Auguste Comte – Opúsculos de Filosofia Social - 1819 -1828 SUMÁRIO Prefácio Especial Primeiro Opúsculo (Julho de 1819) Separação geral entre as opiniões e os desejos Segundo Opúsculo (Abril de 1820) Sumária apreciação do conjunto do passado moderno Terceiro Opúsculo (Maio de 1822) Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade Quarto Opúsculo (Novembro de 1825) Considerações filosóficas sobre as ciências e os cientistas Quinto Opúsculo (Março de 1826) Considerações sobre o poder espiritual Sexto Opúsculo (Agosto de 1828) Exame do tratado de Broussais sobre a "irritação" PREFÁCIO ESPECIAL do APÊNDICE GERAL do 4.° e último volume do SISTEMA DE POLÍTICA POSITIVA, de AUGUSTO COMTE, publicado em Paris, em agosto de 1854. De acordo com o anúncio feito em 1851, no início do Tratado que acabo de terminar, junto a este volume final uma escrupulosa reprodução de todos os meus primeiros Opúsculos sobre a Filosofia Social. Fazendo ressurgir aqui escritos incluídos em periódicos há muito esquecidos, poderá este Apêndice facilitar a iniciação positivista dos espíritos dispostos a seguir exatamente marcha idêntica à minha. Este apêndice é, porém, sobretudo destinado a manifestar a perfeita harmonia entre os esforços que caracterizam minha juventude e os trabalhos realizados em minha idade madura. Pelos hábitos dispersivos que impedem, em nossos dias, qualquer apreciação sintética, essa plena continuidade se acha frequentemente obscurecida pela excepcional extensão de minha obra. Quando não se percebe nela a relação necessária entre a base filosófica e a construção religiosa, as duas partes de minha carreira parecem obedecer a direções diferentes. Convém, pois, fazer especialmente sentir que a segunda se limita a realizar o objetivo preparado pela primeira. Este Apêndice deve espontaneamente inspirar tal convicção, fazendo verificar haver eu tentado, desde o meu início, fundar o novo poder espiritual que hoje instituo. O conjunto de meus primeiros ensaios me levou a reconhecer que essa operação exigiria, antes de tudo, um trabalho intelectual, sem o qual não seria possível solidamente estabelecer a doutrina destinada a encerrar a revolução ocidental. Eis por que consagrei a primeira metade da minha elaboração a construir, de acordo com os resultados científicos, uma filosofia verdadeiramente positiva, única base possível da religião universal. Mas, depois de ter suficientemente lançado esse fundamento teórico, devi consagrar diretamente todo o resto de minha existência ao fim social que eu havia, a princípio, suposto ser imediatamente acessível. Além da dificuldade natural de abarcar este vasto plano, uma tendência pessoal leva frequentemente a desconhecer a íntima conexidade de meu Sistema de política Positiva com o meu Sistema de Filosofia Positiva. Embora o término da revolução ocidental seja geralmente desejado, a indisciplina própria à nossa anárquica situação ainda inspira ativas simpatias, sobretudo entre os letrados. Muitas individualidades sentem-se chocadas pelo advento direto do sacerdócio Positivo, que deve fazer universalmente prevalecer, no procedimento não só público, mas também privado, regras tanto mais inflexíveis quanto hão de ser sempre demonstráveis. Estas repugnâncias inspiradas pela minha construção religiosa dispõem a considerá-la contraditória com a sua base filosófica, cujo atrativo mental naturalmente se encontrava isento de qualquer conflito moral. Este Apêndice mostrará, porém, a inconsequência dos partidários intelectuais do Positivismo, que hoje repelem a sua aplicação necessária ao destino social diretamente proclamado em seu primeiro esboço. Seja que não possam apreender o conjunto de minha elaboração, seja que lastimem ver cessar o interregno religioso, sua adoção especulativa da nova síntese os obriga a lhe permitir completar-se, resumir-se e concluir. Minha política, longe de contrariá-la, é de tal modo a consequência natural de minha filosofia, que esta foi diretamente instituída para servir de base àquela, como prova o presente Apêndice. De conformidade com este objetivo, ele deve somente abranger os Opúsculos que gradualmente caracterizam minha direção geral, afastando os escritos prematuros que me inspirou a funesta ligação através da qual se realizou minha estreia espontânea. Dessas produções efêmeras só incluo aqui duas indicações decisivas de minha tendência contínua para a religião positiva. A primeira surgiu em 1817, desta sentença característica, no meio de vã publicação: "Tudo é relativo, eis o único princípio absoluto", Quanto à segunda, menos pronunciada, porém mais desenvolvida, ocorreu em 1818, na memória especial em que considerei a liberdade de imprensa como propiciando a todos os cidadãos uma autoridade consultativa. Tais são as únicas menções que me parecem, afinal, merecer minhas publicações anteriores aos seis opúsculos de que se compõe este Apêndice: desautorizo, de antemão, qualquer outra reprodução de trabalhos meus publicados e já destruí os meus escritos inéditos. O primeiro Opúsculo foi composto em julho de 1819 para o único periódico (o censor) que a posteridade distinguirá no Jornalismo francês. Mas esse artigo jamais foi inserto no referido jornal. Publico-o hoje aqui não só para indicar como eu tendia, aos 21 anos, para a divisão dos dois poderes, como também visando à utilidade que tal esclarecimento conserva ainda hoje. Depois de haver, em abril de 1820, deixado passivamente atribuir o segundo opúsculo ao diretor do periódico (o Organizador) que o inseriu, reivindico afinal sua autoria, então conhecida somente de alguns leitores. Dando-lhe aqui seu verdadeiro título, eu o assinalo como o primeiro esboço de minha concepção geral do passado moderno, onde já separei os dois movimentos, positivo e negativo, cujo concurso caracteriza a revolução ocidental. O contraste histórico entre a França e a Inglaterra, de acordo com o prevalecimento do poder central ou da força local, aí foi bastante fundamentado para, desde então, guiar vários escritores que jamais lhe indicaram a fonte. Minha direção a um tempo filosófica e social foi irrevogavelmente determinada em maio de 1822 pelo terceiro opúsculo, onde surgiu minha descoberta fundamental das leis sociológicas. Seu próprio título, único que deve figurar aqui, bastaria para indicar a íntima combinação entre os dois pontos de vista, científico e político, que até então me haviam igualmente preocupado, mas em separado. A publicidade deste trabalho decisivo ficou, a princípio, limitada a cem exemplares, gratuitamente comunicados como provas. Quando, em 1824, foi reproduzido em mil exemplares, com alguns acréscimos secundários, acreditei dever superpor ao seu título especial o título prematuro de Sistema de Política Positiva, desde então destinado ao conjunto de minhas composições. Não se poderia desconhecer a unidade de minha carreira, vendo assim prometida, desde o seu início, a sistematização que só o presente Tratado podia realizar. O quarto opúsculo manifesta, em 1825, até mesmo pelo seu título, uma tendência mais direta para o estabelecimento de nova autoridade espiritual, esteada numa filosofia fundada sobre a ciência. Uma suficiente demonstração de minhas duas leis fundamentais aí precede a apreciação geral da marcha contínua da humanidade para a reorganização do poder teórico. O quinto opúsculo expôs, enfim, de maneira decisiva, em março de 1826, na mesma publicação (O Produtor), a divisão filosófica e social dos dois poderes elementares. Minha contínua tendência para fundar um novo sacerdócio tornou-se, desde então, bastante pronunciada, de modo a me atrair, ao mesmo tempo, as censuras da Escola Revolucionária, sob o pretexto de teocracia, e as felicitações da Escola Retrógrada, em nome da ordem. O contraste das duas apreciações que esse trabalho inspirava a dois conceituados escritores (Benjamin Constant e Lamennais) já indicava a atitude normal do partido que eu instituía relativamente àqueles de que eram os respectivos chefes. Esta oposição pode ser especialmente verifica da num mesmo espírito quando o eloquente defensor do Catolicismo se tornou cegamente hostil à doutrina positiva, à medida que degenerava em declamador revolucionário. Basta comparar estes cinco opúsculos, e sobretudo os três últimos, para neles reconhecer uma progressão constante, onde o termo final caracteriza o seu objetivo geral: a reorganização do poder espiritual adaptado à renovação da filosofia. Assim se preparou meu tratado fundamental, cuja elaboração oral realmente começou em abril de 1826, embora o seu primeiro volume só tenha sido publicado em julho de 1830. Realizando essa fundação filosófica, terminada em 1842, nela fiz sempre pressentir, cada vez mais, a construção religiosa que seu destino social exigia e motivou ser ela empreendida. No sexto e último opúsculo, publicado pelo Jornal de Paris em agosto de 1828, percebe-se a passagem de minha estreia social para minha carreira intelectual, que inaugurou, no ano seguinte, a completa execução do curso começado em 18263 e logo suspenso em consequência de minha crise cerebral. As luzes resultantes deste episódio foram especialmente utilizadas para o decisivo exame do memorável trabalho onde Broussais dignamente combateu a influência metafísica. Este opúsculo final conservará sempre um interesse histórico por ter suscitado o nobre esforço através do qual esse grande biologista ilustrou o fim de sua bela carreira, ao apreciar, de maneira digna dele, a admirável tentativa de Gall, até então por ele desconhecida. PRIMEIRO OPÚSCULO (Junho de 1819) SEPARAÇÃO GERAL ENTRE AS OPINIÕES E OS DESEJOS Os governantes desejariam fazer admitir a máxima segundo a qual só eles são capazes de discernir com exatidão em política, e que, por consequência, somente a eles compete ter opinião a respeito. Têm suas razões para pensar assim, e os governados também têm as suas - precisamente as mesmas - para se recusarem a admitir tal princípio, o qual, de fato, considerado em si mesmo e independentemente de qualquer preconceito, quer de governante, quer de governado, é de todo absurdo. Com efeito: os governantes, por sua posição - mesmo supondo-os honestos - são, pelo contrário, os mais incapazes de possuir opinião justa e elevada sobre a política geral, pois é certo que, quanto mais nos dedicamos às funções práticas, menos aptos nos tornamos para as teóricas. Condição essencial para o publicista, que quer possuir ideias políticas largas, é abster-se rigorosamente de qualquer emprego ou função pública: como poderia ele ser, ao mesmo tempo, ator e espectador? Neste particular, porém, caiu-se de um excesso em outro. Combatendo-se a pretensão ridícula de ser a ciência política privilégio dos governantes, produziu-se, nos governados, o preconceito, não menos ridículo, embora menos perigoso, de que qualquer homem é apto a formar, simplesmente por instinto, justa opinião acerca do sistema político, e cada indivíduo pretendeu dever arvorar-se em legislador. Como observou Condorcet; é estranhável, considerem os homens impertinente a pretensão de saber física ou astronomia, etc., sem, estudar estas ciências, e julguem, ao mesmo tempo, possam todos conhecer a ciência política, e ter opinião segura e categórica, relativa a seus princípios mais abstratos, sem se darem ao trabalho de refletir sobre o assunto, e sem dele haverem feito um objeto .especial de estudo. Isto resulta - como deveria ter acrescentado Condorcet - da circunstância de não ser ainda a política uma ciência positiva. Evidentemente, logo que haja assumido tal caráter, todos compreenderão que, para conhecê-la, é indispensável haver estudado as observações e as deduções sobre as quais há de fundar-se, Para tudo conciliar, no entanto, eliminando tal preconceito, sem ressuscitar o princípio da indiferença política, tão caro aos governantes, seria conveniente distinguir, mais do que se tem até hoje feito, as opiniões dos desejos. É razoável e natural, é mesmo necessário tenham todos os cidadãos desejos políticos, porque todos possuem um interesse qualquer na direção dos negócios sociais. E muito natural, por exemplo, que todos os cidadãos estranhos à classe dos privilegiados, vivendo do produto de seu trabalho desejem a liberdade, a paz, a prosperidade industrial, a economia nas despesas públicas e o bom emprego dos impostos. Uma opinião política, no entanto, exprime mais do que desejos; é, ainda, na maior parte das vezes, a expressão muito afirmativa e muito absoluta de que tais desejos somente podem ser satisfeitos por tais e quais meios, e de modo algum por outros. Ora, este é um ponto sobre o qual é ridículo e desarrazoado julgar sem ter especialmente sobre ele meditado. Por que é evidente que, em determinado problema, tal medida, tal instituição, é própria para atingir certa finalidade? Há uma cadeia de raciocínios e reflexões que exige, para ser bem feita, estudo especial desse gênero de considerações. Na falta de tal estudo, julgar-se-ão próprios, para conseguir certos fins, meios que produziriam efeito absolutamente oposto. f: por isto que muitas pessoas desejam sinceramente a liberdade e a paz, e têm, ao mesmo tempo, ideia tão falsa quanto aos meios próprios para proporcioná-las, que, se suas sugestões fossem postas em prática, provocariam, ao contrário, a desordem e a arbitrariedade. A meu ver, dessa análise das opiniões e dos desejos, em política, resultam duas consequências importantes. Em primeiro lugar, encarando as coisas sob este prisma, e considerando as opiniões políticas dos homens não esclarecidos apenas como a expressão de desejos, confundidos com os meios, ver-se-á que existe mais uniformidade do que geralmente se imagina nas vontades políticas de uma nação. Em França, por exemplo, entre os indivíduos que professam opiniões retrógradas, há apenas pequeno número, composto de antigos privilegiados, que deseja realmente, isto é, com conhecimento de causa, o restabelecimento das antigas instituições. A massa quer, no fundo, como todos, a liberdade, a paz e a economia; e se acrescenta a este desejo a ideia de regime feudal, é unicamente porque o considera o único próprio para garantir-lhe esses bens. Em segundo lugar, a meu ver, deriva da mesma análise a determinação da parte que a massa de uma nação deve ter no governo. Só o público deve indicar o objetivo a ser alcançado, porque, se nem sempre ele sabe o que lhe é necessário, sabe perfeitamente o que quer, e ninguém deve pensar em querer por ele. Dos meios para atingir esse objetivo, ocupar-se-ão, entretanto, exclusivamente os especialistas em política, desde que tal objetivo seja claramente indicado pela opinião pública. Seria absurdo que a massa pretendesse discorrer a esse respeito. A opinião deve querer, os publicistas propor os meios de execução, e os governantes executar. Enquanto estas três funções não forem distintas, haverá confusão e arbítrio em maior ou menor grau. Numa palavra: quando a política tornar-se uma ciência positiva, o público deverá conceder aos publicistas, e lhes concederá necessariamente, em política, a mesma confiança que atualmente confere aos astrônomos, quanto à astronomia, aos médicos, quanto à medicina, etc., com uma diferença, entretanto: ao público exclusivamente há de competir o alvo e o fim do trabalho. Esta confiança, que apresentou os mais graves inconvenientes enquanto a política foi misteriosa, vaga, inapreciável, numa palavra, teológica, não os apresentará mais quando se tornar uma ciência positiva, isto é, de observação, tal como acontece com a confiança que depositamos, sem temor, em um médico, na dependência de quem colocamos frequentemente a nossa vida. Neste estado de coisas, a submissão devida à razão e as precauções a serem tomadas contra o arbítrio, serão perfeitamente conciliadas. SEGUNDO OPÚSCULO (Abril de 1820) SUMARIA APRECIAÇÃO DO CONJUNTO DO PASSADO MODERNO O sistema social, que a marcha da civilização nos leva a substituir, era formado pela combinação do poder espiritual, ou papal e teológico, com o poder temporal, feudal e militar. Quanto ao poder espiritual, o nascimento desse sistema remonta ao começo da preponderância do cristianismo na Europa, isto é, ao terceiro ou quarto século, enquanto a origem do poder temporal se encontra nas primeiras grandes tentativas de estabelecimento dos povos do Norte na Europa meridional, e nos primeiros desmembramentos do Império Romano, ou seja, quase na mesma época. A constituição definitiva desses dois poderes ocorreu nos séculos XI e XII. Nessa época, de um lado, o feudalismo estabeleceu-se por toda parte, sobre bases fixas, como poder nacional; e, de outro, a autoridade da Santa Sé organizou-se, completamente, como poder europeu. Detenhamo-nos, por um momento, nessa época notável, a fim de apresentar duas importantes observações. Em primeiro lugar, efetuou-se essa dupla organização em pouco tempo e sem grandes dificuldades, porque havia sido gradualmente preparada durante os sete ou oito séculos decorridos desde a origem de ambos os poderes. O estabelecimento do poder temporal foi a consequência da destruição do império romano pelos povos setentrionais. Se esse poder não se constituiu logo após tal aniquilamento, foi porque, para isto, era evidentemente necessário se pusesse, antes de mais nada, um termo ao sistema de invasão: foi o que ocorreu através das conquistas das nações estabelecidas em primeiro lugar, relativamente às que tentavam novas invasões. Talo objetivo das guerras de Carlos Magno contra os saxões e sarracenos, e, em seguida, o das Cruzadas. A constituição do poder espiritual havia sido preparada pelo aniquilamento do politeísmo e pela instituição do cristianismo, cujo numeroso clero se disseminara por toda a Europa. Quando o Papa Hildebrando, no século XI, proclamou diretamente a supremacia da autoridade pontifícia, como poder europeu, sobre os poderes nacionais, não fez senão resumir um princípio, cujas bases já estavam estabelecidas em todas as cabeças, ou, em outros termos, redigir uma crença, cujos elementos se achavam todos adotados havia muito tempo. Em segundo lugar merece ser notada a coincidência dos dois poderes quanto à época de sua origem e constituição definitiva. Observa-se a mesma analogia em relação à sua decadência, e esta simultaneidade constante tende a provar - independentemente do raciocínio, que mostra se apoiarem esses dois poderes um ao outro - deverem eles desaparecer ao mesmo tempo, não podendo o poder temporal ser substituído por outro de natureza diversa, sem que análoga substituição ocorra, no tocante ao poder espiritual, e reciprocamente. Nascera este sistema social durante a existência do sistema anterior, e exatamente na época em que acabava de atingir seu desenvolvimento integral. Da mesma forma, quando, na Idade Média, o sistema feudal e teológico se constituiu, o germe de sua destruição começava a nascer, e acabavam de ser criados os elementos do sistema que deve hoje substituí-lo. Com efeito, quanto ao poder temporal, foi nos séculos XI e XII que se iniciou a emancipação das comunas; no atinente ao poder espiritual, foi pouco mais ou menos na mesma época que as ciências positivas se introduziram na Europa através dos árabes. Fixemos toda a nossa atenção sobre este fato capital, verdadeiro ponto de partida da série de observações através das quais devemos hoje esclarecer nossa política. A capacidade industrial, ou seja as artes e ofícios, deve substituir o poder feudal ou militar. Na época em que a guerra era e devia ser considerada como o primeiro meio de prosperidade para as nações, era natural estivesse a direção dos negócios temporais da sociedade nas mãos de um poder militar, e a indústria, tida como subalterna, fosse apenas empregada como instrumento. Ao contrário, quando, finalmente, as sociedades se convencem, pela experiência, de que o seu único meio de adquirir a riqueza consiste na atividade pacífica, isto é, nos trabalhos industriais, a direção dos negócios temporais deve naturalmente passar à capacidade industrial, e a força militar, por sua vez, não pode mais ser classificada senão como subalterna, força puramente passiva, e até, conforme é verossímil, destinada a tornar-se, algum dia, completamente - inútil. Ora, a libertação das com unas lançou a base deste novo estado de coisas; preparou-lhe a possibilidade, e mesmo a necessidade, que, em seguida, se desenvolveu cada vez mais, como provaremos em breve. Essa libertação constituiu a capacidade industrial, porquanto estabeleceu, para ela, uma existência social independente do poder militar. Antes dessa época, além de estarem os artesãos, coletivamente, na dependência absoluta dos militares, cada um deles se achava inteiramente sujeito ao arbítrio individual do dono da terra de que fazia parte. Deixando a emancipação subsistir o primeiro gênero de arbítrio, aniquilou o segundo, e, em consequência, criou o germe da destruição do primeiro. Antes, os artesãos nada possuíam de seu; tudo quanto tinham, e eles próprios, pertenciam ao senhor; não possuíam senão o que este, porventura, lhes queria deixar. A emancipação criou uma propriedade industrial tendo, como origem, o trabalho, propriedade distinta, independente, e bem cedo rival da propriedade territorial, puramente de origem e natureza militar. Por esta memorável inovação, a capacidade industrial pôde desenvolver-se, aperfeiçoar-se, estender-se, e as nações conseguiram organizar-se, em todas as suas partes, sobre uma base industrial, permanecendo militar unicamente a cúpula da sociedade, bem como a sua direção geral, cuja posse continuou a conservar. Façamos, agora, quanto ao poder espiritual, observações análogas às que acabamos de explanar relativamente ao temporal. A capacidade científica positiva deve, por sua vez, substituir o poder espiritual. Na época em que todos os nossos conhecimentos particulares eram essencialmente conjeturais e metafísicos, era natural estivesse a direção da sociedade, no tocante a seus negócios espirituais, em mãos do poder teológico, pois os teólogos eram, então, os únicos metafísicos gerais. Ao contrário, quando todos os ramos de nossos conhecimentos unicamente se baseiam em observações, a direção dos negócios espirituais deve ser confiada à capacidade científica positiva, visto ser evidentemente muito superior à teologia e à metafísica. Ora, a introdução das ciências positivas, na Europa, pelos árabes, criou o germe dessa importante revolução, agora plenamente terminada quanto aos nossos conhecimentos especializados e quanto às nossas doutrinas gerais atinentes à parte crítica. Apenas os árabes começaram a fundar, nas regiões da Europa, que haviam conquistado, escolas para o ensino das ciências de observação, logo um ardor geral dirigiu todos os espíritos de escol para essa nova luz. Criaram-se dentro em pouco escolas semelhantes em toda a Europa ocidental: na Itália, na França, na Inglaterra, na Alemanha, foram instituídos observatórios, salas de anatomia, gabinetes de história natural. Desde o século XIII, Rogério Bacon cultivava, com brilho, as ciências físicas. A superioridade do positivo sobre o conjetural, da física sobre a metafísica, foi de tal modo sentida desde a origem, mesmo pelo poder espiritual, que vários membros eminentes do clero, e, entre outros, dois papas, pouco mais ou menos na mesma época, foram completar sua educação em Córdoba, estudando aí as ciências de observação sob a direção de professores árabes. Resumindo as ponderações precedentes, podemos estabelecer, como princípio resultante da observação, que, no momento em que o sistema feudal e teológico definitivamente se organizou, os elementos de um novo sistema social começaram a formar-se. Uma capacidade temporal positiva, isto é, a capacidade industrial, nasceu ao lado do poder temporal, que chegara ao seu completo desenvolvimento; e uma capacidade espiritual positiva, isto é, a capacidade científica, ergueu-se por detrás do poder espiritual no instante em que este começava a desenvolver toda a sua atividade. (A divisão da sociedade, e de tudo quanto lhe concerne, em temporal e espiritual, deve subsistir no sistema novo, como acontecia no antigo. Esta divisão, que não existia entre os romanos, é o mais importante aperfeiçoamento realizado pelos modernos na organização social. Foi ela que primitivamente possibilitou fazer da política uma ciência, permitindo tornar sua teoria distinta da prática. Somente esta divisão, em o novo sistema, não se refere mais a dois poderes, mas a duas capacidades). Antes de passar ao exame dos fatos ulteriores, consideremos, entre os dois sistemas, notável diferença, que aparece desde o nascimento do novo, fato que procurei exprimir pela oposição das palavras poder e capacidade. Não digo: um novo poder se ergue ao lado de cada um dos dois antigos, mas, uma capacidade se levanta ao lado de um poder. Foi, em outros termos, a ação dos princípios, que então nasceu, para substituir-se, em nossos dias, à ação dos homens: a razão para substituir a vontade. Sendo militar, no antigo sistema, exigia o poder temporal, por sua natureza, o mais alto grau de obediência passiva da parte da nação. Muito ao revés, na capacidade industrial, encarada como devendo dirigir os negócios temporais da sociedade, o arbítrio não entra nem poderia entrar, porque, de um lado, tudo é julgável no plano que pode ser formado para trabalhar pela prosperidade geral, e, de outro, a execução de tal plano não exige senão grau muito fraco de comando. Assim também, sendo o poder espiritual, por sua natureza, conjeturável, devia necessariamente exigir o mais alto grau de confiança e submissão do espírito. Era esta uma condição indispensável à sua existência e à sua ação. A capacidade científica positiva, ao contrário, concebida como devendo dirigir os trabalhos espirituais da sociedade, não exige nem crença cega, nem mesmo confiança, pelo menos da parte de todos os que são capazes de compreender as demonstrações. Quanto aos demais, a experiência tem provado suficientemente que sua confiança nas demonstrações, unanimemente aceitas pelos cientistas positivos, não pode jamais ser-lhes prejudicial, não sendo este gênero de confiança, em última análise, suscetível de abusos. Assim, pode-se considerar, se se quiser, a capacidade científica positiva como suscitando um poder, na medida em que cria uma força; mas é o poder de demonstração em vez do de revelação. Tal é, pois, nosso ponto de partida. No século XI, os poderes temporal e espiritual constituíram-se definitivamente, e, ao mesmo tempo, duas capacidades positivas começaram a formar-se por detrás desses dois poderes, preparando-lhes a decadência e a substituição. Numa palavra: instituiu-se um sistema e outro começou a surgir. Desde esta época, esses dois sistemas sempre coexistiram, entrando em choque, ora surdamente, ora abertamente, e de maneira que o primeiro cada vez mais perdia suas forças, enquanto o segundo dia a dia se fortalecia. O exame do passado divide-se, portanto, a partir desse instante, em duas séries contemporâneas: a das observações relativas à decadência do antigo sistema, e a do surto do novo. Tal será também a divisão que seguiremos em tudo quanto nos resta dizer. Primeira Série Na época, que acabamos de fixar para a origem de nossas observações, as forças eram demasiadamente desiguais entre os dois sistemas coexistentes (um deles entrava no seu apogeu, enquanto o outro apenas surgia) para que, por muito tempo, pudesse manifestar-se entre eles qualquer luta direta e perceptível. A história mostra-nos, também, que a luta só começou a existir abertamente no século XVI. Os quatrocentos ou quinhentos anos precedentes constituíram o período de esplendor do sistema feudal e teológico. Mas todo esse esplendor se apoiava sobre um terreno minado. Se os historiadores houvessem analisado melhor e aprofundado mais o exame da Idade Média, não nos teriam falado apenas da parte visível de tal período; teriam verificado a preparação gradual de todos os grandes acontecimentos que se desenrolaram mais tarde, e não teriam apresentado as explosões do século XVI e seguintes como repentinas e imprevistas. Seja como for, é incontestável que só no século XVI .começou a luta franca entre os dois sistemas. É a partir daí que vamos examiná-la. O ataque de Lutero e de seus co-reformadores, contra a autoridade pontifícia, derrubou, de fato, o poder espiritual, como força europeia, e este era o seu verdadeiro caráter político. Ao mesmo tempo, solapou radicalmente a influência que ainda restava à autoridade teológica, destruindo o princípio de crença cega, substituindo-o pelo direito de exame que, contido, a princípio, dentro de limites bem estreitos, devia inevitavelmente ampliar-se mais e mais, e abranger, por fim, um campo indefinido. Esta dupla mudança operou-se de maneira tão completa nos países que se conservaram católicos, e principalmente na França, quanto nos que abraçaram o protestantismo. Houve, todavia, a seguinte diferença indispensável de observar: nos países que se mantiveram católicos, sentindo o poder espiritual estar destruído, como autoridade distinta e independente, pôs-se ao serviço do poder do rei, oferecendo-lhe o apoio dessas mesmas doutrinas através das quais havia outrora dominado. Esta mudança de atitude do clero teve por efeito prolongar, um pouco além do termo natural, a duração de sua influência política, mas criou, para a realeza, o inconveniente capital de ligar mais intimamente a sua sorte à de doutrinas que haviam perdido crédito entre as classes instruídas. A execução da reforma (em virtude das guerras que acarretou) consumiu a totalidade do século XVI e o começo do XVII. O ataque ao poder temporal realizou-se imediatamente após na França e na Inglaterra. Nos dois países, esse ataque foi efetuado pelas comunas, tendo, como chefe, um dos dois ramos do poder temporal. A tal respeito, não houve entre as duas nações senão uma diferença. Na Inglaterra, foi o feudalismo que se ligou com as com unas contra a autoridade real, enquanto em França, foi a realeza que se pôs à sua frente contra o poder feudal. Essa combinação das comunas com uma das metades do poder temporal, contra a outra, nascera em ambos os países logo após a sua emancipação, e mesmo não contribuíra pouco para determiná-la. Os efeitos de tal combinação haviam-se manifestado desde muito antes do século XVII, através de inequívocos resultados, que haviam preparado os acontecimentos importantes desenrolados nesse século. Em França, o Cardeal Richelieu trabalhou diretamente para abater o feudalismo, e, depois dele, Luís XIV terminou esse combate. Reduziu a nobreza à mais completa nulidade política, à insignificância mais absoluta, e não lhe deixou outro papel a desempenhar a não ser o de guarda de honra da realeza. É essencial observar que Richelieu e Luís XIV animaram ambos, poderosamente, as belas-artes, as ciências, as artes e ofícios; procuraram elevar a existência política dos cientistas, dos artistas e artífices, ao mesmo tempo em que derrubaram a dos nobres. Essa intenção foi principalmente manifestada pelo ministro Colbert, ele próprio um artesão. Voltaremos, porem, a este fato em nossa segunda série. Por enquanto basta-nos mencioná-lo. A luta teve como resultado, na Inglaterra, a revolução de 1688, que limitou o poder da realeza tanto quanto era possível fazê-lo sem destruir o antigo sistema. Destarte, o ataque ao poder temporal produziu, separadamente, em cada um desses países, o enfraquecimento, tão completo quanto possível, de uma parte diferente desse mesmo poder. Assim, portanto, os dois povos haviam realizado a destruição do poder temporal até certo ponto, além do qual essa destruição se tornava impraticável, a não ser saindo do antigo sistema social. Para que este resultado completo pudesse realizar-se, de uma parte e outra, bastava adotasse cada uma dessas nações a modificação feita pela outra. E o que acaba de ocorrer em França pela adoção da constituição inglesa. A coligação das com unas com uma parte do poder temporal, a fim de atacar a outra, bem como a proteção, muito ativa, concedida pelo poder temporal de vários países contra o espiritual (na época da reforma), fizeram que, sem um exame muito aprofundado, se torne impossível compreender a verdadeira natureza de tais ataques. Daí resultou um erro muito difundido, que cumpre assinalar e destruir. Ao invés de ver em tais acontecimentos a luta das comunas, tendo, como chefe, certas porções do sistema feudal e teológico em oposição a outros elementos desse sistema neles se viu apenas a contenda dos reis contra os papas, e das autoridades, real e feudal, uma contra a outra. As comunas não foram consideradas senão como instrumentos empregados pelos diferentes poderes, e quase nunca sob outro aspecto. Antes de apresentar as considerações, por meio das quais se pode retificar o erro que acabamos de indicar, vem a propósito lembrar que, seja qual for o ponto de vista adotado a respeito, nossa série atual não será afetada; não ficará sendo, por isto, menos verdadeira, pois sua finalidade essencial é verificar a decadência contínua do antigo sistema. Apesar disto, longe está de ser indiferente ignorar ou conhecer a verdadeira ação que os artífices, os artistas e os cientistas (os quais, considerados coletivamente, formavam as comunas) exerceram para determinar essa decadência. Estabelecemos, como princípio, ser evidente sinal de decadência qualquer cisão entre os elementos de um sistema. E, assim, ao observar o primeiro grande ato de divisão entre o poder temporal e o espiritual, poderíamos predizer a queda mais ou menos próxima de ambos. Divisões desse gênero manifestaram-se muito cedo no antigo sistema; evidenciaram-se, mesmo, antes de haver-se organizado completamente, e tornaram-se contínuas quase logo após sua constituição definitiva. Se refletirmos bem sobre este fato, reconheceremos serem tais divisões inevitáveis nesse sistema. Os poderes são necessariamente rivais e ciosos, uns dos outros, mesmo quando o interesse comum mais evidente lhes impõe, como lei, a mais íntima união. E, na verdade, não sendo esses poderes suscetíveis de serem claramente caracterizados, era natural pretendesse cada um deles a totalidade do domínio. Verdadeira combinação, combinação sólida, somente pode existir entre capacidades positivas. A combinação torna-se, neste caso, possível, e, por assim dizer, forçada, porque tende cada uma das capacidades, por si própria, a limitar-se ao seu papel natural, sempre circunscrito tão nitidamente quanto possível. A pretensão à universalidade, única que poderia perturbar este arranjo natural, apresenta-se, à vista de todos, como absurda, e não poderia, por consequência, conseguir jamais número bastante elevado de partidários de modo a tornar-se perigosa. As comunas, evidentemente demasiado fracas no começo de sua existência política, foram forçadas, para lutar contra o antigo sistema, a unir-se aos chefes do campo adverso. Procuraram aproveitar-se das dissensões que nele se manifestavam, e sua prudência foi tal que, efetivamente, sempre se beneficiaram com elas. Seu plano foi bastante simples: consistiu em prestar constantemente apoio ao poder que se mostrava, em cada época e em cada país, mais liberal, vale dizer, mais conforme aos seus interesses. Este foi o plano que seguiram constantemente, por uma espécie de admirável instinto, em todas as crises parciais que precederam as duas grandes lutas dos séculos XVI e XVII. Seu procedimento nestas últimas épocas não foi, assim, de modo algum acidental: resultou de longos hábitos contraídos. Eis o que explica a razão pela qual as comunas se colocaram, na Inglaterra, ao lado dos lordes contra os reis, enquanto, em França, se ligaram à realeza contra o feudalismo. Em tempos mais remotos, em França e na Inglaterra, haviam as comunas, de modo análogo, abraçado a causa do poder espiritual, por ser então o mais liberal. Assim, na realidade, não eram as comunas instrumentos nas mãos dos antigos poderes; estes é que, pelo contrário, deveriam ser considerados como tendo servido de instrumentos às comunas, muito embora movidos por impulso próprio. De fato, foi pelas comunas, e em seu proveito, que o ataque ao antigo sistema se realizou. Se alguém foi então logrado, certamente não foram elas. As comunas exerceram, além disto, nas duas lutas dos séculos XVI e XVII, uma ação inteiramente direta e só procedente delas. Os dois elementos do novo sistema, as capacidades industrial e Científica, forneceram, cada qual, sua parte nessa ação. Se bem que houvessem atuado sempre concorrentemente, foi, no entanto, a segunda, isto é, a capacidade científica, que se ligou particularmente ao poder espiritual, bem como a primeira - a capacidade industrial - ao poder temporal, conforme exigia a natureza das coisas. Cada capacidade combate, corpo a corpo, o poder correspondente e (o que merece ser notado) nos raciocínios então empregados pela capacidade científica a fim de derruir as doutrinas teológicas, foi na própria teologia que se julgou inicialmente obrigada a buscar suas bases ou, pelo menos, se considerou forçada a acomodá-las à maneira teológica. É o que se observa, principalmente, em todas as obras do chanceler Bacon. Este fato, na luta espiritual, corresponde ao da coligação das comunas com uma das metades do poder militar na luta temporal. Não temos necessidade de verificar a influência fundamental que os progressos das ciências de observação exerceram sobre a reforma de Lutero, porque essa influência não é hoje, por ninguém, posta em dúvida; basta-nos mencioná-la. Quanto à influência, menos forte e menos direta, do progresso das artes e ofícios sobre essa mesma reforma, os melhores historiadores, que têm tratado de tal época, dela fizeram ressaltar notável exemplo, indicando a ação incontestável exercida sobre esse ponto pelo grande desenvolvimento impresso ao comércio e, consequentemente, à indústria, pela descoberta da América e do caminho das índias através do cabo da Boa Esperança, descoberta que, por seu turno, decorria dos progressos das artes industriais, combinados com os das ciências de observação, Duas outras descobertas de primeira ordem, uma nas artes, outra nas ciências, feitas, a mais antiga no fim do século XV, a outra cerca de um século mais tarde, vieram assegurar e apressar a decadência do antigo sistema, imprimindo, à luta empreendida pelos elementos do novo, marcha ao mesmo tempo mais direta, mais segura, mais calma e mais rápida. A primeira foi a da imprensa, que, se não contribuiu para determinar a reforma, serviu, ao menos, para propagá-la de maneira infinitamente mais rápida e mais completa do que poderia tê-lo sido sem o seu concurso. Mas não foi este o seu efeito mais essencial quanto à decadência do antigo sistema. Não repetiremos os raciocínios, muito conhecidos, que fazem sentir a imensa mudança operada por essa descoberta na ordem social ao criar a soberania da opinião pública. Considerá-la-emos sob o único ponto de vista que aqui nos ocupa. Deste ponto de vista diremos: 1º - ela assegurou ao novo sistema os meios de tomar a iniciativa, mais direta e mais completa, a fim de preparar a substituição do antigo, sem ser obrigado a continuar sob a proteção de qualquer dos poderes a extinguir; 2º - fez desaparecer, em grande parte, o caráter violento apresentado, até então, pela luta, porque mudou o ataque em crítica. A segunda descoberta, a que aludi, é a da verdadeira teoria astronômica, encontrada por Copérnico, provada e estabelecida por Galileu. Comumente os melhores espíritos não medem o valor exato da ação, verdadeiramente poderosa, exercida pela mudança operada por essa teoria em todas as cabeças, relativamente ao aniquilamento radical do sistema teológico. Essa influência foi de tal ordem que só ela bastaria para determinar a destruição desse sistema. Limitar-nos-emos a indicá-la pela consideração seguinte, que cada qual pode amplamente desenvolver. Todo o sistema teológico se fundamenta na suposição de haver sido a Terra feita para o homem, e o Universo inteiro para a Terra: eliminai esta hipótese e todas as doutrinas sobrenaturais se desmoronam. Ora, tendo-nos Galileu demonstrado ser o nosso planeta um dos menores, em nada se distinguindo dos outros, girando, como os demais, em torno do sol, a hipótese de haver sido a natureza toda feita para o homem choca tão manifestamente o bom-senso, está de tal modo em oposição com os fatos, que não pode deixar de parecer absurda e ser logo derrubada, arrastando com ela as crenças de que é a base. Numa palavra: as doutrinas teológicas são absolutamente incompatíveis com a plena convicção da teoria astronômica moderna, mesmo para os espíritos em que essa convicção não repousa no conhecimento das demonstrações que a determinam. Se pesarmos suficientemente esta reflexão, haveremos de nos convencer de haver a Inquisição exercido bem o seu papel de sentinela do poder espiritual, procurando sufocar, ao nascer, a teoria de Galileu. Resumindo tudo quanto até aqui dissemos, verifica-se que, no fim do século XVII, dois ataques parciais se haviam dado contra o antigo sistema: um, no século XVI, contra o poder espiritual, e outro, no XVII, contra o temporal. À primeira vista, esse duplo ataque poderia parecer suficiente, mas faltava muito para que o fosse, havendo sido o sistema abalado em seus elementos e não em seu conjunto; fora abatido em algumas de suas partes, restando derrubá-lo como sistema. Além disto, tendo ocorrido sob a direção de um ramo dos antigos poderes, cada luta particular não tivera caráter bastante claro; não se tinha pronunciado bastante firmemente, como choque, entre um sistema e os elementos do outro. Era esta outra razão, diversa da precedente, que explica a insuficiência das duas primeiras lutas. Por conseguinte, quem, no fim do século XVII, tivesse perfeito conhecimento do verdadeiro estado das coisas, teria podido predizer, com plena segurança, que os dois ataques parciais, até então realizados, eram apenas preparatórios, e que, no século seguinte, o ataque se dirigiria, de maneira geral, contra o conjunto do sistema, e, finalmente, seria decisivo para a sua queda. Tais acontecimentos eram a consequência inevitável de todo o passado, desde o século XI, e o desfecho imediato dos dois séculos que acabavam de extinguir-se [séculos XVI e XVII]. Seria supérfluo entrar aqui em qualquer particularidade sobre fatos tão recentes, e que se acham na memória de todos. O século XVIII foi, na realidade, o que devia ser - a continuação, o complemento e o resumo dos dois precedentes. Quanto ao poder espiritual, o princípio do direito de exame em matéria religiosa estabelecido por Lutero, mas de maneira muito restrita, foi ampliado até seu limite extremo. A aplicação mais ousada desse direito caminhou paralelamente com as tentativas feitas para estabelecê-lo em toda a sua amplitude. Submetidas à discussão, as crenças teológicas foram completamente destruídas, e, sem dúvida, com demasiada imprudência, precipitação e leviandade, com um esquecimento por demais absoluto do passado, e pontos de vista muito confusos sobre o futuro. Mas foram, enfim destruídas, e de modo a não poderem reerguer-se, porque a crítica foi levada até ao ponto de cobri-las de ridículo aos olhos dos homens menos instruídos. Não se poderia negar este fato nem julgamos essa crítica: apenas a observamos. Quanto ao poder temporal, se examinarmos o que ocorreu a seu respeito na França, onde todo o século XVIII deve ser principalmente observado, veremos que o feudalismo, depois de haver perdido, no século precedente, todo o seu poder político, perdeu, neste, toda a sua consideração civil. Tendo a realeza chegado, sob Luís XIV, à plena posse do poder temporal, graças ao apoio que lhe haviam prestado as comunas, deixou de unir-se a elas, o que constituiu uma grande falha de sua parte. Luís XIV cometeu grave erro unindo-se à nobreza que se resignava, enfim, a ter, à custa de dinheiro e honrarias, existência política subalterna e insignificante, parecendo esquecer-se de haver outrora ombreado com a autoridade real. Se Luís XIV não tivesse cometido esse erro capital; se tivesse abandonado à sua sorte um poder que se tornara caduco, um poder cujo destino estava irrevogavelmente fixado nos decretos do espírito humano, e ele próprio havia eficazmente concorrido para destruir; se tivesse, enfim, continuado a seguir simplesmente a direção das comunas, teria, sem dúvida, poupado todas as desgraças que, mais tarde, caíram sobre Luís XVI. Foi isto, com efeito, o que primitivamente desacreditou a realeza aos olhos das comunas e dela as afastou. A vergonha que, em seguida, recaiu sobre o poder real, em consequência dos costumes do Regente e da libertinagem de Luís XV, levou ao cúmulo essa desconsideração. Ao mesmo tempo, havendo os filósofos sujeitado o poder temporal à mesma discussão feita a propósito do espiritual, aquele não ofereceu maior resistência, porque era, em grande parte, baseado nas mesmas doutrinas desde a reforma. Levou, assim, o século XVIII a crítica dos dois poderes a seus últimos limites, e terminou a destruição do antigo sistema em seus elementos e em seu conjunto. Um exame pormenorizado da maneira pela qual essa destruição se operou seria aqui descabido. Indicarei, apenas, a influência que os progressos imensos e sempre crescentes, realizados pelas ciências de observação desde Galileu exerceram e deviam exercer sobre a destruição das doutrinas teológicas. A descoberta de uma lei física geral por Newton, a análise realizada por Franklin do principal fenômeno meteorológico, assim como a invenção do meio de submetê-lo ao poder do homem, e, finalmente, todas as descobertas notáveis, efetuadas, em tão grande número, no corrente século, em astronomia, física, química e fisiologia, contribuíram mais para a destruição radical e irrevogável do sistema teológico do que todos os escritos de Voltaire e de seus cooperadores, apesar de sua prodigiosa influência. Os partidários do antigo sistema e seus adversários não deram muita atenção a este fato. Preparada, ou, para melhor dizer, reclamada, como indispensável, por esse estado de coisas, a revolução francesa explodiu, e tomou, desde a sua origem, uma falsa direção, havendo destruído a realeza. Não tardou, entretanto, esta última a reconstituir-se, porque, sendo, em Franca, a cabeça e o coração do antigo sistema, só com ele pode extinguir-se, assim como um sistema não pode ser extinto senão quando outro iá existe completamente formado e pronto para imediatamente substituí-lo. O resultado final de todo esse grande abalo foi a abolição dos privilégios, a proclamação do princípio da liberdade ilimitada de consciência e, por fim, o estabelecimento da constituição inglesa outorgada pelo próprio poder real. A abolição dos privilégios não fez senão completar a ruína do feudalismo e reduzir inteiramente o poder temporal apenas ao do rei. A proclamação do princípio da liberdade ilimitada de consciência aniquilou completa e irrevogavelmente o poder espiritual. (Esta proclamação tornou impossível o estabelecimento de qualquer autoridade teológica, quer política, quer simplesmente moral; porque, sendo deixadas as crenças ao arbítrio de cada indivíduo, não poderá haver, talvez, duas profissões de fé completamente uniformes, e a de cada indivíduo poderá mudar da manhã para a tarde, seguindo todas as variações inspiradas pelo estado perpetuamente móvel de suas afeições morais e físicas, bem como pelas circunstâncias sociais, igualmente variáveis, nas quais o mesmo indivíduo se encontrará sucessivamente colocado. Numa palavra, é claro que a liberdade ilimitada de consciência e a indiferença teológica absoluta significam exatamente o mesmo quanto às consequências políticas. Em ambos os casos, as crenças sobrenaturais não podem mais servir de base à moral. É um fato que, longe de dever ocultar-se, não se poderia salientar em demasia por provar a necessidade de constituir-se sobre outros princípios positivos (isto é, deduzidos da observação), a moral, que é a base, ou, antes, o laço geral da organização social). Finalmente, o estabelecimento da constituição inglesa deve ser considerado sob dois aspectos diversos, e, até certo ponto, opostos. Por um lado, continuou a demolição do antigo sistema, limitando o poder real (que é o seu único vestígio evidente) tanto quanto era possível fazê-la, sem sair desse sistema. Por outro, criando uma câmara representativa da opinião pública, instituiu o verdadeiro meio de transição, meio que permite chegar pacificamente, sem esforço e com rapidez, ao sistema que deve seguir-se, logo que estiver formado e apto a entrar em atividade. Tendo chegado ao fim do último termo da primeira série de observações, vou resumir, em poucas palavras, as consequências deste exame. Meu ponto de partida era este: no século XI, o sistema feudal e teológico constituiu-se definitivamente quanto aos poderes temporal e espiritual. Nessa mesma época, surgiram os elementos de um novo sistema social, isto é, a capacidade industrial ou dos artesãos (nascida com a emancipação das comunas), à retaguarda do poder temporal ou militar; e a capacidade científica (nascida com a introdução das ciências de observação na Europa, pelos árabes), por detrás do poder espiritual. Estes dois sistemas coexistiram durante quatrocentos ou quinhentos anos sem se chocarem abertamente, em virtude da desigualdade de forças: a luta se preparava em silêncio durante esse intervalo. A partir do começo do século XVI, deram-se três ataques principais dos elementos do novo sistema contra o antigo: dois parciais e um geral: cada qual durou cerca de um século. O século XVI assistiu ao ataque contra o poder espiritual; o XVII viu o ataque contra o temporal; e, finalmente, o ataque geral e decisivo, contra o antigo sistema, ocorreu durante o século XVIII, determinando a queda do regime teológico-militar. O verdadeiro estado atual do antigo sistema é este, sem qualquer exagero: de um lado, não há mais doutrina, todas as crenças que lhe serviam de base estão extintas ou prestes a extinguir-se; o poder espiritual, portanto, não pode mais agir senão sobre a última classe da sociedade. De outro lado, o poder temporal está reduzido unicamente a um só de seus ramos, e este, o poder do rei, acha-se reduzido às menores dimensões que possa ter para não deixar cair, como massa inerte, todo o antigo sistema nele suspenso. Enfim, o antigo sistema só tem hoje a força estritamente necessária para manter a ordem até o estabelecimento do novo; e é por demais duvidoso que consiga mantê-la se esse estabelecimento for excessivamente retardado. Deixo a cada qual julgar, em face desta exposição, se a organização do novo sistema é, ou não, urgente, e se os artistas, os cientistas e os artesãos não cometem o maior erro despreocupando-se a esse respeito. Tal é o verdadeiro estado presente da sociedade sob o aspecto do antigo sistema. Logo veremos, pelo exame da segunda série de observações, se é mais satisfatório quanto ao novo sistema. Segunda Série Tanto nos pareceu tempestuosa a marcha da civilização na série precedente, quanto a acharemos calma na que vamos examinar. Consideramos anteriormente a desorganização sucessiva do antigo sistema social; mas, ao mesmo tempo em que se efetuava essa decadência, a sociedade, a pouco e pouco, se organizava em todas as suas partes, segundo um sistema novo, que se acha agora bastante desenvolvido a fim de poder substituir o antigo, já em extrema decrepitude. É este desenvolvimento gradual do novo sistema que nos resta observar e explicar. Estabeleçamos, antes de tudo, o ponto de partida. Vimos que, no século XI, no momento preciso em que o antigo sistema acabava de constituir-se, nasciam os elementos de uma nova organização social. Esses elementos eram, quanto ao temporal, a capacidade da indústria nascida da emancipação das comunas, e, quanto ao espiritual, a capacidade científica, resultante da introdução das ciências positivas na Europa pelos árabes. Se algum homem de gênio tivesse podido observar, desde essa época, tal estado de coisas, com suficientes esclarecimentos, teria infalivelmente previsto, em sua origem, toda a grande revolução que se efetuou depois; teria reconhecido tenderem inevitavelmente os dois elementos, acabados de surgir, a derrubar os dois poderes cuja combinação formava o sistema então em vigor. Teria igualmente previsto que esses dois elementos se desenvolveriam, cada vez mais, à custa dos dois poderes, de modo a constituírem, pouco a pouco, um sistema que devia acabar por substituir o antigo. Apliquemo-nos, primeiro, a verificar nitidamente este apanhado fundamental, que nos mostrará estar o germe desta segunda série totalmente contido em seu primeiro termo. Examinaremos, em seguida, a maneira pela qual se operou de fato a organização do novo sistema. Esta dupla tendência do novo sistema (igualmente necessária sob os dois aspectos) para destruir o antigo e substituí-lo, resultava diretamente das duas seguintes causas: em primeiro lugar, pela própria força das coisas, a capacidade industrial e a capacidade científica são antagônicas, uma do poder militar, a outra do poder teológico. Em segundo lugar, essas duas capacidades, em consequência da maneira pela qual acabavam de constituir-se, estavam estabelecidas fora do antigo sistema, pertencendo sob este aspecto, a classes distintas e independentes dos poderes temporal e espiritual. Esta última circunstância, ao mesmo tempo em que assegurava, no futuro, às duas capacidades, a possibilidade de atingirem seu desenvolvimento integral, imprimia-lhes um caráter fundamental e indelével de oposição e incompatibilidade com o antigo sistema. Tem-se, até hoje, prestado tão pouca atenção a esta observação essencial, que é indispensável desenvolvê-la com alguma amplitude. No estado social, que ainda hoje subsiste na Rússia, onde todas as empresas de artes e ofícios são dirigidas, em última análise, por homens da classe feudal, a capacidade industrial não se apresenta como oposta, por sua natureza ao poder militar, e como devendo corresponder a um sistema social distinto. Não adquiriu, ainda, caráter que lhe seja próprio. Os artesãos são apenas instrumentos passivos nas mãos dos militares. O mesmo sucede à capacidade científica, quando a cultura das ciências é ainda exercida pelo poder teológico, o que ocorreu no começo da civilização, nas antigas teocracias do Oriente, e se tem prolongado até hoje na China. A capacidade científica não é então, na realidade, senão um instrumento de domínio para o sacerdócio. Tal foi, precisamente, o estado de coisas na Europa, até a memorável época que tomamos para ponto de partida. Antes da emancipação das comunas, a incipiente indústria agrícola, comercial e manufatureira, que existia, se achava completamente, senão sob a direção, pelo menos na dependência absoluta do poder temporal. Assim também, antes da introdução das ciências positivas na Europa, pelos árabes, as poucas luzes existentes se encontravam totalmente nas mãos do poder espiritual. Notemos que este estado de coisas, enquanto subsistiu, assegurava ao antigo sistema uma vida indestrutível, não só porque os dois elementos, que podiam preparar o novo, estavam absolutamente na dependência dos antigos poderes, mas também porque, em consequência desta mesma causa, as duas capacidades se achavam indefinidamente estacionárias em seu desenvolvimento. Enquanto as ciências e as artes são consideradas unicamente como instrumentos, não podem nunca elevar-se acima de certo grau muito pouco elevado, conforme se pode observar na China e na Índia. Ao contrário, assim que as comunas se emanciparam e as ciências positivas foram exclusivamente cultivadas pelos leigos, o que aconteceu logo após sua introdução na Europa, as coisas mudaram completamente de figura. Estes dois grandes acontecimentos permitiram, a princípio, às artes e às ciências, tenderem livremente para o seu completo desenvolvimento, e não impuseram à expansão das duas capacidades positivas outros limites, a não ser os da duração da espécie humana. Em segundo lugar, desde esse momento, a capacidade industrial e a capacidade científica, desprendidas, para sempre, do antigo sistema, constituíram-se solidamente fora dele e adquiriram existência própria, característica, independente. Ora, elas não podiam deixar de ser instrumento do antigo sistema sem se tornarem suas inimigas: é o caso do adágio: "Qui non est me, contra me est" (Quem não está comigo, está contra mim). Esta revolução fundamental criou, portanto, na sociedade, duas forças novas - a industrial e a científica - que, desde a sua origem, e em virtude dessa própria origem, ficaram impregnadas, para sempre, do duplo caráter de antagonistas da antiga ordem política, e de elementos constitutivos de uma ordem nova. O desprezo e o ódio que o feudalismo e a teologia mostraram constantemente, desde essa época, um pelas artes e ofícios, a outra pelas ciências de observação, reforçaram essa divergência, tornando-a mais acentuada. Assim, pois, a mudança operada no século XI continha, ao mesmo tempo, o princípio de destruição do antigo sistema e o germe de um novo. Todo o passado, desde essa época, foi unicamente a consequência e o desenvolvimento desse duplo estado primitivo da sociedade. Na série precedente consideramos este desenvolvimento sob o primeiro aspecto. Vamos, agora, ocupar-nos exclusivamente em acompanhá-lo e estudá-lo sob o segundo prisma. Seria certamente absurdo pensar que a organização sucessiva do novo sistema haja sido dirigida pelos cientistas, artistas e artesãos, de acordo com um plano premeditado, seguido de maneira invariável, desde o século XI até os nossos dias. Em nenhuma época o aperfeiçoamento da civilização obedeceu a determinada marcha assim combinada, concebida previamente por um homem de gênio e adotada pela massa. (O grande erro dos legisladores e filósofos da antiguidade consistiu, precisamente, em quererem sujeitar a marcha da civilização a seus pontos de vista sistemáticos, quando, ao contrário, seus planos é que lhe deveriam ser subordinados. Este erro foi, no entanto, muito desculpável e natural da parte deles, porque, nessa época, os homens estavam ainda muito próximos do começo da civilização para poderem observar que ela segue determinada marcha e reconhecer a direção seguida, e, com mais forte razão, para perceberem que essa marcha independe de nós. Só se podia evidentemente chegar a esta verdade a posteriori, e não a priori. Em outros termos, a política somente podia tornar-se uma ciência baseando-se em observações, e estas não podiam existir senão após a existência de uma civilização muito desenvolvida. Era necessário o estabelecimento de um sistema de ordem social, admitido por uma população muito numerosa, composta de várias grandes nações, e toda a duração possível de tal sistema a fim de que uma teoria pudesse fundar-se sobre essa grande experiência). Isto é de todo impossível, pela própria natureza das coisas; porque a lei suprema dos progressos do espírito humano impulsiona e domina tudo; para ela, os homens não são mais do que instrumentos. Conquanto esta força derive de nós, não está em nosso poder subtrairmo-nos à sua influência ou lhe dominar a ação, como também não podemos modificar, de acordo com a nossa vontade, o impulso primitivo que faz circular nosso planeta em torno do sol. Os efeitos secundários são os únicos sujeitos à nossa dependência. Tudo quanto podemos consiste em obedecer a essa lei (nossa verdadeira providência) com conhecimento de causa, dando-nos conta da marcha que ela nos prescreve, ao invés de sermos cegamente por ela impelidos; e, digamos de passagem, é nisto que consistirá precisamente o grande aperfeiçoamento filosófico reservado à época atual. Mas, apesar disto, quando vemos, na ordem política, uma série de acontecimentos que se encadeiam de modo semelhante, como se os homens, que foram seus agentes, houvessem procedido de acordo com um plano, não será permitido empregar esta suposição para tornar mais evidente tal encadeamento? (Notarei, aliás, que, se é verdade só tornar-se uma ciência positiva ao basear-se em fatos observados, cuja exatidão seja geralmente reconhecida, é também incontestável (de acordo com a história do espírito humano em todas as direções positivas) que um ramo qualquer de nossos conhecimentos só se torna uma ciência na época em que se ligam, por meio de uma hipótese, todos os fatos que lhe servem de fundamento. Assim, quando a política se constituir em ciência, é certo que nela se empregarão hipóteses, como se tem feito nas outras ciências, e se empregarão no sentido que acabo de indicar). É seguir neste caso - somente afastando-nos muito menos da realidade - o uso adotado nas ciências físicas, onde, para apresentar mais claramente um conjunto de fenômenos, se atribuem, à própria matéria inorgânica, intenções e desígnios combinados. Além disto, uma necessidade inevitável, que encadeia uma série de acontecimentos, e um plano premeditado que os dirige, assemelham-se muito, por suas consequências, e veremos haver sido a marcha seguida pelo novo sistema exigida pela situação de seus elementos em sua origem. O plano que pode ser considerado como tendo sido seguido pelas comunas, desde a época de sua emancipação, a fim de preparar, pouco e pouco, a organização da sociedade sobre as bases que lhe eram próprias, foi o seguinte: trataram unicamente de atuar sobre a natureza para modificá-la tanto quanto possível, da maneira mais vantajosa à espécie humana, não procurando exercer ação sobre os homens, a não ser a fim de determiná-los a concorrer para essa atuação geral sobre as coisas. Tal é, em poucas palavras, a simples marcha que os cientistas e os artesãos seguiram, de maneira invariável, desde o começo, visando a estudar, exclusivamente, uns a natureza, a fim de conhecê-la, outros procurando aplicar esse conhecimento à satisfação das necessidades e desejos do homem. De tal modo foi prudente esta marcha que não teria sido possível escolher outra melhor, se aos cientistas e aos artesãos fosse facultado procederem de conformidade com ideias premeditadas desde o início e livremente discutidas. Enfim, tão perfeito se revela este plano que tudo quanto hoje nos resta a fazer é (sem nada alterar nele) aplicá-lo à direção do conjunto da sociedade, assim como os nossos antepassados conseguiram gradualmente a ele ligar todas as partes da ação social isoladamente considerada. É fácil explicar por que este plano foi seguido sem nunca haver sido combinado, nem mesmo pressentido por ninguém. Depois de termos dado esta explicação, indicaremos, sumariamente, os motivos do bom êxito que obteve. Pelo próprio fato de sua emancipação, desembaraçaram-se as com unas da dependência individual, que antes pesava sobre cada um de seus membros; mas continuaram sujeitas à dependência coletiva exercida sobre a massa dos artesãos e dos cientistas pelo conjunto dos militares e dos teólogos. Esta dependência era tão grande, a princípio, e as comunas de tal modo fracas, que não podiam, evidentemente, conceber a ideia de se subtraírem a ela. Este obstáculo, que, à primeira vista, parecia dever ser-lhes funesto, foi precisamente o que assegurou o triunfo de seus estorços: impediu-as de se transviarem e forçou-as, por necessidade invencível, a seguirem a marcha que, no fundo, era a melhor. Não podendo pensar em participar da autoridade e nem mesmo em subtraírem-se ao despotismo coletivo, procuraram as comunas apenas aproveitar-se do grau de liberdade individual, que já haviam obtido, a fim de desenvolverem, o mais possível, a capacidade industrial e a capacidade científica. Cientistas e artífices procuraram atuar somente sobre a natureza, uns para penetrarem, por meio de observações e experiências, no conhecimento de suas leis, os outros para aplicarem tais conhecimentos à produção dos objetos necessários, úteis ou agradáveis. Nisto não fizeram mais do que seguir a tendência natural que nos impele para o melhoramento de nossa sorte, pois, pela própria circunstância de sua inferioridade política, a ação sobre a natureza era o único caminho, então aberto, para melhorarem as comunas a sua condição social. Vê-se, destarte, bem claramente, qual foi a força que obrigou as comunas a seguirem, sem disto se darem conta, o plano que há pouco indiquei. Para compreender quanto este plano se conformava com os seus verdadeiros interesses, façamos, primeiro, uma suposição: admitamos que o estado de coisas não fosse, a princípio, tal como acabo de descrever; imaginemos que as comunas, logo após a sua emancipação, tivessem obtido uma parte plena e total no exercício do supremo poder político então existente. Que teriam feito desse poder? Que teria sucedido? Provavelmente, o seguinte: Essa participação na autoridade ter-lhes-ia feito perderem de vista seu verdadeiro objetivo: o desenvolvimento das capacidades industrial e científica. Tal desenvolvimento teria sido, pelo menos, infinitamente mais lento e, por conseguinte, as comunas teriam permanecido, durante muito mais tempo, subalternizadas relativamente aos poderes militar e teológico, porquanto a não ser por um grande desenvolvimento da força do interesse comum, combinada com a da demonstração, podiam elas esperar lutar, com êxito apreciável, contra a força física associada à da superstição. Vemos, assim, as comunas mostrarem-se, até época muito recente, pouco apressadas em participar da autoridade legislativa que lhes fora outorgada, em França e na Inglaterra, por um dos ramos do poder temporal durante as contendas entre realeza e feudalismo. (A coligação das comunas com uma das metades do poder temporal, contra a outra, em França e Inglaterra, foi realmente muito útil aos artífices e aos cientistas; mas não é sob este ponto de vista que a examinamos aqui; é relativamente à destruição do antigo sistema que deve essa coligação ser considerada, e não relativamente à organização do novo. Sob este aspecto, estudei-a em minha primeira série de observações. Quanto ao fato de se apressarem pouco as comunas em participar da autoridade legislativa, que lhes havia sido proporcionada por seus aliados do antigo sistema, foi muito sensível na Inglaterra, onde, aliás, visaram, com muito maior assiduidade do que em qualquer outra parte, a esse gênero de progresso político. Sabe-se que, antes da época em que começaram a opinar para o voto do imposto, consideravam as comunas um trabalho muito penoso enviar deputados ao Parlamento, porque os militares só apelavam para elas a fim de se informarem da quantia com que podiam contribuir, a fim de pilhá-las com perfeito conhecimento de causa). Examinemos, agora, de maneira direta, as vantagens da marcha seguida pelas comunas. Organizaram todos os trabalhos particulares - cuja disposição lhes havia sido deixada livre - com o fito único de atuar sobre a natureza, sem se preocuparem com a maneira pela qual os militares e os teólogos dirigiam o conjunto da sociedade, e fazendo, por assim dizer, abstração do antigo sistema. Por este procedimento prudente, tiveram a certeza não só de não contrariar os poderes existentes, mas de ser-lhes agradáveis, deles recebendo todos os estímulos compatíveis com o exercício da autoridade. Mais ainda: estavam certas de chegar, pouco a pouco, através de maior ação exercida sobre a natureza, e também através da riqueza e consideração dela oriunda, a se libertarem sucessivamente da maior parte da autoridade que as oprimia. Deviam, enfim, contar ainda que, pelo crescimento sucessivo da capacidade industrial e da científica, adquiririam força cada vez maior, que lhes permitiria pouco a pouco tratarem, de igual para igual, com seus dominadores, e, mais tarde, até mesmo se lhes anteporem, o que hoje, efetivamente, se tornou possível. Os que fazem consistir toda a sua felicidade em exercer uma autoridade arbitrária, unicamente pelo prazer de exercê-la, são felizmente anomalias muito raras em a natureza humana. Se os homens, em sua maior parte, almejam o poder, quando está a seu alcance, não é como fim, mas como meio. E menos pelo amor do poder (Este amor do poder, que certamente é indestrutível no homem, foi anulado, entretanto, em grande parte, pelos progressos da civilização, ou, pelo menos, seus inconvenientes desapareceram, pouco a pouco, em o novo sistema. De fato, o desenvolvimento da ação sobre a natureza mudou a direção desse sentimento, transportando-o para as coisas. O desejo de governar os homens transformou-se gradativamente no de fazer e desfazer a natureza à nossa vontade. Desde então, a necessidade de dominar, inata em todos os homens, deixou de ser nociva, ou, pelo menos, pode-se perceber a época em que deixará de ser prejudicial e tornar-se útil. A civilização aperfeiçoou assim, o moral do homem, não só relativamente à sua inteligência, mas também quanto às suas paixões. Embora, de acordo com as leis da organização humana, esta segunda ordem de funções vitais não seja, por si mesma, perfectível, assim se torna através da influência da inteligência) do que pelo fato de acharem cômodo, para sua indolência e incapacidade, fazerem trabalhar os outros em seu proveito, em vez de cooperarem nesse trabalho. Em última análise, o principal desejo de quase todos os indivíduos não é atuar sobre o homem, mas sobre a natureza. Não há ninguém, por assim dizer, que não renuncie logo a uma autoridade muito absoluta, quando o seu exercício exclui o gozo das vantagens da civilização resultante da ação exercida sobre as coisas. O nababo inglês, que adquiriu fortuna em Bengala, e exerce o poder ilimitado sobre milhares de indianos, suspira pelo momento em que poderá voltar à Europa a fim de fruir aí dos prazeres da vida, conquanto saiba muito bem que, na Inglaterra, não poderá cometer o menor ato arbitrário contra o mais ínfimo marinheiro a não ser arcando com os riscos e perigos, E bem certo, portanto, que se obterá dos homens, quando lhes for proposto, o sacrifício de uma parte do seu poder a fim de conseguirem, em troca, certa dose de ação sobre a natureza. O bom êxito do plano político seguido pelas comunas, desde a sua emancipação, era, pois, fundado numa lei derivada da organização humana. Julgamos ter explicado, pelo que precede, a causa de todos os progressos importantes até aqui realizados pelos elementos do novo sistema social em sua organização gradativa. Tais progressos resultaram, de fato, essencialmente, da constância com que as comunas seguiram o plano, tão simples e tão perfeito, que acabamos de expor. Acontecimentos independentes desse plano aceleraram-lhe o triunfo, mas este deve ser-lhe sempre atribuído em última análise. Não nos resta mais, portanto, do que fazer a recapitulação desses progressos. Para evitar, no que vamos expor, a confusão do desenvolvimento do novo sistema, no temporal e no espiritual, é necessário, em primeiro lugar, distinguir os progressos feitos pela massa das comunas, dos que foram realizados por seus chefes temporais e espirituais. Além disto, consideraremos, separadamente dos políticos, os progressos civis do novo sistema. Entendemos por progressos civis do novo sistema seu desenvolvimento próprio, considerado independentemente de todas as relações com o antigo sistema, e, por progressos políticos, a influência que o antigo sistema deixou o novo tomar na formação do plano político geral, assim como a parte da autoridade legislativa por ele obtida. Consideremos, primeiro, os progressos civis e políticos do novo sistema relativamente ao temporal, e, antes de tudo, os progressos civis. Não nos propomos mencionar aqui, nem mesmo sumariamente, os progressos, em verdade imensos, realizados pelas artes e ofícios, desde a emancipação das comunas: