão pessoalmente indiferente para o resto do país se qualquer delas se convertesse em coio de bandidos ou foco de desmoralização, devido à má administração da própria polícia; ou se, devido à regulamentação defeituosa das prisões, se dobrasse em intensidade ou se rebaixasse praticamente à impunidade o castigo que os tribunais de justiça pretendessem infligir aos criminosos nelas encerrados (que poderiam ter vindo de qualquer outro distrito ou nele cometido qualquer crime). Além disso, são idênticas, por toda parte, as circunstâncias que constituem a boa administração nesses assuntos; não há motivo para que a polícia, as prisões, ou a subministração da justiça sejam diferentemente geridas em qualquer parte do reino; enquanto se corre grande risco de, em assuntos de tanta monta, e para os quais os espíritos mais instruídos disponíveis no Estado não são mais do que adequados, vir a média mais baixa de aptidões, com a qual somente se pode contar para os serviços locais, a cometer erros de tal magnitude que se convertam em sério labéu para a administração geral do país. As primeiras necessidades da sociedade e os objetivos primordiais do governo são a garantia da pessoa e da propriedade e a igual justiça entre os indivíduos; se é possível abandonar tais objetivos a qualquer responsabilidade abaixo da mais elevada, nada há senão a guerra e os tratados, que exija de qualquer maneira governo geral. Quaisquer que sejam os melhores arranjos para assegurar estes objetivos primários devem tornar-se universalmente obrigatórios e, para conseguir-se que sejam cumpridos, necessário se torna colocá-los sob superintendência central. É muitas vezes útil e com as instituições do nosso país até mesmo necessário, pela dificuldade de encontrar nas localidades funcionários que representem o governo geral, que o cumprimento de deveres impostos pela autoridade central se confie a funcionários nomeados para objetivos locais pela respectiva localidade. Mas a experiência traz diariamente às vistas do público a convicção da necessidade de serem, pelo menos, nomeados inspetores pelo governo geral para verificar se os funcionários locais desempenham a contento as suas obrigações. Se as prisões estiverem sob administração local, o governo central nomeia inspetores para as prisões a fim de zelarem pela observância das regras instituídas pelo Parlamento, e sugerir outras se o estado das prisões lhes revelar a necessidade, como há inspetores de fábricas, e inspetores de escolas, que se destinam a acompanhar a observância dos atos do Parlamento relativos às primeiras e o cumprimento das condições segundo as quais o Estado garante auxílio às últimas. Mas se a administração da justiça, da polícia e das prisões constitui interesse tão universal, e se revela questão de ciência geral independente de peculiaridades locais, para que seja e deva ser uniformemente regulada em todo o território do país, fazendo-se cumprir a regulamentação por meio de funcionários mais experimentados e mais hábeis do que as autoridades puramente locais, - existem igualmente outros assuntos, como a administração da Lei dos Pobres, regulamentos sanitários e outros, que, embora interessando realmente o país inteiro, não são suscetíveis, para ficarem em harmonia com os próprios objetivos da administração local, de gestão senão pelas localidades. Com relação a tais deveres, surge a questão de saber até onde se deve confiar às autoridades locais poderes discricionários, livres de qualquer superintendência ou controle do Estado. A fim de decidir tal questão é essencial que se considere qual a posição comparativa das autoridades central e local quanto à capacidade para a obra e garantia contra negligência ou abuso. Em primeiro lugar, os corpos representativos locais e seus funcionários com toda certeza serão de grau muito mais baixo de inteligência e conhecimento do que o Parlamento e o executivo nacionais. Em segundo lugar, além de inferiores em aptidões, vigia-os opinião pública inferior, à qual igualmente têm de prestar contas. O público sob cujos olhos agem e que os critica é não só mais limitado em extensão e em geral muito menos esclarecido do que o que cerca e admoesta as autoridades mais elevadas da capital, enquanto a comparativa pequenez dos interesses em causa faz com que mesmo esse público inferior dirija os pensamentos para o assunto menos atentamente, e com menos solicitude. A imprensa e a discussão pública exercem muito menor interferência e a que exercem pode afastar-se com muito maior impunidade no procedimento das autoridades locais do que no das autoridades nacionais. Até este ponto as vantagens parecem ficarem inteiramente do lado da gestão por parte do governo central. Mas quando se considera o assunto mais de perto, verifica-se que esses motivos de preferência são contrabalançados por outros de importância inteiramente equivalente. Se as autoridades e o público locais são inferiores aos centrais no conhecimento dos princípios da administração, têm em compensação a vantagem de se interessarem muito mais diretamente pelo resultado. Os vizinhos de um rendeiro ou o dono das terras poderão ser muito mais hábeis do que ele, tendo mesmo interesse indireto na prosperidade deste, mas apesar de tudo os seus interesses ficarão mais bem servidos sob a sua guarda do que sob a daqueles. Além disso devemos nos lembrar que, mesmo que se suponha administre o governo central por meio dos próprios funcionários, estes não agem no centro, mas na localidade; e por mais que o povo local seja inferior ao do centro, é somente o primeiro que tem qualquer oportunidade de observá-los, e somente a opinião local lhes atuará diretamente sobre a conduta ou chamará a atenção do governo para os pontos em que seja preciso corrigi-los. Somente em casos extremos traz-se a opinião geral do país à consideração dos detalhes da administração local, e ainda mais raramente se dispõe dos meios de resolver sobre eles com qualquer apreciação justa da questão. Ora, a opinião local atua necessariamente com muito mais força sobre administradores puramente locais. Estes, no curso natural dos acontecimentos, são residentes permanentes, não esperando serem retirados do lugar quando deixam de exercer autoridade nele; e a própria autoridade deles depende, por hipótese, da vontade do público local. Não preciso insistir nas deficiências da autoridade central quanto ao conhecimento detalhado das pessoas e dos assuntos locais, e sobre o demasiado açambarcamento do tempo disponível e dos pensamentos por outros interesses, de sorte a permitir que adquira a quantidade e a qualidade de conhecimento local necessário até mesmo para resolver relativamente a queixas e ao desempenho de obrigações por parte de tão grande número de agentes locais. Nos detalhes da gestão, portanto, os corpos locais levarão geralmente vantagem; mas na compreensão dos princípios mesmo de gestão puramente local, a superioridade do governo central, quando convenientemente constituído, deve ser prodigiosa, não só em razão da superioridade pessoal provavelmente grande, dos indivíduos que o compõem, e pela multidão de pensadores e escritores que se esforçam em todas as ocasiões por apresentar-lhe ideias úteis à consideração, mas também porque o conhecimento e a experiência de qualquer autoridade local é unicamente local, limitada à própria parte do país e suas maneiras de gestão dos negócios públicos, enquanto o governo central dispõe de meios de saber tudo quanto se queira como resultado da experiência em conjunto do reino inteiro, juntando-se ainda a tudo isso o acesso fácil ao que se faz no estrangeiro. Não é difícil chegar à conclusão prática a que conduzem todas essas premissas. Deve ser suprema sobre os princípios a autoridade que estiver mais familiarizada com eles, enquanto que à mais competente nos detalhes serão estes confiados. O papel principal da autoridade central deverá ser dar instrução, e da autoridade local aplicá-la. Pode-se localizar o poder, mas o conhecimento para tornar-se mais útil deve ser centralizado; em algum lugar deve encontrar-se um foco, no qual se reúnam todos os raios esparsos, a fim de que as luzes coloridas e intermitentes que se encontram alhures lá encontrem o necessário para as completar e purificar. A cada ramo da administração local que afete os interesses gerais deverá corresponder um órgão central, ou ministro ou algum funcionário especialmente nomeado sob as ordens dele; mesmo que esse funcionário nada mais faça senão reunir informações de todos os quadrantes, trazendo a experiência adquirida em um local a outro onde é necessária. Todavia ainda há algo mais que a autoridade central deve fazer. Tem de manter constante comunicação com as localidades; informando-se pela experiência delas e em seguida pela que lhe é própria; aconselhando livremente quando solicitada, oferecendo conselhos quando pareçam necessários; obrigando à publicidade e ao registro dos processos, e exigindo obediência a qualquer lei geral que o poder legislativo tenha instituído com relação à administração local. Poucos serão os que neguem a necessidade de se instituírem semelhantes leis. Pode permitir-se às localidades administrarem mal os próprios interesses, mas não que prejudiquem os interesses de terceiros, nem violem os princípios de justiça entre uma pessoa e outra, cuja rígida observância seja dever do Estado manter. Se a maioria local tentar oprimir a minoria, ou uma classe a outra, o Estado está na obrigação de intervir. Por exemplo, todos os tribunais locais devem ser exclusivamente votados pelo corpo representativo local; mas esse corpo, embora eleito somente pelos contribuintes, é capaz de elevar a receita por meio de impostos de tal maneira ou lançá-los de tal maneira que parte injusta do ônus caiba aos pobres, aos ricos ou a certa classe particular da população; é dever, portanto, do poder legislativo, enquanto deixa o simples volume dos impostos locais à discrição da assembleia local, estabelecer autorizada mente a maneira de lançar impostos e as regras da cobrança, únicas cujo uso seja permitido às localidades. Ainda mais, a moral idade e a atividade de toda a classe trabalhadora depende, na ministração da caridade pública, em extensão muito séria, do respeito a certos princípios fixos na concessão de auxílios. Embora caiba essencialmente aos funcionários locais determinar quem, de acordo com tais princípios, tem direito aos benefícios, o parlamento nacional é a autoridade competente para instituir os próprios princípios; e desprezaria parte mui importante dos seus deveres se não estabelecesse, em questão de interesse nacional de tão grande monta, regras imperativas, providenciando, eficazmente para que ninguém as deixasse de cumprir. Seria inútil considerar aqui a questão de detalhe relativa ao poder de interferência real junto aos administradores locais que seria necessário conservar em mão. Naturalmente as próprias leis definirão as penalidades e fixarão a maneira de se fazerem cumprir. Talvez seja necessário, para fazer frente a casos extremos, ampliar-se o poder da autoridade central à dissolução do conselho representativo local ou ao afastamento do executivo local, não podendo, porém, fazer novas nomeações ou suspender as instituições locais. Se o Parlamento não interferiu, qualquer ramo do executivo poderá intervir com autoridade; mas as funções do executivo, para fazer cumprir as leis, denunciar ao Parlamento ou aos eleitorados locais conduta que julgue condenável, são do maior valor possível. Alguns talvez pensem que, por mais que a autoridade central exceda a local em conhecimento dos princípios administrativos, o grande objetivo sobre o qual tanto insistimos - a educação social e política dos cidadãos, exige que se lhes entregue a gestão desses assuntos às próprias luzes, muito embora imperfeitas. Poder-se-á responder que a educação dos cidadãos não é o único ponto a considerar-se; o governo e a administração não existem tão-só para esse fim, apesar da grande importância de que se reveste. Todavia a objeção revela compreensão mui imperfeita da função das instituições populares como instrumento de educação política. Seria mui pobre a educação que associasse ignorância a ignorância e as deixasse, se se preocupassem com o conhecimento, procurar às apalpadelas encontrar o caminho para ele sem auxílio, e passar sem ele se assim não fizessem. O de que se precisa é de meios para fazer com que a ignorância se aperceba de si, e se torne capaz de lucrar com o conhecimento, acostumando os espíritos que hoje só conhecem a rotina, a agirem por meio de princípios e lhes reconhecerem o valor, ensinando-lhes a comparar várias maneiras de agir e a aprender pelo uso da razão a distinguir a melhor. Quando desejamos ter boa escola, não começamos por eliminar o mestre. A antiga observação "tal mestre tal a escola" é tão verdadeira relativamente à instrução indireta de adultos pelas atividades públicas como o ensino da mocidade em academias e colégios. Governo que tente tudo fazer compara-o mui oportunamente o Sr. Charles de Rémusat ao mestre que faz os deveres para os discípulos; poderá tornar-se muito estimado entre os alunos, mas pouco lhes ensinará. Por outro lado, governo que não faz ele próprio algo que qualquer um possa executar, nem mostra a qualquer um como fazer algo, assemelha-se à escola em que não há professor, mas somente alunos instrutores que não receberam nunca instrução. XVI DA NACIONALIDADE EM CORRELAÇÃO AO GOVERNO REPRESENTATIVO PODE DIZER-SE QUE CERTA PORÇÃO de homens forma uma nacionalidade se estão entre si unidos por simpatias comuns que não existem entre eles e outro grupo qualquer - o que faz com que entre si cooperem de boa vontade mais do que com outros, desejando ficar sob o mesmo governo, sendo este governo deles próprios ou certa parte deles, exclusivamente. Tal sentimento de nacionalidade deve a origem a causas diversas. Por vezes resulta da identidade de raça e descendência. Muito contribuem para ela a comunidade de língua e a de religião. Uma das causas consiste nos limites geográficos. Mas a mais forte de todas é a identidade de antecedentes políticos: a posse de história nacional, e consequente comunidade de recordações; orgulho e humilhação coletivos, prazer e sofrimento, vinculados aos mesmos acidentes do passado. Nenhuma dessas circunstâncias, contudo, é indispensável ou necessariamente suficiente de per si. A Suíça possui forte sentimento de nacionalidade, embora os cantões sejam de raças diferentes, línguas diferentes, e religiões diferentes. A Sicília através da história tem-se sentido inteiramente