Søren Aabye Kierkegaard - Pós-escritos às Migalhas filosóficas PÓS-ESCRITO CONCLUSIVO NÃO CIENTÍFICO ÀS MIGALHAS FILOSÓFICAS Coletânea mímico-patético-dialética, contribuição existencial, por Johannes Climacus Editado por S. Kierkegaard Mas agora, Sócrates, a que pensas que tudo isso leva? São, como eu disse há pouco, meras aparas e fragmentos de discursos, decompostos. Hippias Maior, § 304. A SUMÁRIO Prefácio Introdução Primeira parte - O problema objetivo da verdade do cristianismo Capítulo 1 A consideração histórica § 1 A Sagrada Escritura § 2 A Igreja § 3 Os muitos séculos como prova da verdade do cristianismo Capítulo 2 A consideração especulativa Segunda parte - O problema subjetivo - A relação do sujeito com a verdade do cristianismo, ou o tornar-se cristão. Seção 1 Algo sobre Lessing Capítulo 1 Expressão de gratidão a Lessing Capítulo 2 Teses possíveis e reais de Lessing 1 O pensador subjetivo existente presta atenção à dialética da comunicação 2 O pensador subjetivo existente, em sua relação existencial com a verdade, é tão negativo quanto positivo, tem tanto de cômico quanto essencialmente tem de pathos, e está continuamente em processo de vir-a-ser, i. é, está esforçando-se 3 Lessing disse que verdades históricas contingentes nunca podem se tomar uma demonstração de verdades racionais eternas; e também que a transição, pela qual se quer construir sobre uma informação histórica uma verdade eterna, é um salto 4 Lessing disse: Se Deus me oferecesse, fechada em Sua mão direita, toda verdade, e em Sua esquerda o impulso único, sempre animado, para a verdade, embora com o acréscimo de me enganar sempre e eternamente, e me dissesse: Escolhe! - eu me prostraria com humildade ante Sua mão esquerda, e diria: Pai, dá-me! pois a verdade pura é de fato só para Ti e mais ninguém!, Seção 2 O problema subjetivo, ou como tem que ser a subjetividade, para que o problema possa se apresentar a ela, Capítulo 1 O tornar-se subjetivo, Como a ética teria de julgar, caso o tornar-se subjetivo não fosse a mais alta tarefa posta a um ser humano; o que teria de ser desconsiderado na sua compreensão mais precisa; exemplos de um pensamento orientado ao tornar-se subjetivo, Capítulo 2 A verdade subjetiva, a interioridade; a verdade é a subjetividade, Apêndice - Olhada sobre um labor simultâneo na literatura dinamarquesa, Capítulo 3 A subjetividade real, a [subjetividade] ética; o pensador subjetivo § 1 O existir; realidade [Virkelighed] § 2 Possibilidade superior à realidade; realidade superior à possibilidade; a idealidade poética, intelectual; a idealidade ética § 3 A contemporaneidade dos momentos particulares da subjetividade na subjetividade existente; contemporaneidade como oposição ao processo especulativo § 4 O pensador subjetivo; sua tarefa, sua forma, i. é, seu estilo Capítulo 4 O problema das Migalhas: como pode uma felicidade eterna ser construída sobre um saber histórico? Sectio I - Para a orientação no plano das Migalhas § 1 Que o ponto de partida foi tomado no paganismo, e por quê? § 2 A importância de um acordo provisório a respeito do que é o cristianismo, antes que se possa falar de uma mediação entre o cristianismo e a especulação; a ausência de um acordo favorece a mediação, embora sua ausência torne a mediação ilusória; o surgimento do acordo impede a mediação § 3 O problema das Migalhas como um problema introdutório, não ao cristianismo, mas ao tornar-se cristão Sectio II - O problema propriamente dito A felicidade eterna do indivíduo é decidida no tempo através de uma relação para com algo histórico que, além disso, é histórico de tal modo que sua composição contém algo que, de acordo com sua natureza, não pode tornar-se histórico e que, então, deve se tornar tal em virtude do absurdo. A. O patético Parêntese [Mellemsaetning) entre A e B B. O dialético Apêndice a B. A repercussão do dialético sobre o patético leva a um pathos mais agudo, e os momentos contemporâneos deste pathos Capítulo 5 Conclusão Adendo - O entendimento com o leitor - Uma primeira e última explicação PREFÁCIO [VII V] Raramente, talvez, um empreendimento literário foi tão favorecido pelo destino em relação aos desejos do autor como o foram minhas Migalhas Filosóficas. Cético e reticente em relação a qualquer opinião própria e autocrítica, ouso dizer, sem sombra de dúvida e com verdade, uma única coisa sobre o destino do pequeno opúsculo: ele não despertou nenhuma sensação, absolutamente nenhuma. Imperturbado, de acordo com o mote ("melhor bem enforcado do que mal casado"), o autor enforcado, sim, bem enforcado, permaneceu enforcado; ninguém, nem mesmo por gracejo, de brincadeira, lhe perguntou em favor de quem estava, a rigor, enforcado. Mas era assim que se preferia: melhor estar bem enforcado do que, por um casamento infeliz, aparentado com o mundo inteiro num cunhadio sistemático. Confiando na natureza daquele opúsculo eu esperava que isso houvesse de acontecer, mas em vista da alvoroçada efervescência de nossa época, em vista dos incessantes presságios da profecia, da visão e da especulação, temi ver meu desejo frustrado por algum engano. Mesmo quando se é um viajante muito sem importância, é sempre melindroso chegar a uma cidade na hora em que todos estão na mais tensa e, contudo, na mais diversificada expectativa, alguns com canhões montados e detonadores acesos, [VII VI] com fogos de artifício e estandartes iluminados de prontidão; alguns com a prefeitura festivamente decorada, todos os do comitê de recepção muito bem calçados, discursos prontos; alguns com a pena preparada para a urgência sistemática, e o vasto caderno de anotações aberto em antecipação à chegada incógnito daquele que estava prometido: um engano é sempre possível. Equívocos literários desse tipo pertencem à ordem do dia. Louvado seja o destino por isso não ter acontecido. Sem qualquer alvoroço, sem derramamento de sangue nem de tinta, o opúsculo permaneceu não noticiado, não foi resenhado nem mencionado em lugar algum; nenhum clangor literário sobre ele fez crescer a efervescência; nenhum clamor científico levou a extraviar-se a multidão esperançosa; com relação a ele nenhuma proclamação do posto supremo pôs de pé a burguesia do mundo literário. Tal como o empreendimento, por si mesmo, era destituído de toda feitiçaria, assim também o destino o dispensou de qualquer alarme falso. Graças a isso, o autor, qua autor, está também na afortunada posição de não dever absolutamente nada a ninguém, quero dizer, a resenhistas, críticos, intermediários, comitês de avaliação etc., àqueles que são, no mundo literário, tal como os alfaiates no mundo burguês, os que "criam os homens": eles fornecem a moda para o autor, o ponto de vista ao leitor, com cuja ajuda e arte um livro chega a ser alguma coisa. Mas então dá-se com esses benfeitores o mesmo que, de acordo com o dito de Baggesen, se dá com os alfaiates: "Em troca eles matam as pessoas com as contas a pagar pela criação". Acaba-se por dever tudo a eles, sem nem mesmo poder pagar, por esse débito, com um novo livro, pois a importância do novo livro, se tiver alguma, será, por sua vez, devida à arte e à ajuda de tais benfeitores. Encorajado por esse favor do destino, tenho agora a intenção de prosseguir. Sem ter sido embaraçado por qualquer coisa ou por qualquer relação apressada com as exigências da época, seguindo apenas minhas motivações internas, continuo, como já o fazia, [VII VIII] a amassar meus pensamentos até que, segundo o meu conceito, a massa fique boa. Aristóteles, em algum lugar, diz que as pessoas agora instituíram a ridícula regra segundo a qual a narrativa deve ser rápida, e ele continua, "Aqui se aplica a resposta dada ao que preparava a massa, quando este pergunta se deve fazê-la rija ou macia: Ora, não é possível fazer a massa no ponto certo. A única coisa que temo é provocar sensação, especialmente a de aprovação. Embora nossa época seja despreconceituosa, liberal e especulativa, embora as demandas sagradas dos direitos pessoais advogadas por muitos estimados oradores sejam saudadas com aclamação, parece-me, todavia, que o problema em questão não é compreendido de modo suficientemente dialético, pois, de outro modo, dificilmente os esforços dos escolhidos seriam pagos com júbilo ruidoso, um triplo hurra à meia noite, procissões à luz de archotes, e outras intervenções perturbadoras do direito individual. Parece razoável que, em assuntos lícitos, cada um tenha o direito de fazer o que lhe aprouver. Uma interferência só se consuma quando o que uma pessoa faz põe a outra na obrigação de fazer algo em troca. Qualquer expressão de desagrado é portanto lícita, porque não interfere com uma obrigação na vida de outra pessoa. Assim, se a multidão apresenta a um homem um pereat [lat.: "que morra"], aí não ocorre a mínima interferência em sua liberdade; ele não é solicitado a fazer qualquer coisa; nada se exige dele. Ele pode, imperturbado, ficar refestelado em sua sala, fumar seu charuto, ocupar-se com seus pensamentos, divertir-se com sua amada, ficar à vontade em seu roupão, dormir tranquilamente como nos seus verdes anos - de fato, ele pode até ausentar-se, porque sua presença pessoal não é, de modo algum, requisitada. Mas com uma procissão à luz de archotes é diferente; se o homenageado está ausente, tem de correr logo para casa; se acabou de acender um gostoso charuto, deve livrar-se dele imediatamente; se já foi para a cama, tem de se levantar em seguida, quase não tem tempo de vestir as calças, e então tem de sair, de cabeça descoberta, ao ar livre para pronunciar um discurso. [VII VIII] O que se aplica a proeminentes individualidades, em relação a tais manifestações de uma multidão popular, também se aplica do mesmo modo a nós, gente humilde, em uma escala menor. Um ataque literário, p. ex., não constitui uma interferência na liberdade pessoal do autor; pois - por que não seria permitido a cada um expressar sua opinião? E aquele que foi atacado pode calmamente dirigir-se a seu trabalho, encher seu cachimbo, deixar o ataque sem ser lido etc. Uma aprovação, pelo contrário, é mais questionável. Uma resenha crítica que expulsa alguém do campo da literatura não constitui uma interferência, porém uma resenha crítica que lhe designa um lugar dentro deste campo é de se desconfiar. Um transeunte que ri de alguém não o obriga a fazer absolutamente nada; pelo contrário, antes lhe fica devendo alguma coisa, porque este lhe deu uma oportunidade de rir. Cada um se ocupa com seus negócios sem qualquer reciprocidade que perturbe ou obrigue. Um transeunte que olha com arrogância para alguém, e com seu olhar sugere que o considera indigno de uma saudação, não o obriga a fazer nada; ao contrário, ele o libera de fazer uma coisa, dispensa-o da inconveniência de tirar o chapéu. Um admirador, ao contrário, não é tão fácil de se descartar. Seus delicados obséquios facilmente se transformam numa imposição tão grande para o coitado do admirado que, antes de se dar conta, tem graves taxas e tributos impostos pela vida afora, ainda que fosse o mais independente de todos. Se um autor toma emprestada uma ideia de outro autor sem nomeá-lo, e faz um mau uso daquilo que tomou emprestado, não interfere nos direitos pessoais do outro. Mas se ele nomeia seu autor, talvez até com admiração, como aquele em relação ao qual está em débito - por aquilo de que fez mau uso, aí o constrange em alto grau. Por isso, compreendido dialeticamente, o negativo não é uma interferência, mas só o positivo o é. Que estranho! Tal como aquela nação amante da liberdade da América do Norte inventou a punição mais cruel, o silêncio: assim também uma época liberal e despreconceituosa inventou a mais antiliberal das chicanas - procissões à luz de archotes à noite, aclamações três vezes ao dia, um triplo hip-hip-hurra para os grandes, e semelhantes chicanas em menor escala para a gente humilde. O princípio da associação coagida é precisamente não liberal. [VII IX] O que aqui se oferece é outra vez um opúsculo proprio marte, proprio stipendio, propriis auspiciis [lat.: por mão própria, por custo próprio, por interesse próprio]. O autor é proprietário à medida que é o possuidor privado de qualquer pequena migalha que possui, mas, por outro lado, está tão longe de possuir servos quanto de ser ele mesmo um desses. Sua esperança é que o destino novamente favoreça este pequeno empreendimento e, acima de tudo, o poupe da eventualidade tragicômica de que um ou outro vidente, em profunda seriedade, ou um Gaudieb [al.: gatuno], por pilhéria, apareça e faça a época presente imaginar que isto que aí segue é algo de importante, e depois vá embora deixando o autor empenhado, como aquele jovem campônio que foi penhorado. J.C. INTRODUÇÃO [VII 1] Talvez te lembres, meu querido leitor, de que havia uma observação ao final das Migalhas filosóficas, algo que parecia ser a promessa de uma continuação. Considerada como uma promessa, aquela expressão ("se algum dia eu chegar a escrever uma continuação") era certamente tão negligente quanto possível, tão distante quanto possível de um compromisso solene. Não me senti, portanto, de maneira nenhuma amarrado por aquela promessa, ainda que desde o início tivesse a intenção de cumpri-Ia, e que os pré-requisitos para tanto já estivessem prontos ao mesmo tempo em que ela. Por conseguinte, a promessa poderia muito bem ter sido feita com grande solenidade, in optima forma [lat.: na melhor forma]; mas teria sido incoerente publicar um opúsculo constituído de tal forma a não ser capaz de, e a não querer, causar sensação, e então fazer nele uma promessa solene que, quando nada, por certo causa uma sensação e certamente teria causado uma enorme sensação. Sabes como essas coisas acontecem. Um autor publica um livro de muito bom tamanho; nem se passaram ainda oito dias, quando, por acaso, conversa com um leitor que, de modo cortês e simpático, pergunta, no ardor do entusiasmo, se não vai escrever logo outro livro. O autor fica encantado: ter um leitor que tão rapidamente lê de ponta a ponta um livro grande e, apesar da labuta, conserva o prazer. Ah, pobre autor enganado! No curso da conversa, aquele simpático e interessado leitor, que tão ardentemente aguarda pelo novo livro, admite, sim, ele admite que ainda não o leu, e que provavelmente nunca vai achar tempo para fazê-lo, mas que em uma reunião social [VII 2] de que participou ouviu uma menção a um novo livro do mesmo autor, e ter certeza no assunto lhe interessa extraordinariamente. - Um autor publica um escrito e pensa mais ou menos assim: Agora tenho um mês de folga até que os senhores críticos consigam lê-lo até o fim. O que acontece? Três dias depois, aparece um grito de alarme, sob a forma de uma apressada recensão, que finaliza com uma promessa de uma resenha crítica. Este alarme desperta uma formidável sensação. Pouco a pouco, o livro é esquecido; a resenha jamais aparece. Dois anos depois, surge uma conversa sobre aquele livro num certo grupo, e alguém bem informado o evoca à recordação dos que o esqueceram dizendo: Era aquele escrito, lembram, que foi resenhado por Fulano de tal. É assim que uma promessa satisfaz as exigências do tempo. Primeiro ela desperta a enorme sensação, e dois anos mais tarde quem fez a promessa ainda desfruta da honra de ser tido por aquele que a cumpriu. Pois a promessa interessa; mas se ele a cumprisse, só se teria prejudicado; pois a sua realização não interessa. [VII 3] No que toca à minha promessa, sua forma displicente não era por acaso; pois a própria promessa, considerada realiter [lat.: realisticamente], não era nenhuma promessa, uma vez que ela já tinha sido cumprida no próprio opúsculo. Se se quer dividir um tema em uma parte mais fácil e uma mais difícil, o autor que faz a promessa comporta-se assim: começa com a parte mais fácil e promete a parte mais difícil como continuação. Tal promessa mostra seriedade e, sob todos os aspectos, merece ser aceita. Ao contrário, mostra mais leviandade quando ele apronta a parte mais difícil, e então promete uma continuação, especialmente uma de tal tipo que qualquer leitor que apenas tenha lido com atenção toda a primeira parte, caso de resto esteja provido da formação necessária, possa escrevê-la ele mesmo - se achar que vale a pena. É esse o caso das Migalhas filosóficas: a continuação, como foi mencionado, deveria apenas dar ao problema uma vestimenta histórica. O problema era o difícil - se é que havia algo difícil em toda a questão; a vestimenta histórica é bastante fácil. Sem querer ofender ninguém, sou da opinião de que nem todo jovem graduado em Teologia teria sido capaz de apresentar o problema nem ao menos com o mesmo ritmo dialético com o qual isso está feito no opúsculo; sou também da opinião de que nem todo jovem graduado em Teologia, após ler o opúsculo, seria capaz de colocá-lo de lado e então, por conta própria, apresentar o problema com a mesma clareza dialética com a qual ele é elucidado no opúsculo. No que tange à continuação, de qualquer modo, permaneço convencido, ainda que sem saber se esta convicção lisonjearia alguém, de que todo jovem graduado em Teologia será capaz de escrevê-la - contanto que seja capaz de copiar as intrépidas e dialéticas posições e movimentos. - Essa era a natureza da promessa de continuação. Está, pois, correto que ela seja realizada num pós-escrito, e o autor não pode ser acusado daquela prática feminina de dizer a coisa mais importante, se é que toda esta questão tem alguma importância, em um pós-escrito. No essencial, não há continuação. Em outro sentido, a continuação poderia tornar-se interminável conforme a sabedoria e erudição daquele que pusesse o problema numa vestimenta histórica. Honra e glória ao saber e ao conhecimento; louvado seja aquele que domina o conteúdo material com a certeza do conhecimento, com a confiabilidade da autópsia. Mas, o dialético é, contudo, a força vital neste problema. Se o problema não ficar explicado em sua dialética, e se, por outro lado, um raro conhecimento e uma grande perspicácia forem aplicados aos pormenores, o problema se tornará mais e mais difícil para o que estiver interessado nele dialeticamente. Não se pode negar que, a respeito daquele problema, em termos de sólida erudição, perspicácia crítica e habilidade organizadora, muita coisa magnífica foi realizada por homens por quem o presente autor possui uma profunda veneração e cuja orientação em seu tempo de estudante ele desejou ser capaz de seguir com um talento maior do que o que possui, até que, com uma mistura de sentimentos de admiração por esses homens eminentes e de desalento em seu infortúnio desamparado e cheio de dúvidas, ele considerou ter descoberto que, a despeito daqueles excelentes esforços, o problema não tinha sido desenvolvido, mas reprimido. Se então a deliberação dialética nua mostra que não há nenhuma aproximação, que é um equívoco, uma ilusão, querer introduzir-se assim quantitativamente na fé; que é uma tentação para o crente querer se preocupar com tais deliberações, uma tentação, contra a qual ele, mantendo-se na paixão da fé, deve combater com todas as forças, para que não acabe tendo êxito (NB: pela rendição à tentação, portanto pela maior das desgraças) em transformar a fé em alguma outra coisa, num outro tipo de certeza, substituindo-a pela probabilidade e pelas garantias, que haviam sido justamente desdenhadas quando ele, ainda no início, fez a transição qualitativa do salto de não crente para crente - se este é o caso: então talvez todo aquele que, não completamente leigo na ciência erudita e não sem boa vontade para aprender, assim o compreendeu, também terá sentido o aperto de sua posição quando, em admiração, aprendeu a encarar modestamente sua própria insignificância com relação aos notáveis pela erudição e discernimento e merecida fama, de modo que, procurando a falha em si mesmo, repetidas vezes retomou a eles, e quando, em desalento, teve que dar razão a si próprio. A intrepidez dialética não se adquire tão facilmente, e o sentimento do próprio estado de abandono, embora se creia estar com a razão, o adeus à admiração por aqueles mestres confiáveis, [VII 4] são seu discrimen [lat.: sua prova decisiva]. A relação para com o dialético efetuada sob a forma de introdução pode ser comparada com a relação de um orador para com ele. O orador reclama o direito de falar e desenvolver seus argumentos em um discurso coerente; o outro o deseja também, já que espera aprender algo dele. Mas o orador tem raros talentos, tem grande conhecimento das paixões humanas, tem o poder da fantasia para representar e tem à sua disposição o horror, para o instante da decisão. Então ele fala; ele arrebata; o ouvinte fica perdido entre suas descrições; sua admiração pelo notável orador o coloca numa devoção feminina, ele sente seu coração bater, toda sua alma está comovida: agora o orador concentra toda seriedade e horror em sua figura; ordena que se cale toda objeção, deposita sua causa ante o trono do Onisciente, pergunta se alguém, sinceramente diante de Deus, ousa negar aquilo que apenas o mais ignorante, o mais desgraçadamente extraviado ousa negar; com suave emoção acrescenta a exortação a não ceder a tais dúvidas; a única coisa terrível é cair na tentação de fazê-lo; ele reconforta o aflito, arranca-o do pavor, como uma mãe faz com sua criança, que se sente protegida pelas mais ternas carícias: e o coitado do dialético vai para casa desconsolado. Ele percebe decerto que o problema ainda não foi exposto, e muito menos resolvido, mas ele ainda não tem bastante força para se contrapor vitoriosamente à força da eloquência. Com o amor infeliz da admiração, ele aqui compreende que também na eloquência tem de haver, afinal, uma enorme justificação. Quando então o dialético se libertou da hegemonia do orador, chega o sistemático e declara com a ênfase da especulação: só na conclusão do todo todas as coisas se esclarecerão. É importante aguentar então aqui por um longo tempo, antes que venha ao caso atrever-se a externar uma dúvida dialética. É claro que o dialético ouve com assombro o mesmo sistemático dizer: que o sistema ainda não está pronto. Ai, então só na conclusão tudo se tornará claro, mas ainda não há uma conclusão. O dialético, porém, ainda não adquiriu a intrepidez dialética, caso contrário este destemor logo o ensinaria a sorrir ironicamente sobre tal sugestão, na qual o prestidigitador a tal ponto protegeu-se com evasivas; pois é de fato ridículo tratar tudo como se já estivesse pronto e aí concluir dizendo que a conclusão está faltando. Com efeito, se está faltando a conclusão na conclusão, então falta também no início. Isso deveria, portanto, ter sido dito no início. Mas, se falta a conclusão no início, quer dizer: que não há nenhum sistema. [VII 5] Uma casa pode, com certeza, estar pronta, e pode estar faltando o cordão da sineta, mas em relação a uma construção científica a falta de uma conclusão tem o poder retroativo de tornar o início duvidoso e hipotético, ou seja, assistemático. Assim seria com a intrepidez dialética. Mas o dialético ainda não a adquiriu. Consequentemente, com recato juvenil, ele se abstém de qualquer conclusão no que se refere à ausência de uma conclusão - e, cheio de esperança, começa seu trabalho. Então ele lê, e se deixa surpreender, a admiração o cativa; ele se inclina ante o poder superior; lê e torna a ler e compreende alguma coisa, mas, acima de tudo, espera pelo reflexo esclarecedor que a conclusão há de lançar sobre o todo. E termina de ler o livro, mas sem ter encontrado exposto aquele problema. E o jovem dialético ainda possui toda a entusiástica confiança da juventude naquela renomada pessoa; sim, como uma donzela que só tem um único desejo, o de ser amada por certo alguém, assim também ele uma só coisa deseja - converter-se em pensador; ai, e a pessoa tão famosa é quem tem em seu poder decidir o seu destino; pois se não a compreender, ele será rejeitado e com seu desejo único terá naufragado. Por isso, não ousa ainda confiar-se a alguém e colocá-lo a par de seu infortúnio, da vergonha de não compreender aquela pessoa renomada. Então recomeça do início, traduz para sua língua materna as passagens mais importantes, para certificar-se de que as compreende e de que não deixou passar desapercebida alguma coisa e, com isso, talvez tenha deixado de ver algo sobre o problema (pois não consegue compreender de jeito nenhum que o problema pudesse não ser encontrado); ele aprende de cor muito do que leu; assinala o curso do pensamento; leva o problema consigo por onde quer que vá, ocupando-se com ele; rasga as notas em pedacinhos e faz novas anotações: o que é que a gente não faz por causa de seu único desejo! Assim ele chega pela segunda vez ao final do livro, mas ainda não chegou perto do problema. Então ele compra um novo exemplar do mesmo livro, para não se deixar perturbar por recordações desanimadoras, viaja para um lugar desconhecido a fim de conseguir começar com novas forças - e o que acontece? Então ele persiste nesse caminho até que por fim aprende a intrepidez dialética. E aí o que acontece? Aí ele aprende a dar a César o que é de César: à renomada pessoa, sua admiração, mas também a agarrar com firmeza o seu problema, a despeito de todas as celebridades. A introdução científica distrai com sua erudição, e a aparência que surge é a de que o problema esteja formulado no momento em que o douto pesquisar atingiu o seu máximo, i. é, como se o esforço crítico e erudito rumo à completude fosse a mesma coisa que o esforço rumo ao problema; o discurso retórico distrai por intimidar o dialético; a tendência sistemática promete tudo e não cumpre absolutamente nada. Desse modo, o problema não se apresenta por nenhum desses três caminhos e, especialmente, [VII 6] não pelo sistemático. Pois o sistema pressupõe a fé como dada (um sistema que não tem pressuposições!), em seguida, pressupõe que deveria interessar à fé compreender-se de um modo que não significasse permanecer na paixão da fé, o que é uma pressuposição (uma pressuposição para um sistema que não tem pressuposições!), e uma pressuposição ofensiva para a fé, uma pressuposição que mostra precisamente que a fé jamais foi o dado. A pressuposição do sistema de que a fé esteja dada dissolve-se em uma presunção na qual o sistema presumiu que sabia o que é a fé. O problema que foi apresentado naquele opúsculo, ainda que sem a pretensão de tê-lo resolvido, já que o opúsculo queria tão somente apresentá-lo, era o seguinte: Pode haver um ponto de partida histórico para uma consciência eterna? Como pode tal ponto de partida interessar-me mais do que historicamente? Pode-se construir uma felicidade eterna sobre um saber histórico? (Cf. a página de rosto). No opúsculo mesmo (p. 155), estava dito: "Como se sabe, o cristianismo é, com efeito, o único fenômeno histórico que, apesar de histórico, melhor dito, precisamente por causa do histórico, pretendeu ser para o indivíduo o ponto de partida de sua consciência eterna, pretendeu interessar-lhe de outra maneira que não a meramente histórica, pretendeu fundamentar-lhe a sua salvação em sua relação a algo histórico". Desse modo, o que está em questão no problema, em vestimenta histórica, é o cristianismo. Assim, o problema está relacionado ao cristianismo. Menos problematicamente na forma de um tratado, o problema poderia ter a seguinte redação: sobre as pressuposições apologéticas da fé, passagens aproximativas e prelúdios à fé, a introdução quantitativa à decisão da fé. O que haveria então para discutir seria um conjunto de considerações que são ou foram discutidas pelos teólogos em disciplinas introdutórias, na introdução à Dogmática, na Apologética. Entretanto, com o intuito de evitar confusão, deve-se imediatamente relembrar que o problema não é o da verdade do cristianismo, mas sim sobre a relação do indivíduo com o cristianismo; por conseguinte, não é sobre o zelo sistemático, de um indivíduo indiferente, por arrumar as verdades do cristianismo em §§ (parágrafos), mas antes sobre o cuidado, do indivíduo infinitamente interessado, por sua própria relação com tal doutrina. Para exprimir isso do modo mais simples possível (usando a mim mesmo como num experimento): [VII 7] "Eu, Johannes Climacus, nascido e criado nesta cidade e tendo agora trinta anos de idade, um ser humano comum como a maioria das pessoas, assumo que o maior dos bens, chamado felicidade eterna, espera por mim do mesmo modo como espera por uma empregada doméstica ou um professor. Ouvi dizer que o cristianismo é um pré-requisito a este bem. E agora pergunto como posso entrar em relação com esta doutrina". "Que atrevimento sem igual", escuto um pensador dizer, "que horrível vaidade atrever-se a dar tal importância a um pequeno si-mesmo, neste mundo preocupado com a história universal, neste teocêntrico e especulativamente importante século dezenove". Isso me dá calafrios; se eu não me tivesse calejado contra os mais variados terrores, decerto teria colocado o rabo entre as pernas. Mas nesse aspecto eu me acho livre de qualquer culpa, pois não fui eu que me tornei tão atrevido por conta própria; é o cristianismo justamente que me compele a isso. Este atribui um peso de qualidade inteiramente diferente ao meu pequeno eu, e a todo e qualquer pequeno eu, já que deseja torná-lo eternamente feliz, se este tiver bastante sorte para ingressar nele. Ou seja, sem ter compreendido o cristianismo - já que eu apenas exponho o problema - pelo menos isso eu compreendi: que esse deseja fazer o indivíduo eternamente feliz, e que pressupõe justamente neste indivíduo aquele interesse infinito pela própria felicidade como conditio sine qua non [lat.: condição imprescindível], um interesse com o qual este odeia pai e mãe, e assim também por certo desdenha sistemas e visões panorâmicas histórico-universais. Embora permanecendo do lado de fora, pelo menos isso eu compreendi, que o único crime imperdoável de lesa-majestade contra o cristianismo ocorre quando um indivíduo qualquer supõe como já dada, sem mais nem menos, a sua relação para com ele. Por mais modesto que pudesse parecer, dado assim de lambuja, o cristianismo considera isso precisamente como insolência. Por isso, tenho de recusar, com o maior respeito, todo o apoio dos auxiliares teocêntricos e dos auxiliares de auxiliares que desse modo querem auxiliar-me a ingressar no cristianismo. Prefiro, portanto, permanecer onde estou, com meu interesse infinito, com o problema, com a possibilidade. De fato, não é impossível que aquele que esteja infinitamente interessado em sua própria felicidade eterna possa um dia tornar-se eternamente bem-aventurado; ao contrário, é certamente impossível que aquele que perdeu o senso para isso (o que afinal não pode ser outra coisa senão um cuidado infinito) consiga tornar-se eternamente bem-aventurado. Sim, uma vez perdido, talvez seja impossível obtê-lo de volta. [VII 8] As cinco virgens tolas tinham perdido a paixão da esperança. Por isso a lamparina apagou. Aí se ouviu um grito, avisando que o noivo estava chegando. Então elas correram até o mercador e compraram novo óleo, e queriam começar outra vez e deixar tudo por esquecido. Compreende-se, tudo foi realmente esquecido. A porta estava fechada e elas trancadas do lado de fora, e quando elas bateram à porta, o noivo lhes disse: eu não as conheço. E isso não era nenhum gracejo do noivo, mas uma verdade, pois num sentido espiritual elas se tinham tornado irreconhecíveis por terem perdido a paixão infinita. O problema objetivo seria então: o da verdade do cristianismo. O problema subjetivo é: o da relação do indivíduo com o cristianismo. Dito de forma simples: Como posso, eu, Johannes Climacus, tomar parte na bem-aventurança que o cristianismo promete? O problema concerne apenas a mim: em parte porque, se for corretamente apresentado, há de concernir a todos do mesmo modo; e em parte porque todos os outros afinal de contas já têm a fé como algo dado, como uma bagatela que não consideram muito valiosa, ou como uma bagatela que só tem valor quando adornada com algumas provas. Portanto, a apresentação do problema não é falta de modéstia de minha parte, mas apenas uma espécie de loucura. Para que o meu problema possa agora se tornar bem nítido, apresentarei primeiro o problema objetivo e mostrarei como ele é tratado. Com isso, far-se-á justiça ao histórico. Depois apresentarei o problema subjetivo. Isso é, no fundo, mais do que a prometida continuação revestida do traje histórico, já que este traje já é fornecido à simples menção da palavra "cristianismo". A primeira parte é a continuação prometida; a segunda parte é uma tentativa renovada no mesmo sentido do opúsculo, uma nova abordagem do problema das Migalhas. PRIMEIRA PARTE O problema objetivo da verdade do cristianismo [VII 11] Para a consideração objetiva, o cristianismo é uma res in facto posita [lat.: algo dado de fato], cuja verdade é questionada, contudo, de modo puramente objetivo, pois o modesto sujeito é objetivo demais para não deixar a si mesmo de fora ou ainda, ohne weiter [al.: sem mais nem menos], para incluir a si mesmo como alguém que facilmente possui a fé. Compreendida objetivamente, portanto, a verdade pode significar: (1) a verdade histórica; (2) a verdade filosófica. Considerada como verdade histórica, a verdade deve ser descoberta por um exame crítico das várias informações etc.; em resumo, do mesmo modo pelo qual uma verdade histórica é normalmente descoberta. Quando se pergunta pela verdade filosófica, aí se pergunta pela relação de uma doutrina, historicamente dada e ratificada, com a verdade eterna. O sujeito que investiga, que especula e que se informa pergunta, assim, pela verdade, mas não pela verdade subjetiva, a verdade da apropriação. O sujeito que investiga está assim interessado, é claro, mas não está interessado pessoalmente, de modo infinito, na paixão que visa à sua bem-aventurança eterna, por sua relação com essa verdade. Que fique bem longe do sujeito objetivo tal falta de modéstia, tal vaidade. O sujeito investigador tem então de estar num desses dois casos: ele tem de estar convencido, na fé, da verdade do cristianismo e de sua relação para com este, e, nesse caso, é decerto impossível que todo o resto possa interessar infinitamente, pois afinal de contas a fé é justamente o infinito interesse pelo cristianismo [VII 12], sendo qualquer outro interesse facilmente uma tentação; ou ele não está na fé, mas objetivamente na observação e, como tal, não está infinitamente interessado na decisão do problema. Que isso fique aqui apenas dito previamente para chamar atenção ao que vai ser exposto na Segunda Parte: que por esse caminho o problema jamais surgirá de forma decisiva, isto é, nem se apresenta, porque o problema reside precisamente na decisão. Mesmo que o pesquisador científico trabalhe com zelo infatigável, mesmo que abrevie sua vida no serviço entusiástico da ciência; mesmo que o pensador especulativo não poupe tempo nem aplicação: eles não estão, no entanto, infinitamente, pessoalmente, apaixonadamente interessados; ao contrário: nem mesmo querem estar. Sua observação pretende ser objetiva, desinteressada. No que tange à relação do sujeito com a verdade reconhecida, aí se supõe que, tão logo a verdade objetiva tenha sido alcançada, a apropriação fica sendo coisa de pouca monta, segue como um brinde, e am Ende [al.: em última análise], tudo o que tem a ver com o indivíduo é indiferente. Nisso se baseia, justamente, a realçada calma do pesquisador e a cômica irreflexão de quem apenas conversa sobre o que leu. CAPÍTULO 1 A consideração histórica Quando se examina o cristianismo como um documento histórico, o importante é obter informações inteiramente confiáveis sobre o que a doutrina cristã propriamente é. Se o sujeito investigador estivesse infinitamente interessado em sua relação para com esta verdade, iria nesse ponto logo desesperar, porque nada é mais fácil de perceber do que isso, que em relação ao histórico a maior de todas as certezas ainda é apenas uma aproximação, e uma aproximação é algo pequeno demais para que se construa sobre ela alguma felicidade, e é tão diferente da felicidade eterna que nenhum resultado pode surgir dela. Entretanto, dado que o sujeito pesquisador só está interessado do ponto de vista histórico (quer ele, como crente, esteja ao mesmo tempo infinitamente interessado na verdade do cristianismo, o que faria com que todo o seu esforço pudesse facilmente envolvê-lo em várias contradições; quer ele permaneça do lado de fora, mesmo que sem nenhuma decisão apaixonadamente negativa como não crente), ele começa então seu trabalho, seus imensos estudos para os quais ele mesmo dará novas contribuições até o seu septuagésimo aniversário; [VII 13] quatorze dias antes de sua morte ele está, justamente, prevendo um novo escrito que irá lançar luz sobre todo um aspecto da discussão. Um estado de alma tão objetivo é, se a contradição não é um epigrama sobre ele, um epigrama sobre ele, um epigrama sobre a inquietude da subjetividade infinitamente interessada, que afinal bem que deveria ter respondido tal problema, que concerne à decisão sobre sua felicidade eterna, e que, em todo caso, por nenhum preço ousaria renunciar a seu infinito interesse, até o último momento. Quando se pergunta historicamente sobre a verdade do cristianismo, ou sobre o que é ou o que não é a verdade do cristianismo, a Sagrada Escritura imediatamente se apresenta como um documento decisivo. A consideração histórica concentra-se por isso em primeiro lugar sobre a Bíblia. § 1 A Sagrada Escritura Aqui o importante para o pesquisador é assegurar-se o máximo de confiabilidade possível; para mim, ao contrário, o que importa não é mostrar algum conhecimento científico, ou que não tenho nenhum. Segundo minha ponderação, é mais importante que seja compreendido e recordado o seguinte: que mesmo com a mais estupenda erudição e perseverança, e mesmo se as cabeças de todos os críticos estivessem montadas em um único pescoço, não se chegaria jamais a nada além de uma aproximação, e que há uma discrepância essencial entre isso e um interesse pessoal e infinito na própria felicidade eterna. (Ao enfatizar esta contradição, o opúsculo Migalhas filosóficas salientou ou anunciou o problema: o cristianismo é algo de histórico (em relação ao qual o mais elevado conhecimento é apenas uma aproximação, a mais magistral consideração histórica é apenas o mais magistral "tão-bom-quanto", ou "quase"), e contudo, qua histórico, e precisamente por meio do histórico, se propõe a ter significação decisiva para a felicidade eterna de alguém. Disso decorre naturalmente que a modesta realização do opúsculo consistiu apenas em apresentar o problema, desembaraçá-lo de toda tagarelice e de toda tentativa especulativa de explicação, a qual de fato só explica que o explicador pura e simplesmente não sabe do que é que trata a questão). [VII 14] Se a Escritura é vista como o refúgio seguro, que decide o que o cristianismo é e o que ele não é, o importante é assegurar a Escritura de modo histórico-crítico. (Ora, acontece que o dialético não pode ser excluído. Pode ser que uma geração, ou talvez duas, possam passar seus anos na presunção de ter encontrado um tapume que seria o fim do mundo e do dialético: não adianta nada. Desse modo, por um longo tempo julgou-se possível deixar o dialético fora do âmbito da fé, dizendo-se que a convicção desta se baseava na autoridade. Se alguém quisesse então interrogar, i. é, discutir dialeticamente com o crente, este, com certa unbefangen [al.: desinibida] franqueza colocaria a questão deste modo: eu não posso nem devo poder prestar contas disso, porque eu me amparo confiado em outros, na autoridade dos santos etc. Isto é uma ilusão, pois a dialética apenas se volta e interroga, i. é, discute com ele dialeticamente sobre o que seria então autoridade e por que razão ele agora considera esses santos como autoridade. Ela discute, portanto, dialeticamente com ele não sobre a fé que ele tem ao confiar neles, mas sobre a fé que ele deposita neles). Discute-se aqui então: a canonicidade de cada um dos livros, sua autenticidade, integridade, a axiopistia do autor, e uma garantia dogmática é posta: a inspiração. (A desproporção [Misforholdet] entre inspiração e a investigação crítica é semelhante àquela entre felicidade eterna e considerações críticas, porque a inspiração é um objeto só para a fé. Ou se tem tanto zelo crítico porque os livros são inspirados? Então o crente que crê que os livros são inspirados não está sabendo quais livros são os que ele crê serem inspirados. Ou será que a inspiração resulta da crítica, de modo que quando esta terminou o seu trabalho, ela também demonstrou que tais livros são inspirados? Neste caso, não se chega nunca a admitir a inspiração, pois o trabalho crítico é, em seu maximum, apenas uma aproximação). Quando se pensa no trabalho do povo inglês no túnel: o enorme dispêndio de energia, e de que modo o menor acidente poderia interromper todo o projeto por um longo tempo, tem-se uma noção apropriada de todo esse empreendimento crítico. Quanto tempo, quanta diligência, quantas habilidades notáveis, quanto conhecimento excepcional não foi requisitado de geração a geração em nome dessa obra maravilhosa. [VII 15] E, entretanto, uma pequena dúvida dialética que subitamente toque as pressuposições aqui colocadas pode desarranjar todo o projeto por um longo tempo, desarranjar o caminho subterrâneo ao cristianismo que se tentou construir objetivamente e cientificamente, em vez de permitir que o problema se elevasse ao que ele é: subjetivo. Ouve-se, ocasionalmente, iletrados, ou gente com estudo pela metade, ou gênios presunçosos, falarem com desprezo sobre o trabalho crítico referente aos escritos da Antiguidade; e como eles, sem fundamento, desprezam os cuidados meticulosos do erudito pesquisador a respeito do mais insignificante detalhe, o que constitui justamente o mérito desse: que, cientificamente, ele não encare nada como insignificante. Não, a erudita Filologia é totalmente legítima, e o presente autor certamente tem, não obstante, o maior respeito por aquilo que a erudição consagra. Mas da Teologia crítica erudita, ao contrário, não se recebe uma impressão tão pura. Todo o seu esforço padece, consciente ou inconscientemente, de certa duplicidade. Dá sempre a impressão de que dessa crítica deveria de repente resultar algo para a fé, algo concernente à fé. Aí está o seu aspecto duvidoso. Quando um filólogo publica um livro de Cícero, por exemplo, e o faz com grande perspicácia, com o aparato erudito em nobre obediência à força superior do espírito; quando sua engenhosidade e sua familiaridade com o tempo antigo, conquistada graças a uma infatigável diligência, ajudam seu senso de descoberta a remover dificuldades, a preparar o caminho para as ideias em meio à confusão de leituras diversas etc., - então se pode tranquilamente entregar-se à admiração, pois quando seu trabalho estiver pronto, daí nada de mais se seguirá, além da admirável façanha de que, graças à sua arte e competência, um texto antigo se tornou acessível da forma mais confiável. Mas de nenhum modo disso se segue que agora eu construa minha felicidade eterna baseada nesse livro, porque, eu o confesso, em relação à minha felicidade eterna essa perspicácia espantosa é para mim muito pouco; admito, sim, que minha admiração pelo filólogo seria antes triste do que alegre, se eu pensasse que ele tinha in mente [lat.: em mente] algo desse tipo. Mas é isso precisamente o que faz a erudita Teologia crítica; quando ela termina - e até aí nos mantém in suspenso [lat.: em suspenso], mas com essa verdadeira perspectiva em vista - conclui: ergo [lat.: portanto], agora podes construir tua felicidade eterna sobre esses escritos. Aquele que, como crente, estabelece a inspiração, deve consequentemente considerar todo e qualquer exame crítico - seja pró ou contra - como algo duvidoso, uma espécie de tentação. E aquele que, sem estar na fé, se aventura em considerações críticas, certamente não poderá querer que a inspiração resulte delas. A quem, então, tudo isso realmente interessa? Mas a contradição não é notada porque a questão é tratada de modo puramente objetivo; [VII 16] de fato, ela ainda não está lá quando o próprio investigador se esquece do que tinha na cabeça, a não ser na medida em que, vez ou outra, ele a usa liricamente para encorajar-se no trabalho, ou liricamente polemiza, com o auxílio da eloquência. Suponhamos que um indivíduo se apresente e, com interesse pessoal e infinito, com toda a paixão deseje ligar sua felicidade eterna a esse resultado, ao resultado esperado - ele facilmente verá que não há nenhum resultado e nada a esperar, e a contradição irá levá-lo ao desespero. Basta a rejeição de Lutero da Epístola de Tiago para levá-lo ao desespero. Em relação a uma felicidade eterna e um interesse apaixonado e infinito por ela (aquela só pode estar no seio deste), qualquer pontinho é de importância, de infinita importância, ou inversamente: desesperar por causa da contradição irá ensiná-lo precisamente que não há proveito algum em insistir nesse caminho. E contudo é assim que as coisas têm andado. Uma geração depois da outra baixou à sepultura; novas dificuldades surgiram, foram superadas, e novas dificuldades surgiram. Na herança que passa de geração em geração, levou-se adiante a ilusão de que o método é o correto, mas que os eruditos investigadores ainda não tiveram sucesso etc. Todos parecem sentir-se bem; e se tornam sempre mais objetivos. A atitude de interesse pessoal, infinito e apaixonado do sujeito (que constitui a possibilidade da fé e, consequentemente, a fé; é a forma da felicidade eterna e, consequentemente, a felicidade eterna) desvanece-se mais e mais porque a decisão é adiada, e o adiamento é um resultado direto dos resultados do erudito investigador. Isto quer dizer: o problema simplesmente nem surgiu; a gente se tornou objetiva demais para ter uma felicidade eterna, porque esta felicidade é inseparável, precisamente, da atitude de interesse infinito, pessoal e apaixonado, e é precisamente a isso que se renuncia para se tornar objetivo; é precisamente isso que é surrupiado da gente pela objetividade. Com a ajuda dos pastores, que às vezes traem alguma erudição, a congregação recebe uma vaga ideia a respeito. A comunidade fiel acaba por se tornar um Titulatur [lat.: título honorífico], pois a comunidade torna-se objetiva tão somente por olhar para os pastores e então olha para frente à procura de um imenso resultado etc. De repente, um inimigo se lança com violência contra o cristianismo. Ele está tão bem informado dialeticamente quanto os investigadores eruditos e a congregação desavisada. Ele ataca um livro da Bíblia, uma sequência de livros. Instantaneamente acorre a erudita tropa de resgate etc. etc. [VII 17] Wessel disse que se mantinha fora dos lugares onde havia entrevero: do mesmo modo, não é nada próprio para um escritor de opúsculos vir insistindo com sua respeitosa petição a respeito de alguns exames dialéticos, ele se reduz a um cão numa pista de boliche; do mesmo modo, não é apropriado a um dialético, nu em pelo, entrar em uma disputa erudita na qual, a despeito de todo o talento e erudição pro et contra [lat.: a favor ou contra], em última instância não está decidido dialeticamente sobre o quê se está disputando. Se isto for uma pura controvérsia filológica, então deixemos que a erudição e o talento sejam honrados com admiração, como o merecem ser, mas, neste caso, isso não tem nada a ver com a fé. Se se tem algo oculto na cabeça, que se o deixe às claras para que se possa refletir sobre isso com toda a tranquilidade dialética. Aquele que defende a Bíblia em função da fé, certamente deve ter claro para consigo mesmo se todo o seu trabalho, se tiver sucesso conforme todas as expectativas possíveis, resultará em algo relacionado a isso, para que não fique preso entre os parênteses de seu labor e, em meio às dificuldades da erudição, esqueça o decisivo e dialético claudatur [lat.: fechar parêntese]. Aquele que ataca deve, do mesmo modo, ter avaliado se o ataque, caso tenha sucesso na maior escala possível, há de resultar em alguma coisa diferente de um resultado filo lógico, ou, quando muito, numa vitória e concessis [lat.: por concessões], na qual, note-se bem, pode-se perder tudo de outro modo, isto é, caso a concordância recíproca seja só um fantasma. Para que se faça justiça ao dialético e sem perturbação só se pensem os pensamentos, convém assumir uma coisa e depois a outra. Então eu suponho que, no tocante à Bíblia, conseguiu-se provar aquilo que todo teólogo erudito alguma vez, em seu momento mais feliz, poderia ter jamais desejado provar, Esses livros, e não outros, pertencem ao cânone; eles são autênticos, são completos; seus autores são fidedignos - pode-se até dizer que é como se cada uma de suas letras fosse inspirada (mais não se pode aí dizer, porque a inspiração é, com efeito, objeto da fé; é qualitativamente dialética, não é de se alcançar por meio de quantificação). Além disso, não há nenhum vestígio de contradição nos livros sagrados. Pois sejamos precavidos em nossa hipótese: basta que surja uma palavra como boato sobre tal coisa, para que os parênteses apareçam de novo e a inquietude filológico-crítica prontamente desencaminhe alguém. No geral, o que é necessário aqui para que [VII 18] a coisa possa ser fácil e simples é meramente uma precaução dietética, uma renúncia a qualquer interpolação erudita, que num 1, 2, 3 poderia degenerar para se tornar num parêntese de 100 anos. Talvez isso não seja tão fácil, e, tal como uma pessoa corre perigo em qualquer lugar que ande, do mesmo modo o desenvolvimento dialético corre perigo em qualquer lugar, corre o perigo de escorregar para dentro de um parêntese. Dá-se o mesmo com o grande ou o pequeno, e o que em geral torna as disputas tão aborrecidas de escutar para uma terceira pessoa é que na réplica ela já ingressou num parêntese e agora, cada vez mais acalorada, prossegue na direção enviesada afastando-se do verdadeiro assunto. Por isso, uma artimanha de esgrima é usada para provocar um pouco o oponente, a fim de se descobrir se se tem diante de si um corcel que aguenta a parada dialética ou um corredor de parênteses que sai a galope num upa-upa logo que vê um parêntese. Quantas vidas humanas inteiras não passam dessa maneira, desde a mais tenra juventude, a mover-se continuamente entre parênteses! Interrompo, contudo, essas observações moralizantes e direcionadas ao bem comum, com as quais eu tentei compensar minha falta de competência histórico-crítica. Então, suposto que tudo esteja em ordem com relação às Sagradas Escrituras - e daí? Alguém então que não tinha a fé chegou agora um único passo mais próximo da fé? Não, nem um único. Pois a fé não resulta de uma deliberação científica direta, e nem chega diretamente; ao contrário, perde-se nessa objetividade aquela atitude de interesse infinito, pessoal e apaixonado, que é a condição da fé, o ubique et nusquam [lat.: por toda parte e em nenhum lugar] através da qual a fé pode nascer. - Aquele que tinha a fé ganhou alguma coisa em relação ao poder e à força da fé? Não, nem um tiquinho; nesse conhecimento prolixo, nessa certeza que paira à porta da fé e suspira por ela, ele está antes numa posição tão perigosa que vai precisar de muito esforço, muito temor e tremor para não cair em tentação, e confundir conhecimento com fé. Enquanto que até agora a fé teve na incerteza um pedagogo proveitoso, ela deveria ter seu maior inimigo na certeza. De fato, se se exclui a paixão, a fé deixa de existir, e certeza e paixão não se atrelam juntas. Tomemos uma analogia para ilustrá-lo. Aquele que crê que existe um Deus e também uma Providência, tem assim mais facilidade de preservar a fé, mais facilidade de adquirir de modo determinado a fé (e não uma fantasia) num mundo imperfeito, onde a paixão é mantida vigilante, [VII 19] antes do que num mundo absolutamente perfeito. Em tal mundo, a fé é, de fato, impensável. Por isso, também se aprende que a fé será abolida, na eternidade. Que sorte, então, que esta hipótese desejada, o mais belo dos desejos da Teologia crítica, seja uma impossibilidade, porque mesmo sua mais perfeita realização seria ainda uma aproximação. E, de novo, que sorte para os homens da ciência que de modo algum a falha seja deles! Se todos os anjos unissem seus esforços, eles ainda assim só seriam capazes de produzir uma aproximação, porque no que se refere ao conhecimento histórico uma aproximação é a única certeza - mas também é pequena demais para que sobre ela se construa uma bem-aventurança eterna. Eu suponho então o oposto, que os inimigos tiveram sucesso em provar o que queriam em relação às Escrituras, com uma certeza que supera o mais caloroso desejo do mais odioso dos inimigos - e daí? O inimigo, assim, aboliu o cristianismo? De modo algum. Ele prejudicou o crente? De modo algum, nem um tiquinho. Ganhou o direito de se eximir da responsabilidade de não ser um crente? De modo algum. Isto é, só porque esses livros não são desses autores, não são autênticos, não são integri [lat.: completos], não são inspirados (isso não pode ser refutado, pois é um objeto da fé), daí não segue que esses autores não existiram e, acima de tudo, que Cristo não tenha existido. Até aí, o crente está ainda igualmente livre para aceitar isso, igualmente livre, notem bem; pois se o aceitasse em virtude de uma demonstração, estaria a ponto de abandonar a fé. Se as coisas chegam tão longe, o crente terá sempre alguma culpa se foi ele mesmo quem convidou e quem começou a colocar a vitória nas mãos da descrença, ao desejar ele mesmo demonstrar. Aqui reside o nó da questão, e eu novamente retorno à Teologia erudita. Para quem serve a demonstração? A fé não precisa dela, pode até mesmo considerá-la sua inimiga. Ao contrário, quando a fé começa a se envergonhar de si mesma; quando, como uma amante que não se contenta com amar, mas que no fundo se envergonha de seu amado e por isso precisa provar que ele é algo de notável; portanto, quando a fé começa a perder a paixão; portanto, quando a fé começa a deixar de ser fé, aí a demonstração se torna necessária para que se possa desfrutar da consideração burguesa da descrença. Sobre as tolices retóricas perpetradas neste ponto pelos oradores eclesiásticos, pela confusão de categorias, aí, é melhor nem falar. A fé tomada em vão [VII 20] (um moderno sucedâneo do Evangelho de Jo 5,44: como podereis crer, vós que recebeis glória uns dos outros?) não irá e não poderá, naturalmente, suportar o martírio da fé, e, em nossos dias, uma exposição sobre a fé propriamente dita é talvez a exposição mais rara de se ouvir em toda a Europa. O pensamento especulativo compreendeu tudo, tudo, tudo! Mas o orador eclesiástico ainda mostra alguma reserva; ele admite que ainda não compreendeu tudo; admite que está se esforçando (pobre moço, isso é uma confusão de categorias!). "Se há alguém que tenha entendido tudo", ele diz, "então eu admito" (aí, ele se envergonha e não percebe que deveria usar de ironia contra os outros) "que não entendi e que não posso demonstrar tudo, e nós, gente humilde" (aí, ele sente sua humildade num lugar muito errado) "devemos nos contentar com a fé." (Pobre, incompreendida, maior de todas as paixões: fé, que tens de te contentar com um tal defensor; pobre mocinho pregador, que nem sabes do que estás falando! Pobre Peer Eriksen, pobretão na ciência, que não consegue acompanhar a ciência, mas que tem a fé, porque isso ele tem, a fé, aquela que transformou pescadores em apóstolos, a fé que pode mover montanhas - desde que alguém a tenha!) Se o assunto é tratado objetivamente, o sujeito não pode relacionar-se apaixonadamente com a decisão; e, menos ainda, estar apaixonadamente, infinitamente interessado. É uma autocontradição e, nesse sentido, é cômico interessar-se infinitamente em relação a algo que em seu ponto máximo continua sempre, apenas uma aproximação. Se a paixão é adicionada apesar disso, aparece o zelotismo. Para a paixão infinitamente interessada cada pingo do i terá um valor infinito (Com isso, o ponto de vista objetivo é também reduzido in absurdum [lat.: ao absurdo], e a subjetividade é posta. Pois se fôssemos perguntar por que cada acento de uma letra tem infinita importância, a resposta teria que ser: porque o sujeito está infinitamente interessado, mas então o estar infinitamente interessado do sujeito é o que decide). A falha não está na paixão infinitamente interessada, mas no fato de que seu objeto se tenha tornado um objeto aproximativo. O exame objetivo, de qualquer modo, permanece de geração em geração precisamente porque os indivíduos (os examinadores) tornam-se mais e mais objetivos, menos e menos infinitamente, apaixonadamente, interessados. [VII 21] Sob a pressuposição de que, por este caminho, se iria continuar a demonstrar e a procurar a demonstração para a verdade do cristianismo, algo de curioso iria por fim surgir: que justamente quando se terminasse a demonstração de sua verdade, o cristianismo teria deixado de existir como algo presente; ter-se-ia tornado de tal modo histórico, que seria algo passado cuja verdade, isto é, cuja verdade histórica, teria agora sido trazida a um ponto de confiabilidade. Deste modo, a aflita profecia de Lucas 18,8 poderia cumprir-se: Mas quando o Filho do homem voltar, encontrará a fé sobre a Terra? Quanto mais objetivo se torna o examinador, menos ele constrói uma bem-aventurança eterna, isto é, sua felicidade eterna em sua relação com seu exame, pois uma felicidade eterna é uma questão apenas para a subjetividade apaixonada e infinitamente interessada. O examinador (seja ele um pesquisador erudito ou um improvisador membro da congregação) agora compreende a si mesmo objetivamente no limite da vida, de acordo com o seguinte discurso de despedida: Quando eu era jovem, duvidava-se de tais e tais livros. Agora sua autenticidade foi demonstrada, porém, em compensação, recentemente levantou-se uma dúvida acerca de alguns livros que nunca antes tinham sido questionados. Mas por certo há de aparecer ainda algum erudito etc. Com louvado heroísmo, a modesta e objetiva subjetividade mantém-se do lado de fora; ela está à disposição, desejando aceitar a verdade tão logo esta seja obtida. A meta pela qual se empenha ainda está distante (é inegável, pois uma aproximação pode se estender tanto quanto for de seu agrado) - e enquanto a grama demora a crescer, o examinador morre, tranquilo, pois ele foi objetivo. Ó objetividade, não por nada elogiada! Tu consegues tudo; nem mesmo o mais firme dos crentes tem tanta certeza de sua felicidade eterna, e, acima de tudo, de não perdê-la, como tem o [sujeito] objetivo! Mas talvez esta objetividade e esta modéstia estejam fora de lugar, e sejam não cristãs. Neste caso seria bastante duvidoso introduzir-se dessa maneira na verdade do cristianismo. O cristianismo é espírito; espírito é interioridade; interioridade é subjetividade; subjetividade é essencialmente paixão e, em seu máximo, uma paixão infinita e pessoalmente interessada na felicidade eterna. Logo que se exclui a subjetividade, e se tira da subjetividade a paixão, e da paixão o interesse infinito, não resta absolutamente nenhuma decisão, nem sobre este problema nem sobre qualquer outro. Toda decisão, toda decisão essencial, baseia-se na subjetividade. Um examinador (e é isso a subjetividade objetiva) em nenhum ponto tem uma urgência infinita por uma decisão, e em nenhum ponto ele a vê. Isso é o falsum [lat.: a falsidade] da objetividade e o significado da mediação [VII 22] como uma passagem no processo contínuo, no qual nada subsiste e no qual também nada é decidido, porque o movimento retorna sobre si mesmo e de novo retorna, e o próprio movimento é uma quimera, e a especulação é sempre sábia depois que as coisas aconteceram. (Assim também há de ser compreendido o ceticismo da filosofia hegeliana, aclamada por sua positividade. De acordo com Hegel, a verdade é o contínuo processo histórico universal. Cada geração, cada estádio deste processo está legitimado, e contudo é apenas um momento na verdade. Se aqui não entra um pouco de charlatanice, que ajuda a admitir que a geração na qual o Prof. Hegel viveu, ou essa que agora depois dele é imprimatur [lat.: imprima-se). que tal geração é a última e que a história do mundo passou, estamos todos no ceticismo. A apaixonada questão acerca da verdade nem mesmo se coloca, porque antes a filosofia ludibriou os indivíduos para que se tornassem objetivos. A verdade positiva hegeliana é tão enganadora quanto o era a felicidade no paganismo. Só posteriormente se sabia se alguém fora ou não feliz; e assim a próxima geração fica sabendo o que era verdade na geração falecida. O grande segredo do sistema (mas isto fica unter uns [al.: entre nós] assim como o segredo entre os hegelianos) é algo próximo do sofisma de Protágoras - "Tudo é relativo", só que aqui tudo é relativo no progresso contínuo. Porém isso não serve a nenhum vivente, e se ele por acaso conhece uma anedota de Plutarco (nas Moralia) sobre Eudãmidas, um Lacedemônio, irá certamente pensar sobre ela. Quando Eudâmidas viu na Academia o idoso Xenócrates, a buscar a verdade junto com seus discípulos, ele perguntou: Quem é este velho? E quando lhe responderam que era um homem sábio, um daqueles que perseguem a virtude, exclamou: "Quando, afinal, ele irá usá-la?" Provavelmente, foi também este progresso contínuo que provocou o mal-entendido segundo o qual, para libertar alguém do hegelianismo, precisa-se de um camarada treinado como o diabo na especulação. Longe disso; apenas se necessita bom-senso, um vigoroso senso do cômico, um pouco de ataraxia grega. Afora na Lógica, e em parte também aí por uma luz ambígua que Hegel não evitou, Hegel e o hegelianisrno são um ensaio no cômico. Provavelmente o finado Hegel já encontrou o seu mestre no falecido Sócrates, que, sem dúvida, achou alguma coisa para rir; caso Hegel tenha se mantido inalterado. [VII 23] Sim, Sócrates lá encontrou um homem com quem valeria a pena conversar e em especial questionar socraticamente (algo que Sócrates pretendia fazer com todos os mortos), para ver se saberia ou não alguma coisa. Sócrates deveria ter mudado significativamente se se deixasse impressionar, ainda que remotamente, caso Hegel começasse a declamar seus parágrafos, prometendo que tudo ficaria claro no final. - Talvez nesta nota eu possa achar um lugar adequado para uma reclamação que tenho por fazer. Na Vida de Poul Moller foi apresentado apenas um único comentário que nos dá alguma ideia de como ele, numa época mais tardia, concebia Hegel. Em todo o resto, o honrado editor presumivelmente deixou-se guiar em sua abstenção por amor e piedade pelo falecido, por uma consideração escrupulosa para o que certas pessoas iriam dizer, ou um público especulativo e quase hegeliano iria julgar. Contudo, precisamente no momento em que pensava estar agindo por amor pelo falecido, o editor talvez tenha causado dano à sua imagem. Mais notável do que muitos aforismos impressos na coleção, ainda mais notável do que muitos episódios de juventude preservados pelo biógrafo, cuidadoso e com muito gosto, numa bela e nobre apresentação - ainda mais notável foi que P.M., quando tudo era hegeliano, julgava bem diferente; que, primeiro, por algum tempo, ele falava de Hegel quase com indignação, até que a natureza saudavelmente humorística que havia nele o ensinou a sorrir, especialmente do hegelianismo, ou, para recordar P. M. com mais clareza, o fez rir dele cordialmente. Pois quem esteve apaixonado por P.M. e esqueceu o seu humor? Quem o admirou e esqueceu sua natureza saudável? Quem o conheceu e esqueceu sua risada, que fazia tanto bem à gente, mesmo quando não ficava totalmente claro do que é que estava rindo; pois às vezes sua distração deixava os outros perplexos). Objetivamente compreendido, [VII 23] há resultados mais do que suficientes em toda parte, mas em parte alguma algum resultado decisivo, o que está totalmente certo, precisamente porque a decisão se baseia na subjetividade, essencialmente na paixão e, maxime [lat.: em seu máximo], na paixão pessoal e infinitamente interessada pela felicidade eterna. §2 A Igreja A proteção de que a Igreja Católica desfruta, contra a intromissão do dialético, pela presença visível do papa será omitida da discussão. (Em geral, a infinita reflexão, só a partir da qual a subjetividade consegue interessar-se por sua felicidade eterna, é logo reconhecida por uma coisa: que ela é, em toda parte, acompanhada pelo dialético. Seja uma palavra, uma sentença, um livro, um homem, uma sociedade, seja o que for, tão logo se suponha tratar-se de um limite, de forma que o próprio limite não seja ele mesmo dialético, trata-se de superstição e estreiteza de espírito. Em um ser humano há sempre um desejo, ao mesmo tempo reconfortante e também preocupado, de ter algo realmente firme e fixo, que possa excluir o dialético, mas isso é covardia e fraude contra o divino. Até a mais segura de todas as coisas, a revelação, torna-se eo ipso dialética, à medida que devo me apropriar dela; até a mais firme de todas as coisas, uma resolução infinita negativa, que é a forma infinita da individualidade para a presença de Deus nela, torna-se logo dialética. Tão logo eu excluo o dialético, sou supersticioso e engano Deus sobre a esforçada aquisição a todo instante do já adquirido. Ao contrário, é muito mais confortável ser objetivo e supersticioso, e gabando-se disso, e proclamando a irreflexão). [VII 24] Mas mesmo no protestantismo, depois que se deixou de tomar a Bíblia como um refúgio seguro, tem-se recorrido à Igreja. Embora ainda se façam ataques à Bíblia, embora eruditos teólogos a defendam linguística e criticamente, agora todo esse procedimento está em parte antiquado; e, acima de tudo, precisamente porque a gente torna-se mais e mais objetiva e não ocupa a cabeça com as conclusões decisivas acerca da fé. O zelotismo da letra, que ainda possuía paixão, desapareceu. O que havia de mais meritório nele, é que tinha paixão. Num outro sentido, era cômico, e assim como o tempo da cavalaria se encerra propriamente com Dom Quixote (pois a concepção cômica é sempre a conclusiva), assim um poeta poderia ainda tornar claro que a teologia literalista é coisa do passado, ao eternizar, comicamente, tal desafortunado servidor da letra em seu romantismo tragicômico, pois por toda parte onde há paixão, há romantismo, e aquele que tem flexibilidade e senso de paixão, e que não aprendeu apenas decorado o que é poesia, verá em tal figura uma bela exaltação apaixonada, tal como quando uma jovem enamorada borda uma moldura artística no Evangelho onde lê a sua felicidade amorosa, ou como quando uma jovem enamorada conta as letras na carta que ele lhe escreveu; mas aí então o poeta também veria o cômico. - De tal figura, sem dúvida, se haveria de rir; com que direito alguém iria rir, é outra questão, pois o fato de que todo o nosso tempo se tenha tornado falto de paixão não é uma justificativa para o riso. [VII 25] O aspecto ridículo no zelote estava em que sua paixão infinita o empurrava para o objeto errado (um objeto aproximativo); mas o que havia de bom nele é que ele tinha paixão. Este viés da questão, de largar a Bíblia e agarrar-se à Igreja é realmente uma ideia dinamarquesa. Entretanto, eu não consigo nem me rejubilar pessoalmente, por patriotismo, com essa "descoberta incomparável" (que é a designação oficial dessa ideia entre as engenhosas pessoas interessadas: o inventor e os srs. admiradores), nem acho seja o desejável que o governo ordene a toda a população um Te Deum, em piedosa ação de graças pela "descoberta incomparável". É melhor e, ao menos para mim, indescritivelmente mais fácil, deixar Grundtvig com o que é seu: a descoberta incomparável. É verdade que já se ouviram boatos, especialmente quando um pequeno movimento similar iniciou-se na Alemanha com Delbrück, de que Grundtvig devia esta ideia a Lessing, ainda que não lhe devesse a sua característica de incomparável. Portanto, seria mérito de Grundtvig ter transformado uma pequena dúvida socrática, formulada problematicamente com engenhosa sagacidade, rara habilidade cética e soberba dialética, numa verdade eterna, incomparável, histórica, absoluta, inaudita e clara como o sol. Mas mesmo admitindo-se que houvesse uma relação da parte do Pastor Grundtvig - o que eu, porém, não assumo de modo algum, pois a incomparável descoberta, em sua incomparável absolutidade, ostenta a inequívoca marca da originalidade grundtvigiana - seria contudo uma injustiça dizer que ela era emprestada de Lessing, já que nada há em tudo o que é de Grundtvig que nos faça lembrar de Lessing, ou algo que o grande mestre do entendimento pudesse, sem uma incomparável resignação, reivindicar como propriedade sua. Se ao menos se tivesse dito que o sagaz e dialético Magister Líndberg, o talentoso procurador-geral e guardião da incomparável descoberta, devia talvez algo a Lessing, isso ainda faria algum sentido. De qualquer modo, a descoberta deve muito ao talento de Lindberg, visto que através dele ganhou forma e foi forçada a assumir uma atitude dialética, menos hiatizada, menos incomparável - e mais acessível ao bom-senso. Grundtvig percebeu corretamente que a Bíblia não conseguiria resistir [VII 26] à dúvida insistente, mas não percebeu que a razão disso era que o ataque e a defesa estavam ambos baseados num procedimento de aproximação que, em seu empenho perpetuamente continuado, não é dialeticamente adequado para uma decisão infinita sobre a qual se constrói uma felicidade eterna. Como ele não estava dialeticamente atento a isso, seria necessário que houvesse uma mera casualidade para que ele abandonasse as pressuposições nas quais a teoria bíblica tem seu grande mérito, sua venerável importância científica. Mas uma mera casualidade é inconcebível em relação ao dialético. Até aqui, seria mais provável que, com sua teoria da Igreja, ele se mantivesse dentro das mesmas pressuposições. Palavrões contra a Bíblia, com os quais ele, certa vez, realmente escandalizou os luteranos mais antigos; palavrões e linguagem autoritária ao invés de pensamentos podem satisfazer apenas aos seus veneradores, e naturalmente, de modo extraordinário; qualquer outra pessoa perceberá facilmente que quando a fala barulhenta carece de pensamento, é a irreflexão que se desencadeia no desleixo da expressão. Tal como antes a Bíblia deveria decidir objetivamente o que é e o que não é o essencialmente cristão, agora deveria ser a Igreja o refúgio objetivo seguro. Mais especificamente, é, de novo, a Palavra Vivente na Igreja, a Confissão de fé, a Palavra que acompanha os sacramentos. Em primeiro lugar, agora está claro que o problema está sendo tratado objetivamente. A modesta, espontânea, totalmente irrefletida subjetividade mantém-se ingenuamente convencida de que tão logo se estabelece a verdade objetiva, a subjetividade prontamente deseja agarrá-la. Logo em seguida se vê o caráter juvenil (de que, aliás, o velho Grundtvig também se orgulha) que não tem a mínima noção daquele sutil segredo socrático: que o nó da questão está justamente na relação do sujeito. Se a verdade é espírito, então a verdade é interiorização, e não é lima relação imediata e totalmente desinibida de um Geist [al.: espírito, mente] imediato com um conjunto de proposições, ainda que se dê a esta relação, para aumentar a confusão, o nome da mais decisiva expressão da subjetividade: fé. A irreflexão sempre se dirige para a exterioridade, rumo a, ao encontro de, empenhando-se para atingir seu alvo - ao encontro da objetividade; o segredo socrático - que, se o cristianismo não deve ser um regresso infinito, só pode ser infinitizado neste por uma interioridade ainda mais profunda - consiste em que [VII 27] o movimento esteja voltado para o interior, que a verdade seja a transformação do sujeito em si mesmo. O gênio que profetiza um incomparável futuro para a Grécia, simplesmente não está familiarizado com a grecidade. O estudo sobre o ceticismo grego seria bastante recomendável. Ali se aprende excelentemente, o que sempre há de requerer tempo e prática e disciplina para ser compreendido (estreito caminho para a linguagem franca, sem amarras!): que a certeza razoável, para nem falar da certeza histórica, é incerteza, é tão somente aproximação, e que o positivo e uma relação imediata com este é o negativo. A primeira dificuldade dialética com relação à Bíblia é que ela é um documento histórico, que, tão logo seja tomado como o refúgio, inicia a aproximação introdutória, e o sujeito fica distraído num parêntese, cuja conclusão se pode esperar por toda a eternidade. O Novo Testamento é algo do passado e é, portanto, histórico num sentido mais estrito. Justamente este é o encantamento que quer impedir que o problema se faça subjetivo, e o trata de modo objetivo; e, desse modo, ele nunca aparece. - As Migalhas filosóficas se concentraram sobre esta dificuldade nos capítulos IV e V, anulando a diferença entre o discípulo contemporâneo e o mais recente, que se pressupõe estarem separados por 1.800 anos. Isso é importante para que o problema (a contradição de que a divindade tenha existido em forma humana) não se confunda com a história do problema, ou seja, com a summa summarum [lat.: soma total] de 1.800 anos de opiniões etc. Foi desta maneira experimental que as Migalhas propuseram o problema. A dificuldade com o Novo Testamento como algo do passado parece agora ter sido superada com a Igreja, que é afinal de contas algo presente. Neste ponto a teoria de Grundtvig tem mérito. Foi desenvolvida, particularmente por Lindberg, com hábil e jurídica perspicácia, a ideia de que a Igreja elimina toda a prova ou demonstração que era necessária em relação à Bíblia, já que esta é algo passado, enquanto que a Igreja é algo presente. Exigir desta uma demonstração de que existe, diz Lindberg, e com razão, é um nonsens, tal como exigir de uma pessoa viva que prove que existe. (Definindo mais precisamente, numa meta física dialética, isso se dá porque existência [Tilvaerelse] é um conceito superior a toda demonstração a seu favor, e portanto é uma tolice exigir uma demonstração; enquanto, inversamente, é um salto concluir pela existência a partir da essência [Vazsen]). [VII 28] Neste ponto Lindberg tem toda razão, e tem o mérito da imperturbabilidade e da certeza clarificadora com que ele sabe assegurar alguma coisa. A Igreja, portanto, existe; a partir dela (como presente; como contemporânea do que pergunta, com o que o problema fica confirmado, pela isonomia da contemporaneidade) é possível aprender o que há de essencialmente crístico, pois é, realmente, isso o que a Igreja professa. Correto. Mas nem mesmo Lindberg foi capaz de manter sua posição até este ponto (e eu prefiro me haver com um dialético, deixando o incomparável para Grundtvig). Com efeito, depois que se disse da Igreja que ela existe (está aí) e que se pode aprender com ela o que é o essencialmente cristão, assevera-se novamente que esta Igreja, a Igreja presente, é a Igreja apostólica, e que é a mesma Igreja que persistiu ao longo de dezoito séculos. O predicado de "cristã" é portanto mais do que um predicado do estar presente; atribuído à Igreja presente, ele designa um caráter de passado, e, portanto, uma historicidade bem no mesmo sentido como a Bíblia. E agora todo o mérito foi reduzido a nada. A única historicidade acima da prova é a existência contemporânea; toda e qualquer determinação de passado requer demonstração. Assim, se alguém disser a um homem: demonstra que tu existes, o outro irá muito corretamente responder: isso é um contrassenso. Se, por outro lado, ele disser: eu, que existo agora, já existia, essencialmente como a mesma pessoa, há mais de quatrocentos anos atrás, o primeiro irá corretamente responder: aqui se precisa de uma demonstração. É estranho que um dialético tão experimentado como Lindberg, que é justamente capaz de aguçar uma posição, não o tenha percebido. No momento em que, com a ajuda da Palavra Vivente, se enfatiza a continuidade, a questão retoma exatamente ao ponto em que estava na teoria da Bíblia. Com as objeções se dá a mesma coisa que com o duende: um homem muda de casa - o duende se muda junto. Às vezes isso engana por um momento. Ao mudar subitamente o plano da operação - quando também se tem a sorte de ninguém atacar a nova linha de defesa - um gênio como Grundtvig [VII 29] pode facilmente sentir-se feliz, na opinião de que agora está tudo bem graças à sua descoberta incomparável. Deixemos entretanto a teoria da Igreja aguentar o assalto, tal como a Bíblia teve que fazê-lo, deixemos todas as objeções combaterem mortalmente, e daí? Daí, muito consequentemente (pois qualquer outro procedimento destruiria a própria teoria da Igreja e transportaria o problema para o reino da subjetividade, ao qual ele com toda certeza pertence; o que, porém, o objetivo Grundtvig não admite), torna-se novamente necessária uma propedêutica, que demonstre o caráter primitivo do Credo, sua univocidade por toda parte e em todos os momentos ao longo de dezoito séculos (neste ponto o trabalho crítico encontrará dificuldades completamente desconhecidas pela teoria da Bíblia) (Por uma questão de cautela, preciso agora retomar o dialético. Não é impensável que alguém com suficiente imaginação para torná-lo realmente consciente da prolixidade dessas dificuldades dissesse: Não, nesse caso as coisas funcionam melhor com a Bíblia. Mas não podemos, distraidamente, esquecer que este mais ou menos, este melhor ou pior, ainda está dentro dos limites da essencial imperfeição de uma aproximação, incomensurável com qualquer decisão a respeito de uma felicidade eterna), e então ter-se-á de enfrentar o pó de muito livro antigo. Não adianta recorrer à Palavra Vivente; e é óbvio que não adianta nada querer explicar isso para Grundtvig. Isso não ocorre, de jeito nenhum, com alguma esperança, mas antes com desesperança. A Palavra Vivente proclama a existência da Igreja. Correto, nem Satanás em pessoa pode tirar isso de alguém; mas a Palavra Vivente não proclama que a Igreja tenha existido por dezoito séculos, que ela seja essencialmente a mesma, que tenha existido totalmente inalterada etc.; isso até um noviço da dialética percebe. A Palavra Vivente, como expressão de existência, corresponde ao atual estar-aí imediato, indemonstrável, daquilo que está contemporaneamente presente, mas tão pouco quanto o passado dispensa demonstração (isto é, é superior à demonstração), tampouco a Palavra Vivente corresponde a isso, pois o predicado adicionado só indica afinal de contas uma presença imediata. Um anátema grundtvigiano sobre aqueles que não podem entender o poder beatífico ou decisivo da Palavra Vivente em relação à determinação de passado histórico (uma Palavra Vivente dita por falecidos), não demonstra nem que Grundtvig pensa, nem que o adversário não pensa. O Magister Lindberg, que é uma cabeça boa demais para satisfazer-se com soar o alarme entra ano sai ano, foi exatamente quem deu ao assunto este viés. Quando certa vez surgiu a disputa sobre se seria mais correto dizer "eu creio em uma Igreja Cristã" ou "eu creio que existe uma Igreja Cristã", ele próprio recorreu aos livros antigos para demonstrar quando foi que a variante errônea surgiu. Não há, naturalmente, nenhuma outra coisa a fazer, a não ser que se adicione ao credo cristão uma nova renúncia, ou seja, [VII 30] a renúncia a todo verdadeiro pensamento em relação à descoberta incomparável e ao abracadabra da Palavra Vivente. (Por outro lado, qualquer um cuja imaginação não esteja completamente paralisada, se recordar aquela disputa, por certo não há de negar que o comportamento de Lindberg lembrava vivamente os esforços eruditos de uma exegese bíblica preocupada. Eu nunca fui capaz de detectar nada de sofístico no procedimento de Lindberg, desde que, como é razoável e justo, não se ouse, movido pela inspiração, pretender julgar os corações, um julgamento que sempre perseguiu Lindberg). Por essa via recomeça a aproximação, o parêntese está posto e não se pode dizer quando ele irá terminar, pois isso é e será apenas uma aproximação, e esta aproximação tem a curiosa propriedade de ser capaz de continuar tanto quanto lhe aprouver. Portanto, a teoria da Igreja, comparada com a teoria da Bíblia, tinha o mérito de eliminar o histórico-posterior e transformar o que era histórico em presente. Mas este mérito prontamente desaparece assim que as determinações mais específicas entram em cena. Qualquer coisa, de resto, que se tenha dito ocasionalmente a respeito da superioridade do Credo frente à Bíblia como uma fortaleza contra ataques é bastante obscura. Que a Bíblia seja um livro grande e o Credo umas poucas linhas é um consolo ilusório e vale apenas para pessoas que não percebem que abundância de pensamento não é sempre proporcional à abundância de palavras. Os adversários precisam apenas alterar o ataque, isto é, dirigi-lo contra o Credo, e então tudo estará novamente em pleno funcionamento. Se os adversários, com o objetivo de negar a individualidade do Espírito Santo, podem tentar fazer a exegese do Novo Testamento, podem do mesmo modo aderir à distinção exposta por Lindberg - que no Credo pode constar "o espírito santo" ou "o Espírito Santo". Isto é apenas um exemplo, pois, em relação a problemas históricos, é claramente impossível alcançar uma decisão objetiva de tal natureza que nenhuma dúvida seja capaz de se impor. Isto também indica que o problema deve ser formulado [VII 31] de modo subjetivo e que é de fato um mal-entendido que se deseje buscar uma garantia objetiva e, por esse meio, evitar o risco no qual a paixão escolhe e no qual a paixão continua a sustentar sua escolha. Seria também uma grande injustiça se uma geração posterior, em segurança, isto é, objetivamente, fosse capaz de insinuar-se no cristianismo e, assim, compartilhasse daquilo que uma geração anterior tinha conquistado no mais extremo perigo da subjetividade, e adquirido, no mesmo perigo, durante uma longa vida. Se alguém disser que o enunciado mais curto é mais fácil de manter e mais difícil de atacar, silencia sobre algo, a saber, quantos pensamentos estão contidos no enunciado curto. Até aí, outro poderia, com o mesmo direito, dizer (já que, como in casu [lat.: neste caso], ambos os enunciados têm a mesma procedência, aqui: dos Apóstolos) que uma elaboração mais minuciosa seria mais clara e assim mais fácil de apreender e mais difícil de atacar. Mas tudo que é dito nesse sentido, pro et contra, é de novo apenas uma aproximação cética. A teoria da Igreja tem sido bastante louvada como objetiva - uma palavra que em nossa época se tornou uma referência honrosa com a qual pensadores e profetas creem estar dizendo uns aos outros algo de grande. É só uma pena que lá onde se deveria ser objetivo, na ciência de rigor, raramente se é objetivo; pois um sábio equipado com hábil capacidade de "autópsia" é uma grande raridade. Em relação ao cristianismo, ao contrário, objetividade é uma categoria extremamente infeliz, e aquele que tem um cristianismo objetivo e mais nada é eo ipso um pagão, pois o cristianismo tem a ver, justamente, com espírito, com subjetividade e com interioridade. Ora, não vou negar que a teoria da Igreja é objetiva, mas vou antes demonstrá-lo do modo seguinte. Se eu colocar um indivíduo, infinitamente, apaixonadamente interessado em sua própria felicidade eterna, numa relação com a teoria da Igreja, de tal modo que ele queira basear nela sua felicidade eterna, ele se tornará cômico. Tornar-se-á cômico não porque está infinitamente, apaixonadamente interessado - isso é justamente o que ele tem de bom - mas sim porque a objetividade é heterogênea com seu interesse. Se o aspecto histórico do Credo (que ele procede dos Apóstolos etc.) deve ser o decisivo, então cada letrinha, por menor que seja, precisa ser infinitamente enfatizada, e como isso só pode ser alcançado approximando [lat.: por aproximação], o indivíduo se acha numa contradição ao ligar, i. é, ao querer ligar sua felicidade eterna a isso, e não ser capaz de fazê-lo, porque a aproximação jamais termina; de onde se segue, por sua vez, que ele não conseguirá ligar sua felicidade eterna a isso por toda a eternidade, mas irá ligá-la a algo de menos apaixonado. Se um dia se concordasse afinal com o uso do Credo [VII 32] ao invés das Escrituras, haveriam de surgir fenômenos inteiramente análogos ao zelotismo escrupuloso em relação à exegese bíblica. O indivíduo é trágico por causa de sua paixão e cômico por fixá-la em uma aproximação. - Se alguém quiser acentuar o sacramento do batismo e aí basear sua felicidade eterna no fato de ter sido batizado, novamente se tornará cômico, não porque sua paixão infinitamente interessada seja cômica (muito ao contrário, isso é precisamente o louvável), mas porque o objeto é apenas um objeto de aproximação. Nós todos vivemos tranquilos na convicção de termos sido batizados, mas, se o batismo deve ser decisivo, infinitamente decisivo para minha felicidade eterna, então eu - e consequentemente qualquer um que não tenha sido abençoado pela objetividade e não tenha rejeitado a paixão como brincadeira de criança (e este não tem, de fato, uma felicidade eterna para fundamentar; portanto, pode facilmente fundamentá-la sobre muito pouco) - então eu preciso instar pela certeza. Ai, a desgraça é que em relação a um fato histórico eu só posso obter uma aproximação. Meu pai o disse; consta no livro de registro da paróquia; eu tenho um certificado (Sabe Deus se o Pastor Grundtvig admite que haja também uma Palavra Vivente que demonstre que alguém tenha sido realmente batizado), e assim por diante. Ó, sim, eu estou tranquilo. Mas deixa uma pessoa ter bastante paixão para alcançar o significado de sua própria felicidade eterna, e então a deixa tentar ligá-la ao fato de ter sido batizada - ela desesperará. Por esse caminho, a teoria da Igreja, caso tivesse tido alguma influência e não se tivesse tudo tornado tão objetivo, deveria levar direto ao movimento Batista ou à repetição do Batismo, tal como a da Eucaristia, para obter segurança total neste assunto. Precisamente porque Grundtvig como poeta é agitado e movido pela paixão imediata, o que é justamente o magnífico nele, sente uma carência - e, em sentido imediato, sente-a profundamente - de algo firme com o qual se possa manter a dialética à distância. Mas tal carência é simplesmente a carência de um supersticioso ponto fixo, porque, como foi mencionado acima, todo limite que quisesse excluir o dialético seria eo ipso [lat.: por isso mesmo] superstição. Precisamente porque Grundtvig é movido pela paixão imediata, ele não desconhece algumas impugnações. Em relação a essas, toma-se um atalho com a obtenção de alguma coisa mágica para se agarrar, e então sobra um bom tempo para a gente se ocupar com a história universal. Mas aí exatamente reside a contradição: em relação a si mesmo consolar-se com algo mágico, e então se sobrecarregar com toda a história universal. Quando os questionamentos religiosos nos agarram dialeticamente, [VII 33] quando a vitória é continuamente construída também dialeticamente, temos muito que nos ocupar conosco mesmos. Mas é claro que então não se tem oportunidade de dar a toda a humanidade a bênção de miragens incomparáveis. Não vou tentar, de resto, decidir se não seria não cristão, na questão acerca da nossa felicidade eterna, repousar na certeza de que fomos batizados, tal como os judeus apelavam à circuncisão e ao fato de serem filhos de Abraão como uma demonstração decisiva da sua relação com Deus; portanto, encontrar repouso não em uma relação espiritual com Deus em liberdade (e aqui estamos de fato na teoria da subjetividade, à qual pertencem as autênticas categorias religiosas, onde se supõe que cada um deva apenas salvar a si mesmo e satisfazer-se plenamente com isso, pois a salvação se torna continuamente mais difícil - mais intensamente interiorizada - quanto mais importante a individualidade é; e onde brincar de gênio da história universal e, como um extraordinarius, confraternizar historicamente com Deus, é igualmente frivolidade em relação à vida moral), mas sim num acontecimento exterior, portanto: afastar a impugnação por meio do mágico Batismo (Quando se diz que a salvaguarda contra toda tentação, ao se pensar no batismo, está em que nele Deus opera algo em nós, isto é naturalmente apenas uma ilusão que tenta excluir o dialético por meio de uma tal determinação, pois o dialético logo se reapresenta com a interiorização deste pensamento, com a apropriação [Tilegnelsen]. Por isso, todo e qualquer gênio, até mesmo o maior que já viveu, tem de usar toda sua força exclusivamente nisso: na interiorização em si mesmo. Mas as pessoas desejam livrar-se da tentação de uma vez por todas, e no momento da tentação a fé não se volta para Deus, mas a fé se torna fé em algo, em ter sido realmente batizado. Se aqui não se ocultasse tanta dissimulação, há muito teriam surgido casos psicologicamente notáveis de preocupação em saber com certeza se se foi batizado. Se estivessem em jogo apenas dez mil moedas de prata, dificilmente nos satisfaríamos com uma certeza do tipo que agora todos temos de que fomos batizados) e não desejar permeá-la com fé. Não tenho absolutamente nenhuma opinião própria, apenas apresento o problema, de modo experimental. No que tange à teoria da Bíblia, o presente autor, embora tenha se tornado cada vez mais convicto da distorção dialética que ali se oculta, só pode, contudo, lembrar-se com gratidão [VII 34] e admiração das notáveis realizações contidas na pressuposição, lembrar-se daqueles escritos investidos de rara erudição e solidez, lembrar-se da impressão benéfica de todo o esforço que está assentado numa literatura de cujo pleno alcance o presente autor de modo algum se arroga qualquer conhecimento erudito fora do comum. No que tange à teoria de Grundtvig, aí o autor não sente exatamente nenhum pesar no momento da separação, nem se sente propriamente abandonado, de jeito nenhum, com a ideia de estar em desacordo com esse pensador. Ter Grundtvig ao seu lado é algo que ninguém que deseje saber exatamente onde está poderia decerto desejar, e que não deseje estar onde há alarme, em especial quando os gritos de alarme são a única definição mais específica de onde se está. No que tange ao Magister Lindberg, esse é um homem com tantos conhecimentos profundos e um dialético tão experiente, que como aliado é sempre um grande ganho e, como adversário, sempre pode tornar uma batalha difícil - ainda que também prazerosa, porque é um esgrimista exercitado que acerta mas não fere de modo tão absoluto, e assim o sobrevivente se convence facilmente de que não é ele o morto, mas sim uma ou outra absolutidade monstruosa. Sempre me pareceu uma injustiça com Lindberg que, enquanto o Pastor Crundtvig goza de quantia certa per annum [lat.: anualmente] em oferendas de admiração e ofertas espontâneas do partido dos adoradores, Lindberg, ao contrário, tem sido obrigado a ficar na sombra. E, contudo, é sempre alguma coisa, e alguma coisa que pode com verdade ser dita de Lindberg, que este é uma boa cabeça; ao contrário, é altamente duvidoso tudo o que em verdade se diz por aí, que Grundtvig é vidente, poeta, trovador, profeta, com uma quase incomparável visão da história do mundo e com um olhar único para o que há de profundo. §3 Os muitos séculos como prova da verdade do cristianismo O problema é posto objetivamente; a subjetividade sólida pensa assim: "Logo que haja certeza e clareza acerca da verdade do cristianismo, serei bem homem para aceitá-lo; é evidente". Mas a desgraça é que, com sua forma paradoxal, a verdade do cristianismo [VII 35] tem algo em comum com a urtiga: a subjetividade sólida apenas se queima, quando deseja assim sem mais nem menos agarrar o cristianismo, ou melhor (já que se trata de uma relação espiritual, o queimar-se só se pode compreender metaforicamente), simplesmente ela não o agarra; capta sua verdade objetiva de modo tão objetivo que ela mesma fica do lado de fora. Este argumento nem pode ser tratado de modo propriamente dialético, pois desde a primeira palavra ele se transforma em uma hipótese. E uma hipótese pode se tornar mais provável ao conservar-se por 3.000 anos, mas jamais se tornará, por isso, numa verdade eterna, que possa ser decisiva para a felicidade eterna de alguém. O maometanismo não subsiste há 1.200 anos? A confiabilidade de dezoito séculos, o fato de o cristianismo ter permeado todas as relações da vida, reformado o mundo etc., essa confiabilidade é justamente uma fraude, com a qual o sujeito que está resolvendo e escolhendo é capturado e é introduzido na perdição do parêntese. Em relação a uma verdade eterna que deva ser decisiva para uma felicidade eterna, dezoito séculos não têm força demonstrativa maior do que um único dia; ao contrário, dezoito séculos e tudo, tudo, tudo o que pode ser contado e dito e repetido nesse sentido, tem um poder de dispersão que distrai ao extremo. Todo ser humano é, por natureza, destinado a se tornar um pensador (toda honra e louvor a Deus que criou o homem à sua imagem e semelhança!). Deus não pode ser considerado culpado se hábito e rotina e falta de paixão e afetação e conversa fiada com os vizinhos da casa do lado e da frente pouco a pouco corrompem a maioria das pessoas, até que fiquem sem pensamento - e construam sua felicidade eterna sobre uma coisa e outra, e uma terceira - e não percebam que a razão oculta está em que sua fala sobre a felicidade eterna é afetação, justamente por ser destituída de paixão e portanto pode ser construída às mil maravilhas sobre argumentos de palitinhos de fósforo. Por isso, o argumento só pode ser tratado retoricamente. (De preferência, talvez, com uma tirada humorística, como quando Jean Paul diz que se todas as demonstrações da verdade do cristianismo fossem abandonadas ou refutadas, permaneceria, contudo, a de que ele se manteve por dezoito séculos). A eloquência verdadeira é decerto uma raridade hoje em dia; a eloquência verdadeira bem que hesitaria antes de usá-lo: quiçá daí se explique por que o argumento é usado tão seguido. Na melhor das hipóteses, então, o argumento não pretende proceder dialeticamente (pois só os remendões começam desse modo, para só depois apelarem para o retórico); ele pretende é impressionar. [VII 36] O orador isola o sujeito, que observa ou duvida, de qualquer ligação com os outros, e confronta o pobre pecador com as incontáveis gerações e milhões de milhões de milhões, e depois diz a ele: Como ousas ser tão petulante para negar a verdade? Tu ousas, ousas imaginar que tu deverias possuir a verdade enquanto por dezoito séculos aquelas incontáveis gerações e milhões de milhões de milhões deveriam ter vivido num erro? Tu ousas, miserável indivíduo avulso, ousas querer, digamos assim, lançar todos aqueles milhões de milhões de milhões, sim, toda a humanidade, na perdição? Vê, eles se levantam de seus túmulos! Vê, eles desfilam, por assim dizer, diante de meu pensamento, geração após geração, todos aqueles crentes que encontraram repouso na verdade do cristianismo, e o olhar deles te julga, seu rebelde petulante, até que a separação do dia do Juízo Final te impeça de vê-los, porque tu foste encontrado demasiado leve e foste jogado na escuridão, longe da felicidade eterna deles etc. Por trás dessa imensa ordem de batalha (de milhões de milhões de milhões), às vezes o covarde orador estremece, contudo, quando usa o argumento, pois ele suspeita que exista uma contradição em todo o seu procedimento. Mas ele não faz mal algum ao pecador. Tal ducha retórica de uma altitude de dezoito séculos é muito reanimadora. O orador é benéfico, embora não exatamente do modo como pensa ser; ele é benéfico por apartar o sujeito frente a todos os outros - ah, isso é um grande favor, porque apenas alguns poucos são capazes disso por si mesmos e contudo o que se joga neste ponto é uma condição absoluta para entrar no cristianismo. Os dezoito séculos deveriam justamente inspirar terror. Como uma demonstração pro, no momento da decisão para o sujeito individual eles são = 0, mas como terror contra, são excelentes. A questão é apenas se o orador terá sucesso em trazer o pecador para a ducha; com efeito, ele lhe faz uma injustiça, visto que o pecador de modo algum afirma ou nega a verdade do cristianismo, mas pura e simplesmente se preocupa com sua própria relação para com o cristianismo. Como o islandês da estória disse ao rei, "Isso é demais, Majestade", assim o pecador poderia dizer, "Isso é demais, Reverendo; para que tantos milhões de milhões de milhões? A gente fica com a cabeça tão confusa que nem sabe mais se vai para um lado ou para o outro". Como já foi observado acima, é o próprio cristianismo que atribui uma enorme importância ao sujeito individual; o cristianismo só quer se envolver com este, este, só este, e, por conseguinte, com cada um em especial. Neste sentido, é um uso não cristão dos dezoito séculos querer atrair com eles o individuo para o cristianismo ou fazê-lo entrar por medo deles: pois assim o indivíduo não entra. E se ele entra, ele o faz com os dezoito séculos a favor dele ou contra ele. O que foi aqui sugerido, as Migalhas já o enfatizaram com frequência suficiente, a saber, [VII 37] que não há nenhuma passagem direta e imediata ao cristianismo e que, por isso, todos aqueles que desse modo querem dar um empurrão retórico com o objetivo de levar alguém ao cristianismo ou mesmo de ajudar com pancadas alguém a entrar - são todos uns impostores - mas não: eles não sabem o que fazem. CAPÍTULO 2 A consideração especulativa A consideração especulativa concebe o cristianismo como um fenômeno histórico; a pergunta sobre a sua verdade significa, portanto, penetrá-lo de pensamento de tal modo que por fim o próprio cristianismo seja o pensamento eterno. Ora, a consideração especulativa tem a boa propriedade de não ter pressuposições. Ele parte do nada, nada admite como dado, não começa "bittweise [al.: de modo precário / como suplicante]". Aqui podemos então estar seguros de que não encontraremos pressuposições tais como as anteriores. Contudo, uma coisa se admite: o cristianismo como dado. Admite-se que somos todos cristãos. Ai, ai, ai, a especulação é por demais gentil. Sim, como é estranho o curso do mundo! Houve um tempo em que era perigoso confessar ser um cristão; agora, é temerário duvidar de que se seja. Especialmente se esta dúvida não significa que a gente se lance num ataque violento para abolir o cristianismo, pois isso sim daria para entender. Não, se alguém fosse dizer, simples e singelamente, que se preocupava consigo mesmo, mas que daí não decorria corretamente que ele se chamasse um cristão: aí ele não seria - perseguido ou executado, mas as pessoas o olhariam com raiva e diriam: [VII 38] "É realmente aborrecido o caso deste homem, que ele faça tanto barulho por nada; por que ele não pode ser igual a nós outros, que somos todos cristãos? Ele é bem como Fulano, que não consegue usar um chapéu como todos nós, mas tem sempre de se apartar". Se fosse casado, sua esposa diria a ele: "Marido, de onde te veio esta ideia? Como poderias não ser um cristão? Afinal de contas, tu és dinamarquês; o livro de Geografia não diz que o cristianismo luterano é a religião predominante na Dinamarca? Porque um judeu tu não és, maometano, de jeito nenhum, o que mais poderias ser, então? Já fazem mil anos que o paganismo foi desalojado; portanto sei que tu não és um pagão. Não cuidas do teu trabalho no escritório como um bom funcionário público? Não és um bom súdito numa nação cristã, num Estado cristão-luterano? Então é claro que tu és um cristão". Vejam só, nós nos tornamos tão objetivos, que até a esposa de um funcionário público argumenta a partir da totalidade, do Estado, da ideia de comunidade, da cientificidade geográfica, para chegar ao indivíduo. Conclui-se com tanta obviedade que o indivíduo é cristão, tem fé etc., que é mero dandismo fazer muito barulho sobre isso; ou se trata, então, de uma cisma. Como é sempre desagradável ter de admitir a falta de alguma coisa que todos admitem possuir sem mais nem menos, algo que justamente assume alguma significação especial apenas quando alguém é tolo o suficiente para revelar sua própria deficiência, não é nenhum milagre, então, que ninguém o confesse. Em relação àquilo que já é alguma coisa, àquilo que pressupõe uma habilidade ou algo semelhante, é mais fácil fazer tal confissão, mas quanto mais insignificante for o objeto, ou seja, mais insignificante justamente porque todos o possuem, mais embaraçosa é esta confissão. E esta é, a rigor, a moderna categoria com referência à preocupação de não se ser cristão: é embaraçoso. - Ergo, é um dado que nós todos somos cristãos. Mas talvez a especulação diga: "Essas são observações populares, ingênuas, tais como as que seminaristas e filósofos populares podem apresentar; a especulação não tem nada a ver com isso". Oh, que horror, ser excluído da nobre sabedoria da especulação! Mas me parece muito estranho que constantemente só se fale da especulação e da especulação, como se a especulação fosse um ser humano, ou como se um ser humano fosse a especulação. A especulação tudo faz, duvida de tudo etc. O especulante, ao contrário, tornou-se objetivo demais para falar de si mesmo, por isso ele não diz que duvida de tudo, mas sim que a especulação o faz, e que ele o afirma da especulação - e ele nada mais diz - para evitar alguma ação persecutória contra ele. Ora, não estamos de acordo em que somos seres humanos? [VII 39] Como se sabe, Sócrates afirma que quando acreditamos numa arte da flauta, temos que acreditar também num flautista; e portanto, quando supomos a especulação, temos que supor um especulante ou vários especulantes. "Portanto, caríssimo ser humano, digníssimo Sr. Especulante, ao Senhor eu me arrisco a abordar de modo subjetivo: Oh, meu caro! Como o Senhor considera o cristianismo, ou seja, o Senhor é um cristão ou não? Aqui não se questiona se o Senhor vai mais além, mas se o Senhor é cristão; a não ser que ir além na relação de um especulante para com o cristianismo signifique deixar de ser o que se era, um verdadeiro malabarismo à Ia Münchhausen, um malabarismo que talvez seja possível à especulação, pois eu não entendo esse formidável poder, mas que contudo é impossível para o especulante qua [lat.: enquanto] ser humano." O especulante (se não for tão objetivo como a esposa daquele funcionário público) quer, portanto, considerar o cristianismo. Para ele é indiferente se alguém aceita ou não o cristianismo; este tipo de preocupação é deixado para os seminaristas e para os leigos - e então, ainda, também para os verdadeiros cristãos, para os quais não é de modo algum indiferente se eles são ou não são cristãos. Ele agora considera o cristianismo para penetrá-lo com seu pensamento especulativo, sim, seu genuíno pensamento especulativo. Suponhamos que este empreendimento não passe de uma quimera, e que não possa ser realizado. Suponhamos que o cristianismo seja precisamente a subjetividade, seja a interiorização, suponhamos portanto que apenas dois tipos de pessoas possam saber algo sobre ele: as que, apaixonadamente, infinitamente interessadas em sua felicidade eterna, crendo, constroem essa felicidade baseando-a sobre sua relação de crença nele, e aquelas que, com a paixão oposta (mas ainda assim com paixão) o rejeitam - os amantes felizes e os amantes infelizes. Suponhamos que a indiferença objetiva não possa vir a conhecer absolutamente nada. O semelhante só é conhecido pelo semelhante, e a antiga sentença, quicquid cognoscitur per modum cognoscentis cognoscitur [lat.: o que quer que seja conhecido só é conhecido ao modo do sujeito que conhece], deve necessariamente ser ampliada de maneira que haja também um modo pelo qual o que conhece não conheça pura e simplesmente nada, ou que seu conhecimento resulte numa ilusão. Em relação a uma espécie de observação para a qual seja importante que o observador esteja em um determinado estado, vale que quando não está neste estado ele não conhece nada, pura e simplesmente. Ora, ele pode enganar alguém dizendo que está naquele estado quando na verdade não está, mas se, por sorte, ocorre que ele próprio declare não estar no estado requerido, não engana ninguém. [VII 40] Se o cristianismo é essencialmente algo objetivo, aí cabe ao observador ser objetivo; mas se o cristianismo é essencialmente subjetividade, então é um erro que o observador seja objetivo. Em todo conhecimento para o qual valha que o objeto do conhecimento é a própria interioridade da subjetividade, vale que o sujeito que conhece precisa estar