limitar-nos-emos a considerá-los na parte em que se relacionam com a organização do novo sistema. Desde essa época a capacidade industrial adquiriu tal desenvolvimento que a imaginação mais viva não poderia apresentar a esse respeito um quadro exato. Todas as artes, até então conhecidas, foram prodigiosamente aperfeiçoadas, e novas, em quantidade incomparavelmente maior, foram criadas. A agricultura multiplicou seus produtos em enorme proporção. As relações comerciais se aperfeiçoaram em grau incalculável, e, ao mesmo tempo, tomaram extensão de grande vulto, mormente depois da descoberta do Novo Mundo. Finalmente a ação da espécie humana sobre a natureza cresceu em proporção inapreciável, ou, para dizer melhor, só então foi verdadeiramente criada. Como resultado deste acréscimo de ação, parte muito maior da espécie humana, nos países civilizados, achou-se abundante e seguramente provida das coisas necessárias à vida, embora houvesse a população aumentado consideravelmente e se disseminasse em proporção análoga, o uso dos objetos de comodidade e adorno. Eis as principais consequências desses melhoramentos no tocante à organização temporal do novo sistema. As comunas adquiriram, progressivamente, influência e consideração preponderantes. Tudo, na sociedade, caiu sob sua dependência, enfeixando, em suas mãos, todas as forças reais: a própria força militar lhes ficou subordinada desde a invenção da pólvora. Por um lado, esta última descoberta fez desaparecer a superioridade física dada pelas armas aos militares sobre os artesãos, e assegurou a estes os meios de se garantirem contra as violências sem necessitarem receber educação militar. Por outro lado, colocou todo o sistema de guerra na dependência das artes industriais e das ciências de observação. Ao mesmo tempo, tornando-se a guerra, por esta mesma razão, cada vez mais dispendiosa, não pôde mais fazer-se sem empréstimos, através dos quais o poder militar caiu na estreita dependência das comunas. Em uma palavra, chegaram as coisas sucessivamente ao ponto de não poder a guerra deflagrar-se se o setor industrial e o científico lhe recusassem cooperação. Os progressos políticos do novo sistema, relativamente ao temporal, foram a consequência direta e necessária de seus progressos civis. À medida que as comunas adquiriram maiores riquezas, maior consideração e maior importância civil, tiveram também maior influência sobre a direção geral da sociedade e maior autoridade política direta. É principalmente na Inglaterra que a marcha das comunas deve ser observada sob este aspecto, pois foi aí que se manifestou com maior evidência. (Quase logo depois de sua emancipação, as comunas foram chamadas, tanto em França quanto na Inglaterra, a fim de concorrer para a formação dos Estados Gerais. Mas, em França, este fato quase não teve consequências. Aproveito este ensejo para dizer que entendi não dever tomar em consideração as tentativas levadas a efeito, pouco tempo depois da emancipação, em quase todos os pontos da Europa civilizada, especialmente na Itália e na Alemanha, a fim de organizar sociedades industriais. Essas tentativas, que eram apenas o despertar do novo sistema, não deixaram qualquer traço duradouro; não tiveram, nem podiam ter, caráter orgânico. Em uma exposição tão sumária como esta, lançariam confusão nas ideias, em vez de esclarecê-las). Havendo as comunas, no Parlamento da Inglaterra, começado por obter uma espécie de voz consultiva no voto do imposto, chegaram, pouco a pouco, a obter voz deliberativa, e sucedeu mais tarde, enfim, que o voto do imposto lhes foi especialmente outorgado. Este direito exclusivo foi estabelecido como princípio fundamental, e de maneira irrevogável, em consequência da revolução de 1688. Ao mesmo tempo, a influência das comunas sobre a formação do plano de política geral foi cada vez maior. Na Inglaterra, na mesma época, chegou essa influência a ponto de conseguir que o antigo sistema admitisse, como princípio, basear-se a prosperidade social na indústria, e dever, por conseguinte, o plano político ser concebido no interesse das comunas. Sob este duplo aspecto, a modificação do antigo em favor do novo foi levada tão longe quanto possível, enquanto a sociedade estivesse sujeita, em seu conjunto, àquele sistema. Este passo, dado pelas comunas, foi, sem dúvida, muito essencial, mas é também necessário não exagerar-lhe a importância. É imprescindível não ver, em simples modificação, uma mudança total de sistema. Em princípio, o direito exclusivo de votar o imposto, conferido às comunas, devia investi-las do supremo poder político; mas, na realidade, esse direito muito pouco útil lhes tem sido, até agora, pois, de fato, não foi por elas exercido. A Câmara denominada dos Comuns, não tem sido mais, no fundo, do que uma espécie de apêndice da realeza e do feudalismo; não tem sido mais do que um instrumento do antigo sistema. Assim também o axioma admitido na Inglaterra pelo poder temporal, segundo o qual o plano político deve ser concebido no interesse da indústria, não foi, até o presente, senão muito pouco útil às comunas. A razão é que, tendo o antigo sistema ficado com o direito de formar esse plano, e devendo necessariamente conservar a mesma função até que o novo sistema seja definitivamente organizado, não pôde oferecer às comunas, a fim de contribuir para a sua felicidade, senão os seus próprios meios de ação, isto é, a força e a astúcia. Foi assim que, depois do famoso ato de navegação, o poder temporal fez guerras sistemáticas e combinou planos maquiavélicos tendo em vista servir os interesses das comunas. O estabelecimento do regime parlamentar, na Inglaterra, deve, portanto, ser considerado unicamente como tendo modificado, o mais possível, o antigo sistema, e constituído os meios de passar ao novo. Apenas sob este ponto de vista foi útil às comunas, porque, considerado em si mesmo, de maneira absoluta, suas consequências lhes foram pelo menos tão funestas quanto vantajosas. A França, pela recente adoção da constituição inglesa, colocou-se no mesmo nível da Inglaterra, sob o duplo aspecto que acabamos de examinar. Apenas, como essa mudança se operou numa época de civilização muito mais adiantada, foi muito mais completa. Tendo sido eliminado o feudalismo antes de instituído o regime parlamentar, a modificação do antigo sistema, em França, pareceu infinitamente maior do que na Inglaterra. O princípio que considera o interesse das comunas como o fim e o regulador das combinações políticas, apresentou aí um caráter muito mais amplo, mais geral e mais preponderante. Finalmente, pelo fato de haver sido esse regime estabelecido, em França, numa época em que era profundamente sentida a necessidade de mudar, de modo completo, o sistema político, o caráter de transição, típico do regime parlamentar, aí se tornou muito mais pronunciado. Observemos, agora, os progressos civis e políticos do novo sistema relativamente ao espiritual. Antes da introdução das ciências positivas na Europa, todos os nossos conhecimentos, particulares e gerais, eram inteiramente teológicos e metafísicos. Os poucos raciocínios que então se faziam sobre a natureza fundavam-se unicamente em crenças religiosas. Mas desde essa época memorável, as ciências naturais começaram a basear-se, progressivamente, nas observações e experiências; mesmo assim, as ciências continuaram, até época muito recente, confundidas com a superstição e a metafísica. Só no fim do século XVI e nos primeiros anos do XVII conseguiram desembaraçar-se inteiramente das crenças teológicas e das hipóteses metafísicas. A época em que as ciências começaram a tornar-se verdadeiramente positivas deve ser reportada a Bacon, que deu o primeiro sinal dessa grande revolução; a Galileu, seu contemporâneo, a quem se deve o seu primeiro exemplo; e, enfim, a Descartes, que destruiu irrevogavelmente, nos espíritos, o jugo da autoridade em matéria científica. Foi então que nasceu a filosofia natural e que a capacidade científica encontrou seu verdadeiro caráter: o de elemento espiritual de um novo sistema social. A partir dessa época, as ciências tornaram-se sucessivamente positivas na ordem que deviam seguir para tal fim, isto é, na ordem do grau maior ou menor de suas relações com o homem. Foi deste modo que a astronomia, em primeiro lugar, depois a física, mais tarde, a química, e, finalmente, em nossa época, a fisiologia, foram constituídas ciências positivas. Esta revolução está, portanto, plenamente efetuada em todos os nossos conhecimentos particulares e tende, evidentemente, a operar-se agora na filosofia, na moral e na política, sobre as quais a influência das doutrinas teológicas e da metafísica já foi destruída aos olhos de todos os homens instruídos, sem que, todavia, estejam ainda essas ciências fundadas em observações. É a única coisa que falta ao desenvolvimento espiritual do novo sistema social. À medida que as ciências se tornaram positivas, e, por consequência, fizeram progressos sempre crescentes, uma quantidade, cada vez maior, de ideias científicas entrou na educação comum, ao mesmo tempo em que as doutrinas religiosas perdiam gradativamente sua influência. Criaram-se escolas especiais para as ciências, nas quais a ação da teologia e da metafísica era, por assim dizer, nula. Enfim, o estado dos espíritos mudou de tal modo, sob este aspecto, que hoje o sistema de ideias de cada indivíduo, desde o cidadão menos instruído até o mais esclarecido, corresponde quase totalmente ao das ciências positivas, e as antigas crenças não ocupam aí, comparativamente, mais do que pequena parte, mesmo nas classes em que tais crenças conservaram maior força. Pode dizer-se, sem exagero, que as doutrinas religiosas não têm sobre os espíritos outra influência senão a que deriva do fato de ainda lhes estar ligada a moral. Esta influência durará, necessariamente, até a época em que a moral tiver sofrido o influxo da revolução, já efetuada em todos os nossos conhecimentos particulares, tornando-se positiva. A partir desse momento, o império das crenças teológicas extinguir-se-á para sempre, pois é claro que este estado de coisas, onde todas as partes de nosso sistema de ideias se tornaram positivas, enquanto as destinadas a servir de laço geral continuam supersticiosas, não poderá deixar de ser transitório, sem o que haveria contradição na marcha geral dos acontecimentos. Os progressos políticos do novo sistema, no atinente ao espiritual, foram, como no temporal, a consequência de seus progressos civis. Desde o estabelecimento das primeiras escolas para o ensino das ciências de observação, ocorrido no século XIII, o poder real, em França, e o feudalismo na Inglaterra, animaram constante e progressivamente as ciências e deram realce à existência política dos seus representantes. Em França, a realeza contraiu, de modo crescente, o hábito de consultá-las sobre assuntos de sua competência, e procurar obter-lhes a aprovação, o que equivalia a reconhecer implicitamente a superioridade das ideias científicas positivas sobre as teológicas e metafísicas. O que nossos reis, a princípio, não haviam considerado senão como coisa louvável, chegaram, pouco a pouco, a encarar como dever, e reconheceram a obrigação de animar as ciências e submeterem-se às decisões dos cientistas. A criação da Academia das Ciências, instituída no reinado de Luís XIV pelo ministro Colbert, é uma declaração solene deste princípio. Essa instituição foi, ao mesmo tempo, o primeiro passo para a organização política do elemento espiritual do novo sistema. O número das academias multiplicou-se prodigiosamente, desde essa época, em todos os pontos do território europeu pela ação da capacidade científica sobre os espíritos. Ela foi constituída de maneira regular e legal; sua autoridade política cresceu em proporção análoga e exerceu influência direta e ascendente sobre as diretrizes da educação nacional. Se se considerarem sob este aspecto, as atribuições legais de que está atualmente investida a primeira classe do Instituto, convir-se-á que são, pouco mais ou menos, tão amplas quanto podem sê-lo enquanto não estiver a corporação que as exerce encarregada do ensino da moral. (Em tese geral, é claro que a direção suprema da educação nacional e o ensino da moral devem estar nas mesmas mãos; separá-las seria absurdo. Por conseguinte, enquanto a moral continuar baseada unicamente em crenças religiosas, é inevitável que as diretrizes gerais da educação pertençam, em última análise, a uma corpo ração teológica, ou, pelo menos, ao espírito teológico. Os homens que hoje se insurgem tão vivamente contra os jesuítas, os missionários e outras corporações religiosas, deveriam, pois, compreender que o único meio de extinguir o resto da influência dessas sociedades é fundar a moral na observação dos fatos. Até que um trabalho desse gênero se realize, todas essas reclamações serão quase inúteis, porque, em grande parte, induzirão a erro). Ora, isto somente poderá acontecer na época em que a moral tornar-se uma ciência positiva. Deste modo, sob tal ponto de vista, como sob todos os que temos considerado até aqui, o antigo sistema cedeu o lugar ao novo, e tanto quanto lhe era possível, lhe desbravou o caminho. Não se podia ir mais longe, a não ser organizando o novo sistema. É essencial observar que, à medida que a ação científica foi constituída e cada vez mais ampliada em cada nação europeia, considerada isoladamente, a combinação das forças científicas dos diversos países se efetuou, também, progressivamente. O sentimento de nacionalidade, sob este aspecto, foi totalmente afastado e os cientistas de todas as partes da Europa formaram indissolúvel liga, que tendeu sempre a tornar europeus todos os avanços científicos realizados em cada ponto particular. Esta santa ali anca, contra a qual o antigo sistema não possui qualquer meio de resistência, é mais forte, para operar a organização do novo, do que pôde ser para impedi-lo, ou simplesmente enfraquecê-lo, a coligação de todas as baionetas europeias. A mesma combinação ocorreu, até certo ponto, entre as capacidades industriais das diferentes nações europeias, mas em grau infinitamente mais fraco. O sentimento de rivalidade nacional, as inspirações de um patriotismo feroz e absurdo, decorrentes do antigo sistema, e por ele cuidadosamente mantidas, conservaram ainda grande influência quanto ao temporal. Este fato determinou que a liga das diferentes nações europeias, para organizar o novo sistema, só pudesse começar no espiritual. A coligação das capacidades temporais só poderia realizar-se depois, e como resultante da precedente. Cumpre, enfim, observar que, enquanto os dois elementos obtiveram separadamente desenvolvimentos nacionais e europeus, para a organização política final, a combinação entre eles, e, por conseguinte, a formação do sistema também se efetuou progressivamente. Uma classe intermediária surgiu entre os cientistas, os artistas e os artesãos - a classe dos engenheiros; e, desde este momento, começou a combinação das duas capacidades. Ela se tornou cada vez maior, a tal ponto que hoje, na opinião geral dos cientistas e dos artífices - embora em grau menor entre estes últimos - o verdadeiro destino das ciências e das artes é de se combinarem para modificar a natureza em benefício do homem, umas estudando-a para conhecê-la, e as outras aplicando tal conhecimento. Em Franca e na Inglaterra principalmente, numerosos estabelecimentos públicos e particulares vivificaram esse princípio, organizando um começo de combinação. Tais são, em Franca, o conservatório das artes e ofícios e as diferentes escolas Que com ele se relacionam, a sociedade de incentivo à indústria e a escola de pontes e calçadas, etc. Por este modo, não só cada um dos dois elementos do novo sistema tendeu, sucessivamente, para sua organização completa, e acabou superando o elemento correspondente do antigo, mas também sua combinação adquiriu progressos sempre crescentes, que os prepararam para coordenarem-se conjuntamente a fim de dirigirem a sociedade. Consideramos, apenas, em tudo quanto precedeu, os progressos civis e políticos, conseguidos pelos chefes temporais e espirituais do novo sistema. Resta-nos observar os passos feitos pela massa das comunas para a nova organização social. Foram de duas espécies: consistiram, uns, na capacidade adquirida pelo conjunto das comunas, tanto no temporal, como no espiritual, de viver sob o novo regime; referem-se os outros à coordenação sucessiva da massa popular sob os novos chefes temporais e espirituais. É necessário que uma população haja adquirido certo grau de capacidade temporal e espiritual a fim de conseguir viver sob um sistema de ordem social em que não esteja sujeita, quanto ao temporal, ao império da força física, e, quanto ao espiritual, ao das crenças cegas. O homem que, no temporal, não contrair certos hábitos de ordem, de economia e de amor ao trabalho, e, no espiritual, não possuir certo grau de instrução e previdência, não está em condições de ser emancipado; tem indispensavelmente necessidade de ser guiado. O mesmo ocorre com um povo; enquanto não houver preenchido essas condições, somente poderá ser governado por meios arbitrários. Os servos da Rússia, por exemplo, que, em épocas de grande escassez, comem o trigo destinado à sementeira, são ainda incapazes de gozar da própria liberdade individual. Tentar sua emancipação, antes que tenham contraído melhores hábitos, seria verdadeiro absurdo e não poderia dar bom resultado. Em França, porém, onde a massa inteira da nação sabe suportar a fome ao lado do trigo de semente, sem tocá-lo, o povo já não tem mais necessidade de ser governado (isto é, dirigido). Para a manutenção da ordem, basta que os interesses comuns sejam administrados. Assim também, no espiritual, o povo que, por exemplo, acreditar em feiticeiros, a ponto de deixar-se guiar por eles em seus negócios importantes, tem necessidade seja o seu espírito governado arbitrariamente por homens mais esclarecidos. Não poderia ficar entregue a si mesmo sem inconveniente para seus próprios interesses. É evidente, porém, que tão logo a massa de um povo se encontre em condições de conduzir-se nos negócios comuns da vida, segundo seus próprios conhecimentos, satisfazendo, por conseguinte, às duas condições que estabelecemos, já não tem absolutamente necessidade de ser governada; pode conduzir-se por si mesma, sem correr qualquer perigo a tranquilidade. Podemos até acrescentar que toda ação de mando, exercida sobre o povo, em época em que se torna inútil, tende mais a perturbar a tranquilidade do que a mantê-la. Desde a emancipação das comunas, a massa da população francesa contraiu, pouco a pouco, hábitos e adquiriu luzes suficientes para viver sob o novo sistema. A abolição da escravatura tornou, por si mesma, todos os indivíduos proprietários; desde então, não existiram mais verdadeiros proletários, na acepção rigorosa desta palavra. Convém notar que a propriedade industrial oriunda da emancipação, exige, por sua natureza, bem maior capacidade do que a propriedade territorial, tal como existiu depois, porquanto esta, quando separada da agricultura, não requer outro talento senão o de gozar das próprias rendas com moderação a fim de não comprometer os capitais. É o cultivador quem necessita de capacidade, e não o possuidor da terra. Tornando-se proprietário, contraiu o povo progressivamente todos os hábitos de amor à ordem e ao trabalho, de previdência e respeito à propriedade, e, ao mesmo tempo, adquiriu de modo bastante geral em França, na Inglaterra, e na Alemanha do norte, o primeiro grau de instrução. (Depois de ter visto, durante a terrível fome de 1794, no momento em que a última classe do povo era extremamente poderosa, esta mesma classe morrer de fome, aos milhares, sem que a tranquilidade haja sido perturbada um só momento, em consequência de tal fome, podemos afirmar saber o povo francês respeitar a propriedade). Sob estes dois aspectos, resta, sem dúvida, muito a realizar, e principalmente sob o segundo. Mas o aperfeiçoamento foi bastante grande para que o povo não tenha mais necessidade de ser governado pela força e pelas crendices. Adquiriu capacidade para tornar-se associado, vivendo sob o novo sistema onde a ação de governar deve reduzir-se ao indispensável a fim de estabelecer uma subordinação de trabalhos na ação geral dos homens sobre a natureza, objetivo final do sistema. De fato, só pelos novos hábitos do povo a tranquilidade é essencialmente mantida em nossos dias; para isto o aparelho militar do poder temporal não contribui senão mui acessoriamente, tal qual o "aparelho infernal" do outro poder. (A ação do antigo sistema é ainda indispensável para a manutenção da ordem, mas não o é sob o ponto de vista que acabamos de considerar; é apenas, para impedir perturbem os ambiciosos e intrigantes a tranquilidade, disputando-se um poder, que lhes despertará a cobiça até que possa extinguir-se pela organização definitiva do novo sistema. Ora, não é o povo quem visa por este modo ao poder: é a classe ociosa e parasitária da sociedade, isto é, na França atual [1820], o antigo feudalismo e o feudalismo de Bonaparte). Examinemos, agora, de que maneira a população se organizou, sucessivamente, sob os novos chefes temporais e espirituais. Antes da emancipação das comunas, a massa do povo tinha, no temporal, como chefes únicos e permanentes, os militares. Depois da emancipação, pelo contrário, o povo desligou-se, pouco a pouco desses chefes, e, ao mesmo tempo, organizou-se sob a direção dos chefes das artes e ofícios. Contraiu, para com estes, hábitos de subordinação e disciplina, que, sem serem rigorosos, eram todavia suficientes para manter a ordem nos trabalhos e a boa harmonia na sociedade. A época da separação completa entre o povo e seus chefes militares pode reportar-se à origem da instituição dos exércitos permanentes e assalariados no governo de Carlos VII. No intervalo que decorreu desde a emancipação até o nascimento dessa instituição, o povo foi, simultaneamente, dirigido por essas duas espécies de chefes. Para todos os trabalhos pacíficos habituais, estava sob a direção dos chefes industriais, mas, para os trabalhos e exercícios militares, se achava, em geral, sob o comando dos chefes militares. Quando foram instituídos os exércitos permanentes e assalariados, tendo-se tornado a profissão de soldado a finalidade de uma fração particular e separada da população, a massa do povo não teve mais nenhuma relação com os chefes militares, e só se organizou industrialmente. O que se fazia soldado não se considerava e não era mais tido como pertencendo ao povo. Passava das classes do novo sistema às do antigo; deixava de pertencer às comunas e tornava-se feudal, e eis tudo: era ele que se desnaturava, e não o sistema de que antes fizera parte. Assim, essa instituição dos exércitos permanentes, tornada hoje, pelos progressos da civilização, tão onerosa e tão inútil, foi uma fase intermediária indispensável a fim de chegar-se à organização do novo sistema. Observe-se agora o estado do povo e ver-se-á que, efetivamente, no atinente ao poder temporal, não se encontra mais em relação direta e contínua senão com seus chefes industriais. Siga-se, através do pensamento, em suas relações cotidianas, qualquer operário, seja na agricultura, nas manufaturas, ou no comércio, e ver-se-á que não é subordinado e não está em contato a não ser com os chefes agricultores, manufatureiros e comerciantes, e de modo algum, por exemplo, com o grande senhor proprietário da terra, ou com o capitalista ocioso a quem pertencem, no todo ou em parte, a manufatura ou a casa de comércio. Suas relações com os chefes militares da sociedade acham-se todas compreendidas nas relações gerais do novo sistema com o antigo; já não existem relações de outra espécie. Vem a propósito notar a diferença fundamental, relativa ao povo em seu proveito, existente entre seu entrosamento atual com os chefes industriais, e sua antiga submissão aos chefes militares. Esta diferença fará ressaltar um dos contrastes mais importantes e mais felizes entre o antigo e o novo sistema. No antigo sistema, o povo era arregimentado em relação a seus chefes; em o novo, é combinado com eles. Da parte dos chefes militares havia comando; da dos chefes industriais não há mais do que direção. No primeiro caso, o povo era súdito, no segundo é societário. Tal, efetivamente, o admirável caráter das combinações industriais: todos aqueles que para elas concorrem são, realmente, colaboradores e associados, desde o mais simples operário até o fabricante mais opulento e o engenheiro mais esclarecido. Em uma sociedade, onde entram homens que não trazem nem capacidade, nem capitais, há necessariamente senhores e escravos, sem o que os trabalhadores não seriam bastante tolos para consentirem em semelhante organização, se dela pudessem eximir-se: não se pode mesmo conceber tal sociedade, havendo começado de outro modo senão pela força. Mas, em uma cooperação onde todos trazem uma capacidade e capitais, há verdadeira associação, e não existe outra desigualdade a não ser a das capacidades e dos capitais necessários, isto é, inevitáveis, e seria absurdo, ridículo e funesto pretender que desapareçam. Cada indivíduo obtém um grau de importância e de benefícios proporcionais à sua capacidade e ao seu capital, o que constitui o mais alto grau de igualdade possível e desejável. Tal o caráter fundamental das sociedades industriais, e foi o que o povo ganhou, organizando-se em relação aos chefes das artes e ofícios. Seus novos chefes sobre ele não exercem outro comando além do estritamente necessário à boa ordem do trabalho, vale dizer, muito pouca coisa. À capacidade industrial, por sua natureza, repugna tanto exercer a arbitrariedade, quanto suportá-la. Não nos esqueçamos, além disto, que, em uma sociedade de trabalhadores, tudo tende naturalmente para a ordem; a desordem é sempre promovida, em última análise, pelos ociosos. Observemos, finalmente, que, multiplicando os progressos da indústria, das ciências e das belas-artes os meios de subsistência ao diminuir o número de desocupados, ao esclarecer os espíritos e ao aperfeiçoar os costumes, tendem, cada vez mais, a extinguir as três maiores causas de desordens: a miséria, a ociosidade e a ignorância. Faremos, em relação ao espiritual, observações análogas às que acabam de ser apresentadas no tocante ao temporal. Antes da introdução das ciências positivas na Europa, ou, para dizer com maior precisão, antes de haverem as ciências passado das mãos do clero para as dos seculares (acontecimento que se seguiu ao primeiro muito de perto), a massa do povo estava espiritualmente organizada por seus chefes teológicos. O povo dava crédito às suas palavras, consultava-os sobre tudo e aceitava cegamente suas decisões: as doutrinas, por eles estabelecidas, tornavam-se suas. Em uma palavra, o povo contraíra, em relação aos chefes espirituais, o hábito de confiança absoluta e de submissão espiritual inteiramente ilimitada. No momento, porém, em que as ciências positivas adquiriram certo desenvolvimento, essa confiança e respeito foram pouco a pouco retirados do clero e transferidos sucessivamente aos cientistas. Esta modificação foi poderosamente secundada por mudança análoga já efetuada no temporal. O povo organizado industrialmente compreendeu logo que os seus trabalhos habituais de artes e ofícios não estavam, de modo algum, relacionados com as ideias teológicas; que não podia obter, com os teólogos, quaisquer luzes reais sobre os objetos de suas ocupações cotidianas; e, em toda parte onde pôde entrar em contato com os cientistas, quer direta, quer indiretamente, perdeu o hábito de consultar os padres e contraiu o de pôr-se em contato com os que possuíam conhecimentos positivos. Sem dúvida, este contato está ainda muito longe de ser tão íntimo como poderia e deveria ser, e isto se dá, principalmente, não porque o povo tenha pouco desejo de instruir-se, mas em consequência da falta de meios para conseguir a instrução, e do pouco cuidado, ainda existente, em fazê-lo adquirir os conhecimentos que lhe seriam úteis. O povo, pelo contrário, é bem mais ávido de instrução do que os ociosos de nossos salões, porque seus trabalhos lhe fazem sentir, a cada instante, a necessidade dela. Em toda parte onde tem encontrado possibilidades de estudar, ele o tem feito. Mas, embora a ação da capacidade científica sobre o povo seja ainda muito fraca, em face do que poderia ser, não é menos certo que se mostra maior do que comumente s.e pensa. Fatos evidentes e incontestáveis provam depositar o povo hoje, na opinião unânime dos sábios, o mesmo grau de confiança que depositava, durante a Idade Média, nas decisões do poder espiritual. Assim, por exemplo, há perto de um século o povo deixou unanimemente de crer na imobilidade da Terra, admitiu a teoria astronômica moderna e deposita nela tanta confiança quanta jamais atribuiu às antigas crenças religiosas. Qual o motivo desta revolução nas opiniões populares? Será por ter o povo tomado conhecimento das demonstrações que estabelecem a teoria do movimento da Terra? Certamente não, porque essas demonstrações não são talvez compreendidas por três mil indivíduos em toda a população francesa. A confiança do povo provém, evidentemente, da unanimidade que encontra nas opiniões dos cientistas sobre este ponto de doutrina. Examinem-se, nas ciências de observação, todas as descobertas hoje populares, e ver-se-á que se Vulgarizaram de igual maneira: o povo admitiu sucessivamente a circulação do sangue, a identidade entre a matéria do raio e a eletricidade, etc., etc. Além disto, em assunto de ciência, todos os que não estão em condições de compreender as demonstrações, acham-se englobados no povo. A mesma confiança que levou os leigos a admitirem a análise do ar e da água, a lei da gravitação universal, a decomposição da luz, e tantas outras descobertas astronômicas, físicas, químicas e fisiológicas, fará igualmente o povo aceitá-las um pouco mais tarde. Está, portanto, provado, pelos fatos mais evidentes, que o povo se acha hoje, espiritualmente, confiante e subordinado em relação a seus chefes científicos, da mesma forma que o está, temporalmente, em relação aos chefes industriais, e tenho, por consequência, o direito de concluir estar a confiança tão bem organizada em o novo sistema quanto a subordinação. Devemos igualmente observar aqui ser a confiança do povo em seus novos diretores espirituais inteiramente distinta, por sua natureza, da que consagrava a seus chefes teológicos no antigo sistema. Esta consistia numa submissão de espíritos inteiramente cega, exigindo, em cada indivíduo, uma abdicação absoluta de sua própria razão. Outro é o caráter da confiança na opinião dos cientistas. É o assentimento dado a proposições sobre coisas suscetíveis de verificação, proposições unanimemente admitidas pelos homens que adquiriram e provaram capacidade necessária para julgá-las. Na realidade, o fato é admitido sem provas; mas só o é pela razão de julgar-se o povo incapaz de acompanhar as demonstrações de tais verdades, Esta confiança encerra sempre, implicitamente, a reserva expressa do direito de contradição sempre que novas demonstrações apresentadas provarem ser mal fundadas, ou quando luzes suficientemente adquiridas pelos que aceitam por fé permitem derrubar as opiniões recebidas, O povo está, portanto, longe de renunciar, por isto, ao livre exercício de sua razão. Esta confiança do povo nas opiniões dos cientistas é absolutamente da mesma ordem, embora muito mais ampla, do que a dos sábios entre si. Os matemáticos creem nos fisiologistas sob palavra e, reciprocamente, confiam na palavra uns dos outros antes de haverem podido conhecer e julgar as demonstrações. Qualquer matemático admite, sem exame, uma proposição afirmada pela autoridade de Lagrange. Esta crença não apresenta nenhum inconveniente nas ciências, porque nunca deixa de ser provisória, A confiança depositada pelo povo nos cientistas tem precisamente o mesmo caráter; apenas é um provisório que se prolonga indefinidamente, sem jamais ser considerado definitivo, Não é, destarte, esta confiança de modo algum humilhante para o povo, e nunca poderá ter, para os seus interesses, a menor das consequências funestas da submissão de espírito aos teólogos. O temor de ver estabelecer-se, um dia, qualquer despotismo fundado nas ciências, seria quimera tão ridícula quanto absurda, somente podendo nascer nos espíritos estranhos a qualquer ideia positiva, Pelo que precede vê-se que, achando-se hoje o povo organizado, temporal e espiritualmente, em relação ao novo sistema, a parte mais difícil do seu estabelecimento está plenamente realizada, Esta grande modificação simplificou, tanto quanto possível, o trabalho a ser feito para o seu definitivo triunfo, reduzindo a meras relações entre os chefes do novo e do antigo sistema tudo quanto resta fazer a tal respeito, O povo foi eliminado da questão. E para ele que ela se resolverá, mas conservar-se-á de fora e passivo. O único perigo a temer, a única precaução a tomar consiste em não deixarmos nos desviem da meta visada as intrigas dos ambiciosos que procuram disputar o decrépito poder do antigo sistema. Tais, em esboço, as partes principais do quadro que nos apresenta, desde o século XI, a marcha da civilização considerada sob o aspecto do desenvolvimento gradual do novo sistema social. Procuremos, agora, resumir, o mais sumariamente possível, os resultados dessa grande série orgânica. Resumo da Segunda Série Partimos deste fato fundamental: a emancipação das comunas e a introdução das ciências positivas na Europa constituíram, no século XI, os dois elementos do novo sistema social: a capacidade industrial e a capacidade científica. Fizemos ver em seguida: 1º) - As duas capacidades .elementares do novo sistema social estavam assentes em bases de natureza diversa das dos poderes em que repousava o antigo sistema; 2º) - Essas duas capacidades se haviam constituído fora do antigo sistema e de maneira a se tornarem tão independentes dele quanto possível; 3º) - As comunas, ou as duas capacidades reunidas, tomaram, desde o início, a prudente decisão de não pretenderem participar da autoridade do antigo sistema, e se propuseram unicamente aproveitar o grau de independência, de que gozavam, a fim de exercer sobre a natureza a maior ação possível; 4º) - Deste plano, invariavelmente seguido, decorreu o duplo efeito que devia decorrer: de um lado, os elementos do novo sistema adquiriram seu completo desenvolvimento, donde resultou tornar-se preponderante sua força civil; e, de outro, obtiveram, pouco a pouco, maior grau de liberdade, da qual usaram sempre de igual modo, e, por fim, foram naturalmente investidos de parte da autoridade legislativa, que não havia sido por eles diretamente almejada; 5º) - Todas as forças temporais e espirituais da sociedade passaram às mãos das comunas, e até a força militar se subordinou à sua influência; 6º) - As comunas obtiveram todo o ascendente que podiam ter sobre o plano político formado pelo antigo sistema, até que esse plano seja instituído por elas mesmas, admitindo o poder temporal, como princípio, deva, no interesse delas, ser articulada toda a organização social; 7º) - O poder temporal estabeleceu o regime parlamentar, o qual, pelo voto exclusivo do imposto concedido às comunas (ao menos, em princípio), as investiu de toda a autoridade legislativa que lhes podia ceder, sem destruir-se; 8º) - Esta autoridade é mais do que suficiente a fim de poderem as comunas atuar hoje diretamente, e de maneira legal, na organização definitiva do novo sistema; 9º) - Concomitantemente com esses progressos, realizados pelos chefes temporais e espirituais do novo sistema, a massa das comunas se desligou por completo de seus chefes militares e teológicos, organizando-se, sob os aspectos temporal e espiritual, mediante a direção dos chefes das duas capacidades positivas. Deste modo, cedeu o antigo sistema ao novo tudo quanto lhe podia ceder, sem aniquilar-se, e assim aplainou, para o novo sistema, o caminho pelo qual deve marchar para a sua definitiva constituição. Como resultado de todo o passado, desde o século XI, o estado atual do novo sistema é o seguinte: todas as forças da sociedade lhe pertencem. Todas as doutrinas necessárias à sua organização existem em seus elementos, que são as ciências de observação. Finalmente, a sociedade está organizada em todas as suas partes para atuar sobre a natureza. Nada mais resta a fazer senão organizar, de modo idêntico, o seu conjunto. Existem, para tal, os meios de que necessitavam as comunas. Resumo geral das duas séries Quando o antigo sistema social se constituiu definitivamente, no século XI, nasceram os elementos do sistema que devia suceder-lhe. Desde essa época, duas ações de natureza diversa foram exercidas simultaneamente e sem interrupção pelo novo sistema: de um lado, tendeu a destruir o antigo, e, de outro, a substituí-lo. Para a primeira ação, ligaram-se as comunas, a princípio, com um dos poderes do antigo sistema contra o outro, aproveitando as divisões que se haviam manifestado entre eles; e, depois da vitória sobre o poder que haviam combatido, formaram nova liga com uma das frações do poder de que tinham sido aliadas contra a outra fração desse mesmo poder. Para a segunda ação, conservaram-se as comunas estranhas ao antigo sistema, limitando-se a atuar sobre a natureza. Combinaram-se sempre essa destruição e organização de maneira que o novo sistema se apoderou, sucessivamente, de todas as posições ocupadas pelo antigo, à medida que foram por este abandonadas. Durante a época de seu pleno vigor, dirigiu o antigo sistema, simultaneamente, a ação geral da sociedade e todas as ações sociais particulares, tanto no espiritual quanto no temporal. Todas as ações privadas e todos os conhecimentos particulares desembaraçaram-se, a pouco e pouco, dos laços do antigo sistema e coordenaram-se de acordo com o novo. Este se organizou em todas as particularidades da sociedade. O antigo sistema, depois de haver perdido, de modo absoluto, toda a sua influência sobre as particularidades, perdeu sucessivamente, no temporal e no espiritual, a mair parte de seu poder sobre a ação social em seu conjunto. Continuou dirigindo a formação do plano político geral, o que não poderia deixar de ser até a organização total do novo sistema. Mas foi admitido, como princípio fundamental, que esse plano devia ser combinado no interesse das comunas. O poder temporal foi reduzido às menores dimensões que podia ter até a extinção completa do antigo sistema e sua substituição pelo novo. O poder espiritual foi completamente destruído, como poder político. Não possui mais outra influência senão a derivada do ensino da moral, que se acha ainda em suas mãos, por se encontrar ainda fundado em suas doutrinas. Depois de haver obtido a direção exclusiva de todas as particularidades da sociedade, o novo sistema ganhou, sucessivamente, na direção geral, tudo quanto o antigo perdera. No temporal, reconheceu-se terem as comunas o direito de modificar, à vontade, o plano político geral, e o exercício legal deste direito foi regularmente constituído, o que estabeleceu, ao mesmo tempo, o meio de transição. No espiritual, a capacidade científica obteve, sobre a educação nacional, toda a influência que podia ter enquanto o ensino da moral não passar para a sua direção. A força dos dois sistemas, sob o aspecto da ação por eles exercida sobre a direção do conjunto da sociedade, é, hoje, pouco mais ou menos a mesma: a diferença é, antes, em favor do novo sistema do que do antigo. Destarte, o estado presente da sociedade é a coexistência de um sistema decrépito e de um sistema vigoroso, tendo o velho perdido toda influência sobre as particularidades e a metade da que possuía sobre o conjunto, dominando o novo todas as partes e mais a metade do conjunto. Não tem o novo sistema, portanto, mais do que um degrau a galgar para alcançar a sua completa organização e acabar de substituir o antigo. Resta unicamente completar seus progressos no temporal e no espiritual. No temporal, apoderando-se da câmara dos comuns; no espiritual, estabelecendo a moral em princípios unicamente deduzidos da observação. Ora, tudo está preparado para isto: os meios existem, só resta empregá-los. TERCEIRO OPÚSCULO (Maio de 1822) PLANO DOS TRABALHOS CIENTÍFICOS NECESSÁRIOS PARA REORGANIZAR A SOCIEDADE Introdução Um sistema social que se extingue e outro que atingiu sua completa maturidade, estando em via de constituir-se, eis o caráter fundamental assinalado à nossa época pela marcha geral da civilização. De conformidade com este estado de coisas, dois movimentos de natureza diferente agitam hoje a sociedade: um de desorganização e outro de reorganização. Pelo primeiro, considerado isoladamente, a sociedade é impelida para profunda anarquia moral e política, que parece ameaçá-la de próxima e inevitável dissolução. Pelo segundo, é conduzida para o estado social definitivo da espécie humana, o mais conveniente à sua natureza, aquele em que todos os seus meios de prosperidade devem receber seu mais completo desenvolvimento e sua aplicação mais direta. E na existência destas duas tendências opostas que consiste a grande crise pela qual passam as nações mais civilizadas. É sob esse duplo aspecto que ela deve ser considerada para ser compreendida. Desde o momento em que essa crise começou a manifestar-se, até o presente, a tendência para a desorganização do antigo sistema foi dominante, ou melhor, a única que claramente se pronunciou. Estava na própria natureza das coisas que a crise assim começasse, e isto foi útil a fim de que o antigo sistema se modificasse bastante de modo a permitir proceder-se diretamente à formação do novo. Hoje, porém, quando esta condição está plenamente satisfeita, e o sistema feudal e teológico se acha tão atenuado quanto possa ser, até que se estabeleça o novo, a preponderância da tendência crítica é o maior obstáculo aos progressos da civilização, e mesmo à destruição do antigo sistema. Esta preponderância é a causa principal dos abalos terríveis e sempre renascentes, que acompanham a crise. A única maneira de pôr termo a esta tempestuosa situação, detendo a anarquia que invade dia a dia a sociedade, reduzindo, por fim, a crise a simples movimento moral, é determinar as nações civilizadas a deixarem a direção crítica a fim de tomarem direção orgânica, convergindo todos os seus esforços para a formação do novo sistema social, meta definitiva da crise, e para a qual é simplesmente preparatório tudo quanto se tem feito até o presente. Tal é a primeira necessidade de nossa época. Este também, em resumo, o alvo geral de meus trabalhos e a finalidade particular deste escrito, que tem por objetivo pôr em jogo as forças que devem impelir a sociedade na senda do novo sistema. Um exame sumário das causas que têm impedido até agora a sociedade, e ainda a impedem, de tomar francamente a direção orgânica, deve naturalmente preceder a exposição dos meios a empregar a fim de fazê-la tomar essa diretriz. Os esforços múltiplos e contínuos empreendidos pelos povos e pelos reis, para reorganizarem a sociedade, provam que a necessidade de tal reorganização é geralmente sentida. Mas não o é, de uma e de outra parte, senão de maneira vaga e imperfeita. Estas duas espécies de tentativas, embora opostas, são igualmente viciosas sob pontos de vista diversos. Não têm tido até o presente, e nunca poderão ter, resultado algum verdadeiramente orgânico. Longe de tenderem para a terminação da crise, contribuem unicamente para prolongá-la. Tal a verdadeira causa que, apesar de tantos esforços, mantendo a sociedade na direção crítica, a entrega, como presa, às revoluções. A fim de estabelecer esta asserção fundamental, basta lançar um golpe de vista sobre os ensaios de reorganização, empreendidos pelos reis e pelos povos. O erro cometido pelos reis é mais fácil de compreender-se. Para eles, a reorganização da sociedade consiste na restauração pura e simples do sistema feudal e teológico, em toda sua plenitude. A seus olhos, não há outro meio de fazer cessar a anarquia, resultante da decadência desse sistema. Seria pouco filosófico considerar tal opinião como ditada principalmente pelo interesse particular dos governantes. Por mais quimérica que seja, devia apresentar-se naturalmente aos espíritos que procuram, de boa-fé, um remédio para a crise atual, e sentem, em toda sua plenitude, a necessidade de uma reorganização, mas que não levaram em conta a marcha geral da civilização. Não encarando o estado atual das coisas senão através de uma só face, não percebem a tendência da sociedade para o estabelecimento de um novo sistema, mais perfeito e não menos consistente do que o antigo. Em uma palavra, é natural que essa maneira de ver seja propriamente a dos governantes, pois, do ponto de vista em que se colocam, devem necessariamente perceber, com mais evidência, o estado anárquico da sociedade e, por conseguinte, sentir, de maneira mais imperiosa, a necessidade de remediá-lo. Não é oportuno insistir aqui sobre o absurdo manifesto de tal opinião. Ele é hoje universalmente reconhecido pela maioria dos homens que possuem esclarecimentos a esse respeito. Procurando reconstruir o antigo sistema, os reis, sem dúvida, não compreendem a natureza da crise atual, e longe estão de haver medido toda a extensão de seu empreendimento. A queda do sistema feudal e teológico não se liga, como eles julgam, a causas recentes, insuladas, e de algum modo acidentais. Em lugar de ser o efeito da crise, é, ao contrário, o seu princípio. A decadência deste sistema realizou-se de maneira contínua, durante os séculos precedentes, por uma série de modificações, independentes de qualquer vontade humana, para as quais concorreram todas as classes sociais, tendo sido os próprios reis, muitas vezes, os seus principais agentes, ou os seus mais ardorosos promotores. Foi, em última análise, a consequência necessária da marcha da civilização. Não bastaria, portanto, para restabelecer o antigo sistema, fazer retrogradar a sociedade até a época em que a crise atual começou a pronunciar-se. De fato, admitindo que se conseguisse isto, o que é absolutamente impossível, colocar-se-ia de novo o corpo social na situação que determinou a crise. Seria necessário, por conseguinte, remontando os séculos, reparar, sucessivamente, todas as perdas que o antigo sistema sofreu desde seiscentos anos, e em relação às quais, as ocorridas nestes últimos trinta anos não apresentam importância alguma. Para conseguir isto, não haveria outro meio senão anular, um a um, todos os desenvolvimentos da civilização, que determinaram tais perdas. Assim, por exemplo, seria em vão que se suporia destruída a filosofia do século XVIII, causa direta da queda do antigo sistema sob o ponto de vista espiritual, se não se supusesse também abolida a reforma do século XVI, da qual a filosofia do século passado não é mais do que a consequência e o desenvolvimento. Mas, como a reforma de Lutero não é, por seu turno, senão o resultado necessário do progresso das ciências de observação, introduzidas na Europa pelos árabes, nada se teria feito para assegurar a restauração do antigo sistema, a não ser que se conseguisse também sufocar as ciências positivas. Da mesma forma, sob o ponto de vista temporal, seríamos levados, gradualmente, até colocar de novo as classes industriais em estado de escravidão, porque, em última análise, a emancipação das comunas foi a causa primeira e geral da decadência do feudalismo. Enfim, para acabar de caracterizar tal empresa, depois de ter vencido tantas dificuldades, das quais a menor, considerada isoladamente, está acima de todo o poder humano, o que apenas se obteria seria adiar a queda definitiva do antigo sistema, obrigando a sociedade a recomeçar-lhe a destruição, porque não se teria anulado o princípio da civilização progressiva, inerente à natureza da espécie humana. Um projeto tão monstruoso, quer por sua extensão, quer por seu absurdo, não pôde, é claro, ser concebido, em seu conjunto, por cérebro algum. Mesmo a contragosto, somos de nosso século. Os espíritos que mais acreditam lutar contra a marcha da civilização, obedecem, sem perceber, à sua irresistível influência, e concorrem por si mesmos a secundá-la. Também os reis, ao mesmo tempo em que projetam reconstruir o sistema feudal e teológico, caem em constantes contradições, contribuindo por seus próprios atos, seja para tornar mais completa a desorganização desse sistema, seja para acelerar a formação do que deve substituí-lo. Os fatos deste gênero apresentam-se em grande quantidade ao observador. Para só mencionar aqui os mais notáveis, vê-se que os reis consideram honroso encorajar o aperfeiçoamento e a propagação das ciências e das belas-artes, e estimular o desenvolvimento da indústria; criaram, para este fim, numerosos e úteis estabelecimentos, conquanto seja aos progressos das ciências, das belas-artes e da indústria que deve, em última análise, ser atribuída a decadência do antigo sistema. Foi assim ainda que os reis, pelo tratado da Santa Aliança, degradaram, tanto quanto lhes foi possível, o poder teológico, principal base do antigo sistema, formando um conselho europeu supremo, onde esse poder não tem, sequer, voz consultiva. Finalmente, a maneira pela qual se dividem hoje as opiniões relativamente à atual luta empreendida pelos gregos em prol de sua independência, oferece ainda exemplo mais evidente desse espírito de inconsequência. Nesta conjuntura, os homens que pretendem restituir às ideias teológicas sua antiga influência, verificam involuntariamente a decadência delas, em seu próprio espírito, não temendo pronunciar, a favor do maometismo, um voto que, nos tempos de esplendor do antigo sistema, atrairia sobre eles a acusação de sacrilégio. (Para compreender todo o alcance deste fato, basta recordar que o próprio Papa se pronunciou neste sentido, recusando formalmente à mocidade da nobreza romana permissão para socorrer os gregos). Seguindo a série de observações que acaba de ser indicada, cada leitor pode facilmente acrescentar-lhe novos fatos, que se multiplicam diariamente. Por assim dizer, os reis não praticam um único ato, não dão um só passo tendente à restauração do antigo sistema, que não seja imediatamente seguido de outro dirigido em sentido contrário; e muita vez a mesma disposição legal contém ambos. Esta incoerência radical é o que há de mais próprio para tornar evidente o absurdo de um plano que não é compreendido nem mesmo por aqueles que o executam com maior ardor. Mostra claramente quanto é completa e irrevogável a ruína do antigo sistema. É desnecessário entrar aqui em maiores particularidades a este respeito. Não menos viciosa do que a dos reis, se bem que a outros respeitos, é a maneira pela qual os povos têm compreendido, até o presente, a reorganização da sociedade. Seu erro é apenas mais desculpável, pois eles se enganam na busca do novo sistema, para o qual os impele a marcha da civilização, cuja natureza não foi ainda bem claramente determinada, enquanto os reis prosseguem uma empresa que o exame um pouco atento do passado demonstra ser completamente absurda. Numa palavra: os reis estão em contradição com os fatos e os povos com os princípios, que são sempre mais difíceis de discernir. Mas é muito mais importante desarraigar o erro dos povos do que o dos reis, porque é o único a oferecer obstáculo essencial à marcha da civilização, além de dar certa consistência ao erro dos monarcas. A opinião dominante no espírito dos povos, relativa à maneira pela qual a sociedade deve ser reorganizada, tem, como traço característico, uma profunda ignorância das condições fundamentais a serem preenchidas por qualquer sistema social a fim de ter verdadeira consistência, Essa opinião limita-se a apresentar, como princípios orgânicos, os princípios críticos que serviram para destruir o sistema feudal e teológico, ou, em outros termos, a tomar simples modificações desse sistema como bases do que é necessário instituir. De fato, examinem-se, com atenção, as doutrinas hoje em voga entre os povos, enunciadas nos discursos de seus partidários mais capazes e nos escritos que as expõem mais metodicamente. Depois de consideradas em si, observe-se historicamente sua formação sucessiva, e reconhecer-se-á haverem sido concebidas com um espírito puramente crítico, que não poderia servir de base a uma reorganização. O governo que, em qualquer estado de coisas regular, é a cabeça da sociedade o guia e o agente da ação geral, fica sistematicamente despojado, por essas doutrinas, de qualquer princípio de atividade. Privado de toda participação na vida do conjunto do corpo social, fica reduzido a um papel absolutamente negativo. Considera-se até toda a ação do corpo social sobre seus membros, como devendo ser estritamente limitada à manutenção da tranquilidade pública, o que nunca foi, em nenhuma sociedade ativa, senão um problema subalterno, cuja importância o desenvolvimento da civilização reduziu singularmente, tornando a ordem muito fácil de ser mantida. O governo não é mais concebido como a cabeça da sociedade, destinada a enfeixar e dirigir, para um objetivo comum, todas as atividades individuais. É representado como um inimigo natural, acampado no meio do sistema social, e contra o qual a sociedade deve fortalecer-se, a fim de assegurar as garantias conquistadas, conservando-se em relação a ele em estado permanente de desconfiança e hostilidade defensiva, prestes a manifestar-se ao primeiro sinal de ataque. Se do conjunto passarmos às particularidades, o mesmo espírito se apresenta mais claramente ainda. Bastará indicá-la aqui nos pontos principais, quanto ao espiritual e ao temporal. O princípio desta doutrina, sob o ponto de vista espiritual, é o dogma da liberdade ilimitada de consciência. Examinado no mesmo sentido em que foi primitivamente concebido, vale dizer, como tendo um destino crítico, este dogma não é mais elo que a tradução de importante fato geral: a decadência das crenças teológicas. Tendo resultado dessa decadência, esse dogma, por uma reação necessária, contribuiu poderosamente para acelerá-la e propagá-la; mas, deve-se a isto haver sido, pela natureza das coisas, sua influência limitada. Está na linha dos progressos do espírito humano, enquanto considerado simplesmente como arma de combate contra o sistema teológico, mas desvia-se dela, e perde todo valor, logo que se pretende ver nele uma das bases da grande reorganização social reservada à nossa época. Neste caso, torna-se tão nocivo quanto foi útil, porque se transforma em obstáculo para essa reorganização. De fato, proclamando a soberania de cada razão individual, a essência desse dogma é impedir o estabelecimento uniforme de qualquer sistema de ideias gerais, sem o qual, entretanto, não há sociedade, pois, qualquer que seja o grau de instrução a que possa algum dia chegar a massa dos homens, é evidente que a maior parte das ideias gerais, destinadas a se tornarem comuns, só poderá ser admitida por eles em confiança, e não por demonstrações. Assim, esse dogma só é aplicável, por sua natureza, às ideias que devem desaparecer, porque então elas se tornam indiferentes; e, de fato, ele nunca lhes foi aplicado, a não ser no momento em que começavam a decair a fim de apressar-lhes a queda. Aplicá-la ao novo sistema, como ao antigo, e, com mais forte razão, ver nele um princípio orgânico, é cair na mais estranha contradição; e se tal erro pudesse perdurar, a reorganização da sociedade jamais seria possível. Não há liberdade de consciência em astronomia, física, química, fisiologia, porquanto cada indivíduo consideraria absurdo não aceitar, em confiança, os princípios estabelecidos, nessas ciências, pelos homens competentes. Se o mesmo não se dá em política, é porque, tendo-se desacreditado os antigos princípios, e não estando ainda formados os novos, não há, verdadeiramente falando, neste intervalo, princípios estabelecidos. Mas, converter este fato transitório em dogma absoluto e eterno, fazer dele um princípio fundamental, é evidentemente proclamar que a sociedade deve ficar sempre sem doutrinas gerais. Deve convir-se que tal dogma merece, efetivamente, as censuras de anarquia, que lhe são dirigidas pelos melhores defensores do sistema teológico. O dogma da soberania popular corresponde, sob o ponto de vista temporal, ao que acaba de ser examinado, e não é mais do que a sua aplicação política. Foi criado para combater o princípio do direito divino, base política geral do antigo sistema, pouco tempo depois de haver sido o dogma da liberdade de consciência proclamado para destruir as ideias teológicas, sobre as quais o referido princípio se baseava. O que foi dito em relação a um é aplicável ao outro. O dogma antifeudal, como o antiteológico, terminou seu destino crítico, termo natural de sua carreira. O primeiro não pode mais ser a base política da reorganização social, como o segundo não pode ser a sua base moral. Nascidos ambos para destruir, são igualmente impróprios para fundar. Se um desses dogmas, em vez de um princípio orgânico, somente apresenta a infalibilidade individual para substituir a infalibilidade papal, o outro, da mesma forma, substitui o arbítrio dos reis pelo dos povos, ou antes, dos indivíduos. Tende, portanto, para o desmembramento geral do político, levando a confiar o poder às classes menos civilizadas, como o primeiro tende para o completo isolamento dos espíritos, investindo os homens menos esclarecidos de um direito de controle absoluto sobre o sistema de ideias gerais estabelecidos pelos espíritos superiores para servir de guia à sociedade. É fácil aplicar a cada uma das ideias particulares, de que se compõe a doutrina dos povos, o exame que acaba de ser esboçado em relação aos dois dogmas fundamentais. Verificar-se-á sempre resultado idêntico. Ver-se-á que todas essas ideias, como as duas mais importantes, nada mais são do que o enunciado dogmático de um fato histórico correspondente, relativo à decadência do sistema feudal e teológico. Reconhecer-se-á, igualmente, que todas têm um destino puramente crítico, seu único valor, tornando-as absolutamente inaplicáveis à reorganização da sociedade. Deste modo, o exame aprofundado da doutrina dos povos confirma o que o ponto de vista filosófico devia fazer prever: máquinas de guerra não poderiam, por estranha metamorfose, transformar-se repentinamente em instrumentos de construção. Esta doutrina, puramente crítica em seu conjunto e em suas particularidades, teve a maior importância para auxiliar a marcha natural da civilização, enquanto a ação principal consistia na luta contra o antigo sistema. Mas, concebida como devendo presidir à reorganização social, é de insuficiência absoluta. Coloca, de modo forçoso, a sociedade num estado de anarquia legalmente constituída, no temporal e no espiritual. Sem dúvida, estava de acordo com a fraqueza humana que os povos começassem por adotar, como orgânicos, os princípios críticos, com os quais se haviam familiarizado pela sua aplicação contínua. Mas a prolongação de tal erro não deixa de ser o maior obstáculo à reorganização da sociedade. Depois de ter considerado, separadamente, as duas maneiras diversas pelas quais os povos e os reis concebem esta reorganização, se compararmos uma com a outra veremos que cada uma delas, por vícios que lhe são próprios, é igualmente incapaz de colocar a sociedade numa direção verdadeiramente orgânica, e impedir, assim, para o futuro, a reprodução das tempestades que constantemente acompanharam, até o presente, a grande crise que caracteriza a época atual. Ambas são anárquicas no mesmo grau, uma por sua natureza íntima, a outra por suas consequências inevitáveis. A única diferença existente entre elas, neste ponto, é que, na opinião dos reis, o governo se constitui propositadamente em oposição direta e contínua à sociedade, ao passo que, na opinião dos povos, é a sociedade que se organiza sistematicamente em estado de permanente hostilidade ao governo. Estas duas opiniões opostas e igualmente viciosas tendem, pela natureza das coisas, a se fortalecerem mutuamente, e, por consequência, a alimentarem indefinidamente a fonte das revoluções. De um lado, as tentativas dos reis para reconstruir o sistema feudal e teológico, provocam, necessariamente, da parte dos povos, a explosão dos princípios da doutrina crítica, com toda a sua temível energia. Sem essas tentativas é evidente que essa doutrina já teria perdido sua maior atividade, visto não possuir mais objetivo, desde que a adesão solene dos reis a seu princípio fundamental [o dogma da liberdade de consciência] e às suas principais consequências, comprovou claramente a ruína irrevogável do antigo sistema. Mas os esforços para ressuscitar o direito divino despertam a soberania popular e lhe dão vigor. Por outro lado, em consequência mesmo de achar-se o antigo sistema mais do que suficientemente modificado, de modo a permitir que se trabalhe de maneira direta na formação do novo, a preponderância ainda concedida pelos povos aos princípios críticos impele os reis, como é natural, a tentarem sufocar, pela restauração do antigo sistema, uma crise que, do modo pelo qual se apresenta, parece não oferecer outra saída a não ser a dissolução da ordem social. Este prolongamento do reinado da doutrina crítica, numa época em que uma doutrina orgânica se torna necessária à sociedade, é precisamente o que dá alguma força à opinião dos reis. De fato, se esta opinião não é realmente mais orgânica do que a dos povos, dada a impossibilidade absoluta de realizar-se, ela o é pelo menos em teoria, o que lhe dá uma relação incompleta com as necessidades da sociedade, à qual é absolutamente imprescindível um sistema qualquer. Acrescente-se a este quadro exato a influência das diversas facções a cujos projetos esse estado de coisas apresenta campo tão amplo e tão favorável; examinem-se seus esforços para impedir o esclarecimento da questão, a fim de desviar os reis e os povos de se entenderem e reconhecerem seus erros mútuos, e ter-se-á justa ideia da triste situação em que se acha atualmente a sociedade. Todas as considerações precedentemente expostas provam que o meio de sair, afinal, deste deplorável círculo vicioso, origem inesgotável das revoluções, não consiste no triunfo da opinião dos reis, nem no da opinião dos povos, tais como se manifestam atualmente. Não há outro meio senão a formação e a adoção geral, pelos povos e pelos reis, da doutrina orgânica, única em condições de tirar aos reis a direção retrógrada, e aos povos a direção crítica. Só essa doutrina pode terminar a crise colocando a sociedade inteira na senda do novo sistema, cujo estabelecimento a marcha da civilização, desde a sua origem, preparou e conduz hoje a substituir o sistema feudal e teológico. Pela adoção unânime de tal doutrina, o que as opiniões atuais dos povos e dos reis oferecem de razoável será satisfeito; o que encerram de vicioso e discordante será suprimido. Sendo dissipados os justos receios dos reis sobre a dissolução da sociedade, nenhum motivo legítimo os levará a se oporem à expansão do espírito humano. Voltando suas vistas para a formação do novo sistema, os povos não se irritarão mais contra o sistema feudal e teológico, e o deixarão extinguir-se calmamente, seguindo o curso natural das coisas. Depois de se ter verificado a necessidade da adoção de uma nova doutrina verdadeiramente orgânica, se se examinar a oportunidade de sua instituição, bastam as considerações seguintes para demonstrar que, enfim, chegou o momento de começar, sem perda de tempo, essa grande operação. Observando com exatidão, o estado atual das nações mais adiantadas, é impossível não se ficar surpreendido com o seguinte fato singular e quase contraditório: embora não existam ainda outras ideias políticas senão as que se referem à doutrina retrógrada ou à doutrina crítica, nenhuma delas, contudo, possui mais, atualmente, quer entre os reis, quer entre os povos, uma preponderância verdadeira; nenhuma exerce uma ação bastante poderosa para dirigir a sociedade. Essas duas doutrinas que, sob o ponto de vista teórico, se alimentam mutuamente, como acima evidenciamos, não são mais, entretanto, empregadas senão em se limitarem, ou antes, em se anularem reciprocamente na direção geral dos negócios. O grande movimento político determinado, há trinta anos, pela atividade das ideias críticas, tirou-lhes a principal influência. De outra parte, o último golpe dado no antigo sistema, barrou-lhes o curso natural; destruiu, quase completamente, a causa geral que lhes havia proporcionado as simpatias populares. De outra parte, a aplicação das novas opiniões à reorganização da sociedade pôs em completa evidência seu caráter anárquico. Depois desta experiência decisiva, não há mais, nos povos, verdadeira paixão crítica. Por conseguinte, quaisquer que sejam as aparências, já não pode haver verdadeira paixão retrógrada nos reis, pois são reconhecidas por eles a decadência do sistema feudal e teológico e a necessidade de abandoná-lo. A verdadeira atividade, quer numa, quer noutra direção, acha-se atualmente fora do poder e fora da sociedade. Servem-se ambos, na prática, da opinião retrógrada ou da opinião crítica, de maneira essencialmente passiva, isto é, como aparelho defensivo. Empregam mesmo, sucessivamente, uma e outra opinião, e quase no mesmo grau, com a única diferença compreensível: como meio de raciocínio, os povos estão ainda ligados à doutrina crítica, porque experimentam mais completamente a necessidade de desprezar o antigo sistema: e os reis se prendem à doutrina retrógrada, porque sentem mais profundamente a necessidade de uma ordem social, sei a qual for. Esta observação pode ser facilmente verificada e esclarecida pelo simples fato da existência e do crédito de uma espécie de opinião bastarda. Que nada mais é do que uma mistura das ideias retrógradas com as ideias críticas. É evidente que esta opinião, sem influência alguma na origem da crise, tornou-se hoje dominante, tanto entre os governados, como entre governantes. Os dois partidos ativos reconhecem o seu império da maneira menos equívoca pela estrita obrigação em que ambos se encontram de adotar sua linguagem. O êxito de tal opinião evidencia claramente dois fatos muito importantes para o conhecimento exato da nossa época. Prova, em primeiro lugar, que a insuficiência da doutrina crítica, para corresponder às grandes necessidades atuais da sociedade, é tão profunda e tão universalmente sentida quanto à incompatibilidade do sistema teológico ou feudal relativamente ao estado atual da civilização. Em segundo lugar, garante que nem a opinião crítica, nem a retrógrada, podem obter mais ascendência real. De fato, quando uma delas parece prestes a adquirir preponderância, a disposição geral dos espíritos torna-se logo favorável à outra, até que esta, iludida por uma aparente aprovação, tenha adquirido bastante atividade para dar lugar aos mesmos alarmas, e, por conseguinte, a experimentar, por sua vez, a mesma decepção. (O mérito da opinião intermediária, ou antes, contraditória, consiste precisamente em servir de órgão a esta disposição. É evidente, além disto, que, por sua natureza, se ressente de nulidade orgânica, pois nada possui que lhe seja próprio, e só se compõe de máximas opostas, que se anulam reciprocamente. Ela não pode chegar, como a experiência já tem suficientemente confirmado, senão a fazer oscilar a marcha dos acontecimentos entre a tendência crítica e a retrógrada, sem imprimir-lhe jamais qualquer caráter determinado. Esta conduta indecisa é certamente indispensável na situação política atual, até o estabelecimento de uma doutrina verdadeiramente orgânica para prevenir as violentas desordens, a que a sociedade ficaria exposta, pela preponderância do partido retrógrado ou do partido crítico, Neste sentido, todos os homens sensatos devem apressar-se a secundá-la. Mas se tal política torna menos tempestuosa a época revolucionária, não é menos incontestável que tende diretamente a prolongar-lhe a duração, Com efeito, uma opinião que arvora a inconsequência em sistema e conduz a impedir cautelosamente a extinção total das duas doutrinas extremas, a fim de poder opô-las sempre uma à outra, impede necessariamente que o corpo social chegue a um estado fixo. Numa palavra, esta política é razoável e útil hoje, admitida simplesmente como provisória; mas torna-se absurda e perigosa se se quiser considerá-la definitiva. Tais são os motivos pelos quais não fiz acima qualquer menção dessa maneira de ver no exame das opiniões existentes sobre a organização social). Estas oscilações sucessivas se efetuam ora num sentido, ora noutro, conforme a marcha natural dos acontecimentos manifeste especialmente ou o absurdo do antigo sistema, ou o perigo da anarquia. Tal é, neste momento, o mecanismo da política prática, e tal será inevitavelmente enquanto as ideias sobre a reorganização da sociedade não forem fixadas, enquanto não se formar uma opinião capaz de preencher simultaneamente as duas condições prescritas por nossa época, e que, até agora, pareceram contraditórias: o abandono do antigo sistema e o estabelecimento de uma ordem regular e estável. Esta anulação recíproca das duas doutrinas opostas, evidente até nas opiniões, é sobretudo incontestável nos atos. Examinem-se, com efeito, todos os acontecimentos de alguma importância, que se têm desenrolado há dez anos, seja com a tendência crítica, seja com a tendência retrógrada, e reconhecer-se-á que jamais proporcionaram qualquer progresso real ao sistema correspondente, e o seu resultado tem sido sempre o de impedir a preponderância do sistema oposto. Assim, em resumo, nem a opinião dos reis, nem a dos povos, pode, de modo algum, satisfazer à necessidade fundamental de reorganização que caracteriza a época atual; o que estabelece a necessidade de uma nova doutrina geral. Mas o triunfo de uma ou de outra é hoje igualmente impossível, e nenhuma delas pode ter mais verdadeira atividade, de onde resulta que os espíritos estão suficientemente preparados para receberem a doutrina orgânica. O destino da sociedade, chegada à sua madureza, não é habitar eternamente o velho e mesquinho pardieiro, que construiu em sua infância, como pensam os reis; nem viver eternamente sem abrigo, depois de tê-lo abandonado, como pensam os povos, mas construir, com o auxílio da experiência adquirida e com os materiais que acumulou, o edifício mais apropriado às suas necessidades e ao seu bem-estar. Tal é a grande e nobre empresa reservada à geração atual. Exposição Geral Estando demonstrado ser vicioso o espírito segundo o qual foi concebida, até o presente, a reorganização da sociedade, quer pelos povos, quer pelos reis, daí se deve concluir necessariamente que ambos procederam mal na formação do plano de reorganização. E a única explicação possível de semelhante fato; mas cumpre estabelecer esta assertiva de maneira direta, especial e precisa. A insuficiência da opinião dos reis e dos povos tem demonstrado a necessidade de uma nova doutrina, verdadeiramente orgânica, única em condições de terminar a terrível crise que atormenta a sociedade. De igual forma, o exame da maneira de proceder, que conduziu, de uma e de outra parte, a esses resultados imperfeitos, mostrará qual a marcha que deve ser adotada para a formação e o estabelecimento da nova doutrina, e quais as forças sociais próprias para dirigirem esse grande trabalho. O vício geral da marcha seguida pelos povos e pelos reis, na pesquisa do plano de