distinta, em nacionalidade, de Nápoles, apesar da identidade de religião, quase identidade de língua e considerável soma de antecedentes históricos comuns. As províncias flamenga e valã da Bélgica, não obstante a diversidade de raça e de língua, possuem sentimento muito mais forte de nacionalidade comum do que a primeira para com a Holanda e a segunda para com a França. Entretanto, via de regra, o sentimento nacional se enfraquece em proporção à deficiência de qualquer das causas que contribuem para ele. A identidade de língua, literatura e, até certo ponto, de raça e recordações conservou o sentimento de nacionalidade com força considerável entre as diversas porções do nome germânico, embora em tempo algum tivessem estado realmente reunidas sob o mesmo governo; mas o sentimento não chegou nunca a fazer com que os diferentes Estados desejassem renunciar à própria autonomia. Entre os italianos, a identidade, longe de completa, de língua e de literatura, combinada à posição geográfica que os separa por meio de linha distinta de outros países, e, talvez mais do que tudo, a posse de nome comum, que faz com que todos se vangloriem das realizações passadas nas artes, nas armas, na política, no primado religioso, na ciência e na literatura, entre todos quantos partilham da mesma designação, fez surgir certa soma de sentimento nacional na população que, embora ainda imperfeito, foi suficiente para produzir os grandes acontecimentos que ora presenciamos (Alusão à luta italiana pela unificação), apesar de grande mistura de raças, e embora nunca tivessem estado, seja na história antiga, seja na moderna, sob um único governo, exceto enquanto o que tinham se ampliava ou se estendia sobre a maior parte do mundo então conhecido (O Império Romano). Quando existe sentimento de nacionalidade com qualquer intensidade, verifica-se um caso prima facie para unir todos os membros da nacionalidade sob o mesmo governo, à parte para eles. Tal afirmativa importa em dizer que a questão de governo deve decidir-se pelos governados. Dificilmente pode saber-se o que qualquer divisão da raça humana seria livre de fazer se não determinasse com qual dos vários corpos coletivos de seres humanos preferisse associar-se. Todavia, quando um povo está maduro para instituições livres, depara-se com uma consideração ainda mais essencial. As instituições livres são quase impossíveis em um país formado de diferentes nacionalidades. Em um povo que não tenha sentimento de solidariedade, especialmente se lê e fala línguas diferentes, não pode existir opinião pública unida, necessária ao funcionamento do governo representativo. As influências que formam opiniões e decidem dos atos políticos são diferentes nas diversas seções do país. Grupos inteiramente diferentes de líderes gozam da confiança de uma parte ou de outra do país. Não chegam até elas os mesmos livros, jornais, panfletos ou discursos. Uma seção não tem conhecimento das opiniões ou das instigações que estão circulando na outra. Os mesmos incidentes, os mesmos atos, o mesmo sistema de governo as afeta por maneira diferente; e cada uma tem mais receio de malefícios por parte do árbitro comum, o Estado, do que por parte de outras nacionalidades. As antipatias mútuas são em geral muito mais fortes do que o ressentimento contra o governo. Se qualquer um se sente oprimido pela atitude do governante comum, logo outro resolve apoiá-la. Mesmo se todos forem oprimidos, ninguém sente que pode confiar nos outros para resistência conjunta; ninguém tem força suficiente para resistir-lhe sozinho, e cada um imagina com certa razão consultar melhor a vantagem própria procurando o favor do governo contra os demais. Acima de tudo, a principal e única segurança eficaz no último extremo contra o despotismo do governo falta neste caso: a simpatia do exército para com o povo. Os militares formam à parte de qualquer comunidade em que, pela própria natureza das circunstâncias, a distinção entre os concidadãos e os estrangeiros se mostra mais profunda e mais forte. Para o resto do povo os estrangeiros são simplesmente estrangeiros; para o soldado são homens contra os quais podem convocá-lo, no prazo de uma semana, para combater por vida ou morte. Para ele a diferença é entre amigos e inimigos - podemos quase dizer entre companheiros e outra espécie de animais; porque, quanto a inimigos, a lei única é da força e a única atenuação é idêntica à da situação em relação a outra espécie de animais - a de simples humanidade. Soldados face a cujos sentimentos metade ou três quartos dos súditos do mesmo governo são estrangeiros, não terão mais escrúpulos em esmagá-los, nem mais desejo de perguntar a razão para isso, do que teriam ao fazerem o mesmo contra inimigos declarados. Exército composto de várias nacionalidades só tem por patriotismo a dedicação ao estandarte. Tais exércitos têm sido os carrascos da liberdade por toda a duração da história moderna. O único vínculo que os conserva unidos são os oficiais e o governo a quem servem; e a única ideia, se é que têm alguma, de dever público é obediência a ordens. Governo assim apoiado - conservando regimentos húngaros na Itália e italianos na Hungria - está em condições de continuar a governar por muito tempo com a mão de ferro de conquistadores estrangeiros em um e outro país. Se disserem que distinção tão amplamente assinalada entre o que é devido aos concidadãos e o que é devido simplesmente à criatura humana, é mais digna de selvagens do que de gente civilizada, e que contra ela se deve lutar com a maior energia, ninguém sustentará tal opinião com mais energia do que eu. Mas este objetivo, um dos mais dignos a que se possa dirigir o esforço humano, não se poderá nunca promover, no estado atual de civilização, mantendo-se diferentes nacionalidades de força quase equivalente sob o mesmo governo. Em estado bárbaro da sociedade a questão se apresenta, às vezes, por maneira diferente. Neste caso, o governo interessa-se por abrandar as antipatias entre as raças para que seja possível preservar a paz a fim de governá-lo mais facilmente. Todavia, quando existem instituições livres ou o desejo delas, em qualquer dos povos artificialmente unidos, o interesse do governo reside em direção exatamente oposta. Interessa-se então em manter e envenenar-lhes as antipatias para impedir que se unam, permitindo-lhe empregar alguns dentre eles como instrumentos para a escravização dos demais. A corte austríaca durante uma geração inteira lançou mão dessas táticas como meio de governo, com que fatal sucesso, ao tempo da insurreição vienense e da luta húngara, o mundo sabe bastante bem (A insurreição de Viena em 1848 inspirou-se nas notícias da revolução de Paris, que também induziu o povo húngaro, sob a liderança de Lajos Kossuth, a se revoltar contra o domínio dos Hapsburgos, proclamando uma república independente. Os Hapsburgos dominaram, contudo, o movimento, com o auxílio de tropas russas, um ano mais tarde). Felizmente se notam presentemente indícios de que o melhoramento está por demais adiantado para permitir seja semelhante política bem sucedida por mais tempo. Pelas razões precedentes, em geral é condição necessária das instituições livres que os limites dos governos coincidam essencialmente com os das nacionalidades. Mas diversas considerações estão sujeitas a entrar em conflito na prática com este princípio geral. Em primeiro lugar, impedem-lhe muitas vezes a aplicação obstáculos geográficos. Existem partes mesmo da Europa em que diferentes nacionalidades se encontram localmente tão misturadas que não se torna praticável para elas ficar sob governos distintos. A população da Hungria compõe-se de Magiares, Eslovacos, Croatas, Sérvios, Romenos e em alguns distritos alemães, tão misturados entre si que se torna impossível qualquer separação local; e não há outra saída para eles senão fazer virtude da necessidade e se conformarem em viver juntos sob direitos e leis iguais. A comunidade de servidão, que somente data da destruição da independência da Hungria, de 1849, parece amadurecê-los e dispô-los para semelhante união em igualdade de condições. A colônia alemã do Leste da Prússia está separada da Alemanha por parte da antiga Polônia e, sendo por demais fraca para manter-se independente, deve, se se tiver de conservar a continuidade geográfica, ficar ou sob governo não germânico ou o território polonês de permeio terá de ficar sob governo alemão. Outra região considerável na qual o elemento dominante é alemão, as províncias de Kurland, Estônia e Livônia, está condenada pela situação geográfica a constituir parte do Estado eslavônico. Na própria Alemanha Oriental existe grande população eslavônica: a Boêmia é principalmente eslavônica, a Silésia e outros distritos somente em parte. O país mais unido da Europa, a França, está longe de ser homogêneo; independentemente dos fragmentos de nacionalidades estrangeiras nas extremidades mais afastadas, consiste, conforme o provam a língua e a história, de duas porções, uma ocupada quase exclusivamente por população galo-romana, enquanto na outra francos, burgúndios e outras raças teutônicas formam ingrediente considerável. Quando se tiver feito concessão conveniente às exigências geográficas, outra consideração mais puramente moral e social se oferece. A experiência prova que é possível a uma nacionalidade fundir-se a outra sendo por esta absorvida; e quando era anteriormente porção inferior e mais atrasada da raça humana, a absorção lhe traz grande vantagem. Não há quem seja capaz de supor que não é mais benéfico para um Bretão, ou Basco da Navarra Francesa, entrar em contato com a corrente de ideias e sentimentos de povo altamente civilizado e culto - ser membro da nacionalidade francesa, admitido em termos iguais a todos os privilégios da cidadania francesa, partilhando das vantagens da proteção francesa e da dignidade e prestígio do poderio francês - do que ficar emburrado sobre os próprios rochedos, relíquia meio selvagem do passado, movendo na própria orbitazinha mental, sem participação ou interesse no movimento geral do mundo. A mesma observação aplica-se aos galeses ou aos habitantes da Alta Escócia como membros do Império Britânico. Tudo quanto tende realmente à mistura das nacionalidades e à fusão dos seus atributos e peculiaridades em união comum importa em benefício para a raça humana. Não por extinguir tipos, dos quais, nestes casos, certamente restam exemplos suficientes, mas por abrandar as formas extremas e preencher os intervalos que as separam. O povo unido, como o cruzamento de animais (mas em grau ainda mais elevado, porque as influências em ação são tanto morais como físicas) herda as aptidões e excelências especiais de todos os progenitores, protegido pela mistura de exageros nos vícios vizinhos. Todavia, para que a mistura se torne possível, é necessário que existam condições peculiares. São várias as combinações de circunstâncias que ocorrem, afetando os resultados. As nacionalidades que se reúnam sob o mesmo governo podem ser iguais em número e força, ou muito desiguais. Se desiguais a menos numerosa pode ser ou de civilização superior ou inferior. Supondo-a superior, pode, seja devido a essa superioridade, adquirir ascendência sobre a outra ou ser dominada por força bruta e reduzida à submissão. Esta última hipótese importa em malefício absoluto à raça humana, que a humanidade civilizada como um só homem devia erguer-se em armas para impedir. A absorção da Grécia pela Macedônia foi uma das maiores desgraças que podiam ter acontecido ao mundo; o de qualquer dos principais países da Europa pela Rússia seria semelhante. Se a nacionalidade menor, suposta mais adiantada em melhoramentos, for capaz de dominar a maior, como os macedônios reforçados pelos gregos fizeram com a Ásia, e os ingleses com a Índia, muitas vezes a civilização sai ganhando; mas neste caso conquistadores e conquistados não podem viver juntos sob as mesmas instituições livres. A absorção dos conquistadores pelo povo menos adiantado seria um mal; terão de ser governados na situação de submetidos, e a situação geral será benéfica ou maléfica conforme o povo subjugado tiver ou não alcançado o estado em que constituirá agravo não se reger por governo livre e conforme os conquistadores façam ou não uso da superioridade de maneira calculada a ajustar os conquistados a estádio mais elevado de melhoramento. Trataremos em particular deste assunto em capítulo ulterior. Quando a nacionalidade que consegue dominar a outra é não só a mais numerosa, mas também a mais adiantada, e especialmente se a primeira é pequena e não alimenta esperanças de recuperar a independência, nesse caso, se for governada com qualquer justiça tolerável e se os membros da nacionalidade mais poderosa não se tornarem odiosos porque se invistam de privilégios exclusivos, a menor nacionalidade conforma-se aos poucos com a sua posição e afinal funde-se com a maior. Atualmente não se encontra qualquer baixo bretão ou mesmo qualquer alsaciano que alimente o menor desejo de separar-se da França. Se todos os irlandeses ainda não chegaram à mesma atitude para com a Inglaterra é em parte porque são em número bastante grande para se sentirem capazes de constituir nacionalidade respeitável; mas principalmente porque, até muito recentemente, tinham sido governados tão atrozmente que todos os seus melhores sentimentos se combinaram com os piores para fazerem surgir amargo ressentimento contra o domínio saxão. Esta desgraça para a Inglaterra e calamidade para todo o império, cessou completamente, pode dizer-se com toda verdade, durante quase uma geração. Atualmente nenhum irlandês é menos livre do que qualquer anglo-saxão, nem partilha em menor grau de qualquer benefício seja para o país, seja para os seus bens particulares do que se tivesse nascido em qualquer outra parte dos domínios britânicos. O único agravo real restante da Irlanda, o da Igreja oficial, é aquele que o povo da ilha maior, pela metade ou quase metade, tem com ela em comum. Quase nada existe hoje, exceto a memória do passado e da diferença em relação à religião predominante, que afaste um de outro aos dois povos, talvez os mais capazes de dois quaisquer de se completarem um ao outro. A consciência de serem pelo menos tratados não só com justiça igual mas com igual consideração está fazendo tão rápido progresso na Irlanda que vai apagando qualquer sentimento capaz de torná-los insensíveis aos benefícios que o povo menos numeroso e menos rico deve necessariamente derivar da situação de igualdade ao invés da de estrangeiro para com aqueles que não só são os