nesse estado. Mas a expressão do esforço máximo da subjetividade é o interesse infinitamente apaixonado por sua felicidade eterna. Até mesmo em relação ao amor mundano, permanece verdadeiro que o observador deva verdadeiramente estar na interioridade do amor. Mas aqui o interesse não é tão grande, porque todo amor erótico situa-se na ilusão, e é exatamente por isso que tem algum lado objetivo, o que quer dizer que ainda dá para falar de uma experiência de segunda mão. Se, entretanto, o amor mundano for permeado por uma relação com Deus, então a ilusão imperfeita, a restante aparência de objetividade, se desvanece, e então vale que quem não estiver nesse estado nada ganhará com toda sua observação. Com o interesse infinito e apaixonado por sua felicidade eterna, a subjetividade está no ponto extremo de seu esforço; no ponto extremo, não onde não há nenhum objeto (uma distinção imperfeita e não dialética), mas onde Deus está negativamente presente na subjetividade que, com esse interesse, é a forma da felicidade eterna. O especulante considera o cristianismo como um fenômeno histórico. Mas suponhamos que o cristianismo não o seja, de modo algum. "Que estupidez", escuto alguém dizer, "que incomparável perseguição de originalidade dizer algo desse tipo, especialmente nesses tempos em que a especulação compreendeu a necessidade do histórico." Sim, o que a especulação não é capaz de compreender! pois se um especulante dissesse que compreendeu a necessidade de um fenômeno histórico, aí eu o convidaria a ocupar-se, por um instante, com as objeções expostas, de maneira singela, no Interlúdio entre os capítulos IV e V das Migalhas. Então, por enquanto, aquela pequena seção sirva aqui de referência; gostaria de tomá-la sempre como a base do posterior desenvolvimento dialético, quando eu tiver a sorte de tratar com um especulante, com um ser humano, porque com a especulação mesma eu não ouso me envolver. E agora, vejamos aquela incomparável busca de originalidade! Podemos utilizar uma analogia. Tomemos um casal de esposos. Vê, o casamento deles, claramente, deixa sua marca no mundo exterior; ele constitui um fenômeno na existência (em escala menor, tal como o cristianismo, pensado em sua faceta histórico-mundial, deixou sua marca na vida toda); mas o seu amor conjugal não é um fenômeno histórico; o fenomênico é o insignificante, tem significado para os cônjuges apenas através do amor de cada um, mas observado de alguma outra maneira (isto é, objetivamente), o fenomênico é uma ilusão. [VII 41] Assim é também com o cristianismo. Isso é assim tão original? Comparado à sentença hegeliana de que o exterior é o interior e o interior é o exterior, isso, certamente, é extremamente original. Mas seria ainda mais original se o axioma hegeliano não apenas fosse admirado pela época presente, mas tivesse também poder retroativo para abolir, em direção ao passado histórico, a distinção entre a igreja visível e a invisível. A igreja invisível não é nenhum fenômeno histórico; do mesmo modo que não pode, de modo algum, ser observada objetivamente, porque existe apenas na subjetividade. Ah, minha originalidade se mostra apenas mediana; apesar de toda minha perseguição [de originalidade], da qual, entretanto, não estou ciente, digo apenas o que qualquer estudante já sabe, ainda que não saiba como enunciá-lo claramente; algo que todo estudante, ainda criança, tem em comum com os grandes especulantes, apenas com a diferença de que a criança é ainda muito imatura, e o especulante maduro demais. Não se nega que a consideração especulativa seja objetiva; ao contrário, para mostrá-lo ainda mais claramente, devo repetir mais uma vez minha tentativa de colocar a subjetividade apaixonadamente, infinitamente preocupada com sua felicidade eterna, em relação com ela, com o que ficará manifesto que a especulação é objetiva, visto que o sujeito se torna cômico. Ele não é cômico por estar infinitamente interessado (ao contrário, justamente todos são cômicos quando não estão infinitamente, apaixonadamente interessados e ainda por cima desejam fazer as pessoas se convencerem de que estão interessados em sua felicidade eterna); não, o cômico reside na discrepância do objetivo. Se o especulante for ao mesmo tempo um crente (o que também é dito), deve ter percebido, há muito tempo, que a especulação nunca pode ter, para ele, o mesmo significado que a fé. Justamente como crente, ele é infinitamente interessado em sua própria felicidade eterna, e na fé está seguro disso (N.B. tanto quanto uma pessoa que crê pode estar segura: não de uma vez por todas, mas com interesse infinito, pessoal e apaixonado, diariamente adquirindo o espírito firme da fé); e não constrói nenhuma felicidade eterna sobre sua especulação; ao contrário, ele maneja a especulação com desconfiança, para que ela não o engane afastando-o da certeza da fé (que tem, em si, a todo instante, a infinita dialética da incerteza) e direcionando-o para o indiferente conhecimento objetivo. Compreendido de modo simples e dialético, este é o modo como o problema se apresenta. Por isso, se disser que constrói sua felicidade eterna sobre a especulação, ele se contradirá comicamente, porque a especulação, em sua objetividade, é de fato [VII 42] inteiramente indiferente à felicidade eterna, seja a dele, a minha ou a tua; enquanto que a felicidade eterna reside justamente no humilde sentimento de si da subjetividade, adquirido através de extremo esforço. Além disso, ele mentirá quanto a se declarar um crente. Ou o especulante não é um crente. O especulante não é, naturalmente, cômico, pois ele absolutamente não pergunta por sua felicidade eterna. O cômico só emerge quando o indivíduo subjetivo, apaixonada e infinitamente interessado, deseja pôr sua felicidade numa relação com a especulação. Ao contrário, o especulante nem levanta o problema que estamos discutindo, porque, enquanto especulante, ele se torna precisamente objetivo demais para se preocupar com sua própria felicidade eterna. Aqui, porém, uma única palavra, para deixar claro, no caso de alguém compreender mal algumas de minhas expressões, que é ele que quer me entender mal, enquanto que eu não tenho culpa. Honra e glória à especulação, louvado seja todo aquele que se ocupa de verdade com ela. Negar valor à especulação (embora se possa desejar que os cambistas do pátio do templo etc., sejam afugentados como profanadores) seria, a meus olhos, prostituir a si mesmo, além de ser especialmente tolo da parte de alguém cuja vida, em grande medida, conforme suas humildes condições, está devotada ao serviço dela; e especialmente tolo da parte de alguém que admira os gregos. Pois afinal ele tem de saber que Aristóteles, quando discute o que é a felicidade, coloca a maior das felicidades no pensar, lembrando o bem-aventurado passatempo dos deuses eternos no ato de pensar. Além disso, ele precisa ter compreensão e respeito pelo impávido entusiasmo do homem da ciência, por sua perseverança no serviço da ideia. Mas para o especulante o problema de sua felicidade eterna pessoal não pode de modo algum vir à tona, justamente porque sua tarefa consiste aí em afastar-se mais e mais de si mesmo e tornar-se objetivo e, desse modo, desaparecer diante de si mesmo, e transformar-se na força contemplativa da especulação. Tudo isso eu ainda conheço muito bem. Vejam, porém, os deuses bem-aventurados, aqueles grandes modelos do especulante, não estavam nem um pouco preocupados com a bem-aventurança eterna deles. Por isso, o problema nem sequer surgiu no paganismo. Mas lidar com o cristianismo do mesmo modo só faz confundir. Dado que o ser humano é uma síntese do temporal e do eterno, a felicidade da especulação que um especulante pode ter será uma ilusão, porque ele, no tempo, quer ser somente eterno. Aí reside a inverdade do especulante. Por isso, acima desta felicidade está o interesse infinito, apaixonado, pela própria felicidade eterna. [VII 43] Ele é superior precisamente porque é mais verdadeiro, porque expressa decididamente a síntese. Compreendido desse modo (e, num certo sentido, nem seria necessário esclarecer que o infinito interesse na própria felicidade eterna é algo de mais elevado, pois o mais importante é apenas que isto é o que está em questão), o cômico prontamente se manifestará na contradição. O sujeito está apaixonadamente, infinitamente interessado em sua felicidade eterna, e agora deveria ser ajudado pela especulação, ou seja, ele mesmo especulando. Mas, para especular, ele precisa tomar justamente o caminho oposto, precisa abandonar e perder-se a si mesmo na objetividade, desaparecer para si mesmo. Esta heterogeneidade o impedirá completamente de começar, e sentenciará comicamente qualquer afirmação de que se obteve alguma coisa por esse caminho. O que é, pelo lado oposto, a mesma coisa que tinha sido dita previamente sobre a relação do observador para com o cristianismo. O cristianismo não pode ser observado objetivamente, justamente porque ele quer levar a subjetividade até seu ponto extremo; quando a subjetividade está, assim, posicionada corretamente, não pode amarrar sua felicidade eterna à especulação. Por meio de uma metáfora, vou me permitir ilustrar a contradição que há entre o sujeito apaixonada e infinitamente interessado e a especulação, quando se supõe que esta poderia ajudá-lo. Quando se quer serrar, convém não pressionar a serra com muita força; quanto mais leve a mão do serrador, tanto melhor a serra trabalha. Se alguém pressionar a serra com toda a sua força, não conseguirá serrar de modo algum. Do mesmo modo, convém ao que está especulando tornar-se objetivamente leve, mas aquele que está apaixonada e infinitamente interessado em sua felicidade eterna torna-se então tão subjetivamente pesado quanto possível. Precisamente por isso ele torna para si impossível chegar a especular. Ora, se o cristianismo requer esse interesse infinito no sujeito individual (o que se admite, pois o problema gira ao redor disso), facilmente se percebe que na especulação lhe será impossível encontrar o que procura. - Isso também se pode expressar assim: que a especulação não permite, de modo algum, que o problema venha à tona, de modo que todas as suas respostas não passam de uma mistificação. SEGUNDA PARTE O problema subjetivo A relação do sujeito com a verdade do cristianismo, ou o tornar-se cristão. SEÇÃO 1 ALGO SOBRE LESSING [VII 47] CAPÍTULO 1 Expressão de gratidão a Lessing Se um pobre pensador diletante, um cismador especulativo que, tal qual um inquilino indigente, habitasse um quartinho no sótão no alto de um enorme edifício, sentasse lá em seu pequeno cubículo, preso ao que lhe pareciam ser pensamentos difíceis; se lhe surgisse um pressentimento, uma suspeita de que deveria haver uma falha num lugar ou outro das fundações, sem poder descobrir detalhes que lhe permitissem entender como ou onde; se ele, cada vez que olhasse por sua janela de desvão, observasse com um calafrio os redobrados e agitados empenhos para embelezar e expandir o edifício, de modo que tendo visto e estremecido caísse em exaustão e se sentisse como uma aranha que em seu canto oculto vai levando a vida miserável desde a última faxina, enquanto a todo o momento, com angústia, percebe que há um temporal no ar; se ele, a cada vez que expressasse sua dúvida a alguém, visse que sua maneira de se expressar, por ser distinta da vestimenta das ideias habituais, era considerada como o surrado e excêntrico vestido de uma personagem decadente - se, como digo, tal pensador diletante e cismador especulativo subitamente fosse apresentado a um homem cujo renome não fosse, para ele, exatamente de uma total garantia de correção de pensamentos (pois o pobre inquilino não seria tão objetivo que pudesse sem mais nem menos tirar conclusões remontando do renome à verdade), mas cuja [VII 48] nomeada fosse, contudo, um sorriso da fortuna para o desamparado que descobriu um ou outro daqueles pensamentos difíceis tratados por aquela celebridade - ah, que alegria, que dia festivo na pequena mansarda, quando o pobre inquilino se consolaria com a gloriosa memória daquela celebridade, enquanto a ocupação com a ideia ganhava franqueza, a dificuldade ganhava configuração e a esperança nascia, a esperança de compreender a si mesmo, isto é, em primeiro lugar, compreender a dificuldade e então talvez até superá-la! Pois em relação a compreender as dificuldades vale aquilo que Per Degn [Pedrinho, o sacristão], incorretamente pretendia ter introduzido na hierarquia eclesiástica: primeiro ser sacristão... - o que vale é primeiro compreender a dificuldade, e assim poder-se-á sempre passar a explicá-la - caso se tenha condições para tanto. Pois então, muito bem: brincando e falando sério, perdoa, renomado Lessing, por essa expressão de gratidão arrebatada, perdoa sua forma jocosa! A expressão decerto se mantém a uma distância conveniente, sem ser importuna, ela é isenta de gritaria histórico-universal, de validade sistemática, é puramente pessoal; se não for verdadeira, é só por ser apaixonada demais, o que, de qualquer modo, o tom brincalhão remenda. E essa brincadeira tem também uma razão mais profunda na relação inversa: relação daquele que, experimentalmente, levanta dúvidas sem explicar por que o faz, e daquele que, experimentalmente, tenta apresentar o religioso em sua grandeza sobrenatural, sem explicar por que o faz. Esta expressão de gratidão não tem a ver com o que é geralmente e, eu o admito, com justiça admirado em Lessing. Para admirá-lo desse modo, não me considero autorizado. Minha expressão não se dirige a Lessing em sua qualidade de erudito, nem, no que me agrada como um mito espirituoso: por ele ser um bibliotecário; nem, no que me atrai como um epigrama: que ele era a alma, numa biblioteca, que com uma autópsia quase onipresente ele possuía um enorme saber, um gigantesco aparato dominado pela intuição mental, obediente aos acenos do espírito, comprometido com o serviço da ideia. Não se refere a Lessing como poeta, nem tampouco à sua maestria em construir o verso dramático; nem à sua autoridade psicológica para, poeticamente, trazer algo à luz; nem a suas até hoje insuperadas réplicas, as quais, embora carregadas de pensamentos, com o leve torneado da conversação movimentam-se de forma livre e sem restrição na trama do diálogo. Não se refere a Lessing como um esteta, nem àquela linha de demarcação - que por mandamento seu, decisivo, de modo distinto dos de um papa, traçou entre a poesia e as [VII 49] artes visuais, nem àquela riqueza de observações estéticas que continuam bastando ainda em nossa época. Não se refere a Lessing como um sábio, nem àquela sua sabedoria espirituosa que modestamente se ocultava no humilde traje da fábula. Não, ela se refere a algo cujo nó consiste precisamente em que não se pode vir a admirar nele diretamente, ou que pela admiração de alguém se entre numa relação imediata para com ele, pois seu mérito consiste exatamente em ter impedido isso: que ele - em termos de religião - se encerrou no isolamento da subjetividade, não se deixou trapacear em se tornando histórico-universal ou sistemático em relação ao religioso, mas entendeu, e soube como sustentar, que o religioso se refere a Lessing e tão somente a Lessing, exatamente como se refere a cada ser humano do mesmo modo; entendeu que esse tem infinitamente a ver com Deus, mas nada, nada a ver diretamente com qualquer ser humano. Vê, eis o objeto de minha expressão, o objeto de minha gratidão, se ao menos fosse certo que era esse o caso de Lessing: se é que. E, se fosse certo, então Lessing poderia com razão dizer: não há nada de que me agradecer. Se isso simplesmente fosse certo! Sim, em vão eu o assaltaria com o poder de persuasão de minha admiração, em vão eu suplicaria, ameaçaria, desafiaria, pois ele alcançou exatamente aquele ponto arquimédico da religiosidade, que, embora não capacite a mover o mundo inteiro, exige, para ser descoberto, uma força cósmica quando se tem as pressuposições de Lessing. Se ao menos isso for assim! Mas agora, vejamos o seu resultado! Aceitou ele o cristianismo, rejeitou-o, defendeu-o, atacou-o, de modo que eu também possa admitir a mesma opinião, pela confiança nele, ele que tinha imaginação poética suficiente para, a qualquer momento que fosse, tornar-se contemporâneo daquele evento ocorrido há já 1.812 anos, e fazê-lo com tanta originalidade, que toda ilusão histórica, toda falácia objetivamente retroativa, fosse evitada? Sim, toma Lessing por aí. Não, ele também tinha ataraxia cética e senso religioso suficientes para discernir a categoria do religioso. Se alguém quiser negá-lo, então exijo que se faça a esse respeito uma votação com bolas brancas e pretas. Então, vamos ao resultado! Prodigioso Lessing! Nada, nada, nem vestígio de algum resultado; na verdade, nenhum padre confessor que tenha escutado um segredo para guardar, nenhuma jovem que tenha prometido a si mesma e à sua paixão amorosa o silêncio, e que se imortalizasse por manter a promessa, ninguém que tenha levado consigo até o túmulo qualquer esclarecimento: ninguém poderia agir com mais cautela do que Lessing na tarefa mais difícil: calar ao falar. Nem o próprio Satã consegue, enquanto terceira pessoa, dizer na terceira pessoa algo com determinação. No que tange a Deus, ao contrário, Ele jamais pode vir a ser um terceiro onde Ele participa do religioso; isso é precisamente o segredo do religioso. [VII 50] Aquilo de que o mundo talvez tenha sempre carecido é o que se poderia chamar de individualidades autênticas, subjetividades decididas, aquelas artisticamente permeadas de reflexão, as que pensam por si mesmas, as quais são diferentes das que só gritam e das que só ensinam. Quanto mais objetivos se tornam o mundo e as subjetividades, mais difícil se torna lidar com as categorias religiosas, que residem, exatamente, na esfera da subjetividade, razão porque é quase um exagero irreligioso querer ser histórico-universal, científico e objetivo em relação ao religioso. Contudo, não foi para ter alguém em quem me apoiar que eu trouxe à baila Lessing, pois o desejar ser subjetivo o bastante para apelar a outra subjetividade já é uma tentativa de ser objetivo, é o primeiro passo na busca da votação majoritária a seu favor e para transformar sua relação com Deus num empreendimento especulativo por força da probabilidade, da parceria e das sociedades anônimas. Mas convém de novo perguntar, em relação ao tornar-se propriamente subjetivo, quais são as pressuposições reflexivas que o sujeito deve perpassar, de que lastro de objetividade deve se livrar, e que noção infinita ele tem do significado dessa virada, sua responsabilidade e seu discrimen [lat.: marca distintiva]. Ainda que nesse modo de ver residisse uma exigência que reduz drasticamente o número de individualidades entre as quais uma escolha poderia ser feita, ainda que Lessing me parecesse ser o único, eu de novo não o traria à baila para poder apoiar-me nele (oh, quem ousaria fazê-lo, se alguém ousasse estabelecer uma relação imediata com ele, seria certamente socorrido!). Também me ocorre que isso seria um tanto duvidoso, porque, com tal apelo, eu teria também contradito a mim mesmo e anulado tudo. Se a subjetividade não trabalhou a si mesma pela e a partir da objetividade, qualquer apelo a outra individualidade seria apenas um mal-entendido, e se o tiver feito, irá certamente conhecer seu próprio rumo e as pressuposições dialéticas aí envolvidas, nas quais e de acordo com as quais estabelece a sua existência religiosa. O processo do desenvolvimento da subjetividade religiosa tem, com efeito, a peculiar característica de o caminho nascer para o indivíduo e fechar-se atrás dele. E por que a divindade não haveria de saber manter seu preço? Onde quer que haja algo de extraordinário ou digno de ser visto, é certo que haverá uma multidão a se acotovelar, mas seu proprietário arranja as coisas com cautela de modo que se permita a entrada a um só de cada vez. A aglomeração, a massa, a turba, o tumulto histórico-universal ficam lá fora. [VII 51] E a divindade certamente possui o que há de mais precioso, mas também sabe como salvaguardar a si mesma de um modo inteiramente diferente de toda supervisão terrena; sabe, de um modo totalmente diferente, como evitar que qualquer um se insinue de modo histórico-universal, objetivo e científico, aproveitando-se da aglomeração. E aquele que o compreende expressa presumivelmente e talvez a mesma coisa em sua conduta, embora a mesma conduta possa em um ser imprudência e em outro coragem religiosa, sem que haja qualquer meio objetivo de distingui-Ias. Se Lessing realizou o grande feito, se, humilhando-se sob o divino e amando o humano, colaborou com a Divindade, ao expressar sua relação para com Deus em suas relações com os outros de modo que não se introduzisse o sem-sentido e que ele realmente tivesse sua própria relação para com Deus, e que algum outro homem se relacionasse com Deus apenas através dele: quem o sabe com certeza? Se eu o soubesse com certeza, poderia apoiar-me nele, e se eu pudesse apoiar-me nele e fazê-lo legitimamente, então Lessing certamente não o teria realizado. Ora, Lessing pertence, é claro, em todo caso, ao passado distante, como uma pequena estação recuada na ferrovia do sistema e da história universal. Recorrer a ele é condenar a si mesmo e dar razão a todo e qualquer contemporâneo no juízo objetivo de que a gente é incapaz de acompanhar os tempos em que se anda pela ferrovia - e em que, portanto, toda a arte consiste em saltar para dentro do primeiro vagão que passar e deixar as coisas por conta da história universal. Recordar Lessing é um ato de desespero, pois pelo menos isso é certo, aí tudo estará perdido para quem o faz; a gente está muito, muito para trás, se Lessing já tiver dito alguma coisa sobre o que se deseja dizer - seria o caso de que o que Lessing dissera era verdade (e, nesse, caso, seria duvidoso afastar-se para longe disso na velocidade do trem), ou que não se tivesse tido tempo de compreender Lessing, o qual, engenhosamente, sempre sabia como subtrair a si mesmo, e a seu conhecimento dialético, com sua subjetividade incluída nele, de qualquer entrega rápida ao portador. Mas vê, quando alguém se armou contra toda humilhação e tentação, ainda restou o pior: suponhamos que Lessing o tenha enganado. Não! Ele era mesmo um egoísta, esse Lessing! Em relação ao religioso, sempre mantinha algo para si mesmo, como ele bem o disse, mas de um modo astucioso, algo que não poderia ser repetido de memória pelos repetidores, algo que continuamente permanecia o mesmo, enquanto que trocava sempre de forma, algo que não era distribuído de forma estereotipada para ser introduzido num livro formulado sistematicamente, mas sim algo que um ginasta dialético produz e altera e produz: o mesmo, e, contudo, não o mesmo. [VII 52] Era, no fundo, maldade de Lessing que ele continuamente alterasse assim as letras em relação ao dialético, tal como um matemático confunde com isso o aprendiz que não mantém seus olhos matematicamente fixados na demonstração, mas se satisfaz com um entendimento fugaz e só focaliza as letras. Era uma vergonha que Lessing embaraçasse aqueles que estavam infinitamente desejosos de jurar in verba magistri [lat.: às palavras do mestre], de modo que nunca eram capazes de se relacionar com ele na única forma que seria natural para eles: a relação do juramento. Que ele não dissesse diretamente: "Estou atacando o cristianismo", de modo que os que juram pudessem dizer: "Nós juramos". E que não dissesse diretamente: "Eu quero defender o cristianismo", de modo que os que juram pudessem dizer: "Nós juramos". Era um abuso de sua arte dialética que ele, necessariamente, tivesse de os levar a jurar em falso (já que eles necessariamente tinham que jurar), tanto quando juravam que o que ele dizia agora era o mesmo que tinha dito antes, porque a forma e a configuração eram as mesmas, quanto quando juravam que o que ele tinha dito agora não era o mesmo, porque a forma e a configuração tinham mudado - tal como aquele viajante que, sob juramento, tinha identificado uma pessoa inocente como ladrão, meramente porque reconhecera a peruca do bandido, sem reconhecer o bandido, e que, por isso, prudentemente, deveria ter se limitado a jurar que tinha reconhecido a peruca. Não, Lessing não era um homem sério. Toda a sua exposição é destituída de seriedade e sem aquela genuína confiabilidade que seria suficiente para outros, que ficam pensando, porém não ponderando. E agora, o seu estilo! Esse tom polêmico, que a qualquer momento tem tempo de sobra para uma piada, mesmo num período de efervescência; pois de acordo com um velho jornal que encontrei, aquela de então deve ter sido uma época de efervescência, em tudo semelhante à de agora, como o mundo jamais havia visto igual. Essa despreocupação estilística que elabora uma parábola até os mínimos detalhes, como se a apresentação tivesse valor em si mesma, como se houvesse paz e quietude, e isso talvez apesar de o tipógrafo e a história do mundo, e, por que não dizer, a humanidade inteira, estarem esperando que ele termine. Essa ociosidade científica que não obedece à regulação por parágrafos. Essa mescla de gracejo e seriedade que torna impossível a uma terceira pessoa saber de forma cabal o que é o quê - a não ser que a terceira pessoa o saiba por si mesma. Essa malícia que às vezes talvez até acentue falsamente um ponto indiferente, de forma que quem entende possa justamente assim melhor achar [VII 53] o dialeticamente decisivo, e os hereges nada obtenham para alimentar seus boatos. Esse modo de apresentação, que pertence todo inteiro à sua individualidade, que vai abrindo, de modo vivaz e cheio de frescor, sua própria trilha, e que não exala seu espírito num mosaico de palavras prontas, expressões consagradas e locuções contemporâneas que, postas entre aspas, nos revelam que o escritor está acompanhando seu tempo, enquanto que Lessing confessa sub rosa [lat.: em confiança] que está acompanhando o pensamento. Essa sutileza com que ele, travesso, emprega seu próprio eu, quase como Sócrates; rejeitando companhia ou, mais corretamente, protegendo-se dela, sempre que se trata da verdade, quando o ponto principal é precisamente ser deixado só com ela, sem desejar ter outros consigo em nome do triunfo, já que aqui não há nada a ganhar, a não ser que fosse uma brincadeira da infinitude: nada ser diante de Deus, sem desejar ter gente ao seu redor, no solitário perigo mortal do pensamento, já que este é justamente o caminho. Tudo isso, é seriedade? É seriedade que ele no essencial se comporte do mesmo modo frente a todos, ainda que diferentemente em relação à forma? Que ele não só se esquive das obtusas tentativas dos fanáticos de arrolá-lo numa sociabilidade positiva e iluda sua estúpida importunação, ao querer excluí-lo, mas que tampouco a eloquência entusiástica do nobre Jacobi tenha poder sobre ele, e que não se deixe emocionar pela amável preocupação ingênua de um Lavater por sua alma? É esse o jeito de um homem sério sair dessa vida, deixando que sua palavra derradeira [VII 54] seja tão enigmática quanto todas as outras (Assim, consta que também Hegel teria morrido com as derradeiras palavras de que ninguém o compreendera, a não ser um único, que o compreendera mal; e se Hegel fez o mesmo, isso talvez possa contar a favor de Lessing. Mas, ai, havia aí uma grande diferença. A declaração de Hegel já tem a falha de ser um enunciado direto e, por conseguinte, de todo inadequado para tal mal-entendido, e demonstra suficientemente que Hegel não existiu de maneira artística na ambiguidade da dupla-reflexão. Além disso, que a comunicação de Hegel em todos os seus dezessete volumes é uma comunicação direta; se ele então não encontrou ninguém que o compreendesse, tanto pior para Hegel, Seria outra questão com Sócrates, p. ex., que arranjou artisticamente todo o seu modo de comunicação para ser mal entendido. Considerada como uma réplica dramática no momento da morte, a declaração de Hegel é mais bem entendida como delírio, como irreflexão por parte de alguém que agora, na hora da morte, quer seguir por caminhos que nunca seguiu na vida. Se Hegel, como pensador, é único em sua espécie, então não há realmente nenhum outro com quem possa ser comparado; e se, contudo, devesse haver alguém a quem pudesse ser comparado, uma coisa é certa, que com Sócrates ele não teria absolutamente nada em comum), de modo que o nobre Jacobi nem ouse garantir pela salvação da alma de Lessing - pela qual Jacobi é sério o bastante para se interessar, quase tanto quanto pela sua própria? Isso é seriedade? Bem, que decidam sobre isso os que são tão sérios que nem compreendem uma brincadeira; pois esses são decerto juízes competentes, a menos que seja impossível entender a seriedade se não se entende a troça, algo que (segundo Plutarco, nas Moralia) o sério romano Catão de Útica já teria indicado, ao demonstrar a dialética reciprocidade entre a troça e a seriedade. Mas se então Lessing não é um homem sério, que esperança haverá para alguém que, para apoiar-se nele, renunciou a tantas e tantas coisas, ao histórico-universal e à sistemática contemporânea? Vê só o quanto é difícil abordar Lessing no aspecto religioso! Se eu pretendesse apresentar-lhe uns pensamentos avulsos e então, como numa ladainha, referi-I os diretamente a ele, se eu quisesse apertá-lo obsequiosamente num abraço de admiração como aquele a quem devia tudo, ele talvez se esquivasse com um sorriso e me deixasse em apuros, como um objeto de risadas. Se eu quisesse silenciar seu nome e avançar aos gritos, feliz por minha descoberta incomparável, nunca antes realizada por ninguém, então decerto aquele solerte Odisseu, se eu o imaginasse presente, se aproximaria de mim, com uma ambígua expressão de admiração no rosto, me daria um leve tapa nos ombros e diria: Darin haben Sie Recht, wenn ich das gewubt hätte [al.: Nisso você está certo, ai, se eu tivesse sabido]. E então, se ninguém mais o compreendesse, ao menos eu compreenderia que ele estaria troçando de mim. CAPÍTULO 2 Teses possíveis e reais de Lessing Sem então ousar amparar-me em Lessing, sem ousar referir-me a ele de modo determinado como meu fiador, sem colocar ninguém na obrigação de querer, [VII 55] por causa do renome de Lessing, compreender do modo mais respeitoso ou pretender ter compreendido alguma coisa que leve aquele que compreende a uma relação duvidosa com minha falta de renome, que deve ter algo de tão repulsivo quanto tem de atrativo o renome de Lessing: pretendo agora apresentar algo que atribuo a Lessing (que o diabo me carregue!) sem ter certeza de que ele o admitiria; algo que eu, numa travessura, logo poderia ser tentado a querer atribuir-lhe como se ele o tivesse dito, embora não diretamente; algo pelo qual, de outro modo, eu poderia desejar, num arroubo, cheio de admiração ousar agradecer-lhe; algo que volto a atribuir a ele com orgulhosa parcimônia e autoconfiança, quase que por generosidade; e algo que, mais uma vez, receio que venha a ofendê-lo ou incomodá-lo, por se ter relacionado seu nome a isso. Pois é, raramente se encontra um autor que seja tão boa companhia quanto Lessing, E de onde vem isso? Penso que é porque ele é tão seguro de si mesmo. Aqui se evita toda aquela relação trivial e cômoda entre alguém excelente e alguém menos excelente, em que um é gênio, mestre, o outro, aprendiz, mensageiro, diarista etc. Mesmo que eu quisesse, pelas forças do diabo, ser um discípulo de Lessing, eu não poderia, ele o impediu. Assim como ele mesmo é livre, quer deixar todos livres, penso eu, em sua relação com ele, declinando as transpirações e as malícias do aprendiz, temendo tornar-se ridículo graças aos repetidores: numa reprodução rotineira do que foi dito, como um eco papagaiado. 1 O pensador subjetivo existente presta atenção à dialética da comunicação. Enquanto o pensamento objetivo é indiferente quanto ao sujeito que pensa e à sua existência, o pensador subjetivo está, como existente, essencialmente interessado em seu próprio pensamento, está existindo nele. Por isso, seu pensamento tem outro tipo de reflexão, ou seja, o da interioridade, da posse, pelo qual ele pertence ao sujeito e a ninguém mais. Enquanto o pensamento objetivo investe tudo no resultado e leva toda a humanidade a trapacear, copiando e repetindo de cor o resultado e a resposta, o pensamento subjetivo investe tudo no devir e omite o resultado, em parte porque este justamente pertence a ele, já que ele possui o caminho, e em parte porque ele, como existente, está continuamente no devir, como todo ser humano que não se deixou enganar para tornar-se objetivo, para se converter, de modo não humano, na especulação. [VII 56] A reflexão da interioridade é a dupla reflexão do pensador subjetivo. Ao pensar, ele pensa o universal, mas, como existente em seu pensamento, como o adquirindo em sua interioridade, ele se isola cada vez mais subjetivamente. A diferença entre o pensamento objetivo e o pensamento subjetivo também tem de se manifestar na forma da comunicação (A dupla reflexão reside já na própria ideia da comunicação, isto é, que a subjetividade existente na interioridade do isolamento (que pela interioridade quer exprimir a vida da eternidade, onde toda socialidade e comunidade [Faelledsskab] é impensável, porque a categoria da existência: o movimento, não se deixa aí pensar, razão porque nenhuma comunicação essencial se deixa pensar, porque de cada um se há de admitir que possui essencialmente tudo) quer comunicar-se, portanto que ela quer, ao mesmo tempo, ter seu pensamento na interioridade de sua existência subjetiva e contudo se comunicar. É impossível que essa contradição (a não ser para a irreflexão [Tankelosheden], e para esta, afinal, tudo é possível) encontre sua expressão numa forma direta. - Aliás, que o sujeito assim existente possa querer comunicar-se, não é tão difícil de compreender. Um enamorado, por exemplo, para quem seu amor [Elskov] constitui justamente sua interioridade, bem pode querer comunicarse, mas não de modo direto, justo porque a interioridade do amor é para ele o principal. Ocupado essencialmente em conquistar constantemente a interioridade do amor, ele não possui resultado algum, e nunca está pronto, mas pode por isso desejar comunicar-se, porém justamente por isso não pode jamais utilizar uma forma direta, dado que esta pressupõe resultado e acabamento. Assim também numa relação com Deus. Precisamente porque ele mesmo está constantemente num devir voltado para dentro, ou seja, para a interioridade, nunca pode comunicar-se diretamente, dado que aqui o movimento é o diametralmente oposto. A comunicação direta [ligefremme Meddelelse] requer a certeza, mas a certeza é impossível para o que está devindo, e é justamente o engano [Bedraget]. Assim, para empregarmos uma situação erótica, se uma jovem enamorada ansiasse pelo dia do casamento porque esse lhe haveria de dar uma certeza segura, e como esposa se acomodasse numa tranquilidade jurídica e, ao invés de suspirar de um jeito juvenil, bocejasse de jeito marital, então, o esposo com todo o direito haveria de se queixar de sua infidelidade, embora ela não amasse algum outro, mas porque ela teria perdido o ideal [tabt ldeen], e não o amava propriamente. Porém, na relação erótica, esta é a infidelidade essencial, sendo a acidental o amar alguma outra pessoa), o que significa que o pensador subjetivo deve logo prestar atenção a que a forma tenha, artisticamente, tanta reflexão quanto ele mesmo a tem, ao existir em seu pensamento. Artisticamente, é bom notar, pois o segredo não consiste em que ele enuncie diretamente sua dupla reflexão, dado que tal enunciação seria justamente uma contradição. [VII 57] A comunicação ordinária entre um ser humano e outro é totalmente imediata, porque os homens ordinariamente existem de forma imediata. Quando alguém conta alguma coisa e o outro se reconhece literalmente no mesmo, supõe-se que estão de acordo e que se compreenderam um ao outro. Justamente porque quem faz a enunciação não está atento ao caráter duplo da existência do pensamento, não consegue, de modo algum, prestar atenção à dupla reflexão da comunicação. Portanto, ele nem imagina que esse tipo de concordância possa ser o maior mal-entendido e, naturalmente, de modo algum, que, tal como o pensador subjetivo existente se libertou pela duplicidade, assim também o segredo da comunicação dependa especificamente de deixar o outro livre, e;exatamente por esta razão, ele não pode comunicar-se diretamente; de fato, é até mesmo irreligioso fazê-lo. Este último ponto tanto mais vale quanto mais o subjetivo for o essencial e, por conseguinte, aplica-se, antes de tudo, ao domínio do religioso, isto é, se o comunicador não for o próprio Deus, ou não pretender amparar-se na autoridade miraculosa de um apóstolo, mas for tão somente um ser humano, e ao mesmo tempo alguém que gosta de que tenha sentido aquilo que diz e aquilo que faz. Portanto, o pensador religioso subjetivo, que compreendeu a duplicidade da existência para se tornar um pensador desse tipo, facilmente percebe que a comunicação direta é uma fraude em relação a Deus (que possivelmente o priva da adoração verdadeira de outra pessoa), uma fraude em relação a si mesmo (como se tivesse deixado de ser um existente), uma fraude em relação a outro ser humano (que possivelmente alcança apenas uma relação relativa para com Deus), uma fraude que o põe em contradição com todo o seu pensamento. Por sua vez, enunciar isso diretamente seria mais uma vez uma contradição, porque a forma se tornaria direta, a despeito de toda a dupla reflexão do que foi dito. Exigir de um pensador que, na forma em que faz sua comunicação, contradiga todo o seu pensamento e sua visão de mundo, consolá-lo dizendo que desse modo ele trará proveito, deixá-lo convencido de que ninguém se importa com isso, quer dizer, que ninguém o percebe nestes tempos objetivos, já que essas conclusões extremas são meras tolices que todo diarista sistemático considera como nada - bem, esses são bons conselhos, e até nem custam caro. Suponhamos assim que a visão de vida de um sujeito que existisse religiosamente ensinasse que não se deve ter discípulos, e que isso seria traição, contra Deus e contra os homens; suponhamos que ele fosse um tanto tolo (pois, ainda que se precise de algo mais do que honestidade para se sair bem neste mundo, a tolice é sempre requerida para que se seja verdadeiramente bem-sucedido e verdadeiramente compreendido por muitos) e anunciasse isso diretamente com fervor e paixão: e então? Bem, então ele seria compreendido, e logo se apresentaria uma dezena de voluntários oferecendo seus serviços, por uma ida semanal grátis ao barbeiro, para proclamar esta doutrina, i. é, ele teria tido a sorte extraordinária de, numa comprovação ulterior [VII 58] da verdade dessa doutrina, ganhar discípulos que aceitariam e difundiriam essa doutrina que proíbe ter discípulos. O pensamento objetivo é completamente indiferente à subjetividade e, com isso, à interioridade e à apropriação; sua comunicação é, portanto, direta. É óbvio que não precisa por isso ser fácil, de jeito nenhum, mas é direta; não tem a ilusão e a arte da dupla reflexão, não tem aquele temor a Deus e aquela solicitude humana do pensamento subjetivo ao buscar comunicar-se; pode ser entendido diretamente, pode ser memorizado e repetido de cor. O pensamento objetivo presta atenção, portanto, apenas a si mesmo e, por isso, não é comunicação (É sempre assim com o negativo; onde ele se introduz inconscientemente, transforma justamente o positivo em negativo; aqui ele transforma a comunicação em ilusão [Illusion], porque o negativo não foi pensado na comunicação, mas essa foi pensada de modo positivo puro e simples. No engano [Svig] da dupla-reflexão, a negatividade da comunicação é pensada, e por isso tal comunicação, que comparada com aquela outra comunicação não parece sê-lo, é justamente comunicação), pelo menos não comunicação artística, na medida em que desta sempre se exige que pense no receptor e preste atenção à forma da comunicação em relação à má compreensão do receptor. O pensamento objetivo (Há que recordar sempre que eu falo do religioso [det Religieuse], onde o pensamento objetivo, quando pretende ser o mais elevado, é justamente irreligiosidade. E vale o contrário: onde quer que o pensamento objetivo esteja justificado, também estará legitimada a sua comunicação direta, justamente porque ela não terá nada a ver com a subjetividade) é, como a maioria das pessoas, basicamente afável e comunicativo; comunica-se sem maiores dificuldades e, quando muito, recorre a asseverações a respeito de sua verdade, a recomendações e promessas de que as pessoas irão um dia aceitar tal verdade - tão seguro ele é. Ou talvez seja antes muito inseguro, pois asseverações e recomendações e promessas que são feitas decerto em função dos outros, que devem aceitar essa verdade, poderiam talvez também ser feitas em função do mestre, que carece da segurança e da confiabilidade dos votos da maioria. Se os seus contemporâneos lhe sonegam isso, ele aposta na posteridade - tão seguro ele está. Esta segurança tem algo em comum com aquela independência que, independente do mundo, necessita do mundo como testemunha de sua independência, para ter certeza de ser independente. A forma da comunicação é algo de diferente da expressão da comunicação. Quando o pensamento achou sua expressão correta na palavra, o que se alcança [VII 59] pela primeira reflexão, aí vem a segunda reflexão, que tem a ver com a própria relação da comunicação com o comunicador, e reproduz a própria relação do comunicador existente para com a ideia. Vamos mais uma vez introduzir alguns exemplos; temos mesmo tempo de sobra, pois o que eu escrevo não é o esperado último § com o qual o sistema se completa. Suposto (Eu digo apenas suposto, e sob essa forma posso me permitir apresentar tanto o mais certo quanto o mais absurdo; pois mesmo o que há de mais certo não é suposto, afinal, como o mais certo, mas é suposto como o hipotético para elucidar uma relação, e mesmo o que há de mais absurdo não é suposto de modo essencial mas hipoteticamente, para aclarar a relação de consequência), então, que alguém quisesse comunicar a seguinte convicção: a verdade é a interioridade; objetivamente não há nenhuma verdade; mas a apropriação é a verdade; suposto que tivesse zelo e entusiasmo suficientes para chegar a dizê-lo, pois tão logo as pessoas o ouvissem, estariam salvas; suposto que o dissesse em todas as ocasiões e que movesse não só aqueles que suam fácil, mas também os de queixo duro: e então? Então certamente se encontrariam uns trabalhadores, desocupados, parados na praça, e que só com este chamado, sairiam a trabalhar na vinha - proclamando a todos esse ensinamento. E então? Então, ele teria contradito mais ainda a si mesmo, tal como o fizera desde o início, pois o zelo e o entusiasmo para que aquilo fosse dito e ouvido eram já um mal-entendido. O principal era, exatamente, ser compreendido, e a interioridade da compreensão teria sido, justamente, que o indivíduo o compreendesse por si e para si mesmo. Agora ele tinha chegado ao ponto de conseguir arautos; e um arauto da interioridade é um bicho que vale a pena ver. Para comunicar tal convicção exigir-se-ia realmente arte e autocontrole; autocontrole suficiente para compreender, na interioridade, que a relação do ser humano individual com Deus é o principal, e que a ingerência de uma terceira pessoa constitui uma carência de interioridade e uma superfluidade de amável tolice; e arte suficiente para variar, de modo não exaustivo, pois a interioridade é inexaurível, a forma duplamente refletida da comunicação. Quanto mais arte, mais interioridade; sim, se ele tivesse bastante arte, seria até possível para ele dizer que a estava usando, com a certeza de ser capaz de, no momento seguinte, garantir a interioridade da comunicação, por estar infinitamente preocupado em preservar sua própria interioridade, preocupação essa que salva de toda baboseira positiva aquele que se preocupa. - Suposto que alguém quisesse comunicar que não é a verdade que é a verdade, mas que o caminho é que é a verdade, ou seja, que a verdade está apenas no vir-a-ser, no processo da apropriação, e que, portanto, não há nenhum resultado; [VII 60] suposto que este alguém fosse um humanitário que necessariamente precisaria advertir todos os homens acerca disso; suposto que ele tomasse o esplêndido atalho da comunicação direta no jornal Adresseavisen, com o que ganharia uma masse [fr.: multidão] de adeptos, ao passo que a forma artística, a despeito de seu maior empenho, deixaria em aberto se ele teria ou não ajudado alguém: e então? Bem, então sua declaração realmente acabaria por ser um resultado. - Suposto que alguém quisesse comunicar que todo receber é um produzir; suposto que o repetisse tão frequentemente que esta sentença chegasse a ser usada até para cópia em aulas de caligrafia: então ele certamente teria tido sua sentença confirmada. - Suposto que alguém quisesse comunicar a convicção de que a relação de uma pessoa para com Deus é um segredo; suposto que ele fosse mesmo um tipo muito simpático de homem, com tanta consideração pelos outros que simplesmente tivesse que trazer isso à luz; suposto que ele, entretanto, tivesse ainda entendimento suficiente para sentir um pouquinho da contradição ao comunicar tal coisa diretamente e, por conseguinte, a comunicasse sob a condição de que se mantivesse o silêncio: e então? Então ele teria que admitir que o discípulo era mais sábio que o mestre, que o discípulo era realmente capaz de manter-se em silêncio, o que o professor não conseguia (uma soberba sátira sobre o ser mestre!), ou então deveria tornar-se tão bem-aventurado em galimatias que simplesmente nem descobriria a contradição. Isso é uma coisa curiosa a respeito dessas pessoas simpáticas; é muito tocante que eles tenham que trazer isso à luz - e é muita presunção de sua parte acreditarem que outro ser humano precisa de alguma assistência em sua relação para com Deus, como se Deus não fosse capaz de ajudar-se a si mesmo e à pessoa envolvida. Mas isso é um pouco cansativo: existindo, agarrar-se ao pensamento de que diante de Deus nada somos, que todo esforço pessoal não passa de um gracejo; é um tanto disciplinador honrar todo ser humano de modo que não se ouse interferir diretamente em sua relação para com Deus, em parte porque já é bastante se cada um lidar com o que é seu, em parte porque Deus não é um amigo da impertinência. Onde quer que o subjetivo seja importante no conhecimento, e então a apropriação seja o principal, a comunicação é uma obra de arte, duplamente refletida, e sua primeira forma consiste justamente na astúcia de manter as subjetividades religiosamente separadas uma da outra, para que não venham, fragilizando-se, a se fundir na objetividade. Essa é a palavra de adeus da objetividade à subjetividade. A comunicação ordinária, o pensamento objetivo, não tem segredos; só o pensamento subjetivo duplamente refletido tem segredos, i. é, todo o seu conteúdo essencial é essencialmente secreto, porque não se deixa comunicar diretamente. Este é o significado do segredo. Que esse conhecimento não possa ser enunciado diretamente, porque o essencial nesse conhecimento consiste precisamente na apropriação, faz com que ele permaneça um segredo para todo aquele que não esteja do mesmo modo duplamente refletido em si próprio; [VII 61] mas que essa seja a forma essencial da verdade faz com que essa não possa ser dita de nenhum outro modo. (Se em nosso tempo vivesse um homem que, desenvolvido subjetivamente, estivesse atento à arte da comunicação, haveria de experienciar as mais preciosas comédias e cenas burlescas. Ele seria posto porta afora como alguém incapaz de ser objetivo, e então por fim algum moço [Fyr] objetivo de bom coração, algum rapaz de tipo sistemático [et systematisk Stykke Karl], haveria de se apiedar dele e meio que introduzi-lo nos parágrafos; pois aquilo que antigamente se considerava uma impossibilidade, pintar Marte na armadura que o torna invisível, agora teria um êxito extraordinário, sim, o que é ainda mais estranho, teria um meio sucesso). Por isso, se alguém quiser comunicá-la diretamente, estará sendo tolo; e se alguém quiser exigir isso dele, estará sendo tolo também. Diante de tal comunicação artística e enganosa, a costumeira tolice humana gritará: isso é egoísmo. Se então a tolice triunfasse e a comunicação se tornasse direta, a tolice teria vencido a tal ponto que o comunicador se teria tornado igualmente tolo. Pode-se distinguir entre um segredo essencial e um contingente. É, por exemplo, um segredo contingente aquilo que foi dito numa reunião secreta do Conselho de Estado, enquanto ainda não for conhecido publicamente, porque o enunciado, em si, pode ser compreendido diretamente tão logo seja tornado público. Que ninguém saiba o que vai acontecer dentro de um ano é um segredo contingente, porque quando tiver acontecido poderá ser compreendido diretamente. Por outro lado, quando Sócrates, com seu demônio, se isolava de toda e qualquer relação e, por exemplo, posito [lat.: por hipótese] supunha que cada um deveria fazer o mesmo, tal visão da vida se tornaria essencialmente um segredo ou um segredo essencial, pois isso não se deixaria comunicar diretamente; o máximo que ele conseguiria era auxiliar negativamente, pela arte maiêutica, outra pessoa a alcançar a mesma visão. Tudo o que é subjetivo, que por sua interioridade dialética escapa da forma direta de expressão, é um segredo essencial. Tal forma de comunicação, em sua arte inesgotável, corresponde à relação própria do sujeito existente para com a ideia e reproduz essa relação. Para esclarecer isso na forma de uma construção experimental, [VII 62] sem decidir se alguém realmente existente esteve consciente disso ou não, isto é, se existiu desse modo ou não, vou esboçar a relação da existência. 2 O pensador subjetivo existente, em sua relação existencial com a verdade, é tão negativo quanto positivo, tem tanto de cômico quanto essencialmente tem de pathos, e está continuamente em processo de vir-a-ser, i. é, está esforçando-se. Dado que o sujeito existente está existindo (e isso é o que cabe a todo ser humano, com exceção dos objetivos, que têm o puro ser para morar, então ele está afinal de contas em devir. Tal como sua comunicação, na forma, tem de ser conforme a sua própria existência, também seu pensamento tem de corresponder à forma da existência. Todos conhecem a dialética do devir, em Hegel. Aquilo que lá no devir é a alternância entre ser e não ser (uma determinação, contudo, um tanto quanto obscura, visto que o próprio ser é também o que há de contínuo na alternância) será, mais tarde, o negativo e o positivo. Em nosso tempo, ouve-se muito seguido falar sobre o negativo e sobre pensadores negativos, e bem seguidamente ouve-se a verborragia dos positivos por ocasião de suas orações que rendem graças a Deus e a Hegel, por não serem como aqueles negativos, mas terem-se tornado positivos. O positivo, em relação ao pensamento, pode ser classificado nas seguintes categorias: certeza sensível, saber histórico, resultado especulativo. Mas esse positivo é justamente o não verdadeiro. A certeza sensível é engano (cf. o ceticismo grego e toda a exposição da filosofia mais recente, de onde se pode aprender muitíssimo); o conhecimento histórico é uma ilusão dos sentidos (pois é um conhecimento aproximativo); e o resultado especulativo é fantasmagoria, Com efeito, todo esse positivo não exprime o estado do sujeito que conhece na existência; por isso tem a ver com um sujeito objetivo fictício, e deixar-se enganar por tal sujeito é ser feito de bobo e nisso permanecer. Todo e qualquer sujeito é um sujeito existente e, portanto, isso deve exprimir-se de modo essencial em todo o seu conhecer, e exprimir-se como impedindo-lhe toda conclusão ilusória na certeza sensível, no saber histórico, no resultado ilusório. No saber histórico, ele vem a saber muito sobre o mundo, nada sobre si mesmo; [VII 63] move-se continuamente na esfera do saber aproximativo, enquanto que, com sua presumida positividade, ele se convence de possuir uma certeza que só se poderia ter na infinitude, na qual, porém, como existente ele não pode permanecer, mas apenas alcançar continuamente. Nada de histórico pode tornar-se infinitamente certo para mim, exceto isso: que eu existo (o quê, por sua vez, não pode tornar-se infinitamente certo para nenhum outro indivíduo, que, por sua vez, é, do mesmo modo, apenas infinitamente conhecedor de sua própria existência), o que não é algo de histórico. O resultado especulativo é uma ilusão, à medida que o sujeito existente, pensando, quer abstrair do fato de sua existência e ser sub specie aeterni [lat.: sob o aspecto da eternidade]. Os [pensadores] negativos têm, por isso, sempre a vantagem de possuir algo de positivo, a saber: que estão atentos ao negativo; os [pensadores] positivos não têm absolutamente nada, pois estão enganados. Precisamente porque o negativo está presente na existência e está presente em todo lugar (pois o ser-aí, a existência, está continuamente em devir), o único jeito de libertar-se dele é permanecer continuamente atento a isso. Ao ser assegurado positivamente, o sujeito é justamente feito de bobo. A negatividade que há na existência, ou melhor, a negatividade do sujeito existente (que o seu pensamento deve repercutir essencialmente em uma forma adequada) funda-se na síntese do sujeito, no fato de ele ser um espírito infinito existente. A infinitude e o eterno são a única certeza, mas desde que esta está no sujeito, está na existência, e a primeira expressão para isso é seu engano e a imensa contradição de que o eterno vem a ser, de que ele surge. É importante, então, que o pensamento do sujeito existente tenha uma forma na qual consiga repercutir isso. Se ele o diz numa declaração direta, diz algo de não verdadeiro, porque num enunciado direto o engano é justamente excluído e, portanto, também a forma da comunicação cria confusão, como quando a língua do epilético pronuncia a palavra errada, ainda que o orador possa talvez não notá-la tão claramente quanto o epilético. Tomemos um exemplo. O sujeito existente é eterno, mas, enquanto existente, ele é temporal. Ora, o engano da infinitude está em que a possibilidade da morte está presente a cada momento. Toda confiança positiva está então posta sob suspeita. Se não estou consciente disso a cada momento, minha confiança positiva na vida é infantilidade, embora se tenha tornado especulativa, nobre em seus coturnos sistemáticos; mas se realmente tomo consciência disso, então o pensamento da infinitude é tão infinito que parece transformar minha existência em um nada evanescente. [VII 64] Como, então, o sujeito existente repercute essa sua existência de pensamento? Todo homem sabe que com o existir é assim, mas os positivos o sabem positivamente, ou seja, não o sabem de modo algum, - mas dá para entender, pois estão muito atarefados com toda a história do mundo. Uma vez por ano, em uma ocasião solene, esse pensamento os emociona e então anunciam, em forma assertiva, que isso é assim. Mas o fato de que o percebam apenas uma vez, em alguma ocasião solene, revela suficientemente que são muito positivos, e o fato de que o digam com a confiança das asserções mostra que mesmo quando fazem declarações sobre o assunto, não sabem o que dizem; e por isso são capazes de esquecê-lo no momento seguinte. Com efeito, em relação aos pensamentos negativos do tipo mencionado, uma forma enganadora é a única adequada, porque a comunicação direta implica a segurança da continuidade, enquanto o engano da existência, ao contrário, quando a alcanço, me isola. Aquele que está atento a isso - aquele que, contente de ser um humano, tem vigor e ócio suficientes para não querer ser enganado para assim receber permissão para sprechen (al.: falar) a respeito de toda a história do mundo, admirado por seus pares, mas escarnecido pela existência, evitará o enunciado direto. Como se sabe, Sócrates era um ocioso que não se preocupava com a história universal nem com a astronomia (desistiu delas, como Diógenes o narra e, quando, mais tarde, parava imóvel fitando fixamente o espaço, não posso simplesmente decidir se estaria olhando as estrelas, sem mesmo, por outro lado, decidir o que ele estava fazendo). Mas ele tinha tempo e singularidade suficientes para se preocupar com o simplesmente humano, uma preocupação que, é bem estranho, é considerada uma singularidade entre os homens, ao passo que não é absolutamente singular estar atarefado com a história do mundo, a astronomia e outras matérias tais. Segundo um notável artigo na Fyenske Tidsskrift [Revista da Fiônia], vejo que Sócrates deve ter sido um tanto quanto irônico. Estava realmente mais do que na hora de ver isso dito por alguém, e estou agora em condições de me atrever a reportar-me àquele artigo quando suponho algo parecido. Quando Sócrates deseja enfatizar especificamente a infinitude, uma das formas que sua ironia assume consiste em, numa primeira instância, ele falar como um louco. Assim como a existência é ardilosa, assim também o é o seu discurso; talvez [VII 65] (pois não sou um homem tão sabido quanto aquele escritor positivo da Fyenske Tidsskrift), para evitar conquistar um ouvinte comovido e crédulo que se apropriaria positivamente da declaração a respeito da negatividade da existência. Para Sócrates, essa loucura em primeira instância também pode ter significado que, enquanto conversava com as pessoas, ele também conferenciava privatissime [lat.: muito em particular] com a ideia sobre o que estava sendo dito, o que ninguém que só consiga falar diretamente poderá entender; e nada adianta dizer-se isso a alguém de uma vez por todas, pois o segredo é justamente que isso necessita estar sempre presente em toda parte do pensamento e de sua tradução, tal como está presente em toda parte na existência. Nesse sentido, é correto não ser compreendido, pois com isso se está assegurado contra o mal-entendido. Quando, então, Sócrates diz em algum lugar que é curioso que o barqueiro, depois de ter transportado um passageiro da Grécia à Itália, logo de chegada ande calmamente de um lado para o outro na praia e receba seu pagamento como se ele tivesse feito alguma coisa boa, embora ele não possa saber se beneficiou mesmo os passageiros, ou se não teria sido melhor para eles perder a vida no mar: aí ele fala, a rigor, como um louco. (Se alguém, atualmente vivo, falasse dessa maneira, é provável que qualquer um haveria de perceber que ele era maluco, mas os Positivos sabem, e o sabem com positiva certeza [Bestemthed], que Sócrates era um sábio, e isso deve ser certíssimo: ergo). Talvez alguns dos presentes realmente o tivessem considerado como maluco (pois, de acordo com Platão e Alcibíades, teria havido uma opinião generalizada que o encarava ao menos como um tipo raro); talvez algum outro pensasse que tinha um jeito estranho de falar, talvez. Para Sócrates era o oposto, talvez ele tivesse ao mesmo tempo um pequeno encontro marcado com sua ideia, com a ignorância. Se ele havia alcançado a infinitude na forma da ignorância, ele precisava tê-la por toda parte consigo. Coisas como essa não perturbam um livre-docente, ele realiza isso uma vez por ano no § 14, com pathos [gr.: paixão], e age bem ao não fazer de outro modo, caso ele tenha uma esposa e filhos e perspectivas de um bom ganha-pão, mas nenhuma razão a perder. O pensador subjetivo existente que tem a infinitude em sua alma, a tem sempre, e por isso sua forma é continuamente negativa. Quando esse é o caso, quando ele, existindo efetivamente, reproduz [VII 66] a forma de sua vida em sua própria existência, ele, existindo, é aí sempre tão negativo quanto positivo, pois sua positividade consiste em sua contínua interiorização, na qual ele é conhecedor do negativo. Entretanto, no meio dos assim chamados [pensadores] negativos, há alguns que, depois de terem recebido um aceno do negativo, sucumbiram ao positivo e seguem bradando ao mundo a fim de recomendar, incitar e oferecer à venda sua sabedoria negativa que deixa as pessoas felizes - e pode-se certamente apregoar um resultado, tal como se apregoa arenque de Holstein etc. Esses pregoeiros não são muito mais sagazes do que os pensadores positivos, mas é um tanto inconsistente por parte dos [pensadores] positivos ficarem tão furiosos com eles, pois são essencialmente positivos. Os pregoeiros não são pensadores existentes; talvez já o tenham sido, antes de encontrarem um resultado; a partir desse momento, já não mais existem como pensadores, mas como pregoeiros e leiloeiros. Mas o autêntico pensador subjetivo existente é sempre tão negativo quanto positivo e vice-versa: ele é sempre o mesmo ao longo de toda sua existência, e não de uma vez por todas em uma quimérica mediação. Sua comunicação está de acordo com isso, de modo que, por ser extraordinariamente comunicativo, não venha ele, irrazoavelmente, a transformar a existência de um aprendiz em algo distinto do que é, basicamente, uma existência humana. Ele está ciente da negatividade do infinito na vida: ele sempre mantém aberta a ferida da negatividade, a qual, às vezes, é o fator de salvação (os outros deixam a ferida fechada e se tornam positivos - enganados): na comunicação, ele expressa o mesmo. Ele não é, portanto, jamais um mestre, mas um aprendiz, e se é continuamente tão negativo quanto positivo, está sempre esforçando-se. Deste modo, tal pensador subjetivo de fato perde alguma coisa; ele não recebe da vida a alegria positiva e aconchegante. Para a maioria das pessoas, a vida muda quando atingem um determinado ponto de sua procura; casam-se, assumem postos permanentes, em consequência do que, devem, por uma questão de decoro, levar a bom termo alguma coisa, obter resultados (pois o constrangimento diante dos outros os obriga a obter resultados; menos atenção se dá àquilo a que poderia conduzir o pudor diante do deus). Assim acham que estão realmente prontos, ou precisam acreditar nisso pelo costume ou por causa dos usos e costumes, ou ainda lamentam com suspiros e reclamam a respeito das muitas coisas que os impedem de se esforçarem (que ofensa ao deus, se o suspiro se dirigisse a ele; se esse suspiro é só uma questão de costume e hábito; que contradição lamentar-se pela incapacidade de se perseguir o mais alto porque se está buscando alcançar o mais baixo, ao invés de abster-se de lamentar e abster-se de tentar agarrar o mais baixo!) [VII 67], assim, vez ou outra, eles se ocupam também, num pequeno esforço, mas este último é meramente uma nota marginal e insuficiente a um texto concluído há muito tempo atrás. Assim, fica-se dispensado de se prestar ativamente atenção às exaustivas dificuldades contidas no mais simples enunciado a respeito do existir qua ser humano, enquanto que, como um pensador positivo, sabe-se tudo sobre a história do mundo e sobre os mais privados pensamentos do nosso Senhor. Aquele que é existente está continuamente em devir; o pensador subjetivo verdadeiramente existente repercute isso continuamente, pensando, em sua existência, e investe todo seu pensamento no devir. Dá-se aqui o mesmo que no caso de alguém ter estilo. Só tem realmente estilo aquele que nunca deixa algo pronto, mas "agita as águas da linguagem" a cada vez que começa, de modo que, para ele, a expressão mais cotidiana brota com a originalidade do recém-nascido. Deste modo, estar continuamente em devir é a insídia da infinitude na vida. Ela pode levar ao desespero um homem que viva preso aos sentidos, pois continuamente se sente uma ânsia de ter algo concluído; mas esta ânsia é do mal e se deve renunciar a ela. O perpétuo devir é a incerteza da vida terrena, em que tudo é incerto. Todo ser humano o sabe e o diz de vez em quando, especialmente em uma ocasião solene e não sem suor e lágrimas; di-lo diretamente e comove a si mesmo e aos outros - e mostra na ação o que já tinha mostrado na forma do enunciado: que não entende o que ele mesmo está dizendo! (Aquilo pelo que se reconhece uma individualidade inteiramente formada é o quão dialético é o pensamento no qual ela tem sua vida cotidiana. Ter a vida cotidiana na dialética decisiva da infinitude e contudo continuar a viver: eis a arte. A maioria dos homens tem categorias ordinárias para o uso diário, e a da infinitude só para as ocasiões solenes, ou seja, eles jamais a têm. Possuir, porém, a dialética da infinitude para o uso diário, e nela existir, é naturalmente o esforço mais alto que há; e por sua vez o mais alto esforço é necessário a fim de que o exercício, ao invés de exercitar alguém no existir, não o induza ardilosamente a afastar-se disso. - É bem conhecido que uma salva de canhões faz com que não se consiga ouvir nada; mas também é conhecido que se a gente aguenta [ved at holde ud] consegue ouvir cada palavra como se, por assim dizer, tudo estivesse em silêncio. Assim também acontece com a existência espiritual potenciada pela reflexão). [VII 68] Luciano faz Caronte contar, no submundo, a seguinte estória: um homem estava no mundo de cima e conversava com um de seus amigos a quem convidou para jantar em sua casa, prometendo-lhe um prato raro. O amigo agradeceu pelo convite; então o homem disse: Mas agora afinal vamos deixar acertado que tu virás. Certamente, respondeu o convidado. Então eles saíram e uma telha caiu do teto e matou o convidado. E Caronte completou: Não é algo para se morrer de rir? Suposto que o convidado tivesse sido um orador que talvez um momento antes tivesse comovido a si mesmo e aos outros comentando: que tudo é incerto! Pois é assim que as pessoas falam: num momento sabem tudo e, no mesmo momento, não o sabem. E é por isso que preocupar-se com essa questão e com as dificuldades que ela levanta é algo considerado tolice e excentricidade, porque afinal todos já sabem disso. Com efeito, é glorioso preocupar-se com aquilo que nem todos sabem, com um saber diferenciado, mas é um desperdício de esforço preocupar-se com aquilo que todos sabem - em relação a isso, a diferença é a bobagem de como alguém pode sabê-lo -, pois ninguém pode tornar-se importante com isso. Suposto que o convidado tivesse respondido na base da incerteza - e então? Então sua resposta não teria sido diferente daquela de um homem louco, embora não tivesse sido ainda percebida por muita gente, já que pode mesmo ser dita de modo tão ardiloso que apenas aquele que está familiarizado, por si mesmo, com tais pensamentos, a descobrirá. E ninguém considerará tal coisa como loucura, o que não é, pois, enquanto o enunciado jocoso talvez avance dando voltas zombeteiramente pelo resto da conversa, o orador poderá ter, muito particularmente, um encontro marcado com o deus, que está presente justamente tão logo a incerteza de tudo seja pensada infinitamente. Por isso, aquele que realmente tem um olho para o deus, o vê por toda parte; enquanto que aquele que só o vê em ocasiões extraordinárias, a rigor não o vê de modo algum, mas é supersticiosamente enganado pela visão de um fantasma. Que o pensador subjetivo existente seja tão positivo quanto negativo pode também ser expresso dizendo-se que ele tem tanto de cômico quanto de pathos. Tal como as pessoas ordinariamente existem, o cômico e o pathos são distribuídos proporcionalmente de tal modo que um tem um deles, um outro tem o outro; um, um pouco mais do primeiro, o outro, um pouco menos. Mas, para o existente na dupla-reflexão, a relação é esta: quanto mais pathos, tanto mais comicidade. A relação ampara-se, com efeito, reciprocamente. O pathos que não se apoia na comicidade é ilusão; o cômico que não se apoia no pathos é imaturidade. Só aquele que produz isso por si mesmo irá compreendê-lo, do contrário, não. Soa simplesmente como uma brincadeira o que Sócrates dizia sobre a travessia do mar e, contudo, aquilo era a seriedade suprema. Se aquilo fosse um mero gracejo, [VII 69] talvez muitos o acompanhariam nisso; se fosse somente seriedade, decerto muitos daqueles que transpiram facilmente, ficariam comovidos; mas suponhamos que de modo algum Sócrates o entendesse desse jeito. Soaria como troça se uma pessoa, ao receber um convite, respondesse: Eu irei, com certeza, acredite em mim, a não ser que uma telha caia em minha cabeça e me mate, pois, neste caso, não irei; e, contudo, isso pode ser também a suprema seriedade, e o orador, ao brincar com um ser humano, estaria diante do deus. Suponhamos que houvesse uma mocinha que esperava o amado vindo com a embarcação mencionada por Sócrates. Suponhamos que ela corresse ao porto, encontrasse Sócrates e, com toda a sua paixão amorosa, lhe perguntasse pelo seu amado; suponhamos que Sócrates, velho trocista, em vez de responder-lhe, dissesse: Sim, certamente o capitão está andando autossatisfeito para lá e para cá, e está afagando o dinheiro em seu bolso, embora não possa saber ao certo se não teria sido melhor para os passageiros perecerem no mar - e então? Se ela fosse uma mocinha esperta, perceberia que Sócrates havia dito, de algum modo, que o amado tinha chegado; e se isso fosse certo - e então? Então, ela riria de Sócrates, pois não era tão louca a ponto de não saber cabalmente o quão esplêndido era que seu amado tivesse chegado. Ora, é compreensível, tal mocinha também só estaria predisposta para um encontro marcado com seu amado, em abraços eróticos na terra firme, não estaria suficientemente desenvolvida para um socrático encontro marcado com o deus, na ideia, no oceano infinito da incerteza. Mas suponhamos que a mocinha esperta já tivesse feito sua Confirmação - e então? Então, logicamente, teria sabido exatamente o mesmo que Sócrates - a única diferença seria o modo pelo qual vieram a saber. E, contudo, Sócrates provavelmente colocou sua vida inteira nesta diferença; em seu septuagésimo ano ainda não estava pronto com seus esforços para pôr em prática de modo sempre mais interiorizado aquilo que uma moça de dezesseis anos já sabe. Pois ele não era como aquele que sabe o hebraico, e pode então dizer à mocinha: Isso tu não sabes, e precisas de muito tempo para aprender; ele não era como aquele que consegue esculpir o mármore, o que a mocinha decerto logo entenderia que não conseguiria fazer e saberia admirar; não; ele não sabia mais do que ela. Como estranhar, então, que ele fosse tão indiferente em relação à morte, pois o pobre coitado provavelmente havia percebido, ele mesmo, que sua vida estava desperdiçada, e que agora seria muito tarde para recomeçar para aprender aquilo que só os homens notáveis sabem. Como estranhar, então, que ele não fizesse nenhum estardalhaço por causa de sua morte, como se nele o Estado fosse perder algo de insubstituível. Aí, decerto ele deve ter pensado algo assim: Se ao menos eu tivesse sido um professor de hebraico, se ao menos eu tivesse sido um escultor ou um bailarino solista - para nem falar de um gênio da história universal, benfeitor da humanidade - [VII 70] como poderia o Estado jamais se recuperar de minha perda, e como poderiam seus habitantes jamais vir a saber o que eu lhes poderia ter dito! Mas no meu caso não haverá qualquer problema, pois aquilo que eu sei, qualquer um o sabe. Mas era mesmo um brincalhão esse Sócrates: zombar assim do hebraico, da arte da escultura, do balé e do benefício histórico à humanidade; e então, por outro lado, preocupar-se tanto com o deus que, muito embora se exercitando a vida inteira sem interrupção (sim, como um bailarino solista para a glória do deus), ainda enfrentava com dúvidas a questão de conseguir ser aprovado no exame do deus: o que isso significaria? A diferença relativa que subsiste na imediatidade entre o cômico e o trágico desaparece na dupla reflexão, em que a diferença se torna infinita e com isso a identidade é posta. Por isso, no plano religioso, a expressão cômica da adoração é tão devota quanto sua expressão patética. O que motiva tanto o cômico quanto o patético é a desproporção, a contradição entre o infinito e o finito, o eterno e o que está vindo a ser. Por isso, um pathos que exclui o cômico é um mal-entendido, não é, de jeito nenhum, pathos. O pensador subjetivamente existente é, portanto, tão bifronte quanto o é a própria situação da existência. A concepção da desproporção, quando se está voltado para a ideia, é pathos; a concepção da desproporção, com a ideia às nossas costas, é comicidade. Quando o pensador subjetivo existente volta sua face em direção à ideia, sua interpretação da desproporção é patética; quando volta suas costas à ideia e a deixa brilhar lá de trás em direção à mesma desproporção, sua interpretação é cômica. Assim, dizer Tu para Deus é o pathos infinito da religiosidade; é infinitamente cômico quando viro minhas costas e então, na finitude, olho para aquilo que, vindo de trás, cai dentro do finito. Se eu não esgotei todo o cômico, não tenho de jeito nenhum o pathos da infinitude; se eu tenho o pathos da infinitude, tenho também prontamente o cômico. - [VII 71] Assim, orar é o mais alto pathos da infinitude (O olhar fixo socrático é também uma expressão para o pathos supremo e, por isso, ao mesmo tempo é igualmente cômico. Façamos um ensaio. Portanto, Sócrates detém-se e fica olhando fixamente para a frente; aí vêm passando dois transeuntes, um diz ao outro: O que está fazendo este homem? A resposta ao primeiro é: Nada. Suponhamos que o primeiro tenha contudo um pouquinho mais de noção sobre interioridade, e que ele dê à ação socrática uma expressão religiosa e diga: Está mergulhado na contemplação do divino, está orando. Fiquemos com esta última expressão: está orando. Mas será que utiliza palavras, articula talvez muitas palavras? Não, Sócrates havia entendido sua relação com Deus de tal modo que ele pura e simplesmente nem ousava dizer qualquer coisa, por receio de cair numa conversa tola e por receio de que lhe fosse realizado um desejo equivocado, do que aliás já deve ter havido exemplos, como quando o oráculo predisse a um homem que todos os seus filhos seriam notáveis, e o pai preocupado avançou mais uma pergunta: E então decerto todos eles hão de morrer miseráveis? E o oráculo respondeu: Também isto te será realizado. Pois aqui o oráculo é bem consequente a ponto de supor que aquele que o consulta é um orante [en Bedende: um pedinte] e, bem consequentemente, emprega a expressão realizado, que constitui uma triste ironia para o interessado. Portanto, Sócrates não faz absolutamente nada, nem conversa em seu interior com o deus - e contudo ele faz, sim, a coisa mais elevada de todas. É provável que o próprio Sócrates se desse conta disso e soubesse expô-lo de um modo brincalhão. Ao contrário, o Magister Kierkegaard dificilmente o terá entendido, a concluirmos de sua Dissertação. Com efeito, citando ali o diálogo Alcibiades secundus, ele comenta a relação negativa de Sócrates com a oração, mas, como seria de se esperar de um positivo candidato em Teologia de nosso tempo, não se abstém de dar um lição a Sócrates, numa Nota, de que essa só seria verdadeira até certo grau) e, contudo, é o cômico (Não falo aqui do cômico casual, como se um homem em oração segurasse o chapéu diante de seus olhos, sem se dar conta de que falta a parte superior do chapéu, de modo que por acaso se poderia vê-lo face a face), justamente porque em sua interioridade orar é algo de incomensurável com toda e qualquer expressão externa, especialmente quando se concorda com a palavra da Escritura sobre o ungir a cabeça e lavar o rosto quando se jejua. O cômico está presente aqui de dois modos. O cômico reprovável surgiria se, por exemplo, um homem forte como um carvalho andasse orando em procissão e, para indicar a interioridade da oração, se torcesse e contorcesse em vigorosas poses que, especialmente se o orador tivesse os braços desnudos, seriam instrutivas para um artista que estudasse os músculos braçais. A interioridade da oração e seus suspiros inexprimíveis são incomensuráveis com o aspecto muscular. O cômico verdadeiro está em que o infinito pode operar num ser humano sem que ninguém, ninguém o perceba nele. Em relação ao constante vir-a-ser, o cômico e o patético estão presentes simultaneamente na repetição da oração; justamente sua infinitude em interioridade parece tornar a repetição impossível [VII 72] e, por isso, a própria repetição é tanto algo para rir quanto para lamentar. Tal como o pensador subjetivo existente existe, ele mesmo, desse modo, assim também sua apresentação o exprime, e, por isso, ninguém pode apropriar-se de seu pathos sem mais nem menos. Tal como as cenas cômicas num drama romântico, assim também o cômico se insinua na exposição de Lessing, talvez às vezes no lugar errado, talvez sim, talvez não; não posso dizê-lo com certeza. O Hauptpastor Goetze é uma figura altamente ergötzlich a quem Lessing conservou comicamente para a imortalidade ao torná-lo inseparável de sua apresentação. É perturbador, compreende-se, não podermos nos dedicar a Lessing com a mesma confiança que temos nas exposições daqueles que com autêntica seriedade especulativa fazem de uma coisa tudo e, assim, logo têm tudo pronto. O fato de que o pensador existente subjetivo esteja continuamente esforçando-se não significa, entretanto, que num sentido finito ele tenha uma meta em direção à qual ele se esforça e com a qual estaria pronto, quando a alcançasse; não, ele se esforça infinitamente, está sempre em devir, algo que está assegurado pelo fato de ele ser tão negativo quanto positivo, e de ter tanta comicidade essencial quanto pathos essencial; o que tem seu motivo no estar ele, afinal de contas, existindo, e em pensando o exprimir. O devir é a própria existência do pensador, da qual se pode até, irrefletidamente, abstrair, e tornar-se objetivo. Quão longe ou quão perto ele avança, não tem essencialmente nada a ver com a coisa mesma (é afinal apenas uma comparação finita relativa); enquanto estiver existindo, estará no devir. A existência mesma, o existir, é esforço, e é tão patética quanto é cômica; patética porque o esforço é infinito, i. é, dirigido ao infinito, é um processo de infinitizar, que é o mais elevado pathos; cômica porque o esforço é uma autocontradição. Numa perspectiva patética, um segundo tem valor infinito; numa perspectiva cômica, 10.000 anos não passam de uma brincadeira, como o dia de ontem, e contudo o tempo em que está o indivíduo existente consiste, de fato, de tais partes. Quando se declarar, pura e simplesmente, que 10.000 anos não passam de uma brincadeira, uma multidão de tolos nos acompanhará e o considerará como sabedoria, mas esquecerá o outro lado, que um segundo tem valor infinito. Quando se disser que um segundo tem valor infinito, um ou outro se espantará e entenderá melhor que 10.000 anos têm infinito valor, [VII 73] e, contudo, um lado é tão difícil de entender quanto o outro, assim que nos damos tempo para compreender o que tem que ser compreendido; ou se, de outro modo, se está tão infinitamente tomado pelo pensamento de não se ter tempo para desperdiçar, nem um segundo, que um segundo adquire valor infinito. Esta natureza da existência recorda a concepção grega de Eras como se encontra no Banquete e como Plutarco corretamente explica em sua obra sobre Ísis e Osíris (§ 57). O paralelo com Ísis, Osíris e Tífon não me interessa, mas quando Plutarco recorda que Hesíodo apresentou Caos, Terra, Tártaro e Amor como entidades primordiais, então é muito pertinente lembrar Platão. Pois aqui o amor erótico significa manifestamente existência, ou aquilo pelo qual a vida está no todo, essa vida que é a síntese de finito e infinito. De acordo com Platão, Penúria e Recurso geraram, portanto, Eros, cuja natureza é formada a partir de ambos. Mas o que é a existência? É aquela criança que foi gerada pelo infinito e o finito, pelo eterno e o temporal, e que, por isso, está continuamente esforçando-se. Esta era a opinião de Sócrates: por isso o amor está sempre esforçando-se, ou seja, o sujeito pensante é existente. Só que os sistemáticos e os objetivos cessaram de ser homens e se transformaram na especulação, que reside no puro ser. O socrático não deve, é claro, ser entendido de modo finito como um esforço continuado e perpétuo em direção a uma meta que nunca se atinge. Não, mas, por mais que o sujeito tenha a infinitude dentro de si, por ser existente ele está no devir. O pensador que consegue, em todo seu pensar, esquecer de pensar simultaneamente que está existindo, não explica a existência, ele faz uma tentativa de deixar de ser um humano, de tornar-se um livro ou algo objetivo como só um Münchhausen pode tornar-se. Que o pensamento objetivo tenha sua realidade não se nega, mas em relação a todo pensamento em que precisamente a subjetividade deva ser acentuada, isso será um mal-entendido. Mesmo que um homem ocupe toda a sua vida exclusivamente com a lógica, ainda assim ele não se transforma só por isso na lógica, ele próprio, portanto, existe em outras categorias. Agora, se ele acha que pensar sobre isso não tem valor, então deixe estar, não será nada agradável para ele aprender que a existência zomba daquele que está querendo ser puramente objetivo. [VII 74]3 O que será discutido neste e no próximo item deixa-se referir de modo mais determinado a Lessing, à medida que o enunciado pode ser citado diretamente, embora, por sua vez, não de uma maneira diretamente determinada, já que Lessing não é docente, mas é subjetivamente evasivo, sem pretender obrigar ninguém a aceitar algo por causa dele e sem pretender encaminhar alguém a uma continuidade direta com o autor. Talvez o próprio Lessing tenha compreendido que tais coisas não se deixam ensinar diretamente; pelo menos a atitude de Lessing deixa-se explicar dessa maneira, e talvez essa explicação seja correta, talvez. Lessing disse (S. W, 5. vol., p. 80) que verdades históricas contingentes nunca podem se tornar uma demonstração de verdades racionais eternas; e também (p. 83) que a transição, pela qual se quer construir sobre uma informação histórica uma verdade eterna, é um salto. Vou agora examinar esses dois enunciados mais detalhadamente e correlaciona-los com aquele problema das Migalhas: Pode-se construir uma verdade eterna sobre um conhecimento histórico? Antes, porém, quero abrir espaço para uma observação que pode servir para mostrar o quão enganador é o pensamento humano, que se assemelha à leitura de um discípulo: "Ele faz como se lesse, e no entanto não lê". Quando dois pensamentos são inseparáveis em sua relação recíproca, de tal modo que se alguém consegue pensar um deles, consegue eo ipso [lat.: precisamente por isso] pensar o outro, então, não é raro que, de boca em boca, de geração a geração, circule uma opinion [fr.: opinião] que acha fácil pensar um dos pensamentos, enquanto que uma opinion oposta acha difícil pensar o outro pensamento, sim, estabelece a prática de duvidar com relação a elas. E, contudo, a verdadeira relação dialética é que quem possa pensar um pensamento eo ipso possa pensar o outro - sim, eo ipso já tenha pensado o outro - caso tenha pensado o primeiro. Tenho em vista com isso o quase dogma sobre a eternidade das penas do inferno. O problema anunciado nas Migalhas era: Como alguma coisa histórica pode ser decisiva para a felicidade eterna? Quando "decisiva" é predicada, está eo ipso dito que quando a felicidade eterna é decidida, a infelicidade eterna é também decidida, quer seja mencionada ou excluída. [VII 75] Seria fácil entender a primeira asserção; todo e qualquer sistemático já a pensou, e todo e qualquer crente, e afinal de contas todos nós somos crentes; é uma barbada achar um ponto de partida histórico para a sua felicidade eterna e conseguir pensá-lo. Em meio a essa segurança e confiabilidade, ocasionalmente vem à tona a pergunta sobre uma infelicidade eterna decidida por um ponto de partida histórico no tempo: eis aí uma questão difícil! Não se consegue chegar a um acordo consigo mesmo sobre o que se deve aceitar, e se concorda em deixar a coisa ficar como algo que pode ser usado ocasionalmente numa exposição popular, mas que permanece não decidido. Ai, ai, ai, e desse jeito fica mesmo decidido; nada é mais fácil - desde que se tenha decidido a primeira parte. Magnífica inteligência humana - quem pode olhar dentro de teus olhos inteligentes sem uma silenciosa elevação espiritual! Eis então o resultado da inteligência coerente: a primeira ideia se compreende; a outra se deixa em suspenso, ou seja, não se consegue compreender; e contudo, uma e outra são, bem, estou quase embaraçado de dizê-lo, elas são uma e a mesma coisa. (De acordo com isso, as Migalhas bem poderiam ter exposto a antítese e colocado o problema nos seguintes termos: Como pode algo de histórico tornar-se decisivo para uma infelicidade eterna [evig Usalighed]? Nesse caso, a reflexividade humana [Taenksomhed] teria achado que havia algo a perguntar a respeito, já que para isso não há resposta). Pode o tempo, e a relação a um fenômeno histórico inserido no tempo, ser decisivo para uma felicidade eterna, então ele também o será eo ipso para a decisão sobre uma infelicidade eterna. A inteligência humana comporta-se de outra maneira. Com efeito, uma felicidade eterna é uma pressuposição eterna retroativa, na imanência, para qualquer indivíduo. Enquanto eterno, o indivíduo está acima do tempo e, portanto, tem sempre a sua felicidade eterna em sua retaguarda; e isso quer dizer: só uma felicidade eterna pode ser pensada; uma infelicidade eterna não se deixa pensar de jeito nenhum. Pensado filosoficamente, isso está em ordem. Agora chega o cristianismo e coloca a disjunção: ou bem uma felicidade eterna ou bem uma infelicidade eterna; e a decisão no tempo. O que faz então a inteligência humana? Não faz o mesmo que as Migalhas, não se torna atenta ao fato de que esta é uma questão difícil e que a exigência de pensar isso é a proposta mais difícil que pode ser feita, tampouco faz o que podia ser feito quanto ao primeiro aspecto, nem ao menos levanta o problema. Não, ela mente um pouquinho e aí fica fácil. Toma o primeiro membro da disjunção (ou bem uma felicidade eterna) e com isso compreende o pensamento imanente, o qual exclui precisamente a disjunção, e, assim, já pensou o todo, até declarar então sua falência [VII 76] em relação ao segundo membro da disjunção e explicar que não consegue pensá-lo, o que equivale a bater na própria boca e denunciar-se como aquela que não chegou a pensar o primeiro membro. O paradoxo do cristianismo consiste em continuamente fazer uso do tempo e do histórico em relação ao eterno; mas todo o pensar reside na imanência, e então, o que a inteligência humana faz? Ela pensa a imanência, faz de conta que esta é a primeira metade da disjunção, e desse jeito pensou o cristianismo. (As provas com que uma piedosa ortodoxia quis assegurar aquele dogma da eternidade das penas do inferno devem ser encaradas como um mal-entendido. Contudo, seu comportamento não é, de maneira alguma, da mesma natureza do da especulação; pois dado que ele reside realmente na disjunção, torna-se supérflua qualquer prova). Agora, vejamos Lessing, A passagem se encontra num pequeno ensaio Über den Beweis des Geistes und der Kraft; an den Herrn Director Schumann [Sobre a demonstração do espírito e da força; ao Sr. Diretor Schumann]. Lessing se opõe ao que eu chamaria de introduzir-se quantitativamente numa decisão qualitativa; ele combate a transição direta da confiabilidade histórica para uma decisão de uma felicidade eterna. Ele não nega (pois sabe fazer logo concessões para que as categorias se tornem claras) que o que está narrado nas Escrituras sobre milagres e profecias seja tão confiável quanto outras fontes históricas; de fato, é tão confiável quanto fontes históricas em geral o podem ser: Aber nun, wenn sie nur eben so zuverlässig sind, warum macht man sie bei dem Gebrauche auf einmal unendlich zuuerlässiger [Mas então, se elas só são tão confiáveis quanto isso, por que são tratadas como se fossem infinitamente mais confiáveis]? (p. 79) - a saber, porque se deseja basear nelas a aceitação de uma doutrina que é condição para uma felicidade eterna, isto é, basear nelas uma felicidade eterna. Como qualquer outro, Lessing está disposto a acreditar que um Alexandre que subjugou toda a Ásia tenha realmente existido, aber wer wollte auf diesen Glauben hin irgend etwas von groBem und dauerhaftem Belange, dessen Verlust nicht zu ersetzen wäre, wagen [mas quem, com base nessa crença, quereria arriscar qualquer coisa de grande, de valor perene, cuja perda fosse irreparável]? (p. 81). É sempre a transição, a passagem direta da confiabilidade histórica para uma decisão eterna, o que Lessing contesta. Por isso ele se posiciona de modo a fazer uma diferença entre notícias de milagres e profecias - e o ser contemporâneo com esses. (As Migalhas atentaram para essa diferença [VII 77] ao elaborar poeticamente em termos experimentais a contemporaneidade e, desse modo, afastar o que tem sido chamado de historicamente posterior.) Das notícias, ou seja, daquela confiabilidade concedida, nada segue, diz Lessing; mas, acrescenta, se ele tivesse sido contemporâneo dos milagres e das profecias, isso lhe teria ajudado. (Aqui talvez o leitor há de recordar o que lá nas Migalhas foi exposto sobre a impossibilidade de se tornar contemporâneo (no sentido imediato) de um paradoxo, e além disso, sobre o fato de a diferença entre o discípulo contemporâneo e o posterior ser evanescente). Bem informado, como Lessing sempre está, ele protesta, portanto, contra uma citação meio enganosa de Orígenes, que tem sido introduzida para dar relevo a essa demonstração da verdade do cristianismo. Protesta ao acrescentar a conclusão das palavras de Orígenes, onde se vê que Orígenes admite que milagres ocorreram até mesmo em seu próprio tempo, e que ele atribui tanto poder demonstrativo a esses milagres dos quais é de fato contemporâneo, quanto àqueles sobre os quais ele lê. Já que Lessing tomou tal posição em relação a uma dada exposição, ele não tem oportunidade de levantar o problema dialético sobre se a contemporaneidade seria de algum modo útil, se esta poderia ser mais do que uma ocasião, o que o relato histórico também pode ser. Lessing parece defender o oposto, mas talvez esta aparência seja produzida a fim de e concessis [lat.: com base nas premissas opostas] dar a seu jogo de esgrima uma maior claridade dialética frente a um indivíduo particular. As Migalhas, pelo contrário, tentavam mostrar que a contemporaneidade não tem qualquer utilidade, porque não há em toda a eternidade nenhuma transição direta, o que seria de fato uma enorme injustiça contra todos aqueles que vieram depois, uma injustiça e uma disjunção que seria muito pior do que aquela, que foi abolida pelo cristianismo, entre judeus e gregos, entre circuncidados e não circuncidados. O próprio Lessing resumiu seu problema nas seguintes palavras, que ele editou com espaçamento: z u f ä l l i g e G e s c h i c h t s w a h r h e i t e n k ö n n e n der B e w e i s v o n n o t h w e n d i g e n V e r n u n f t s w a h r h e i t e n n i e w e r d e n [verdades históricas contingentes nunca podem se tornar a prova de verdades racionais necessárias]. (Em relação a esse modo de pôr a questão está bem claro que as Migalhas propriamente combatem Lessing, à medida em que ele estabeleceu a preferência para a contemporaneidade, em cuja negação consiste o problema propriamente dialético, e pela qual a resposta ao problema de Lessing recebe uma outra significação). [VII 78] O que choca aqui é o predicado: zufällige (contingentes). Isso é enganador; poderia parecer que leva à distinção absoluta entre verdades históricas essenciais e contingentes, uma distinção que é, no entanto, tão somente uma subdivisão. Se, não obstante a identidade do predicado superior ("histórico"), distingue-se ali de modo absoluto, poderia parecer que daí se segue que em relação às verdades históricas essenciais uma passagem direta poderia ser formada. Eu poderia então me acalorar e dizer: é impossível que Lessing pudesse ser tão inconsequente; ergo - e meu acaloramento provavelmente convenceria a muitos. No entanto, limitar-me-ei, por cortesia, a um "talvez", que assume que Lessing ocultou tudo no predicado contingente, mas diz apenas alguma coisa, de tal modo que "contingente" não seria um predicado relativamente distintivo, ou um predicado que diferencia espécies, mas sim um predicado do gênero: "verdades históricas", que, como tais, são contingentes. Se não for assim, reside aqui todo o mal-entendido que, sempre de novo, percorre a filosofia mais recente: fazer do eterno, sem mais nem menos, algo de histórico, e poder conceber a necessidade do histórico. (No que toca a essa prestidigitação sistematicamente arrevesada [systematisk-bagvendte Kunststykke], o leitor recordar-se-á do que foi enfatizado nas Migalhas, que nada vem a ser necessariamente (porque vir-a-ser e necessidade se contradizem mutuamente), e que, por isso, menos ainda algo torna-se necessariamente por ter-se tornado, dado que necessariamente é o único modo em que não se pode vir a ser, porque isso sempre pressupõe ser [bestandigt forudsaetter at vaere: sempre supõe ser previamente]). Tudo que se torna histórico é contingente; pois, precisamente por vir-a-ser, torna-se histórico, tem seu momento de contingência, pois contingência é justamente o único fator em todo devir. - Nisso repousa, mais uma vez, a incomensurabilidade entre uma verdade histórica e uma decisão eterna. Entendida deste modo, a passagem pela qual algo histórico e a relação a isso torna-se decisiva para uma felicidade eterna é uma mudança de um gênero a outro. (Lessing chega a dizer: se não for assim, então não consigo compreender o que Aristóteles quis dizer com isso), um salto, tanto para o contemporâneo quanto para aquele que vem depois. Trata-se de um salto, e esta é a palavra que Lessing empregou dentro da limitação contingente que é caracterizada [VII 79] por uma ilusória distinção entre contemporaneidade e não contemporaneidade. Suas palavras soam assim: Das, das ist der garstige breite Graben, über den ich nicht kommen kann so oft und ernstlich ich auch den Sprung versucht habe [Esse, esse é o fosso largo e feio que não posso ultrapassar, por mais que, frequente e seriamente, eu também tenha tentado o salto]. Talvez aquela palavra: salto, seja apenas um modo de expressão estilístico, talvez por isso a metáfora seja desenvolvida na imaginação pela adição do predicado breit [al.: largo], como se mesmo o menor dos saltos não possuísse a qualidade de tornar o fosso infinitamente largo, como se não fosse igualmente difícil para aquele que de jeito nenhum consegue saltar, seja o fosso largo ou estreito, como se não fosse a aversão dialeticamente apaixonada ao salto que faz a vala infinitamente larga, tal como a paixão de Lady Macbeth faz a mancha de sangue tão imensamente grande que o oceano não conseguiria limpá-la. Talvez seja também astúcia da parte de Lessing empregar a palavra: ernstlich [al.: seriamente], pois em relação ao saltar, especialmente quando a metáfora é desenvolvida pela imaginação, seriedade tem algo de farsa, pois permanece sem relação, ou numa relação cômica com o salto, já que não é a largura do fosso, num sentido exterior, que o impede, mas é a paixão dialética, num sentido interior, que torna o fosso infinitamente largo. Ter estado muito perto de fazer alguma coisa já tem seu aspecto cômico, mas ter estado muito próximo de dar o salto não significa absolutamente nada, justamente porque o salto é a categoria da decisão. Agora, ter querido, com a máxima seriedade, dar o salto - sim, é mesmo um maroto esse Lessing, pois decerto o que fez, com suprema seriedade, foi alargar o fosso: não é a mesma coisa que fazer de bobas as pessoas? Contudo, como se sabe, no que tange ao salto, é possível também zombar das pessoas de uma maneira mais apreciada: a gente fecha os olhos, se agarra pelo próprio cangote à Ia Münchhausen, e então - então já se está do outro lado, daquele outro lado do bom-senso, na terra sistematicamente prometida. Esse termo: "o salto", está aliás ligado ao nome de Lessing também de um outro modo. Por mais raro que seja algum pensador dos tempos recentes recordar o belo modo grego de filosofar pela engenhosa concentração de si mesmo e de sua própria existência pensante numa única sentença, breve e feliz, a respeito de certa relação, L. lembra assim vivamente os gregos. Seu conhecimento não é uma mixórdia erudita ou uma mediação genuinamente especulativa de todo o diz-que-diz-que do que Fulano e Beltrano, gênios e livres-docentes, pensaram e escreveram; seu mérito não consiste em enfileirar todo esse esplendor no fio do método historicizante; [VII 80] não, breve e simplesmente, ele tem algo de seu. Tal como de muitos dos pensadores gregos em vez de mencionar seu nome se pode citar seu lema, L. também deixou uma última palavra. A "última palavra" de Lessing, como se sabe, provocou, naquela época, bastante escrevinhação. O nobre e entusiástico Jacobi, que muitas vezes com amável simpatia se pronunciou sobre sua necessidade de ser entendido por outros pensadores, sobre o desejável de estar de acordo com outros, foi o confessor a quem se reservou preservar a última palavra de L. É claro, compreende-se, era uma difícil tarefa servir de confessor de um irônico como L., e Jacobi precisou tolerar muita coisa, imerecidamente, à medida que foi injustamente atacado; e merecidamente, à medida que L., afinal, não o mandara chamar, de jeito nenhum, para o papel de confessor, muito menos pedira a ele para tornar público o diálogo, e, menos ainda, para colocar o acento patético no lugar errado. Há em toda a situação algo de altamente poético: duas individualidades tão marcantes como L. e J., em um diálogo um com o outro. O inesgotável porta-voz do entusiasmo como observador e o astuto L. como catecúmeno. J. deve então examinar como estão as coisas propriamente com L. O que acontece? Horrorizado, descobre que, talvez, no fundo, L. seja um espinosista. O entusiasta arrisca-se ao máximo e lhe sugere aquele salto mortale (salto mortal), a única coisa que salva. Aqui tenho de fazer uma pausa por um instante; poderia parecer que J. vem a ser, afinal de contas, o inventor do salto. Contudo, é preciso notar: antes de tudo, que J. não tem realmente clareza a respeito do lugar a que o salto essencialmente pertence. Para começar, seu salto mortale é apenas um ato de subjetivação confrontado com a objetividade de Espinosa; não é a passagem do eterno ao histórico. Primeiramente, ele não tem clareza dialética acerca do salto, de que este não se deixa ensinar ou comunicar diretamente, justamente porque o salto é um ato de isolamento, dado que, no que toca àquilo que não pode nem mesmo ser pensado, remete ao indivíduo singular decidir-se a aceitá-lo, crente, em virtude do absurdo. Jacobi quer, apoiado na eloquência, ajudar alguém a realizar o salto. Mas isso é uma contradição, e toda incitação direta é precisamente um obstáculo para verdadeiramente se chegar a fazê-lo, o que não deve ser confundido com asserções sobre querer tê-lo feito. Suposto que o próprio Jacobi tenha dado o salto; suposto que, com o apoio da eloquência, tenha convencido um aprendiz a querer fazer o mesmo: então o aprendiz ganha uma relação direta com J. e, consequentemente, [VII 81] não chega a dar ele próprio o salto. A relação direta entre um ser humano e outro é naturalmente muito mais fácil, satisfaz a simpatia e a própria necessidade muito mais rápida e ostensivamente e, aparentemente, de modo mais garantido; isso se compreende diretamente e não há nenhuma necessidade daquela dialética do infinito para manter a si mesmo infinitamente resignado e infinitamente entusiasta na simpatia do infinito, cujo segredo é justamente a renúncia à fantasia de que em sua relação para com Deus um ser humano não teria de ser tão forte quanto o outro, o que faz do pretenso mestre um aprendiz que cuida de si mesmo, e faz de toda aprendizagem uma brincadeira divina, porque todo ser humano é, no essencial, ensinado somente por Deus. - Em relação a Lessing, Jacobi deseja então apenas companhia para dar o salto; sua eloquência é a de alguém enamorado por Lessing, e por isso é tão importante para ele ter Lessing a seu lado. Prontamente se percebe a ambiguidade dialética disso: o bem-falante, aquele que está convicto para toda a eternidade, sente em si força e poder para conquistar outros para sua convicção, ou seja, ele é tão inseguro que precisa do assentimento de outros para sua entusiástica convicção. Ao fim de tudo, o entusiasta que não é capaz de expressar seu entusiasmo em relação a qualquer ser humano, na forma da oposição, não é o mais forte, mas o mais fraco, e tem apenas a força feminina que está na fraqueza. Jacobi não compreendeu como se disciplinar artisticamente a si mesmo para se contentar com, em existindo, exprimir a ideia. A pressão do isolamento, que está posta especificamente no salto, não consegue coagir Jacobi, ele precisa divulgar algo; transbordante, ele sempre recai naquela eloquência que, em vigor, substância e efervescência lírica, às vezes se equipara à de Shakespeare, mas que, contudo, quer ajudar os outros numa relação direta para com o orador ou, como in casu, quer ganhar para si o consolo de que Lessing está de acordo com ele. Prossigamos. Quando então Jacobi, com horreur (horror) descobre que Lessing é a rigor um espinosista, ele fala francamente, com toda a sua convicção. Ele quer tomar Lessing de assalto. Lessing responde: "Gut, sehr gut! lch kann das alles auch gebrauchen; aber icli kann nicht dasselbe damit machen. Überhaupt gefällt lhr Salto mortale mir nicht übel, und icli begreife wie ein Mann [VII 82] von Kopf auf diese Art Kopfunten machen kann, um von der Stelle zu kommen; nehmen Sie mich mil, wenn es angeht [Bom, muito bom! Posso realmente fazer uso disso tudo; mas não posso fazer o mesmo com isso. Afinal, bem que gosto de seu salto mortale, e vejo como um homem com uma boa cabeça pode, deste modo, abaixar sua cabeça num salto para avançar; leve-me consigo, se der]". Aqui a ironia de Lessing é soberbamente evidente; ele supostamente sabe que quando alguém está para saltar, certamente precisa fazê-lo sozinho, e também estar sozinho no ato de compreender corretamente que o salto é uma impossibilidade. Temos de admirar sua urbanidade e sua predileção por Jacobi, assim como sua arte da conversação que diz cortesmente: "nehmen Sie mich mit - wenn es angeht [leve-me consigo - se der]". Jacobi prossegue, dizendo: "Wenn Sie nur auf die elastische Stelle treten wollen, die mich fortschwingt, so geht es uon selbst [Se você se colocar no ponto elástico que me catapulta, o resto segue por si]". Isso, aliás, está dito muito bem, contudo o que há de incorreto é que ele aí quer fazer do salto algo de objetivo, e do saltar algo análogo a, por exemplo, achar o ponto de Arquimedes. O que há de bom na resposta é que ele não quer manter um relacionamento direto, uma comunidade direta, no salto. Então se seguem as últimas palavras de Lessing: "Auch dazu qehört schon ein Sprunq, den ich meinen alten Beinen und meinem schweren Kopfe nicht mehr zumuthen darf [Também para isso já se precisa de um salto, que não tenho o direito de exigir de minhas pernas velhas e de minha cabeça pesada]". Aqui Lessing é irônico por meio do fator di ai ético, enquanto que sua última tirada tem todo o colorido socrático - falar de comida e bebida, médicos, burros de carga e coisas tais, item [lat.: igualmente] falar de suas pernas velhas e de sua cabeça pesada. Embora, como é frequentemente notado, o salto seja a decisão, Jacobi, contudo, quer como que esboçar uma passagem para isso; ele, o elo quente, quer atrair Lessing. "Isto não é nada demais", ele diz, "a coisa não é tão difícil. Apenas pise no ponto elástico - e então o salto virá por si". Este é um exemplo muito bom da fraude piedosa da eloquência; é como se alguém quisesse recomendar a execução pela guilhotina e dissesse: "É tudo muito simples, você apenas se deita numa tábua, uma corda é puxada, e então o machado cai - e você foi executado". Mas suponha-se agora que ser executado é o que não se desejava: e o mesmo se dê com o saltar. Quando alguém é avesso ao salto, tão avesso que esta paixão torna "o fosso infinitamente largo", o ejetor mecânico mais engenhosamente elaborado não o ajudará de modo algum. Lessing percebe muito bem que o salto, enquanto decisivo, é qualitativamente dialético, e não permite nenhuma transição aproximativa. Sua resposta é, portanto, um gracejo. Está longe de ser dogmática: é dialeticamente correta de todo, é pessoalmente evasiva e, em vez de se precipitar