reorganização, consiste em que ambos têm feito, até agora, ideia extremamente falsa da natureza desse trabalho e, por consequência, confiaram essa importante missão a homens necessariamente incompetentes. Tal é a causa primária das aberrações fundamentais, verificadas no capítulo precedente. Embora esta causa seja tão verdadeira para os reis, quanto para os povos, é todavia inútil considerá-la especialmente em relação aos primeiros, porque, nada tendo inventado, e tendo-se limitado a reproduzir para o novo estado social a doutrina antiga, sua incompetência para conceberem uma verdadeira reorganização ficou, só por isto, suficientemente demonstrada. De outro lado, pela mesma razão, a marcha deles, embora tão absurda, em princípio, quanto a dos povos, devia ser naturalmente mais metódica, por ter sido traçada de antemão na maior minúcia, Tendo-se em vista que só os povos produziram uma espécie de doutrina nova, é sua maneira de proceder que principalmente se torna necessário examinar, a fim de aí descobrir a origem dos vícios de tal doutrina. Além disto, tornar-se-á fácil para todos aplicar, em seguida, aos reis, com as modificações convenientes, as observações gerais feitas a respeito dos povos. A multiplicidade das pretensas constituições, engendradas pelos povos, desde o começo da crise, e a excessiva minúcia de redação que, mais ou menos, se encontra em todas, bastariam, só por si, para mostrar, com plena evidência, a todos os espíritos capazes de julgá-las, quanto a natureza e a dificuldade da formação de um plano de reorganização foram desconhecidas até o presente. Quando a sociedade estiver verdadeiramente organizada, será objeto de profundo assombro, para nossos descendentes, o fato da produção, num intervalo de trinta anos, de dez constituições, sempre proclamadas, sucessivamente, eternas e irrevogáveis, contendo algumas mais de duzentos artigos muito minuciosos, sem levar em conta as leis orgânicas que com elas se relacionam. Tal verbiagem seria, em política, a vergonha do espírito humano, se, no progresso natural das ideias, não fosse uma transição inevitável para a verdadeira doutrina final. Não é assim que caminha, nem pode caminhar a sociedade. A pretensão de construir, de um jato, em alguns meses, ou mesmo em alguns anos, toda a economia de um sistema social, em seu desenvolvimento completo e definitivo, é extravagante quimera, absolutamente incompatível com a fraqueza do espírito humano. Observe-se, com efeito, a maneira pela qual ele procede em casos análogos, infinitamente mais simples. Quando uma ciência qualquer se reconstitui, segundo nova teoria, já suficientemente preparada, o princípio geral se produz, se discute e se estabelece em primeiro lugar; depois, por longo encadeamento de trabalhos, é que se chega a formar, para todas as suas partes, uma coordenação que ninguém, no começo, estaria em condições de conceber, nem mesmo o criador do princípio. Foi assim, por exemplo, depois que Newton descobriu a lei da gravitação universal. Tornou-se necessário cerca de um século de trabalhos muito difíceis, realizados por todos os geômetras da Europa, para dar à astronomia-física a constituição que devia resultar dessa lei. Nas artes, o mesmo sucede. Para não citar mais de um exemplo, quando a força elástica do vapor d’água foi concebida como novo motor aplicável às máquinas, tornou-se necessário igualmente quase um século para desenvolver a série de reformas industriais que eram as consequências mais diretas dessa descoberta. Se tal é, evidentemente, a marcha necessária e invariável do espírito humano nas revoluções que, apesar de sua importância e de sua dificuldade, não são, entretanto, senão particulares, quanto deve parecer frívola a marcha presunçosa que tem sido seguida, até o presente, na revolução mais geral, mais importante e mais difícil de todas: a que tem por fim a refusão completa do sistema social! Se destas comparações indiretas, mas decisivas, se passar às comparações diretas, o resultado será o mesmo. Estude-se a fundação do sistema feudal e teológico, revolução absolutamente da mesma natureza que a da época atual. Muito ao contrário de ter sido feita a sua constituição de um só jato, não tomou a forma própria e definitiva senão no século XI, vale dizer, mais de cinco séculos depois de haver geralmente triunfado a doutrina cristã na Europa ocidental, e do completo estabelecimento dos povos do Norte no império do Ocidente. Impossível seria conceber que qualquer homem de gênio pudesse traçar, no século v, de modo minucioso, o plano dessa constituição, embora o princípio fundamental, de que foi apenas o necessário desenvolvimento, estivesse desde então solidamente estabelecido, tanto no atinente ao temporal, quanto ao espiritual. Sem dúvida, em consequência do progresso do saber e do caráter mais simples e mais natural do novo sistema, sua organização total deve fazer-se com muito maior rapidez. Mas, como a marcha da sociedade é necessariamente, no fundo, sempre idêntica, apresentando maior ou menor rapidez, visto depender da natureza permanente da constituição humana, essa grande experiência não prova menos ser absurdo querer improvisar, até nas menores particularidades, o plano completo da reorganização social. Se houvesse necessidade de confirmar-se esta conclusão, ela o seria, observando-se a maneira pela qual se estabeleceu espontaneamente a doutrina crítica adotada pelos povos. Esta doutrina não é mais, evidentemente, senão o desenvolvimento geral e a aplicação completa do direito individual de exame estabelecido, como princípio, pelo protestantismo. Ora, tornaram-se necessários quase dois séculos, após a instituição desse princípio, para que dele fossem deduzidas todas as consequências importantes, e para que se formasse a respectiva teoria. É incontestável que a resistência do sistema feudal e teológico muito influiu na lentidão dessa marcha; mas não é menos evidente que não podia ser a sua causa única, e essa lentidão dependeu, em grande parte, da própria natureza do trabalho. Ora, o que é verdadeiro acerca de uma doutrina puramente crítica, deve sê-lo, com mais forte razão, relativamente a uma doutrina orgânica. Cumpre, portanto, concluir, desta primeira ordem de considerações, que os povos não compreenderam, até o presente, o grande trabalho da reorganização social. Procurando-se verificar em que foi desconhecida a natureza desse trabalho, reconhece-se que foi por ter sido considerado, como puramente prático, um empreendimento essencialmente teórico. A formação de qualquer plano de organização social compõe-se, necessariamente, de duas séries de trabalhos, inteiramente distintas, tanto por seu objetivo, quanto pelo gênero de capacidade que exigem. Uma, teórica ou espiritual, tem por fim o desenvolvimento da ideia-mãe do plano, isto é, do novo princípio segundo o qual as relações sociais devem ser coordenadas, e a formação do sistema de ideias gerais destinado a servir de guia à sociedade. A outra série, prática ou temporal, determina o modo de distribuição do poder e o conjunto de instituições administrativas mais conformes com o espírito do sistema, tal como foi determinado pelos trabalhos teóricos. Sendo a segunda série baseada na primeira, da qual é apenas a consequência e a realização, é por esta que, necessariamente, deve começar o trabalho geral. Ela é a sua alma, a parte mais importante e mais difícil, embora somente preliminar. Por não terem adotado esta divisão fundamental, ou, em outros termos, por terem fixado exclusivamente sua atenção sobre a parte prática, é que os povos foram naturalmente levados a conceber a reorganização social consoante à doutrina viciosa examinada no capítulo precedente. Todos os seus erros são a consequência desse grande desvio primitivo. Pode-se estabelecer esta filiação com facilidade. Em primeiro lugar, desta infração à lei natural do espírito humano resultou que, julgando construir um novo sistema social, ficaram os povos encerrados no antigo. Isto era natural, porque o alvo e o espírito do novo sistema não estavam determinados. Será sempre assim, até que esta condição indispensável seja previamente preenchida. Qualquer sistema social, quer seja feito para um pugilo de homens, quer para alguns milhões, tem por finalidade definitiva dirigir para um objetivo geral de atividade todas as forças particulares, porquanto só há sociedade onde se exerce uma ação geral e combinada. Em qualquer outra hipótese, há apenas aglomeração de certo número de indivíduos sobre o mesmo solo. É isto que distingue a sociedade humana da dos outros animais que vivem em grupos. Desta consideração, resulta que o estabelecimento claro e preciso do objetivo da atividade é a primeira condição e a mais importante de uma verdadeira ordem social, pois fixa o sentido em que deve ser concebido todo o sistema. Por outro lado, há apenas duas metas de atividade possíveis, tanto para uma sociedade, por mais numerosa que seja, como para um indivíduo isolado. Estas vêm a ser: a ação violenta sobre o resto da espécie humana, isto é, a conquista, e a ação sobre a natureza a fim de modificá-la em proveito do homem, ou seja, a produção. Qualquer sociedade que não fosse claramente organizada para um desses fins, não seria mais do que uma associação bastarda e sem características. No antigo sistema, o objetivo era militar; em o novo, é industrial. O primeiro passo a dar na reorganização social era, portanto, a proclamação deste novo objetivo. Por não tê-lo dado, não se saiu ainda do antigo sistema, mesmo depois de se ter crido haver-se afastado dele o mais possível. Ora, é claro que esta estranha lacuna de nossas pretensas constituições decorreu de se ter querido organizar o sistema em suas minúcias, antes de se lhe ter concebido o conjunto. Em outros termos: essa lacuna resultou da preocupação exclusiva com a parte regulamentar da reorganização, sem que fosse resolvida a parte teórica, e sem que se houvesse mesmo pensado em instituí-la. Como consequência inevitável deste primeiro erro, tomaram-se; por alteração total do antigo sistema meras modificações. U fundo conservou-se essencialmente intacto; todas as alterações interessaram unicamente à forma. Houve apenas a preocupação de fracionar os antigos poderes e de promover a oposição recíproca de seus diferentes ramos. As discussões sobre este assunto toram consideradas, e o são ainda hoje, como o sublime da política, da qual não constituem, entretanto, senão minudência muito subalterna. A direção da sociedade e a natureza dos poderes foram concebidas como sendo sempre as mesmas. Alem disto, é essencial notar que as discussões sobre a divisão dos poderes, as únicas que hajam sido entabuladas, foram, por outra consequência do desvio primitivo, as mais superficiais possíveis. Perdeu-se de vista a grande divisão em poder espiritual e poder temporal, o mais importante aperfeiçoamento que o antigo sistema introduziu na política geral. Tendo dirigido toda a atenção para a parte pratica da reorganização social, chegou-se naturalmente à monstruosidade de uma constituição sem poder espiritual, que, se pudesse perdurar, seria verdadeira e imensa retrogradação para a barbárie. Só se cogitou do poder temporal. Nada mais se viu além da sua divisão em poder legislativo e poder executivo, o que é, evidentemente, apenas uma subdivisão. Para guiar seu espírito nas modificações do antigo sistema feudal e teológico, os povos foram necessariamente levados a conceber, como orgânicos, os princípios críticos que haviam servido para lutar contra o antigo sistema, desce a época em que sua decadência se tornara sensível, e, por isto mesmo, era destinado a modificá-lo. Cumpre notar, a este respeito, que, desconhecendo a divisão em série teórica e prática, no trabalho geral de reorganização, verificaram os povos involuntariamente a necessidade desta lei, ditada pela imperiosa natureza das coisas, subordinando-se a ela em suas tentativas de modificação do antigo sistema. Tal é o encadeamento rigoroso de consequências, derivado do erro fundamental de se ter considerado como puramente pratica a obra essencialmente teórica da reorganização social, Foi assim que os povos chegaram gradualmente a considerar como um verdadeiro sistema social novo, produto da civilização aperfeiçoada, o que nada mais era do que o antigo sistema despojado pela doutrina crítica de tudo quanto constituía seu vigor, e reduzido à miserável situação de esqueleto descarnado. Tal a verdadeira origem aos erros capitais assinalados no capítulo precedente. Como a necessidade de uma verdadeira reorganização se faz sempre sentir, o que ocorrerá inevitavelmente ate que haja sido satisfeita, os espíritos dos povos se agitam e se esgotam em procurar novas combinações. Detidos, porém, por um destino inflexível, no círculo estreito onde sua marcha viciosa primitivamente os colocou, e da qual a civilização os impele de modo vão a sair, é em novas modificações do antigo sistema, isto é, em aplicações ainda mais completas da doutrina crítica, que acreditam encontrar o termo de seus esforços. Destarte, de modificação em modificação, isto é, destruindo cada vez mais o sistema feudal e teológico, sem nunca substituí-lo, os povos marcham a largos passos para completa anarquia, única saída natural de tal caminho. Esta conclusão prova evidentemente a necessidade urgente e inevitável de adotar-se, para o grande trabalho de reorganização social, a marcha tão claramente ditada pela natureza do espírito humano. E o único meio de escapar às desastrosas consequências que ameaçam os povos por terem seguido marcha diferente. Como esta asserção é fundamental, porque determina a verdadeira diretriz dos grandes trabalhos políticos que devem ser empreendidos agora, não será excessivo esclarecê-la bem. É, portanto, vantajoso recordar sumariamente as diretas considerações filosóficas sobre as quais se fundamenta, embora pudéssemos considerá-la como suficientemente demonstrada, pelo exame que acaba de ser esboçado sobre o caminho errado seguido, até o presente, pelos povos. É pouco honroso para a razão humana, sejamos obrigados a provar metodicamente, quanto ao empreendimento mais geral e mais difícil, a necessidade de uma divisão hoje universalmente reconhecida como indispensável nos casos menos complicados. Admite-se, como verdade elementar, que a exploração de uma simples manufatura, a construção de uma estrada, de uma ponte, a navegação de um navio, etc., devem ser dirigidas por conhecimentos teóricos preliminares, e quer-se admitir que a reorganização da sociedade seja questão puramente prática, que se pode confiar a rotineiros. Qualquer operação humana completa, desde a mais simples até a mais complicada, executada por um só indivíduo, ou por muitos, compõe-se inevitavelmente de duas partes, ou, em outros termos, dá lugar a duas ordens de considerações: uma teórica, outra prática; uma de concepção, outra de execução. A primeira necessariamente precede a segunda, que é destinada a dirigir. Em outras palavras, nunca há ação sem especulação preliminar. Na operação que parece mais puramente de rotina pode ser observada esta análise, não há diferença senão em ser a sua teoria bem ou mal concebida. O homem que pretende, em qualquer questão, não seja seu espírito dirigido por teorias, limita-se, como se sabe, a não admitir os progressos teóricos, feitos por seus contemporâneos, mantendo teorias obsoletas, muito depois de haverem sido substituídas. Assim, por exemplo, aqueles que afetam orgulhosamente não crer na medicina, de ordinário se entregam, com estúpida sofreguidão, ao charlatanismo mais grosseiro. Na primeira infância do espírito humano, os trabalhos teóricos e os trabalhos práticos são executados pelo mesmo indivíduo em todas as operações, o que não impede que, mesmo naquela época, sua distinção, embora menos evidente, não fosse muito real. Bem cedo essas duas ordens de trabalhos começaram a separar-se, exigindo capacidades e culturas diferentes, e, de algum modo, opostas. À medida que a inteligência coletiva e individual da espécie humana se desenvolve, esta divisão se evidencia e se generaliza cada vez mais, e torna-se a fonte de novos progressos. Pode medir-se verdadeiramente, sob o aspecto filosófico, o grau de civilização de um povo pelo da divisão da teoria e da prática, combinado com o grau de harmonia entre elas existente. De fato, o grande meio de civilização é a separação dos trabalhos e a convergência dos esforços. Pelo estabelecimento definitivo do cristianismo, a divisão da teoria e da prática foi constituída de maneira regular e completa para os atos gerais da sociedade, como já o era em todas as operações particulares. Foi vivificada e consolidada pela criação de um poder espiritual, distinto e independente do temporal, e que mantinha com ele as relações naturais de uma autoridade teórica com uma autoridade prática, relações modificadas de acordo com o caráter especial do antigo sistema. Esta grande e bela concepção foi a principal causa do vigor e da consistência admiráveis que distinguiram o sistema feudal e teológico nos seus tempos de esplendor. A queda inevitável desse sistema fez momentaneamente perder de vista essa importante divisão. A filosofia superficial e crítica do século passado desconheceu-lhe o valor. Mas é evidente que deve ser preciosamente conservada, com todas as outras conquistas que o espírito humano fez sob a influência do antigo sistema, e não poderiam perecer com ele. Ela deve figurar em primeira linha, entre poderes espiritual e temporal de natureza diversa, no sistema a ser hoje estabelecido. Sem dúvida, a sociedade não poderia ser menos completamente organizada no século XIX do que o era no século XI. (Esta grande questão, relativa à divisão entre o poder espiritual e o temporal, será mais tarde objeto de um trabalho especial). Se é preciso reconhecer a necessidade da divisão em trabalhos teóricos e práticos para as operações políticas diárias e comuns, com quanto mais fundado motivo essa divisão, exigida principalmente pela fraqueza do espírito humano, não será indispensável na vasta empresa da reorganização total da sociedade? É a primeira condição para tratar esta grande questão da única maneira proporcionada à sua importância. O que indica a observação filosófica, está confirmado pela experiência direta. Nunca se introduziu qualquer inovação importante na ordem social, sem que os trabalhos relativos à sua concepção hajam precedido os que tinham por finalidade imediata pô-la em ação e lhe haviam servido simultaneamente de guia e apoio. A história apresenta a este respeito duas experiências decisivas, A primeira refere-se à formação do sistema teológico e feudal, acontecimento que deve ser hoje, para nós, fonte inesgotável de instrução. O conjunto de instituições pelo qual este sistema se constituiu completamente, no século XI, tinha sido evidentemente preparado pelos trabalhos teóricos feitos nos séculos precedentes sobre o espírito desse sistema, e datam da elaboração do cristianismo pela escola de Alexandria. O estabelecimento do poder pontifício, como suprema autoridade europeia, era a consequência necessária do desenvolvimento anterior da doutrina cristã. A instituição geral do feudalismo, fundada sobre a reciprocidade de obediência do fraco e sua proteção pelo forte, era simplesmente a aplicação dessa doutrina à regulamentação das relações sociais no estado da civilização dessa época. Quem não vê que uma e outra instituição não poderiam realizar-se sem o desenvolvimento preliminar da teoria cristã? A segunda experiência, ainda mais palpável, porque se acha quase sob os nossos olhos, atinge a própria marcha das modificações realizadas pelos povos no antigo sistema, desde o começo da crise atual. É claro que foram fundadas inteiramente sobre o desenvolvimento e o arranjo sistemáticos impressos pela filosofia do século XVIII aos princípios críticos. Estes trabalhos, embora de um gênero de teoria subalterna, considerados como críticos, tinham tão manifesto caráter teórico, eram tão distintos dos trabalhos práticos subsequentes, que nenhum dos homens, que para eles concorreram, compreendia, de modo claro e amplo, as modificações que deviam produzir na geração seguinte. Esta reflexão deve ter impressionado todo aquele que haja comparado atentamente os trabalhos deles com as modificações práticas que lhes sucederam. E, todavia, se se tentar suprimir as ideias tiradas dos filósofos do século XVIII, nos escritos e discursos dos homens mais capazes dentre os que dirigiram os trabalhos de nossas pretensas constituições, ver-se-á que deles nada restará. Examinando a questão que nos preocupa, sob o ponto de vista histórico, pode ser facilmente elucidada pelas considerações seguintes, que nos limitaremos a indicar aqui, antes de desenvolvê-las alhures. A sociedade está hoje desorganizada, sob os pontos de vista espiritual e temporal. A anarquia espiritual precedeu e produziu a temporal. Atualmente, o mal-estar depende mesmo da primeira causa, muito mais do que da segunda. Por outro lado, o estudo atento da marcha da civilização prova estar a reorganização espiritual da sociedade mais preparada hoje do que sua reorganização temporal. Assim sendo, a primeira série de esforços diretos para terminar a época revolucionária deve ter por objeto reorganizar o poder espiritual. Até o presente, no entanto, a atenção jamais se fixou senão sobre a reforma do poder temporal. De todas as considerações anteriores, torna-se evidentemente forçoso concluir que há absoluta necessidade de separar os trabalhos teóricos da reorganização social, adequada à nossa época, dos trabalhos práticos; isto é, faz-se mister conceber e executar os que se referem ao espírito da nova ordem social, ao sistema de ideias gerais que lhe deve corresponder, isoladamente dos que têm por objetivo o sistema de relações sociais e o modo administrativo que das mesmas deve resultar. Nada se poderá fazer de essencial e sólido, quanto à parte prática, enquanto a teórica não estiver estabelecida ou, pelo menos, muito adiantada. Proceder de outro modo, seria construir sem bases, fazer passar a forma antes do fundo; seria, numa palavra, prolongar o erro fundamental cometido pelos povos, e acaba de ser apontado como a origem de todas as suas aberrações, obstáculo que cumpre destruir, antes de tudo, a fim de que o seu desejo de ver a sociedade reorganizada, de modo proporcional ao estado presente dos conhecimentos, possa enfim ser realizado. Tendo estabelecido a natureza dos trabalhos preliminares que devem ser executados para que a organização do novo sistema social se funde em bases sólidas, é fácil determinar quais as forças sociais destinadas a desempenhar essa importante missão. É o que resta fixar antes de expor o plano dos trabalhos a efetuar. Estando agora demonstrado que a maneira pela qual os povos procederam, até aqui, para a formação do plano de reorganização, é radicalmente viciosa, seria supérfluo, sem dúvida, insistir muito para fazer sentir que os homens a quem foi confiado esse grande trabalho eram absolutamente incompetentes. De fato, é claro ser um erro a consequência inevitável do outro. Tendo os povos ignorado a natureza do trabalho, não podiam deixar de enganar-se na escolha dos homens chamados para executá-la. Justamente por terem sido esses homens apropriados a esse trabalho, tal como os povos o concebiam, não podem ser capazes de dirigi-la da maneira pela qual deve ser concebido. A incapacidade de tais mandatários, ou melhor, sua incompetência, foi o que devia ser, porque ninguém é próprio para duas coisas absolutamente opostas. É principalmente a classe dos legistas que tem fornecido os elementos encarregados de dirigir os trabalhos das pretensas constituições estabelecidas pelos povos há trinta anos. A natureza das coisas investiu-os necessariamente dessa função, dada a maneira pela qual foi até agora concebida. De fato, como, até o presente, não se tratou, para os povos, senão de modificar o antigo sistema, e como os princípios críticos destinados a dirigir tais modificações estavam plenamente estabelecidos, a eloquência devia ser a faculdade especialmente posta em jogo nesse trabalho, e é sobretudo pelos legistas que esta faculdade é habitualmente cultivada. Embora tal faculdade seja apenas subalterna, pois se propõe unicamente a fazer triunfar determinada opinião, sem participar de sua formação e de seu exame, é, por esta mesma razão, eminentemente própria para a propagação. Não foram os legistas que combinaram os princípios da doutrina crítica, mas os metafísicos, que, aliás, formam, sob o ponto de vista espiritual, a classe correspondente à deles sob o aspecto temporal. Mas foi pelos legistas que tais princípios foram divulgados. Por eles foi principalmente ocupado o cenário político, durante todo o tempo da luta imediata contra o sistema feudal e teológico. A eles, portanto, devia caber naturalmente a direção das modificações a serem introduzidas nesse sistema, consoante à doutrina crítica, que somente eles estavam habituados a manejar. O mesmo não poderia evidentemente suceder em relação aos trabalhos verdadeiramente orgânicos, cuja necessidade acaba de ser demonstrada. Não é mais a eloquência, isto é, a faculdade de persuasão, que deve estar principalmente em atividade; é o raciocínio, vale dizer, a faculdade de exame e coordenação. Pelo mesmo motivo, sendo os legistas geralmente os homens mais capazes, sob o primeiro ponto de vista, são também os mais incapazes, sob o segundo. Tendo por profissão procurar meios para persuadir qualquer opinião, quanto mais habilidade adquirirem, pelo exercício, neste gênero de trabalho, mais impróprios se tornam para coordenar uma teoria segundo seus verdadeiros princípios. Não se trata, pois, no caso, de vã questão de amor-próprio; tudo se reduz à relação necessária e exclusiva, que existe entre cada espécie de capacidade e cada natureza de trabalho. Os legistas dirigiram a formação do plano de reorganização, quando concebida num espírito absolutamente vicioso. Fizeram o que deviam fazer. Chamados para modificar, para criticar, modificaram e criticaram. Seria injusto censurá-los pelos defeitos de uma orientação que não escolheram e não lhes cabia retificar. Sua influência foi útil, e até indispensável, tanto quanto o foi essa própria orientação. Cumpre, entretanto, reconhecer, ao mesmo tempo, que essa influência deve cessar, quando uma orientação inteiramente oposta vier a prevalecer. É, sem dúvida, grande absurdo pretender realizar a reorganização da sociedade, concebendo-a como assunto puramente prático, e sem que nenhum dos trabalhos teóricos necessários seja previamente executado. Mas seria ainda absurdo maior a singular esperança de ver efetuar-se verdadeira reorganização por uma assembleia de oradores, estranhos a qualquer ideia teórica positiva, e escolhidos, sem nenhuma condição determinada de capacidade, por homens que, na mor parte, são ainda mais incompetentes. (Muito longe estou de concluir, das considerações precedentes, que a classe dos legistas não deva mais ter agora atividade política. Quis unicamente estabelecer que a sua ação deve mudar de caráter. Conforme aos raciocínios que acabo de expor, o estado atual da sociedade exige deixe a suprema direção dos espíritos de pertencer aos legistas; mas isto não quer dizer sejam eles menos necessários, por sua natureza, para secundar, sob pontos de vista muito importantes, a nova direção geral a ser estabelecida por outros. Em primeiro lugar, em virtude de seus meios de persuasão e do hábito, que ainda conservam, mais do que qualquer outra classe, de se colocarem nos pontos de vista políticos, devem concorrer poderosamente para a adoção da doutrina orgânica. Em segundo lugar, os legistas, e, sobretudo, dentre eles, os que houverem feito um estudo profundo do direito positivo, possuem exclusivamente a capacidade regulamentadora que é uma das grandes capacidades necessárias à formação do novo sistema social, e será posta em jogo logo que a parte puramente espiritual do trabalho geral da reorganização estiver terminada, ou mesmo suficientemente adiantada). A natureza dos trabalhos a executar indica, por si mesma, o mais claramente possível, a que classe compete empreendê-los. Sendo teóricos esses trabalhos, é claro que os homens, cuja profissão consiste em formar combinações teóricas, seguidas metodicamente, isto é, os cientistas ocupados com os estudos das ciências de observação, são os únicos cujo gênero de capacidade e de cultura intelectual preenche as condições necessárias. Seria evidentemente monstruoso que, quando a necessidade mais urgente da sociedade exige um trabalho geral de primeira ordem, em importância e dificuldade, não fosse esse trabalho dirigido pelas mais poderosas forças intelectuais existentes, aquelas cuja maneira de proceder é universalmente reconhecida como a melhor. Encontram-se, indubitavelmente, nas outras partes da sociedade homens de capacidade teórica igualou mesmo superior à do maior número dos cientistas, porque a classificação real dos indivíduos está longe de ser, em tudo, conforme à classificação natural ou fisiológica. Mas, em um trabalho tão essencial, são as classes que devem ser consideradas, e não os indivíduos. Além disto, mesmo para estes, só a educação, isto é, o sistema de hábitos intelectuais, que resulta do estudo das ciências de observação, pode desenvolver, de modo conveniente, sua capacidade teórica natural. Em uma palavra, todas as vezes que, em qualquer direção particular, a sociedade necessita de trabalhos teóricos, é reconhecido que é à classe correspondente de sábios que deve dirigir-se; portanto, o conjunto do corpo científico é que é convocado para dirigir os trabalhos teóricos gerais, cuja necessidade acaba de ser verificada. (Entre os cientistas, compreendemos aqui, conforme ao uso habitual, os homens que, sem consagrarem sua vida à cultura especial de qualquer ciência de observação, possuem a capacidade científica e fazem do conjunto dos conhecimentos positivos um estudo bastante profundo para se compenetrarem de seu espírito e se familiarizarem com as principais leis dos fenômenos naturais. É, sem dúvida, a esta classe de cientistas, ainda pouco numerosa, que está reservada a atividade essencial na formação da nova doutrina social. Os outros estão demasiadamente absorvidos por suas ocupações particulares, e mesmo muito afetados ainda por certos hábitos intelectuais viciosos, que resultam hoje de sua especialidade, a fim de poderem ser verdadeiramente ativos no estabelecimento da ciência política. Mas, nem por isto, deixarão de preencher, nesta grande fundação, papel muito importante, embora passivo, qual seja o de juízes naturais dos trabalhos. Os resultados obtidos pelos homens que seguirem a nova direção filosófica não terão valor e influência, enquanto não forem adotados pelos cientistas especializados, como tendo o mesmo caráter de seus trabalhos habituais. Entendi dever dar este esclarecimento a fim de prevenir a objeção que se apresentará naturalmente ao espírito da mar parte dos leitores. Mas, além disto, é evidente que esta distinção entre a parte da classe científica que deve ser ativa e a que deve ser simplesmente passiva na elaboração da doutrina orgânica, é muito secundária, e em nada afeta a asserção fundamental estabelecida no texto). Aliás, a natureza das coisas, convenientemente interrogada, previne, a este respeito, qualquer divagação, pois impede, de modo absoluto, a liberdade de escolha, indicando, sob vários pontos de vista distintos, a classe dos cientistas como a única própria para executar o trabalho teórico da reorganização social. No sistema a constituir o poder espiritual ficará nas mãos dos cientistas e o temporal pertencerá aos chefes dos trabalhos industriais. Estes dois poderes devem, pois, proceder naturalmente para a formação desse sistema, como procederão, quando estiver instituído, para a sua aplicação cotidiana, salvo a importância superior do trabalho que é necessário executar hoje. Há, neste trabalho, uma parte espiritual que deve ser tratada em primeiro lugar, e uma parte temporal que o será consecutivamente. Compete aos cientistas, portanto, empreenderem a primeira série de trabalhos, e aos industriais mais importantes organizarem, de acordo com as bases estabelecidas, o sistema administrativo. Tal é a marcha simples indicada pela natureza das coisas, a qual ensina que as próprias classes, que são os elementos dos poderes de um novo sistema e devem, um dia, ser colocadas à sua frente, são as que podem constituí-lo, porque só elas são capazes de bem compreender-lhe o espírito e são levadas nesse sentido pelo impulso combinado de seus hábitos e interesses. Outra consideração torna ainda mais palpável a necessidade de confiar-se aos sábios positivos o trabalho teórico da reorganização social. Foi observado, no capítulo precedente, que a doutrina crítica produziu, na maior parte dos cérebros, e tende a fortalecer neles cada vez mais, o hábito de se constituir em árbitro supremo das ideias políticas gerais. Este estado anárquico das inteligências, arvorado em princípio fundamental, é evidente obstáculo à reorganização da sociedade. Em vão formariam, portanto as capacidades realmente competentes a verdadeira doutrina orgânica, destinada a terminar a crise atual, se, por sua situação antecedente, não possuíssem, de fato, o poder reconhecido de constituírem autoridade. Seu trabalho, sem esta condição, submetido ao controle arbitrário e vaidoso de uma política de inspiração, nunca poderia ser uniformemente adotado. Ora, se lançarmos um olhar sobre a sociedade reconheceremos, desde logo, que essa influência espiritual se acha hoje exclusivamente nas mãos dos cientistas. Só eles exercem, em matéria teórica, uma autoridade que não é contestada. Por conseguinte, além de serem os únicos competentes para formar a nova doutrina orgânica, só eles possuem a força moral necessária para determinar a sua admissão. A quaisquer outros seriam insuperáveis os obstáculos opostos pelo preconceito crítico da soberania moral, concebida como direito inato em todo indivíduo. A única alavanca que possa derrubar tal preconceito acha-se na mão dos cientistas. É hábito contraído, pouco a pouco, nela sociedade, desde a fundação das ciências positivas, submeter-se às decisões dos cientistas, em todas as ideias teóricas particulares, hábito que estenderão facilmente às ideias teóricas gerais, quando forem encarregados de coordená-las. Possuem, assim, os cientistas hoje, com exclusão de qualquer outra classe, os dois elementos fundamentais do governo moral: a capacidade e a autoridade teórica. Um último caráter essencial, não menos próprio da força científica do que os precedentes, merece ainda ser indicado. A crise atual é evidentemente comum a todos os povos da Europa ocidental, embora nem todos dela participem em grau equivalente. É tratada, entretanto, por qualquer desses povos como se fora simplesmente nacional. Mas a uma crise europeia é evidentemente necessário um tratamento europeu. Este isolamento dos povos é uma consequência inevitável da queda do sistema teológico e feudal, pois, em virtude dela, se dissolveram os laços espirituais que o aludido sistema havia estabelecido entre os povos da Europa, e que, em vão, se tentou fossem substituídos por um estado de oposição hostil recíproca, disfarçado sob o nome de "equilíbrio europeu". A doutrina crítica é incapaz de restabelecer a harmonia que destruiu em seu antigo princípio fundamental; e, pelo contrário, a afasta. Em primeiro lugar, tende, por natureza, ao isolamento, e, em segundo lugar, os povos não se poderiam entender completamente sobre os próprios princípios dessa doutrina, porque cada qual deles pretende, de acordo com ela, modificar o antigo sistema em graus diferentes. Só a verdadeira doutrina orgânica pode produzir essa união, tão imperiosamente reclamada pelo estado da civilização europeia. Deve ela forçosamente determiná-la, apresentando, a todos os povos da Europa ocidental, o sistema de organização social, para o qual todos são chamados atualmente, e de que cada um deles gozará de maneira completa, em época mais ou menos próxima, segundo o estado especial de suas luzes. Cumpre observar, além disto, que essa união será mais perfeita do que a produzida pelo antigo sistema, a qual somente existia sob o ponto de vista espiritual, ao passo que agora deve igualmente ocorrer sob o ponto de vista temporal, de sorte que os povos são chamados a formar verdadeira sociedade geral completa e permanente. E, de fato, se fosse oportuno empreender aqui tal exame, fácil seria mostrar que cada um dos povos da Europa ocidental está colocado, pelo feitio particular de seu estado de civilização, nas condições mais favoráveis para tratar de tal ou qual parte do sistema geral; donde resulta a utilidade imediata de sua cooperação. Ora, daí se segue que esses povos devem igualmente trabalhar em comum para o estabelecimento do novo sistema. Considerando a nova doutrina orgânica sob este ponto de vista, é claro que a força destinada a formá-la e estabelecê-la a qual deve satisfazer à condição de determinar a combinação dos diferentes povos civilizados, tem de ser uma força europeia. Ora, tal é ainda a propriedade especial, não menos exclusiva do que todas as precedentemente enumeradas, da força científica. É evidente que só os cientistas formam verdadeira coligação, compacta, ativa, cujos membros se entendem e se correspondem com facilidade, de maneira contínua, de um extremo ao outro da Europa. Isto se dá em consequência de serem eles unicamente, em nossos dias, os que têm ideias comuns, linguagem uniforme e um alvo de atividade geral e permanente. Nenhuma outra classe possui esta poderosa vantagem, porque nenhuma outra preenche tais condições integralmente. Os próprios industriais, tão fortemente levados à união, pela natureza de seus trabalhos e de seus hábitos, deixam-se ainda dominar, em demasia, pelas inspirações hostis de um patriotismo selvagem, para que uma verdadeira combinação europeia possa estabelecer-se, desde já, entre eles. É à ação dos cientistas que está reservado promovê-la. É, sem dúvida, supérfluo demonstrar que a ligação atual dos sábios será muito mais intensa, quando dirigirem seus esforços gerais para a formação da nova doutrina social. Esta consequência é evidente, pois a força de um laço social é necessariamente proporcionada à importância da finalidade da associação. Para bem apreciar, em toda a sua extensão, o valor desta força europeia, peculiar aos cientistas, cumpre comparar o procedimento dos reis com o dos povos, sob o aspecto que nos ocupa. Foi acima notado que, dirigindo-se segundo um plano absurdo em princípio, os reis procedem na sua execução de maneira muito mais metódica que os povos, porque a linha que seguem está toda descrita, no passado, da maneira mais pormenorizada. Destarte, sob o ponto de vista que consideramos, os reis combinam seus esforços em toda a Europa, enquanto os povos se isolam. Por este único fato, os reis têm uma vantagem relativa sobre os povos, contra a qual estes não podem lutar de nenhum modo, o que a torna de extrema importância. Os chefes da opinião dos povos não têm outro recurso senão o de clamarem contra esta superioridade de posição, que, por isto, não deixa de existir. Proclamam, em tese geral, que os diferentes Estados não têm direito algum de intervir nas reformas sociais uns dos outros. Ora, este princípio, que nada mais é do que a aplicação da doutrina crítica às relações exteriores, mostra-se absolutamente falso, como todos os outros dogmas que a compõem; é, como eles, a generalização viciosa de um fato transitório: a dissolução dos laços que existiam entre as nações europeias sob a influência do antigo sistema. É claro que os povos da Europa ocidental, pela conformidade e encadeamento de sua civilização, considerada, quer no seu desenvolvimento sucessivo, quer no seu estado atual, formam uma grande nação, cujos membros têm reciprocamente direitos, menos amplos, sem dúvida, mas da mesma natureza que os das diferentes partes de um Estado único. Além disto, vê-se que essa ideia crítica, fosse embora verdadeira, não atinge o seu alvo, e até o repele, pois tende a impedir a união dos povos. Como uma força somente pode ser contida por outra, os povos estarão evidentemente, sob o ponto de vista europeu, em estado de inferioridade relativamente aos reis, enquanto a força dos cientistas, única europeia, não presidir ao grande trabalho da reorganização social. Só ela pode ser, para os povos, o equivalente real da Santa Aliança, exceto a superioridade necessária de uma coligação espiritual sobre uma coligação puramente temporal. Em última análise, portanto, a necessidade de confiar aos cientistas os trabalhos teóricos preliminares, reconhecidos indispensáveis para reorganizar a sociedade, acha-se solidamente fundamentada em quatro considerações distintas, cada uma das quais bastaria, só por si, para estabelecê-la: 1ª - os cientistas, por seu gênero de capacidade e de cultura intelectual, são os únicos competentes para executarem esses trabalhos; 2ª - esta função lhes é destinada pela natureza das coisas, por constituírem o poder espiritual do sistema a organizar; 3ª - só eles, exclusivamente, possuem a autoridade moral hoje necessária para determinar a adoção da nova doutrina orgânica, quando estiver formada; 4ª - finalmente, de todas as forças sociais existentes, a dos cientistas é a única europeia. Este conjunto de provas deve, sem dúvida, colocar a grande missão teórica dos cientistas ao abrigo de toda incerteza e de toda contestação. Resulta de tudo quanto precede que os erros capitais cometidos pelos povos, na sua maneira de conceberem a reorganização da sociedade, são oriundos da marcha viciosa segundo a qual procederam nessa reorganização; que o vício de tal marcha consiste em ter sido a reorganização social considerada como operação puramente prática, quando, de fato, é essencialmente teórica; que a natureza das coisas e as experiências históricas mais convincentes provam a necessidade absoluta de dividir o trabalho total da reorganização em duas séries, uma teórica, outra prática, das quais a primeira deve ser previamente executada, estando destinada a servir de base à segunda; que a realização preliminar dos trabalhos teóricos exige seja posta em atividade nova força social, distinta das que até hoje ocuparam a cena e são absolutamente incompetentes; que, por algumas razões muito decisivas, enfim, esta nova força deve ser a dos cientistas afeitos aos estudos das ciências de observação. O conjunto destas ideias pode ser considerado como tendo tido por finalidade levar gradativamente o espírito dos homens meditativos ao prisma elevado, do qual se pode abranger, num só golpe de vista geral, os vícios da marcha seguida até o presente para reorganizar a sociedade, e o caráter da que deve ser hoje adotada. Tudo se reduz, em última análise, a estabelecer, para a política, pela força combinada dos cientistas europeus, uma teoria positiva distinta da prática, tendo por objetivo a concepção do novo sistema social, correspondente ao estado atual dos conhecimentos. Ora, refletindo sobre isto, ver-se-á que esta conclusão se resume numa única ideia: os cientistas devem elevar hoje a política à categoria das ciências de observação. Tal é o ponto de vista culminante e definitivo em que nos devemos colocar. Deste ponto de vista será fácil condensar, em uma série de considerações muito simples, a substância de tudo quanto foi dito desde o começo deste opúsculo. Resta fazer esta importante generalização, a única que pode fornecer os meios de ir mais longe, permitindo tornar o pensamento mais rápido. Pela própria natureza do espírito humano, cada ramo de nossos conhecimentos está necessariamente sujeito, em sua marcha, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício, o metafísico ou abstrato, e, enfim, o científico ou positivo. No primeiro, ideias sobrenaturais servem para ligar o pequeno número de observações isoladas de que se compõe então a ciência. Em outros termos, os fatos observados são explicados, isto é, vistos a priori de conformidade com fatos inventados. Este estado é necessariamente o de qualquer ciência no seu berço. Por mais imperfeito que seja, é o único modo de ligação possível nessa época. Fornece, por conseguinte, o único instrumento por cujo intermédio se pode raciocinar sobre os fatos, mantendo a atividade do espírito que, acima de tudo, tem necessidade de um ponto de ligação, seja qual for. Numa palavra, é indispensável para permitir que a ciência progrida. O segundo estado é unicamente destinado a servir de meio de transição do primeiro para o terceiro. Seu caráter é bastardo, liga os fatos segundo ideias que não são mais de todo sobrenaturais, mas não são ainda inteiramente naturais. Em uma palavra, essas ideias são abstrações personificadas, nas quais o espírito pode ver, à vontade, ou o nome místico de uma causa sobrenatural, ou o enunciado abstrato de uma simples série de fenômenos, segundo o estado teológico ou científico de que mais se aproxima. Este estado metafísico supõe que, tornando-se mais numerosos, os fatos ao mesmo tempo se tenham aproximado de acordo com analogias mais amplas. O terceiro estado é o modo definitivo de qualquer ciência, não se destinando os dois primeiros senão a prepará-la gradualmente. Os fatos se ligam então segundo ideias ou leis gerais de ordem inteiramente positiva, sugeridas ou confirmadas pelos próprios fatos, e que muitas vezes mesmo não são mais do que simples fatos bastante gerais para se tornarem princípios. Trata-se, sempre, de reduzi-las ao menor número possível, mas sem criar qualquer hipótese que não possa, algum dia, ser verificada pela observação, considerando-os, em todos os casos, apenas como um meio de expressão geral para os fenômenos. Os homens, familiarizados com a marcha das ciências, podem facilmente verificar a exatidão deste resumo histórico geral em relação às quatro ciências fundamentais, hoje positivas: a astronomia, a física, a química e a fisiologia, assim como nas ciências que com elas se relacionam. Mesmo aqueles que somente têm considerado as ciências em seu estado atual podem fazer esta verificação no tocante a fisiologia que, embora já se tenha tornado enfim tão positiva como as outras três, existe ainda sob as três formas nas diversas classes de espírito desigualmente contemporâneas. Este fato é sobretudo evidente na parte desta ciência que considera os fenômenos especialmente chamados morais, concebidos por uns como o resultado de uma ação sobrenatural contínua, por outros, como os efeitos incompreensíveis da atividade de um ser abstrato, e por outros, finalmente, como dependendo de condições orgânicas suscetíveis de demonstração, e além das quais nada se poderia alcançar. Considerando a política uma ciência, e aplicando-se-lhe as observações precedentes, reconhece-se que já passou pelos dois primeiros estados e está agora apta a atingir o terceiro. A doutrina dos reis representa o estado teológico da política. E, efetivamente, em ideias teológicas que está fundada em última análise. Expõe as relações sociais como baseadas na ideia sobrenatural do direito divino. Explica as transformações políticas sucessivas da espécie humana através de uma direção sobrenatural imediata, exercida de maneira contínua, desde o primeiro homem até a época atual. Foi assim a política exclusivamente concebida até que o antigo sistema começou a declinar. A doutrina dos povos exprime o estado metafísico da política. Funda-se inteiramente na suposição abstrata e metafísica de um contrato social primitivo, anterior a todo desenvolvimento das faculdades humanas pela civilização. Os meios habituais de raciocínio que emprega são os direitos, considerados como naturais e comuns a todos os homens, no mesmo grau, e garantidos pelo referido contrato. Tal é a doutrina primitivamente crítica, tirada em sua origem, da teologia, a fim de lutar contra o antigo sistema, e que, em seguida, foi considerada como orgânica. Foi Rousseau principalmente quem a resumiu sob forma sistemática, numa obra que serviu e ainda serve de base às considerações correspondentes sobre a organização social. A doutrina científica da política encara, enfim, o estado social, sob o qual a espécie humana sempre tem sido encontrada pelos observadores, como a consequência inevitável de sua organização. Concebe a finalidade deste estado como resultante da posição que o homem ocupa no sistema natural, tal como está fixado pelos fatos e sem ser considerado suscetível de explicação. Vê, efetivamente, resultar desta relação fundamental a tendência constante do homem para atuar sobre a natureza, a fim de modificá-la em seu proveito. Considera, em seguida, a ordem social como tendo por finalidade desenvolver coletivamente esta tendência natural, regularizá-la e dispô-la a fim de que a ação útil seja a maior possível. Isto posto, ensaia ligar às leis fundamentais da organização humana, por observações diretas sobre o desenvolvimento coletivo da espécie, a marcha por ela seguida e os estados intermediários pelos quais foi obrigada a passar antes de atingir este estado definitivo. Dirigindo-se de acordo com esta série de observações, considera os aperfeiçoamentos reservados a cada época como resultantes, ao abrigo de qualquer hipótese, do grau de desenvolvimento a que chegou a espécie humana. Concebe, em seguida, para cada grau de civilização, as combinações políticas como tendo unicamente por finalidade facilitar os passos que tendem a ser dados depois de haverem sido determinados com precisão. Tal é o espírito da doutrina positiva que se trata de estabelecer agora, tendo por alvo fazer a aplicação dela ao estado atual da espécie humana civilizada, não considerando os estados anteriores senão como necessários para serem observados a fim de estabelecer as leis fundamentais da ciência. É fácil explicar simultaneamente por que a política não se pôde tornar mais cedo uma ciência positiva, e por que pode sê-lo agora. Duas condições fundamentais, distintas, embora inseparáveis, eram para isto indispensáveis. Em primeiro lugar, era necessário que todas as ciências particulares se tornassem sucessivamente positivas; porque o conjunto não poderia ser positivo quando todos os elementos não o eram. Esta condição está hoje preenchida. As ciências tornaram-se positivas, umas após as outras, na ordem em que era natural que essa revolução se operasse. Esta ordem é a do grau de complicação maior ou menor de seus fenômenos, ou, em outros termos, de sua relação mais ou menos íntima com o homem. Assim os fenômenos astronômicos em primeiro lugar, como sendo os mais simples, e, em seguida, sucessivamente, os físicos, os químicos e os fisiológicos, foram considerados através de teorias positivas; estes últimos, em época muito recente. A mesma reforma só em último lugar podia efetuar-se em relação aos fenômenos políticos, que são os mais complicados, pois dependem de todos os outros. Mas, evidentemente, é tão necessário que se efetue hoje, quanto seria impossível realizar-se antes. Em segundo lugar, era preciso que o sistema social preparatório, onde a ação sobre a natureza resumia o alvo indireto visado pela sociedade, chegasse à sua derradeira fase. De um lado, a teoria não podia realmente estabelecer-se até então, porque ficaria mais adiantada do que a prática. Sendo destinada a dirigi-la, não poderia antecipá-la a ponto de perdê-la de vista. Por outro lado, não teria tido antes uma base experimental suficiente. Era mister o estabelecimento de um sistema de ordem social, admitido por uma população muito numerosa e composta de várias grandes nações, e toda a duração possível deste sistema, a fim de que uma teoria se pudesse formar sobre essa longa experiência. Esta segunda condição está agora satisfeita, tanto quanto a primeira. O sistema teológico, destinado a preparar o espírito humano para o sistema científico, chegou ao termo de sua carreira, o que é incontestável, porquanto o sistema metafísico, cuja única finalidade é destruir o sistema teológico, tem geralmente obtido preponderância entre os povos. A política científica, portanto, deve naturalmente estabelecer-se, porque, atenta a impossibilidade absoluta de prescindir-se de uma teoria, seria necessário supor, se tal não ocorresse, que a política teológica se reconstituísse, pois, de fato, a política metafísica não é, propriamente falando, uma verdadeira teoria, mas uma doutrina crítica, unicamente própria para uma transição. Em resumo, jamais houve revolução moral, a um tempo mais inevitável, mais amadurecida e mais urgente do que a que deve agora elevar a política à categoria das ciências de observação através dos esforços combinados dos cientistas europeus. Só esta revolução poderá fazer intervir, na grande crise atual, uma força verdadeiramente preponderante, única em condições de regulá-la e de preservar a sociedade das terríveis e anárquicas explosões que a ameaçam, colocando-a na verdadeira rota do sistema social aperfeiçoado, que o nível de sua civilização imperiosamente reclama. Para pôr em atividade, o mais rapidamente possível, as forças científicas destinadas a desempenhar esta salutar missão, era necessário apresentar o programa geral dos trabalhos teóricos a serem executados para a reorganização da sociedade, elevando a política à categoria das ciências de observação. Ousei conceber esse plano e proponho-o solenemente aos cientistas da Europa. Profundamente convencido de que, quando esta discussão for empreendida, o meu plano, adotado ou rejeitado, conduzirá necessariamente à formação do plano definitivo, não temo convocar os cientistas europeus, em nome da sociedade, ameaçada de longa e terrível agonia, da qual somente sua interferência pode preservá-la, a emitirem pública e livremente sua opinião fundamentada relativamente ao quadro geral de trabalhos orgânicos, que lhes submeto. Este programa se compõe de três séries de trabalhos. A primeira tem por fim a formação do sistema de observações históricas sobre a marcha geral do espírito humano, destinado a ser a base positiva da política, de maneira a fazer-lhe perder completamente o caráter teológico e metafísico a fim de imprimir-lhe o caráter científico, A segunda série visa a fundar o sistema completo de educação positiva, que convém à sociedade regenerada, constituindo-se para agir sobre a natureza, ou, em outros termos, ela se propõe a aperfeiçoar tal ação naquilo que depende das faculdades do agente. A terceira, enfim, consiste na exposição geral da ação coletiva que, no estado atual de todos os seus conhecimentos, podem os homens civilizados exercer sobre a natureza, a fim de modificá-la, em seu proveito, dirigindo todas as suas forças para este alvo e não considerando as combinações sociais senão como meios de atingi-lo. Primeira série de trabalhos A condição fundamental a preencher, para tratar a política de maneira positiva, consiste em determinar, com precisão, os limites em que estão encerradas, pela natureza das coisas, as combinações de ordem social. Em outros termos, cumpre que, na política, a exemplo das outras ciências, o papel da observação e o da imaginação se tornem perfeitamente distintos, e que o segundo seja subordinado ao primeiro. Para expor, com toda a clareza, esta ideia capital, é necessário comparar o espírito geral da política positiva com o da política teológica e o da política metafísica. A fim de simplificar esse paralelo, devem-se englobar estas últimas em uma só e mesma consideração, o que não poderia alterar os resultados, porquanto, como ficou demonstrado no capítulo precedente, a segunda é, no fundo, simples modificação da primeira, da qual só difere essencialmente por um caráter menos pronunciado. O estado teológico e o estado metafísico de qualquer ciência têm, por comum característica, a predominância da imaginação sobre a observação. A única diferença entre eles existente, sob este ponto de vista, é que a imaginação se exerce, no primeiro, sobre seres sobrenaturais, e, no segundo, sobre abstrações personificadas. A consequência necessária e constante desse estado do espírito humano é persuadir o homem que, sob todos os aspectos, é o centro do sistema natural e, por conseguinte, dotado de poder de ação indefinida sobre os fenômenos. Esta persuasão resulta evidentemente, de maneira direta, da supremacia exercida pela imaginação, que se combina com a inclinação orgânica, em virtude da qual o homem é levado, quase sempre, a formar ideias exageradas sobre a sua importância e o seu poder. Esta ilusão é o traço característico mais evidente dessa infância da razão humana. Consideradas sob o ponto de vista filosófico, as revoluções que fizeram as diferentes ciências passar ao estado positivo tiveram, como efeito geral, estabelecer, em sentido inverso, essa ordem primitiva de nossas ideias. O caráter fundamental dessas revoluções foi transferir para a observação a preponderância até aí exercida pela imaginação. As consequências foram, portanto, igualmente invertidas. O homem foi deslocado do centro da natureza para colocar-se na ordem que efetivamente nela ocupa. De igual modo, sua ação ficou circunscrita aos limites reais, e reduzida a modificar, mais ou menos, uns pelos outros, certo número de fenômenos que lhe cabe observar. Basta indicar o apanhado histórico precedente para que seja logo verificado, em relação às ciências atualmente positivas, por todos quantos têm noções claras a respeito. Assim, em astronomia, o homem começou por considerar os fenômenos celestes, senão como submetidos à sua influência, pelo menos como tendo, com todas as particularidades de sua existência, relações diretas e íntimas. Foi necessário todo o poder das demonstrações mais fortes e múltiplas para que se resignasse a ocupar simplesmente uma posição subalterna e imperceptível no sistema geral do universo. Assim também, em química, julgou a princípio poder modificar, a seu talante, a natureza íntima dos corpos, antes de limitar-se a observar os efeitos da ação recíproca das diferentes substâncias terrestres. Igualmente, em medicina, foi depois de haver muito tempo esperado corrigir à vontade as perturbações de seu organismo, e de resistir mesmo indefinidamente às causas de destruição, que o homem reconheceu, enfim, ser nula a sua ação quando não concorria com a do organismo, e, com mais forte razão, quando lhe era oposta. A política, como as outras ciências, não escapou a esta lei fundada sobre a natureza das coisas. O estado em que sempre permaneceu até o presente, e em que ainda se acha, corresponde, com perfeita analogia, ao estado onde se encontravam a astrologia relativamente à astronomia, a alquimia em relação à química, e a pesquisa da panaceia universal em relação à medicina. Em primeiro lugar, de acordo com o capítulo anterior, é evidente que a política teológica e a política metafísica, consideradas quanto à sua maneira de proceder, concordam em fazer predominar a imaginação sobre a observação. Sem dúvida, não se poderia afirmar que a observação não tenha sido, até agora, empregada em política teórica, mas só o tem sido de maneira subalterna, sempre às ordens da imaginação, como o estava em química, por exemplo, na época da alquimia. Esta preponderância da imaginação devia ter, necessariamente, em relação à política, consequências análogas às que acima foram descritas com referência às outras ciências. É o que facilmente se pode verificar por observações diretas sobre o espírito comum da política teológica e da política metafísica, consideradas sob o aspecto teórico. O homem acreditou até o presente no poder ilimitado de suas combinações políticas para o aperfeiçoamento da ordem social. Em outros termos, a espécie humana foi considerada, ate aqui, em política, como não tendo impulso próprio, podendo receber sempre passivamente o impulso que qualquer legislador, investido de suficiente autoridade, lhe queira dar. Por uma consequência necessária, o absoluto sempre reinou e reina ainda na política teórica, quer teológica, quer metafísica. O alvo comum, a que elas se propõem, é estabelecer, cada uma a seu modo, o tipo eterno da ordem social mais perfeita, sem terem em vista qualquer estado de civilização determinado. Ambas pretendem ter achado exclusivamente um sistema de instituições que atinge esse objetivo. A única diferença que, a este respeito, as distingue, e que a primeira proíbe formalmente qualquer modificação importante no plano que traçou, ao passo que a segunda permite o exame, desde que seja encaminhado no mesmo sentido. Com esta exceção, o caráter de ambas é igualmente absoluto. Este caráter absoluto é ainda mais evidente em suas aplicações à política pratica. Quer a política teológica, quer a metafísica, vê, em seu sistema de instituições, uma espécie de panaceia universal, aplicável, com segura infalibilidade, a todos os males políticos de qualquer natureza e qualquer que seja o grau atual de civilização do povo ao qual se destina o remédio. Assim, também, ambas julgam os regimes dos diferentes povos, nas diversas épocas da civilização, considerando unicamente sua maior ou menor conformidade ou oposição com o tipo invariável de perfeição que criaram. Citarei um exemplo recente e palpável: os partidários da política teológica e os da política metafísica proclamaram, alternadamente e quase ao mesmo tempo, a organização social da Espanha superior à das nações europeias mais adiantadas, sem que uns e outros tivessem em conta a inferioridade atual dos espanhóis, no tocante à civilização, relativamente aos franceses e aos ingleses, acima dos quais os colocaram quanto ao regime político. Tais Julgamentos, que seria fácil multiplicar, mostram, com evidência, quanto é próprio do espírito da política teológica e da política metafísica fazerem abstração completa do estado de civilização. Convém notar a este respeito, para acabar de caracterizá-las, que se combinam, em geral, por motivos diferentes, para fazer coincidir a perfeição da organização social com um estado de civilização muito imperfeito. Vê-se mesmo que os partidários mais consequentes da política metafísica, tais como Rousseau, que a coordenou, foram levados até ao ponto de considerar o estado social como a degeneração de um estado natural criado por sua imaginação, e que não é mais do que a reprodução metafísica da ideia teológica relativa à degradação da espécie humana pelo pecado original. Este resumo exato confirma haver a preponderância da imaginação sobre a observação produzido, em política, resultados perfeitamente semelhantes aos que havia engendrado nas outras ciências, antes de se tornarem positivas. A pesquisa absoluta do melhor governo possível, abstraindo-se o estado de civilização, é evidentemente idêntica à investigação de um tratamento geral, aplicável a todas as enfermidades e a todos os temperamentos. Procurando reduzir o espírito da política teológica e metafísica à sua mais simples expressão, vê-se, pelo que precede, limitar-se a duas considerações essenciais. Relativamente à maneira de proceder, consiste na predominância da imaginação sobre a observação. No que tange às ideias gerais, destinadas a dirigirem os trabalhos, consiste, de um lado, em considerar a organização social de maneira abstrata, vale dizer, como independente do estado da civilização, e, por outro lado, em encarar a marcha da civilização como não estando sujeita a nenhuma lei. Tomando-se este espírito em sentido inverso, deve achar-se, necessariamente, o da política positiva, pois que a mesma oposição se observa, conforme ao que acima ficou estabelecido, entre o estado conjetural e o estado positivo de todas as outras ciências. Por esta operação intelectual, não se fará senão ampliar, no futuro, a analogia observada no passado. Efetuando-se a operação, chega-se aos seguintes resultados: Em primeiro lugar, para tornar positiva a ciência política, é necessário fazer preponderar nela, como nas outras ciências, a observação sobre a imaginação. Em segundo lugar, para que esta condição fundamental possa ser preenchida, cumpre conceber, de um lado, a organização social como intimamente ligada ao estado da civilização e determinada por ele; de outro lado, faz-se mister considerar a marcha da civilização como sujeita a uma lei invariável, fundada sobre a natureza das coisas. A política não poderá tornar-se positiva, ou o que significa a mesma coisa, a observação não poderá preponderar nela sobre a imaginação, enquanto estas duas últimas condições não forem preenchidas. Mas é claro que, reciprocamente, se elas o forem, se a teoria política for completamente estabelecida nesse espírito, a imaginação se achará, de fato, subordinada à observação, e a política será positiva. Assim sendo, é a essas duas condições que tudo se reduz em última análise. São estas, portanto, as duas ideias capitais que devem presidir aos trabalhos positivos sobre a política teórica. Dada sua extrema importância, é indispensável considerá-las mais minuciosamente. Não se trata aqui de estabelecer sua demonstração que será precisamente o resultado dos trabalhos a efetuar. Trata-se, simplesmente, de apresentar um enunciado assaz completo dessas ideias, a fim de que os espíritos capazes de julgá-las possam fazer uma espécie de verificação antecipada, comparando-as com os fatos geralmente conhecidos; verificação suficiente para se convencerem da possibilidade de tratar a política pelo modo por que são tratadas as ciências de observação. Nosso fito principal será atingido, se tivermos feito nascer tal convicção. A civilização consiste, verdadeiramente falando, de uma parte, no desenvolvimento do espírito humano, e de outra, no desenvolvimento da ação do homem sobre a natureza, que é a consequência do primeiro. Em outros termos, os elementos de que se compõe a ideia de civilização vêm a ser: as ciências, as belas-artes e a indústria, sendo tomada esta última expressão no seu sentido mais lato, sentido que sempre lhe tenho dado. Considerando a civilização sob este ponto de vista preciso e elementar, é fácil reconhecer que o estado da organização social é essencialmente dependente do estado da civilização e deve ser considerado como sua consequência, enquanto a política de imaginação o considera como isolado dela, e mesmo inteiramente independente. O estado da civilização determina forçosamente o da organização social, quer no espiritual quer no temporal, sob os dois pontos de vista mais importantes. Em primeiro lugar, determina a sua natureza, porque fixa o alvo da atividade social; além disto, prescreve sua forma essencial, porque cria e desenvolve as forças da sociedade, temo orais e espirituais, destinadas a dirigir essa atividade geral. De fato, é claro que a atividade coletiva do corpo social, não sendo mais do que a resultante das atividades individuais de todos os seus membros dirigidas para um alvo comum, não poderia ser de natureza diversa da atividade de seus elementos, evidentemente determinados pelo estado mais ou menos avançado das ciências, das belas-artes e da indústria. É ainda mais palpável haver impossibilidade de conceber a existência prolongada de um sistema político que não investisse do poder supremo as forças sociais preponderantes, cuja natureza é invariavelmente determinada pelo estado da civilização. O que o raciocínio indica, a experiência confirma. Todas as variedades de organização social que têm existido até o presente, foram apenas modificações, mais ou menos amplas, de um sistema único: o sistema militar e teológico. A formação primitiva deste sistema foi evidente e necessária consequência do estado imperfeito da civilização nessa época. Estando a indústria na infância, a sociedade devia naturalmente tomar a guerra por alvo de atividade, sobretudo se se considerar que esta situação facilitava os seus meios, impondo ao mesmo tempo a sua lei pelos estimulantes mais enérgicos que atuam sobre o homem: a necessidade de exercer suas faculdades e a de viver. De igual modo, é claro que o estado teológico, no qual então se achavam todas as teorias particulares, imprimia forçosamente o mesmo caráter às ideias gerais, destinadas a servir de laço social. O terceiro elemento da civilização, as belas-artes, era então predominante, e foi ele, de fato, que fundou, de maneira regular, essa primeira organização. Se não se houvesse desenvolvido, seria impossível imaginar como a sociedade teria podido organizar-se. Se observarmos, em seguida, as modificações sucessivas que este sistema primitivo sofreu até a época atual, e que foram tomadas pelos metafísicos como outros tantos sistemas diferentes, achar-se-á o mesmo resultado. Em todas elas se verão efeitos inevitáveis da extensão, sempre crescente, adquirida pelo elemento científico e pelo industrial, quase nulos em sua origem. f: assim que a passagem do politeísmo ao teísmo, e, mais tarde, a reforma do protestantismo, foram produzidas principalmente pelos progressos contínuos, embora lentos, dos conhecimentos positivos, ou, em outros termos, pela ação exercida sobre as antigas ideias gerais pelas ideias particulares, que haviam cessado, pouco a pouco, de ser da mesma natureza que elas. Assim também, sob o aspecto temporal, a passagem do estado romano ao feudalismo, e, mais claramente ainda, a decadência deste pela emancipação das comunas e suas consequências, devem ser essencialmente atribuídas à importância progressiva do elemento industrial. Em resumo, todos os fatos gerais atestam a estreita dependência da organização social relativamente à civilização. Os melhores espíritos, os que estão mais próximos do estado positivo da política, começam a entrever hoje este princípio fundamental. Sentem ser absurdo conceber isoladamente o sistema político, fazendo derivar dele as forças da sociedade, da qual, pelo contrário, ele recebe as suas, sob pena de nulidade. Numa palavra: já admitem que a ordem política é simplesmente, e não poderia deixar de sê-lo, a expressão da ordem civil, o que significa, em outros termos, que as forças sociais preponderantes acabam, necessariamente, por se tornar dirigentes. Daí, não há mais do que um passo para se chegar a reconhecer a subordinação do sistema político relativamente à civilização. Porque, se é claro ser a ordem política a expressão da ordem civil, é pelo menos tão evidente que a própria ordem civil nada mais é do que a expressão do estado da civilização. A organização social reage, indubitavelmente, por seu turno, de maneira inevitável e mais ou menos enérgica, sobre a civilização, mas esta influência que é simplesmente secundária, apesar de sua grande importância, não deve levar a inverter a ordem natural da dependência. A prova de que esta ordem é realmente tal qual acaba de ser indicada, pode tirar-se dessa própria reação, convenientemente considerada. De fato, a experiência constante demonstra que, se a organização social é constituída em sentido contrário ao da civilização, esta acaba sempre por prevalecer. Deve admitir-se, portanto, como uma das duas ideias fundamentais que fixam o espírito da política positiva, que a organização social não deve ser considerada, quer no presente, quer no passado, isoladamente do estado da civilização, do qual deve ser tida como consequência necessária. Se, para facilitar o estudo, se julga algumas vezes útil examiná-los separadamente, esta abstração deve ser concebida sempre como simplesmente provisória, e não deve jamais fazer perder de vista a subordinação estabelecida pela natureza das coisas. A segunda ideia fundamental consiste em que os progressos da civilização se desenvolvem segundo uma lei