vizinhos mais próximos, mas uma das nações mais ricas e mais livres bem como mais civilizadas e mais poderosas do mundo. Os casos em que existem os maiores obstáculos práticos à fusão de nacionalidades deparam-se quando as nacionalidades que se uniram são quase iguais em número e em outros elementos de poder. Em tais casos, cada uma, confiando na própria força e sentindo-se capaz de manter luta igual com qualquer das outras, não está disposta a fundir-se; cada uma cultiva com obstinação partidária as próprias peculiaridades distintivas; costumes obsoletos, até mesmo línguas em declínio, revigoram-se a fim de aprofundar a separação; cada uma se julga tiranizada se exercem qualquer autoridade dentro da sua região funcionários de raça rival; e tudo quanto se dá a uma das nacionalidades em conflito considera-se como tendo sido arrebatado às outras. Quando nações assim divididas se encontram submetidas a governo despótico estranho a qualquer delas, ou que, embora originado em uma, sentindo maior interesse no próprio poder do que por simpatias de nacionalidade, não concede qualquer privilégio a nenhuma delas, escolhendo indiferentemente os seus instrumentos onde melhor lhe apraz, no decurso de algumas gerações a identidade de situação muita vez dá origem a harmonia de sentimentos, passando as diversas raças a se sentirem, umas em relação às outras, como no mesmo pé de igualdade, particularmente se dispersas sobre a mesma região do país. Todavia, se chegar a era de aspiração a governo livre antes de ter-se completado semelhante fusão, desvanece-se a oportunidade de realizá-la. Desde então, se as nacionalidades não reconciliadas estão geograficamente separadas, e especialmente se a posição local delas é tal que não exista adequação ou conveniência em se unirem sob o mesmo governo (como no caso de província italiana sob jugo francês ou alemão) não existe não só conveniência, mas, se se quiser levar em conta seja a liberdade, seja a concórdia, necessidade em romper inteiramente a união. Haverá casos em que as províncias, depois da separação, fiquem proveitosamente unidas por meio do vínculo federativo; mas acontece geralmente que, se estiverem dispostas a renunciar à independência completa para se tornarem membros de federação, cada uma terá outros vizinhos com os quais preferirá unir-se, possuindo mais simpatias em comum se não também maior comunidade de interesses. XVII DOS GOVERNOS REPRESENTATIVOS FEDERAIS PORÇÕES DE HOMENS QUE NÃO se acham inclinados nem dispostos a viver sob o mesmo governo interno podem com vantagem muita vez unir-se federativamente quanto às relações para com estrangeiros: não só para impedir guerras entre si como também por causa de proteção mais eficaz contra a agressão de Estados poderosos. São necessárias várias condições para que se torne aconselhável a federação. A primeira é que exista simpatia mútua com intensidade conveniente, entre as populações. A federação obriga-as a combater sempre do mesmo lado; e se tiverem tais sentimentos umas para com as outras ou tal diversidade de sentimento para com os vizinhos que prefiram geralmente combater em lados opostos, não é provável que o vínculo federal tenha longa duração ou seja bem observado enquanto existir. As simpatias disponíveis para a federação são as de raça, língua, religião, e, acima de tudo, instituições políticas, como capazes de conduzirem no mais alto grau ao sentimento de identidade de interesse político. Quando alguns Estados, separadamente insuficientes para a própria defesa, estão cercados de todos os lados por monarcas militares e feudais, que odeiam e desprezam a liberdade mesmo no vizinho, não dispõem de qualquer possibilidade no sentido da preservação da própria liberdade e suas vantagens senão com a formação de uma unidade federativa. Esse interesse comum, resultante de semelhante motivo, mostrou-se conveniente na Suíça, por vários séculos, para manter eficientemente o laço federativo, a despeito não só da diferença de religião, quando esta era a maior fonte de inimizade política irreconciliável por toda parte da Europa, mas também a despeito da grande fraqueza da constituição da própria federação. Na América do Norte, em que existiam no mais alto grau todas as condições para a manutenção da união, com o único obstáculo da diferença de instituições quanto à única questão aliás de grande importância da escravidão, esta única diferença foi tão longe na alienação das simpatias de uma para outra das duas grandes divisões da União que a manutenção ou ruptura de um laço de tão grande valor para ambas depende do resultado de guerra civil obstinada. A segunda condição da estabilidade do governo federativo consiste em que os Estados separados não sejam tão poderosos que se sintam capazes de contar, para proteção contra usurpação estrangeira, com a própria força de que dispõem. Se tal acontecer, provavelmente pensarão que não ganham com a união com os demais o equivalente do que sacrificam na própria liberdade de ação; e, em consequência, sempre que a política da confederação, em questões reservadas à sua competência, mostra-se diferente do que qualquer dos membros separadamente perseguiria, a ruptura interna e seccional, em virtude da falta de bastante vontade no sentido de preservar-se a união, poderá chegar ao ponto de dissolvê-la. Terceira condição, não menos importante do que as duas anteriores, consiste em que não exista desigualdade muito acentuada de força entre os diversos Estados contratantes. De fato, é impossível a igualdade exata de recursos; em qualquer federação terá de existir certa gradação de poder entre os membros; alguns serão mais populosos, mais ricos ou mais civilizados do que outros. Existe enorme diferença entre riqueza e população de Nova York e de Rhode Island; entre Berna e Zug ou Glarus. O essencial é que não exista qualquer Estado tão mais poderoso do que o resto que se torne capaz de rivalizar em força com muitos deles combinados. Se algum houver nessas condições, e somente um, insistirá em ser o senhor das deliberações conjuntas; se existirem dois, serão irresistíveis se estiverem de acordo; e sempre que divirjam, decidir-se-á tudo mediante uma luta por ascendência entre os rivais. Somente esta causa é o suficiente para reduzir quase a nada a União Alemã, independentemente da infeliz constituição interna (Alusão à Confederação Germânica, organização frouxa dos Estados alemães, inclusive a Áustria, criada no Congresso de Viena em 1815. A rivalidade entre a Prússia e a Áustria pela liderança da confederação impediu-a de desenvolver-se em política nacional eficaz. A confederação terminou em 1866 quando a Prússia derrotou a Áustria, reunindo os Estados do norte da Alemanha sob a hegemonia prussiana). Não realiza qualquer dos objetivos reais da confederação. Não conferiu à Alemanha qualquer sistema uniforme de costumes, nem mesmo moeda uniforme; tendo somente servido para dar à Áustria e à Prússia o direito legal de introduzir as próprias tropas em auxílio aos soberanos locais para que mantivessem os súditos obedientes ao despotismo, enquanto com relação a interesses externos a União tornaria a Alemanha inteira dependente da Prússia se não fosse a Áustria e da Áustria se não fosse a Prússia; e entrementes cada principezinho vê-se forçado a escolher entre ser partidário de uma ou de outra, ou fazer intrigas com governos estrangeiros contra ambas. Organiza-se uma união federativa por duas maneiras diferentes. As autoridades federais podem tão-só representar o governo, obrigando seus atos somente ao governo como tal, ou terão o poder de decretar leis e expedir ordens que obriguem diretamente aos cidadãos. A primeira é o plano da assim chamada Confederação Germânica e da Constituição suíça anterior a 1847. Experimentou-se na América do Norte durante alguns anos, logo depois da Guerra da Independência. A outra é a da atual constituição norte-americana, também adotada nos últimos anos pela Confederação Suíça. O Congresso Federal da União Americana constitui parte substantiva do governo de cada Estado de per si. Dentro dos limites de suas atribuições, fazem leis que são obedecidas por todos os cidadãos individualmente, fá-las executar por meio de seus próprios funcionários e obriga ao cumprimento por seus próprios tribunais. É este o único princípio que se encontrou ou que algum dia será capaz de produzir governo federal eficaz. A união entre os governos é simples aliança, sujeita a todas as contingências que as tornam precárias. Se os atos do Presidente ou do Congresso obrigassem somente aos governos de Nova York, Virgínia ou Pensilvânia, não sendo possível executá-los mediante ordens expedidas por aqueles órgãos do governo a funcionários por eles nomeados, sob a responsabilidade dos próprios tribunais de justiça, nenhum mandado do Governo Federal desagradável a qualquer maioria local chegaria a ser executado. As exigências expedidas a um governo não têm outra sanção ou meio de se fazerem cumprir do que a guerra; e seria preciso ter sempre um exército federal pronto para fazer cumprir os decretos da federação contra qualquer Estado recalcitrante; sujeitando-se à probabilidade que outros Estados, simpatizando com o recalcitrante, e talvez partilhando dos sentimentos dele no ponto particular controvertido, retirassem os seus contingentes, se não os mandassem combater nas fileiras do Estado desobediente. Federação dessa ordem é mais capaz de causar guerras internas do que de preveni-las; se tal não foi o resultado na Suíça até os acontecimentos dos anos que precederam imediatamente o de 1847 foi somente porque o Governo Federal sentiu a própria fraqueza tão fortemente que não se arriscou a tentar exercer qualquer autoridade real. Na América do Norte, a experiência de federação baseada neste princípio desmoronou-se logo aos primeiros anos de existência - felizmente enquanto os homens de largo descortino e ascendência adquirida, que fundaram a independência da República, ainda estavam vivos para guiá-la através dessa difícil transição. O "Federalista", coleção de memórias escritas por três desses homens eminentes (Alexander Hamilton, James Madison e John Jay), explicando e defendendo a nova Constituição Federal, enquanto ainda aguardava a aceitação nacional, constitui ainda hoje o tratado mais instrutivo que possuímos sobre governo federativo (A "História dos Governos Federais", de Freeman, da qual até agora só veio a lume o primeiro volume, já é uma introdução à literatura do assunto, igualmente valiosa pelos princípios esclarecidos e domínio dos detalhes históricos). Na Alemanha, conforme todos sabem, a forma mais imperfeita de federação nem mesmo satisfez ao propósito de manter uma aliança. Nunca impediu, em qualquer guerra europeia, que membros isolados da Confederação se aliassem a potências estrangeiras contra os restantes. Contudo, é esta a única forma de federação que parece possível entre estados monárquicos. Não é provável que um rei, que detém o poder por herança, não por delegação, e que não pode ser privado dele, nem responsabilizado perante quem quer que seja pela maneira por que o emprega, renuncie a possuir exército separado suporte o exercício de autoridade soberana sobre os seus próprios súditos, não por meio dele próprio, mas de outro poder qualquer. A fim de permitir a dois ou mais países sob governo de rei que se reúnam em confederação eficaz, parece necessário estejam todos sob o mesmo rei. A Inglaterra e a Escócia formaram confederação dessa espécie durante o intervalo de cerca de um século entre a união das Coroas e a dos Parlamentos. Tal união foi eficaz não mediante instituições federativas, eis que nenhuma existia, mas porque o poder real em uma e outra constituição foi quase tão absoluto durante a maior parte desse período que permitiu conformar a política exterior de ambos por uma única vontade. Sob o modo mais perfeito de federação, em que todos os cidadãos de cada Estado devem obediência a dois governos, o do próprio Estado e o da federação, é evidentemente necessário não só que os limites constitucionais da autoridade de cada um fiquem definidos com precisão e clareza, mas que o poder de decidir entre eles em qualquer caso de discordância não resida em qualquer dos dois governos, ou em qualquer funcionário a eles sujeito, mas em árbitro deles independente. É de existir uma Corte Suprema de Justiça, e um sistema de tribunais subordinados em cada Estado da União, perante os quais se formulem tais questões, e cujo julgamento seja final, na última instância de apelação. Qualquer Estado da União e o próprio Governo Federal, bem como qualquer funcionário de todos eles, está sujeito a ver-se processar nesses tribunais por excederem os próprios poderes, ou por falta da execução dos deveres federais, devendo ser em geral obrigados a lançar mão desses tribunais para fazer valer os direitos federais. Esta situação resulta na consequência notável, realizada de fato nos Estados Unidos, que o Supremo Tribunal de Justiça, o mais alto tribunal do país, é supremo sobre os vários governos, não só estaduais como federal; tendo o direito de declarar que qualquer lei feita ou ato realizado por eles excede os poderes que a Constituição federal lhes atribui e, em consequência, não se reveste de validade legal. Era natural que se sentissem fortes dúvidas, antes de fazer-se a experiência, sobre a maneira por que esse dispositivo operaria - se o tribunal teria a coragem de exercer tal poder constitucional; se o exercesse, se o faria sensatamente e se os governos consentiriam em se submeterem pacificamente à decisão. As discussões sobre a constituição americana, antes de adoção final, provam que se sentiam fortemente essas apreensões; mas hoje cessaram inteiramente, visto como, durante as duas gerações e mais que decorreram subsequentemente, nada ocorreu que as verificasse, embora por vezes se levantassem controvérsias de considerável acrimônia, que se tornaram divisas de partidos, relativamente aos limites da autoridade dos governos federal e estaduais. A ação eminentemente benéfica de dispositivo tão singular pode atribuir-se, em grande parte, conforme o Sr. de Tocqueville o observa, à peculiaridade inerente ao Tribunal de Justiça atuando como tal - isto é, que não declara a lei “eo nomine” e em abstrato, mas espera até que um caso entre dois indivíduos se apresente perante ele, abrangendo o ponto em questão; donde resulta a consequência feliz de não se fazerem as declarações em estádio demasiadamente prematuro da controvérsia, precedendo-a em geral discussão popular abundante; o Tribunal decide depois de ter ouvido o