a inventar a mediação, ele apela para suas velhas pernas e sua cabeça pesada. E é evidente que aquele que tiver pernas jovens e uma cabeça leve poderá saltar facilmente. [VII 83] Assim se completa o contraste psicológico entre Lessing e Jacobi. Lessing repousa em si mesmo, não sente nenhum impulso para comunidade; por isso ele cede ironicamente e se esquiva de Jacobi apoiando-se em suas velhas pernas - que não são aptas para saltar; não faz nenhuma tentativa de convencer Jacobi de que não existe nenhum salto. (Foi uma sorte para Lessing ele não ter vivido no século XIX, tão sério quanto autenticamente dogmático-especulativo: ele teria tido talvez de vivenciar que um homem de extrema seriedade, que em verdade não tinha a menor compreensão para brincadeiras (ikke forstod Spog], propusesse seriamente que Lessing deveria retomar à escola dominical [gaae om igjen til Praesten] para aprender a seriedade). Jacobi, ao contrário, só pensa em si mesmo, a despeito de todo o seu entusiasmo pelos outros, e que ele queira, por todos os meios, convencer Lessing, é precisamente um anseio seu; que ele pressione Lessing com tanta veemência, mostra que ele precisa de Lessing - para brincarmos com as preposições, algo que Jacobi apreciava tanto. Em suma, do que se tratou entre Jacobi e Mendelssohn, por intermédio de Emilie (Reimarus), a respeito da relação de Jacobi com Lessing, pode-se obter uma noção geral de quão inesgotável foi L. ao, com jovialidade grega, brincar dialeticamente com Jacobi, a quem ele, por outro lado, respeitava tão altamente. Assim, conta J. que L. disse, certa vez, mit halbem Lächeln: Er selbst wäre vielleicht das höchste Wesen, und gegenwärtig in dem Zustande der äussersten Contraction [com um meio-sorriso: Ele próprio talvez fosse o Ser supremo e, atualmente, no estado de extrema contração]. (Dialeticamente esta confusão não é tão fácil de solucionar. Nas Migalhas eu lembrei como é que ela ocorre e que o autoconhecimento de Sócrates encalhava nesta coisa estranha [paa det Besynderlige]: que ele não sabia com certeza se ele era um homem ou um animal mais complicado do que Tifon). Como estranhar, então, que Lessing fosse tido por panteísta? [VII 84] E, contudo, a brincadeira é tão clara (sem que, por isso, o seu enunciado precise ser mera brincadeira) e especialmente magnífica numa referência posterior ao mesmo enunciado. Pois quando ele estava com J. na casa de Gleim, e durante a refeição começou a chover - algo que Gleim lamentou, já que depois do jantar deveriam descer ao jardim - disse L. a 1. (presumivelmente de novo mit halbem Lächeln): Jacobi, Sie wissen, das thue ich vielleicht [Você sabe, Jacobi, talvez seja eu quem faz isso]. Mendelssohn, que também chegou a comentar esses assuntos, viu no salto, de resto com toda razão, a culminação lírica do pensamento. Quer dizer, quando o pensamento (É evidente que falo apenas do pensamento no pensador subjetivo existente; jamais tive condições de compreender de que modo um ser humano se transforma em especulação, na especulação objetiva e no puro ser. Com efeito, um ser humano pode transformar-se em muitas coisas no mundo, como diz no verso: ele pode se tornar Edelmann, Bettelman, Doctor, Pastor, Schuster, Schneider [al.: Rei, mendigo, doutor, pastor, sapateiro, costureiro] ... até aí eu entendo os alemães. Ele também pode se tornar um pensador, ou um imbecil; mas se tornar a especulação - é o mais incompreensível de todos os milagres) busca liricamente ultrapassar-se a si mesmo, está querendo descobrir o paradoxal. Este pressentimento é a unidade de brincadeira e seriedade, e neste ponto situam-se todas as categorias cristãs. Fora desse ponto, qualquer determinação dogmática é um filosofema, que brotou do coração da humanidade, e que se pode pensar de forma imanente. A última coisa que o pensamento humano pode querer é querer passar além de si mesmo no paradoxal. E o cristianismo é justamente o paradoxal. - Mendelssohn diz: "Zweifeln, ob es nicht etwas giebt, das nicht nur alle Begriffe übersteigt, sondern völlig auBer dem Begriffe liegt, dieses nenne ich einen Sprung über sich selbst hinaus [Duvidar se não há algo que não só ultrapassa todos os conceitos, mas que se encontra inteiramente fora do conceito, isso eu chamo de um salto para além de si mesmo]". Mendelssohn, naturalmente, não quer ter nada a ver com isso, e não sabe nem brincar com isso nem levar a coisa a sério. O que está dito forma mais ou menos tudo o que se pode dizer a respeito da relação de Lessing com o salto. Em si mesmo, não é muita coisa, e não fica bem claro, em termos dialéticos, o que ele quis fazer daí; de fato, nem mesmo [VII 85] está claro se aquela passagem de seus próprios escritos não seria apenas um patético volteio estilístico e, na sua conversa com J., apenas um gracejo socrático, ou se acaso essas duas fontes contrastantes não proviriam de, nem seriam sustentadas por, um só e mesmo pensamento categórico do salto. Para mim, o pouco que se encontra em Lessing já teve a sua importância. Eu já havia lido Temor e tremor, de Johannes de Silentio, antes de chegar a ler esse volume de Lessing. Naquele escrito, chamou-me a atenção como o salto, na opinião do autor, enquanto decisão por excelência, torna-se justamente decisivo para o crístico, e para toda e qualquer categoria dogmática, o que não pode ser alcançado pela intuição intelectual de Schelling, tampouco pelo que Hegel, enquanto zomba da posição schellingiana, quer colocar em seu lugar, o método, porque o salto é justamente o protesto mais decisivo contra o andamento inverso do método. Todo o cristianismo situa-se no paradoxo, de acordo com Temor e tremor - sim, situa-se no temor e no tremor (que são, justamente, as categorias desesperadas do cristianismo e do salto) - quer se venha a aceitá-lo (isto é: ser um crente) ou rejeitá-lo (exatamente porque ele é o paradoxo). Tendo lido Lessing mais tarde, a questão decerto não se tornou mais clara, porque o que L. diz é extremamente pouco, mas para mim foi, contudo, sempre um encorajamento ver que ele estava atento a isso. Só é uma lástima que ele não tenha querido perseguir pessoalmente tal pensamento. Mas tampouco estava então sobrecarregado com a "mediação", a divina e idolatrada mediação que faz e fez milagres e faz e fez de um ser humano a especulação - e enfeitiçou o cristianismo. Toda a honra para a mediação! Não há dúvida de que ela pode ajudar alguém ainda de outro modo, tal como presumivelmente ajudou o autor de Temor e tremor a procurar a saída desesperada do salto, precisamente como o cristianismo foi uma saída desesperada quando entrou no mundo e continua a sê-lo em todos os tempos para qualquer um que realmente o aceita. Pode muito bem acontecer que um corcel fogoso e indômito perca o fôlego e seu orgulhoso porte ao ser transformado num cavalo de aluguel e passar a ser conduzido por qualquer um - mas no mundo do espírito a preguiça jamais vence; ela sempre perde e fica de fora. Se Johannes de Silentio, de resto, tornou-se ou não atento ao salto através da leitura de Lessing, deixemos em aberto. [VII 86] 4 Lessing disse: Wenn Gott in seiner Rechten alle Wahrheit, und in seiner Linken den einziqen immer regen Trieb nach Wahrheil, obschon mil dem Zusatze, mich immer und ewig zu irren, verschlossen hielte, und spräche zu mir: wählel Ich fiele ihm mil Demuth in seine Linke, und sagte: Vater, giebe! die reine Wahrheil ist ja doch nur für dich allein! [Se Deus me oferecesse, fechada em Sua mão direita, toda verdade, e em Sua esquerda o impulso único, sempre animado, para a verdade, embora com o acréscimo de me enganar sempre e eternamente, e me dissesse: Escolhe! - eu me prostraria com humildade ante Sua mão esquerda, e diria: Pai, dá-me! pois a verdade pura é de fato só para Ti e mais ninguém!] (Cf. Lessings S.w., V. 5, p. 100). - Na ocasião em que Lessing disse tais palavras, provavelmente o sistema ainda não estava pronto; ai, e agora Lessing está morto! Se ainda vivesse agora, agora que o sistema foi concluído em sua maior parte, ou ao menos está em obras e ficará pronto lá pelo domingo que vem, acreditem, L. o teria agarrado com ambas as mãos; não teria tido tempo, escrúpulo e euforia para brincar, por assim dizer, de par ou ímpar com Deus, e assim escolher, em toda seriedade, a mão esquerda. Mas o sistema também tem mais a oferecer do que o que Deus tem em ambas as mãos; já neste momento ele possui mais, para nem falar do domingo que vem, quando com toda certeza estará pronto. Essas palavras encontram-se num pequeno artigo ("Eine Duplik" , 1778), motivado pela defesa, por um homem piedoso, da história da Ressurreição, contra um ataque feito a esta história nos fragmentos publicados por Lessing. É bastante conhecido que não se conseguiu descobrir qual era a intenção de L. ao publicar esses fragmentos. Nem mesmo o brioso estudioso Pastor principal Götze, conseguiria dizer com certeza qual passagem do Apocalipse, de fato, correspondia a, ou melhor, se realizava em Lessing, Nesse aspecto, Lessing, de maneira singular, obrigou as pessoas a aceitar, com relação a ele, o seu próprio princípio. Embora de resto houvesse bastantes resultados e habilidades naqueles tempos, ninguém estava capacitado a tirar a vida de Lessing e abatê-lo em termos de história-universal, desmanchá-lo num §. Ele era e continua sendo um enigma. Se alguém agora desejasse evocá-lo outra vez - não chegaria mais longe com ele. Quero primeiro, aqui e agora, garantir algo no que toca a minha modesta pessoa. Desejaria, como qualquer um, cair em adoração diante do sistema, se conseguisse ao menos enxergá-lo. Até agora não tive sucesso, e embora tenha pernas jovens, estou quase esgotado de tanto correr de Herodes a Pilatos. Algumas vezes estive bem próximo da adoração, mas eis que na hora exata em que já havia estendido meu lenço no chão, de modo a evitar sujar minhas calças ao ajoelhar, quando, muito inocentemente, pela última vez, falava a um dos iniciados: "Agora, dize-me com sinceridade, ele está mesmo completamente pronto, porque, se for esse o caso, [VII 87] vou me atirar de joelhos, mesmo que tenha de estragar essas calças" (pois não era pouca a lama do caminho, devido ao tráfego intenso para chegar ou partir do sistema) - recebi sempre a resposta: "Não, ele ainda não está completamente pronto". E assim eram adiados aí de novo - o sistema e o cair de joelhos. Sistema e completude são mais ou menos uma única e mesma coisa, de modo que, se o sistema não está pronto, não há sistema algum. Eu já comentei em outro lugar que um sistema que não esteja completamente pronto é uma hipótese; por outro lado, um sistema meio acabado é Nonsense (sem sentido). Se alguém disser que isso não passa de uma briga por palavras, e que, ao contrário, os próprios sistemáticos afirmam que o sistema ainda não está pronto, eu apenas perguntarei: Por que eles chamam isso de sistema? Por que são eles, afinal de contas, anfibológicos? Quando expõem seu compêndio, não mencionam que falta algo. Induzem então o menos instruído a supor que está tudo pronto, a não ser que escrevam para leitores mais instruídos do que eles mesmos, o que provavelmente pareceria impensável aos sistemáticos. Mas, por outro lado, se alguém mexe com a construção, o construtor aparece. Ele é um homem extremamente agradável, gentil e amável com o visitante. Ele diz: Sim, de fato, estamos ainda envolvidos na construção; o sistema ainda não está inteiramente pronto. Ele não sabia disso antes? Não sabia disso quando expediu a todos seu convite promotor de felicidade? Mas se ele sabia disso, por que ele próprio não o disse, ou seja, por que não se absteve de chamar de sistema o fragmento da obra executado? Pois aqui, de novo: um fragmento de um sistema é Nonsense. Por outro lado, um esforço incessante por um sistema é realmente um esforço; e um esforço, sim, um esforço incessante, é aquilo mesmo de que Lessing fala. Mas certamente não se trata de um esforço por nada! Ao contrário, Lessing fala de um esforço para a verdade; e usa uma frase peculiar a respeito dessa urgência pela verdade: den einzigen immer regen Trieb [al.: o impulso único, sempre animado]. Esta palavra einzig [al.: único] quase não pode ser entendida como algo mais do que o [esforço] infinito, no mesmo sentido em que é melhor ter um único pensamento, apenas um, do que ter muitos pensamentos. Portanto, esses dois, Lessing e o sistemático, ambos falam de um esforço incessante - a única diferença é que Lessing é obtuso ou honesto o bastante para chamá-lo de um esforço incessante, e o sistemático é sagaz ou desonesto o bastante para chamá-la de sistema. Como esta diferença seria julgada em outro contexto? Quando o representante comercial [VII 88] Behrend perdeu um guarda-chuva de seda, anunciou a perda de um guarda-chuva de algodão, pois pensou assim: Se eu disser que se trata de um guarda-chuva de seda, quem o encontrar ficará mais tentado a ficar com ele. O sistemático talvez pense desse jeito: Se na primeira página, ou nos anúncios, eu chamar de um esforço incessante para a verdade aquilo que produzi, ai, quem vai comprá-lo ou me admirar? Mas se eu o chamar de o sistema, o sistema absoluto, todos vão querer comprar o sistema - não restasse a dificuldade de que aquilo que o sistemático vende não é o sistema. Vamos então adiante, mas não nos deixemos fazer de bobos uns pelos outros. Eu, Johannes Climacus, não sou nada mais, nada menos, do que um ser humano; e presumo que aquele com quem tenho a honra de conversar é também um ser humano. Se ele quiser ser a especulação, a especulação pura, terei de desistir de conversar com ele; porque, no mesmo instante, ele se torna invisível para mim e para o olhar frágil e mortal de um ser humano. Portanto, (a) um sistema lógico pode haver; (b) mas não pode haver um sistema da existência. a. a) Se, entretanto, se há de construir um sistema lógico, deve-se aí prestar atenção especialmente a que nada se admita do que está submetido à dialética da existência, portanto, algo que só é ao existir ou por ter existido, e que não é por ser. Disso se segue muito simplesmente que a incomparável e incomparavelmente admirada invenção de Hegel - de trazer o movimento para dentro da lógica (para não mencionar o fato de que em toda e qualquer passagem se sente falta até do próprio esforço de fazer alguém acreditar que ele está lá) - consiste justamente em confundir a lógica. (A leviandade com que sistemáticos admitem que Hegel talvez não tenha sido inteiramente bem-sucedido em introduzir o movimento na lógica, mais ou menos como um merceeiro acha que algumas passas de uva não importam quando de resto a compra é grande - esta docilidade de comicidade rasteira é, naturalmente, um desrespeito a Hegel, a que nem seu mais veemente adversário se permitiu. Houve, é claro, investigações lógicas anteriores a Hegel, mas o seu método é tudo. Para ele e para qualquer um que esteja bem desperto para compreender o que significa querer algo de grande, a ausência desta coisa neste ou naquele ponto não pode ser uma ninharia, como quando um merceeiro e um freguês discutem sobre se há um tanto de peso a mais ou a menos. O próprio Hegel aliás apostou toda a sua reputação nesta questão do método [paa det Punkt om Methoden]. Mas um método possui a [VII 89] propriedade peculiar de, quando visto abstratamente, não ser absolutamente nada; consiste precisamente no processo de sua realização; o método está no ser executado, e onde não é executado, não é o método, e quando não há nenhum outro método, então não há simplesmente nenhum método. Que se reserve aos admiradores de Hegel fazer dele um Zé-mané [Sluddermads]; um adversário sempre saberá honrá-lo por ter desejado algo de grande, ainda que não o tenha alcançado). É de fato curioso fazer do movimento a base [VII 89], numa esfera onde o movimento é inconcebível, ou deixar o movimento explicar a lógica, enquanto que a lógica não pode explicar o movimento. No tocante a este ponto, de qualquer modo, estou entretanto muito feliz por poder referir-me a um homem que pensa de modo saudável e, afortunadamente, foi formado pelos gregos (qualidade rara em nossa época!); um homem que soube como desembaraçar a si mesmo e a seu pensamento de toda relação rastejante e humilhante para com Hegel, de cuja celebridade, de resto, todos procuram se aproveitar, se não de outro modo, então por irem mais adiante, ou seja, por terem absorvido Hegel em si; um homem que antes preferiu se contentar com Aristóteles e consigo mesmo - estou falando de Trendelenburg (Logische Untersuchungen). Seu mérito consiste, entre outros, em ter captado o movimento como a pressuposição inexplicável, como o [denominador] comum em que ser e pensar se unem, e como sua continuada reciprocidade. Não posso aqui fazer nenhuma tentativa de demonstrar a relação de sua concepção com a dos gregos, com o [pensamento] aristotélico, ou com algo que, de certo modo, bastante estranhamente, embora apenas para o senso comum, tem muita semelhança com sua exposição: uma pequena seção dos escritos de Plutarco sobre Ísis e Osíris. Não é, de modo algum, minha opinião que a filosofia de Hegel não tenha tido uma influência proveitosa sobre Trendelenburg, mas a sorte é que ele percebeu que não convém querer melhorar a construção de Hegel, ir mais além etc. (uma maneira mentirosa, com a qual, em nossa época, muitos remendões usurpam a celebridade de Hegel, e confraternizam com ele, feito lazarones); e, por outro lado, que ele, sóbrio como um pensador grego, sem prometer tudo, sem pretender promover a felicidade da humanidade, contribui com muito, e deixa feliz aquele que carecia de sua orientação no conhecimento dos gregos. [VII 90] Em um sistema lógico não se pode acolher nada que tenha uma relação com a existência, ou que não seja indiferente à existência. A infinita superioridade que o lógico, por ser objetivo, tem sobre todo pensamento é de novo limitada pelo fato de que, visto subjetivamente, ele é uma hipótese, justamente porque no sentido da realidade efetiva ele é indiferente à existência. Esta duplicidade é o que diferencia o lógico do matemático, o qual não tem nenhuma relação com a existência, nem em direção a ela nem a partir dela, mas tem tão somente a objetividade - não a objetividade e o hipotético enquanto a unidade e a contradição, na qual ele se relaciona negativamente à existência. O sistema lógico não pode ser uma mistificação, uma ventriloquia, em que o conteúdo da existência apareça, astuciosa e sub-repticiamente, onde o pensamento lógico fica perplexo e encontra o que o Herr Professor [al.: Sr. Professor] ou o Licenciado já tinha na cabeça. Cabe julgar aqui mais estritamente respondendo-se antes à questão: em que sentido a categoria é uma abreviação da existência, se o pensamento lógico é abstraído da existência ou se é abstrato sem nenhuma relação com a existência. Eu gostaria de tratar desta questão de modo um pouco mais extenso em outro lugar, e mesmo caso não se tenha respondido adequadamente a ela, já é sempre alguma coisa o fato de se ter perguntado desse modo. b) A dialética do começo precisa ser aclarada. O que há de quase divertido a esse respeito, que o começo é e contudo de novo não é, porque é o começo - essa observação verdadeiramente dialética já foi, por bastante tempo, vista como um jogo que se jogava na sociedade hegeliana. O sistema começa, conforme se diz, com o imediato; alguns, na falta de serem di ai éticos, são retóricos o bastante para dizer 'com a mais imediata de todas as coisas', embora a reflexão comparativa ali contida possa tornar-se justamente perigosa para o começo. (Seria prolixo demais mostrar aqui o 'como', Muitas vezes não vale a pena, pois, depois de alguém ter avançado laboriosamente uma objeção aguda, descobre-se pela réplica de um filósofo que o mal-entendido não estava em que não se conseguia compreender aquela filosofia idolatrada, mas, antes, que se havia deixado convencer a acreditar que tudo aquilo queria dizer alguma coisa - e não um pensamento solto escondido por trás das expressões mais arrogantes). O sistema começa com o imediato e, [VII 91] portanto, sem pressuposições, e, portanto, absolutamente, ou seja, o começo do sistema é o começo absoluto. Isso está inteiramente correto e tem sido mesmo bastante admirado. Mas por que, então, antes de se ter começado o sistema, não se levantou aquela outra questão, de igual importância, exatamente de igual importância, nem se deixaram claras e respeitadas as implicações que ali se encontram: Como o sistema começa com o imediato, quer dizer, ele começa com o imediato imediatamente? A isso se tem de responder, por certo, incondicionalmente com um Não. Se se admite que o sistema segue a existência (com o que se ocasiona uma confusão com um sistema da existência), então de fato o sistema vem depois e, portanto, não começa imediatamente com o imediato com o qual a existência começa, ainda que, num outro sentido, a existência não comece assim, pois o imediato nunca é, mas é anulado logo que é. O começo do sistema, que começa com o imediato, é então ele mesmo alcançado através da reflexão. Aqui reside a dificuldade, pois se não se abandona esse único pensamento, por engano ou irreflexão ou na pressa ofegante de aprontar o sistema, então ele, em toda sua simplicidade, é capaz de decidir que não pode haver nenhum sistema da existência, e que o sistema lógico não pode se gabar de um começo absoluto, porque este é, tal como o puro ser, uma pura quimera. Se, com efeito, não se pode começar imediatamente com o imediato (que poderia então ser pensado como um evento fortuito ou como um milagre, isto é, algo que não se pode pensar), mas esse começo deve ser alcançado por uma reflexão, então se pergunta muito singelamente (ah, oxalá não me ponham de castigo no cantinho da vergonha, por causa da minha simplicidade, só porque qualquer um consegue entender minha questão - e por isso precisa envergonhar-se do saber popular deste questionador): Como eu consigo deter a reflexão, uma vez posta em movimento, a fim de alcançar esse começo? Pois a reflexão tem a notável propriedade de ser infinita. Mas o fato de ela ser infinita quer dizer, em todos os casos, que ela não pode ser parada por si mesma, pois ao dever parar por si mesma, ela de fato emprega a si mesma, e portanto só é parada do mesmo modo como uma doença é curada se a ela se permite prescrever o remédio, ou seja, se a doença é alimentada. Talvez a infinitude dessa reflexão seja a má infinitude - com o que, então, logo tudo está acabado, pois a má infinitude deve ser alguma coisa desprezível de que se deve abrir mão o quanto antes. Permitam-me, porém, levantar uma questão a respeito: De onde provém que Hegel e todos os hegelianos, que de resto [VII 92] deveriam ser dialéticos, neste ponto fiquem furiosos, sim, tão furiosos como só mesmo os alemães? Ou: a má, seria esta uma determinação dialética? De onde se introduz tal predicado na lógica? Como é que o escárnio, o desprezo e a intimidação encontram lugar na lógica como motores legítimos, de modo a que o começo absoluto vem a ser admitido pelo indivíduo singular, só porque este tem medo do que o vizinho do lado e o da frente vão pensar dele, se não o fizer? Não seria "a má" uma categoria ética? (E se não o for, ela será, em todo caso, uma categoria estética, como quando Plutarco comenta que alguns admitiram um único mundo pelo motivo de temerem que de outro modo surgiria uma infinita e embaraçosa infinitude de mundos). O que digo eu, propriamente, quando falo de uma má infinitude? Eu acuso o indivíduo em questão por não querer parar a infinitude da reflexão. Eu reclamo então algo dele? Mas, de modo genuinamente especulativo, reconheço, por outro lado, que a reflexão se suspende por si própria. Por que, então, reclamo algo dele? E o que reclamo dele? Eu reclamo uma decisão. E nisso ajo certo, pois só desse modo se pode interromper a reflexão, mas, por outro lado, um filósofo jamais age certo ao zombar das pessoas, e num momento deixar a reflexão parar por si mesma no começo absoluto e, no momento seguinte, desdenhar alguém que só tem um único defeito, o de ser tolo o bastante para acreditar no primeiro momento, desdenhá-lo para assim o ajudar a alcançar o começo absoluto, que portanto acontece de dois modos. Mas, quando se reclama uma decisão, aí se renunciou à ausência de pressuposições. Só quando a reflexão se interrompe, o começo pode ocorrer, e a reflexão só pode ser interrompida por alguma outra coisa, e esta alguma outra coisa é algo completamente diferente do lógico, já que é uma decisão. E só quando o começo, com o qual a reflexão se detém, constitui uma irrupção, então o próprio começo absoluto irrompe através da reflexão eternamente continuada - só então o começo é sem pressuposições. Mas se ao contrário é por uma ruptura que a reflexão se interrompe, para que o começo possa assomar, então esse começo não é absoluto, dado que ocorreu por uma mudança de um gênero para um outro. [VII 93] Quando o começo com o imediato é alcançado por meio de uma reflexão, o imediato tem que significar algo diferente do usual. Isso os lógicos hegelianos perceberam corretamente, e por isso eles definem o imediato, com o qual a lógica começa, da seguinte maneira: o que restou de mais abstrato de uma exaustiva abstração. Contra esta definição não há nenhuma objeção, mas certamente contra o não respeitarmos o que nós mesmos dizemos, pois esta definição justamente estabelece de modo indireto que não há nenhum começo absoluto. "Como assim?", escuto alguém dizer. "Quando se abstraiu de tudo, não há então etc." - sim - quando se abstraiu de tudo. Vamos raciocinar como gente! Este ato da abstração é, tanto como aquele ato da reflexão, infinito; então, como posso fazê-lo parar - e isso só se dará quando... que... Vamos até mesmo arriscar um experimento mental. Deixemos aquele ato da abstração infinita ser in actu [lat.: em ato]; o começo não é, aliás, o ato da abstração, mas ele vem depois. Mas com quê então eu começo, agora que abstraí de tudo? Ah, aqui talvez um hegeliano, emocionado, caísse em meus braços e, ditoso, balbuciasse: "com nada". E isso é, aliás, o que o sistema declara - que ele começa com nada. Mas eu precisaria fazer minha segunda pergunta: De que modo eu começo com esse nada? Se, com efeito, o ato da abstração infinita não é uma espécie de maluquice de circo com o qual se pode muito bem fazer duas coisas ao mesmo tempo; se, ao contrário, é a obra mais exaustiva que pode ser feita - o que então? Então uso de toda a minha força só para mantê-la. Se eu deixo escapar uma parte de minha força, então não abstraio de tudo. Se, então, eu começo com esta pressuposição, não é com nada que começo, justamente porque, no instante do começo, não abstraí de tudo. Isso quer dizer que, se for possível para um ser humano, pensando, abstrair de tudo, é impossível para ele fazer mais, já que este ato, posto que não ultrapassa todo a força humana, de qualquer maneira o exaure absolutamente. Ficar exausto do ato da abstração e assim chegar a começar são só desculpas de mercadores coloniais, que não ligam para uma pequena irregularidade. O próprio enunciado "começar com nada", mesmo não levando em conta sua relação com o ato infinito da abstração, é enganador. Pois começar com nada não é nem mais nem menos do que uma nova paráfrase da própria dialética do começo. [VII 94] O começo é e, por sua vez, não é, justamente porque ele é o começo; algo que se pode também expressar assim: o começo começa com nada. Isso é tão somente uma nova expressão, nem um único passo adiante. No primeiro caso, penso o começo meramente in abstracto [lat.: em abstrato]; no segundo caso, eu penso a igualmente abstrata relação do começo para com algo com que se começa. E bem corretamente se mostra que esse algo, sim, o único algo que corresponde a tal começo, é nada. Mas isso é somente uma paráfrase tautológica do segundo enunciado: o começo não é. "O começo não é" e "o começo começa com nada" são enunciados completamente idênticos, e eu não saio do mesmo lugar. E que tal se, em vez de falar ou sonhar com um começo absoluto, falássemos de um salto? Querer contentar-se com um "na maioria das vezes é tão bom quanto", um "quase se pode dizer isso", um "se você dormir sobre isso até amanhã, bem poderá dizê-lo", só prova que se é parente de Trop, o qual, pouco a pouco, foi chegando a ponto de admitir que quase ter sido aprovado no exame jurídico equivalia a ter sido aprovado. Todos riem disso, mas quando alguém amontoa raciocínios especulativos da mesma maneira no reino da verdade, no santuário da ciência e da erudição: então isso é boa filosofia, autêntica filosofia especulativa. Pois Lessing não era um filósofo especulativo, ele admitiu, por isso, o oposto, que uma distância infinitamente pequena torna o fosso infinitamente largo, porque é o próprio salto que torna o fosso tão largo. É bem estranho: os hegelianos, que na lógica sabem que a reflexão se detém por si mesma, que uma dúvida universal se revira por si mesma em seu oposto (uma verdadeira história de marinheiro, isto é, na verdade um causo de marinheiro), sabem que para o uso diário, de qualquer modo, quando são pessoas gentis, quando são como o resto de nós outros, só que, como sempre estarei disposto a admitir, mais eruditos, mais talentosos etc., sabem que a reflexão só se deixa deter por um salto. Demoremos aqui por um instante. Se o indivíduo não interrompe a reflexão, então ele é infinitizado na reflexão, ou seja, então não intervém ali nenhuma decisão. (Talvez o leitor se lembre de que, quando o problema se torna objetivo, não se questiona mais acerca de uma felicidade eterna, porque essa se situa precisamente na subjetividade e na decisão). Ao extraviar-se assim na reflexão, o indivíduo se torna, a rigor, objetivo; ele perde sempre mais a decisão da subjetividade e o retorno para dentro de si mesmo. [VII 95] E contudo quer-se admitir que a reflexão pode deter-se a si mesma objetivamente, enquanto ocorre o contrário; objetivamente ela não se deixa deter, e quando se detém subjetivamente, não se detém por si mesma, mas é o sujeito quem a detém. Quando, p. ex., Rötscher (que em seu livro sobre Aristófanes de fato compreende a necessidade da transição no desenvolvimento histórico-universal, e que, de resto, na lógica compreendeu a passagem da reflexão através de si mesma rumo ao começo absoluto) se propõe a tarefa de explicar Hamlet, então ele sabe que a reflexão só se detém por uma resolução; ele não admite (devo dizer "é bem estranho"?), é bem estranho, não admite que Hamlet, por continuar a refletir, acabe por chegar ao começo absoluto; mas, na lógica, ele admite (devo dizer "é bem estranho?"), é bem estranho, ali ele admite provavelmente que a passagem da reflexão através de si mesma para no começo absoluto. Isso eu não compreendo, e isso me dói não compreender, justamente porque nutro admiração pelo talento de Rötscher, por sua formação clássica, por sua concepção de muito bom gosto, e contudo primitiva, dos fenômenos psicológicos. O que foi dito aqui sobre o começo da lógica (pois, que a mesma coisa mostra que não há nenhum sistema da existência, é algo que se perseguirá em detalhes em b) é muito singelo e simples; fico quase inteiramente embaraçado por ter de dizê-lo, embaraçado por minha situação, que um pobre autor de opúsculos, que preferiria venerar de joelhos o Sistema, deva ser forçado a dizer tal coisa. O que foi dito poderia também ser dito de outro modo, pelo qual talvez impressionasse um ou outro, à medida que sua exposição recordasse mais especificamente os conflitos científicos de um momento já passado. A questão seria então saber qual a significação da Fenomenologia de Hegel para o Sistema, se ela é uma introdução, se ela se mantém do lado de fora; e caso seja uma introdução, se ela será incorporada novamente ao Sistema; além disso, [VII 96] se Hegel não tem o espantoso mérito de ter escrito não apenas o Sistema, mas dois, aliás, três sistemas, o que sempre exigiria uma cabeça incomparavelmente sistemática, o que, de qualquer modo, parece ser o caso, já que o Sistema foi concluído mais de uma vez etc. Tudo isso, no fundo, já foi dito com bastante frequência, mas também muitas vezes foi dito de uma maneira que confunde. Um grande livro foi escrito a esse respeito, começando por dizer tudo o que Hegel disse, depois, referindo-se a este ou àquele que veio depois, mas tudo isso só desvia a atenção e espalha uma prolixidade dispersiva sobre o que pode ser dito muito brevemente. c) Seria desejável se, para lançar uma luz sobre a lógica, a gente se orientasse psicologicamente sobre como é o estado anímico daquele que pensa o lógico, que espécie de morrer a si mesmo se requer para tanto, e até que ponto a fantasia desempenha um papel nisso. Eis de novo um comentário pobre e muito ingênuo, mas que em compensação pode ser bem verdadeiro e de modo algum supérfluo: que um filósofo, gradualmente, tenha-se tornado um ser tão maravilhoso que nem mesmo a fantasia mais extravagante inventou algo de tão fabuloso. De que modo, em última instância, o eu empírico se relaciona ao puro eu - eu? Quem quer que deseje se tornar filósofo, certamente desejará também ser um pouco informado a esse respeito e, acima de tudo, não desejará se tornar um ser ridículo ao se transformar, num ein, zwei, drei, kokolorum [al.: um, dois, três, abracadabra], em especulação. Se aquele que se ocupa com o pensamento lógico é também humano o bastante para não esquecer que ele, mesmo que tenha concluído o sistema, é um indivíduo existente, então a fantasmagoria e a charlatanice desaparecerão gradualmente. E mesmo que se exija uma cabeça eminentemente lógica para remodelar a lógica de Hegel, basta apenas o sólido senso comum para aquele que, um dia, acreditou com entusiasmo na grande coisa que Hegel afirma ter feito, e demonstrou seu entusiasmo acreditando nisso, e seu entusiasmo por Hegel creditando isso a ele; basta apenas o sólido senso comum para perceber que, em muitas passagens, Hegel se comportou irresponsavelmente, não em relação a mercadores coloniais, que só acreditam mesmo na metade do que se diz, mas em relação a jovens entusiastas que acreditaram nele. Mesmo se tal jovem não fosse excelentemente dotado de modo extraordinário, quando teve o entusiasmo para crer no mais elevado, só porque afinal lhe fora dito sobre Hegel, quando, no momento da dúvida, teve o entusiasmo para desesperar de si mesmo a fim de não abandonar Hegel - quando tal jovem retoma a si mesmo, tem o direito de exigir aquela Nêmeses de que o riso consuma em Hegel o que pertence de legítimo direito ao riso. [VII 97] E tal jovem terá contudo honrado Hegel de modo muito diferente do que muitos adeptos, que em enganadoras réplicas ditas à parte fizeram de Hegel, ora tudo, ora uma bagatela. b. Um sistema da existência não pode haver. Então não existe tal sistema? De modo algum! Isso não está implicado no que foi dito. A existência mesma é um sistema - para Deus, mas não pode sê-lo para algum espírito existente. Sistema e completude se correspondem mutuamente, mas existência é justamente o contrário. Visto abstratamente, sistema e existência não se deixam pensar conjuntamente, porque, para pensar a existência, o pensamento sistemático precisa pensá-la como suspensa e, portanto, não como existente. Existência é o que abre espaço, que aparta um do outro; o sistemático é a completude, que reúne. Na realidade, agora aí se introduz um engano, uma ilusão sensorial, que também as Migalhas tentaram mostrar, e a que agora tenho de me referir, a saber, à questão sobre se o passado é mais necessário do que o futuro. Ou seja, quando uma existência é coisa passada, está de fato terminada, está de fato concluída, e, nesse sentido, reverte ao ponto de vista sistemático. Corretíssimo, mas para quem? Quem quer que ainda esteja existindo não consegue obter essa completude fora da existência, uma completude que corresponde à eternidade dentro da qual o passado entrou. Se um pensador cheio de bondade quer ser tão distraído a ponto de esquecer que ele próprio está existindo, ainda assim especulação e distração continuam não sendo bem a mesma coisa. Ao contrário, que ele próprio esteja existindo implica a exigência da existência sobre ele, que sua existência, sim, se ele é um grande indivíduo, que sua existência no seu tempo pode, por sua vez, como algo passado, ter uma validade da completude para um pensador sistemático. Mas quem é, então, este pensador sistemático? Sim, é Aquele que, estando Ele próprio fora da existência, está contudo na existência, que em sua eternidade está concluído para toda eternidade, e no entanto inclui em si a existência - Ele é Deus. Para que o engano! Pelo fato de o mundo ter durado seis mil anos, a existência já não tem, só por isso, a mesma força de exigência ao existente que ela sempre teve - e que não consistia em que o indivíduo, numa ilusão, [VII 98] devesse ser um espírito contemplativo, mas sim, em realidade, um espírito existente? Toda compreensão chega depois. Enquanto o agora existente, inegavelmente, chega depois em relação aos seis mil anos que o precederam, emergiria a consequência curiosamente irônica - se admitirmos que ele chegue a compreender tudo isso sistematicamente - de que ele não chegaria a compreender a si mesmo como existente, porque ele próprio não adquiriria nenhuma existência, porque ele próprio não teria nada que devesse ser compreendido retroativamente. Disso se seguiria que tal pensador precisaria ser ou Nosso Senhor, ou um fantástico quodlibet [lat.: qualquer coisa]. Qualquer um perceberá, decerto, o que há de imoral nisso, e então qualquer um por certo também perceberá como inteiramente em ordem aquilo que outro autor observou a respeito do sistema hegeliano: que, com ele, ganhamos um sistema, o sistema absoluto, concluído - sem ter uma ética. Podemos até sorrir das fantasias ético-religiosas da Idade Média em termos de ascese e coisas afins, mas, sobretudo, não nos esqueçamos de que a extravagância especulativa, burlesca, do tornar-se um Eu-Eu - e ainda, mesmo assim, qua ser humano frequentemente um filisteu tal que nenhum entusiasta invejaria semelhante vida - é igualmente ridícula. Portanto, no que se refere à impossibilidade de um sistema da existência, perguntemos com toda a ingenuidade, como um jovem grego perguntaria a seu mestre (e se a alta sabedoria pode explicar tudo o mais, mas não consegue responder a uma questão singela, então se vê mesmo que o mundo está fora dos eixos): Quem haverá de escrever ou levar a cabo tal sistema? Ora, decerto um ser humano, a não ser que queiramos de novo começar com aquela conversa esquisita sobre um ser humano se tornar a especulação, tornar-se o sujeito-objeto. Portanto, um ser humano - e, ainda, é claro, um vivente, isto é: um ser humano existente. Ou a especulação que produz o sistema é o esforço conjunto dos diferentes pensadores: em que conclusão final se junta essa comunidade? Como é que ela vem à luz? Mas decerto por meio de um ser humano? Mas, por outro lado, de que modo os pensadores individuais se relacionam com esses esforços? Quais são aqui as determinações intermediárias entre o individual e o histórico-universal? E, por sua vez, que espécie de ser é aquele que posiciona a todos na linha sistemática? É ele um ser humano ou ele é a especulação? Porém, se é um ser humano, então é afinal um existente. Mas, em última análise, [VII 99] para o existente há dois caminhos: ou bem ele pode fazer tudo para esquecer que é um existente e, com isso, chegar a tornar-se cômico (a contradição cômica de querer ser o que não se é, por exemplo, que um ser humano queira ser um pássaro, não é mais cômica do que a contradição de não querer ser o que se é, como in casu, um existente, tal como na linguagem comum a gente acha cômico quando alguém esquece como se chama, o que não é tão significativo quanto esquecer a característica própria de seu ser), porque a existência possui a notável propriedade de que o existente existe, quer queira, quer não; ou bem ele pode voltar toda sua atenção para esse fato: de que ele é [um] existente. É a partir desse lado, em primeiro lugar, que se deve fazer a objeção contra a moderna especulação, de que ela tem, não uma pressuposição equivocada, mas uma pressuposição cômica, ocasionada pelo fato de ter esquecido, numa espécie de distração histórico-universal, o que significa ser um ser humano, não aquilo que significa ser um homem em geral, pois os especuladores ainda poderiam concordar sobre tais coisas, mas sim o que significa que tu e eu e ele sejamos seres humanos, cada um por si. Ao existente que dirige toda a sua atenção ao fato de que ele é existente, para ele sorrirá, como uma bela sentença, aquela palavra de Lessing sobre o esforço constante; não como algo que proporcionasse ao seu inventor uma fama imortal, pois a sentença é muito singela, mas como algo de que qualquer pessoa atenta pode reconhecer a verdade. O existente que esquece que está existindo se tornará cada vez mais distraído, e tal como as pessoas ocasionalmente depõem em escritos o fruto de seu otium [lat.: ócio], assim também podemos esperar o esperado sistema da existência como fruto de sua distração - claro que não todos nós, mas só aqueles que são quase tão distraídos como ele. Ora, enquanto o sistema hegeliano em distração progride e se torna um sistema da existência, sim, o que ainda é mais, chega a ser concluído, sem ter uma ética (onde a existência tem justamente sua morada), aquela outra filosofia mais singela, aquela que é exposta por um existente para existentes, vai trazer ao primeiro plano especialmente o ético. Tão logo seja lembrado que filosofar não é falar fantasticamente a seres fantásticos, mas consiste em que se fale a existentes; que, portanto, não se deve decidir fantasticamente in abstracto se o esforço continuado é algo menor do que a completude sistemática, mas que a questão consiste em saber com o que seres existentes devem se contentar, enquanto são existentes, então o esforço continuado será a única coisa que não envolve um engano. Ainda que alguém tenha alcançado o mais alto, a repetição com que afinal precisará preencher sua existência, se não quiser retroceder [VII 100] (ou se tornar um ser fantástico), de novo será um esforço continuado, porque a completude aqui de novo foi afastada e adiada. Aqui se dá algo semelhante à concepção platônica do amar, que consiste numa carência, e que não só sente carência o que cobiça algo que não possui, mas também aquele que deseja a posse continuada daquilo que já tem. No sistema e no quinto ato do drama, tem-se a completude positiva fantástico-especulativa e fantástico-estética, mas tal completude é só para seres fantásticos. O esforço continuado é a expressão da visão de vida ética do sujeito existente. O esforço continuado não deve ser entendido, portanto, metafisicamente; mas não há, afinal de contas, de modo algum, nenhum indivíduo que exista metafisicamente. Assim, para um mal-entendido, poder-se-ia construir uma oposição entre a completude sistemática e o esforço continuado pela verdade. Poder-se-ia então, e talvez até já se tenha tentado, lembrar a noção grega de querer ser continuamente um aprendiz. Isso seria apenas, entretanto, um mal-entendido nessa esfera. Ao contrário, eticamente compreendido, o esforço continuado é a consciência de estar existindo, e a aprendizagem continuada é a expressão da realização constante, que em nenhum momento se conclui, enquanto o sujeito estiver existindo; o sujeito está justamente consciente disso e, portanto, não está enganado. Mas a filosofia grega tinha uma relação constante com a ética. É por isso que querer continuamente ser um aprendiz não era considerado como uma grande descoberta ou um inspirado empreendimento de algum indivíduo excelentes, já que não era nada mais nada menos do que a compreensão de que se estava existindo, e ter consciência disso não era um mérito, porém esquecê-lo seria irreflexão. Frequentemente se tem lembrado e atacado os assim chamados sistemas panteístas dizendo-se que eles anulam a diferença entre bem e mal e a liberdade; talvez ainda se expresse isso de forma mais determinada dizendo-se que qualquer sistema desse tipo volatiliza fantasticamente o conceito de existência. Mas não está certo dizer isso apenas dos sistemas panteístas, pois se faria melhor em mostrar que [VII 101] qualquer sistema tem de ser panteísta precisamente por causa da completude. A existência precisa ser superada no eterno, antes que o sistema se conclua, nenhum resto existente deve ser deixado para trás, nem mesmo um pequenino penduricalho, como o existente Herr Professor que escreve o sistema. Mas o problema não se apresenta desse modo. Não, os sistemas panteístas são combatidos, em parte por aforismos tumultuosos que prometem, a cada vez, um novo sistema, em parte faz-se uma compilação de algo que deveria ser um sistema e que tem um parágrafo específico onde se ensina que se enfatiza o conceito: existência e realidade efetiva. Que tal parágrafo escarnece do sistema inteiro, que em vez de ser um parágrafo no sistema seja um protesto absoluto contra o sistema, é algo sem consequência para os azafamados sistemáticos. Se o conceito de existência deve ser realmente enfatizado, então isso não pode ser afirmado diretamente num parágrafo do sistema, e todos os juramentos diretos e os "o diabo que me carregue [se não for assim]" apenas tornam ainda mais ridículo o arrevesado docente. Que a existência seja realmente enfatizada é algo que deve ser expresso de uma forma essencial, e em relação à inconfiabilidade da existência esta é uma forma indireta, que não haja um sistema. E, por outro lado, isso não pode tornar-se uma tranquilizadora fórmula padrão, porque a expressão indireta precisa sempre ser rejuvenescida na forma. Em deliberações de comitê, é bem aceitável ajuntar um voto dissidente, mas um sistema que tenha o voto dissidente como um parágrafo dentro dele é um monstrengo engraçado. Não é de se admirar, então, que o sistema se mantenha. Ele orgulhosamente ignora objeções; e se topa com uma objeção particular que parece atrair um pouco a atenção, aí os empresários sistemáticos mandam um copista fazer uma cópia da objeção, que a seguir será registrada no sistema e, com a encadernação, o sistema fica pronto. A ideia sistemática é o sujeito-objeto, é unidade de pensar e ser; existência, ao contrário, é precisamente separação. Disso não se segue, de modo algum, que a existência seja irrefletida, mas a existência abriu e abre espaço entre o sujeito e o objeto, entre o pensar e o ser. Objetivamente compreendido, o pensar é o puro pensar, que, também de modo abstrato-objetivo, corresponde a seu objeto, o qual, por sua vez, é de novo ele mesmo, e a verdade é a concordância do pensamento consigo mesmo. Este pensamento objetivo não tem nenhuma relação com a subjetividade existente, e enquanto a difícil questão sempre permanece, de como é que o sujeito existente se introduz nessa objetividade, na qual a subjetividade é a pura subjetividade abstrata (que é, mais uma vez, uma determinação objetiva, e não designa algum ser humano existente), ao menos fica certo que a subjetividade existente se evapora [VII 102] cada vez mais e, por fim (se é possível a um ser humano tornar-se algo assim, e que tudo isso não seja algo de que se pode, na melhor das hipóteses, ficar sabendo no máximo pela fantasia), torna-se o puro consaber abstrato a respeito e o saber sobre essa relação pura e entre pensar e ser, essa pura identidade, sim, essa tautologia, porque aqui com ser não se diz que o pensador é, mas sim, propriamente, apenas que está pensando. O sujeito existente, pelo contrário, é existente, e isso o é, aliás, qualquer ser humano. Não cometamos, por isso, a injustiça de chamar aquela tendência objetiva de ímpia, panteísta adoração de si mesma, mas antes a consideremos como um ensaio no cômico; pois que a partir de agora até o fim do mundo nada pudesse ser dito afora aquilo que venha a sugerir um posterior aperfeiçoamento num sistema quase concluído é tão somente uma consequência [lógica] sistemática para sistematizadores. Ao começar logo com categorias éticas contra aquela tendência objetiva, comete-se injustiça e não se atinge a meta, porque não se tem nada em comum com aqueles a quem se ataca. Mas permanecendo-se dentro do metafísico, pode-se empregar o cômico, que também reside no metafísico, a fim de alcançar um professor tão transfigurado. Se um dançarino conseguisse saltar muito alto, nós o admiraríamos, mas se ele, embora pudesse saltar mais alto do que jamais qualquer dançarino antes saltou, quisesse dar a impressão de poder voar: que o riso então o alcançasse. Saltar significa essencialmente pertencer à terra e respeitar as leis da gravidade, de forma que o salto é somente o momentâneo, mas voar significa estar liberado das condições telúricas, algo que é reservado exclusivamente às criaturas aladas, talvez também aos habitantes da lua, talvez - e talvez somente lá o sistema vá encontrar, de forma cabal, seus verdadeiros leitores. Ser um ser humano é algo que foi abolido, e qualquer especulante confunde a si mesmo com a humanidade, por meio do que ele se torna algo infinitamente grande e ao mesmo tempo absolutamente nada. Na distração, confunde a si mesmo com a humanidade, tal como a imprensa de oposição diz "nós", e os marinheiros dizem "o diabo que me carregue". Mas após ter blasfemado por um longo tempo, finalmente retoma-se ao enunciado direto, pois todo praguejar acaba por anular-se; e quando se aprendeu que qualquer moleque pode dizer "nós", aí se aprende que, apesar de tudo, significa um pouco mais ser um; e quando se vê que qualquer bodegueiro pode jogar o jogo de ser a humanidade, aí se percebe finalmente [VII 103] que ser, pura e simplesmente, um ser humano, significa algo mais do que tomar parte assim em jogos de salão. E só mais uma coisa: quando o bodegueiro o faz, todos acham que é ridículo; e no entanto isso é igualmente ridículo quando o maior dos seres humanos o faz; e, assim sendo, pode-se rir dele à vontade no que se refere a isso e ainda assim, como convém, ter veneração por seus talentos, conhecimentos etc. SEÇÃO 2 O PROBLEMA SUBJETIVO, OU COMO TEM QUE SER A SUBJETIVIDADE, PARA QUE O PROBLEMA POSSA SE APRESENTAR A ELA. CAPÍTULO 1 O tornar-se subjetivo [VII 104] Como a ética teria de julgar, caso o tornar-se subjetivo não fosse a mais alta tarefa posta a um ser humano; o que tem de ser desconsiderado na sua compreensão mais precisa; exemplos de um pensamento orientado ao tornar-se subjetivo. Objetivamente, fala-se sempre apenas do que é o caso; subjetivamente, fala-se do sujeito e da subjetividade, e eis que justamente a subjetividade é o caso. Isso tem de ser sustentado sempre: que o problema subjetivo não é algo referente ao caso, mas o caso é a subjetividade mesma. Com efeito, dado que o problema consiste na decisão, e que, como já foi mostrado, toda decisão reside na subjetividade, é importante que, objetivamente, não fique vestígio de nenhum caso, pois, no mesmo momento, a subjetividade quererá esquivar-se um tanto da dor e da crise da decisão, ou seja, quererá tornar o problema um pouco objetivo. Se a ciência introdutória ainda espera por mais um escrito antes que o problema seja levado a juízo; se o sistema ainda carece de mais um parágrafo; se o orador ainda tem mais um argumento na manga: então a decisão é adiada. Assim, não há aqui uma questão a respeito da verdade do cristianismo, no sentido de que, se essa fosse resolvida, a subjetividade haveria de aceitá-la com desembaraço e boa disposição. [VII 105] Não, a questão diz respeito à aceitação dessa verdade por parte do sujeito, e aqui deve ser considerado como ilusão da perdição (que permaneceu ignorante do fato de que a decisão reside na subjetividade), ou como um pretexto da enganação (que empurrou para longe a decisão, com um tratamento objetivo, no qual não há qualquer decisão em toda a eternidade), pretender que essa passagem de algo objetivo para uma aceitação subjetiva é algo que segue direta e obviamente, já que esse é, precisamente, o ponto decisivo, e uma aceitação objetiva (sit venia verbo [lat.: permitam-me a expressão]) é paganismo ou irreflexão. O cristianismo quer, de fato, dar de presente ao individuo uma felicidade eterna, um bem que não é distribuído no atacado, mas é só para um, um único de cada vez. Se o cristianismo admite que a subjetividade, como possibilidade da apropriação, é a possibilidade da aceitação desse bem, ele não supõe, contudo, que a subjetividade sem mais nem menos esteja pronta e acabada, que tenha, sem mais nem menos, uma ideia real do significado desse bem. Esse desenvolvimento ou recriação da subjetividade, essa sua concentração infinita em si mesma, diante de uma representação do mais alto bem infinito, uma felicidade eterna, é a possibilidade desenvolvida a partir daquela primeira possibilidade da subjetividade. Assim o cristianismo protesta contra toda objetividade; quer que o sujeito se preocupe infinitamente consigo mesmo. Aquilo pelo que ele pergunta é a subjetividade; só nela se encontrará a verdade do cristianismo, se é que ela aí estará; objetivamente, ela simplesmente não existe. Se ela estiver só num único sujeito, então estará apenas nele, e haverá mais alegria cristã no céu por este único do que por toda a história do mundo e pelo sistema, os quais, como potências objetivas, são incomensuráveis com o crístico. Comumente se acredita que o ser subjetivo não constitui nenhuma arte. Ora, é claro que todo e qualquer ser humano também é, afinal, de algum modo, um sujeito avulso. Mas agora, tornar-se naquilo que já se é, sem mais nem menos: quem, afinal, desperdiçaria seu tempo com isso? Seria, de fato, a mais resignada de todas as tarefas da vida. Com toda certeza! Mas já por essa razão ela é, desde logo, extremamente difícil, de fato, a mais difícil de todas, porque todo ser humano tem um forte prazer e uma pulsão por se tornar algo de diferente e de maior do que ele é. É assim que se passa com todas as tarefas aparentemente insignificantes: exatamente essa aparente insignificância as torna infinitamente difíceis, [VII 106] pois a tarefa não acena diretamente, dando, assim, suporte ao que aspira realizá-la, mas a tarefa trabalha contra ele, de modo que este terá que fazer um esforço infinito já apenas para descobrir a tarefa, ou seja, que esta é a tarefa, uma fadiga da qual, não fosse assim, se estaria dispensado. Pensar sobre o simples, sobre o que a gente simples também sabe, é algo extremamente desanimador, pois, mesmo através do esforço mais extremo, a diferença como tal não se torna de nenhum modo óbvia para o homem dos sentidos. Não, o que é grandioso é glorioso de um modo bem diferente. Se se desconsidera essa pequena distinção, socraticamente engraçada e cristãmente preocupada ao infinito, entre ser algo assim como o que se costuma chamar sujeito - e ser um sujeito ou tornar-se um, e ser o que se é por se ter tornado isso: eis que se transformará na admirada sabedoria que a tarefa do sujeito consista em despir-se mais e mais de sua subjetividade, e em tornar-se mais e mais objetivo. Aí facilmente se vê o que esta orientação entende por ser um assim chamado sujeito; que por meio disso entende, bem corretamente, o casual, o cheio de arestas, o egoístico, o bizarro etc., que todo ser humano pode ter em abundância. Que tais coisas devam ser descartadas, é claro que o cristianismo não nega, de jeito nenhum, pois jamais simpatizou com golpes de Labão. Mas a diferença é meramente esta, que a ciência quer ensinar que se tornar objetivo é o caminho, enquanto que o cristianismo ensina que o caminho é o tornar-se subjetivo, ou seja: no sentido verdadeiro, tornar-se sujeito. Para que isso não pareça uma disputa por palavras, fique dito que o cristianismo quer justamente potencializar a paixão ao seu extremo, mas a paixão é justamente a subjetividade, e objetivamente ela não existe de modo algum. De um modo curiosamente indireto e satírico, inculca-se com bastante frequência, embora os homens não acatem esse ensinamento, que a orientação da ciência é desorientação. Enquanto todos nós somos aquilo que se costuma chamar de sujeitos, e trabalhamos para nos tornarmos objetivos, algo em que muitas pessoas têm um sucesso bastante bestial, a poesia perambula por aí preocupada e corre atrás de seu objeto. Enquanto todos nós somos sujeitos, a poesia tem de se contentar com uma seleção muito parcimoniosa de sujeitos que ela possa utilizar; e, contudo, a poesia precisa mesmo é de subjetividades. Então por que ela não agarra o primeiro que achar, de nosso meio tão honrado? Ai, não, ele não presta, e se nada quer fazer além de tornar-se objetivo, nunca vai prestar para nada. Isso parece, contudo, realmente sugerir que ser um sujeito é bem outra coisa. Por que razão só alguns poucos se tornaram imortais, como amantes inspirados, só uns poucos como heróis magnânimos etc., se todos, em cada uma das gerações, foram assim obviamente sujeitos, como se ser um sujeito fosse alguma coisa assim tão óbvia? E, no entanto, ser um amante, um herói etc., está reservado, exclusivamente, à subjetividade, pois objetivamente não há como se tornar um desses. [VII 107] - E agora então o clero! Por que há certo protótipo de homens e mulheres piedosos para cuja venerável memória o discurso sempre retoma? Por que motivo o pastor não agarra de nosso honrado meio o primeiro que achar e faz dele um modelo, - nós somos todos, afinal de contas, aquilo que se costuma chamar de sujeitos. E, no entanto, a piedade reside, sim, precisamente na subjetividade; ninguém se torna piedoso objetivamente. Vê bem, o amor é uma determinação da subjetividade, e, contudo, os amantes são tão raros. Sim, nós dizemos corretamente (mais ou menos no mesmo sentido como quando se fala de ser assim um sujeito): havia um casal de amantes, há outro casal, domingo passado foram lidos os proclamas de dezesseis casais, na Stormgade mora um casal de amantes que não consegue se entender - mas quando a poesia explica/transfigura o amor de paixão em sua solene concepção, o nome que ela celebra nos leva, às vezes, de volta a alguns séculos atrás, enquanto que a vida cotidiana produz em nós um humor semelhante ao que em geral as alocuções fúnebres produzem - já que, é claro, a cada momento um herói é sepultado. É essa apenas uma chicana da poesia, que de resto constitui-se num poder amigável, numa consoladora quando nos eleva à contemplação do excelente, - de qual excelente? Ora, o da subjetividade. Assim, há algo então de excelente em ser uma subjetividade. - Vê só, a fé é, afinal, a mais alta paixão da subjetividade, mas presta bem atenção ao comentário dos pastores sobre quão raramente ela se encontra na comunidade dos fiéis (pois essa expressão, a comunidade "dos fiéis", é dita quase no mesmo sentido como quando se fala de ser um assim chamado sujeito); mas para por aí; não sejas tão irônico a ponto de inquirir mais, sobre quão raramente a fé talvez se encontre entre os pastores! Acaso é essa apenas uma estratégia astuta dos pastores, que, com efeito, têm se dedicado à cura das almas; arrebatando-nos para os seus ofícios divinos, enquanto que o desejo de suas almas anseia por aqueles transfigurados - quais transfigurados? Ora, aqueles que tiveram a fé. Mas a fé reside, afinal, na subjetividade - assim, há algo então de excelente em ser uma subjetividade. A direção objetiva (que quer transformar cada um em observador e, em seu máximo, em tal tipo de observador que, igual a um fantasma, seja facilmente confundido com o prodigioso espírito de épocas passadas), naturalmente, não quer ouvir nada nem saber de nada, a não ser o que tenha alguma relação com ela mesma. Quando alguém, no interior da pressuposição dada, tem a sorte de poder contribuir com uma ou outra informação relacionada a alguma nação talvez até então desconhecida, e que agora, portando sua bandeira, se há de juntar ao desfile dos parágrafos; quando, no interior da pressuposição dada, alguém está qualificado para apontar à China um lugar diferente daquele que até aqui ocupou na procissão sistemática, então ele é bem-vindo. [VII 108] Todo o resto é conversa fiada de seminarista; pois uma coisa é certa: que a direção objetiva que leva a tornar-se um observador é, no uso linguístico moderno, a resposta ética à questão a respeito do que eu deva fazer eticamente. (Ser observador, eis o ético! Dever sê-lo é a resposta ética - de outro modo, é-se forçado a admitir que não há qualquer questão sobre o ético e, portanto, tampouco uma resposta.) E supõe-se como certo que a história do mundo seja a tarefa assinalada ao nosso século dezenove, tão observador: a direção objetiva é o caminho e a verdade. Vamos, entretanto, com toda a simplicidade, esclarecer para nós mesmos uma pequena dúvida da subjetividade em relação à direção objetiva. Tal como as Migalhas, antes que se passasse a demonstrar in concreto o processo histórico universal da ideia, chamaram a atenção para uma pequena observação introdutória: o que significa, em última instância, que a ideia se torne histórica; assim também, devo agora deter-me numa pequena observação introdutória em relação à direção objetiva: como a ética teria de julgar, caso o tornar-se um sujeito não fosse a mais alta tarefa que se coloca a todo e qualquer ser humano. Como ela teria de julgar? Sim, ela teria, naturalmente, de desesperar, mas, o que se importa o sistema com isso? É consequente o bastante para não deixar a ética vir participar do sistema. A ideia histórico-universal concentra sistematicamente tudo, cada vez mais; o que um sofista disse certa vez, que poderia carregar o mundo todo numa casca de noz, agora parece que as modernas visões panorâmicas da história do mundo o realizaram: elas estão se tornando mais e mais compendiosas. Não é meu propósito apontar o cômico disso; ao contrário, por meio de vários pensamentos orientados à mesma meta, quero tentar deixar claro o que a ética e o ético têm a objetar contra toda essa ordem de coisas. Pois afinal em nossos dias a questão não está em que algum erudito ou pensador avulso se ocupe com a história do mundo; porém é toda a geração que clama pela história universal. Entretanto, a ética e o ético, por serem a base de apoio essencial da existência individual, têm uma exigência irrecusável sobre todo e qualquer indivíduo existente, uma exigência tão irrecusável, que, qualquer coisa que um ser humano realize no mundo, até a mais surpreendente, é de qualquer modo duvidoso se ele tinha ou não clareza do ponto de vista ético, quando a escolheu; e se ele esclareceu para si mesmo a sua escolha. [VII 109] A qualidade ética é ciosa de si mesma, e desdenha a quantidade, até a mais admirável. A ética vê, portanto, com olhos desconfiados todo saber histórico universal, dado que este facilmente se torna uma armadilha, uma distração estética desmoralizante para o sujeito deste saber, na medida em que a distinção entre aquilo que se torna e aquilo que não se torna histórico é dialético-quantitativa, motivo porque também a distinção ética absoluta entre bem e mal é neutralizada, em termos histórico-estéticos, na categoria estético-metafísica de "o grande", "o importante/significativo", à qual o malvado tem tanto acesso quanto o bom. No histórico-universal, outra espécie de fatores, que não são ético-dialéticos, desempenha um papel essencial: acasos, circunstâncias, aquele jogo de forças no qual a totalidade da vida histórica acolhe a ação do indivíduo, reformando-a, para transformá-la em algo de diferente, que não pertence diretamente a ele. Nem querendo o bem com o máximo de suas habilidades, nem querendo o mal com diabólica insensibilidade, um ser humano não tem garantia de tornar-se histórico-universal; mesmo em relação ao infortúnio, continua valendo que é preciso sorte para tornar-se histórico-universal. Graças a que, então, o indivíduo se torna histórico-universal? Visto eticamente, ele chega a isso graças a algo de casual. Mas a ética considera igualmente como antiética aquela transição na qual alguém abandona a qualidade ética para experimentar, ardentemente, ansiosamente etc., o outro quantitativo. Uma época e um ser humano podem ser imorais de diferentes modos, mas é também imoral, ou, ao menos, uma tentação, envolver-se demais com o histórico-universal, uma tentação que pode facilmente levar a que na hora então em que se deve agir por si mesmo, também se queira ser histórico-universal. Ao se ocupar constantemente, como um observador, com aquele acaso, aquele accessorium [lat.: acessório], graças ao qual as figuras histórico-universais se tornam histórico-universais, facilmente se é levado a confundir esse accessorium com o ético e facilmente se é induzido ao erro de se preocupar, de maneira malsã, de modo adulador e covarde, com o casual, ao invés de, existindo, se preocupar infinitamente com o aspecto ético. Eis a razão, talvez, por que o nosso tempo fica insatisfeito quando deve agir: porque ficou mimado de tanto observar; eis talvez a razão de tantas tentativas infrutíferas para se tornar algo mais do que se é, conglomerando-se socialmente, na esperança de se impor pelo número ao espírito da historia. Mimado pela constante ocupação com o histórico-universal, só quer o importante e tão somente ele, só se preocupa com o casual, com O resultado histórico-universal, em vez de se preocupar com o essencial, o interior, a liberdade, o ético. [VII 110] Com efeito, o trato constante com O histórico-universal incapacita para o agir. O verdadeiro entusiasmo ético consiste em desejar ir ao extremo das próprias capacidades, mas também, exaltado num gracejo divino, jamais pensar se com isso se vai, ou não, levar a cabo alguma coisa. Tão logo o querer começa a entortar o olhar para o resultado, o indivíduo começa a se tornar imoral: a energia do querer fica entorpeci da, ou desenvolvida anormalmente num desejo ardente malsão, antiético, mercenário, que, mesmo que venha a realizar algo de grandioso, não o realiza eticamente; o indivíduo quer algo que é diferente do que é justamente o ético. Uma individualidade verdadeiramente grande e ética consumiria sua vida da seguinte maneira: desenvolver-se-ia ao extremo de suas capacidades; neste ponto, talvez produzisse um grande efeito no mundo exterior, mas isso não a ocuparia de modo algum, pois saberia que o exterior não está em seu poder e que, por isso, não importa nada, nem pro nem contra. Permaneceria na ignorância a respeito disso, para não ser retardada pelo exterior e não cair em sua tentação; pois o que um praticante do silogismo mais teme, uma inferência errônea, o ético igualmente teme: querer concluir ou fazer uma transição do ético para alguma outra coisa que não seja o [elemento] ético. Quereria permanecer então na ignorância sobre isso, por uma resolução do querer, e, ainda na morte, quereria não saber se sua vida teria tido qualquer outro significado além daquele de ter, eticamente, preparado o desenvolvimento de sua alma. Se então o poder que governa todas as coisas quisesse dispor as circunstâncias de modo a que essa pessoa se tornasse uma figura histórico-universal - bem, isso é algo sobre o quê ela deixaria para perguntar, só por brincadeira, lá na eternidade, pois lá sim sobrará tempo para as inquirições ligeiras da despreocupação. Com efeito, se uma pessoa não pode, por si mesma, por força de sua liberdade, por sua vontade de fazer o bem, tornar-se uma figura da história universal - o que é impossível precisamente porque é 'apenas' possível, i. é, talvez possível, i. é, dependendo de outras coisas - então não é ético preocupar-se com isso. E quando, em vez de renunciar a essa preocupação e liberar-se de sua tentação, uma pessoa a disfarça com a piedosa aparência de que é para o bem dos outros, então ela é imoral e quer, insidiosamente, insinuar, em suas contas com Deus, o pensamento de que Deus, afinal, sempre precisa um pouco dela. Mas isso é tolice; pois Deus não precisa de homem algum. Seria, aliás, também extremamente embaraçoso ser Criador se, afinal de contas, Deus viesse a precisar da criatura. Pelo contrário, Deus pode exigir tudo de qualquer ser humano, tudo e por nada, pois todo ser humano é um servo inútil, e o eticamente entusiasmado só difere dos outros pelo fato de que ele sabe disso, e por odiar e ter aversão a toda mistificação. - Quando uma natureza rebelde luta com seus contemporâneos, e tudo suporta, mas ao mesmo tempo exclama: "A posteridade, a história, certamente há de mostrar que eu falei a verdade", [VII 111] então os homens acreditam que ela é entusiasta. Ah, não, ela é apenas um pouquinho mais esperta do que os homens completamente estúpidos; ela não escolheu o dinheiro nem a garota mais linda ou alguma outra coisa desse tipo, ela escolheu a significação histórico-universal: sim, ela sabe muito bem o que está escolhendo. Mas em relação a Deus e ao ético, é uma amante enganadora; é, também, uma daquelas para quem Judas se tornou um guia (At 1,16): ela também vende seu relacionamento com Deus, ainda que não por dinheiro. E embora talvez reforme toda uma época, em virtude de seu zelo e seu ensinamento, ela confunde a existência pro virili [lat.: na medida de seus poderes], porque a própria forma de sua existência não é adequada a seu ensinamento, porque, ao eximir-se, estabelece uma teleologia que torna a vida sem sentido. A um rei, a um filósofo, pode talvez, em sentido finito, convir um sujeito de cabeça sagaz e talentosa que garanta os poderes do rei e afirme os ensinamentos do filósofo e mantenha todos submissos ao rei e ao filósofo, embora ele mesmo não seja nem um bom súdito nem um verdadeiro adepto. Mas, em relação a Deus, isso é um tanto estúpido. O amante enganador, que não quer ser fiel como amante, mas só como Entrepreneur [fr.: empresário] histórico-universal, não será fiel até o extremo. Não quer compreender que nada há entre ele e Deus a não ser o ético; não quer compreender que deveria entusiasmar-se por isso; não quer compreender que Deus, sem fazer nenhuma injustiça e sem negar sua essência, que é amor, poderia criar um ser humano dotado de capacidades como nenhum outro, colocá-la em um local afastado, e dizer-lhe: "Vivencia agora o humano, no esforço, como nenhum outro; trabalha de modo a que a metade do que faças já fosse suficiente para transformar uma época, mas tu e eu estamos combinados: todo o teu esforço não terá absolutamente nenhuma importância para nenhum outro ser humano, e, apesar disso, tu deves, compreendes, tu deves querer o ético, tu deves, compreendes, tu deves te manter entusiasmado, pois isso é o que há de mais alto". Uma coisa dessas o amante enganador não compreende; compreende menos ainda o que vem depois, quando uma individualidade em verdade eticamente entusiasmada, movida pela seriedade, se eleva pelo sagrado gracejo ao delírio divino, dizendo: "Digamos que eu tenha sido criado por causa de uma ideia caprichosa; esta é a brincadeira; contudo eu quero, com o máximo empenho, querer o ético; esta é a seriedade. Não quero nada, nada mais do que isso. [VII 112] Ó, insignificante importância, ó, brincalhona seriedade, ó, bem-aventurados temor e tremor! Feliz de quem pode cumprir as exigências de Deus sorrindo das exigências de seu tempo; feliz de quem pode desesperar por não ser capaz de atender essas últimas, contanto que ele não abandone Deus!" Só tal individualidade é ética, mas ela também entendeu que o histórico-universal é uma composição que não é diretamente dialética para o ético. Quanto mais a vida avança, e o existente, por suas obras, se deixa envolver nas teias da vida, tanto mais difícil fica separar o ético do exterior, e tão mais facilmente o [enunciado] metafísico parece ser reforçado, segundo a qual o exterior é o interior, e o interior, o exterior, cada um plenamente comensurável com o outro. Esta é, precisamente, a tentação, e por isso o ético se torna a cada dia mais difícil, na medida em que ele se situa na verdadeira exaltação da infinitude, que constitui o começo, onde ele se manifesta, por isso, mais claramente. Imaginemos um indivíduo que está no começo da vida. Ele resolve então, p. ex., dedicar toda a sua vida a perseguir a verdade e a realizar a verdade, uma vez conhecida. No instante da resolução, portanto, ele desdenha tudo, tudo, e entre outras coisas, é claro, a importância histórico-universal. Mas, e se, pouco a pouco, uma grande importância surgir como fruto de seu trabalho? Sim, se ela vier como fruto de seu trabalho - mas isso ela nunca faz. Se ela chega, então é a Providência quem a acrescenta ao seu empenho ético consigo mesmo, e, por conseguinte, não é o fruto de seu trabalho. Ela é um pro que deve ser considerado como uma tentação, tal como qualquer contra. É a mais perigosa de todas as tentações, e muito início glorioso com a exaltação do infinito se amorteceu naquilo que, para o derrotado, seria um tenro abraço feminino. Voltemos, porém, ao começo. Com a verdadeira exaltação ética do infinito, ele tudo desdenha. Em fábulas e contos de fadas, há uma lâmpada chamada de maravilhosa; quando a gente a esfrega, aparece o gênio. É brincadeira! Mas a liberdade, esta é a lâmpada maravilhosa; quando alguém a esfrega com paixão ética, Deus fica ao seu dispor. E eis que o espírito da lâmpada é um servo (então desejem-no, vocês, cujo espírito é um desejo), mas aquele que esfrega a lâmpada maravilhosa da liberdade torna-se um servo - o espírito é o Senhor. Esse é o começo. Tentemos ver agora se convém acrescentar algo de diferente ao ético. O que toma a resolução diz, pois: Eu quero - porém assim então quero também ter importância histórico-universal - aber [al.: porém]. Portanto, há um aber - [VII 113] e o espírito desaparece novamente, porque não se esfregou corretamente, e o começo não ocorre; mas se tiver ocorrido, ou tivesse sido feito corretamente, aí então todo e qualquer aber teria que ser, mais uma vez, na continuação, desdenhado, mesmo que a vida, do modo mais lisonjeiro e sedutor, tudo fizesse para forçá-lo. Ou o resoluto diz: Eu quero isso, mas quero, além disso, que meu esforço traga proveito a outras pessoas, porque, eu garanto a vocês, eu sou uma pessoa tão boa que gostaria muito de beneficiar, se possível, a humanidade inteira. Mesmo que o espírito aparecesse, ao se esfregar desse modo, acho, contudo, que se enfureceria e diria: "Homem tolo, não estou eu aqui, eu, o Todo-poderoso, e mesmo que os seres humanos (todos eles eu criei e contei, eu, aquele que conta até os fios de cabelo da cabeça de uma pessoa) fossem incontáveis como os grãos de areia do mar, eu não seria capaz de ajudar a todos, como estou te ajudando? Atrevido! Tens alguma coisa a exigir? Mas eu posso exigir tudo. Possuis algo que me poderias dar? Ou mesmo fazendo teu máximo, não estarás sempre devolvendo a mim a minha propriedade, e talvez em condição mais precária?" Portanto aqui está o iniciante - o mínimo vestígio de um aber, e eis que o começo malogra. Mas se é assim no começar, sua continuação deve lhe corresponder inteiramente. Se aquele iniciante começou bem, se além disso executou alguma coisa estupenda, se todos os seus contemporâneos estão muito em débito com ele e lhe agradecem, então é importante, para ele, que saiba entender, na brincadeira, o que é brincadeira. O sério é sua própria vida interior; o engraçado é que apraza a Deus ligar essa importância ao seu empenho, dele que é apenas um servo inútil. Quando uma miragem, em seus absolutos poderes transformadores, toma uma pessoa e a mostra, em grandeza sobrenatural, ao observador espantado: isso é um mérito daquela pessoa? E assim então, quando a Providência arranja as coisas de modo a que o esforço interior de uma pessoa seja magicamente refletido no jogo de sombras da história do mundo: isso é mérito dela? Penso que o verdadeiro ético a quem isso acontecesse, se fosse falar sobre isso, evocaria, de modo divertido, um Dom Quixote. Tal como aquele cavaleiro, talvez como compensação por querer ser histórico-universal, era perseguido por um gênio malvado que roubava tudo dele, assim também este precisaria de um gênio bondoso que executasse para ele o jogo ao contrário - pois apenas estúpidos mestres, e igualmente estúpidos gênios, cometem o engano de acreditar que são eles mesmos [que fazem isso] e se esquecem de si mesmos devido à sua grande importância na história do mundo. Quem não consegue entender isso é tolo; e a quem ousar dizer o contrário, tratarei de tornar ridículo, com o poder que tenho nesse instante nos assuntos do cômico. [VII 114] Não digo mais nada, pois talvez pudesse agradar à Providência retirar de mim este poder, ainda hoje, e o dar a outro, apenas para me testar. Talvez pudesse agradar à Providência deixar-me fazer o trabalho e aí então dirigir a gratidão de meus contemporâneos a um aprendiz de barbeiro, como se ele o tivesse feito. Isso eu não posso saber; sei apenas que preciso me manter no ético e não exigir nada, nada, e só me manter entusiasmado com minha relação ética para com Deus, a qual pode muito bem persistir, sim, poderia até se tornar mais interiorizada se Ele retirasse de mim esse dom. Portanto, talvez fosse mais esperto não antecipar mais nada, para que não zombem ainda mais de mim, se não der certo. Mas o ético jamais pergunta pela esperteza; só requer compreensão suficiente para descobrir o perigo - para então entrar nele com desembaraço, o que, aliás, parece bastante tolo. Oh, singular poder que reside no ético! Caso um soberano dissesse a seus inimigos: Fazei o que eu vos mando; se não, tremei diante de meu cetro, que se abaterá sobre vós de maneira terrível - a não ser que agradasse à Providência retirar ainda hoje de mim meu trono e fazer de um guardador de porcos meu sucessor! Por que tão raramente ouvimos esse "se", esse "a não ser que", essa última parte do discurso, que é a verdade ética? Pois que é verdade não há dúvida - e a arte consiste apenas em ser entusiasmado, ou, como disse outro autor: alegrar-se sobre 70.000 braças de água. E aquele que, existindo, ele mesmo, tiver compreendido a vida desse modo, não se deixará, de jeito nenhum, enganar pelo histórico-universal, que só para a visão nebulosa da especulação leva a algo totalmente diferente, que só depois ela entende com profundidade. É verdade que se diz que die Weltgeschichte ist das Weltgericht [al.: a história do mundo é o juízo do mundo], e a palavra “juízo" parece reivindicar que o enunciado contenha uma visão ética da vida. Para Deus talvez seja assim mesmo, pois em seu eterno conhecimento presente a tudo, Ele possui o meio que perfaz a comensurabilidade do exterior com o interior. Mas o espírito humano não consegue ver a história do mundo desse modo, mesmo que se desconsiderem as dificuldades e objeções, que não desejo comentar em detalhes agora, para que a atenção não se distraia do ético, mas apenas apontá-las e tocá-las, com tantas concessões quanto possível, a fim de não desviar o interesse para elas. [VII 115] a) Será preciso desconsiderar, algo que já foi sugerido, que o acesso ao tornar-se histórico-universal é quantitativamente dialético e que, portanto, o que se tornou histórico-universal já passou por esta dialética. Que tal distinção não valha para o Deus onisciente, não serve de consolo para o espírito finito; pois eu, aliás, nem ouso falar em voz alta o que tenho em mente, seria inaceitável no histórico século dezenove, mas talvez ouse sussurrá-lo ao ouvido do sistemático: há uma diferença entre o rei Salomão e o chapeleiro Jorgen - mas não conte isso a ninguém. Para Deus, a concepção histórico-universal é produzida de ponta a ponta por e com o seu consaber do segredo mais íntimo da consciência do maior e do menor dos seres humanos. Se um ser humano quiser assumir este ponto de vista, então ele será um louco; mas se não o quiser, então terá que se contentar com uma visão geral que busca por pontos relevantes, e eis por que justamente a quantidade é o que decide. Que o ético esteja presente na história do mundo, como em toda parte em que Deus está, não se nega com isso, mas sim que um espírito finito possa vê-lo em verdade; querer vê-lo assim constituiria um empreendimento arriscado e presunçoso, que facilmente poderia terminar com o observador perdendo o ético que há nele mesmo. Para estudar o ético, todo ser humano é reportado a si mesmo. Ele próprio é, nessa questão, mais do que suficiente para si mesmo; sim, ele é o único lugar onde ele pode, com segurança, estudar esse assunto. Já outra pessoa, com quem ele convive, ele só pode entender com clareza pelo exterior e, nessa medida, sua opinião já se envolve em questões duvidosas. Mas quanto mais complicada for a exterioridade em que a interioridade ética deve se refletir, mais difícil se tornará a observação, até que por fim ela se extravia em algo totalmente diferente, no estético. Por isso, a concepção da história do mundo facilmente se torna um assombro meio poético, ao invés de uma orientação ética. Mesmo para um juiz, quanto mais importantes são as partes em disputa, mais difícil se torna aclarar a questão. E, no entanto, o juiz não vai pronunciar um juízo ético, mas apenas um juízo civil, em que culpa e mérito se tornam dialéticos por uma consideração quantitativa das maiores ou menores relações das circunstâncias e de uma consideração casual do resultado. Essa possível confusão alcança uma abrangência muito maior na visão histórico-universal, em que frequentemente parece que o bem e o mal são quantitativamente dialéticos e que há certa magnitude de crime e astúcia ligados a milhões e à nação; em que o ético fica tão acanhado quanto um pardal numa dança de grous. [VII 116] Mas olhar sempre de novo para esse incessante quantificar é prejudicial para o observador, que facilmente perde a pureza singela do ético, o qual, em sua santidade, desdenha infinitamente todo quantificar, que é o prazer dos olhos do homem dos sentidos e a folha de figueira do homem da sofística. O ético, como o absoluto, é infinitamente válido em si mesmo, e não precisa de Staffage [ingl.: cenário decorado] para se dar uma melhor aparência. Mas tal cenário decorado duvidoso (quando quem deve ver não é um olhar de um onisciente, mas um olhar de um humano), é exatamente o histórico-universal, onde o ético, tal como a natureza, de acordo com as palavras do poeta, serve knechtisch dem Gesetz der Schwere [al.: subjugado à lei da gravidade], já que a diferença da quantidade é também uma lei de gravidade. Quanto mais pudermos simplificar o ético, tanto melhor o veremos. Portanto não é, como enganosamente se quer imaginar, que se veja melhor o ético na história do mundo, onde tudo gira ao redor de milhões, do que na vida simples própria da pessoa. Ao contrário, é justamente o oposto; cada um o vê melhor em sua própria vida, simplesmente porque não faz nenhuma confusão entre o estofo material e o referente à massa. O ético é a interioridade, e quanto menor for o âmbito em que é visto, desde que seja visto de fato em sua infinitude, tanto melhor será visto; enquanto que aquele que pensa que precisa ter o cenário decorado histórico-universal para, com isso, como acha, vê-lo melhor, mostra, com isso mesmo, que é eticamente imaturo. Aquele que não capta a validade infinita do ético, mesmo que este tenha a ver só com ele em todo o mundo, não capta propriamente o ético; pois que este tenha a ver com todos os seres humanos é algo que, em certo sentido, nem é da sua conta, a não ser como uma sombra que segue a claridade ética na qual ele vive. Com a compreensão do ético dá-se o mesmo que com o cálculo: aprende-se a calcular melhor calculando com números abstratos; quando se começa com os concretos, facilmente o interesse se volta para alguma coisa diferente. Na história universal as contas são feitas com quantidades concretas e com grandezas imensamente grandes, o que, por sua multiplicidade, estimula de múltiplas formas a multiplicidade no observador. Mas o homem dos sentidos tem uma grande predileção por este quantificar e, por isso, para mais uma vez lembrar a comparação e a sua disparidade, aqui não é, de modo algum, o iniciante que calcula com números abstratos, dado que, ao contrário, é sinal de verdadeira maturidade ética renunciar ao que talvez bem cedo e também bastante naturalmente se deseje com ardor: calcular com quantidades histórico-mundiais. Tal como um nobre grego [VII 117] (Empédocles - Plutarco) disse que se deve jejuar em relação ao mal, vale também para a verdadeira concepção ética que esta deve ser abstinente e sóbria; que não se cultive o desejo de ir, de modo histórico-universal, ao banquete, e de se inebriar com o assombroso. Essa abstinência, porém, é por sua vez, eticamente entendida, o mais divino dos gozos e o alívio da eternidade que conforta o coração. Num contexto histórico-universal, ao contrário, um homem é facilmente tentado a admitir que, se ele é um ser humano sem importância, não tem nenhuma importância infinita caso ele falhe; e, se ele for um ser humano muito grande, essa grandeza pode transformar seu mau passo em alguma coisa boa: Mas mesmo que o indivíduo observador não esteja desmoralizado desse modo, se o ético for, ainda assim, confundido com o histórico-universal, de forma que se transforme em alguma outra coisa por concernir a milhões em vez de ter a ver com um só, outra confusão facilmente acontece, a saber, que o ético só encontraria sua concreção no histórico-universal, e que só nessa concreção seria uma tarefa para os viventes. O ético não fica assim o elemento original, o mais original de todos, presente em todo ser humano, mas antes uma abstração do que é vivenciado histórico-universalmente. Observa-se a história do mundo e eis que cada época tem sua substância moral; fica-se objetivamente grandioso e, embora existindo, não se quer contentar-se com o assim chamado ético subjetivo - não, a geração que ora vive quer descobrir, já em sua vida vivente, sua ideia moral histórico-mundial e agir de acordo com isso. Ah, o que o alemão não faz por dinheiros - e o que o dinamarquês não fará depois que o alemão o tiver feito! Em relação ao passado, é fácil a ilusão dos sentidos que esquece e, em parte, não pode saber, o que pertence ao indivíduo e o que pertence àquela ordem objetiva das coisas, que é o espírito da história do mundo; mas em relação à geração que ora vive, e em relação a cada indivíduo singular, deixar que o ético se torne algo cuja descoberta requer um profeta com um olhar histórico-universal lançado para a história universal - isso é um achado raro, engenhosamente cômico. Afortunado século dezenove: se não aparecer tal profeta, [VII 118] então podemos encerrar o expediente, pois então ninguém saberá o que é o ético. Já é bem engraçado que o ético pareça tão pouca coisa, que seu ensino seja deixado de preferência para seminaristas e sacristães de aldeia; já seria ridículo se alguém quisesse dizer que o ético ainda não foi descoberto, mas ainda teria de ser descoberto. Entretanto, não seria loucura, se quisesse com isso dizer que o ético deveria ser descoberto pelo ato individual de se aprofundar em si mesmo e em sua relação para com Deus; mas que se exija um profeta, não um juiz, não, um vidente, um arruaceiro histórico-universal, que, ajudado por um olho fundo e um olho roxo, ajudado pela familiaridade com a história do mundo, talvez ajudado também pela borra de café e pelas cartas lançadas, descubra o ético, ou seja (pois essa é a moderna deixa para a ética desmoralizada), o que é que a época exige - isso é uma dupla produção de confusão, algo pelo qual quem gosta de rir há de sempre se sentir em dívida com os nossos sábios! É risível supor que uma coisa dessas seja o ético, risível que um vidente o descubra olhando para o histórico-universal, onde é tão difícil vê-lo e, finalmente, risível que o trato incessante com o histórico-universal tenha feito nascer esta conclusão. O que o homem mais estúpido, que fez sua confirmação numa casa de correção, consegue entender, vem a ser melhorado pela sabedoria catedrática até se tornar autêntica profundeza especulativa. Ah, enquanto o ilustríssimo Herr Professor, especulando, explica tudo o que existe, ele se esqueceu, na distração, de como ele mesmo se chama: de que é um ser humano, um puro e simples ser humano, e não um fantástico 3/8 de um §. Ele conclui o sistema; anuncia num parágrafo conclusivo que irá descobrir o ético, que esta geração, ele e eu incluídos, deve realizar... pois este ainda não foi descoberto! O quê? O ético, ou aquilo que a época exige? Ah, o ético é uma descoberta antiga; por outro lado, bem posso acreditar que aquilo que a época exige ainda não tenha sido descoberto, a despeito dos vários satisfatórios e altamente respeitáveis, embora tão somente promissores, ensaios de galimatias. Se alguém então disser que é um exagero capcioso, que aqueles que se ocupam com a história do mundo de bom grado permitem que seminaristas e sacristães de aldeia façam preleções sobre a ética popular, e que eles não têm nada a opor que a classe inferior, em especial, procure viver de acordo com essa, mas que o interesse histórico-universal só alude à superior, às tarefas de longe as mais elevadas; então essa resposta mostra, suficientemente, que não era nenhum exagero capcioso, pois se a segunda é superior, então vamos começar, quanto antes melhor, mas a desgraça é que provavelmente ela ainda não foi descoberta. E no que se refere às tarefas de longe as maiores, vamos falar com toda a simplicidade sobre elas, como um vizinho conversa com seu vizinho ao anoitecer. [VII 119] A afirmação geral de que a tarefa é de longe a maior ainda não é suficiente; para uma pessoa razoável, essa afirmação só seria encorajadora se também se tornasse claro que os dividendos para cada um dos participantes seriam maiores. Quando, assim, lá fora, no campo, onde a paz habita à sombra da ramagem, a pequena família (conforme o desejo piedoso daquele querido rei) dispõe de uma galinha sobre a mesa, e há mais que suficiente para os poucos: não é esta uma refeição abundante, em comparação com a grande refeição em que, decerto, um boi inteiro é servido, mas os participantes são tão numerosos que quase não há um naco para cada um? Ou quando aquele que no dia a dia ama o silêncio encontra, secretamente, o caminho enigmático para a solidão do abandonado, e aí acha tempo e ocasião para dizer a palavra breve que, mesmo assim, reconforta indescritivelmente: um orador desse tipo não produz um efeito tão grande, ou antes, um efeito infinitamente maior do que o produzido por aquele orador admirado, que é recompensado com nove gritos de hurra? E por quê? Porque este usa a deixa que a multidão adora ouvir; portanto, não porque falou sabiamente, pois o barulho não permitia ouvir claro o que ele dizia, mas porque ele trouxe à baila uma expressão que qualquer imbecil pode usar; portanto, porque ele não era um orador, mas um assoprador. A distração especulativa se deixa explicar de forma apenas psicológica pelo trato constante com a história do mundo, com o passado. Em vez de corretamente prestar atenção a si mesmo, como aquele que vive no presente e tem o futuro diante de si, para assim ser guiado até poder psicologicamente reproduzir o momento individual, que é apenas um fator dentre outros na história do mundo, mistura-se tudo e se quer antecipar seu próprio passado - para então chegar a agir, muito embora pareça afinal bem fácil de entender que, quando alguém se tornou passado, então já terá agido. Só quando eu presto atenção acurada a mim mesmo, posso ser levado a me introduzir na maneira como uma individualidade histórica se comportou quando ainda vivia; e só assim o compreendo, quando em minha compreensão o mantenho vivo e não, como o fazem as crianças, quebro o relógio em pedacinhos para entender a vida dele, nem, como o faz a especulação, o transformo em algo totalmente diferente para entendê-lo. [VII 120] Mas dele, como alguém que já morreu, não posso aprender o que significa viver; preciso experimentá-lo por mim mesmo, e, por isso, preciso entender a mim mesmo, e não o contrário: depois de tê-lo mal-entendido de modo histórico-universal, seguir então adiante e deixar esse mal-entendido ajudar-me a compreender-me mal, como se eu, também, já estivesse morto. A individualidade da história do mundo, quando viva, provavelmente se socorreu da ética subjetiva, e então a Providência lhe deu de acréscimo a importância histórico-mundana, se é que teve alguma. (Um dos homens que aparecem com maior destaque e plenos de significação como figuras histórico-mundiais é decerto Sócrates. Como é o caso dele? Deixemos que o sistema, chegando depois, compreenda sua necessidade, a necessidade do fato de ele nascer, e de sua mãe ser parteira, a necessidade de seu pai ter recebido ordem de um oráculo para permitir à criança cuidar de si e nunca ser forçada a nada (que vida curiosa, quando isso é considerado como uma tarefa para um método necessário!), a necessidade do fato de ter sido casado, especificamente com Xantipa, de ter sido condenado à morte por uma maioria de exatos três votos - pois aqui tudo é necessário, e é bom que o sistema só tenha a ver com mortos; para um vivente, deve ser insuportável ser compreendido dessa maneira. Mas agora vejamos também, de modo menos sistemático e mais simples, como ele se comportava enquanto estava vivo, quando andava pela praça e caçoava dos sofistas, quando era um ser humano e, mesmo na talvez mais ridícula das situações que foi conservada a respeito dele (Cf. Antoninus philos. - ad se ipsum, vol. XI, § 28), quando este, já que Xantipa vestira as roupas dele e saíra para a rua com elas, teve que se enrolar com uma pele e, para o grande divertimento de seus amigos, assim apareceu na praça do mercado, ainda era, contudo, um ser humano e mesmo naquela pele não ficava tão ridículo quanto o ficaria mais tarde no sistema, ao aparecer fantasticamente drapeado com o rico dossel sistemático de um §. Falava Sócrates sobre o que a época exigia, concebia ele o ético como algo que um profeta, com um olhar histórico-universal, deveria descobrir ou tinha já descoberto, ou como algo a ser decidido por votação com bolas? Não, ele estava ocupado somente consigo mesmo, não sabia contar nem até cinco quando se tratava de contar votos (cf. Xenofonte), sua participação era imprestável, quando o que importava era formar um grupo envolvendo várias pessoas, para nem mencionar situações que envolvessem um ajuntamento histórico-universal. Ele cuidava de si mesmo - e aí então veio a Providência [VII 121] e acrescentou uma significação histórico-mundial à sua irônica autossatisfação. Que lástima que agora nos últimos dois mil anos não se tenha ouvido absolutamente nada da parte dele; só o deus sabe o que ele pensa sobre o sistema). Certa classe de gente percebeu corretamente isso, embora, de resto, estejam longe de encontrar o verdadeiro, dado que se dirigem ao extremo oposto. São os zombeteiros e os incrédulos, que acham que toda a história do mundo gira em torno de puras bagatelas, em torno de "um copo d'água". A especulação forma o extremo oposto, que quer fazer da individualidade histórica já sem alma uma determinação metafísica, uma espécie de denominação categorial para a relação de causa e efeito pensada de modo imanente. Ambos os lados estão errados. O zombeteiro é injusto com o ser humano; a especulação, com Deus. Em termos histórico-universais, o sujeito individual pode ser uma bagatela, mas o histórico-universal é, afinal de contas, algo acrescentado; em termos éticos, o sujeito individual é infinitamente importante. Toma uma paixão humana qualquer e relaciona-a ao ético no indivíduo: do ponto de vista ético, isso terá grande significado; do ponto de vista histórico-universal, talvez absolutamente nenhum ou talvez um significado muito grande, pois o histórico-universal, visto eticamente, entra em cena com um "talvez". Enquanto aquela relação entre paixão e o ético ocupa ao máximo o indivíduo existente (é isso que o zombeteiro chama de nada, e a especulação, especulativamente, ignora, com a ajuda da imanência), a Providência histórico-universal forma talvez um ambiente de reflexão para este indivíduo, por meio do qual sua situação de vida adquire uma importância histórico-universal de larga abrangência. Ele não a tem, mas a Providência a confere a ela. O zombeteiro ri e diz: Vê, tudo girava em torno do orgulho ferido, i. é, em torno de nada. Mas isso é falso, porque a relação do orgulho ferido com o ético não é, em termos éticos, indiferente, não é um nada; e o histórico-universal é algo completamente diferente, algo que não seguia diretamente dessa relação. Para a especulação, tudo acaba se misturando. Ela derrotou a zombaria e a incredulidade, não por liberar o ético do histórico-universal, mas por levar armas e bagagens num durcheinander [al.: atabalhoadamente], tudo subordinado a uma declamatória teoria da imanência. Mas a zombaria se vinga; [VII 122] longe de ter sido excluída, pode-se antes pensar que a especulação se trancou junto com ela - tão ridícula se tornou. A distração se vinga quando, na ética, a especulação quer que um indivíduo ora existente deva agir em virtude de uma teoria da imanência, i. é, que deva agir em virtude de um deixar de agir, pois a imanência é só para a observação, essencialmente e em verdade, só para Deus, e só na fantasia para ilustríssimos professores e seus familiares e amigos. Mas se é tão arriscado envolver-se com a observação da história do mundo, talvez a objeção seja devida à covardia e à preguiça, que estão, de fato, sempre prontas a retardar os entusiastas, neste caso, o alto voo dos histórico-universais, que bem sabem o quão arriscado isso é, mas, também por isso, se arriscam. De jeito nenhum! Se alguma coisa no mundo consegue ensinar um ser humano a se arriscar, esta coisa é o ético, que ensina a arriscar tudo por nada, a arriscar tudo, inclusive a renunciar à bajulação histórico-mundial - a fim de se tornar nada. Não, a objeção é magnânima justamente por ser ética; ela diz que o ético é, de modo absoluto e por toda a eternidade, o mais elevado, e que nem todo o que ousa já tem metade da vitória, pois há também uma ousadia atrevida em que muita coisa se perde. Além disso, uma façanha arriscada não se resume a uma palavra solene, não é o grito de uma interjeição, mas, sim, trabalho penoso; uma façanha arriscada, por mais temerária que seja, não é uma proclamação tumultuosa, mas uma iniciação silenciosa que sabe que não recebe nada adiantado, mas que aposta tudo. Ousa, portanto, diz o ético, ousa renunciar a tudo, inclusive também àquele tão distinto, porém enganoso, comércio com a observação histórico-mundial; ousa tornar-te absolutamente nada, tornar-te um indivíduo singular de quem Deus exige, eticamente, tudo, mas sem que tu te atrevas, por causa disso, a deixar de ser entusiasta - vê, isso é a façanha arriscada! Mas então tu também vais ganhar que Deus, por toda a eternidade, não vá mais poder te largar, pois a tua consciência eterna está apenas no ético: vê, essa é a recompensa! Ser um indivíduo singular, não é, em termos histórico-universais, absolutamente nada, infinitamente nada - mas, no entanto, esta é a única verdadeira e mais alta significação de um ser humano, e, assim, mais alta do que qualquer outra significação, que é uma miragem, decerto não em si e por si mesma, mas é sempre uma miragem quando pretende ser o supremo. b) Será preciso não levar em conta que a consideração histórico-universal, enquanto ato cognitivo, é uma aproximação (Mesmo que se tivesse que conceder tudo a Hegel, há uma questão preliminar que ele não respondeu: o que significa, afinal de contas [overhovedet], que a [VII 123] observação histórico-mundial seja uma aproximação? Ele desdenhou a intuição intelectual de Schelling (expressão de S. para o início), é verdade. Ele próprio disse, e isso tem sido frequentemente repetido, que seu mérito consiste no método, porém nunca disse de que modo este método se relaciona com a intuição intelectual, se aqui se requer, ou não, um salto outra vez. Tanto sobre o método, quanto sobre o iniciar do método, o que sempre se diz é apenas que se deve começar nele e com ele. Mas se um início desse tipo não deve ser apenas algo que nos ocorre [Indfald], então a reflexão precisa ter vindo antes, e a questão preliminar reside justamente nessa reflexão), sujeita à mesma dialética [VII 123] a que se sujeita toda disputa entre ideia e empiria, que, a cada instante, quer impedir o início e, uma vez iniciada, a cada instante ameaça com uma revolta contra o início. O material histórico-universal é infindável, e, por conseguinte, o limite é, necessariamente, de um jeito ou de outro, arbitrário. Embora o histórico-universal seja algo passado, é incompleto enquanto material para a observação cognitiva: ele se cria constantemente através de observações sempre renovadas e de pesquisas contínuas, que descobrem mais e mais, ou fazem descobertas que confirmam ou corrigem as anteriores. Tal como o número de descobertas nas ciências naturais aumenta com a maior precisão dos instrumentos, assim também aumenta no histórico-universal o número das descobertas quando se aguça mais a qualidade crítica da observação. Ai, se neste ponto eu pudesse revelar erudição! Se eu pudesse mostrar como a autorizada e, contudo, valore intrínseco [lat.: pelo seu valor intrínseco] bastante duvidosa ordenação hegeliana do processo histórico-universal peca por arbitrariedade e saltos, e como à China deveria ter sido atribuído [VII 124] outro lugar (De fato, não ficou ainda bem claro, em termos de história universal, onde é que a China encontra seu lugar no processo histórico-universal, no qual todo Privat-Docent (livre-docente) de anteontem encontra espaço abundante, clara e determinadamente. Ou seja, todos os livres-docentes são incluídos, e tão logo o método chegou aos nossos dias, a coisa deslancha, e todos nós recebemos um lugar. O método registra um único chinês, mas nem um único livre-docente alemão ficou excluído, especialmente nenhum prussiano, pois quem possui a cruz abençoa primeiro a si mesmo. Mas o sistema não está ainda totalmente pronto; [VII 124] talvez esteja na expectativa de conseguir, num sistemático um, dois, três, aproveitar-se do árduo trabalho de um verdadeiro homem da ciência para conseguir deixar alguns chineses extras à sua disposição. Desse jeito vai; de momento, parece decerto um pouco embaraçoso ter só um chinês, quando se tem tantos alemães), e um novo § deveria ter sido inserido, em função de uma tribo recentemente descoberta em Monomotapa (Reino do sudoeste africano), se eu pudesse mostrar que o método hegeliano se apresenta quase como uma tolice, quando deve ser aplicado num detalhe particular: então eu talvez pudesse satisfazer um ou outro leitor. Ou seja, o interesse em ordenar o histórico-universal continuaria essencial, mas o que eu diria sobre Monomotapa causaria impressão, tal como o Jerônimo fica impressionado com o que seu mestre-escola diz, em Julestuen, sobre a fênix, ave que vive na Arábia. Mas querer considerar todo o interesse histórico-universal, quando ele não busca, como um enamorado, interpretar com cientificidade filológica, desinteressadamente, uma particularidade da história do mundo, por amor do saber e do conhecimento como tais, mas quer, especulativamente, contribuir para confundir a tarefa da ética para o indivíduo singular com a tarefa histórico-mundial para o gênero humano, e, ainda mais, quando esse interesse quer ser o interesse de qualquer um - querer considerá-lo como curiosidade imoral e neurastênica, certamente seria uma detestável estreiteza ética. Somente uma pessoa muito limitada, ou alguém que, astuciosamente, quer evitar sentir-se atingido, poderia pensar, neste ponto, que sou um vândalo que pretende violar a paz da lavoura da ciência e deixar o rebanho perder-se; que sou um lazarone que, à frente de leitores de jornais e vagabundos com direito a voto quer, numa revolta da plebe, roubar do tranquilo homem da ciência sua propriedade legalmente adquirida através de seu afortunado talento e de seu resignado labor. É verdade que há muitos, muitos, que possuem mais do que eu no mundo do espírito, mas não há nenhum que, mais orgulhosamente e com mais gratidão ao deus, acredite que no mundo do espírito há uma segurança eterna da propriedade, enquanto que os patifes ficam lá fora. Mas quando uma geração, en masse, quer mostrar sua incompetência de modo histórico-universal, quando, desmoralizada por isso, tal como se jogasse na loteria, rejeita o bem supremo, quando uma especulação não quer ser isenta de interesse, mas causa dupla confusão, primeiro por saltar por cima do ético, e em seguida por propor algo histórico-universal como sendo a