necessária. A experiência do passado prova, da maneira mais decisiva, que a civilização está sujeita, em seu desenvolvimento progressivo, a natural e irrevogável marcha, derivada das leis da organização humana, e se torna, por sua vez, a lei suprema de todos os fenômenos políticos. Não podem, evidentemente, ser expostos aqui, com precisão, os caracteres dessa lei e sua verificação pelos fatos históricos, mesmo os mais sumários. Não se trata agora senão de apresentar algumas considerações sobre esta ideia fundamental. Uma primeira consideração deve levar a reconhecer a necessidade de admitir essa lei para a explicação dos fenômenos políticos. Todos os homens que possuem certo conhecimento dos fatos históricos mais notáveis, quaisquer que sejam, aliás, suas opiniões especulativas, convirão que, considerada em seu conjunto, a espécie humana policiada tem feito, em civilização, progressos ininterruptos, desde os mais remotos tempos históricos até os nossos dias. Nesta proposição o termo "civilização" é compreendido como acima foi explicado, abrangendo ainda, como consequência, a organização social. Não se pode levantar qualquer dúvida razoável sobre este grande fato, relativamente ao período decorrido desde o século XI até o presente, isto é, desde a introdução das ciências de observação na Europa pelos árabes e a libertação das comunas. Mas não é menos incontestável em relação à época precedente. Os sábios já reconhecem hoje muito bem que as pretensões dos eruditos acerca dos conhecimentos científicos muito adiantados dos antigos carecem de qualquer fundamento real. Está provado que os árabes os excederam. O mesmo sucedeu, e ainda mais claramente com a indústria, pelo menos em tudo quanto exige verdadeira capacidade e não é o efeito de circunstâncias puramente acidentais. Quando mesmo se excetuassem as belas-artes, esta exclusão, que se explica de maneira muito natural, deixaria à proposição uma generalidade suficiente. Quanto à reorganização social, enfim, é da maior evidência que fez, no mesmo período, progressos de primeira ordem pelo estabelecimento do cristianismo e pela formação do regime feudal, muito superior às organizações gregas e romanas. É, portanto, certo que a civilização progrediu continuamente sob todos os pontos de vista. Por outro lado, sem adotar, relativamente ao passado, o espírito de cego e injusto denegrimento, introduzido gela metafísica, não se pode deixar de reconhecer que, em consequência do estado de infância em que se tem aqui mantido a política, as combinações práticas, que foram dirigidas sobre a civilização, não eram sempre as mais próprias para fazê-la progredir, e muitas vezes mesmo tendiam muito mais a opor obstáculos à sua marcha do que a favorecê-la. Houve épocas em que a principal ação política foi combinada em sentido inteiramente estacionário: foram, em geral, as de decadência dos sistemas, como, por exemplo, as do Imperador Juliano, de Felipe II e dos jesuítas, e, finalmente, a de Bonaparte. Que se observe, além disto: de conformidade com a explanação precedente, não regular a organização social, de nenhum modo, a marcha da civilização, da qual, pelo contrário, é o produto. A cura frequente de doenças, sob a influência de tratamentos evidentemente viciosos, levou os médicos a conhecerem a ação poderosa que todo corpo vivo exerce espontaneamente para corrigir as perturbações acidentais de seu organismo. Assim também o progresso da civilização, através de combinações políticas desfavoráveis, prova claramente estar ela sujeita a uma marcha natural, independente de todas as combinações, dominando-as. Se não se admitisse este princípio, não haveria outro recurso, para explicar tal fato e compreender como a civilização quase sempre aproveitou os erros cometidos em vez de ser por eles retardada, a não ser recorrendo a uma direção sobrenatural, imediata e contínua, a exemplo da política teológica. Além disto, convém observar a tal respeito que muita vez se consideraram como desfavoráveis à marcha da civilização causas que só o eram na aparência. A razão principal deste fato é que mesmo os melhores espíritos não tomaram até o presente, em consideração uma das leis essenciais dos corpos organizados, que se aplica tanto à espécie humana, agindo coletivamente, quanto a um indivíduo isolado. Esta lei consiste na necessidade das resistências até certo grau para que todas as forças se desenvolvam plenamente. Mas esta observação em nada afeta a consideração precedente, porquanto, se os obstáculos são necessários a fim de que as forças se desenvolvam, não as produzem. A conclusão deduzida desta primeira consideração reforçar-se-ia muito se tivesse em conta a identidade notável observada no desenvolvimento da civilização de diferentes povos, entre os quais não se pode razoavelmente supor qualquer comunicação política. Essa identidade somente podia ser produzida pela influência de uma marcha natural da civilização, uniforme para todos os povos, pois deriva das leis fundamentais da organização humana comuns a todos. Assim, por exemplo, só desta maneira se podem explicar a grande semelhança com que são reproduzidos em nossos dias, pelas nações selvagens da América setentrional, os costumes dos primeiros tempos da Grécia, descritos por Homero, e o feudalismo observado entre os malaios, com o mesmo caráter essencial que teve, na Europa, no século XI, etc. Uma segunda consideração pode tornar muito fácil o reconhecimento da existência de uma lei natural, que preside ao desenvolvimento da civilização. Se admitirmos, conforme o apanhado acima apresentado, que o estado do regime social deriva necessariamente do da civilização correspondente, poderemos separar, de nossas observações, este elemento complexo, e o que verificamos em outros regimes não lhe será menos aplicável como consequência. Reduzindo, assim, a questão a seus termos mais simples, torna-se fácil perceber estar a civilização sujeita a uma marcha determinada e invariável. Uma filosofia superficial, que faria deste mundo um teatro de milagres, exagerou prodigiosamente a influência do acaso, isto é, das causas isoladas, nos problemas humanos. Este exagero é evidente, sobretudo nas ciências e nas artes. Entre outros exemplos notáveis, não há quem não conheça a singular admiração manifestada por vários homens de talento ao pensarem na lei da gravitação universal, revelada a Newton pela queda de uma maçã. É hoje geralmente reconhecido, por todos os homens sensatos, que o acaso não tem senão parte infinitamente pequena nas descobertas científicas e industriais, e só desempenha papel essencial nas descobertas sem qualquer importância. Mas a este erro sucedeu outro, que, muito menos desarrazoado em si, apresenta, todavia, os mesmos inconvenientes. O papel do acaso foi transferido ao gemo, com caráter pouco mais ou menos semelhante. Esta transformação não explica melhor os atos do espírito humano. A história dos conhecimentos humanos prova, entretanto, da maneira mais evidente, e os melhores espíritos já o reconheceram, que nas ciências e nas artes todos os trabalhos se encadeiam, quer na mesma geração, quer de uma geração a outra, de modo tal que as descobertas de uma geração preparam as da seguinte, como foram preparadas pela precedente. Verificou-se que o poder do gênio isolado, é muito menor do que se havia suposto. O homem mais justamente ilustrado por grandes descobertas deve, quase sempre, a mair parte de seus sucessos a seus predecessores na carreira por ele percorrida. Numa palavra, o espírito humano segue, no desenvolvimento das ciências e das artes, determinada marcha, superior às maiores forças intelectuais, que só aparecem, por assim dizer, como instrumentos destinados a produzir, em tempo dado, as descobertas sucessivas. Limitando-nos a considerar as ciências, que se podem seguir com mais facilidade, desde tempos remotos, vemos, de fato, que as grandes épocas históricas de cada uma delas, isto é, sua passagem pelos estados teológico, metafísico, e, finalmente, positivo, são rigorosamente determinadas. Estes três estados se sucedem necessariamente, de acordo com esta ordem fundada sobre a natureza do espírito humano. A transição de um ao outro se faz segundo marcha, cujos trâmites principais são análogos para todas as ciências, e dos quais nenhum homem de gênio poderia transpor um só intermediário essencial. Se, desta divisão geral, se passa às subdivisões do estado científico ou definitivo, observa-se ainda a mesma lei. Assim, por exemplo, a grande descoberta da gravitação universal foi preparada pelos trabalhos dos astrônomos e geômetras dos séculos XV e XVII, principalmente pelos de Kleper e Huyghens, sem os quais teria sido impossível e não poderiam deixar de produzi-la cedo ou tarde. Não poderia, portanto, ser duvidoso, de conformidade com o que precede, estar a marcha da civilização, considerada em seus elementos, sujeita a uma lei natural e constante, que domina todas as divergências humanas particulares. Como o estado da organização social acompanha necessariamente o da civilização, a esta última, por conseguinte, considerada tanto em seu conjunto quanto em seus elementos, se aplica a mesma conclusão. As duas considerações acima enunciadas bastam, não para demonstrar completamente a marcha necessária da civilização, mas para fazer verificar sua existência, e mostrar ser possível determinar, com precisão, todos os seus atributos, estudando-a pela observação profunda do passado, e criar, assim, a política positiva. Trata-se agora de fixar exatamente o objetivo prático desta ciência, seus pontos de contato gerais com as necessidades sociais, e, principalmente, com a grande reorganização que tão imperiosamente reclama o estado atual do corpo social. Para isto, cumpre precisar, antes de tudo, os limites que circunscrevem toda ação política real. A lei básica, que rege a marcha natural da civilização, prescreve rigorosamente todos os estados sucessivos pelos quais a espécie humana está sujeita a passar em seu desenvolvimento geral. Por outro lado, esta lei resulta necessariamente da tendência instintiva da espécie humana para aperfeiçoar-se. Por consequência, acha-se tanto acima de nossa dependência quanto os instintos individuais, cuja combinação produz essa tendência permanente. Como nenhum fenômeno conhecido autoriza a pensar esteja a organização humana sujeita a qualquer mudança essencial, a marcha da civilização, que dela deriva, é, portanto, no fundo, essencialmente inalterável. Em termos mais precisos, nenhum dos graus intermediários, que ela determina, pode ser transposto, e nenhum passo verdadeiramente retrógrado pode ser dado. A marcha da civilização é apenas mais ou menos modificável, em sua velocidade, dentro de certos limites, por várias causas físicas e morais suscetíveis de apreciação. Entre essas causas estão as combinações políticas. Tal é o único sentido em que pode o homem influir sobre a marcha de sua própria civilização. Esta ação, relativamente à espécie, é inteiramente análoga à que nos é permitida no tocante ao indivíduo, analogia resultante da identidade de origem. Podemos, por meios convenientes, acelerar ou retardar, até certo ponto, o desenvolvimento de um instinto individual; mas não podemos destruí-lo, nem desnaturá-lo. O mesmo se dá com o instinto da espécie, guardada a proporção, quanto aos limites, da sua vida comparativamente com a do indivíduo. A marcha natural da civilização determina, portanto, para cada época, independentemente de qualquer hipótese, os aperfeiçoamentos que deve experimentar o estado social, quer em todos os seus elementos, quer em seu conjunto. Só esses se podem executar, e se executam necessariamente, com o auxílio das combinações feitas pelos filósofos e pelos estadistas, ou apesar de tais combinações. Todos os homens que exerceram uma ação real e durável sobre a espécie humana, quer no temporal, quer no espiritual, foram guiados e sustentados por esta verdade fundamental, que o instinto ordinário do gênio lhes fez entrever, embora não estivesse ainda estabelecida por uma demonstração metódica. Em cada época, perceberam quais as transformações que tendiam a efetuar-se, de acordo com o estado da civilização, e as proclamaram, propondo a seus contemporâneos as doutrinas, ou as instituições correspondentes. Sempre que seu plano estava em plena conformidade com a verdadeira situação, as mudanças se fizeram ou se consolidaram quase imediatamente. Novas forças sociais que, havia muito, se desenvolviam em silêncio, apareceram repentinamente sobre a cena política, e com todo vigor juvenil, atendendo ao seu apelo. Tendo sido a história escrita e estudada, até o presente, de modo superficial, tais coincidências e efeitos tão notáveis, ao invés de instruírem os homens, como seria natural, apenas os surpreenderam. Estes fatos mal observados contribuem mesmo para manter ainda a crença teológica e metafísica do poder indefinido e criador dos legisladores sobre a civilização. Eles alimentam esta ideia supersticiosa em espíritos que estariam dispostos a rejeitá-la se não parecesse apoiada na observação. Resulta este desastroso efeito de que, nos grandes acontecimentos, só se vêm os homens, e nunca as circunstâncias que os impelem com força irresistível. Em lugar de reconhecer-se a influencia preponderante da civilização, consideram-se os esforços desses homens previdentes como as verdadeiras causas dos aperfeiçoamentos realizados, os quais se teriam dado, um pouco mais tarde, sem a sua intervenção. Não se leva em conta a enorme desproporção da pretensa causa com o efeito, desproporção que tornaria a explicação muito mais ininteligível do que o próprio fato. Apegam-se ao aparente e desprezam o real, que está atrás. Em uma palavra, tomam-se os atores pela peça, segundo a engenhosa expressão de Mme de Staël. Este erro é absolutamente idêntico ao dos índios, atribuindo a Cristóvão Colombo o eclipse que ele havia previsto. Em geral, quando o homem parece exercer uma grande ação, não é, de todo, pelas suas próprias torças, que são extremamente pequenas. São sempre forças exteriores que atuam para ele, segundo leis sobre as quais nada pode. Todo seu poder reside em sua inteligência, que o coloca em estado de conhecer essas leis pela observação, prevendo seus efeitos, e, por consequência, fazendo-as concorrer para o fim a que se propõe, desde que as empregue de maneira adequada à sua natureza. Uma vez produzida a ação, a ignorância das leis naturais leva o espectador, e algumas vezes o próprio ator, a atribuírem ao poder do homem o que só é devido à sua previdência. Estas observações gerais se aplicam a uma ação filosófica, assim como, e pelos mesmos motivos, a uma ação física, química e fisiológica. Qualquer ação política é seguida de efeito real e duradouro, quando se exerce no sentido da força da civilização, quando se propõe a operar mudanças impostas por essa força. A ação é nula, ou pelo menos efêmera, em qualquer outra hipótese. O caso mais vicioso é, incontestavelmente, aquele em que o legislador, quer temporal, quer espiritual, atua, deliberadamente ou não, num sentido retrógrado, porque se coloca, então, em oposição ao que só poderia constituir a sua força. Mas a marcha da civilização é de tal modo o regulador exato da ação política, que esta se torna ainda nula quando pretende adiantar-se mais do que lhe é permitido, apesar da tendência progressiva que, neste caso, milita a seu favor. A experiência prova, de fato, que o legislador, qualquer que seja o poder de que se suponha investido, fracassa inevitavelmente se empreende realizar aperfeiçoamentos que estão na linha dos progressos naturais da civilização, muito acima, porém, de sua época. Assim foi, por exemplo, que as grandes tentativas de José II, para civilizar a Áustria, mais do que comportava, então, o seu estado, se tornaram completamente nulas, como nulos foram os imensos esforços de Bonaparte para fazer a França retrogradar ao regime feudal, embora ambos estivessem armados dos mais amplos poderes arbitrários. Conclui-se das considerações precedentemente indicadas, que a verdadeira política, a política positiva, não deve mais pretender governar seus fenômenos, como as outras ciências não dirigem os que lhes são próprios. Elas renunciaram a esta ambiciosa quimera, que lhes caracterizou a infância, para se limitarem a observar os seus fenômenos e a ligá-los, A política deve fazer o mesmo. Deve preocupar-se unicamente em coordenar todos os fatos particulares, relativos à marcha da civilização, reduzi-los ao menor número possível de fatos gerais, cujo encadeamento deve pôr em evidência a lei natural dessa marcha, apreciando em seguida a influência das diversas causas que podem modificar-lhe a velocidade. A utilidade prática desta política de observação pode ser agora facilmente precisada. A sã política não poderia ter por objetivo fazer marchar a espécie humana, que se move por impulso próprio, segundo uma lei tão necessária quanto a da gravitação, embora mais modificável. Ela tem por finalidade facilitar sua marcha, esclarecendo-a. Há grande diferença entre obedecer à marcha da civilização, sem dela nos darmos conta, e obedecer-lhe com conhecimento de causa. As mudanças que ela determina não ocorrem menos no primeiro caso do que no segundo, mas se fazem esperar mais tempo, e, sobretudo, somente se operam depois de terem produzido, na sociedade, funestos abalos, mais ou menos graves, conforme a natureza e a importância dessas mudanças. Ora, os atritos de toda espécie, que daí resultam para o corpo social, podem ser evitados, em grande parte, por meios fundados sobre o conhecimento exato das alterações que tendem a efetuar-se. Esses meios consistem em fazer com que os aperfeiçoamentos, uma vez previstos, se pronunciem de maneira direta, em vez de se esperar que apareçam, pela força exclusiva das coisas, através de todos os obstáculos engendrados pela ignorância. Em outros termos, o objetivo essencial da política prática é, propriamente, evitar as revoluções violentas, oriundas dos entraves mal-entendidos opostos à marcha da civilização, e reduzi-las, o mais rapidamente possível, a simples movimento moral, tão regular como o que agita suavemente a sociedade em tempos normais, embora mais vivo. Ora, para atingir essa finalidade é evidentemente indispensável conhecer, com a maior precisão possível, a tendência atual da civilização a fim de fazer conformar-se com ela a ação política. Seria quimérico, sem dúvida, esperar que movimentos, comprometendo mais ou menos as ambições e os interesses de classes inteiras, se possam operar de maneira perfeitamente calma. Mas não é menos certo que, até agora, se tem dado, a esta causa, demasiada importância, como explicação das revoluções tempestuosas, cuja violência tem decorrido, em grande parte, da ignorância das leis naturais que regulam a marcha da civilização. É muito frequente ver-se atribuir ao egoísmo o que essencialmente não provém senão da ignorância, e este erro funesto contribui para manter a irritação entre os homens em suas relações privadas e gerais. Mas, no caso atual, é evidente que os homens, impelidos até agora a se colocarem, de fato, em oposição à marcha da civilização, não teriam tentado fazê-lo se essa oposição tivesse sido solidamente demonstrada. Ninguém é tão insensato que se coloque, conscientemente, em insurreição contra a natureza das coisas. Ninguém se compraz em exercer uma ação que reconhece ser claramente efêmera, Assim, as demonstrações da política de observação são suscetíveis de atuar sobre as classes, cujos preconceitos e interesse levariam a lutar contra a marcha da civilização. Sem dúvida, não se deve exagerar a influência da inteligência sobre o procedimento dos homens, mas, certamente, a força de demonstração tem importância muito superior à que lhe tem sido até aqui atribuída. A história do espírito humano prova ter essa força muitas vezes determinado, só por si, transformações nas quais teve de lutar contra as maiores resistências humanas reunidas. Para citar, apenas, o exemplo mais notável, foi unicamente o poder das demonstrações positivas que fez adotar a teoria do movimento da Terra, a qual tinha de vencer não só a resistência do poder teológico, muito forte ainda nessa época, mas, principalmente, o orgulho da espécie humana inteira, apoiado nos motivos mais verossímeis que uma ideia falsa jamais teve a seu favor. Experiências tão decisivas deveriam esclarecer-nos sobre a força preponderante que resulta das verdadeiras demonstrações. É principalmente por não ter sido jamais utilizada essa força em política que os homens de Estado se têm deixado arrastar a tão grandes aberrações praticas. Apareçam as demonstrações e as aberrações cessarão imediatamente. Além disto, porém, considerando apenas os interesses, é fácil compreender que a política positiva deve fornecer os meios de evitar as revoluções violentas. Com efeito, se os aperfeiçoamentos necessários à marcha da civilização têm de combater certas ambições e certos interesses, alguns dentre eles existem que lhes são favoráveis. A par disto, pelo próprio fato de terem esses aperfeiçoamentos chegado à sua maturidade, as forças reais em seu favor são superiores às forças opostas, embora a aparência nem sempre o indique. Ora, mesmo que se duvidasse, relativamente a estas últimas, pudesse o conhecimento positivo da marcha da civilização ser útil para dispô-las a sofrer com resignação uma lei inevitável, sua importância não poderia, evidentemente, ser posta em dúvida. Guiadas por este conhecimento, percebendo claramente o alvo que são destinadas a atingir, as classes ascendentes poderão para ele dirigir-se de maneira direta, em vez de se fatigarem em tateamentos e desvios. Combinarão, com segurança, os meios de anular previamente todas as resistências e de facilitar a seus adversários a transição para a nova ordem de coisas. Em uma palavra, a civilização triunfará de maneira tão rápida e calma quanto o permitir a natureza das coisas. Em resumo: a marcha da civilização não se executa, verdadeiramente falando, seguindo uma linha reta. Compõe-se de uma série de oscilações progressivas, mais ou menos extensas e mais ou menos lentas, aquém e além de uma linha média, comparáveis às que apresenta o mecanismo da locomoção. Ora, essas oscilações podem tornar-se mais curtas e rápidas através de combinações políticas fundadas sobre o conhecimento do movimento médio, que tende sempre a predominar. Tal é a utilidade prática permanente desse conhecimento. Tem, evidentemente, tanto maior importância quanto as mudanças exigidas pela marcha da civilização são elas próprias mais relevantes. Essa utilidade é, portanto, do mais alto grau, porque a reorganização social, única em condições de terminar a crise atual, é a mais completa de todas as revoluções que tem a espécie humana experimentado. O dado fundamental da política prática geral, seu ponto de partida positivo, é, pois, a determinação da tendência da civilização, a fim de adaptar-lhe a ação política, tornando, por esta razão, tão suaves e tão curtas quanto possível as crises inevitáveis a que está sujeita a espécie humana nessas passagens sucessivas pelos diferentes estados de civilização. Boas inteligências, pouco familiarizadas, porém, com a maneira de proceder conveniente ao espírito humano, reconhecendo, embora, a necessidade de determinar essa tendência da civilização, a fim de dar base sólida e positiva às combinações políticas, poderiam pensar não ser, entretanto, indispensável, para fixá-la, estudar a marcha geral da civilização, desde sua origem, bastando considerá-la em seu estado atual. Esta ideia é natural, à vista da maneira estreita pela qual a política tem sido considerada até hoje. Mas é fácil demonstrar-lhe a falsidade. A experiência provou que, enquanto o espírito do homem se subordina a uma direção positiva, há muitas vantagens, e nenhum inconveniente, em que ele se eleve ao mais alto grau de generalidade possível, porque é infinitamente mais fácil descer do que subir. Na infância da fisiologia positiva, começou-se por acreditar que, para conhecer a organização humana, bastava estudar o homem unicamente, o que era um erro completamente idêntico ao de que aqui se trata. Reconheceu-se depois que, para formar ideias bem nítidas e convenientemente extensas da organização humana, era indispensável considerar o homem como um termo da série animal; e, do mesmo modo, sob um ponto de vista ainda mais geral, como fazendo parte do conjunto dos corpos organizados. A fisiologia só se constituiu definitivamente depois que a comparação das diferentes classes de seres vivos foi amplamente estabelecida, e começou a ser empregada, com regularidade, no estudo do homem. Há, em política, diversos estados de civilização, assim como há organizações diversas em fisiologia. Apenas, os motivos que obrigam a considerar as diferentes épocas da civilização são ainda mais diretos do que os que levaram os fisiologistas a estabelecer a comparação de todos os organismos. Sem dúvida, um estudo do estado presente da civilização, considerado em si mesmo, independente dos que o precederam, é próprio para fornecer materiais muito úteis à formação da política positiva, desde que os fatos sejam observados de maneira filosófica. É mesmo certo que foi por estudos desse gênero que os verdadeiros homens de Estado puderam, até o presente, modificar as doutrinas conjeturais, que dirigiam o seu espírito, de modo a torná-las menos discordantes das necessidades reais da sociedade. Não é menos evidente, porém, que tal estudo é de insuficiência completa para formar uma verdadeira política positiva. É impossível ver nesses estudos outra coisa senão materiais. Numa palavra, a observação do estado atual da civilização, considerado isoladamente, não pode mais determinar a tendência atual da sociedade, como não poderia determiná-la o estudo de qualquer época isolada. A razão disto é que, para se estabelecer uma lei, não basta um termo, sendo necessários pelo menos três, a fim de que a ligação descoberta pela comparação dos dois primeiros, e verificada pelo terceiro, possa servir para achar o seguinte, objetivo de toda lei. Quando, seguindo uma instituição e uma ideia social, ou antes, um sistema de instituições e uma doutrina completa, desde a sua origem até a época atual, se verifica que, a partir de certo momento, seu império foi sempre diminuindo ou aumentando, pode prever-se, com plena certeza, segundo a série de observações, a sorte que lhe está reservada. No primeiro caso, verificar-se-á que caminham em sentido contrário ao da civilização, donde resultará estarem destinadas a desaparecer. No segundo, ao invés, concluir-se-á que devem acabar prevalecendo. A época da queda ou a do triunfo poderão mesmo ser calculadas, pouco mais ou menos, pela extensão e pela velocidade das variações observadas. Tal estudo é, portanto, evidentemente, uma fonte fecunda de instrução positiva. Mas, que poderá ensinar a observação isolada de um único estado, no qual tudo está confundido, as doutrinas, as instituições, as classes que descem, e as doutrinas, as instituições, as classes que sobem, sem contar com a ação efêmera que só se prende à rotina do momento? Que sagacidade humana poderia, em agrupamento tão heterogêneo, não expor-se a tomar uns pelos outros esses elementos opostos? Como discernir as realidades silenciosas em meio dos fantasmas que se agitam na cena? É claro que, no meio dessa desordem, o observador somente poderia caminhar como cego, se não fosse guiado pelo passado, que, só ele, pode ensinar-lhe a dirigir seu olhar de maneira a ver as coisas como realmente são. A ordem cronológica das épocas não é a sua ordem filosófica. Em lugar de dizer: o passado, o presente e o futuro, cumpre dizer: - o passado, o futuro e o presente. Não é, de fato, senão quando, pelo passado, se concebeu o futuro, que se pode voltar utilmente ao presente, que não é mais do que um ponto, de modo a compreender seu verdadeiro caráter. Estas considerações, aplicáveis a qualquer época, o são, com muito maior razão, à época atual. Hoje, três sistemas diferentes coexistem no seio da sociedade: o teológico e feudal, o científico e industrial, e, enfim, o transitório e bastardo dos metafísicos e legistas. Está absolutamente acima das forças do espírito humano estabelecer, no meio de tal confusão, uma análise clara e exata, uma estatística real e precisa do corpo social, sem ser esclarecido pelo facho do passado. Facilmente se poderia demonstrar que excelentes espíritos, destinados, por sua capacidade, a se elevarem a uma política verdadeiramente positiva, se suas faculdades tivessem sido mais bem dirigidas, ficaram mergulhados na metafísica por terem considerado isoladamente o estado atual das coisas, ou unicamente por não terem ampliado suficientemente a série de observações. Assim, o estudo - e o estudo tão profundo, tão completo quanto possível - de todos os estados por que passou a civilização desde sua origem até o presente; sua coordenação, seu encadeamento sucessivo, sua composição em fatos gerais, capazes de se tornarem princípios, pondo em evidência as leis naturais do desenvolvimento da civilização, o quadro filosófico do futuro social, tal como deriva do passado, isto é, a determinação do plano geral de reorganização, destinado à época atual; a aplicação, enfim, desses resultados ao estado presente das coisas de modo a determinar a direção que deve ser impressa à ação política a fim de facilitar a transição definitiva para o novo estado social. Tal é o conjunto dos trabalhos próprios a estabelecer, para a política, uma teoria positiva que possa corresponder às necessidades imensas e urgentes da sociedade. Esta é a primeira série de pesquisas teóricas que ouso propor às forças combinadas dos cientistas europeus. Tendo todas as considerações, até agora expostas, indicado suficientemente o espírito da política positiva, sua comparação com a política teológica e metafísica pode adquirir maior precisão. Comparando-as, em primeiro lugar, sob o ponto de vista mais importante, em relação às exigências atuais da sociedade, explica-se facilmente a superioridade da política positiva. Esta superioridade resulta de que descobre o que as outras inventam. A política teológica e a metafísica imaginam o sistema que convém ao estado atual da civilização, de acordo com a condição absoluta de ser o melhor possível. A política positiva determina-o pela observação, unicamente como devendo ser aquele que a marcha da civilização tende a produzir. De conformidade com esta maneira diferente de proceder, seria impossível que a política de imaginação achasse a verdadeira reorganização social, e a política de observação não a encontrasse: Uma faz os maiores esforços para inventar o remédio, sem considerar a doença. A outra, persuadida de que a principal causa da cura é a força vital do doente, limita-se a prever, pela observação, o termo natural da crise, a fim de facilitá-la, afastando os obstáculos suscitados pelo empirismo. Em segundo lugar, só a política científica pode apresentar aos homens uma teoria sobre a qual seja possível entenderem-se, o que, em certo sentido, é a condição mais importante. A política teológica e a metafísica, procurando o melhor governo possível, levam a discussões intermináveis, porque essa questão não pode ser julgada. O regime político deve estar e esta necessariamente em consonância com o estado da civilização, o melhor, para cada época, e o que mais se conforma com ela. Não ha, portanto, nem poderia haver regime político absolutamente preferível a todos os outros. Ais instituições boas para uma época podem ser, e são mesmo, na maior parte das vezes, mas para outra, e reciprocamente. Assim, por exemplo, a escravidão, que é hoje uma monstruosidade, em sua origem era certamente uma instituição muito bela, pois tinha por fim impedir o forte de degolar o fraco; era um intermediário inevitável no desenvolvimento geral da civilização. Assim também, em sentido inverso, a liberdade que, em proporção razoável, é tão útil a um indivíduo e a um povo que tenham atingido certo grau de instrução e contraído alguns hábitos de previdência - porque permite o desenvolvimento de suas faculdades - é muito nociva àqueles que não tenham ainda preenchido essas duas condições e têm, de modo indispensável, necessidade, tanto por eles, como pelos outros, de serem mantidos em tutela. E, pois, evidente que não poderia haver acordo sobre a questão absoluta do melhor governo possível. Não poderia haver outro expediente a fim de restabelecer a harmonia senão o de abolir inteiramente o exame do plano convencional, como o fez a política teológica, mais consequente do que a metafísica, porque, tendo durado, teve de preencher as condições de sua permanência. Sabe-se que a metafísica, dando livre curso à imaginação, foi levada até o ponto de pôr em dúvida, e mesmo negar formalmente, a utilidade do estado social para a felicidade do homem, o que evidencia a sua impossibilidade de opinar sobre tais questões. Na política científica, pelo contrário, sendo o objetivo prático determinar o sistema que a marcha da civilização tende hoje a produzir, de conformidade com o que o passado demonstra, a questão é toda positiva, e pode ser inteiramente julgada pela observação. O mais livre exame pode e deve ser concedido, sem que tenhamos de temer as divagações. Ao cabo de certo tempo, todos os espíritos competentes, e, depois deles, todos os outros, devem, por fim, concordar sobre as leis naturais da marcha da civilização, e sobre o sistema que dela resulta, quaisquer que tenham podido ser anteriormente suas opiniões especulativas, assim como se acabou por chegar a um acordo a propósito das leis do sistema solar, das da organização humana, etc. Enfim, a política positiva é a única via pela qual a espécie humana possa sair do arbitrário, no qual ficará mergulhada enquanto ainda dominarem a política teocrática e a política metafísica. O absoluto, na teoria, conduz necessariamente, na prática, ao arbitrário. Enquanto a espécie humana for considerada como não possuindo impulso próprio, devendo recebê-lo do legislador, existe forçosamente o arbítrio no mais alto grau e sob o aspecto mais essencial, apesar das declamações mais eloquentes. Assim o exige a natureza das coisas. Estando a espécie humana então entregue à discrição do legislador, que lhe determina o melhor governo possível, pode o arbítrio restringir-se às minúcias, mas evidentemente não poderia ser eliminado do conjunto. Seja embora o legislador supremo, único ou múltiplo, hereditário ou eletivo, nada se altera a este respeito. Se fosse possível substituir-se a sociedade inteira ao legislador, o mesmo ocorreria. Apenas sendo então o arbítrio exercido por toda a sociedade sobre si mesma, os inconvenientes se tornariam maiores do que nunca. A política científica, ao contrário, exclui radicalmente o arbítrio, porque faz desaparecer o absoluto e o vago, que o produziram e o mantêm. Nesta política, a espécie humana é considerada como sujeita a uma lei natural de desenvolvimento, suscetível de ser determinada pela observação, e que prescreve, para cada época, da maneira menos equívoca, a ação política que pode ser exercida. O arbítrio cessa, portanto, necessariamente. O governo das coisas substitui o dos homens. É então, que há verdadeiramente lei, em política, no sentido real e filosófico ligado a esta expressão pelo ilustre Montesquieu. Qualquer que seja a forma de governo, em suas particularidades, o arbítrio não pode reaparecer, ao menos quanto ao fundo. Em política tudo está fixado, de acordo com uma lei verdadeiramente soberana, reconhecida como superior a todas as forças humanas, pois deriva, em última análise, da natureza de nossa organização, sobre a qual não se poderia exercer nenhuma ação. Em uma palavra, esta lei exclui, com a mesma eficácia, o arbítrio teológico, ou o direito divino dos reis, e o arbítrio metafísico, ou a soberania do povo. Se alguns espíritos pudessem ver, no império supremo de tal lei, uma transformação do arbítrio existente, deveriam também deplorar o despotismo não menos real, porém ainda mais análogo, por ser mais modificável, exercido pelas leis da organização humana, da qual a da civilização não é mais do que o resultado. O que precede conduz naturalmente a determinar, com exatidão, os domínios respectivos da observação e da imaginação em política. Esta determinação acabará por esboçar o espírito geral da nova política. É necessário, para isto, distinguir duas ordens de trabalhos: uns, que compõem propriamente a ciência política, são relativos à formação do sistema que convém à época atual; os outros se referem à sua propagação. Nos primeiros, é claro que a imaginação só deve desempenhar papel absolutamente subalterno, sempre subordinado à observação, como nas outras ciências. Quanto ao estudo do passado, pode e deve ser empregado para inventar meios provisórios de unir os fatos, até que as ligações definitivas ressaltem diretamente aos próprios fatos, o que é necessário ter sempre em vista. Este emprego da imaginação não se deve estender senão aos fatos secundários, sem o que seria evidentemente vicioso. Em segundo lugar, a determinação do sistema, segundo o qual a sociedade é hoje levada a se reorganizar, deve deduzir-se, quase totalmente, da observação do passado. Este estudo determinará não só o conjunto de tal sistema, mas também as partes mais importantes, até um grau de precisão de que os cientistas se admirarão provavelmente quando puserem mãos à obra. É certo, todavia, que a precisão obtida por este método não desceria inteiramente até o ponto em que o sistema poderá ser confiado aos industriais, para que o ponham em atividade por suas combinações práticas, segundo o plano indicado no capítulo antecedente. Assim, sob este segundo aspecto, a imaginação deverá ainda preencher, na política científica, uma função secundária, que consistirá em levar até o grau de precisão necessária o esboço do novo sistema, cujo plano geral e os traços característicos a observação tiver determinado. Mas há outro gênero de trabalhos, igualmente indispensáveis ao êxito definitivo da grande empresa da reorganização, embora subordinados aos precedentes, e nos quais a imaginação readquire seu pleno exercício. Na determinação do novo sistema, é necessário fazer abstração das vantagens ou dos inconvenientes a ele peculiares. A questão principal, ou única, deve ser: Qual será, de acordo com a observação do passado, o sistema social destinado a ser estabelecido hoje pela marcha da civilização? Se se der demasiada importância à excelência do sistema, confundir-se-á tudo e não se atingirá o alvo. Devemos limitar-nos, em tese geral, a conceber a ideia positiva de bondade, como estando confundida, em sua origem, com a de adaptação ao estado da civilização. Assim obteremos, certamente, o melhor sistema praticável em nossos dias, ao procurar o que mais se conforma com o estado da civilização. Não sendo a ideia de bondade por si mesma positiva, e somente podendo tornar-se tal por suas relações com o estado de civilização, é este unicamente o que se deve tomar por alvo direto das pesquisas, sem o que a política não se tornará positiva. A indicação das vantagens do novo sistema, de sua superioridade sobre os precedentes, sob este aspecto, deve ser coisa inteiramente secundária, sem nenhuma influência na direção dos trabalhos. É incontestável que, por este modo de proceder, se fundará com certeza uma política realmente positiva, e verdadeiramente em harmonia com as grandes exigências da sociedade. Mas, se é com esse espírito que o novo sistema deve ser determinado, é claro não ser sob tal forma que deve ser apresentado à sociedade a fim de obter sua adoção definitiva, porquanto esta forma está muito longe de ser a mais apropriada para provocar essa adesão. Para que um novo sistema social se estabeleça, não basta haja sido concebido convenientemente; é ainda necessário que a sociedade, em geral, se apaixone por constituí-la. Esta condição não é só indispensável a fim de vencer as resistências, mais ou menos fortes, que o novo sistema deve encontrar nas classes em decadência. É indispensável, principalmente, para satisfazer essa necessidade moral de exaltação, inerente ao homem, quando entra em nova carreira. Sem tal exaltação, ele não poderia vencer sua inércia natural, nem sacudir o jugo, tão poderoso, dos antigos hábitos; e isto é necessário para deixar a todas as suas faculdades, em seu novo emprego, livre e pleno desenvolvimento. Evidenciando-se sempre tal necessidade nos casos menos complicados, seria contraditório que não se manifestasse nas transformações mais completas e mais importantes, nas que devem modificar mais profundamente a existência humana. Toda a história depõe a favor desta verdade. Isto posto, é claro que a maneira pela qual o novo sistema poderá e deverá ser conhecido e apresentado pela política científica, não é, de modo algum, própria para preencher diretamente esta condição indispensável. A massa dos homens jamais se apaixonará por um sistema qualquer, provando-se-lhe que é aquele cujo estabelecimento a marcha da civilização preparou desde sua origem e que ela apresenta hoje para dirigir a sociedade. Tal verdade está ao alcance de número muito pequeno de espíritos, e exige, mesmo de sua parte, uma série demasiadamente longa de operações intelectuais para que possa jamais apaixonar. Somente, entre os cientistas, produzirá essa convicção profunda e tenaz, resultado necessário das demonstrações positivas, convicção que oferece mais resistência, mas, por isto mesmo, também menos atividade do que a persuasão, viva e envolvente, produzida pelas ideias desencadeadas pelas paixões. O único meio de se obter este último efeito consiste em oferecer aos homens o quadro animado dos melhoramentos que deve proporcionar à condição humana o novo sistema, considerado sob todos os diversos pontos de vista, fazendo abstração de sua necessidade e oportunidade. Só esta perspectiva pode levar os homens a fazerem em si próprios a revolução moral necessária a fim de que o novo sistema possa estabelecer-se. Só ela pode recalcar o egoísmo, que se tornou predominante pela dissolução do antigo sistema, e que, ao serem as ideias esclareci das pelos trabalhos científicos, será o grande e único obstáculo para o triunfo do novo sistema. Somente ela pode, enfim, tirar a sociedade da apatia, e imprimir-lhe, ao mesmo tempo, essa atividade que deve tornar-se permanente num estado social que manterá todas as faculdades do homem em ação contínua. Eis, portanto, uma espécie de trabalhos onde a imaginação deve desempenhar papel preponderante. Sua ação não poderá apresentar nenhum inconveniente, pois se exercerá na direção estabelecida pelos trabalhos científicos e terá por finalidade, não a invenção do sistema a ser constituído, mas a adoção daquele que tiver sido determinado pela política positiva. Assim lançada, deve a imaginação ficar inteiramente entregue a si mesma. Quanto mais franca e livre for a sua marcha, mais completa e salutar será a ação indispensável que deve exercer. Tal a parte especial reservada às belas-artes no empreendimento geral da reorganização da sociedade. Concorrerão, assim, para esse grande objetivo todas as forças positivas: a dos cientistas para determinar o plano do novo sistema; a dos artistas para provocar a adoção universal desse plano; a dos industriais para pôr o sistema em atividade imediata, pelo estabelecimento das instituições práticas necessárias. Estas três grandes forças se combinarão entre si a fim de constituírem o novo sistema, como o farão, quando estiver formado, para sua aplicação diária. Assim, em última análise, a política positiva investe a observação da supremacia concedida à imaginação pela política conjetural na determinação do sistema social conveniente à época que atravessamos. Mas, ao mesmo tempo, confia à imaginação novo papel, bem superior, hoje, ao que desempenha na política teológica e metafísica, onde, embora soberana, definha em círculo de ideias gastas e de quadros monótonos, desde que a espécie humana se aproximou do estado positivo. Depois de ter esboçado o espírito geral da política positiva, é útil lançar um golpe de vista sumário sobre as principais tentativas feitas, até este momento, no intuito de elevar a política à classe das ciências de observação. Daí resultará a dupla vantagem de verificar, pelo que ocorreu, a maturidade desse cometimento e de esclarecer ainda o espírito da nova política, apresentando-o sob vários pontos de vista distintos dos precedentemente indicados. É a Montesquieu que deve ser ligado o primeiro esforço direto para tratar a política sob o prisma de uma ciência de fatos e não de dogmas. Tal é, evidentemente, o verdadeiro objetivo do Espírito das Leis, aos olhos de quem quer que tenha compreendido esse trabalho. O admirável início onde a ideia geral de lei foi, pela primeira vez, exposta de maneira verdadeiramente filosófica, bastaria para provar esse desígnio. É claro que Montesquieu se propôs essencialmente a ligar, tanto quanto possível, sob certo número de pontos principais, todos os fatos políticos de que tinha conhecimento, e a evidenciar as leis de seu encadeamento. Se se tratasse de apreciar aqui o mérito desse trabalho, cumpriria julgá-lo segundo a época de sua execução. Ver-se-ia, assim, que demonstra, da maneira mais formal, a superioridade filosófica de Montesquieu sobre todos os seus contemporâneos. Ter-se libertado do espírito crítico, no tempo em que exercia, mesmo nos cérebros mais fortes, o império mais despótico; ter sentido profundamente o vazio da política metafísica e absoluta; ter reconhecido a necessidade de desvencilhar-se dela, no momento preciso em que tomava, nas mãos de Rousseau, sua forma definitiva, são provas decisivas dessa superioridade. Mas, apesar da capacidade de primeira ordem de que deu provas Montesquieu, e que será cada vez mais reconhecida, é evidente estarem seus trabalhos bem longe de ter elevado a política à categoria de ciência positiva. Não satisfizeram, de modo algum, às condições fundamentais indispensáveis, acima expostas, para que pudesse essa finalidade ser neles atingida. Montesquieu não percebeu o grande fato geral, que domina todos os fenômenos políticos, dos quais é o verdadeiro regulador: o desenvolvimento natural da civilização. Resultou disto que suas pesquisas não poderiam ser empregadas, na formação da política positiva, a não ser como materiais, como coleção de observações e de apanhados, porque as ideias gerais, que lhe serviram para ligar os fatos, não são positivas. Apesar dos esforços evidentes de Montesquieu para libertar-se da metafísica, não o conseguiu, e foi dela, incontestavelmente, que deduziu sua concepção principal. Esta concepção tem o duplo defeito de ser dogmática, em lugar de ser histórica, isto é, de não levar em conta a sucessão necessária dos diversos estados políticos; e, em segundo lugar, de dar importância exagerada a um fato secundário: a forma de governo. Mais ainda: o papel preponderante que Montesquieu fez esta ideia desempenhar é de pura imaginação, contradizendo o conjunto das observações mais conhecidas. Numa palavra, os fatos políticos não foram verdadeiramente ligados por Montesquieu, como devem sê-lo em qualquer ciência positiva. Foram unicamente aproximados, segundo vistas hipotéticas, contrárias, na maior parte das vezes, às suas relações reais. A única parte importante dos trabalhos teóricos de Montesquieu, que esteia verdadeiramente numa direção positiva, é a que tem por objetivo determinar a influência política das circunstâncias físicas locais, atuando de maneira contínua, e cujo conjunto pode ser designado pelo nome de clima. Mas é fácil perceber que, mesmo sob este aspecto, as ideias emitidas por Montesquieu somente podem ser empregadas depois de totalmente refundidas, em consequência do vício geral que caracteriza sua maneira de proceder. É, com efeito, bem reconhecido hoje, por todos os observadores, que Montesquieu exagerou muito, sob vários aspectos, a influência dos climas. Tal exagero era inevitável. O clima exerce, sem dúvida, sobre os fenômenos políticos, uma ação bem real, que é muito importante conhecer. Mas esta ação é indireta e secundária. Limita-se a acelerar ou a retardar, até certo ponto, a marcha natural da civilização, que não pode, de modo algum, ser desnaturada por tais modificações. Esta marcha, com exceção da velocidade, permanece efetivamente a mesma, no fundo, em todos os climas, porque depende de leis mais gerais, as leis da organização humana, essencialmente uniformes nas diversas localidades. Se, portanto, a influência sobre os fenômenos políticos é apenas modificadora, no tocante à marcha natural da civilização, que conserva seu caráter de lei suprema, é claro que essa influência não poderia ser estudada com proveito e convenientemente apreciada, a não ser depois de determinada essa lei. Se se quisesse considerar a causa indireta e subordinada antes da causa direta e principal, essa infração à natureza do espírito humano daria, como resultado inevitável, uma ideia absolutamente falsa da influência da primeira, deixando-a confundir-se com a segunda. Foi o que sucedeu a Montesquieu. A reflexão precedente, sobre a influência do clima, é, evidentemente, aplicável à influência de todas as outras causas que podem modificar a marcha da civilização em seu movimento sem alterá-la em sua essência. Esta influência só poderá ser determinada com exatidão, quando as leis naturais da civilização forem estabelecidas, fazendo-se nelas, previamente, abstração de todas essas modificações. Os astrônomos começaram por estudar as leis dos movimentos planetários, fazendo abstração das perturbações. Quando estas leis foram descobertas, as modificações puderam ser determinadas e mesmo, reduzidas ao princípio que só havia sido estabelecido inicialmente para o movimento principal. Se se tivesse querido, desde logo, explicar essas irregularidades, é claro que nenhuma teoria exata poderia jamais ter sido formada. O mesmo se dá, de modo absoluto, no caso presente. A insuficiência da política de Montesquieu verifica-se claramente em suas aplicações às necessidades sociais. A necessidade de uma reorganização social, nos países mais civilizados, era tão real na época de Montesquieu, quanto o é hoje, porque o sistema feudal e teológico já estava destruído em suas bases fundamentais. Os acontecimentos que se desenrolaram depois, apenas tornaram essa necessidade mais sensível e mais urgente, completando a destruição do antigo sistema. Montesquieu, todavia, não apresentou, como objetivo prático para seus trabalhos. a concepção de um novo sistema social. Como não havia ligado os fatos políticos de acordo com uma teoria capaz de evidenciar a necessidade de um sistema novo no estado atingido pela sociedade, teoria ao mesmo tempo capaz de determinar o caráter geral desse sistema, teve de limitar-se, e se limitou, quanto à prática, a indicar melhoramentos de minúcias, conformes à experiência, e que não eram senão simples modificações, mais ou menos importantes, do sistema teológico feudal. Sem dúvida, assim procedendo, Montesquieu deu prova de prudente reserva, encerrando suas ideias práticas nos limites que os fatos lhe impunham, em consequência do modo imperfeito pelo qual os havia estudado, quando lhe teria sido, pelo contrário, tão fácil inventar utopias. Evidenciou, porém, ao mesmo tempo, de maneira decisiva, a insuficiência de uma teoria que não podia corresponder às necessidades mais essenciais da prática. Em resumo, Montesquieu sentiu a necessidade de tratar a política com o mesmo método das ciências de observação, mas não concebeu o trabalho geral que lhe deve imprimir tal caráter. Nem por isto suas pesquisas deixaram de ter a maior importância. Facilitaram ao espírito humano os meios de combinar as ideias políticas, apresentando-lhe grande série de fatos ligados por uma teoria que, muito distante ainda do estado positivo, estava, entretanto, mais próxima dele do que todas as outras precedentemente criadas. A concepção geral do trabalho adequado para elevar a política à classe das ciências de observação foi descoberta por Condorcet. Foi ele o primeiro a ver claramente estar a civilização sujeita a uma marcha progressiva, na qual todos os passos são rigorosamente encadeados uns aos outros, segundo leis naturais, que a observação filosófica do passado pode descobrir, e determinam, para cada época, de maneira inteiramente positiva, os aperfeiçoamentos que o estado social deve experimentar, quer em suas partes, quer em seu conjunto, Condorcet não só concebeu, por isto, o meio de dar à política uma verdadeira teoria positiva, mas tentou estabelecê-la, escrevendo a obra intitulada Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano, cujo título e a sua introdução bastariam para assegurar a seu autor a honra de ter criado esta grande ideia filosófica. Se esta descoberta capital até hoje se conservou inteiramente estéril, se ainda não produziu quase nenhuma impressão, se ninguém seguiu a senda indicada por Condorcet, e, numa palavra, se a política não se tornou positiva, cumpre atribuir o fato, em grande parte, a que o esboço por ele traçado foi realizado em sentido absolutamente contrário à finalidade de tal trabalho. Desconheceu completamente as suas condições mais essenciais, e, de tal modo, que a obra precisa ser refundida em sua totalidade. É o que importa estabelecer. Em primeiro lugar, a distribuição das épocas, num trabalho desta natureza, é a parte mais importante do plano ou, para melhor dizer, constitui, só por si, o próprio plano, considerado em sua maior generalidade, porque fixa o modo principal de coordenação dos fatos observados. Ora, a distribuição adotada por Condorcet é absolutamente viciosa, porquanto nem mesmo satisfaz a mais palpável das condições: a de apresentar uma série homogênea. Nota-se que Condorcet não sentiu, de nenhum modo, a importância de uma disposição filosófica das épocas da civilização. Não viu que essa disposição deve ser o objeto de um primeiro trabalho geral, o mais difícil dentre os que a formação da política positiva deve ocasionar. Acreditou poder coordenar convenientemente os fatos, tomando, quase ao acaso, para origem de cada época, um acontecimento notável, ora industrial, ora científico, ora político. Assim procedendo, não saía do círculo dos historiadores literatos. Era-lhe impossível formar uma verdadeira teoria, isto é, estabelecer entre os fatos um encadeamento real, porquanto os que deviam servir para ligar todos os outros estavam isolados entre si. Sendo os naturalistas, de todos os cientistas, os que têm de formar as classificações mais extensas e mais difíceis, foi em suas mãos que o método geral das classificações pôde fazer seus maiores progressos. O princípio fundamental desse método acha-se estabelecido desde que existem, em botânica e em zoologia, classificações filosóficas, isto é, fundadas em relações reais, e não em aproximações artificiais. Consiste ele em que a ordem de generalidade dos diferentes graus de divisão seja, tanto quanto possível, exatamente conforme à das relações observadas entre os fenômenos a classificar. Desta maneira, a hierarquia das famílias, dos gêneros, etc., não é senão o enunciado de uma série coordenada de fatos gerais, repartida em diferentes ordens de subdivisões, cada vez mais particulares. Numa palavra: a classificação é, neste caso, a simples expressão filosófica da ciência, cujos progressos acompanham. Conhecer a classificação é conhecer a ciência, pelo menos em sua parte mais importante. Este princípio é aplicável a qualquer ciência. Constituindo-se, portanto, a ciência política, na época em que ele foi descoberto, empregado e solidamente verificado, deve aproveitar-se desta ideia filosófica achada pelas demais ciências, tomando-a por guia em sua distribuição das diversas épocas da civilização. Os motivos para dispor, na história geral da espécie humana, as diferentes épocas da civilização de acordo com as suas relações naturais, são absolutamente semelhantes aos dos naturalistas para colocar em ordem, segundo a mesma lei, as organizações animais e vegetais. Apenas, nessa história, apresentam ainda mais força. Com efeito, se uma boa coordenação dos fatos é muito importante em qualquer ciência, é tudo na ciência política, que, sem essa condição, faltaria inteiramente a seu objetivo prático. Este objetivo é, como se sabe, determinar, pela observação do passado, o sistema social que a marcha da civilização tende hoje a produzir. Ora, essa determinação somente pode resultar de boa coordenação dos estados anteriores, fazendo ressaltar a lei de tal marcha. E claro, portanto, que os fatos políticos, por mais importantes que sejam, só têm valor prático real por sua coordenação, enquanto, nas outras ciências, o conhecimento dos fatos tem, o mais das vezes, por si mesmo, primordial utilidade, independente do modo de seu encadeamento. As diversas épocas da civilização, por conseguinte, em vez de serem distribuídas sem ordem, segundo acontecimentos mais ou menos importantes, como fez Condorcet, devem ser dispostas de conformidade com o princípio filosófico já reconhecido por todos os cientistas como devendo presidir a quaisquer classificações. A divisão principal das épocas deve apresentar o esboço mais geral da história da civilização. As divisões secundárias, qualquer que seja o grau a que se julgue conveniente levá-las, devem oferecer apanhados sucessivamente cada vez mais precisos dessa mesma história. Em uma palavra, o índice das épocas deve ser determinado de modo a oferecer, só por si, a expressão abreviada do conjunto do trabalho. Sem isto, não se faria senão um trabalho puramente provisório, apresentando apenas um valor de materiais, por maior que fosse a perfeição com que viesse a ser executado. Basta dizer que tal divisão não poderia ser inventada, e, mesmo em seu mais alto grau de generalidade, somente pode resultar de um primeiro esboço do quadro, de um primeiro apanhado sobre a história geral da civilização. Sem dúvida, por mais importante, por mais indispensável que seja essa maneira de proceder, para a formação da política positiva, seria impraticável e seria necessário resignar-se a não fazer a princípio senão trabalho simplesmente provisório, se tal trabalho já não se encontrasse suficientemente preparado. Mas as histórias escritas até hoje e sobretudo as que têm sido publicadas há cerca de meio século, embora muito longe de serem concebidas com espírito conveniente, apresentam, pouco mais ou menos, o equivalente dessa coleção preliminar de materiais. Podemos, pois, ocupar-nos diretamente de uma coordenação definitiva. Apresentei, no capítulo precedente, mas somente sob o aspecto espiritual, um apanhado geral que me parece preencher as condições acima expostas para a divisão principal do passado. É o resultado de um primeiro estudo filosófico sobre o conjunto da história da civilização. Creio que esta história pode ser dividida em três grandes épocas ou estados de civilização, cujo caráter é perfeitamente distinto, tanto no temporal quanto no espiritual. Abrangem a civilização considerada a um tempo em seus elementos e em seu conjunto, o que é, evidentemente, de acordo com os pontos de vista acima indicados, uma condição indispensável. A primeira é a época teológica e militar. Neste estado da sociedade, todas as ideias teóricas, tanto gerais quanto particulares, são de ordem puramente sobrenatural. A imaginação domina franca e completamente a observação, à qual é interdito todo direito de exame. Assim também todas as relações sociais, quer particulares, quer gerais, são franca e completamente militares. A sociedade tem por fim de atividade, único e permanente, a conquista. Não há indústria senão a indispensável à existência da espécie humana. A escravidão pura e simples dos produtores é a principal instituição. Tal é o primeiro grande sistema social, produzido pela marcha natural da civilização. Existiu, em seus elementos, a partir da primeira formação das sociedades regulares e permanentes. Só se estabeleceu, em seu conjunto, após longa série de gerações. A segunda época é a época metafísica e legista. Seu caráter geral é não ter nenhum bem acentuado. É intermediária e bastarda, opera uma transição. Esta época foi caracterizada, no capítulo precedente, sob o ponto de vista espiritual. A observação é sempre dominada pela imaginação, mas é admitida para modificá-la em certos limites. Estes limites são, em seguida, recuados sucessivamente, até que a observação conquiste, enfim, o direito de exame sobre todos os pontos. Ela o obtém, a princípio, sobre todas as ideias teóricas particulares e, pouco a pouco, pelo uso que faz desse direito, acaba por adquiri-lo também sobre as ideias teóricas gerais, o que é o termo natural da transição. Esta época é a da crítica e da argumentação. Sob o aspecto temporal, a indústria ganhou maior extensão sem ser ainda predominante. Por consequência, a sociedade não é mais francamente militar, e não é ainda claramente industrial, quer nos seus elementos, quer em seu conjunto. As relações sociais particulares são modificadas. A escravidão individual não é mais direta; o produtor, ainda escravo, começa a obter alguns direitos da parte do militar. A indústria faz novos progressos, que levam, enfim, à abolição total da escravatura individual. Após esta emancipação, os produtores ficam ainda sujeitos ao arbítrio coletivo. Entretanto, as relações sociais gerais logo começam também a modificar-se. Os dois objetivos da atividade, a conquista e a produção, são conduzidos em pé de- igualdade. A indústria é, a princípio, cuidada e protegida como recurso militar. Mais tarde, sua importância aumenta, e a guerra, por sua vez, acaba por ser concebida sistematicamente, como meio de favorecer a indústria, o que constitui a última fase deste regime intermediário. A terceira época, enfim, é a época científica e industrial. Todas as ideias teóricas particulares tornaram-se positivas, e as ideias gerais tendem a sê-lo. A observação dominou a imaginação quanto às primeiras, e a destronou, sem ter ainda hoje tomado o seu lugar quanto às segundas. No temporal, a indústria tornou-se preponderante. Todas as relações particulares estabeleceram-se pouco a pouco sobre bases industriais. A sociedade, considerada coletivamente, tende a organizar-se de igual maneira, tendo por alvo de atividade, único e permanente, a produção. Numa palavra, esta última época já se definiu quanto aos elementos, e está prestes a começar quanto ao conjunto. Seu ponto de partida direto data da introdução das ciências positivas, na Europa, pelos árabes, e da emancipação das comunas, mais ou menos no século XI. Para evitar qualquer obscuridade na aplicação deste apanhado geral, cumpre não perder jamais de vista que a civilização deve progredir nos elementos espirituais e temporais do estado social, antes de progredir no conjunto. Por conseguinte, as três grandes épocas sucessivas começaram necessariamente mais cedo para os elementos do que para o conjunto, o que poderia ocasionar alguma confusão, se não se tivesse percebido, antes de tudo, esta diferença inevitável. Tais são, portanto, os caracteres principais das três épocas em que se pode dividir toda a história da civilização, desde o tempo em que o estado social começou a tomar verdadeira consistência até o presente. Ouso propor aos cientistas esta primeira divisão do passado, a qual me parece preencher as importantes condições de uma boa classificação do conjunto dos fatos políticos. Se for adotada, será necessário achar, pelo menos, uma subdivisão, para que seja possível executar convenientemente um primeiro esboço do grande quadro histórico. A divisão principal facilitará a descoberta das que lhe deverão suceder, fornecendo os meios de considerar os fenômenos, ao mesmo tempo, de maneira geral e positiva. É claro, também, que essas diversas subdivisões, segundo o princípio fundamental das classificações, deverão ser inteiramente concebidas com o mesmo espírito que a divisão principal, e não apresentar apenas um simples desenvolvimento da mesma. Depois de ter examinado o trabalho de Condorcet, quanto à distribuição das épocas, cumpre-nos considerá-lo em relação ao espírito que presidiu à sua execução. Condorcet não viu que o primeiro efeito direto de um trabalho para a formação da política positiva devia ser, necessariamente, fazer desaparecer de modo irrevogável a filosofia crítica do século XVIII, dirigindo-se todas as forças dos pensadores para a reorganização da sociedade - fim prático desse trabalho. Não reconheceu, por consequência, que a condição preliminar mais indispensável, a preencher por quem quisesse executar essa importante empresa, era despojar-se, tanto quanto possível, dos preconceitos críticos que essa filosofia havia introduzido em todas as cabeças. Em vez disto, deixou-se dominar cegamente por esses preconceitos e condenou o passado em lugar de observá-lo; e, por conseguinte, sua obra foi simplesmente longa e fatigante declamação, da qual não resulta, em realidade, nenhuma instrução positiva. A admiração e a censura dos fenômenos devem ser afastadas, com igual severidade, de toda a ciência positiva, porque qualquer preocupação desse gênero tem por efeito direto e inevitável obstar ou alterar o exame. Os astrônomos, os físicos, os químicos e os fisiologistas não admiram nem censuram seus fenômenos respectivos; observam-nos, embora tais fenômenos possam fornecer ampla matéria às considerações de um e outro gênero, como tem havido disto muitos exemplos. Os cientistas deixam com razão esses efeitos aos artistas, em cujo domínio cabem realmente. Sob este ponto de vista, o mesmo que ocorre nas outras ciências deve dar-se na política. Apenas, nesta última, a reserva é muito mais necessária, precisamente porque é aí mais difícil e altera mais profundamente o exame, porquanto, nesta ciência, os fenômenos interessam bem mais de perto às paixões do que em qualquer outra. Sob este aspecto exclusivo, portanto, o espírito crítico, a que Condorcet se deixou arrastar, é diretamente contrário ao que deve predominar na política científica, quando mesmo todas as censuras por ele dirigidas ao passado fossem exatamente fundamentadas. Há, porém, mais. Como já foi observado neste capítulo, as combinações práticas dos homens de estado não têm, sem dúvida, sido sempre concebidas de modo conveniente, e muitas vezes até foram dirigidas em sentido contrário ao da civilização. Precisando-se esta observação, vê-se que se limita, em todos os casos, ao fato de haverem os estadistas procurado prolongar, além de seu termo natural, doutrinas e instituições que já não se achavam em harmonia com o estado da civilização, e, em realidade, este erro parecerá muito tolerável, considerando-se que, até agora, não houve nenhum meio positivo para reconhecê-lo. Mas, transferir para sistemas inteiros de instituições e de ideias o que não é relativo senão a fatos secundários; mostrar, por exemplo, não haver sido mais do que um obstáculo à civilização o sistema feudal e teológico, cuja instituição, ao contrário, foi o maior progresso provisório da sociedade, e sob cuja feliz influência conseguiu a civilização tantas conquistas definitivas; representar, durante longa série de séculos, as classes que dirigiam o movimento geral empenhadas em manter uma conspiração permanente contra a espécie humana - este modo de ver, tão absurdo em seu princípio, como revoltante em suas consequências, é um resultado insensato da filosofia do século passado [XVIII], a cujo império é deplorável que um homem como Condorcet não haja conseguido subtrair-se. Este absurdo, oriundo da impossibilidade de perceber, em todas as suas partes principais, o encadeamento natural dos progressos da civilização, torna evidentemente impossível a sua explicação. O trabalho de Condorcet, por conseguinte, apresenta uma contradição geral e contínua. De um lado, proclama altamente que o estado da civilização no século XVIII é, sem comparação, superior, sob vários pontos de vista, ao que era na origem. Mas esse progresso total somente poderia ser a soma dos progressos parciais, realizados pela civilização em todos os estados intermediários precedentes. Ora, por outro lado, examinando sucessivamente esses diversos estados, Condorcet os apresenta quase sempre como tendo sido, sob os aspectos mais essenciais, épocas de retrogradação. Houve, portanto, milagre perpétuo, e a marcha progressiva da civilização torna-se um eleito sem causa. Um espírito absolutamente oposto deve dominar na verdadeira política positiva. As instituições e as doutrinas devem considerar-se como tendo sido, em todas as épocas, tão perfeitas quanto comportava o estado da civilização, o que não poderia ser de outro modo, pelo menos ao cabo de certo tempo, pois são necessariamente determinadas por ele. A par disto, em seu período de pleno vigor, sempre tiveram caráter progressivo, e não apresentaram, em caso algum, caráter retrógrado, porque não teriam podido subsistir contra a marcha da civilização, da qual hauriam todas as suas forças. Apenas, em suas épocas de decadência tiveram, frequentemente, caráter estacionário, o que por si mesmo se explica, em parte pela repugnância à destruição, tão natural nos sistemas políticos, como nos indivíduos, e, em parte, pelo estado de infância em que a política tem permanecido até hoje. Cumpre considerar sob o mesmo prisma as paixões desenvolvidas, nas diversas épocas, pelas classes dirigentes. Nas quadras de sua virilidade, as forças sociais preponderantes são necessariamente generosas, porque não têm mais o que adquirir, e ainda não temem perder. Só quando sua decadência se manifesta é que se tornam egoístas, porquanto todos os seus esforços têm por objetivo conservar um poder cujas bases se acham destruídas. Estes diversos apanhados estão evidentemente de acordo com as leis da natureza humana, e são eles que permitem explicar de maneira satisfatória os fenômenos políticos. Em última análise, por conseguinte, em lugar de vermos, no passado, um tecido de monstruosidades, devemos ser levados, em tese geral, a considerar a sociedade como tendo sido, na mair parte das vezes, tão bem dirigida, sob todos os pontos de vista, quanto a natureza das coisas o permitia. Se, a princípio, parece que alguns fatos particulares contradizem este fato geral, é sempre mais filosófico procurar restabelecer a ligação do que dispensá-la, proclamando a realidade desta oposição, segundo exame superficial. Seria, em verdade, afastar-se inteiramente de toda subordinação científica bem entendida, fazer reger o fato mais importante e mais frequentemente verificado, por um fato secundário e menos frequente. Além disto, é evidente que se deve evitar, tanto quanto possível, todo exagero no emprego dessa ideia geral, como de qualquer outra. Achar-se-á, sem dúvida, certa semelhança entre o espírito da política positiva, considerado sob este aspecto, e o famoso dogma teológico e metafísico do otimismo. A analogia é real no fundo. Mas há a diferença incomensurável, que se nota entre um fato geral observado e uma ideia hipotética e de pura invenção, A distância é ainda mais evidente nas consequências. O dogma teológico e metafísico que proclama, de maneira absoluta, tudo ser tão bom quanto pode sê-la, tende a tornar a espécie humana estacionária, tirando-lhe toda perspectiva de melhoramento real. A ideia positiva, segundo a qual, para um tempo durável, a organização da sociedade é sempre tão perfeita quanto comporta, em cada época, o estado da civilização, longe de