assunto completamente discutido de ambos os lados por juristas de reputação; decide tão-só de cada vez a parte da questão que o caso perante ele exige, e a decisão, ao invés de se oferecer por motivos políticos, se lhe arranca em virtude de dever que não pode recusar-se a cumprir, o de dispensar justiça imparcialmente entre dois litigantes opostos. Mesmo estes motivos de confiança não bastariam para produzir a submissão respeitosa que todas as autoridades dispensam às decisões da Corte Suprema relativamente à interpretação da Constituição, se não fosse depositar-se inteira confiança não só na preeminência intelectual dos juízes que formam esse elevado tribunal, mas na completa superioridade deles sobre qualquer parcialidade, privada ou seccional. Em geral tal confiança tem sido justificada; mas nada existe que importe mais decisivamente ao povo americano do que precaver-se com a mais vigilante solicitude contra tudo quanto revele a mais remota tendência de causar deterioração à qualidade desta grande instituição nacional. A confiança de que depende a estabilidade das instituições federais ficou prejudicada pela primeira vez pela sentença que declarou a escravidão de direito comum e, consequentemente, legal nos territórios enquanto não se constituíssem em Estados, mesmo contra a vontade da maior parte dos seus habitantes. Esta memorável decisão contribuiu mais do que qualquer outra circunstância para levar a divisão seccional à crise que resultou na guerra civil. A coluna principal da Constituição americana dificilmente poderá resistir bastante a muitos choques dessa natureza. Os tribunais que funcionam como árbitros entre os governos federal e estaduais naturalmente também decidem todas as controvérsias entre dois Estados ou entre o cidadão de um Estado e o governo de outro. Sendo excluídos pela união federal os remédios usuais entre as nações, diplomacia e guerra, necessário se torna supri-los por um remédio judicial. A Suprema Corte da federação dispensa a lei internacional, e constitui o primeiro grande exemplo da instituição que é presentemente uma das necessidades mais prementes da sociedade civilizada, tribunal internacional real. Os poderes de governo federal naturalmente se estendem não à paz e à guerra, e a todas as questões que surgirem entre o país e os governos estrangeiros, mas à realização de quaisquer outros arranjos que sejam, na opinião dos Estados, necessários a que desfrutem do benefício total da união. Por exemplo, é de grande vantagem que o mútuo comércio entre eles seja livre, sem o obstáculo de impostos de fronteira e de alfândegas. Todavia, esta liberdade interna não existirá se cada Estado gozar da faculdade de fixar os impostos na troca de mercadorias entre ele próprio e os países estrangeiros, desde que qualquer produto estrangeiro introduzido em um Estado circularia em todos os outros. Daí caber nos Estados Unidos ao governo federal exclusivamente cobrar impostos de importação e regular o comércio. Ainda mais, apresenta grande vantagem para os Estados ter moeda única e um único sistema de pesos e medidas, o que só se consegue assegurar se se confiar a regulação dessas questões ao governo federal. A segurança e a rapidez das comunicações postais ficam prejudicadas e a despesa aumenta se uma carta qualquer tiver de passar por meia dúzia de grupos de repartições públicas, sujeitas a autoridades supremas diferentes; é conveniente, portanto, que todas as agências postais fiquem subordinadas ao governo federal. Todavia, com relação a tais questões as opiniões de diferentes comunidades estão expostas a serem diferentes. Um dos Estados americanos, sob a orientação de um personagem que revelou qualidades como pensador político especulativo, superiores às de quem quer que tenha figurado na política americana depois dos autores do "Federalista” (O autor refere-se a John Calhoun, senador e vice-presidente dos Estados Unidos, e ao seu célebre ensaio "Dissertação sobre o Governo”), queria que cada Estado tivesse o direito de veto sobre as leis alfandegárias do Congresso Federal; e esse estadista, em obra póstuma de grande valor que o poder legislativo da Carolina do Sul fez publicar e circular largamente, justificava essa pretensão baseado no princípio geral que manda limitar a tirania da maioria e proteger as minorias admitindo-as a participação de relevo no poder político. Um dos assuntos mais discutidos na política americana, durante a primeira parte deste século, era se o poder do governo federal devia estender-se, e se pela Constituição se estendia, à construção de estradas e canais à custa dos cofres da União. Somente em transações com potências estrangeiras é, por necessidade, completa a autoridade do Governo Federal. Em qualquer outro assunto, a questão depende de saber até que ponto o povo em geral deseja retesar a corda federal, a que porção da própria liberdade de ação esteja disposto a renunciar a fim de desfrutar mais completamente os benefícios de formar uma só nação. Quanto à constituição apropriada de governo federal dentro dos seus limites, não há necessidade de falar muito. Sem dúvida tem de consistir de um ramo legislativo e de outro ramo executivo, podendo trazer-se a constituição de um e de outro aos mesmos princípios dos governos representativos em geral. Quanto à maneira de adaptar estes princípios gerais ao governo federativo, o dispositivo da Constituição Americana afigura-se extremamente judicioso, quando manda que o Congresso deve compor-se de duas Casas, e enquanto uma delas é constituída de acordo com a população, cada Estado tendo o direito de representar-se em proporção ao número de habitantes, a outra deverá representar não os cidadãos, mas os governos estaduais, e cada Estado, grande ou pequeno, nela deverá representar-se pelo mesmo número de membros. Este dispositivo evita que os Estados mais poderosos exerçam qualquer poder indevido sobre os demais, garantindo os direitos reservados dos governos estaduais, tornando impossível tanto quanto a maneira de representação o impeça, a aprovação de qualquer medida pelo Congresso exceto se aprovada não só por maioria dos cidadãos, mas também por maioria de Estados. Anteriormente já tive ocasião de chamar a atenção sobre outra vantagem acidental resultante da elevação do padrão das aptidões dos membros de uma das Casas. Sendo nomeados por corpos escolhidos, isto é, os poderes legislativos dos diversos Estados, cuja escolha, pelos motivos já assinalados, recairá mais provavelmente em personagens eminentes do que por meio de qualquer eleição popular, - sendo que aqueles corpos não só têm o poder de elegê-los, mas forte motivo para fazê-lo, visto como a influência do próprio Estado nas deliberações gerais deve ficar profundamente afetada pelo valor pessoal e aptidões dos seus representantes; O Senado dos Estados Unidos, assim escolhido, sempre reúne quase todos os políticos da reputação elevada e firmada da União, enquanto a Câmara dos Deputados, tem-se feito notar, em geral na opinião de observadores competentes, pela ausência de merecimento pessoal conspícuo em contraste com a Câmara Alta. Quando existirem condições para a formação de uniões federais eficientes e duradouras, a sua multiplicação resultará sempre em benefício para o mundo. Exercem o mesmo efeito salutar como qualquer outra extensão da política da cooperação por meio da qual os fracos, unindo-se, ficam em condições de enfrentar os fortes, em igualdade de condições. Diminuindo o número dos Estados muito pequenos, que não se encontram em condições de prover à própria defesa, enfraquecem a tentação a favor de política agressiva, seja que atue diretamente pelas armas, seja por meio do prestígio de poder superior. Sem dúvida põem termo à guerra e às controvérsias diplomáticas, e ordinariamente também às restrições ao comércio, entre os estados componentes da união, enquanto, com referência às nações vizinhas, a maior força militar delas resultante é de tal natureza que se torna quase exclusivamente disponível para fins de defesa e mui raramente, se tal se der, para fins agressivos. Qualquer governo federal não dispõe de autoridade suficientemente concentrada para conduzir com grande eficácia qualquer guerra senão de autodefesa, na qual pode contar com a cooperação voluntária de todos os cidadãos, nem será muito lisonjeiro para a vaidade ou a ambição nacional adquirir, por meio de guerra coroada de êxito, não súditos, nem mesmo concidadãos, mas somente novos membros da federação, independentes e talvez perturbadores. A ação guerreira dos americanos no México foi puramente excepcional, tendo-a exercido principalmente voluntários, sob a influência da inclinação migratória, que leva os americanos individualmente a tomar conta de terras desocupadas, estimulada, se por qualquer motivo público, pelo simples propósito seccional de ampliar a escravidão, e não pelo desejo de engrandecimento nacional. Observam-se poucos indícios no procedimento dos americanos, individual ou nacionalmente, de que o engrandecimento territorial do país, como tal, tenha qualquer influência considerável sobre eles. O desejo de se apoderar de Cuba é, por igual maneira, simplesmente seccional e os Estados do Norte, que se opõem à escravidão, de modo algum o favoreceram. Pode apresentar-se a questão (como na Itália, no levantamento atual) de saber se um país que está resolvido a ser unido, deve formar união completa ou simplesmente federativa. Decide às vezes necessariamente esta questão o simples tamanho territorial do conjunto a unir. Existe um limite à extensão do país que se possa governar vantajosamente, ou mesmo cujo governo se possa superintender convenientemente de um único centro. Encontram-se países vastos assim governados; mas estes, ou pelo menos as províncias distantes, são em geral deploravelmente mal administrados, e somente quando os habitantes são quase selvagens não têm condições de gerir melhor os próprios negócios separadamente. Esse obstáculo não existe no caso da Itália, cujo tamanho não chega ao de vários estados únicos administrados mui eficientemente no passado e no presente. A questão consiste então em saber se as diferentes partes da nação exigem governo de certa sorte tão essencialmente diferente que a todos não satisfaçam provavelmente a mesma legislatura e o mesmo ministério ou corpo administrativo. A menos que tal seja o caso, o que importa em questão de fato, melhor que fiquem completamente unidos. A existência de sistema de leis totalmente diferentes e instituições administrativas mui diversas em duas porções do país sem que constitua obstáculo à unidade legislativa prova-o a situação da Inglaterra e da Escócia. Contudo, talvez essa coexistência tranquila de dois sistemas legais sob poder legislativo único, elaborando leis diferentes para as duas seções do país de conformidade com as diferenças anteriores, não seja suscetível de conservar-se tão bem ou não se venha a sentir a mesma confiança na sua manutenção, em qualquer país cujos legisladores estiverem mais imbuídos (como é capaz de acontecer na Europa continental) da mania da uniformidade. Um povo que possua a tolerância ilimitada característica da Inglaterra para qualquer natureza de anomalia, enquanto não se sintam por ela prejudicados aqueles a cujos interesses diz respeito, oferece campo excepcionalmente vantajoso para tentar-se essa difícil experiência. Em muitos países, se houvesse o objetivo de manter sistemas diferentes de legislação, seria provavelmente necessário manter poderes legislativos diferentes para zelar por eles; o que é perfeitamente compatível com o rei e o parlamento nacional, ou com parlamento nacional sem rei, supremo sobre todas as relações exteriores de todos os membros do corpo. Sempre que não se julgue necessário manter permanentemente nas diversas províncias sistemas diversos de jurisprudência, bem como instituições fundamentais baseadas em princípios diferentes, é praticável conciliar diversidades secundárias com a unidade do governo. É tão-só necessário proporcionar esfera de ação suficientemente ampla às autoridades locais. Sob governo central único e idêntico existirão governadores locais e assembleias provinciais para fins locais. Se não fosse possível esperar que a legislatura geral se deixasse guiar pelos representantes de cada província no sentido da modificação do sistema geral de tributação de sorte a convir às províncias, a constituição poderia estabelecer que todas as despesas do governo que fosse possível tornar locais fossem cobertas mediante tributos locais, instituídos pelas assembleias provinciais e as que fossem necessariamente gerais, como a manutenção do exército e da marinha, se distribuíssem, no orçamento anual, entre as diversas províncias de acordo com certa estimativa geral dos seus recursos, sendo o total prescrito a cada uma arrecadado pela assembleia local segundo os princípios mais aceitáveis à localidade, e recolhido “en bloc” ao tesouro nacional. Prática um tanto semelhante a esta existia mesmo na antiga monarquia francesa, no que dizia respeito ao "pays d'états", cada um dos quais, tendo consentido em fornecer certa soma fixa ou o que houvessem exigido, ficava livre de arrecadá-la dos habitantes por meio dos próprios funcionários, evitando desse modo o despotismo extorsivo dos "intendants" e "subdélégués"; e menciona-se sempre este privilégio como uma das vantagens que contribuíram principalmente para torná-las, como algumas dentre elas o eram, as províncias mais florescentes da França. A identidade do governo central é compatível com muitos graus diversos de centralização, não só administrativa, mas também legislativa. Um povo pode ter o desejo e a capacidade para união mais íntima do que simplesmente federativa, embora as peculiaridades e antecedentes locais tornem desejáveis diversidades consideráveis no detalhe do governo. Todavia, se houver por toda parte real desejo de coroar de êxito a experiência, raramente haverá qualquer dificuldade não só em conservar tais diversidades, mas em atribuir-lhes garantia de dispositivo constitucional contra qualquer tentativa de assimilação, exceto por ato voluntário daqueles que fossem afetados pela mudança. XVIII DO GOVERNO DE POSSESSÕES POR UM ESTADO LIVRE ESTADOS LIVRES, COMO OUTROS QUAISQUER, podem ter possessões, adquiridas seja por conquista seja por colonização; e a própria Inglaterra é o maior exemplo dessa natureza na história moderna. É questão de grande relevo indagar como deverão governar-se tais possessões. É desnecessário discutir o caso de pequenos postos, como Gibraltar, Aden ou Heligoland, mantidos apenas