tarefa ética para os indivíduos - então a própria ciência aprecia que se diga algo a respeito. Não, louvada seja a ciência, louvado todo aquele que espanta a criação de seu santuário. [VII 125] O ético é e sempre será a mais alta tarefa atribuída a qualquer ser humano. Pode-se exigir também de um cultor da ciência que ele se tenha compreendido a si mesmo eticamente, antes de se dedicar à sua área de estudo, que continue a compreender a si mesmo eticamente durante todo seu trabalho, porque o ético é a respiração eterna e, em meio à solidão, a comunhão reconciliadora com todo ser humano. Mas então mais nenhuma palavra, a não ser de admiração para aqueles que se distinguiram, e de encorajamento para os que se esforçam. O tranquilo homem da ciência não perturba a vida; está eroticamente perdido em sua gloriosa ocupação. Se, ao contrário, um homem da ciência tumultuário quiser forçar seu caminho nas esferas da existência e aí confundir o que é o sentido da vida em sua totalidade, o ético, aí então, enquanto homem da ciência, ele não será um amante fiel, e aí a ciência o entregará ao tratamento cômico. Só uma pessoa limitada poderia achar que a objeção que lembra que a observação histórico-universal é uma aproximação teria sua origem na covardia e na preguiça, que recuam diante do trabalho irrealizável. Se a orientação para esta meta é o que há de mais alto, e o medo é só do trabalho enorme, então a objeção não é digna de atenção. Mas a objeção é ética; por isso, é magnânima, e, por isso, com toda a sua humildade, ela não erra sua meta e seu alvo, que são, justamente, o que há de mais alto. A objeção diz: o ético é a única certeza, concentrar-se nela é o único saber que no momento derradeiro não se transforma numa hipótese, estar nela é o único saber garantido, onde o saber é garantido por alguma outra coisa. Querer estar eticamente envolvido com a história do mundo é um mal-entendido ético, do qual a verdadeira ciência jamais é culpada. Mas enquanto em toda parte se faz pouco caso do ético, o que a vida ensina? Tal como eram poucos os amantes, tal como os crentes eram poucos, assim também, verdadeiras individualidades éticas são, talvez, poucas. Falstaff diz, em algum lugar, que já teve, uma vez, uma face honesta, mas o ano e a data em que isso se deu se obliteraram. Esse "uma vez" pode ser dito de inúmeras maneiras diferentes, todas relacionadas à obliteração; mas esse "uma vez" é, não obstante, uma expressão decisiva. Talvez queira o poeta ensinar-nos que é raro existir uma individualidade na qual a marca eterna da divindade, que se expressa no ético, mantenha-se, pura, clara e nitidamente, tal como uma vez já foi; uma individualidade para quem o tempo não se interpôs, como uma eternidade, [VII 126] entre ela e aquela impressão eterna recordada, mas para quem mesmo a mais longa das vidas, comparada à presença poderosa daquela eternidade, não é mais do que o dia de ontem; uma individualidade (evitemos falar à maneira estética, como se o ético fosse uma feliz genialidade) que, dia após dia, luta na contracorrente, a fim de conquistar aquela originalidade que era sua própria origem eterna! Quão rara, talvez, é uma individualidade para quem o ético preserva aquela santa castidade que é perfeitamente inacessível para qualquer determinação exótica, mesmo a mais remota, uma individualidade que a preserva, mas, não, falemos de maneira ética: que a conquista, que em vida conquista a pureza virginal da paixão ética, em comparação com a qual a de uma criança não passa de uma adorável brincadeira! Pois, no sentido estético, um ser humano tem uma originalidade, uma riqueza da qual ele pode até arriscar-se a perder uma parcela na vida, mas, no sentido ético, se ele a teve, e não conquista nada, então tudo está perdido. Se alguém disser que isso não passa de declamação, que só tenho um pouco de ironia, um pouco de pathos, um pouco de dialética com que trabalhar, responderei: Que outra coisa deve ter aquele que quer apresentar o ético? Deveria talvez tratar de colocá-lo objetivamente num § e sabê-lo de cor, geläufigt (fluentemente), para contradizer-se pela forma? Creio que a ironia, o pathos e a dialética são quod desideratur [lat.: o que se deseja], quando o ético é quod erat demonstrandum [lat.: o que era para ser demonstrado]. Contudo, não penso, de modo algum, ter esgotado o ético com minhas escrevinhações, pois ele é infinito. Mas tanto mais é de se admirar que o ético seja visto como tão insignificante, que se jogue fora o certo pelo incerto, jogue-se fora a mais certa de todas as coisas em troca das variadas tarefas da aproximação que acenam. Digamos que a história do mundo seja um espelho, e o observador se sente e olhe a si mesmo no espelho; mas não nos esqueçamos do cão que também queria olhar-se no espelho - e perdeu o que possuía. O ético é também um espelho, e aquele que ali se olha perde decerto alguma coisa, e quanto mais olha para si no ético, tanto mais perde - ou seja, perde todo o incerto, para conquistar o certo. Somente no ético há imortalidade e a vida eterna; entendida de outro modo, a História do mundo talvez seja um drama, uma peça teatral, que talvez continue - mas o espectador morre, e sua contemplação talvez tenha sido um importantíssimo - passatempo. c) Quando então essas coisas tiverem sido desconsideradas, e feita a concessão de que não se deve desistir do histórico-universal só porque o trato com ele [VII 127] é arriscado ou porque, covardemente, se teme o peso e a dificuldade da aproximação: vamos então considerar a história do mundo, mas não in concreto, para não nos tornarmos prolixos, o que, porém, mesmo quem só conhece a História de Kofod pode facilmente se tornar; mas sim in abstrato vamos ponderar: o que há para ser visto no histórico-universal. Se o histórico-universal deve ser alguma coisa, e não uma determinação altamente indeterminada, na qual, apesar do muito que se aprende sobre a China e Monomotapa, ficam, contudo, em última instância sem solução as seguintes questões: qual é a fronteira entre o individual e o histórico-universal, enquanto sempre surge um elemento perturbador, pelo fato de que um rei é incluído por ser um rei, e um ermitão porque, em seu isolamento, é uma importante individualidade; será que há alguma fronteira (ou será que as coisas andam especulativamente juntas, de modo que tudo esteja incluído e a história do mundo seja a história das individualidades); será que a fronteira é casual (relacionada apenas ao que se sabe até o momento); será que a fronteira é, talvez, dialeticamente arbitrária, relativa apenas ao que o ilustre professor arranjador leu ultimamente, ou por razão de parentesco literário tem que incluir - portanto: se o histórico-universal deve ser alguma coisa, tem de ser a história do gênero humano. Aqui reside um problema que, em meus pensamentos, é um dos mais difíceis: como, e até que ponto, o gênero humano resulta de indivíduos, e qual é a relação entre os indivíduos e o gênero humano? Não tentarei responder a essa questão, a resposta talvez falhasse, mas ao invés disso irei me divertir com a reflexão de que o panorama da história do mundo foi em sua maior parte concluído, ou que, pelo menos, foi bem adiantado, sem ter descartado essa dificuldade. Se a história do mundo é a história do gênero humano, segue-se, obviamente, que não chego a ver nela o ético. O que chego a ver tem de corresponder a essa coisa abstrata que é o gênero humano, tem de ser algo igualmente abstrato, enquanto que o ético, pelo contrário, está voltado para a individualidade e, nessa medida, calcula que cada indivíduo, propriamente e essencialmente, só em si mesmo compreenda o ético, pois este é seu consaber com Deus. Com efeito, enquanto, num certo sentido, o ético é infinitamente abstrato, num outro sentido ele é infinitamente concreto, e concretíssimo, porque ele é dialético para cada ser humano, justamente como este ser humano individual. Portanto, é em categorias puramente metafísicas que o observador vê a história do mundo, e a vê especulativamente, como a imanência de causa e efeito, fundamento e consequência. [VII 128] Se ele é ou não capaz de vislumbrar uma meta para todo o gênero humano, não vou decidir; porém essa meta não é a meta ética, que vale para os indivíduos, mas, sim, uma meta metafísica. À medida que os indivíduos participam da história do gênero humano por suas ações, o observador não vê essas ações retrospectivamente nos indivíduos, dirigindo-se ao ético, mas as vê como brotando dos indivíduos e dirigindo-se à totalidade. Eticamente, o que faz da ação uma ação do indivíduo é a intenção, mas isso é precisamente o que não entra na história do mundo, pois aí o que importa é a intenção histórico-universal. Na perspectiva histórico-universal, vejo o efeito; eticamente, vejo a intenção, mas quando, eticamente, vejo a intenção e compreendo o ético, então também vejo que todo e qualquer efeito é infinitamente indiferente, que é indiferente qual foi o efeito, porém assim, é óbvio, eu não vejo o histórico-universal. Na medida em que às vezes as categorias de causa e efeito também assumem uma espécie de reflexo de culpa e castigo, isso provém meramente do fato de o observador não se comportar de modo puramente histórico-universal, não conseguir despir-se totalmente do ético que há nele. Mas isso não é absolutamente nenhum mérito em relação ao histórico-universal, e o observador, atento a isso, deveria agora justamente interromper sua observação, para ficar claro para ele mesmo se não seria por acaso o ético o que ele deveria desenvolver em si próprio, do começo ao fim e até o seu máximo, em vez de querer, com uma porçãozinha dele, auxiliar a história do mundo. De modo histórico-universal, não se vê a culpa do individuo, tal como esta só se encontra na intenção, o que se vê é a ação exterior consumida pela totalidade e, nessa, trazendo para si a consequência da ação. Portanto, ele vê algo que é, eticamente, inteiramente confuso e absurdo, vê a ação bem-intencionada trazer consigo a mesma consequência que a mal-intencionada: o melhor dos reis e um tirano causando a mesma desgraça. Ou, mais corretamente, nem mesmo isso ele vê, pois isso é uma reminiscência ética; não, ele vê, o que eticamente é um escândalo, que, de modo histórico-universal ele, em última instância, tem que desconsiderar a verdadeira distinção entre bem e mal, como esta só se encontra no indivíduo e, a rigor, em cada indivíduo, apenas em sua relação com Deus. Vista de maneira histórico-mundial, torna-se falsa uma proposição que, vista eticamente, é verdadeira e é a força vital no ético: a relação de possibilidade que toda individualidade existente tem para com Deus. A gente não se preocupa com isso, na perspectiva histórico-universal, porque a gente entende tudo retroativamente e, por isso, esquece que os mortos, claro, uma vez também já foram vivos. [VII 129] No processo histórico-universal, tal como esse é visto pelos seres humanos, Deus não desempenha o papel de Senhor; tal como não se vê aí o ético, assim também não se vê Deus, de jeito nenhum, pois, se a gente não o vê no papel de Senhor, então a gente não o vê. No ético, ele realmente faz esse papel naquela relação de possibilidade, e o ético é para os existentes, para os viventes, e Deus é Deus dos viventes. No processo histórico-universal, os mortos não são chamados à vida, mas apenas a uma vida fantástico-objetiva, e Deus, num sentido fantástico, é a alma de um processo. No processo histórico-universal, Deus é metafisicamente cingido num espartilho em parte metafísico, em parte estético-dramático, que é a imanência. Que diacho de jeito de ser Deus! Um crítico dramático insiste com um poeta que tenha a gentileza de usar as individualidades que listou no cartaz, e extrair tudo o que puder delas; se forem moças, por exemplo, devem estar casadas antes de acabar a peça, senão, estará errado. Em relação ao passado, parece bastante correto que Deus tenha usado tais e tais individualidades; mas quando elas estavam vivas, quantas delas foram rejeitadas então? E as que foram utilizadas, com que frequência não tiveram que entender, eticamente humilhadas, que, diante de Deus, não vale nenhum privilégio da imanência, e que Deus não se constrange por convenções teatrais? Tiveram que entender o que aquele entusiástico eticista, que introduzimos como falante, entusiasmou-se ao entender que Deus não precisa delas. Não dizemos com isso que Deus deveria contradizer-se a si mesmo, ao criar e depois não querer usar; não, eticamente, haverá para cada um bastante a fazer, e aquela relação de possibilidade que é o entusiasmo do ético, em sua alegria por causa de Deus, é a liberdade de Deus, que, entendida corretamente, por toda a eternidade não se tornará, nem antes nem depois, imanência. A imanência histórico-mundial é sempre perturbadora para o ético e, no entanto, a visão histórico-mundial reside precisamente na imanência. Se um individuo vê algo ético, é o ético em si próprio, e um reflexo disso o induz a ver o que ele, contudo, não vê. Por outro lado, com isso, ele está, ou esteve, eticamente motivado para esclarecer-se a respeito de si mesmo. Pois seria incorreto concluir que: quanto mais alguém estiver desenvolvido eticamente, tanto mais verá o ético na história do mundo; não, é bem o contrário: quanto mais eticamente desenvolvido estiver, menos se preocupará com o histórico-universal. Que me seja permitido por meio de uma imagem tornar mais sensível a diferença entre o ético e o histórico-universal, a diferença entre a relação ética do indivíduo com Deus e a relação do histórico-universal com Deus. Um rei às vezes possui, como se sabe, um teatro real só para ele, [VII 130], mas essa diferença, que exclui os súditos, é casual. É diferente quando falamos de Deus e do teatro real que Ele tem para si mesmo. Portanto, o desenvolvimento ético do indivíduo é o pequeno teatro privado onde é Deus o espectador, mas onde, ocasionalmente, o próprio indivíduo também o é, embora ele deva ser, essencialmente, o ator, que, no entanto, não ilude, mas revela, assim como todo desenvolvimento ético consiste em revelar-se diante de Deus. Mas a história do mundo é o palco real para Deus, onde ele, não por acaso mas de modo essencial, é o único espectador, porque ele é o único que o pode ser. Para esse teatro o acesso não está aberto a nenhum espírito existente. Se alguém tem a pretensão de ser espectador ali, simplesmente esquece que ele próprio deve ser ator nesse pequeno teatro, deixando àquele real espectador e poeta [decidir] de que modo quer fazer uso dele no drama real, Drama Dramatum [lat.: drama dos dramas]. Isso se aplica aos viventes, e apenas a esses se pode dizer como deveriam viver; e só o compreendendo por si mesmo pode-se ser levado a reconstruir a vida de um falecido, se é que isso afinal deve ser feito, caso haja tempo para isso. Mas é uma inversão, quando, em vez de aprender da própria vida vivendo, [se quer] fazer os mortos reviverem, e prosseguir querendo, de mortos (que a gente concebe como jamais tendo vivido), aprender como se deveria (realmente, é incrível o quão invertido isso é) - viver - caso já se estivesse morto. d) Se não fosse este o caso com o tornar-se subjetivo, se isso não fosse a tarefa, a mais alta tarefa que é posta a todo ser humano, uma tarefa que, de fato, pode bastar até mesmo para a vida mais longa, dado que tem a singular propriedade de só terminar quando a vida termina - se não fosse este o caso com o tornar-se subjetivo: então restaria uma dificuldade, que, como me parece, precisaria pesar, como um quintal, sobre a consciência carregada de todo ser humano, de modo que esse desejasse estar morto antes hoje do que amanhã. A objeção não é mencionada em nossa época objetiva e liberal, que está azafamada demais com o sistema e com formas para apreciar a vida humana. A objeção é a seguinte: Como é que se pode, se se estabelece apenas o desenvolvimento da geração, ou do gênero - ou, contudo, se se estabelece isso como o que há de mais alto - como é que se pode explicar o desperdício divino, que usa a [VII 131] infinita multidão de indivíduos, geração após geração, a fim de mover o desenvolvimento histórico-universal? O drama histórico-universal avança de modo extremamente lento: por que Deus não se apressa, se isso é tudo o que ele quer? Que longanimidade pouco dramática ou, melhor, que prosaica e aborrecida prolixidade! E, se por acaso é só isso o que ele quer: que horror, desperdiçar tiranicamente miríades de vidas humanas. Mas o que é que o observador tem a ver com isso? O observador, de modo histórico-universal, vislumbra aquele jogo de cores da geração, tal como um cardume de arenques no mar: os arenques avulsos não têm muito valor. O observador olha fixamente, entorpecido, para dentro daquela imensa floresta da geração e, como alguém que não consegue ver a floresta por causa das árvores, ele vê apenas a floresta, e não vê uma única árvore. Arma sistematicamente as cortinas e usa povos e nações para esse propósito, seres humanos individuais nada significam para ele; a própria eternidade é drapejada com observação sistemática e absurdidade ética. A poesia desperdiça com suas criações, mas, longe de fazer abstinência ela mesma, não se atreve de jeito nenhum a pressupor a divina frugalidade da infinitude, que, ético-psicologicamente, não necessita de muitos seres humanos, mas, tanto mais, necessita da ideia. Não é milagre que aí então até se admire o observador, quando ele é nobre, bastante heroico, ou quiçá, mais corretamente, distraído o bastante para esquecer que é, também ele, um ser humano, um ser humano individual existente! Ele olha fixamente, firmemente, para o espetáculo histórico-universal, ele morre e vai embora; nada resta dele, ou ele mesmo fica para trás como um bilhete que o porteiro guarda na mão como um sinal de que o espectador já passou. - Se, contudo, o tornar-se subjetivo for a mais alta tarefa posta a um ser humano, então tudo se ordenará belamente. Disso se segue, em primeiro lugar, que ele afinal não tem nada a ver com a história do mundo, mas que, quanto a isso, deve deixar tudo para o poeta real; e, em seguida, que não há nenhum desperdício, pois ainda que os indivíduos fossem tão incontáveis quanto os grãos de areia do mar, a tarefa de tornar-se subjetivo é, afinal de contas, posta a cada um; e, por fim, com isso não se negou a realidade do desenvolvimento histórico-universal, que, reservado a Deus e à eternidade, tem ambas as coisas: seu tempo e seu lugar. e) Primeiro, portanto, o ético, o tornar-se subjetivo, depois, o histórico-universal. No fundo, mesmo a pessoa mais objetiva está em seu foro interior de acordo com o que aqui foi exposto, que o sábio deva primeiro compreender o mesmo que o simples compreende, e sentir-se obrigado à mesma coisa que obriga o simples - e que só então deve passar ao histórico-universal. Primeiro, portanto, o que é simples. Mas, naturalmente, isso é tão fácil para o sábio compreender (por que mais seria ele chamado de sábio?) que essa compreensão é apenas uma questão de um instante, e, no mesmo instante, ele já se encontra a todo vapor junto ao histórico-universal [VII 132] - e assim acontece, decerto, com meus simples comentários: ele os compreendeu instantaneamente e, no mesmo momento, já foi adiante. Se eu, porém, inda que por um só instante, pudesse conversar com o sábio - pois eu seria, com prazer, aquele simples que o interromperia com a seguinte observação, bem simples: Para o sábio, o mais difícil de compreender não seria precisamente o que é simples? O simples compreende diretamente o que é simples, mas quando é o sábio quem deve compreendê-lo, isso se torna infinitamente difícil. É uma afronta para o sábio atribuir-lhe tanta importância, ao ponto de que o mais simples se torne o mais difícil, apenas porque se supõe que exatamente ele deva lidar com o simples? De jeito nenhum. Quando uma criada se casa com um criado, tudo transcorre calmamente; mas quando um rei se casa com uma princesa, isso se torna um evento. Falar assim significaria inferiorizar o rei? Quando a criança fala espontaneamente, sua fala é, talvez, bastante simples, e quando o sábio diz exatamente a mesma coisa, talvez isso se torne o que há de mais genial. Assim se relaciona o sábio com aquilo que é simples. Quando, entusiasticamente, honra aquilo como o mais alto, aquilo o honra em retorno, pois é como se aquilo se tornasse diferente através dele, embora ainda permaneça a mesma coisa. Quanto mais então o sábio reflete sobre o que é simples (que se possa falar de uma ocupação mais demorada em relação a isso, já mostra que, contudo, o assunto tão fácil não é), mais difícil isso se torna para ele. Ele se sente, ainda, comovido por um profundo sentimento de humanidade que o reconcilia com a vida toda: que a diferença entre o sábio e o mais simples de todos é essa pequena diferença evanescente de que o simples sabe o essencial, e o sábio, pouco a pouco, vem a saber que o sabe, ou vem a saber que não o sabe, mas que o que ambos sabem é o mesmo. Pouco a pouco - e desse modo a vida do sábio também chega a um fim: quando, então, houve tempo para o interesse histórico-universal? Mas o ético não é apenas um saber, ele é também um agir que se relaciona com um saber, e um agir de tal natureza que sua repetição pode, de mais de uma maneira, tornar-se, às vezes, mais difícil do que o primeiro agir. Outra vez, novo adiamento - se se quer mesmo partout [fr.: de qualquer jeito] chegar ao histórico-universal. Aqui, porém, devo confessar, a cada um que insiste em se entregar ao histórico-universal, algo lastimável a meu respeito, algo a que talvez se deva que descubro tarefas que bastam para toda uma vida humana, enquanto que outros talvez consigam livrar-se delas antes que eu coloque o ponto final nesta frase. Olha só, a maioria das pessoas é, por natureza, gente amável; primeiro são crianças amáveis, depois, jovens amáveis, e, então, homens e mulheres amáveis. [VII 133] Isso, naturalmente, é bem outra coisa. Quando alguém tiver chegado naquele ponto em que tanto a própria esposa quanto todas as cunhadas digam, en masse: Só Deus sabe como ele é um homem extraordinariamente amável - bem, então sim ele pode, sem dúvida, achar tempo para dedicar-se ao histórico-universal. Infelizmente, esse não é o meu caso. Ai, os poucos que me conhecem sabem bem demais, e eu o confesso também por mim mesmo: eu sou um homem perdido e perverso. Isso é verdade até demais; enquanto toda aquela gente amável está, sem mais, prontinha para se ocupar com o futuro da história do mundo, eu sou obrigado, muitas vezes, a ficar sentado em casa, e a deplorar por mim mesmo. Embora meu pai esteja morto, e eu não mais frequente a escola, embora não tenha sido preso pelas autoridades públicas para uma reeducação social, percebi, contudo, a necessidade de me vigiar um pouquinho, ainda que, inegavelmente, eu preferisse muito mais ir passear em Frederiksberg e me ocupar com a história do mundo. Dá para entender: não tendo uma esposa para me dizer que só Deus sabe como eu sou um homem amável, eu é que tenho de lidar comigo mesmo. O único que me consola é Sócrates. Pois dele se conta que teria descoberto em si mesmo uma disposição para todo o mal; talvez até tenha sido essa descoberta o que o motivou a abandonar o estudo da astronomia, que o nosso tempo agora exige. De bom grado reconheço o quão pouco, aliás, me pareço com Sócrates. Seu conhecimento ético provavelmente o ajudou a fazer tal descoberta. Comigo o caso é outro; de fortes paixões e coisas semelhantes, tenho bastante material, e por isso me custa tanto extrair alguma coisa boa daí, com a ajuda da razão. (Com essas palavras, desejo recordar a esplêndida definição de virtude de Plutarco: "A virtude ética tem por matéria as paixões, e a razão por sua forma". Cf. seu pequeno escrito sobre as virtudes éticas). Então, para que não nos perturbemos pensando em mim, fixemo-nos em Sócrates, a quem as Migalhas também recorreram. Graças ao seu saber ético, ele descobriu que tinha a disposição para todo o mal. Vê, agora não dá mais para num "um, dois, três" chegar ao histórico-universal. Ao contrário, o caminho para o ético torna-se extraordinariamente longo, pois só começa quando se faz essa descoberta. [VII 134] Quanto mais profundamente alguém a fizer, mais coisas terá por fazer; quanto mais profundamente alguém a fizer, mais ético se tornará; quanto mais ético se tornar, menos tempo terá para o histórico-universal. É bem estranho que o que é simples possa ser tão extenso. Tomemos um exemplo da esfera religiosa (da qual a esfera ética está tão próxima, que elas continuamente se comunicam uma com a outra). O rezar é, afinal, uma questão extremamente simples; dever-se-ia pensar que é tão fácil quanto abotoar as próprias calças, e, se nada mais se colocar como obstáculo, poder-se-ia então em seguida partir para o histórico-universal. E, no entanto, que difícil! Intelectualmente, preciso ter uma noção inteiramente clara de Deus, de mim mesmo e de minha relação para com Ele, e da di ai ética da relação que é a da oração, de modo que eu não confunda Deus com qualquer outra coisa e, nesse caso, não reze a Deus; e para que eu não confunda a mim mesmo com alguma outra coisa, de modo que não seja eu quem reza; e, na relação da oração, eu conserve a diferença e a relação. Vê, pessoas casadas sensatas reconhecem que precisam de meses e anos de vida cotidiana em comum para aprender a conhecerem direito um ao outro, e, contudo, Deus é muito mais difícil de conhecer. Pois Deus não é algo de exterior, como o é uma esposa, a quem posso perguntar se neste momento está satisfeita comigo. Quando, na minha relação com Deus, me parece que é bom o que faço, e não fico prestando atenção com infinita desconfiança a respeito de mim mesmo, então é como se Deus também estivesse contente comigo, pois Deus não é algo de exterior, mas é a própria infinitude; não é algo externo que discute comigo quando faço algo errado, mas é, sim, a própria infinitude que não precisa de palavras de repreensão, mas cuja vingança é terrível - a vingança de que Deus absolutamente não exista para mim, apesar de eu rezar. E o rezar é também uma ação. Oh, Lutero foi realmente, no que tange a isso, um homem experiente, e consta que ele teria dito que nunca, nenhuma vez em sua vida, rezou tão ardentemente que, enquanto rezava, um ou outro pensamento perturbador não se tivesse intrometido. Portanto, poder-se-ia quase pensar que rezar é tão difícil quanto interpretar o papel de Hamlet, do qual consta que seu melhor ator teria dito que só uma vez esteve perto de interpretá-lo bem; e, no entanto, ele quereria devotar toda a sua habilidade e toda a sua vida a esse constante estudo. Não deveria a oração ser quase tão importante e significativa? [VII 135] Mas então tornar-se subjetivo é uma tarefa muito louvável, é um quantum satis [lat.: o suficiente] para uma vida humana. Ainda que eu tenha a triste necessidade de me apressar, como a esposa de Lot, mesmo a melhor das pessoas terá muito por fazer. Se, em relação a isso, eu fosse, de algum modo, capaz de servir a um indivíduo em meio a meus contemporâneos, meu serviço conteria uma referência à parábola das árvores que desejavam o cedro como rei, para descansar à sombra dele; do mesmo modo, nossa época quer ter uma sistemática árvore de Natal erguida, para descansar e relaxar após o trabalho; mas as árvores tiveram que se contentar com um arbusto espinhento. Se eu, não na qualidade de rei, mas como um humilde servo, me comparasse com esse arbusto, eu diria: sou tão infrutífero quanto ele; não há muita sombra e os espinhos são pontiagudos. Portanto, o tornar-se subjetivo deveria ser a mais alta tarefa posta a um ser humano, assim como a mais alta recompensa, uma eterna felicidade, só existe para a pessoa subjetiva ou, melhor, surge para quem se torna subjetivo. Além disso, o tornar-se subjetivo deveria dar à pessoa muito que fazer enquanto ela viver; então não ocorreria ao zeloso, mas só ao azafamado, terminar o que tinha por fazer na vida antes da vida terminar o que tinha a fazer com ele. E a este não seria lícito desdenhar a vida, mas, em vez disso, estaria obrigado a compreender que ainda não havia compreendido direito a tarefa da vida, já que, se não fosse assim, seguir-se-ia, como algo óbvio, que a tarefa da vida duraria tanto quanto a própria vida, isto é, a tarefa de viver. Portanto, se o indivíduo compreendesse que tornar-se subjetivo é a sua mais alta tarefa, então, ao executá-la, alguns problemas deveriam revelar-se a ele, problemas que, por sua vez, poderiam bastar completamente ao pensador subjetivo, tanto quanto os problemas objetivos que o pensador objetivo tem nas mãos bastam a este - que vai sempre mais além, jamais se repete, desprezando o aprofundamento da repetição no seu pensamento único, mas provoca assombro, quando ele primeiro é um sistemático, depois um historiador do mundo, e então um astrônomo, um veterinário, um inspetor de sistema hidráulico, um geógrafo etc. Que estranho! Mas por que não bastaria se alguém, a partir da sabedoria socrática que descobre a própria disposição para todo mal, antes de começar a se considerar realizado como uma pessoa amável, aprendesse a fazer uma descoberta semelhante: [VII 136] que estar pronto rápido demais é o maior de todos os perigos? Essa é uma observação muito edificante, que tem uma extraordinária virtude de estender a tarefa, de modo que nunca falte. Reflitamos sobre esse fato engraçado, que, enquanto de resto se louva e celebra a velocidade e a pressa, há um caso em que o prêmio é inversamente proporcional à velocidade. Em geral, a celeridade é elogiada, e, em alguns casos, é considerada como indiferente, mas, neste caso, ela seria até condenável. Quando, num exame escrito, são dadas quatro horas para que jovens o resolvam, não faz diferença se este ou aquele termina antes do prazo, ou se usam todo o tempo. Aqui, então, a tarefa é uma coisa, e o tempo outra coisa. Mas quando o próprio tempo é a tarefa, é um erro estar pronto antes do tempo. Suponhamos que se dê a uma pessoa a tarefa de entreter-se por um dia e que, por volta do meio-dia, tenha já terminado o entretenimento: nesse caso, sua celeridade não teria, de fato, nenhuma vantagem. Assim também, quando a vida é a tarefa. Estar realizado na vida, antes da vida ter-se realizado nele, significa, afinal, justamente, não ter realizado a tarefa. É bem assim que as coisas se dão. Acreditem em mim, pois também eu sou um poderoso, eu mesmo devo dizê-lo, embora, em geral, eu seja talvez colocado na classe dos seminaristas e bedéis de aldeia. Eu sou um poderoso, contudo, meu poder não é o de um dominador ou de um conquistador, pois o único poder que tenho é o de frear; porém, meu poder não é vasto, pois só tenho poder sobre mim mesmo, e nem mesmo este, se não me contiver a cada momento. Para pretender refrear diretamente meus contemporâneos, para isso não tenho tempo e, além do mais, penso que pretender refrear de modo direto os seus contemporâneos é como quando um passageiro de um carro, para pará-lo, segura o assento à sua frente: ele se determina numa direta relação com a contemporaneidade e, no entanto, quer refreá-la. Não, a única coisa a fazer é sair do carro e refrear-se a si mesmo. Se se desembarca do carro (e, especialmente em nosso tempo, quando se está atualizado, sempre auf der Eisenbahn [al.: na estrada de ferro]), e jamais se esquece de que a tarefa consiste no refrear, já que a tentação é terminar rápido demais, então nada é mais certo do que o fato de que a tarefa se prolonga pela vida toda. É impossível que a falha esteja na tarefa, pois a tarefa, afinal de contas, consiste justamente em que ela se prolongue. Ser considerado um seminarista e um filho serôdio é um bom sinal, pois seminaristas e filhos serôdios são considerados cabeças lentas. [VII 137] Aqui seguem então alguns exemplos que, com toda brevidade, mostram como o problema mais simples se transforma, quando paramos, no mais difícil, de modo que não haja nenhuma razão para eleger, apressadamente, a astronomia, a ciência veterinária e coisas desse tipo, quando [ainda] não se entendeu o simples. A brevidade aqui não pode ser um obstáculo, pois os problemas não foram resolvidos. P. ex., o morrer. No que tange a isso, sei o que as pessoas em geral sabem: que se tomar uma dose de ácido sulfúrico, então eu morro, do mesmo modo que se me atirar na água ou dormir respirando gás carbônico etc. Sei que Napoleão sempre carregava veneno consigo, que a Julieta de Shakespeare tomou o veneno; que os estoicos consideravam o suicídio um ato corajoso e que outros o consideram como covardia; que alguém pode morrer por causa de uma insignificância ridícula, de modo que o mais sério dos homens não pode deixar de rir da morte; que se pode evitar a morte certa etc. Eu sei que o herói trágico morre no quinto ato, e que a morte aí obtém uma realidade infinita no pathos, mas não a tem quando morre um engarrafador de cerveja. Sei que o poeta faz variações na disposição de ânimo com a concepção da morte, até chegar ao cômico; eu me obrigo a produzir, em prosa, a mesma diversidade de efeitos no ânimo. Eu sei, além disso, o que o clero costuma dizer; conheço os temas geralmente tratados em funerais. Se não há nenhum outro obstáculo antes de passar para a história do mundo, então já estou pronto; só preciso comprar algum tecido preto para o hábito clerical, e então irei proferir encomendações tão bem quanto qualquer clérigo ordinário, pois, que eles, com um peitoral de veludo, o fazem de modo mais elegante, isso eu admito de bom grado, porém essa diferença não é essencial, tampouco como a diferença entre um carro funerário de cinco ou de dez táleres do banco real. Mas eis que, a despeito desse conhecimento quase extraordinário, ou completude de saber, não consigo, de forma alguma, encarar a morte como algo que eu já tenha compreendido. Antes, portanto, de passar para a história do mundo, sobre a qual ainda devo, necessariamente, dizer sempre: sabe Deus se tal coisa, de fato, te diz respeito; me parece que seria melhor refletir a respeito: para que a existência não zombasse de mim se eu me tornasse tão erudito a ponto de ter esquecido de compreender o que há de acontecer a mim e há de acontecer a todo ser humano algum dia - algum dia, mas o que estou dizendo! - suposto que a morte seja traiçoeira o bastante para chegar amanhã! Já essa incerteza, se deve ser compreendida e firmemente sustentada por um existente e, precisamente porque é incerteza, deve ser pensada como inerente a tudo [VII 138], incluída até mesmo em meu iniciar com a história do mundo, de forma a que eu esclareça para mim mesmo se estou iniciando algo que valeria a pena iniciar caso a morte chegasse amanhã, já essa incerteza dá origem a dificuldades inacreditáveis, para as quais nem o orador está atento, se ele acha que pensa sobre a incerteza da morte e, no entanto, se esquece de pensar a incerteza incluída naquilo que ele está dizendo sobre a incerteza, quando, emocionado, fala tremendo sobre a incerteza da morte e acaba por encorajar uma proposta para a vida como um todo e, portanto, acaba tendo esquecido, essencialmente, a incerteza da morte, já que, de outro modo, sua proposta entusiástica para a vida como um todo teria que se fazer dialética em relação à incerteza da morte. Pensar esta incerteza de uma vez por todas, ou uma única vez por ano, nas matinas da manhã do ano-novo, é naturalmente absurdo, e não é, de modo algum, pensar tal coisa. Se aquele que o pensa deste modo também explica a história do mundo, pode talvez ser esplêndido o que ele diz da história do mundo, mas o que ele diz sobre a morte é bobagem. Se a morte é sempre incerta, se sou mortal: então isso significa que essa incerteza não pode ser entendida de um modo geral, se eu também não for um tipo assim de ser humano em geral. Mas isso, porém, eu não sou, isso é algo que só pessoas distraídas o são, por exemplo, Soldin, o vendedor de livros. E se eu o for ainda em meu início, a tarefa da vida consiste, de fato, em tornar-se subjetivo, e no mesmo grau, a incerteza se torna mais e mais dialeticamente penetrante em relação a minha personalidade; portanto, torna-se cada vez mais importante para mim pensando-a introduzi-la em cada momento de minha vida, pois, estando sua incerteza presente a cada momento, esta incerteza só pode ser vencida por meu ato de vencê-la a cada momento. Se, pelo contrário, a incerteza da morte for alguma coisa em geral, então o meu morrer será também alguma coisa em geral. Talvez o morrer seja também algo em geral para os sistemáticos, para gente distraída; para o falecido vendedor de livros Soldin, o morrer deve ter sido uma coisa em geral: "Quando estava para se levantar de manhã, ele não sabia que [já] estava morto". Mas para mim, que eu morra não é, de modo algum, uma coisa em geral; para os outros, o meu morrer é uma coisa desse tipo. Eu não sou, de jeito nenhum, para mim, tal coisa em geral; talvez para os outros eu seja tal coisa em geral. Mas se a tarefa consiste em tornar-se subjetivo, então todo sujeito torna-se, para si mesmo, exatamente o oposto de tal coisa em geral. Parece-me também que é embaraçoso ser tanta coisa para a história do mundo e então, em casa, consigo mesmo, ser, para si mesmo, tal coisa em geral. [VII 139] Já é bastante embaraçoso quando um homem extraordinariamente importante na assembleia popular vai para casa e para junto de sua esposa e, na frente dela, ele é apenas tal coisa em geral; ou ser um Diedrich Menschenschreck histórico-universal e então, lá em casa, ser - bem, prefiro não dizer mais nada. Mas é ainda mais embaraçoso estar em tais maus termos consigo mesmo e, o que é pior, permanecer ignorante sobre isso. O nobilíssimo devoto da história do mundo não pode, contudo, negar-me uma resposta à questão sobre o que é morrer, e, no mesmo momento em que ele responder, a dialética iniciará. Ele que dê a razão que quiser para não se demorar mais em tais pensamentos; não adianta, porque a razão dada se tornará dialética para que se veja o que ela é essencialmente. Então eu teria que perguntar se é de algum modo possível ter uma ideia da morte, se a morte pode ser antecipada e, anticipando [lat.: sendo antecipada], ser vivenciada numa apresentação, ou se ela é apenas quando efetivamente ocorre; e, já que seu ser real é um não ser [eu teria que perguntar], se ela, portanto, é apenas quando não ocorre; em outras palavras, se a idealidade pode, idealmente, vencer a morte ao pensá-la, ou se a materialidade sai vencedora na morte, de modo que um ser humano morra como um cachorro, enquanto que a morte só poderia ser superada pela representação que o moribundo tem sobre ela, no momento da morte. Essa dificuldade pode também ser expressa da seguinte maneira: se é de tal modo que o vivente nem possa aproximar-se da morte, já que, experimentando, ele não pode se aproximar o bastante sem se tornar, comicamente, vítima de seu próprio experimento; e, experimentando, não pode frear, mas nada aprende da experiência, já que não pode retomar para fora da experiência e tirar seu proveito mais tarde, porém fica preso à experiência? Agora, se a resposta for que a morte não pode ser captada numa representação, o assunto não está, com isso, de modo algum, decidido. Uma resposta negativa, um Não, precisa ser dialeticamente definida tão completamente quanto uma resposta positiva, e apenas uma criança e uma pessoa simplória ficariam satisfeitas com: das wei man nicht [al.: isso não se sabe]. A pessoa que pensa quer saber mais, não positivamente, é claro, sobre isso que, segundo nossa suposição, só pode ser respondido negativamente, mas quer, mesmo, que fique dialeticamente esclarecido que se tem de responder com um Não, e essa elucidação dialética estabelece sua resposta negativa em relação a todos os outros problemas da existência, de modo que não faltarão dificuldades. [VII 140] Caso se responda com um Sim, então fica a pergunta sobre o que é a morte, e o que ela significa para o vivente, como a representação da morte tem de transformar toda a vida de uma pessoa quando essa, para pensar a incerteza dela, tem de pensá-la a cada momento, para, assim, preparar-se para ela; e o que significa preparar-se para ela, já que aqui, outra vez, se diferencia entre sua vinda real e a representação dela (uma distinção que parece fazer de toda a minha preparação algo insignificante, já que aquilo que realmente vem não é o mesmo que aquilo para o que eu me preparei; e, caso seja a mesma coisa, então, afinal, a preparação, quando completada, é a própria morte), e já que ela pode chegar no mesmo momento em que eu inicio a preparação; pergunta-se por uma expressão ética para o significado da morte, por uma expressão religiosa para a vitória sobre ela; requer-se uma palavra liberadora, que elucide seu enigma, e uma palavra vinculante; com a qual o vivente se proteja contra a representação contínua da morte, pois irreflexão e esquecimento decerto não ousamos, afinal de contas, recomendar abertamente como sabedoria de vida. E, além disso, que o sujeito pense sobre sua morte é uma ação. O fato de um ser humano em geral, um homem distraído como o livreiro Soldin, ou um sistemático, pensar na morte em geral, não é, por certo, uma ação; é só uma coisa assim em geral, e, o que uma tal coisa venha a ser, no fundo não dá bem para dizer. Se, porém, o tornar-se subjetivo é a tarefa, então, para o sujeito individual, o pensar-sobre-a-morte não é, de modo algum, uma tal coisa em geral, mas sim uma ação, pois o desenvolvimento da subjetividade consiste precisamente nisso, em que, agindo, ele se reelabore a si mesmo em seu pensar sobre sua própria existência, e, portanto, que ele efetivamente pense o pensado realizando-o, e, portanto, que ele não pense num momento qualquer: agora, tu deves prestar atenção a todo momento - mas sim que a todo e qualquer momento ele preste atenção. Aqui tudo se torna agora cada vez mais subjetivo, o que é natural quando o que está em jogo é o desenvolver a subjetividade. - Nessa medida, parece que a comunicação entre os seres humanos está entregue a mentiras e enganos, se alguém quiser; pois basta que uma pessoa diga: "Isso eu fiz", e não podemos ir mais adiante. Está bem, e daí? E se ela, não obstante, não o tiver feito? Sim, o que é que tenho a ver com isso, pior para ela. Quando se trata de algo objetivo, pode-se controlar melhor; se, por exemplo, alguém dissesse que Frederico VI era imperador da China, então dir-se-ia ser mentira. Quando, ao contrário, alguém fala sobre a morte, do que tem pensado sobre a morte e que tem pensado sobre sua incerteza, por exemplo, daí não se segue que ele, realmente, o tenha feito. Com certeza! Há, porém, um modo ainda mais ardiloso de descobrir se está mentindo. É só deixá-lo falar: se ele for um impostor, irá se contradizer a si mesmo exatamente quando der as mais solenes garantias. [VII 141] A contradição não se encontra diretamente; não, ela reside no fato de o próprio enunciado não conter em si a consciência daquilo que o enunciado declara diretamente. Objetivamente compreendido, o próprio enunciado pode ser direto; mas o homem tem, apenas, este defeito: ele recita de cor. (Basta que se preste atenção à presença reduplicada do pensamento em cada palavra, em cada frase intercalada, na digressão, no momento descuidado da imagem e da comparação, se se quer ter o trabalho de conferir se uma pessoa está mentindo - contanto que, então, escrupulosamente, se preste atenção a si mesmo; pois a habilidade de prestar atenção desse modo se obtém refreando-se a si mesmo; então se obtém esta habilidade inteiramente grátis, e geralmente não se tem vontade de lhe dar um uso particular). Que ele também transpire e bata na mesa, não demonstra que não esteja recitando algo decorado - mas demonstra apenas que é muito tolo, ou que ele mesmo também tem em segredo consciência de recitar algo apenas decorado. Pois, com efeito, é muito estúpido supor que o recitar de cor produza emoção em alguém, já que a emoção é algo interior e recitar de cor é algo exterior, equivalente a esvaziar a bexiga; e é um blefe bem medíocre querer esconder a própria carência de interioridade batendo na mesa. Olha, quando o morrer é posto, desse modo, em relação com toda a vida do sujeito, eu estou muito longe ainda, mesmo que minha vida esteja em jogo, de ter compreendido a morte, e menos ainda realizei existencialmente a minha tarefa. E, contudo, pensei sempre de novo, procurei orientação em livros - e nada encontrei. (Embora já se tenha dito muitas vezes, quero aqui repeti-lo de novo: o que aqui é analisado não concerne, absolutamente, aos mais simples [de Eenfoldige], a quem o deus preservará em sua amável simplicidade (embora experimentem a peso da vida de outro modo), a simplicidade que não sente uma necessidade de outro tipo de compreensão, ou, à medida que o sente, humildemente a transforma num suspiro sobre a miséria dessa vida, enquanto este suspiro, humildemente, encontra conforto no pensamento de que a felicidade da vida não consiste em ser aquele que sabe [den Vidende]. Por outro lado, isso concerne, sim, àquele que acredita possuir habilidade e oportunidade para um pesquisar mais profundo, e lhe concerne de tal modo que não se mete irrefletidamente com a história do mundo, mas, antes de tudo, se dá conta de que ser um homem existente é uma tarefa tão exaustiva e, contudo, tão natural, para cada ser humano, que, naturalmente, a gente a escolhe em primeiro lugar e provavelmente encontra neste esforço [Anstraengelse] o suficiente para toda uma vida). Por exemplo, o ser imortal. A esse respeito, sei o que a gente geralmente sabe; sei que alguns admitem a imortalidade, que outros dizem que não a admitem. Se eles realmente não a admitem, isso eu não sei; não me ocorre por isso querer combatê-los, pois tal procedimento é dialeticamente tão difícil, [VII 142] que eu precisaria de um ano e tanto para conseguir ver com clareza dialética se tal debate tem alguma realidade; se a dialética da comunicação, quando bem compreendida, sancionaria tal conduta ou a transformaria numa disputa quimérica: se a consciência da imortalidade é um ensinamento objetivo sobre o qual se podem dar aulas, e como esse ensino deve ser determinado dialeticamente em relação às pressuposições do aprendiz; se essas não são tão essenciais que o ensino se torne um engano quando não se está logo consciente disso e então transforma o ensino num não ensino. Além disso, sei que alguns encontraram a imortalidade em Hegel, outros, não; eu sei que não a encontrei no sistema, e que de qualquer modo é absurdo procurá-la ali; pois, em um sentido fantástico, todo pensamento sistemático é sub specie aeterni e, assim sendo, a imortalidade está ali como eternidade, mas esta imortalidade não é de modo algum aquela sobre a qual se pergunta, já que se pergunta a respeito da imortalidade de um mortal, o que não está respondido ao se mostrar que o eterno é imortal, pois é claro que o eterno não é o mortal, e a imortalidade do eterno é uma tautologia e um abuso das palavras. Eu li o Sjael efter Doden [Uma alma após a morte], do Professor Heiberg, sim, eu o li junto com o comentário de Deão Tryde. Oxalá não o tivesse feito, pois com uma obra poética a gente se deleita esteticamente e não exige a extrema exatidão dialética que se requer para um aprendiz que pretenda organizar sua vida de acordo com tal orientação. Se um comentador obriga alguém a procurar por algo assim no poema, ele não ajuda o poema. Do comentador eu aí talvez pudesse aprender o que não aprendi ao ler o seu comentário, se o Deão Tryde se apiedasse de mim e mostrasse apenas, no seu esforço catequético, como é que a gente constrói uma visão de vida baseada nas coisas profundas que ele ofereceu com suas paráfrases; pois louvado seja o Deão Trydel, somente a partir desse pequeno artigo seu, daria para se construírem diversas visões de vida, porém uma única eu não consigo encontrar - aí, é justamente essa a desgraça; é desta que eu preciso, não de outras mais, pois não sou um grande erudito. Eu sei, além disso, que o falecido Prof. Poul Moller, que por certo estava familiarizado com a filosofia mais recente, [VII 143] só em tempos mais tardios atentou propriamente para a infinita dificuldade da questão da imortalidade, quando essa é posta de modo simples, quando não se pergunta sobre uma nova demonstração e sobre as opiniões, penduradas em fileira, de fulano e beltrano, ou sobre a maneira como elas podem ficar mais bem penduradas num fio; sei também que, num tratado, ele tentou esclarecer a questão, e que essa monografia traz uma marca nítida de sua aversão à moderna filosofia especulativa. A dificuldade da questão surge justamente quando ela é colocada de modo simples, e não do modo como um livre-docente bem treinado pergunta pela imortalidade do ser humano, abstratamente entendido como o ser humano em geral, e, com isso, pela imortalidade do ser humano em geral, fantasticamente entendido como gênero, e, com isso, pela imortalidade do gênero humano. Tal livre-docente bem treinado pergunta e responde sempre como os leitores bem treinados consideram que as respostas devem ser dadas. Um pobre leitor, não treinado, é feito de bobo com tais considerações, tal qual um ouvinte num exame para o qual perguntas e respostas foram previamente arranjadas, ou como alguém em visita a uma família cujos membros falam uma linguagem privada e usam decerto as palavras da língua materna, porém entendem algo diferente ao usá-las. Daí segue que a resposta é geralmente muito fácil, dado que, com efeito, antes a pergunta foi alterada, razão por que não se pode negar que responderam à pergunta, mas se pode, de fato, legitimamente, insistir em que a resposta não é aquela que parece ser. Quando, num exame sobre a história da Dinamarca, o mestre, consciente de que os discípulos não sabem nada sobre o assunto, prontamente dá ao exame outro rumo, por exemplo, perguntando sobre a relação de outro país com a Dinamarca, e depois perguntando sobre a história desse outro país, pode-se dizer então que o exame foi sobre a história da Dinamarca? Quando crianças da escola escrevem uma palavra em seus livros e acrescentam: "Veja a respeito disso à p. 101", e, na p. 101: "Veja p. 216" e, na p. 216: "Veja p. 314", e então, finalmente, "Primeiro de abril": pode-se, legitimamente, dizer que alguém tirou proveito dessa orientação - para ser feito de bobo? Um livro levanta a questão da imortalidade da alma; o conteúdo do livro é, obviamente, a resposta. Mas o conteúdo do livro, como o leitor se convence ao lê-lo, consiste em todas as melhores e mais sábias opiniões dos homens a respeito da imortalidade, penduradas num varal. Portanto, a imortalidade consiste no conjunto das opiniões de todos os melhores e mais sábios homens sobre a imortalidade. Ó, meu grande deus chinês!, será isso a imortalidade? A questão acerca da imortalidade é portanto uma questão erudita? Louvada seja a erudição! Louvado seja aquele que, como erudito, pode tratar da erudita questão da imortalidade [VII 144], mas a questão da imortalidade não é, essencialmente, uma questão erudita; é uma questão da interioridade, que o sujeito, ao tornar-se subjetivo, deve fazer a si mesmo. A questão nem se deixa responder objetivamente, porque, objetivamente, não se pode perguntar pela imortalidade, dado que a imortalidade é, precisamente, a potenciação da subjetividade desenvolvida e o mais alto desenvolvimento. A questão só poderá apresentar-se de modo correto, quando alguém, corretamente, quiser tornar-se subjetivo; como, então, poderia ser respondida objetivamente? Em sociedade, a questão nem se deixa responder, porque não pode ser proposta socialmente, dado que só o sujeito que quer tornar-se subjetivo pode captá-la e corretamente perguntar: eu me torno imortal, ou eu sou imortal? Olha, para várias coisas as pessoas podem muito bem se associar; assim, várias famílias podem se associar para adquirir um camarote no teatro, e três cavalheiros particulares podem se associar para alugar um cavalo de montaria, de modo que cada um o monte a cada três dias. Mas não é assim que as coisas se dão com a imortalidade; a consciência da minha imortalidade pertence exclusivamente a mim, justamente no momento em que estou consciente de minha imortalidade, sou absolutamente subjetivo, e não posso tornar-me imortal numa sociedade com dois outros cavalheiros particulares, rotativamente. Coletores de subscrições que conseguem uma lista numerosa de homens e mulheres que sentem uma necessidade genérica de se tornarem imortais, dão-se a esse trabalho sem tirar nenhum proveito, pois a imortalidade é um bem que não se deixa extorquir pela força de uma lista de numerosas assinaturas. Sistematicamente, a imortalidade não se deixa, de jeito nenhum, demonstrar. O defeito não está nas demonstrações, mas na recusa em entender que, vista de modo sistemático, toda essa questão é um absurdo; de modo que, em vez de procurar por novas demonstrações, seria melhor procurar tornar-se um tanto quanto subjetivo. A imortalidade é o interesse mais apaixonado da subjetividade; no interesse reside exatamente a prova; quando alguém (em termos sistemáticos bem consistentemente) abstrai dele objetivamente, à maneira sistemática, sabe Deus o que é aí a imortalidade, ou sequer o que quer dizer querer prová-la, ou simplesmente que tipo de ideia fixa se daria ao trabalho de ainda esquentar a cabeça por causa dela. Ainda que se pudesse, de um modo sistemático, pendurar lá em cima uma imortalidade, tal como o chapéu de Gessler, diante do qual, todos nós, de passagem, tiraríamos nossos chapéus, isso não significa ser imortal nem estar consciente da imortalidade. A trabalheira que se dá o sistema para demonstrar a imortalidade é um desperdício de esforço e uma contradição ridícula: pretender responder de um modo sistemático a uma questão que tem a peculiaridade de não poder ser levantada sistematicamente. É como pretender pintar Marte na armadura que o torna invisível. [VII 145] O ponto central está na invisibilidade, e no que toca à imortalidade o ponto central está na subjetividade e no desenvolvimento subjetivo da subjetividade. - Com toda simplicidade, então, a questão colocada pelo sujeito existente não é a da imortalidade em geral, pois um fantasma desse tipo absolutamente não existe, mas a da sua imortalidade; ele se pergunta pela sua imortalidade, sobre o que significa tornar-se imortal, se pode fazer alguma coisa para tornar-se tal, ou se ele se torna tal coisa sem mais nem menos, ou se ele [já] o é, mas [mesmo assim] pode se tornar tal. No primeiro caso, ele pergunta sobre se tem e qual importância pode ter, caso ele tenha deixado passar algum tempo sem usar, se haveria, talvez, uma imortalidade maior e outra menor; no segundo caso, pergunta-se: que importância deve ter, para toda a sua existência humana, que o mais elevado na vida venha a ser algo como uma brincadeira, de modo que apenas as tarefas menores sejam atribuídas à paixão da liberdade que há nele, que ela não tenha nada a ver, porém, com o mais alto, nem mesmo negativamente, pois uma ação negativa em relação ao mais alto seria, por certo, de novo, a mais exaustiva das ações - ou seja, depois de, com a máxima habilidade, entusiasticamente, ter desejado tudo fazer, aprender então que o mais alto consiste em manter-se, a cada momento, apenas receptivo em relação àquele bem, para cuja aquisição desejar-se-ia, tão ardentemente, fazer alguma coisa? Pergunta-se: como ele se comporta ao falar sobre a sua imortalidade; como é que ele, ao mesmo tempo, pode falar a partir do ponto de vista tanto do infinito quanto do finito, e pensá-los junto no mesmo instante, de modo que não diga ora uma coisa, ora outra coisa; de que modo a linguagem e toda comunicação se relacionam com isso, quando se trata de ser consequente a cada palavra, para que um pequeno adjetivo descuidado ou uma oração interposta tagarela não provoquem distúrbios e zombem da coisa toda; onde é o lugar, por assim dizer, o lugar para se falar da imortalidade, já que ele sabe decerto quantos púlpitos eclesiásticos há em Copenhague e que há duas cátedras de Filosofia - mas qual é o lugar que realiza a unidade do finito e do infinito, onde ele, ao mesmo tempo, infinito e finito, fala simultaneamente sobre sua infinitude e sua finitude, e, se é possível encontrar esse lugar dialeticamente difícil, que é, no entanto, necessário? Pergunta-se como ele, existindo, mantém a consciência da sua imortalidade, de modo que a concepção metafísica da imortalidade não venha a confundir a concepção ética tornando-a uma ilusão, pois eticamente, tudo culmina na imortalidade, sem o quê, o ético é meramente costume e hábito, e, metafisicamente, a imortalidade engole a existência, sim, 70 anos de existência como se nada fossem, e, contudo, eticamente, este nada deveria ser infinitamente importante? Pergunta-se como a imortalidade lhe recria sua vida; [VII 146] em que sentido ele deve ter a consciência da imortalidade presente em si o tempo todo, ou será talvez suficiente pensar tal ideia de uma vez por todas? Se quando a resposta é positiva, a própria resposta não mostra que o problema ainda nem surgiu, dado que a uma consciência da imortalidade de uma vez por todas corresponderia ser um sujeito em absoluto e genérico, com o que a pergunta sobre a imortalidade é fantasticamente transformada em algo ridículo, tal como é ridículo o oposto disso, ou seja, quando aquelas pessoas que, fantasticamente, fizeram tudo atamancado e fizeram todas as coisas possíveis, um dia, preocupadas, perguntam ao pastor se realmente se manterão as mesmas no além - depois de não terem aguentado, nesta vida, ser as mesmas por uma quinzena e, portanto, depois de terem passado por todos os tipos de transmutações. Então a imortalidade seria, afinal de contas, por certo uma peculiar metamorfose, se pudesse transmutar uma centopeia inumana como essa naquela identidade eterna consigo mesmo, que é o significado de "ser o mesmo". Pergunta se agora é certo que ele é imortal, e de que tipo é a certeza da imortalidade, se essa certeza, caso ele a deixe de lado como certa de uma vez por todas (aproveitando a sua vida para cuidar de seus campos, tomar para si uma esposa, dar uns arranjos na história do mundo), não seria, precisamente, incerteza, de modo que, a despeito de toda a certeza, ele não tenha progredido muito, porque o problema nem mesmo foi entendido, mas já que ele não empregou sua vida para tornar-se subjetivo, então sua subjetividade se tornou de modo um tanto incerto algo de genérico, e aquela certeza abstrata justamente por isso virou incerteza; se a certeza, caso ele empregasse sua vida em tornar-se subjetivo, justamente por estar presente a ele a cada momento não se tornaria assim dialeticamente difícil, ou seja, pelo constante relacionar-se com o alternar que constitui a existência, de modo que se transforme em incerteza: se por acaso isso, que a certeza se transforme em incerteza, é o máximo que ele alcança, se não seria então melhor abandonar a coisa toda, ou se não deveria colocar toda a sua paixão na incerteza e, de modo infinitamente apaixonado, relacionar-se com a incerteza da certeza, e esse seria o único modo possível, para ele, de tornar-se ciente de sua imortalidade, enquanto ele é existente, porque, como existente, ele é estranhamente composto, de modo que a determinidade da imortalidade só possa caber, de modo determinado, ao eterno, porém ao existente só possa caber sua determinidade na indeterminidade. - E o perguntar a respeito de sua imortalidade é de fato também, para o sujeito existente que coloca a questão, um agir, não sendo assim, certamente, para gente distraída que, de vez em quando, de modo bem geral, se pergunta sobre o que é ser imortal, [VII 147] como se a imortalidade fosse uma coisa que a gente pudesse ser de vez em quando, e aquele que pergunta fosse essa tal coisa em geral. Ele se pergunta, portanto, como é que ele se comporta para, existindo, exprimir sua imortalidade, se realmente a exprime, e se, por enquanto, se contenta com essa tarefa, que bem pode ser suficiente para toda uma vida humana, já que deve ser suficiente para uma eternidade. E então? Bem, então, muito bem, quando ele então terminar, então será chegada a vez da história do mundo. Hoje em dia, as coisas ocorrem exatamente ao contrário; hoje em dia, a gente se atém primeiro à história do mundo, e por isso também surge o divertido resultado de que, como outro autor chamou a atenção, enquanto a gente demonstra cada vez mais a imortalidade em termos bem gerais, a fé na imortalidade diminui cada vez mais. P. ex.: O que quer dizer, que eu deva agradecer a Deus pelo bem que ele me dá? Isso diz o pastor que devo fazer, todos o sabemos, e assim que tivermos dado atenção a isso, então haverá tempo, para os que não conseguem se contentar com o trabalho humilde a que os simples dedicam a vida, tempo para se dedicar à história do mundo. Para deixar tudo tão fácil quanto possível, nem mesmo devo objetar que isso, de qualquer modo, talvez tome algum tempo. Não, para acompanhar o pastor, admito que estou mesmo infinitamente disposto a fazê-lo, de modo que nem precisamos calcular o tempo de que eu precisaria para transformar a falta de inclinação para fazê-lo, conforme o supõe o pastor, em inclinação, graças à exortação do pastor. Admito, então, que eu gostaria infinitamente de agradecer a Deus; mais do que isso eu não digo. Não digo que isso seja realmente o caso, que eu o sei com certeza, pois frente a frente com Deus, sempre falo com incerteza sobre mim, já que ele é o único que sabe, com certeza, a respeito de minha relação para com ele. A cautela ao se expressar sobre sua própria relação para com Deus já contém uma multiplicidade de determinações dialéticas, e, na falta dela, pode acontecer a alguém como a muitas das pessoas históricas, que, quando falam sobre o que é simples, se contradizem a cada três linhas. Portanto, devo agradecer a Deus, diz o pastor; e pelo quê? Pelo bem que ele me deu. Excelente! Mas por qual bem? Ora, decerto, pelo bem que eu posso perceber que é um bem. Alto lá! Se agradeço a Deus pelo bem que posso perceber que é um bem, estou fazendo Deus de bobo, porque então, em vez de minha relação para com Deus significar que eu me deixaria transformar em semelhança a ele, significa que eu é que o estou transformando em semelhança a mim. Agradeço a ele pelo bem que eu reconheço como um bem; [VII 148] mas o que conheço é o finito, e, então, vou em frente e agradeço a Deus por ter se deixado dirigir pela minha cabeça. E, contudo, em minha relação para com Deus, eu deveria, justamente, aprender que não sei nada com certeza, portanto, nem mesmo se isso é um bem - e, contudo, devo agradecer-lhe por aquele bem que eu sei ser um bem, algo que, entretanto, não posso saber. Então, o quê? Devo então deixar de lhe agradecer quando aquilo que me acontece, de acordo com meu pobre entendimento finito, é um bem, que eu talvez tenha desejado ardentemente e que, agora que o recebi, faz com que eu sinta apoderar-se de mim uma necessidade de agradecer a Deus? Isso é que não, justamente: mas eu devo refletir que não é um mérito o fato de eu o ter desejado tão ardentemente, e continua não sendo um mérito que eu tenha realizado o meu desejo. Devo então associar ao meu agradecimento um pedido de desculpas, para ter certeza de que é Deus aquele com quem tenho a honra de conversar, e não o meu amigo e camarada Conselheiro Andersen, devo, envergonhado, reconhecer que me soa muito bem que eu deva pedir perdão por ter agradecido, porque não posso deixar de fazê-lo. Portanto, eu devo pedir perdão por agradecer. Isso não era o que o pastor dizia. Então, ou o pastor tem de querer fazer-me de bobo, ou ele próprio não sabe o que diz - a não ser que este pastor esteja também preocupado com o histórico-universal. Em minha relação para com Deus preciso justamente aprender a deixar de lado meu entendimento finito e, com isso, o "distinguir", que me é natural, para, numa divina loucura, sempre ser capaz de agradecer. Sempre agradecer - isso é algo genérico, uma coisa assim de uma vez por todas? Este sempre agradecer a Deus significa que, uma vez por ano, no segundo domingo da quaresma, nas ladainhas, reflito que eu devo sempre agradecer a Deus, e, talvez, nem mesmo isso, pois se acontecer algo estranho, e eu estiver deprimido naquele domingo, não o compreenderei nem mesmo naquele dia. Portanto, agradecer a Deus, essa coisa tão simples, de repente me coloca uma das mais exaustivas tarefas, que se estenderá por toda a minha vida. Ora, será preciso algum tem pinho até que eu a realize, e, se de fato a tiver realizado, o que será aquela coisa suprema que eu deveria agarrar a seguir, para liberar esta outra? Então, enquanto seu amigo, enquanto sua amada, perturbados e quase em desespero, olham para ele e dizem: Desgraçado, o quanto tens de sofrer: aquele que teme a Deus deve ter a coragem de dizer, e expressar, agindo, o que diz: Queridos, vocês se enganam; isso que me acontece é um bem, [VII 149] sinto-me animado a agradecer a Deus, só quisera que meu agradecimento lhe pudesse agradar. E até alcançar isso, devo, quando agradecer a Deus pelo bem sobre o qual fala o pastor, fazê-lo envergonhado. A dificuldade que aqui, e assim em qualquer ponto da relação para com Deus (neste sentido, em inumeráveis pontos), se mostra como a passagem para a verdadeira infinitização em Deus, a dificuldade de estar sempre agradecendo, enquanto que o discurso do pastor era ostentação inautêntica, essa dificuldade, eu poderia, num estilo docente, expressar da seguinte maneira: aquilo que o espírito simples religioso faz espontaneamente, o espírito simples religiosamente consciente o faz primeiro através do humor (o humorístico consiste, assim, em que após um exame minucioso, ainda tenha que fazer um pedido de desculpas ao realizar o que a primeira instância ordena e recomenda como o mais elevado), não no sentido de que sua religiosidade seja humor, mas de que o humor seja o limite a partir do qual ele define sua religiosidade, se ele deve indicá-lo, o limite que distingue entre ele e o imediato. É um ponto de transição que já é bastante difícil de alcançar, mas a verdadeira infinitização religiosa esqueceu-se dele de novo. Contudo, não é minha intenção falar como um docente, para não me acostumar a recitar decorado ou dar ocasião para que alguém o faça. P. ex.: O que significa casar-se? Sei sobre isso o que em geral todo o mundo sabe, tenho acesso ao jardim onde o erótico busca seu buquê de flores - o meu terá uma fragrância tão rica quanto o da maioria dos outros; sei onde fica a dispensa de onde os pastores buscam seus discursos. Se não há nenhum outro impedimento para tornar-se histórico-universal, então, sim, então vamos começar. Porém - resta ainda um porém; porém: qual é o termo médio entre o pneumático e o psicossomático que o casamento expressa, de que modo ele não é um atraso, de que modo, compreendido espiritualmente, ele é uma bênção (pois o que ele é, eroticamente, constitui uma resposta, afinal de contas, apenas para uma parte da questão), de que modo ele, eticamente in concreto, se torna uma tarefa, ao mesmo tempo em que o erótico estatui a maravilha por toda parte, de que modo, enquanto perfeição da existência, ele não é perfeito demais, fornece uma satisfação (a não ser quando preocupações com o ganha-pão e outras coisas semelhantes trazem perturbações, o que todavia deve ser deixado fora desse nosso cálculo), que sugere de maneira alarmante que o espírito em mim está obscurecido e não percebe claramente a contradição que consiste em que um espírito imortal se tenha tornado um ser existente, se, portanto, a felicidade matrimonial não seria justamente uma coisa duvidosa, embora um casamento infeliz não seja exatamente o que se recomendaria, e o sofrimento deles não seja, de modo algum, idêntico ao sofrimento do espírito, que, na existência, é o sinal seguro de que estou existindo qua espírito [VII 150]; se o fantasma do paganismo não faz mais sua aparição no casamento, e se os §§ teológicos a seu respeito, junto com os reverendíssimos adornos dos clérigos (sejam esses taxados em um ou em cem táleres reais), não seriam uma diversidade confusa de conhecimento que, ora não percebe a dificuldade inerente ao erótico, ora não ousa dizê-la, ora não percebe a dificuldade no religioso, ora não ousa dizê-la. Sim, quando uma jovem criada festeja seu casamento com um jovem criado, se fosse esse o seu desejo, eu pagaria alegremente os músicos, se tivesse os meios para tanto; e, se tivesse tempo, alegremente dançaria com ela no dia do casamento, alegrando-me com os que se alegram: ela, provavelmente, não sente nenhuma necessidade de uma compreensão mais profunda. Que eu, só porque sinto essa necessidade, deva ser melhor do que ela, é um contrassenso e está mais do que longe do curso laborioso de meu pensamento; mesmo que eu achasse o que procurava, eu não seria, talvez nem pela metade, tão bom; mas eu sinto essa necessidade de saber o que estou fazendo, a necessidade que, em seu triunfo máximo, recompensa com aquela tola diferençazinha entre o saber da coisa simples pela pessoa simples e pela pessoa sábia - que a pessoa simples a sabe, e a pessoa sábia sabe que a sabe, ou sabe que não a sabe. Sim, todo aquele que pode, simples e honestamente, dizer que não sente necessidade dessa compreensão: sim, ele realmente não tem culpa. Ai daquele que o perturba, que não quer deixar por conta do deus o que esse exige de cada um em particular. Sim, aquele que, humilde e contente com sua sorte, em sincera modéstia, acredita que o gênero humano por certo não começa com ele, mas que está, com toda confiança, seguindo as impressa vestigia [lat.: pegadas] do gênero humano, porque o amor erótico o leva a acreditar que ele, "humilde diante de Deus, submisso à real majestade da paixão amorosa", não se julga capaz de ter compreendido o que, sem maiores pretensões, faz sua felicidade terrena: sim, ele é de fato digno de honra; ai daquele que se atreve a trazer os perigos e horrores do combate intelectual para dentro do jardim do matrimônio em sua tranquilidade abençoada. Mas quando por toda parte se usa uma linguagem pomposa, e se quer troçar de Deus de modo histórico-universal e sistemático, quando até mesmo os pastores rapidamente viram suas vestes tal ares às avessas, para que dê alguma maneira quase possam parecer becas universitárias, quando, por toda parte, se conta que o imediato está superado, aí não é provocar a divindade caso se pergunte a esses imponentes sábios o que eles sabem sobre essa simples questão. Li o que o Assessor escreveu sobre o casamento em Ou isto - ou aquilo e em Estádios no caminho da vida; eu o li minuciosamente. [VII 151] Não me surpreendeu aprender que muitos dos que estão em bons termos com a história do mundo e com o futuro da humanidade, se queixaram por causa de uma resposta que, antes de ensaiar uma explicação, primeiro torna o problema tão difícil quanto ele de fato é. Não posso culpar o Assessor por isso, nem por seu zelo entusiasmado pelo casamento, mas, contudo, eu penso que, suposto que eu possa encontrá-lo, se eu lhe sussurrar um pequeno segredo ao pé da orelha, admitirá que as dificuldades permanecem. Fiquemos então com uns poucos exemplos. Exemplos eu ainda tenho com certeza de sobra; poderia continuar tanto quanto fosse preciso; tenho o suficiente para toda minha vida de modo que não preciso passar para a astronomia ou a ciência veterinária. Os exemplos são até dos mais fáceis. A questão se torna bem mais difícil quando se quer perguntar sobre a religiosidade no sentido mais estrito, no qual a explicação não pode consistir em conseguir efetuar de maneira imanente a infinitização, mas em tornar-se consciente do paradoxo, e a cada momento manter o paradoxo e, mais do que tudo, em temer, mais que qualquer outra coisa, uma explicação que deixasse fora o paradoxo, porque o paradoxo não é uma forma transitória de relação do religioso, no sentido mais estrito, para com o existente; mas é essencialmente condicionado pelo fato de este ser um existente, de modo que aquela explicação que põe de lado o paradoxo, ao mesmo tempo, fantasticamente, transforma o existente em algo fantástico que não pertence nem ao tempo nem à eternidade, mas algo assim não é um ser humano. Então, chega de exemplos. E então, o que segue daí? Nada, pura e simplesmente nada; afinal, sou eu que digo sempre que entre o saber a respeito do simples que a pessoa simples tem e o que a pessoa sábia tem, há apenas a ridícula diferençazinha, de que a pessoa simples o sabe, e a pessoa sábia sabe sobre o que sabe ou sobre o que não sabe. Mas, por outro lado, algo de fato se segue: Não seria mais correto conter-se um pouco em relação à história do mundo, se é assim que as coisas se relacionam com o conhecimento que se tem do simples? Não digo mais nada, talvez os grandes sábios estejam suficientemente informados sobre tudo isso; talvez eles tenham encerrado de uma vez por todas as tarefas nas quais o ponto principal estava em que elas deveriam bastar para toda uma vida. Oh, quem dera esses caros pensadores, que fazem tanto pela história do mundo, se lembrassem também de nós, gente humilde, não totalmente simples, visto que sentimos uma necessidade de compreender, mas somos ainda tão limitados, que sentimos, especialmente, a necessidade de compreender o que é simples. Foi assim que tentei entender a mim mesmo; por mais pobre que a compreensão tenha sido e por mais escasso que tenha sido seu resultado, resolvi, para compensar, agir com toda a minha paixão pela força daquilo que compreendi; [VII 152] talvez, em última instância, seja uma dieta mais saudável compreender pouca coisa, mas possuir esse pouco na infinita responsabilidade da paixão, no engaste da eternidade, do que saber muita coisa, e não possuir nada porque eu mesmo me tornei, fantasticamente, uma fantástica coisa qualquer subjetivo-objetiva. Considerei indigno eu me envergonhar mais diante de humanos e de seu julgamento do que diante do divino e de seu julgamento; covarde e ignobilmente, inquirir sobre o que o respeito humano poderia me tentar a fazer, mais do que sobre o que o respeito diante da divindade ordena. E, aliás, quem são essas pessoas que se há de temer, uns poucos gênios talvez, alguns críticos literários, e aquilo que se vê nas ruas e nas vielas. Ou não viveram seres humanos antes de 1845? Ou o que são essas pessoas em comparação com a divindade; o que é a recreação de sua barulheira azafamada, em comparação com o deleite daquele solitário manancial que há em cada ser humano, aquele manancial em que reside o divino, aquele manancial no profundo silêncio, quando tudo se cala! E o que é o tempo daquela hora e meia em que devo conviver com os seres humanos, mais do que um breve instante, confrontado com uma eternidade? Será que, talvez, me perseguirão por toda a eternidade? É bem verdade que o pastor diz que vamos nos reencontrar, mas isso se aplica a qualquer um que se conheceu na rua? Penso que não. Suponhamos que houvesse uma separação, suponhamos que eu estivesse errado; aí, sem dúvida, eu teria de ser excluído de sua companhia; suponhamos que eu estivesse certo; aí, por certo, eu iria para outra classe; suponhamos que a eternidade fosse tão vasta que eu jamais chegasse a pôr os olhos em Sua Reverendíssima, que tão gentilmente garantira que nos veríamos de novo! Mas ai de mim se a divindade me julgar, em meu ser mais íntimo, por desejar, mentirosamente, ser sistemático e histórico-universal e esquecer o que significa ser um ser humano e, com isso, esquecer o que significa que ela seja a divindade; ai de mim! Ai de mim no tempo e, ainda mais terrível, se ela puser as mãos em mim na eternidade! Seu julgamento é o derradeiro, é o único; de sua onisciência não se escapa, dado que ela opera, penetrando, através dos mais débeis movimentos de minha consciência no seu mais secreto comércio consigo mesma; sua presença é uma contemporaneidade eterna - e eu deveria ter ousado me envergonhar diante dela! Isso quase dá impressão de seriedade; se eu me atrevesse ao menos a apelar para visões e revelações, e me desse uma vermelhidão na face, muita gente, ao invés de admitir que fosse uma congestão, assumiria isso como seriedade. Pois tal como era uma exigência da época, quando Sócrates vivia, que se berrasse e lamentasse diante do tribunal, implorando por piedade - e, assim, ele teria sido absolvido: [VII 153] do mesmo modo é exigência desta época berrar de modo histórico-universal e cantar de galo sistematicamente, proclamando-se a si mesmo como aquele que é o esperado. Mas não tenho nenhum milagre ao qual apelar; ai, essa foi a boa ventura do Dr. Hjortespring! De acordo com seu próprio relato, particularmente bem escrito, ter-se-ia ele, graças a um milagre no Hotel Streit, em Hamburgo (embora nenhum dos garçons tivesse notado coisa alguma), numa manhã de Páscoa, tornado adepto da filosofia hegeliana - daquela filosofia que proclama que não há milagres. Maravilhoso sinal dos tempos, se esse homem não é o esperado filósofo, quem o será então, quem como ele conhece a exigência da época! Maravilhoso sinal dos tempos, muito mais glorioso e mais pleno de significado do que a conversão de Paulo; pois que Paulo se convertesse, por meio de um milagre, a uma doutrina que se proclama a si mesma como um milagre é mais direito; mas ser convertido, graças a um milagre, a uma doutrina que não aceita milagres, é mais arrevesado. O milagre ocorreu na manhã da Páscoa. O ano e a data são questões totalmente indiferentes, em se tratando de um herói poético como esse e de uma manhã de Páscoa poética como essa; pode muito bem ter sido a mesma manhã de Páscoa do Fausto de Goethe, ainda que os dois contemporâneos, Dr. Hjortespring e Fausto, no Fausto de Goethe, tenham chegado a resultados diferentes! Quem se atreve a aventurar-se numa explicação daquele milagre! A coisa toda permanece infinitamente enigmática, mesmo que se assuma que a Páscoa naquele ano tenha ocorrido muito cedo, p. ex., no dia 10 de abril, de modo que o doutor também se tornasse, além de hegeliano, um bobo de 10 de abril: uma recompensa poética adequada, de acordo com a natureza da criação poética, para o fato de se desejar enfeitar romanticamente a passagem à filosofia hegeliana, cujo mérito reside precisamente no método, e, por isso, contesta o romantismo. Olha só, com um milagre ou qualquer coisa infinitamente plena de significação não posso ser útil; não, realmente não posso. Preciso implorar a cada contemporâneo sensível, de perto e de longe, morador da cidade ou de fora dela, que se convença de que eu quereria com o maior dos prazeres satisfazer assim as demandas do tempo, mas para mim a verdade é o que há de mais caro, e aqui a verdade não é nada a não ser um milagre, e é por isso que a narrativa não precisa de jeito nenhum ser uma narrativa miraculosa e wunderbar [al.: maravilhosa] sobre um evento extremamente insignificante, que, portanto, não ocorreria naquela remota, desconhecida, cidade ao oeste, na hanseática cidade de Hamburgo, aonde um viajante raramente chega. [VII 154] Fazem agora cerca de quatro anos desde que me veio à mente a ideia de querer me experimentar como autor. Eu me lembro com toda clareza, era um domingo, sim, para ser bem exato, era uma tarde de domingo. Como sempre, eu estava sentado no lado de fora da confeitaria nos jardins de Frederiksberg, naquele maravilhoso jardim que havia sido, para o menino, a terra encantada onde o rei vivera com a rainha, naquele adorável jardim que havia sido, para o jovem, uma distração feliz no alegre divertimento popular, naquele amigável jardim em que, agora, o homem mais maduro se sentia tão à vontade em sua melancólica elevação acima do mundo e do que pertence ao mundo, naquele jardim em que mesmo a invejada glória da dignidade real é o que é, afinal, lá fora - a recordação que uma rainha cultiva por seu falecido senhor. Lá estava eu sentado, como de costume, e fumava meu charuto. Lamentavelmente, a única semelhança que fui capaz de descobrir entre o iniciar de minha migalha de esforço filosófico e o miraculoso início daquele herói poético é: que ambos se deram em um espaço público. Afora isso, não há absolutamente nenhuma semelhança e, muito embora autor das Migalhas, eu sou tão insignificante que estou fora da literatura; nem mesmo aumentei a literatura de subscrição, nem se pode dizer que eu ocupe um lugar significativo nela. Eu tinha sido estudante por meia vintena de anos; embora nunca preguiçoso, toda minha atividade era, entretanto, apenas uma esplêndida inatividade, uma espécie de ocupação pela qual ainda tenho grande predileção, e para a qual talvez tenha uma pequena genialidade. Lia muito, passava o resto do dia flanando e pensando, ou pensando e flanando, mas não saía disso; o germe de produtividade que havia em mim, servia ao uso diário e se extinguia em sua primeira floração. Um inexplicável poder de persuasão, tão forte quanto habilidoso, continuamente me detinha, fascinado por sua persuasão. Este poder era minha indolência. Não é como o desejo veemente do amor erótico ou o intenso estímulo do entusiasmo; em vez disso, é como uma dona de casa que retém alguém, e com quem esse alguém se dá muito bem, tão bem que ele nunca sonha em querer se casar; e pelo menos uma coisa é certa: embora de resto eu não seja alheio aos confortos da vida, de todos os confortos a indolência é o mais confortável. [VII 155] Lá estava eu então sentado e fumava meu charuto, e me deixei enfim levar pelos pensamentos. Entre outros, lembro-me do seguinte. Tu vais andando, eu disse a mim mesmo, e vais ficando um homem velho sem seres coisa alguma e sem teres empreendido propriamente coisa alguma. Por outro lado, para onde quer que olhes, na literatura ou na vida, vês os nomes e as figuras das celebridades, homens valiosos e saudados com aclamações, destacados ou comentados, os numerosos benfeitores da época, que sabem como ser úteis à humanidade tornando a vida dela cada vez mais fácil, alguns com ferrovias, outros com ônibus e navios a vapor, outros com a telegrafia, outros com bem acessíveis visões panorâmicas e publicações breves a respeito de tudo o que merece ser conhecido e, por fim, os verdadeiros benfeitores da época que fazem a existência espiritual, em virtude do pensamento, sistematicamente cada vez mais fácil e, no entanto, cada vez mais significativa: E tu, o que fazes? Aqui se interrompeu minha autorreflexão, pois meu charuto tinha acabado e eu precisava acender um novo. E então tornei a fumar e, de repente, o seguinte pensamento cruzou a minha mente: Tu tens de fazer algo, mas já que para tuas limitadas capacidades será impossível tornar qualquer coisa mais fácil do que já é, então, com o mesmo entusiasmo humanitário que outros tiveram, tens de assumir a tarefa de tornar algo mais difícil. Tal ideia me agradou extraordinariamente; também me lisonjeou pensar que por esse esforço eu seria amado e respeitado por toda a comunidade, tanto quanto qualquer outra pessoa. Com efeito, quando todos se unem para, de todas as maneiras, tornar tudo mais fácil, aí só resta um perigo possível, a saber, que a facilidade se torne tão grande que venha a ser fácil demais; então restará apenas um anseio (embora ainda não sentido), quando a gente vier a sentir a falta da dificuldade. Por amor à humanidade, e desespero por minha embaraçosa situação de não ter realizado nada e de ser incapaz de tornar qualquer coisa mais fácil do que já é, por um autêntico interesse por aqueles que tornam tudo mais fácil, concebi esta então como a minha tarefa: por toda parte engendrar dificuldades. Também me pareceu especialmente curioso que eu realmente, no fundo, tivesse de agradecer à minha indolência por essa tarefa ter se tornado a minha. Pois longe de a ter encontrado por um golpe de sorte, como um Aladim, devo antes admitir que minha indolência, ao me impedir de intervir na hora devida tornando fáceis as coisas, me obrigou a fazer a única coisa que ainda restava. Assim, também eu me esforço rumo ao nobre objetivo de vir a ser saudado com aclamação - [VII 156] a menos que eu venha a ser objeto de zombaria, ou talvez crucificado; pois uma coisa é certa, que todo aquele que grita bravo, grita também "pereat" [lat.: morra], e item [lat.: também] "crucifica-o", e o faz mesmo sem se tornar infiel ao próprio caráter, dado que, ao contrário, permanece essencialmente fiel a si mesmo - qua aclamador. Mas mesmo que meu esforço não venha a ser reconhecido, estou ainda consciente de que é tão nobre quanto o dos outros. Quando, num banquete em que os convidados já estão saciados, alguém pensa em servir mais alguns pratos, e outro pensa em disponibilizar um vomitivo, então é claro que só o primeiro entendeu o que os convidados exigem, mas será que o outro não ousaria dizer que ele pensou no que poderia ser a exigência deles? A partir daquele instante encontrei minha ocupação nesse trabalho, quero dizer que esse trabalho, o trabalho de preparação e autodesenvolvimento, tem sido divertido para mim, já que minha contribuição até agora, foi apenas a migalhazinha das Migalhas, e não encontrei nisso o meu sustento, dado que eu é que pus dinheiro ali. Contudo, não posso de jeito nenhum pedir que as pessoas paguem para ter algo dificultado; isso seria, de fato, aumentar a dificuldade por meio de uma nova dificuldade, e, quando se toma remédio, antes se costuma receber uma Douceur adicional [fr.: doce, recompensa]. Estou tão longe dos mal-entendidos sobre isso que, se eu estivesse objetivamente seguro (o que eu, como um autor subjetivo, naturalmente não estou) da utilidade de meu remédio, e de que ele não depende exclusivamente do modo como é usado, de forma que o modo de usar seja propriamente o remédio, então eu seria o primeiro a prometer a cada um dos meus leitores uma raisonnable Douceur [fr.: um doce, uma recompensa razoável], ou a abrir a todos os meus leitores, homens e mulheres, a perspectiva de participarem de um sorteio de presentes de bom gosto, para, desse modo, insuflar neles a força e a coragem para ler meus opúsculos. Se acaso aqueles que tornam tudo fácil percebessem, uma vez que fosse, que em verdade tirariam algum proveito de minha migalha de dificuldade, para que a facilidade não se transformasse numa calmaria; e se, comovidos e tocados por essa compreensão do meu esforço, talvez por sua mediação com os deles, devessem decidir me sustentar por debaixo do pano com contribuições em dinheiro, aí essas seriam aceitas alegremente, e eu prometo segredo inviolável, para que a humanidade, de quem nós, unidos, tiramos vantagem e proveito, não venha a descobrir o verdadeiro estado das coisas. [VII 157] O que foi apresentado acima será, decerto, considerado bem-apropriado a um autor subjetivo. Mais estranho é quando um sistemático nos entretém com um relato de que se tornou adepto do sistema por meio de um milagre, o que parece sugerir que sua vida e suas atitudes sistemáticas não têm em comum com o sistema uma coisa: o iniciar com nada. CAPÍTULO 2 A verdade subjetiva, a interioridade; a verdade é a subjetividade. Quer se defina verdade, mais empiricamente, como concordância do pensar com o ser ou, mais idealisticamente, como concordância do ser com o pensar, importa, em qualquer dos casos, que se dê minuciosa atenção ao que se entende por ser e que ao mesmo tempo se atente a que o espírito humano consciente não seja atraído com engodos para o indeterminado, não se venha a tornar fantasticamente alguma coisa tal que nenhum ser humano existente jamais foi ou pode ser, um fantasma com o qual o indivíduo se ocupa ocasionalmente, sem, contudo, jamais elucidar para si mesmo, por meio de determinações intermediárias dialéticas, de que modo ele chega a esse mundo fantástico, que significado tem, para ele, estar lá, se todo o esforço lá fora não se dissolve numa tautologia no interior de uma temerária aventura fantástica. Se, nas duas definições dadas, ser é entendido como ser empírico, então a própria verdade é transformada num desideratur [lat.: algo desejado] e tudo é posto no devir, porque o objeto empírico não está acabado, e aliás o próprio espírito existente cognoscente está no devir, e assim a verdade é uma aproximação cujo começo não pode ser posto de modo absoluto, justamente porque não há nenhuma conclusão que tenha poder retroativo; por outro lado, todo começo (se não for uma arbitrariedade, por não estar consciente disso), quando é feito, não acontece em virtude do pensamento imanente, mas é feito em virtude de uma resolução, essencialmente em virtude da fé. Que o espírito cognoscente é um existente, e que todo ser humano é tal espírito existente para si mesmo, não posso repetir com suficiente frequência; pois o fato de que se o tenha negligenciado de maneira fantástica tem causado muita confusão. [VII 158] Que ninguém me entenda mal. Sou, de fato, um pobre espírito existente, como todos os outros seres humanos, mas se, de um modo lícito e honesto, eu pudesse ser ajudado para me tornar algo de extraordinário, o puro Eu-Eu, estaria sempre disposto a agradecer pelo presente e pela boa ação. Contudo, se isso só pode acontecer da maneira acima mencionada, alguém dizendo eins, zwei, drei, kokolorum [al.: um, dois, três, abracadabra], ou amarrando uma fita em torno do dedo mindinho, e quando for lua cheia atirando-a em algum lugar remoto: nesse caso prefiro permanecer o que sou, um pobre ser humano existente individual. Naquelas definições, o ser tem de ser entendido, portanto, de modo muito mais abstrato, como a reprodução abstrata ou o modelo abstrato do que o ser é, in concreto, como ser empírico. Compreendido assim, nada impede que a verdade seja definida abstratamente como algo abstratamente acabado, pois a concordância entre pensar e ser, vista abstratamente, está sempre acabada, dado que o começo do devir reside, precisamente, na concreção, da qual a abstração, abstratamente, abstrai. Mas, se o ser é compreendido desse modo, então a fórmula é uma tautologia: quer dizer, pensar e ser significam a mesmíssima coisa, e a concordância de que aqui se trata é apenas a abstrata identidade consigo mesma. Eis por que nenhuma das fórmulas diz mais do que isso: que a verdade é, se isso é compreendido de modo a acentuar a cópula, a verdade é, ou seja, a verdade é uma reduplicação, a verdade é o primeiro, mas o segundo ponto da verdade, que ela seja, é o mesmo como o primeiro; esse seu ser é a forma abstrata da verdade. Desse modo se expressa que a verdade não é algo simples, mas sim, num sentido inteiramente abstrato, uma reduplicação, que, contudo, é superada no mesmo instante. A abstração pode continuar a parafrasear isso tanto quanto quiser, nunca chegará mais longe. Tão logo o ser da verdade se torna empiricamente concreto, a própria verdade está no devir, é, decerto outra vez, pressentida, a concordância entre pensar e ser, e é bem assim realmente para Deus, mas não é assim para um espírito existente, dado que esse mesmo, existindo, está no devir. Para o espírito existente qua espírito existente, a questão continua sendo a respeito da verdade; pois a resposta abstrata é apenas para aquele abstractum [lat.: abstrato] [VII 159] no qual o espírito existente se transforma, ao abstrair de si mesmo qua existente, o que só pode fazer por momentos, embora mesmo em tais momentos ainda pague seus débitos para com a existência, ao existir, de qualquer modo. Portanto, é um espírito existente que pergunta pela verdade, presumivelmente por querer existir nela; mas, em todo caso, o inquiridor está consciente de ser um ser humano existente individual. Desse modo, creio ser capaz de fazer-me compreender a todo grego e a todo ser humano racional. Se um filósofo alemão segue seu desejo de afetar ser quem não é e, antes, transmuta a si mesmo em algo de suprarracional, tal como alquimistas e feiticeiros se enfeitam fantasticamente, para então responder à questão sobre a verdade de modo extremamente satisfatório: não me interessa, tampouco como sua satisfatória resposta, que, por certo, é extremamente satisfatória - caso se esteja vestido de maneira fantástica. Se, por outro lado, um filósofo alemão faz isso ou não, é algo de que qualquer um poderá facilmente se convencer se, com entusiasmo, concentrar sua alma em querer deixar-se guiar por tal sábio e, sem crítica, apenas utilizando docilmente sua orientação, quiser moldar sua existência de acordo com ele; justamente quando alguém, como um aprendiz, entusiasticamente se relaciona assim com tal professor alemão, realiza o mais soberbo epigrama sobre este, pois nada adianta menos a tal especulante do que o honesto e entusiástico zelo de um aprendiz para expressar e realizar, para existencialmente apropriar-se de sua sabedoria, já que esta é algo de que o Sr. Professor se convenceu a si mesmo e sobre a qual escreveu livros, mas que nunca experimentou ele próprio, sim, nem mesmo jamais lhe ocorreu que isso devesse ser feito. Tal como aquele funcionário da alfândega escrevia o que nem ele próprio conseguia ler, partindo da ideia de que seu trabalho era tão somente o de escrever, há especulantes que só escrevem, e escrevem o que, se deve ser lido com a ajuda da ação (se ouso dizer assim), prova ser sem sentido, a não ser que, talvez, fosse dirigido para seres fantásticos. Quando surge a questão da verdade para o espírito existente qua espírito existente, aquela reduplicação abstrata da verdade reaparece; mas a própria existência, a própria existência no inquiridor, que por certo existe, mantém os dois momentos apartados um do outro, e a reflexão mostra duas relações. Para a reflexão objetiva, a verdade se torna algo objetivo, um objeto, e aí se trata de abstrair do sujeito; [VII 160] para a reflexão subjetiva, a verdade se torna a apropriação, a interioridade, a subjetividade, e aí se trata justamente de, existindo, aprofundar-se na subjetividade. Mas e daí? Devemos nos manter nessa disjunção, ou a mediação não oferece sua bondosa assistência aqui, de modo que a verdade se torne o sujeito-objeto? Por que não? Mas pode, então, a mediação ajudar o existente, enquanto ele existe, a se tornar ele mesmo a mediação, que é, como se sabe, sub specie aeterni, enquanto o pobre existente está existindo? Certamente, não adianta nada ludibriar uma pessoa, atraí-Ia com o sujeito-objeto, quando ela própria está impedida de entrar no estado no qual poderia se relacionar com isso, impedida porque, ela própria, em virtude da existência, está no devir. De que adiantaria explicar como a verdade eterna deve ser entendida eternamente, quando aquele a quem a explicação deve ser útil está impedido de entendê-la desse modo, por estar existindo, e que é, simplesmente, um fantasista, quando se imagina ser ele mesmo sub specie aeterni, portanto, quando precisa valer-se exatamente da explicação sobre: como a verdade eterna deve ser compreendida na determinação do tempo por aquele que, por existir, está, ele próprio, no tempo, algo que o próprio ilustríssimo Professor reconhece, se não sempre, então a cada três meses, quando recebe seu ordenado. Com o sujeito-objeto da mediação, apenas retomamos à abstração, pois a definição da verdade como sujeito-objeto é exatamente o mesmo que: a verdade é, ou seja, a verdade é uma reduplicação. A alta sabedoria foi, portanto, mais uma vez distraída o bastante para esquecer que era um espírito existente que perguntava pela verdade. Ou será que o espírito existente é, talvez, ele próprio, o sujeito-objeto? Nesse caso, eu feria de perguntar: onde está tal ser humano existente que é também um sujeito-objeto? Ou devemos, talvez, aqui também, primeiro, transformar o espírito existente em alguma coisa em geral, e então explicar tudo, exceto aquilo sobre o que se perguntava: Como um sujeito existente in concreto relaciona-se com a verdade? Ou sobre o que, então, deve-se perguntar: Como o sujeito individual existente relaciona-se, então, com essa coisa que parece ter não pouco em comum com um papagaio de papel ou com o torrão de açúcar que os holandeses costumavam pendurar no teto e que todos iam lamber? Retomemos, portanto, aos dois caminhos da reflexão, e não nos esqueçamos de que é um espírito existente quem faz as perguntas, um ser humano totalmente individual, [VII 161] e também não podemos esquecer, de jeito nenhum, de que o fato de ele ser existente é justamente o que impedirá que ande pelos dois caminhos ao mesmo tempo, e sua questão preocupada evitará que, leviana e fantasticamente, ele se torne sujeito-objeto. Qual dos caminhos é então o caminho da verdade para o espírito existente? Pois só o fantástico Eu-Eu está pronto com ambos os caminhos ao mesmo tempo, ou avança methodice [lat.: metodicamente] pelos dois caminhos ao mesmo tempo, um modo de caminhar que, para um ser humano existente, é tão desumano que não me atrevo a recomendá-lo. Dado que aquele que pergunta enfatiza, precisamente, que ele é um existente, o caminho a ser especialmente recomendado é, naturalmente, o que acentua em especial o existir. O caminho da reflexão objetiva faz do sujeito algo de casual e, com isso, torna a existência algo de indiferente, evanescente. Afastando-se do sujeito, vai o caminho para a verdade objetiva, e, enquanto o sujeito e a subjetividade se tornam Indiferentes, a verdade também se torna assim, e precisamente esta é a sua validade objetiva, pois o interesse é, tal como a decisão, a subjetividade. O caminho da reflexão objetiva agora leva ao pensamento abstrato, à matemática, ao conhecimento histórico de várias espécies, sempre distanciando-se do sujeito, cuja existência ou não existência se torna, com toda razão do ponto de vista objetivo, infinitamente indiferente, com toda razão, pois, como diz Hamlet, existência e não existência possuem apenas significação subjetiva. Em seu máximo, este caminho levará a uma contradição e, no caso do sujeito não se tornar inteiramente indiferente a si mesmo, isso é apenas um sinal de que seu esforço objetivo não está sendo objetivo o bastante. Em seu máximo, levará à contradição de que apenas a objetividade apareceu, enquanto que a subjetividade desapareceu, quer dizer, a subjetividade existente, que fez uma tentativa para se tornar o que, em sentido abstrato, se chama subjetividade, a forma abstrata da objetividade abstrata. E, contudo, visto subjetivamente, a objetividade que veio a ser é, em seu máximo, ou uma hipótese ou uma aproximação, porque toda decisão eterna reside justamente na subjetividade. O caminho objetivo acredita, entretanto, possuir uma segurança que o caminho subjetivo não possui (e isso é fácil de entender, existência, o existir e segurança objetiva não podem ser pensados juntos) [VII 162], e acredita evitar um perigo que aguarda o caminho subjetivo, e este perigo é, em seu máximo, a demência. Numa definição meramente subjetiva da verdade, loucura e verdade ficam em última análise indistinguíveis, porque ambas poderiam ter a interioridade. (Contudo, nem mesmo isso é verdade; pois a demência jamais possui a interioridade da infinitude. Sua ideia fixa é justamente um tipo de coisa objetiva, e a contradição da demência está justamente em que se queira envolvê-la com paixão. O que pesa na balança, no que se refere à demência, não é, portanto, outra vez, o subjetivo, mas sim a pequena finitude que se tornou fixa, algo que a infinitude nunca pode se tornar). Mas por se tornar objetivo ninguém se torna louco. Talvez eu possa aqui contudo me permitir uma pequena observação que não me parece supérflua numa época objetiva. A ausência de interioridade também é loucura. A verdade objetiva, enquanto tal, não decide, de modo algum, que aquele que a expressa esteja de posse de suas faculdades mentais; pelo contrário, pode até mesmo revelar que esse homem é louco, não obstante seja inteiramente verdadeiro aquilo que diga e, em especial, objetivamente verdadeiro. Vou me permitir relatar um incidente que, sem qualquer modificação da minha parte, provém diretamente de um hospício. Um paciente numa tal instituição quer fugir e, de fato, executa seu plano pulando de uma janela. Encontra-se agora no jardim da instituição e quer iniciar sua marcha para liberdade, e aí ele se dá conta (devo dizer que era sagaz o bastante, ou louco o bastante, para que lhe ocorresse essa ideia?): Quando chegares à cidade, serás reconhecido e, muito provavelmente, serás logo transportado de volta, por isso é importante convenceres completamente a todo mundo, por meio da verdade objetiva de tua fala, de que, no que toca ao teu entendimento, está tudo em ordem. Enquanto está andando e refletindo sobre isso, ele vê ali na terra uma bola de boliche, ele a agarra e a coloca no bolso da cauda da casaca. A cada passo que dá, a bola lhe bate, com perdão da má palavra, na bun... , e a cada vez que ela lhe bate, ele diz: "Bum! A terra é redonda". Ele chega à Capital e visita em seguida um de seus amigos, quer convencê-lo de que não está louco e, por isso, anda, para cima e para baixo pela sala, dizendo sem parar: "Bum! A terra é redonda!" Mas será que a terra não é então redonda? Será que o hospício não exige, ainda, mais um sacrifício por causa dessa hipótese, como naqueles dias em que todos supunham que ela fosse tão chata quanto uma panqueca? Ou estará louco o homem que, por dizer uma verdade universalmente aceita, e universalmente considerada como objetiva, espera provar que não está louco? E, exatamente com isso, no entanto, torna-se evidente ao médico que o paciente [VII 163] ainda não está curado, muito embora a cura decerto não possa girar ao redor da questão de fazê-lo aceitar que a terra fosse chata. Mas nem todo mundo é médico, e a exigência da época tem considerável influência na questão da loucura, sim, de vez em quando, poder-se-ia mesmo ser tentado a supor que os tempos modernos, que modernizaram o cristianismo, também modernizaram a pergunta de Pilatos, e que a necessidade da época de encontrar algo em que repousar anuncia-se na pergunta: O que é loucura? Quando um livre-docente, cada vez que a cauda de sua beca lhe relembra de dizer algo, diz de omnibus dubitandus est [lat.: deve-se duvidar de tudo], e sem hesitação escreve um sistema no qual a cada duas frases há bastante evidência interna de que este homem jamais duvidou de coisa alguma: então ele não é considerado louco. - Dom Quixote é o modelo da loucura subjetiva na qual a paixão da interioridade envolve uma representação particular finita e fixa. Mas quando, por outro lado, a interioridade está ausente, aparece a loucura da lenga-lenga, que ainda é cômica, e que seria de desejar que um psicólogo experimentador a encenasse, tomando um punhado de tais filósofos e colocando-os juntos. Quando a demência é um delírio da interioridade, o trágico e o cômico consistem em que algo que é infinitamente importante para o infeliz seja um detalhe fixado que não tem importância para ninguém mais. Quando, pelo contrário, a demência consiste na ausência de interioridade, o cômico está em que aquilo que o felizardo sabe, é o verdadeiro, o verdadeiro que importa a todo o gênero humano, mas que pura e simplesmente não tem importância alguma para o muito honrado orador de lenga-lenga. Este tipo de demência é mais inumano do que o outro; a gente estremece ao olhar nos olhos daquele primeiro, para não descobrir a profundidade de seu estado desvairado, mas a gente nem se atreve, de modo algum, a olhar para o outro, por medo de descobrir que não tem olhos de verdade, mas olhos de vidro e cabelos de capacho, em suma, que ele é um produto artificial. Se a gente topa por acaso com um doente mental desse tipo, cuja doença consiste justamente em ele não ter uma mente, a gente o escuta com um frio horror; não se sabe se a gente ousa crer que é com um ser humano que se está falando, ou, talvez, com um "bastão de passeio", ou com uma invenção artificial de Dõbler que esconde em si um realejo. E ter bebido confraternizando com um carrasco pode ser, afinal, sempre bem desagradável para um homem de brio, mas deixar-se levar a uma conversação racional e especulativa com um bastão de passeio [VII 164] - isso é quase de enlouquecer. A reflexão subjetiva volta-se para dentro, em direção à subjetividade, e quer, nessa interiorização, ser a [reflexão] da verdade, e assim, tal como no que vimos antes, quando a objetividade avançava, a subjetividade desaparecia, agora a própria subjetividade torna-se o derradeiro, e o que é objetivo, o evanescente. Aqui não se esquece, nem por um instante, que o sujeito é existente, e que o existir é um vir-a-ser, e que por isso aquela identidade, própria da verdade, de pensamento e ser é, portanto, uma quimera da abstração e, em