sopitar o desejo de melhorias, ao contrário, imprime-lhe um impulso prático mais eficaz, dirigindo para sua verdadeira finalidade - o aperfeiçoamento da civilização - esforços que seriam estéreis se fossem dirigidos imediatamente sobre a organização social. Aliás, como não há nesta ideia nada de místico, nem de absoluto, leva o homem a restabelecer a harmonia entre o regime político e o estado da civilização, no caso previsto de ser essa relação necessária momentaneamente perturbada. Ela somente esclarece tal operação, advertindo não tomar, nessa ligação, o efeito pela causa. É útil observar, a propósito desta analogia, não ser a única vez que a filosofia positiva se apodera, através de conveniente transformação, de uma ideia geral primitivamente criada pela filosofia teológica e metafísica. As verdadeiras ideias gerais nunca perdem seu valor como meio de raciocínio, por mais viciosos que sejam os seus acessórios. A marcha geral do espírito humano consiste em apropriá-las a seus diferentes estados, transformando seu caráter. É o que se pode verificar em todas as revoluções que têm feito passar os diversos ramos de nossos conhecimentos ao estado positivo. Assim, por exemplo, a doutrina mística da influência dos números, surgida na escola pitagórica, foi reduzida pelos geômetras a esta ideia simples e positiva: fenômenos pouco complicados são suscetíveis de ser reduzidos a leis matemáticas. Da mesma forma ainda: a doutrina das causas finais foi convertida pelos fisiologistas no princípio das condições de existência. As duas ideias positivas diferem, extremamente, sem dúvida, das duas ideias teológicas e metafísicas. Mas, nem por isto, deixam estas de ser o germe evidente das primeiras. Uma operação filosófica, bem dirigida, bastou para dar caráter positivo a esses dois apanhados hipotéticos, produtos do gênio na infância da razão humana. Esta transformação, aliás, não alterou, e mesmo aumentou seu valor como meio de raciocínio. Idênticas reflexões aplicam-se exatamente às duas ideias políticas gerais, uma positiva, a outra fictícia, acima comparadas. Antes de deixar o exame do trabalho de Condorcet, convém deduzir dele um terceiro ponto de vista sob o qual pode ser apresentado o espírito da política positiva. Muito se tem censurado Condorcet por haver ousado terminar a sua obra por um quadro do futuro. Esta concepção ousada é, pelo contrário, a única vista filosófica de real importância introduzida por Condorcet na execução de seu trabalho, e deverá ser preciosamente conservada em a nova história da civilização, da qual o referido quadro é evidentemente a conclusão natural. O que se podia, com razão, increpar a Condorcet era, não ter querido determinar o futuro, mas tê-la determinado mal. Isto resultou de ser absolutamente vicioso seu estudo do passado, de acordo com o.s motivos precedentemente indicados. Tendo Condorcet coordenado mal o passado, dele não resultava o futuro. Esta insuficiência da observação o reduziu a compor o futuro essencialmente de conformidade com a sua imaginação, e, por uma consequência necessária, a concebê-la mal. Mas este insucesso, cuja causa é sensível, não prova que, com o auxílio de um passado bem coordenado, não se possa, de fato, determinar com segurança o aspecto geral do futuro social. Esta ideia só parece estranha, porque ainda não se tem o hábito de considerar a política como verdadeira ciência. Realmente, se fosse como tal considerada, a determinação do futuro, pela observação filosófica do passado, pareceria, pelo contrário, ideia muito natural, com a qual todos os homens estão familiarizados relativamente às outras classes de fenômenos. Toda ciência tem por finalidade a previsão, porquanto o uso geral das leis estabelecidas, de acordo com a observação dos fenômenos, é prever-lhes a sucessão. Realmente, todos os homens, por menos adiantados que se suponham, fazem verdadeiras predições, sempre fundadas sobre o mesmo princípio: o conhecimento do futuro pelo do passado. Todos predizem, por exemplo, os efeitos gerais da gravidade terrestre, e uma série de outros fenômenos bastante simples e frequentes para que sua ordem de sucessão se torne sensível ao espectador menos capaz e menos atento. A faculdade de previsão, em cada indivíduo, tem por medida sua ciência. A previsão do astrônomo, que prediz, com perfeita precisão, o estado do sistema solar com grande número de anos de antecedência, é absolutamente da mesma natureza que a do selvagem que prediz o próximo nascer do sol. Só há diferença na extensão de seus conhecimentos. É, portanto, evidentemente muito conforme a natureza do espírito humano que, em política, a observação do passado possa desvendar o futuro, como se dá em astronomia, física, química e fisiologia. Tal determinação deve mesmo ser considerada como alvo direto da ciência política, a exemplo das outras ciências positivas. De fato, é claro que a indicação do sistema social a que a marcha da civilização conduz hoje o escol da espécie humana, e que constitui o verdadeiro objetivo prático da política positiva, não é outra coisa senão uma determinação geral do próximo futuro da sociedade tal como resulta do passado. Em resumo, Condorcet foi o primeiro a conceber a verdadeira natureza do trabalho geral, que deve elevar a política à categoria das ciências de observação; mas o executou de maneira absolutamente viciosa, sob os aspectos mais essenciais. A finalidade a que se propôs não foi atingida, em primeiro lugar, quanto à teoria, e, por consequência, quanto à prática também. Este trabalho, portanto, deve ser concebido de novo, em sua totalidade, de acordo com vistas verdadeiramente filosóficas, considerando-se a tentativa de Condorcet apenas como tendo assinalado o objetivo real da política científica. A fim de completar o exame sumário dos esforços feitos até aqui para elevar a política à categoria das ciências positivas, resta considerar duas outras tentativas, que não estão, como as duas precedentes, na verdadeira linha dos progressos do espírito humano em política; mas apresentam utilidade em ser assinaladas. A necessidade de tornar positiva a ciência social é tão real hoje, chegou este grande cometimento de tal modo à sua maturidade, que vários espíritos superiores ensaiaram atingir essa meta, tratando a política como uma aplicação de outras ciências já positivas, no domínio das quais julgaram poder fazê-la entrar. Como essas tentativas eram, por sua natureza, inexequíveis, foram muito mais projetadas do que seguidas. Bastará, por conseguinte, considerá-las do ponto de vista mais geral. A primeira consistiu nos esforços feitos para aplicar à ciência social a análise matemática em geral, e, especialmente, a parte que se relaciona com o cálculo das probabilidades. Esta direção foi encetada por Condorcet (Semelhante projeto, da parte de Condorcet, prova, segundo o exame precedente, que estava muito longe de ter concebido, de modo nítido, a importância capital da história da civilização, pois, se tivesse percebido claramente, na observação filosófica do passado, o meio de tornar positiva a ciência social, não o teria procurado alhures), e principalmente por ele seguida. Outros geômetras acompanharam suas pegadas e participaram de suas esperanças, sem nada acrescentarem de verdadeiramente essencial a seus trabalhos, pelo menos sob o aspecto filosófico. Todos concordaram em considerar esta maneira de proceder como a única que pudesse imprimir à política um caráter positivo. As considerações expostas neste capítulo parecem-me estabelecer suficientemente que tal condição não é, de modo algum, necessária para que a política se torne uma ciência positiva. Ainda mais: essa maneira de considerar a ciência social é puramente quimérica e, por consequência, completamente viciosa, como é fácil reconhecê-lo. Se se tratasse aqui de fazer um exame minucioso dos trabalhos deste gênero executados até hoje, logo se verificaria que não acrescentaram, em realidade, nenhuma noção de alguma importância ao conjunto das ideias adquiridas. Ver-se-ia, por exemplo, que os esforços dos geômetras para elevar o cálculo das probabilidades acima de suas aplicações naturais, não chegaram senão a apresentar, relativamente à teoria da certeza, como termo de longo e penoso trabalho algébrico, algumas proposições quase triviais, cuja justeza é percebida à primeira vista, com perfeita evidência, por qualquer homem de bom-senso. Mas devemos limitar-nos a examinar a tentativa em si e em sua maior generalidade. Em primeiro lugar, as considerações pelas quais vários fisiologistas, e, sobretudo, Bichat, mostraram, em geral, a radical impossibilidade de fazer qualquer aplicação real e importante da análise matemática aos fenômenos dos corpos organizados, aplicam-se, de maneira direta e especial, aos fenômenos morais e políticos, que são apenas um caso particular dos primeiros. Estas considerações estão fundadas em que a mais indispensável condição preliminar, a fim de que os fenômenos sejam suscetíveis de se reduzirem a leis matemáticas, é que seus graus de quantidade sejam fixos. Ora, em todos os fenômenos fisiológicos, cada efeito, parcial ou total, está sujeito a imensas variações de quantidade, que se sucedem com a maior rapidez, e de modo completamente irregular, sob a influência de uma série d.e causas diversas que não comportam qualquer avaliação precisa. Esta extrema variabilidade é um dos grandes característicos dos fenômenos próprios aos corpos organizados; constitui uma de suas diferenças mais acentuadas em face dos fenômenos dos corpos brutos. Ela evidentemente interdiz qualquer esperança de jamais submetê-las a verdadeiros cálculos, tais, por exemplo, como os dos fenômenos astronômicos, que são, de todos, os mais apropriados para servir de tipo nas comparações deste gênero. Isto posto, concebe-se facilmente que essa variabilidade perpétua de efeitos, dependendo da excessiva complicação das causas que concorrem para produzi-las, deve ser a maior possível nos fenômenos morais e políticos da espécie humana, os quais constituem a classe mais complicada dos fenômenos fisiológicos. São, de fato, de todos os fenômenos, aqueles cujos graus de quantidade apresentam as variações mais extensas, mais multiplicadas e mais irregulares. Se se pesarem convenientemente estas considerações, creio não se hesitará em afirmar, sem temer formar ideia muito fraca do alcance do espírito humano, que, não só no estado atual de nossos conhecimentos, mas no mais alto grau de perfeição que possam atingir, toda grande aplicação do cálculo à ciência social é e será necessariamente impossível. Em segundo lugar, admitida a hipótese de poder realizar-se essa esperança, continuaria incontestável que, para chegar até esse ponto, a ciência política deve primeiro ser estudada de maneira direta, isto é, ocupando-se unicamente em coordenar a série dos fenômenos políticos. De fato, por mais alta que seja a importância da análise matemática, considerada em suas verdadeiras aplicações, cumpre não perder de vista que é uma ciência puramente instrumental ou de método. Em si mesma, nada ensina de real; só se torna fecunda fonte de descobertas positivas quando aplicada aos fenômenos observados. Na esfera dos fenômenos que comportam essa aplicação, ela nunca poderia ocorrer imediatamente, supondo sempre, na ciência correspondente, um grau preliminar de cultura e aperfeiçoamento, cujo termo natural é o conhecimento das leis precisas, descobertas pela observação, relativamente à quantidade dos fenômenos. Logo que tais leis são descobertas, por mais imperfeitas que sejam, a análise matemática torna-se aplicável. Desde então, pelos poderosos meios de dedução que apresenta, permite reduzir essas leis a um número mui pequeno, muitas vezes a uma só, fazendo entrar nelas, da maneira mais precisa, uma série de fenômenos que, a princípio, pareciam não poder conter. Numa palavra, a matemática estabelece, na ciência, uma coordenação perfeita, que não poderia ser obtida, no mesmo grau, por qualquer outra via. Mas é evidente que qualquer aplicação da análise matemática, tentada antes de haver sido preenchida esta condição preliminar da descoberta de certas leis calculáveis, seria absolutamente ilusória: ao invés de tornar positivo qualquer ramo de nossos conhecimentos, terminaria simplesmente por mergulhar de novo o estudo da natureza no domínio da metafísica, transportando para as abstrações o papel exclusivo das observações, Assim, por exemplo, concebe-se tenha a análise matemática sido aplicada, com grande êxito, à astronomia, quer geométrica, quer mecânica, à ótica, à acústica, e, muito recentemente, à teoria do calor, pois os progressos da observação levaram essas diversas partes da física a estabelecer, entre os fenômenos, algumas leis precisas de quantidade. Antes dessas descobertas, no entanto, tal aplicação não teria tido nenhuma base real, nenhum ponto de partida positivo. Assim também os químicos que acreditam mais firmemente, hoje, na possibilidade de aplicar, algum dia, de maneira ampla e ao mesmo tempo positiva, a análise matemática aos fenômenos químicos, não cessam, por isto, de estudá-los diretamente, convencidos de que só longa série de pesquisas, observações e experiências poderá desvendar as leis numéricas sobre as quais deve ser fundada essa aplicação para ter realidade. A condição indispensável, que acaba de ser indicada, é tanto mais difícil de preencher, exige um grau prévio de cultura e aperfeiçoamento tanto maior, na ciência correspondente, quanto mais complicados forem seus fenômenos, Foi assim que a astronomia se tornou, pelo menos na parte geométrica, um ramo das matemáticas aplicadas, antes da ótica, esta antes da acústica, e a teoria do calor em último lugar. Por esta mesma razão, a química está, ainda hoje, muito longe deste estado, se é que algum dia deve alcançá-la. Julgando, de acordo com estes princípios incontestáveis, a aplicação do cálculo aos fenômenos fisiológicos em geral, e, em particular, aos fenômenos sociais da espécie humana, vê-se logo que, admitindo mesmo a possibilidade de tal aplicação, ela não dispensaria, de modo algum, o estudo direto dos fenômenos, prescrevendo-o, pelo contrário, como condição prévia. Além disto, se se considerar atentamente a natureza desta condição, reconhecer-se-á que exige, na física dos corpos organizados, em geral, e sobretudo na física social, um grau de aperfeiçoamento que, quando mesmo não fosse quimérico, evidentemente só poderia ser atingido depois de séculos de cultura. A descoberta de leis precisas e calculáveis, em fisiologia, representaria um grau de adiantamento muito superior ao que imaginam os próprios fisiologistas capazes de conceber as esperanças mais ousadas nos destinos futuros desta ciência. Realmente, pelos motivos acima indicados, esse estado de perfeição deve ser tido como absolutamente quimérico, incompatível com a natureza dos fenômenos, e inteiramente desproporcionado com o verdadeiro alcance do espírito humano. As mesmas razões se aplicam, evidentemente, e com mais força ainda, à ciência política, dado o maior grau de complicação de seus fenômenos. Imaginar que seria possível um dia descobrir algumas leis de quantidade entre os fenômenos desta ciência, seria supô-la aperfeiçoada de tal modo que, mesmo antes de ter chegado a este ponto, tudo quanto houvesse de verdadeiramente interessante a descobrir estaria completamente obtido, numa proporção que excede de muito todos os desejos que razoavelmente podemos formar. A análise matemática, portanto, não se tornaria aplicável senão na época em que sua aplicação não poderia ter mais qualquer importância real. Resulta das considerações precedentes que, de um lado, a natureza dos fenômenos políticos veda absolutamente qualquer esperança de jamais se lhes aplicar a análise matemática, e de outro, que essa aplicação, supondo-a possível, de modo algum poderia servir para elevar a política ao estado das ciências positivas, pois exigiria, a fim de ser aplicável, já estivesse a ciência criada. Os geômetras não prestaram bastante atenção, até o presente, à grande divisão fundamental de nossos conhecimentos positivos em estudo dos corpos brutos e estudo dos corpos organizados. Esta divisão, que o espírito humano deve aos fisiologistas, está hoje estabelecida sobre bases inabaláveis, e se confirma cada vez mais, à medida que é mais meditada. Limita, de maneira precisa e irrevogável, as verdadeiras aplicações das matemáticas, em sua maior extensão possível. Pode estabelecer-se, como princípio, que a análise matemática nunca ampliará seu domínio além da física dos corpos brutos, cujos fenômenos são os únicos a oferecerem o grau de simplicidade, e, por consequência, de fixidez necessário para serem reduzidos a leis numéricas. Se considerarmos quanto à marcha da análise matemática se torna embaraçosa, mesmo nas aplicações mais simples, quando se quer aproximar suficientemente o estado abstrato do estado concreto; quanto este embaraço aumenta à medida que os fenômenos se complicam, compreender-se-á que a esfera de suas atribuições reais é, antes, muito mais exagerada do que diminuída pelo princípio precedente. O projeto de tratar a ciência social como uma aplicação das matemáticas, a fim de torná-la positiva, originou-se do preconceito metafísico segundo o qual, fora das matemáticas, não pode existir verdadeira certeza. Este preconceito era natural na época em que tudo o que era positivo se achava no domínio das matemáticas aplicadas, e em que, por conseguinte, tudo quanto elas não abrangiam era vago e conjetural. Mas, desde a formação de duas grandes ciências positivas, a química, e, sobretudo, a fisiologia, nas quais a análise matemática não desempenha papel algum, e, nem por isto, deixam de ser reconhecidas como sendo tão certas quanto às outras, tal preconceito seria absolutamente indesculpável. Não é como sendo aplicações da análise matemática que a astronomia, a ótica, etc., são ciências positivas e certas. Este caráter lhes advém de si mesmas; resulta de serem fundadas em fatos observados, e não podia resultar senão disto, porque a análise matemática, isolada da observação da natureza, só tem caráter metafísico. É certo, unicamente, que, nas ciências às quais as matemáticas não são aplicáveis, deve ter-se muito mais em vista a observação direta; as deduções não podem ser tão prolongadas com segurança, porque os meios de raciocínio são muito menos perfeitos. A não ser isto, a certeza é, igualmente, completa, desde que não sejam excedidos os limites convenientes. Obtém-se, sem dúvida, menos coordenação, mas suficiente, todavia, para as necessidades reais das aplicações da ciência. A pesquisa quimérica de uma perfeição impossível não teria outro resultado senão o de retardar, necessariamente, os progressos do espírito humano, consumindo, em pura perda, grandes forças intelectuais, e desviando os esforços dos cientistas de sua verdadeira direção de eficácia positiva. Tal o julgamento definitivo que acredito poder fazer dos ensaios realizados e a realizar a fim de aplicar a análise matemática à física social. Uma segunda tentativa, infinitamente menos viciosa em sua natureza do que a precedente, mas igualmente impraticável, é a que teve por objeto tornar positiva a ciência social, levando-a a ser essencialmente simples consequência direta da fisiologia. Cabanis é o autor desta concepção, que foi principalmente seguida por ele. Constitui o verdadeiro objetivo filosófico de seu célebre trabalho sobre as Relações do físico e do moral do homem, aos olhos de todos quantos hajam considerado a doutrina geral exposta no aludido trabalho como orgânica, e não puramente crítica. As considerações apresentadas, neste capítulo, sobre o espírito da política positiva, provam, no presente ensaio como no precedente, que esse espírito era necessariamente mal concebido. Trata-se, porém, agora de indicar, com precisão, o vício respectivo. Este consiste em que tal maneira de proceder anula a observação direta do passado social, que deve servir de base fundamental à política positiva. A superioridade do homem sobre os outros animais não podendo ter e não tendo, realmente, outra causa senão a perfeição relativa de sua organização, tudo o que tem feito a espécie humana e tudo quanto pode fazer deve, sem dúvida, ser considerado, em última análise, como consequência necessária de sua organização, modificada, em seus efeitos, pelas circunstâncias exteriores. Neste sentido, a física social, isto e, o estudo do desenvolvimento coletivo da espécie humana, é realmente um ramo da fisiologia, vale dizer, do estudo do homem, concebido em toda a sua extensão. Em outros termos, a história da civilização não é nada mais do que a continuação e o complemento indispensável da história natural do homem. Mas, tanto importa bem conceber e jamais perder de vista esta incontestável filiação, quanto seria mal-entendido concluir daí não ser necessário estabelecer divisão acentuada entre a física social e a fisiologia propriamente dita. Quando os fisiologistas estudam a história natural de uma espécie animal dotada de sociabilidade, a dos castores, por exemplo, com razão compreendem nela a história da ação coletiva exercida pela comunidade. Não julgam necessário estabelecer uma linha de demarcação entre o estudo dos fenômenos sociais da espécie e o dos fenômenos relativos ao indivíduo isolado. Essa falta de precisão não apresenta, no caso, nenhum inconveniente real, embora as duas ordens de fenômenos sejam distintas. Porque sendo a civilização das espécies sociais mais inteligentes interrompida quase em sua origem, principalmente pela imperfeição de sua organização, e, secundariamente, pela preponderância da espécie humana, o espírito não experimenta nenhuma dificuldade, num encadeamento tão pouco prolongado, a fim de ligar diretamente todos os fenômenos coletivos aos fenômenos individuais. Assim, o motivo geral que faz estabelecer as divisões, a fim de facilitar o estudo, isto é, a impossibilidade, para a inteligência humana, de seguir uma cadeia de deduções demasiado extensa, não existe então. Suponha-se, pelo contrário, que a espécie dos castores venha a ser mais inteligente, que sua civilização possa desenvolver-se livremente, de tal sorte que haja encadeamento contínuo do progresso de uma geração para outra, e logo se sentirá a necessidade de tratar separadamente a história dos fenômenos sociais da espécie. Poder-se-á ainda, para as primeiras gerações, ligar este estudo ao dos fenômenos do indivíduo. Mas, quanto mais longe da origem mais difícil se tornará estabelecer essa dedução, e haverá, por fim, impossibilidade total de segui-la. É precisamente o que ocorre no mais alto grau, em relação ao homem. Sem dúvida, os fenômenos coletivos da espécie humana têm como causa derradeira, tal qual os seus fenômenos individuais, a natureza especial de sua organização. Mas o estado da civilização humana, em cada geração, só depende imediatamente do estado da geração precedente, e só produz imediatamente o da seguinte. E possível acompanhar, com toda a precisão suficiente, este encadeamento, a partir da origem, ligando, de maneira direta, cada termo ao precedente e ao seguinte. Estaria, ao contrário, absolutamente acima das forças de nosso espírito ligar um termo qualquer da série ao ponto de partida primitivo, suprimindo todas as relações intermediárias. A temeridade de tal tentativa, no estudo da espécie, poderia ser comparada, no estudo do indivíduo, à de um fisiologista que, considerando serem os diversos fenômenos das idades sucessivas unicamente a consequência e o desenvolvimento necessário da organização primitiva, se esforçasse por deduzir a história de uma época qualquer da vida, do estado do indivíduo, em seu nascimento, determinado com grande precisão, e se julgasse, por isto, dispensado de examinar diretamente as diversas idades a fim de conhecer, com exatidão, o desenvolvimento total. O erro é mesmo muito maior, relativamente à espécie, do que o seria em relação ao indivíduo, tendo-se em vista que, no primeiro caso, os termos sucessivos a coordenar são ao mesmo tempo mais complicados e bem mais numerosos do que no segundo. Se nos obstinássemos a seguir esta marcha impraticável, além de não podermos, de modo algum, estudar a história da civilização de maneira conveniente, seríamos inevitavelmente levados a cair em erros capitais. Com efeito, na impossibilidade absoluta de religar diretamente os diversos estados de civilização ao ponto de partida primitivo e geral, estabelecido pela natureza especial do homem, seríamos logo compelidos a fazer depender imediatamente de circunstâncias orgânicas secundárias o que é uma consequência remota das leis fundamentais da organização. Foi assim, por exemplo, que vários fisiologistas de valor foram levados a atribuir, aos caracteres nacionais, importância evidentemente exagerada na explicação dos fenômenos políticos. Atribuíram-lhes diferenças de povo a povo, que só dependem, em quase todos os casos, de épocas desiguais de civilização. Disto resultou o desastroso efeito de considerar invariável o que é certamente apenas momentâneo. Tais desvios, de que seria fácil multiplicar os exemplos, derivando todos do mesmo vício primitivo na maneira de proceder, confirmam claramente a necessidade de separar o estudo dos fenômenos sociais do dos fenômenos fisiológicos comuns. Os geômetras, que se têm elevado a ideias filosóficas, concebem, em tese geral, todos os fenômenos do universo, tanto os dos corpos organizados como os dos corpos brutos, como dependendo de pequeno número de leis comuns imutáveis. Os fisiologistas observam a este respeito, com justa razão, que, mesmo quando, algum dia, todas essas leis venham a ser conhecidas perfeitamente, a impossibilidade de deduzir, de maneira contínua, obrigaria a conservar, entre o estudo dos corpos vivos e o dos corpos inertes, a mesma divisão que se acha hoje fundada sobre a diversidade das leis. Um motivo, exatamente semelhante, se aplica, diretamente, à divisão entre a fisiologia da espécie e a do indivíduo. A distância é, sem dúvida, muito menor, pois só se trata de uma divisão secundária, ao passo que a outra é principal. Mas há igualmente impossibilidade de deduzir, conquanto não seja no mesmo grau. A insuficiência total desta maneira de proceder verifica-se facilmente se, em lugar de considerá-la apenas em relação à teoria da política positiva, a considerássemos relativamente à finalidade prática atual desta ciência, a saber - a determinação do sistema segundo o qual deve a sociedade ser hoje reorganizada. Pode determinar-se, sem dúvida, segundo as leis fisiológicas, qual é, em geral, o estado de civilização mais conforme a natureza da espécie humana. Mas, de acordo com o que precede, é claro que não se poderia ir mais longe por esse meio. Ora, esta noção isolada é de pura especulação, e não pode chegar, na prática, a nenhum resultado real e positivo, porquanto não permite, de nenhum modo, conhecer, de maneira positiva, a que distância a espécie humana se encontra atualmente desse estado, nem a marcha que deve seguir para chegar até ele, nem, enfim, o plano geral da organização social correspondente. Estas determinações indispensáveis só podem evidentemente resultar de um estudo direto da história da civilização. Se, apesar disso, quisermos empregar esforços para dar existência prática a este apanhado especulativo e necessariamente incompleto, não conseguiremos evitar cair logo no absoluto, porque faremos consistir, então, toda aplicação real da ciência na formação de um tipo invariável de perfeição vaga, sem nenhuma distinção de épocas, à moda da política conjetural. As condições, segundo as quais a excelência desse tipo se encontra fixada, são certamente de ordem muito mais positiva do que as que servem de guias à política teológica e metafísica. Mas esta modificação não muda o caráter absoluto inerente a tal questão, em qualquer sentido que possa ser tratada. A política nunca poderia, portanto, tornar-se verdadeiramente positiva por este modo de proceder. Nestas circunstâncias, quer sob o aspecto teórico, quer sob o prático, é igualmente vicioso conceber a ciência social como simples consequência da fisiologia. A verdadeira relação direta entre o conhecimento da organização humana e a ciência política, tal como a caracterizou este capítulo, consiste em que a primeira deve fornecer a segunda seu ponto de partida, Cabe à fisiologia, exclusivamente, estabelecer, de maneira positiva, as causas que tornam a espécie humana suscetível de uma civilização constantemente progressiva, enquanto o estado do planeta por ela habitado não apresentar um obstáculo insuperável a esse progresso. Só ela pode traçar o verdadeiro caráter e a marcha geral necessária dessa civilização. Somente ela, enfim, permite esclarecer a formação das primeiras agregações de homens e conduzir a história da infância de nossa espécie até a época em que chegou a dar expansão à sua civilização, criando uma linguagem. É neste termo que finaliza naturalmente o papel das considerações fisiológicas diretas na física social; esta deve então fundamentar-se unicamente na observação imediata dos progressos da espécie humana. Mais adiante, a dificuldade de deduzir tornar-se-ia logo muito grande, porque, a partir dessa época, a marcha dá civilização adquire repentinamente muito maior rapidez, de modo que os termos a coordenar se multiplicam bruscamente. Por outro lado, as funções que a fisiologia deve preencher no estudo do passado social já não seriam mais necessárias; não teria mais a utilidade de suprir a falta de observações diretas, porque, a datar do estabelecimento de uma língua, existem dados imediatos sobre o desenvolvimento da civilização de sorte a não haver lacuna no conjunto das considerações positivas. Cumpre acrescentar ao que precede, para ter um esboço completo do verdadeiro papel da fisiologia na física social que, como bem pressentiu Condorcet, sendo o desenvolvimento da espécie apenas o resultante dos desenvolvimentos individuais que se encadeiam de uma geração a outra, deve apresentar, necessariamente, traços gerais de conformidade com a história natural do indivíduo. Por esta analogia, o estudo do homem isolado fornece ainda certos meios de verificação e raciocínio para o estudo da espécie, distintos dos que acabam de ser indicados, tendo, embora menos importantes, a vantagem de se estender a todas as épocas. Em resumo, conquanto a fisiologia da espécie e a do indivíduo sejam duas ciências absolutamente da mesma ordem, ou, antes, duas porções distintas de uma ciência única, nem por isto é menos indispensável concebê-las e tratá-las separadamente. É necessário que a primeira tome sua base e seu ponto de partida na segunda, a fim de tornar-se verdadeiramente positiva. Mas deve, em seguida, ser estudada de maneira isolada, apoiando-se na observação direta dos fenômenos sociais. Era natural que se procurasse fazer a física social entrar inteiramente no domínio da fisiologia, quando não se via outro meio de lhe imprimir caráter positivo. Mas este erro já não seria mais tolerável, quando é fácil compreender a possibilidade de tornar positiva a ciência política, baseando-a na observação imediata do passado social. Em segundo lugar, no momento em que o estudo das funções intelectuais e afetivas saiu do domínio da metafísica para entrar no da fisiologia, era muito difícil evitar qualquer exagero na delimitação da verdadeira esfera fisiológica, e não compreender também nela o exame dos fenômenos sociais. A época das conquistas não pode ser a dos limites precisos. Cabanis, que foi um dos principais cooperadores desta grande revolução, é particularmente desculpável por se ter iludido a tal respeito. Mas hoje, quando severa análise pode e deve suceder ao arrastamento do primeiro impulso, nada pode mais impedir que se desconheça a necessidade de uma separação indispensável exigida pela fraqueza do espírito humano. Nenhum motivo real poderá mais induzir a isolar dos outros, no estudo do indivíduo, os fenômenos especialmente chamados morais. A revolução que os ligou entre si, deve ser considerada como o passo mais essencial que a psicologia deu, até aqui, sob o ponto de vista fisiológico. Pelo contrário, considerações da maior importância demonstram a absoluta necessidade de separar o estudo dos fenômenos coletivos da espécie humana do estudo dos fenômenos individuais, estabelecendo, além disto, entre estas duas grandes seções da fisiologia total, sua relação natural. Tentar o desaparecimento desta indispensável separação, seria cair em erro análogo, embora inferior, ao que apresenta o estudo dos corpos vivos como uma consequência e um apêndice do estudo dos coro os inertes, erro tão justamente combatido pelos verdadeiros fisiologistas. Tais são as quatro tentativas principais, feitas até o presente, com o intuito de elevar a política à classe das ciências de observação, e cujo conjunto atesta, da maneira mais decisiva, a necessidade e a maturidade desta grande empresa. O exame especial de cada uma delas confirma, sob um ponto de vista distinto, os princípios anteriormente expostos neste capítulo sobre o verdadeiro meio de imprimir à política um caráter positivo, e, por conseguinte, de acentuar, com segurança, a concepção geral do novo sistema social, a única que pode terminar a crise atual da Europa civilizaria. Podemos, portanto, considerar como estabelecido, a priori e a posteriori, por demonstrações reais, que, para atingir esse alvo capital, cumpre ver, na ciência política, uma física particular, fundada na observação direta dos fenômenos relativos ao desenvolvimento coletivo da espécie humana, tendo, como objeto, a coordenação do passado social, e, como resultado, a determinação do sistema que a marcha da civilização tende hoje a produzir. Esta física social é, evidentemente, tão positiva como qualquer outra ciência de observação. Sua certeza intrínseca é também real. (É sem dúvida. supérfluo determo-nos em refutar as observações infinitamente exageradas que alguns autores, e principalmente Volney, apresentaram sobre a certeza dos fatos históricos. Quando mesmo se concedesse a essas objeções toda a amplitude que lhes deram esses escritores, não atingiriam, de modo algum, os fatos de certo grau de importância e generalidade, únicos a ser considerados no estudo da civilização). Satisfazendo as leis por ela descobertas ao conjunto dos fenômenos observados, sua aplicação merece inteira confiança. Esta ciência possui, além disto, como todas as outras, meios gerais de verificação, mesmo independentemente de sua relação necessária com a fisiologia. Tais meios se baseiam no fato segundo o qual, no estado presente da espécie humana, considerada em seu conjunto, todos os graus de civilização coexistem sobre os diversos pontos do globo, desde o dos selvagens da Nova Zelândia até o dos franceses e ingleses. Por conseguinte, o encadeamento estabelecido segundo a sucessão dos tempos pode ser verificado pela comparação dos lugares. À primeira vista esta nova ciência parece reduzida à simples observação, e completamente crivada no recurso nas experiências, o que não a impediria de ser positiva, como o prova a astronomia. Mas, em fisiologia, independentemente nas experiências sobre os animais, os casos patológicos são, em realidade, um equivalente das experiências diretas sobre o homem, porque alteram a ordem habitual dos fenômenos. Assim também, e por motivo semelhante, as épocas múltiplas em que as combinações políticas tenderam, mais ou menos, a deter o desenvolvimento da civilização, devem ser consideradas como fornecendo à física social verdadeiras experiências, ainda mais próprias do que a observação pura a fim de descobrir ou confirmar as leis naturais que presidem à marcha coletiva ela espécie humana. Se, como ouso esperar, as considerações apresentadas neste capítulo fizerem sentir aos sábios a importância e a possibilidade de estabelecer-se uma política positiva, nas condições acima indicadas, apresentarei, então, com maior desenvolvimento, minha opinião sobre a maneira de executar esta primeira série de trabalhos. Mas, ao terminar, julgo útil lembrar, antes de tudo, a necessidade de dividi-la em duas ordens: uma de trabalhos gerais, outra de trabalhos particulares. A primeira ordem deve ter por objeto estabelecer a marcha geral da espécie humana, fazendo-se abstração de quaisquer causas que possam modificar a velocidade de sua civilização, e, por conseguinte, de todas as diversidades observadas de povo a povo, por maiores que possam ser. Na segunda ordem, dever-se-á estimar a influência dessas causas modificadoras, e, consequentemente, formar-se o quadro definitivo onde cada povo ocupará o lugar especial correspondente a seu desenvolvimento próprio. Uma e outra classe de trabalhos, e principalmente a última, são, além disto, suscetíveis, em sua execução, de vários graus de generalidade, cuja necessidade será provavelmente reconhecida pelos cientistas. A obrigação de tratar da primeira, antes da segunda, fundamenta-se em um princípio evidente, tão aplicável à fisiologia da espécie como à do indivíduo, cujas idiossincrasias não devem ser estudadas senão após a instituição das leis gerais. Cumpriria renunciar absolutamente à pretensão de obter qualquer noção clara, se esta regra fosse violada. A possibilidade de proceder desta maneira resulta de existir hoje grande número de pontos particulares bem esclarecidos a fim de que possamos ocupar-nos diretamente de uma coordenação geral. Os fisiologistas não esperaram que todas as funções especiais fossem conhecidas a fim de formarem ideia do conjunto da organização. O mesmo deve dar-se na física social. Precisando mais as considerações precedentes, vê-se tenderem a estabelecer que, na formação da ciência política, é necessário proceder do geral para o particular. Ora, se se examinar este preceito de maneira direta, é fácil reconhecer-lhe a justeza. A marcha seguida pelo espírito humano na pesquisa das leis que regem os fenômenos naturais apresenta, sob o ponto de vista que nos ocupa, importante diferença, conforme estuda a física dos corpos brutos, ou a dos organizados. Na primeira, reconhecendo o homem que constitui parte imperceptível de uma série imensa de fenômenos, dos quais não lhe é dado esperar, sem louca presunção, perceber jamais o conjunto, vê-se obrigado, logo que começa a estudá-los com espírito positivo, a considerar primeiro os fatos mais particulares, a fim de elevar-se gradualmente, em seguida, à descoberta de algumas leis gerais, que se tornam mais tarde o ponto de partida de suas pesquisas. Na física dos corpos organizados, ao contrário, sendo o próprio homem o tipo mais completo do conjunto dos fenômenos, suas descobertas positivas começam necessariamente pelos fatos mais gerais, que lhe fornecem depois uma luz indispensável para esclarecer o estudo de um gênero de particularidades, cujo conhecimento preciso, por sua natureza, lhe é para sempre interdito. Em uma palavra, em ambos os casos, o espírito humano procede do conhecido para o desconhecido; mas, no primeiro, eleva-se a princípio do particular para o geral, porque o conhecimento das particularidades lhe é mais imediato do que o do conjunto, enquanto, no segundo, começa a descer do geral ao particular, porque conhece mais diretamente o todo do que as partes. O aperfeiçoamento de cada uma das duas ciências consiste essencialmente, sob o aspecto filosófico, em permitir-lhe adotar o método da outra, sem que este, no entanto, se torne jamais tão apropriado como o seu método primitivo. Depois de ter considerado esta lei do ponto de vista mais elevado da filosofia positiva, pode-se verificá-la facilmente observando a marcha que tem seguido, até hoje, o desenvolvimento das ciências naturais, desde o momento em que cada uma delas cessou, de modo definitivo, de ter caráter teológico ou metafísico. Com efeito, examinando esse desenvolvimento, no estudo dos corpos brutos, primeiro quanto às suas divisões principais, vê-se que a astronomia, a física e a química começaram por ser absolutamente isoladas umas das outras, aproximando-se, em seguida, sob pontos de vista cada vez mais numerosos, de tal modo que, enfim, se pode perceber nelas, atualmente, uma tendência manifesta a fim de não formarem mais do que um só corpo de doutrina. Assim também, considerando-as separadamente vemos cada uma nascer do estudo de fatos a princípio incoerentes, e chegar, por graus, às generalidades atualmente conhecidas. Somente na astronomia, e em algumas secções da física terrestre, o espírito humano conseguiu seguir até aqui, sob pontos de vista fundamentais, a marcha oposta. Na astronomia, pode mesmo dizer-se não haver sido a marcha primitiva alterada pela lei da gravitação universal, a não ser sob um aspecto realmente secundário, quanto ao conjunto dos fenômenos, embora principal no que nos diz respeito. Com efeito, esta lei não abrange ainda, e provavelmente jamais abrangerá, em suas aplicações, os fatos astronômicos mais gerais, que consistem nas relações dos diferentes sistemas solares, de que não temos até agora qualquer conhecimento. Esta observação, referindo-se ao ramo mais perfeito da física inorgânica, oferece notável verificação do princípio que exponho. Se se examinar agora a parte deste princípio, que se relaciona com o estudo dos corpos vivos, sua confirmação é também evidente. Em primeiro lugar, o encadeamento geral das funções, de que se compõe uma organização, é certamente mais conhecido hoje do que a ação parcial de cada órgão; e, assim também, sob um ponto de vista mais extenso, o estudo das relações gerais, que existem entre as diversas organizações, quer animais, quer vegetais, está, sem dúvida, mais adiantado do que o de cada organização particular. Em segundo lugar, os principais ramos de que se compõe hoje a física orgânica foram a princípio confundidos, e só em virtude dos progressos da fisiologia positiva foram analisados, com precisão, os diferentes pontos de vista gerais sob os quais um como vivo pode ser considerado, de modo a se fundar sobre essas distinções uma divisão racional da ciência. Isto é mesmo de tal modo exato que, tendo-se em conta a época recente em que a física dos corpos organizados se tornou verdadeiramente positiva, a distribuição de suas partes principais não está ainda estabelecida de maneira perfeitamente clara. O fato é mais sensível ainda, passando-se das ciências aos cientistas, porquanto estes estão evidentemente menos especializados, em seus trabalhos, do que os cientistas afeitos ao estudo dos corpos brutos. Podemos, portanto, considerar como estabelecido, pela observação e pelo raciocínio, que o espírito humano procede principalmente do particular para o geral, na física inorgânica, e, pelo contrário, do geral para o particular na física orgânica. Pelo menos, é incontestavelmente seguindo esta marcha que se efetuam, durante muito tempo, os progressos da ciência, desde o momento em que adquire o caráter positivo. Se a segunda parte desta lei foi desconhecida até agora, se se julgou que, em qualquer ordem de pesquisas, o espírito humano procedia sempre e necessariamente do particular para o geral, este erro se explica de maneira muito natural, considerando que, tendo-se desenvolvido primeiro a física dos corpos brutos, é sobre a observação da marcha que lhe é própria que tiveram de ser primitivamente fundados os preceitos da filosofia positiva. Mas, a persistência de tal erro deixaria hoje de ser desculpável, quando a observação filosófica se pode fazer sobre as duas ordens de ciências naturais. Aplicando à física social, que não é mais do que um ramo da fisiologia, o princípio que acabo de estabelecer, ele demonstra, evidentemente, a necessidade de começar, no estudo do desenvolvimento da espécie humana, pela coordenação dos fatos mais gerais, para descer depois, gradualmente, a um encadeamento cada vez mais preciso. Mas, a fim de não deixar nenhuma incerteza sobre este ponto essencial, convém verificar o princípio de maneira direta neste caso particular. Todos os trabalhos históricos escritos até hoje, mesmo os mais recomendáveis, não tiveram, em essência, e necessariamente não deveriam ter, senão o caráter de anais, isto é, de descrição e disposição cronológica de certa série de fatos particulares, mais ou menos importantes e mais ou menos exatos, mas sempre isolados entre si. Sem dúvida, as considerações relativas à coordenação e à filiação dos fenômenos políticos não foram neles inteiramente desprezadas, sobretudo a partir de meio século. É claro, entretanto, não haver esta mistura de pontos de vista modificado ainda o caráter desse gênero de composição, que não cessou de ser literário. (Só se trata aqui de estabelecer um fato, e não julgá-la. Estou, além disto, muito convencido da utilidade e mesmo da necessidade absoluta desta classe de escritos. como trabalho preliminar. Sem dúvida, não suporão que penso pudesse haver história sem anais. Mas é igualmente certo que anais não são a história, assim como coleções de observações meteorológicas não constituem a física). Não existe, até hoje, verdadeira história, concebida com espírito científico, isto é, tendo por fim a: pesquisa das leis que presidem ao desenvolvimento social da espécie humana, o que é precisamente o objeto da série de trabalhos considerada neste capítulo. A distinção precedente basta para explicar por que se julgou até agora quase universalmente, que, em história, era necessário proceder do particular para o geral, e por que, pelo contrário, se deve hoje proceder do geral para o particular, sob pena de não se obter qualquer resultado. Porque, quando se trata unicamente de redigir, com exatidão, anais gerais da espécie humana, cumpre, evidentemente, começar formando os anais dos diferentes povos, e estes somente podem ser fundados nas crônicas de províncias e de cidades, ou mesmo sobre simples biografias. De igual modo, mas sob outro aspecto, para formar os anais completos de qualquer fração de população, é indispensável reunir uma série de documentos separados, relativos a cada um dos pontos de vista sob os quais ela deve ser considerada. É assim que se deve necessariamente proceder para chegar a compor os fatos gerais, que são os materiais da ciência política, ou antes, o objeto sobre o qual se dirigem suas combinações. Marcha inteiramente oposta, porém, se torna indispensável, logo que se chega à formação direta da ciência, isto é, ao estudo do encadeamento dos fenômenos. De fato, por sua própria natureza, todas as classes de fenômenos sociais se desenvolvem simultaneamente, e sob a influência uns dos outros, de tal sorte que é absolutamente impossível explicar-se a marcha seguida por qualquer deles sem ter previamente concebido, de maneira geral, a progressão do conjunto. Todos reconhecem hoje, por exemplo, ser a ação recíproca dos diversos Estados europeus demasiadamente importante para que suas histórias possam ser verdadeiramente separadas. Mas a mesma impossibilidade não é menos clara em relação às diversas ordens de fatos políticos, que se observam em uma sociedade única. Os progressos de uma ciência ou de uma arte não estão em conexão evidente com os progressos das outras ciências ou das outras artes? O aperfeiçoamento do estudo da natureza, e o da ação sobre ela, não se prendem um ao outro? Ambos não estão estreitamente ligados ao estado da organização social e reciprocamente? Para conhecer, portanto, com precisão, as leis reais do desenvolvimento particular do ramo mais simples do corpo social, cumpriria necessariamente obter, ao mesmo tempo, idêntica precisão para todos os outros, o que é manifesto absurdo. Deve-se, por conseguinte, procurar, ao contrário, primeiramente conceber, em sua maior generalidade, o fenômeno do desenvolvimento da espécie humana, isto é, observar e encadear entre si os progressos mais importantes que ela tem feito sucessivamente nas principais direções diferentes. Procurar-se-á, em seguida, dar gradativamente a este quadro uma precisão cada vez maior, subdividindo sempre mais e mais os intervalos de observação e as classes dos fenômenos a observar. De igual modo, sob o ponto de vista prático, o aspecto do futuro social, determinado primeiro de maneira geral, como resultado de um primeiro estudo do passado, tornar-se-á cada vez mais pormenorizado à medida que o conhecimento da marcha anterior da espécie humana mais se desenvolver. A última perfeição da ciência que, verossimilmente, nunca será atingida de maneira completa, consistiria, sob o aspecto teórico, em fazer conceber com exatidão, desde a origem, a filiação dos progressos de uma geração a outra, quer para o conjunto do corpo social, quer para cada ciência, cada arte, e cada setor da organização política; e, sob o aspecto prático, em determinar rigorosamente, em todas as suas particularidades essenciais, o sistema que a marcha natural da civilização deve tornar dominante. Tal é o método estritamente ditado pela natureza da física social. QUARTO OPÚSCULO (Novembro de 1825) CONSIDERAÇÕES FILOSÓFICAS SOBRE AS CIÊNCIAS E OS CIENTISTAS Estudando-se, em seu conjunto, o fenômeno do desenvolvimento do espírito humano, quer peio método racional, quer pelo empírico, descobre-se, através de todas as irregularidades aparentes, uma lei fundamental a que se acha necessária e invariavelmente sujeita a sua marcha. Esta lei consiste em que o sistema intelectual do homem, considerado em todas as suas partes, tomou sucessivamente três caracteres distintos: o teológico, o metafísico e, finalmente, o positivo ou físico. Assim, o homem começou por conceber os fenômenos de todos os gêneros como devidos à influência direta e contínua de agentes sobrenaturais; considerou-os, em seguida, como produzidos por diversas forças abstratas inerentes aos corpos, mas distintas e heterogêneas; limitou-se, por fim, a considerá-los como sujeitos a certo número de leis naturais invariáveis, que nada mais são do que a expressão geral das relações observadas em seu desenvolvimento. Todos os que conhecem bastante o estado do espírito humano, nas diversas épocas da civilização, podem verificar facilmente a exatidão desse fato geral. Uma observação muito simples pode confirmá-lo, agora que a revolução de nossas ideias está quase totalmente terminada. A educação do indivíduo, enquanto espontânea, apresenta necessariamente as mesmas fases principais que a da espécie, e reciprocamente. Ora, hoje, quem quer que esteja ao nível de seu século, verificará com facilidade em si mesmo que foi teológico em sua infância, metafísico em sua mocidade, e físico em sua virilidade. A história das ciências prova diretamente que o mesmo se deu com o conjunto do gênero humano, Mas, além disto, é possível explicar por que a formação das ideias humanas teve de necessariamente seguir tal marcha. Para compreendê-la, de maneira clara e completa, cumpre considerar essa lei, como todos os outros fatos sociais, sob um duplo ponto de vista: o aspecto físico da necessidade, vale dizer, como decorrente das leis naturais da organização humana, e o aspecto moral de sua indispensabilidade, isto é, como sendo o único modo adequado ao desenvolvimento do espírito humano. Sob o primeiro aspecto, a lei é fácil de conceber. Uma inclinação natural e irresistível leva o gênero humano a ser teologista antes de tornar-se físico. A ação pessoal do homem sobre os outros seres é a única por ele compreendida, pelo sentimento que dela possui. É, portanto, levado a representar, de maneira análoga, a reação sobre de exercida pelos corpos exteriores, bem como a que exercem reciprocamente, e da qual de modo direto só consegue ver os resultados. É assim, pelo menos, que deve concebê-los, enquanto os progressos da observação ainda não fizeram reconhecer diferenças muito notáveis entre a marcha de tais fenômenos e a dos seus. Se, mais tarde, modifica suas concepções a esse respeito, será unicamente porque, desenganado, pela experiência e reflexão, de suas ilusões primitivas, renuncia completamente a penetrar no mistério do modo de produção dos fenômenos, dos quais sua própria natureza lhe impede ter jamais qualquer conhecimento, limitando-se a observar-lhes as leis efetivas. Porque, se ainda hoje, com todas as noções positivas adquiridas, quiséssemos tentar conceber, para o mais simples fenômeno, através de que poder o fato que chamamos causa engendra o que chamamos efeito, seríamos inevitavelmente levados a realizar imagens semelhantes às que serviram de base às primeiras teorias humanas, como Barthez mui judiciosamente notou, ampliando uma ideia de Hume. O homem começa, portanto, necessariamente, por ver todos os corpos, que atraem sua atenção, como outros tantos seres vivos, com vida análoga à sua, mas, em geral, superior, em virtude da ação mais poderosa da maior parte deles. Em seguida, o desenvolvimento de suas observações o faz converter esta primeira hipótese em outra, menos durável, de uma natureza morta, dirigida por um número maior ou menor de agentes sobre-humanos, invisíveis, distintos e independentes uns dos outros, cujo caráter e autoridade correspondem à espécie e à extensão dos fenômenos atribuídos à sua influência. Esta teoria, que a princípio só se aplicava aos fenômenos dos corpos exteriores, estende-se mais tarde até os do homem e da sociedade, quando a contemplação se volta para eles. É então que começa a filosofia teológica a tomar verdadeira consistência e a influir poderosamente sobre os progressos do espírito humano. Mas o aperfeiçoamento inevitável e contínuo dos conhecimentos naturais não tarda a modificar tal sistema e acaba por destruí-lo. Propriamente falando, o homem nunca foi completamente teológico. Houve sempre alguns fenômenos, bastante simples e regulares, para que ele não os considerasse, mesmo no começo de seu evolver como sujeitos a leis naturais, conforme muito bem explicou Adam Smith. (Veja-se, em suas Obras Póstumas, o "Ensaio Filosófico sobre a História da Astronomia". Esta obra, muito pouco divulgada na Europa, e geralmente mal apreciada, possui caráter mais positivo do que as outras produções da filosofia escocesa, com exceção das de Hume. Muito notável para sua época, esta obra ainda hoje poderia ser meditada com grande proveito). Apenas, esses fenômenos não eram, a princípio, nem os mais numerosos, nem os mais importantes, e muito peio contrário. Quanto aos outros, pode-se dizer que o homem só recorreu às explicações teológicas durante o tempo em que as concepções físicas não eram possíveis, porque, logo que o foram, a elas se ateve exclusivamente. A primeira influência dos progressos da observação foi levar o espírito humano a reduzir continuamente o número dos agentes sobrenaturais, atribuindo a um só as funções que, a princípio, exigiam vários, à medida que as relações dos fenômenos adquiriram maior generalidade, Este efeito, levado a seu último grau, acabou por simplificar o sistema teológico a ponto de reduzi-lo à unidade. Desde essa época, a ação contínua do mesmo princípio, que havia primitivamente levado o espírito humano do fetichismo ao politeísmo, e, depois, do politeísmo ao teísmo, levou-o a restringir a intervenção direta da grande causa sobrenatural a limites cada vez mais estreitos, reservando-a sempre para a direção dos fenômenos cujas leis positivas eram desconhecidas. Quanto aos outros, permitindo a descoberta de suas leis prevê-los com maior precisão, e, por consequência, atuar sobre eles com mais eficácia do que as teorias teológicas especiais, o homem deixou, progressivamente, de empregá-las em suas especulações habituais, servindo-se sempre mais das leis, que satisfaziam melhor às suas grandes necessidades de previsão e ação. Enfim, quando as concepções naturais adquiriram amplitude e generalidade suficientes (isto é, em nossos dias), quando abraçaram, em alguns pontos principais, todas as ordens de pesquisas realmente acessíveis a nossos meios, o espírito humano, estendendo, por analogia, a todos os fenômenos, mesmo aos desconhecidos, o que só estava verificado para certo número, considerou-os todos como sujeitos a leis físicas invariáveis, cuja descoberta, cada vez mais precisa, é doravante o único alvo razoável de nossos trabalhos especulativos. Então, o método teológico, que até aí não havia cessado inteiramente de estar em uso, foi considerado como não podendo mais ser empregado em nossas pesquisas, e o método positivo começou a dirigir inteira e exclusivamente a atividade de nossa inteligência. Depois de ter concebido esta grande revolução como fato inevitável, cumpre explicar por que a marcha aludida foi indispensável ao desenvolvimento da razão humana. A filosofia positiva tem obtido, já agora, tal ascendente sobre os espíritos, que se custa a conceber, para qualquer época, a utilidade e, com mais fone razão, a necessidade da filosofia teológica e da metafísica, como meios de pesquisas. São quase universalmente consideradas, mormente a primeira, como aberrações do espírito humano, mesmo pelo pequeno número daqueles que concebem essas aberrações como inevitáveis. E necessário, portanto, retificar as ideias sobre este ponto essencial, sem cujo esclarecimento não se poderia compreender a lei da sucessão das três filosofias, a não ser de maneira muito imperfeita, que limitaria singularmente o alcance e o valor de suas aplicações. Importa, sem dúvida, verificar que, até os nossos dias, o espírito humano não se manteve em estado de demência, e empregou constantemente, em cada época, o método mais favorável a seus progressos, como abrangendo, pelo menos, o conjunto de sua marcha. E, sem dúvida, hoje incontestável que a observação dos fatos é a única base sólida dos conhecimentos humanos. Tomando este princípio em seu maior rigor, pode-se mesmo dizer que qualquer proposição não redutível ao simples enunciado de um fato, particular ou geral, não poderia apresentar qualquer sentido real e inteligível. Não é menos certo, porem, que o desenvolvimento da capacidade de imaginação deve preceder o da faculdade de observação, As mesmas causas que determinam esta ordem na educação individual, torna-na ainda mais indispensável na da espécie. O método positivo é o mais seguro em sua marcha, e mesmo o único seguro; mas e, ao mesmo tempo, o mais lento e, por esta razão, não era, de modo algum, conveniente à infância do espírito humano. Se esta desvantagem era evidente, mesmo quando nossa inteligência se achava desde muito em plena atividade, pode-se bem avaliar o que teria sido na época de nossos primeiros esforços. A simples possibilidade de tal método supõe previamente uma série de observações tanto mais longa quanto as primeiras leis naturais são sempre aquelas cuja descoberta exige mais tempo. Ora, por outro lado, o empirismo absoluto é impossível por mais que se tenha sustentado o contrario. O homem é incapaz, por natureza, não só de combinar fatos e deles deduzir algumas consequências, mas, simplesmente, até mesmo de observa-los com atenção e retê-los com segurança, se não os ligar logo a alguma explicação. Numa palavra, não pode haver observações seguidas sem uma teoria qualquer, assim como não haverá teoria positiva sem observações concatenadas. E, portanto, evidente que as faculdades humanas permaneceriam necessariamente em indefinido embotamento, se fosse necessário esperar, para raciocinar sobre os fenômenos, que a sua ligação e o seu modo de exploração ressaltassem de sua própria observação. Os primeiros progressos do espírito humano, portanto, somente poderiam ser produzidos pelo método teológico, o único cujo desenvolvimento pode ser espontâneo. Só ele tinha a importante propriedade de oferecer-nos, desde o começo, uma teoria provisória, vaga e arbitrária, em verdade, mas direta e fácil, que agrupou imediatamente os primeiros fatos, com cujo auxílio pudemos, cultivando nossa capacidade de observação, preparar a época de uma filosofia completamente positiva. Se fosse possível entrar aqui em algumas minúcias sobre este grande assunto, ver-se-ia claramente que não só a filosofia teológica, tomada em seu conjunto, foi indispensável para preparar o desenvolvimento ao método positivo, mas também que os diferentes aperfeiçoamentos por ela experimentados, e que foram, aliás, produzidos pelos progressos da observação, contribuíram poderosamente para acelerar estes últimos, graças a uma reação necessária. Para citar unicamente o fato mais notável deste gênero, é evidente que, sem a passagem do politeísmo ao teísmo, as teorias naturais jamais teriam podido adquirir verdadeira extensão. Esta admirável simplificação da filosofia teológica reduziu, em cada caso particular, a ação do grande poder sobrenatural a certa direção geral, cujo caráter era necessariamente vago. Por isto, o espírito humano ficou plenamente autorizado, e mesmo fortemente empenhado em estudar, como meio de ação desse poder, as leis físicas de cada fenômeno. Antes desta época, ao contrário, encontrando a inteligência, que tendia para as pesquisas positivas, a respeito de todos os fenômenos, mesmo os mais simples, explicações teológicas especiais e muito minuciosas, qualquer cientista era inevitavelmente considerado ímpio. A necessidade da marcha por nós examinada torna-se ainda mais clara se considerarmos que, enquanto a filosofia teológica era a única primitivamente possível, era também a única apropriada à natureza das pesquisas que deviam absorver, a princípio, o espírito humano. Foi apenas pela experiência fundada no próprio exercício de suas faculdades que o homem chegou a conhecer-lhes o verdadeiro alcance. Na origem encontramo-lo constantemente inclinado a exagerá-lo. Essa tendência é, nesse período, singularmente fortalecida pela ignorância das leis naturais, a qual o leva à esperança de exercer sobre o exterior uma ação por assim dizer arbitrária. Neste estado da inteligência, as pesquisas sobre a natureza íntima dos seres, a origem e o fim do universo e de todos os seus fenômenos, parecem as únicas dignas de ocupar fortemente o espírito humano. Na realidade, só elas podem interessá-lo. A princípio, estranhamos encontrar essa temeridade ligada a tão profunda ignorância; mas, refletindo a respeito, reconhecemos ser impossível conceber motivo algum bastante enérgico para levar a inteligência humana, em sua primeira fase, às pesquisas puramente teóricas, mantendo-as nessa direção sem o atrativo poderoso que lhe inspiram, principalmente então, essas grandes questões, nas quais se acham compreendidas todas as outras, mesmo sem as esperanças quiméricas a elas ligadas, de poder indefinido. Kepler sentiu verdadeiramente esta necessidade quanto à Astrologia em relação à Astronomia, e Bertholet fez a mesma observação quanto à Alquimia em relação à Química. Mas, qualquer que seja o valor desta explicação, basta este fato incontestável para claramente mostrar a que ponto a filosofia teológica é a única adaptada ao estado primitivo do espírito humano. E na verdade, o primeiro caráter da filosofia positiva é, a rigor, considerar como necessariamente insolúveis, para o homem, todas essas grandes questões. Obstando à nossa inteligência fazer qualquer indagação sobre as causas primárias e finais dos fenômenos, circunscreve o campo de seus trabalhos à descoberta de suas relações atuais. É, portanto, evidente que, mesmo quando a escolha fosse possível, no começo, entre os dois métodos, o espírito humano não teria hesitado em rejeitar com desdém aquele que, pela humildade de suas promessas, assim como pela lentidão de seus processos, corresponde tão mal à amplitude e à vivacidade de nossas primitivas necessidades intelectuais. As reflexões precedentes provam, portanto, que, considerando-se apenas as condições filosóficas do desenvolvimento do espírito humano, devia ele empregar, necessariamente, por longo tempo, o método teológico, antes de orientar-se pelo método positivo. Esta obrigação, porém, ainda se torna mais notável se se levarem também em conta as condições políticas, não menos indispensáveis do que as primeiras à educação intelectual da espécie humana. Só por abstração, aliás necessária, é que se pode estudar o desenvolvimento espiritual do homem, separadamente do seu desenvolvimento temporal, ou seja, o do espírito humano sem o da sociedade, porque esses dois desenvolvimentos, se bem que distintos, não são independentes; exercem, ao contrário, um sobre o outro, influência contínua, indispensável a ambos. Não basta sentir, de maneira geral, que a cultura de nossa inteligência só é possível na sociedade e pela sociedade; cumpre, além disto, reconhecer que a natureza e a extensão das relações sociais determinam, em cada época, o caráter e a rapidez de nossos progressos espirituais, e reciprocamente. Todos sabem hoje, por exemplo, ser impossível conceber no espírito humano algum progresso real e durável nesse estado da sociedade em que cada indivíduo é constantemente obrigado a prover por si mesmo sua subsistência, porquanto a separação entre a teoria e a prática, causa geral de nosso aperfeiçoamento, não poderia então existir em grau algum. Entre os povos pastores, porém, e mesmo entre os povos agricultores, cujo modo de existência faz, entretanto, desaparecer esse primeiro obstáculo, esta condição fundamental está muitas vezes bem longe de ser preenchida. Cumpre, além disto, que a organização social esteia bastante adiantada a fim de permitir o estabelecimento regular de uma classe de homens que, dispensados dos cuidados da produção material e dos da guerra, possam entregar-se, de maneira contínua, à contemplação da natureza. Numa palavra, sob este ponto de vista, como sob muitos outros não menos importantes, a formação dos conhecimentos humanos supõe, previamente, um estado social já muito complicado. Ora, por outro lado, nenhuma sociedade real e compacta pode formar-se e manter-se sem influência de um sistema de ideias, canaz de dominar a oposição das tendências individuais, tão pronunciadas a princípio, e de fazê-las concorrer para uma ordem constante. Esta função capital somente podia, portanto, ser desempenhada por uma teoria filosófica que fosse dispensada, por sua natureza, dessa lenta elaboração preliminar, necessária ao desenvolvimento dos conhecimentos reais, e que exige a duração prolongada de uma ordem política regular e completa. Tal é o admirável característico da filosofia teológica e exclusivo dela. É a ela que se deve, pela força das coisas, o estabelecimento primitivo de toda organização social. Sem a poderosa e feliz influência que só ela pode exercer sobre os espíritos na infância dos povos, não se conseguiria conceber qualquer classificação permanente, capaz de comportar e secundar, até certo ponto, o progresso das faculdades humanas. Sob o ponto de vista, que aqui nos ocupa, que outro ascendente, diverso do das doutrinas teológicas, teria podido, no meio de uma população de guerreiros e escravos, permitir e manter a existência de uma corporação unicamente consagrada aos trabalhos intelectuais, e, com mais forte razão, assegurar-lhe a preponderância, indispensável às suas primeiras operações, bem como à estabilidade social? Tendo-se em vista, por conseguinte, as condições, quer morais, quer políticas, do desenvolvimento do espírito humano, reconhece-se que devia necessariamente começar pela filosofia teológica, antes de chegar à filosofia positiva. Ê fácil verificar, com a mesma certeza, que ele só conseguiu passar de uma a outra empregando a filosofia metafísica. As concepções teológicas e as concepções positivas têm um caráter demasiadamente diverso, demasiadamente oposto mesmo, para que o nosso espírito, que só caminha por graus quase insensíveis, possa passar, sem intermediários, de umas às outras. Esses intermediários indispensáveis foram e deviam ser as concepções metafísicas que, dependendo simultaneamente da teologia e da física, antes, sendo apenas a primeira modificada pela segunda, são, por natureza, eminentemente próprias para essa operação, na qual consiste toda a sua utilidade. Apresentando-se diretamente na origem primeira de todos os fenômenos, ocupa-se a filosofia teológica essencialmente em descobrir-lhes as causas geradoras, enquanto a filosofia positiva, evitando qualquer pesquisa da causa, que proclama inacessível ao espírito humano, trata unicamente de descobrir a lei, isto é, as relações constantes de semelhança e de sucessão que os fatos têm entre si. Entre estes dois pontos de vista, interpõe-se naturalmente o ponto de vista metafísico, que considera cada fenômeno como produzido por uma força abstrata que lhe é própria. Este método é precioso pela facilidade que proporciona para raciocinar sobre os fenômenos, sem atender diretamente às causas sobrenaturais, as quais o espírito humano pôde, destarte, eliminar pouco a pouco de suas combinações. Foi, efetivamente, por tal processo que essa mudança se operou em todas as direções intelectuais. Quando os progressos da observação levaram o homem a generalizar e simplificar suas concepções teológicas, substituiu ele, em cada fenômeno particular, o agente sobrenatural primitivo por uma entidade correspondente, a cuja consideração se consagrou desde então exclusivamente. Essas entidades eram, a princípio, espécies de emanações do poder supremo: mas, graças à indeterminação de seu caráter, acabaram por espiritualizar-se a ponto de não serem mais consideradas senão como os nomes abstratos dos fenômenos, à medida que o progresso dos conhecimentos naturais fez sentir o vazio desse gênero ele explicação, e permitiu ao mesmo tempo, substituí-lo por outro. Deste modo a metafísica foi um meio de transição, a um tempo natural e indispensável da teologia para a física. Seu triunfo é, de um lado, um sinal infalível, e de outro, a causa direta da decadência da primeira e da elevação da segunda. Se as diversas considerações precedentes provam claramente que as teorias teológicas e metafísicas foram, para o espírito humano, uma preliminar indispensável, mostram, com a mesma evidência, que essas doutrinas não puderam ter qualquer outro destino natural, porquanto seu desenvolvimento nada mais foi do que uma tendência contínua e progressiva para as teorias positivas. Por isto mesmo que foram apropriadas para dirigir a infância da razão humana, são necessariamente impotentes para lhe servirem de guias quando atinge sua maturidade. Quando o espírito humano abandona realmente uma teoria, nunca mais se volta para ela. O vigor e a influência de um método medem-se pelo número e pela importância de suas aplicações: aqueles que nada mais produzem deixam logo, absolutamente, de ser empregados. Ora, como, pelo menos, há dois séculos os métodos teológicos e metafísicos, que haviam presidido aos primeiros ensaios de nossa inteligência, se tornaram inteiramente estéreis; como as descobertas mais amplas e mais importantes, as que mais honram o espírito humano, foram, desde essa época, unicamente devidas ao emprego do método positivo, é evidente, só por este fato, que a ele pertencerá, doravante, a direção exclusiva do pensamento humano. (No fim do século XVI, Bacon já comparava as ideias teológicas a virgens consagradas ao Senhor, que se tornaram estéreis, Em nossos dias, teria certamente estendido sua comparação às ideias metafísicas, cuja esterilidade não é menos manifesta). Sem desconhecer os importantes e inumeráveis serviços de todo gênero prestados pela teologia e pela metafísica, não se pode dissimular que o nosso espírito não é destinado a compor indefinidamente teogonias, nem a contentar-se sempre com logomaquias. O conhecimento mais exato e mais completo possível das leis da natureza, e, por consequência, a pesquisa da ação que a espécie humana está destinada a exercer sobre o mundo exterior, tais