como posições navais ou militares. O objetivo militar ou naval é, neste caso, de importância primordial, não se permitindo aos habitantes, em decorrência dessa situação, tomar parte no governo do local; embora se deva conceder-lhes todas as liberdades e privilégios compatíveis com essa restrição, inclusive a livre gestão dos assuntos municipais; e como compensação por se verem localmente sacrificados à conveniência do Estado governante deveriam admitir-se a direitos iguais aos dos habitantes deste em todas as outras partes do império. Territórios exteriores, de certo tamanho e população, mantidos como possessões, isto é, sujeitos, mais ou menos, a atos de poder soberano por parte do país principal sem serem por igual representados (se de qualquer maneira representados) na respectiva legislatura, podem dividir-se em duas classes. Uns compõem-se de povos de civilização semelhante ao país dominante, capazes e amadurecidos para o governo representativo: neste caso se encontram as possessões inglesas na América e na Austrália. Outros, como a Índia, ainda se encontram a grande distância desse estado. No caso de possessões da primeira classe, a Inglaterra realizou extensamente, com rara perfeição, o verdadeiro princípio de governo. Este país sempre se sentiu sob certa maneira na obrigação de conceder às populações exteriores do mesmo sangue e da mesma língua e a algumas que não o eram, instituições representativas moldadas segundo as que o regem; mas até a geração atual manteve-se no mesmo nível de outros países quanto à soma de autogoverno que lhes permitia exercer por meio das instituições representativas que lhes concedia. Exigia ser o supremo árbitro até mesmo de interesses puramente internos, conforme as ideias dele e não as deles, de como tais interesses fossem de se regular. Esta prática era corolário natural da teoria defeituosa da política colonial - outrora comum a toda a Europa, e ainda não completamente abandonada por qualquer outro povo - que considerava as colônias como valiosas porque constituíssem mercados para os produtos nacionais, sendo possível conservá-las inteiramente para o próprio país - privilégio que se julgava tão importante que se comprava permitindo às colônias o mesmo monopólio para os produtos delas que se exigia para os próprios nos respectivos mercados. Este plano notável para enriquecimento mútuo, fazendo com que cada um pagasse enormes somas ao outro, deixando cair a maior parte pelo caminho, foi abandonado por algum tempo. Contudo, o mau hábito de interferir com o governo interno das colônias não terminou imediatamente quando abandonamos a ideia de tirar algum proveito delas. Continuamos a atormentá-las, não para colher qualquer benefício, mas para a seção ou facção entre os próprios colonos: e esta persistência em dominação custou-nos uma rebelião no Canadá antes que tivéssemos a feliz inspiração de abandoná-la. A Inglaterra assemelhava-se a irmão mais velho malcriado, que persiste em tiranizar os mais moços por simples hábito, até que um deles, movido por espírito de resistência, embora não com igual força, intima-o a desistir. Fomos bastante sensatos para não precisar de novo aviso. Nova era teve início na política colonial das nações com o relatório de Lorde Durham, monumento imperecível da coragem, patriotismo, e liberdade esclarecida desse nobre, e da inteligência e sagacidade prática dos seus colaboradores, o Sr. Wakefield e o pranteado Charles Buller. (Estou-me referindo aqui à adoção desta política melhorada, não, sem dúvida, à sugestão originária. A honra de ter sido o seu primeiro campeão cabe inquestionavelmente ao Sr. Roebuck. (O autor aqui se refere ao "Relatório sobre os negócios da América Britânica do Norte", que o conde de Durham 1792-1840) apresentou ao Parlamento em 1839 como justificação da sua política no Canadá. A oposição a essa política, na Inglaterra, levara-o a demitir-se do cargo do comissário especial no Canadá. Edward Gibbon Wakefield (1796-1862) e Charles Buller (1806-1848) foram seus auxiliares e provavelmente coautores nesse "Relatório"). Hoje em dia constitui princípio fixo da política da Grã-Bretanha, professado em teoria e fielmente obedecido na prática, que as colônias de raça europeia, por igual à metrópole, possuem a maior autonomia de autogoverno interno. Permitiu-se-lhes elaborassem as próprias constituições representativas livres, alterando da maneira que julgassem conveniente as constituições já bastante populares que lhes havíamos concedido. Cada uma é governada pela legislatura e executivo próprios, instituídos por princípios altamente democráticos. O veto da Coroa e do Parlamento, embora nominalmente reservado, somente se exerce (e mui raramente) sobre questões que dizem respeito ao império, e não sobre as que interessam tão-só à colônia. Revela a interpretação liberal dada à distinção entre questões imperiais e coloniais terem-se abandonado todas as terras não ocupadas nos territórios das nossas colônias americanas e australianas à gestão, independente de nosso controle, das comunidades coloniais, embora sem injustiça pudessem ter sido conservadas em mão do governo imperial, para que se administrassem para maior vantagem de futuros emigrantes de todas as partes do império. Cada colônia goza por essa maneira de inteiro poder sobre os seus próprios negócios como teria se fosse membro de federação mesmo a mais frouxa possível; e muito mais completa do que lhe caberia sob a Constituição dos Estados Unidos, tendo mesmo o direito de lançar impostos conforme lhe aprouver sobre os artigos importados da metrópole. A união das colônias com a Grã-Bretanha constitui a mais suave das formas de união federativa; mas não chega a ser federação rigorosamente igual, porquanto a metrópole retém para si os poderes de governo federal, embora reduzidos na prática aos limites mais estreitos. Sem dúvida, esta desigualdade é, até onde se estende, desvantagem para as colônias, que não possuem voz ativa na política exterior, ficando obrigadas pelas decisões do país superior a elas. São obrigadas a juntar-se à Inglaterra em caso de guerra, sem serem previamente consultadas de qualquer maneira. Aqueles que (agora felizmente não em pequeno número) pensam tanto obrigar a justiça às comunidades como aos indivíduos, não sendo permitido a estes fazer a outros países por pretenso benefício da própria pátria o que não seria justificado fizessem a outros homens em benefício próprio - são de opinião que, mesmo essa soma limitada de subordinação constitucional por parte das colônias importa em violação de princípio, tendo-se preocupado repetidamente com os meios de evitá-la. Com essa intenção propuseram que as colônias elegessem representantes à legislatura britânica; e outros que os poderes do nosso próprio Parlamento, tanto como os dos delas, se limitassem à política interna, instituindo-se outro corpo incumbido da representação dos interesses imperiais e estrangeiros, no qual as possessões da Grã-Bretanha encontrassem igualmente representação, e com a mesma inteireza, da metrópole. Por esse sistema haveria federação perfeitamente igual entre a metrópole e as colônias, então não mais possessões. Os sentimentos de equidade e as concepções de moral idade pública, dos quais emanam essas sugestões, são dignos de todo louvor; mas as próprias sugestões mostram-se tão pouco em harmonia com os princípios racionais de governo que é duvidoso tenham sido seriamente aceitas como possibilidade por qualquer pensador sensato. Países separados por metade do globo terrestre não apresentam as condições naturais para ficarem sob governo único, ou mesmo para se tornarem membros de uma federação. Se tivessem suficientemente os mesmos interesses, não têm, nem mesmo poderão ter nunca, hábito suficiente de se reunirem para tomar resoluções. Não formam parte do mesmo público; não discutem nem deliberam na mesma arena, mas à parte, e possuem apenas o conhecimento mais imperfeito do que se passa no espírito dos outros. Nem conhecem os objetivos uns dos outros, nem depositam confiança nos princípios de conduta uns dos outros. Pergunte qualquer inglês a si próprio se gostaria que os seus destinos dependessem de uma assembleia em que um terço fosse de americanos britânicos e outro terço de sul-africanos ou australianos. Entretanto, a este ponto se chegaria se algo houvesse como representação adequada ou igual; e todo o mundo não sentiria que os representantes do Canadá e da Austrália, mesmo em assuntos de caráter imperial, não conheceriam ou não se sentiriam de qualquer maneira interessados pelos assuntos, opiniões ou desejos de ingleses, irlandeses e escoceses? Até mesmo para fins rigorosamente federativos não existem condições que vimos ser essenciais para a federação. A Inglaterra basta-se a si mesma para a própria proteção sem as colônias, e ficaria em posição muito mais forte e igualmente mais nobilitante se delas separada do que reduzida a simples membro de confederação americana, africana e australiana. Além e acima do comércio de que desfrutaria igualmente depois da separação, a Inglaterra pouca vantagem deriva, exceto em prestígio, das suas possessões; e o pouco que deriva fica inteiramente contrabalançado pela despesa que lhe causam e pela disseminação que exigem da força militar e naval, o que, em caso de guerra, ou de qualquer temor verdadeiro de conflito, exigiria o duplo ou o triplo do que o necessário para a simples defesa do seu próprio território. Todavia, embora a Grã-Bretanha passasse perfeitamente bem sem as colônias, e embora por todos os princípios de moralidade e justiça deva consentir se separem em chegada a ocasião, quando, depois de terem experimentado a melhor forma de união desejarem deliberadamente separar-se - existem fortes motivos a favor da conservação do atual tênue laço de ligação enquanto não se tornar desagradável para os sentimentos de qualquer das partes. É um passo, até onde alcance, no sentido da paz universal e da cooperação amistosa geral entre as nações. Torna impossível a guerra entre grande número de comunidades por outra forma independentes, e, além disso, evita que qualquer delas venha a ser absorvida por um Estado estrangeiro, com o risco de tornar-se elemento de força agressiva adicional para alguma potência rival, ou mais despótica ou mais próxima, que talvez não seja sempre tão desambiciosa ou tão pacífica como a Grã-Bretanha. Pelo menos conserva abertos os mercados dos diferentes países uns aos outros e impede a exclusão mútua por meio de tarifas hostis, que nenhuma das grandes comunidades, exceto a Inglaterra, até agora superou completamente. E no caso das possessões inglesas, apresenta a vantagem, especialmente valiosa na época atual, de trazer à influência moral e à ponderação nos conselhos do mundo, da potência que, de todas em existência, melhor compreende a liberdade - e sejam quais forem os erros cometidos no passado atingiu a maior porção de consciência e de princípio moral no trato com as nações estrangeiras do que qualquer outra parece conceber como possível ou reconhecer como desejável. Desde que, portanto, a união somente pode continuar, enquanto vigora, no pé de federação desigual, torna-se importante considerar por que maneira poder-se-á evitar que esta pequena porção de desigualdade se torne onerosa ou humilhante para as comunidades que ocupam posição menos elevada. A única inferioridade necessariamente inerente neste caso consiste na faculdade que tem a metrópole de decidir, tanto para as colônias como para ela própria, em questões de paz e de guerra. Em compensação ganharam a obrigação por parte da metrópole de repelir agressões dirigi das contra elas; mas, exceto quando a comunidade menor é tão fraca que a proteção de potência mais forte lhe seja indispensável, a reciprocidade da obrigação não equivale inteiramente à não admissão de fazer-se ouvir nas deliberações. É essencial, portanto, que em todas as guerras, salvo as que, como a dos Kaffir ou da Nova Zelândia, forem empreendidas por causa da própria colônia, não se convoquem os coloniais (sem que assim o peçam voluntariamente) para contribuírem à cobertura das despesas, exceto o que se tornar necessário para específica defesa local de portos, praias, e fronteiras contra invasão. Além disso, como a metrópole reivindica o privilégio de, por iniciativa própria, tomar as medidas ou manter uma política que as exponha a possível ataque, é justo que chame a si parte considerável do custo da defesa mili.tar delas, mesmo em tempo de paz; e na sua integridade, no que depende de exército permanente. Todavia existem meios, ainda mais eficazes do que estes, pelos quais e em geral tão-só mediante eles, é possível proporcionar equivalência total a comunidade menor por fundir a própria individualidade como potência substantiva entre nações de maior individualidade pertencentes a império vasto e poderoso. Este expediente indispensável e suficiente ao mesmo tempo, que satisfaz de imediato as solicitações da justiça e as exigências crescentes da política, consiste em franquear o serviço do governo em todos os departamentos, e em qualquer parte do império, em termos de perfeita igualdade, a todos os habitantes das colônias. Por que ninguém ouve jamais uma palavra de deslealdade por parte das Ilhas do Canal inglês? Pela raça, religião e posição geográfica pertencem menos à Inglaterra do que à França. Mas enquanto gozam, como o Canadá e a Nova Gales do Sul, de controle completo sobre os negócios internos e lançamento de tributos, cada cargo ou dignidade que depende da Coroa está livremente franqueado aos naturais de Guernsey e Jersey. Dessas ilhas insignificantes têm saído generais, almirantes, pares do Reino Unido e não impede que até primeiros-ministros delas saiam. Deu-se início ao mesmo sistema com referência às colônias quando o esclarecido Coronel Secretário, desaparecido mui prematuramente, Sir William Molesworth, nomeou o Sr. Hinckes, líder político canadense, para um governo nas Índias Ocidentais. Revela-se ideia mui superficial dos móveis da ação política em uma comunidade pensar que tais fatos não se revestem de importância porque não é grande o número de pessoas realmente em posição de se aproveitarem dessa concessão. Este número limitado se comporia precisamente dos que dispõem de maior poder sobre os demais; e os homens não são tão destituídos do sentimento da degradação coletiva que não percebam que negar-se uma vantagem até mesmo a uma única pessoa devido a qualquer circunstância que todos têm em comum com ela, constitui afronta para todos. Se impedirmos aos líderes de uma comunidade