verdade, apenas um anseio de criação, não porque a verdade não seja uma identidade, mas porque aquele que conhece é um existente, e, então, a verdade não pode ser uma identidade para ele, enquanto ele existir. Se isso não ficar bem-estabelecido, então, com a ajuda da especulação, prontamente entraremos no fantástico Eu-Eu que a recente especulação decerto utilizou, mas não explicou de que modo um indivíduo particular se relaciona com isso e, meu Deus, afinal de contas, nenhum homem é mais do que um indivíduo particular. Se o existente pudesse, realmente, estar fora de si mesmo, aí a verdade seria uma coisa concluída para ele; mas onde está este ponto? O Eu-Eu é um ponto matemático que pura e simplesmente não existe; nessa medida, qualquer um pode a seu bel-prazer ocupar esse ponto de parada - ninguém impede o caminho dos demais. Só por um momento pode um indivíduo particular existente estar numa unidade de infinito e finito que transcenda o existir. Este momento é o instante da paixão. A especulação moderna fez de tudo para que o indivíduo possa objetivamente passar por cima de si mesmo; mas isso simplesmente não se deixa fazer; a existência o impede, e, se os filósofos de hoje em dia não se tivessem tornado escreventes a serviço da azáfama de um pensamento fantástico, teriam percebido que o suicídio seria a única interpretação prática, razoável, de sua tentativa. Mas a moderna especulação escrevinhadora faz pouco caso da paixão; e, contudo, para o existente, a paixão é o ápice da existência - e existentes nós somos, afinal de contas. Na paixão, o sujeito existente é infinitizado na eternidade da fantasia e contudo é, também, ele mesmo na sua determinação máxima. O fantástico Eu-Eu não é infinitude e finitude numa identidade, pois nem uma nem outra é real; [VII 165] ele é uma reunião fantástica nas nuvens, um abraço estéril, e a relação do eu individual com esta fantasmagoria não é jamais indicada. Todo conhecimento essencial tem a ver com existência, ou só o conhecimento cuja relação com a existência é essencial é conhecimento essencial. Visto essencialmente, o conhecer que, voltado para o interior, não tem a ver, na reflexão da interioridade, com a existência, é conhecer acidental, e seu grau e abrangência, vistos essencialmente, são indiferentes. Que o conhecer essencial se relacione essencialmente à existência não significa, contudo, a já mencionada identidade abstrata entre pensar e ser, nem significa objetivamente que o conhecer se relacione com algo de real como seu objeto; mas quer dizer que o conhecer se relaciona com aquele que conhece, o qual, essencialmente, é um existente, e que todo conhecimento essencial, por isso, se relaciona essencialmente com a existência e com o existir. Somente o conhecer ético e o ético-religioso são, portanto, conhecimentos essenciais. Mas todo o conhecer ético e ético-religioso é, essencialmente, um relacionar-se com isso: que aquele que conhece existe. A mediação é uma miragem, tal qual o Eu-Eu. Visto abstratamente, tudo é, e nada se torna. Na abstração, a mediação não consegue, então, encontrar seu lugar, já que ela tem o movimento como seu pressuposto. O saber objetivo pode muito bem ter o real como seu objeto, mas como o sujeito conhecedor é existente, e está, ele mesmo, no vir-a-ser, por existir, a especulação precisa, antes, explicar como um sujeito particular existente se relaciona com o conhecimento da mediação, o que ele é nesse momento, se, p. ex., ele não está, naquele exato momento, um bocado distraído, e onde ele está, se não é na lua. Fala-se a toda hora de mediação e mediação; será a mediação, então, um ser humano, tal como Per Degn supõe que Imprimatur o seja? Como é que um ser humano se comporta, para se tornar algo desse tipo? Estuda até alcançar esta dignidade, esse grande philosophicum [lat.: exame de filosofia]? Ou o magistrado o distribui, como distribui as funções de sacristão e de coveiro? Procure-se se envolver com essas questões singelas e outras similares despertadas por um ser humano singelo, que gostaria muito de ser a mediação, se pudesse se tornar tal de uma maneira legal e honesta e não simplesmente dizendo eins, zuiei, drei, kokolorum [al.: 1,2,3, abracadabra] nem tampouco esquecendo que ele próprio é um ser humano existente, [VII 166] para quem existir é, por conseguinte, algo essencial, e para quem existir de modo ético-religioso é um conveniente quantum satis [lat.: o bastante]. Para um especulante pode talvez parecer abgeschmackt [al.: de mau gosto] colocar questões desse tipo, mas é especialmente importante não polemizar no lugar errado e, portanto, não começar, ele mesmo de modo fantástico-objetivo, um pro e contra para saber se há ou não mediação, mas, sim, que a gente se agarre à questão do que significa ser um ser humano. Eu devo agora, para aclarar a diferença de caminho da reflexão objetiva e da subjetiva, mostrar a busca da reflexão subjetiva no retorno para dentro da interioridade. O máximo da interioridade num sujeito existente é paixão; à paixão corresponde a verdade como um paradoxo, e que a verdade se torne um paradoxo é algo que está fundamentado justamente na relação da verdade para com um sujeito existente. Dessa maneira, uma corresponde à outra. Ao esquecer que se é sujeito existente, a paixão se esvai, e a verdade, em compensação, não se torna paradoxal; mas o sujeito cognoscente deixa de ser um homem para se tornar algo fantástico, e a verdade se torna um objeto fantástico para o seu conhecimento. Quando se pergunta pela verdade objetivamente, reflete-se aí sobre a verdade como um objeto com o qual aquele que conhece se relaciona. Aí não se reflete sobre a relação, mas sobre o fato de que é com a verdade, com o verdadeiro que ele se relaciona. Desde que aquilo com que ele se relaciona seja a verdade, o verdadeiro, o sujeito está então na verdade. Quando se pergunta pela verdade subjetivamente, reflete-se aí subjetivamente sobre a relação do indivíduo. Desde que o como dessa relação esteja na verdade, o indivíduo está então na verdade, mesmo que, assim, se relacione com a não verdade. (O leitor preste atenção a que aqui se fala da verdade essencial, ou daquela verdade que se relaciona essencialmente à existência, e que seu contraste é indicado precisamente a fim de evidenciar que ela é a interioridade ou a subjetividade). Tomemos como exemplo o conhecimento de Deus. Objetivamente, reflete-se sobre o ser este o Deus verdadeiro; subjetivamente, sobre o indivíduo se relacionar com um algo de tal modo que sua relação seja, em verdade, uma relação com Deus. Em qual dos lados está então a verdade? Aí, não deveríamos, aqui, buscar apoio na mediação e dizer: Não está em nenhum dos lados; está na mediação? [VII 167] Excelente dito, desde que alguém pudesse dizer de que maneira um existente consegue estar na mediação; pois estar na mediação é estar pronto e acabado, existir é devir. Um existente também não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, não pode ser sujeito-objeto. Quando chega mais próximo de estar em dois lugares ao mesmo tempo, é quando está na paixão; mas paixão é só por momentos, e paixão é o máximo da subjetividade. - O existente que escolhe o caminho objetivo agora penetra em toda a consideração aproximativa que quer apresentar Deus objetivamente, o que em toda a eternidade jamais se alcançará, porque Deus é sujeito e, por conseguinte, só é para a subjetividade na interioridade. O existente que escolhe o caminho subjetivo, no mesmo instante apreende toda a dificuldade dialética: vai precisar de algum tempo, talvez de um longo tempo, para encontrar Deus objetivamente; ele apreende essa dificuldade dialética em toda sua dor, porque vai precisar de Deus no mesmo instante, porque é desperdiçado cada instante em que ele não tem Deus. (Deste modo, Deus vem a ser, com efeito, um postulado, mas não no sentido ocioso em que normalmente se toma isso; antes, torna-se evidente que essa é a única maneira de um existente entrar numa relação com Deus: quando a contradição dialética leva a paixão ao desespero e a auxilia a abraçar Deus com "a categoria do desespero" (fé), de forma que o postulado, longe de ser arbitrariedade, é justamente uma legítima defesa [Nodvaerge, lit.: defesa necessária]; de modo que Deus não é um postulado, mas que o existente postule Deus é - uma necessidade). No mesmo instante, ele tem Deus, não em virtude de qualquer consideração objetiva, mas em virtude da paixão infinita da interioridade. O [tipo] objetivo não se deixa perturbar por dificuldades dialéticas como: o que significa dedicar todo um período de investigações a encontrar Deus - dado que afinal seria possível que o investigador morresse amanhã, e que, se continuasse vivo, não poderia não obstante considerar Deus como algo que se toma consigo conforme as conveniências, dado que Deus é algo que a gente leva consigo à tout prix [fr.: a qualquer preço], o que, no entendimento da paixão, é justamente a verdadeira relação da interioridade para com Deus. É neste ponto, dialeticamente tão difícil, que o caminho bifurca para aquele que sabe o que significa proceder dialeticamente e proceder dialeticamente existindo, o que é diferente de sentar-se como um ser fantástico a uma escrivaninha e escrever sobre algo que jamais se fez, que é algo diferente de escrever de omnibus dubitandum e, ele mesmo existindo, ser tão crédulo quanto o ser humano mais preso aos sentidos [VII 168] - é aqui que o caminho bifurca, e a mudança é esta: que enquanto o saber objetivo avança calmamente pelo longo caminho da aproximação, não incitado ele próprio pela paixão, para o saber subjetivo toda demora é fatal, e a decisão é tão infinitamente importante que é imediatamente tão urgente, como se a oportunidade já tivesse passado em vão. Agora, se o problema for calcular onde há mais verdade (e estar ao mesmo tempo igualmente em ambos os lados não é dado a um existente, como já foi dito, mas é apenas uma beatificante ilusão para um iludido Eu-Eu), se do lado daquele que de modo apenas objetivo busca o Deus verdadeiro e a verdade aproximativa da noção de Deus, ou do lado daquele outro que está infinitamente preocupado em saber se ele se relaciona, na verdade, com Deus, com a infinita paixão da carência: então não pode a resposta ser duvidosa para quem não se tiver deixado emaranhar totalmente graças à ciência. Se alguém que vive em meio ao cristianismo adentra a casa de Deus, a casa do verdadeiro Deus, com o conhecimento da verdadeira noção de Deus, e então ora, mas ora na inverdade; e quando alguém vive num país idólatra, mas ora com toda a paixão da infinitude, não obstante seus olhos descansem na imagem de um ídolo: onde, então, há mais verdade? Um ora na verdade a Deus, apesar de adorar um ídolo; o outro ora na inverdade ao verdadeiro Deus, e por isso adora na verdade um ídolo. Se alguém objetivamente investiga sobre a imortalidade, e outro depõe a paixão da infinitude na incerteza: Onde, então, há mais verdade, e quem tem mais certeza? Um deles ingressou, de uma vez por todas, numa aproximação que nunca termina, pois a certeza da imortalidade reside, afinal de contas, justamente na subjetividade; o outro é imortal e, justamente por isso, empenha-se em combater contra a incerteza. Observemos Sócrates. Hoje em dia, cada um mexe canhestro com algumas provas, um tem muitas, outro tem menos. Mas Sócrates! Ele coloca a questão objetivamente de modo problemático: se há ou não uma imortalidade. Portanto, comparado com um desses pensadores modernos de três provas, ele era um cético? De modo algum. Em cima deste "se" ele aposta toda a sua vida; ele se arrisca a morrer e, com a paixão do infinito, organiza então toda sua vida, de modo a tornar a morte aceitável - se houver uma imortalidade. Haverá alguma prova melhor da imortalidade da alma? Mas os que têm as três provas não organizam, em absoluto, suas vidas de acordo com essas; [VII 169] se houver uma imortalidade, ela terá de enojar-se do modo de vida que levam - haverá alguma contraprova melhor contra as três provas? A "migalha" de incerteza ajudou Sócrates, pois ele próprio se ajudou com a paixão da infinitude. As três provas não trazem proveito algum para aqueles outros, porque eles afinal são e sempre serão uns embotados e, na falta de provar qualquer outra coisa, já provaram, com suas três provas, que o são. Assim também quiçá uma jovem, com uma frágil esperança de ser amada por seu amado, possuiu toda a doçura do amor, porque ela própria colocou tudo nesta frágil esperança: ao contrário, muita madame casada, que mais de uma vez se submeteu à mais forte expressão do amor erótico, teve decerto provas e, contudo, por estranho que pareça, não possuiu o quod erat demonstrandum [lat.: como queríamos demonstrar]. A ignorância socrática foi então a expressão, firmemente mantida com toda a paixão da interioridade, de que a verdade eterna se relaciona com um existente, e, por isso, precisa permanecer, para ele, enquanto ele existe, como um paradoxo e, contudo, é possível que, na ignorância socrática, houvesse mais verdade em Sócrates do que na verdade objetiva de todo o sistema que flerta com as exigências do tempo e se acomoda aos livres-docentes. Objetivamente, acentua-se: o que é dito; subjetivamente: como isso é dito. Esta distinção já é válida na estética, e se expressa especificamente quando se diz que o que é verdade pode na boca desta ou daquela pessoa se tornar inverdade. A essa distinção há que se dar em nossos dias uma atenção especial, pois se se devesse expressar numa única sentença a diferença entre a Antiguidade e o nosso tempo, dever-se-ia, sem dúvida, dizer: que na Antiguidade havia apenas alguns indivíduos que conheciam a verdade; agora, todos a conhecem, mas a interioridade está numa relação inversa para com ela. Em termos estéticos, a contradição, que se apresenta quando a verdade se torna inverdade na boca dessa ou daquela pessoa, é melhor entendida comicamente. Em termos ético-religiosos, acentua-se outra vez: o como; contudo isso não deve ser entendido como decoro, modulação de voz, desenvoltura oral etc., mas se compreende como a relação da pessoa existente, em sua própria existência, com aquilo que ela enuncia. Objetivamente, só se pergunta pelas categorias de pensamento; subjetivamente, pela interioridade. Em seu máximo, esse "como" é a paixão da infinitude, e a paixão da infinitude é a própria verdade. Mas a paixão da infinitude é justamente a subjetividade, e assim a subjetividade é a verdade. Visto objetivamente, não há nenhuma decisão infinita, [VII 170] e desse modo está objetivamente correto que a distinção entre bem e mal seja abolida junto com o princípio de contradição e também, com isso, a distinção infinita entre verdade e mentira. Só na subjetividade há decisão, contraposto ao que, querer tornar-se objetivo é a inverdade. A paixão da infinitude é o decisivo, não seu conteúdo, pois seu conteúdo é, precisamente, ela mesma. Assim, o "como" subjetivo e a subjetividade são a verdade. Mas o "como" que se acentua subjetivamente é também, precisamente porque o sujeito está existindo, dialético em relação ao tempo. No momento de decisão da paixão, onde o caminho desvia do saber objetivo, a decisão infinita parece estar, com isso, finalizada. Mas, no mesmo instante, o existente está na temporalidade, e o "como" subjetivo se transforma num esforço que é impulsionado e repetidamente revigorado pela decisiva paixão da infinitude, mas que é, mesmo assim, um esforço. Se a subjetividade é a verdade, a definição da verdade tem também de conter, em si mesma, uma expressão do oposto da objetividade, uma recordação daquela encruzilhada no caminho, e essa expressão indicará, ao mesmo tempo, a tensão da interioridade. Eis aqui tal definição de verdade: a incerteza objetiva, sustentada na apropriação da mais apaixonada interioridade, é a verdade, a mais alta verdade que há para um existente. Lá onde o caminho se desvia (e onde é este ponto não se pode estabelecer objetivamente, pois ele é, precisamente, a subjetividade), o saber objetivo é suspenso. Objetivamente ele tem, então, apenas incerteza, mas é exatamente isso que tensiona a infinita paixão da interioridade, e a verdade é justamente a ousada aventura de escolher, com a paixão da infinitude, o que é objetivamente incerto. Observo a natureza a fim de encontrar Deus e, de fato, vejo onipotência e sabedoria, mas vejo também muita outra coisa que preocupa e perturba. A summa summarum [lat.: soma total] disso é a incerteza objetiva, mas precisamente por isso a interioridade é tão grande, porque a interioridade abrange a incerteza objetiva com toda a paixão da infinitude. No que toca a uma proposição matemática, p. ex., a objetividade é dada, mas, por isso, sua verdade é também uma verdade indiferente. Mas a definição de verdade dada acima é uma paráfrase da fé. Sem risco não há fé. Fé é justamente a contradição entre a paixão infinita da interioridade e a incerteza objetiva. Se eu posso apreender objetivamente Deus, então eu não creio; mas, justamente porque eu não posso fazê-lo, por isso tenho de crer; e se quero manter-me na fé, tenho de constantemente cuidar de perseverar na incerteza objetiva, de modo que, na incerteza objetiva, eu estou sobre "70.000 braças de água", e contudo creio. Na proposição de que a subjetividade, a interioridade, é a verdade, está contida a sabedoria socrática, cujo mérito imortal consiste justamente em ter respeitado o significado essencial do existir, de que o cognoscente é existente, razão pela qual Sócrates, no sentido mais elevado, em sua ignorância em meio ao paganismo, estava na verdade. Compreender que o infortúnio da especulação está exatamente no fato de ela esquecer, a cada vez, que aquele que conhece é um existente, já pode ser um tanto difícil em nossa época objetiva. "Mas ir além de Sócrates quando nem mesmo se compreendeu o socrático - isso, no mínimo, não é socrático." Cf. a moral das Migalhas. Vamos então, a partir deste ponto, ensaiar, como nas Migalhas, uma categoria que vá realmente mais além. Se essa é verdadeira ou é falsa, aqui não me importa, pois estou apenas experimentando, mas pelo menos se há de exigir que fique claro que o socrático está compreendido nela, de modo que no mínimo eu não acabe de novo atrás de Sócrates. Quando a subjetividade, a interioridade, é a verdade, então a verdade, determinada objetivamente, é o paradoxo; e que a verdade objetivamente seja o paradoxo mostra precisamente que a subjetividade é a verdade, já que, com efeito, a objetividade repele e a repulsão da objetividade, ou a expressão da repulsão da objetividade, é a elasticidade e o dinamômetro da interioridade. O paradoxo é a incerteza objetiva que é a expressão da paixão da interioridade, o que é justamente a verdade. Até aí o socrático. A verdade eterna, essencial, i. é, aquela que se relaciona essencialmente ao existente por ter a ver essencialmente com o existir (visto socraticamente, qualquer outro saber é contingente, e seu grau e abrangência são indiferentes), é o paradoxo. Entretanto, a verdade essencial eterna, não é, ela mesma, de modo algum o paradoxo, mas ela o é por relacionar-se com um existente. A ignorância socrática é a expressão da incerteza objetiva, a interioridade do existente é a verdade. Para já antecipar, note-se o seguinte: a ignorância socrática é um analogon [gr.: algo análogo] à categoria do absurdo, só que há ainda menos certeza objetiva na repulsão exercida pelo absurdo, e, justamente por esta razão, há uma elasticidade infinitamente maior na interioridade. A interioridade socrática no existir é um analogon da fé, [VII 172] só que a interioridade desta, correspondendo não à repulsão pela ignorância e sim à repulsão pelo absurdo, é infinitamente mais profunda. Socraticamente, a verdade eterna essencial não é, de modo algum, paradoxal em si mesma, mas só por se relacionar com um existente. Isso é expresso numa outra proposição socrática: que todo conhecer é um recordar. Esta proposição é um indício do iniciar da especulação, mas também por isso Sócrates não a perseguiu; essencialmente, ela se tornou platônica. Aí é onde o caminho desvia, e Sócrates, essencialmente, acentua o existir, enquanto Platão, esquecendo-o, perde-se na especulação. O mérito infinito de Sócrates é, justamente, o de ser um pensador existente, não um especulante, que esquece o que é o existir. Para Sócrates, portanto, que todo conhecer seja um recordar significa, no instante da despedida e como uma possibilidade constantemente anulada de especular, significa, para ele, duas coisas: (1) que aquele que conhece é essencialmente integer [lat.: íntegro] e que para ele não há nenhuma outra precariedade no que se refere ao conhecimento da verdade eterna afora esta, que ele existe, uma precariedade tão essencial e decisiva para ele que significa que o existir, a profundidade interior no e pelo existir, é a verdade; (2) que a existência na temporalidade não tem nenhuma significação decisiva, porque persiste, constantemente, a possibilidade de, recordando, levar-se de volta para a eternidade, embora esta possibilidade seja constantemente anulada pelo fato de que a interiorização no existir preenche o tempo. (Aqui será talvez o lugar correto para elucidar uma dubiedade na composição das Migalhas, motivada por eu não ter querido logo fazer a coisa ser tão dialeticamente difícil quanto ela é, porque, em nossa época, as terminologias e coisas semelhantes são tão confusas que é quase impossível salvaguardar-se contra uma confusão [Confusion]. A fim de, se possível, elucidar corretamente a diferença entre o socrático (que deveria sim ser o filosófico, o filosófico pagão) e a categoria [Tankebestemmelse] experimentalmente construída, que realmente vai além do socrático, reduzi o socrático à proposição de que todo conhecer é recordar. Isso é o geralmente aceito, e só aquele que, com um interesse muito especial, se dedica ao socrático, sempre retomando às fontes, só para este será importante nesse ponto distinguir entre Sócrates e Platão [VII 173], já que a proposição pertence decerto a ambos, mas Sócrates se despede constantemente dela, porque ele quer existir. Ao ligarmos Sócrates à proposição de que todo conhecer é recordar, ele se torna um filósofo especulativo, ao invés daquilo que ele era, um pensador existente que compreendia o existir como o essencial. A proposição de que todo conhecer é recordar é própria da especulação, e o recordar é a imanência, e do ponto de vista especulativo e eterno, não há nenhum paradoxo, mas a dificuldade, de qualquer modo, está em que nenhum ser humano é a especulação, e aquele que fica especulando [den Speculerende] é um existente, sujeito às exigências da existência; esquecê-lo não é nenhum mérito, mas agarrar-se a isso com firmeza é, de fato, um grande mérito, e é o que Sócrates justamente fazia. Acentuar a existência, que contém em si a determinação da interioridade, é o socrático: o platônico, por outro lado, é perseguir a recordação e a imanência. Com isso Sócrates está, no fundo, mais além de toda especulação, porque ele não possui um início fantástico, em que o que está especulando troca suas roupas e assim vai continuando e continuando e especulando, esquecendo o mais importante, o existir. Mas, precisamente porque Sócrates foi, desse modo, mais longe, adquire, corretamente representado, certa semelhança análoga com aquilo que o experimento apresentava como o que em verdade vai além do socrático: a verdade como paradoxo torna-se uma analogia do paradoxo sensu eminentiori [lat.: no sentido mais eminente]; a paixão da interioridade no existir torna-se, então, uma analogia da fé sensu eminentiori. Que a diferença é, contudo, infinita, que as determinações das Migalhas para aquilo que verdadeiramente vai além do socrático estejam inalteradas [uforandrede], será fácil mostrar, mas temi perturbar ao utilizar, de imediato, aparentemente as mesmas determinações, ao menos as mesmas palavras, em relação a coisas diferentes, já que o objeto do experimento tinha que ser apresentado como algo de diferente delas. Agora penso que nada impediria de falar sobre o paradoxo com referência a Sócrates e à fé, pois tudo vai bem, desde que seja corretamente compreendido, e dado que, além disso, os gregos antigos, afinal de contas, também usam a palavra fé, embora de modo algum no sentido do objeto daquele experimento [i Experimenteredes Forstand], e utilizam-na, especialmente em conexão com um dos trabalhos de Aristóteles, em que o termo ocorre, de modo a possibilitar observações muito esclarecedoras sobre sua diferença em relação à fé sensu eminentiori). O mérito infinito do socrático foi, precisamente, o de acentuar que o cognoscente é existente, e que o existir é o essencial. Ir mais além, sem ter entendido isso, não passa de um mérito medíocre. É o que devemos ter in mente [lat.: em mente], [VII 174] e então tratar de ver se a fórmula não se deixa transformar de modo a que se vá, de fato, mais além do socrático. Portanto, a subjetividade, a interioridade, é a verdade; agora, há uma expressão mais interior para isso? Sim, se o dito: a subjetividade, a interioridade, é a verdade começar assim: A subjetividade é a inverdade. Não nos apressemos demais. A especulação também diz que a subjetividade é a inverdade, mas ela o diz no sentido diametralmente oposto, ou seja, dando a entender que a objetividade é a verdade. A especulação define a subjetividade negativamente em proveito da objetividade. A outra definição, contudo, põe obstáculos em seu próprio caminho, quando quer iniciar, o que torna a interioridade muito mais interior. Socraticamente, a subjetividade é a inverdade quando ela se recusa a entender que a subjetividade é a verdade, mas quer, p. ex., ser objetiva. Aqui, pelo contrário, ao querer começar a se tornar a verdade, tornando-se subjetiva, a subjetividade encontra-se na dificuldade de ser a inverdade. E então o trabalho recua, recua, com efeito, para a interioridade. Bem longe de o caminho se voltar assim na direção do objetivo, seu início só se encontra ainda mais profundamente na subjetividade. Mas a inverdade o sujeito não pode ser eternamente, nem se pode pressupor que o tenha sido eternamente; é preciso que ele tenha se tornado tal no tempo, ou que se torne tal no tempo. O paradoxo socrático residia em que a verdade eterna se relacionasse com um existente, mas agora a existência marcou o existente uma segunda vez; ocorreu uma alteração tão essencial nela, que ela não pode, de jeito nenhum, retomar-se na eternidade por meio da recordação socrática. Fazer tal coisa, ser capaz de fazê-lo, é especular, mas suspender a possibilidade disso ao conceber a interiorização na existência, é o socrático; mas agora a dificuldade é que o que seguia Sócrates como uma possibilidade suspensa, tornou-se uma impossibilidade. Se já em relação ao socrático o especular era um mérito duvidoso, agora isso é apenas confusão. O paradoxo se apresenta quando a verdade eterna e o existir são justapostos, mas quanto mais se marca o existir, tanto mais claro se torna o paradoxo. Visto à maneira socrática, o cognoscente era um existente, mas agora o existente está marcado de tal modo que a existência operou uma alteração essencial nele. Chamemos agora a inverdade do indivíduo de pecado. Visto eternamente, ele não pode ser pecado, nem se pode pressupor que tenha estado eternamente nele. Portanto, [VII 175] nascendo (pois o início era, como se disse, que a subjetividade é a inverdade), ele se torna um pecador. Ele não nasce como pecador no sentido de ser pressuposto como pecador antes mesmo de ter nascido, mas nasce no pecado e como pecador. A isso poderíamos chamar, aliás, pecado hereditário. Mas se a existência apoderou-se desse modo dele, então ele está impedido de retomar-se a si mesmo na eternidade pela reminiscência. Se já era paradoxal que a verdade eterna se relacionasse com um existente, agora é absolutamente paradoxal que ela se relacione com tal existente. Mas quanto mais difícil ficou para ele abstrair-se da existência pelo recordar, tanto mais interiorizado pode se tornar seu existir na existência; e, então, quando aquilo ficou impossível para ele, quando ele se enfiou até o pescoço na existência de tal maneira que a porta dos fundos da reminiscência trancou-se para sempre, então a interioridade se torna o que há de mais profundo. Mas nunca nos esqueçamos de que o meritório em Sócrates consistiu justamente no enfatizar que o cognoscente é existente, pois quanto mais difícil a coisa se torna, tanto mais a gente se sente tentado a, no caminho fácil da especulação, deixando para trás terrores e decisões, apressar-se rumo à fama, à honra, a dias agradáveis etc. Se já Sócrates havia percebido como era complicado, especulando, abstrair-se da existência e remontar à eternidade, quando nenhuma complicação havia para o existente senão o fato de que ele existia, além de que o existir fosse o essencial: agora, ficou impossível. Ele precisa andar para a frente; recuar é impossível. A subjetividade é a verdade. Ao se relacionar a verdade essencial eterna com o existente, surge o paradoxo. Agora avancemos, admitamos que a verdade essencial eterna seja, ela mesma, o paradoxo. De que modo surge o paradoxo? Ao serem justapostos a verdade essencial eterna e o existir. Por conseguinte, quando os reunimos na própria verdade, a verdade se torna então um paradoxo. A verdade eterna surgiu no tempo. É isso o paradoxo. Se o sujeito acima mencionado foi impedido pelo pecado de retomar-se a si mesmo na eternidade, agora não deve mais se preocupar por causa disso, pois agora a verdade eterna, essencial, já não se encontra lá atrás, mas veio para a frente dele, pelo fato de ela mesma existir, ou ter existido, de modo que se o indivíduo, existindo, na existência, não alcançar a verdade, jamais a alcançará. A existência jamais poderá ser acentuada mais fortemente do que o foi agora. A fraude da especulação de querer recordar-se de si fora da existência ficou impossibilitada. Trata-se aqui de compreender apenas isso, e toda especulação que quer ser especulação mostra eo ipso [lat.: precisamente por isso] que não o compreendeu. O indivíduo pode rejeitar tudo isso e recorrer à especulação, mas aceitá-lo e depois querer superá-lo pela especulação é impossível, [VII 176] porque é algo calculado justamente para evitar a especulação. Quando a verdade eterna relaciona-se com um existente, ela se torna o paradoxo. O paradoxo rebate, na incerteza objetiva e na ignorância, para a interioridade daquele que existe. Mas como o paradoxo não é, em si mesmo, o paradoxo, ele não rebate com interioridade suficiente; pois sem risco não há fé; quanto maior o risco, maior a fé; quanto mais confiabilidade objetiva, menos interioridade (pois a interioridade é justamente a subjetividade); quanto menos confiabilidade objetiva, mais profunda é a possível interioridade. Quando o próprio paradoxo é o paradoxo, ele rebate em virtude do absurdo, e a paixão da interioridade, que corresponde a isso, é a fé. - Mas a subjetividade, a interioridade, é a verdade; pois de outro modo teremos esquecido o mérito socrático. Mas para a interioridade não há expressão mais forte do que, quando a retirada, da existência para dentro da eternidade, pela recordação, se tornou impossível, então, com a verdade contra si, como paradoxo, na angústia do pecado e com sua dor, com o tremendo risco da objetividade - crer. Mas sem risco não há fé, nem mesmo a socrática, menos ainda essa de que falamos aqui. Quando Sócrates acreditava que Deus existe, mantinha firme a incerteza objetiva com toda a paixão da interioridade, e nesta contradição, neste risco está justamente a fé. Agora é de outro modo, ao invés da incerteza objetiva, há aqui a certeza de que isso, visto objetivamente, é o absurdo, e essa coisa absurda, sustentada na paixão da interioridade, é a fé. A ignorância socrática é como um gracejo engenhoso em comparação com a seriedade do absurdo, e a interioridade existencial socrática assemelha-se à despreocupação grega em comparação com o esforço da fé. O que, então, é o absurdo? O absurdo é que a verdade eterna veio a ser no tempo, que Deus foi gerado, nasceu, cresceu etc., veio a ser como qualquer humano, a ponto de não se poder diferenciá-lo de outro ser humano, pois toda possibilidade de reconhecimento imediato é paganismo pré-socrático e, do ponto de vista judeu, idolatria; e toda e qualquer determinação daquilo que realmente vai além do socrático tem que ter, essencialmente, uma marca de que se relaciona ao fato de que o deus veio a ser, porque fé, sensu strictissimo [lat.: no sentido mais estrito], tal como foi desenvolvido nas Migalhas, se refere ao devir. Quando Sócrates acreditava que Deus existe, percebia, sem dúvida, [VII 177] que lá onde o caminho bifurca há um caminho de aproximação objetiva, por exemplo, pela observação da natureza, pela história do mundo etc. Seu mérito foi, justamente, o de evitar este caminho, onde o canto da sereia da quantificação encanta e engana o existente. Em relação ao absurdo, a aproximação objetiva assemelha-se à comédia Misforstaaelse paa Mistorstaaelse (Mal-entendido sobre mal-entendido), que ordinariamente é encenada por livres-docentes e especulantes. O absurdo é, justamente pela repulsa objetiva, o dinamômetro da fé na interioridade. Então, há um homem que quer ter a fé; a comédia já pode começar. Ele quer ter a fé, mas quer estar seguro, com a ajuda da consideração objetiva e da aproximação. O que acontece? Com a ajuda da aproximação, o absurdo se torna outra coisa; torna-se provável, torna-se mais provável, torna-se talvez extraordinariamente e sumamente provável. Agora aí está, ele agora deve estar em condições de crer, e ousa dizer de si mesmo que não crê como sapateiros e alfaiates e como a gente simples, porém só depois de longa consideração. Agora ele deve estar em condições de crer, mas, vejam, agora crer se tornou de fato impossível. O quase provável, o provável, o extraordinariamente e sumamente provável - isso ele pode quase saber, ou praticamente saber, extraordinariamente e no mais alto grau, quase saber - mas crer nisso, é algo que não dá para fazer, pois o absurdo é justamente o objeto da fé, e a única coisa que se pode crer. - Ou há um homem que diz que tem a fé, mas agora quer se esclarecer sobre sua fé; quer compreender-se em sua fé. A comédia já pode recomeçar. O objeto da fé se torna quase provável, se torna praticamente o mesmo que provável, se torna extraordinariamente e sumamente provável. Ele terminou; ousa dizer de si mesmo que não crê como sapateiros e alfaiates e a gente simples, mas que também compreendeu a si mesmo em sua fé. Que estranha compreensão! Ao contrário, veio a saber algo diferente sobre a fé, diferente do que acreditava, e veio a saber que não mais crê, dado que quase sabe, praticamente sabe, de modo extraordinário e em sumo grau quase sabe. Na medida em que o absurdo contém em si o momento do devir, um caminho aproximativo será também aquele que confunde o fato absurdo do devir, que é o objeto da fé, com um fato histórico simples e, portanto, persegue a certeza histórica para aquilo que é justamente o absurdo porque contém a contradição de que algo, que só contra todo entendimento humano pode tornar-se histórico, tenha se tornado tal. [VII 178] Esta contradição é justamente o absurdo, que só pode ser crido; quando se obtém uma certeza histórica, obtém-se apenas a certeza de que aquilo que é certo não é o que se procurava. Uma testemunha pode dar testemunho de que ela o creu e, portanto, longe de ser isso uma certeza histórica, está em direta oposição a seu entendimento, mas uma tal testemunha causa repulsão do mesmo modo que o absurdo o faz, e uma testemunha que não cause repulsão desse modo é, eo ipso, um enganador, ou um homem que fala de algo bem diferente; e uma tal testemunha não pode ser de nenhuma ajuda, a não ser para obter certeza a respeito de algo completamente diferente. Cem mil testemunhas individuais, que, pela natureza especial de seu testemunho (que creram no absurdo), continuam sendo testemunhas individuais, não se tornam de jeito nenhum algo diferente en masse, de forma que o absurdo se tornasse menos absurdo; e por quê? Porque cem mil pessoas creram, cada uma por si, que isso era absurdo? Pelo contrário, aquelas cem mil testemunhas causam repulsão, por sua vez, da mesmíssima maneira como o absurdo. - Contudo, não preciso desenvolver isso aqui mais detalhadamente. Já expus nas Migalhas (especialmente lá onde a diferença entre o discípulo de primeira e o de segunda mão é abolida) e na primeira parte daquele livro, com suficiente meticulosidade, que toda aproximação não serve para nada, já que o importante é, ao contrário, desembaraçar-se de observações introdutórias, certificações, provas a partir dos efeitos, e toda a turba de diretores da casa de penhores e fiadores, para deixar nítido o absurdo - de modo que aí possa crer, quem quiser - eu só digo que isso precisa ser um esforço extremo. Se a especulação quer se envolver com isso e, como de costume, dizer: do ponto de vista eterno, divino, teocêntrico, não há paradoxo - não conseguirei decidir se o especulante tem razão, pois eu sou apenas um pobre ser humano existente que não pode observar o eterno nem divinamente nem teocentricamente, mas tem de se contentar com existir. Por outro lado, uma coisa é certa, que com a especulação tudo recua, recua para trás de Sócrates, que pelo menos entendeu que existir era o essencial, para um existente; para nem questionar se a especulação se deu tempo para compreender o que quer dizer estar situado na existência, como o existente conforme nosso experimento. A diferença entre o socrático e aquilo que vai além de Sócrates está suficientemente nítida, e é essencialmente a mesma das Migalhas, pois, nesta, nada mudou, e, naquela, o problema apenas se tornou algo mais difícil, mas, de qualquer modo, não mais difícil do que ele é, assim como também se tornou um pouco mais difícil porque, enquanto nas Migalhas adiantei a determinação teórica do paradoxo [VII 179] de forma meramente experimental, aqui tentei também, de modo latente, tornar nítida a necessidade do paradoxo, o que, muito embora a tentativa esteja um tanto fraca, sempre é algo diferente do que abolir especulativamente o paradoxo. Ora, o próprio cristianismo proclamou-se como a verdade essencial, eterna, que veio a ser no tempo; ele se proclamou como o paradoxo e exigiu a interioridade da fé em relação ao que é um escândalo para os judeus, e para os gregos uma tolice - e para o entendimento o que há de absurdo. Não se poderia expressar de modo mais vigoroso que a subjetividade é a verdade e que a objetividade apenas repele, e ainda mais em virtude do absurdo, como também parece estranho que o cristianismo devesse ter vindo ao mundo para ser explicado, ah, como se ele próprio estivesse um tanto confuso a respeito de si mesmo e, por isso, viesse ao mundo à procura do homem sábio, do especulante, daquele que pode ajudar com a explicação. Não se pode expressar de modo mais interiorizado que a subjetividade é a verdade do que quando a subjetividade é, inicialmente, a inverdade, e mesmo assim a subjetividade é a verdade. Suponhamos que o cristianismo fosse e quisesse ser um mistério, um mistério assim de proveito, não um mistério de teatro que é revelado no quinto ato, embora o espectador engenhoso já o tenha percebido no correr da exposição. Suponhamos que uma revelação sensu strictissimo tenha que ser um mistério e ser reconhecida pura e exclusivamente como um mistério, enquanto que uma revelação sensu laxiori [lat.: em sentido mais amplo], o recolhimentos para dentro do eterno pela recordação, seria uma revelação no sentido direto. Suponhamos que a diferença no talento intelectual seja a diferença de ser capaz de expor, de modo cada vez mais nítido, que aquilo é e sempre será um mistério para os existentes. Suponhamos que o talento intelectual difira da má compreensão de acordo com a habilidade do indivíduo, cada vez mais enganadora, de passar a ilusão de que teria compreendido o mistério. Suponhamos que fosse, contudo, uma felicidade que, situados na extremidade da existência, pudéssemos relacionar-nos com esse mistério sem entendê-lo, apenas crendo. Suponhamos que o cristianismo não desejasse, de modo algum, ser compreendido; suponhamos que, a fim de expressar isso e de evitar que alguém, desorientado, tome o caminho da objetividade, o cristianismo tenha proclamado ser o paradoxo. Suponhamos que desejasse ser apenas para os existentes, na interioridade, na interioridade da fé, o que não pode ser expresso de modo mais determinado do que este: é o absurdo, que deve ser afirmado com a paixão do infinito. Suponhamos que não desejasse ser compreendido, e que o máximo de compreensão que viria ao caso fosse compreender que ele não pode ser compreendido. [VII 180] Suponhamos que por isso acentuasse o existir de modo tão decisivo, que o indivíduo singular se tornasse um pecador; o cristianismo, o paradoxo; e a existência, o tempo da decisão. Suponhamos que o especular fosse uma tentação, a mais grave de todas. Suponhamos que o especulante não seja o filho pródigo - pois neste caso o Deus preocupado talvez só o chamaria de escandalizado, a quem continuava, contudo, a amar -, mas sim o filho malcriado que se recusa a ficar no lugar a que pertencem os existentes, no jardim de infância e na sala de educação da existência, onde alguém só se torna adulto graças à interioridade do existir, mas quer, em vez disso, intrometer-se no conselho de Deus, gritando continuamente que, do ponto de vista do eterno, do divino, do teocêntrico, não há nenhum paradoxo. Suponhamos que o especulante fosse aquele morador inquieto que, embora evidentemente locatário, contudo, em vista da abstrata verdade de que do ponto de vista eterno e divino toda propriedade é comum, quisesse ser proprietário, de modo que a única coisa a fazer fosse mandar chamar um oficial, que decerto diria, tal como os beleguins dizem a Gert Westphaler: Lamentamos ter de vir resolver este assunto. - Ser um humano tornou-se agora algo diferente do que era nos tempos antigos? A condição não é a mesma: ser um ser existente individual, - e não é o existir o essencial enquanto se está na existência? "Mas as pessoas agora sabem muito mais." "Corretíssimo, mas suponhamos que o cristianismo não fosse uma questão de saber; então, o muito saber não traz nenhum benefício, a não ser para, mais facilmente, alguém cair na confusão de considerar o cristianismo como uma questão de saber." E se as pessoas realmente sabem mais agora, e não estamos falando de saber a respeito de estradas de ferro, máquinas e caleidoscópios, mas de saber mais sobre a religiosidade, como então se chegou a saber mais? Não foi pelo cristianismo? Então é assim que se recompensa o cristianismo. Aprende-se algo do cristianismo, algo que não se compreende bem, e, num novo mal-entendido, usa-se essa má compreensão contra o próprio cristianismo. Se o terrível, nos velhos tempos, era que alguém pudesse se escandalizar; agora o terrível consiste em que não haja mais nada terrível; que alguém, num um, dois, três, antes de dar uma olhada ao redor, se transforme num especulante a especular sobre a fé. Sobre qual fé? Será sobre a fé que se tem e, especialmente, sobre se de fato se tem ou não se tem fé? Ai, não, isso é demasiado pouco para um especulante. Então, sobre a fé objetiva. O que significa isso: a fé objetiva? Isso quer dizer uma soma de princípios doutrinais. Mas suponhamos que o cristianismo não fosse nada disso; suponhamos que, ao contrário, fosse interioridade, e, por isso, o paradoxo, para poder repelir objetivamente, [VII 181] de modo a que ele pudesse existir para o existente na interioridade da existência, ao situá-lo decisivamente, mais decisivamente do que qualquer juiz poderia convocar um acusado, entre o tempo e a eternidade no tempo, entre o céu e o inferno no tempo da salvação. A fé objetiva é, afinal, como se o cristianismo tivesse sido também proclamado como um pequeno sistema, decerto não tão bom quanto o hegeliano. É como se Cristo - não é minha culpa se o digo - como se Cristo tivesse sido um professor e os apóstolos tivessem formado uma pequena Academia de ciências. Verdadeiramente, se alguma vez foi difícil tornar-se cristão, acredito que agora se torna mais difícil a cada ano, pelo fato de agora isso ter-se tornado tão fácil; só há um pouco de concorrência para tornar-se especulante. E, contudo, o especulante é talvez o mais distanciado do cristianismo, e talvez seja mil vezes preferível ser um escandalizado, que contudo constantemente se relaciona com o cristianismo, enquanto que o especulante o compreendeu. Neste sentido, há esperança de que ainda haja uma similaridade entre ser um cristão agora e naqueles primeiros tempos, e que querer ser um cristão se tornará, outra vez, insensatez. Nos primeiros tempos, um cristão era um insensato aos olhos do mundo, para pagãos e judeus, era uma insensatez que alguém quisesse se tornar um cristão; agora, a gente é cristã assim sem mais. Se alguém quer ser um cristão com paixão infinita, é um insensato, tal como sempre é insensatez querer empenhar-se com infinita paixão para tornar-se aquilo que já se é sem mais, como se alguém empenhasse toda a sua fortuna para adquirir uma pedra preciosa - que já possuía. Antigamente, um cristão era um insensato aos olhos do mundo; agora todos os humanos são cristãos, mas ele ainda assim se torna um insensato - aos olhos dos cristãos. Suponhamos que isso seja assim; eu só digo "suponhamos", e, mais do que isso, não direi; mas já que logo mais estaremos cansados de especulantes que se examinam, uns aos outros, naquelas ladainhas sistemáticas impressas, sempre poderá ser, ao menos, uma variação perpassar a questão de outra maneira. "Mas do ponto de vista do eterno, do divino, e, mui particularmente, do teocêntrico, não há nenhum paradoxo, por isso a verdadeira especulação não fica imobilizada no paradoxo, mas vai além dele e o explica." "Posso agora pedir um pouco de paz e não tolerar mais que isso recomece? Afinal, eu já disse que não posso me envolver com o que está acima ou abaixo da terra." "O início da explicação e seu acabamento estão comigo, e é por essa explicação que a verdade eterna esperava; pois é corretíssimo que ela entrou no tempo, mas a primeira edição foi apenas uma tentativa imperfeita. [VII 182] A verdade eterna entrou no mundo, porque precisava de uma explicação, e a esperava de uma discussão que ela proporcionaria. Do mesmo modo, um professor publica os traços fundamentais de um sistema, calculando que a obra escrita, ao ser resenhada e debatida, tomará, mais cedo ou mais tarde, uma forma nova e totalmente revista. Somente esta segunda edição, que esperou pelo conselho e pelo julgamento dos especialistas, é a verdade, e assim só a especulação é a verdadeira e única edição satisfatória da verdade provisional do cristianismo." Vamos agora ilustrar, com alguns exemplos, como a especulação, precisamente por não querer entender que a subjetividade é a verdade, fez-se merecedora do cristianismo, que é o paradoxo de uma vez por todas e é paradoxo em cada ponto, enquanto que a especulação, permanecendo na imanência, que é o excluir-se da existência pela recordação, em cada ponto produz uma volatização que, graças ao malabarismo de nada pensar de decisivo no que há de mais decisivo (o qual é justamente calculado para impedir a imanência por ocasião da decisão), mas usando a expressão de decisão como uma simples maneira de falar, fica sendo uma reminiscência pagã, contra a qual nada há a objetar, se romper frontalmente com o cristianismo, mas muito a objetar, caso pretenda ser cristianismo. A proposição de que Deus tenha existido em forma humana, que tenha nascido, crescido etc., é, por certo, o paradoxo sensu strictissimo, o paradoxo absoluto. Mas, como o paradoxo absoluto, não pode relacionar-se com uma diferença relativa. O paradoxo relativo se relaciona com a diferença relativa entre cérebros mais ou menos sagazes, mas o paradoxo absoluto, precisamente por ser ele o absoluto, só pode relacionar-se com a diferença absoluta, pela qual o ser humano é diferente de Deus; não pode relacionar-se a uma querela relativa entre um homem e outro sobre qual deles tem uma cabeça um pouco melhor que a do outro. Mas a diferença absoluta entre Deus e um homem está justamente em que um homem é um ser existente individual (e isso o é tanto a melhor cabeça quanto a mais tola), cuja tarefa essencial, portanto, não pode ser pensar sub specie aeterni, dado que ele próprio, se bem que eterno, é, de fato, enquanto existe, essencialmente existente, e por isso o essencial para ele tem que ser a interioridade na existência; Deus, ao contrário, é o infinito que é eterno. Logo que torno a compreensão do paradoxo comensurável com a diferença entre ser mais ou menos dotado intelectualmente (uma diferença que jamais ultrapassa o fato de ser humano, [VII 183] a não ser que alguém fosse tão brilhante que se tornasse, não só um homem, mas ao mesmo tempo Deus), meu discurso sobre a compreensão demonstra, eo ipso, que o que compreendi não era o paradoxo absoluto, mas um paradoxo relativo, pois do paradoxo absoluto só se pode compreender que ele não pode ser compreendido. "Mas então a especulação de jeito nenhum conseguirá captá-lo." "Corretíssimo, é exatamente isso que diz o paradoxo, que nos choca empurrando no rumo da interioridade na existência." Talvez a razão disso seja que, objetivamente, não há nenhuma verdade para seres existentes, mas tão somente aproximação, enquanto que, subjetivamente, a verdade, para eles, está na interioridade, porque a decisão da verdade reside na subjetividade. A corrente moderna mítico-alegórica declara, sumariamente, ser o cristianismo no seu todo um mito. Tal procedimento é, pelo menos, uma conduta clara, e qualquer um pode, facilmente, formar um juízo a seu respeito. A amizade da especulação é de outra espécie. A especulação combate, por uma questão de segurança, a corrente ateia mítico-alegórica, e, então, prossegue dizendo: "A especulação, ao contrário, aceita o paradoxo, mas não se detém nele". "E nem se exige isso, pois quando alguém, crendo, continua a aderir firmemente a ele, aprofundando-se em sua própria existência na interioridade da fé, também não se detém." A especulação não se detém - o que isso quer dizer? Quer dizer que os Srs. Especulantes cessam de ser homens, homens individuais existentes e, en famille [fr.: em família], se tornam qualquer coisa? Se não for assim, será certamente obrigatório deter-se no paradoxo, se este justamente se fundamenta em, e é a expressão disso, que a verdade essencial, eterna, relaciona-se com os existentes conclamando-os a que avancem cada vez mais na interioridade da fé. O que quer dizer, em última análise, explicar alguma coisa? Explicar significa mostrar que a coisa obscura em questão não é essa, mas é outra coisa? Esta seria uma curiosa explicação, eu acreditava que, com a explicação, deveria justamente se tornar claro que a coisa em questão é essa coisa definida, de modo que a explicação removeria, não a coisa em questão, mas a obscuridade. De outro modo, a explicação será uma coisa diferente de uma explicação; será uma retificação. A explicação do paradoxo torna claro o que ele é e remove a obscuridade; a retificação remove o paradoxo e torna claro que não há nenhum paradoxo; [VII 184] mas essa última decerto não é uma explicação do paradoxo, e sim uma explicação de que não há paradoxo. Mas se o paradoxo surge quando o eterno e um ser humano individual existente são reunidos, a explicação, assim como remove o paradoxo, remove também o existir do existente? E quando, por sua própria conta, ou com a assistência de alguém, um existente chegou, ou foi levado, o mais próximo possível do ponto como se ele próprio não existisse, o que ele seria então? Então ele estaria distraído. Portanto, a explicação do paradoxo absoluto, de que não há paradoxo, a não ser até certo ponto, em outras palavras, de que só há paradoxos relativos, é uma explicação - não para existentes, mas para distraídos. Bem, então tudo está em ordem. A explicação é de que o paradoxo o é só até certo ponto, e está em ordem que ela, ou seja, essa explicação, é para um existente que só é existente até certo ponto, dado que ele o esquece, dia sim dia não, e quem existe assim é justamente um distraído. Ora, quando alguém fala do paradoxo absoluto, que é um escândalo para os judeus, para os gregos uma tolice, e para o entendimento o absurdo, e dirige seu discurso à especulação, essa não é tão descortês a ponto de dizer, diretamente, que ele é um tolo - mas dá uma explicação que contém uma retificação e, desse modo, indiretamente, lhe dá a entender que estava em erro: assim se comporta sempre um intelecto humano, superior, frente ao mais limitado. O modo de proceder é inteiramente socrático; o único elemento não socrático seria se o falante afinal estivesse, não obstante, mais próximo da verdade do que a explicação especulativa, pois, aí, a diferença ficaria que Sócrates, de um modo cortês e indireto, afastava a inverdade do aprendiz e dava a ele a verdade, a especulação, ao contrário, de um modo cortês e indireto, afasta a verdade do aprendiz e dá a ele a inverdade. A cortesia, porém, permanece ainda como o denominador comum. E quando o próprio cristianismo se declara como sendo o paradoxo, a explicação da especulação não é uma explicação, mas sim uma retificação, uma cortês e indireta retificação, como condiz com um intelecto superior em relação com o mais limitado. Explicar o paradoxo significa transformar a expressão "paradoxo" numa expressão retórica, em alguma coisa que o digníssimo especulante diz que tem lá sua validade - mas que, então, de novo, não tem sua validade? Nesse caso, a summa summarum fica sendo, de fato, que não há paradoxo algum. Honra seja dada ao Herr Professor! Não é para retirar a honra dele que eu digo isso, como se eu também pudesse abolir o paradoxo, de modo algum. Mas se o professor o aboliu, então está, afinal, abolido; aí, atrevo-me a dizer que ele está abolido - a não ser que a supressão tenha mais a ver com o professor do que com o paradoxo, de modo que ele, em vez de abolir o paradoxo, [VII 185] se tenha tornado ele próprio um inquietante, fantástico inchaço. No outro caso, admite-se que explicar algo signifique torná-lo claro em sua significação - que seja isso, e não alguma outra coisa. Explicar o paradoxo seria, então, compreender cada vez mais profundamente o que o paradoxo é, e que o paradoxo é o paradoxo. Deus é, assim, uma representação suprema que não se deixa explicar por nenhuma outra, mas só pelo aprofundar-se nessa própria noção; os princípios supremos de todo pensamento só se deixam demonstrar indiretamente (negativamente): suponhamos que o paradoxo seja assim o limite para a relação de um existente para com uma verdade eterna, essencial - nesse caso, o paradoxo não será para se explicar por algo diferente, caso a explicação deva ser para existentes. Mas, entendido especulativamente, até mesmo o paradoxo absoluto (pois a especulação não teme usar expressões decisivas; a única coisa que ela teme é pensar algo decisivo com elas) expressa apenas uma diferença relativa entre homens mais ou menos talentosos e estudados. Desse modo, a figura do mundo irá se modificando gradualmente. Quando o cristianismo entrou no mundo, não havia professores, nem livres-docentes de qualquer tipo - então ele era um paradoxo para todos; na geração presente, pode-se supor que de cada dez um é livre-docente; consequentemente, o cristianismo é um paradoxo apenas para nove entre dez; e quando afinal vier a plenitude dos tempos, o incomparável futuro, quando viver na terra uma geração de livres-docentes e livres-docentas - então o cristianismo terá cessado de ser um paradoxo. Quem, ao contrário, quiser tomar a si a tarefa de explicar o paradoxo, na pressuposição de que saiba o que quer, concentrar-se-á diretamente em mostrar que ele tem de ser um paradoxo. Explicar uma alegria inexprimível - o que significa isso? Significa explicar que ela seja isso e aquilo? Nesse caso, o predicado "inexprimível" se torna meramente um predicado retórico, uma expressão forte, ou algo desse tipo. O explicador sabe-tudo já tem tudo preparado antes do início da apresentação, e agora ela tem início. Ele deslumbra o ouvinte; chama a alegria de inexprimível, e então, uma nova surpresa, uma surpresa verdadeiramente surpreendente - ele a exprime. Ora, suponhamos que esta alegria inexprimível tivesse seu motivo na contradição de que um ser humano existente seja composto do infinito e do finito, esteja situado no tempo, de modo que a alegria do eterno nele se torna inexprimível porque ele é existente; ela se torna um supremo alento que não consegue tomar forma, porque o existente é existente: a explicação seria então a de que é inexprimível, não pode ser de outra maneira; nada de bobagem. [VII 186] Quando, porém, uma pessoa profunda começa por julgar este ou aquele que nega que haja uma alegria inexprimível, e logo acrescenta: Não, eu aceito que haja uma alegria inexprimível, porém vou mais adiante e a exprimo, nesse caso está apenas se fazendo de boba, e ela se diferencia da outra, que ela julga, só num ponto, que a outra é mais honesta e direta, diz o que a pessoa profunda também está dizendo, pois ambas estão dizendo essencialmente a mesma coisa. - Explicar o decisivo significa transformar esta expressão numa locução retórica, de modo que não se negue toda decisão, como o faria uma pessoa menos reflexiva, mas que se aceite a decisão, mas a aceite só até certo ponto. O que significa dizer de uma decisão que ela é aceitável até certo ponto? Significa negar a decisão. Decisão é algo justamente destinado a pôr um fim àquela infindável tagarelice do "até certo ponto"; então se aceita a decisão - mas, vejam, ela é aceita só até certo ponto. Pois a especulação não teme usar expressões de decisão; a única coisa que teme é pensar com elas algo de decisivo. E quando então o cristianismo quer ser a decisão eterna para o sujeito existente, e a especulação explica que a decisão é relativa, não explica o cristianismo, assim ela o retifica. Se a especulação tem [ou não] razão, é uma questão totalmente diferente; aqui só se trata de saber como sua explicação do cristianismo se relaciona com o cristianismo que ela explica. Explicar algo significa superá-lo? Bem sei que a palavra aufheben tem, na língua alemã, diversos significados, até mesmo opostos; com bastante frequência se tem lembrado que ela tanto pode significar tollere [lat.: anular, aniquilar] quanto conservare [lat.: conservar]. Não estou informado de que a palavra dinamarquesa ophoeve permita tal ambiguidade, mas por outro lado sei que nossos filósofos dano-gerrnânicos a empregam no sentido da palavra alemã. Se o possuir significados opostos é uma boa qualidade para uma palavra, isso eu não sei, mas quem quer expressar-se com precisão prefere evitar o uso de uma tal palavra nas passagens decisivas. Temos uma expressão singela, popular, com a qual, humoristicamente, designamos o impossível: ter a boca cheia de farinha e assoprar ao mesmo tempo; a especulação realiza uma façanha semelhante ao utilizar uma palavra que também designa o seu oposto. Para assinalar bem claramente que a especulação não sabe o que dizer sobre uma decisão, ela mesma emprega uma palavra ambígua para assinalar [VII 187] o tipo de compreensão que é a compreensão especulativa. E quando a examinamos mais de perto, a confusão se torna mais clara. Aufheben, no sentido de tollere, significa aniquilar; no sentido de conservare, significa conservar em condição inteiramente inalterada, não fazer absolutamente nada com aquilo que está sendo conservados. Se o governo suspende uma sociedade política, ele com isso a anula; se um homem conserva algo para mim, é importante para mim justamente que ele não faça nenhuma alteração na coisa em questão. Nenhum dos dois é o aufheben filosófico. A especulação anula então todas as dificuldades, e me deixa só com a de compreender exatamente o que ela faz com este Aufheben. Mas agora deixemos que este Aufheben signifique reduzir algo a um momento relativo, como também se diz quando o que é decisivo, o paradoxo, é reduzido a um momento relativo; então isso significará que não há nenhum paradoxo, nenhuma decisão, já que o paradoxo e o decisivo são o que são precisamente por causa de sua inflexibilidade. Se a especulação tem [ou não] razão, é outra questão; mas aqui afinal só se pergunta como a sua explicação do cristianismo se relaciona com o cristianismo que ela explica. Que o cristianismo seja a inverdade, a especulação não o diz, de modo algum; ao contrário, diz, isso sim, que justamente a especulação compreende a verdade do cristianismo. Mais do que isso não se poderia, por certo, exigir; alguma vez o cristianismo pretendeu ser mais do que a verdade? E quando a especulação a compreende, está tudo em ordem, não há dúvida. E no entanto não, não é assim. Com relação ao cristianismo, a especulação sistemática é apenas um pouco engenhosa no emprego de todas as formulas diplomáticas que seduzem os crédulos. O cristianismo, tal como é compreendido pelo especulante, é algo diferente daquilo que é apresentado aos simples. Para esses, ele é o paradoxo, mas o especulante sabe como anular o paradoxo. Então, não é o cristianismo que é, foi e continuará sendo a verdade, e a compreensão do especulante não é a compreensão de que o cristianismo é a verdade - não, é a compreensão do cristianismo pelo especulante que constitui a verdade do cristianismo. A compreensão é, então, outra coisa, diferente da verdade; as coisas não se passam assim, que só quando a compreensão tiver compreendido tudo aquilo que se encontra na verdade, só então a verdade estará compreendida, e sim, que só quando aquela verdade em potência for compreendida do modo como o especulante a compreende, só então - [VII 188] sim, então não será a especulação que se terá tornado verdadeira, mas a verdade é que terá começado a existir. A verdade, portanto, não está dada, nem a compreensão desta é o que se espera, porém o que se espera é que a compreensão especulativa se complete, pois só então a verdade terá aparecido. O saber especulativo não é, desse modo, como de resto costuma ser o saber, algo de indiferente em relação ao que é conhecido, de modo que este não seja alterado ao ser conhecido, mas permaneça o mesmo; não, o saber especulativo é, ele próprio, o objeto do saber, de modo que ele não se mantém o mesmo que era, mas passa a existir simultaneamente com a especulação como a verdade. Se a especulação está certa, é outra questão; aqui se pergunta apenas como sua explicação do cristianismo se relaciona com o cristianismo que ela explica. E como deveriam eles se relacionar? A especulação é objetiva, e, objetivamente, não há nenhuma verdade para um existente, mas apenas uma aproximação, já que, pelo existir, ele está impedido de se tornar inteiramente objetivo. O cristianismo, ao contrário, é subjetivo; a interioridade da fé no crente é a eterna decisão da verdade. E objetivamente, não há nenhuma verdade, pois o saber objetivo da verdade, ou das verdades, do cristianismo é, justamente, inverdade; saber recitar de cor uma confissão de fé é paganismo, pois o cristianismo é a interioridade. Tomemos o paradoxo do perdão dos pecados. O perdão dos pecados é, socraticamente, um paradoxo, na medida em que a verdade eterna se relaciona com um existente, sensu strictiori, porque o existente é um pecador, uma determinação pela qual a existência é marcada uma segunda vez, porque quer ser uma decisão eterna no tempo, com força retroativa para superar o passado, e porque está ligada ao [fato de] Deus ter existido no tempo. O ser humano individual existente tem de se sentir um pecador (não objetivamente, o que não faria sentido, mas sim subjetivamente, e esta é a dor mais profunda de todas); com toda sua inteligência levada ao derradeiro recurso (se alguém tem um pouco mais de inteligência do que outro, isso não representa nenhuma diferença essencial, e gabar-se de sua grande inteligência é, apenas, revelar uma interioridade deficiente, que de resto bem rápido se esvairá), ele tem de querer compreender o perdão dos pecados, e então desesperar da inteligência. Com a inteligência diretamente contra ela, a interioridade da fé tem de segurar o paradoxo; e que a fé combata exatamente assim, como os [VII 189] romanos combateram certa vez, cegados pela luz do sol, é a tensão da interioridade. (Que se pode combater desse modo, cegado pelo sol, e ainda enxergar para combater, os romanos o demonstraram em Zama; que se pode combater desse modo, às cegas, e ainda enxergar para vencer, os romanos o demonstraram em Zama. E, agora, a batalha da fé, seria essa por acaso uma guerra de brinquedo, uma esgrima de galanteios, com simulações, essa batalha que é mais longa do que uma Guerra dos Trinta Anos, porque não se luta apenas para conquistar, e sim, até mais veementemente, para preservar, essa batalha na qual todo dia é tão quente como o dia da batalha de Zama! Enquanto a inteligência desespera, a fé avança vitoriosamente na paixão da interioridade. Mas quando o crente usa toda a sua inteligência, cada recurso derradeiro do desespero, só para descobrir a dificuldade do paradoxo, então não resta verdadeiramente nenhuma parte com a qual explicar o paradoxo - mas com tudo isso, pode muito bem haver um amplo apoio da fé na paixão da interioridade. Ficar sentado calmamente numa embarcação com bom tempo não é uma imagem para o crer; mas quando a embarcação começa a fazer água, aí então, entusiasticamente, mantê-la flutuando, bombeando, e não buscar, mesmo então, refúgio no porto: esta sim é a imagem. Mesmo que a imagem contenha uma impossibilidade, no longo prazo, isso é mera imperfeição da imagem, mas a fé se mantém. Enquanto a inteligência, como um passageiro desesperado, estica seus braços em direção à terra, mas em vão, a fé trabalha com vigor nas profundezas: alegre e vitoriosamente, ela salva a alma contra o entendimento. É uma contradição deste tipo, o existir crendo; para um existente, o compromisso é uma miragem, dado que já é uma contradição que um espírito eterno exista. Será que alguém já o fez, será que alguém o está fazendo? Que me importa, contanto que isso seja, afinal de contas, ter fé? E embora eu esteja ainda longe de ter compreendido plenamente a dificuldade do cristianismo (e uma explicação que torne fácil a dificuldade deve ser considerada como uma tentação), eu, entretanto, percebo que a batalha da fé não é um tema para poetas de vaudeville, e que seu esforço não é um divertissement para livres-docentes). Se algum dia outra compreensão se lhe impuser, ele verá que está a ponto de perder sua fé, tal como uma moça, que descobrisse, ao se tornar esposa do amado, ser fácil compreender por que se tornou a escolhida de seu marido, deveria perceber que é fácil compreender tal explicação como sinal de que ela não está mais amando. Mas um especulante se comporta de outra maneira. Ele se apresenta diante de um estimado público e diz: "Meus senhores e minhas senhoras, pois é assim que devo me dirigir a vocês, a uma congregação de crentes, o paradoxo só pode ser proclamado por um crente, mas a um estimado público a verdade pode ser proclamada por um especulante: portanto, o perdão dos pecados é um paradoxo (excitação geral), a corrente panteísta é um erro que a especulação combate, mas a especulação não se detém no paradoxo; ela o explica e o supera." [VII 190] O digníssimo especulante não apostou todo o seu entendimento quando desesperou; seu desespero foi só até certo ponto, foi um movimento simulado; ele reservou parte de seu entendimento - para a explicação. Isso é o que se chama: tirar proveito de seu entendimento. O crente não tira dele proveito algum; ele o emprega todo no desespero, mas o especulante sabe como esticá-lo bastante; usa a metade dele para desesperar (como se não fosse um contrassenso estar meio desesperado) e a outra metade para perceber que o entendimento não tem nenhum motivo para desesperar. Bem, então a questão se transforma, naturalmente, em outra coisa; e onde residiria então o erro? Naturalmente, em que o primeiro movimento é enganoso, e, portanto, não propriamente em não se deter na fé, mas em nem tê-la alcançado. Ora, suponhamos que o paradoxo do perdão dos pecados tivesse sua razão de ser no fato de que o coitado do ser humano existente é existente, que ele está meio abandonado por Deus, mesmo quando, contra o entendimento, sai vitorioso na interioridade da fé; suponhamos que só a eternidade possa proporcionar uma certeza eterna, enquanto que a existência precisa contentar-se com uma certeza militante, que não é conquistada tornando-se o combate mais atenuado ou mais ilusório, mas somente tornando-se este mais duro. Nesse caso, a explicação é, de fato, que isso é e sempre será um paradoxo, e que tudo só então estará perdido quando se conceber que o paradoxo não existe, ou que exista só até certo ponto. Mas, diz talvez o estimado público, se o perdão dos pecados for algo assim: Como, então, poderá alguém crer nisso? Resposta: Se não for algo assim, como, então, poderá alguém crer nisso? - Se o cristianismo tem [ou não] razão, é outra questão; aqui se pergunta apenas de que modo a explicação dada pela especulação se relaciona com o cristianismo que ela explica. Mas o cristianismo talvez não tenha razão: ao menos uma coisa é certa, que a especulação certamente não tem razão, pois a única posição consequente fora do cristianismo é a do panteísmo, a de retirar-se da existência, pela reminiscência, de volta para o eterno, com o que todas as decisões da existência só se tornam um jogo de sombras frente àquilo tudo que já está, lá atrás, decidido eternamente. A decisão simulada da especulação é, como toda decisão simulada, um contrassenso, pois a decisão é justamente o eterno protesto contra as ficções. O panteísta está eternamente tranquilizado no que se refere ao passado; o instante que é o da existência no tempo, os setenta anos, é algo evanescente. O especulante, por outro lado, quer ser um existente, e contudo um existente que não seja subjetivo, fora da paixão, existindo sub specie aeterni, em suma, ele é distraído. Mas no que é explicado em distração não se pode dar fé de modo absoluto - tal explicação é, de fato, e neste ponto estou de acordo com a especulação, é uma explicação só até certo ponto. [VII 191] Se o especulante explica o paradoxo de modo a suprimi-lo, e agora, cientemente, sabe que este está suprimido, e que, consequentemente, o paradoxo não é a relação essencial da eterna verdade essencial para com um existente no limite extremo de sua existência, mas apenas uma contingente relação relativa para as mentes limitadas: então há uma diferença essencial entre o especulante e a gente simples, com o que então toda a existência é confundida desde os fundamentos: Deus é ofendido ao receber um séquito, um grupo de apoio de boas cabeças, e a humanidade é violentada por não haver uma relação com Deus que seja igual para todos os humanos. Aquela fórmula piedosa, antes mencionada, da diferença entre o saber da gente simples e o do sábio simples, a respeito do que é simples, de que a diferença consiste numa ninharia sem significado, de que o sábio simples sabe que sabe, ou sabe que não sabe, o que a gente simples sabe, essa fórmula a especulação não respeita de modo algum. Nem tampouco respeita a igualdade, implícita nesta diferença entre o sábio e a gente simples, de que ambos sabem a mesma coisa. Ou seja, o especulante e a pessoa simples não sabem, de modo algum, a mesma coisa, quando o simples crê no paradoxo e o especulante sabe que este foi superado. Ao contrário, segundo a fórmula mencionada, que honra a Deus e ama os seres humanos, a diferença consiste em que o sábio ao mesmo tempo sabe que tem de ser necessariamente um paradoxo o paradoxo em que ele próprio crê. Portanto, eles, afinal, sabem essencialmente a mesma coisa; o sábio não sabe outra coisa sobre o paradoxo, porém sabe que sabe disso sobre o paradoxo. O sábio singelo se concentrará, então, em conceber o paradoxo como paradoxo, e não irá meter-se a explicar o paradoxo argumentando que isto não existe. Se, então, o sábio simples falasse com uma pessoa simples sobre o perdão dos pecados, a pessoa simples provavelmente diria: "Mas eu ainda não posso compreender a misericórdia divina que consegue perdoar pecados; quanto mais vivamente creio nisso, menos capaz sou de compreender". (Portanto, não parece que a probabilidade aumente à medida que a interioridade da fé cresce, antes o contrário.) Mas o sábio singelo por certo dirá: "O mesmo se passa comigo. Tu sabes que eu tive a ocasião de poder dedicar muito tempo para a pesquisa e a reflexão, e, ainda assim, a summa summarum disso tudo é, no máximo, que compreendo que não pode ser de outro modo, que isso tem de ser incompreensível. Vê, esta diferença, certamente, não consegue te afligir, nem te fazer pensar melancolicamente sobre as condições mais penosas de tua vida, ou sobre as tuas, talvez, mais modestas habilidades, como se eu tivesse alguma vantagem sobre ti. Minha vantagem é tanto para se rir quanto para se chorar, quando considerada como o fruto do estudo. Contudo, nunca deves desdenhar este estudo [VII 192], como eu mesmo não me arrependo dele, já que, ao contrário, ele me agrada muitíssimo quando sorrio para ele, e, justamente aí, entusiasticamente retomo o esforço do pensamento". E tal confissão é feita na maior sinceridade, e não se apresenta no sábio só de vez em quando, mas está presente essencialmente a cada vez que ele se ocupa com o pensamento. Uma vez por ano pensar que se deve agradecer sempre a Deus, não seria, contudo, uma compreensão correta dessas palavras: assim também, de vez em quando, numa ocasião relevante, considerar, comovido, que diante de Deus todos os homens são essencialmente iguais, não significa entender verdadeiramente esta igualdade, quando de resto exatamente nosso trabalho e nosso esforço do dia a dia, de mais de uma maneira, só nos levam a esquecê-la. Mas justamente quando se está mais fortemente na sua diferença, compreender a igualdade da forma mais forte, eis a nobre piedade do sábio singelo. Muita coisa estranha, muita coisa lamentável, muita coisa revoltante tem sido dita sobre o cristianismo, mas a coisa mais estúpida que já se disse é que ele é verdadeiro até certo ponto. Muita coisa estranha, muita coisa lamentável, muita coisa revoltante tem sido dita sobre o entusiasmo, mas a coisa mais estúpida que já se disse é que ele só é até certo ponto. Muita coisa estranha, muita coisa lamentável, muita coisa revoltante tem sido dita sobre o amor erótico, mas a coisa mais estúpida que já se disse é que ele só é até certo ponto. E quando então alguém se prostitui ao falar desse modo sobre o entusiasmo e sobre o amor, traiu sua estupidez, que, contudo, não é um problema de entendimento, já que sua razão está justamente no fato do entendimento ter se tornado demasiado grande, no mesmo sentido em que a causa da doença do fígado está em que o fígado cresceu demais, e, por isso, como outro autor apontou, "é a insipidez que o sal assume quando perde sua força": portanto, resta ainda um único fenômeno, ou seja, o cristianismo. Se a visão própria do entusiasmo foi incapaz de ajudá-lo a romper com o entendimento, se o amor foi incapaz de arrancá-lo da escravidão, deixa-o observar o cristianismo. Que se escandalize; afinal, ele é um ser humano; que desespere de algum dia se tornar, ele mesmo, um cristão; ele pode estar, mesmo assim, mais perto disso do que pensa; que trabalhe, querendo erradicar o cristianismo, até sua última gota de sangue; ele é um ser humano, mesmo então - mas se mesmo aqui ele também se dispuser a dizer: "isso é verdadeiro até certo ponto", então ele é estúpido. Talvez alguém pense que eu estremeço ao dizer isso, que devo estar preparado para um terrível castigo da parte do especulante. [VII 193] De jeito nenhum, o especulante há de ser aqui, mais uma vez, consequente e dirá: "O que este homem está dizendo é verdadeiro até certo ponto, só que não se deve ficar parado nisso". Mas também seria de fato de se estranhar se alguém insignificante como eu tivesse êxito naquilo em que nem mesmo o cristianismo o teve: levar o especulante à paixão; e, nesse caso, bem, então minhas migalhas de filosofia receberiam subitamente uma significação com a qual eu nem mesmo sonhara. Mas aquele que não é frio nem quente é repugnante, e tampouco serve a um atirador uma espingarda que, no instante decisivo, falha em vez de atirar, tampouco servem a Deus individualidades falhadas. Se Pilatos não tivesse perguntado objetivamente sobre o que é a verdade, não teria jamais deixado Cristo ser crucificado. Se tivesse perguntado subjetivamente, então a paixão da interioridade, na consideração do que ele, na verdade, tinha de fazer no tocante à decisão que lhe cabia, teria evitado que ele cometesse injustiça; nesse caso, não apenas sua esposa se teria angustiado por um sonho apavorante, mas o próprio Pilatos teria ficado insone. Mas quando alguém tem diante de seus olhos algo tão enorme como a verdade objetiva, pode com facilidade riscar fora seu restinho de subjetividade e tudo aquilo que, enquanto sujeito individual, devia fazer. Então, o processo aproximativo da verdade objetiva se exprime de modo sensível pelo ato de lavar as mãos, pois, objetivamente, não há nenhuma decisão, enquanto que a decisão subjetiva mostra que se estava, de fato, na inverdade, ao não entender que a decisão reside, justamente, na subjetividade. Se ao contrário a subjetividade é a verdade e a subjetividade é a subjetividade existente, então o cristianismo, se me atrevo a dizê-lo, confere com o padrão. A subjetividade culmina na paixão, o cristianismo é o paradoxo; paradoxo e paixão combinam totalmente um com o outro, e o paradoxo combina totalmente com aquele que se colocou no extremo da existência. Com efeito, em todo o mundo, não se encontram dois amantes que combinem tanto um com o outro como o paradoxo e a paixão, e a querela entre eles é apenas como a querela dos amantes, quando esta é sobre se foi ele que despertou a paixão dela, ou se ela despertou a dele, e assim é aqui, que o existente está colocado pelo próprio paradoxo no extremo da existência. E o que é mais glorioso para os amantes do que lhes ser concedido um longo tempo para estarem um junto ao outro, sem a ocorrência de qualquer modificação na relação, [VII 194] exceto aquela que a torna mais Íntima? E isso é, de fato, concedido àquela compreensão tão altamente isenta de especulação entre a paixão e o paradoxo, pois o tempo todo lhe foi concedido, e só a eternidade constitui sua modificação. Mas o especulante se comporta de modo diferente; ele crê apenas até certo ponto - põe sua mão no arado e olha em torno à procura de algo para saber. Dito num sentido cristão, dificilmente encontra ele algo de bom para saber. Mesmo que isso não fosse assim, o que por certo um sábio singelo, que procura entender o paradoxo, se esforçaria para mostrar, ou seja, que não pode ser de outro modo; mesmo que houvesse um restinho da arbitrariedade divina no paradoxo; nesse caso, Deus, suponho, é contudo Aquele do tipo que se pode permitir dar importância à Sua Pessoa, de modo que não é constrangido a reduzir o preço da relação para com Ele em função de um marasmo religioso (e este termo assenta muito melhor aqui do que quando falamos em uma calmaria no mercado de grãos). E mesmo que Deus o quisesse, o apaixonado jamais o desejaria. Nunca ocorreria a uma moça verdadeiramente apaixonada a ideia de que pagou por sua felicidade um preço demasiado caro, mas antes diria que não lhe custara um preço assim tão caro. E, como a paixão da infinitude era, ela mesma, a verdade, assim também vale do bem supremo, que o preço depende do que se compra, e que um preço baixo significa justamente uma má transação, enquanto que, em relação a Deus, não há lucro no preço mais alto, já que o preço mais alto é, precisamente, querer tudo fazer e, ainda assim, saber que isso não é nada (pois, se for algo, então o preço será mais barato), e ainda assim o querer. Dado que não me são totalmente desconhecidas as coisas que se têm dito e escrito sobre o cristianismo, poderia, por certo, dizer uma coisa ou outra sobre elas. Não quero, contudo, fazê-lo aqui, mas apenas repetir que só há uma coisa que hei de me vigiar para não falar: que o cristianismo é verdadeiro até certo ponto. Seria, entretanto, possível, afinal, que o cristianismo fosse a verdade, seria entretanto possível, afinal, que, algum dia, houvesse um juízo, no qual a separação dependesse da relação de interioridade para com o cristianismo. Suponhamos que aí se apresentasse alguém que tivesse que dizer: "Ê bem verdade que eu não acreditei, mas honrei a tal ponto o cristianismo que empreguei cada hora da minha vida para ponderar sobre ele". Ou que se apresentasse alguém de quem o acusador teria que dizer: [VII 195] "Ele perseguiu os cristãos"; e o acusado respondesse: "Sim, eu o admito; o cristianismo inflamou a tal ponto minha alma que não desejei mais nada além de erradicá-lo do mundo, simplesmente por ter compreendido seu terrível poder". Ou suponhamos que se apresentasse alguém de quem o acusador teria que dizer: "Ele abjurou o cristianismo"; e o acusado dissesse: "Sim, é verdade, pois eu percebi que o cristianismo era tal poder que, se desse a ele um dedo, ele me tomaria por inteiro, e inteiramente eu não poderia pertencer a ele". - Mas suponhamos, agora, que por fim chegasse um livre-docente empreendedor, em passo apressado e azafamado, e falasse o seguinte: "Eu não sou como aqueles três; não apenas acreditei, mas até mesmo expliquei o cristianismo, mostrei que o que foi proclamado pelos apóstolos, e apropriado nos primeiros séculos, só é verdadeiro até certo ponto, mas que, por outro lado, graças à compreensão especulativa, ele é a verdade verdadeira, e, por esse motivo, tenho de requerer uma recompensa adequada por meus serviços prestados ao cristianismo". Qual dessas quatro atitudes teria sido a mais terrível? Seria bem possível, afinal, que o cristianismo fosse a verdade. Suponhamos então que seus filhos ingratos queiram declará-lo incapaz, sob a tutela da especulação; suponhamos que, tal como aquele poeta grego, cujos filhos também insistiram que seu pai idoso fosse declarado incompetente, maravilhou os juízes e o povo, ao escrever uma de suas mais belas tragédias, como sinal de que ainda era capaz - suponhamos que o cristianismo se erguesse, rejuvenescido, não haveria então ninguém cuja atitude se tornasse tão constrangedora como a dos livres-docentes. Não nego que seja muito distinto pairar tão alto sobre o cristianismo; não nego que seja confortável ser cristão e contudo ser liberado do martírio que sempre permanece, mesmo que não se esteja exposto a nenhuma perseguição externa, mesmo se um cristão permanecer incógnito como se nem tivesse vivido - aquele martírio de crer contra o entendimento, o perigo mortal de flutuar sobre 70.000 braças de água, e só assim encontrar Deus. Vê, o vadeador vai tateando com seu pé, para não ir tão longe que não possa tocar o fundo: e assim também o homem do entendimento vai sondando com o entendimento as probabilidades do caminho, e encontra Deus lá onde a probabilidade for suficiente, e lhe agradece nas grandes festividades da probabilidade, quando tiver conseguido um ganha-pão bastante bom e quando, ainda por cima, houver a probabilidade de uma rápida promoção; quando encontrar, para esposa, uma moça tão bonita quanto simpática, e o próprio Conselheiro de Guerra Marcussen diz que este será um casamento feliz, e que a moça tem o tipo de beleza que, com toda probabilidade, se manterá por um longo tempo, e que ela é constituída de tal modo que, com toda probabilidade, dará à luz crianças saudáveis e fortes. Crer contra o entendimento é outra coisa, e crer com o entendimento é algo que não se pode fazer, de jeito nenhum, [VII 196] porque aquele que crê com o entendimento só fala de trabalho e esposa e campos e bois, e coisas tais, que não são, absolutamente, o objeto da fé, dado que a fé sempre agradece a Deus, está sempre em perigo de vida naquela colisão do infinito e do finito que é, justamente, um perigo de vida para aquele que é composto por ambos. A probabilidade é portanto tão pouco cara ao crente, que ele a teme mais do que tudo, já que bem sabe que com ela começa a perder a sua fé. Com efeito, a fé tem duas tarefas: vigiar e descobrir a cada momento a improbabilidade, o paradoxo, para então, com a paixão da interioridade, permanecer firme. Em geral, representam-se as coisas de tal modo que o improvável, o paradoxo, é algo com que a fé se relaciona apenas passivamente; ela deve contentar-se, provisoriamente, com esta situação, mas, pouco a pouco, as coisas talvez melhorem - de fato, isso é até provável. Ó, que prodigiosa mania de fazer confusões ao falar da fé! Há que começar por crer, confiando ser provável que as coisas talvez melhorem. Desse modo, acaba-se conseguindo introduzir de contrabando a probabilidade, e impedindo-se a si mesmo de crer; assim é fácil de entender que o fruto de ter crido por longo tempo vem a ser o de se cessar de crer; ao invés disso, dever-se-ia crer que o fruto haveria de ser o crer com mais intensidade. Não, a fé relaciona-se, de maneira autônoma, com o improvável e com o paradoxo, é autônoma no descobrir e no manter-se a cada instante no improvável - para poder crer. Já se requer toda a paixão da infinitude, e sua concentração, para permanecer junto ao improvável, pois o improvável e o paradoxo não devem ser alcançados por meio de uma aproximação quantitativa do intelecto àquilo que é cada vez mais difícil. Onde o entendimento desespera, lá a fé já está presente, a fim de tornar o desespero bem decisivo, para que o movimento da fé não se torne uma transação dentro da esfera de negociações do entendimento. Mas crer contra o entendimento é um martírio; começar a trazer o entendimento um pouco mais para perto de si é tentação e retrocesso. Desse martírio o especulante está livre. Que ele precise estudar, em especial que tenha de ler muitos dos livros modernos, admito de bom grado que seja oneroso, mas o martírio da fé é realmente outra coisa. O que me apavora, aí, mais do que morrer ou perder o que tenho de mais caro, é dizer do cristianismo que ele é verdadeiro até certo ponto. Ainda que eu viva até os setenta anos, mesmo que eu, entra ano sai ano, encurte as noites de sono e alongue os dias de trabalho, refletindo sobre o cristianismo: quão insignificante seria este pequeno estudo, se devesse autorizar-me a julgar de modo tão aristocrático sobre o cristianismo! Pois, se eu, baseado numa familiaridade superficial, me tornasse tão amargurado com ele a ponto de o declarar como inverdade, [VII 197] seria muito mais perdoável, muito mais humano. Mas a superioridade aristocrática me parece ser a real perdição que torna toda impossível relação salvadora - e, contudo, seria possível afinal que o cristianismo fosse a verdade. Isso quase parece seriedade. Ora, se eu ousasse proclamar com estardalhaço que vim ao mundo para trabalhar contra a especulação e que fui vocacionado para isso, que esta seria minha ação julgadora, enquanto que minha ação profética seria a de predizer um futuro incomparável, e que, portanto, em razão de eu fazer estardalhaço e de ter uma vocação, as pessoas poderiam, de modo seguro, confiar no que eu dizia - haveria, talvez, muitos que, por falta de considerar a coisa toda como uma fantástica reminiscência da cabeça de um mentecapto, haveriam de encarar tudo como seriedade. Mas algo assim eu não posso dizer, no que me toca. A resolução com a qual comecei pode ser antes considerada como um capricho. Em todo caso, tão longe quanto possível de ter ocorrido um chamado para mim, antes, ao contrário, o chamado que eu, se quiserem, segui, não foi dirigido a mim, mas a outro; e, com relação ao que se refere, não se poderia nem de longe dizer no sentido mais estrito, tratar-se de um chamamento. Mas mesmo que alguém tivesse recebido um chamado, eu, contudo, mesmo seguindo o chamado, não fui a pessoa chamada. A história é bastante simples. Foi há uns quatro anos, num domingo - bem, agora talvez ninguém acredite em mim, porque, mais uma vez, se trata de um domingo, mas, no entanto, tenho certeza de que era um domingo, cerca de dois meses depois do domingo mencionado antes. Era bem tarde, quase noite. E o adeus que a noite dá ao dia e àquele que vivenciou o dia é um discurso enigmático; sua advertência é como a recomendação solícita da mãe para que o filho volte para casa na hora combinada, mas o seu convite, mesmo se a despedida não tem culpa de ser mal-entendida desta maneira, é um inexplicável aceno, como se só se pudesse achar o sossego permanecendo-se fora, num encontro noturno, não com uma mulher, mas, à maneira feminina, com o infinito, persuadido pelo vento da noite, quando este monotonamente se repete a si mesmo, perscruta a floresta e a várzea e suspira, como se procurasse alguma coisa, persuadido pelo eco longínquo de calma de dentro de si mesmo, como se pressentisse algo, persuadido pela sublime tranquilidade do céu, como se esta tivesse sido encontrada, persuadido pelo audível silêncio do orvalho, como se fosse isso a explicação e o refrigério da infinitude, igual como a fecundidade de uma noite calma, entendida apenas pela metade, como a semitransparência da névoa noturna. Contra os meus hábitos, eu fora àquele jardim que é chamado de jardim dos mortos, [VII 198] onde, por sua vez, a despedida do visitante é duplamente difícil, pois não tem sentido dizer "ainda uma vez", porque a última vez já passou, e porque não há nenhuma razão para parar com as despedidas, quando o início é feito depois da última vez ter passado. A maioria das pessoas já tinha ido para casa, um único indivíduo desaparecia entre as árvores; não contente com o encontro, ele se desviou, pois estava procurando mortos, e não viventes; e reina sempre nesse jardim um belo acordo entre os visitantes, que não se vai até lá para ver e ser visto, mas cada visitante se esquiva do outro. Também não se necessita de companhia, muito menos de um amigo conversador, ali onde tudo é eloquência, onde o morto expressa a breve palavra que foi posta sobre sua lápide, não como faz um pastor, que se expande na pregação sobre o dito, mas sim como o homem silencioso, que apenas profere esta palavra, mas a pronuncia com paixão, como se o morto tivesse de romper o túmulo - ou não é estranho mandar colocar na sua lápide, "Nós nos veremos de novo", e então ficar ali embaixo? E, contudo, quanta interioridade há nessa palavra justamente graças à contradição. Pois que o homem que voltará amanhã diga "Vamos nos ver de novo" não é nada chocante. Ter tudo contra si, nenhuma, nenhuma expressão direta para sua interioridade, e ainda assim manter sua palavra - isso é a verdadeira interioridade; e a interioridade é falsa na mesma medida em que se tem prontamente à mão expressões externas, em semblante e conduta, em palavras e asserções - não porque a expressão seja, ela mesma, falsa, mas porque a inverdade estava em que a interioridade não passava de um momento. O morto permanece bem quieto enquanto o tempo passa. Na tumba do guerreiro famoso colocaram sua espada, e a impudência derrubou a cerca de estacas que a rodeava, porém o morto não se levantou, não empunhou sua espada para defender-se e a seu lugar de descanso. Não gesticula, não protesta, não se inflama num instante de interioridade, mas, silencioso como o túmulo e quieto como um morto, mantém sua interioridade e sustenta sua palavra. Louvado seja o vivente que se relaciona no exterior como um falecido com sua interioridade e, justamente com isso, a mantém, não como a excitação de um instante ou um encantamento de mulher, mas como o eterno que foi alcançado através da morte. Este é um homem, pois que uma mulher extravase [emoções] na interioridade instantânea, não é feio, e que ela logo torne a se esquecer disso, não é feio - com efeito, um corresponde ao outro, e ambos correspondem à natureza feminina, e àquilo que é entendido no dia a dia como interioridade. Cansado de andar, sentei-me num banco, testemunhando maravilhado como aquele orgulhoso soberano que já por milhares de anos tem sido o herói do dia e continuará a sê-lo até o último dia, [VII 199] como o sol lançava, em sua brilhante partida, clarões de transfiguração em todo seu entorno, enquanto meus olhos miravam, para além do muro que cerca o jardim, o eterno símbolo da eternidade - o horizonte infinito. O que o sono é para o corpo, é para a alma tal descanso, para que ela possa soltar direito a respiração. No mesmo instante, descobri, para meu assombro, que as árvores que me escondiam dos olhos dos outros, haviam escondido outros de mim; pois ouvi uma voz bem perto de mim. Sempre ofendeu meu pudor ser testemunha da expressão de um tipo de sentimento a que outra pessoa só se entrega quando pensa que não está sendo observada, porque há uma interioridade de sentimento que, por decência, se oculta, e se manifesta apenas para Deus, exatamente como a beleza de uma mulher se oculta de todos e se apresenta apenas para o amado - por isso, decidi afastar-me. Mas as primeiras palavras que ouvi me cativaram fortemente, e como temia com o ruído de minha partida perturbar mais do que se me quedasse lá sentado, escolhi a segunda opção, e então me tornei testemunha de uma situação que, por mais solene que fosse, não sofreu nenhuma ofensa devido à minha assistência. Por entre as folhas, vi que eram dois: um ancião de cabelos brancos como giz e uma criança, um menino de uns dez anos. Ambos trajavam luto e sentavam junto a um túmulo recentemente coberto, do que era fácil concluir que o que os ocupava era uma perda recente. A figura respeitável do velho tornava-se ainda mais solene na incandescência transfiguradora do crepúsculo, e sua voz, calma e, contudo, emocionada, pronunciava as palavras, cada vez mais claramente, com a interioridade que tinham no orador, que ora ou outra fazia uma pausa quando se sufocava no lamento, ou seu ânimo se esgotava num suspiro. Pois ânimo é algo como o Rio Níger, na África; ninguém conhece sua nascente, ninguém conhece sua desembocadura - só seu percurso é conhecido! Pela conversa, fiquei sabendo que o menininho era neto do ancião e aquele, cujo túmulo visitavam, seria o pai do menino. Ao que tudo indicava, o resto todo da família já teria falecido, pois ninguém foi mencionado (numa visita posterior, confirmei isso lendo o nome na lápide e os nomes dos muitos falecidos). Na conversa, o ancião dizia à criança que ela agora não tinha mais pai, ninguém em quem se apoiar a não ser um homem velho, que entretanto estava velho demais para ele, e já ansiava por deixar este mundo; mas que havia um Deus no céu, a partir do qual se designa toda paternidade, no céu e na terra, que havia um único nome no qual havia salvação, o nome de Jesus Cristo. Ele se interrompeu por um instante e então falou, a meia-voz, para si mesmo: Que este consolo houvesse de se tornar, para mim, um terror, que ele, o meu filho, que agora repousa enterrado na sepultura, fosse capaz de abandoná-lo! [VII 200] Para que toda a minha esperança, para que todo o meu cuidados, para que toda a sabedoria dele, agora que sua morte, em meio ao seu extravio, há de deixar uma alma de crente incerta a respeito de sua salvação, levar meus cabelos grisalhos, em dor, ao túmulo, fazer um crente deixar o mundo em ansiedade, fazer um ancião correr como um descrente atrás de uma certeza, e, desencorajado, ficar procurando o que sobreviveu. Depois tornou a falar com o menino, contando que havia uma sabedoria que desejaria passar voando pela fé, que para além da fé haveria um amplo percurso, tal como as montanhas azuis, uma aparente terra firme, que aos olhos do mortal aparecia como uma certeza maior do que a da fé, mas que o crente temia esta miragem como o navegador teme outra semelhante, temia que ela fosse uma aparência de eternidade em que um mortal não pode viver, mas, se ele a olhasse fixa e firmemente, perderia sua fé. Ficou novamente silencioso, e então falou para si mesmo, a meia-voz: Que ele, meu filho infeliz, se tivesse deixado enganar! Para que, então, toda a sua erudição, se ele não conseguia se fazer inteligível nem para mim, que não pude falar com ele sobre seu erro, porque este era elevado demais para mim! Então ele se ergueu e conduziu a criança até o túmulo e, com uma voz cuja impressão jamais esquecerei, disse: "Pobre menino, tu és apenas uma criança, e, contudo, logo estarás sozinho no mundo. Promete-me, pela memória de teu falecido pai que, se pudesse agora falar-te, falaria deste modo, e agora fala através da minha voz; promete, em atenção à minha idade avançada e aos meus cabelos brancos; promete, na solenidade deste lugar sagrado, pelo Deus cujo nome aprendeste a evocar, pelo nome de Jesus Cristo, o único em quem existe salvação - promete-me que irás te agarrar firmemente a esta fé, na vida e na morte, que não te deixarás enganar por nenhuma fantasmagoria, por mais que mude a forma do mundo - me prometes isso?" Subjugado pela impressão, o pequeno caiu de joelhos, mas o ancião o ergueu e o apertou contra o seu peito. Por amor à verdade, devo confessar que esta foi a cena mais comovente que jamais testemunhei. O que faria, por um instante, uma ou outra pessoa se inclinar a considerar a coisa toda como uma ficção - que um ancião falasse assim com uma criança - foi, precisamente, o que mais me abalou: o infeliz ancião que ficou sozinho no mundo com uma criança, e não tinha ninguém com quem conversar sobre sua preocupação, exceto uma criança, e tinha apenas uma única pessoa para salvar, uma criança, e, contudo, não poderia pressupor maturidade para entender e, contudo, não poderia arriscar-se a aguardar pela chegada da maturidade, porque ele próprio já era um ancião. É belo ser um ancião, é um deleite para o homem de idade ver a família crescer ao seu redor, um cálculo alegre o de ir somando cada vez que o número cresce. [VII 201] Mas, caso se torne sua sina ter que recalcular, caso o cálculo se transforme no subtrair toda vez que a morte leva um e leva outro, até quitar a conta, e só reste o velho para passar o recibo - o que haverá de tão penoso como ser um ancião! Tal como a necessidade pode levar um homem ao extremo, assim me parece que o sofrimento do velho encontrou sua expressão mais forte naquilo que se poderia chamar, em termos poéticos, uma inverossimilhança: que um ancião tenha numa criança o seu único confidente, e que se exija de uma criança uma promessa sagrada, um juramento. Embora apenas espectador e testemunha, eu estava profundamente emocionado; num instante, era como se eu mesmo fosse aquele moço a quem o pai tinha enterrado com horror. No instante seguinte era como se eu fosse a criança que se ligava pela sagrada promessa. Entretanto, não senti nenhum ímpeto para me precipitar e, emocionado, expressar ao velho senhor a minha solidariedade, assegurando-lhe, com lágrimas e voz trêmula, que eu jamais olvidaria aquela cena, ou talvez até lhe implorando que tomasse também o meu juramento, pois é só para os precipitados, nuvens estéreis e chuviscos passageiros que nada exige tanta pressa como prestar um juramento, porque, por não serem capazes de cumpri-lo, devem sempre depô-lo. Eu penso que "não querer jamais esquecer esta impressão" é diferente de afirmar alguma vez, num instante solene, "jamais o esquecerei". A primeira é interioridade, a segunda, talvez apenas interioridade instantânea. E se alguém jamais esquece algo, a solenidade com que foi proclamado não se julga muito importante, pois a solenidade continuada, com a qual, dia a dia, alguém se impede de esquecê-la, é uma solenidade mais verdadeira. O jeito de pensar e agir das raparigas é sempre perigoso. Um aperto de mãos carinhoso, um abraço apaixonado, uma lágrima no olho, não é exatamente a mesma coisa que a consagração silenciosa da resolução; e a interioridade do espírito é, mesmo, sempre como algo de estrangeiro e forasteiro num corpo - para que, então, gesticulações? Brutus em Shakespeare diz, com tanta verdade, quando os conspiradores querem ligar-se ao seu projeto por meio de um juramento: "Não, nenhum juramento... deixem os padres e os covardes e os cautelosos, velhotes sem tutano e almas sofredoras prestarem juramentos... mas não enfraqueçam a força silenciosa de nosso propósito, nosso indomável fogo interior, pensando que nossa causa, nossa obra, necessita de um juramento". A efusão instantânea da interioridade [VII 202) frequentemente deixa atrás de si uma lassidão que é perigosa. Além disso, ainda de um outro modo, uma simples observação me ensinou a prudência quanto a fazer juramentos e promessas, de modo que a verdadeira interioridade seja até forçada a se expressar pela oposição. Não há nada que pessoas apressadas e facilmente excitáveis sejam mais inclinadas a fazer do que exigir promessas sagradas, porque a fraqueza interior necessita do poderoso estimulante do instante. Para uma pessoa dessas, dever fazer uma promessa sagrada é algo de muito duvidoso e, por isso, age-se melhor evitando essa entrada solene enquanto a gente se liga, com uma pequena reservatio mentalis [lat.: reserva mental], se por acaso a exigência da promessa estiver de algum modo justificada. Deste modo, beneficia-se o outro, evita-se a profanação do sagrado, impede-se que o outro fique preso por um juramento - que acabaria, afinal de contas, com o juramento sendo quebrado. Se, desse modo, Brutus, em vista do fato de que, com uma única exceção, os conspiradores eram, sem dúvida, cabeças esquentadas e, portanto, precipitados ao fazer juramentos e promessas sagradas e ao exigir promessas sagradas, os tivesse afastado de si e, com isto mesmo, os tivesse impedido de fazer uma promessa, e se, ao mesmo tempo, já que a considerava como justificada e também justificado que se dirigissem a ele, ele silenciosamente se consagrasse à causa - então, me parece que sua interioridade teria sido ainda maior. Assim como está, ele declama um tanto, e embora haja verdade no que ele diz, há ainda uma pequena inverdade quando o diz aos conspiradores, sem realmente deixar claro para si mesmo, para quem ele fala. Então também eu fui para casa. No fundo eu compreendi o velho imediatamente, pois meus estudos me haviam levado, de diversos modos, a perceber uma relação dúbia entre uma moderna especulação cristã e o cristianismo, mas isso não me havia ocupado de um modo decisivo. Agora a questão ganhou sua importância. O venerável ancião com sua fé me pareceu uma individualidade absolutamente justificada, a quem a existência tinha injustiçado, na medida em que uma moderna especulação, tal como uma reforma monetária, tornara duvidosa a garantia de propriedade da fé; a dor do respeitável senhor por ter perdido seu filho, não apenas para a morte, mas, como ele o compreendia, ainda mais terrivelmente para a especulação, comoveu-me profundamente, enquanto a contradição de sua situação, que ele não pudesse nem mesmo explicar como a força inimiga operava, tornou-se, para mim, um desafio decisivo para encontrar uma pista determinada. A coisa toda me atraía como um complicado caso criminal, no qual as circunstâncias muito emaranhadas tornaram difícil perseguir a verdade. [VII 203] Aquilo era coisa para mim. E então eu pensei desse jeito: Estás um tanto entediado com as distrações da vida, entediado com as jovens, a quem amas apenas de passagem; precisas ter algo que te possa ocupar totalmente o teu tempo; aqui está: descobrir onde reside o mal-entendido entre a especulação e o cristianismo. Esta, então, foi minha decisão. Não falei sobre isso deveras com ninguém, e estou certo de que minha senhoria não percebeu nenhuma mudança em mim, nem naquela mesma noite, nem no dia seguinte. "Mas", disse a mim mesmo, "já que tu não és um gênio e, de modo algum, tens alguma missão de tornar no final toda a humanidade abençoadamente feliz, e já que também não prometeste nada a ninguém, podes dedicar-te à causa inteiramente con amore [ital.: com amor) e proceder completamente methodice [lat.: metodicamente], como se um poeta e um dialético mantivessem cada passo teu sob vigilância, agora que ganhaste uma compreensão mais determinada da ideia que te ocorreu, de que tinhas que tentar fazer algo difícil". Meus estudos, que em certo sentido já me haviam levado à minha meta, agora ficaram organizados de forma mais definida, mas a figura venerável do ancião