os verdadeiros e constantes objetivos dos esforces do gênio humano, quando sua educação preliminar se acha terminada. A filosofia positiva é, portanto, o estado definitivo do homem, e não deve cessar senão com a atividade de nossa inteligência, O atrativo que ela nos inspira, sua perfeita adaptação à natureza de nossas necessidades espirituais são de tal ordem que, logo que começa a formar-se pela descoberta de algumas grandes leis, os espíritos mais fortes renunciam, com singular facilidade, sobre os pontos correspondentes, às esperanças tão sedutoras da ciência sublime e absoluta, que lhes davam a teologia e a metafísica para procurar, com ardor, a pura satisfação intelectual inerente aos conhecimentos reais e precisos. Não é hoje, sem dúvida, que se torna necessário insistir muito para verificar uma tendência manifestada a cada momento, e de mil modos, mesmo nas inteligências menos esclarecidas. Por toda parte onde as concepções positivas puderam ser postas em concorrência com as concepções místicas e vagas, o enfado inspirado por estas não tarda a manifestar-se. (A linguagem que, examinada historicamente, apresenta um quadro fiel das revoluções do espírito humano, oferece-nos desta um testemunho muito sensível. A palavra ciências, que a princípio só fora aplicada às especulações teológicas e metafísicas, e mais tarde às pesquisas de pura erudição que engendraram, hoje só designa, quando está isolada, mesmo na acepção vulgar, os conhecimentos positivos. Quando empreendemos dar-lhe outro significado, somos obrigados, para ser entendidos, a recorrer a perífrases, cujo emprego mostra bem que, aos olhos do público atual, é nisto unicamente que consiste o verdadeiro saber). Resulta, pois, de todas as considerações acima indicadas, a demonstração, simultaneamente teórica e experimental do fato geral enunciado a princípio: o espírito humano, por sua natureza, passa sucessivamente, em todas as direções em que se exerce, por três estados teóricos diferentes: o estado teológico, o estado metafísico e o estado positivo. O primeiro é provisório, o segundo transitório e o terceiro definitivo. Esta lei fundamental deve ser hoje, em minha opinião, o ponto de partida de qualquer pesquisa filosófica sobre o homem e sobre a sociedade. Conservando ainda as doutrinas teológicas e metafísicas alguma atividade, ou pelo menos acentuada influência, é evidente que esta importante revolução não está terminada. Em que ponto se encontra? Que resta fazer para realizá-la? Eis o que nos cumpre examinar. Não cabe aqui explicar por que encadeamento de trabalhos esta grande transformação se operou. Basta notar, de fato, para fixar as ideias, que, ao movimento determinado no espírito humano pelos preceitos de Bacon, pelas concepções de Descartes e pelas descobertas de Galileu (movimento que não era mais do que o resultado final e inevitável de todos os trabalhos anteriores), é que se deve atribuir a origem direta de uma filosofia verdadeiramente positiva, isto é, de todo desprendida de qualquer aliança teológica e metafísica, que mais ou menos havia alterado, até então, o caráter das teorias naturais. Foi durante os dois séculos decorridos, depois dessa memorável época, que os diversos ramos de nossos conhecimentos chegaram, enfim, ao estado positivo. Mas, se importa pouco, para a nossa atual finalidade, examinar por que meios se produziu essa passagem, é, pelo contrário, muito essencial observar atentamente em que ordem nossas diferentes classes de ideias passaram por tal mudança, porquanto esta noção é indispensável para completar o conhecimento da lei precedentemente exposta. Marcha muito simples e muito natural se manifesta a este respeito. Nossas diversas concepções tornaram-se sucessivamente positivas na mesma ordem que haviam seguido para se tornarem primeiro teológicas, e, mais tarde, metafísicas. Esta ordem é a do grau de facilidade que apresenta o estudo dos fenômenos correspondentes. É determinada por sua complicação maior ou menor, por sua independência mais ou menos completa, por seu grau de especialidade, e por sua relação mais ou menos direta com o homem, quatro motivos que, embora tendo cada qual uma influência distinta, são, no fundo, inseparáveis. Ora, a este respeito, eis a classificação ditada pela natureza dos fenômenos, tal como a conhecemos hoje. Os fenômenos astronômicos são, a um tempo, os mais simples, os mais gerais, e os mais distanciados do homem; influem sobre todos os outros, sem serem por eles influenciados, pelo menos em grau sensível para nós; obedecem apenas a uma única lei, a mais universal da natureza - a da gravitação. Depois deles, vêm os fenômenos da física terrestre propriamente dita, que se complicam com os precedentes, e, além disto, seguem leis especiais, mais limitadas em seus resultados. Em seguida, os fenômenos químicos, que dependem de uns e de outros, e nos quais se percebe mais uma nova série de leis, a das afinidades, cujos efeitos são menos extensos. Finalmente, os fenômenos fisiológicos, onde se observam todas as leis da física, quer celeste, quer terrestre, e da química, modificadas, porém, por outras que lhes são próprias, e cuja influência é ainda mais limitada. Resulta desta simples exposição que as concepções humanas, sob qualquer das três formas gerais precedentemente assinaladas - teológica, metafísica e positiva - puderam tomar uma extensão bastante grande, relativamente aos fenômenos que as antecedem nesta escala enciclopédica, sem serem ainda desenvolvidas relativamente aos seguintes, por serem os primeiros independentes dos segundos, enquanto, ao contrário, elas não puderam começar a formar-se, em relação a estes, sem já terem adquirido certa consistência no tocante aos outros, cuja influência deve inevitavelmente ser levada em conta em qualquer teoria. Esta classificação fixa, portanto, de maneira irresistível, a ordem do desenvolvimento de cada uma das três filosofias. Os fatos estão de acordo com este princípio, como é fácil verificar; isto se torna principalmente simples em relação à filosofia positiva, cuja formação, além de muito recente, sendo naturalmente morosa, apresenta intervalos mais distintos. Observando, sob este aspecto, a marcha do espírito humano desde dois séculos, vê-se que, efetivamente, a astronomia foi a primeira ciência que se tornou positiva: depois dela, a física; em seguida a química e, finalmente, em nossos dias, a fisiologia. Tal é o estado presente do desenvolvimento intelectual. A fim de reconhecer, com toda a precisão necessária, a verdadeira época a que chegou, agora, esta grande revolução, cumpre, na última ciência [a fisiologia] distinguir a secção relativa às funções intelectuais e afetivas da que compreende as outras funções orgânicas. Só depois de todos os outros, os fenômenos morais saíram do domínio da teologia e da metafísica, para entrar no da física. Sem dúvida, nada era mais natural, segundo a escala enciclopédica acima estabelecida. Mas, se esta circunstância inevitável torna, a seu respeito, a transformação menos sensível, não é, por isto, menos real, embora ainda despercebida pela maioria dos espíritos. Todos os que estão verdadeiramente ao nível de seu século sabem, de fato, que os fisiologistas consideram hoje os fenômenos morais absolutamente da mesma forma que os outros da animalidade. Trabalhos muito extensos foram empreendidos nesta direção e prosseguidos com ardor, desde mais de vinte anos; nasceram concepções positivas, mais ou menos fecundas; formaram-se espontaneamente escolas para desenvolvê-las e propagá-las; numa palavra, todas as manifestações da atividade humana fizeram-se sentir, em grau não equívoco, em relação à fisiologia moral. É inútil tomar aqui partido pró ou contra qualquer das diversas opiniões, que pretendem hoje ter a primazia, a respeito da espécie, do número, da extensão e da influência recíproca dos órgãos assinaláveis para as diferentes funções, quer intelectuais, quer afetivas. Sem dúvida, a ciência não achou ainda, sob este aspecto, suas bases definitivas, e só estabeleceu solidamente algumas generalidades insuficientes, conquanto muito preciosas. Mas, o próprio fato dessa diversidade de teorias, que indica a incerteza inevitável em qualquer ciência nascente, demonstra claramente que a grande revolução filosófica se efetuou neste ramo de nossos conhecimentos, como em todos os outros, pelo menos nos espíritos que formam a vanguarda do gênero humano, e, cedo ou tarde, são seguidos pela massa. Com efeito, nas divergências que ocorrem, o método positivo é reconhecido, de uma parte e de outra, como o único instrumento admissível; a formação de uma teoria física, que consiste, no caso, na combinação do ponto de vista anatômico com o ponto de vista fisiológico, é considerada por todas as opiniões como o único objetivo razoável; a teologia e a metafísica são, de comum acordo, eliminadas da questão, ou, pelo menos, não desempenham nela qualquer papel importante; e, seja qual for o resultado final da discussão, não pode senão diminuir ainda mais a atividade de ambas. Numa palavra, estando os debates doravante circunscritos ao campo da ciência, a filosofia não se interessa mais por eles. Tenho insistido especialmente sobre este último fato filosófico, primeiro, porque é ainda apenas notado e mesmo muitas vezes contestado, mas, principalmente, porque, para quem compreendeu bem a minha classificação das ciências, esta última observação apresenta, simultaneamente, nova prova irrecusável, embora indireta, e um resumo muito preciso do conjunto da grande transformação intelectual. Depois de haver assim estabelecido, pelos fatos, a que ponto chegou agora a formação da filosofia positiva, cumpre examinar o que resta ainda fazer a fim de completá-la. A série natural dos fenômenos fornece, por assim dizer, ela própria, resposta a esta questão. As quatro grandes classes de observações precedentemente estabelecidas não abrangem, pelo menos explicitamente, todos os aspectos sob os quais podem ser considerados os seres existentes. Falta, sem dúvida, o ponto de vista social para os seres que são suscetíveis de sociabilidade, e, sobretudo, para o homem; mas vê-se, com a mesma clareza, ser esta a única lacuna. Possuímos, assim, uma física celeste, uma física terrestre, quer mecânica, quer química, uma física vegetal e uma física animal; falta-nos ainda uma última, a física social, a fim de completar o sistema de nossos conhecimentos naturais. Uma vez preenchida esta condição, poderemos, pelo resumo geral de todas as nossas diversas noções, construir, enfim, uma verdadeira filosofia positiva, capaz de satisfazer todas as necessidades reais de nossa inteligência. Desde então, o pensamento humano não será mais obrigado a recorrer, sobre ponto algum, ao método teológico ou ao metafísico; e havendo eles perdido sua última utilidade, não terão ambos mais do que uma existência histórica. Numa palavra, o gênero humano terá terminado inteiramente sua educação intelectual e poderá daí por diante seguir diretamente seu destino definitivo. Tais as importantes considerações que devo agora desenvolver. O quadro atual não me permite caracterizar suficientemente o espírito particular e o método especial deste último ramo da filosofia natural. Limito-me a dizer aqui, para evitar qualquer equívoco, que entendo por física social a ciência que tem por objeto próprio o estudo dos fenômenos sociais (Sendo os fenômenos sociais humanos, estão, sem dúvida, compreendidos entre os fisiológicos. Mas, embora, por esta razão, deva a física social necessariamente ter por ponto de partida a fisiologia individual, e manter-se com ela em contínua relação, não pode, por isto, deixar de ser concebida e cultivada como ciência inteiramente distinta, em consequência da influência progressiva das gerações humanas umas sobre as outras. Esta influência que, em física social, é a matéria preponderante, não poderia ser convenientemente estudada sob o aspecto puramente fisiológico), considerados com o mesmo espírito que os fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto é, sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é o objetivo especial de suas pesquisas. Ela se propõe, portanto, a explicar diretamente, com a maior precisão possível, o grande fenômeno do desenvolvimento da espécie humana, considerado em todas as suas partes essenciais, isto é, descobrir por que encadeamento necessário de transformações sucessivas o gênero humano, partindo de um estado apenas superior ao das sociedades dos grandes macacos, chegou gradualmente ao ponto em que se acha hoje a Europa civilizada. O espírito desta ciência consiste, sobretudo, em ver, no estudo profundo do passado, a verdadeira explicação do presente e a manifestação geral do futuro. Considerando sempre os fatos sociais, não como objetos de admiração ou de crítica, mas como assuntos de observação, preocupa-se unicamente em estabelecer suas relações mútuas, e em apreender a influência exercida por cada um deles sobre o conjunto do desenvolvimento humano. Em suas relações com a prática, afastando das diversas instituições qualquer ideia absoluta de bem ou de mal, considera-as como constantemente relativas a determinado estado da sociedade e variáveis com ele; e, ao mesmo tempo, concebe-as como podendo sempre estabelecerem-se espontaneamente pela força exclusiva dos antecedentes, livre de qualquer intervenção política direta. Suas pesquisas de aplicação reduzem-se, portanto, a evidenciar, de conformidade com as leis naturais da civilização, combinadas com a observação imediata, as diversas tendências próprias a cada época, Esses resultados gerais tornam-se, por sua vez, o ponto de partida positivo dos trabalhos dos estadistas, os quais só têm, por assim dizer, como objetivo real, descobrir e instituir as formas práticas correspondentes a esses dados fundamentais, a fim de evitar, ou pelo menos suavizar, quanto possível, as crises mais ou menos graves que um desenvolvimento espontâneo determina quando não é previsto. Numa palavra, nesta ordem de fenômenos, como em qualquer outra, a ciência conduz à previdência, e a previdência permite regularizar a ação, A esta descrição, necessariamente muito imperfeita, do caráter dá física social, cumpre acrescentar, para que este esboço possa ter alguma utilidade, a indicação sumária do princípio fundamental que distingue o método positivo peculiar a esta ciência. Consiste em que, na pesquisa das leis sociais, o espírito deve indispensavelmente proceder do geral para o particular, isto é, começar por conceber, em seu conjunto, o desenvolvimento total da espécie humana, não distinguindo nele, a princípio, mais do que um número muito pequeno de estados sucessivos, e descer em seguida, gradualmente, multiplicando os intermediários, a uma precisão sempre crescente, cujo limite natural consistiria em não colocar mais de uma única geração de intervalo na coordenação dos termos dessa grande série. Esta marcha é essencialmente comum a todas as partes da física dos corpos organizados, mas é particularmente indispensável na física social. (Além disto, seria fácil compreender mui claramente, pelo próprio fato, em que consiste a física social, se se considerasse como irrevogavelmente estabelecida a lei fundamental acima exposta, porquanto, nesta hipótese, a ciência já realmente teria começado. A descoberta desta lei, se se admitir sua exatidão, seria um primeiro passo direto em física social, pois apresenta um primeiro encadeamento natural, o mais geral possível, dos fenômenos sociais). Tal é, pois, tanto quanto posso aqui indicar, a natureza da nova ciência física, destinada a completar o sistema de nossos conhecimentos positivos. Depois desta definição, que me pareceu indispensável para fixar as ideias, é fácil explicar por que este último ramo da filosofia natural não se pôde formar até agora e por que deve hoje inevitavelmente começar. Considerando mesmo as teorias sociais apenas sob o ponto de vista puramente filosófico, deviam conservar, por mais tempo do que as outras, o caráter teológico e o caráter metafísico, segundo a lei de formação acima estabelecida, pois seus fenômenos ocupam, evidentemente, a última classe em nossa escala enciclopédica, como sendo simultaneamente os mais complicados, os mais particulares, os mais diretos para o homem, e os que dependem de todos os outros. Seria, sem dúvida, impossível conceber que o espírito humano se elevasse a ideias positivas, sobre os fenômenos sociais, sem ter previamente adquirido conhecimento bastante extenso das leis fundamentais da organização humana. Ora, este conhecimento supõe, de sua parte, a descoberta preliminar das principais leis do mundo inorgânico. E estas, além disto, influem também, diretamente, sobre o caráter e as condições de existência das sociedades humanas. Os leitores, habituados à consideração das leis naturais, reconhecerão facilmente todo o alcance e toda a força desta universal e profunda relação. Para indicar aqui, simplesmente, o caso mais decisivo, aquele em que a relação é menos aparente, é fácil reconhecer exercerem os fenômenos astronômicos, por sua extrema generalidade, influencia preponderante sobre os sociais. Suas leis não poderiam sofrer a menor mudança sem determinarem profunda alteração no modo de existência e de desenvolvimento das sociedades humanas. Quem não vê, por exemplo, dever o movimento da terra, a princípio desconhecido e mais tarde descoberto, influir, no mais alto grau, sobre todo o nosso sistema intelectual? Pode mesmo dizer-se que as mais simples circunstâncias de forma ou de posição, insignificantes na ordem astronômica, têm importância suprema na ordem política. Suponha-se, por exemplo, uma variação de alguns graus na obliquidade da eclíptica, que estabelecesse nova distribuição de climas; um aumento ou pequena diminuição na distância da terra ao sol, que modificasse a duração do ano e a temperatura do globo, e, por consequência, verossimilmente a duração da vida humana, e uma serie de modificações análogas, cuja importância astronômica fosse quase nula, e reconhecer-se-á, que, ao contrário, o desenvolvimento humano não poderia mais ser concebido, de nenhum modo, tal como ocorreu. E fácil multiplicar infinitamente, e em todos os gêneros, tais hipóteses, próprias para evidenciar as relações efetivas das diversas ordens de fenômenos. Farão elas sentir que as condições de existência das sociedades humanas estão em relação necessária e continua, não só com as leis de nossa organização, o que é evidente, mas também com todas as leis físicas ou químicas de nosso planeta e com as do sistema solar, de que faz parte. Esta relação é de tal modo íntima que, se alguma mudança notável sobreviesse a uma só dessas inúmeras influências de qualquer espécie, sob cujo império absoluto nossas sociedades subsistem, a marcha do gênero humano seria profundamente alterada mesmo imaginando-se apenas variações que não lhe comprometessem a existência. É, portanto, evidente que não podiam os fenômenos sociais ser, por sua natureza, reduzidos a teorias positivas, antes de ser essa revolução efetuada nos fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos. Como, relativamente a estes últimos, a transformação só se realizou em nossos dias, sendo ainda apenas sentida em relação aos fenômenos morais, cuja teoria é a mais diretamente indispensável à física social, concebe-se facilmente por que esta ciência não foi possível até o presente. Esta explicação adquire novo grau de clareza, considerando-se outra circunstância inteiramente particular aos fenômenos sociais. De fato, para que se tornasse possível seu estudo positivo, era evidentemente necessário que a marcha da espécie humana estivesse bastante adiantada, a fim de manifestar, por si mesma, aos observadores, algumas leis naturais de sucessão. Procurando medir o alcance desta condição, parece-me que a base experimental da física social não teria tido uma extensão suficiente se não tivesse podido abranger a totalidade do desenvolvimento que ocorreu, ate agora, no gênero humano. Esta conjetura será rigorosamente demonstrada para todos os que admitirem a lei acima exposta, porquanto esta lei não podia ser desvendada senão depois que a revolução, a que ela se refere, tivesse sido efetivamente experimentada de modo completo pelo espírito humano em relação à maior parte de nossas ideias, o que nos reconduz exatamente à época assinalada ha pouco por outros motivos. As mesmas considerações que explicam o que impediu, até agora, o método positivo de estender-se às teorias sociais, provam, de modo não menos forte, que esta última parte da grande renovação intelectual deve necessariamente efetuar-se agora. O espírito humano tende constantemente para a unidade de método e de doutrina; tal é, para ele, o estado regular e permanente: qualquer outro somente pode ser transitório. É impossível que empregássemos habitualmente certo método na maioria de nossas combinações e não acabássemos por abandona-lo de modo absoluto, ou por estendê-lo a todas as outras. Este último caso é o único presumível relativamente aos métodos, cuja superioridade foi estabelecida pela experiência. Haveria, portanto, contradição em pensar que o espírito humano, acostumado agora a raciocinar de maneira positiva sobre todos os fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, devesse continuar a raciocinar sempre teologicamente e metafisicamente ao tratar dos fenômenos sociais. Quem tem estudado o caráter intelectual do homem compreenderá que não pode ser assim. Sucederá, portanto, inevitavelmente - ou a astronomia, a física, a química e a fisiologia se tornarão metafísicas, ou mesmo teológicas, o que seria absurdo supor, ou a política se tornará positiva, o que é, por conseguinte, indubitável. Um filósofo do século XIX, que, mais ao que qualquer outro, aprofundou a natureza do antigo estado do gênero humano, De Maistre, sentiu a necessidade desta alternativa de maneira muito convincente. Viu muito bem que o desenvolvimento das ciências naturais tendia a radicalmente destruir o império da teologia e da metafísica e compreendeu que, para ser verdadeiramente consequente em seu pesar pela decadência do antigo sistema intelectual e social, devia ousadamente remontar até esses antigos tempos nos quais havia unidade no espírito humano através de uma subordinação uniforme de todas as nossas concepções à filosofia sobrenatural. (Veja-se, entre outras, nas Soirées de Saint-Petersbourg, uma comparação muito notável entre o caráter da ciência antiga e o da moderna). Sem dúvida todas as ciências positivas não puderam formar-se simultaneamente, devendo ter existido períodos mais ou menos longos durante os quais o espírito humano empregava, ao mesmo tempo, os três métodos, cada um para certa ordem de ideias. (Esta confusão passageira e inevitável é a principal dificuldade que pode experimentar a verificação da lei acima exposta. Mas, observando-se que os três métodos nunca foram empregados simultaneamente para a mesma ordem de ideias, a dificuldade desaparecerá, desde que se tenha em vista a ordem enciclopédica precedentemente estabelecida. A existência deste estado misto é, aliás, a única objeção séria feita até hoje, que me conste, contra esta lei fundamental. Mesmo assim, esta objeção só foi apresentada por espíritos infelizmente estranhos, por sua educação, às ciências positivas, embora em si mesmos muito superiores). Erigindo a filosofia metafísica, segundo o seu costume, em princípio imutável um estado essencialmente passageiro, daí deduziu a máxima de uma partilha fundamental e absoluta entre o método teológico e o método positivo, sob os nomes abstratos de fé e de razão. Mas a experiência prova claramente que essa doutrina nunca serviu senão para ampliar o domínio da razão à custa do domínio da fé, o que era, aliás, o destino natural desse princípio de transição, que por muito tempo foi útil. Apesar dessa imensa trégua, entre a teologia e a física, tendeu esta sempre e cada vez mais a invadir o sistema inteiro de nossas ideias, e sua força aumentou, por isto, na proporção das conquistas já efetuadas. Como não lhe resta hoje mais do que apoderar-se das ideias sociais, é, pois, evidente que deve acabar por abarcá-las também em seu domínio e muito em breve mesmo, se se levar em conta o imenso poder que lhe dá seu domínio exclusivo sobre todas as nossas demais classes de ideias. A consequência tirada desta consideração de unidade torna-se ainda mais sensível, examinando-se a formação da teoria teológica ou metafísica relativa aos fenômenos sociais. A filosofia superficial do século XVIII representou geralmente a doutrina social teológica como obra de legisladores incrédulos, que apenas viram nela um instrumento de domínio. Sem insistir aqui sobre o absurdo chocante de tal suposição, que hoje já não se tem necessidade de refutar, a experiência nos mostra, de conformidade com a ordem geral de formação estabelecida no início deste opúsculo, que a filosofia teológica se estendeu aos fenômenos sociais e pôde, por consequência, tornar-se um meio de organização, unicamente em virtude do império, que a princípio havia adquirido ao explicar todos os fenômenos dos corpos exteriores e do próprio homem. Esta explicação é a primeira origem e a condição fundamental do ascendente geral obtido pelo sistema teológico. A mesma relação se observa sempre nas diversas formas que ele toma sucessivamente. Não é evidente, por exemplo, que logo que o espírito humano pôde elevar-se à ideia de uma grande causa sobrenatural única, produzindo todos os fenômenos do mundo exterior e os do homem, não deixaria de aplicar a mesma doutrina à direção da sociedade? Tal ainda se deu quando as concepções humanas se tornaram metafísicas. Ao operar-se essa transformação para as ideias astronômicas, físicas, químicas e fisiológicas, teria sido possível prever que não tardaria a estender-se às ideias políticas. Há uma conexão profunda, embora indireta, entre as concepções de Aristóteles sobre a física celeste e terrestre, as doutrinas escolásticas da Idade Média e o Contrato Social de Rousseau; é o mesmo espírito, abrangendo nova ordem de ideias. Assim, havendo as teorias sociais estado sempre, de fato, em relação íntima e necessária com as dos outros fenômenos, as mudanças ocorridas até aqui nas primeiras, tendo constantemente seguido as experimentadas pelas segundas, o mesmo deve dar-se (e com mais forte razão, em face da maior discordância) com a transformação que fez estas passarem ao estado positivo, e, por consequência, não pode deixar de manifestar-se também na doutrina relativa aos fenômenos políticos. Todos os sintomas, gerais ou particulares, que podem assinalar tal revolução, já se pronunciaram, efetivamente, com energia suficiente para não deixar qualquer dúvida sobre a sua próxima realização. A preponderância total obtida, no século passado, pela metafísica, no tocante às ideias sociais, é sinal irrecusável da decadência completa da teologia. Por outro lado, a profunda repugnância que se manifesta geralmente pela política metafísica, desde a experiência da revolução francesa - mas que, no entanto, não levou de novo os espíritos às doutrinas teológicas - é indício não menos certo da próxima formação da política positiva, única em condições de determinar um acordo universal da parte das inteligências que se tornam tão rebeldes ao poder das abstrações quanto à autoridade dos oráculos e não querem mais ceder senão à força dos fatos. Podemos mesmo acrescentar que tentativas diretas, mais ou menos completas, já foram concebidas pelos pensadores mais distintos, a fim de satisfazerem esta nova necessidade do espírito humano. Tal é, em essência, o caráter dos trabalhos do grande Montesquieu. Em primeiro lugar, em sua obra sobre os Romanos, e principalmente, depois, no Espírito das Leis, esforçou-se por ligar, uns aos outros, os fenômenos políticos e descobrir as leis de seu encadeamento. Esta tentativa era, sem dúvida, muito prematura para alcançar bom êxito; mas o fato em si prova claramente a tendência do espírito humano. Mais tarde, Condorcet elevou-se, no mesmo sentido, à concepção direta e definitiva, propondo-se a estudar o desenvolvimento sucessivo da espécie humana; e, embora a execução desse projeto tenha radicalmente falhado, não deixa, por isto, de evidenciar quanto sua necessidade fora reconhecida. Devem ser considerados, sob o mesmo ponto de vista, os esforços tentados na Inglaterra, durante o século passado, para aperfeiçoar a natureza da história, dando-lhe caráter explicativo e científico, em vez do cunho descritivo ou literário, que até então tinha tido. Na Alemanha, os trabalhos de Kant (Em pequena obra escrita em 1784, cujo próprio título é notável - "Introdução a uma história geral da espécie humana”, estabeleceu Kant formalmente deverem os fenômenos sociais ser considerados tão redutíveis a leis naturais quanto todos os outros do universo) e de Herder sobre a filosofia da história, e posteriormente a formação, entre os jurisconsultos, de uma escola que concebe a legislação como determinada sempre necessariamente pelo estado da civilização, manifestam, com a mesma evidência, a tendência geral de nosso século para as doutrinas positivas em política. Um gosto exclusivo pelas obras que mostram, mais ou menos, este caráter, se pronuncia dia a dia mais, e, o que constitui observação muito decisiva, domina mesmo o espírito de partido. Os homens que mais se esforçam em restabelecer a teologia em seu antigo império, cedendo sem sentir ao gênio do século, honram-se em empregar principalmente, no estabelecimento de suas opiniões, a autoridade dos conceitos positivos. (Se, por exemplo, o livro Du Pape tem grande valor filosófico, como não se pode duvidar, deve-o essencialmente ao fato de ter-se esmerado seu autor, tanto quanto pôde, por uma contradição fundamental, em empregar, em seus raciocínios, apenas o método positivo, fazendo somente uso secundário das considerações hauridas na filosofia teológica ou metafísica). Chegou, portanto, enfim a época em que, como último resultado de todos os trabalhos anteriores, o espírito humano pode completar o conjunto da filosofia natural, reduzindo os fenômenos sociais, como todos os outros, a teorias positivas. As diversas tentativas preliminares, que rapidamente acabamos de indicar, bastam para assinalar esta operação e torná-la imediatamente praticável, ficando, entretanto, inteiramente reservada ao século XIX pela marcha natural do nosso desenvolvimento intelectual. Quando este trabalho estiver terminado, ou, antes, quando estiver bastante adiantado para que o espírito humano possa, daí por diante, ser considerado irrevogavelmente lançado nesta nova direção, poderemos, enfim, e deveremos mesmo proceder à construção de um sistema geral dos conhecimentos humanos, cujos elementos serão todos então desenvolvidos. Antes e depois da Enciclopédia do século XVIII, uma série de tentativas foi feita neste sentido, e nenhuma delas teve bom êxito. Diariamente vemos nascer novas, que não têm melhor sucesso, e somente servem para mostrar a necessidade profundamente sentida por nossa inteligência de por ordem e unidade em suas aquisições. O fracasso de todos esses esforços resulta de que não tendo os diversos conhecimentos humanos apresentado todos, até agora, o mesmo caráter, foi necessariamente impossível combiná-los em um sistema único. Pôde-se construir, em outras épocas, uma enciclopédia teológica ou metafísica, e, efetivamente, todos os sistemas filosóficos gregos, por exemplo, eram, para sua época, outras tantas enciclopédias. Poder-se-á construir, mais tarde, uma enciclopédia positiva, quando a física social houver adquirido alguma consistência. Mas querer, como se tem sempre pretendido até aqui, formar uma enciclopédia no mesmo tempo teológica, metafísica e positiva, é querer compor um conjunto com elementos que mutuamente se excluem. Não é de admirar que empresas tão mal concebidas hajam acabado por desacreditar tal projeto perante os bons espíritos. Mas o mesmo não poderá suceder quando, afinal, a ciência social tornar-se positiva e a teologia e a metafísica forem expelidas de seu derradeiro asilo, sendo o sistema de nossas ideias constituído por elementos homogêneos. Bastará, então, resumir os conhecimentos relativos às diversas ordens de fenômenos para imediatamente descobrir-lhes o encadeamento natural, e formar, portanto, a verdadeira filosofia positiva, bem mais completa e bem melhor concatenada do que jamais puderam sê-lo a metafísica, e mesmo a teológica, que, provisórias por sua natureza, não foram, em nenhuma época, rigorosamente universais. Este vasto cometimento, que o século atual verá sem dúvida realizar-se, deve ser considerado como o último ato e o objetivo final da grande revolução iniciada por Bacon, Descartes e Galileu. É indispensável por ser a única base espiritual possível do novo estado social, para o qual a espécie humana tende hoje tão fortemente, porque só por sua força total é que uma doutrina pode chegar a dirigir a sociedade. Enquanto as concepções positivas se conservarem isoladas entre si, enquanto não se apresentarem, ao espírito, como as diversas partes de um sistema único e completo, poderão conservar uma importância muito grande nos casos particulares, poderão até mesmo lutar, com vantagem, contra a autoridade política da teologia e da metafísica, mas não poderão substituí-las na direção suprema da ordem social. O aperfeiçoamento de nossos conhecimentos exige, sem dúvida, de modo indispensável, que se estabeleça, no seio da ciência, permanente divisão de trabalho, e mesmo que a especialização das pesquisas de cada cientista seja levada tão longe quanto possível. Mas é incontestável que a massa da sociedade, a qual carece continuamente de todos esses resultados ao mesmo tempo, não pode e nem deve perturbar-se com esse mecanismo interior. Para adotar, como guias habituais exclusivamente as doutrinas científicas, ela precisa encará-las apenas como ramos diversos de um só e mesmo tronco. Esta condição não é menos indispensável, no que toca ao próprio corpo científico, para a unidade e homogeneidade de sua ação política, sempre muito fraca enquanto não for concentrada. Por conseguinte, enquanto este estado de coisas subsistir, a teologia e a metafísica, apesar de sua evidente decrepitude, conservarão ainda, em virtude apenas de sua generalidade, legítimas pretensões à soberania moral. Esta última consideração me leva, por outro caminho, à necessidade da física social. Nos motivos precedentemente empregados para demonstrá-la, evitei de propósito o ponto de vista da organização social, a fim de fixar toda a atenção sobre o movimento filosófico que devia, só por si, determinar essa mudança. Mas a conclusão deduzida desta ordem única de considerações é singularmente robustecida se, como é indispensável, forem consideradas as grandes necessidades políticas da sociedade atual, Limitar-me-ei aqui a uma simples indicação sobre essa parte Importante da matéria, de que tratarei, mais tarde, de maneira especial. A sociedade acha-se hoje evidentemente, sob o ponto de vista moral, em verdadeira e profunda anarquia, reconhecida por todos os observadores, quaisquer que sejam as suas opiniões especulativas. Esta anarquia provém, em última análise, da ausência de qualquer sistema preponderante, capaz de reunir todos os espíritos em uma só comunhão de ideias. As concepções positivas adquiriram suficiente extensão para anular, de fato, a influência política da teologia, e mesmo da metafísica, sem se terem tornado ainda bastante gerais para substituí-las na direção espiritual da sociedade. Resulta desta oposição fundamental e contínua que, já não possuindo qualquer laço real, os espíritos divergem sobre todos os pontos essenciais com o descomedimento que deve produzir a individualidade não controlada. Daí, a ausência completa da moral pública, seguida do transbordamento universal do egoísmo e da preponderância de considerações puramente materiais, tendo por última consequência inevitável a corrupção erigida em sistema de governo, como único meio de ordem, aplicável a uma população que se tornou surda a qualquer apelo feito em nome de uma ideia geral, e unicamente sensível à voz do interesse privado. Para terminar radicalmente esta desordem que, se se pudesse prolongar, não teria outra saída senão a completa dissolução das relações sociais, o único meio é destruí-la em seu princípio, levando, por um processo qualquer, o sistema intelectual à unidade. Ora, isto só se pode fazer de duas maneiras: ou restituindo à filosofia teológica (porque é inútil falar da metafísica, que será sempre mera transição) toda a influência, que perdeu; ou completando a filosofia positiva, de modo a torná-la capaz de substituir definitivamente a teologia. É a estes simples termos que se reduz hoje a grande questão social. Se se considera, portanto, como demonstrada, a impossibilidade de restabelecer a teologia em toda a plenitude de seu antigo poder (e certamente ninguém duvida mais disto) não há outra solução admissível a não ser a formação definitiva da filosofia positiva. Não se trata de examinar aqui se isto é vantajoso ou não, se é difícil ou fácil, se deve exigir muito ou pouco tempo. Todas essas questões ociosas são afastadas pela decisão fatal da observação: não há mais outra saída para a sociedade: cumpre, portanto, pôr imediatamente mãos à obra. E, além disto, as outras considerações, já indicadas, mostram que esta última revolução, que deve afinal restabelecer na sociedade unia: ordem estável, longe de ser tão superior às forças atuais do espírito humano, como se imagina, está de tal modo preparada pelos antecedentes que se tornou inevitável. Assim, a formação da física social que, sob o ponto de vista puramente intelectual, já foi demonstrada como indispensável para atingir-se um sistema filosófico completo, não é menos necessária, sob o aspecto político, para produzir uma educação social inteiramente homogênea, que possa servir de base a uma hierarquia fixa e regular. Estas duas grandes condições são evidentemente a consequência uma da outra, porque a educação e a filosofia estão em relação íntima e necessária, dada a impossibilidade de educar uma sociedade a não ser sob a influência do sistema de ideias preponderantes. A educação social foi a princípio teológica, e mais tarde metafísica, porque a filosofia foi sucessivamente uma e outra. Hoje é simultaneamente teológica, metafísica e positiva, porquanto a filosofia apresenta ao mesmo tempo estes três caracteres, relativamente às diversas ordens de ideias; ou, antes, não há hoje nem educação, nem filosofia reais pelo motivo de existirem três, que se excluem mutuamente. Enfim, na futura era social, em que a espécie humana entrará dentro em breve, a filosofia, e, por consequência, a educação geral devem tornar-se inteiramente positivas. Estas duas grandes operações, a primeira das quais deve servir de base à segunda, correspondem à mesma necessidade fundamental ela civilizado atual, considerada sob ou as faces diferentes: a necessidade de uma doutrina e de uma direção. Quanto a mim, este trabalho já foi empreendido, porque considero a física social como tendo já um começo de existência, e este ponto de vista dominará sempre em minhas considerações filosóficas. Mas não peço aos leitores que partilhem imediatamente de minha convicção a este respeito. Desejo apenas chamar toda a sua atenção para esta marcha natural e contínua do espírito humano, que o impele cada vez mais para a filosofia positiva. Espero fazer-lhes sentir que chegou a época em que esta revolução deve inevitavelmente estender-se às teorias sociais, e provar-lhes, enfim, que sua realização é o único meio real de restabelecer na sociedade uma ordem moral, sem pretender entabular qualquer discussão ociosa sobre o grau preciso de oportunidade, nem sobre os pormenores dessa mudança. As considerações aqui apresentadas levam naturalmente a considerar as ciências sob novo ponto de vista. Não são unicamente, a meu ver, a base racional da ação do homem sobre a natureza. Sua importância, sob este aspecto, conquanto, sem dúvida, muito grande, é apenas indireta e secundária. Ela não explica suficientemente o interesse profundo que o espírito humano, por admirável instinto, sempre ligou às suas teorias mais abstratas, sem qualquer objetivo de utilidade material, interesse que subsiste hoje em toda sua força, apesar da viciosa preponderância concedida desde três séculos ao ponto de vista puramente prático. Considero as ciências, antes de tudo, mesmo em seu estado atual, como tendo por destino direto e principal satisfazerem a essa necessidade básica, experimentada por nossa inteligência, de um sistema de concepções positivas sobre as diferentes ordens de fenômenos que podem ser objeto de nossas observações. Consideradas no passado, as ciências libertaram o espírito humano da tutela sobre ele exercida pela teologia e pela metafísica, tutela que, indispensável à sua infância, tendia em seguida a prolongá-la indefinidamente. Encaradas no presente, devem servir, quer por seus métodos, quer por seus resultados gerais, para determinar a reorganização das teorias sociais. Vistas no futuro, serão, depois de sistematizadas, a base espiritual permanente da ordem social, enquanto durar sobre o globo a atividade de nossa espécie, Este resumo geral apresenta a existência social dos cientistas sob um ponto de vista que se afasta das ideias correntes. Resta-me, portanto, desenvolvê-lo para ter um primeiro esboço completo da grande revolução moral que tende hoje a realizar-se no gênero humano. A história política dos cientistas, considerada em seu conjunto, apresenta três grandes épocas, que correspondem exatamente ao estado a princípio teológico, em seguida, metafísico, e, finalmente, positivo, da filosofia humana, assunto de nosso primeiro artigo. Devo limitar-me aqui a uma exposição sumária desta nova série de fatos gerais. O primeiro sistema social, em que o espírito humano pôde começar a fazer progressos reais e duráveis, teve como caráter fundamental a confusão do poder temporal com o espiritual ou, mais exatamente, a subordinação completa de um em relação ao outro. Em termos mais precisos: esse sistema consistiu, essencialmente, na preponderância geral e absoluta de uma casta sábia, organizada sob a influência da filosofia teológica. Toda sociedade primitiva, enquanto seu desenvolvimento é indígena e espontâneo, manifesta uma tendência natural para tal organização. Mas este regime não pôde estabelecer-se completamente e adquirir grande consistência senão nos países em que, por uma combinação favorável de circunstâncias de clima e de posição, que não cabe aqui explicar, a filosofia teológica pôde adquirir desde logo todo o seu desenvolvimento, obtendo, como consequência, ascendente irresistível sobre as outras partes do sistema social. Essas condições foram realizadas no Egito, na Caldéia, no Indostão, no Tibete, na China e no Japão, podendo acrescentar-se o Peru, e, provavelmente, também, o México, algumas gerações antes da descoberta da América. Considerando este estado da sociedade simplesmente sob o ponto de vista abstrato, admira-se sobretudo esse profundo caráter de unidade e entrelaçamento que domina então completamente no sistema intelectual. Nunca, desde essa época, o espírito de conjunto se manifestou no mesmo grau, e somente poderá ser reencontrado no futuro, pela construção direta da filosofia positiva. A homogeneidade das concepções humanas, uniformemente teológicas então foi, sem dúvida, a causa primeira dessa sistematização absoluta. Mas esta causa, que foi universal, não produziu por toda parte efeito semelhante, pelo menos em grau tão acentuado. Era necessária, além disto, a organização do corpo científico peculiar a esse estado social. Somente pelo fato da existência de uma casta de sábios, podemos afirmar que se havia estabelecido, desde então, entre a teoria e a prática, uma divisão regular e permanente; mas, em primeiro lugar, essa divisão era incompleta sob um aspecto muito importante, pois não se estendia às combinações sociais. Em segundo lugar, não existia qualquer distribuição determinada de trabalho no domínio da teoria. Tal é a natureza especial desta primeira organização científica. A universalidade elos conhecimentos, que é agora tão justamente considerada como ambiciosa quimera, era então, pelo contrário, o caráter dominante dos membros da corporação espiritual. Nas classes superiores da hierarquia, cada ministro do culto era simultaneamente astrônomo (ou, antes, astrólogo), físico, médico, até engenheiro, e também legislador e estadista. Numa palavra, os nomes de sacerdote, de filósofo e sábio, que, mais arde, tomaram acepções tão diversas, eram então rigorosamente sinônimos; a combinação desses três caracteres é evidenciada na pessoa de Moisés, que se pode considerar como o tipo mais conhecido desse primeiro estágio do espírito humano. E fácil compreender esse estado de universalidade, porque depende diretamente das mesmas causas que determinaram a preponderância da casta sábia, e é, pelo menos, tão inevitável. Se uma combinação qualquer de circunstâncias físicas permitiu às concepções humanas, em certos países, um desenvolvimento bastante célere para que se pudessem sistematizar muito rapidamente sob a forma teológica, resultou evidentemente dessa mesma celeridade que, na época de coordenação, os diversos ramos dos conhecimentos não eram ainda bastante extensos para exigirem ou admitirem uma divisão real e estável. Mas esta universalidade de trabalhos não coincide unicamente, por uma relação necessária, com a supremacia social da casta sábia: é também o seu maior sustentáculo. O crédito obtido pelos padres, como astrônomos, médicos e engenheiros, é a base de sua autoridade política; e, reciprocamente, o poder de que gozam é uma condição indispensável ao desenvolvimento de suas especulações científicas. E na própria natureza desta organização espiritual que se deve procurar a verdadeira e fundamental explicação do vigor e da consistência admiráveis que sempre tão fortemente caracterizaram este sistema social primitivo, em comparação com todos os que existiram depois. Numa ordem em que tudo se liga de tal maneira que, para atacar qualquer parte, seria necessário abalar diretamente o conjunto, deve espantar-nos essa energia de resistência que, até aqui, constantemente superou a ação de todas as forças conhecidas? Este estado social deve, por isto, ser considerado como a verdadeira época do triunfo do sistema teológico. Qualquer que haja sido o poder real, demonstrado mais tarde por este sistema, pode dizer-se, sem exagero, que após essa época ele entrou em decadência contínua. Até aí é que deveria a espécie humana remontar se pudesse retroceder. Reconhecendo que o regime teocrático era, ao mesmo tempo, a consequência necessária e a condição indispensável dos primeiros progressos do espírito humano, não se pode dissimular tender, pela sua natureza, a tornar-se obstáculo permanente e quase invencível a progressos mais extensos. Quer haja uma incompatibilidade necessária entre a extrema solidez do sistema social e sua perfectibilidade; quer a combinação dessas duas grandes propriedades tivesse sido apenas superior aos meios que o homem pôde empregar até aqui, é certo haverem os povos mais fortemente organizados acabado por ser quase estacionários. Foi o que ocorreu em todos os países onde a teocracia havia podido estabelecer-se completamente. E a explicação disto é fácil. Somente pela separação dos trabalhos há aperfeiçoamento possível para o espírito humano. O próprio sistema teocrático só tinha valor, sob o ponto de vista intelectual, por ter sido o único meio de organizar, sobre bases regulares e estáveis, um começo de divisão entre a teoria e a prática. Mas esta primeira divisão que, uma vez fixada, era, pelo caráter do sistema, irrevogável, precisava ser impelida muito mais longe a fim de permitir indefinidamente o desenvolvimento das faculdades humanas. Tal era o vício radical desse regime primitivo. As diversas ordens de nossas concepções não podem, por sua natureza, desenvolver-se com a mesma rapidez. Estabeleci acima a sucessão necessária que constantemente se manifesta em sua formação. Vê-se, por isto, que essa organização científica, em virtude da qual todas as diversas teorias são cultivadas simultaneamente pelos mesmos espíritos, não deve tardar a opor-se fortemente ao aperfeiçoamento de nossos conhecimentos, pois só comporta os progressos que podem ser simultâneos para todas as partes do sistema intelectual. Esta conclusão é singularmente robustecida se, com o ponto de vista puramente filosófico, se combina o ponto de vista político da fusão do poder temporal com o espiritual, que caracteriza esta primeira época social. Com efeito, somente por esta causa, qualquer aperfeiçoamento importante das teorias humanas se torna impossível, porque tende à inversão total e imediata da ordem política. Que progressos importantes poderiam ser esperados num regime em consequência do qual toda descoberta essencial deve necessariamente ser encarada não só como um ato d.e impiedade, mas ainda uma sedição direta? A filosofia teológica era, em seus primeiros tempos, e foi mesmo até o presente, a única em condições de dirigir a sociedade. Por conseguinte, enquanto o poder temporal não foi mais do que uma derivação do espiritual, e enquanto, mesmo, as teorias físicas e as doutrinas sociais não se separaram completamente, as primeiras não teriam podido sair do estado teológico sem destruir as bases da sociedade. Se, portanto, os progressos do espírito humano não foram possíveis na origem senão mediante o primeiro grau da divisão do trabalho, regularizado pelo regime teocrático, é evidente que os progressos ulteriores exigiram, de modo não menos indispensável, uma divisão muito mais particularizada, que só pôde efetuar-se sob um regime completamente diverso. Era necessário, acima de tudo, que a cultura do espírito humano se tornasse independente da direção imediata da sociedade, a fim de que a divisão e o aperfeiçoamento de nossos conhecimentos pudessem verificar-se sem comprometer a existência da ordem política. O desenvolvimento natural das diversas teorias acabaria, sem dúvida, por determinar espontaneamente esta separação, mesmo nas teocracias, embora, pelos motivos precedentes, tal modificação devesse ser nelas consideravelmente retardada. Parece impossível, de fato, que, ao cabo de certo tempo, por mais lentos que se presumam os progressos, a dificuldade sempre crescente de abranger, de modo contínuo, em toda a sua extensão, o sistema universal das ideias humanas, não conduza a uma especialização cada vez maior. Pode-se mesmo observar, nas castas sábias das diversas teocracias, alguns ensaios de uma divisão aperfeiçoada. Mas a marcha dos acontecimentos não permitiu a nenhuma teocracia conhecida existência bastante prolongada para que nela se pudesse observar o desenvolvimento de tal revolução. Felizmente, para a civilização humana, a nova organização científica se estabeleceu por via muito mais rápida. Foi na Grécia que se realizou essa modificação tão indispensável aos destinos futuros do espírito humano. Dado o modo pelo qual os conhecimentos foram levados do Egito e do Oriente para essa região, aí se encontraram, desde o começo, inteiramente desligados da ordem social. A atividade militar, para a qual tendiam necessariamente as sociedades gregas, aí tornava impossível o estabelecimento duradouro da teocracia pura. Ao mesmo tempo, outras causas opunham poderosos obstáculos ao livre e pleno desenvolvimento da atividade militar de modo a absorver exclusivamente, como em Roma, todas as grandes forças intelectuais. Por este feliz conjunto de circunstâncias, a separação entre a teoria e a prática foi imediatamente muito mais completa do que nas teocracias, e mesmo a teoria pôde livremente subdividir-se. Formou-se uma classe de homens tão puros de qualquer ambição política quanto afastados de toda ocupação material, devotando-se a uma existência inteiramente filosófica. Partindo dos primeiros conhecimentos de toda espécie acumulados pelas castas sacerdotais, sua finalidade única e constante foi cultivar, tão completamente quanto possível, o domínio do espírito humano. Esta memorável revolução, na organização do corpo científico, é resumida, aos olhos do observador, pela distinção nítida estabelecida, desde esse momento, entre o nome de filósofo e o de sacerdote. A este novo estado corresponde, abstratamente, o caráter metafísico que começa então a manifestar-se de modo claro no sistema intelectual. Na origem desta segunda organização só houve progresso real no fato de tornar-se a existência da corporação espiritual puramente especulativa e completamente desligada de qualquer interferência na direção dos negócios públicos. Além disto, os primeiros sábios da Grécia não introduziram mais especialidades em suas pesquisas teóricas do que as castas sacerdotais, exceto quando, desde o começo, assinalaram às belas-artes, como mais desenvolvidas, um domínio inteiramente separado. Mas, apesar desta confusão, ainda inevitável na época, a grande condição estava preenchida, e a divisão dos conhecimentos humanos não tardou a estabelecer-se gradualmente, por si mesma, à medida que o seu desenvolvimento se tornava mais extenso. Os filósofos haviam, a princípio, esperado poder consagrar-se conjuntamente ao aperfeiçoamento das concepções sobre o homem moral e a sociedade e ao das teorias relativas aos fenômenos físicos. A continuação de seus trabalhos tornou, por fim, evidente a necessidade de uma separação total entre essas duas ordens de pesquisas. Os primeiros ensaios para aperfeiçoar as teorias sociais, onde já se pode observar uma tendência vaga para despojá-las do caráter teológico, fizeram, porém, compreender ser tal transformação ainda muito superior às forças do espírito humano. As escolas filosóficas, cujas especulações haviam tomado mais particularmente tal diretriz, reconheceram que, sob este aspecto, e sobretudo no tocante às necessidades da organização social, era impossível ir além dessa grande generalização da doutrina teológica, a que já havia chegado, desde muito, a classe superior das hierarquias sacerdotais. Desde então, sendo os conhecimentos relativos ao mundo exterior e ao homem físico suscetíveis, por sua natureza, de aperfeiçoamento mais rápido, e, ao mesmo tempo, estando ligados, não menos diretamente, à ordem política, foram inteiramente separados das doutrinas sociais. Estas continuaram teológicas, enquanto as outras se tornaram metafísicas, aproximando-se, por consequência, mais do estado positivo. Foi assim que se estabeleceu, pouco a pouco, uma organização espiritual completamente diversa da organização das castas sacerdotais. Os nomes de sábio e de filósofo, que, a princípio, separando-se do de padre, tinham permanecido equivalentes entre si, se tornaram, por seu turno, perfeitamente distintos um do outro. O primeiro só se aplicou, desde então, aos pensadores entregues à cultura dos conhecimentos físicos, e cuja existência isolada, mesmo especulativamente, do movimento da sociedade, foi ainda mais exclusivamente teórica do que a dos primeiros sábios da Grécia. (Nessa época, pode ver-se em Arquimedes o tipo perfeito da classe científica propriamente dita. A atividade tão exclusivamente especulativa dessa classe é, sem dúvida, bem caracterizada pelo quadro que traçam os historiadores da morte sublime desse grande homem; mas o é ainda mais profundamente pela admirável ingenuidade com que se desculpa, perante a posteridade, de haver momentaneamente sacrificado seu gênio a descobertas de utilidade material). O segundo designou apenas os que se ocupavam, com exclusividade, dos estudos morais e sociais, e, daí por diante, se esforçaram em participar sempre, cada vez mais, do governo espiritual. Numa palavra, a distinção foi, desde essa época, essencialmente a mesma que subsiste ainda hoje. As duas classes estavam de tal modo separadas, que não tardaram a tornar-se rivais nas últimas épocas da filosofia grega. Foi nas proximidades do século de Alexandre que a separação começou a pronunciar-se com clareza, sendo profundamente caracterizada por duas grandes séries de trabalhos: os de Aristóteles, com direção especialmente científica, e os de Platão, com orientação filosófica propriamente dita. A formação do museu de Alexandria, tão diferente das antigas escolas gregas, é um testemunho irrecusável de tal separação, ao mesmo tempo em que poderosamente contribuiu para desenvolvê-la. Foi através dessa separação que se realizaram todos os progressos ulteriores do espírito humano. As ciências, inteiramente isoladas, puderam desde então estender-se, subdividir-se, aperfeiçoar-se, tornando-se, pouco a pouco, positivas, de metafísicas que eram no começo desse período, sem perturbarem a economia social. Concentrando suas forças sobre um ponto único, pôde a filosofia determinar, na massa das nações policiadas, a passagem do politeísmo para o teísmo, e desenvolver assim, em toda a sua energia, o poder das doutrinas teológicas para civilizar o gênero humano. Esta organização espiritual, nascida na Grécia, foi o primeiro fundamento do sistema social, estabelecido doze séculos após, tendo por caráter básico a admirável separação do poder espiritual relativamente ao temporal, que o tornou tão superior ao sistema teocrático. O germe dessa separação existia, sem dúvida, na atividade puramente especulativa das seitas filosóficas no seio das populações gregas. Mas, para que pudesse desenvolver-se, era mister, primeiro, que a separação entre as ciências e a filosofia permitisse a esta última tender livremente para a reunião das diversas escolas num teísmo comum. Atingido este alvo, a divisão não exigiu mais do que uma grande condição temporal a fim de começar diretamente a determinar uma nova organização social. Consistia essa condição na decadência do sistema de conquista, produzida pela reunião de todo o mundo civilizado sob um domínio único, resultante da preponderância de Roma. Quando estas duas bases fundamentais foram assentadas, a marcha dos acontecimentos pode acelerar ou retardar o desenvolvimento do sistema social da Idade Média, mas este deveu necessariamente acabar por constituir-se. Se a origem inicial deste sistema deve ser atribuída à organização do espírito humano na Grécia, descobre-se também nela a causa primitiva da decadência que experimentou durante os quatro últimos séculos. Pela separação absoluta estabelecida entre as ciências e a filosofia, não pôde o sistema teológico relacionar-se com os conhecimentos especiais senão no estado em que se achavam quando ele tomou seu caráter definitivo. Era-lhe necessariamente impossível prestar-se a seus progressos ulteriores. Quando estes começaram a tornar-se positivos, a incompatibilidade intelectual entre a teologia e a física não tardou a revestir um caráter político e a pronunciar-se, mais ou menos abertamente, como hostilidade fundamental entre o poder espiritual e a classe científica, primitivamente constituída fora do sistema social. (Alguns pensadores, muito ilustres, que sentem a verdadeira causa da decadência do sistema teológico, desejariam, hoje, a fim de restaurá-lo, refundi-lo com as ciências. Mas é desconhecer a observação fundamental, que acabo de indicar. Mesmo se a heterogeneidade radical da teologia e da física não tornasse sua combinação absolutamente impossível, seria necessário, para efetuá-la, poder recomeçar sucessivamente, em sentido inverso, todas as modificações sobrevindas, desde Pia tão, na organização espiritual da sociedade. Sem dúvida, a Europa atual não poderia de novo tornar-se egípcia). Tal é o grande cisma originário que se tornou, mais tarde, o modo geral da desorganização desse regime. Platão proibia a entrada, em sua escola, a todos os homens estranhos à geometria, a única ciência que possuía, então, caráter pronunciado. Durante cerca de um século, seus discípulos tiveram grande papel no aperfeiçoamento deste ramo de nossos conhecimentos. Mas imperiosa necessidade manifestou logo plenamente a impossibilidade de conciliar tal ordem de pesquisas com os trabalhos filosóficos, que esta seita considerava justamente como os mais importantes a serem por ela empreendidos, e como lhe sendo especialmente destinados por sua constituição primitiva. Tornou-se, por isto, pouco e pouco e para sempre, perfeitamente estranha ao movimento científico. Arquimedes, Apolônio e Hiparco, os três grandes matemáticos da antiguidade, não eram certamente adeptos de Platão. Durante muito tempo, a oposição fundamental entre as ciências e a filosofia não foi bastante profunda para que sua rivalidade pudesse comprometer o sistema teológico. Quando começou a fazer-se sentir, foi perigosa para as próprias ciências, antes de sê-lo para a teologia. Santo Agostinho tenta, em verdade, refutar os raciocínios dos astrônomos de Alexandria sobre a esfericidade da Terra e tal empreendimento, por parte de tão grande espírito, mostra claramente até que ponto havia chegado, naquela época, o isolamento entre a filosofia e as ciências. Mas, ao mesmo tempo, reconhece-se que esta discussão era, para ele, puramente filosófica, e, como membro do poder espiritual, não lhe atribuía, de modo algum, a grande importância daquela que foi determinada mais tarde pelas descobertas de Copérnico e Galileu. A reorganização do estado social, sob a influência do teísmo, era uma operação muito importante para não atrair, quase exclusivamente, todas as forças intelectuais, e exigir acima de tudo a atenção e a estima da sociedade. Por isto mesmo, durante sua longa duração, as ciências foram, comparativamente, muito abandonadas, pelo menos no Ocidente. (Considera-se comumente esta espécie de abandono das ciências como uma consequência das invasões dos bárbaros; mas é, evidentemente, muito anterior. Manifestou-se desde os primeiros séculos do cristianismo, pelo estado de torpor em que caiu o museu de Alexandria. Veem-se mesmo sinais muito claros desta tendência a partir do momento em que o platonismo começou a triunfar sobre as outras seitas filosóficas. O afastamento e mesmo a animosidade recíproca, entre os homens de ciências e os filósofos propriamente ditos, desenvolveram-se, desde então, sempre cada vez mais). Além disto, a própria lentidão de seus progressos permitia facilmente aos membros do poder espiritual manterem-se ao seu nível, sem que o seu caráter teológico fosse de modo algum alterado. Mas, quando a natureza do sistema social foi definitivamente desenvolvida pelos trabalhos do grande Papa Hildebrando e de seus primeiros sucessores, então o germe da dissolução que o sistema continha desde o seu nascimento começou logo a tornar-se sensível. Voltando-se as principais forças do espírito humano e a atenção pública pouco a pouco para as ciências, determinaram grandes e rápidos progressos nessa direção. Desde esse momento, o poder espiritual não tardou a declinar, mormente quando o caráter positivo de nossos conhecimentos começou a acentuar-se. Em vão o clero testemunhou, a princípio, empenho muito honroso em apoderar-se do novo domínio intelectual. Vontades individuais, ou mesmo coletivas, por mais poderosas que fossem, não podiam prevalecer contra a inflexível natureza das coisas, a qual estabelecia uma incompatibilidade absoluta entre a teologia e a física. Nem também podiam prevalecer contra esse caráter de isolamento das ciências, tão profundamente impresso pela filosofia teológica da Idade Média, desde a sua origem, e que desde então se tinha desenvolvido continuamente. Acabou-se por sentir geralmente que a cultura dos conhecimentos positivos não podia pertencer, de pleno direito, senão a espíritos que lhes fossem inteiramente devotados e não tivessem de sustentar doutrinas heterogêneas. (Mais tarde, a nova série de esforços - tentados, com tanta perseverança e habilidade, pelos jesuítas, para se apoderarem do domínio das ciências, e que não teve melhor resultado do que a antiga, tornou ainda mais sensível a impossibilidade radical de semelhante empresa). Os grandes estorços do clero, nos séculos XII e XIII, a fim de apoderar-se das teorias naturais em seu nascimento, foram singularmente favoráveis a seus progressos, porque essa corporação era, então, a única cujos membros pudessem entregar-se, sem obstáculos, à atividade especulativa. Mas não mudaram nem podiam mudar o caráter sacerdotal. Se alguns eclesiásticos se votaram inteiramente a essa nova classe de trabalhos, deixaram de ser padres para se tornarem cientistas, sem que, por isto, a oposição natural dos dois sistemas intelectuais diminuísse de qualquer modo. Somente como físicos são hoje citados Alberto Magno e Rogério Bacon, sem que ninguém se recorde de haver sido um arcebispo e o outro monge. A incompatibilidade das teorias naturais e da filosofia teológica não tardou a manifestar-se claramente, pouco tempo depois desses dois homens ilustres, pela lentidão com que geralmente o clero se entregou a este novo estudo, e mesmo pela espécie de aversão instintiva que em breve lhe inspirou. Observa-se um sinal sensível dessas disposições na obrigação em que os reis se julgaram de logo instituir, e cada vez mais, um ensino especial das ciências, sob sua proteção imediata, e de todo independente da autoridade eclesiástica. E dessa época que datam a primeira extensão da metafísica às ideias morais e sociais, e também as primeiras tentativas diretas de oposição às doutrinas do clero. Pela influência destas diversas ordens de fatos, a separação e a oposição entre a ciência e a teologia foram, daí por diante, aos olhos de todos, plena e irrevogavelmente estabelecidas. As lutas, ainda mais perceptíveis, que ocorreram depois, não fizeram senão desenvolver continuamente tal antagonismo. Não cabe entrar aqui em particularidades de exposição. Basta haver verificado que, desde a época em que a filosofia teológica da Idade Média chegou a produzir, por inteiro, a organização social correspondente, sua atividade foi essencialmente defensiva; uma nova ordem espiritual nasceu pelo desenvolvimento das teorias naturais, atraindo, quase sempre desde então, as grandes forças intelectuais; os conhecimentos positivos penetraram, cada vez mais, na educação geral; os sábios, numa palavra, mantidos fora do poder espiritual, adquiriram, pouco a pouco, todo o império sucessivamente perdido pelo clero. Que lhes resta fazer para constituírem, por seu turno, um novo poder espiritual a seu modo não menos poderoso do que o antigo? Cumpre-lhes completar o sistema dos conhecimentos naturais, formando a física social e, por conseguinte, realizar diretamente a construção final da filosofia positiva. Será assim, e somente assim, que, assumindo um caráter inteiramente geral, poderá a ciência tornar-se apta a suprir a impotência da teologia quanto ao governo moral da sociedade. Este esboço do futuro das Ciências leva a considerar uma terceira organização do corpo científico, que corresponde ao estado positivo da filosofia, como a organização grega a seu estado metafísico, e como a organização egípcia, ou asiática, a seu estado teológico. Tendo os cientistas conseguido, enfim, construir sua filosofia própria, incorporar-se-ão, de novo, à sociedade, para serem seus diretores espirituais de maneira absolutamente diversa da teocrática. Resta-me indicar o trabalho interior que se deve efetuar, para esta finalidade, na classe científica. Os limites deste escrito só me permitem apresentar mui sumariamente esta importante exposição. Voltarei, mais tarde, de maneira especial, sobre cada uma de suas partes essenciais. É sobretudo, o sistema intelectual positivo que exige e provoca a divisão do trabalho. Desde sua origem, o estudo das teorias naturais se foi constantemente subdividindo, cada vez mais, entre os diversos espíritos que com ele se ocupam. E só pelo seu indefinido acréscimo continuará, necessariamente, a subdividir-se sempre mais. Não se trata, portanto, da questão de imprimir aos sábios o caráter de generalidade, que ainda lhes falta, através de uma universalidade de trabalhos análoga à das castas sacerdotais, e que seria evidentemente impossível, dada a extensão atual de cada ordem de conhecimentos, admitindo-se mesmo pudesse tal projeto ser tentado. É, pelo contrário, por uma aplicação mais completa do princípio da divisão do trabalho, que esse indispensável aperfeiçoamento pode ser obtido. Trata-se unicamente de confiar o estudo social e a filosofia, que se tornaram positivos, a uma nova secção do corpo científico. Esta classe será distinta de todas as outras, mas somente tanto quanto estas o são entre si. Será continuamente levada, pela natureza de suas doutrinas, a manter-se com elas em relação direta e contínua, como elas o serão, reciprocamente, a seu respeito, por uma educação geral que precederá, para cada uma, à educação especial. Observando-se a formação interna do corpo científico, pode verificar-se que, sob o aspecto da organização, como sob o das doutrinas, só se trata de levar a seu completo desenvolvimento uma revolução que se ampliou sempre progressivamente até hoje. Isto é fácil de conceber segundo a ordem enciclopédica acima estabelecida. De fato, as diversas classes de cientistas, conquanto todas especiais, não o são no mesmo grau. Os geômetras são naturalmente os mais especiais, porque a sua ciência não se apoia em nenhuma outra, sendo, pelo contrário, a base de toda a filosofia natural. Quando se passa aos astrônomos, encontra-se já maior generalidade nos conhecimentos, porque, além do estudo direto dos fenômenos que consideram, estão necessariamente sujeitos ao emprego contínuo das ciências matemáticas. Os físicos, propriamente ditos, são ainda menos especiais, já que a natureza de seus estudos exige um recurso permanente aos métodos matemáticos e um conhecimento direto das leis gerais do sistema do mundo. Por motivo semelhante, os químicos que preenchem as condições impostas pela natureza dos fenômenos por eles estudados, possuem necessariamente um grau de generalidade ainda maior. Por fim, os fisiologistas, ocupados com fenômenos cujas leis se entrelaçam com as de todos os outros, são naturalmente os menos especializados dentre todos os cientistas, sendo obrigados a possuir um conhecimento, pelo menos geral, das ciências matemáticas, astronômicas, físicas e químicas. Os cientistas em física social não farão mais do que se elevar, necessariamente, na mesma direção, a um grau imediatamente superior ao dos fisiologistas. Estudando uma classe de fenômenos que, por sua natureza, dependem das leis de todos os precedentes, terão indispensavelmente necessidade de uma educação preliminar que os familiarize com o conhecimento dos métodos e dos resultados principais de todas as outras ciências positivas, única base racional de seus trabalhos próprios. Tendo, assim, constantemente sob os olhos o conjunto dos conhecimentos físicos, serão inevitavelmente levados a construir diretamente a filosofia positiva, logo que sua ciência especial houver feito suficientes progressos, de forma a não absorver exclusivamente toda a sua atividade. (Além disto, para terminar esta questão de universalidade, sobre a qual tanto se tem discutido, seria mister, ao que me parece, distinguir entre a universalidade ativa e a passiva. A primeira conduz à aspiração de aperfeiçoar, ao mesmo tempo, todos os ramos dos conhecimentos humanos: é evidentemente absurda e quimérica. Limitando-se à cultura especial de uma única ciência, consiste a segunda em possuir suficientes noções exatas sobre todas