erguerem-se perante o mundo como chefes e representantes nos conselhos gerais dos homens, devemos não só à ambição legítima deles, mas ao justo orgulho da comunidade, proporcionar-lhes em compensação igual oportunidade para ocuparem a mesma posição preeminente em nação de maior poder e importância. Até agora falamos das possessões cuja população se encontra em estado suficientemente adiantado para ser capaz de governo representativo. Mas outras há que ainda não atingiram esse estado e que, se se tiver de manter, devem ser governadas pelo país dominante ou por pessoas por ele delegadas para esse fim. Esta maneira de governar é tão legítima como qualquer outra, se for a única que no estado atual de civilização do povo submetido mais lhe facilite a transição para estádio mais elevado de aperfeiçoamento. Existem, conforme vimos páginas atrás, condições da sociedade em que vigoroso despotismo é, de per si, a melhor maneira de governar a fim de ensinar-lhe o que lhe falta especificamente para torná-lo capaz de civilização mais apurada. Outros há em que o simples despotismo não exerce qualquer influência benéfica, já tendo sido as lições que ele ensina por demais completamente aprendidas; mas nos quais, não existindo qualquer elemento de aperfeiçoamento espontâneo no próprio povo, quase a única esperança que lhe resta para dar alguns passos para a frente depende da oportunidade de conseguir bom déspota. Sob despotismo interno, o bom déspota é acidente raro e transitório; quando, porém, o domínio sob o qual se encontram é o de povo mais civilizado, esse povo deve ser capaz de supri-lo constantemente. O país dominante tem de ser capaz de fazer pelos seus súditos tudo quanto faria uma série de monarcas absolutos, garantidos por força irresistível contra a precariedade de autoridade que acompanha os despotismos bárbaros, e habilitados pelo gênio próprio a anteciparem tudo quanto a experiência ensinou à nação mais civilizada. Tal a regra ideal para um povo livre que domine outro bárbaro ou semibárbaro. Não precisamos esperar para ver esse ideal realizado; mas a menos que se aproximem dele de certa forma, os governantes se revelarão responsáveis de negligência em relação ao mais elevado encargo moral que incumba a uma nação; e se a ele não visarem, serão usurpadores egoístas, no mesmo nível em criminalidade com aqueles cuja ambição e capacidade zombaram de idade em idade dos destinos de massas de homens. Como atualmente é condição comum, que tende rapidamente a tornar-se universal, das populações mais atrasadas conservar-se em sujeição direta às mais adiantadas ou ficar sob completa ascendência política que estas lhes imponham, deparam-se nesta idade do mundo poucos problemas mais importantes do que a maneira de organizar esse governo de sorte a torná-lo bom ao invés de mau para o povo submetido, proporcionando-lhe o melhor governo atual possível de conseguir-se, com as condições mais favoráveis ao aperfeiçoamento permanente no futuro. Contudo, a maneira de tornar o governo apropriado a este fim, de modo algum se compreende tão bem como as condições de bom governo em povo capaz de se governar por si próprio. Chegaremos mesmo a dizer que não se compreende de modo algum. A questão parece perfeitamente fácil a observadores superficiais. Se a Índia (por exemplo) não está em condições de se governar, tudo quanto lhe parece necessário é que exista um ministro para governá-la; e tal ministro, como todos os outros ministros britânicos, seria responsável perante o Parlamento Britânico. Infelizmente este plano, embora seja a maneira mais simples de procurar governar uma possessão, é provavelmente a pior, traindo nos que a advogam falta absoluta de compreensão das condições de bom governo. É muito diferente governar um país sob a responsabilidade para com o próprio povo e governar um país sob a responsabilidade para com o povo de outro. O que importa na excelência do primeiro é que a liberdade é preferível ao despotismo; mas a última é despotismo. A única preferência que a questão admite é preferência entre despotismos; e não é certo que o despotismo de vinte milhões seja necessariamente melhor do que o de poucos ou o de nenhum. Mas é absolutamente certo que o despotismo dos que não ouvem, não veem, nem sabem seja o que for a respeito dos súditos tem toda probabilidade de ser pior do que o dos que sabem. Comumente ninguém imagina que os agentes imediatos da autoridade governam melhor porque o fazem em nome de senhor ausente e de quem tem milhares de interesses mais urgentes a que dispensar atenção. O senhor pode mantê-los em rigorosa responsabilidade, imposta por penalidades pesadas; mas é de duvidar se essas penalidades venham muita vez recair em quem as mereça. É sempre com grandes dificuldades e mui imperfeitamente que estrangeiros governam qualquer país, mesmo quando não houver qualquer disparidade extrema nos hábitos e nas ideias entre governantes e governados. Estrangeiros não sentem com o povo. Não são capazes de julgar, pela maneira por que qualquer ato lhes aparece ao espírito, ou lhes afete os sentimentos, como afetará os sentimentos ou aparecerá ao espírito da população submetida. O que o filho do país, de capacidade prática média, conhece como se fosse instintivamente, têm de aprender devagar, e afinal de contas imperfeitamente, pelo estudo e pela experiência. As leis, os costumes, as relações sociais, para os quais têm de legislar, ao invés de lhes serem familiares desde a infância, lhes são todos estranhos. Terão de depender para a maior parte dos seus conhecimentos, das informações dos habitantes; e é difícil saber em quem confiar. Provavelmente a população os teme, suspeita e odeia; raramente os procura senão por objetivos interesseiros; e se inclinam a supor que os servilmente submissos são os que merecem fé. O perigo está em desprezar os filhos do país; o destes consiste em não acreditar que tirem qualquer proveito do que fizerem aqueles. Tais dificuldades representam somente parte das que têm de enfrentar os governantes que procurem administrar bem um país no qual são estrangeiros. Superar essas dificuldades em qualquer extensão exigirá sempre muito esforço, precisando de capacidade em grande dose nos principais administradores, e alta média entre os subordinados; e a melhor organização de um governo desses será a que assegure melhor o trabalho, desenvolva a capacidade e coloque os elementos de maior valor nas situações de maior responsabilidade. Não é possível considerar a responsabilidade para com autoridade que não realizou qualquer parte do trabalho, não adquiriu qualquer parcela de capacidade, e na maior parte nem mesmo se apercebe que tem necessidade de uma ou de outra em qualquer extensão, como expediente bastante eficaz para realizar tais objetivos. O governo de um povo por ele mesmo tem certa significação e certa realidade; mas o governo de um povo por outro não existe nem pode existir. Um povo pode conservar outro sob tutela ou para uso próprio, lugar donde tirar dinheiro, fazenda de gado humano que se faça funcionar em proveito dos próprios habitantes. Mas se o bem dos governados é o que incumbe propriamente ao governo, é inteiramente impossível que um povo dele se encarregue diretamente. O mais que pode fazer é encarregar alguns dos seus melhores homens de com ele ocupar-se; para estes a opinião do seu próprio país nem poderá servir-lhes bem de guia no cumprimento dos deveres que lhes incumbem, nem será juiz competente da maneira por que o exerceram. Imagine qualquer pessoa como os próprios ingleses seriam governados se conhecessem os negócios e deles se ocupassem como conhecem e se ocupam com os negócios dos hindus. Até mesmo essa comparação não fornece ideia adequada da situação da questão: porque um povo assim inteiramente alheio à política provavelmente se mostraria simplesmente aquiescente e não se importaria com o governo, enquanto que no caso da Índia, povo politicamente ativo como o inglês no meio da aquiescência habitual, vez por outra interfere e quase sempre onde não deve. As verdadeiras causas que determinam a prosperidade ou a miséria dos hindus, o aperfeiçoamento ou a deterioração desse povo estão afastados demais para que tome conhecimento. Não está de posse do conhecimento necessário para suspeitar da existência dessas causas, muito menos de julgar como influem. Os interesses mais essenciais do país serão bem administrados independentemente da aprovação deles, ou mal administrados até quase qualquer excesso sem chamar-lhes a atenção. Os motivos que os levam a interferir e controlar o procedimento dos delegados são de duas espécies. Um consiste em forçar ideias inglesas pela garganta abaixo dos naturais - por exemplo, medidas de proselitismo, ou atos intencional ou inintencionalmente ofensivos aos sentimentos religiosos do povo. Serve instrutivamente de exemplo para essa distorção da opinião no país dominante (tanto mais porque somente se visa à justiça e imparcialidade e tão grande imparcialidade quanta será de esperar de pessoas realmente convencidas) a solicitação ora corrente na Inglaterra no sentido de ensinar-se a Bíblia nas escolas do governo, se assim o desejarem os alunos ou os pais. Do ponto de vista europeu, nada poderá revestir-se de melhor aspecto, ou parecer menos sujeito a objeção com fundamento na liberdade de religião. Aos olhos dos asiáticos a questão muda inteiramente de aspecto. Não há povo asiático que acredite ponha algum governo em movimento funcionários pagos e a máquina oficial exceto se tiver certo objetivo em vista; e quando a este se aplique, nenhum asiático acredita que qualquer governo, exceto se fraco e desprezível, o realize pela metade. Se as escolas do governo e os seus professores ensinarem o cristianismo, sejam quais forem as promessas que se fizerem de que somente se ensinará àqueles que espontaneamente o procurarem, nenhuma soma de evidência conseguirá persuadir os pais de que se empreguem meios impróprios para tornar os filhos cristãos ou de qualquer maneira, proscritos do hinduísmo. Se ao fim se convencessem do contrário, seria somente pelo inteiro fracasso das escolas, assim conduzidas, em conseguir conversos. Se o ensino exercesse o menor efeito em promover aquele objetivo, comprometeria não só a utilidade, mas até mesmo a existência da educação governamental, e talvez a segurança do próprio governo. Os que combatem o proselitismo não conseguiriam convencer a um protestante inglês que colocasse os filhos em escola católica; os católicos irlandeses não enviarão os filhos a escolas em que poderão convertê-los ao protestantismo; e esperamos que os hindus, que acreditam na possibilidade da perda dos privilégios do hinduísmo por simples ato físico, vão expor-se ao perigo de se tornarem cristãos! Tal uma das maneiras por que a opinião do país dominante tende a atuar mais prejudicialmente do que beneficamente sobre a conduta dos governadores delegados. A outros respeitos, a interferência provavelmente se exercerá a mor parte das vezes no ponto em que a exigem mais pertinazmente, a favor de algum interesse de residentes ingleses. Estes dispõem de amigos no país de origem, têm órgãos, têm acesso ao público; língua comum e ideias comuns com os seus concidadãos; qualquer queixa de inglês se ouve com maior simpatia mesmo se lhe concederem intencionalmente preferência injusta. Ora, se existir algum fato que toda a experiência evidencie, será a necessidade de conservar sob o mais rigoroso controle os indivíduos pertencentes ao povo dominador que recorrem ao país estrangeiro a fim de fazerem fortuna, enquanto aquele mantém este em sujeição. Constituem sempre uma das principais dificuldades do governo. Armados do prestígio e cheios da arrogância desdenhosa da nação conquistadora, inspira-lhes os sentimentos o poder absoluto sem sentimento de responsabilidade. No seio de povo como o indiano, os maiores esforços das autoridades públicas não são suficientes para a proteção eficaz dos fracos contra os fortes; e de todos os fortes, os colonos europeus são os mais fortes. Sempre que não se corrige o efeito desmoralizador da situação da maneira mais notável pelo caráter pessoal do indivíduo, julgam o povo do país simples pó sob os pés; parece-lhes monstruoso que deparem pela frente com qualquer direito dos naturais, em se tratando das mais simples pretensões; o ato mais elementar de proteção aos habitantes contra qualquer ato de poder por parte deles, que considerem útil aos seus objetivos comerciais, denunciam e consideram agravo. Tão natural é este estado de sentimentos em situação como a deles, que mesmo ante a desaprovação que até agora encontrou por parte das autoridades governamentais é impossível que semelhante espírito não irrompa constantemente mais ou menos. O governo, livre desse espírito, não consegue nunca o conter suficientemente nos jovens e novatos dentre os próprios funcionários civis e militares, sobre os quais possui controle tão maior do que sobre os residentes civis. Como se dá com os ingleses na Índia assim também se passa, segundo testemunhos fidedignos, com os franceses na Argélia; assim também com os americanos na parte conquistada ao México; assim também parece acontecer com os europeus na China, e até mesmo no Japão: não haverá necessidade de lembrar como foi com os espanhóis na América do Sul. Em todos esses casos, o governo a que estão sujeitos esses aventureiros é melhor do que eles, fazendo o mais que é possível para proteger os naturais. Até mesmo o governo espanhol assim procedeu, sincera e resolutamente, embora sem resultado, conforme sabe qualquer leitor da instrutiva história do Sr. Helps. Se o governo espanhol fosse diretamente responsável perante a opinião pública, duvidaríamos que o tivesse tentado: porque, sem dúvida, os espanhóis teriam tomado o partido dos seus amigos e parentes cristãos de preferência a ficarem ao lado de pagãos. Os colonizadores, e não os naturais, são ouvidos pelo público na metrópole; o que afirmam passa por ser verdadeiro, porque somente eles dispõem dos meios e dos motivos para forçar com perseverança as suas acusações perante o espírito público desatento e desinteressado. A crítica desconfiada com que os ingleses, mais do que qualquer outro povo, costumam examinar a conduta do país para com os estrangeiros, eles reservam comumente para o procedimento das autoridades públicas. Em qualquer questão entre um governo e um indivíduo a suposição, no espírito de qualquer inglês, é que o governo não tem razão. E quando o residente inglês concentra os fogos da ação política inglesa contra qualquer dos baluartes erguidos para