pairava sempre sobre meus pensamentos, cada vez que eu queria transformar minhas deliberações num saber erudito. Procurei, porém, principalmente, através de reflexão própria, encontrar aquela pista que me levasse ao mal-entendido em sua última instância. Minhas numerosas equivocações, não preciso relatar, mas ao final ficou claro para mim que a desorientação da especulação e seu presumido direito de a partir daí reduzir a fé a um momento, poderiam não ser algo acidental, poderiam estar situados muito mais profundamente na tendência de toda a época, e - provavelmente reside em que, em última análise, por causa do muito saber, as pessoas esqueceram o que é existir e o que há de significar interioridade. Tendo entendido isso, também ficou claro para mim que se eu quisesse comunicar algo a esse respeito o ponto principal teria de ser que minha apresentação fosse feita numa forma indireta. Se, com efeito, a interioridade é a verdade, resultados são apenas trastes velhos, com que não deveríamos incomodar uns aos outros, e o querer comunicar um resultado é um trato não natural de uma pessoa com outra, na medida em que todo ser humano é espírito, e a verdade consiste justamente na autoatividade da apropriação, o que impede o resultado. O mestre pode muito bem ter, em relação à verdade essencial (pois, no restante, a relação direta entre mestre e aprendiz está inteiramente em ordem), bastante interioridade, como se diz, e ter prazer em divulgar seu ensinamento dia após dia. Se ele admite que há uma relação direta entre ele e o aprendiz, então sua interioridade não é interioridade, mas uma imediata efusão, [VII 204] pois o respeito pelo aprendiz, a que este seja justamente, em si mesmo, a interioridade, constitui a interioridade do mestre. Um aprendiz pode muito bem ser entusiasta e nos termos mais fortes proclamar o elogio ao mestre e, assim, como se diz, expor à luz do dia sua interioridade: sua interioridade não é interioridade, mas uma imediata devoção, pois o piedoso acordo tácito, segundo o qual o aprendiz se apropria pessoalmente do que é ensinado, distanciando-se do mestre por voltar-se para dentro de si mesmo - isso justamente é interioridade. Pathos é, por certo, interioridade, mas é interioridade imediata e, por isso, se expressa, mas pathos, na forma da oposição, é interioridade; que permanece com o comunicador, apesar de se expressar, e não pode ser apropriado diretamente, a não ser através da autoatividade do outro, e a forma da oposição é justamente o dinamômetro da interioridade. Quanto mais completa a forma da oposição, tanto maior é a interioridade; e quanto menos estiver presente, até a comunicação tornar-se direta, tanto menor será a interioridade. Pode ser bastante difícil para um gênio entusiasmado, que gostaria de fazer toda a humanidade abençoadamente feliz e guiá-la até a verdade, aprender a conter-se desse modo e compreender o NB (nota bene). da reduplicação, porque a verdade não é uma circular na qual são coletadas assinaturas, mas está no valore intrinseco [ital.: valor intrínseco] da interioridade; para um vagabundo e leviano isso é mais natural de entender. Desde que se possa admitir que a verdade, a verdade essencial, seja conhecida por todos, a apropriação e a interioridade são aquilo pelo que se deve trabalhar, e aqui só se pode trabalhar numa forma indireta. A posição do apóstolo é outra, pois este tem de proclamar uma verdade que é desconhecida, e, por isso, a comunicação direta sempre pode ter, temporariamente, sua validade. É bem estranho que enquanto se clama tanto pelo positivo e pela comunicação direta de resultados, a ninguém ocorre reclamar de Deus, o qual, entretanto, como o espírito eterno do qual procedem os espíritos derivados, bem poderia, na comunicação da verdade, relacionar-se diretamente na relação com os espíritos derivados, num sentido totalmente diferente do que quando a relação é entre os espíritos derivados que, vistos essencialmente, são iguais na comum derivação de Deus. Pois nenhum autor anônimo pode esconder-se mais astutamente, e nenhum maiêutico pode subtrair-se da relação direta mais cuidadosamente do que Deus. Ele está na criação, em toda parte na criação, mas não está lá diretamente, e apenas quando o indivíduo singular volta-se para dentro de si mesmo (portanto, só na interioridade da autoatividade), torna-se atento e capaz de ver [VII 205] a Deus. A relação direta com Deus é, justamente, paganismo, e só quando a ruptura já aconteceu, apenas então, pode-se falar de uma verdadeira relação com Deus. Mas esta ruptura é, precisamente, o primeiro ato da interioridade no rumo da determinação de que a verdade é a interioridade. A natureza é, por certo, a obra de Deus, mas só a obra está presente diretamente, não Deus. Em relação ao ser humano individual, não se comporta Ele como um autor ardiloso, que em lugar algum apresenta seu resultado em grandes caracteres, e nem o disponibiliza de antemão num Prefácio? E por que Deus é ardiloso? Precisamente porque Ele é a verdade e, assim o sendo, procura resguardar o homem da inverdade. O observador não desliza direto ao resultado, mas tem de, por seus próprios meios, preocupar-se em encontrá-lo e, com isso, romper a relação direta. Mas esta ruptura é precisamente a irrupção da interioridade, um ato de autoatividade, a primeira determinação de que a verdade é a interioridade. Ou não está Deus tão imperceptivelmente, tão ocultamente presente em sua obra, que um homem não possa muito bem ir vivendo, casar-se, ser respeitado e estimado como marido, pai e campeão de tiro ao alvo, sem descobrir Deus na sua obra, sem nunca, mesmo, obter uma impressão da infinitude do ético, porque se apoiou com uma analogia na confusão especulativa do ético com o histórico-universal, ao se apoiar no costume e na tradição da cidade em que viveu? Como uma mãe adverte o filho que está para ir a uma reunião social, "Agora, presta atenção a teus modos, observa as outras crianças bem-educadas e te comporta como elas", assim também, uma pessoa pode viver e se comportar do modo como vê os outros fazerem. Jamais faria qualquer coisa antes dos outros e jamais teria uma opinião, a não ser que antes soubesse que outros a tinham, porque "os outros" seriam, exatamente, o seu antes. Em ocasiões extraordinárias comportar-se-ia como alguém a quem num banquete servem um prato, e ele não sabe como se deve comer aquilo; daria uma espiada ao redor, até ver como é que os outros senhores faziam etc. Tal homem poderia, talvez, saber muito, talvez até conhecer o sistema de cor; poderia talvez viver num país cristão, saber como se inclina a cabeça a cada vez que o nome de Deus é pronunciado, talvez até visse Deus na natureza se estivesse na companhia de outros que o viam; em resumo, poderia ser um companheiro agradável - [VII 206] e, contudo, seria enganado pela relação direta para com a verdade, para com o ético, com Deus. Se se quisesse representar tal homem num ensaio imaginário, ele seria uma sátira sobre o que significa ser homem. A rigor, é a relação para com Deus que faz de um ser humano um ser humano e, contudo, isso é o que lhe faltaria, enquanto que ninguém hesitaria em considerá-lo um verdadeiro ser humano (pois a ausência de interioridade não é vista diretamente), embora ele fosse mais como uma figura de marionete que, muito enganosamente, imitava todo o humano exterior - até teria filhos com sua esposa. Ao final de sua vida, ter-se-ia que dizer que uma única coisa lhe escapara: não aprendera a prestar atenção a Deus. Pudesse Deus permitir-lhe uma relação direta, certamente ele se teria tornado atento. Se Deus tivesse tomado a forma, por exemplo, de uma ave rara, um pássaro verde imensamente grande, com um bico vermelho, que se empoleirasse numa árvore em cima da muralha e talvez até piasse de uma maneira inaudita: então, nosso homem mundano por certo teria seus olhos abertos; teria conseguido, pela primeira vez em sua vida, ser o primeiro. Nisto reside todo o paganismo, que Deus se relacione diretamente com o ser humano, como o que dá na vista ao que se admira. Mas a relação espiritual para com Deus em verdade, ou seja, interioridade, é justamente condicionada em primeiro lugar pela irrupção da interiorização, que corresponde à divina malícia de que Deus não tenha nada, nada que dê na vista, de fato, Ele está tão longe de dar na vista que é invisível, de modo que a gente não se dá conta de que Ele está ali, enquanto que sua invisibilidade, por sua vez, constitui sua onipresença. Mas um ser onipresente é, exatamente, aquele que é visto em toda parte, como, por exemplo, um oficial de polícia: que ardiloso, então, que um ser onipresente seja reconhecível justamente pelo fato de ser invisível (A fim de ilustrar o quanto o retórico pode ser ardiloso, quero mostrar aqui como se poderia, talvez, produzir retoricamente um efeito num ouvinte, não obstante o enunciado fosse um retrocesso dialético. Que um orador religioso pagão diga que aqui na terra o templo de deus está propriamente vazio, mas (e agora começa o retórico) que no céu, onde tudo é mais perfeito, onde a água é ar, e o ar é éter, também há templos e santuários para os deuses, mas com a diferença de que os deuses realmente habitam esses templos; assim, é um retrocesso dialético que o deus realmente more no templo, pois o não morar ele no templo é uma expressão para a relação espiritual com o invisível. Retoricamente, porém, isso produz efeito. [VII 207] - Eu tive em vista, aliás, uma passagem específica de um autor grego, que, no entanto, eu não quero citar), pura e simplesmente por isso, pois sua visibilidade significa justamente anular a onipresença. Esta relação entre onipresença e invisibilidade é como a relação entre mistério e revelação: [VII 207] de modo que o mistério expressa que a revelação é revelação num sentido mais estrito, que o mistério é a única marca pela qual ela pode ser conhecida, já que, de outro modo, uma revelação se torna algo assim como a onipresença de um policial. Caso Deus queira revelar-se numa figura humana e dar uma relação direta assumindo, por exemplo, a figura de um homem de seis côvados de altura, então aquele homem do mundo e campeão de tiro que construímos experimentalmente por certo prestará atenção. Mas, já que Deus não quer enganar, a relação espiritual, em verdade, exige justamente que sua forma não tenha pura e simplesmente nada de surpreendente; de modo que o homem do mundo terá de dizer: Não há nada, nada mesmo, para ver. Se a divindade não tem nada de surpreendente, o homem do mundo talvez se engane ao não se tornar nem um pouco atento. Mas o deus não tem culpa nisso, e a realidade deste engano é sempre também a possibilidade da verdade. Mas se o deus tiver algo de surpreendente, então engana com isso, que um ser humano preste à inverdade, e esta atenção é também a impossibilidade da verdade. - No paganismo, a relação direta é idolatria; no cristianismo, cada um bem sabe que Deus não pode se mostrar desse modo. Mas esse saber não é, de modo algum, interioridade, e no cristianismo bem pode acontecer a um daqueles que o conhece de cor que se torne totalmente "sem Deus no mundo", como não ocorria no paganismo, pois ali ainda havia a relação não verdadeira do culto idólatra. E a idolatria é, por certo, um triste sucedâneo, mas que o artigo Deus desapareça completamente é algo ainda mais louco. Portanto, nem o próprio Deus se relaciona diretamente com o espírito derivado (e isso é a maravilha da criação: não é produzir algo que nada seja frente ao Criador, mas sim produzir algo que é algo e que, na verdadeira adoração a Deus, pode usar esse algo para por si mesmo anular-se diante de Deus); muito menos um homem pode relacionar-se deste modo com outro em verdade. A natureza, a totalidade da criação, é obra de Deus e, contudo, Deus não está lá, mas dentro do ser humano individual há uma possibilidade (ele é, de acordo com sua possibilidade, espírito) de na interioridade ser despertado para uma relação com Deus e, então, é possível ver Deus em toda parte. [VII 208] A distinção sensível entre o grandioso, o espantoso, o superlativo que mais clama ao céu numa nação meridional, é um retrocesso à idolatria em comparação com a relação espiritual da interioridade. Isso não é como se um autor escrevesse 166 volumes de folhas duplas, e o leitor lesse e relesse, assim como alguém observa e volta a observar a natureza, mas sem descobrir que o sentido dessa obra enorme está no leitor mesmo; pois o assombro pelos muitos volumes e pelas quinhentas linhas por página, que é similar ao assombro diante de quão imensa é a natureza e quão numerosas são as espécies de animais, não é, afinal de contas, compreensão. Em relação à verdade essencial, uma relação direta entre espírito e espírito é impensável; se se admite tal relação, isso significa propriamente que uma das partes cessou de ser espírito, algo que não levam em conta muitos gênios que, por um lado, ajudam a gente a se introduzir en masse na verdade, e, por outro lado, têm a bondade de achar que aclamação, boa vontade para escutar, para assinar embaixo etc., significam ter aceitado a verdade. Exatamente tão importante quanto a verdade e, se tiver que optar, mais importante das duas, é a maneira como a verdade é aceita, e de muito pouco adianta que alguém conquiste milhões que aceitem a verdade, se, pelo próprio modo de aceitação desses, eles são empurrados para a inverdade. E, por isso, toda boa vontade, toda persuasão, toda barganha, toda atração direta, com a ajuda de sua própria pessoa, em consideração ao fato de se sofrer tanto por esta causa, de se chorar pela humanidade, de se estar tão entusiasmado etc. - todas essas coisas não passam de um mal-entendido, um falsum em relação à verdade, com o que, conforme a habilidade que se tem, ajuda-se um monte de gente a adquirir a aparência da verdade. Olha, Sócrates era um mestre do ético, mas estava atento a que não há nenhuma relação direta entre o mestre e aquele que aprende, porque a interioridade é a verdade, e a interioridade em ambos é, precisamente, o caminho que os separa um do outro. Porque o percebera, provavelmente por isso ficava tão feliz com sua aparência exterior vantajosa. Qual era essa? Ora, tenta adivinhar! Em nossos dias, dizemos, com efeito, de um pastor que ele tem um exterior muito privilegiado; alegramo-nos com isso e entendemos que ele é um homem bonito, que a veste talar lhe cai muito bem, que tem uma voz sonora e um porte com que qualquer alfaiate - ou, o que eu queria mesmo dizer - com que qualquer ouvinte teria de se alegrar. [VII 209] Ah, sim, quando se é tão bem equipado pela natureza e tão bem-vestido pelo alfaiate, pode-se facilmente ser professor de religião, e ainda ter sorte; pois as condições dos que ensinam a religião variam ao extremo - de fato, mais do que se pensa quando se ouvem reclamações de que alguns cargos de pastores representam um ganha-pão tão grande, enquanto os de outros são muito pequenos; a diferença é ainda maior - há uns que ensinam a religião e são crucificados - mas é a mesmíssima relijão (Reglionen)! E ninguém se preocupa grande coisa com a repetição reduplicada da representação de como deve ser o mestre, contida na doutrina. Expõe-se a ortodoxia e se adorna o mestre com categorias estético-pagãs. Apresenta-se o Cristo em expressões bíblicas; o fato de ele carregar todo o pecado do mundo não consegue comover, realmente, a congregação; entretanto, o orador o anuncia e para reforçar o contraste descreve a beleza de Cristo (pois O contraste entre a inocência e o pecado não é forte o bastante), e a comunidade crente se emociona com esta determinação totalmente pagã do deus em forma humana: a beleza. - Mas retomemos a Sócrates. Ele não tinha uma aparência tão favorável como a que foi descrita; era muito feio, tinha pés grosseiros e, mais do que isso, muitos calombos na testa e em outros lugares, que tinham de convencer a todos de que ele era um sujeito desmoralizado. Olha, era isso o que Sócrates entendia como sua aparência vantajosa e se alegrava com isso como um menino que ganhou presente, de modo que teria considerado uma chicana da parte do deus se, com o objetivo de impedi-lo de ser um professor de moral, este o tivesse dotado da aparência agradável de um sentimental tocador de cítara, o jeito bucólico de um Schäfer [al.: pastor], os pés pequenos de um diretor de dança na Sociedade dos Amigos, e in tato [lat.: no conjunto] uma aparência tão vantajosa quanto poderia desejar para si alguém que estivesse a procurar emprego no Adresseavisen [Jornal de anúncios], ou um candidato em teologia que depositasse suas esperanças num emprego privado. Por que será que aquele antigo mestre ficava tão satisfeito com sua aparência vantajosa, a não ser por ter percebido que ela podia ajudá-lo a afastar de si o aprendiz, de modo que não o deixasse preso numa relação direta com o mestre - talvez aquele o admirasse, mandasse fazer roupas iguais às dele, mas teria de compreender, pela repulsão do contraste, que por sua vez numa esfera mais alta era a sua ironia, que o aprendiz teria a ver, no essencial, consigo mesmo, e que a interioridade da verdade não é a interioridade da camaradagem com que dois amigos do peito caminham de braços dados um com o outro, mas é [VII 210] aquela separação na qual cada um por si está existindo no que é verdadeiro. Estava totalmente claro para mim que qualquer comunicação direta em relação à verdade como interioridade é um mal-entendido, mesmo que possa ser diferente em relação com o diferente sujeito responsável por ela, seja ela um amável embaraço, uma nebulosa simpatia, oculta vaidade, bobagem, audácia, e outras mais. Mas só porque me esclarecera sobre a forma da comunicação, daí não seguia que eu tivesse algo para comunicar, embora estivesse em ordem que antes se tornasse clara para mim a forma, pois a forma é, afinal, a interioridade. Minha ideia principal era que, em nosso tempo, devido ao muito saber, a gente se esqueceu do que é existir, e do que pode significar interioridade, e que o mal-entendido entre a especulação e o cristianismo poderia ser explicado por isso. Resolvi agora recuar o mais longe possível, para não chegar cedo demais ao que significa existir religiosamente, para nem mencionar o existir religiosamente de modo cristão, e, assim, deixar as coisas dúbias para trás. Se a gente se esqueceu do que é existir religiosamente, decerto também se esqueceu do que é existir humanamente; essa questão também precisaria ser levantada. Mas antes de tudo, isso não poderia ser feito à maneira docente, pois no mesmo instante o mal-entendido aproveitaria, num novo mal-entendido, a tentativa de explicação, como se o existir consistisse em aprender algo sobre um ponto particular. Se isso é comunicado como um saber, então o receptor é induzido ao mal-entendido de que está recebendo algo para saber, e aí estamos de novo no âmbito do saber. Só quem tem alguma noção da tenacidade de um mal-entendido para assimilar em si até a mais rigorosa tentativa de explicação e ainda assim permanecer como um mal-entendido, só esse estará consciente da dificuldade de uma produção autoral, em que se precisa prestar atenção a cada palavra, e cada palavra tem de passar pelo processo da dupla-reflexão. Com uma comunicação direta sobre o existir e sobre interioridade só se alcançará que o especulante, benevolentemente, a assuma e deixe que se entre deslizando com ela. O sistema é hospitaleiro! Tal como um burguês filisteu quando vai passear na floresta, já que há espaço sobrando na carruagem de quatro lugares de Holstein, leva consigo Fulano e Beltrano sem questionar se eles combinam um com o outro, assim também o sistema é hospitaleiro - tem espaço de sobra. Não vou sonegar que admiro Hamann, embora de bom grado eu conceda que a elasticidade de seus pensamentos carece de equilíbrio, e sua tensão sobrenatural, de autodomínio, caso ele devesse ter trabalhado coordenadamente. Mas a originalidade do gênio se mostra em suas sentenças breves, e o vigor da forma corresponde de todo ao arrojo dessultório de um pensamento. [VII 211] Com corpo e alma, até sua última gota de sangue, ele está concentrado numa única palavra, o protesto apaixonado de um gênio superdotado contra um sistema da existência. Mas o sistema é hospitaleiro; pobre Hamann, tu foste reduzido a um § por Michelet. Se o teu túmulo alguma vez foi objeto de atenção especial, eu não sei; se está agora maltratado, eu não sei; mas uma coisa eu sei: que com violência e poder diabólicos foste enfiado no uniforme dos §§ e empurrado a cutiladas para dentro das fileiras. Não nego que Jacobi me entusiasmou com frequência, por mais que eu veja muito bem que sua habilidade di ai ética não é proporcional a seu nobre entusiasmo, mas ele é o eloquente protesto de um espírito nobre, autêntico, amável e ricamente dotado, contra o estrangulamento sistemático da existência, uma consciência vitoriosa de que a existência tem de ter um significado mais extenso e mais profundo do que os poucos anos em que a gente se esquece de si lendo o sistema, e um combate entusiástico para promover essa ideia. Pobre Jacobi! Se alguém visita teu túmulo, eu não sei; mas sei que a charrua do § nivela toda a tua eloquência, toda a tua interioridade, enquanto algumas pobres palavras são registradas como tua significação no sistema. Foi dito de Jacobi que ele representava o sentimento com entusiasmo; tal referência zomba tanto do sentimento quanto do entusiasmo, que possuem, justamente, o segredo de que não se deixam referir de segunda mão e por isso não podem, na forma de um resultado, tornar facilmente bem-aventurado, por uma satisfactio vicaria [lat.: satisfação vicária], alguém que só fala o que decorou. Assim, resolvi então iniciar; e a primeira coisa que eu queria realizar, para começar pelo fundamento, era fazer a relação existencial entre o estético e o ético surgir numa individualidade existente. A tarefa estava colocada, e previ que o trabalho me levaria bem longe e, sobretudo, que eu tinha de estar preparado para às vezes parar em repouso, se o espírito não me sustentasse com pathos. Mas o que aconteceu então, devo contar num apêndice a este capítulo. APÊNDICE Olhada sobre um labor simultâneo na literatura dinamarquesa [VII 212] O que acontece? Enquanto eu sentava ali tranquilamente, aparece Ou isto - ou aquilo. O que eu pretendia fazer, já estava feito aí. Fiquei bem infeliz ao pensar na minha solene resolução, mas então pensei de novo: Afinal de contas, tu não prometeste nada a ninguém; contanto que a coisa seja feita, então tudo bem. Mas a coisa ainda ficou mais louca para mim; pois, a cada passo, justamente quando eu queria começar a executar minha resolução, pondo mãos à obra, aparecia um escrito pseudônimo que realizava o que eu pretendia. Havia nisso tudo algo estranhamente irônico; ainda bem que jamais comentara com alguém sobre a minha resolução, nem mesmo minha senhoria havia notado algo em mim, pois, de outro modo, teriam rido de minha cômica situação, pois que também era bastante engraçado ver que a causa que eu havia resolvido assumir progredia, só que não graças a mim. E eu me convencia de que a causa tinha avançado, pois cada vez que eu acabava de ler tal escrito pseudônimo, ficava mais nítido o que eu havia almejado. Desse modo, tornei-me uma tragicômica testemunha interessada nas produções de V. Eremita e de outros autores pseudônimos. Se meu entendimento é o mesmo dos autores, não posso, naturalmente, saber com certeza, já que sou apenas um leitor; por outro lado, alegra-me que os autores pseudônimos, presumivelmente conscientes da relação da comunicação indireta com a verdade como interioridade, não tenham dito nada por eles mesmos, e nem tenham abusado de um prefácio para assumir uma posição oficial para com sua criação, como se, num sentido puramente legal, um autor fosse o melhor intérprete de suas próprias palavras, como se pudesse ser de alguma ajuda a um leitor que um autor "quisesse tal ou qual coisa", caso essa não se tivesse realizado; ou como se fosse certo que ela se tinha realizado, dado que o próprio autor o havia afirmado no prefácio; ou como se uma desorientação existencial fosse retificada quando levada a uma decisão definitiva, como loucura, suicídio, e outras desse tipo, que especialmente as mulheres empregam quando autoras, e tão rapidamente que quase começam com isso; ou como se adiantasse a um autor ter um leitor que, justo por causa do trabalho desajeitado do autor, soubesse com certeza tudo sobre o livro. Ou isto - ou aquilo, cujo título já é demonstrativo, faz a relação existencial entre o estético e o ético formar-se na individualidade existente. Essa é, para mim, a polêmica indireta do livro contra a especulação, que deixa indiferente frente à existência. [VII 213] Que não haja nenhum resultado e nenhuma decisão final, é uma expressão indireta para a verdade como interioridade, assim talvez uma polêmica contra a verdade enquanto saber. O próprio prefácio diz algo a respeito, porém não de modo docente, pois então eu saberia algo com certeza, mas na forma jocosa do gracejo e da hipótese. Que não haja nenhum autor, é um meio de afastamento. O primeiro Diapsalma (1 ª Parte, p. 3) semeia uma cizânia na existência, como a dor de uma existência de poeta, tal como poderia ter persistido numa existência de poeta, o que B. utiliza contra A. (2ª Parte, p. 217 infra). A última palavra de toda a obra (2ª Parte, p. 368) tem o seguinte teor: só a verdade que edifica é verdade para ti. Esse é um predicado essencial em relação à verdade enquanto interioridade, com o que sua determinação decisiva como edificante para ti, ou seja, para o sujeito, é sua diferença essencial em relação a todo saber objetivo, com o que a própria subjetividade se torna sinal da verdade. A primeira parte representa uma possibilidade de existência que não consegue ganhar existência, uma melancolia que deve ser elaborada eticamente. Ela é essencialmente melancolia, e tão profunda que, embora autopática, enganosamente se ocupa do sofrimento dos outros (Silhuetas) e de resto engana com a máscara do gozo, da razoabilidade, da perversidade, mas o engano e o ocultamento são ao mesmo tempo sua força e sua impotência, sua força na fantasia e sua impotência em alcançar a existência. É uma existência de fantasia em paixão estética, por isso paradoxal e fracassando no tempo; em seu máximo, ela é desespero; portanto não é existência, mas possibilidade de existência em direção à existência, e trazida tão perto disso, que quase se pode sentir como é desperdiçado cada momento no qual ainda não se chegou a uma decisão. Mas a possibilidade de existência no existente A. não quer tomar consciência disso, e mantém a existência afastada por meio do mais sutil de todos os enganos, o pensamento; ele já pensou tudo o que era possível, e contudo ainda não existiu, de modo algum. Isso faz com que só os Diapsalmata sejam efusões puramente poéticas, enquanto que o restante contém abundante conteúdo de pensamento em si, o que facilmente pode iludir, como se o ter pensado sobre algo fosse idêntico com o existir. Se um poeta tivesse estruturado a obra, dificilmente teria pensado nisso e, talvez, com a própria obra, tivesse promovido o velho mal-entendido mais uma vez. Com efeito, a relação não deve ser entre um pensamento imaturo e um maduro, mas entre não existir e existir. [VII 214] Por isso A. é desenvolvido como pensador; como dialético é de longe superior a B., recebeu todos os sedutores dons da inteligência e do espírito; com isso torna-se mais claro o que faz com que B. seja diferente dele. A segunda parte representa uma individualidade ética existindo em virtude do ético. A segunda parte é também aquela que leva a primeira parte a avançar, pois A. queria, por sua vez, imaginar o ser autor como uma possibilidade, executar realmente isso - e então parar por aí. O ético [já] desesperou (cf. 2ª Parte, p. 163-227 - a primeira parte era desespero); no desespero, ele escolheu a si mesmo (p. 239ss.); ele se torna, graças a esta escolha e nesta escolha, manifesto (cf. 2ª Parte, p. 336: "A expressão que enfatiza com acuidade a diferença entre o estético e o ético é: tornar-se manifesto é um dever de todo ser humano" - a primeira parte era ocultamento); ele é esposo (A. estava familiarizado com todas as possibilidades no âmbito erótico, e contudo não estava propriamente enamorado, pois no mesmo instante estava, de algum modo, em processo de consolidar-se) e, contrariando justamente o ocultamento do estético, se concentra no matrimônio como a mais profunda forma de manifestação da vida, com o que o tempo joga a favor do [indivíduo] eticamente existente, e a possibilidade de ter uma história é a vitória ética da continuidade, sobre o ocultamento, a melancolia, a paixão ilusória e o desespero. Através das miragens fantasmagóricas, das distrações de um opulento conteúdo teórico, cujo desenvolvimento, se para alguma coisa serve, é o principal mérito do autor, alcança-se um ser humano bem individualizado, existente em virtude do ético. Esta é a mudança de cenário ou, mais corretamente, agora a cena está aí: em vez de um mundo de possibilidades, inflamado pela fantasia e dialeticamente organizado, surgiu um indivíduo - e só a verdade que edifica é verdade para ti - ou seja, a verdade é a interioridade, mas, é bom notar, a interioridade da existência, aqui em determinação ética. Assim essa ventania passou. O mérito do livro, se o possui, não é da minha conta; se tem algum, deve consistir em não fornecer, essencialmente, nenhum resultado, mas tudo transformar em interioridade: interioridade da fantasia, na primeira parte, para conjurar possibilidades com paixão intensificada, dialética para no desespero transformar tudo em nada; [VII 215] pathos ético na segunda parte para, com a calma, incorruptível e contudo infinita paixão da resolução, abraçar a modesta tarefa do ético, edificada, com isso, manifestamente diante de Deus e dos homens. - Sem discurso docente, mas daí não se segue que não haja conteúdo de pensamento; pois afinal pensar é uma coisa, e existir no que foi pensado é outra coisa. Existir em relação ao pensar é tão pouco algo óbvio, quanto algo irrefletido. Não é nem mesmo uma convicção que se comunique e exponha, talvez, como se diz, com interioridade; pois uma convicção também se pode ter na representação, por meio do que facilmente se torna dialética, no sentido de ser mais ou menos verdadeira. Não, lá se existe no pensamento, e o livro ou o escrito não tem nenhuma relação finita com alguém. A transparência desse pensamento na existência é justamente interioridade. Assim, por exemplo, se a especulação, em vez de expor à maneira docente de omnibus dubitandum e acolher um coro que jura, que vai jurar pelo de omnibus dubitandum, em vez disso tivesse feito uma tentativa de levar tal cético a vir a ser em interioridade existencial, de modo que se pudesse ver, até o mais ínfimo detalhe, como ele se comporta fazendo isso - sim, se tivesse feito isso, ou seja, se tivesse começado por aí, teria então desistido outra vez e percebido, envergonhada, que o grande mote que qualquer recitador jura ter realizado é não apenas uma tarefa infinitamente difícil, mas uma impossibilidade para um existente. E este é, de fato, um dos lados tristes de toda comunicação, que o bom comunicador, ora para conquistar pessoas, ora por vaidade, ora por falta de reflexão, se gabe de não só ter feito, num estalar de dedos, tudo aquilo que seria possível a um eminente espírito existente numa longa vida, mas inclusive o impossível. A gente se esquece de que o existir torna a compreensão da mais simples verdade extremamente difícil e extenuante para o homem comum na transparência da existência; com a ajuda de um resultado, a gente acredita em qualquer mentira, sem mais nem menos (já ouvi pessoas, tão tolas que se poderia dar marradas em portas com sua cabeça, dizerem: não se pode ficar parado na ignorância socrática) e acaba como qualquer cabeça de vento. tendo feito afinal até mesmo o impossível. A interioridade tornou-se uma questão de saber, o existir, uma perda de tempo. Daí que a pessoa mais medíocre que escrevinha umas páginas em nossa época fala de modo a nos fazer crer que ela vivenciou tudo, e é só prestar atenção a suas orações intercaladas para se ver que se trata de um farsante; [VII 216] e daí que, em nossa época, uma pessoa que exista apenas com tanta energia quanto tinha um filósofo grego mediano já é considerada demoníaca. Sabe-se de cor a ladainha da dor e do sofrimento, do mesmo modo que o elogio da constância. Recitar, qualquer um pode; se existe então uma pessoa que, por amor a uma opinião, se expõe a si mesma a um pequeno desconforto, é considerada demoníaca - ou tola; pois a gente sabe tudo e, para não ficar parado nisso, sabe-se também que não se tem de realizar a mínima dessas coisas, pois, com a ajuda do conhecimento exterior, a gente está no sétimo céu, e caso se tenha de começar a realizá-las a gente se tornará um pobre homem existente individual, que tropeça a cada passo e avança muito lentamente de ano a ano. De fato, a gente pode, às vezes, lembrar-se, com certo alívio, que César deixou incendiar toda a biblioteca de Alexandria, de modo que se poderia, sem má intenção, realmente desejar para a humanidade que esta superfluidade do saber fosse jogada fora outra vez, para que se pudesse, novamente, aprender o que significa viver como um ser humano. Que Ou isto - ou aquilo terminasse justamente na verdade edificante (sem contudo chegar a colocar as palavras em itálico, e muito menos adotar um tom docente) me surpreendeu. Eu poderia desejar ver isso enfatizado de forma mais definida, para que cada ponto particular no caminho do existir religioso cristão pudesse tornar-se claro. Pois a verdade cristã como interioridade é também edificante, mas daí não se segue, de modo algum, que qualquer verdade edificante seja cristã; o edificante é uma categoria mais ampla. Concentrei-me outra vez neste ponto, mas o que acontece? Justamente quando minha intenção era começar, aparecem Dois discursos edificantes, do Magister Kierkegaard, de 1843. Depois seguiram três discursos edificantes, e o prefácio repetia que não eram sermões, contra o que eu, se ninguém mais, teria realmente protestado incondicionalmente, dado que eles empregam tão somente categorias éticas da imanência, e não as categorias religiosas duplamente refletidas no paradoxo. Caso se deva evitar toda confusão de linguagem, o sermão [a prédica] deve ser reservado para a existência religiosa cristã. Hoje em dia, ouvimos decerto, ocasionalmente, sermões que são qualquer coisa, menos sermões, porque as categorias são as da imanência; o Magister quis, talvez, tornar isso claro, indiretamente, ao ver, de modo puramente filosófico, até onde se pode chegar na edificação, [VII 217] de modo que o discurso edificante certamente tem sua validade, mas, contudo, ao enfatizá-lo indiretamente, o autor vem em ajuda da causa que chamo de minha, de um modo ridículo, visto que sempre chego tarde demais quando se trata de fazer algo. Mas, de um modo bastante estranho, pelo que me contou o Magister, alguns sem mais nem menos chamaram os discursos edificantes de sermões, de fato, até pensando que os estavam honrando com tal título, como se o discurso edificante e o sermão se relacionassem mutuamente como um juiz distrital e um desembargador, e como se se honrasse o juiz distrital chamando-o de desembargador, quando ele é apenas um juiz. Outros, ao contrário, criticaram os discursos edificantes por não serem verdadeiros sermões, o que é o mesmo que criticar uma ópera por não ser uma tragédia. (Talvez um ou outro, com sua objeção, não tenha levado tanto em consideração que os discursos edificantes eram filosóficos e pura e simplesmente não usavam categorias cristãs, mas antes acharam que os discursos haviam incorporado um elemento estético numa escala mais ampla do que a usual no terreno do edificante. Comumente, o orador edificante mantém-se afastado da descrição mais forte e mais completa dos estados da alma com um jogo de cores psicológico, e deixa essa tarefa ao poeta e ao impetus [ímpeto] poético, qualquer que seja a razão, seja que o orador individual não pode ou não quer fazê-lo, Isso, de qualquer modo, pode facilmente criar uma fissura no ouvinte, já que o discurso edificante lhe faz sentir falta de algo que ele, portanto, deve procurar em outro lugar. Salvo melhor juízo, pode ser certo incluir a descrição poética. Só que permanece decisiva a diferença entre o poeta e o orador edificante, que o poeta não tem uma meta além da verdade psicológica e da arte da apresentação, enquanto o orador tem, além disso, principalmente, a intenção de traduzir tudo para o edificante. O poeta se absorve na descrição da paixão, mas para o orador edificante isso é apenas o primeiro passo, e o seguinte é o decisivo para ele - compelir o inflexível a depor as armas, tranquilizar-se, esclarecer, em suma, a transportar-se para o edificante). O ético em Ou isto - ou aquilo salvou-se ao desesperar, superou o ocultamento na transparência; mas no meu entender havia aqui uma coisa que não se encaixava. Para se definir na interioridade da verdade de um modo diferente daquele da especulação, usou, em lugar da dúvida, o desespero, mas, não obstante, fez com que parecesse que, pelo desespero, nesse mesmo desespero, ele, uno tenore [ital.: sem interrupção], por assim dizer, encontrava a si mesmo. Se se tivesse que esclarecer em Ou isto - ou aquilo onde é que reside a questão duvidosa, o livro teria que ter tido uma orientação religiosa, ao invés de ética, e teria dito de uma vez tudo o que, em minha opinião, só deveria ser dito sucessivamente. A discrepância não foi tocada nem de leve, e isso correspondia bem ao meu modo de ver. Se isso estava claro para o autor, eu naturalmente não sei. O ponto duvidoso é que se suponha que o si-mesmo ético teria de ser encontrado no desespero de maneira imanente; que, ao suportar o desespero, o indivíduo conquistava a si mesmo. Se bem que usou a determinação da liberdade, o escolher a si mesmo, o que parece remover a dificuldade que, provavelmente, não chamou a atenção de muitos, já que, philosophice [lat.: filosoficamente], tudo ocorre assim, num um, dois, três, se duvida de tudo, e assim se encontra o verdadeiro começo. Mas isso não adianta. Quando desespero, uso a mim mesmo para desesperar, e por isso posso realmente desesperar de tudo, por mim mesmo, mas não posso, quando o faço, retomar por mim mesmo. É neste instante da decisão que o indivíduo precisa de uma assistência divina, embora seja bem correto que, antes, se deve ter entendido a relação existencial entre o estético e o ético, para se posicionar nesse ponto, quer dizer, estando a gente aí decerto em paixão e interioridade, atenta ao religioso - e ao salto. Avante. A determinação da verdade como interioridade, que ela seja edificante, deve ser compreendida mais especificamente, antes mesmo que religiosa, para nem falar de religiosa no sentido cristão. No que tange ao edificante, é importante que produza antes de tudo o horror necessário adequado, pois senão o edificante será uma fantasia. O ético, com a paixão do infinito, no instante do desespero havia escolhido a si mesmo, livrando-se do horror de ter a si mesmo, sua vida, sua realidade, em sonhos estéticos, em melancolia, em ocultamento. Visto desse ângulo, então, não se pode mais falar de horror; a cena é a interioridade ética na individualidade existente. O horror tem que ser uma nova determinação da interioridade, por meio da qual o indivíduo, numa esfera mais alta, retrocede novamente àquele ponto em que a manifestação, que é a vida do ético, outra vez se torna impossível, mas de modo que a relação se inverte, de modo que o ético, que antes auxiliava na manifestação (enquanto o estético a impedia), é agora o impeditivo, e aquilo que auxilia o indivíduo a uma manifestação superior, para além do ético, é algo diferente. Para quem teve interioridade para captar com paixão infinita o ético, o dever e a validade eterna do universal, nenhum horror no céu, na terra, ou debaixo da terra, poderia comparar-se com o de se defrontar com uma colisão na qual o ético se torna a tentação. E, contudo, esta colisão atinge cada um, senão de outro modo então porque religiosamente [VII 219] é mister que ele se relacione com o paradigma religioso - ou seja, porque o paradigma religioso é a irregularidade e mesmo assim deve ser o paradigma (assim como a onipresença de Deus seria invisibilidade, e uma revelação um mistério), ou então porque o paradigma religioso não expressa o universal, mas o caso singular (o particular, como, p. ex., apelando a visões, sonhos etc.), e no entanto deve ser o paradigma. Mas ser o paradigma significa justamente ser para todos, mas só se pode ser modelo para todos sendo aquilo que todos são ou devem ser, i. é, o universal, e, contudo, o paradigma religioso é exatamente o oposto (o irregular e o particular), enquanto que o herói trágico expressa para todos a flexão regular do universal. Isso se tornara claro para mim, e eu estava apenas esperando pelo apoio do espírito em pathos para apresentá-lo numa individualidade existente; pois ali não se deveria ensinar ao modo dos professores, já que, em meu modo de ver, a desgraça de nossa época está exatamente em que acabou por saber demais e esqueceu o que significa existir e o que é interioridade. A forma tinha de ser então indireta. Aqui direi a mesma coisa de outro modo, como convém quando se trata de interioridade; pois quem tem a sorte de lidar com a multiplicidade, pode facilmente ser recreativo. Ao terminar com a China pode pegar a Pérsia; depois que estudou o francês pode começar com o italiano, e então se ocupar com a astronomia, a ciência veterinária etc., e ter sempre certeza de ser visto como um cara poderoso. Mas a interioridade não tem tal abrangência que desperte o assombro do mundo dos sentidos; assim, a interioridade no amor não significa, afinal de contas, casar-se sete vezes com moças dinamarquesas, e então se atirar às francesas, às italianas etc., mas, sim, amar uma e a mesma e, contudo, continuamente rejuvenescer-se no mesmo amor, de modo que este continuamente floresça como novo, em ânimo e exuberância, o que, no que tange à comunicação, é a inesgotável renovação e a fecundidade da expressão. A interioridade não pode ser comunicada diretamente, porque expressá-la diretamente seria exterioridade (sua orientação para fora e não para dentro); e o fato de expressar a interioridade diretamente não é, de jeito nenhum, prova de que ela exista (a efusão direta de sentimentos não é, de jeito nenhum, prova de que a gente os tenha, mas a tensão da forma antitética é o dinamômetro da interioridade), e a recepção da interioridade não é uma reprodução direta [VII 220] do que foi comunicado, pois esta seria um eco. Mas a repetição da interioridade é aquela ressonância na qual o dito desaparece, como se deu com Maria, quando ocultava as palavras em seu coração. Mas quando a relação é entre seres humanos, nem mesmo isso é a expressão verdadeira da repetição da interioridade, porque ela guardava as palavras como um tesouro, na bela moldura de um belo coração, porém há interioridade quando o que é dito pertence ao receptor como se fosse propriamente seu - e agora, é de fato propriamente seu. Comunicar-se desse modo é o mais belo triunfo da interioridade resignada. Por isso, ninguém é tão resignado como Deus, pois Ele comunica criando, de tal modo que, ao criar, Ele dá autonomia frente a Ele mesmo; o mais resignado que um ser humano consegue ser consiste em reconhecer a autonomia dada a qualquer ser humano e, de acordo com sua capacidade, fazer tudo para verdadeiramente ajudar alguém a preservá-la. Mas em nossa época não se fala de tais coisas - por exemplo, se é permitido o que se chama conquistar uma pessoa para a verdade, caso aquele que tem alguma verdade para comunicar também possua a arte da persuasão, tenha o conhecimento do coração humano, tenha engenhosidade para tomar o outro de surpresa, tenha capacidade de cálculo para capturar com vagar, se ele tem então o direito de usar tudo isso para ganhar adeptos para a verdade, ou se deveria, humilde diante de Deus, amando os seres humanos com o sentimento de que Deus não precisa dele (Pois Deus não é como um rei em apuros, que diz ao Ministro do Interior, em quem ele mais confia: "O senhor precisa fazer tudo, o senhor precisa criar a atmosfera favorável a nossa proposta e conquistar a opinião pública para o nosso lado. O senhor pode fazê-lo, use sua esperteza; se eu não puder confiar no senhor, não tenho mais ninguém." Mas em relação a Deus, não existem instruções secretas para um ser humano, tampouco como alguma escada dos fundos; e até mesmo o espírito mais eminente que venha apresentar um relatório, é melhor que se apresente com temor e tremor, pois Deus não carece de gênios, Ele pode, afinal, criar várias legiões deles, e no serviço de Deus querer se fazer de indispensável diante de Deus significa eo ipso demissão. E todo ser humano é criado à imagem de Deus, isto é o absoluto [det Absolute]; a migalha que ele deve aprender de Pedro e Paulo não tem avaliação tão alta), e de que todo ser humano é essencialmente espírito, usar todos esses dons justamente para impedir a relação direta e, em vez de, confortavelmente, ter alguns adeptos, deveria, consciente de seus deveres, suportar que o acusem de leviandade, falta de seriedade etc., por disciplinar-se na verdade e livrar sua vida da mais terrível de todas as inverdades: um adepto. Como já disse, eu havia entendido aquela que era a mais horrível colisão da interioridade, e estava apenas esperando o espírito vir em meu auxílio - e o que acontece? Bem, o Magister Kierkegaard e eu, cada um a seu modo, certamente fazemos um papel ridículo em relação aos livros pseudônimos. Que eu fico aqui sentado, bem quieto, com a constante intenção de fazer aquilo que os autores pseudônimos estão fazendo, ninguém sabe, é verdade. O Magister Kierkegaard, entretanto, tem de comparecer cada vez que um escrito desses vem a público. E pelo menos isso é certo - se todas aquelas coisas que são ditas nas sábias rodas de chá e em outras reuniões amigáveis para o enobrecimento e aperfeiçoamento deste homem, se o terror dos discursos fulminantes e a severa voz da acusação e o juízo de condenação pudessem realmente trazer-lhe proveito, então ele teria de se tornar, dentro de pouco tempo, um homem excepcionalmente bom. Enquanto do outro lado um único mestre tem vários discípulos para aperfeiçoar, ele se encontra na posição digna de inveja de ter uma contemporaneidade tão honorável com homens e mulheres, eruditos e não eruditos e limpadores de chaminés, todos conjuntamente ocupando-se com o aperfeiçoamento dele. Só é uma pena que a punição e tudo o que visa ao enobrecimento do coração e do intelecto aconteça e seja dito apenas na sua ausência, jamais quando ele está presente; de outro modo, decerto algum resultado surgiria daí. O que acontece? Aparece um escrito: Temor e tremor. O não poder se tornar manifesto, o ocultamento, é aqui um horror, comparado com o qual o ocultamento estético é brincadeira de criança. Representar essa colisão existencial numa individualidade existente era impossível, dado que a dificuldade da colisão, enquanto liricamente espicaça ao extremo a paixão, dialeticamente reduz a expressão ao silêncio absoluto. Por isso, Johannes de Silentio não é, ele próprio, retratado como um tal existente; ele é um tipo reflexivo que, com o herói trágico como terminus a quo [lat.: ponto de partida], o interessante como confinium [lat.: fronteira] e a paradigmática irregularidade religiosa como terminus ad quem [lat.: ponto de chegada], continuamente bate de frente, por assim dizer, com o entendimento, enquanto o lirismo reage ao repelão. Foi assim que o próprio Johannes se apresentou. Chamar este livro de "eine erhabene Lüge [al.: uma nobre mentira]", como o fez a Firma Kts, evocando Jacobi e Desdêmona é, segundo o meu pensar, característico, [VII 222] visto que o próprio enunciado contém uma contradição. O contraste da forma é totalmente necessário para qualquer produção nessas esferas. Na forma da comunicação direta, na forma do grito, temor e tremor é uma insignificância, pois a comunicação direta indica precisamente que a direção é para fora, como a direção do grito, e não para dentro para o abismo da interioridade, onde "temor e tremor" só então são terríveis, o que só pode ser expresso numa forma enganadora. Não posso saber, naturalmente, com certeza, qual é a real situação de Johannes de Silentio, já que não o conheço pessoalmente e, mesmo que o conhecesse, não estou propriamente inclinado a crer que ele quisesse fazer-se de bobo, oferecendo uma comunicação direta. O ético é a tentação; surgiu a relação para com Deus; a imanência do desespero ético foi rompida; o salto foi posto; o absurdo é a notificação. Tendo compreendido isso, pensei que, como precaução, seria bom se assegurar de que o já alcançado não fosse anulado por um coup de mains [fr.: lance de surpresa], de modo que o ocultamento viesse a ser aquilo que se chama de ocultamento, um pouquinho de estética, e a fé viesse a ser algo assim como o que a gente chama de imediatidade, p. ex., vapeurs [fr.: sentimentos histéricos, hipocondríacos], e o paradigma religioso, algo assim como o que a gente chama de um modelo, um herói trágico, por exemplo. O que acontece? Nesses mesmos dias, recebo de Reitzel um livro, intitulado A repetição. Ali não se ensina ao estilo docente, longe disso, e era justamente como eu desejava, pois, em meu ponto de vista, a desgraça de nossa época era que a gente aprendeu coisas demais e se esqueceu de existir e do que significa a interioridade. Numa tal situação, é desejável que o comunicador saiba subtrair e, para isso, uma forma de contraste perturbadora é até útil. E Constantin Constantius escreveu, como ele próprio o chama, "um livro engraçado". A repetição é basicamente a expressão da imanência, de modo que a gente desespera até o fim e tem a si próprio, duvida até o fundo e tem a verdade. Constantin Constantius, esta cabeça estética intrigante, que de resto não desespera de nada, desespera da repetição, e o Jovem torna visível que, se esta tiver que surgir, terá que ser uma nova imediatidade, de modo que ela própria seja um movimento em virtude do absurdo, e a suspensão teleológica, uma provação: [VII 223] A provação, por sua vez, corresponde à irregularidade inerente ao paradigma religioso, pois uma provação, vista eticamente, é impensável, dado que o ético é o universalmente válido exatamente por ser válido sempre. A provação é a mais alta seriedade do paradigma religioso, mas para o meramente ético provação é uma brincadeira, e existir experimentando não é, de modo algum, seriedade, mas sim um motivo cômico, que nem se compreende como é que nenhum poeta usou ainda para descrever a falta de vontade, elevada a um grau quase insano, como se alguém quisesse se casar só para experimentar etc. Mas que a suprema seriedade da vida religiosa se reconheça numa brincadeira é como dizer que o paradigma é a irregularidade ou a particularidade, e que a onipresença de Deus é sua invisibilidade, e a revelação o mistério. O escrito A repetição foi chamado na página de título de "experimento psicológico". Que essa era uma forma de comunicação duplamente refletida, logo ficou claro para mim. Pois por ocorrer na forma de experimento, a comunicação forjou, para si mesma, uma resistência, e o experimento reforça um abismo aberto entre o leitor e o autor, estabelece a separação da interioridade entre eles, de modo que a compreensão direta ficou impossibilitada. O experimento é a consciente e provocadora revogação da comunicação, o que tem sempre importância para um existente que escreve para pessoas existentes, para que a relação não se transforme na de um recitador para recitadores. Se um homem quisesse parar num pé só ou numa postura cômica de dança balançar seu chapéu e nesta atitude expor algo de verdadeiro, seus poucos ouvintes se dividiriam em duas classes; e muitos ele não teria, pois a maior parte logo o abandonaria. Uma das classes diria: Como o que ele diz pode ser verdadeiro se ele gesticula desse jeito? A outra classe diria: Bem, não faz diferença se ele executa um passo de dança ou anda de cabeça para baixo ou dá cambalhotas; o que ele diz é verdade, disso eu me apropriarei e não ligarei para ele. Assim também com o experimento. Se o que é dito é sério para o escritor, ele mantém essencialmente a seriedade para si mesmo; se o receptor o interpreta como seriedade, o faz essencialmente por si mesmo e isso é justamente a seriedade, e já na educação infantil a gente distingue entre "aprender de cor" e "exercício de inteligência", distinção esta que frequentemente chama bastante a atenção para o "aprender de cor" sistemático. O litígio do experimento favorece a interioridade dos dois apartando-os, cada um para sua interioridade. Esta forma ganhou minha inteira aprovação, e acreditei também descobrir que os autores pseudônimos continuamente tinham em mira o existir e que desse modo sustentavam uma polêmica indireta contra a especulação. [VII 224] Se alguém sabe tudo, mas o sabe decorado, a forma do experimento é um bom meio exploratório; a gente lhe conta dessa forma até o que ele sabe: não o reconhece. - Mais tarde um novo pseudônimo, Frater Taciturnus, assinalou o lugar do experimento em relação com as produções estéticas, éticas e religiosas (cf. Estádios no caminho da vida, p. 340ss., § 3). Se de resto Temor e tremor junto com A repetição têm algum valor, não vou decidir. Se têm valor, o critério de julgamento não será a importância docente dos parágrafos. Se o infortúnio da época consiste em ter esquecido o que é interioridade, então não se deveria escrever para os "devoradores de parágrafos", mas individualidades existentes deveriam ser retratadas em sua aflição quando a existência se embaralha para elas, o que é algo diferente de sentar confortavelmente num canto junto à estufa para recitar de omnibus dubitandum. Portanto, se a produção deve ser significativa, convém que tenha sempre paixão. Constantin Constantius até se serviu de um caso amoroso, que é sempre um tema utilizável em relação ao significado do existir, ainda que philosophice [lat.: filosoficamente] em relação à recitação seja uma tolice. Ele se serviu de um noivado. Isso eu aprovo integralmente, e quando se diz que duas pessoas se amam mutuamente, só mesmo exauridos leitores de romances estão acostumados a compreender com isso, e ainda apreciar, aquilo que a plebe mais rasteira, profanando, entende por esta expressão. Um noivado é uma promessa, um noivado rompido é uma promessa quebrada, mas aí não há nenhuma nota secreta que fizesse uma mulher enrubescer. Daí não segue que um noivado devesse ter um toque menos sério, mas que sua seriedade e o horror do rompimento ficam mais puros. Chamar de promessa, uma promessa quebrada, quando um homem engravida a amada no romance e depois a abandona, é falta de reflexão e é imoral, e sobretudo é impeditivo de qualquer desenvolvimento dialético posterior. Pois tal caso não permite um posterior tratamento dialético, dado que o saudável bom-senso facilmente nos diz que pelo menos quatro crimes foram cometidos aqui: engravidar a moça (mesmo que se case com ela depois, permanece sendo um crime); com isso, fazer da criança um filho ilegítimo (mesmo que isso seja remediado depois, permanece sendo um crime); abandonar a mãe, abandonar a criança; e então como herói de romance talvez se envolver com uma nova amada, com o que ele, mesmo que este novo relacionamento seja um casamento correto, comete adultério, de acordo com a palavra da Escritura [VII 225], e transforma o casamento da moça abandonada, caso ela contrate um, numa vida desregrada, segundo os ensinamentos da Escritura. Neste sentido, ainda posso entender (Posso também entender bem por que o autor pseudônimo repetidamente traz à tona o tema do casamento. As pessoas ordinariamente param onde as dificuldades começam. De acordo com um costume antigo, a poesia se vale do caso amoroso e deixa o casamento ser o que quiser. Mas na poesia moderna (no drama e no romance), isso foi tão longe que o adultério, como uma coisa corriqueira, é utilizado como uma sofisticada experiência para um novo caso amoroso. A poesia inocente não explica nada sobre o matrimônio; a poesia culpada o explica como adultério) muito bem por que a história de um noivado foi escolhida, e, mais tarde, ainda uma outra por Frater Taciturnus. Quanto mais puramente o relacionamento rompido puder ser mantido, enquanto o horror da mais fina qualidade cresce e aumenta, tanto mais descobertas a dialética pode fazer. Mas ponderar dialeticamente sobre aquilo que mais apropriadamente se trataria no segundo protocolo do tribunal criminal - sim, até mesmo usar um sórdido bocado de dialética para permitir que o herói escape bem disso - é algo que deve ser deixado aos romancistas. Um romancista veria um noivado como algo tão insignificante que nem poderia perder tempo com a ideia de tal promessa quebrada. Nos autores pseudônimos a dialética é empregada justamente para tornar a questão tão horrível quanto possível, e o herói se torna herói precisamente pela paixão com que concebe o horror em si mesmo e como decisivo para sua vida, e a pureza consiste precisamente no fato de a promessa quebrada ser concebida no sentido de uma suspensão teleológica, e a pureza do herói consiste em que sua suprema paixão está em querer reparar o que foi feito, e o martírio do herói consiste em que entre outras coisas ele mesmo percebe que sua vida se torna absurda para a maioria das pessoas que em geral entendem tanto do ético e do religioso quanto a maioria dos romancistas. Do ponto de vista ético e religioso, ninguém se torna um herói por ser um tipo despreocupado, capaz de lidar com tudo levianamente, mas, antes, por tomar a vida com infinita gravidade - note-se, porém, não na forma de meia hora de gritaria de mocinhas, mas na forma de perseverança na interioridade. [VII 226] Entretanto, uma provação (para sua dialética, cf. A repetição) é uma passagem; a pessoa provada volta de novo a existir no ético, ainda que guardando uma eterna impressão do horror, uma impressão mais interior do que quando os cabelos grisalhos recordam ao que passou pela experiência o instante de horror e perigo mortal, quando então seus cabelos embranqueceram. A suspensão teleológica do ético tem de ter uma expressão religiosa ainda mais definida. O ético está aí, presente a todo instante com sua infinita exigência, mas o indivíduo não está em condições de realizá-lo. Esta impotência do indivíduo não deve ser compreendida como uma imperfeição do esforço continuado para atingir um ideal, pois nesse caso a suspensão não seria posta, tampouco quanto o homem que cumpre suas funções de modo medíocre está suspenso. A suspensão consiste em que o indivíduo se encontra num estado diretamente oposto ao que o ético requer, de modo que, longe de ser capaz de começar, a cada instante em que permanece nesse estado é sempre mais impedido de conseguir começar: a situação não é a da possibilidade para a realidade, mas a da impossibilidade. Assim, o indivíduo está suspenso do ético do modo mais terrível, na suspensão ele é heterogêneo frente ao ético, o qual contudo lhe dirige a exigência do infinito, que a cada instante se exige do indivíduo e, com isso, cada instante apenas assinala mais determinadamente a heterogeneidade como heterogeneidade, Na tentação (quando Deus tenta uma pessoa, como é dito de Abraão no Gênesis), Abraão não era heterogêneo em relação ao ético, ele bem podia realizá-lo, mas foi impedido disso por aquela coisa superior que, ao acentuar absolutamente a si mesma, transformou a voz do dever em tentação. Tão logo essa coisa superior libera a pessoa tentada, tudo volta ao normal, embora permaneça por toda a eternidade o horror de que isso poderia tornar a acontecer, mesmo que por um décimo de segundo. Pois o quanto dura a suspensão é algo de menor importância; o decisivo é que ela ocorre. Mas a gente não esquenta a cabeça com tais coisas. A apresentação do sermão usa sem cerimônia a categoria de "provação" (em que o ético é tentação), que confunde absolutamente o ético e em última análise todo o pensamento simplesmente humano; e isso passa como se nada fosse - nem é mesmo muito mais que isso. Agora a situação é outra. O dever é o absoluto, sua exigência é o absoluto e não obstante o indivíduo está impedido de realizá-lo, sim, de um modo desesperadamente irônico, está como que isento (no mesmo sentido em que a Escritura fala sobre estar isento da lei de Deus) por ter-se tornado heterogêneo em relação ao ético, [VII 227] e, quanto mais profundamente sua exigência lhe é proclamada, mais clara se torna para ele sua terrível isenção. A terrível isenção de fazer o ético, a heterogeneidade do indivíduo em relação ao ético, essa suspensão para fora do ético é o pecado como estado num ser humano. O pecado é uma expressão decisiva para a existência religiosa. Enquanto o pecado não é posto, a suspensão fica sendo um momento transitório que por sua vez desaparece ou se mantém fora da vida como o totalmente irregular. O pecado, contudo, é o ponto de partida decisivo para a existência religiosa, não é um momento dentro de alguma outra coisa, dentro de outra ordem de coisas, mas é ele mesmo o começo da ordem de coisas religiosa. O pecado não viera à tona em nenhum dos escritos pseudônimos. É verdade que o ético de Ou isto - ou aquilo dera um matiz religioso à categoria ética do escolher-se a si mesmo, ao ajuntar ao ato de desesperar o arrepender-se, fora da continuidade do gênero humano, mas isso era uma banalização que decerto tem sua razão de ser no querer manter a obra como ética - como se ocorresse bem de acordo com meu desejo, para que cada momento pudesse se tornar claro por si. A observação edificante, ao final de Ou isto - ou aquilo, de "que, contra Deus, nunca temos razão", não é uma determinação do pecado como fundamento, mas é a discrepância entre o finito e o infinito apaziguada na reconciliação entusiasta do infinito. É o derradeiro clamor entusiasta do espírito finito (na esfera da liberdade) a Deus: "Não posso te entender, mas quero te amar; tu tens sempre razão, sim, mesmo que me parecesse como se não me quisesses amar, mesmo assim eu quero te amar". É por isso que o tema se intitula: o edificante que reside no pensamento etc.; o edificante é procurado não na anulação da discrepância, mas na entusiasmada vontade de suportá-la, e nesta coragem final de, por assim dizer, superá-la. Em Temor e tremor, o pecado foi ocasionalmente usado para aclarar a suspensão ética de Abraão, mas nada mais do que isso. Assim estavam as coisas quando então apareceu um escrito intitulado O conceito de angústia - uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário. Tal como Ou isto - ou aquilo tinha assegurado que a suspensão teleológica não fosse confundida com o ocultamento estético, assim também estava assegurado, graças aos três escritos pseudônimos, que o pecado, quando exposto, [VII 228] não seria confundido com isso ou aquilo, com fragilidade ou imperfeição, que se entristecer com o pecado não seria confundido com toda sorte de coisas, suspiros e lágrimas, ou choramingar por nós e por esse vale de lágrimas, que o sofrimento no pecado não seria confundido com um quodlibet [lat.: qualquer coisa]. O pecado é decisivo para toda uma esfera da existência, para a esfera religiosa, no mais estrito sentido. Justamente porque, em nossos dias, a gente talvez saiba demais, é muito fácil confundir tudo numa confusão da linguagem, em que os estetas usam as mais decisivas categorias da religião cristã em comentários espirituosos, e os pastores as usam, de modo irrefletido, como um estilo de diplomatas que é indiferente em relação ao conteúdo. Mas se a desgraça de nossa época está em ter chegado a saber demais, e ter esquecido o que significa existir e o que é a interioridade: então foi importante que não se concebesse o pecado em categorias abstratas, nas quais ele não pode ser concebido de jeito nenhum, ou seja, decisivamente, porque ele se mantém numa relação essencial com o existir. Portanto, foi bom que o escrito se constituísse numa investigação psicológica, que explica ela mesma que o pecado não pode achar lugar no sistema, provavelmente do mesmo modo como imortalidade, fé, paradoxo, e coisas tais que se relacionam de modo essencial com o existir, de que precisamente o pensamento sistemático desvia o olhar. O termo "angústia" não sugere importância de parágrafos, mas antes interioridade existencial. Tal como Temor e tremor era o estado de alguém suspenso teleologicamente ao ser posto à prova por Deus, assim também a angústia é o estado da mente de alguém suspenso teleologicamente na desesperada dispensa de realizar o ético. A interioridade do pecado enquanto angústia na individualidade existente é o afastamento máximo possível e o mais doloroso de todos os afastamentos em relação à verdade, quando a verdade é a subjetividade. Não devo ocupar-me mais de perto com o conteúdo do escrito; comento sempre esses escritos na medida em que eles formam momentos na realização da ideia que eu tive, mas que, de uma maneira irônica, fui dispensado de realizar. E quando olho para eles desse modo, aparece uma nova estranheza, tal como a profecia sobre a relação entre Esaú e Jacó, de que o maior deve servir ao menor: do mesmo modo, os escritos pseudônimos, maiores, servem às minhas Migalhas. Contudo, não quero ser presunçoso dizendo isso, dado que prefiro dizer que enquanto os escritos têm sua significação própria, também têm significação para o bocadinho que produzi. [VII 229] De resto, O conceito de angústia difere essencialmente dos outros escritos pseudônimos porque a forma dele é direta e até um pouco docente. Talvez seu autor pensasse que nesse ponto poderia ser necessária uma comunicação de saber, antes que se pudesse passar para uma interiorização que se refere àquele que se supõe essencialmente como instruído e que não necessita aprender simplesmente algo mais, mas sim ser impulsionado. É à forma do escrito, um pouco docente, que se deve, indubitavelmente, que ele, mais do que qualquer outro dos pseudônimos, tenha encontrado migalhas de graça aos olhos dos docentes. Que considero este favor um mal-entendido, não nego, e nesse sentido muito me alegrou que simultaneamente fosse publicado um livrinho divertido de Nicolaus Notabene. Os livros pseudônimos em geral são atribuídos a uma única autoria, e agora quem quer que por um instante esperasse por um autor docente, teria logo de abdicar da esperança ao ver uma literatura recreativa brotar da mesma mão. E então vieram, afinal, minhas Migalhas; pois a interioridade da existência estava agora determinada ao ponto de que o religioso-cristão poderia aparecer, sem ser logo confundido com todo tipo de coisas. Mas só mais uma coisa. Os discursos edificantes do Magister Kierkegaard tinham acompanhado o passo, com constância, o que, aos meus olhos, era um sinal de que se mantinha informado, e me chamou a atenção que os quatro últimos discursos assumiram um traço do humorístico cuidadosamente esfumado. Assim termina decerto também o que se pode alcançar na imanência. Enquanto a exigência do ético é mantida em vigor, enquanto a vida e a existência são acentuadas como um caminho exaustivo, a decisão, contudo, não vem a ser posta num paradoxo, e a retirada metafísica para o eterno, pela recordação, é sempre possível e dá à imanência o traço de humor, como uma revogação do todo pelo infinito no já-estar-decidido lá atrás na eternidade. (O humorístico aparece quando alguém responde a pergunta das Migalhas ("pode haver um ponto de partida histórico para uma felicidade eterna?"), não com o Sim ou Não de uma decisão, mas com um sorriso triste (eis o lírico no humor), que significa que tanto os setenta anos do ancião quanto a meia hora de vida da criança quase natimorta são pequenos demais para se tornarem a decisão para uma eternidade. Tal como se pode voluptuosamente enfiar a cabeça debaixo do edredom e deixar o mundo correr, do mesmo modo o humorista, com a ajuda da imanência, se esconde na eternidade das recordações atrás de si, e sorri tristemente à existência temporal com sua trabalheira passageira e sua decisão ilusória. O humorista não ensina a imoralidade [Usaedelighed] - longe disso. Ele honra o que é moral [det Saedelige] e de sua parte faz tudo tão bem quanto pode, e volta a sorrir de si mesmo [VII 230], mas está femininamente apaixonado pela imanência - e a recordação é seu casamento feliz e a recordação é seu anelo feliz. Um humorista bem poderia ter a ideia, e de fato realizá-la, de trabalhar mais zelosamente do que qualquer outro e lidar com o tempo de modo mais sovina do que um trabalhador por dever; mas se devesse este trabalho ter um mínimo de importância no que toca à decisão de uma felicidade eterna, ele haveria de sorrir. Para ele, a temporalidade é um episódio fugaz e de significado muito duvidoso e nela é para ele um antegozo de sua felicidade que ele tenha sua eternidade assegurada de antemão [bag ved] na recordação, fora da temporal idade. Do ponto de vista do eterno, só se pode pensar uma felicidade eterna. O paradoxal, por isso, reside em que (exatamente como quando se pensa uma infelicidade eterna) a vida no tempo deva ser o ponto de partida, como se o existente tivesse perdido a eternidade da recordação lá atrás de si, como se recebesse uma felicidade eterna num determinado momento do tempo, enquanto que uma felicidade eterna, de fato, pressupõe eternamente a si mesma. Se o humor e a especulação têm razão é uma outra coisa, mas jamais terão o direito de se fazerem passar por cristianismo. - Se o essencial estar decidido da eternidade deve ser alcançado retroativamente na recordação, então, de modo bem consequente, a mais alta relação espiritual para com Deus é aquela em que o deus dissuade [fraraader], retém, porque a existência no tempo não pode jamais se tornar comensurável com uma decisão eterna. Assim, o gênio de Sócrates, como se sabe, era apenas dissuasivo, e é assim também que o humorista deve entender sua relação com Deus. A onipotência meta física da recordação eterna para afrouxar e dissolver supera [overflyver] a disjunção, que o humorista não rejeita e sim reconhece e, contudo, apesar de todo reconhecimento, dissolve na decisão já tomada [Afgjorthed] da eternidade. No paradoxo, é o inverso; lá o espírito está encorajando, mas isso, por sua vez, é a expressão paradoxal para o quão paradoxalmente o tempo e a existência no tempo foram acentuados). A paradoxal expressão da existência (ou seja, o existir) [VII 230] como pecado, a verdade eterna como o paradoxo por ter surgido no tempo, em poucas palavras, o que há de decisivo para o religioso-cristão, não se encontra nos discursos edificantes, que algumas pessoas, conforme o disse o Magister, acharam que bem poderiam ser chamados de sermões, enquanto que outras objetaram que não seriam exatamente sermões. O humor, quando usa categorias cristãs, é uma falsa reprodução da verdade cristã, pois o humor não é essencialmente diferente da ironia, mas é essencialmente diferente do cristianismo e no essencial não difere do cristianismo de maneira diferente daquela da ironia. É só aparentemente diferente da ironia por ter aparentemente se apropriado de todo o crístico, sem, contudo, ter se apropriado disso de um modo decisivo [VII 231] (mas o crístico consiste, precisamente, na decisão e no estar-decidido), pelo contrário o essencial para a ironia: o retirar-se da recordação, da temporalidade para dentro do eterno, é por sua vez essencial para o humor. Aparentemente, o humor confere maior significação ao existir do que o faz a ironia, mas, de qualquer modo, a imanência é übergreifend [al.: abrangente] e o mais ou menos é uma quantificação evanescente frente ao qualitativo estar-decidido do crístico. O humor se torna por isso o último terminus a quo [lat.: ponto de partida] na relação para determinar o crístico. Humor, quando emprega as determinações cristãs (pecado, perdão dos pecados, reconciliação, Deus no tempo etc.), não é cristianismo, mas uma especulação pagã que chegou a saber tudo sobre o crístico. Isso pode aproximar-se enganadoramente do crístico, mas lá onde a decisão segura, lá onde a existência segura o existente como a mesa segura a carta lançada, de modo que ele tem de permanecer na existência enquanto a ponte da recordação e da imanência é cortada lá atrás; lá onde a decisão ocorre no instante, e o movimento para frente [leva] rumo à verdade eterna que veio à existência no tempo - lá o humor não acompanha. Do mesmo modo a moderna especulação engana, aliás, nem se pode dizer que ela engane, pois logo não haverá ninguém a enganar, e a especulação o faz bona fide [lat.: de boa-fé]. A especulação realiza a proeza de entender todo o cristianismo, mas, é bom notar, não o entende de modo cristão, porém especulativamente, o que é precisamente o mal-entendido, dado que o cristianismo é o exato oposto de especulação. - Mag, Kierkegaard, muito provavelmente, sabia o que fazia quando chamou os discursos edificantes de Discursos edificantes, como também por que se absteve do uso de determinações dogmáticas cristãs, de mencionar o nome de Cristo etc., o que, aliás, se faz sem mais nem menos em nossa época, enquanto as categorias, pensamentos, o dialético na apresentação etc., são apenas os da imanência. Tal como os escritos pseudônimos, além do que são diretamente, são também indiretamente uma polêmica contra a especulação, assim esses discursos também o são, não por não serem especulativos, pois são justamente especulativos (Assim, a firma Kts (na Intelligensblad, do Professor Heiberg) tinha toda razão ao excetuar um dos discursos, "O Senhor deu, o Senhor tomou; bendito seja o nome do Senhor", [VII 232] e ao dizer dos outros que eram filosóficos demais para serem sermões; mas não tinha razão ao negligenciar que o próprio autor havia dito o mesmo, chamando-os de discursos edificantes e avisando expressamente no prefácio que eles não eram sermões. Que a especulação em nossos dias está conseguindo confundir a forma do sermão [Praedikeforedraget] - disso não há dúvida. Pode-se chamar a atenção para isso diretamente ao escrever, por exemplo, um pequeno artigo num periódico, mas isso também pode ser feito indiretamente, e então se tem muito mais trabalho, como na escrita de discursos edificantes que são filosóficos e não sermões. Quando então dizem deles que podem muito bem ser chamados de sermões, isso mostra que a confusão está presente, mas mostra também que o autor que os escreve e lembra explicitamente o mal-entendido não precisa que lhe esclareçam que o mal-entendido existe), mas por não serem sermões. [VII 232] Se o autor os tivesse chamado de sermões, teria sido um Zé-Mané. São discursos edificantes; o autor repete, no prefácio, com todas as letras, "que não é um professor" e que os discursos não são "para edificação", e com essa determinação, já no prefácio, revoga humoristicamente sua significação teleológica, Eles "não são sermões"; ou seja, o sermão corresponde ao crístico, e a um sermão corresponde um pastor, e um pastor é essencialmente o que ele é pela ordenação, e a ordenação é uma transformação paradoxal do mestre no tempo, pela qual ele, no tempo, se torna algo diferente daquilo que seria o desenvolvimento imanente de gênio, de talento, de dom etc. É claro, porém, que ninguém é ordenado desde a eternidade ou, tão logo tenha nascido, é capaz de se recordar de si mesmo como ordenado. Por outro lado, a ordenação é um caracter indelebilis [lat.: caráter indelével]. O que isso significa, senão que aqui mais uma vez o tempo se torna decisivo para o eterno, com o que a retirada imanente da recordação rumo ao eterno fica impedida. Com a ordenação está novamente o nota bene cristão. Se isso é certo, se a especulação e o humor não têm razão, é uma questão totalmente diferente; mas por mais que a especulação tivesse razão, ela jamais teria o direito de se fazer passar por cristianismo. Então, aí cheguei eu com minhas Migalhas. Se com este opúsculo fui bem-sucedido em pôr, de um modo indireto, o cristianismo em relação com o existir, em relacioná-lo de uma forma indireta com um leitor instruído cujo infortúnio talvez seja precisamente que ele é instruído - [VII 233] isso não cabe a mim decidir. Com uma comunicação direta não se poderia fazê-lo, já que essa sempre se relaciona apenas a um receptor em termos de conhecimento, não de modo essencial a um existente. Com uma comunicação direta talvez se pudesse ter despertado certa sensação, mas sensação não tem a ver com o existir, mas antes com a conversa fiada. Existir naquilo que se compreendeu não pode ser comunicado direto a um espírito existente, nem mesmo por Deus, muito menos por um ser humano. Como já disse, se o opúsculo teve êxito nisso, não vou decidir; nem tenho vontade de me dar ao incômodo de comentá-lo eu mesmo, o que, para ser consequente, deveria de novo ser feito na forma indireta da dupla reflexão. O que raramente me acontece, aqui é o meu caso: estou de acordo com todo mundo. Se ninguém teve vontade de comentá-lo, eu também não tenho. (Contudo, é verdade, justo nesses dias fiquei sabendo que ele foi comentado e, o que é bem estranho, num periódico alemão, Allgemeines Repertorium für Theologie und kirchliche Statistik. O comentador tem uma excelente qualidade: é conciso e se abstém quase completamente do que usualmente se encontra nas resenhas: os cerimoniosos louvores de exame introdutório e conclusivo ao autor, ao citá-lo para especial distinção, ou até mesmo para especial distinção e congratulação. Isso eu aprecio tanto mais, que no primeiro ponto do comentário ("diese Schrift eines der produktivsten Schriftsteller Dänmarks ist wegen der Eigenthümlichkeit ihres Verfahrens einer kurzen Besprechung nicht unwerth [devido à singularidade de seu método, este escrito de um dos mais produtivos escritores da Dinamarca não deixa de merecer uma discussão crítica]") as palavras "Besprechung [discussão crítica]" e "nicht unwerth [não deixa de merecer]", me provocaram um susto. O resenhista afirma que o conteúdo do livro é um desenvolvimento dos pressupostos positivos cristãos, nota em seguida que isso é feito de tal maneira "daB unsere Zeit, die Alies nivellirt, neutralisirt und vermittelt, sie kaum wiedererkennen wird [que nossa época, que nivela, neutraliza e media tudo, dificilmente irá reconhecê-los]", e então passa a resenhar (portanto, sem ter se utilizado do aceno da ironia que está contido no que ele próprio diz sobre o apresentar os pressupostos cristãos para nossa época, de tal modo que esta, não obstante já ter acabado com eles e ter ido mais adiante, não consegue nem mesmo reconhecê-los). Sua resenha é acurada e, no conjunto, dialeticamente confiável, mas agora vem o nó da questão: não obstante a resenha ser exata, quem quer que leia só a resenha, terá uma impressão totalmente falseada do escrito. Ora, compreende-se, a desgraça não é tão grande, mas, por outro lado, isso é sempre menos desejável quando um livro deve ser discutido justamente por causa da sua singularidade. [VII 234] A resenha é docente [docerende], pura e simplesmente docente; portanto, o leitor terá a impressão de que o opúsculo também é docente. Esta é, a meus olhos, a impressão mais falsa que se pode ter dele. Do contraste da forma, da resistência provocativa do experimento aos conteúdos, a audácia inventiva (que até mesmo inventa o cristianismo), a única tentativa feita para ir além (isto é, além do assim chamado construir especulativo), a atividade infatigável da ironia, a paródia do pensamento especulativo no plano inteiro da obra, o satírico que há em se fazer esforços, como se daí devesse surgir algo ganz AuBerordentliches und zwar Neues [completamente extraordinário, e novo], enquanto que o que sempre surge é a ortodoxia de antigamente em seu legítimo rigor: de tudo isso o leitor da resenha não encontra o mínimo vestígio no relato. E, contudo, o livro está tão longe de ter sido escrito para não instruídos, que precisassem aprender algo, que aquele com quem dialogo no livro é sempre instruído, o que parece indicar que o livro foi escrito para pessoas instruídas, cujo infortúnio está em saberem demasiado. A verdade cristã, pelo fato de que todos a conheçam, gradualmente se tornou tal trivialidade que fica difícil de se adquirir uma impressão primitiva dela. Quando este é o caso, a arte de ser capaz de comunicar se torna, finalmente, a arte de ser capaz de retirar, ou de tirar ardilosamente [franarre] alguma coisa de alguém. Isto soa estranho e muito irônico, e, contudo, creio que consegui expressar exatamente o que quero dizer. Se um homem encheu tanto sua boca de comida de modo que por isso não consegue comer e terminará por morrer de fome, dar alimento a ele consiste em encher-lhe a boca ainda mais ou, ao invés, dar um jeito de ele se livrar um pouco para que possa voltar a se alimentar? De modo similar, quando um homem é muito instruído, enquanto seu conhecimento não tem significado, ou quase não tem significado para ele, a comunicação razoável consiste em dar a ele ainda mais a saber, ainda que ele proclame em voz alta que é disso que precisa, ou consiste, ao invés, em tirar alguma coisa dele? Quando então um comunicador se relaciona a uma parte do muito que o homem muito instruído conhece, e a comunica a ele numa forma que a tornou estranha para ele, o comunicado r está, por assim dizer, tirando esse conhecimento, pelo menos até que o que já sabia seja capaz de assimilar o conhecimento, ultrapassando a resistência da forma. Suposto, agora, que a desgraça daquele muito instruído seja que está acostumado a uma forma particular, "que ele consegue demonstrar um teorema matemático se as letras dizem ABC, mas não quando dizem ACB"; então a forma alterada de fato retirará seu conhecimento, e, contudo, nesse retirar consiste justamente a comunicação. Quando então uma época que fala sistematicamente sem pensar [systematisk ramsende] está pronta com a compreensão do cristianismo e com a compreensão de todas as dificuldades, de modo que proclama com júbilo quão fácil é compreender a dificuldade, então, afinal, há que se fomentar uma suspeita. [VII 235] Com efeito, é melhor compreender que algo é tão difícil que simplesmente nem pode ser compreendido, do que compreender que uma dificuldade é tão fácil de compreender; pois se é tão fácil assim, então talvez simplesmente não haja nenhuma dificuldade, dado que a dificuldade afinal é justamente reconhecível por isso: por ser difícil de compreender. Ora, quando a comunicação numa tal ordem de coisas não visa a tornar a dificuldade mais fácil, a comunicação se torna um retirar. Reveste-se a dificuldade de uma nova forma, com a qual ela fica realmente difícil. Essa é a comunicação para aquele que já esclareceu que a dificuldade era fácil demais. Caso ocorra então, como sugere o resenhista, que um leitor mal consiga reconhecer, no apresentado, aquilo que para ele já está resolvido há muito tempo, a comunicação o levará a uma parada - contudo não para lhe comunicar algo novo, que se adicionasse a todo aquele saber, mas sim para retirar algo dele. Afora isso, não há nada a dizer sobre o resenhista, exceto que as últimas quatro linhas são, de novo, uma prova de como tudo em nossos tempos docentes é concebido de modo docente: "Wir enthalten uns jeder Gegenbemerkung, denn es lag uns, wie gesagt, bloB daran, das eigenthümliche Verfahren des Verfassers zur Anschauung zu bringen. Im Uebrigen stellen wir es dem Ermessen eines Jeden anheim, ob er in dieser apologetischen Dialektik Ernst oder etwa Ironie suchen will [Abstemo-nos de toda réplica, pois só nos interessava, como foi dito, mostrar o método peculiar do autor. De resto, deixamos à apreciação de cada um se quer procurar seriedade ou talvez ironia nesta di ai ética apologética]". Mas meu método peculiar [eiendommelige Fremgangsmaade], se deve ser mencionado, e especialmente "mostrado", reside precisamente na forma de oposição da comunicação e não, de modo algum, nas talvez novas combinações dialéticas pelas quais os problemas se tornam mais claros; reside, em primeiríssimo lugar e decisivamente, na forma de oposição, e então uma vez enfatizada esta, pode haver, se necessário, breve menção a alguma peculiaridade um pouquinho docente. Quando o resenhista deixa por conta de cada um se irá procurar seriedade ou ironia no opúsculo, isso induz ao erro. Comum ente, costuma-se dizer algo assim quando não se sabe dizer outra coisa; e, se a apresentação de um livro é seriedade professoral [docerende] pura e sem mistura, então se aguenta ouvir dizer isso, porquanto se diz algo sobre o livro que não está no livro: o livro é pura seriedade; agora o resenhista diz: sabe Deus se isso é ironia ou seriedade, e, com isso, alguma coisa está dita, alguma coisa dita ao se deixar que o leitor procure, ou que queira procurar - por alguma coisa que não está diretamente no livro. É bem diferente, ao contrário, quando se trata apenas de encontrar o que lá está. Mas o opúsculo estava longe de ser pura e simples seriedade, esta pura seriedade surgiu tão somente na resenha. Nessa medida, a conclusão da resenha pode muito bem ter um significado em relação à resenha (por exemplo, como uma sátira sobre ela), mas, em relação ao [meu] escrito, ela é tola [taabelig]. [VII 236] Suponhamos que alguém estivesse presente a uma das conversações irônicas de Sócrates; se, mais tarde, essa pessoa a relata para outrem, mas deixa de fora a ironia e diz: sabe Deus se uma conversa dessas é ironia ou seriedade: então ela está satirizando a si mesma. Mas da presença da ironia não se segue que a seriedade esteja excluída. Tal coisa só os docentes presumem. Com efeito, enquanto eles, de resto, suprimem o disjuntivo aut [ou], não temem nem a Deus nem ao demônio, dado que eles mediam tudo - abrem uma exceção à ironia; essa eles não conseguem mediar). Se teve sucesso: quanto mais, melhor; não teve: ora, a desgraça não é tão grande, [VII 234] um tal opúsculo eu consigo escrever rápido, e se me ficasse claro que não posso, nem mesmo tornando algo difícil, [VII 235] beneficiar de alguma maneira algum de meus contemporâneos, essa dura convicção também me liberaria de todo incômodo de escrever. [VII 236] No entanto, a questão que realmente me ocorreu foi se eu não estaria num mal-entendido, se não estaria pressupondo algo nos leitores, e errando ao fazer isso. Pois eu quero ser bem sincero: minha ideia de comunicação através de livros é muito diferente daquilo que geralmente vejo apresentado neste tópico, ou daquilo que se admite tacitamente como dado. A comunicação indireta faz do comunicar uma arte, num sentido distinto daquele que de ordinário se assume que seja, ao supor que o comunicador tenha de apresentar a comunicação a alguém que conhece, de modo que este possa julgá-la, ou a alguém que não conhece, para que este possa aprender algo. Mas ninguém se importa com o que vem em seguida, justamente aquilo que torna a comunicação tão dialeticamente difícil: que o receptor é um existente, e que isso é o essencial. Deter um homem na rua e parar para conversar com ele não é tão difícil quanto, ao passar por ele, ter de dizer algo ao passante, sem parar e sem reter o outro, sem querer induzi-lo a seguir o mesmo caminho, mas justamente encorajando-o a seguir seu próprio caminho - e assim é a relação entre um existente e outro existente quando a comunicação diz respeito à verdade como interioridade existencial. No que toca à minha concepção discrepante do que significa comunicar, às vezes me pergunto se este tema da comunicação indireta não poderia ser comunicado diretamente. Assim, vejo que Sócrates, que ordinariamente se atinha de modo estrito ao perguntar e ao responder (o que é um método indireto), porque o discurso longo, a exposição docente, o recitar mecânico, só fazem confundir, algumas vezes discursa mais longamente e aí justifica dizendo que aquele com quem está falando necessita de um esclarecimento antes que o diálogo possa iniciar. Faz isso, p. ex., no Górgias. Mas isso me parece uma inconsequência, uma impaciência que teme que vá levar muito tempo até que se chegue a entender um ao outro; [VII 237] pois com o método indireto deve-se poder alcançar igualmente tudo, apenas mais devagar. Mas a pressa não tem absolutamente nenhum valor em relação à compreensão lá onde a interioridade é a compreensão. Parece-me ser melhor chegar a se entender verdadeiramente um ao outro na interioridade de cada um, mesmo que isso ocorra vagarosamente. Sim, mesmo que isso jamais viesse a ocorrer porque o tempo passou e o comunicador foi esquecido sem que ninguém chegasse a compreendê-lo, a mim me parece ser mais consequente da parte do comunicador não se ter feito culpado da mínima acomodação para obter que alguém o compreendesse e, do princípio ao fim, cuidar para não se fazer de importante em relação aos outros, o que, longe de ser interioridade, é uma conduta externa, barulhenta. Se ele o faz, deverá ter aquele consolo no julgamento, quando o deus julga, que ele não se permitiu coisa alguma para conquistar alguém, mas que com o máximo de seus dons trabalhou em vão, deixando ao deus decidir se isso teria alguma importância ou não. E isso decerto agradará o deus mais do que se o azafamado lhe falasse: "Conquistei para ti 10.000 adeptos; alguns ganhei chorando sobre a miséria do mundo e profetizando sua destruição iminente; outros, abrindo perspectivas brilhantes, sorridentes, caso aceitassem meus ensinamentos; outros, de outras maneiras, descontando aqui um pouco, acrescentando ali outro tanto. Todos se tornaram adeptos, adeptos até por aí. Sim, se enquanto eu vivia tivesses descido à terra para inspecionar, eu teria encantado teus olhos com o suspiro dos muitos adeptos, tal como Potemkin encantava os olhos de Catarina"... sim, tal como Potemkin encantava os olhos de Catarina, bem assim - ou seja, com a ajuda de cenários de teatro e, assim, seriam também os 10.000 adeptos da verdade um divertimento teatral. Que a subjetividade, a interioridade, é a verdade, era minha tese. Procurei então mostrar como, de acordo com minha suposição, os autores pseudônimos se esforçam para chegar a esta tese, que em seu máximo é o cristianismo. Que também fora do cristianismo se pode existir com interioridade, os gregos, entre outros, mostraram suficientemente, mas em nossa época chegou-se ao ponto de que, enquanto somos todos cristãos e conscientes do cristianismo, já é uma raridade encontrar alguém que [VII 238] tenha ao menos tanta interioridade existente como um filósofo pagão. Não é de admirar então que a gente tão rapidamente se desvencilhe do cristianismo, tão pronto se começa a se pôr naquele estado no qual receber uma impressão por menor que seja do cristianismo é algo totalmente fora de questão. A gente se torna objetiva, quer considerar objetivamente - que o deus foi crucificado - algo que, quando ocorreu, não permitiu nem mesmo ao templo ser objetivo, pois seus véus se rasgaram; nem mesmo permitiu aos mortos permanecerem objetivos, pois eles se levantaram de seus túmulos: portanto, aquilo que é capaz de tornar subjetivo até mesmo o inanimado e os falecidos, é o que agora é considerado objetivamente pelos Srs. Objetivos. A gente se torna objetiva, quer contemplar objetivamente o cristianismo, o qual, de saída, toma a liberdade de fazer do contemplador um pecador, se é que se trata de qualquer maneira de se chegar a ver algo. E ser um pecador, o que tem de ser o mais terrível sofrimento da subjetividade, a gente o quer - objetivamente. Mas então a gente se socorre de longas introduções sistemáticas e de visões panorâmicas histórico-universais: neste contexto, pura bobagem; em relação à decisão acerca do cristianismo, pura protelação. A gente se torna cada vez mais objetiva - quanto antes, melhor. A gente desdenha ser subjetiva, despreza a categoria da individualidade, quer consolar-se com a da geração, mas não compreende o quanto de covardia e de desespero há em que o sujeito se agarre a qualquer coisa brilhante e não se torne coisa alguma; a gente é cristã assim sem nada mais, em ocasiões festivas, ainda se reflete sobre a questão que decerto confrontava os austeros padres da Igreja - se os pagãos podem ser salvos - e não percebe a sátira de que o paganismo está muito mais próximo do cristianismo que tal cristandade objetiva, onde Cristo se tornou Sim e Não, enquanto que em Corinto, proclamado por Paulo, ele não era Sim e Não (2Cor 1,19)! Existir subjetivamente com paixão (e objetivamente só se pode existir em distração) é, em última análise, uma condição absoluta para poder ter alguma opinião sobre o cristianismo. Todo aquele que não quer fazê-lo e, contudo, quer ocupar-se com o cristianismo, seja quem for e por maior que seja, nesta questão é essencialmente um bufão. Se minha compreensão dos autores pseudônimos concorda com o que eles próprios pretendiam, não posso decidir, dado que sou apenas leitor, mas que eles têm alguma coisa a ver com minha tese é bastante claro. Se não se percebe isso em outras coisas, [VII 239] percebe-se no se absterem de ensinar à maneira docente. Que ali não deva haver ensinamento docente, mostra, em meu modo de ver, a verdadeira compreensão da confusão de nossa época, que reside justamente na abundância de ensinamento docente. Proeminentes docentes desprezaram os livros pseudônimos, item [lat.: igualmente] meu pequeno opúsculo, porque não eram docentes; muitos concluíram sem mais nem menos que isso se devia ao fato de que os autores, inclusive eu, eram incapazes de alcançar as alturas que se exigem para o ensino docente - para a objetividade que é a posição dos docentes. Talvez seja isso, mas suposto que a subjetividade fosse a verdade, então as alturas dos docentes sempre se tornariam duvidosas. Também me espantou que, embora se assuma que qualquer estudante de teologia seja mais ou menos capaz de ensinar de modo docente, não se consiga resolver a crer que os autores pseudônimos, item eu, Johannes Climacus, pudéssemos ensinar de modo docente quase tão bem quanto muitos outros que ensinam de modo docente, mas que, ao contrário, tal gente facilmente se entrega à suposição de que nós todos juntos deveríamos ser apontados como pobres coitados, que somos incapazes de fazer o que, hoje em dia, quando toda uma literatura alemã foi desenvolvida exclusivamente nesta linha, é quase tão fácil para um leitor universitário que quer tirar excertos de livros alemães, quanto é, hoje em dia, escrever versos, uma habilidade que pode em breve ser exigi da de empregados domésticos. No entanto, seja como for, sempre é bom ser reconhecido por alguma coisa, e eu não exijo outra coisa que não seja ser apontado como o único que não consegue ensinar de modo docente e, com isso, também o único que não compreende as exigências da época. Que a subjetividade, a interioridade, é a verdade, é minha tese; que os autores pseudônimos relacionam-se com ela é bastante fácil de ver, senão por outra coisa, então por seu olhar para o cômico. A comicidade é sempre uma característica da maturidade, e então o que importa é apenas que um novo broto surja nessa maturidade, que a vis comica [lat.: força cômica] não sufoque o patético, mas que meramente indique que um novo pathos tem início. A força no cômico, eu a considero uma legitimação indispensável para qualquer um que deva ser considerado como habilitado no mundo do espírito em nossa época. Quando uma época é tão completamente perpassada de reflexão como a nossa e como se diz que a nossa é, então, se isso é verdade, o cômico deve ser descoberto por qualquer um, e primitivamente por qualquer um que queira participar da conversa. Mas os docentes são tão privados de força cômica que chega a ser chocante; mesmo Hegel, segundo a afirmação de um zeloso hegeliano, é completamente desprovido do senso cômico. Um ridículo mau humor e imponência de parágrafos, que conferem a um docente notável semelhança [VII 240] com o guarda-livros de Holberg, os docentes chamam de seriedade. Qualquer um que não possua esta apavorante solenidade é um leviano. Talvez. Mas o que quer dizer ter realmente saído do imediato pela reflexão sem ter se tornado um mestre do cômico? O que quer dizer isso? Bem, quer dizer que se está mentindo. o que significa dar garantias de que se saiu pela reflexão e comunicá-lo de forma direta como notícia? O que quer dizer isso? Bem, quer dizer que se está falando ao léu. No mundo do espírito, os diferentes estádios não são como cidades numa viagem, sobre as quais está tudo bem que o viajante diga diretamente, por exemplo: Saímos de Pequim, e chegamos a Cantão; no dia 14 estávamos em Cantão. Pois um viajante como esse muda de lugar, mas não muda a si mesmo; e então está tudo bem para ele mencionar e narrar a mudança de forma inalterada, direta. Mas no mundo do espírito, mudar de lugar é ser mudado em si mesmo, e portanto toda asserção direta de se ter chegado aqui ou acolá é uma tentativa à la Münchhausen. Que se alcançou aquele longínquo lugar no mundo do espírito, a própria apresentação o demonstra; se ela testemunha o contrário, toda asserção é apenas uma contribuição ao cômico. Força no cômico é como o distintivo do policial, o emblema do poder, que, em nossos dias, todo agente que realmente é um agente deve portar. Mas esta comicidade não é impetuosa nem selvagem, nem sua risada é gritante; ao contrário, é cuidadosa com a imediatidade que põe de lado. De modo similar, a foice do colheitador é equipada com ripas de madeira que correm paralelas à lâmina afiada e enquanto a foice corta a espiga esta afunda quase voluptuosamente na grade de sustentação, logo após ser deitada nítida e belamente na fileira ceifada. É assim também com o cômico justificado em relação com a imediatidade amadurecida. O ato do corte é uma ação solene; aquele que corta não é um ceifador sem alegria e contudo é diante da agudeza e da cortante lâmina do cômico que a imediatidade se abate, não sem beleza, e mesmo na queda, amparada pelo corte. Esse cômico é essencialmente humor. Se o cômico é frio e desolador, então isso é um sinal de que não há nenhuma imediatidade em germe, então não há colheita, somente a paixão sem conteúdo de um vento estéril quando este se desencadeia sobre campos vazios. - Ser conhecido por alguma coisa sempre pode ser bom; eu não exijo nada melhor do que ser conhecido como o único que em nossos tempos sérios não era sério. [VII 241] Longe de ansiar por alguma mudança nesse juízo, desejo apenas que os honrados docentes, não só os que gesticulam na cátedra, mas também os que vociferam nas rodas de chá, mantenham seu juízo e não esqueçam de repente as palavras de seriedade declamadas privatissime (lat.: reservadamente) bem frequentemente contra os autores pseudônimos, para, por outro lado, poder lembrar claramente que eram esses que desejavam fazer do cômico uma determinação de seriedade, e da piada, um libertador da mais triste das tiranias: a tirania do mau humor, da estupidez e da rigidez. Os autores pseudônimos, e eu com eles, somos todos subjetivos; eu não exijo nada melhor do que ser conhecido, em nossos tempos objetivos, como o único que não conseguia ser objetivo. Que a subjetividade, a interioridade, é a verdade, que o existir é o decisivo, que seria este caminho o que se deveria tomar para o cristianismo, o qual é justamente interioridade, mas, note-se, não uma interioridade qualquer, razão por que com certeza não se poderia prescindir dos estádios preliminares: esta era a minha ideia. Nos escritos pseudônimos acreditei encontrar um empenho similar, e procurei tornar clara minha concepção deles e a relação deles para com as minhas Migalhas. Se alcancei o que os autores tinham em mente, não posso saber com certeza, mas em todo caso quero aqui lhes pedir desculpas por tê-los de algum modo resenhado, embora meu comentário, justamente por não ter se envolvido com o conteúdo, não fosse, a rigor, uma resenha. Para mim jamais foi enigmático [saber] por que os autores pseudônimos sempre de novo dispensaram resenhas. Dado que a forma antitética da apresentação torna impossível relatar, porque um relato deixa de fora precisamente o que é o mais importante e falsamente transforma o escrito numa exposição docente, os autores têm toda a razão de preferir satisfazerem-se com uns poucos leitores verdadeiros, do que serem mal compreendidos pelos muitos que com uma resenha recebem algo para espalhar. Essa é também minha opinião qua autor, e relembro aqui uma palavra de Zenão que, provocado pelo fato de Teofrasto ter muitos seguidores, disse: "O coro dele é mais numeroso, o meu é mais harmonioso". Justamente nesses dias reli essas palavras em Plutarco, num pequeno tratado sobre "como louvar a si mesmo de um modo lícito". [VII 242] Minhas Migalhas se aproximaram do cristianismo de um modo decisivo, sem entretanto mencionar seu nome ou o de Cristo. Numa época onde predomina o saber, na qual todos são cristãos e sabem o que é o cristianismo, é demasiado fácil usar os santos nomes sem pensar nada ao fazê-lo, recitar a verdade cristã sem ter a menor impressão dela. Se alguém quiser admitir que o motivo por que esses nomes não foram mencionados era a minha ignorância, que eu não sabia que o fundador do cristianismo se chamava Cristo, e o seu ensinamento, cristianismo: por mim tudo bem. Sempre é bom ser conhecido por alguma coisa; de minha parte, eu não exijo nada melhor do que ser o único, em meio ao cristianismo, que não sabe que o fundador do cristianismo foi Cristo: ser ignorante, porém, é sempre melhor do que estar ciente disso tão bem como de cem outras trivialidades. Quando então minhas migalhas filosóficas vieram a público e eu estava pensando num postscriptum para "dar ao problema uma vestimenta histórica", apareceu mais uma vez um escrito pseudônimo: Estádios no caminho da vida, um escrito que só atraiu a atenção de uns poucos (o que ele próprio prevê na p, 309 e na p. 376), talvez também porque não havia, como em Ou isto - ou aquilo, "O diário do sedutor", pois decerto foi este mais ou menos o mais lido e, naturalmente, contribuiu em especial para a sensação. Que essa obra tem uma relação com Ou isto - ou aquilo fica bastante claro e definitivamente mostrado pelo fato de serem utilizados, nas primeiras seções, nomes conhecidos daquela obra. Se o autor dos Estádios tivesse vindo conversar comigo, eu lhe teria desaconselhado, por razões estéticas, de lembrar uma obra anterior pelo uso de nomes conhecidos. (Também por outra razão (assumindo, como aliás comumente se faz, que os escritos pseudônimos são de um único autor), eu o teria advertido contra o trabalho exaustivo [anstraengede]. Com efeito, a sagacidade recomenda que não se trabalhe zelosa e perseverantemente demais - senão os homens estúpidos pensam que se trata de um trabalho relaxado. Não, muito barulho, e aí uma pequena contribuição [Praestation]: então sim a plebe pensa que se trata de alguma coisa. Mas talvez eu não conseguisse nada; pois não é impensável que o próprio autor o tenha percebido mas tenha desdenhado agir com sagacidade, e considerado suspeito ganhar a admiração de numerosas pessoas). Em relação a tudo o que deve ser considerado arriscado, e que é arriscado por depender da sorte, [VII 243] é sempre duvidoso evocar uma recordação. Evitá-lo é fácil; fazê-lo é arriscar-se a si mesmo e à sua sorte numa ousada aventura, cuja periculosidade é expressa em várias passagens do escrito. (Veja na p. 16: "Quão fácil não é dar um banquete, e contudo Constantin afirmou que jamais se arriscaria a isso outra vez! Quão fácil não é admirar, e contudo Victor Eremita afirmou que jamais daria expressão a sua admiração (a saber, a Mozart), porque um malogro é mais terrível do que se tornar inválido na guerra!" Como um ético, o Assessor expressa com paixão ética o contrário, na p. 86: "Isso deve bastar sobre o casamento; neste momento, não me ocorre nada mais a dizer; numa outra vez, talvez amanhã, direi mais, mas 'sempre o mesmo e sobre a mesma coisa', pois apenas ciganos e ladrões e trapaceiros seguem o ditado: Nunca voltar para onde já se esteve uma vez). Conta-se a história de um marinheiro que caiu do topo do mastro sem se machucar, levantou-se e disse: Quero ver quem faz o mesmo que eu fiz; mas muito provavelmente ele próprio se absteve de pretender fazê-lo outra vez. Assim, a repetição que envolve sorte e inspiração é sempre uma ousada aventura. Pois o que, pela comparação provocada, levanta uma exigência