as outras, para bem compreender-lhes o espírito e sentir-lhes profundamente as relações com aquela de que se ocupa com exclusividade. Esta universalidade é, não só possível, mas indispensável mesmo em qualquer grau; existe, de fato, mais ou menos, nas diversas classes de cientistas, conforme ao que acabo de expor, e deve desenvolver-se completamente entre os que se dedicarem à física social). Ao mesmo tempo em que se formar esta nova classe de cientistas, operar-se-á também no corpo científico uma subdivisão importante, indispensável à precisão de seu caráter filosófico e, por consequência, à firmeza de sua ação política. Consistirá em um novo e último aperfeiçoamento: a divisão geral entre a teoria e a prática. Esta divisão é ainda incompleta, porque o caráter de engenheiro foi sempre, mais ou menos, contundido com o de cientista, que, mesmo hoje, o altera profundamente. Na origem das teorias naturais, esta confusão era, sem dúvida, inevitável; ao mesmo tempo era indispensável, a fim de tornar apreciável sua importância aos espíritos ainda muito rudes para compreenderem toda a utilidade teórica não suscetível de ser materializada imediatamente. Hoje, porém, esta relação direta e permanente não é mais necessária. É principalmente por sua importância filosófica que deverão as ciências ser doravante julgadas. Longe, portanto, de terem os cientistas de restringir seu profundo sentimento da dignidade teórica, devem, pelo contrário, resistir obstinadamente a todas as tentativas, que poderiam ser feitas, tendo-se em vista o espírito demasiadamente prático do século atual, a fim de reduzi-las às simples funções de engenheiros. Mas é sobretudo por doutrinas apropriadas que podem extinguir, em definitivo, pretensões que necessariamente conservarão certa legitimidade, enquanto as relações entre a teoria e a prática não forem regularmente organizadas por um sistema de concepções adaptado, de modo especial, a este destino. Tal sistema só os cientistas podem construí-la, porque deve derivar de seus conhecimentos positivos sobre a relação entre o mundo exterior e o homem. Esta grande operação é indispensável a fim de constituir a classe dos engenheiros como corporação distinta, servindo de intermediária permanente e regular, entre os cientistas e os industriais, para todos os trabalhos particulares. (Pode facilmente reconhecer-se no corpo científico, tal como existe hoje, certo número de engenheiros distintos dos cientistas propriamente ditos. Esta classe importante teve necessariamente de formar-se por último, quando a teoria e a prática, partindo de pontos tão opostos, avançaram bastante, ambas, para se darem as mãos, É isto que torna seu caráter distinto ainda tão pouco acentuado. Quanto às suas doutrinas próprias, que lhe devem dar existência claramente especial, não é fácil indicar-lhes a verdadeira natureza, porquanto delas até hoje só há alguns rudimentos. Só conheço a concepção do ilustre Monge sobre a geometria descritiva, que possa dar ideia exata dessas doutrinas, por ser a teoria geral imediata das artes de construção. É uma série de concepções análogas, relativas a todas as outras grandes operações práticas, racionalmente analisadas, o que deve formar o corpo da doutrina peculiar aos engenheiros, Esta formação supõe, naturalmente, já esteja a elaboração da filosofia positiva adiantada, até certo ponto, porque qualquer aplicação às artes exige ordinariamente a combinação de conhecimentos que se relacionam, ao mesmo tempo, com vários pontos de vista científicos. O estabelecimento da classe dos engenheiros, com seu caráter próprio, apresenta importância tanto maior quanto essa classe será, sem dúvida, o agente direto e necessário da coligação entre os cientistas e os industriais, única através da qual poderá diretamente começar o novo sistema social). Tais são, portanto, em resumo, as diversas doutrinas necessárias para completar a organização moderna do corpo científico, e já haviam sido por mim indicadas como indispensáveis para terminar a formação do sistema intelectual apropriado ao novo estado do espírito humano. Esses trabalhos, sem dúvida, não serão executados pelos cientistas atuais, cujas forças estão irrevogavelmente empenhadas em pesquisas muito importantes, que seria absurdo e funesto tentar interromper, Mas, por sua natureza, esses trabalhos somente poderiam ser empreendidos, com utilidade, por espíritos educados sob a influência dos diversos métodos positivos, não só familiarizados com os principais resultados de todas as ciências físicas, mas ainda sujeitos à sanção direta e contínua do corpo científico existente, É sobretudo a formação, mais ou menos rápida, dessa nova classe de cientistas, que naturalmente determinará a velocidade dos trabalhos complementares, destinados a investir, por fim, o sistema positivo da supremacia espiritual que a marcha invariável do gênero humano lhe assinala no futuro, Quando esses diversos trabalhos estiverem bastante adiantados, para tomarem caráter irrevogável, ver-se-á a educação social cair, espontaneamente e para sempre, nas mãos dos cientistas. Tudo já se acha preparado para esta grande revolução. Os conhecimentos naturais se tornaram, enfim, aos olhos de todos e se tornarão, cada vez mais, o objetivo principal do ensino. Se o sistema regular de instrução pública não corresponde suficientemente a esta premente necessidade dos espíritos atuais, estes procuram dar-lhe satisfação fora e conseguem aí encontrá-la, Continuando os governos a secundar, como fizeram desde a origem, esta tendência universal, criam com tal intuito uma série de novos estabelecimentos especiais. Desde os graus superiores da instrução teórica até os mais simples rudimentos, destinados às inteligências menos cultivadas, esforçam-se, por todos os meios à sua disposição, em imprimir aos espíritos o caráter positivo. (Ao que me parece, não se tem considerado, sob o ponto de vista conveniente e com toda a atenção necessária, a série de esforços feitos, particularmente nos últimos trinta anos, pelos diversos governos europeus a fim de propagarem, em todas as classes da sociedade, a instrução científica através de instituições especiais, independentes das universidades regulares. Tal movimento acentuou-se primeiro pela fundação de uma escola (Escola Politécnica) que apresentou a inovação filosófica de um estabelecimento de instrução teórica, de alto grau de generalidade, cujo caráter positivo é, todavia, absolutamente isento de qualquer mescla teológica e metafísica. Este movimento continuou, depois, ininterruptamente, com intensidade sempre crescente. Neste momento, a classe operária é imediatamente chamada a dele participar pelas instituições de que foram zelosos defensores, em França, o Sr. Charles Dupin, e, na Inglaterra, o Dr. Birbeck, e que os governos poderosamente animam. Estabelecimentos semelhantes vão ser criados mesmo na Rússia; existem já na Áustria e na Prússia, e dentro de alguns anos se multiplicarão por toda a Europa. Sua influência não deixará de determinar a fundação de instituições análogas e mais elevadas para as classes superiores da indústria, como se pode começar a observar na Inglaterra. É, talvez, por esta via direta que a educação social poderá ser inteiramente regenerada, quando se formarem as doutrinas necessárias, porquanto seria provavelmente muito embaraçoso refundir as universidades, partindo do seu estado atual). Numa palavra, as medidas políticas que, em verdade, podem contribuir para esta regeneração já se acham essencialmente desenvolvidas. Só falta a grande condição filosófica, sem a qual todos esses esforços parciais, por mais persistentes que sejam, não poderiam dar qualquer resultado muito importante, ou seja, a formação das doutrinas gerais positivas, acima indicadas. O conjunto das considerações apresentadas neste capítulo pode ser encarado como um primeiro esboço da questão do poder espiritual, tratada unicamente do ponto de vista filosófico. Depois de ter, assim, assentado, previamente, os princípios da discussão, poderemos agora examinar de modo direto, em todas as suas partes, esta grande questão, a mais fundamental que se possa hoje agitar. Tal será o objeto de um novo trabalho. QUINTO OPÚSCULO (Março de 1826) CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER ESPIRITUAL Os diversos sistemas sociais, estabelecidos na antiguidade, tiveram, como caráter comum, a confusão do poder espiritual com o temporal, quer um deles fosse completamente subordinado ao outro, quer estivessem ambos nas mesmas mãos, o que ocorreu com maior frequência. Sob este aspecto, tais sistemas devem ser distinguidos em duas grandes classes, de acordo com aquele dos dois poderes que era predominante. Nos povos onde, pela natureza do clima e da localidade, a filosofia teológica pôde formar-se rapidamente, enquanto o desenvolvimento da atividade militar permaneceu restrito, como no Egito e em quase todo o Oriente, o poder temporal foi, apenas, uma derivação c um apêndice do espiritual, regulador supremo e contínuo de toda a organização social, até nas menores particularidades. Ao contrário, nos países onde, por influência oposta de circunstâncias físicas, a atividade humana cedo se voltou essencialmente para a guerra, o poder temporal não tardou a dominar o espiritual, e a empregá-lo regularmente como instrumento e auxiliar. Tais foram, sem grandes discrepâncias, os sistemas sociais da Grécia e de Roma, apesar de suas importantes diferenças. Não cabe aqui explicar por que essas duas organizações foram necessárias aos países e às épocas em que se estabeleceram, nem como concorreram, cada qual a seu modo, para o aperfeiçoamento geral da espécie humana. Só as mencionamos agora para mostrar, com precisão, a diferença política mais importante que existiu, ao longo da duração do sistema teológico e militar, entre os caracteres que apresentou na antiguidade e os que tomou na Idade Média. Nesta última época, não só o sistema teológico-militar experimentou imenso aperfeiçoamento, pela fundação do catolicismo e do feudalismo, mas, além disto, a grande modificação política resultante desse estabelecimento, isto é, a divisão regular entre o poder espiritual e o temporal, deve ser considerada como tendo melhorado extremamente a teoria geral da organização social em toda a duração possível da espécie humana, e sob qualquer regime que deva subsistir. Por esta admirável divisão, as sociedades humanas puderam naturalmente estabelecer-se em escala muito maior, graças à possibilidade de reunir, sob um mesmo governo espiritual, populações muito numerosas e variadas de modo a exigirem diversos governos temporais distintos e independentes. Em uma palavra, pôde-se assim conciliar, em grau até então quimérico, as vantagens opostas da centralização e da difusão políticas. Tornou-se mesmo possível conceber, sem absurdo, em futuro longínquo, mas inevitável, a reunião de todo o gênero humano, ou, pelo menos, de toda a raça branca, em uma única comunidade universal, o que implicaria contradição, enquanto os poderes espiritual e temporal estivessem confundidos. Em segundo lugar, no interior de cada sociedade particular, o grande problema político, que consiste em se conciliar a subordinação ao governo, necessária à manutenção da ordem pública, com a possibilidade de se lhe retificar a conduta, quando se torna viciosa, foi resolvido, tanto quanto podia sê-lo, pela separação legal, estabelecida entre o governo moral e o governo material. A submissão pôde deixar de ser servil, tomando o caráter de assentimento voluntário, e a admoestação pôde deixar de ser hostil, ao menos dentro de certos limites, apoiando-se num poder moral legitimamente constituído. Antes desta época, não havia alternativa entre a submissão mais abjeta e a revolta direta, e tais são ainda as sociedades como todas aquelas organizadas sob o ascendente do maometismo, onde os dois poderes se acham legalmente confundidos desde a origem. Assim, em resumo, pela divisão fundamental organizada na Idade Média, entre o poder espiritual e o temporal, as sociedades humanas puderam ser, ao mesmo tempo, mais extensas e melhor ordenadas, combinação que todos os legisladores, e mesmo todos os filósofos da antiguidade, haviam proclamado ser impossível. Embora haja o sistema católico e feudal produzido, tanto quanto comportava a época em que dominou, todas as vantagens gerais que acabo de apontar como inerentes à divisão dos dois poderes, e haja assim contribuído, mais poderosamente do que todos os sistemas anteriores, para o aperfeiçoamento da humanidade, cumpre não deixar de reconhecer que sua decadência era, ao mesmo tempo, de todo inevitável e rigorosamente indispensável. Demonstrei precedentemente (Vide: Considerações filosóficas sobre as ciências e os cientistas) que a filosofia teológica e o poder moral, nela baseado, não podiam e não deviam ter, por sua natureza, senão um império provisório, mesmo no estado mais perfeito que puderam atingir, isto é, o catolicismo. Estabeleci que depois de haverem dirigido o gênero humano, em sua educação preliminar, deviam necessariamente ser substituídos, em sua virilidade, por uma filosofia positiva e um poder espiritual correspondente. É muito mais fácil fazer uma demonstração análoga a respeito do poder temporal que, fundando-se primitivamente na superioridade militar, deve, por fim, ser essencialmente ligado à preeminência industrial no modo de existência para o qual tendem, cada vez mais, as sociedades modernas. Destarte, por mais elevado que fosse o valor do sistema católico-feudal, para a época de seu triunfo, o desenvolvimento da espécie humana, na dupla direção científica e industrial, devia necessariamente acabar por destruí-lo, e tanto mais rapidamente quanto este sistema, mais do que qualquer outro, favoreceu tal desenvolvimento. Provei mesmo que, sob o ponto de vista espiritual, podia notar-se, na primeira fase deste sistema, o germe de sua destruição que se desenvolveu imediatamente após a época do seu maior esplendor. Esta observação, que é fácil estender à ordem temporal (pois a abolição da escravatura e a emancipação das comunas quase coexistiram com o estabelecimento completo do feudalismo), é evidente manifestação da natureza provisória do sistema social da Idade Média. Não faço aqui o histórico da formação desse regime nem de sua dissolução. Mas, para colocar em toda a sua evidência o estado moral da sociedade de nossos dias, que é o assunto próprio deste opúsculo, devo lançar uma vista geral sobre a maneira pela qual se operou a desorganização espiritual desse sistema e as principais consequências que engendrou. A destruição de um sistema social e a formação de outro são, por natureza, duas operações muito complicadas, exigindo muito tempo para serem levadas a efeito. Primeiro, a instituição de uma nova ordem política supõe a destruição prévia da ordem precedente, quer para tornar possível a reorganização, afastando os obstáculos que a impediam, quer para fazer sentir, convenientemente, a sua necessidade pela experiência dos inconvenientes da anarquia. Mas pode mesmo dizer-se, sob o ponto de vista puramente intelectual, que o espírito humano, em consequência da fraqueza de seus meios, não poderia elevar-se à concepção clara de um novo sistema social enquanto o anterior não fosse quase inteiramente dissolvido. Seria fácil verificar, por numerosos exemplos, esta deplorável necessidade. Todas as vezes que a espécie humana é levada a passar de um regime político para outro, apresenta-se, pela própria natureza das coisas, uma época inevitável de anarquia, pelo menos moral, cuja duração e intensidade são determinadas pela extensão e importância da reforma. Este caráter anárquico devia desenvolver-se necessariamente no mais alto grau, durante o período de desorganização do sistema católico e feudal, já que se tratava, então, da maior revolução que jamais se pôde verificar na espécie humana: a transição direta do estado teológico e militar para o estado positivo e industrial. Relativamente a ela, todas as revoluções anteriores foram apenas simples modificações. Foi também o que ocorreu nos séculos XVI, XVII e XVIII, durante os quais essa desorganização se efetuou. Em todo o curso deste período, que se pode, com todo direito, qualificar de revolucionário, todas as ideias antissociais foram agitadas e transformadas em dogmas, a fim de serem empregadas, de maneira contínua, na demolição do sistema católico e feudal, e reunir, contra ele, todas as paixões anárquicas que fermentam no coração humano, e são, nos tempos normais, comprimidas pela preponderância de um regime social completo. Assim, o dogma da liberdade ilimitada de consciência foi criado, a princípio, para destruir o poder teológico; em seguida o da soberania do povo para derrubar o poder temporal; e, por fim, o da igualdade, para dissolver a antiga classificação social, sem falar das ideias secundárias, menos importantes, que constituem a doutrina crítica, dentre as quais cada uma procurava demolir uma peça correspondente do antigo sistema político. Tudo o que se desenvolve com espontaneidade é necessariamente legítimo durante certo tempo, uma vez que satisfaz, por isto mesmo, alguma necessidade social. Estou muito longe, também, de desconhecer a utilidade e mesmo a absoluta necessidade da doutrina crítica nos três últimos séculos. Creio, além disto, que essa doutrina subsistirá inevitavelmente, apesar de todas as aparências contrárias, até o estabelecimento direto de um novo sistema social, e que exercerá, durante todo esse tempo, uma influência indispensável, e só então a existência do antigo sistema poderá ser tida como irrevogavelmente extinta. Mas, se, neste sentido, a ação da doutrina crítica deve ser considerada ainda necessária, em certo grau, ao desenvolvimento da civilização, não deixa de ser hoje, sob um aspecto muito mais importante, o principal obstáculo ao estabelecimento da nova ordem política, cujo preparo a princípio facilitou. Por uma fatalidade irresistível, os diversos dogmas de que se compõe a doutrina crítica não puderam adquirir toda a energia que lhes era necessária para preencherem completamente seu destino natural, a não ser tomando um caráter absoluto, que os tornou necessariamente hostis, não apenas ao sistema que tinham de destruir, mas relativamente a qualquer sistema social. Por isto, desde que a demolição da antiga ordem política se consumou suficientemente, a influência dos princípios críticos determinou, na sociedade, uma disposição, ora involuntária ora refletida, para repelir qualquer organização verdadeira. Ao mesmo tempo, o hábito contraído, durante três séculos, de aplicar essa doutrina a todas as questões sociais, levou naturalmente os espíritos a tomá-la como base da reorganização, quando as catástrofes determinadas pela destruição do antigo regime puseram em evidência a necessidade de retomar à ordem. Manifestou-se, então, o estranho fenômeno (inexplicável para os que não acompanharam o desenvolvimento histórico) da desordem moral e política erigida em sistema, e apresentada como o termo da perfeição social. E, de fato, cada um dos dogmas da doutrina crítica, quando tomado em sentido orgânico, leva a estabelecer exatamente, como princípio, sob o aspecto correspondente, que a sociedade não deve ser organizada. Seria fácil demonstrar, a propósito de cada um dos dogmas políticos modernos, que este juízo nada tem de exagerado. Mas não me proponho a empreender agora o exame direto e completo da doutrina crítica. Só o esbocei aqui para designar claramente o ponto de vista sob o qual considero essa teoria. Devo limitar-me, para minha finalidade atual, a considerá-la em seu princípio mais importante, isto é, na parte relativa à lei fundamental da divisão entre o poder espiritual e o temporal. Dentre todos os preconceitos revolucionários, produzidos durante os três últimos séculos pela decadência do antigo sistema social, o mais antigo, o mais arraigado, o mais universalmente difundido e o fundamento geral de todos os outros, é o princípio segundo o qual não deve existir na sociedade poder espiritual, ou, o que vem a dar no mesmo, a opinião que subordina completamente esse poder ao temporal. Os reis e os povos que lutam, mais ou menos abertamente em relação a todas as outras partes da doutrina crítica, estão de perfeito acordo quanto a este ponto de partida. Nos países onde o protestantismo triunfou, esse aniquilamento ou essa absorção do poder espiritual foi regular e ostensivamente proclamado. Mas, o mesmo princípio, em última análise, não deixou de ser menos realmente estabelecido, posto que de maneira mais indireta, nos países que continuaram a intitular-se católicos, nos quais se viu o poder temporal submeter completamente à sua dependência a hierarquia espiritual, e o próprio clero prestar-se voluntariamente a essa transformação, apressando-se em relaxar os laços que o ligavam a seu governo central a fim de nacionalizar-se. Em resumo, a fim de tornar sensível, por um único fato recente, toda a força e universalidade de tal opinião, bastará recordar que alguns filósofos, muito recomendáveis, ao tentarem lutar em nossos dias contra tal preconceito, não encontraram, em seu próprio partido, senão antagonistas obstinados. Depois da explicação geral que acima formulei, não temo me acusem, relativamente a esta ideia-mãe da doutrina crítica, assim como em relação a todas as outras, de desconhecer-lhes a utilidade e mesmo a necessidade temporárias a fim de operar a transição do antigo sistema social para o novo. Pensando, porém, que, se a demolição do primeiro sistema teve de começar pela ordem espiritual, a mesma marcha deve, necessariamente, ser seguida no estabelecimento do segundo, sou levado a examinar diretamente este princípio fundamental da doutrina crítica, a fim de chamar a atenção dos espíritos, tanto quanto me for possível, para as verdadeiras noções elementares da política geral, esquecidas há três séculos, no que elas têm de aplicável ao estado atual da sociedade. Tal o objetivo deste opúsculo, em que tratarei de demonstrar a necessidade da instituição de um poder espiritual, distinto e independente do temporal, e de determinar os principais caracteres da nova organização moral apropriada às sociedades modernas. Devo, antes de tudo, preparar os espíritos sensatos de modo a se colocarem num ponto de vista muito pouco acorde com os hábitos atuais. Com este fim, creio dever indicar diversas observações que, sem tratarem ainda da questão em si mesma, me parecem próprias para atrair a atenção sobre este assunto, fazendo sentir, de maneira empírica, que a tendência universal dos publicistas e dos legisladores modernos para uma organização política desprovida de poder espiritual deixa, na ordem social, imensa e funesta lacuna. A experiência do passado poderia evidenciar, de duas maneiras diversas, a necessidade da divisão entre o poder espiritual e o temporal: seja comparando o estado da espécie humana, sob o domínio do catolicismo e do feudalismo, com aquele em que a mantinham as organizações, essencialmente temporais, da Grécia e de Roma; seja mostrando os inconvenientes que produziu, desde o começo do século XVI, a supressão do poder espiritual, ou, o que é politicamente equivalente, sua usurpação pelo poder temporal. Embora fosse possível tirar, da primeira classe de observações, esclarecimentos essenciais, diretamente aplicáveis à questão atual, a grande diversidade das épocas, entretanto, os complicaria em demasia, para que pudessem produzir o sentimento de evidência que, sobretudo, quero aqui determinar; além disto, já indiquei suficientemente as bases de tal comparação no início deste opúsculo. Assim, limitar-me-ei exclusivamente, no que se segue, à segunda espécie de fatos, cujo testemunho, mais direto e mais sensível, deve ser mais decisivo. Resta-me, pois, considerar sumariamente, nas sociedades modernas, as principais espécies de inconvenientes políticos que se podem atribuir, com certeza, à dissolução do poder espiritual. Um exame desta importância exigiria, naturalmente, desenvolvimentos muito extensos. Mas, o leitor, uma vez colocado no ponto de vista conveniente, poderá, facilmente, suprir, por ele mesmo, as minúcias que me são aqui interditas. A fim de não introduzir, nesta série de observações, senão fatos suscetíveis de determinar uma convicção clara e irresistível, afasto de propósito a consideração das grandes catástrofes, se bem que remontem, em última análise, à desorganização espiritual da sociedade, porque, apesar desta origem, sua reprodução, de ora em diante, pode, com razão, ser considerada impossível. Limito-me a examinar o estado habitual dos povos civilizados, nos três últimos séculos, e tal como subsiste ainda hoje. Se se consideram, em primeiro lugar, as relações políticas mais gerais, vê-se que, enquanto o sistema católico conservou grande vigor, as relações de Estado com Estado foram submetidas, em toda a Europa cristã, a uma organização regular e permanente, capaz de manter, habitualmente, entre eles, certa ordem voluntária, e de imprimir-lhes, quando as circunstâncias o exigiram, uma atividade coletiva, como na vasta e importante operação das cruzadas. Numa palavra, foi possível contemplar então o que De Maistre chama, com tão profunda justeza, o milagre da monarquia europeia. Sem dúvida, tendo-se em vista o estado da civilização nessa época, esse governo era muito incompleto. Mas sob este aspecto, como sob o ponto de vista nacional, o governo mais imperfeito não é, afinal, muito preferível à anarquia? Que aconteceu, a este respeito, desde a absorção do poder papal? As diversas potências europeias entraram, umas em relação às outras, no estado selvagem; os reis fizeram gravar em seus canhões a inscrição, desde então exatamente verdadeira: ultima ratio regum. Que expediente se imaginou para preencher o vazio imenso que deixava, a este respeito, a anulação do poder espiritual? Devemos, sem dúvida, fazer justiça aos esforços muito apreciáveis dos diplomatas para produzir e manter, na falta de um laço efetivo, o que se chamou o equilíbrio europeu; mas, não se pode deixar de sorrir ante a esperança de formar, por semelhante meio, um verdadeiro governo de Estados. É evidente que esse sistema de equilíbrio, considerado em sua duração total, ocasionou mais guerras do que as tem impedido. O abalo produzido pela revolução francesa o reduziu a pó, e cada Estado permaneceu na intranquilidade contínua de uma invasão geral por parte de alguma potência. N o momento em que escrevo este opúsculo, a Europa inteira não está prestes a recear, posto que erradamente, sem dúvida, ver todo o sistema de relações exteriores comprometido pela morte de um só homem? Ao que precede, cumpre acrescentar que, segundo observação mui judiciosa de De Maistre, a ação do poder espiritual, no tocante ao que considero, deve ser julgada não só pelo bem apreciável que produz, mas principalmente pelo mal que evita, o que não é tão fácil verificar. Um exemplo memorável, indicado por esse filósofo, pode tornar evidente a importância de tal observação. Na formação do sistema colonial, que se seguiu à descoberta da América, duas nações eminentemente rivais, podendo cada uma invejar à outra as mais importantes possessões coloniais do globo, e que estavam, em imensa extensão, em contato perpétuo, jamais tiveram, por este motivo, uma só guerra, ao passo que todas as outras potências europeias se disputavam, com o mais obstinado encarniçamento, algumas possessões quase insignificantes. Como se produziu tão grande resultado? Por um único ato do poder espiritual, apesar de abalado em sua existência. Bastou simples bula de Alexandre VI que, desde a origem, equitativamente traçou uma linha geral de demarcação entre as possessões coloniais da Espanha e as de Portugal. Repito: tudo o que sucedeu devia suceder, e de certo estou também muito longe de queixar-me esterilmente do passado. Mas seja-me permitido notar, com o grande Leibniz, o fato da importante lacuna deixada na organização europeia pela dissolução inevitável do antigo poder espiritual, e daí concluir que, quanto a este primeiro aspecto, o estabelecimento de um novo governo moral é imperiosamente reclamado pelo estado presente das nações civilizadas. Lançando agora os olhos sobre a organização interior de cada povo, a mesma necessidade se torna ainda mais sensível, por uma série de motivos, dentre os quais me limito a indicar os mais gerais. A decadência da filosofia teológica e do poder espiritual correspondente deixou a sociedade sem qualquer disciplina moral. Daí, esta série de consequências que assinalo na ordem em que se encadeiam reciprocamente: 1ª - A mais completa divagação das inteligências. Tendendo cada qual a formar, por suas próprias forças, um sistema de ideias gerais, sem preencher qualquer das condições indispensáveis para isto, tornou-se pouco a pouco rigorosamente impossível obter, nas massas, entre apenas dois espíritos, um acordo real e durável sobre qualquer questão social, mesmo muito simples. Se esta anarquia se pudesse limitar ao que tem de ridículo, o mal seria sem importância, e a sátira bastaria para reduzi-lo a seus limites convenientes. Mas a facilidade que daí resulta de conceber, como pouco mais ou menos plausíveis, o pró e o contra sobre a maior parte dos pontos cuja fixidez interessa tão eminentemente à boa ordem, produz efeitos de gravidade muito diversa. Para convenientemente reconhecer a profundidade e o caráter universal desta anarquia intelectual, cumpre notar não existir ela hoje somente entre os partidários da doutrina crítica, em cujo espírito está constituída como dogma fundamental; mas, o que é muito mais decisivo, podemos percebê-la também, embora naturalmente em grau muito menor, entre os partidários da doutrina retrógrada, onde é, em contradição com sua tendência, um resultado involuntário da marcha geral e irresistível do espírito humano. Antes de tudo, observa-se, entre eles, uma primeira grande divisão, que degenera muita vez em oposição direta, entre os defensores do catolicismo e os do feudalismo. Além disto, considerando apenas os primeiros, cujas opiniões são necessariamente mais compactas, reconhece-se que, se convergem sobre grande número de pontos, para poderem ser considerados como formando uma escola única, não deixam de apresentar, por isto, sobre questões fundamentais, divergências mui essenciais, que acabariam por conduzi-los, na prática, a resultados inteiramente incoerentes, se o atual estado da sociedade permitisse ampla aplicação de suas doutrinas. É o que pode patentear um exame atento das teorias produzidas, neste sentido, pelos principais pensadores - De Maistre, De la Mennais, De Bonald e d'Eiktein. Suas diversas opiniões manifestam, cada qual, no fundo, grau muito evidente de individualismo sobre os pontos mais importantes. (O filósofo mais consequente, entre todos os que escrevem, hoje, nesta direção, De la Mennais, acaba de ser levado recentemente a uma infração solene de seus princípios fundamentais, invocando formalmente a liberdade dos cultos). 2ª - A falta quase total de moral pública. De um lado, já não sendo o destino de cada indivíduo, na sociedade, determinado por nenhuma das máximas geralmente respeitadas, e devendo as instituições práticas conformar-se com esta situação dos espíritos, o surto das ambições particulares não é mais, de fato, contido senão pelo poder irregular e fortuito das circunstâncias exteriores, próprias aos diversos indivíduos. Por outro lado, procurando em vão o sentimento social, quer na razão privada, quer nos preconceitos públicos, noções exatas e fixas sobre o que constitui o bem geral em cada caso que se apresenta, acaba por degenerar, pouco a pouco, em vaga intenção filantrópica, incapaz de exercer qualquer ação real sobre a conduta da vida. Por esta, dupla influência, cada indivíduo, nas grandes relações sociais, é gradualmente levado a considerar-se o centro, e como só a noção do interesse particular permanece clara no meio de todo este caos moral, o egoísmo puro torna-se naturalmente o único móvel bastante enérgico para dirigir a existência ativa. Este resultado, tifo sensível hoje na moral pública, estende-se mesmo, até certo ponto, à moral privada. Esta depende, felizmente, de muitas outras condições além das opiniões preestabelecidas. O instinto natural, que fala muito mais claramente neste caso do que no precedente; o poder sempre crescente dos hábitos de ordem e de trabalho, que tendem tão fortemente a afastar a ideia do vício; a melhoria geral das condições, produzida pelo desenvolvimento contínuo da indústria, que torna as tentações menos vivas e menos frequentes; o abrandamento universal dos costumes, resultante do aperfeiçoamento da civilização; todas estas causas devem, sem dúvida, contrabalançar extremamente a imoralidade que a ausência de princípios fixos de conduta tende hoje a produzir. A falta de organização, entretanto, produz, mesmo sob este aspecto, efeitos incontestáveis, embora mais difíceis de distinguir. Que cada qual, consultando sua experiência cotidiana, e afastando previamente os casos grosseiros, nos quais a evidência do mal é muito palpável para não ser sufocado em seu germe, examine se a vida real não se ressente do estado flutuante em que se encontra hoje a maior parte das ideias de dever, seja na convivência entre familiares, seja nas relações habituais e mútuas dos superiores e inferiores, seja nas relações recíprocas dos produtores e consumidores, etc. Além disto, uma observação indireta pode dispensar, até certo ponto, a verificação imediata, relativa a este assunto. É o fato da preponderância obtida quase geralmente, pelo menos na prática, por teorias morais que pretendem explicar todos os sentimentos do homem atribuindo-os exclusivamente ao interesse pessoal. Se, quando consideradas especulativamente, o instinto moral repele essas teorias, no mundo real tornam-se o modo permanente de explicação, e ainda mantêm, entre os filósofos, um crédito que não é senão um índice muito fiel do verdadeiro estado da sociedade. A opinião dominante hoje, entre eles, de que a legislação penal é, em última análise, o único meio eficaz de assegurar a moralidade nas classes inferiores, confirma claramente esta observação. 3ª - A preponderância social, concedida cada vez mais, há três séculos, ao ponto de vista puramente material, é ainda uma consequência evidente da desorganização espiritual dos povos modernos. Tendo o poder prático, desde o século XVI, anulado ou subalternizado, cada vez mais, o poder teórico, o mesmo espírito insinuou-se em igual proporção em todos os elementos da sociedade. Chegou-se, em tudo, pouco a pouco, a considerar, quase exclusivamente, a utilidade imediata ou, pelo menos, a colocá-la em primeiro plano. Assim, por exemplo, na apreciação racionar das ciências, ignorou-se mais e mais sua importância filosófica, e só foram avaliadas em razão de seus serviços práticos. Este espírito, essencialmente material, é sobretudo sensível na Inglaterra, onde, por um concurso de causas especiais, essa espécie de organização social provisória, formada desce o século XVI, adquiriu maior consistência do que no continente; domina muito mais ainda nos Estados Unidos, onde a desorganização espiritual foi levada muito mais longe do que em qualquer outra parte. Quando a marcha dos acontecimentos trouxe a época das constituições, o mesmo caráter se pronunciou de maneira eminentemente notável nesta nova esfera de atividade. A atenção voltou-se exclusivamente para a parte material deste grande trabalho. Preocupam-se, diretamente, em refundir todas as instituições práticas; chegaram até a regulamentar, na menor minúcia, as formas das assembleias deliberativas, sem cogitar de estabelecer previamente novas doutrinas sociais, sem ter ao menos tentado determinar, com exatidão, o espírito do novo sistema político. Hoje mesmo, quando, graças à experiência, a sociedade entra em melhores vias, pelo menos no sentido de ter renunciado definitivamente às constituições metafísicas, é de recear que a influência dos mesmos hábitos ainda embarace, por muito tempo, a verdadeira reorganização. E, sem dúvida, pelo restabelecimento de uma ordem moral que deve necessariamente começar essa vasta operação, sendo a reorganização dos espíritos, ao mesmo tempo, mais urgente e estando mais amadurecida do que a regulamentação das relações sociais. E provável, todavia, que a disposição, ainda muito pronunciada nos povos, de pedir imediatamente instituições, ou, em outros termos, de querer reconstruir o poder temporal antes do espiritual, será, a princípio, poderoso obstáculo à adoção desta marcha natural, única eficaz. 4ª - Devo, por fim, indicar, como derradeira consequência geral da dissolução do poder espiritual, o estabelecimento dessa espécie de autocracia moderna, que não possui nenhuma analogia exata na história e se pode designar, na falta de expressão mais justa, pelo nome de ministerialismo ou de despotismo administrativo. Seu caráter orgânico próprio é a centralização do poder, levada, de modo crescente, além de todos os limites razoáveis, sendo seu meio geral de ação a corrupção sistematizada. Uma e outra resultam, inevitavelmente, da desorganização moral da sociedade. Uma lei natural, muito conhecida em política, estabelece formalmente que o único meio de não ser o homem governado, é governar-se a si mesmo. E aplicável às massas como aos indivíduos, às coisas como às pessoas. Significa, em sua acepção mais lata, que, quanto menos energia tiver o governo moral em uma sociedade, mais indispensável se tornara adquira intensidade o governo material a fim de impedir a completa decomposição do corpo social. Como se conceberia, por exemplo, numa população tão extensa como a da França, onde nenhum laço moral combina suficientemente as diversas partes, não se dissolvesse a nação em comunidades parciais, cada vez mais restritas, se, na falta de espírito comum, um poder temporal central não mantivesse todos os elementos sociais em dependência imediata e contínua? Tal efeito não seria mais do que a continuação da influência do mesmo princípio, o qual, como acima indique, decompôs em nacionalidades independentes a antiga sociedade europeia. Por isto a centralização temporal se efetuou de maneira crescente, à medida que a desorganização moral se manifestou mais completa e mais sensível. A mesma causa, que tornava indispensável esse resultado, tendia, sob outro aspecto, a engendrá-lo inevitavelmente, pois a anulação do poder espiritual destruiu a única barreira legal capaz de conter as usurpações do poder temporal. Quanto à corrupção, erigida em meio permanente de governo, esta deplorável consequência resulta, mais claramente ainda do que a anterior, do aniquilamento do poder espiritual. Poder-se-ia pressenti-la, vendo nascer esse vergonhoso regime no país onde a degradação da autoridade moral foi mais fortemente constituída de maneira legal. Mas é fácil nos darmos conta disto diretamente. Numa população onde o concurso indispensável dos indivíduos à ordem pública não pode mais ser determinado pelo assentimento voluntário e moral, por todos conferido a uma doutrina social comum, não resta outro expediente, para manter qualquer harmonia, senão a triste alternativa da força ou da corrupção. O primeiro meio é incompatível com a natureza da civilização moderna, desde que o caráter temporal da sociedade deixou de ser acentuadamente militar para apresentar-se essencialmente industrial. A riqueza que, pela instituição da propriedade, era, a princípio, a medida regular da força, por ser seu resultado permanente, tornou-se, cada vez mais, nos séculos modernos, sua origem principal e constante. Seria, sob este aspecto, designada muito exatamente pelo nome de força virtual. Daí resultou, insensivelmente, que, como meio de disciplina, a violência acabou por transformar-se em corrupção. O estado atual das sociedades repele tanto o primeiro processo, quanto se presta ao segundo, desde que a desorganização moral começou a pronunciar-se claramente. Os governos somente poderiam atuar sobre os indivíduos empregando, em maior escala, os mesmos processos que estes reconhecessem, entre eles, como os mais eficazes para influir cotidianamente uns sobre os outros. Assim sendo, quando o interesse pessoal é considerado, nas relações privadas, como o único móvel em cuja energia se possa depositar confiança suficiente, podemos estranhar seja o poder central levado a empregar igual meio de ação? Este resultado desolador não deve ser atribuído nem aos governantes, nem aos governados; provém de suas falhas mútuas, ou, mais exatamente, é a consequência penosa, mas felizmente momentânea, do estado passageiro de anarquia em que necessariamente devia achar-se a sociedade, durante a transição do sistema teológico e militar para o positivo e industrial. Se o quadro, que acabo de esboçar, dos efeitos gerais gradualmente produzidos, desde o século XVI, pela desorganização moral da sociedade, for julgado conforme a observação, e, se os fatos forem reconhecidos como derivados da causa que lhes assinalo, como tenho firme esperança, farão, sem dúvida, compreender que o estabelecimento de um novo poder espiritual é de importância ainda maior, sob o aspecto nacional, do que sob o europeu. Para impedir, tanto quanto possível, qualquer interpretação inexata de meu pensamento, declaro aqui, sob o primeiro aspecto, como já o fiz sob o segundo, que, em minha opinião, esse estado de anarquia, cujas funestas consequências deploro como todos os verdadeiros observadores, foi não só o resultado inevitável da decadência do antigo sistema social, mas ainda uma condição indispensável para o estabelecimento do novo. Retomando, sob este último aspecto, o exame direto dos quatro fatos gerais, acima expostos, eu poderia provar, a propósito de cada um deles, que, se cada qual apresenta uma monstruosidade revoltante, quando o concebemos como estado permanente (ao qual conduz, a rigor, a doutrina crítica, tomada em sentido orgânico), o mesmo não se dá quando o consideramos como estado puramente transitório. Limito-me a indicar este novo exame quanto ao primeiro fato, base de todos os outros. A profunda anarquia hoje reinante nas inteligências acha-se não somente motivada, no passado, pela decadência necessária do antigo sistema social, mas será, além disto, ainda inevitável, e mesmo indispensável, até o momento em que as doutrinas destinadas a servir de fundamento à nova organização forem suficientemente constituídas. De um lado, enquanto perdurar essa espécie de interregno moral, haverá, por este fato, impossibilidade de disciplinar as inteligências. Por outro lado, se, antes do fim desta época, se tentasse determinar diretamente a união dos espíritos, como, por falta de doutrinas convenientes, só se poderia conseguir tal objetivo por meios materiais e arbitrários, sucederia, necessariamente, que o livre surto do pensamento, sendo impedido a uns para formarem as doutrinas, a outros para se porem em condições de adotá-las, a própria operação da reorganização ficaria detida. Tenho, assim, a convicção de apreciar mais do que ninguém todo o valor real da doutrina crítica, mas peço não se iludam mais sobre a sua verdadeira natureza. Chegou a época em que nos podemos dar racionalmente conta da marcha seguida; a rotina pura não é mais indispensável. E possível manter nos princípios críticos toda a influência que ainda devem exercer durante certo tempo, sem que sejamos, por isto, obrigados a concebê-las como orgânicos, e adormecermos assim em uma segurança fictícia relativamente aos graves e diversos perigos que ameaçariam a sociedade por um prolongamento vicioso da atual anarquia. Se esta disposição intelectual excede, talvez, o alcance da maioria dos espíritos, tal deve ser, pelo menos a meu ver, o ponto de vista doravante habitual aos pensadores que querem consagrar suas forças à grande operação social do século XIX. Pelo conjunto das considerações indicadas até aqui, espero ter suficientemente preparado todos os leitores que raciocinam, a verem tratar diretamente esta questão básica do poder espiritual, cujo despertar inspira hoje tantos temores pueris e quiméricos. Posso, portanto, proceder, sem hesitação, ao exame imediato do problema. A divisão atual das opiniões, relativamente ao princípio fundamental da necessidade de um poder espiritual, apresenta ao observador imparcial um contraste singular e mesmo penoso. De um lado, os que tomam a causa da verdadeira liberdade e da civilização, aqueles que, em uma palavra, se declaram como tendo especialmente uma tendência progressista, e a possuem efetivamente até certo ponto, dominados pelo desejo, legítimo em si, mas de nenhum modo racional de evitar, a todo custo, a teocracia, seguem para isto um caminho que, se pudesse ser percorrido até o fim, conduziria inevitavelmente, para não cair em completa anarquia, ao despotismo mais degradante: o da força desprovida de qualquer autoridade moral. De outro lado, os que são acusados de tendência retrógrada, e verdadeiramente merecem, de algum modo, tal acusação, não em suas intenções filosóficas, mas nas consequências inevitáveis que decorreriam da completa aplicação de suas doutrinas, são, no fundo, os únicos cujas teorias realçam convenientemente a dignidade humana, constituindo a superioridade moral como o corretivo e o regulador da força ou da riqueza. Pelas diversas considerações acima feitas, procurei demonstrar que o estado social das nações mais civilizadas reclama hoje, imperiosamente, a formação de nova ordem espiritual, como o primeiro e o mais importante meio de terminar o período revolucionário, iniciado no século XVI, e chegado, há trinta anos, a seu derradeiro termo. Trata-se, agora, de examinar, de maneira direta, a natureza da organização espiritual peculiar às sociedades modernas. Uma questão de tal modo fundamental, que se liga intimamente a todas as altas questões políticas, só poderia ser convenientemente tratada em obra especial, dirigindo-se apenas aos espíritos mais severos. Mas, embora as indicações muito sumárias, às quais estou aqui adstrito, sejam, sem dúvida, insuficientes para aprofundar, como convém, este problema, contribuirão, todavia, para talvez chamar sobre este assunto a atenção dos homens sérios, o que é, atualmente, meu objetivo essencial. Para ter-se um esboço completo da nova ordem moral, é mister considerar separadamente as funções que o poder espiritual deve desempenhar, abstraindo sua constituição própria, e, em seguida, considerar o caráter geral de sua organização para exatamente corresponder à natureza da civilização moderna. As explicações seguintes são exclusivamente consagradas ao primeiro gênero de considerações, reduzindo-se, em essência, à análise dos diversos e principais aspectos sob os quais a sociedade precisa de um governo espiritual. Mais tarde, examinarei a segunda parte da questão. Esta divisão é determinada pela marcha natural da razão pública, que, sem dúvida, chegará a sentir fortemente a necessidade de um novo poder moral, antes de claramente compreender sua verdadeira organização. Depois de haver assim indicado, em seu conjunto, a nova ordem espiritual, para a qual tendem as sociedades modernas, considerarei, num último trabalho, a marcha geral segundo a qual deve efetuar-se, pela natureza das coisas, este grande movimento de reconstrução, partindo do ponto a que hoje chegou. Seria, antes de tudo, fácil formar-se empiricamente uma ideia muito clara das atribuições do poder espiritual moderno, observando, com atenção, as do clero católico no apogeu de seu vigor e de sua completa independência, isto é, desde aproximadamente os meados do século XI até fins do XIII. Sem dúvida, as bases filosóficas destes dois poderes (o católico e o científico) e as relações sociais correspondentes, em consequência de suas maneiras próprias de influenciar, são de natureza inteiramente diversa, e mesmo, sob muitos aspectos, absolutamente oposta. Mas, quanto à amplitude e à intensidade de ação, o que é aqui o ponto principal a determinar, pode dizer-se que a cada um dos aspectos sociais que constituíam, para o clero católico, matéria a ser estatuída, corresponde, em o novo sistema político, uma atribuição análoga para o poder espiritual moderno. É mesmo verossímil que, devendo o novo sistema estabelecer-se de modo muito mais pacífico do que o antigo, e numa época mais esclarecida, onde sua natureza podendo ser melhor apreciada previamente, deve, só por isto, ser melhor compreendida, a intervenção do poder espiritual será, neste caso, mais explícita e completa, porque encontrará menos resistência no poder temporal correspondente. No entanto, por mais preciosa que seja esta comparação, pelo grau de precisão que comporta e seria muito difícil obter de qualquer outra maneira, somente poderá ser proveitosa aos espíritos capazes de fazer abstração da extrema diversidade dos dois estados de civilização, ou melhor, de não lhe conceder senão a sua justa parte de influência. É necessário, ao mesmo tempo, que tais espíritos hajam estudado o passado com disposições suficientemente libertas dos preconceitos viciosos, hoje inspirados quase sempre pela doutrina crítica contra o regime espiritual da Idade Média. Esta aproximação levaria, portanto, quase inevitavelmente, a maior parte dos leitores a falsas aplicações, que dariam ideia muito errônea de minha opinião. Assim, apesar de ter julgado conveniente indicá-la àqueles que a podem utilizar, farei sem deter-me mais sobre este ponto, uma exposição direta, considerando imediatamente as funções do poder espiritual moderno. Conquanto possa ser útil e mesmo necessário, em certos casos, considerar a ideia de sociedade, fazendo abstração da de governo, é universalmente reconhecido que estas duas ideias são efetivamente inseparáveis, isto é, que a existência durável de qualquer associação real supõe necessariamente uma influência constante, ora diretora, ora repressiva, exercida, dentro de certos limites, pelo conjunto sobre as partes, a fim de fazê-las concorrer para a ordem geral, de que tendem sempre, por natureza, a se afastar mais ou menos, e da qual se afastariam indefinidamente se fosse possível deixá-las entregues a seus impulsos próprios. Esta influência total compõe-se de duas espécies de ações, material uma e moral outra, inteiramente heterogêneas, quer em suas bases, quer em seus modos, embora sempre coexistentes. A primeira refere-se imediatamente aos atos, para determinar uns e impedir outros: fundamenta-se, afinal, na força, ou, o que significa o mesmo, na riqueza que se tornou o seu equivalente entre os povos modernos, à medida que os progressos da civilização transferiram para a preeminência industrial o poder civil, primitivamente conferido à superioridade militar. A segunda consiste em regular as opiniões, as inclinações, as vontades, numa palavra, as tendências. Tem por base a autoridade moral, que resulta, em última análise, da superioridade da inteligência e das luzes. É assim que, para a manutenção da ordem social, concorrem duas diferentes espécies de direção sobre as quais se baseia qualquer sociedade. Desde que a civilização progrediu suficientemente para que esses dois ramos gerais do governo pudessem ser atribuídos a classes diferentes, o que ocorreu na Idade Média, a distinção entre eles tornou-se sensível a todos os observadores, e foram criados, para designá-la, os nomes de poder temporal e poder espiritual, que, por isso mesmo, convém manter, ao menos provisoriamente, para o novo estado da sociedade, embora sua estrutura lembre ainda, essencialmente, o estado social em que se formaram. O poder espiritual tem, como destino próprio, o governo da opinião, isto é, o estabelecimento e a manutenção dos princípios que devem presidir às diversas relações sociais. Esta função geral se divide em tantas partes quantas são as classes distintas de relações, porque não há, por assim dizer, nenhum fato social em que o poder espiritual não exerça certa influência, quando está bem organizado, isto é, quando guarda exata harmonia com o estado de civilização correspondente. Sua atribuição principal é, portanto, a direção suprema da educação, quer geral, quer especial, mas, sobretudo, da primeira, tomando esta palavra em sua acepção mais ampla, fazendo-a significar o sistema completo de ideia e de hábitos, necessário ao preparo dos indivíduos para a ordem social em que têm de viver, e para adaptar, tanto quanto possível, cada um deles à função particular que aí deve desempenhar. É nesta grande função social que a ação do poder espiritual se torna mais nítida, porque lhe pertence exclusivamente, enquanto, em todos os outros casos, sua influência se entrelaça, mais ou menos, com a do poder temporal. É por este meio que prova, de maneira decisiva, suas forças, e, ao mesmo tempo, estabelece os fundamentos mais sólidos de sua autoridade geral. A educação abrange mesmo o conjunto das funções nacionais do ceder espiritual, se se compreendesse nelas, a exemplo de alguns filósofos, além do preparo da mocidade, a ação, tão importante, exercida sobre os homens adultos, seu complemento necessário e sua consequência inevitável. Esta segunda classe de funções espirituais consiste em representar continuamente, na vida ativa, quer aos indivíduos, quer às massas, os princípios de que foram imbuídos, a fim de lhes recordar sua observância, quando dela se afastarem, enquanto os meios morais forem eficazes para isto. (Além destas duas ordens de funções, o poder espiritual exerce ainda, evidentemente, como corporação sábia. influência consultiva, direta ou indireta, em todas as operações sociais. Mas este último gênero de atribuições, que se tenta agora conceber como muito amplo, e mesmo como principal, raciocinando de acordo com a educação tão viciosa e tão incompleta que se tem sob os olhos, entra essencialmente numa ou noutra das duas precedentes ordens de funções quando se considera um sistema social bem organizado, e foi por isto que não fiz, neste esboço sumário, menção expressa a seu respeito. Quando a educação é o que deve ser, quase nunca sucede que os indivíduos ou as massas tenham realmente, necessidade, na prática, de princípios gerais diversos daqueles em que foram educados; é necessário, somente, que se lhes recorde, ou se lhes explique a aplicação, porque tendem, naturalmente, a esquecê-las e a compreendê-las mal. Quando as necessidades gerais ou particulares da sociedade exigem, de fato, novos princípios, cumpre ao poder espiritual (que deve fornecê-las regularmente, como classe encarregada da cultura dos conhecimentos teóricos) introduzi-las, convenientemente, no sistema da educação). Tais são, sumariamente, as funções gerais do poder espiritual, considerado em uma nação isolada. Mas as relações de povo para povo lhe assinalam nova classe de atribuições, que são apenas a consequência das precedentes, transpostas para maior escala. Considerada abstratamente, a jurisdição do poder espiritual não comportaria, em sua circunscrição territorial, outros limites que não os do globo habitável, se todas as frações da espécie humana chegassem, pouco mais ou menos, ao mesmo estado de civilização, pois a associação espiritual é evidentemente suscetível, por sua natureza, de uma extensão indefinida. Considerada, porém, na realidade, abrange unicamente todos os povos (como, por exemplo, os da Europa) cujo estado social é assaz semelhante para que possa existir, entre eles, certo grau de comunidade permanente, mas nos quais a diversidade é, todavia, bastante grande para exigir vários governos temporais, distintos e independentes uns dos outros. Logo que esta semelhança existe, entretanto, estabelecem-se, inevitavelmente, relações contínuas, de onde resultam, ao mesmo tempo, a possibilidade e a necessidade de certa direção comum, destinada a regularizá-las, sujeitando-as a princípios gerais e uniformes. Não nos devemos admirar de que os filósofos católicos vissem, neste governo europeu, a atribuição principal e característica do poder espiritual, pois ela era a mais notável e a mais clara, como lhe pertencendo completa e exclusivamente. Sem dúvida, em cada estado social determinado, a associação de um número qualquer de homens sob um mesmo regime espiritual precede sempre, necessariamente, sua reunião sob um mesmo governo temporal. Isto é tão verdadeiro na ordem nacional, quanto na europeia. Mas esta verdade é infinitamente mais fácil de ser verificada no segundo caso do que no primeiro, porque, na ordem nacional, os dois poderes coexistem constantemente, enquanto na ordem europeia, pela natureza das coisas, a associação espiritual esteve sempre em pleno vigor muito tempo antes de qualquer começo de associação temporal, a tal ponto que, no antigo sistema político, a primeira pôde existir sozinha, e é mesmo ainda incerto se a segunda venha a existir, jamais, em qualquer sistema que seja. Tal é, pois, o segundo grande objetivo incontestável do exercício do poder espiritual: a reunião de todos os povos europeus, e, em geral, do maior número possível de nações, em uma só comunhão moral. Esta última função, que completa o quadro de suas atribuições, reduz-se, como as precedentes, ao estabelecimento contínuo de um sistema de educação uniforme para as diversas populações, e da influência regular que é a sua consequência necessária. É por aí que o poder espiritual se acha investido, em relação aos diferentes povos e a seus chefes temporais, da parte de autoridade indispensável a fim de serem levados, voluntária, ou involuntariamente, a submeter-lhe à arbitragem suas contestações, e a receber dele um impulso comum nos casos que exigem ação coletiva. Assim, em resumo, a vida dos indivíduos e a dos povos se compõem, alternadamente, de especulação e de ação, ou, em outros termos, de tendências e resultados. Estas duas ordens de fatos se entrelaçam de mil maneiras na existência real. O poder espiritual tem por objeto próprio e exclusivo a regulamentação imediata da primeira, e o poder temporal a da segunda. Cada um dos dois poderes age legitimamente todas as vezes que se limita estritamente à sua esfera natural de atividade, pelo menos tanto quanto a distinção é humanamente possível. Quando um deles usurpa, além desse limite, qualquer função do outro, há abuso, o que não quer dizer que tais usurpações, em um sentido ou em outro, não selam, ou não se possam tornar, momentaneamente inevitáveis e indispensáveis, em certas circunstâncias, sem por isto constituírem jamais o estado normal. Tal é a ordem padrão para a qual devem sempre tender as combinações políticas, embora seja de antemão indubitável que a deficiência da organização humana, quer sob o aspecto da inteligência, quer sob o das paixões, nos impede absolutamente a esperança, neste caso, como em qualquer outro, de obter jamais êxito completo. (Na ordem filosófica, a influência espiritual e a influência temporal serão sempre, por sua natureza, perfeitamente distintas; mas, na ordem política, a distinção, mesmo aproximativa, não é sempre possível. porque existe uma série de casos secundários de governo, que não cabe aqui indicar, nos quais não se poderia evitar que essas influências se achem reunidas, quase igualmente, nas mesmas mãos. O princípio fundamental da separação dos dois poderes exige simplesmente que jamais a posse simultânea de ambos, em alto grau, possa existir em nenhum indivíduo, nem em qualquer classe, o que é não só muito praticável, mas mesmo inevitável, desde longa série de séculos, e principalmente no sistema social moderno). Depois de haver estabelecido, para fixar as ideias, a definição geral do poder espiritual, em qualquer tipo de sociedade, torna-se fácil, especializando as considerações anteriores, verificar que esse poder, convenientemente reorganizado, não tem influência menor a exercer no sistema de civilização moderna do que no da Idade Média. Não devo aqui ocupar-me particularmente com este último, a cujo respeito envio os leitores aos trabalhos dos filósofos católicos, e sobretudo aos de De Maistre, que, em seu Tratado do Papa, apresentou a exposição mais metódica, - mais profunda e mais exata da antiga organização espiritual. (Os filósofos da escola retrógrada, e particularmente De Maistre, que pode hoje ser tido como seu chefe, têm apresentado, defendendo o sistema católico, algumas considerações gerais muito importantes acerca do poder espiritual, considerado em qualquer sociedade. Mas a estas concepções abstratas (embora suscetíveis de fornecer úteis indicações aos que desejam tratar. sob seu verdadeiro ponto de vista, esta questão fundamental) faltam simultaneamente precisão e generalidade necessárias para estabelecer uma opinião metódica. Nota-se nelas, constantemente, essa inconsequência radical que consiste em aplicar diretamente às sociedades modernas as considerações hauridas apenas na observação das sociedades da Idade Média, tão essencialmente diferentes. Além disto, ligadas, como sempre o são, ao projeto de restauração de um sistema cujo aniquilamento, já quase inteiramente consumado, é, doravante, irrevogável, essas ideias, no estado atual dos espíritos, tendem antes a fortalecer o preconceito geral contra qualquer poder espiritual, do que a destruí-lo. Pode-se mesmo observar que o sentimento involuntário, embora muito incompleto dessa desarmonia total com o seu século, inspira a esses filósofos uma espécie de hesitação e timidez sobre este assunto que se faz sentir até em seus julgamentos sobre o passado. Esses trabalhos, por conseguinte, sob o ponto de vista filosófico, têm apenas uma utilidade essencialmente histórica, como eminentemente próprios para demonstrar, meridianamente, o verdadeiro caráter geral do antigo sistema e fazer apreciar, com elevação, os imensos benefícios que o gênero humano lhe deve. A este respeito, as concepções da escola retrógrada conservam todo o seu valor, como sendo plena e diretamente aplicáveis a uma ordem de fatos para a qual, ou antes, segundo a qual foram sistematizadas. Mas, relativamente à reorganização moral das sociedades atuais, a questão deve ser considerada, apesar de todos esses trabalhos, como absolutamente intacta. Além disto, a influência política da escola retrógrada, sob este ponto de vista capital, não deixa de ser hoje muito útil e mesmo necessária, durante certo tempo, conquanto de maneira indireta e de algum modo negativa. Isto porque, de uma parte, ela apresenta obstáculo indispensável, preservando a sociedade da preponderância total das doutrinas críticas, que impediam qualquer organização efetiva. Ao mesmo tempo atua como estimulante, não menos essencial, para constranger a civilizarão moderna a produzir, enfim, o sistema moral que lhe é próprio, e dar-lhe toda a consistência que deve possuir, a fim de poder substituir o antigo. Neste sentido a influência da escola retrógrada é exatamente tão necessária como a da escola crítica, embora de maneira diversa, e deve naturalmente subsistir durante o mesmo tempo). Trata-se essencialmente de apresentar aqui o poder espiritual no estado social peculiar às nações modernas, e que considero como caracterizado, sob o aspecto temporal, pela completa preponderância da atividade industrial. Na ordem positiva, a organização social, encarada, quer em seu conjunto, quer em suas particularidades, consiste especialmente na regulamentação da divisão do trabalho, tomando-se esta última expressão, não no sentido infinitamente limitado que lhe deram os economistas (Tendo sido os economistas levados, pela natureza imperfeita das pesquisas que a marcha geral do espírito humano lhes havia destinado, a considerar o estado social sob um prisma muito incompleto, compreende-se, facilmente, que não deviam perceber, senão em suas aplicações menos desenvolvidas e menos importantes. o princípio da divisão do trabalho, do qual são, verdadeiramente falando, os inventores. Deve notar-se, para honra de Adam Smith, não apenas haver sido o primeiro a conceber este grande princípio, de maneira clara e positiva, mas também quem o apresentou sob um ponto de vista muito mais elevado do que todos os seus sucessores), mas em sua acepção mais ampla, vale dizer, aplicada a todas as diversas classes de trabalhos coexistentes, sejam teóricos, sejam práticos, classes que podem ser concebidas como concorrendo a um mesmo objetivo final, abrangendo tanto as especialidades nacionais, quanto as individuais. A separação e a especialização, cada vez maiores, das atividades particulares, quer de indivíduo a indivíduo, quer de povo a povo, constituem, efetivamente, o meio geral de aperfeiçoamento da espécie humana, e, por uma reação necessária e contínua, são também o seu resultado permanente. (As considerações indicadas neste parágrafo e no seguinte são, por sua natureza, aplicáveis tanto à ordem teórica, quanto à ordem prática, mas julguei dever aplicá-las aqui essencialmente à última, a fim de deduzir daí, mais claramente, a necessidade do poder espiritual, que é agora o meu principal objetivo). É através dessa separação que a sociedade tende naturalmente a tornar-se cada vez mais extensa, devendo acabar por abranger, cedo ou tarde, a totalidade do gênero humano, se a duração assinalada, pelo conjunto das leis do mundo, à atividade progressiva de nossa espécie for suficientemente prolongada. Todos os progressos reais que se têm verificado e se poderão verificar na organização social podem ser considerados, deste ponto de vista, como tendo tido, ou devendo ter, por último resultado, estabelecer melhor distribuição do trabalho. Na verdade, a ordem social seria evidentemente perfeita, quer sob o aspecto do bem-estar particular, quer sob o da boa harmonia do conjunto, s.e cada indivíduo ou cada povo pudesse, em todos os casos, entregar-se exclusivamente ao gênero preciso de atividade para o qual fosse mais apropriado, seja por suas disposições naturais, seja por seus antecedentes, seja ainda, pelas circunstâncias especiais em que se ache colocado, o que, considerado por outro prisma, seria exatamente uma perfeita divisão do trabalho. Sem dúvida, tal ordem não poderia existir completamente em nenhuma época. Mas o gênero humano tende continuamente a aproximar-se dela, cada vez mais, sem que se possa determinar a que distância dela ficará para sempre. É sobretudo no estado social que se pronuncia, cada vez mais, nos povos modernos, que essa tendência se torna mais direta e mais sensível, porquanto a atividade industrial, comparada com a militar, se caracteriza por uma admirável propriedade: seu livre e pleno desenvolvimento em um indivíduo, ou em um povo, não supõe necessariamente pressão contra outros indivíduos ou contra outros povos, e, ao contrário, não só admite o concurso universal, mas até o provoca inevitavelmente, dentro de certos limites. Disto resulta, naturalmente, que os homens e as nações se acham sempre impelidos a formar associações cada vez mais amplas e mais pacíficas. Mas, se a divisão do trabalho, encarada sob este primeiro aspecto, é a causa geral do aperfeiçoamento humano (A imperfeição da linguagem obriga-me a empregar as palavras aperfeiçoamento e desenvolvimento, das quais a primeira, e mesmo a segunda, conquanto mais clara, recorda ordinariamente ideias de bem absoluto e de melhoramento indefinido que não tenho a intenção de exprimir. Estas palavras apresentam, para mim, a simples finalidade científica de designar, em física social, certa sucessão de estados do gênero humano, efetuando-se segundo leis determinadas; trata-se de um uso exatamente análogo ao que delas fazem os fisiologistas no estudo do indivíduo, para indicar uma série de transformações a que não ligam, normalmente, qualquer ideia necessária de melhoramento ou de deterioração contínuos) e do desenvolvimento do estado social, quando considerada sob outro aspecto, não menos natural, apresenta uma tendência contínua para a deterioração e para a dissolução, que acabaria por interromper todo progresso se não fosse constantemente combatida por uma ação sempre crescente do governo, sobretudo espiritual. Com efeito, resulta necessariamente desta especialização, sempre progressiva, que cada indivíduo e cada povo se acham habitualmente colocados num ponto de vista cada vez mais estreito, e animados por interesses cada vez mais particulares. Se, portanto, por um lado, o espírito se aguça, por outro se enfraquece (Alguns economistas, e, entre outros, Say, perceberam este efeito inevitável da divisão do trabalho, levado muito longe, mas unicamente nos mesmos casos subalternos que tinham sido o assunto exclusivo de suas observações), e, igualmente, o que a sociabilidade ganha em extensão, perde em energia. Daí, cada qual, homem ou povo, tornar-se cada vez mais inadequado a compreender, por suas próprias faculdades, a relação de sua ação especial com o conjunto da ação social, que, ao mesmo tempo, se complica sempre mais e mais; por outro lado, sente-se progressivamente levado a isolar sua causa particular da causa comum, que é dia a dia menos perceptível de modo preciso. Estes inconvenientes da divisão do trabalho tendem, sem dúvida, pela natureza das coisas, a aumentar continuamente, tanto quanto as suas vantagens. Estas seriam anuladas pelos primeiros se os inconvenientes pudessem ter curso completamente livre. Daí, a necessidade absoluta de ação contínua, produzida por duas forças, uma moral, outra física, tendo por missão especial repor constantemente, no ponto de vista geral, os espíritos sempre naturalmente dispostos à divergência, e fazer entrar na linha do interesse comum atividades que, sem cessar, tendem a afastar-se dele. Ao mesmo tempo em que tal intervenção é indispensável, torna-se possível e mesmo inevitável, porque o desenvolvimento natural das diversas desigualdades, resultado forçoso da divisão do trabalho, tende a estabelecer, por si mesmo, a hierarquia, quer espiritual, quer temporal, necessária a este gênero de ação. Tal é o ponto de vista, verdadeiramente elementar, da teoria geral do governo. Todo o seu artifício consiste assim, em cada época, em regularizar essa hierarquia espontânea que se forma no interior da sociedade, de modo a atenuar, tanto quanto possível, a influência funesta da divisão do trabalho relativamente à sua influência útil. Estas considerações aplicam-se, especialmente, ao sistema da civilização moderna, tanto quanto as de natureza oposta, precedentemente indicadas. Sendo o estado social moderno aquele onde a divisão do trabalho é levada mais longe, e onde deve experimentar, mais do que em nenhum outro, acréscimos contínuos, quer entre os indivíduos, quer entre os povos, os inconvenientes ligados a essa divisão são aí, necessariamente, mais pronunciados, assim como suas vantagens. E tão inferior, sob o aspecto dos inconvenientes, ao estado social das nações da antiguidade, quanto lhe é superior sob o aspecto das vantagens, o que fornece ampla matéria à discussão para os que querem louvar ou censurar, em sentido absoluto, um ou outro, o que podem fazer indiferentemente, segundo o ponto de vista em que se colocam. Quem não tem, com efeito, observado, em relação à generalidade de espírito e à energia política, serem os povos antigos (Observando, nos povos antigos, o caráter especial da sociedade, cumpre necessariamente ter em vista apenas as classes entre as quais existia uma sociedade real, isto é, os homens livres, sendo os escravos geralmente considerados como uma espécie de animais domésticos. Com esta restrição, que mostra, aliás, haver a condição do gênero humano, considerado em massa, experimentado, desde essa época, imensa melhoria, a observação indicada no texto permanece