proteger os naturais contra usurpações, o executivo, com as veleidades reais, mas débeis de algo melhor, acha mais seguro para os seus interesses parlamentares, e de qualquer maneira menos incômodo, abandonar a posição disputada do que defendê-la. O que torna a situação ainda mais grave é que, quando se invoca o espírito público (como, para seu crédito, costuma o espírito inglês ser extremamente acessível) em nome da justiça e da filantropia, a favor da comunidade ou da raça sujeita, existe a mesma probabilidade de não atingir o alvo. Na comunidade sujeita também existem opressores e oprimidos; indivíduos ou classes poderosas, e escravos prostrados diante deles; e são os primeiros e não os últimos que dispõem dos meios de acesso ao público inglês. Tirano ou libertino, privado do poder de que abusou, ao invés de castigo, encontra apoio em riqueza e esplendor tão grande como nunca desfrutou; uma panelinha de proprietários privilegiados, que pedem ao Estado abra mão a favor deles do direito a ele reservado da renda das terras, ou que ressentem como agravo qualquer tentativa de proteção às massas contra a extorsão que exercem; esses não têm dificuldade em obter apoio interessado ou sentimental dentro do Parlamento inglês e da imprensa. Os milhares de silenciosos não conseguem nenhum. As observações precedentes exemplificam a aplicação de um princípio - que poderia chamar evidente se não acontecesse que raramente alguém dele se apercebe - que, enquanto a responsabilidade para com os governados é a maior de todas as garantias para o bom governo, a responsabilidade para com qualquer pessoa não só não revela semelhante tendência, mas provavelmente é capaz de originar tanto mal como bem. A responsabilidade dos governadores ingleses da índia perante a nação britânica é sobretudo útil porque, quando se entra em dúvida quanto a qualquer ato do governo, assegura a publicidade e a discussão; a utilidade que daí resulta não exige que o público em geral compreenda a questão em foco, contanto que algumas pessoas o compreendam; porquanto, responsabilidade meramente moral não sendo responsabilidade para com todo o povo, mas para cada pessoa separadamente no seio do povo que formule um julgamento, podem pesar-se as opiniões tão bem como contá-las, e a aprovação ou desaprovação de pessoa bem versada no assunto contrabalança a de milhares que nada absolutamente sabem a respeito. Sem dúvida afigura-se controle útil para os governantes imediatos obrigá-los a se colocarem na defensiva, formulando-lhes uma ou duas pessoas do júri opinião valiosa sobre a conduta, embora a dos restantes seja em alguns pontos pior que nenhuma. Tal como é, assim se apresenta o benefício para a índia resultante do controle exercido pelo Parlamento e povo britânicos. Não será tentando governar diretamente país como a Índia, mas dando-lhe bons governantes, que o povo inglês cumprirá com o seu dever para com ela; e dificilmente poderiam proporcionar-lhe um pior do que um ministro do Gabinete Inglês, que pensasse de política inglesa e não indiana; que raramente ficará por bastante tempo no cargo para que adquira interesse inteligente em assunto tão complicado; sobre o qual a opinião pública factícia montada no Parlamento, consistindo de dois ou três oradores fluentes, atua com tanta força como se fosse genuína, enquanto ele próprio não fica sob qualquer das influências de treinamento e de posição que o levem a formar ou a isso o habilitem, opinião honesta própria. Fracassará quase inevitavelmente o país livre que procurar governar possessão distante, habitada por povo diferente, por meio de um ramo do próprio executivo da metrópole. O modo único que tenha qualquer probabilidade de sucesso tolerável será governá-lo por meio de um corpo delegado de caráter comparativamente permanente, tão-só permitindo à Administração inconstante do Estado o direito de inspeção e de opinar negativamente. Tal corpo existia no caso da Índia; e tenho receio que não a Índia, mas também a Inglaterra incorra em severa penalidade pela política insensata que levou ao abandono desse instrumento intermediário de governo. De nada valerá dizer que tal corpo delegado não possuirá todos os requisitos de bom governo; acima de tudo, não disporá dessa identidade completa e permanentemente atuante de interesse com os governados tão difícil de obter-se mesmo quando o povo a ser governado está até certo ponto em condições de zelar pelos próprios interesses. Não há compatibilidade possível de bom governo real com as condições da questão em apreço. Depara-se tão-somente com a possibilidade de escolher entre imperfeições. O problema consiste em formar o corpo governante de tal maneira que, sob as dificuldades da situação, tenha tanto interesse quanto possível em bom governo, e o menor possível no mau governo. A administração delegada apresenta sempre a vantagem sobre a administração direta, de, em quaisquer circunstâncias, não ter qualquer dever a cumprir senão para com os governados. Não há interesses a considerar senão os destes. A própria faculdade de tirar lucro do mau governo é suscetível de reduzir-se - na constituição mais recente da Companhia das Índias Orientais reduziu-se - a soma singularmente pequena: podendo conservar-se inteiramente livre da influência de interesses individuais ou de classe de quem quer que seja. Quando o governo da metrópole e o Parlamento flutuam por causa das influências parciais no exercício do poder que lhes cabe em última instância, o corpo intermediário vem à frente como advogado certo e campeão da possessão perante o tribunal imperial. Além disso, o corpo intermediário compõe-se principalmente, no curso natural das circunstâncias, de pessoas que adquiriram conhecimento profissional desta parte dos interesses da própria pátria; que se prepararam no próprio local e fizeram da administração deste a ocupação principal da vida. Armados destes requisitos, e não correndo o risco de perderem o cargo por acidentes da política metropolitana, identificam o caráter e a atenção com o encargo especial que lhes incumbe e revelam muito mais interesse permanente no sucesso da administração e na prosperidade do país que administram do que um membro do gabinete sob constituição representativa provavelmente teria no bom governo de qualquer país exceto aquele a que serve. Na medida em que a escolha dos que exercem gestão local passe a este corpo, conservam-se as nomeações fora do turbilhão da negociata partidária ou parlamentar, livre da influência dos motivos do abuso de patrocínio para compensação de afilhados ou de livrar-se por compensações dos que de outro modo seriam contrários, que são sempre mais fortes com os estadistas de honestidade média do que o sentimento consciencioso do dever de nomear o mais capaz. Colocar esta classe de nomeações tanto quanto possível a salvo assume maior importância do que o pior que pode acontecer a todos os outros cargos do Estado; porque, em qualquer outro departamento, se o funcionário não está na altura, a opinião geral da comunidade lhe indica, até certo ponto, o que deve fazer; mas na posição de administradores de possessão em que o povo não está em condições de ter o controle nas próprias mãos, o caráter do governo depende inteiramente das aptidões, morais e intelectuais, dos funcionários individualmente. Não será nunca demasiado repetir que, em país como a Índia, tudo depende das qualidades e aptidões pessoais dos agentes do governo. Esta verdade constitui o princípio cardeal da administração da Índia. No dia em que se pensar que a nomeação de pessoas para cargos de confiança pode praticar-se, por motivos de conveniências, conforme se faz tão criminosamente na Inglaterra, com impunidade na Índia, terá início o declínio e, em seguida, a queda do império inglês nessa região. Mesmo que se tenha sincera intenção de preferir o melhor candidato, não dará resultado confiar no acaso para conseguir as pessoas mais capazes. O sistema de ser talhado para formá-las. Até agora assim o fez; e porque assim se fez, o nosso governo tem durado e tem sido governo de constante melhoramento, embora não mui rápido, da prosperidade e da boa administração. Manifesta-se atualmente tanto azedume contra este sistema, e tanta ansiedade por derrubá-lo como se educar e treinar os funcionários de um governo para o trabalho fosse inteiramente desarrazoado e indefensável, interferência injustificável nos direitos da ignorância e da inexperiência. Existe conspiração tácita entre os que gostariam de negociar com os cargos indianos mais importantes a favor das suas relações e os que, estando já na Índia, desejam ser promovidos da fábrica de anil ou do gabinete do procurador para subministrar justiça ou fixar os pagamentos devidos ao governo por milhões de pessoas. O "monopólio" do serviço civil contra o qual tanto se vocifera, é semelhante ao monopólio dos funcionários judiciários pelo foro; e aboli-lo seria como se se abrisse uma banca em Westrnister Hall a quem primeiro se apresentasse, cujos amigos atestassem ter ele vez por outra aberto algum volume de Blackstone (William Blackstone (1723-1780), famoso jurista inglês. Os seus "Comentários sobre as Leis da Inglaterra (4 volumes, 1765-69) exerceram forte influência sobre a jurisprudência inglesa e americana). Se algum dia se adotasse o processo de enviar pessoas deste país ou de animá-las a irem voluntariamente, para que assumissem altos postos sem que tivessem aprendido a exercê-los passando pelos cargos inferiores, os lugares mais importantes passariam às mãos de parentes distantes (O texto diz "Scotch cousin" equivalente a parente distante) e de aventureiros, sem que tivessem qualquer vínculo de sentimento profissional com o país ou com o trabalho, desprovidos de qualquer conhecimento anterior, e ansiosos somente por fazer dinheiro para voltar depressa à terra. A segurança do país está em que se enviem os que se destinam a governá-lo, na mocidade, tão-só como candidatos, para começarem no primeiro degrau da escada, subindo-a mais alto ou não, conforme se mostrarem capazes, depois de certo intervalo. O defeito da Companhia das Índias Orientais consistia em que, embora procurasse os melhores homens cuidadosamente para os cargos mais importantes, contudo, se um funcionário permanecesse em serviço, a promoção, embora demorada, chegava afinal por uma ou outra forma, por igual ao mais competente como ao menos competente. Mesmo os que não revelavam grandes aptidões, no seio de tal corpo de funcionários, deve lembrar-se, consistiam de homens que tinham entrado em serviço e dele se desempenhado durante muitos anos, ao menos sem desonra, sob os olhos e a autoridade de um superior. Mas embora assim se diminuísse o mal, este ainda era considerável. Quem não se revela capaz senão para os deveres de assistente deverá ficar nessa situação pela vida inteira, passando-lhe à frente por promoção outros mais jovens. Salvo esta exceção, não tenho conhecimento de qualquer defeito real no antigo sistema das nomeações para a Índia. Já havia recebido o outro melhoramento mais importante de que era suscetível, a escolha dos candidatos originários mediante concurso, o que, além da vantagem de ir buscá-los em grau mais elevado de diligência e capacidade, recomenda-se por não apresentar, exceto por acidente, ligações pessoais entre os candidatos aos cargos e os que têm voz ativa nas nomeações. Não é de qualquer maneira injusto que funcionários públicos assim escolhidos e treinados sejam os únicos a serem escolhidos para cargos que exijam conhecimento e experiência relativos especialmente à Índia. Se se abrir qualquer porta às nomeações para cargos mais elevados, sem que o funcionário passe pelos mais baixos, mesmo para uso acidental, pessoas de influência tanto baterão à porta que será inteiramente impossível conservá-la fechada. Somente se excetuará da regra a nomeação mais alta de todas. O vice-rei da Índia Britânica deve ser escolhido entre todos os ingleses pela grande capacidade geral de governar. Se a possuir, será capaz de distingui-la em outras pessoas, aproveitando-se do conhecimento e julgamento especiais em negócios locais que não tenha tido a oportunidade de adquirir. Militam boas razões contra a escolha do vice-rei (salvo certos casos excepcionais) dentre os membros do serviço regular. Todos os serviços têm, em maior ou menor grau, preconceitos de classe, de que deve estar isento o chefe supremo. Nem homens que passaram a mor parte da vida na Ásia, por mais hábeis e experientes que sejam, estarão provavelmente de posse das ideias europeias mais adiantadas a respeito da administração geral dos negócios públicos; estas o governante principal terá de pôr em execução, amalgamando-as com os resultados da experiência indiana. Ainda mais, sendo de classe diferente, especialmente se escolhido por autoridade diferente, raramente alimentará qualquer parcialidade pessoal que lhe venha prejudicar as nomeações para qualquer cargo. Esta grande garantia de outorga honesta de patrocínio existia com rara perfeição sob o governo misto da Coroa juntamente com a Companhia das Índias Orientais. Os distribuidores supremos de cargos, o governador-geral e os governadores, eram nomeados, de fato embora não formalmente, pela Coroa, isto é, pelo governo geral, não pelo corpo intermediário; e provavelmente um grande oficial da Coroa não tinha uma única ligação pessoal ou política no serviço local, enquanto o corpo delegado, tendo na maior parte servido no país, tinha e provavelmente deveria ter semelhantes ligações. Esta garantia de imparcialidade ficaria muito prejudicada se os empregados civis do governo, mesmo enviados quando moços como simples candidatos a emprego, tivessem de provir, em qualquer proporção considerável, da classe da sociedade que fornece vice-reis e governadores. Até mesmo o concurso inicial deixaria de apresentar qualquer garantia. Excluiria a simples ignorância e a incapacidade; obrigaria aos jovens de família a iniciar a carreira com a mesma soma de instrução e diligência como qualquer outro; seria impossível mandar o filho mais estúpido para o serviço da Índia como se pode fazer com a Igreja; mas não haveria meio de impedir mais tarde qualquer preferência indevida. Todos, não mais igualmente desconhecidos e obscuros em relação ao árbitro da própria sorte, em grande proporção do corpo de servidores estariam pessoalmente e em maior proporção ainda politicamente em relações íntimas com ele. Membros de certas famílias, e das classes mais altas e em geral relações influentes subiriam mais rapidamente do que os concorrentes, conservando-se frequentemente