absoluta é a fecundidade de expressão, pois não é difícil repetir suas próprias palavras, ou repetir literalmente palavras escolhidas de modo feliz. Repetir o mesmo também quer dizer, portanto, alterar sob condições dificultadas pelo precedente; e enquanto o leitor curioso é repelido pelo fato de ser a mesma coisa, pois o leitor curioso reivindica mudanças exteriores em nomes, decorações, vestimentas, penteados etc., o leitor atento se faz mais rigoroso em suas reivindicações, pois ali não há absolutamente nada de aliciador, nada que distraia, não há adornamentos, nenhuma particularidade referente à aparência exterior de personagens desconhecidas e às condições climáticas de territórios distantes etc. Contudo, aquilo foi ousado, e o autor desconhecido não estava inconsciente do perigo, assim como dificilmente ignoraria por que Sócrates punha sua honra e seu orgulho numa única coisa: dizer sempre a mesma coisa e sobre a mesma coisa. (Pode-se ter uma oportunidade de obter uma profunda impressão [Indblik/lndtryk (?)] de uma pessoa - sobre se ela é espírito ou é determinada apenas pelos sentidos - averiguando o que ela entende por riqueza e por pobreza de um autor. [VII 244] Se um pastor aguentasse pregar por todo o ano sobre o mesmíssimo texto, rejuvenescendo-se constantemente a si mesmo numa nova opulência de expressão, ele seria, em minha opinião, incomparável, mas um ouvinte preso aos sentidos o consideraria tedioso. Se Oehlenschlãger, no momento em que acabou de compor seu Valborg, pudesse tê-lo composto outra vez, a meus olhos teria sido até maior do que ele é. Compor Signe já é mais fácil, porque as condições, o campo onde as ações têm lugar, a redondeza etc., são diferentes. Mas escrever Valborg, deixar que o leitor o leia, depois escrever o mesmo Valborg de novo, o mesmo, isso quer dizer, todo o exterior seria o mesmo e bem conhecido; somente as delícias do amor apaixonado, na expressão dos lábios de Valborg, seriam novas, novas como um reflorescer: bem, mesmo se muitos o achassem tedioso, eu me permitiria achá-lo surpreendente. Uma das coisas que mais admirei em Shakespeare foi seu Falstaff, e entre outros motivos também porque ele vem a ser retomado [gjentages]. Ora, dá para entender, Falstaff não tem muitas cenas de cada vez, mas se Shakespeare pudesse ter mantido Falstaff inalterado em todos os cinco atos, e então mais uma vez em cinco atos: bem, mesmo se muitos achassem isso tedioso, aí eu me permitiria achá-lo divino). [VII 244] Ao atrever-se a isso, o autor pseudônimo obteve uma vitória indireta sobre um público leitor amante de novidades. Pois, quando esse público leitor passa os olhos (É indubitavelmente em relação a esse tipo de leitor curioso que a primeira terça parte do livro tem como mote estas palavras de Lichtenberg: Solche Werke sind Spiegel: wenn ein Affe hinein guckt, kann kein Apostel heraus sehen [Tais obras são espelhos: quando um macaco olha para dentro delas, nenhum apóstolo pode espiar lá de dentro]) pelo livro e vê os nomes conhecidos de Victor Eremita, Constantin Constantius etc., joga fora o livro e diz, com enfado: É bem a mesma coisa de Ou isto - ou aquilo. O leitor amante de novidades diz, portanto: É a mesma coisa. E se um leitor desse tipo diz isso em alto e bom som, aí o autor pseudônimo pensa talvez desse modo: "Quem dera fosse realmente como tu dizes, pois tal juízo é um cumprimento, já que não pode ser entendido como se significasse que é literalmente o mesmo, palavra por palavra; mas eu de fato sinto que não tenho essa opulência de interioridade numa medida tão grande, e que por isso me aventurei a repetir apenas numa redução considerável e com considerável alteração nos pontos de partida. No entanto, como autor, tive uma vantagem sobre o editor de Ou isto - ou aquilo, pois o interesse pela novidade e as dimensões do livro e o Diário do sedutor ocasionaram um tumulto, dado que se acreditou que algo estava acontecendo lá, de modo que a obra foi comprada, e agora até dizem que está esgotada, aí, um argumento muitíssimo duvidoso acerca da qualidade do livro; a gente quase fica tentado a supor que se trata de um livro para presente de Ano-Novo. [VII 245] Eu, ao contrário, estou livre dos farejadores de curiosidades". Pois, em relação às diversões do [parque] Tivoli e à literatura para presente de Ano-Novo, vale para os escritores caça-níquel, e também para os que foram cativados por eles, que a mudança é a lei suprema; mas em relação à verdade como interioridade na existência, em relação a uma alegria incorruptível pela vida, que não tem nada em comum com o anseio por distração do desgosto da vida, vale o contrário, e a lei é: o mesmo, e contudo transformado, e contudo o mesmo. Vê, por isso os aficionados pelo Tivoli valorizam tão pouco a eternidade, pois é essencial à eternidade ser sempre a mesma, e a sobriedade do espírito se caracteriza por saber que a mudança no exterior é distração, mas a mudança no mesmo é interioridade. Mas, no total, o público leitor é tão curioso que um autor que queira se livrar dele precisa apenas dar um pequeno aceno para se livrar, meramente um nome, e então o público diz: Isso é a mesma coisa. Pois, de resto, a diferença entre Os estádios e Ou isto - ou aquilo é bastante evidente. Para nem mencionar que dois terços dos Estádios são quase tão diferentes quanto é categoricamente possível (Contudo, também em relação às duas terças partes, o próprio livro prediz que o público leitor as achará tediosas (cf. p. 268 supra, 367 infra e 368 supra). Uma história de amor é uma história de amor, diz um tal público leitor; se tivermos que a ler outra vez, então a cena terá de ser a África, pois o cenário é o que fornece a mudança, e um tal público leitor necessita de "cortejos, locações [Egne], muitos personagens - e por fim as vacas"), na primeira terça parte Victor Eremita, que antes era apenas o editor, é transformado numa individualidade existente; Constantin e Johannes o Sedutor são definidos de forma mais minuciosa; o Assessor [Guilherme] se ocupa com o matrimônio a partir de um ângulo inteiramente diferente daquele de Ou isto - ou aquilo, enquanto que o mais atento leitor dificilmente encontrará uma única frase, um único volteio de pensamento ou um giro de linguagem tal como se encontrava em Ou isto - ou aquilo. Demorei-me propositadamente nessa questão porque isso, ainda que possa convir a um autor solitário, que justamente ama esta isolação, para mim significa algo mais, já que se relaciona com o que tenho enfatizado continuamente, que o [nosso] tempo esqueceu o que significa existir e o que é a interioridade. Perdeu a fé em que a interioridade enriquece os conteúdos aparentemente pobres, [VII 246] enquanto que a mudança no exterior é apenas a distração que o fastio da vida e o vazio da vida tentam agarrar. É a razão por que as tarefas da existência vêm a ser rejeitadas. De passagem, se aprende o que é a fé; então, é claro, ela é conhecida. Então, busca-se agarrar um resultado especulativo e assim outra vez não se avançou nada. Então a Astronomia vem por um dia e desse modo a gente flana por todas as ciências e esferas e contudo não vive; enquanto os poetas, só para entreter os leitores, perambulam pela África, pela América, e pelo diabo, pela Trebizonda, por R - - -, de modo que logo um novo continente deva ser descoberto, para que a poesia não jogue: "eu passo", e por quê? Porque a interioridade está se perdendo cada vez mais. Vamos então começar pelas duas últimas terças partes do livro, cujo conteúdo é uma História de sofrimento. Sofrimento pode haver por toda parte, nos vários estádios da existência, mas quando um livro é organizado com um estádio estético, e então um estádio ético, e finalmente um estádio religioso, e só aqui então a palavra "sofrimento" é usada, isso parece indicar que o sofrimento se relaciona para com o religioso de modo diferente daquele para com o estético e o ético. O termo "história de sofrimento" parece por isso ser empregado de maneira enfática como uma categoria, como se o sofrimento tivesse uma significação decisiva em relação ao religioso. Assim, História de sofrimento, como [sub]título, parece querer significar algo diferente em relação ao título de Goethe, Leiden des jungen Werther [Os sofrimentos do jovem Werther], ou o Leiden eines armen Theaterdirectors [Os sofrimentos de um pobre diretor de teatro], de Hoffmann. Pois o sofrimento, em relação à existência estética e ética, é o acidental; pode estar ausente, e ainda assim pode-se existir de modo pleno estética ou eticamente, ou, se se extrai aqui algum significado mais profundo, ele é como um momento transitório. É diferente aqui, onde o sofrimento é posto como decisivo para a existência religiosa e, especificamente, como caracterizando a interioridade: quanto mais aí se sofre, tanto mais existência religiosa, e o sofrimento perdura. O autor, então, quando escolheu como título uma história de sofrimento, não estava em apuros, à procura de um título qualquer para seu escrito, mas tinha com isso algo muito específico em mente, e ele próprio o enfatizou (cf. todo o § 5, p. 353ss., especialmente o meio da p. 357). Enquanto que a existência em termos estéticos é essencialmente gozo, e a existência em termos éticos é essencialmente luta e vitória, em termos religiosos a existência é sofrimento, e não como um momento transitório, mas como um companhamento contínuo; o sofrimento é, para lembrar as palavras de Frater Taciturnus, as 70.000 braças de água sobre cujas profundezas se encontra, continuamente, a pessoa religiosa. [VII 247] Mas sofrimento é precisamente interioridade e encerrando-se frente à interioridade existencial estética e ética. Até nas conversas do dia a dia, quando dizemos de alguém que sofreu muito, costumamos associar prontamente a isso a representação da interioridade. O título da história de sofrimento é: Culpado? - Não culpado? Os pontos de interrogação constituem, obviamente, uma alusão ao processo judicial. Um romancista, muito provavelmente, uniria as duas partes do título, e um público leitor que deseja o resultado teria provavelmente gostado de ver isso. O título ficaria, então, por exemplo: "Infiel, mas mesmo assim um homem de honra", "Uma promessa quebrada, e contudo uma fidelidade eterna", ad modum [lat.: ao modo de] "Um oficial dos Hussardos, e contudo um bom marido" etc. Na página de título, fica prontamente decidido o que é o quê, e o leitor fica tranquilizado. O leitor não fica apreensivo, nem pela existência, nem pela exatidão dialética da categoria; a narrativa é uma encantadora mixórdia de um pouco do estético, um pouco do ético e um pouco do religioso. Mas o que propriamente ocupa uma pessoa que pensa não é o aprender algo depois do fato, mas justamente o tornar-se contemporânea de um existente em sua existência. E, na tensão entre as questões inquisitoriais, submetido penosamente ao agudo exame das questões, existe o Quidam do experimento. Se a desgraça da nossa época está em ter esquecido o que é a interioridade e o que significa existir, é de fato especialmente importante chegar o mais perto possível da existência. Por isso, o experimento não toma seu ponto de partida num momento posterior no tempo e relata um conflito interessante como algo já passado, não relaxa, de jeito nenhum, a tensão do conflito numa conclusão tranquilizadora, mas, com sua forma implicante, torna o leitor até mais contemporâneo do que ele consegue se tornar de uma realidade contemporânea, e o abandona aí, ao não fornecer uma conclusão. Um livro sem conclusão já foi escrito antes, sem dúvida; o autor pode ter morrido ou perdido a vontade de completá-lo etc. O caso aqui não é esse; que não haja um final, um resultado, é entendido, tal como antes o sofrimento, como sendo uma determinação categorial relativa à existência religiosa. O próprio Frater Taciturnus desenvolve este ponto (cf. § 3, p. 340, 343 acima). Mas a ausência de resultado é precisamente uma determinação da interioridade, pois resultado é algo externo, e a comunicação de um resultado uma relação externa entre um que sabe e um que não sabe. A história de sofrimento foi chamada de um experimento, e o próprio Frater explica o seu significado (§ 3). A História de sofrimento continha uma conexão com A repetição (cf. p. 313 e 339, infra). A diferença, contudo, é muito evidente quando se considera a determinação categorial, [VII 248] que pode, só ela, ter interesse para o pensamento, enquanto a diferença nos trajes de fantasia interessa as galerias, que por isso provavelmente também aceita que a maior atriz é aquela que pode atuar não apenas em variados trajes femininos fantásticos, mas até mesmo trajando com decência calça e jaqueta com colarinho engomado, já que se determina o alcance do desempenho artístico pelo do figurino e, por isso, considera a mais pobre das atrizes aquela que em especial tem os papéis em que atua com seus próprios trajes. Em vez de serem mantidas separadas, como em A repetição, a sensatez e a espontaneidade superior da juventude, em Constantin como o sensato, e no Jovem como o apaixonado, esses dois fatores são combinados num só, no Quidam do experimento, com o que o duplo movimento se torna necessário e nítido, e até a seriedade se compõe de troça e seriedade (cf. p. 283). É a mesma pessoa que, com seu entendimento, vê o cômico e sofre o trágico (Um pequeno mote de Quidam sugere prontamente a humorística atmosfera dúplice de ânimo, enquanto que a epígrafe latina "Periissem nisi periissem [Eu teria perecido, se não tivesse perecido]" é uma revogação patética [lidende] humorística da coisa toda) e, fora da unidade entre o cômico e o trágico, escolhe o trágico (cf. p. 327 e 328 supra). Em A repetição, ironia e senti mentalidade estão postas em relação recíproca; na História de sofrimento, o humor passa ao primeiro plano. O próprio Constantin precisava participar e assumir partes [lat.: papéis], enquanto que Frater Taciturnus fica inteiramente de fora, como um "inspetor de polícia", pois Quidam tem inteligência suficiente, e o humor é alcançado pelo fato de ele mesmo representar os elementos discretos. Se se deixa de fora a personagem feminina, que, tanto na História de sofrimento quanto em A repetição, só participa indiretamente, então há dois personagens em A repetição, e apenas um na História de sofrimento. "A coisa se torna cada vez mais entediante; não há nem ao menos algo como suicídio, ou loucura, ou nascimento clandestino, ou qualquer coisa desse tipo. Além disso, quando o autor escreveu a primeira história de amor, já esgotou o material; então, deve exercitar-se em outra direção, por exemplo, uma história de bandido". - Frater Taciturnus se define como ocupando um nível inferior de existência em relação à de [VII 249] Quidam, visto que este tem uma nova imediatidade. Já Constantin não deixava de estar inclinado a isso na relação com o Jovem, mas tinha contudo a sensatez e a ironia de que carecia o Jovem. Comumente, imagina-se isso de outro modo, que o experimentador, o observador, seja superior, ou se situe acima do que o que ele produz. Daí a facilidade em prover resultados. Aqui é o contrário; o sujeito do experimento descobre e demonstra o mais alto, mais alto não no sentido de entendimento e pensamento, mas no sentido da interioridade. A interioridade de Quidam se reconhece justamente por ter ele sua. interioridade definida pelo contraste que há nele mesmo, por ele próprio perceber como algo cômico o que, no entanto, está nele com toda a paixão da interioridade. Uma interioridade feminina como dedicação é menos interioridade, pois sua direção é obviamente para fora, voltada para algo, enquanto que a presença do contraste significa, especialmente, a direção para dentro. O próprio Quidam é a unidade do cômico e do trágico, porém ele é mais do que esta unidade; está para além dela na paixão (o comitrágico, cf. § 2 passim). O Frater é essencialmente humorista e demonstra, por repulsão, justo por isso, a nova imediatidade. Assim o humor avançou como último terminus a quo em relação ao religioso cristão. Na ciência moderna, o humor se tornou o mais alto, para além da fé. Ou seja, a fé seria o imediato, e pela especulação, que vai além da fé, alcança-se o humor. Isso é uma confusão geral em toda a especulação sistemática, quando esta quer tomar conta do cristianismo. Não, o humor encerra a imanência dentro da imanência, situa-se ainda essencialmente no recuo da recordação saindo da existência rumo ao eterno, e só a partir daí iniciam a fé e os paradoxos. O humor é o último estádio na interioridade da existência antes da fé. Por isso, segundo a minha ideia, ela deveria ser adiantada de modo que nenhum estádio atrás dela fosse deixado despercebido, o que, mais tarde, poderia causar confusão. Isso aconteceu agora na História de sofrimento. Humor não é fé, mas antecede a fé; não está para além da fé, nem é um desenvolvimento da fé. Pois, entendido de modo cristão, não há nenhum ultrapassar a fé, porque a fé é o mais alto - para um existente, o que já foi suficientemente desenvolvido nas páginas precedentes. Mesmo quando o humor quer exercitar-se com os paradoxos, ele não é a fé. O humor não leva aí consigo o aspecto de sofrimento do paradoxo nem o aspecto ético da fé, mas apenas o aspecto divertido. É, de fato, um sofrimento, um martírio da fé mesmo em tempos de paz, ter a beatitude de sua alma relacionada a algo acerca do qual o entendimento desespera. O humor imaturo, ao contrário, que até fica para trás do que eu, falando propriamente, chamo de humor num equilíbrio entre o cômico e o trágico - [VII 250] este humor imaturo é uma espécie de irreverência de estudante que prematuramente saltou fora da reflexão. Cansado do tempo e da infindável sucessão do tempo, o humorista salta fora e encontra um alívio humorístico ao estatuir o absurdo, tal como pode ser um alívio parodiar o significado da vida ao enfatizar o insignificante paradoxalmente, abandonar tudo e concentrar-se em jogar boliche e domar cavalos. Mas isso é o humor imaturo falsificando o paradoxo, como um incitamento à arbitrariedade de uma paixão melancólica. Este humor imaturo, bem longe de ser religiosidade, é antes um refinamento estético que salta por sobre o ético. Que a fé e o religioso cristão sejam precedidos pelo humor, mostra, de resto, quão enorme âmbito existencial é possível fora do cristianismo e, por outro lado, a intensidade de vida que é condição para se abraçar, propriamente, o cristianismo. Mas, em nossa época, não se existe de jeito nenhum, e então está certo que qualquer um seja cristão sem mais nem menos. Já como criança a gente se torna cristã, o que pode ser muito bonito e bem-intencionado por parte dos pais cristãos, mas é ridículo quando o próprio interessado pensa que assim tudo já está decidido. Pastores obtusos de fato apelam muito literalmente à passagem bíblica, literalmente entendida: de que ninguém entra no Reino de Deus, se não entrar como uma criancinha. Sim, que coisa mais doce e graciosa o cristianismo pode vir a ser com a ajuda da infantilidade de pastores desse tipo! Desse modo os apóstolos seriam até excluídos, pois desconheço que eles tenham entrado como crianças pequenas. Dizer ao espírito mais amadurecido: Sim, meu amigo, se vais tentar te tornar uma criancinha de novo, então te tornarás um cristão - vê, este é um discurso difícil, que se refere à doutrina que era um escândalo para os judeus e para os gregos uma loucura. Mas entender este discurso obscuro de modo como se toda dificuldade fosse removida com o ser batizado enquanto se é uma criancinha e morrendo-se o mais cedo possível, é uma estupidez que é diametralmente oposta à categoria do cristianismo (que, paradoxalmente, acentua a existência temporal) e que nem captou a visão pagã que deixa a criancinha chorar nos Campos Elíseos porque morreu tão cedo, o que, porém, sempre reconhece ao menos alguma importância ao tempo. Por ocasião de sua entrada no mundo o cristianismo não foi proclamado para crianças, mas para uma desgastada religiosidade judaica, um mundo exausto de ciência e arte. Primeiramente o primeiro, depois então o próximo. Se ao menos esta época tivesse tanta interioridade de existência quanto um judeu ou um grego, [VII 251] então ainda se poderia falar de uma relação com o cristianismo. Mas se alguma vez foi terrivelmente difícil tornar-se um cristão, logo isso será certamente impossível, porque tudo se tornou uma trivialidade. Um filósofo grego era verdadeiramente um homem que podia pensar e por isso significava alguma coisa quando o cristianismo se definia como um ensinamento que se torna um escândalo para os judeus e loucura para os gregos, pois o judeu também tinha suficiente interioridade religiosa para ser capaz de ficar escandalizado. Mas tudo isso se tornou obsoleto na preguiçosa geração que vive agora, e que, na média, tem indubitavelmente muito mais cultura do que era o caso antes, mas que não tem paixão, nem do pensamento, nem da religiosidade. É possível, fora do cristianismo, não só gozar a vida, mas também dar significado e conteúdo a ela, como, aliás, os mais renomados poetas e artistas, os mais eminentes pensadores, até mesmo homens piedosos, têm vivido fora do cristianismo. O próprio cristianismo esteve indubitavelmente consciente disso, e, contudo, não se considerou autorizado a mudar sua condição, e quanto mais maturidade espiritual tanto mais o paradoxo se torna uma coisa terrível, a inalterada condição do cristianismo, o sinal de escândalo e loucura. Mas não transformemos o cristianismo, em seus velhos dias, num taberneiro empobrecido, que ainda precisa dar um jeito de inventar alguma coisa para atrair fregueses, ou num aventureiro que quer tentar sua sorte no mundo. Compreende-se que a rigor não se pode dizer que o cristianismo tenha feito sucesso quando no seu tempo veio ao mundo, já que deu sua partida com crucifixão, flagelação, e coisas similares. Mas sabe Deus se é realmente seu desejo fazer sucesso no mundo, eu antes penso que ele se envergonha de si mesmo, como um homem idoso que se viu emperiquitado de acordo com a moda, ou, melhor, penso que ele acumula ira contra os homens quando vê a figura distorcida que seria o cristianismo, uma erudição de sarau, saturada de perfume e sistematicamente acomodada, cujo segredo todo se reduziria a meias medidas e então uma verdade até certo ponto: uma cura radical (e só como tal ele é o que é) agora transformada numa vacinação, e a relação para com ela em algo assim - como ter um atestado de vacina. Não, o paradoxo cristão não é algo que é assim e assado, algo maravilhoso e contudo não tão maravilhoso; sua verdade não é como a opinião de Salomon Goldkalb: vieles [muito] para frente und [e] para trás, und sim und não ao mesmo tempo. [VII 252] A fé não é algo que qualquer um possua, e algo em que nenhum homem culto possa se manter sem se envergonhar. Se ela se deixa agarrar e afirmar pela mais simples das pessoas, é tanto mais difícil de ser alcançada pela pessoa culta. Que humanidade maravilhosa, inspiradora, cristã: o que há de mais alto é comum a todos os seres humanos, e os mais afortunados são só aqueles que passaram pela escola mais severa. Mas voltemos aos Estádios. O livro é visivelmente diferente de Ou isto - ou aquilo por uma tripartição. Há três estádios, um estético, um ético, um religioso; porém, não abstratamente, como o mediato-imediato, a unidade, mas concretamente na determinação da existência como gozo - perdição, ação - vitória, sofrimento. Contudo, a despeito dessa tripartição, o escrito é, ainda assim, plenamente um Ou isto - ou aquilo. Com efeito, o estádio ético e o religioso estão numa relação essencial um com o outro. A inadequação de Ou isto - ou aquilo estava justamente no fato de que a obra terminava eticamente, como foi mostrado. Nos Estádios isso ficou mais nítido, e o religioso assegurou seu lugar. Os estádios estético e ético são reapresentados, num certo sentido como recapitulação e no entanto como algo novo. De fato, seria um testemunho de pobreza da interioridade existencial se todo estádio desse tipo não pudesse ser rejuvenescido na apresentação, embora possa ser arriscado ignorar o aparente apoio de exterioridades, com coisas como escolher novos nomes e outras tais, na tentativa de enfatizar a diferença. O ético concentra-se novamente sobre o casamento, como a revelação dialeticamente mais complexa da realidade. Contudo, ele traz à tona um novo aspecto e sustenta em especial a categoria do tempo e sua significação como o meio para aquela beleza que cresce com o tempo, enquanto que, visto esteticamente, tempo e existência no tempo são mais ou menos um retrocesso. Pela tripartição, altera-se a posição existencial recíproca dos estádios. Em Ou isto - ou aquilo, a posição estética é uma possibilidade de existência e o ético é existente. Agora o estético é existente; o ético é combatente, combatente ancipiti proelio [lat.: numa batalha de resultado incerto] contra o estético, que, contudo, ele facilmente torna a vencer, não com sedutores dons do espírito, mas com paixão ética e pathos; e contra o religioso. Ao chegar a uma conclusão, o ético faz o máximo que pode para se proteger contra a forma decisiva de uma posição mais alta. Está bem que ele se defenda desse modo, já que afinal ele não é um ponto de vista, mas sim uma individualidade existente. [VII 253] Constitui também uma confusão fundamental na ciência mais moderna que, sem mais, se confunda a abstrata observação de pontos de vista com o existir, de modo que se alguém está informado sobre os pontos de vista, está, por isso mesmo, existindo; enquanto que qualquer individualidade existente justamente como existente precisa ser mais ou menos unilateral. Visto abstratamente, não há por certo nenhum conflito decisivo entre pontos de vista, porque a abstração justamente descarta aquilo em que reside a decisão: o sujeito existente; mas, não obstante, a transição imanente é uma quimera, uma fantasia, como se o ponto de vista, por si mesmo, determinasse necessariamente sua transição para outro, dado que a categoria da transição é, ela mesma, uma quebra na imanência, é um salto. O esteta em Ou isto - ou aquilo era uma possibilidade de existência; era um jovem, ricamente dotado, uma pessoa um tanto promissora que estava fazendo experiências consigo mesma e com a vida, alguém "de quem a gente não poderia jamais ficar com raiva, porque nele o mal, tal como na representação medieval a respeito, tinha um ingrediente de infantilidade"; e porque ele não era propriamente nenhuma realidade, mas "uma possibilidade de tudo": é assim que o esteta penetra, por assim dizer, na sala de estar do Assessor. (Mesmo o Diário do sedutor era apenas uma possibilidade de horror, que o esteta, em sua existência tateante, havia invocado, precisamente porque ele, sem ser realmente nada, tinha que experimentar tudo na possibilidade). Em sua relação com ele, o Assessor foi acolhedor, eticamente seguro, e essencialmente exortativo, assim como uma pessoa um tanto mais velha e mais madura se relaciona com uma mais jovem, cujos talentos e superioridade intelectual ela, de algum modo, reconhece, embora tenha incondicionalmente seu poder sobre ela, pela segurança, experiência e interioridade no viver. Nos Estádios, o estético se apresenta na existência de modo mais determinado e por isso é latentemente manifesto, na própria apresentação, que a existência estética, mesmo quando uma luz mais suave cai sobre ela, embora ela seja sempre essencialmente brilhante, é perdição. Mas não é um ponto de vista exterior, como o do Assessor, que torna isso claro, como uma advertência, ao jovem, cuja vida não está ainda decidida no sentido mais profundo. Para exortar contra uma existência decididamente estética é tarde demais; querer exortar Victor Eremita, Constantin Constantius, o Modista, ou Johannes o Sedutor [VII 254], é tornar-se ridículo e produzir um efeito tão cômico quanto a situação que certa vez experimentei: na precipitação do perigo, um homem agarra uma bengalinha de brinquedo de seu filho para com ela - espancar um enorme bandido que invadira sua sala. Embora também ameaçado, comecei involuntariamente a rir, porque parecia que ele estava batendo em roupas de varal. A relação entre o Assessor e o Esteta em Ou isto - ou aquilo fez com que fosse natural e psicologicamente apropriado ao Assessor fazer exortações. Entretanto, mesmo nessa obra, não havia decisão em sentido definitivo (v. Prefácio), de modo que o leitor pudesse dizer: Olha - agora isso está decidido. Um leitor que precise da confiabilidade de uma reprimenda, ou de um final infeliz (por exemplo, loucura, suicídio, miséria etc.), para ver que o ponto de vista é falso, ainda não percebe nada e está apenas imaginando; e como autor comportar-se desse modo é escrever à maneira feminina para leitores infantilizados. (Desejo lembrar aqui mais uma vez algo que, entre outros, Frater Taciturnus enfatiza com bastante frequência. A filosofia hegeliana culmina na proposição de que o exterior é o interior e o interior é o exterior. Com isso, Hegel encerrou. Mas este princípio é essencialmente um princípio estético-metafísico, e assim a filosofia hegeliana se encerra, de modo feliz e seguro, sem se ocupar com o ético e o religioso, vale dizer, finaliza de maneira fraudulenta misturando tudo (inclusive o ético e o religioso) no estético-metafísico. Já o ético põe uma espécie de relação de oposição entre o exterior e o interior, na medida em que põe o exterior na indiferença; a exterioridade, como matéria para a ação, é indiferente [indifferent], pois a intenção é o que se acentua eticamente; o resultado como exterioridade da ação tanto faz [er ligegyldig; é indiferente], pois a intenção é o que se acentua eticamente, e é justamente antiético [usaedeligt] preocupar-se com [at bryde sig om, dar importância a] o resultado; a vitória no exterior não prova, eticamente, absolutamente nada, porque, eticamente, a questão é apenas a respeito do interior; a punição no exterior é uma insignificância, e então longe de insistir com afã estético na visibilidade da punição, o ético orgulhosamente diz: Vou punir, está certo, mas no interior, e é justamente antiético avaliar a punição no exterior como algo que se pode comparar à do interior. - O religioso põe de modo bem determinado a oposição entre o exterior e o interior, definido como oposição; aí reside justamente o sofrimento como categoria existencial para o religioso [for det Religieuse], mas aí também reside a infinitude interior da interioridade [Indvorteshed] voltada para dentro. Se não estivesse reservado para a nossa época ignorar totalmente [lade reent vaere] o existir, seria impensável que uma sabedoria como a hegeliana [VII 255] pudesse ser considerada o que há de mais alto, o que talvez possa ser para contempladores estéticos, mas não para existentes éticos ou religiosos). Toma uma figura como a de Johannes o Sedutor. [VII 255] Quem necessita que ele enlouqueça ou se dê um tiro para ver que seu ponto de vista é perdição, não o vê, não obstante, mas apenas se ilude. Ou seja, quem compreende, o compreende tão logo o Sedutor abre a boca; em cada palavra, ouve sua perdição e o juízo sobre ele. O leitor que requer a punição externa só faz papel de bobo, pois afinal se pode tomar uma pessoa muito gentil, deixá-la enlouquecer, e aí um leitor desses crerá que seu ponto de vista era injustificado. O estádio estético está representado por "In vino veritas". Aqueles que aqui aparecem certamente são estetas, mas não são de jeito nenhum ignorantes a respeito do ético. Portanto, não são apenas apresentados, mas apresentados como pessoas que obviamente sabem prestar contas de sua existência. Em nosso tempo, acredita-se que o saber é o que decide e que, tão logo se chega a saber a verdade, e quanto mais breve e rapidamente melhor, já se está socorrido. Mas existir é algo completamente diferente de saber. - O Jovem é quase que somente uma possibilidade e por isso ainda há esperança para ele. Ele é essencialmente melancolia intelectual (o Ético o explica nas p. 87, 88, no alto, 89). Constantin Constantius é endurecimento do entendimento (cf. o Ético, p. 90. A concepção de Constantin do ciúme se encontra na p. 99, embaixo, e na p. 100, no alto). Victor Eremita é ironia simpática (cf. o Ético, p. 107 e 108. O atentado de Victor ao matrimônio se encontra na p. 85). O Modista é desespero demoníaco em paixão. Johannes o Sedutor é perdição na frieza, uma individualidade "marcada" e extinta. Todos eles são coerentes até o desespero. Tal como na segunda parte de Ou isto - ou aquilo encontramos resposta e uma retificação de cada incorreção da primeira parte, assim também se encontrará aqui a explicação junto ao Ético, só que este essencialmente fala por si e em parte alguma leva diretamente em consideração o que, de acordo com a estrutura da obra, não se pode afirmar que ele saiba. Assim, é deixado ao próprio leitor reunir tudo isso por sua conta, se assim o quiser, mas nada é feito para a comodidade de um leitor. [VII 256] É dessa, logicamente, que os leitores gostam; querem ler livros à maneira dos reis, como um rei lê uma petição, com resumos marginais que o livram de se aborrecer pela prolixidade dos peticionários. Com relação aos autores pseudônimos, isso seria decerto um mal-entendido por parte do leitor; pois pela impressão que tenho deles, não estavam procurando, que eu saiba, qualquer coisa que seja da Nobilíssima Majestade que é a maioria do público leitor. Isso também me soaria muitíssimo estranho. De fato, sempre tive para mim que um autor é alguém que sabe mais do que o leitor, ou que sabe o mesmo de um modo diferente; por isso ele é autor, e não fosse assim não deveria tratar de ser autor. Por outro lado, nunca me ocorreu que um autor fosse um suplicante, um mendigo à porta do leitor, um bufarinheiro que, graças a uma lábia satânica e aos adornos dourados da encadernação, que certamente cativam os olhos das meninas da casa, impinge seus escritos às famílias. Johannes o Sedutor encerra com a afirmação de que a mulher é apenas o instante. Essa é em sua generalidade a proposição estética essencial, que o instante é tudo e, nesse sentido, por sua vez, é essencialmente nada, tal como a proposição sofística de que tudo é verdadeiro significa que nada é verdadeiro. A concepção do tempo é, no geral, o decisivo para todo ponto de vista, até o paradoxo que paradoxalmente acentua o tempo. Na mesma medida em que o tempo é acentuado, na mesma medida se avança do estético, do metafísico, para o ético, o religioso e o religioso-cristão. Onde Johannes o Sedutor para, inicia o Assessor: que a beleza da mulher aumenta com os anos. Aqui o tempo é acentuado eticamente, mas no entanto não de modo a impedir que seja possível o recuo da existência em direção ao eterno, pela recordação. O estádio estético é mencionado muito brevemente e, sem dúvida para acentuar o religioso corretamente, o autor chamou a primeira parte de "Uma recordação", a fim de, forçando o estético a recuar, ressaltar tanto mais o estádio ético e em especial o religioso. No que tange mais de perto ao conteúdo do escrito não entrarei em maiores detalhes. Sua significação, se é que tem alguma, consistirá na interioridade existencial dos diferentes estádios, variegadamente visualizados sob a forma de paixão, ironia, pathos, humor, dialética. [VII 257] Tais coisas, naturalmente, não ocupam os docentes. Am ende [al.: afinal], talvez não fosse impensável que um docente levasse tão longe a cortesia que, en passant [fr.: de passagem], entre vírgulas, numa nota a um parágrafo do sistema, dissesse deste autor: Ele representa a interioridade. Com isso o autor e um ignorante público leitor já teriam aprendido tudo. Paixão, pathos, ironia, di ai ética, humor, entusiasmo etc., são considerados pelos docentes como algo subordinado, que qualquer um possui. Por isso, quando se diz: Ele representa a interioridade - então, nessas breves palavras, que qualquer um pode dizer, tudo está dito, e muito mais do que o autor havia dito. Qualquer um sabe o que deve pensar com isso, e qualquer docente facilmente poderia ter realizado tudo nessa área, mas o deixara para sujeitos limitados. Se qualquer um realmente sabe, de modo mais concreto, o que é interioridade, e se qualquer um, como autor, pode realizar algo nessa área, deixarei em aberto. De cada um que se cala, estou disposto a aceitá-lo, porém os docentes jamais se calam. Contudo, como já foi dito, nada tenho a ver com o conteúdo do escrito. Minha tese era de que a subjetividade, a interioridade, é a verdade. Isso era para mim o decisivo com relação ao problema do cristianismo e, partindo da mesma consideração, pensei que deveria perseguir certo empenho nos escritos pseudônimos, que, até o último, honestamente abstiveram-se de ensinar de modo docente, e pensei que deveria prestar uma atenção privilegiada ao último deles, porque veio a público depois de minhas Migalhas e, reproduzindo livremente temas mais antigos, lembra os mais antigos e, por meio do humor como confinium [lat.: território limite], define o estádio religioso. CAPÍTULO 3 A subjetividade real, a [subjetividade] ética; o pensador subjetivo. § 1 O existir; realidade efetiva. Na linguagem da abstração nunca aparece propriamente aquilo que constitui a dificuldade da existência e do existente; e muito menos se explica a dificuldade. [VII 258] Justamente porque o pensamento abstrato é sub specie aeterni [lat.: do ponto de vista da eternidade], ele prescinde do concreto, da temporalidade, do devir da existência, e da dificuldade do existente por este ser composição do eterno e do temporal, situada na existência. (Que, não obstante, Hegel, em sua Lógica, deixe continuamente uma representação entrar em cena, mais do que bem-informada sobre a concreção e sobre o que segue, que o professor, apesar da transição necessária, usa a cada vez para chegar mais adiante, é naturalmente um erro, que Trendelenburg demonstrou excelentemente. De que modo, só para lembrar o que aqui se tem mais à vista, se molda a transição graças à qual die Existenz [a existência] vem a ser as existências [er Existentserne]? Die Existenz ist die unmittelbare Einheit der Reflexion-in-sich und der Retlexion-in-Anderes. Sie ist daher (?) die unbestimmte Menge von Existirenden [A existência é a unidade imediata da reflexão-em-si com a reflexão-em-outro. Ela é por isso (?) a multidão indeterminada de existentes]. Como é que a determinação puramente abstrata da existência chega a fragmentar-se desta maneira?). Se se quer agora assumir que o pensamento abstrato é o mais alto, segue-se daí que a ciência e os pensadores orgulhosamente abandonam a existência e deixam que nós outros, humanos, aguentemos o pior. Sim, disso segue-se também algo para o próprio pensador abstrato, a saber, que ele, já que é também afinal um existente, de um ou de outro jeito só pode estar distraído. Indagar abstratamente sobre a realidade efetiva (ainda que seja correto indagar sobre isso abstratamente, já que o particular, o acidental, é, de fato, parte integrante do real e em oposição direta à abstração) e responder abstratamente sobre isso, não é, nem de longe, tão difícil quanto indagar e responder sobre o que significa ser este algo determinado uma realidade efetiva. A abstração prescinde dessa coisa determinada, mas a dificuldade reside em reunir esta coisa determinada e a idealidade do pensamento ao querer pensá-la. A abstração nem consegue preocupar-se com tal contradição, pois a abstração justamente a impede. O equívoco da abstração mostra-se justamente no que se refere a todas as questões da existência, das quais a abstração escamoteia a dificuldade, omitindo-a, e depois se gaba de ter explicado tudo. Explica a imortalidade em geral, e eis que isso funciona de modo excelente, enquanto a imortalidade se identifica com eternidade, com aquela eternidade que é essencialmente o medium do pensamento. Mas se de fato um ser humano existente individual é imortal, no que, justamente, reside a dificuldade, quanto a isso a abstração não se preocupa. [VII 259] Ela é desinteressada, mas a dificuldade da existência é o interesse do existente, e o existente é infinitamente interessado no existir. O pensamento abstrato ajuda-me, portanto, na minha imortalidade, matando-me enquanto indivíduo particular existente e aí então me fazendo imortal, e ajuda portanto mais ou menos como, em Holberg, o médico tirou a vida do paciente com seu remédio - mas também afugentou a febre. Quando se observa, portanto, um pensador abstrato que não quer esclarecer e admitir para si mesmo qual a relação que seu pensamento abstrato tem com o fato de ele ser um existente, este produz uma impressão cômica, por mais notável que ele seja, porque está a ponto de deixar de ser um humano. Enquanto um ser humano real, composto de infinitude e finitude, tem sua realidade efetiva precisamente no mantê-las juntas, infinitamente interessado no existir, tal pensador abstrato é um ser duplo, uma entidade fantástica que vive no puro ser da abstração, e é, às vezes, uma figura deplorável de professor que aquela entidade abstrata afasta de si, como se abandona um bastão. Quando se lê a biografia de um pensador desse tipo (pois seus escritos são talvez excelentes), a gente às vezes se arrepia ao pensar sobre o que significa ser um homem. (E quando se lê então em seus escritos: que pensar e ser são uma só coisa [er Eet] , então a gente pensa, enquanto pondera sobre a sua vida e sua biografia [Liv og Levnet]: O ser [den Vaeren] com o qual o pensar é idêntico certamente não é o ser homem [at vaere Menneske]). Mesmo que uma mulher rendeira faça as mais lindas rendas, ainda assim é triste pensar nessa pobre criatura mirrada, e assim é cômico ver um pensador que, a despeito de todo o seu brilho, pessoalmente existe como um tipo acanhado que pessoalmente se casou, mas que pouco estava familiarizado com o amor, ou tocado por seu poder, e cujo casamento, portanto, era decerto tão impessoal quanto seu pensamento, e cuja vida pessoal era destituída de pathos e de combates apaixonados, e que ao modo de um filisteu só se preocupava em saber qual universidade oferecia o melhor ganha-pão. Tal mal-entendido dever-se-ia supor fosse impossível no que toca ao pensamento; dever-se-ia supor que isso só pertencesse às misérias do mundo exterior, onde um ser humano trabalha como um escravo para outro, de modo que não se pode admirar as rendas de bilro sem lágrimas, quando se pensa na mulher rendeira. Dever-se-ia acreditar que um pensador levasse a mais rica das vidas humanas - na Grécia, pelo menos, era assim. [VII 260] Com o pensador abstrato, a coisa é outra, quando, sem ter compreendido ele a si mesmo e à relação do pensamento abstrato com a existência, segue o estímulo de um talento ou se treina para ser algo semelhante. Eu bem sei que a gente gosta de admirar uma existência de artista de alguém que segue seu talento sem se dar conta do que seja ser humano, de modo que o admirador o esquece por trás de sua obra de arte; mas também sei que o trágico num tal existente é que ele é uma variante não refletida pessoalmente no ético, sei também que na Grécia um pensador não era um existente tímido que produzia obras de arte, mas ele próprio era uma obra de arte existente. Ser um pensador jamais deveria significar ser diferente quanto ao ser um ser humano. Se é ponto pacífico, então, que um pensador abstrato careceu de senso de humor, isso prova, eo ipso, que todo o seu pensamento é produto de um talento talvez notável, mas não o de um ser humano que, no sentido eminente, tenha existido como um ser humano. Contudo, ensina-se à maneira docente que o pensamento é o mais elevado, que o pensamento inclui tudo sob si, e, ao mesmo tempo, não se faz nenhuma objeção ao fato de que o pensador não está existindo essencialmente qua ser humano, mas como uma variante de um talento. Que o enunciado sobre o pensamento não se reduplique na representação do pensador, que a própria existência do pensador contradiga seu pensamento, mostra que se está meramente ensinando à moda docente. Pensamento é superior a sentimento e fantasia - isso é ensinado à moda docente por um pensador que não tem, ele próprio, nem pathos nem paixão; ensina-se que pensamento é superior a ironia e humor, e isso ensinado ao modo docente por um pensador que carece totalmente de senso do cômico. Como isto é cômico! Tal como todo o pensamento abstrato em relação ao cristianismo e em relação a todos os problemas da existência é um ensaio no cômico, assim também o assim chamado puro pensar é em última análise uma curiosidade psicológica, uma admirável espécie de engenhosidade no compor e construir num meio fantástico: o puro ser. Idolatrar esse puro pensar, sem nada mais, como o mais elevado, mostra que o pensador jamais existiu qua ser humano, que ele, entre outras coisas, no sentido eminente jamais agiu - não quero dizer com referência a realizações, mas com referência à interioridade. Mas agir em sentido eminente é algo que pertence essencialmente ao existir qua ser humano; e ao agir, ao ousar o decisivo no máximo de sua paixão subjetiva com plena consciência de uma responsabilidade eterna (o que todo ser humano é capaz de fazer), aprende-se algo diferente, e também se aprende que ser um homem é algo diferente de, entra ano sai ano, costurar mais alguma coisa num sistema. Ao existir essencialmente qua ser humano, também se adquire uma receptividade para o cômico. [VII 261] Não estou dizendo que todo aquele que realmente existe como um ser humano esteja, por isso, em condições de ser um poeta cômico ou um ator cômico, porém ele terá receptividade para isso. Que a linguagem da abstração, a rigor, não deixa aparecer a dificuldade da existência e do existente, eu me proponho a ilustrar em referência a uma questão crucial sobre a qual tanto se disse e escreveu. Como se sabe, a filosofia hegeliana suspendeu o princípio da contradição, e mais de uma vez enfaticamente o próprio Hegel armou o juízo final sobre aqueles pensadores que permaneceram na esfera do entendimento e da reflexão, e que, por isso, insistiram que há um "ou isto - ou aquilo". Desde aquele tempo, tornou-se um jogo muito apreciado, que, tão logo alguém faz alusão a um aut/aut, chega então um hegeliano (igual a Jens Skovfoged em Kallundborgs-Kroniken) a cavalo, pocotó, pocotó, pocotó, e obtém uma vitória, e retoma a cavalo para casa. Também entre nós, os hegelianos fizeram várias vezes suas incursões, especialmente atrás do Bispo Mynster, para obter uma vitória brilhante da especulação, e o Bispo Mynster tornou-se, mais de uma vez, um ponto de vista ultrapassado, muito embora como um ponto de vista ultrapassado ele esteja se saindo bastante bem, e antes se há de temer que o enorme esforço da vitória tenha exigido demais dos vencedores invictos. E, contudo, talvez haja um mal-entendido na raiz do conflito e da vitória. Hegel tem completa e absoluta razão em sustentar que, visto eternamente, sub specie aeterni, na linguagem da abstração, no puro pensamento e no puro ser, não há nenhum aut/aut. Onde, diabos, ele poderia estar, se a abstração, afinal, remove a contradição, de modo que Hegel e os hegelianos melhor fariam se se dessem ao trabalho de explicar qual o significado do espalhafato de introduzir na Lógica a contradição, o movimento, a passagem etc. Os defensores do aut/aut estão errados quando forçam seu caminho para dentro do território do puro pensar e querem defender sua causa lá. Tal como aquele gigante, contra quem Hércules lutou, perdeu sua força assim que foi erguido do chão, do mesmo modo o aut/aut da contradição fica eo ipso abolido quando apartado da existência e levado para dentro da eternidade da abstração. Por outro lado, Hegel está errado também quando, esquecendo-se da abstração, lança-se, a partir dela, para dentro da existência, para anular, com violência e poder, o duplo auto [VII 262] Na existência é impossível fazê-lo, porque, com isso, ele anula também a existência. Quando eu excluo a existência (abstraio), não há mais nenhum aut/aut; quando eu o excluo na existência, isso significa que excluo a existência, mas assim não o anulo na existência. Se não é correto que haja algo verdadeiro na teologia que não seja verdadeiro na filosofia, então é inteiramente correto que há algo verdadeiro para um existente que não é verdadeiro na abstração; e é também eticamente verdadeiro que o puro ser é fantasmagoria, e que a um existente não é lícito querer esquecer que é um existente. Por isso, é preciso ser muito cauteloso ao se envolver com um hegeliano e, sobretudo, é preciso averiguar com quem é que se tem a honra de falar. Será ele um ser humano, um ser humano existente? Será ele próprio sub specie aeterni, até mesmo quando dorme, come, assoa o nariz, e tudo o mais que faz um ser humano? Será ele próprio o puro Eu-Eu, algo que certamente jamais ocorreu a qualquer filósofo, e, se ele não o é, então como é que, existindo, ele se relaciona com isso, com a determinação intermediária, na qual a responsabilidade ética no, com e pelo existir é devidamente respeitada? Será que ele existe? E se ele existe, não está então no devir? E se está no devir, será que não se relaciona com o futuro? Será que nunca se relaciona com o futuro de modo a agir? E se nunca age, será que não perdoará então que uma individualidade ética, com paixão e verdade dramática, diga que ele é um bovino? Porém, se ele age sensu eminenti [lat.: em sentido eminente], será que não se relaciona então com o futuro em paixão infinita? Será que não há, então, um aut/aut? Será que a eternidade, para um existente, não é a eternidade, mas sim o futuro, enquanto a eternidade é a eternidade apenas para o Eterno, que não vem a ser? Que se lhe pergunte se pode responder à seguinte questão, isto é, se tal questão pode ser colocada para ele: se o renunciar, tanto quanto possível, à existência, para ser sub specie aeterni, é algo que lhe acontece ou algo que ele faz em virtude de uma resolução: será que talvez mesmo fosse algo que se deva fazer? Pois se eu devo fazê-la, então eo ipso se estabelece um aut/aut até mesmo em relação a se ser sub specie aeterni. Ou será que ele nasceu sub specie aeterni e, desde então, viveu sub specie aeterni e, por isso, não consegue nem entender a respeito do que eu estou perguntando, visto que nunca teve nada a ver com o futuro, ou nunca se deu conta de nenhuma decisão? [VII 263] Nesse caso, percebo bastante bem que não é com um ser humano que tenho a honra de falar. Mas ainda não estou pronto, pois é estranho para mim que tais seres enigmáticos estejam surgindo. Antes da irrupção do cólera, em geral aparece um tipo de mosca que não se vê em outra situação; da mesma maneira, esses puros pensadores fabulosos não poderiam ser um sinal de que uma desgraça está reservada à humanidade, como por exemplo, a perda do ético e do religioso? Portanto, é preciso ser cauteloso diante de um pensador abstrato que não apenas quer permanecer no puro ser da abstração, mas quer que isso seja o mais elevado para um ser humano, e quer que tal pensar, que resulta na ignorância do ético e no mal-entendido em relação ao religioso, seja o mais elevado pensar humano. Por outro lado, não se vá dizer que sub specie aeterni, "onde tudo é e nada surge" (Desorientados pela constante falação sobre um processo contínuo em que os opostos se ajuntam numa unidade mais elevada, e então novamente numa unidade mais elevada etc., instaurou-se um paralelo entre a doutrina de Hegel e aquela de Heráclito, de que tudo flui e nada permanece. Isso, contudo, é um mal-entendido, porque tudo o que é dito em Hegel do processo e do devir é ilusório. Por isso carece o sistema de uma ética; por isso nada sabe o sistema quando a geração vivente e o indivíduo vivente perguntam, com seriedade, sobre o devir, ou seja, para agir. Por isso, a despeito de toda falação sobre processo, Hegel não compreende a história do mundo como um devir, mas, auxiliado por uma ilusão do passado, compreende-a como algo já acabado em que todo devir está excluído. Por isso, é impossível que um hegeliano compreenda a si mesmo com o auxílio de sua filosofia, pois ele só pode compreender o que já passou, o que já se encerrou, mas um vivente ainda não é um falecido. Provavelmente ele se consola com a ideia de que, quando alguém consegue compreender a China e a Pérsia e 6.000 anos de história do mundo, então pode-se lixar [blaese med] para um indivíduo singular, ainda que seja ele mesmo. A mim me parece diferente, e eu o compreendo melhor ao contrário, que, se alguém não consegue compreender a si mesmo, sua compreensão da China e da Pérsia etc., é decerto de uma espécie estranha [en egen Art]) (a doutrina eleática), deve haver um aut/aut. Ao contrário, lá onde tudo está em devir, onde o máximo de eternidade presente é que pode ter um efeito restritivo na decisão apaixonada, lá onde a eternidade se relaciona como o porvir com o que vem a ser, a esse lugar pertence a disjunção absoluta. Em outras palavras, quando reúno a eternidade e o devir, não obtenho repouso, porém porvir. Vem daí, decerto, que o cristianismo tenha proclamado a eternidade como o porvir, porque foi proclamado para pessoas existentes, e é por isso que também assume um absoluto aut/aut. [VII 264] Todo pensar lógico está na linguagem da abstração e sub specie aeterni. Pensar desse modo a existência é desviar o olhar da dificuldade, isto é, da dificuldade de se pensar o eterno no devir, o que decerto se é compelido a fazer, já que o próprio pensador está no devir. Por isso, pensar abstrato é mais fácil do que existir, a não ser que se queira compreender esse último como: algo parecido com aquilo que se costuma chamar existir, tal como se costuma dizer ser um sujeito qualquer. Eis aqui de novo um exemplo de como a mais simples de todas as tarefas é a mais difícil de todas. A gente pensa que existir não é nada, muito menos uma arte, afinal, todo mundo existe, mas pensar abstrato - isso sim é algo. Mas existir de verdade, ou seja, permear sua existência com consciência, e ao mesmo tempo eternamente colocar-se por assim dizer além da existência e mesmo assim presente na existência e mesmo assim no devir: isso sim é que é difícil de verdade. Se o pensar não se tivesse tornado em nosso tempo algo estranho, algo adquirido por estudo (de segunda mão), então os pensadores fariam uma impressão bem diferente nas pessoas, como era o caso na Grécia, onde um pensador era também um existente entusiasmado, apaixonado por seu pensamento, como foi o caso outrora na Cristandade, quando um pensador era um crente que, entusiasticamente, procurava compreender a si mesmo na existência da fé. Se o mesmo se desse com os pensadores no nosso tempo, o puro pensar teria levado a um suicídio depois do outro; pois suicídio é a única consequência existencial do puro pensar se este não se comportar como algo de parcial em relação ao ser um homem, e não chegar a um acordo com um existir pessoal ético e religioso, mas preferir ser tudo e o mais elevado. Não elogiamos o suicídio, mas certamente a paixão. Agora, ao contrário, um pensador é um curioso animal, que em certas horas do dia é engenhoso como poucos, mas, afora isso, nada tem em comum com um ser humano. Pensar a existência sub specie aeterni e em abstração é, essencialmente, superá-la, e o mérito disso assemelha-se ao tão trombeteado de se abolir o princípio da contradição. Existência é impensável sem movimento, e movimento é impensável sub specie aeterni. Omitir o movimento não é exatamente um golpe de mestre, e introduzi-lo na lógica como transição, e com ele o tempo e o espaço, é apenas nova confusão. Na medida em que todo pensamento é eterno, a dificuldade se coloca para o existente. A existência, tal como o movimento, é uma coisa muito difícil de lidar. Se eu a penso, eu a suprimo, e então não a penso. Poderia parecer correto dizer que há algo que não se deixa pensar: o existir. Mas a dificuldade retorna, pois a existência põe as coisas juntas pelo fato de que o pensante existe. [VII 265] Porque a filosofia grega não era distraída, o movimento é um constante objeto para seus esforços dialéticos. O filósofo grego era um existente, e disso ele não se esquecia. Por isso, recorria ao suicídio, ou ao morrer em sentido pitagórico, ou a estar morto em sentido socrático, para poder pensar. Estava consciente de si, de que era um pensante, mas estava também consciente de que era a existência, como meio, o que não cessava de impedi-lo de pensar continuamente, porque sempre o colocava no devir. Para então verdadeiramente poder pensar, tirava sua própria vida. A filosofia moderna sorri com superioridade diante de tal infantilidade, como se todo pensador moderno, de modo tão certo quanto sabe que pensar e ser são o mesmo, não soubesse também que não vale a pena o esforço para ser aquilo que ele pensa. É neste ponto do existir, e na exigência do ético para o existente, que se deve resistir, quando uma filosofia abstrata e um puro pensar querem explicar tudo escamoteando o decisivo; deve-se apenas ousar, impavidamente, ser um ser humano, e não se deixar assustar, ou por embaraço, deixar-se enganar para se tornar algo assim como um fantasma. Seria outra coisa se o puro pensar explicasse sua relação para com o ético e para com uma individualidade eticamente existente. Mas é isso o que ele nunca faz; sim, nem mesmo faz menção de querer fazer, pois em tal caso teria então de se envolver com outro tipo de dialética, a dialética grega ou existencial. O endosso da ética é o que todo existente tem o legítimo direito de exigir de tudo o que se chama sabedoria. Se o começo foi feito, se é uma transição imperceptível pela qual alguém, pouco a pouco, esquece de existir para pensar sub specie aeterni: então a objeção é de outro tipo. No interior do puro pensar, muitas, muitas objeções podem talvez ser feitas contra o que Hegel produziu, mas com isso fica tudo no essencial inalterado. Mas por mais que eu, na qualidade de um humilde leitor que de jeito nenhum pretende ser um juiz, esteja disposto a admirar a Lógica de Hegel, por mais disposto que eu esteja a reconhecer que para mim pode haver muito para aprender quando eu voltar a ela outra vez, eu também devo ser tão orgulhoso, tão obstinado, tão insistente, tão destemido em minha insistência de que a filosofia hegeliana, ao não definir sua relação para com um existente, ao ignorar o ético, confunde a existência. O mais perigoso ceticismo é sempre aquele que menos aparece como tal, [VII 266] mas [a ideia de] que o puro pensar devesse ser a verdade positiva para um existente é ceticismo, porque esta positividade é quimérica. Ser capaz de explicar o passado, toda a história do mundo, é algo magnífico, mas se o máximo para alguém que ainda vive deve ser o poder compreender apenas o que passou, então essa positividade é ceticismo, e um perigoso ceticismo, porque aparece tão enganadora pela enorme massa que a gente compreende. Por isso, o terrível pode acontecer à filosofia de Hegel, que o ataque indireto pode ser o mais perigoso. Que um jovem duvidador, mas um questionador existente, com sua adorável e ilimitada confiança juvenil num herói da ciência, console-se com a ideia de achar na positividade hegeliana a verdade, a verdade para a existência: neste caso ele escreverá um terrível epigrama sobre Hegel. Não me entendam mal. Não quero dizer que qualquer jovem seja capaz de triunfar sobre Hegel, longe disso; se um jovem é presunçoso e tolo o bastante para acreditar nisso, então seu ataque não significa nada. Não, o jovem jamais deve pensar em querer ataca-lo: deve, ao contrário, querer submeter-se incondicionalmente a Hegel com um devotamento feminino, mas também, entretanto, com força suficiente para sustentar sua questão - então ele será um satírico sem suspeitar disso. O jovem é um duvidador existente; continuamente suspenso na dúvida, ele tenta agarrar a verdade - para poder existir nela. Ele é negativo, portanto; e a filosofia de Hegel é, sim, positiva - não é de estranhar que ele se sinta confortado nela! Mas eis que, para um existente, o puro pensar é uma quimera, se é que a verdade está aí para que a gente exista nela. Dever existir com a ajuda da orientação do puro pensar é como dever viajar pela Dinamarca com um pequeno mapa de toda a Europa, no qual a Dinamarca não é maior do que uma pena de aço - sim, é até mesmo mais impossível. A admiração do jovem, seu entusiasmo, sua confiança ilimitada em Hegel, são justamente a sátira sobre Hegel. Já se teria entendido isso há muito tempo se o puro pensar não se mantivesse com a ajuda de uma opinião que se impõe às pessoas, de modo que elas não ousam dizer nada mais, a não ser que ele é soberbo, que elas o compreenderam - embora, num certo sentido, seja impossível, dado que ninguém pode ser guiado, por essa filosofia, a compreender a si mesmo, o que é, contudo, uma condição absoluta para todo e qualquer entendimento. Sócrates disse, com certa ironia, que não sabia com certeza se ele era um ser humano ou alguma outra coisa, mas no confessionário um hegeliano pode dizer com toda solenidade: não sei se sou um ser humano - mas o sistema eu compreendi. [VII 267] Eu já prefiro dizer: eu sei que sou um ser humano e sei que não compreendi o sistema. E tendo então dito isso bem diretamente, quero acrescentar que, se algum dos nossos hegelianos quiser tomar conta de mim e me ajudar na compreensão do sistema, de minha parte não oporei nenhum obstáculo. Esforçar-me-ei por ser tão tolo quanto possível, para, se possível, não ter uma única pressuposição, a não ser minha ignorância, para eu poder aprender tanto mais; e me esforçarei para ser tão indiferente quanto possível diante de qualquer acusação de ignorância científica, só para estar certo de aprender alguma coisa. O existir, se isso não for compreendido tal como uma assim chamada existência, é algo que não se faz sem paixão. Qualquer pensador grego era por isso também essencialmente um pensador apaixonado. Meditei muitas vezes sobre como se poderia levar alguém à paixão. Pensei então que se eu pudesse montá-lo num cavalo e espantar o cavalo e pô-lo na mais desabalada carreira; ou, ainda melhor, a fim de fazer brotar alguma paixão, se eu pudesse montar um homem que quisesse ir a algum lugar tão rápido quanto possível (e que, portanto, já mostrava alguma paixão) num cavalo que mal conseguisse andar: e, contudo, o existir é assim, quando se deve ter consciência dele. Ou, se se atrelassem juntos num único carro, de um cocheiro que de outra maneira não pudesse chegar à paixão, um Pégaso e um Rocinante e se lhe dissesse: "Toca pra frente" - aí eu acho que daria certo. E assim é o existir, quando se deve ter consciência dele. A eternidade é infinitamente rápida, como aquele corcel alado, a temporalidade é um rocim terminal, e o existente é o cocheiro, se é que a existência não deve ser o que vulgarmente chamam de existência, porque nesse caso o existente não seria um cocheiro, mas sim um camponês bêbado que deita na carroça e dorme e deixa os cavalos por conta deles. É claro que também ele conduz, também ele é cocheiro, e, desse mesmo modo, talvez haja muitos que também existem. Na medida em que a existência é movimento, vale que há de fato um contínuo que mantém unido o movimento, pois de outro modo não há movimento algum. Tal como o dito de que tudo é verdadeiro significa que nada é verdadeiro, do mesmo modo dizer que tudo está em movimento significa que não há nenhum movimento. (Isso era indubitavelmente o que queria dizer aquele discípulo de Heráclito que afirmou que não se poderia entrar nem uma única vez no mesmo rio. [VII 268] Johannes de Silentio (Temor e tremor) fez uma alusão a essa afirmação do discípulo, porém mais como volteio retórico do que como verdade). [VII 268] O que é imóvel pertence ao movimento como constituinte do movimento, tanto no sentido de fim, quanto de critério; de outro modo, a afirmação de que tudo está em movimento - se também se deixa de lado o tempo e se diz que tudo está sempre em movimento - é eo ipso estagnação. Aristóteles, que de tantas maneiras enfatiza o movimento, diz, por isso, que Deus, ele próprio imóvel, move todas as coisas. Enquanto que agora o puro pensar sem nada mais abole todo movimento, ou, de modo sem sentido, o introduz na Lógica, para o existente a dificuldade está em dar à existência essa continuidade, sem a qual tudo simplesmente desaparece. Uma continuidade abstrata não é continuidade, e o existir do existente impede essencialmente a continuidade, enquanto que a paixão é a continuidade momentânea que, ao mesmo tempo, retém e é impulso para o movimento. Para um existente, o constituinte do movimento é decisão e repetição. O eterno é a continuidade do movimento, mas uma eternidade abstrata está fora do movimento, e uma eternidade concreta no existente é o máximo da paixão. Ou seja, toda paixão idealizante é antecipação do eterno na existência, para que um existente exista; (Poesia e arte foram chamadas de uma antecipação do eterno. Se alguém quiser chamá-las assim, deve contudo observar que poesia e arte não se relacionam essencialmente com um existente, dado que a contemplação de poesia e de arte, "alegria pelo belo", é desinteressada, e o observador está contemplativamente distante de si mesmo qua existente) a eternidade da abstração se obtém quando se desconsidera a existência; um existente só pode entrar no puro pensar por um começo duvidoso, um equívoco que também se vinga tornando insignificante a existência do existente, e seu modo de falar, algo insano, o que é quase o caso da multidão das pessoas em nosso tempo, quando a gente raramente, ou nunca, ouve alguém falar como se estivesse consciente de ser um ser humano individual existente, mas, ao contrário, panteisticamente desmaia quando também ela fala sobre milhões e sobre estados e sobre o desenvolvimento histórico-universal. [VII 269] Para um existente, entretanto, a antecipação do eterno pela paixão não é, contudo, a continuidade absoluta, mas a possibilidade da aproximação para a única continuidade verdadeira que pode existir para um existente. Com isso se recorda mais uma vez minha tese de que a subjetividade é a verdade, pois a verdade objetiva, para um existente, é como que a eternidade da abstração. A abstração é desinteressada, mas o existir é para um existente o seu mais alto interesse. O existente tem, portanto, sempre um fim, e é sobre esse fim que fala Aristóteles quando diz (De anima, III, 10,2 [433a, 15•16]) que a razão teorética é diferente da razão prática como fim. Mas o puro pensar está totalmente em suspenso e não como a abstração, a qual de fato desconsidera a existência, mas ainda conserva uma relação para com ela, enquanto que o puro pensar, em mística suspensão sem nenhuma relação com um existente, no interior de si mesmo explica tudo, mas não se explica a si mesmo; no interior de si mesmo ele explica tudo, com o que a explicação decisiva referente ao que propriamente se pergunta se torna impossível. Assim, quando um existente pergunta então de que modo o puro pensar se relaciona com um existente, de que modo se comportar para se introduzir nele, o puro pensar não responde nada, mas explica a existência no interior de seu puro pensar e, com isso, embaralha tudo, porque àquilo contra o que o puro pensar tem de encalhar, a existência, num sentido volatilizado, se designa um lugar no interior do puro pensar, com o que fica revogada essencialmente qualquer coisa que teria de ser dita no interior dele sobre a existência. Quando, no puro pensar, fala-se de uma unidade imediata de reflexão-em-si-mesma e reflexão-no-outro, e de que essa unidade imediata é superada, então algo deve realmente intervir entre os momentos da unidade imediata. O que é? Sim, é o tempo. Mas o tempo não admite nenhum lugar indicado a ele no interior do puro pensar. O que, então, hão de significar a superação e a transição e a nova unidade? O que quer dizer, em última análise, pensar de tal maneira, que só parece que se pensou porque tudo o que aí se diz está absolutamente revogado? E o que há de significar não reconhecer que se pensa assim, ao invés de trombetear continuamente a verdade positiva desse puro pensar? Como a existência juntou o pensar e o existir, dado que um existente é um pensante, assim também há dois âmbitos: [VII 270] o da abstração e o da efetividade. Mas o puro pensar é ainda um terceiro medium (lat.: âmbito), um que foi inventado bem recentemente. Ele começa, tal como se diz, depois da mais exaustiva abstração. Da relação que a abstração ainda tem, continuamente, com aquilo de onde abstraiu, o puro pensar (devo dizer: Por piedade ou por irreflexão?), nada sabe. Nesse puro pensar há repouso para toda dúvida; há a eterna verdade positiva e tudo o mais que se deseje dizer. Quer dizer que o puro pensar é um fantasma. E se a filosofia hegeliana está livre de todos os postulados, então conquistou isso graças a um postulado insano: o começar do puro pensar. Para o existente, o existir é o seu mais alto interesse, e o seu estar interessado pelo existir é a efetividade. O que é a efetividade, não se pode exprimir na linguagem da abstração. A realidade efetiva é um inter-esse [lat.: ser - entre] em meio à unidade hipotética, operada pela abstração, de pensar e ser. A abstração lida com a possibilidade e a realidade efetiva, mas sua concepção de realidade efetiva é uma falsa reprodução, pois o âmbito não é a realidade efetiva, mas sim a possibilidade. Só pela superação da realidade efetiva a abstração consegue agarrá-la, mas superá-la é, justamente, transformá-la em possibilidade. Tudo o que se diz sobre a efetividade na linguagem da abstração, no interior da abstração, é dito no interior da possibilidade. Com efeito, na linguagem da realidade efetiva toda abstração se relaciona como uma possibilidade à realidade efetiva, não a uma efetividade no interior da abstração e da possibilidade. A realidade efetiva, a existência, é o momento dialético numa trilogia, cujo começo e cuja conclusão não podem estar aí para um existente, que, qua existente, está no momento dialético. A abstração conclui unificando a trilogia. Totalmente certo. Mas como é que ela o faz? A abstração é alguma coisa qualquer que faz isso, ou isso não seria o ato daquele que abstrai? Mas o abstraidor é, afinal de contas, um existente e, como um existente, está, portanto, no momento dialético, que não pode mediar, nem concluir unificando, e jamais de modo absoluto enquanto estiver existindo. Quando ele então o faz, nesse caso isso tem de se relacionar à existência, na qual ele próprio se encontra, como uma possibilidade à realidade efetiva. Precisa explicar como o consegue, isto é: como é que ele, enquanto um existente, dá conta disso, ou se deixa de ser um existente, e se [VII 271] um existente, tem o direito de fazê-lo. No instante mesmo em que começamos a perguntar assim, estamos perguntando eticamente, e fazendo valer a pretensão do ético junto ao existente, que não pode ser a de ter de abstrair da existência, mas, sim, a de ele dever existir, o que é, também, o mais alto interesse do existente. Como um existente, a última coisa que ele poderia afirmar, absolutamente, seria o estado de superação do momento dialético (da existência); para tanto, exigir-se-ia outro âmbito que não o da existência, a qual é, de fato, justamente o momento dialético. Se um existente chega a saber do estado de superação, pode conhecê-la apenas como uma possibilidade, que não consegue manter-se quando o interesse é posto, motivo pelo qual ele só pode conhecê-lo desinteressado, o que ele qua existente nunca pode ser totalmente, e o que ele, qua existente, não tem nenhum direito, visto eticamente, de querer alcançar approximando, já que, ao contrário, o ético faz com que o interesse pela existência lhe seja infinito, tão infinito que o princípio da contradição adquire validade absoluta. Aqui retoma o que já foi previamente mostrado: a abstração não se envolve, de modo algum, com a dificuldade que é a da existência e do existente. Pensar a realidade no âmbito da possibilidade não é a mesma dificuldade de se dever pensá-la no âmbito da existência, em que a existência, como devir, quer impedir o existente de pensar, como se a realidade efetiva não se deixasse pensar, embora o existente seja, a despeito disso, um pensante. No puro pensar, a gente mergulha até as orelhas na profundidade, e, contudo, mitunter [al.: de vez em quando] temos a impressão de que há alguma distração no todo, porque o puro pensador não tem clareza a respeito do que significa ser um ser humano existente. Todo e qualquer saber sobre a realidade é possibilidade; a única realidade em relação à qual um existente tem mais do que um [mero] saber é sua realidade própria, [o fato de] que ele está aí; e esta realidade efetiva é seu interesse absoluto. A exigência que a abstração lhe faz é que ele se torne desinteressado, para obter algo para saber; a exigência que o ético lhe faz é que ele seja infinitamente interessado no existir. A única realidade que há para um existente é sua própria [realidade] ética; sobre todas as outras realidades ele só possui um saber, mas o verdadeiro saber é um transpor para a possibilidade. A confiabilidade da percepção sensível é uma ilusão. Já o demonstrou de modo suficiente o ceticismo grego, bem como o idealismo moderno. A confiabilidade que o saber a respeito do histórico quer ter é também apenas uma ilusão, ao querer ser a confiabilidade da realidade, já que aquele que sabe não pode saber sobre uma realidade histórica antes de ela ter sido dissolvida na possibilidade. [VII 272] (Mais sobre isso adiante.) A abstração é a possibilidade, seja a antecedente ou a subsequente. O puro pensar é um fantasma. A subjetividade real não é a que [apenas] sabe, pois, com o saber, ela está no terreno da possibilidade, mas sim a subjetividade eticamente existente. Um pensador abstrato decerto está aí, mas o fato de ele existir é antes uma espécie de sátira sobre ele. Demonstrar seu estar aí pelo fato de pensar é uma bizarra contradição, pois, na medida em que ele pensa abstratamente, ele abstrai, bem na mesma medida, de seu estar aí. Até aí, seu estar aí certamente se evidencia como uma pressuposição da qual ele quer se desembaraçar, mas a própria abstração, entretanto, decerto vem a ser uma bizarra demonstração de seu estar aí, já que seu estar aí justamente cessaria se ele tivesse pleno êxito. O cartesiano cogito ergo sum [lat.: penso, logo existo] já foi bastante repetido. Se alguém compreende com o eu no cogito um ser humano individual, então a proposição é das que nada provam: eu estou pensando, ergo eu existo, mas se eu estou pensando, não é de se admirar, então, que eu exista; afinal de contas, isso já estava dito, e o primeiro, então, diz até mais do que o último. Se alguém, então, compreende pelo eu do cogito, um ser humano singular existente, aí a filosofia grita: tolice, tolice, não se trata aqui de meu eu ou teu eu, mas do puro eu. Mas este puro eu não pode, porém, ter outra existência além de uma existência de pensamento; o que quer então que signifique a fórmula conclusiva, ela não conclui, pois, nesses termos, a proposição é uma tautologia. Quando se diz que o pensador abstrato, longe de demonstrar, por seu pensar, que está aí, antes esclarece que sua abstração não será inteiramente bem-sucedida na demonstração do contrário, quando isso é dito, então, querer concluir, inversamente, sobre essas bases, que um existente, que realmente existe, pura e simplesmente não pensa, é um arbitrário mal-entendido. É claro que ele pensa, mas pensa tudo ao contrário em relação a si mesmo, infinitamente interessado no existir. É claro que Sócrates era um pensante, mas ele pôs todo outro saber na esfera da indiferença, acentuando infinitamente o saber ético, que se relaciona com o sujeito existente infinitamente interessado na existência. Concluir do pensar ao ser aí é então uma contradição, pois o pensamento, bem ao contrário, exclui o estar aí do real, e pensa o real superando-o, transpondo-o em possibilidade. (Voltaremos a isso mais à frente.) Em relação a qualquer outra realidade que não seja a do próprio indivíduo, vale que ele só pode saber dela ao pensá-la. [VII 273] Em relação a sua própria realidade, dependeria de seu pensamento conseguir ter pleno êxito no abstrair da realidade efetiva. É o mesmo, de fato, o que quer o pensador abstrato, mas não adianta, ele ainda continua a existir, e essa permanência de sua existência, "essa às vezes triste figura de professor" é um epigrama sobre o pensador abstrato, para nem falar da alegação da ética contra ele. Na Grécia, contudo, prestava-se atenção ao que significa existir. A ataraxia cética era, por isso, uma tentativa existencial de se abstrair do existir. Em nossos dias, a gente abstrai no papel impresso, assim como, no papel impresso, de uma vez por todas, a gente duvida de tudo. Isso, entre outras coisas, deu ensejo a tanta confusão no filosofar moderno, e por isso os filósofos têm tantas afirmações breves sobre tarefas infinitas, e respeitam mutuamente esse dinheiro de papel, embora quase nunca ocorra a alguém experimentar, em existindo, realizar as exigências da tarefa. Desse modo, pode-se facilmente aprontar tudo e ser capaz de começar sem pressuposições. A pressuposição, por exemplo, de duvidar de tudo, requisitaria toda uma vida humana; agora, ao contrário, é feita tão depressa quanto é pronunciada. §2 Possibilidade superior à realidade. Realidade superior à possibilidade. A idealidade poética e intelectual; a idealidade ética. Aristóteles observa em sua Poética que a poesia é superior à história, porque a história só apresenta o que aconteceu, e a poesia, o que poderia e deveria ter acontecido, isto é, a poesia dispõe da possibilidade. Em relação à realidade efetiva, a possibilidade é, poética e intelectualmente, superior; o estético e o intelectual são desinteressados. Mas há apenas um único interesse, o interesse de existir; o desinteresse é a expressão da indiferença perante a realidade efetiva. A indiferença é esquecida no cartesiano cogito - ergo sum, o que desassossega o desinteresse do intelectual e ofende a especulação, [VII 274] como se dela se devesse seguir algo mais. Eu penso, ergo penso eu; se sou eu ou se é isto (no sentido da realidade efetiva, em que eu significa um ser humano singular existente, e isto significa uma determinada coisa singular), é completamente indiferente. Que aquilo que eu penso seja, no sentido do pensamento, não precisa de nenhuma demonstração, nem de ser demonstrado por algum silogismo, pois já está, de fato, demonstrado. Tão logo começo a querer fazer com que meu pensamento seja teleológico em relação a outra coisa, o interesse entra no jogo. Tão logo lá está, o ético se apresenta junto com ele, e me poupa de incômodos ulteriores com a demonstração de minha existência e, por me obrigar a existir, me impede de fazer o voltei o de um silogismo de modo eticamente enganador e metafisicamente obscuro. Enquanto em nosso tempo o ético é cada vez mais ignorado, este ignorar teve também a danosa consequência de ter confundido tanto a poesia quanto a especulação, que abandonaram a desinteressada elevação da possibilidade, a fim de tentar agarrar-se à realidade efetiva - em vez de dar a cada um o que é seu, produziu-se uma dupla confusão. A poesia faz uma tentativa após outra para atuar como realidade efetiva, o que é totalmente não poético; a especulação quer sempre de novo alcançar, em sua esfera, a realidade efetiva, assegura que o pensado é o real, que o pensamento não só é capaz de pensar, mas também de dar efetividade, o que é exatamente o contrário; e, ao mesmo tempo, cada vez mais se esquece o que significa existir. O tempo e os seres humanos se tornam cada vez mais irreais; daí aqueles sucedâneos que deveriam compensar o perdido. O ético é cada vez mais abandonado; a vida do indivíduo singular torna-se não apenas poeticamente, mas histórico-universalmente desassossegada, e, com isso, impedida de existir eticamente; então a realidade efetiva deve ser viabilizada por outros meios. Mas essa realidade efetiva mal-entendida é como se uma geração ou os indivíduos numa geração se tivessem tornado prematuramente velhos e agora fossem obrigados a procurar artificialmente pela juventude. Ao invés de o existir eticamente ser a realidade efetiva, nosso tempo se tornou tão preponderantemente contemplativo que não apenas todos estão assim, mas a própria contemplação acabou falsificada, como se fosse realidade efetiva. A gente sorri da vida nos mosteiros, e, contudo, jamais um eremita viveu de maneira tão irreal como se vive hoje em dia, pois um eremita abstraía, decerto, do mundo todo, mas não abstraía de si mesmo; a gente sabe descrever a situação fantástica de um convento num lugar ermo, na solidão dos bosques, nas lonjuras azuis do horizonte, mas sobre a situação fantástica do puro pensar a gente não pensa. [VII 275] E, contudo, a patética irrealidade do ermitão é preferível, de longe, à cômica irrealidade do pensador puro; e o apaixonado esquecimento do ermitão, que lhe retira o mundo inteiro, é preferível, de longe, à cômica distração do pensador histórico-universal que esquece de si mesmo. Do ponto de vista ético, a realidade efetiva é superior à possibilidade. O ético quer, justamente, anular o desinteresse da possibilidade, ao fazer do existir o interesse infinito. Por isso, o ético quer impedir toda tentativa de confusão, tal como, por exemplo, que se queira observar eticamente o mundo e os seres humanos. Observar eticamente é algo que não se deixa fazer, pois há apenas uma única observação ética - a auto-observação. O ético instantaneamente envolve o indivíduo singular com sua exigência de que este deva existir eticamente; não fanfarroneia sobre milhões e gerações; não toma a humanidade ao azar, tampouco como a polícia prende a humanidade pura. O ético tem a ver com seres humanos individuais e, é bom notar, com cada indivíduo. Se Deus sabe quantos fios de cabelo existem na cabeça de um homem, então o ético sabe quantos seres humanos existem, e o recenseamento ético não se faz no interesse de uma soma total, mas no interesse de cada indivíduo. O ético se exige de cada indivíduo e, quando julga, julga a respeito de cada indivíduo; só um tirano e um homem impotente se satisfazem em dizimar. O ético agarra o indivíduo singular e exige dele que se abstenha de todo observar, especialmente do mundo e dos homens; pois o ético, como o que é interior, não se deixa de jeito nenhum observar por alguém que fique de fora, ele só se deixa realizar pelo sujeito individual, que é então consciente do que reside dentro dele, a única realidade efetiva que não se torna uma possibilidade ao ser conhecida, e que não pode ser conhecida ao ser apenas pensada, já que é sua própria realidade efetiva, que ele conhecia como realidade pensada, isto é, como possibilidade, antes de ela tornar-se realidade efetiva; enquanto que, em relação à realidade efetiva de outro, ele nada sabia antes de tê-la pensado, ao vir a conhecê-la, isto é, ao tê-la transformado em possibilidade. Em relação a toda realidade efetiva fora de mim, vigora que só pensando posso alcançá-la. [VII 276] Se tivesse realmente que alcançá-la, eu teria que ser capaz de me transformar no outro, no agente, de transformar a realidade efetiva alheia a mim em minha própria realidade pessoal, o que é uma impossibilidade. Se transformo a realidade alheia a mim em minha própria realidade, isso não significa que, por estar consciente desta realidade, torno-me o outro, mas significa, antes, uma nova efetividade que pertence a mim como diferente dele. Quando penso em algo que quero fazer, mas ainda não fiz, então isso que é pensado, por mais preciso que seja, por mais que possa ser chamado de uma realidade pensada, é uma possibilidade. De modo inverso, quando penso em algo que outro fez, quando penso, portanto, numa realidade efetiva, então retiro da realidade esta realidade dada e a transponho para uma possibilidade, pois uma realidade pensada é uma possibilidade, e superior à realidade, com referência ao pensamento, mas não com referência à realidade. - Isso também indica que, eticamente, não há qualquer relação direta entre sujeito e sujeito. Quando compreendi outro sujeito, a realidade dele é para mim uma possibilidade, e essa realidade pensada relaciona-se comigo qua possibilidade, tal como meu próprio pensar sobre algo que ainda não fiz se relaciona com o fazê-lo. Frater Taciturnus (Estádios no caminho da vida, p. 341) diz: Aquele que, em relação a uma mesma coisa, não alcança a conclusão tão bem ab posse ad esse [lat.: do poder-ser ao ser], quanto ab esse ad posse [lat.: do ser ao poder-ser], não alcança a idealidade, ou seja, não a compreende, não a pensa (trata-se, com efeito, de compreender uma realidade alheia). Se, com efeito, aquele que pensa, com o dissolvente posse (uma realidade pensada é uma possibilidade) topa com um esse que não pode dissolver, então tem de dizer: isso eu não sou capaz de pensar. Ele suspende, portanto, o pensamento; se ele deve relacionar-se ou, antes, se, apesar de tudo, quer se relacionar com essa realidade efetiva como realidade efetiva, não se relaciona com ela pensando, mas sim paradoxalmente. (Convém que se recorde, a partir do que já foi visto, a definição de fé [no sentido socrático, sensu laxiori (lat.: em sentido mais amplo), [VII 277] não sensu strictissimo (lat.: em sentido mais estrito)]): a incerteza objetiva, porque, de fato, o "posse" dissolvente topou com um "esse" resistente, sustentada numa interioridade apaixonada. Com referência ao estético e ao intelectual, perguntar: se isso ou aquilo é, de fato, real, se isso aconteceu mesmo realmente, é um mal-entendido que não alcança a idealidade estética e intelectual como possibilidade, e esquece que estética e intelectualmente determinar desse modo a relação de nível é o mesmo que admitir a sensação como superior ao pensamento. - Eticamente a questão é correta, quando se pergunta se isso é real, porém, é bom notar, de tal modo que o sujeito individual se pergunte, a si mesmo, eticamente, sobre sua própria realidade efetiva. A realidade ética de outro ser humano, por sua vez, só pode ser concebida por ele pelo pensar, isto é, enquanto possibilidade. A Escritura ensina: "Não julgueis, para não serdes julgados". Isso está expresso como uma exortação e advertência, mas é também uma impossibilidade. Este homem não pode julgar eticamente aquele outro, porque este só pode compreender aquele outro enquanto possibilidade. Quando alguém então se mete a querer julgar outro, isso é a expressão de sua impotência, de que ele apenas julga a si mesmo. Em Estádios no caminho da vida (p. 342), está dito: "Pois é sinal de espírito perguntar sobre duas coisas: 1) O que aí é dito, é possível? 2) Sou capaz de fazê-lo? Mas é falta de espírito perguntar sobre duas coisas: 1) Isso é real? 2) Meu vizinho Christophersen o fez; ele realmente o fez?" Com isso, a questão da efetividade é acentuada eticamente. Estética e intelectualmente, é tolice perguntar-se sobre a realidade disso; eticamente, é tolice perguntar-se sobre sua realidade na perspectivada observação; mas, ao perguntar, eticamente, a respeito, referindo-me à minha própria realidade efetiva, pergunto sobre sua possibilidade, [VII 278] só que esta possibilidade não é estética e intelectualmente desinteressada, mas é uma realidade pensada que se relaciona com a minha própria realidade, a saber, que eu seja capaz de realizá-la. O como da verdade é justamente a verdade. Portanto, é inverdade responder a uma questão num âmbito no qual a questão não pode apresentar-se. Por exemplo, explicar a realidade no interior da possibilidade, no interior da possibilidade distinguir entre possibilidade e realidade. Ao não se perguntar estética e intelectualmente sobre a realidade, mas perguntar apenas eticamente sobre a realidade, e eticamente, por sua vez, referindo-se à sua própria realidade, cada indivíduo é eticamente isolado por si. Ironia e hipocrisia, como antíteses (mas enquanto ambas expressam a contradição de que o exterior não é o interior (hipocrisia aparentando ser boa, ironia aparentando ser má), enfatizam, no que se refere à questão da observação da interioridade ética, que realidade e engano são igualmente possíveis, que o engano pode alcançar tão longe quanto a realidade. Só o próprio indivíduo pode saber qual é qual. Perguntar sobre esta interioridade ética num outro indivíduo já não é ético, visto que isso constitui uma diversão. Mas se a pergunta é feita de qualquer modo, então a dificuldade está em que só posso alcançar a realidade do outro ao pensá-la, ou seja, ao traduzi-la para a possibilidade, onde a possibilidade da ilusão é igualmente pensável. - Eis um proveitoso aprendizado preliminar para existir eticamente: aprender que cada ser humano individual está só. Perguntar estética e intelectualmente sobre a realidade efetiva é um mal-entendido; perguntar eticamente sobre a realidade de outra pessoa é um mal-entendido, dado que só se deve perguntar a respeito da sua própria. Aqui se mostra a diferença entre a fé (sensu strictissimo, que se refere a algo histórico) e o estético, o intelectual, o ético. Infinitamente interessado, perguntar sobre uma realidade que não é a sua própria, é querer crer, e expressa a relação paradoxal para com o paradoxo. Esteticamente, não é possível perguntar desse modo, a não ser na falta de reflexão, dado que, esteticamente, a possibilidade é superior à realidade; nem intelectualmente, dado que, intelectualmente, a possibilidade é superior à realidade; eticamente, de jeito nenhum, porque, eticamente, o indivíduo está só e unicamente interessado de modo infinito em sua própria realidade efetiva. - A analogia entre a fé e o ético consiste no estar infinitamente interessado, [VII 279] pelo qual o crente é absolutamente diferente de um esteta e de um pensador, mas, por outro lado, é diferente de um [sujeito] ético por estar infinitamente interessado pela realidade de outro (p. ex., que o deus tenha efetivamente existido). Estética e intelectualmente vale que uma realidade só é compreendida e pensada quando o seu esse [lat.: ser real] é dissolvido em seu posse [lat.: poder-ser]. Eticamente vale que a possibilidade só é compreendida quando cada posse é realmente um esse; quando o estético e o intelectual examinam, protestam contra todo esse que não seja um posse; quando o ético examina, condena todo posse que não seja um esse, um posse, a saber, no próprio indivíduo, pois o ético não tem a ver com outros indivíduos. - Em nossos dias, tudo se mistura; responde-se ao estético eticamente, à fé intelectualmente etc. Já se aprontou tudo e, contudo, se está longe de atentar em qual esfera cada questão encontra sua resposta. No mundo do espírito isso produz uma confusão ainda maior do que se no mundo civil a resposta a um problema eclesiástico fosse dada pela Comissão de Pavimentação de Ruas. É a realidade efetiva, então, a exterioridade? De jeito nenhum. Estética e intelectualmente, com toda correção se enfatiza que o exterior só é ilusão para aquele que não capta a idealidade. Frater Taciturnus diz (p. 341): "O saber do histórico só ajuda a cair na ilusão a quem está encantado pelo material. O que é que eu sei historicamente? O material. A idealidade eu sei por mim mesmo, e se não a conheço por mim mesmo, então não sei dela de jeito nenhum, e todo saber histórico não adianta nada. A idealidade não é um bem móvel que possa ser transportado de um para outro, ou algo dado de lambuja quando se faz uma compra grande. Se eu sei que César foi grande, então sei o que é grandeza, e é para isso que eu olho, senão, não sei que César foi grande. A narrativa da história, que homens confiáveis nos assegurem que não há nenhum risco envolvido na aceitação dessa opinião, dado que deve ser óbvio que ele era um grande homem, que os resultados o demonstram, tudo isso não adianta nada. Acreditar na idealidade pelas palavras de um outro é como rir de uma piada não por tê-la entendido, [VII 280] mas porque alguém disse que era engraçada. Nesse caso, a piada pode realmente ser omitida para aquele que ri em virtude da crença e do respeito; ele consegue rir com a mesma ênfase". - O que é, então, a realidade efetiva? É a idealidade. Mas estética e intelectualmente, a idealidade é a possibilidade (a recondução ab esse ad posse [lat.: do ser ao poder-ser]). Eticamente a idealidade é a efetividade no próprio indivíduo. A realidade efetiva é a interioridade infinitamente interessada no existir, o que o indivíduo ético é para si mesmo. Quando eu compreendo um pensador, então, exatamente no mesmo grau em que o compreendo, a sua realidade efetiva (que ele existe como um homem individual, que ele próprio efetivamente compreendeu isso de tal modo etc., ou que ele próprio efetivamente o realizou etc.) é completamente indiferente. Neste ponto a Filosofia e a Estética estão corretas, e o importante é justamente afirmá-lo de modo correto. Mas, nesse ponto, ainda não há a justificação do puro pensar como um medium de comunicação. Com efeito, porque a sua realidade efetiva é indiferente para mim (que a estou aprendendo) e, inversamente, a minha para ele, daí não se segue, de jeito nenhum, que ele mesmo ouse ser indiferente para com sua própria realidade efetiva. Sua comunicação tem de estar impregnada dessa, claro que não de modo direto, pois ela não pode ser comunicada diretamente de homem a homem (dado que uma relação desse tipo é a relação paradoxal do crente para com o objeto da fé), e não se deixa entender diretamente, mas tem de ser de modo indireto para se entender de modo indireto. Quando as esferas particulares não são mantidas decisivamente separadas umas das outras, tudo se confunde. Assim, se alguém é curioso no que se relaciona à realidade efetiva de um pensador, e acha interessante saber algo a respeito etc., então é intelectualmente censurável, porque na esfera da intelectualidade o máximo está justamente em que a realidade do pensador seja de todo indiferente. Mas, ao ser assim disparatado na esfera da intelectualidade, obtém-se uma perturbadora semelhança com um crente. Um crente está justamente interessado ao infinito na realidade efetiva de outra pessoa. Essa é o decisivo, para a fé, e este estar interessado não é, nem um pouco, bisbilhotice, mas sim a dependência absoluta do objeto da fé. O objeto da fé é a realidade efetiva de outra pessoa; sua relação é um estar infinitamente interessado. O objeto da fé não é uma doutrina, pois assim a relação seria intelectual, e nesse caso o importante seria não fazer as coisas de qualquer jeito e às pressas, mas sim alcançar o máximo da relação intelectual. [VII 281] O objeto da fé não é um professor que tem uma doutrina, pois, quando um professor tem uma doutrina, então a doutrina é eo ipso mais importante do que o professor, e a relação é intelectual, onde o importante é não fazer as coisas de qualquer jeito, mas sim alcançar o máximo da relação intelectual. Mas o objeto da fé é a realidade efetiva do mestre, que o mestre efetivamente existe. Por isso, a resposta da fé é, em termos absolutos, ou sim ou não. Pois a resposta da fé não se dá em relação a uma doutrina, se ela seria verdadeira ou não; não em relação a um professor, se sua doutrina seria verdadeira ou não; mas é a resposta à questão sobre um fato: Tu admites que ele realmente tenha existido? E convém notar: a resposta é dada com uma paixão infinita. Com efeito, em relação a um ser humano, não faz sentido dar um peso tão infinitamente grande ao fato de ele ter ou não existido. Por isso, se o objeto da fé é um ser humano, toda essa coisa é uma bobagem de um homem tolo que não atingiu nem mesmo o estético e o intelectual. O objeto da fé é, por isso, a realidade efetiva do deus no sentido de existência. Existir significa, porém, em primeiríssimo lugar, ser um indivíduo particular, e é por isso que o pensamento deve abstrair da existência, pois o [fator] individual não se deixa pensar, mas só o [fator] universal. O objeto da fé, então, é a realidade efetiva do deus na existência, isto é, como um indivíduo particular, isto é, que o deus tenha existido como um ser humano individual. O cristianismo não é nenhuma doutrina sobre a unidade do divino com o humano, sobre sujeito-objeto, para nem mencionar as demais transcrições lógicas do cristianismo. Com efeito, se o cristianismo fosse uma doutrina, então a relação para com ele não seria a da fé, pois, para com uma doutrina, só existe relação intelectual. O cristianismo, portanto, não é uma doutrina, mas o fato de que o deus tenha existido. Fé, então, não é uma lição [de casa] para iniciantes na esfera da intelectualidade, um asilo para cabeças fracas. Mas fé é uma esfera por si, e todo mal-entendido sobre o cristianismo pode logo ser reconhecido por transformá-lo numa doutrina e introduzi-lo no âmbito da intelectualidade. O que vale como o máximo na esfera da intelectualidade, manter-se completamente indiferente frente à realidade efetiva do professor, vale exatamente ao contrário na esfera da fé - o máximo dela é o estar quam maxime [lat.: no maior grau possível] infinitamente interessado pela realidade efetiva do mestre. [VII 282] A realidade ética própria do indivíduo é a única realidade. - Que isso surpreenda a muitos não me surpreende. A mim me surpreende que alguém esteja pronto com o sistema e com os sistemas, sem se perguntar a respeito do ético. Oxalá apenas se reintroduzisse o diálogo, em estilo grego, para testar o que a gente sabe e o que a gente não sabe - então logo toda a artificialidade e não naturalidade, toda a ingenuidade exagerada, seriam assopradas para longe. Não sou da opinião, de modo algum, de que Hegel deveria entabular um diálogo com algum criado, e de que algo ficaria provado se ele não fosse compreendido por este, muito embora permaneça sempre como um belo elogio a Sócrates o dito simples de Diógenes de que Sócrates filosofava nas oficinas e na praça do mercado. Não é isso, contudo, o que quero dizer, e minha proposta a última coisa que quer ser é um atentado lazarônico à ciência. Mas que um filósofo hegeliano, ou o próprio Hegel, venha a dialogar com uma pessoa madura, que é dialeticamente experiente por ter existido: já de início, prontamente, tudo o que é afetado ou quimérico será evitado. Quando alguém escreve ou dita sem parar parágrafos de uma obra, num fluxo contínuo, com a promessa de que na conclusão tudo se tornará claro, fica sempre mais difícil descobrir onde reside o início da confusão, e adquirir um ponto de partida firme. Com o auxílio do "Tudo se esclarecerá na conclusão", e provisionalmente com o auxílio da categoria do "Este não é o lugar para ir mais longe nessa questão", da pedra fundamental do sistema, uma categoria frequentemente usada de modo tão ridículo quanto se, sob a rubrica "Erros de impressão", alguém citasse um único deles e então acrescentasse: "Encontram-se, por certo, vários erros no livro, mas aqui não é o lugar para avançar mais nessa questão". - Com o auxílio dessas duas determinações, a gente é sempre feito de bobo, pois uma delas engana definitivamente, a outra provisoriamente. Na situação do diálogo, tudo o que há de fantástico com o puro pensar não causaria simplesmente nenhuma impressão. - Em vez de dar razão ao idealismo - mas, é bom notar, de tal modo que se descartasse toda a questão da realidade efetiva (de um an sich [al.: em si] que se subtrai) em relação ao pensamento, como sendo uma tentação, que, como toda outra tentação, é impossível de anular cedendo-se a ela; em vez de estancar o desvio de Kant, que colocava a realidade efetiva em relação com o pensamento, ao invés de relacionar a realidade efetiva ao ético, Hegel certamente foi mais longe, pois se tornou fantástico [VII 283] e venceu o ceticismo do idealismo com o auxílio do puro pensar, que é uma hipótese e, quando ela não se reconhece como tal, é fantástica; e deste triunfo do puro pensar (que, nele, pensar e ser são o mesmo) tanto dá para rir quanto para chorar, pois no puro pensar não se pode, absolutamente, perguntar efetivamente sobre a diferença. - Que o pensamento tem realidade, isso a filosofia grega assumiu sem mais. Ao refletir sobre aquela, ter-se-ia de chegar ao mesmo resultado, mas por que se confundia a realidade pensada com efetividade? Realidade pensada é possibilidade, e o pensamento tem de rejeitar pura e simplesmente qualquer outra questão sobre ele ser ou não real/efetivo. Já na relação de Hegel com Kant mostra-se o equívoco do "método". Um ceticismo que embarga o próprio pensamento não pode ser detido ao ser pensado até o fim, pois isso deve, afinal, ocorrer graças ao pensamento, que está do lado do rebelde. Ele tem de ser rompido. Contestar Kant permanecendo dentro do fantástico Schattenspiel [al.: jogo de sombras] do puro pensar é, justamente, não contestá-lo. - O único na sich que não se deixa pensar é o existir, com o qual o pensamento não tem pura e simplesmente nada a ver. Mas como deveria ser possível ao puro pensar ser capaz de superar essa dificuldade, dado que, como puro pensar, é abstrato? Mas do que o puro pensar abstrai? Abstrai da existência, ou seja, daquilo que ele deveria explicar. Se o existir não se deixa pensar e, contudo, o existente é pensante, o que isso quer dizer? Quer dizer que ele pensa por momentos; pensa antes e torna a pensar depois. A continuidade absoluta, seu pensamento não consegue alcançar. Apenas de modo fantástico pode um existente estar sempre sub specie aeterni [lat.: sob a forma da eternidade]. Pensar é o mesmo que criar, dar existência? Sei muito bem o que se objetou contra um ataque tolo à tese filosófica da identidade de pensar e ser, e estou pronto a admitir a retidão da objeção. [VII 284] Objetou-se então corretamente que a unidade de pensar e ser não poderia ser compreendida, em relação a existências imperfeitas, de tal modo, como se, por exemplo, ao pensar uma rosa eu pudesse produzi-la. (No mesmo sentido, também se mostrou, com algum menosprezo pelos defensores do princípio da contradição, que este aparece mais fortemente nas existências mais baixas, na relação do entendimento entre finitudes: à frente e atrás, direito e esquerdo, acima e abaixo etc.) Mas então para as existências mais perfeitas, será verdade que pensar e ser são um só? Com relação às ideias, por exemplo? Sim, Hegel está correto; e, no entanto, não avançamos nem mais um passo. O bom, o belo, as ideias, são, em si, tão abstratos que eles são indiferentes frente à existência, e indiferentes frente a tudo o que não seja existência pensada. A razão pela qual a identidade de pensar e ser se mantém aqui verdadeira é porque com [o termo] ser nada de diferente do pensar pode ser compreendido. Mas assim então a resposta é uma resposta a algo sobre o qual, lá onde reside a resposta, não se pode perguntar. E agora, porém, um ser humano individual existente não é decerto uma ideia; por certo sua existência é algo diferente da existência pensada da ideia? Existir (no sentido de ser este ser humano individual) é decerto uma imperfeição, comparado com a vida eterna da ideia, mas uma perfeição em relação a pura e simplesmente não ser. Um estado intermediário desse tipo, mais ou menos, é o existir, algo que convém a um ser intermediário como o é um ser humano. Como se dá, então, a pretensa identidade de pensar e ser em relação à espécie de existência como é a de um ser humano individual existente? Sou eu o bem, porque eu o penso, ou sou bom porque penso no bem? De modo nenhum. Existo porque eu penso nisso? Os próprios defensores da tese filosófica da identidade de pensar e ser disseram que isso não valia em relação a existências imperfeitas; mas o existir como um ser humano individual é isso, então, uma perfeita existência na ideia? E é sobre isso, afinal de contas, que se pergunta. Aqui vale decerto bem o contrário, que porque eu existo e sou pensante, por isso mesmo é que eu penso que existo. Aqui a existência cinde a identidade ideal de pensar e ser; tenho de existir para poder pensar, e tenho de poder pensar (o bem, p. ex.) para existir nisso. O existir como este ser humano individual não é uma existência tão imperfeita como, por exemplo, ser uma rosa. [VII 285] É por isso também que nós, seres humanos, dizemos que, por mais infeliz que alguém seja, existir é, contudo, sempre um bem; e eu me recordo de um melancólico que, uma vez, em meio ao seu sofrimento, quando já desejava a morte, à visão de um cesto de batatas chegou a se perguntar sobre se afinal de contas ele não tinha mais alegria por existir do que uma batata. Mas ser um homem individual não é, de jeito nenhum, uma pura existência na ideia. Deste modo só existe