incontestável) tão superiores aos modernos quanto lhes são inferiores no tocante à extensão dos conhecimentos e à universalidade das relações sociais? Vê-se, pelo que precede, não haver nada acidental nesta oposição, cuja origem importa, sem dúvida, aprofundar, a fim de excluir radicalmente as tentativas viciosas tendo por objeto combinar, em a nova ordem social, dois gêneros de preeminências que se excluem mutuamente. Seja como for, a última ordem de considerações, acima indicada (que explica a função geral do governo, concebido em seu destino mais amplo, e, sobretudo, no sistema da civilização moderna), aplica-se evidentemente, de maneira especial, ao poder espiritual, para mostrar que, em o novo estado da sociedade, a ação deste poder deve ter, pela natureza das coisas, mais extensão e menos intensidade do que em todos os estados anteriores. Porque, de fato, as desvantagens gerais da divisão do trabalho crescem inevitavelmente cada vez mais, pela mesma necessidade que produz o desenvolvimento gradual da civilização. A sociedade precisa, pois, dia a dia mais, sobretudo nos povos modernos, sentir a influência dessa corporação especulativa que, fazendo da consideração do ponto de vista geral sua especialidade própria e permanente, está destinada a lembrá-la constantemente aos indivíduos e aos povos. Desinteressada, ao mesmo tempo, pela natureza do seu caráter e pela independência de sua posição social nesse movimento prático de que resultam tantos motivos de divergência e de isolamento, essa corporação especulativa é eminentemente apta para identificar seu interesse particular com o comum, do qual pode ser considerada como o órgão próprio no maior número de casos. Mas, para completar este esboço geral, é indispensável distinguir com maior precisão, no desenvolvimento contínuo da ação total do governo, a direção espiritual e a direção temporal da sociedade. Observando, de maneira suficientemente profunda, o mecanismo das sociedades humanas, reconhece-se, como acima indiquei, haver, em cada sistema político, a formação do poder espiritual precedido sempre necessariamente o desenvolvimento do poder temporal, mesmo nos sistemas em que esses dois poderes estavam reunidos nas mesmas mãos. É assim que, para tomar o exemplo mais decisivo, a constituição romana era, em sua origem, tão essencialmente teocrática quanto à dos etruscos, e, embora mais tarde revestisse caráter muito diferente, foi sempre na sua autoridade de corporação sacerdotal que os patrícios viram a base fundamental de seu poder. De fato, geralmente a associação espiritual, baseada na comunhão das doutrinas e na homogeneidade dos sentimentos que delas resulta, deve, pela natureza das coisas, preceder a associação temporal, fundada na conformidade dos interesses; esta não pode existir sem a outra (não podendo os interesses serem, jamais, por si mesmos, bastante conformes para dispensar certa similitude de princípios), ao passo que se concebe a possibilidade de associar-se somente por esta última condição, desde que a oposição dos interesses não seja extrema, embora não haja sociedade verdadeiramente completa e estável, quer entre indivíduos, quer entre povos, a não ser quando as duas condições são simultaneamente preenchidas até certo grau. A medida que a civilização se desenvolve, cada uma das duas espécies de associação aumenta em extensão, diminuindo em energia, como já expliquei. Mas a diferença primitiva, inerente à sua natureza íntima, faz-se sempre sentir entre elas sob o aspecto de não conseguir a associação temporal absolutamente manter-se sozinha, sem o concurso do poder espiritual, ao passo que a associação espiritual pode, a rigor, subsistir, até certo ponto, por si mesma, sem o auxílio do poder temporal. Destarte, o poder espiritual aumenta seu domínio, enquanto a sociedade se complica, ao passo que o poder temporal vê o seu diminuir. Com efeito, só se governa temporalmente o que não se pode governar espiritualmente; isto é, não se dirige pela força senão o que não pode ser suficientemente dirigido pela opinião. Ora, à medida que os homens se civilizam, tornam-se por um lado mais sensíveis aos motivos morais, e, por outro, mais dispostos à conciliação amigável dos interesses. É por isto que a ação do poder temporal decresce continuamente, e deve ser menor em o novo estado social do que em todos os anteriores, ao passo que a ação do poder espiritual aumenta e deve ser maior no sistema da civilização moderna do que em qualquer outro. Vê-se, por isto, quanto é profundamente viciosa a disposição das doutrinas críticas, aceitas hoje por quase todos os cérebros, disposição que leva a conceber a nova ordem social desprovida de poder espiritual, quando, pelo contrário, este poder deve necessariamente exercer, na ordem social nova, muito maior ação política, em sua esfera natural de atividade, do que a exercera, em sua própria esfera, o poder temporal. Este tende a tornar-se cada vez menos importante, e a reduzir-se cada vez mais, pelo menos enquanto a civilização for ascendente, a uma hierarquia puramente civil, conquanto, verossimilmente, este último efeito não deva ser absolutamente completo em época alguma. Depois de ter assim concebido a ação geral do poder espiritual moderno, contemplando, no seu conjunto, suas diversas funções, quer nacionais, quer europeias, é necessário completar este esboço considerando-as em suas principais particularidades. A primeira divisão deste conjunto de funções, aquela a que julgo dever limitar-me aqui, consiste, como disse, em distinguir, no poder espiritual, duas grandes classes de atribuições: umas nacionais, outras europeias. (Na alternativa forçada de empregar uma ou outra destas duas expressões: europeias e universais, para designar esta parte das funções do poder espiritual que se exerce sobre as relações de povo a povo, devo preferir a primeira como mais precisa, e, além disto, consagrada pelo passado, embora seja, verossimilmente, ao mesmo tempo, muito ampla e muito restrita, mas sem prejudicar, por isto, a extensão territorial que comportar, em qualquer época, a jurisdição do poder espiritual). Consideremos antes as primeiras Vimos que, sob este aspecto, a ação do poder espiritual consiste essencialmente em estabelecer, pela educação, as opiniões e os hábitos que devem dirigir os homens na vida ativa, e, em seguida, manter, por uma influência moral, regular e contínua, exercida quer sobre os indivíduos, quer sobre as classes, a observação prática dessas regras fundamentais. (A fim de simplificar, tanto quanto possível, este sumário exame, devo evitar fazê-lo recair sobre os pontos que não são geralmente contestados, embora pudesse ser útil apresentá-las mais racionalmente do que costumam ser concebidos. É por isto que continuo aqui a só considerar, na educação, a parte social, e, de modo algum, a instrução teórica geral ou especial que deve presidir à atividade industrial. Esta última espécie de preparo constitui evidentemente uma atribuição essencial do poder espiritual sobre cuja necessidade não insisto, pois, segundo me parece, por ninguém é posta em dúvida). Trata-se, portanto, de examinar os motivos principais que, em oposição aos preconceitos atuais, exigem, em o novo estado social, um governo moral atuando sobre as ideias, sobre as inclinações e sobre a conduta, quer na ordem individual, quer na coletiva. O dogmatismo é o estado normal da inteligência humana, aquele para o qual tende, por sua natureza, continuamente e em todos os gêneros, mesmo quando mais parece afastar-se dele. O ceticismo é, na verdade, simplesmente um estado de crise, resultado inevitável do interregno intelectual que sobrevém, necessariamente, todas as vezes que o espírito humano é levado a mudar de doutrinas. E, ao mesmo tempo, o ceticismo o meio indispensável empregado, quer pelo indivíduo, quer pela espécie, a fim de permitir a transição de um dogmatismo para outro, o que constitui a única utilidade fundamental da dúvida. Este princípio, que se verifica em todas as ordens de ideias, é aplicável, com mais forte razão, às ideias sociais, que são simultaneamente as mais complicadas e as mais importantes. Os povos modernos têm obedecido a esta imperiosa lei de nossa natureza até no seu período revolucionário, porquanto todas as vezes em que foi necessário agir realmente, mesmo só para destruir, foram inevitavelmente levados a dar uma forma dogmática a ideias puramente críticas por sua essência. Nem o homem, nem a espécie humana são destinados a consumir a vida em atividade esterilmente raciocinante, dissertando continuamente sobre a conduta que devem ter. É à ação que se destina essencialmente a totalidade do gênero humano, exceto uma partícula imperceptível, votada principalmente, por sua natureza, à contemplação. E, todavia, qualquer ação supõe princípios prévios de direção, que os indivíduos ou as massas não têm nem capacidade, nem tempo de estabelecer, ou apenas de verificar, a não ser pela própria aplicação, na maioria dos casos. Tal é, sob o simples aspecto intelectual, a consideração fundamental que motiva, de maneira decisiva, a existência de uma classe que, eminentemente atuante na ordem especulativa, de modo permanente e exclusivo se ocupa em fornecer, a todas as outras, regras gerais de conduta que não podem dispensar, nem são capazes de formular; e, uma vez admitidas, lhes permitem empregar toda a sua capacidade de raciocínio em aplicá-las judiciosamente, na prática, servindo-se, para isto, das luzes da classe contemplativa, quando a dedução ou a interpretação apresentam excessiva dificuldade. Esta necessidade de uma direção espiritual mostra-se não menos clara, se, deixando de considerar o homem somente como inteligente, passarmos a considerá-lo também sob o aspecto moral; porque, mesmo admitindo que cada indivíduo ou cada corporação pudesse formar, só por suas faculdades, o plano de conduta mais conveniente, quer ao seu próprio bem-estar, quer à boa harmonia do conjunto, seria certo que devendo essa doutrina achar-se muita vez em oposição, num grau qualquer, com os impulsos mais enérgicos da natureza humana, não exerceria, por si mesma, quase nenhuma influência sobre a vida real. Tem, portanto, necessidade de ser vivificada, por assim dizer, por uma força moral, regularmente organizada, que, lembrando-a sempre a cada um, em nome de todos, lhe imprima toda a energia resultante dessa adesão universal, única em condições de superar, ou mesmo contrabalançar suficientemente, o poder das inclinações antissociais, naturalmente preponderante na constituição do homem. Quaisquer que possam ser os progressos da civilização, será sempre exato que, se o estado social é, a certos respeitos, um estado contínuo de satisfação individual, é também, sob outros aspectos, não menos necessários, um estado contínuo de sacrifício. Em termos mais precisos: há, para cada indivíduo, em qualquer ato particular, certo grau de sacrifício, sem o qual não poderia manter-se, tendo-se em vista a oposição das tendências individuais, absolutamente inevitáveis em qualquer proporção que seja. A intensidade relativa da primeira ordem de sensações pode, sem dúvida, aumentar, e aumenta, de fato, constantemente, o que constitui o melhoramento progressivo das condições humanas, mas a ordem contrária subsiste sempre, necessariamente, e mesmo sua intensidade absoluta cresce também, sem cessar, por este ardor dia a dia maior dos desejos que nossa organização invariavelmente liga ao acréscimo dos prazeres, como compensação inevitável e corretivo indispensável. A maior perfeição social imaginável consistiria evidentemente em desempenhar cada um sempre, no sistema geral, a função particular para a qual é mais próprio. Ora, mesmo neste estado extremo, puramente fictício (embora dele nos aproximemos continuamente) os homens teriam necessidade de um governo moral, porque nenhum poderia espontaneamente conter seus impulsos pessoais nos limites relativos à sua própria condição. A natureza e a sociedade assinalarão, com efeito, eternamente, aos diversos indivíduos, de comum acordo, papéis muito desigualmente satisfatórios. As aptidões naturais e os destinos sociais apresentam uma variedade infinita, seja quanto ao gênero, seja quanto à intensidade. Ao contrário, os pendores habitualmente predominantes são mais ou menos os mesmos, sob estes dois aspectos, para todos os homens, ou pelo menos são, em todos, bastante enérgicos para inspirarem, a cada um, o desejo espontâneo de todos os prazeres que pode observar nos outros, qualquer que seja a diferença das condições. Daí, portanto, a necessidade de desenvolver, por uma ação especial, a moralidade natural do homem, a fim de reduzir, tanto quanto possível, os impulsos de cada um à medida reclamada pela harmonia geral, habituando todos, desde a infância, à subordinação voluntaria do interesse particular ao interesse comum, e reproduzindo sempre na vida ativa, com o ascendente necessário, a consideração do ponto de vista social. Sem esta salutar influência, que sufoca o mal em sua origem, sendo a sociedade constantemente obrigada a agir materialmente sobre os indivíduos, quer pela violência direta, quer pelo interesse, a fim de reprimir, em seu efeito, tendências que ela houvesse deixado desenvolverem-se livremente, a manutenção da ordem se tornaria logo impossível quando essa disciplina temporal chegasse ao último grau de exagero que comporta. Mas, felizmente, pela natureza das coisas, a concepção absoluta de tal modo de governo, ao mesmo tempo bárbaro e ilusório, não é e não pode ser senão simples hipótese. Na realidade, a repressão temporal nunca foi e nunca será mais do que o complemento da repressão espiritual, que não poderia, em qualquer época, bastar completamente ao que exige a sociedade. Se, consoante à marcha natural da civilização, a primeira diminui continuamente, é com a condição inevitável do aumento da segunda na mesma proporção. Por conseguinte, quer sob o aspecto intelectual, quer sob o moral, está provado que, em qualquer sociedade regular, as noções de bem ou de mal, destinadas a dirigir a conduta de cada um nas diversas relações sociais (e mesmo na vida puramente individual, no que pode influir sobre tais relações) devem reduzir-se ao que é prescrito ou proibido por preceitos positivos, estabelecidos e mantidos por uma autoridade espiritual convenientemente organizada, constituindo o conjunto de tais preceitos a doutrina social diretora. (Nos raciocínios precedentes, considerei, de modo especial, a ação do governo mais como repressiva, do que como diretora, a fim de melhor adaptar a demonstração aos hábitos hoje, de maneira tão geral, dominantes nas especulações políticas. Mas as mesmas razões se aplicam, evidentemente, com muito mais força ainda, quando não nos limitamos a conceber o governo em sua missão passiva, tendo por finalidade a manutenção da ordem, e o consideramos em sua missão ativa, como encarregado de fazer concorrer para o mesmo escopo geral todas as atividades parciais, o que é, a meu ver, a sua principal função, sobretudo no sistema social próprio dos povos modernos. Os leitores, que houverem bem compreendido as duas classes de considerações acima indicadas, aplicá-las-ão facilmente a este novo aspecto da questão.) Assim se explica a velha experiência do gênero humano, da qual a filosofia católica, por seu conhecimento profundo, embora essencialmente empírico, de nossa natureza (que a caracteriza tão eminentemente), sistematizou o resultado geral, apresentando diretamente como uma virtude fundamental, base imutável e necessária da felicidade privada ou pública, a fé, isto é, a disposição a admitir espontaneamente, sem demonstração prévia, os dogmas proclamados por uma autoridade competente, o que é, com efeito, a condição geral indispensável para permitir o estabelecimento e a manutenção de uma verdadeira comunhão intelectual e moral. Em princípio, toda ação do indivíduo sobre a doutrina reguladora limita-se, no estado normal, a deduzir dela a regra prática aplicável a cada caso particular, consultando o órgão espiritual em todas as questões duvidosas. Mas, quanto à própria construção da doutrina, sob qualquer aspecto em que seja considerada, ninguém tem outro direito legítimo senão o de solicitar a sua retificação parcial, quando a experiência houver verificado que, sob qualquer aspecto, não preenche suficientemente seu objetivo prático. Ao poder espiritual, assim advertido, cumpre naturalmente efetuar, na doutrina, as modificações convenientes depois de haver verificado a sua necessidade. Tal é, pelo menos, a ordem regular. Em qualquer outra hipótese, a sociedade deve ser considerada como se achando em verdadeiro estado de revolução, mais ou menos completo. Este estado, necessário também em certas épocas, embora transitório, está sujeito a regras especiais de natureza inteiramente diversa, das quais, por consequência, não tenho de me ocupar aqui, pois me refiro unicamente ao estado normal. (O desenvolvimento inevitavelmente gradual da razão pública relativamente ao sentimento da necessidade de reorganização, apresenta, como é natural, um estado passageiro, já atingido por certo número de espíritos, estado em que se admite a necessidade de uma doutrina social, desconhecendo ainda a importância de uma classe investida de autoridade conveniente, tendo por missão especial e permanente vivificá-la. Mas esta semiconvicção, politicamente estéril, porque se reduz a desejar o fim, sem querer o meio, não poderá deixar de completar-se rapidamente, quando estiver bem difundida. Com efeito, depois de haver realmente compreendido a necessidade intelectual, moral e política de uma doutrina geral, não se pode tardar a sentir que qualquer doutrina supõe fundadores. E, além disso, exige imperiosamente, sobre cada um desses três aspectos, intérpretes que, aliás, aparecem espontaneamente; deste modo, a ideia de "função" e a de "órgão" são, pela natureza das coisas, tão inseparáveis, na física social, quanto em fisiologia). As duas ordens de considerações gerais, acima indicadas, aplicam-se especialmente ao estado social para o qual tendem os povos modernos, porquanto, nesse novo estado, caracterizado por uma separação mais completa e sempre crescente das diversas funções, cada indivíduo é apto apenas a conceber espontaneamente, qualquer que seja a sua capacidade, uma parte infinitamente pequena da doutrina de que tem necessidade para sua conduta, quer industrial, quer social. Ao mesmo tempo, tornando-se mais parcial seu interesse próprio, tende naturalmente a afastar-se do interesse comum na maior parte dos casos, embora em menor grau. A tendência evidente das sociedades modernas para um estado essencialmente industrial e, por conseguinte, para uma ordem política onde o poder temporal pertencerá, de modo fixo, às forças industriais preponderantes, começa hoje a ser geralmente sentida e a marcha natural das coisas a manifestará dia a dia mais. O arrastamento inevitável produzido pelo sentimento de uma verdade tão importante, embora parcial, dispõe os espíritos a desconhecerem, ou mesmo ã descurarem a reorganização moral da sociedade, tendendo a manter o hábito produzido pela doutrina crítica, e especialmente alimentado pela economia política, da predominância do ponto de vista puramente material nas considerações sociais. Considerando muito exclusivamente as imensas vantagens morais e políticas, incontestavelmente peculiares ao modo de existência industrial, acabaram por exagerá-las a ponto de conceber que dispensam quase inteiramente a verdadeira organização espiritual, ou, pelo menos, que esta não terá mais do que uma importância secundária, quando as relações sociais se tornarem puramente industriais, ao invés de serem alteradas em seu caráter, como ainda o são, pelas instituições e pelos hábitos derivados dos antecedentes militares da sociedade. Quanto a nós, que não devemos considerar este grande fato como artistas destinados a se apaixonarem pelo que o seu aspecto pode oferecer de atraente à imaginação humana, mas como observadores que, sem se permitirem admirá-lo ou maldizê-lo, admitem-no como um dado fundamental em todas as especulações políticas modernas, devemos esforçar-nos, tanto quanto possível, em estudá-lo sob todas as suas faces. Ora, nesta disposição racional, pode-se facilmente verificar que a influência reguladora e diretriz do poder espiritual não é menos necessária, na ordem das relações industriais, do que o foi na das relações militares, embora não o seja inteiramente de igual maneira. Limito-me aqui, sobre este assunto, a algumas indicações gerais, que completarei e desenvolverei, se a controvérsia vier a exigi-lo. Supondo, o que aliás é absolutamente impossível, que a ordem temporal correspondente a este novo estado da sociedade possa estabelecer-se completamente sem a intervenção do poder espiritual, continua verdadeiro que, privada dessa influência conservadora, tal ordem não poderia de modo algum manter-se. Se é certo que, além das causas gerais de desordem, inerentes a toda sociedade, e que exigem um governo moral, o sistema militar apresenta outras que lhe são próprias, o mesmo é também incontestável no sistema puramente industrial: somente essas causas especiais não são as mesmas nos dois casos, e, por conseguinte, não têm absolutamente a mesma intensidade. (Em obra recentemente publicada, verificando, por observações muito luminosas sobre os diversos estados sucessivos da civilização, a tendência das sociedades atuais, sob o aspecto temporal, para o estado puramente industrial, soube Dunoyer precaver-se contra o exagero vulgar que induz a conceber este novo modo de existência como dotado de perfeição absoluta, Consagrou o último capítulo de seu livro à análise conscientemente severa dos principais inconvenientes peculiares à sociedade industrial. Conquanto esta enumeração seja concebida com um fito diferente do que tenho em vista em minhas considerações atuais, e executada num espírito também inteiramente diverso, a ela remeto o leitor a fim de suprir, imediatamente, aos desenvolvimentos em que não posso entrar aqui). Os interesses individuais são indubitavelmente mais conciliáveis, por sua natureza, em o novo modo de existência do que no antigo. Mas esta feliz particularidade, que torna mais fácil estabelecer a regra geral, não a dispensa de nenhum modo, pois a oposição, por se tornar menos forte, não desapareceu e é até mais extensa visto se multiplicarem os contatos. Assim, para escolher o exemplo mais importante, se bem que a hostilidade entre patrões e operários substitua vantajosamente, na ordem social, a que existia entre guerreiros e escravos, não deixa de ser, por isto, menos real. Esperar-se-ia em vão anulá-la através de instituições temporais que, ligando mais intimamente os interesses materiais dessas duas classes, diminuíssem a ação arbitrária por elas exercida reciprocamente. Jamais um estado fixo será solidamente estabelecido sobre o simples antagonismo físico, único que tais instituições podem regulamentar. Embora, sem dúvida, muito úteis, serão sempre insuficientes, porque deixarão necessariamente subsistir o desejo e mesmo a possibilidade dos patrões abusarem de sua posição, para reduzir os salários e o trabalho, e, nos operários, o intuito de obterem, pela violência, o que a vida laboriosa não lhes pode proporcionar. A solução desta grave dificuldade exige, de modo indispensável, a influência contínua de uma doutrina moral, impondo aos patrões e aos operários deveres mútuos, consoante às suas relações recíprocas. Ora, esta doutrina não pode, evidentemente, ser fundada e mantida senão por uma autoridade espiritual, colocada num ponto de vista bastante geral para abranger o conjunto dessas relações, e, ao mesmo tempo, bastante desinteressada no movimento prático para não ser habitualmente suspeitada de parcialidade por qualquer das duas classes antagônicas entre as quais deve interpor-se. Observações análogas podem ser feitas sobre as outras grandes relações industriais, como as dos agricultores e dos fabricantes, e de uns e de outros com os comerciantes, ou de todos com os banqueiros. É claro que, nessas diversas relações, os interesses absolutamente entregues a si mesmos, sem nenhuma outra disciplina, além da que resulta de seu próprio antagonismo, acabam sempre por atingir o grau de oposição direta. (A crise comercial e manufatureira que, neste momento, [maio de 1826], aflige o país onde a atividade industrial se acha mais desenvolvida, crise que pode assumir, em qualquer instante, caráter político mais ou menos grave, é muito própria para mostrar, aos observadores imparciais, a necessidade de certa ação governamental, exerci da sobre as relações industriais, como ocorreu, no passado, relativamente às relações militares. Sem dúvida, tais inconvenientes são, por sua natureza, passageiros. Mas a ordem social e a felicidade individual reclamam, de comum acordo contra a renovação sempre iminente dessas oscilações funestas, garantias mais diretas, mais explícitas, numa palavra, mais regulares, que não deixam seja cada qual juiz em causa própria, e exigem a consideração espontânea e permanente de um ponto de vista geral da parte de espíritos habitualmente colocados num ponto de vista muito particular). Daí resulta, pois, a necessidade fundamental de uma regra ética e, por consequência, de uma autoridade espiritual, indispensáveis ambas para conter tais interesses nesses limites, onde, em vez de lutar, convergem, limites de que tentam incessantemente sair. Seria, aliás, fácil estabelecer que esta ação moral, considerada sob seus dois aspectos, deve ainda desempenhar um papel indispensável e principal no estabelecimento das instituições temporais destinadas a completar a regularização das relações sociais. Seria contar demasiadamente com o poder das demonstrações da economia política, para provar a conformidade necessária dos diversos interesses industriais, esperar possa jamais bastar para discipliná-los. (O vício fundamental da economia política, encarada como teoria social, consiste diretamente em que, por haver verificado, sob alguns aspectos particulares, que estão muito longe de ser os mais importantes, a tendência espontânea e permanente das sociedades humanas para certa ordem necessária, se julga autorizada a concluir daí ser inútil regularizá-la por instituições positivas, enquanto esta grande verdade política, concebida em seu conjunto, somente prova a possibilidade da organização, ao mesmo tempo que leva a apreciar-lhe dignamente a importância capital). Quando mesmo se concedesse a essas demonstrações toda a latitude lógica, aliás muito exagerada, que lhes atribuíram os economistas, continuaria certo que o homem não se conduz unicamente, nem mesmo principalmente, por cálculos, e, em segundo lugar, não é sempre, nem mesmo com muita frequência, suscetível de calcular com justeza. A fisiologia do século XIX, confirmando, ou antes, explicando a experiência universal, demonstrou positivamente a frivolidade dessas teorias metafísicas, que representam o homem como um ser essencialmente calculista, impelido pelo único móvel do interesse pessoal. A moral, portanto, quer individual, quer pública, será necessariamente flutuante e sem força, enquanto se estabelecer, como ponto de partida, para cada indivíduo ou cada classe, a consideração exclusiva da utilidade particular. É, todavia, ao que conduz, inevitavelmente, por sua natureza, o espírito industrial, como qualquer outro espírito puramente temporal, quando se desenvolve isoladamente e sem ter sofrido a influência ética reguladora, que só se pode encontrar na ação de um poder espiritual convenientemente organizado. Se fosse possível conceber estar a sociedade inteiramente entregue, de maneira exclusiva, ao impulso diretamente determinado apenas pela atividade temporal, a nova ordem política (se lhe pudéssemos dar este nome) não teria outra vantagem real sobre a antiga (também considerada na mesma hipótese abstrata) senão a de substituir a conquista pelo monopólio, e o despotismo baseado no direito do mais forte pelo do mais rico. Tais seriam as consequências extremas, mas rigorosas, de uma organização social puramente temporal, se esta hipótese pudesse jamais realizar-se. Felizmente, porém, por mais falhos que possam ser nossos esboços políticos, a natureza das coisas preserva a sociedade da influência absoluta de suas próprias aberrações, e a ordem final, que se estabelece por si mesma, é sempre superior àquela que as combinações humanas haviam previamente construído. A necessidade de uma ordem espiritual, em o novo estado social, manifesta-se não só nas relações entre indivíduos ou entre classes, mas ainda na moral simplesmente pessoal. Uma consideração geral, haurida no estudo da natureza humana, mostra, em primeiro lugar, como a maior parte dos filósofos de todos os tempos observou, que o fundamento mais sólido das virtudes sociais se encontra no hábito das virtudes individuais, visto ser por elas que o homem fornece a prova mais decisiva de sua força de resistência aos impulsos viciosos de suas inclinações orgânicas. Mas, independentemente deste motivo universal, a influência inevitável que os atos puramente relativos ao indivíduo exercem, de modo indireto, sobre o conjunto, num sistema qualquer de relações sociais, acentua-se de maneira especial no sistema moderno, e exige, por conseguinte, sob um novo aspecto, a regulamentação moral da sociedade. Para não citar senão um único exemplo, é geralmente reconhecido, desde os trabalhos de Malthus, que a tendência constante da população para crescer mais rapidamente do que os meios de subsistência, tendência que é, sobretudo, própria das sociedades industriais, exige, no instinto mais enérgico do homem, certa repressão permanente, que não poderia, sem dúvida, ser produzida em grau suficiente a não ser por uma autoridade moral, qualquer que possa ser, aliás, a influência incontestável dos meios temporais para conter esse instinto nos limites convenientes. Encarei até aqui, pelo motivo geral acima enunciado, apenas a ação preventiva ou repressiva do poder espiritual em o novo sistema de relações sociais. Sua importância é ainda mais sensível, considerando-se aí também a ação diretora. Quando mesmo se admitisse hipoteticamente que, em o novo estado social, a manutenção da ordem possa ocorrer espontaneamente, sem qualquer influência reguladora especial, continuaria incontestável que, para agir coletivamente, como a natureza do sistema exige em grande número de casos, os indivíduos e as classes têm necessidade de ser dirigidos por dogmas comuns, estabelecidos pelo poder espiritual na educação social e em seguida constantemente por ele reproduzidos na vida real. A necessidade de doutrina é tanto maior, sob este aspecto, quanto, sendo necessariamente, neste sistema, a classificação dos indivíduos infinitamente mais móvel do que no antigo, cada qual se acha nele naturalmente menos preparado para o destino particular que deve desempenhar. Quando as condições eram essencialmente hereditárias, a educação doméstica podia ser considerada, por assim dizer, como um preparo suficiente. O mesmo não sucede, quando as condições tendem essencialmente a dividir-se de conformidade com as aptidões individuais. A educação pública, quer geral, quer especial, adquire, então, muito mais importância, como único meio racional de determinar essas aptidões, originariamente tão pouco acentuadas na maior parte dos casos, desenvolvendo-as, ao mesmo tempo, convenientemente. A ação do poder espiritual torna-se, assim, indispensável para estabelecer e manter uma classificação social de conformidade com o espírito do sistema. Que se pense na multidão de vocações frustradas e nas falsas posições hoje resultantes da falta de direção intelectual e moral; que se procure calcular as deploráveis consequências daí decorrentes, quer para os indivíduos, quer para a sociedade, e se compreenderá a importância da consideração precedente. Tais são, em resumo, as principais classes de motivos que reservam ao poder espiritual moderno ampla e fundamental influência, examinando-o unicamente em suas atribuições nacionais. As mesmas considerações gerais são exatamente aplicáveis à ação necessária que o poder espiritual deve exercer para regular as relações de povo a povo. Julgo, portanto, estar dispensado de indicar aqui explicitamente essa extensão, que qualquer leitor atento poderá desenvolver facilmente, mantendo-se no ponto de vista fundamental determinado pelos raciocínios precedentes. Toda a diferença radical, entre os dois casos, consiste na maior generalidade da segunda ordem de relações sociais. Mas se esta distinção mostra a ação reguladora do poder espiritual, como necessariamente menos intensa na ordem europeia do que na ordem nacional, apresenta-a, ao mesmo tempo, como ainda mais propriamente indispensável (guardada a proporção da importância das relações), e, sobretudo, como menos suscetível de ser substituída por qualquer outra influência. As relações entre povos, tendo ao mesmo tempo muito mais extensão e bem maior continuidade na civilização moderna do que na da Idade Média, a sua regulamentação se torna tanto mais necessária. A atividade coletiva da sociedade europeia, que só existia no antigo sistema, em intervalos muito distanciados, deve tornar-se, em o novo, senão rigorosamente contínua, pelo menos extremamente frequente. E determinada, seja pelas operações de utilidade comum, que exigem o concurso de dois ou de maior número de povos, seja pela influência de conjunto, em parte repressiva, que as nações mais civilizadas devem exercer sobre as que o são menos, no interesse comum de umas e outras. Estes diversos motivos serão mesmo bastante poderosos, talvez, para provocar a formação de certo grau de soberania temporal, estendendo-se simultaneamente sobre vários dentre os povos mais adiantados. Mas, o que é evidentemente incontestável, em qualquer hipótese, é exigirem diretamente o estabelecimento de uma doutrina social comum às diversas nações, e, por conseguinte, de uma soberania espiritual, capaz de manter essa doutrina, organizando uma educação europeia, e de aplicá-la, em seguida, convenientemente, nas relações efetivas. Até lá, a ordem europeia estará constantemente ameaçada, apesar da ação simultaneamente despótica e insuficiente (embora hoje provisoriamente indispensável) exercida pela coligação imperfeita dos antigos poderes temporais, a qual não poderia oferecer nenhuma garantia sólida de segurança, pois está, por sua natureza íntima, sempre pronta a dissolver-se. (De La Mennais demonstrou de modo muito claro que, por seu caráter puramente temporal, e pela heterogeneidade radical de seus elementos daí necessariamente resultante, a instituição da Santa Aliança não pode apresentar nem fixidez real, nem eficácia suficiente, mesmo sob o aspecto simplesmente passivo, e, com mais forte razão, sob o aspecto ativo. Este filósofo provou vitoriosamente que tal instituição é, em absoluto, incapaz, por sua natureza, de oferecer à Europa moderna o equivalente real da ação geral exercida, na Idade Média, pelo antigo poder espiritual, só podendo esta ação ser verdadeiramente substituída por uma influência espiritual. Mas não se deve, por isto, deixar de conceber a formação da Santa Aliança como resultado obrigatório da inevitável desorganização do antigo sistema social, que exigiu, sobretudo na ordem europeia, a absorção momentânea do poder espiritual pelo temporal; e, ao mesmo tempo, como meio indispensável, embora muito imperfeito, de manter, na Europa, certa ordem provisória, enquanto perdurar o interregno moral. O estado revolucionário não deve ser julgado pelas mesmas regras do normal. Podemos mesmo acrescentar que o estabelecimento da Santa Aliança, considerada como substituindo o equilíbrio europeu propriamente dito, indica o sentimento vago e incompleto, em verdade, mas real, da necessidade de uma reorganização europeia, ao mesmo tempo em que a prepara, a certos respeitos, habituando os povos - contraditoriamente aos preconceitos críticos - a conceberem esta ordem de relações como sujeita a uma ação direta e permanente de governo). Julgo dever assinalar aqui, como no caso precedente, embora mais rapidamente, as falsas concepções políticas que o esboço incompleto do futuro temporal da sociedade tende hoje a produzir, representando as relações entre os povos como suficientemente regularizadas, pelo fato único de haverem as diversas nações chegado à vida puramente industrial. Sem dúvida, este novo modo de existência tem a feliz propriedade de facilitar a associação moral das nações, assim como a dos indivíduos ou das classes; mas, não a dispensa no primeiro, nem no segundo caso, e a torna mesmo mais necessária, à medida que o novo modo de existência multiplica e estende as relações. Admitamos, por um instante, possa a ordem temporal europeia perder inteiramente o caráter militar para tomar a feição puramente industrial, sem ser essa mudança precedida e provocada por uma reorganização espiritual conveniente, o que certamente envolve contradição. Mesmo nessa hipótese abstrata, é incontestável que esse sistema não poderia ter nenhuma solidez se as diversas nações fossem entregues, de maneira fixa, unicamente aos impulsos temporais, sem subordiná-los a nenhuma doutrina moral comum, estabelecida e mantida por um poder espiritual qualquer, porque, concebido como base única e direta de um plano de conduta, o interesse particular pode ainda menos servir para solidamente fundar a moral dos povos do que para estabelecer a dos indivíduos e das classes. Com efeito, supondo mesmo sempre que a conduta possa ser exclusivamente ou principalmente dirigida pelo cálculo (o que não é verdade, tanto para as nações, quanto para os indivíduos), a relação do bem-estar de cada um com o de todos é, certamente, e ao mesmo tempo, menos real e menos perceptível na ordem europeia do que na ordem nacional. É bem difícil, e, por consequência, infinitamente raro, que a felicidade real de um indivíduo possa harmonizar-se, de modo completo, com uma conduta antissocial fortemente pronunciada; isto é muito mais fácil, e, por conseguinte, muito mais comum para uma nação, mesmo no sistema industrial, como a experiência o tem demasiadamente provado, desde a fundação do sistema colonial e protecionista, ainda sustentado pela opinião dominante. Assim também, sob o aspecto intelectual, um indivíduo poderia, a rigor, deixando de ser ativo, colocar-se no ponto de vista nacional, e dele assenhorear-se, até certo ponto, se tivesse a força cerebral suficiente; mas isto é muito difícil, quando se torna necessário elevar-se até o ponto de vista europeu, e uma organização social que exigisse tal esforço, de modo permanente, em número muito grande de homens, ou apenas nos chefes das ordens temporais da nação, seria evidentemente impossível. As teorias exageradas dos economistas, sobre a identidade, necessária e constante, dos interesses individuais, peculiares às diversas nações, por mais que fossem de exatidão absoluta, seriam inevitavelmente ainda mais impotentes para regularizar as relações dos povos do que as dos indivíduos com o auxílio da simples convicção que pudessem produzir. Em vão, os povos mais adiantados tendem hoje, mais ou menos fortemente, a sair do regime protecionista. Mesmo que este resultado fosse jamais completo, o espírito de hostilidade industrial não deixaria de reproduzir-se sob novas formas, que saberia criar, se fosse possível continuasse cada nação indefinidamente a não admitir outra regra de conduta a não ser a satisfação do seu próprio interesse, sem reconhecer nenhum dever moral para com as outras. O único poder verdadeiramente capaz de conter, nos limites necessários, essa rivalidade natural dos povos, e de utilizá-la, reduzindo-a, pelo menos regularmente, à legítima emulação, é o de uma doutrina geral sobre as relações efetivas das nações, estabelecida e proclamada habitualmente por uma autoridade espiritual que, falando a cada povo em nome de todos, encontre nesse assentimento universal o apoio necessário para fazer admitir suas decisões. Assim, como resultado final de todas as considerações precedentes, verifica-se, pelas minúcias, esta proposição fundamental, acima estabelecida de conformidade com uma visão de conjunto: o estado social, para o qual tendem os povos modernos, exige, assim como o da Idade Média, quer sob o ponto de vista ativo, quer sob o passivo, e por motivos, uns gerais, outros especiais, uma organização espiritual (isto é, intelectual e moral) tanto europeia quanto nacional. Examinarei, mais tarde, com o mesmo espírito, sob seus aspectos principais, a natureza dessa organização, que, por uma abstração necessária, tive de deixar até agora indeterminada, a fim de não tornar impraticável uma demonstração já tão profundamente complexa. Esta nova exposição, além de sua extrema importância própria, talvez dissipe, na maioria dos espíritos, a obscuridade inevitavelmente peculiar a este ponto de vista abstrato. Destruirá, sobretudo, as falsas interpretações, que, em geral, somos levados a conceber nos hábitos atuais, sempre que se trata do poder espiritual. Tais são, pelo menos, minhas esperanças. SEXTO OPÚSCULO (Agosto de 1828) EXAME DO TRATADO DE BROUSSAIS SOBRE "A IRRITAÇÃO" Desde fins do século XVI, o espírito humano passa por uma revolução geral e contínua, tendo por objeto principal a refusão gradual e completa de todo o sistema dos conhecimentos humanos, estabelecido, desde então, sobre suas verdadeiras bases: a observação e o raciocínio. Esta revolução fundamental, preparada pelos trabalhos sucessivos de todos os séculos anteriores, sobretudo a partir dos árabes, foi definitivamente determinada e diretamente iniciada pelo grande e novo impulso que à razão humana imprimiram, ao mesmo tempo, as concepções de Descartes, os preceitos de Bacon e as descobertas de Galileu. Desde essa memorável época, o espírito humano, em todos os ramos de nossos conhecimentos, tendeu constantemente, e cada vez mais, a emancipar-se de todo, e para sempre, do império antes exercido pela teologia e pela metafísica, subordinando inteiramente a imaginação à observação; numa palavra, sua tendência foi constituir o sistema definitivo da filosofia positiva. Os diversos ramos dos conhecimentos humanos não participaram todos desta importante renovação com a mesma rapidez. Experimentaram-na sucessivamente, conforme o grau de complicação e de dependência mútua dos fenômenos por eles considerados. Sendo a fisiologia, de todas as partes da filosofia natural, a que estuda os fenômenos mais complicados e menos independentes, devia necessariamente permanecer mais tempo do que qualquer outra sob a tutela das ficções teológicas e das abstrações metafísicas. Também não foi senão na segunda metade do último século, e depois de se haverem tornado ciências positivas a astronomia, a física e a química, que a fisiologia começou a experimentar, por seu turno, esta grande e salutar transformação através dos imortais trabalhos de Haller, Charles Bonnet, Daubenton, Spallanzani, Víc-D'Azyr, Chaussier, Bichat, Cuvier, Pinel, Cabanis, etc. Mas, para que esta revolução fosse completa e eficaz, fazia-se mister se estendesse também aos fenômenos intelectuais e afetivos. Estes, necessariamente, deveriam dela participar mais tarde do que os outros fenômenos dos animais, à vista de sua maior complexidade e à vista da ligação imediata das teorias teológicas e metafísicas que, na parte a eles atinentes, se entrelaçavam com a constituição da sociedade. Por- isto mesmo, as memórias publicadas, no começo deste século, por Cabanis, sobre as relações do físico e do moral, foram a primeira grande tentativa direta para fazer entrar definitivamente no domínio da fisiologia positiva esse estudo, até então exclusivamente entregue aos métodos teológicos e metafísicos. O impulso dado ao espírito humano por essas memoráveis pesquisas jamais diminuiu. Os trabalhos de Gall e de sua escola o fortaleceram de modo singular, e, sobretudo, imprimiram a esta nova e última parte da fisiologia um alto caráter de precisão, fornecendo-lhe uma base determinada de discussão e de investigação. Podemos hoje dizer que esta revolução, conquanto ainda não se tenha tornado popular, está, em definitivo, consumada em todos os espíritos verdadeiramente ao nível de seu século, pois todos consideram o estudo das funções intelectuais e afetivas como inseparavelmente ligado ao estudo de todos os outros fenômenos fisiológicos, e como devendo ser prosseguido pelos mesmos métodos e com o mesmo espírito. Alguns homens, entretanto, desconhecendo a este respeito a direção atual e irrevogável do espírito humano, tentaram, nestes últimos dez anos, transplantar para o nosso meio a meta física alemã, e constituir, sob o nome de psicologia, uma pretensa ciência completamente independente da fisiologia, superior a ela, e à qual caberia com exclusividade o estudo dos fenômenos especialmente chamados morais. Embora essas tentativas retrógradas não sejam capazes de deter o desenvolvimento dos conhecimentos reais, porquanto o entusiasmo passageiro, que ainda despertam, só decorre essencialmente de circunstâncias estranhas e fortuitas, é certo que exercem uma influência funesta, retardando, em muitos cérebros, o desenvolvimento do verdadeiro espírito filosófico, e consumindo, em pura perda, grande atividade intelectual. Esta situação foi profundamente sentida por Broussais. Sem exagerar o mal, ele compreendeu dignamente quanto importa opor-se à direção vaga e quimérica para a qual se procura hoje arrastar a mocidade francesa. Julgou, por isto, dever interromper seus grandes trabalhos de patologia geral, para evidenciar o vazio e a nulidade da psicologia. Tal é o objetivo geral e essencial de sua nova obra, como ele expõe claramente em prefácio muito notável, onde não teme mostrar-se superior às piedosas acusações de materialismo nas quais os nossos psicólogos, a exemplo dos nossos teólogos, seus predecessores, têm envolvido seus adversários. Sob este aspecto, independentemente do alto mérito de seu trabalho, Broussais, ao publicá-lo, praticou verdadeiro ato de coragem, digno do reconhecimento de todos os bons espíritos. Seu valor somente pode ser bem compreendido pelos que sabem quanto os cientistas atuais, embora sentindo, relativamente às teorias metafísicas, o profundo desprezo que necessariamente elas devem inspirar a todas as inteligências afeitas a estudos positivos, evitam cuidadosamente opor-se, através de discussões públicas, ao império que tais teorias pretendem exercer em nossos dias. A obra de Broussais atinge plenamente o principal objetivo a que se propõe o autor. Entrando na discussão mais profundamente do que nenhum fisiologista o fez até aqui, examinou diretamente o pretenso método de observação interior, preconizado pelos psicólogos, como base da ciência do homem. O ascendente que adquiriram, desde Bacon, as ciências positivas é hoje de tal importância, que os psicólogos, a fim de reerguerem a metafísica que se desmorona, se viram na necessidade de apresentar seus trabalhos como também fundados na observação. Para este efeito, imaginaram uma distinção entre os fatos exteriores, domínio das ciências comuns, e os fatos interiores ou de consciência, próprios à psicologia. Broussais fez ver quanto é frívola essa pretensa distinção. No quinto capítulo da primeira parte, apresenta uma análise fisiológica, singularmente notável por sua profundeza e finura, do estado de um espírito que medita sobre seus próprios atos. Essa análise evidencia perfeitamente a impossibilidade de chegar-se, por esse modo ilusório de exploração, a qualquer descoberta real. Lamento não poder citar dessa análise senão alguns passos: "Examinemos, agora - diz ele - o que podem os psicologistas encontrar em sua consciência, ao procederem a essa espécie de investigação. Estão certos de aí encontrar sensações provenientes das vísceras, que incessantemente correspondem com o cérebro - não só a fome, os desejos venéreos, o frio, o calor, a dor localizada, ou o prazer, atribuídos a qualquer parte do corpo, mas ainda observarão uma série de sensações vagas, indeterminadas, que ora os inclinam à tristeza, ora à alegria, algumas vezes à ação, outras ao repouso, um dia à esperança, outro ao desespero, e mesmo ao horror da existência. Aí acharão tudo isto, sem suspeitarem de onde vem, porque os fisiologistas são os únicos que possam esclarecê-los a esse respeito. Se tomam todas essas sensações interiores por outras tantas revelações da divindade, a que chamam consciência, podem aumentar sua riqueza, ingerindo, à maneira dos orientais, certa dose de ópio combinada com aromáticos". Por maior que seja a superioridade com que Broussais tratou desta questão, poderia, a meu ver, abordar o assunto de maneira ainda mais direta, provando logo que essa observação interior é necessariamente impossível. Com efeito: o homem pode observar o que lhe é exterior, pode observar certas funções de qualquer de seus órgãos que não seja o órgão pensante; pode mesmo, até certo ponto, observar-se sob o aspecto das diversas paixões que experimenta, porque os órgãos cerebrais, de que elas dependem, são distintos do órgão observador propriamente dito, e ainda assim isto supõe que o estado da paixão não seja muito pronunciado. Mas é evidentemente impossível ao homem observar-se em seus próprios atos intelectuais, porque, sendo o órgão observado e o órgão observador, neste caso, idênticos - por quem seria feita a observação? A ilusão dos psicólogos, a este respeito, é análoga à dos antigos físicos, que julgavam explicar a visão, dizendo que os raios luminosos traçavam sobre a retina imagens dos objetos exteriores. Os fisiologistas fizeram judiciosamente notar que, se as impressões luminosas atuassem como imagens sobre a retina, seria necessário outro olho para vê-las. O mesmo sucede com a pretensa observação interior da inteligência. Para que fosse possível, seria mister que o indivíduo se pudesse dividir em dois, um dos quais pensaria e o outro, durante esse tempo, o observaria pensar. O homem, por conseguinte, não poderia observar diretamente suas operações intelectuais; somente pode observar os seus órgãos e resultados. Sob o primeiro aspecto, entra-se na fisiologia; sob o segundo, sendo as ciências os grandes resultados da inteligência humana, entra-se na filosofia das diversas ciências, a qual não é separável das próprias ciências. Sob nenhum aspecto há lugar para a psicologia, ou o estudo direto da alma, independentemente de qualquer consideração exterior. No paralelo, aliás tão satisfatório e tão decisivo que Broussais estabelece entre a fisiologia e a psicologia, era de desejar que houvesse feito sentir mais vivamente a inferioridade desta última, que, mesmo sendo admitidos seus pretensos métodos próprios de exploração, só considera o homem adulto e perfeitamente sadio, fazendo total abstração dos animais e mesmo do homem no estado de desenvolvimento imperfeito e de organização anormal; ao passo que, em dada consideração fisiológica, o ponto de vista do homem, no estado normal, acha-se sempre admiravelmente combinado com o do conjunto da série animal e com o do estado patológico. Esta oposição que Broussais apenas indica parcialmente, apresentada com a clareza e o vigor de exposição que o distinguem, teria formado útil contraste com essa elevação de vistas, essa profundeza de concepção que tão singularmente se atribuem os nossos psicólogos. Negligência mais grave, cometida por Broussais, consiste em não haver assinalado bem expressamente a enorme diferença existente entre a doutrina fisiológica sobre o homem intelectual e moral e as teorias dos metafísicos do século passado, que só viam em nossa inteligência a ação dos sentidos externos, pondo de parte toda predisposição dos órgãos cerebrais internos. A crítica, muito motivada, dessa ideologia de Condillac e de Helvetius é apenas o que empresta algum fundamento à influência da psicologia atual, que nada mais faz, aliás, do que vulgarizar, em declamações obscuras e enfáticas, o que os fisiologistas, tais como Charles Bonnet, Cabanis, e principalmente Gall e Spurzheim, haviam exposto desde muito tempo, sobre esse assunto, de maneira muito mais clara e, sobretudo, muito mais exata. Broussais apressar-se-á, sem dúvida, em tirar este único recurso à psicologia, ou ao que ele tão judiciosamente chama de antologia. Indico-lhe com plena confiança este importante melhoramento para uma segunda edição, que uma obra como a sua não deixará de merecer brevemente. A negligência que lhe noto não decorre, certamente, senão da evidente precipitação com que sua obra foi composta, porquanto os psicólogos não poderão dizer que, em qualquer parte, ele se mostre partidário formal da metafísica do século XVIII. O exame geral da obra de Broussais se presta a uma última consideração filosófica de grande importância: é que o autor não circunscreveu, com mais exatidão do que os fisiologistas seus predecessores, o verdadeiro campo da fisiologia. Quando Cabanis, em primeiro lugar, reivindicou diretamente o estudo dos fenômenos morais como pertencentes ao domínio da fisiologia, não separou, com o devido cuidado, ou antes, erradamente confundiu o estudo do homem individual e o da espécie humana, considerada em seu desenvolvimento coletivo. Ambos os estudos lhe pareceram que deviam, sem separação, fazer igualmente parte de uma única ciência: a fisiologia. Esta confusão foi mantida por Gall e Spurzheim e subsiste ainda no espírito de quase todos os fisiologistas que se apegam seriamente à parte de sua ciência relativa aos fenômenos morais. Broussais nada tentou para eliminá-la, embora pareça, em alguns passos de sua obra, ter-lhe sentido o vício principal. De fato, é claro que o estudo do indivíduo e o da espécie, embora tendo, por sua natureza, relações de tal modo íntimas que possam ser consideradas como duas partes de uma ciência única, no entanto são, um e outro, bastante distintos, e sobretudo bastante extensos para que devam ser cultivados separadamente, e concebidos, por conseguinte, como formando duas ciências: a fisiologia propriamente dita e a física social. A segunda se baseia, sem dúvida, sobre a primeira, que lhe fornece seu ponto de partida positivo e é seu guia permanente. Ela, porém, não deixa de ser, por este fato, uma ciência à parte, tendo suas observações próprias na história do desenvolvimento da sociedade humana e seus métodos especiais. Haveria impossibilidade absoluta de considerá-la unicamente como dedução direta da ciência do indivíduo, a menos que não se trate dos animais, cujo desenvolvimento social é de tal modo limitado que não exige estudo distinto. Se a fisiologia não está ainda completa e definitivamente constituída, se o campo dessa ciência não está ainda exatamente determinado, a causa principal disto é não estar ainda tal separação regularmente estabelecida e unanimemente aceita. Este estado flutuante da ciência, mesmo nos espíritos mais elevados, prolongando-se, poderia unicamente dar motivo real e duradouro à crítica e às pretensões dos psicólogos, embora seja, aliás, evidente que o estudo dos fenômenos sociais não pertence mais a seus métodos metafísicos do que o dos fenômenos individuais. Tais as principais reflexões filosóficas que me sugere a obra de Broussais, considerada sob o aspecto do objetivo geral que o autor se propôs. Apesar das observações que julguei dever apresentar a este respeito, esta obra é perfeitamente digna de seu ilustre autor. Para honra de um público que se procura hoje fazer retrogradar para a metafísica, espero obtenha esta obra um sucesso proporcional à sua importância. Deve ela contribuir poderosamente para secundar a marcha natural do espírito humano, desacreditando, de um modo geral, as especulações vagas e quiméricas que retardam os progressos dos conhecimentos reais. Desde as memórias de Cabanis e os trabalhos de Gall e Spurzheim, não apareceu nenhuma obra tão própria para fazer sentir o vazio e a nulidade dessa ciência ilusória de abstrações personificadas, que Cuvier tão bem caracterizou, dizendo empregar metáforas em lugar de raciocínios, e que o próprio Broussais, com tanta felicidade, definiu como "um jogo de imaginação quase análogo à poesia". Broussais faz apreciar, em seu justo valor, esse aglomerado de opiniões incoerentes, necessariamente variáveis, não só entre os indivíduos, mas no mesmo indivíduo, conforme as disposições diversas que sua organização experimenta. Tende eminentemente a fazer desaparecer, para sempre, esse espírito místico, tão lisonjeiro para a ignorância orgulhosa, espírito que inspira instintiva repugnância por qualquer estudo especial e positivo, apresentando algumas abstrações, vazias de sentido, como dominando todos os conhecimentos reais, tendendo a lançar-nos de novo no estado de infância, ao restabelecer, entre nós, sob nova forma, o império das concepções teológicas. Broussais pode ser considerado como o fundador da patologia positiva, isto é, da ciência que liga as perturbações dos fenômenos vitais à lesão dos órgãos ou dos tecidos. Desde a época em que a fisiologia começou a constituir uma verdadeira ciência, isto é, em meados do último século, muitos dos que cooperaram para este grande movimento do espírito humano, e, sobretudo, Morgagni e Bonnet, se haviam entregue a importantes trabalhos sobre as sedes das doenças. Mas tais trabalhos não mudavam o espírito geral da patologia, que continuava a representar o maior número das doenças, mais consideráveis, como independentes de qualquer alteração do estado normal dos órgãos. Tais pesquisas não podiam mesmo ter muito grande influência sobre a ciência, antes que a distinção fundamental, entre os órgãos e os tecidos, devida ao gênio de Bichat, se estabelecesse, pois é principalmente pelos tecidos e não pelos órgãos, que as lesões devem ser estudadas. Partindo da anatomia geral, fundada por Bichat, constituiu Broussais a patologia sobre suas verdadeiras bases, fazendo-a consistir no exame das alterações de que são suscetíveis os diversos tecidos, e dos fenômenos que delas resultam. Foi o primeiro a reconhecer claramente e a proclamar, alto e bom som, não serem quase todas as doenças admitidas senão sintomas, não podendo haver perturbação de funções sem lesão de órgãos, ou, antes, de tecidos. Se Broussais se tivesse limitado a estabelecer este principio geral, teria, sem dúvida, evitado a maior parte das críticas de que foram objeto os seus trabalhos, mas não teria operado, no sistema da ciência, a importante renovação nele produzida por sua escola, da qual decorre ser a metafísica expulsa de seu último asilo. Era indispensável, para isto, não só representar, em geral, qualquer enfermidade como dependendo, ou devendo depender de alguma lesão orgânica - proposição que, por sua natureza, era pouco contestável - mas ainda determinar a sede precisa de cada uma das doenças, que se consideravam como não tendo uma sede especial. Foi o que Broussais executou, principalmente reduzindo as seis pretensas febres essenciais a inflamações da membrana mucosa do estômago e do intestino, descuradas até então pelos médicos. Não me cumpre examinar se, mais tarde, Broussais exagerou a influência da gastrite e da gastrenterite sobre a produção dos diversos sintomas mórbidos, o que era quase inevitável. Mas os espíritos imparciais, que foram levados a censurar tais exageros, devem ter em vista a necessidade filosófica, em que se achava Broussais, de designar um órgão para cada afecção reconhecida, a fim de estabelecer a discussão sobre uma base positiva. Deve-se considerar que, mesmo que ele se tivesse enganado sobre a sede real de tal ou qual doença, era preferível para a patologia e até para a terapêutica, conceber uma sede diferente da verdadeira, a não conceber nenhuma. Broussais terá, por este modo, colocado definitivamente os espíritos no verdadeiro caminho da observação, onde, mesmo combatendo suas ideias, só se pode servir aos progressos da ciência. A primeira parte da obra atualmente publicada por Broussais é um tratado da irritação. Pode ser considerado como uma exposição das generalidades mais elevadas da doutrina do autor. Nunca se concebeu, de maneira tão direta e tão satisfatória, a relação fundamental entre a fisiologia e a patologia, relação cujo profundo sentimento é o que melhor caracteriza o espírito de Broussais. Partindo da grande verdade geral, entrevista por Brown, segundo a qual a vida só se mantém pela excitação, verdade de que Broussais se apropriou pelo importante uso que dela fez, representa todas as enfermidades como consistindo essencialmente no excesso ou na falta da excitação dos diversos tecidos acima ou abaixo do grau que constitui o estado normal. Esta concepção lança grande luz sobre a natureza das doenças, mostrando-as como produzidas por simples mudança de intensidade na ação dos próprios estimulantes, indispensáveis à manutenção da saúde. Depois de ter estabelecido que, na maior parte das vezes, há antes excesso do que falta na excitação dos órgãos, e que mesmo a deficiência na ação dos estimulantes de um órgão determina, de ordinário, a irritação de outros, como, por exemplo, o estômago relativamente ao cérebro; Broussais distingue três graus na excitação anormal dos órgãos: a superexcitação propriamente dita, a subinflamação e a inflamação. Expõe os caracteres destes três estados nos principais sistemas orgânicos, e sobretudo no sistema nervoso, que ele mostra, de acordo com a maioria dos fisiologistas atuais, ser o agente geral das simpatias. Broussais leva mesmo a análise fisiológica dos diversos tecidos mais longe do que se tem feito, porque considera os elementos orgânicos de que são compostos todos os tecidos, e os reduz a três: a fibrina, a gelatina e a albumina, em cada um dos quais examina os fenômenos da irritação. Esta maneira de ver deve introduzir, mais tarde, grande e preciosa simplicidade nas primeiras bases da fisiologia e da patologia. Não devo deixar de assinalar, na doutrina fisiológica de Broussais, como aperfeiçoamento considerável, a ausência dessas propriedades vitais, admitidas, ou antes, mantidas por Bichat, e que deixavam às ideias fundamentais da fisiologia certo caráter metafísico. Broussais substituiu-as pela propriedade uniforme da irritabilidade, que existe em todos os tecidos, mas se manifesta, em cada um, por fenômenos diferentes. Esta concepção tende a purificar a fisiologia do resto de metafísica que Bichat havia sido obrigado a conservar nela. Ao mesmo tempo, imprime definitivamente à física dos corpos vivos um caráter nitidamente distinto do da física dos corpos inorgânicos, porque o ponto de vista da irritação abrange tudo quanto há de peculiar ao estado da vida. Esta condição não era menos indispensável para constituir uma verdadeira fisiologia positiva, e não tinha sido ainda suficiente e exatamente preenchida pelos fisiologistas, que se haviam esforçado em desembaraçar inteiramente sua ciência das concepções metafísicas. Esta primeira parte da obra de Broussais está cheia de pontos de vista elevados e novos. Só lhe censurarei certa obscuridade na exposição, sobretudo uma ausência quase total de método na coordenação das ideias. A mistura, muito pouco cuidada, das concepções fisiológicas com as patológicas, introduz uma espécie de confusão que deve tornar difícil apreender, mesmo no caso de um leitor atento e instruído, o espírito geral desse notável trabalho; mas este inconveniente pode ser corrigido em nova edição, se Broussais, como não duvido, reconhecer a necessidade de amadurecer mais suas principais concepções, determinando, com maior precisão, seu caráter, e medindo mais exatamente o alcance de cada uma delas. Não se deve perder de vista o grave motivo geral que determinou a composição desta obra: a necessidade de combater a ontologia, que pretende apoderar-se, de novo, do espírito da geração atual. Devemos desculpar, por esta razão, um vício de método que o autor teria certamente evitado se houvesse podido empregar na meditação de seu trabalho todo o tempo necessário. Broussais, todavia, não deve esquecer conter esta obra as principais ideias-mães de um tratado geral da vida, considerada quer no estado normal, quer no patológico. Para glória sua, deve elevar, ele mesmo, este monumento necessário aos progressos ulteriores da ciência. Fazendo novas meditações acerca de seu trabalho, Broussais, sem dúvida, também reconhecerá que, ao tratar do sistema nervoso, não atribuiu bastante importância à distinção fundamental entre os dois sistemas nervosos: o cerebral e o dos gânglios. Não consagrou bastante atenção aos caracteres próprios deste último, tanto sob o ponto de vista fisiológico, como sob o patológico. Seria igualmente de desejar tivesse Broussais tomado mais em consideração a anatomia comparada, e houvesse empreendido explicitamente lançar suas vistas para a organização humana em harmonia com o conjunto da série animal, condição atualmente indispensável a toda grande concepção fisiológica, e que ele, sem dúvida, preencheu implicitamente. Pouco tenho a dizer quanto à segunda parte da obra, que trata da loucura. E uma aplicação muito natural dos princípios estabelecidos na primeira parte, relativos à irritação especial do cérebro. Esta aplicação, muito bem feita, lança muita luz sobre os próprios princípios. A execução dela é muito mais satisfatória do que a da parte precedente. Nada acrescenta de muito capital ao estado presente deste importante ramo da patologia; mas os conhecimentos adquiridos até aqui sobre este assunto são aí resumidos com uma clareza e uma perfeição de método muito superiores às que apresentam todos os tratados existentes, e isto é prestar à ciência um serviço muito importante. Não há leitura mais adequada para preservar ou curar da contaminação das doutrinas psicológicas. Quanto ao que é pessoal do autor no fundo das ideias, notei que, colocando, com todos os fisiologistas atuais, a sede da loucura no cérebro, Broussais caracteriza, de maneira muito mais precisa do que eles o fizeram, o estado de irritação cerebral que determina a alienação. Apresenta, também, considerações novas e mui judiciosas relativas às indicações que se podem esperar das necropsias. Faz sentir que o estado de inflamação, que desorganiza os tecidos, e, por conseguinte, deixa, após a morte, os únicos traços sensíveis que se observam ordinariamente, sendo apenas o mais alto grau do estado de irritação que perturba as funções normais, é muito possível que essa perturbação ocorra em virtude de uma superexcitação, sem que se descubram, depois da morte, as alterações inflamatórias. Broussais destrói assim, indiretamente, a única objeção razoável, levantada contra a patologia positiva, pelos patologistas metafísicos da escola de Mompilher, que, na carência, em certos casos, de lesões cadavéricas, concluíram pela manutenção da teoria das doenças chamadas essenciais. As pessoas que, sob a influência de prevenções vulgares, a que os sábios deveriam ser indenes, apresentam Broussais como subordinando tudo ao estômago, na economia animal, terão, lendo esta obra, uma ideia mais justa do alcance e da elevação de seu espírito. Ele expõe, em toda a sua intensidade, a grande influência simpática exercida pelas vísceras digestivas sobre todos os órgãos, e particularmente sobre o cérebro, influência que nem sempre foi convenientemente apreciada pelos fisiologistas consagrados, de modo especial, ao estudo do sistema nervoso. Não se percebe, porém, em sua obra, a este respeito, o vestígio de qualquer preocupação; ele nada expõe que esteja além das observações mais verificadas. Tratando das monomanias, Broussais acha e aproveita a ocasião para prestar digna homenagem aos importantes trabalhos de Galle Spurzheim e da escola frenológica sobre o cérebro. Devo felicitá-lo por este ato de justiça que é, ao mesmo tempo, um ato de coragem, porque esta é necessária, ainda hoje, aos cientistas para se pronunciarem publicamente a favor de doutrinas tão contrárias às opiniões oficiais. Nesta doutrina, por mais imperfeita que ainda seja, Broussais viu a imensa luz que projeta sobre o conhecimento do homem. Parece que reconheceu quanto esta importante reforma favorece a revolução geral do espírito humano para o estabelecimento de uma filosofia inteiramente positiva. Broussais apresenta, entretanto, algumas objeções à atual doutrina de Gall. Na maioria, pareceram-me pouco fundadas. Uma só é verdadeiramente sólida: é a censura de não tomar em consideração a extrema influência exercida sobre o cérebro pelas vísceras digestivas e geradoras. E certo que esta influência, consideravelmente exagerada pelos fisiologistas antes de Gall e Spurzheim, foi demasiadamente descurada pela escola frenológica, e, sob este ponto de vista, as ideias fundamentais da nova doutrina do cérebro têm necessidade de ser submetidas a uma elaboração mais completa. Relativamente ao tratamento efetivo da loucura, as considerações apresentadas por Broussais pouco acrescentam à massa dos conhecimentos adquiridos; mas a terapêutica dessa afecção é concebida e exposta de maneira bem mais racional do que em qualquer dos tratados existentes. O autor considera o tratamento usual demasiadamente inativo. Pensa, com razão, que fortes sangrias, praticadas a propósito, no começo da enfermidade, podem curar com presteza uma loucura incipiente, como sucede com uma peripneumonia ou com uma gastrite agudas. Broussais insiste justamente, como todos os autores que escreveram depois de Pinel, sobre a importância do tratamento moral. Mas é de admirar que, recomendando ele para isto, como primeira condição indispensável, o regime das casas de saúde, não assinale a extrema negligência com que é geralmente atendida, nesses estabelecimentos, esta parte tão essencial da medicação. Broussais não pôde, sem dúvida, observar com suficiente cuidado a maneira pela qual são geralmente mantidos tais estabelecimentos: julgou-os constituídos e administrados como deveriam e poderiam ser. Se os houvesse estudado por si mesmo, ter-se-ia convencido de que, apesar das promessas de seus diretores, toda a parte intelectual e efetiva do tratamento aí se acha, de fato, por eles entregue à ação arbitrária de agentes subalternos e grosseiros, cuja conduta agrava, quase sempre, a enfermidade que deveriam contribuir para curar. Tais são as principais considerações que eu devia apresentar aqui sobre a nova obra de Broussais. Não tive a pretensão de torná-la conhecida, mas unicamente de bem caracterizar-lhe o espírito e de fazer sentir a todos os que se interessam pelos progressos das ciências fisiológicas, a necessidade de estudá-la. Esforcei-me por atrair a atenção pública para esta obra por ser um trabalho capaz de concorrer para o desenvolvimento geral da razão humana, e opor-se, eficazmente, à direção mística que alguns escritores, estranhos ao verdadeiro espírito do século, empreendem hoje imprimir ao estudo do homem. A publicação deste importante escrito deve consolidar a glória de Broussais e fazer apreciar todo o alcance de suas concepções. Até aqui, ele só era essencialmente conhecido como reformador em patologia e em terapêutica. Agora se revela fisiologista e filósofo e prova haver unidade em seu espírito, porque suas ideias de aplicação se ligam a concepções teóricas impregnadas do mesmo caráter. Em resumo, mostra-se destinado, pelo conjunto de seus trabalhos, a figurar, na posteridade, como um dos homens que mais eficazmente contribuíram, quer de modo direto, quer indireto, para a formação e triunfo da filosofia positiva, termo geral e definitivo da grande evolução do espírito humano.