em posições para as quais seriam incapazes ou colocados naquelas em que outros melhores ficariam. As mesmas influências entrariam em jogo que afetam as promoções no exército; e somente os que, se existirem tais milagres de simplicidade, acreditassem que estas são imparciais, esperariam imparcialidade nas da Índia. Tenho receio de que não se possa evitar este mal por meio de quaisquer medidas que se pusessem em prática sob o atual sistema. Nenhuma delas produzirá qualquer grau de segurança comparável ao que decorria outrora espontaneamente do assim chamado duplo governo. O que se encara como tão grande vantagem no caso do sistema inglês de governo na mãe-pátria converteu-se em calamidade na Índia - desenvolveu-se por si, não em virtude de qualquer plano preconcebido, mas por meio de expedientes sucessivos e pela adaptação do mecanismo originariamente criado para objetivo diferente. Como o país do qual dependia conservá-lo não era aquele em virtude de cujas necessidades se originara, o espírito desse país não lhe percebeu os benefícios práticos, somente podendo ter-se tornado aceitável se tivesse havido recomendações teóricas. Infelizmente, era exatamente isso o que parecia faltar-lhe; e sem dúvida alguma as teorias comuns do governo não lhes forneceram, estruturadas como soem ser para estados de circunstâncias que em tudo diferem dos aspectos mais importantes do caso em foco. Mas em governo, como em outros departamentos da atividade humana, quase todos os princípios que foram duradouros sugeriu-os primeiramente a observação de algum caso particular no qual as leis gentis da natureza atuaram por combinação de circunstâncias novas e previamente não percebidas. Coube às instituições da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos a distinção de sugerirem a maior parte das teorias de governo que, por boa e má fortuna, estão agora, no curso das gerações, despertando a vida política das nações europeias. O governo da Companhia das índias Orientais teve por destino sugerir a verdadeira teoria do governo de possessão semibárbara por país civilizado e, depois de tê-lo feito, perecer. Seria sorte singular se, depois de duas ou três gerações, fosse esse o único fruto restante da nossa ascendência sobre a Índia; se a posteridade disser de nós que, tendo deparado acidentalmente com arranjos melhores do que a nossa sabedoria seria algum dia capaz de imaginar, o primeiro uso que fizemos da nossa razão desperta foi destruí-los, permitindo que se desvanecesse o bem que estava em curso de tornar-se realidade, por ignorância dos princípios em que se baseava, “Di meliora”; mas se for possível evitar destino tão infeliz à Inglaterra e à civilização, terá de ser mediante concepções políticas mais amplas do que podem suprir tão-só a prática inglês a e europeia e por meio de estudo muito mais profundo da experiência na índia e das condições do governo dessa região do que os políticos ingleses ou os que proporcionam opiniões ao público inglês revelaram até agora qualquer desejo de empreender. NOTAS BIOGRÁFICAS Alcibíades (cerca de 450-404 A.A.) general e estadista ateniense. Educado pelo tutor Péricles, tornou-se amigo íntimo de Sócrates. Participou da expedição à Sicília de 415-413. Alexandre o Grande (356-323 A.C.) filho de Filipe da Macedônia. Educado por Aristóteles, revelou-se o maior chefe militar da época, conquistando todo o mundo conhecido até a Índia nos onze anos que decorreram entre a ascensão ao trono e a morte aos 33 anos. Aranda, Pedro Pablo Abarca de Bolea Aranda, Conde de (1719-1798) estadista e general espanhol. Sob Carlos III expulsou os jesuítas da Espanha e da América do Sul espanhola. Aristides (cerca de 520-468 A.C.), estadista e soldado ateniense. Opôs-se à política naval de Temístocles e foi condenado ao ostracismo, mas mais tarde chamaram-no para auxiliar na defesa de Atenas contra os Persas. Tendo morrido reputadamente pobre, ficou popularmente confirmada a sua fama de honesto. Aristófanes (cerca de 450-385 A.C.) o comediógrafo grego mais conhecido e melhor. Existem onze das suas obras. Bailey, Samuel (1791-1870), filósofo e economista inglês. Benedito XIV (1675-1758), papa (1740-58), refletiu o espírito do Iluminismo na condução dos negócios da Igreja e no patrocínio dispensado às artes e à literatura. Bentham, Jeremy (1748-1832), filósofo e jurista inglês. Amigo íntimo de J. S. Mill, influiu grandemente sobre o pensamento filosófico deste durante a mocidade. Blackstone, William (1723-1780), jurista e autor dos famosos "Comentários sobre as Leis da Inglaterra (4 vols., 1765-69). Gright, John (1811-1889), estadista e reformador inglês. Buller, Charles (1806-1848), estadista colonial inglês, colaborador no preparo do Relatório Durham com Edward Gibbon Wakefield. Caesar, Guius Julius (cerca de 100-44 A.C.), general, estadista, ditador e autor romano, figura notável da história romana não só pela diversidade do gênio como especialmente pelo papel que representou na transição do regime republicano para o imperial, inaugurado pelo seu herdeiro Augusto. Capeto, Hugo (cerca de 940-996), tornou-se: rei da França em 987, fundando por essa forma a dinastia dos Capetos que sobreviveu, pelos colaterais, até o século XIX. Catarina II (1729-1796), a Grande, Imperatriz da Rússia (1762-96). Teve predileção pelo espírito do Iluminismo, conquistou grandes territórios, mas nada fez por minorar a miséria crescente dos seus súditos. Carlos Magno (742-814), rei dos Francos (768-814) e Imperador do Ocidente (800-814). Sábio governante que organizou e administrou habilmente seu vasto império, fundou escolas e favoreceu à Cristandade. Chathan: ver Pitt. _ Clemente XIV (1705-1774), papa (1769-74) que suprimiu em 1773 a ordem dos jesuítas a fim de pacificar os governantes católicos da Europa. Cléon (falecido em 422 A.C.), estadista e general ateniense, sucessor de Péricles como chefe do partido popular. Clive, Robert, Barão Clive de Plassey (1725-1774), general e estadista inglês, fundador do império das índias Britânicas. Colbert, Jean Baptiste (1619-1683), estadista francês que pôs em ordem a administração financeira caótica da França. De grande importância os melhoramentos por ele introduzidos na indústria e no comércio. Foi o representante mais importante do mercantilismo francês, que se conhece também pela denominação de Colbertismo. Coleridge, Samuel Taytor (1772-1834), poeta, crítico e filósofo inglês. Era amigo íntimo de William Wordsworth. Demóstentes (384-322 A. C.), o maior orador da antiga Atenas. Despertou os atenienses contra o perigo que representava Filipe da Macedônia e dedicou a maior parte da vida a combater os macedônios em seus discursos. Depois da derrota do exército grego por Antípater, envenenou-se para evitar o cativeiro. Disraeli, Benjamin, Conde de Beaconsjield (1804-1881), primeiro ministro inglês sob a rainha Vitória, de quem gozava de particular confiança. Sob a sua liderança, o partido Tori pôs-se à frente de um programa de reforma interna e expansão imperial. Durham, John George Lambton, Conde de (1792-1840), estadista inglês e comissário especial para o Canadá. Escreveu o "relatório sobre os negócios da América Britânica" para justificar a sua política colonial muito criticada. Edward II (1284-1327), rei da Inglaterra (1307-27). Derrotado na Escócia e dominado pelos seus barões poderosos. Foi finalmente preso, forçado a abdicar e assassinado. Elisabeth I (1533-1603), rainha da Inglaterra (1558-1603). Embora a princípio o trono corresse perigo devido à controvérsia religiosa e à questão de sua legitimidade, conseguiu estabelecer firmemente a própria autoridade. Durante o seu reinado a civilização inglesa floriu brilhantemente. Frederico II (1712-1786), o Grande, rei da Prússia (1740-86). O maior soldado da sua época, foi também o principal representante do "despotismo esclarecido". Exigências militares compeliram-no a impor ao reino administração relativamente eficiente, altamente centralizada e inteiramente honesta. Ganganelli: ver Clemente XIV. Gustavo II (Gustavo Adolfo, 1594-1632), rei da Suécia (1611-32). Grande soldado, levou o poder sueco ao coração da Europa, à frente da causa protestante na Guerra dos Trinta Anos. Morreu na batalha de Lutzen. Henrique III (1207-1272), rei da Inglaterra (1216-72). Durante o reinado, várias facções disputaram o controle do reino. Em 1258 os barões obrigaram-no a aceitar as Provisões de Oxford, certo número de reformas que reduziam o poder do rei. Henrique IV (1553-1610), rei da França (1589-1610), primeiro da dinastia dos Bourbons. Educado como protestante, tornou-se católico em 1593 para assegurar-se do trono. Pelo Édito de Nantes (1598) garantiu aos protestantes tolerância religiosa parcial. Assassinado por um fanático religioso. Hill, sir Rolland (1795-1879), administrador e educador inglês, reformador do sistema postal. Hyperbolus (falecido em 411 A. C.), demagogo ateniense que se tornou chefe do partido da guerra depois da morte de Cleon. Banido pelo ostracismo em 417 e mais tarde assassinado. Jefferson Thomas, (1743-1826), terceiro presidente dos Estados Unidos (1801-09), e maior intérprete dos ideais democráticos e humanitários da nova república. John (1167-1216), rei da Inglaterra (1199-1216) cujo reinado se viu dificultado por três lutas: Com Filipe Augusto da França que teve como resultado a sua derrota e a conquista da Normandia pelos franceses; com o papa Inocêncio III, da qual saiu como vassalo dessa autoridade eclesiástica; e com os barões, que terminou com a assinatura da Magna Carta em 1215. José II (1741-1790), Sacro Imperador Romano (1765-90), co-regente com a progenitora, Maria Teresa (1765-80), e governante dos domínios dos Hapsburgos (1780-90). Um dos "déspotas esclarecidos", publicou um édito de tolerância religiosa (1781) e limitou o poderio da Igreja Católica. Leopoldo II (1747-1792), Grão-duque da Toscana (1765-1790), governante dos domínios do Hapsburgos e Sacro Imperador Romano (1790-92). Sua administração da Toscana colocou-o entre os reformadores esclarecidos do século; foi menos bem-sucedido como imperador, cargo em que sucedeu ao irmão, José II. Luís XIV, (1638-1715), rei da França (1643-1715), instituiu sistema de governo inteiramente pessoal e absoluto. Revogou em 1685 o Édito de Nantes, o que levou à emigração dos protestantes franceses. Sob o seu reinado a vida da corte francesa atingiu esplendor insuperável, tornando-se o modelo de todas as cortes europeias. Lutero, Martinho (1483-1546), reformador religioso alemão. Monge agostinho, deu início à Reforma Protestante quando pregou nas portas da catedral de Wittenburgo as suas famosas 95 teses. Nicias (cerca de 470-413 A. C.), político e general ateniense, que politicamente se opunha a Cleon e a Alcibíades. Chefe da expedição à Sicília de 415-413, foi capturado pelos siracusanos e executado. Peel, sir Robert (1788-1850), primeiro-ministro britânico (1834-35, 1841-46), que levou a cabo importantes reformas, particulares na área das liberdades civis, administração financeira e regulação do comércio exterior. Péricles, (cerca de 495-429 A. C.), preeminente estadista ateniense, nos anos de maior esplendor de Atenas como centro de cultura e poder militar. Pedro I (1672-1725), o Grande, Czar da Rússia (1682-1725), notabilizou-se pelos enormes esforços que fez para introduzir no seu país atrasado a civilização ocidental. Pitt, William, Conde de Chatham (1708-1778), "Senior", primeiro-ministro britânico durante a Guerra dos Sete Anos na qual a Grã-Bretanha apoderou-se de grande parte do império colonial da França. Pitt, William (1759-1806), "júnior" primeiro-ministro britânico aos 25 anos de idade, tornou-se o inimigo mais resoluto de Napoleão I, organizando e sustentando com subsídios três ligas europeias contra a França. Pittacus (cerca de 650-570 A. C.) de Mitilene em Lesbos, estadista e sábio. Instituiu importantes reformas sociais populares. Pombal, Sebastião José de Carvalho e Meio, Marquês de (1699-1782), estadista português cuja gestão da economia do país e dos negócios imperiais foi característica da época do Iluminismo. Rémusat, Charles François Marie, Conde de (1797-1875), político e escritor francês. Richelieu, Armand Jean du Plessis, Duque de (1585-1642), estadista e cardeal francês, primeiro-ministro de Luís XIV, estabeleceu solidamente o poder real sobre facções feudais e religiosas. Na Guerra dos Trinta Anos combateu junto a potências protestantes contra o inimigo inveterado da França, os Hapsburgos. Roebuck, John Arthur (1801-1879), político inglês. Russell, John, primeiro Conde Russell (1792-1878), estadista inglês, primeiro-ministro de 1846-1852. Saint-Simon, Claude Henri de Rouvroy, Conde de (1760-1825), filósofo social francês. Imaginou estado industrial hierárquico no qual cada indivíduo se situava e recebia compensação de acordo com a produtividade própria. Sólon (cerca de 640-560 A. C.), estadista ateniense. Executou importantes reformas legais e sociais. A sua habilidade política tornou o nome de Sólon sinônimo de o que dá leis. Sully, Maximiliano de Béthune, Duque de (1560-1641), estadista francês, ministro das finanças sob Henrique IV, que reabasteceu o tesouro depois de muitos anos de guerra civil e promoveu o comércio e a agricultura. Temístocles (cerca de 528-462 A. C.), estadista e general ateniense. Persuadiu aos atenienses para que construíssem poderosa frota que ele comandou na vitória sobre os Persas em Salamina (480 A. C.). Teranienes (nascido ± 455 A. C.), estadista e general ateniense. Tocqueville, Alexis de (1805-1859), escritor e estadista francês, autor da Democracia na América (2 vols. 1835-40), um dos estudos mais penetrantes do sistema político americano devido à pena de escritor estrangeiro. Vauban, Sebastien Le Prestre, Marquês de (1633-1707), engenheiro militar francês que se notabilizou pelo sistema de fortificações. Wakefield, Edward Gibbon (1796-1862), estadista colonial inglês, coautor com Charles Buller, do Relatório Durham. Washington, George (1732-1799), primeiro presidente dos Estados Unidos da América do Norte (1789-97). Wellesley, Arthur, primeiro Duque de Wellington (1769-1852), general inglês, que, juntamente com o exército prussiano sob o comando do general Blücher, derrotou Napoleão I na campanha de Waterloo (1815). William I (1533-1584), "o Silencioso" príncipe de Orange, chefiou a rebelião holandesa contra a Espanha e tornou-se primeiro "stadholder" da nova república. William II I (1650-1702), príncipe de Orange e soberano britânico juntamente com a rainha Maria II (1689-1702), que chefiou a liga europeia contra Luís XIV.