o ser humano puro, isto é, não existe. Existência é sempre o individual; o abstrato não existe. Concluir, a partir daí, que o abstrato não tem realidade é um mal-entendido, mas é também um mal-entendido confundir a discussão perguntando pela existência dele ou pela sua realidade no sentido de existência. Se, então, um existente pergunta pela relação entre o pensar e o ser, entre pensar e existir, e a filosofia explica que essa relação é a de identidade, aí ela não responde a questão, porque não responde ao questionador. A filosofia explica: pensar e ser é uma única coisa, porém não em relação àquilo que simplesmente por estar aí já é o que é, por exemplo, uma rosa, que não tem absolutamente nenhuma ideia em si; portanto, não em relação àquilo em que se vê mais claramente o que significa existir como oposto ao pensar; mas pensar e ser são um só em relação àquilo cuja existência é, essencialmente, indiferente, pois é tão abstrato que só possui existência no pensamento. Mas assim se omite uma resposta ao que propriamente se perguntava: o existir como um ser humano individual. Isso não significa, com efeito, ser no mesmo sentido em que a batata é, mas tampouco no sentido em que a ideia é. A existência humana tem ideia em si, mas, no entanto, não é uma existência na ideia. Platão deu à ideia o segundo lugar como a conexão entre Deus e a matéria, e, como existente, o ser humano deve de fato participar da ideia, mas ele próprio não é a ideia. - Na Grécia, tal como em toda a juventude da filosofia, a dificuldade era conquistar o abstrato, abandonar a existência que continuamente fornece o individual; agora, o difícil é o contrário: alcançar a existência. Com a abstração as coisas são bem fáceis, mas a gente se distancia sempre mais da existência, e o puro pensar é aquilo que está mais distante da existência. - O filosofar era, na Grécia, uma ação; aquele que filosofava era, portanto, um existente, ele conhecia apenas um pouco, mas o conhecia com proveito, porque ocupava-se da mesma coisa da manhã à noite. O que é, hoje em dia, o filosofar, e o que é que um filósofo hoje em dia sabe bem, a rigor? [VII 286] Pois que ele saiba tudo eu não nego. - A tese filosófica da identidade entre pensar e ser é exatamente o oposto do que parece ser; ela é a expressão de que o pensamento abandonou completamente a existência, que ele emigrou e encontrou um sexto continente onde é absolutamente autossuficiente na identidade absoluta entre pensar e ser. Abstratamente o existir torna-se, por fim, num sentido metafísico volatilizado, o mal; abstratamente se torna, num sentido humorístico, um caso muito langweilig [al.: tedioso], uma ridícula perda de tempo. Contudo, aqui ainda há uma possibilidade para o ético de opor resistência, já que o ético acentua o existir, e a abstração e o humor ainda têm alguma relação com o existir. O puro pensar, pelo contrário, recobrou-se de sua vitória e nada, nada tem a ver com a existência. Se acaso o [ato de] pensar pudesse dar realidade efetiva, no significado de efetividade, e não [só] realidade pensada, no significado de possibilidade: então o [ato de] pensar teria de ser capaz de tomar [de volta] o existir, retirar ao existente a única realidade efetiva com a qual este se relaciona como realidade efetiva, a sua própria (com a de outro ele se relaciona, como já foi mostrado, apenas pensando); isto é, ele teria de ser capaz de, no sentido da realidade efetiva, pensar-se excluindo-se, de modo que efetivamente cessasse de existir. Mas eu gostaria de saber se alguém admitirá isso que, por sua vez, revelará tanta superstição no puro pensar quanto a réplica de um maluco, citada por um poeta: de que ele irá descer do Dovrefjeld e explodir o mundo inteiro com um único silogismo. - A gente pode ser distraído, ou pode tornar-se distraído pela frequentação repetida do puro pensar, mas isso não dá completamente certo, ou antes, é um completo insucesso e, com a ajuda da "às vezes triste figura de professor", a gente se torna o que os judeus muito temiam: um provérbio. - Eu posso abstrair de mim mesmo, mas que eu abstraia de mim mesmo significa, afinal de contas, precisamente, que eu ao mesmo tempo estou aí. [VII 287] Deus não pensa, Ele cria; Deus não existe, Ele é eterno. Um ser humano pensa e existe, e a existência separa pensar e ser, mantém-nos apartados um do outro em sucessão. O que é pensamento abstrato? É o pensar onde não há nenhum [sujeito] pensante. Ele abstrai de tudo o que seja diferente do pensar, e só o pensamento está em seu próprio medium. A existência não é desprovida de pensamento, mas na existência o pensamento está num medium estranho. O que significa, então, na linguagem do pensamento abstrato, perguntar sobre a realidade efetiva no significado de existência, dado que a abstração justamente abstrai disso? - O que é o pensamento concreto? É aquele pensar onde há um [sujeito] pensante e um determinado algo (no significado de particular) que está sendo pensado, onde a existência dá ao pensador existente pensamento, tempo e espaço. Se Hegel tivesse publicado sua Lógica sob o título de "O puro pensar", publicado sem nome de autor, sem data, sem prefácio, sem notas, sem autocontradição docente, sem explicação perturbadora sobre o que só poderia se explicar a si mesmo, se a tivesse publicado como um correlato aos sons naturais no Ceilão: os movimentos próprios do puro pensar - isso teria sido um tratamento à grega. Assim um grego a teria realizado, caso lhe tivesse ocorrido a ideia. A arte está na reduplicação do conteúdo na forma, e é especialmente importante abster-se de todas as expressões sobre o mesmo numa forma inadequada. Agora a Lógica, com todas as suas notas, dá uma impressão tão engraçada como se um homem quisesse exibir uma carta celestial, e então até deixasse o papel do mata-borrão junto com ela, o que bem claramente indicaria que a carta vinda do céu tinha se originado na terra. - Numa tal obra, polemizar nas notas contra este ou aquele autor citado nominalmente, comunicar pistas orientadoras, o que isso quer dizer? Quer dizer trair que há um [sujeito] pensante que pensa o puro pensar, um pensante que mistura sua voz com "os movimentos próprios do pensamento" e, por certo, até discursa para outro pensante [VII 288] com o qual, portanto, quer se envolver. Porém, se há um pensante que pensa o puro pensar, então, nesse mesmo momento, toda a dialética grega, mais a polícia de segurança da dialética existencial, apodera-se de sua pessoa e o agarra pela aba do casaco, mas não na qualidade de adepto, e sim para aprender como é que ele consegue relacionar-se com o puro pensar, e no mesmo instante o encantamento desaparece. Que se experimente apenas trazer Sócrates à cena; com a ajuda das Anotações ele prontamente se atraca com Hegel, e, não acostumado a se deixar afastar com a garantia de que tudo se esclarecerá na conclusão, ele, que não permitia discursar continuamente por cinco minutos, para nem mencionar então uma exposição concatenada em dezessete volumes, puxaria os freios com todas as forças - só para implicar com Hegel. O que significa dizer que o ser é superior ao pensar? Se este enunciado é algo que deve ser pensado, então de fato pensar é eo ipso novamente superior a ser. Se isso se deixa pensar, então o pensamento é superior; se não se deixa pensar, então nenhum sistema da existência é possível. Não adianta absolutamente nada ser cortês nem ser grosseiro com o ser, nem deixar que ele seja algo superior - o que, porém, se segue do pensamento e se alcança silogisticamente -, nem algo de tão humilde que siga ao pensamento sem mais nada. Quando, assim, foi dito: Deus tem de possuir todas as perfeições, ou a mais alta Essência tem de possuir todas as perfeições; ser é também uma perfeição; ergo, a mais alta das essências tem de ser, ou Deus tem de ser: deste modo o movimento todo é ilusório. (Hegel, contudo, não fala assim; graças à identidade de pensar e ser ele está elevado acima de uma maneira mais infantil de filosofar, algo que ele mesmo relembra, p. ex., em relação ao próprio Cartesius). Ou seja, se acaso na primeira parte desse discurso Deus não for realmente pensado como ente, então o discurso não poderá realizar-se. Soará então mais ou menos assim: Uma essência suprema que, convém notar, não existe, tem de possuir todas as perfeições, e entre elas também aquela de ser aí; ergo, é uma essência suprema, que não está aí, o que aí está. Essa seria uma estranha conclusão. [VII 289] A Essência suprema precisa não estar aí no início do discurso, para advir na conclusão, e desta maneira não poderá advir; ou ela já estaria ali, e, assim, de fato, não poderia advir, de modo que a conclusão seria uma forma enganadora de desenvolver um predicado, uma paráfrase enganadora de uma pressuposição. No outro caso, a conclusão tem de ser sustentada de modo puramente hipotético: caso se assuma haver uma Essência suprema, há que se assumir também que possua todas as perfeições; ser é uma perfeição, ergo, esta Essência tem de ser - ou seja, caso se assuma que esta [já] seja. Ao concluir no interior de uma hipótese, não se pode por certo jamais concluir saindo da hipótese. Por exemplo, se acaso este ou aquele é um hipócrita, comportar-se-á como um hipócrita, um hipócrita fará isso e aquilo; ergo, esta ou aquela pessoa fez isso e aquilo. O mesmo se dá com a conclusão a respeito de Deus. Quando a conclusão estiver pronta, o ser de Deus será tão hipotético quanto o era, mas em seu interior haverá uma avançada relação de conclusão entre uma Essência suprema e ser como perfeição, do mesmo modo como, no outro caso, entre ser hipócrita e uma de suas expressões particulares. A confusão é a mesma de quando se explica a realidade efetiva no puro pensar. A seção [o parágrafo] intitula-se Realidade efetiva; explicou-se a realidade efetiva, mas esqueceu-se de que tudo se passa no interior da possibilidade do puro pensar. Se acaso um homem abrisse um parêntese, mas esse se tornasse tão longo que ele próprio o esquecesse, de nada adiantaria: tão logo se leia em voz alta, não terá sentido, sem mais nem menos, fazer da oração parentética a oração principal. Quando o pensamento se volve para si mesmo a fim de pensar sobre si mesmo, aí aparece, como se sabe, um ceticismo. Como se detém esse ceticismo, que tem sua razão de ser no fato de que o pensamento quer egoisticamente pensar-se a si mesmo, em vez de, servindo, pensar alguma coisa? Quando um cavalo dispara a todo galope até lhe doerem as patas, poder-se-ia aceitar (abstraindo do dano que poderia ocorrer nesse meio-tempo) que alguém dissesse: É só deixá-lo correr; por certo se cansará. Com referência à autorreflexão do pensamento, isso não pode ser dito, pois ele poderia continuar o quanto fosse preciso, e ficar dando voltas. [VII 290] Schelling deteve a autorreflexão e compreendeu a intuição intelectual não como uma descoberta no interior da autorreflexão, à qual se chegaria andando para frente, mas sim como um novo ponto de partida. Hegel vê isso como um erro e fala sobre a intuição intelectual bastante absprechend [al.: de modo depreciativo] - e aí então vem o método. A autorreflexão continua por tanto tempo até que se anula a si mesma; o pensamento acaba por se impor triunfante e ganha, outra vez, real idade; a identidade de pensar e ser é conquistada no puro pensar. (Que no fundo de todo ceticismo reside uma certeza abstrata que serve como base de apoio da dúvida, e como que de uma linha pontilhada sobre a qual se desenha a figura, e que mesmo a mais esforçada tentativa do ceticismo grego no sentido de arredondar a oscilação do ceticismo nada consegue, ao acentuar que o enunciado sobre a dúvida não pode ser entendido como uma tese, tudo isso é bem certo, mas daí ainda não segue que a dúvida se supere a si mesma. Aquela certeza básica que sustenta a dúvida não pode, em momento algum, hipostasiar-se, enquanto eu duvido, pois a dúvida a abandona continuamente a fim de duvidar. Se quero continuar duvidando, nunca, em toda a eternidade, avançarei nem um pouco, porque duvidar consiste em e se viabiliza por justamente fazer aquela certeza passar por uma coisa que não é. Se eu devo por um só instante afirmar a certeza como certeza, então eu tenho de, nesse instante, parar de duvidar. Mas então não é a dúvida que se anula; sou eu que paro de duvidar. Portanto, um duvidador medíocre muito provavelmente terá sucesso em obter certeza, e assim também um duvidador que apenas aproxima categorias para ver como combinam melhor, sem nem de longe se preocupar em fazer algo com elas. - Não posso deixar de retornar a este ponto, porque ele é tão decisivo; se for o caso de a dúvida superar a si mesma, e, ao duvidar de tudo, alguém nesta própria dúvida obter a verdade, sem uma ruptura e um ponto de partida absolutamente novo, então nem uma única determinação cristã se manterá firme, e assim o cristianismo estará abolido). O que significa dizer que a autorreflexão continua por tanto tempo até anular-se a si mesma? Para que se descubra o equívoco da autorreflexão, esta não tem que continuar por muito tempo, mas, por outro lado, enquanto continua, é plenamente o mesmo equívoco. O que significa dizer "por tanto tempo até quê"? Nada mais do que uma conversa aliciadora que almeja aliciar a imaginação do leitor com a quantificação, como se fosse melhor de entender que a autorreflexão anularia a si mesma caso passasse bastante tempo até isso acontecer. [VII 291] Esta quantificação é uma contraparte aos ângulos infinitamente pequenos dos astrônomos, que por fim se tornam tão pequenos (os ângulos) que podem ser chamados de linhas paralelas. A narrativa de que a autorreflexão continua "por tanto tempo até quê" desvia a atenção daquilo que é, dialeticamente, a questão principal: como é que a autorreflexão se suspende. Quando se diz que alguém continuou a contar uma mentira, de brincadeira, por tanto tempo até que ele próprio acreditou que fosse verdade: então o accent [fr.: acento] ético recai sobre a transição, mas o atenuante, o divertido, está nesse "por tanto tempo"; a gente quase se esquece do caráter decisivo da transição porque ela perdura por muito tempo. Na narrativa, na descrição, no discurso retórico, o abstrato "por tanto tempo até que" produz um forte efeito ilusório, como uma ilusão de óptica (p. ex., Jd 10,10: "E Judith saiu, ela e sua serva com ela, mas os homens da cidade a observavam até que ela descesse a encosta e até que atravessasse o vale e eles não pudessem mais vê-la"; a moça sentou-se à beira-mar e seguiu seu amado com seus olhos até não mais poder vê-lo) - ou como o fantástico desaparecimento do tempo pelo fato de não haver nenhum critério, nada que seja comensurável com o abstrato "até que". (Então, o desejo venceu, e ele se extraviou do caminho da verdade - até que a amargura do arrependimento o deteve; - há que ter grande maestria em descrição psicológica para produzir, pela concretização, um efeito tão forte quanto o desse abstrato "até", que atrai a fantasia.) Mas, dialeticamente, esta distância fantástica é completamente sem significação. Quando uma vez se perguntou a um filósofo grego o que era a religião, ele pediu um adiamento. Quando o primeiro prazo se encerrou, ele pediu outra vez que fosse estendido, e assim por diante; queria dar a entender, com isso, que a questão não podia ser respondida adequadamente. Isso era grego e belo e engenhoso. Se, ao contrário, ele, considerando que durara bastante, tivesse achado, que agora, por menos que fosse, estava mais próximo da resposta: isso teria sido de fato um mal-entendido, do mesmo modo como no caso de um devedor, que continua "em dívida por tanto tempo até que" esta seja quitada - quitada por ter-se passado tanto tempo sem ela ser quitada. O abstrato "por tanto tempo - até quê" possui algo de estranhamente aliciante em si. [VII 292] Se alguém dissesse: A autorreflexão anula a si mesma, e depois procurasse mostrar de que modo, dificilmente alguém o compreenderia. Mas se alguém diz: A autorreflexão perdura por tanto tempo até que anula a si mesma - então talvez a gente pense: Bem, isso é outra questão; há alguma coisa aí; aí a gente se torna ansioso e medroso dessa duração; a gente perde a paciência, a gente pensa: Deixa passar - e então inicia o puro pensar. O puro pensar pode, nesse sentido, ter razão em não iniciar bittweise [al.: como um suplicante, pedindo licença], como os filósofos medíocres mais antigos, pois o leitor dá graças a Deus que ele inicie, por medo da terrível duração do "até quê". O ceticismo da autorreflexão é anulado, então, pelo método, e o progresso do método é assegurado de um duplo modo. Antes de tudo, com a palavra mágica dos contos de fada: "por tanto tempo - até quê". Cada vez que uma transição precisa ser feita, o oposto permanece por tanto tempo até que se revire em seu oposto - e aí se vai adiante. Oh, Senhor Deus, somos todos homens fracos e gostamos muito da mudança, como diz o ditado; então, se não pode ser de outro jeito, se o oposto perdura por tanto tempo até que se transforme em seu oposto, perdura para sempre, o que seria extremamente monótono: Bom, deixa passar, então se aceita. Assim o método progride - por necessidade. Mas se se encontra uma cabeça dura, um homem extremamente aborrecido, que se atreva a objetar: "De fato, é como se o método fosse um ser humano a quem a gente deve ceder, por amor de quem se deve fazer alguma coisa, de modo que não se especula methodice [lat.: metodicamente] pelo amor da verdade, especula-se, isto sim, pelo amor do método, que por certo deve ser assumido como um bem tão extraordinariamente grandioso que não se pode ser escrupuloso demais - contanto que se ganhe o método e o sistema" - se se encontra um obstinado como esse, então, ai dele. O que ele representa é a má infinitude. Mas o método se entende tanto como bem quanto como mal, e no que toca à má infinitude o método não admite brincadeiras. Aquele obstinado vem a ser apontado como um imbecil, provavelmente por tanto tempo - até quê. Ora, Senhor Deus, somos todos fracos, seres humanos mortais, e todos gostaríamos de ser vistos como racionais por nossos estimados contemporâneos; então, se não pode ser de outro jeito, deixa passar. Assim o método progride - com necessidade. "O que diz ele - não é por necessidade?" "Oh, grande deus chinês, [VII 293] não digo mais outra coisa; é por necessidade, e quero jurar sobre isso; se não pode ser de outro modo, então há de ser por necessidade." - A má infinitude é a inimiga hereditária do método; é o duende que se muda junto cada vez que ocorre uma mudança (uma transição) e evita a transição. A má infinitude é infinitamente tenaz; se deve ser superada, precisa haver uma ruptura, um salto qualitativo, e assim se acaba com o método, com a destreza da imanência, e com a necessidade da transição. Daí se deixa explicar por que o método é tão rigoroso, e daí se deixa explicar, por outro lado, por que as pessoas têm tanto medo de representar a má infinitude quanto de ficar com o mico-preto. Se o sistema, de resto, carece de uma Ética, ele é, por outro lado, totalmente moral[ista] graças à categoria da má infinitude, e tão exageradamente moral[ista] que a emprega até mesmo na Lógica. Se o pensado fosse realidade efetiva, então aquilo que fosse pensado com a elaboração mais perfeita possível, quando eu ainda não tivesse agido, já seria a ação. Deste modo, não haveria absolutamente nenhuma ação, mas o [elemento] intelectual engoliria o ético. Que eu deva ser da opinião de que é o exterior o que faz da ação, a ação, é uma tolice; e, por outro lado, querer mostrar o quão ética é a intelectualidade, que esta até transforma pensamento em ação, é um sofisma culpado de uma duplicidade no uso da palavra: "pensar". Se é que deve haver uma diferença entre pensar e agir, então ela só pode ser sustentada em se atribuindo ao pensamento a possibilidade, o desinteresse, a objetividade - e à ação a subjetividade. Mas agora mostra-se facilmente um confinium [lat.: fronteira, limite]. Quando assim eu penso que hei de fazer isto ou aquilo, este pensamento por certo ainda não é uma ação e é qualitativamente diferente disso por toda a eternidade, mas ele é, contudo, uma possibilidade na qual já se reflete o interesse da realidade efetiva e da ação. Por isso, desinteresse e objetividade estão a ponto de ser perturbados, porque a efetividade e a responsabilidade querem apoderar-se deles. (Dá-se assim um pecado no pensamento.) - A realidade efetiva não é a ação exterior, mas sim uma interioridade na qual o indivíduo suspende a possibilidade e se identifica com o que é pensado, a fim de existir nele. Isso é ação. A intelectualidade parece tão rigorosa com o transformar o próprio pensamento em ação, mas esse rigorismo é alarme falso, pois que seja permitido à intelectualidade suspender, de qualquer modo que seja, a ação, constitui um relaxamento. Vale então, como nas analogias citadas antes, que: ser rigoroso no interior de um total relaxamento [VII 294] é apenas uma ilusão e, essencialmente, apenas um relaxamento. Se alguém, por exemplo, quisesse chamar o pecado de ignorância, e interpretar, então, no interior desta determinação, rigorosamente pecados específicos, isso seria totalmente ilusório, pois toda determinação expressa no interior da definição total de que pecado é ignorância torna-se essencialmente frívola, pois a totalidade da definição é frivolidade. - No que se refere ao mal, a confusão entre pensar e agir engana mais facilmente; mas, quando se olha mais de perto, mostra-se que a razão disso é o zelo do bem por si mesmo, que se exige do indivíduo num tal grau que chega até a definir um pensamento sobre o mal como [sendo já] pecado. Mas tomemos o bem. Ter pensado em alguma coisa boa que se pretende fazer é tê-la feito? De jeito nenhum, mas também não é o exterior o que determina o resultado; pois alguém que não possui um tostão pode ser tão compassivo quanto o que doa um reino. Quando o levita passou ao largo do infeliz que fora assaltado por ladrões na estrada de Jericó a Jerusalém, talvez lhe ocorresse, quando ainda estava um pouco distante do infeliz, que seria de fato belo ajudar um sofredor; ele talvez até já tivesse pensado qual recompensa tal boa ação traz em si mesma; ele talvez cavalgasse mais lento por estar imerso em pensamentos; mas à medida que ia chegando mais perto, as dificuldades se mostraram, e ele passou ao largo. Agora ele decerto cavalgava ligeiro para ir embora depressa, para longe do pensamento da insegurança da estrada, para longe do pensamento da possível proximidade dos bandidos, e para longe do pensamento de quão facilmente o infeliz poderia confundi-lo com os bandidos que o largaram ali deitado. Ele, portanto, não agiu. Mas suponhamos que ao longo do caminho o arrependimento o trouxesse de volta; suponhamos que ele apressadamente fizesse a volta, sem temer nem ladrões nem outras dificuldades, temendo apenas chegar tarde demais. Suponhamos que de fato chegasse tarde demais, dado que o bom samaritano já teria levado o sofredor para a hospedaria: ele, então, não agiu? Decerto que sim, e, contudo, ele não agiu no exterior. - Tomemos uma ação religiosa. Ter fé em Deus - isso significa pensar no quão glorioso deve ser ter fé, pensar na paz e na segurança que a fé pode proporcionar? De jeito nenhum. Até mesmo desejar, onde afinal o interesse, o interesse do sujeito, é muito mais evidente, ainda não é ter fé, não é agir. A relação do indivíduo [VII 295] para com a ação pensada continua sempre apenas uma possibilidade da qual ele pode esquivar-se. - Não se nega que, em relação ao mal, haja casos em que a transição é quase imperceptível, mas esses casos precisam ser explicados de um modo especial. Isso se deve ao fato de que o indivíduo está de tal modo em poder do hábito que, por ter feito frequentemente a transição do pensamento à ação, finalmente perdeu o poder para isso na escravidão do hábito, que, por sua conta, a torna cada vez mais rápida. Entre a ação pensada e a ação real, entre possibilidade e realidade efetiva, não há, talvez, nenhuma diferença em termos de conteúdo; a diferença na forma é sempre essencial. A realidade efetiva é o estar interessado em existir nela. Não se nega que a realidade efetiva da ação é muito frequentemente confundida com toda sorte de representações, intenções, impulsos para resoluções, prelúdios de disposições de ânimo etc., que em geral muito raramente se age; ao contrário, admite-se que isso tem contribuído grandemente para a confusão. Mas tomemos uma ação sensu eminenti [lat.: em sentido eminente]; e então tudo se mostrará claramente. O exterior na ação de Lutero era apresentar-se na Dieta de Worms, mas desde o momento em que ele, com toda a decisão apaixonada da subjetividade, existiu no querer, quando toda relação de possibilidade para com sua ação tinha que ser considerada por ele como tentação: aí ele [já] agiu. (Em geral, a relação entre a ação pensada e a ação efetiva (em sentido interior) é reconhecível pelo fato de que qualquer ulterior consideração ou ponderação em relação à primeira tem de ser considerada como bem-vinda, e em relação à última é de se considerar como tentação; e se, não obstante, essa parece ser tão importante que é respeitada, significa que seu caminho passa pelo arrependimento. Quando estou ponderando, a arte consiste justamente em pensar em todas as possibilidades; no momento em que agi (em sentido interior), a transformação está em que a tarefa consiste em me defender contra ponderações ulteriores, a não ser à medida que o arrependimento exija que algo seja refeito. A decisão no exterior é brincadeira, mas, quanto mais indolentemente vive uma pessoa, mais exterior se torna a única decisão que ela conhece. Uma noção da decisão eterna do indivíduo no interior de si mesmo não se tem, mas a gente acredita que, quando uma decisão é inscrita num papel carimbado, aí sim está decidido, antes não). Consta que Díon [de Siracusa], quando embarcou para derrubar o tirano Dionísio, teria dito que, mesmo se morresse a caminho, teria, mesmo assim, realizado um feito magnífico: já teria, portanto, agido. Supor que a decisão no exterior fosse superior à decisão no interior é o desprezível discurso de homens fracos, covardes e ardilosos sobre o que é mais alto. [VII 296] Assumir que a decisão no exterior possa decidir algo por toda a eternidade, de modo que nunca possa ser refeita, mas não a decisão no interior, é desprezo ao sagrado. Dar ao pensamento a supremacia sobre tudo o mais é gnosticismo; fazer da realidade ética do sujeito a única realidade efetiva poderia parecer acosmismo. Que assim pareça, então, a um pensador atarefado, que tem a obrigação de explicar tudo, uma cabeça ligeira que sobrevoa o mundo inteiro, demonstra apenas que tinha uma noção muito pobre do que significa o ético para o sujeito. Se o ético tomasse de tal pensador sobrecarregado o mundo inteiro e lhe deixasse guardar seu próprio si mesmo, ele provavelmente pensaria: "Isso é alguma coisa? Não vale a pena manter uma coisa tão insignificante; então que se vá, junto com todo o resto"; - então, então, isso é acosmismo. Mas por que um pensador atarefado como esse fala e pensa sobre si mesmo de modo tão desdenhoso? De fato, se a intenção era ter de renunciar ao mundo inteiro e satisfazer-se com a realidade ética de uma outra pessoa, bem, então ele teria razão de desprezar o butim. Mas, para o indivíduo, sua própria realidade ética deve significar, eticamente, mais do que o céu e a terra e todas as coisas que aí se encontram, mais do que os 6.000 anos da história do mundo, e do que a astrologia, a ciência veterinária junto com tudo o que o tempo exige, o que, estética e intelectualmente, é uma enorme estreiteza da mente. Se não for assim, tanto pior para o próprio indivíduo; pois então ele não terá absolutamente nada, absolutamente nenhuma realidade efetiva; pois, para tudo o mais, ele tem, no máximo, apenas uma relação de possibilidade. A transição da possibilidade à realidade efetiva é, como ensina corretamente Aristóteles, um movimento. Isso não pode, absolutamente, ser dito na linguagem da abstração, ou ali compreendido, dado que a abstração não pode dar ao movimento nem tempo nem espaço, que o pressupõem ou são pressupostos pelo movimento. Há uma parada, um salto. Se alguém disser que isto se dá porque estou pensando em algo determinado e não abstraindo, dado que, nesse caso, eu perceberia que não há nenhuma ruptura, então minha resposta repetida seria: Bem correto; pensado abstratamente, não há ruptura, mas também não há nenhuma transição, [VII 297] pois, visto abstratamente, tudo é. Quando, ao contrário, a existência dá movimento ao tempo e eu o copio, então o salto se mostra ali exatamente tal como um salto pode mostrar-se: ele há de vir ou já foi. Tomemos um exemplo do ético. Já se disse, com bastante frequência, que o bem tem sua recompensa em si mesmo e que, então, querer o bem não é apenas a coisa mais certa, é também a mais prudente. Um eudemonista prudente é capaz de percebê-lo muito bem; pensando na forma da possibilidade, pode aproximar-se do bem tanto quanto possível, porque na possibilidade, como na abstração, a transição é apenas uma ilusão. Mas quando a transição deve tornar-se real, toda a prudência vai expirar na tentação. O tempo real lhe separa o bem e a recompensa, o tempo lhe parece sertão eterno que a prudência não consegue reuni-los novamente, e o eudemonista agradece. Querer o bem é certamente a coisa mais prudente - mas não do modo como o entende a prudência, e sim do modo como o entende o bem. A transição é bastante clara como uma ruptura; sim, como um sofrimento. - Na pregação aparece frequentemente a ilusão dos sentidos que, eudemonisticamente, transforma a transição do tornar-se cristão numa aparência, com o que o ouvinte é enganado e a transição é impedida. A subjetividade é a verdade; a subjetividade é a realidade efetiva. Nota: Necessidade tem de ser tratada separadamente. Só para grande confusão, a moderna especulação ajuntou necessidade com a concepção da história do mundo, com o que tanto possibilidade quanto realidade efetiva e necessidade ficaram confusas. Nas Migalhas filosóficas tentei, em poucas palavras, chamar a atenção para isso. §3 A simultaneidade dos momentos particulares da subjetividade na subjetividade existente; a simultaneidade enquanto oposição ao processo especulativo. Ora, digamos que a especulação tenha direito de zombar de tal tricotomia como essa, de que o ser humano consiste de alma, corpo e espírito; [VII 298] digamos que o mérito da especulação esteja em definir o ser humano como espírito e, dentro deste, explicar os momentos alma, consciência e espírito como passos do desenvolvimento no mesmo sujeito (Qual é este mesmo sujeito? Decerto não é um homem individual existente, mas sim a definição abstrata do homem em si [rene: puro]. A ciência não pode ter a ver com nada mais, e tem pleno direito de tratar deste, mas aqui, também, bastante seguido se joga com palavras. Tem sido dito, sempre de novo, que o pensamento se torna concreto. Mas de que modo se torna concreto? E claro que não no sentido em que se fala de algo determinado existente? Portanto, no interior da determinação de "abstrato", o pensamento se torna concreto, i. é, continua a ser essencialmente abstrato; pois a concreção consiste no existir, e existir corresponde ao particular [det Enkelte], do qual o pensamento abstrai. Pode ser inteiramente correto a um pensador, qua [lat.: enquanto] pensador, pensar o homem puro, mas, qua indivíduo existente, o ético [det Ethiske] lhe proíbe de esquecer a si mesmo, esquecer que é um ser humano existente. Bem longe de se rejubilar por mais um novo pensador, o ético o responsabiliza [gjor ham ansvarlig] eticamente por dizer se é legítimo [forsvarligt] usar a existência para este propósito, no mesmo sentido em que o ético - sem se deixar ofuscar por aquilo que dá na vista - responsabiliza qualquer outro pelo uso que faz da vida), que se desenvolve diante de nós: outra questão é saber se uma transferência pura e simples do científico à existência (o que pode acontecer muito facilmente) não produz uma grande confusão. Cientificamente, sobe-se do mais baixo ao mais alto, e o [exercício do] pensar se torna o mais alto. Na concepção da história do mundo, sobe-se do mais baixo para o mais alto; os estádios da fantasia e do sentimento são ultrapassados, e o [estádio] do pensamento, como o mais alto, é o último. Por toda parte se reconhece como estabelecido que o pensamento é o mais alto; a ciência cada vez mais se distancia de uma impressão primitiva da existência; não há nada a vivenciar, nada a experimentar, tudo está pronto, e a tarefa da especulação é rubricar, classificar e ordenar methodice as diferentes determinações do pensamento. A gente não ama, não crê, não age; mas a gente sabe o que é o amor, o que é a fé, e a questão se reduz à do lugar de cada uma no sistema: do mesmo modo, o jogador de dominó também tem as peças ali espalhadas, e o jogo consiste em colocá-las juntas. Por 6.000 anos a gente tem amado, e os poetas têm celebrado o amor, de modo que no século XIX a gente por certo já deve saber facilmente o que é o amor, e agora a gente tem a tarefa de assinalar a ele, especialmente ao casamento, um lugar no sistema - pois o próprio professor se casa distraído. Políticos chamaram a atenção ao fato de que, por fim, todas as guerras terminarão, e tudo será decidido nos gabinetes dos diplomatas que se sentam e apontam as forças de combate, e assim por diante - tomara que na vida não ocorra algo parecido, [VII 299] que se pare de viver, enquanto professores e livres-docentes decidem especulativamente a relação dos diferentes momentos para com o puro ser humano. A mim parece que, tal como até nos horrores das guerras mais sangrentas, há algo de humano em comparação com essa calma diplomática, assim também há algo de arrepiante, algo enfeitiçado na extinção pela qual a vida real se torna uma existência de sombras. Do ponto de vista da ciência, pode muito bem parecer certo que o pensamento seja o mais alto; assim como, do ponto de vista histórico-universal, pode parecer certo que estádios mais antigos sejam ultrapassados, mas será que, em nossos dias, nasce uma geração de indivíduos que não possuem nem fantasia nem sentimento - será que a gente nasce para começar com o § 14 do sistema? Sobretudo, não vamos confundir o desenvolvimento histórico-universal do espírito humano com os indivíduos particulares. No mundo animal, cada animal se relaciona diretamente, como exemplar, à espécie, participa, sem mais, do desenvolvimento da espécie, se se quer falar de tal coisa. Quando uma raça de carneiros, por exemplo, é aperfeiçoada, nascem carneiros aperfeiçoados, porque o exemplar expressa meramente a espécie. Mas claro que é diferente quando um indivíduo, que é determinado como espírito, se relaciona com a geração. Ou será que se admite que de pais cristãos, sem mais nem menos, nascem crianças cristãs? O cristianismo, pelo menos, não o admite; ao contrário, assume que de pais cristãos, tanto como no paganismo, nascem crianças pecadoras. Ou alguém assumirá que, ao nascer de pais cristãos, alguém está, um passo que seja, mais próximo do cristianismo do que alguém nascido de pais pagãos, caso, note bem, também este seja educado no cristianismo? E, contudo, é dessa confusão que a moderna especulação é, senão diretamente a causa, de qualquer modo, com bastante frequência, a ocasião, de modo que o indivíduo seja considerado como relacionado sem mais ao desenvolvimento do espírito humano (tal como o exemplar animal é relacionado à espécie), como se o desenvolvimento do espírito fosse algo de que uma geração pudesse dispor em testamento, em favor de outra, como se não os indivíduos, mas a geração, fosse determinada como espírito, o que é tanto uma autocontradição quanto uma abominação ética. Desenvolvimento do espírito é uma autoatividade; o indivíduo espiritualmente desenvolvido leva consigo na morte seu desenvolvimento espiritual; se um indivíduo subsequente deve alcançá-lo, isto deve acontecer por sua autoatividade; por isso, ele não pode deixar passar nada. Ora, dá para entender, é mais fácil e mais simples e wohlfeilere [al.: mais barato] berrar que a gente nasceu no especulativo século XIX. Se o indivíduo se relacionasse, sem mais, diretamente ao desenvolvimento do espírito humano, daí se seguiria que, em cada geração, [VII 300] nasceriam apenas exemplares defeituosos de seres humanos. Mas por certo há uma diferença entre uma geração de seres humanos e um cardume de arenques, embora hoje em dia tenha se tornado de muito bom-tom querer entreter-se com o jogo de cores do cardume e menosprezar os indivíduos, que não têm mais valor do que arenques. Cientificamente e histórico-universalmente, pode-se talvez ser indiferente a uma tal objeção, mas a ética por certo deveria ter voz e voto em qualquer visão da vida. Mas a ética, como já se disse, foi realmente empurrada para fora do sistema e, no máximo, foi substituída por um sucedâneo que confunde o histórico-universal com o individual, e as perturbadoras demandas apresentadas aos berros pela nossa época ele confunde com as exigências eternas da consciência feitas ao indivíduo. A ética se concentra no indivíduo e, entendido eticamente, é tarefa de cada indivíduo tornar-se um ser humano integral, assim como é pressuposição da ética que cada um nasceu em condições de se tornar tal. Se ninguém o alcança é irrelevante; o principal é que a exigência esteja aí; e embora muitos indivíduos covardes, medíocres e ofuscados se agrupem para se abandonarem, a fim de se tornarem algo em masse [fr.: em massa, de modo gregário] com a ajuda da geração: a ética não regateia. Cientificamente pode de fato ser bem correto - e talvez tão magistralmente que estou longe de me colocar como alguém que julga - pode ser bem correto subir, de modo dialético-abstrato, em determinações psicológicas, do psicossomático ao psíquico, ao pneumático - mas esse resultado científico não pode, contudo, perturbar a existência. Na existência, a determinação abstrata científica de ser homem é algo que é talvez superior à de ser um homem individual existente, mas talvez seja também inferior; porém, em todo caso, na existência, só há seres humanos individuais. No sentido da existência, portanto, não se trata de ir reunindo as diferenças na direção do pensar, pois o método progressivo não corresponde ao existir qua ser humano. Na existência, o importante é que todos os elementos estejam presentes de uma só vez. No que tange à existência, o pensamento não é, de modo algum, superior à imaginação e ao sentimento, mas sim coordenado. Na existência, a supremacia do pensamento provoca confusão. Quando, por exemplo, alguém diz: a expectativa de uma felicidade eterna no além é uma concepção baseada na reflexão finita do entendimento, uma representação que não se sustenta para o pensamento - ergo, a gente bem pode falar disso numa palestra popular para pessoas simples que jamais [VII 301] ultrapassaram a esfera da representação, mas para a pessoa pensante esta distinção está abolida - então, deve-se responder: "Tudo bem, para o pensamento, o pensar abstrato, ela não consegue sustentar-se; mas então, por sua vez, o pensar abstrato não consegue sustentar-se contra a existência; tão logo eu deva realmente existir, a distinção estará lá, e a consequência existencial da abolição da distinção, como foi mostrado acima, é o suicídio". - Diz-se que o caráter absoluto do princípio da contradição é uma ilusão que desaparece ante o pensamento. Correto, mas então a abstração do pensamento é, por sua vez, um fantasma que desaparece diante da realidade da existência; pois a abolição do princípio da contradição, se há de ser alguma coisa e não um achado literário na imaginação de um ser de ficção, significa, para um existente, que ele próprio deixou de existir. - A fé, diz-se, é o imediato (Que este modo de falar seja dos que mais produzem confusão na moderna especulação, os autores pseudônimos frequentemente apontaram. Se se quer falar de uma imediatidade que é abolida, esta há de ser então uma imediatidade estético-ética, e a própria fé há de ser a nova imediatidade que na existência nunca se deixa abolir, já que ela é o mais alto e, ao aboli-la, a gente se anula, vira em Nichts [al.: nada]); o pensamento supera o imediato. Em abstrato, isso causa uma boa impressão, mas eu gostaria de saber, contudo, como é que um existente faz para existir depois de ter cancelado toda a sua imediatidade. Não sem razão, Frater Taciturnus reclama de que todo mundo escreve livros nos quais a imediatidade é abolida, enquanto que ninguém nem sussurra como é que aí a gente consegue existir. A ciência ordena os momentos da subjetividade num saber sobre eles, e este saber é o mais alto, e todo saber é uma superação, uma retirada da existência. Na existência isso não vale. Se o pensamento menospreza a fantasia, a fantasia, para compensar, menospreza o pensamento, e assim também com o sentimento. A tarefa não está em anular uma à custa da outra, mas a tarefa consiste, antes, na igualdade, na simultaneidade, e o medium no qual se unem é o existir. Ao colocar o processo científico em vez da simultaneidade existencial (como tarefa), a vida vem a ser confundida. [VII 302] Mesmo em relação às várias idades na vida, onde o sucessivo aparece tão nitidamente, o que vale é a simultaneidade como tarefa. Espirituosamente pode-se, querendo, dizer que o mundo e o gênero humano envelheceram; mas será que, por causa disto, não nasce mais cada um como criança? E, no indivíduo, o importante é aperfeiçoar o sucessivo na simultaneidade. Ter sido jovem, depois ter envelhecido, e então por fim morrer constitui uma existência medíocre, pois este mérito o animal também tem. Mas reunir os momentos da vida em simultaneidade, eis precisamente a tarefa. E assim como é uma existência medíocre quando o adulto corta toda a comunicação com a infância e vive como adulto de modo fragmentário, é também pobre uma existência quando um pensador, que afinal de contas é ao mesmo tempo um existente, abandona a fantasia e o sentimento, o que é algo tão errôneo quanto perder o juízo. E, contudo, é isso o que a gente parece querer. Expulsa-se e bane-se a poesia como um momento superado, porque a poesia é o que mais corresponde à fantasia. Num processo científico, quem quiser pode classificá-la como um momento superado, mas na existência importa que, enquanto houver um ser humano que tenha pretensão a uma existência humana, ele terá de preservar a poesia, e todo o seu pensamento não pode desviá-lo do encanto da poesia, mas antes embelezá-lo. Dá-se o mesmo com a religião. Religião não é algo para a alma infantil, no sentido de que, com o passar dos anos, deveria ser deixada de lado; ao contrário, querer fazer isso é uma credulidade pueril no pensamento. O verdadeiro não é superior ao bom e ao belo, mas o verdadeiro, o bom e o belo pertencem, essencialmente, a toda e qualquer existência humana, e se unem para um existente, não no ato de pensá-los, mas no ato de existir. Mas assim como uma época anda com chapéu redondo e outra com o de três pontas: assim também uma moda em nossa geração leva um homem a esquecer a exigência ética. Que todo ser humano é, de algum modo, unilateral, sei muito bem, e não considero isso um defeito; mas, ao contrário, trata-se de um defeito quando um gosto da moda quer fazer de uma unilateralidade o todo. Non omnes omnia possumus [lat.: Não podemos, todos, fazer tudo] vale sempre na vida, mas nem por isso a tarefa poderia ser esquecida, e a unilateralidade, em parte, é compreendida não sem melancolia; em parte, deve resultar de uma forte resolução, que antes prefere fazer alguma coisa bem-feita do que fazer tudo malfeito. Toda individualidade excelente tem sempre alguma unilateralidade, e a própria unilateralidade pode justamente ser uma declaração indireta de sua real grandeza, [VII 303] mas a grandeza mesma esta não é. Tão longe estamos nós, seres humanos, de realizar o ideal, que o segundo lugar, a forte unilateralidade, é quase o mais alto que se alcança; mas, mesmo assim, nunca se pode esquecer de que ele é o lugar número 2. Ora, poder-se-ia dizer: Mas, nesse caso, é realmente digna de louvor esta geração, que tão unilateralmente quer ser pensante e científica. Porém a isso eu responderia: Sua desgraça não está em ser unilateral, mas em ser abstratamente integral. O unilateral rejeita, clara e definidamente, o que não quer possuir, mas o abstratamente integral quer tudo possuir graças à unilateralidade do pensamento. Um crente unilateral, por exemplo, não quer ter nada a ver com o pensamento; alguém que unilateralmente só quer agir, nada quer ter a ver com a ciência; mas a unilateralidade do pensamento produz uma aparência de se possuir tudo; uma pessoa unilateral desse tipo tem a fé, tem a paixão, como momentos superados, é o que ela diz - e nada é mais fácil de dizer. §4 O pensador subjetivo; sua tarefa, sua forma, isto é, seu estilo. Se o ensaio no puro pensar é o que decide se um homem pode ou não ser chamado de pensador, então o pensador subjetivo é, eo ipso, rejeitado. Mas, ao ser ele rejeitado, todos os problemas da existência também se perdem, e a triste consequência disso ressoa como um Nota bene crítico em meio ao júbilo da moderna especulação sobre o sistema. Diz-se como um velho adágio: oratio, tentatio, meditatio faciunt theologum [lat.: oração, tentação, meditação fazem o teólogo]; assim também, para um pensador subjetivo se exige fantasia, sentimento e dialética, em apaixonada interioridade existencial. Mas, do início ao fim, paixão, pois é impossível a um existente pensar sobre a existência sem apaixonar-se, porque existir é uma enorme contradição da qual o pensador subjetivo não tem de abstrair, pois isso seria fácil, mas é nela que ele tem de permanecer. Para uma dialética histórico-universal, o indivíduo vai sumindo dentro da humanidade; tu e eu, cada ser humano individual existente, torna-se, para uma dialética desse tipo, impossível de descobrir, mesmo que se inventassem novas lentes de aumento para a concretude. [VII 304] O pensador subjetivo é dialético no que tange ao existencial; ele tem a paixão intelectual para afirmar a disjunção qualitativa. Mas, por outro lado, se a disjunção qualitativa for usada de modo vago, for aplicada de modo inteiramente abstrato ao ser humano individual, pode-se então correr o risco ridículo de se dizer algo absolutamente decisivo, e de estar certo no que se diz, e ainda assim não se dizer a mínima coisa. Portanto, em sentido psicológico, é realmente notável ver a disjunção absoluta usada de modo ilusório, justamente como evasiva. Quando a pena de morte é prescrita para todos os crimes, o resultado é que absolutamente nenhum crime vem a ser punido. Assim também com a disjunção absoluta, aplicada de modo vago; é como uma letra muda - não se deixa pronunciar, ou se deixa pronunciar, mas não diz nada. A disjunção absoluta, como pertencente à existência, o pensador subjetivo a tem, pois, com paixão intelectual, mas ele a tem como a derradeira decisão, que impede que tudo se espalhe num quantificar. Ele a tem assim bem à mão, mas não de modo a que, ao recorrer abstratamente a ela, justamente impeça a existência. O pensador subjetivo tem, portanto, ao mesmo tempo paixão estética e paixão ética, por meio do que se adquire a concreção. Todos os problemas existenciais são apaixonados, pois a existência, quando a gente se torna consciente dela, dá paixão. Pensar sobre eles de um modo que deixa de lado a paixão não é, de jeito nenhum, pensar sobre eles, é esquecer o ponto-chave de que se é, isto sim, um existente. Contudo, o pensador subjetivo não é poeta, mesmo que seja também um poeta, nem ético, mesmo que seja também um ético, mas é também um dialético, e está, ele mesmo, essencialmente existindo, enquanto que a existência do poeta não é essencial em relação ao poema, e, do mesmo modo, a do ético em relação ao ensinamento, e a do dialético em relação ao pensamento. O pensador subjetivo não é um homem da ciência; ele é um artista. Existir é uma arte. O pensador subjetivo é estético o bastante para que sua vida adquira conteúdo estético, ético o bastante para regulá-la, dialético o bastante para, pensando, dominá-la. A tarefa do pensador subjetivo é compreender-se a si mesmo na existência. O pensamento abstrato fala, de fato, sobre contradição e sobre a propulsão imanente da contradição, embora, ao abstrair da existência e do existir, anule a dificuldade e a contradição. Mas o pensador subjetivo é um existente, e, contudo, ele é pensante; não abstrai da existência e da contradição, mas está nelas, e, contudo, deve pensar. [VII 305] Em todo o seu pensar, então, ele tem que pensar, além disso, que ele próprio é um existente. Mas então, por sua vez, também terá sempre bastante em que pensar. A gente logo liquida a humanidade em geral e também a história do mundo, pois o monstro faminto - o processo histórico-universal - engole até mesmo imensas porções como China e Pérsia etc., como se nada fossem. O crer, visto de modo abstrato, a gente logo liquida, mas o pensador subjetivo, que, ao pensar, está também junto a si mesmo na existência, achá-lo-á inesgotável quando a sua própria fé tiver que ser declinada nos múltiplos casibus [lato (gram.): casos] da vida. Isso não é nenhuma brincadeira, de jeito nenhum, pois a existência é o que há de mais difícil para um pensador quando ele deve permanecer nela, visto que o instante é comensurável com as mais altas decisões e, contudo, por sua vez, é um minutinho evanescente nos possíveis 70 anos. Poul Moller corretamente apontou que um bobo da corte usa mais chiste num único ano do que muitos autores chistosos em toda a vida. E de onde vem isso, senão do fato de que o primeiro é um existente, que a cada instante do dia tem de ter o chiste à sua disposição, e o outro é alguém que só por momentos é chistoso. Se não se quer acreditar que o compreender a si mesmo na existência, pensando, seja algo que envolve dificuldades, então estou mais do que disposto a arriscar a seguinte experiência. Deixemos um de nossos sistemáticos encarregar-se de me explicar tão somente um dos mais simples problemas da existência. Estou bem-disposto a conceder que na contabilidade sistemática eu, indigno, sou um zero à esquerda, se comparado com tais pessoas; estou disposto a conceder que as tarefas do pensamento sistemático são muito maiores, e que tais pensadores pairam muito acima de um pensador subjetivo; mas se for verdadeiramente assim, então eles também têm de saber explicar facilmente o que é mais simples. Em vez da tarefa de compreender o concreto abstratamente, como a tem o pensamento abstrato, o pensador subjetivo tem a tarefa contrária de compreender o abstrato concretamente. O pensamento abstrato desvia seu olhar dos seres humanos concretos para o ser humano em geral; o pensador subjetivo compreende a abstração "ser um humano" na concreção de ser este ser humano existente individual. Compreender-se a si mesmo na existência era o princípio grego, e por menor que às vezes fosse o conteúdo da doutrina de um filósofo grego, o filósofo tinha uma vantagem: [VII 306] ele jamais era cômico. Eu sei muito bem que, hoje em dia, se alguém quisesse viver como um filósofo grego, isto é, caso expressasse existencialmente o que teria de chamar de sua visão da vida, caso se aprofundasse existencialmente nela, seria considerado um lunático. Seja como for. Mas ser engenhoso, sempre mais engenhoso e extremamente engenhoso, e tão engenhoso que jamais ocorra ao ilustríssimo filósofo, que está afinal de contas especulando sobre problemas da existência (p. ex., o cristianismo), perguntar-se, a quem no mundo isso poderia interessar, e menos ainda, que interessaria a ele próprio: isso eu acho ridículo. - Todo ceticismo é um tipo de idealismo. Quando então o cético Zenão, por exemplo, estudava a dúvida cética, tentando, enquanto existente, manter-se não afetado por tudo o que encontrava, de modo que, quando uma vez desviou de um cachorro raivoso, confessou envergonhado que mesmo um filósofo cético ainda é, às vezes, um ser humano, não vejo nisso nada de ridículo. Não há nenhuma contradição, e o cômico consiste sempre numa contradição. Mas quando se considera os miseráveis chistes idealistas de catedráticos, a pilhéria e a coqueteria envolvidas no fato de ser um idealista na cátedra, de modo a que não se pode ser nem mesmo um real idealista, mas meramente se jogue o jogo, tão popular, de ser um idealista, se a gente se lembra da frase de cátedra de "duvidar de tudo" - na cátedra - então, bem, então é impossível não escrever uma sátira, basta que a gente conte a verdade. Querendo ser, enquanto existente, um idealista, aprendem-se em cerca de meio ano coisas bem diferentes daquilo que se aprenderia brincando de esconde-esconde na cátedra. Ser idealista na imaginação não é nada difícil, mas ter que existir como idealista é uma tarefa de vida extremamente exaustiva, porque existir é, precisamente, a objeção contra isso. Expressar, enquanto existente, o que se compreendeu sobre si mesmo e, desse modo, compreender-se, não é cômico de jeito nenhum, mas compreender tudo, menos a si mesmo, é cômico de doer. Num certo sentido, o pensador subjetivo fala tão abstratamente como o pensador abstrato, pois este fala da pura humanidade, da pura subjetividade, e o outro fala do ser humano único (unum noris, omnes [lat.: se conheces um, conheces todos]). Mas este ser humano único é um ser humano existente, e a dificuldade não é excluída. Compreender-se a si mesmo na existência é também o princípio cristão, só que este "si-mesmo" recebeu determinações muito mais ricas e muito mais profundas, que são ainda mais difíceis de [VII 307] compreender juntamente com a existência. O crente é um pensador subjetivo, e a diferença, como se mostrou acima, é apenas entre a pessoa simples e o sábio simples. Aqui, mais uma vez, este si-mesmo não é a pura humanidade, a pura subjetividade e outras coisas semelhantes, com o que tudo se torna fácil, dado que a dificuldade é removida e toda a questão é transportada para o Schattenspiel [al.: jogo de sombras] da abstração. A dificuldade é maior do que para o grego, porque oposições ainda maiores são colocadas juntas, porque a existência é acentuada paradoxalmente como pecado, e a eternidade, paradoxalmente como o deus no tempo. A dificuldade está em existir neles, não em se pensar abstratamente como [estando] fora deles, nem em abstratamente pensar sobre, por exemplo, uma encarnação eterna, e outras coisas semelhantes que aparecem quando se remove a dificuldade. Por isso, a existência do crente é até mesmo mais apaixonada do que a do filósofo grego (que até em sua ataraxia precisava de um alto grau de paixão), pois a existência produz paixão, mas a existência paradoxalmente acentuada produz o máximo de paixão. Abstrair da existência é remover a dificuldade, mas permanecer na existência de tal modo que se compreenda num momento uma coisa, no momento seguinte outra coisa, não é compreender-se a si mesmo. Mas compreender, junto, aquilo que há de mais oposto e compreender-se a si mesmo existindo aí, é por demais difícil. Basta que se preste atenção a si mesmo e ao que as pessoas falam e se verá o quão raramente isso é bem-sucedido. - Um é bom, outro é prudente, ou a mesma pessoa age como boa num momento, como prudente noutro; mas de uma só vez, na mesma coisa, ver o mais prudente e apenas vê-lo para já querer o bem, já é difícil. Um rirá, outro chorará, ou a mesma pessoa o faz em diferentes momentos; porém ver simultaneamente o cômico e o trágico na mesma coisa é difícil. Estar contrito por seu pecado, e então, de novo, ser um alegre companheiro, não é difícil; mas estar ao mesmo tempo contrito e despreocupado é difícil. Pensar numa única coisa e haver esquecido tudo o mais não é difícil, mas pensar numa única coisa e, no mesmo exato momento, ter o oposto dentro de ti, e uni-los na existência, isso é difícil. Aos 70 anos de idade, ter passado por todos os estados de ânimo possíveis e deixar sua vida como um catálogo que se pode folhear para escolher confortavelmente, ainda não é tão difícil; mas ter inteira e ricamente um estado de ânimo e aí ter o estado de ânimo oposto; [VII 308] dar a um estado de ânimo a palavra e o pathos, e aí maliciosamente contrabandear o estado oposto - isso é difícil. Etc. A despeito do esforço, o pensador subjetivo só é recompensado com um magro dividendo. Quanto mais predomina a ideia da geração, até mesmo na representação popular, mais terrível fica a transição: em vez de acertar o passo pelo gênero humano e dizer "nós, nossa época, o século XIX", tornar-se um ser humano individual existente. Que isso seja infinitamente pouco, não se nega; por isso, aí se requer muita resignação para não menosprezá-lo. Afinal, o que é um ser humano individual existente? Oh, sim, nossa época sabe bem demais quão pouco é isso, mas aí justamente reside a imoralidade específica da época. Cada época tem a sua própria; a imoralidade de nossa época não é, talvez, o prazer, o gozo e a sensualidade, mas por certo um panteístico, extravagante, desprezo por seres humanos individuais. Em meio a todo júbilo por nossa época e pelo século XIX ressoa secretamente um secreto desprezo em relação a ser um homem - em meio à importância que se dá à geração, há um desespero no que toca a ser um homem. Tudo, tudo tem de estar agrupado; as pessoas querem, de modo histórico-universal, embriagar-se na totalidade; ninguém quer ser um ser humano individual existente. Daí talvez também as muitas tentativas de agarrar-se a Hegel, até por gente que viu o que há de dúbio em sua filosofia. Teme-se, ao se tornar um ser humano individual existente, desaparecer sem deixar vestígio, de modo que nem os jornais diários, menos ainda os jornais críticos, e ainda menos os especulantes histórico-universais, consigam encontrar um sinal seu. Teme-se que, ao se tornar um ser humano individual existente, tenha-se de viver mais esquecido e abandonado do que um campônio, e que, se alguém largar Hegel, nem terá a sorte de alguém lhe endereçar uma carta. E é inegável que, se não se tiver entusiasmo ético e religioso, se há de desesperar quanto a ser um ser humano individual - de outro modo, não. Quando Napoleão avançou pela África, lembrou a seus soldados de que, do alto das pirâmides, a memória de quarenta séculos os contemplava. Só de ler isso a gente já sente um calafrio, então não é de se admirar que no momento dessa conjuração isso tenha transformado em herói até o mais covarde dos soldados! Mas se admitirmos que o mundo exista há 6.000 anos, e que Deus por certo existe há pelo menos tanto tempo quanto o mundo, então a memória de 6.000 anos contemplando do alto do céu o ser humano individual existente deveria ser igualmente inspiradora! Mas em meio à coragem da geração é fácil descobrir a covardia e falta de coragem dos indivíduos. [VII 309] Tal como no deserto os indivíduos precisam viajar em grandes caravanas, por medo de ladrões e animais selvagens, assim também os indivíduos hoje em dia têm um horror perante a existência porque ela está abandonada por Deus; só se atrevem a viver em grandes hordas e se abraçam en masse para serem ao menos alguma coisa. É preciso assumir que todo e qualquer ser humano está essencialmente de posse daquilo que faz parte essencialmente do ser homem. A tarefa do pensador subjetivo é transformar-se a si mesmo num instrumento que expresse, de modo claro e definido, o humano na existência. Consolar-se com o que concerne as diferenças é um mal-entendido, pois ter uma cabeça um pouquinho melhor, ou algo assim, é apenas uma insignificância. Que a nossa época tenha se refugiado na geração e abandonado os indivíduos, tem, muito corretamente, seu motivo num desespero estético que não alcançou o ético. Já se percebeu que ser um ser humano individual, por mais distinto que seja, não adianta nada, porque nenhuma diferença adianta. Assim, uma nova diferença foi eleita: ter nascido no século XIX. Cada um então, assim que possível, tenta definir seu bocadinho de existência em relação à geração, e se consola. Mas isso não traz nenhum proveito, é apenas uma ilusão mais grandiosa e brilhante. E, tal como em épocas antigas, e em geral em toda geração, tem havido tolos que, em suas vaidosas presunções, se confundiram com algum homem grandioso e distinto, quiseram ser este ou aquele, assim, o distintivo de nossa época é que os tolos não se satisfazem com se confundir com algum grande homem, confundem-se com a época, o século, a geração, a humanidade. - Querer ser um ser humano individual (o que a gente inegavelmente é), com a ajuda e em virtude da diferença, é moleza; mas querer ser um ser humano individual existente (o que a gente inegavelmente é), no mesmo sentido como qualquer outro pode ser: é a vitória ética sobre a vida e sobre qualquer miragem, a vitória que é talvez a mais difícil de todas no teocêntrico século XIX. A forma do pensador subjetivo, a forma de sua comunicação, é seu estilo. Sua forma tem que ser tão variada quanto o são os opostos que ele mantém combinados. O eins, zwei, drei [al.: um, dois, três] sistemático é uma forma abstrata que por isso também tem de ficar constrangida cada vez que há de ser aplicada ao concreto. Na medida em que o pensador subjetivo é concreto, na mesma medida sua forma tem de ser concretamente dialética. Mas tal como ele próprio não é poeta, nem ético, nem dialético, assim também sua forma não é diretamente a de nenhum destes. Sua forma tem de se relacionar, do princípio ao fim, com a existência, e, nesse aspecto, precisa dispor do poético, do ético, do dialético, do religioso. [VII 310] Comparado com um poeta, sua forma será abreviada [lacônica]; comparado com um dialético abstrato, sua forma será prolixa. Ou seja, a concreção no existencial é, vista abstratamente, prolixidade. O humorístico, por exemplo, em relação ao pensamento abstrato, é prolixidade, mas em relação à comunicação concreta da existência, não é, de jeito nenhum, prolixidade, a não ser que seja prolixo em si mesmo. A pessoa de um pensador abstrato é indiferente em relação ao pensar, mas, existencialmente, um pensador tem de ser apresentado essencialmente como pensante, porém de tal modo que, à medida que ele expõe seu pensamento, também descreve a si mesmo. O chiste, em relação ao pensamento abstrato, é prolixo, mas não o é em relação à comunicação concreta da existência, a não ser que o próprio chiste seja prolixo. Mas o pensador subjetivo não tem repouso poético para criar no medium da fantasia e para, esteticamente, produzir desinteressadamente, porque ele mesmo é essencialmente um existente na existência, e não tem [à sua disposição] o medium da fantasia para a ilusão da produção estética. O repouso poético é prolixidade em relação à comunicação existencial do pensador subjetivo. Personagens coadjuvantes, cenários etc., que pertencem à completude da produção estética, em si mesmos são prolixidade; pois o pensador subjetivo tem apenas uma única cena, a existência, nada tem a ver com paragens ou coisas semelhantes. A cena não está naquele país encantado da fantasia, onde a poesia promove amorosamente o acabamento; nem está na Inglaterra, nem no emprego de esmero na exatidão histórica; a cena é a interioridade no existir como ser humano; a concreção é a relação das categorias da existência entre si. Exatidão histórica e realidade histórica são prolixidade. Mas a realidade existencial não se deixa comunicar; e o pensador subjetivo tem em sua própria existência ética sua própria realidade efetiva. Se a realidade efetiva deve ser compreendida por uma terceira pessoa, tem de ser compreendida como possibilidade, e um comunicador que esteja consciente disso atentará, portanto, que sua comunicação existencial esteja na forma da possibilidade, justamente para que a comunicação esteja orientada para a existência. Uma apresentação na forma da possibilidade deixa o receptor tão próximo de existir naquilo quanto o é possível entre um ser humano e outro. Permitam-me elucidar isso mais uma vez. Dever-se-ia pensar que, quando se conta a um leitor que este e aquele realmente fizeram isto e aquilo (algo de grande e excelente), deixa-se o leitor mais próximo de querer fazer o mesmo e querer existir da mesma maneira do que se se apresentasse apenas a situação como possível. Não obstante o que já foi demonstrado em seu devido lugar, que o leitor só consegue mesmo compreender a comunicação ao dissolver o esse da realidade no posse, [VII 311] já que, de outro modo, ele apenas imagina que compreende; não obstante isso, o fato de que esta e aquela pessoa tenham realmente feito isto e aquilo pode ter um efeito tanto protelador quanto incentivador. O leitor apenas transforma a pessoa de que se trata (graças ao fato de ela ser uma pessoa real) numa rara exceção; ele a admira e diz: Mas eu sou muito insignificante para fazer algo assim. Agora, a admiração pode ser muito legítima em relação a diferenças, mas é um total mal-entendido em relação ao universal. Que uma pessoa seja capaz de cruzar o canal a nado e que outra saiba 24 idiomas e que uma terceira pessoa ande de cabeça para baixo etc. pode-se admirar, si placet [lat.: se lhe aprouver]; mas se se supõe que a pessoa em questão seja grande em relação ao universal por causa de sua virtude, sua fé, sua nobreza, sua fidelidade, sua perseverança etc., então a admiração é uma relação ilusória ou pode facilmente tornar-se tal. O que é grande em relação ao universal não pode, portanto, ser apresentado como objeto de admiração, mas sim como exigência. Na forma da possibilidade, a apresentação se torna uma exigência. Em vez de apresentar o bem na forma da realidade efetiva, como se faz de ordinário, que esta e aquela pessoa realmente viveram e realmente fizeram isto, transformando então o leitor em um observador, um admirador, um avaliador, ele deve ser apresentado na forma da possibilidade; aí, se o leitor quer ou não existir nele é algo que é colocado o mais próximo possível dele. A possibilidade opera com o ser humano ideal (não no que concerne à diferença, mas ao universal), que se relaciona com cada ser humano como uma exigência. Na mesma medida em que se insiste em que esta foi tal pessoa específica, a exceção torna-se mais fácil para os outros. Não é preciso ser exatamente um psicólogo para saber que há uma ilusão que quer ser excluída da impressão ética, justamente com o auxílio da admiração. Ao invés de o modelo ético e religioso voltar o olhar do observador para dentro de si mesmo e empurrá-lo avante, o que justamente acontece quando se coloca, entre o observador e o modelo, a possibilidade comum a ambos, ao invés disso, a apresentação na forma da realidade atrai esteticamente os olhos de uma multidão para si mesma; e a questão sobre se ela é "verdadeiramente real" etc. é discutida e examinada e virada pelo avesso, e que seja "verdadeiramente real" etc. é algo que se admira e sobre o que se joga conversa fora. Para tomarmos um exemplo, que Jó tinha fé, é algo que deveria ser apresentado de tal modo que viesse a significar para mim uma questão: se eu também quereria conquistar a fé; mas não deveria significar, de jeito nenhum, que estou numa comédia ou que sou membro de um distinto público que deve investigar se é "verdadeiramente real" e aplaudir por ser "verdadeiramente real". É uma preocupação de comédia burlesca que uma congregação sensível e seus membros individuais algumas vezes têm para com o cura d'almas escolhido [VII 312]: será que ele "realmente"; e uma alegria e uma admiração de comédia burlesca de se ter um cura d'almas, sobre quem é certo que realmente etc. É falso, em toda a eternidade, que alguém tenha sido auxiliado a fazer o bem pelo fato de uma outra pessoa o ter realmente feito; pois, caso ela própria viesse a fazê-lo, isso seria por ter compreendido a realidade da outra pessoa como uma possibilidade. Quando Temístocles teve insônia ao imaginar os triunfos de Milcíades, foi a compreensão da realidade efetiva como possibilidade que o fez ficar insone; se ele tivesse se ocupado com zelo em saber se Milcíades "realmente" etc., e tivesse ficado satisfeito com o fato de Milcíades tê-lo realmente feito: dificilmente teria ficado insone, mas sim, decerto, ter-se-ia tornado um admirador sonolento, ou, höchstens [al.: no máximo] um admirador dócil, mas nenhum Milcíades lI. E, compreendido eticamente, se há algo que consegue despertar um ser humano, então é a possibilidade, quando esta se exige idealmente de um ser humano. CAPÍTULO 4 O problema das Migalhas: Como pode uma felicidade eterna ser construída sobre um saber histórico? SECTIO 1 PARA A ORIENTAÇÃO NO PLANO DAS MIGALHAS § 1 Que o ponto de partida foi tomado no paganismo, e por quê? O leitor do fragmento de filosofia das Migalhas recordará que o opúsculo não ensinou à maneira docente, mas ao modo de experimentação. Tomou seu ponto de partida no paganismo para aí, experimentando, descobrir uma concepção da existência [VII 313] da qual se pudesse com verdade dizer que ia além do paganismo. A moderna especulação parece ter quase realizado a proeza de ir além do cristianismo, para o outro lado, ou de ter ido tão longe no compreender o cristianismo, que quase retomou ao paganismo. Que alguém prefira o paganismo ao cristianismo não é, de jeito nenhum, algo perturbador, mas fazer do paganismo o máximo dentro do cristianismo é uma injustiça, tanto para com o cristianismo, que se torna algo diferente do que é, quanto para com o paganismo, que passa a não ser absolutamente coisa alguma, o que, contudo, era. Aquela especulação que compreendeu completamente o cristianismo e ao mesmo tempo se transfigura no mais elevado desenvolvimento dentro do cristianismo fez assim, de modo bem curioso, a descoberta de que não há nenhum além, de que o "outro mundo", o "mais além" e coisas desse tipo, são rudeza dialética de um entendimento finito. O além se tornou uma pilhéria, uma exigência tão incerta que não apenas ninguém a respeita, mas, também, ninguém a levanta, de modo que a gente apenas se diverte ao considerar que houve um tempo em que esta ideia transformava toda a existência. A gente logo vê qual resposta ao problema se pode esperar a partir deste ângulo: o próprio problema é uma bronquice dialética; pois, no celeste sub specie aeterni do pensamento puro, a distinção foi abolida. Mas eis que o problema não é, afinal de contas, um problema lógico - de fato, o que o pensamento lógico tem em comum com o mais patético de todos os problemas (a pergunta pela bem-aventurança eterna)? E o problema é um problema existencial, mas existir não significa ser sub specie aeterni. Aqui novamente se perceberá, talvez, a correção de se utilizar medidas de precaução antes de se deixar envolver com tal especulação; a primeira delas é separar especulação e especulante, e então, como nos casos de encantamento, feitiçaria e possessão demoníaca, usar um poderoso formulário de exorcismo para transformar ou converter o encantado especulante em sua figura real, em um ser humano individual existente. Que o objeto do experimento era o cristianismo, o opúsculo, para ganhar algum fôlego, não dizia, a fim de não ser prontamente envolvido nas questões históricas, histórico-dogmáticas, introdutórias e eclesiásticas sobre o que realmente é cristianismo e o que ele não é. Pois homem algum jamais esteve tão exposto ao vento como o ficou o cristianismo nos últimos tempos. Ora [VII 314] o cristianismo é explicado de modo especulativo e o resultado é o paganismo; ora, não se sabe mesmo com certeza o que é o cristianismo. Basta folhear um catálogo de feira de livros para perceber em que tempos estamos vivendo. Na vida cotidiana, quando ouvimos os gritos dos vendedores de camarão, a primeira coisa que pensamos é que estamos em pleno verão, quando os gritos oferecem guirlandas de aspérulas, que é primavera, quando os gritos oferecem mexilhões, que é inverno; mas quando, como no último inverno, ouvimos gritar no mesmo dia camarões, guirlandas de aspérulas e mexilhões, ficamos tentados a admitir que a vida se tornou confusa e que o mundo não vai aguentar até a Páscoa. Recebemos, porém, uma impressão ainda mais confusa se prestamos atenção, por um instante, ao que tem sido anunciado num catálogo de feira de livros, tanto por parte dos autores quanto por parte dos editores, os quais em alta medida tornaram-se corresponsáveis na literatura. Summa summarum [lat.: tudo somado], o tempo em que vivemos é muito movimentado - ao menos, muito confuso. Para ganhar então um dia de descanso, algo de que muito pode necessitar a terminologia cristã, fatigada na vida, e que, de tranquila, profunda e insondável, acaba por se tornar sem fôlego e sem significado, e para evitar, tanto quanto possível, entrar na aglomeração, preferi silenciar o nome de "cristianismo", abster-me de expressões que, sempre de novo, ficam aturdidas e acidentadas na discussão. Toda a terminologia cristã foi sequestrada pela especulação, pois a especulação é, afinal, o cristianismo; até os jornais usam as mais sublimes expressões dogmáticas como brilhantes ingredientes, e enquanto os políticos esperam preocupados por uma bancarrota dos estados, uma bancarrota muito maior é talvez iminente no mundo do espírito, porque os conceitos estão gradualmente sendo abolidos e as palavras vêm a significar qualquer coisa, e, por isso, a disputa às vezes se torna tão ridícula quanto o acordo. Pois disputar sobre palavras soltas e concordar sobre palavras soltas é afinal sempre ridículo, mas quando até as palavras mais firmes se tornaram soltas - o que fazer? Tal como um velho que perdeu os dentes agora mastiga ruidosamente com a ajuda dos cotos, do mesmo modo o moderno discurso cristão a respeito do cristianismo perdeu a enérgica força da terminologia para morder - e a coisa toda é uma "conversa mole" de velho desdentado. Que a confusão no que toca ao cristianismo deve-se ao fato de que ele foi recuado um estádio inteiro da vida, é para mim algo bem claro. Que nos tornemos cristãos na infância é algo que dá ensejo a que logo se admita [VII 315] que se é o que se antecipou segundo a possibilidade. Por isso, o batismo infantil pode muito bem ser defensável e louvável não só como o interesse bem-intencionado da Igreja, uma salvaguarda contra fanáticos, mas também como a bela solicitude de pais piedosos: a responsabilidade se estabelece no próprio indivíduo posteriormente. Mas é e sempre será ridículo ver pessoas, que são cristãs unicamente em virtude de uma certidão de batismo, se comportarem à la cristã em ocasiões solenes, pois a coisa mais ridícula que o cristianismo pode jamais se tornar é tornar-se aquilo que se chama, no sentido banal, de usos e costumes. Ser perseguido, abominado, desdenhado, escarnecido, ou ser abençoado, louvado: isso é apropriado para o maior de todos os poderes, mas tornar-se um costume domesticado, bom ton [fr.: de bom-tom] e coisa que o valha, é o seu contrário absoluto. Tentemos imaginá-lo numa ilustração. Convém a um rei ser amado por seu povo, ser honrado em sua majestade, ou, se as coisas derem errado, bem, então, que seja derrubado do trono em uma revolta, que tombe em batalha, que definhe na distância, longe de tudo o que traz a lembrança dele, numa prisão do Estado; mas um rei transformado num pressuroso garçom de aluguel que está extremamente contente com sua posição: isso é uma transformação que grita mais aos céus do que o tê-lo assassinado. Inversamente, pode ser ridículo que cristãos, às vezes, em funerais, por exemplo, apelem para expressões pagãs sobre os Campos Elíseos e coisas semelhantes; mas também é ridículo que um homem, para quem o cristianismo não significou absolutamente nada, nem ao menos o bastante para que ele se preocupasse em abandoná-lo, morra, e então o pastor, assim, sem mais, junto ao túmulo, o introduza na bem-aventurança eterna, tal como essa é entendida em terminologia cristã. Mas não me venham lembrar de que sempre haverá uma diferença entre a Igreja visível e a invisível, e que ninguém se atreva a julgar corações. Longe disso, oh, longe disso. Mas quando a gente se tornava cristão e se deixava batizar numa idade mais madura, aí ao menos se podia falar, com alguma segurança, que o cristianismo alguma importância tinha para os que eram batizados. Deixemos então reservado a Deus julgar os corações! Mas quando alguém é batizado aos catorze dias de idade, quando se considera conveniente permanecer cristão de nomine [lat.: só nominalmente], quando se torna apenas uma maçada e algo desagradável abjurar o cristianismo, quando a opinião pública, como já foi dito, soa mais ou menos assim: É inconveniente da sua parte fazer tanto barulho por causa disso - bem, aí não se poderá negar que pertencer à Igreja visível [VII 316] converteu-se num testemunho muito duvidoso de que realmente se é um cristão. A Igreja visível se expande de tal modo que por fim a relação se inverte, e tal como antigamente se requeria força e vigor de convicção para alguém se tornar um cristão, assim, atualmente, embora a expressão não deva ser elogiada, coragem e energia serão exigi das para que alguém desista de sê-lo - enquanto que agora se requer apenas irreflexão para ser um cristão dessa maneira. O batismo das crianças bem pode por isso ser defendido, nenhum novo costume precisa por isso ser introduzido; mas como tudo está mudado, os próprios clérigos precisariam perceber que, se antigamente essa era a tarefa deles, ganhar pessoas para o cristianismo, quando só uns poucos eram cristãos, então agora a tarefa deve ser ganhá-las, se possível, espantando-as - já que o infortúnio, afinal, está em que elas são cristãs dessa maneira. Quando o cristianismo entrou no mundo, a gente não era cristão, e a dificuldade estava em se tornar cristão; agora, a dificuldade para se tornar um cristão está em que a gente precisa, por conta própria, transformar um primeiro ser cristão em uma possibilidade, para se tornar um cristão em verdade. E a dificuldade é tanto maior, porque isso deve e convém ocorrer silenciosamente no interior do indivíduo, mesmo sem nenhuma ação exterior decisiva, de modo que não vire numa heresia anabatista ou coisa assim. Mas qualquer um sabe que, mesmo no mundo exterior, saltar daquele lugar em que se está e cair de novo na mesma marca é o mais difícil de todos os saltos, e o salto fica mais fácil quando se estabelece um espaço entre a marca em que o saltador está e a marca para onde o salto deve ser feito: e, assim também, a decisão mais difícil é aquela em que a pessoa que decide não está afastada da decisão (como quando aquele que não é cristão há de decidir se quer ou não ser um cristão), mas é como se a questão já estivesse decidida. Neste caso, com efeito, a dificuldade da decisão é dupla: primeiro esta, que a primeira decisão é uma aparência, uma possibilidade, e depois a decisão propriamente dita. Se eu não sou cristão, e a decisão consiste em se tornar cristão, então o cristianismo me ajuda a me tornar atento para a decisão, e a distância entre nós ajuda por assim dizer como a arrancada ajuda o saltador; mas se a coisa já parece decidida, se já sou um cristão (i. é, sou batizado, o que ainda é, afinal de contas, apenas uma possibilidade), então não há nada que me ajude a me tornar adequadamente atento à decisão, mas, ao contrário (o que é a dificuldade aumentada), há algo que me impede de me tornar atento a isso - [VII 317] a saber, a decisão aparente. Em resumo: é mais fácil tornar-me um cristão se eu não sou um cristão do que tornar-me um cristão se sou um deles; e esta decisão está reservada àquele que foi batizado quando criança. O que é o batismo sem apropriação? Sim, é a possibilidade de que a criança batizada possa se tornar um cristão, nem mais nem menos. O paralelo seria: tal como a gente tem que ter nascido, tem que ter vindo à luz, para se tornar um homem, pois uma criança ainda não o é: assim também a gente tem que estar batizado para se tornar um cristão. Para o adulto que não foi batizado quando criança, é verdade que ele se torna um cristão pelo batismo, porque no batismo ele pode ter a apropriação da fé. Retira do essencialmente cristão a apropriação, qual é então o mérito de Lutero? Mas abre os seus livros, e nota em cada linha a vigorosa pulsação da apropriação; nota-a no vibrante progresso de todo seu estilo, que continuamente parece ter atrás de si aquela tormenta de horror que matou Alexius e criou Lutero. Não tinha o papismo a objetividade e as definições objetivas e o objetivo, o objetivo, o objetivo em superabundância? O que lhe faltava? Apropriação, interioridade. "Aber unsere spitzfindigen Sophisten sagen in diesen Sacramenten nichts von dem Glauben, sondern plappern nur fleissig von den wirklichen Kräften der Sacramente (o objetivo), denn sie lernen immerdar, und kommen doch nimmer zu der Erkentniss der Wahrheit [Mas, ao tratar desses sacramentos, nossos sutis sofistas não dizem absolutamente nada a respeito da fé, porém palram com aplicação sobre as virtudes reais dos sacramentos (o objetivo), pois eles estão sempre aprendendo, e contudo nunca chegam a um conhecimento da verdade]" (Von der babylonischen Gefangenschaft, Do cativeiro da Babilônia, pequena edição de Gerlach, IV, p. 195). Mas por este caminho eles teriam realmente de chegar à verdade se a objetividade fosse a verdade. Admitamos que é verdade verdadeira, então, que o cristianismo não reside na diferença; que o mais abençoado consolo da vida neste mundo seja o fato de que a sagrada humanidade do cristianismo consiste em poder ele ser apropriado por todos - mas deve e convém ser entendido isso como significando que qualquer um é sem mais nem menos cristão, só por ter sido batizado quando tinha duas semanas de vida? (Nas Migalhas eu expressei esse equívoco dizendo que se tem feito uma tentativa de naturalizar o cristianismo, de modo que por fim ser cristão e ser homem são idênticos, e que se nasce cristão como se nasce homem; ou pelo menos nascimento e renascimento convergem num Spatium [lat.: espaço] de catorze dias). Ser cristão não é uma questão de comodidade, [VII 318] o simples, tanto quanto o sábio, deve fazer a gentileza de existir nele - portanto, ser um cristão se torna algo distinto de ter uma certidão de batismo guardada na gaveta e exibi-la quando se quer ser estudante universitário ou quando se quer celebrar casamento; algo distinto de passar a vida toda com uma certidão de batismo no bolso do colete. Mas o ser um cristão gradualmente tornou-se algo que se é sem mais nem menos, e, no que tange à responsabilidade, trata-se de algo que pertence antes aos pais do que à própria pessoa: que eles afinal não se descuidaram de batizá-lo. Daí provém um estranho fenômeno que, contudo, pode não ser tão raro na Cristandade, que um homem, no que lhe toca, tenha acreditado que certamente seus pais cuidaram disso, que foi batizado e, com isso, a questão esteja decidida, quando então ele próprio se torna pai, bem corretamente desperta nele a preocupação de ver batizado seu filho. Deste modo, a preocupação de tornar-se cristão passou do próprio indivíduo para o seu tutor. Na qualidade de tutor, o pai cuida que o filho seja batizado, talvez também devido a todas as incomodações com a polícia e os problemas a que o filho se exporia caso não fosse batizado. A eternidade no além e a seriedade solene do juízo (no qual, é bom notar, decidir-se-á se fui um cristão, e não se, na qualidade de tutor, cuidei para que meus filhos fossem batizados) são transformadas numa cena de rua ou numa cena de controle de passaportes, aonde os falecidos chegam correndo com suas certidões - preparadas pelo sacristão. Admitamos que seja verdade verdadeira que o batismo é um divino passaporte oficial para a eternidade. Mas se a leviandade e o espírito mundano querem usá-lo como um passe livre, ainda então ele é um passaporte? O batismo certamente não é o pedaço de papel que o sacristão emite - e às vezes preenche errado. O batismo não é afinal, decerto, apenas o fato exterior de que alguém foi batizado no dia 7 de setembro às onze horas. Que o tempo, que a existência no tempo, se torne decisivo para uma felicidade eterna é em suma tão paradoxal que o paganismo nem consegue imaginá-lo: mas ter a coisa toda decidida na idade de catorze dias no dia 7 de setembro, no decurso de cinco minutos, parece ser, afinal de contas, quase um pouco paradoxal demais. Só faltava que a gente também fosse casada no berço, com tal ou qual pessoa, registrada em tal ou qual estado civil etc., assim, na tenra idade de duas semanas, a gente já teria decidido tudo para sua vida inteira - [VII 319] a não ser que uma decisão mais tardia fosse a de revogar isso, o que talvez se achasse que valia a pena em relação ao projetado casamento, mas talvez não em relação ao cristianismo. Vê só, outrora acontecia no mundo que, quando para uma pessoa tudo desabava, ainda lhe restava a esperança de se tornar cristã; agora, a gente já o é, e de tantas maneiras se é tentada a esquecer - de se tornar um cristão. Sob tais circunstâncias, na Cristandade (a inconsistência da especulação, por um lado, e que se seja cristão sem mais nem menos, pelo outro lado), torna-se cada vez mais difícil achar um ponto de partida, caso se queira saber o que é cristianismo. Com efeito, a especulação traz o paganismo como resultado do cristianismo, e a noção de que se é um cristão sem mais nem menos, por ser batizado, transforma a Cristandade em um paganismo batizado. Por isso recorri ao paganismo, e à Grécia como representante da intelectualidade, e ao maior de seus heróis, Sócrates. Depois então de me haver assegurado do paganismo, tentei a partir dele encontrar uma diferença tão decisiva quanto possível. Se o objeto do experimento era, por isso, cristianismo, é outra questão, mas, de qualquer modo, isso se obteve: que, se a moderna especulação cristã compartilha essencialmente da mesma categoria do paganismo, então a moderna especulação cristã não pode ser o cristianismo. §2 A importância de um acordo provisório a respeito do que é o cristianismo, antes que se possa falar de uma mediação entre o cristianismo e a especulação; a ausência de um acordo favorece a mediação, embora sua ausência torne a mediação ilusória; a intervenção do acordo impede a mediação. Que uma felicidade eterna seja decidida no tempo pela relação para com algo histórico foi a hipótese experimentada e o que agora chamo de o crístico. Certamente ninguém negará que o ensinamento do cristianismo no Novo Testamento é que no tempo se decide a questão da felicidade eterna do indivíduo, e que esta se decide pela relação para com o cristianismo enquanto algo histórico. Para não perturbar despertando alguma ideia a respeito de uma eterna infelicidade, quero observar que falo apenas do positivo, portanto, de que o crente se assegura de sua felicidade eterna no tempo graças à sua relação para com algo histórico. [VII 320] Para não perturbar, não quero chamar atenção, de jeito nenhum, para outras determinações cristãs; todas elas são inerentes a esta única determinação e podem ser consistentemente derivadas dela, assim como esta determinação forma o mais agudo contraste em relação ao paganismo. Só que mais uma vez eu repito: se o cristianismo tem ou não razão, não decido eu. Já no opúsculo disse aquilo que continuamente confesso, que o meu bocadinho de mérito, se é que se trata disso, consiste em expor o problema. Contudo, tão logo eu menciono o cristianismo e o Novo Testamento, facilmente se inicia uma infindável deliberação. Nada mais fácil para um especulante do que achar um ou outro verso da Bíblia que possa invocar em seu faveur [fr.: favor]. Pois nem mesmo isso a especulação esclareceu provisoriamente, em que sentido usará o Novo Testamento. Ora diz, sem mais nem menos, que o Novo Testamento situa-se na esfera da representação, e daí parece seguir que não se pode argumentar a partir dele; ora faz-se grande alarde de se ter a autoridade da Bíblia a seu favor, quando a especulação encontra uma passagem da Bíblia à qual possa apelar. O acordo provisório a respeito do que é o que, a respeito do que seja o cristianismo, antes que a gente se meta a explicá-lo, a fim de que, em vez de explicar o cristianismo, a gente mesmo não se invente algo e o explique como sendo o cristianismo, este acordo prévio é de extrema e decisiva importância. Este comparecimento de ambas as partes perante a comissão de conciliação (para que a própria mediação não se torne uma das partes e simultaneamente a comissão diante da qual comparecem) parece não interessar à especulação, que prefere, simplesmente, tirar seu proveito do cristianismo. Tal como, no caso menor, houve decerto um ou outro que simplesmente não se preocupou muito em compreender Hegel, mas decerto preocupou-se com o benefício que se tem em até mesmo ir além de Hegel, assim também é bastante tentador passar além no que toca a algo de tão grande e significativo como o cristianismo. É preciso que o cristianismo compareça, não exatamente por causa do cristianismo, mas para que apareça bem este ir além. - Por outro lado, é importante que a discussão a respeito do que é o cristianismo não se torne uma discussão erudita, pois, no mesmo instante, tal como foi mostrado na primeira parte deste livro, entramos num processo de aproximação que jamais pode ser concluído. A mediação entre cristianismo e especulação não será possível nesse caso, por outra razão, porque a discussão não pode ser concluída. A questão sobre o que é o cristianismo tem, portanto, de ser levantada, mas isso não pode ser feito de modo erudito, e de jeito nenhum partidário, [VII 321] na pressuposição de que o cristianismo seja uma doutrina filosófica, pois, aí, a especulação seria mais do que parte, ou simultaneamente parte e juiz. A questão tem, portanto, de ser levantada na perspectiva da existência, e tem de poder ser respondida, e respondida brevemente. Ou seja, embora se admita que um teólogo erudito empregue toda sua vida para investigar de modo erudito a doutrina da Escritura e da Igreja, seria afinal uma ridícula contradição caso um existente que perguntasse o que é o cristianismo, na perspectiva da existência, gastasse toda a sua vida deliberando sobre isso - pois, quando então ele deveria existir nele? A questão sobre o que é o cristianismo não pode, portanto, ser confundida com a questão objetiva a respeito da verdade do cristianismo, que discutimos na primeira parte deste escrito. É certamente possível perguntar-se objetivamente sobre o que é o cristianismo, se aquele que questiona quer colocar a questão objetivamente, e por enquanto deixar em aberto se ele é ou não a verdade (a verdade é a subjetividade). Então o interrogador se exime de toda azáfama reverencial que tenta demonstrar a verdade deste, e juntamente de toda a precipitação especulativa para ir além; o que ele deseja é tranquilidade, não deseja nem recomendações nem pressa, o que ele deseja é chegar a saber o que é o cristianismo. Ou não pode chegar a saber o que é cristianismo quem não for também cristão? Todas as analogias parecem falar a favor de que é possível vir a sabê-lo, e o próprio cristianismo precisa de fato considerar como falsos cristãos os que apenas sabem o que é o cristianismo. Aqui, mais uma vez, a questão foi confundida pela aquisição de uma aparência de ser cristão pelo fato de se ter sido prontamente batizado quando criança. Mas quando o cristianismo veio ao mundo, ou quando [hoje] é introduzido em um país pagão, não anulou ou não anula de um só risco a geração atual dos mais velhos e se apoderou das criancinhas. Naquele tempo as relações estavam em ordem: aí o difícil era tornar-se um cristão, e a gente não se ocupava com o compreender o cristianismo; agora quase atingimos a paródia de que tornar-se um cristão não é nada, mas a tarefa difícil e trabalhosa está em compreender o cristianismo. Com isso, tudo se inverteu, o cristianismo se transformou numa espécie de doutrina filosófica, e a dificuldade reside bem corretamente em compreendê-lo; ao invés de o cristianismo relacionar-se essencialmente com a existência, e o difícil ser o tornar-se cristão. (Em relação à doutrina, compreendê-la é o máximo, e se tornar adepto é uma maneira maliciosa para aqueles que nada compreendem se esquivarem dando a impressão de ter compreendido; em relação a uma comunicação existencial, o existir nela é o máximo e o pretender compreendê-la é uma desculpa maliciosa, que quer evadir-se da tarefa. Tornar-se hegeliano é algo suspeito, compreender Hegel é o máximo; tornar-se cristão é o máximo, querer compreender o cristianismo é algo suspeito. - Isso corresponde totalmente ao que foi analisado no capítulo anterior: sobre possibilidade e realidade. Para uma doutrina, a relação de possibilidade é o máximo, para uma comunicação existencial é a realidade efetiva; querer compreender uma comunicação existencial é querer transformar sua relação para com ela numa relação de possibilidade). [VII 322] Por isso a fé é destronada, em relação ao compreender, ao invés de ser, corretamente, o máximo, quando a dificuldade consiste em tornar-se cristão. - Tomemos, então, um filósofo pagão a quem o cristianismo veio a ser anunciado - se bem que não como mais uma doutrina filosófica que ele deveria compreender, mas com a pergunta se ele queria ser cristão; não lhe ficou dito o que era o cristianismo, para que ele pudesse escolher? Que alguém possa saber o que é cristianismo sem ser cristão, é algo que, então, deve ser respondido pela afirmativa. Se alguém pode saber o que é ser cristão sem ser um cristão, é outra coisa, e deve-se responder pela negativa. Por outro lado, o cristão deve realmente saber o que é o cristianismo e ser capaz de dizê-lo - considerando que ele próprio se tornou um. Não creio que se possa exprimir a dubiedade do tornar-se cristão com catorze dias de idade de modo mais forte do que ao apontar que, com essa ajuda, é possível encontrar cristãos - que ainda não se tornaram cristãos. A passagem ao cristianismo é feita tão cedo que é apenas uma possibilidade de ser capaz de fazer a passagem. Com efeito, aquele que se tornou realmente cristão, decerto teve um período de tempo em que não era cristão; teve, então, de novo, um período de tempo em que aprendeu o que é cristianismo; então, agora, se não perdeu de todo a lembrança de como ele próprio existia antes de se tornar cristão, tem de ser capaz, por sua vez, de dizer o que é cristianismo, no que lhe concerne, ao comparar sua vida anterior com sua vida cristã. Tão logo a situação transitória se fizer contemporânea da entrada do cristianismo no mundo, ou com sua introdução em um país pagão, tudo ficará claro. O tornar-se cristão fica sendo então a mais terrível de todas as decisões numa vida humana, dado que se trata de, atravessando desespero e escândalo (os dois cérberos que guardam o acesso ao tornar-se cristão), ganhar a fé. Uma criança de catorze dias não pode, contudo, a bem-dizer, já ter absolvido o mais terrível exame da vida, aquele em que a eternidade faz a censura, por mais certidões que tenha, feitas pelo sacristão, de que foi batizado. [VII 323] Mas, então, também para o que está batizado, tem de vir um momento mais tardio que corresponda, essencialmente, à situação da passagem quando esta é contemporânea da entrada do cristianismo no mundo; então, para o que foi batizado, tem de vir um instante mais tardio quando ele, embora cristão, se pergunte sobre o que é o cristianismo - a fim de se tornar cristão. Pelo batismo, o cristianismo lhe deu um nome, e ele é um cristão de nomine [lat.: de nome]; mas na decisão ele se torna cristão e dá ao cristianismo o seu nome (nomen dare alicui [lat.: dar o nome a alguém]). - Tomemos um filósofo pagão; ele decerto não se tornou cristão quando tinha catorze dias de vida, quando não sabia o que fazia (na verdade, explicação estranhíssima para o mais decisivo dos passos, dado que este se dá quando não se sabe o que se faz!); ele bem sabia o que fazia quando resolveu relacionar-se com o cristianismo até que lhe aconteceu a coisa mais maravilhosa, que ele se tornou cristão (se quisermos expressá-lo deste modo), ou até que ele escolheu tornar-se um deles - portanto, ele sabia o que era o cristianismo quando outrora aceitou o cristianismo, quando ainda não era cristão. Mas enquanto todos estão tão ocupados em definir eruditamente e compreender especulativamente o cristianismo, jamais se vê a questão sobre o que seja o cristianismo apresentada de tal modo que se descubra que aquele que pergunta o faz na perspectiva da existência e no interesse do existir. E por que ninguém o faz? Ah, naturalmente, porque somos todos cristãos, sem nada mais. E, graças a esta esplêndida invenção: ser cristão sem nada mais, as coisas chegaram a tal ponto na Cristandade que não se sabe ao certo o que é o cristianismo; ou a explicação do que seja cristianismo, por ter sido confundida com uma explicação erudita e especulativa do cristianismo, tornou-se um caso tão prolixo que ainda não está totalmente concluída - porém, aguarda-se um novo escrito. Aquele que realmente se tornou um cristão na pressuposição da contemporaneidade da situação de passagem com a entrada do cristianismo no mundo sabia ainda, de fato, o que é o cristianismo; e aquele que realmente deve tornar-se cristão precisa sentir esse ímpeto, um ímpeto que eu não acredito que mesmo a mãe mais apaixonada descobriria em seu filho na tenra idade de catorze dias. Mas nós somos todos, afinal de contas, cristãos. Os cristãos eruditos disputam sobre o que seria realmente cristianismo, mas nunca lhes ocorre imaginar que eles próprios não sejam cristãos, [VII 324] como se fosse possível saber com certeza que se é alguma coisa que não se sabe com certeza o que seria. O sermão se dirige à "comunidade" cristã e, contudo, quase sempre se move em direção ao essencialmente cristão, recomenda o abraçar a fé (ou seja, o tornar-se cristão), atrai os homens a aceitarem o cristianismo - e os homens a quem fala são a comunidade cristã e, portanto, decerto cristãos. Se morrer amanhã um ouvinte, que ontem, verdadeiramente arrebatado pelo discurso de exortação ao cristianismo feito pelo pastor, pensava: falta só um pouquinho para eu me tornar um cristão, então depois de amanhã ele será enterrado como cristão - pois ele era, afinal de contas, cristão. Portanto, aquilo que em si mesmo parece tão óbvio, a saber, que um cristão tem de fato de saber o que é cristianismo, sabê-lo com a concentração e atitude decidida tanto pressupostas quanto fornecidas pelo fato de se ter dado o passo decisivo, agora não é mais compreensível tão diretamente. Somos todos cristãos, é claro; um especulante também foi batizado quando tinha catorze dias de idade. Quando então um especulante diz: "Eu sou cristão (NB., compreendendo com isso ter sido batizado quando se tinha catorze dias de idade); e um cristão decerto precisa saber o que é cristianismo; o verdadeiro cristianismo, eu afirmo, é a mediação do cristianismo; e atesta a correção disso o fato de que eu mesmo sou cristão" - o que deveríamos aí responder? A isso se tem de responder: Se um homem diz: "Sou cristão, ergo, eu tenho de saber, afinal, o que é cristianismo", e não diz nenhuma palavra mais, então há que se deixar como está; seria afinal uma tolice contradizê-lo, pois ele nada diz. Mas se ele começa a desenvolver o que ele agora entende por cristianismo, então, mesmo sem ser cristão, deve ser capaz de saber se isso é ou não é cristianismo à medida que sem ser cristão se possa saber o que é cristianismo. Se, por acaso, o que ele explica como cristianismo for essencialmente idêntico a paganismo, então tem-se o direito de negar que isso seja cristianismo. O que seja cristianismo é algo que tem de ser decidido em primeiríssimo lugar, antes que se possa falar de qualquer mediar. Com essa questão a especulação não se envolve; não procede de modo a que primeiro se estabeleça o que é especulação, depois o que é cristianismo, para então ver se os opostos se deixam mediar; não certifica, para fazer constar, as respectivas identidades das partes adversas antes de se avançar para uma conciliação. Se se lhe pergunta o que é cristianismo, ela responde sem mais: a concepção especulativa de cristianismo, sem se preocupar sobre se há algo na distinção que distinga entre uma coisa e a concepção de uma coisa, [VII 325] o que parece aqui ser importante para a própria especulação, pois, na medida em que o próprio cristianismo é sua concepção pela especulação, então não há de fato mediação, já que, nesse caso, não há, logicamente, oposições, e uma mediação no interior do idêntico é realmente algo que não diz nada. Mas, nesse caso, será talvez melhor perguntar à especulação o que é afinal especulação. Mas eis que aprendemos que especulação é reconciliação, é mediação - é cristianismo. Mas, se especulação e cristianismo são idênticos, o que significa então mediá-los? E, além disso, assim o cristianismo é essencialmente paganismo, pois a especulação certamente não negará que o paganismo tinha especulação. - Eu prontamente e de boa vontade concedo que, em certo sentido, a especulação agora fala de modo totalmente consequente, mas esta fala consequente também mostra que nenhuma conciliação preliminar teve lugar antes do acordo, provavelmente porque não se pôde encontrar uma terceira posição onde as partes adversas pudessem se encontrar. Mas mesmo quando a especulação admite uma diferença entre cristianismo e especulação, se não por outro motivo então apenas para ter o prazer de mediar, mesmo quando não indica determinada e decisivamente a diferença, há que perguntar: Não é a mediação a ideia da especulação? Quando, portanto, aí se faz a mediação dos opostos, então os opostos (especulação - cristianismo) não são iguais ante o mediador; mas o cristianismo [é, isso sim], um momento no interior da especulação, e a especulação adquire preponderância porque já tinha preponderância, e porque o instante do equilíbrio, em que os opostos se equilibrariam mutuamente, não ocorreu. Quando é feita a mediação entre dois opostos, e esses são reconciliados numa unidade mais elevada, aí os opostos podem talvez ser ebenbürtig [al.: de igual posição/nascimento], porque nenhum deles é o oposto da especulação. Mas quando um dos opostos é a própria especulação, o outro um oposto da especulação, e a mediação aí é feita, e a mediação é, afinal, a ideia da especulação, então é um movimento ilusório falar de um oposto da especulação, já que o poder conciliador é a própria especulação (a saber, a sua ideia, que é a mediação). No interior da especulação pode-se indicar um lugar relativo para o que quer que reivindique ser especulação, e os opostos podem ser mediados, ou seja, os opostos que tenham em comum o seguinte: que cada um seja uma tentativa especulativa. Assim, quando a especulação faz a mediação entre a doutrina dos eleatas e a de Heráclito, isso pode ser inteiramente correto [VII 326]; pois a doutrina dos eleatas não se relaciona com a especulação como oposta, mas é, ela própria, especulativa, e o mesmo se dá com a doutrina de Heráclito. É diferente quando o oposto é o oposto da especulação em termos absolutos. Se aqui se há de mediar (e a mediação é de fato a ideia da especulação), isso quer dizer que a especulação julga entre ela mesma e o que se opõe a ela mesma, e é, portanto, ela própria, parte e juiz. Ou isso quer dizer que a especulação admite previamente que absolutamente não pode haver nenhuma oposição à especulação, de modo que toda oposição seja apenas relativa, por se dar no interior da especulação. Mas era isso precisamente o que deveria ser negociado no acordo preliminar. Talvez seja por isso que a especulação tem tanto medo de indicar claramente o que é o cristianismo, talvez por isso ela se apresse tanto para pôr em marcha a mediação, e para recomendá-la, porque teria de temer o pior, caso se tornasse claro o que é cristianismo. Tal como, num Estado onde um ministério rebelado tomou o poder e o rei é mantido longe enquanto o ministério rebelado age em nome do rei: assim é a conduta da especulação ao mediar o cristianismo. Contudo, o equívoco de que o cristianismo devesse ser um elemento no interior da especulação, ensejou decerto que a especulação transigisse um pouco. A especulação assumiu o título de "cristã", quis reconhecer o cristianismo pela adição desse adjetivo, tal como às vezes pelo casamento envolvendo famílias nobres se forma um nome composto a partir das duas famílias, ou assim como quando empresas comerciais se unem numa única firma que carrega, contudo, o nome de ambas. Se fosse então o caso, como tão facilmente se admite, de que tornar-se cristão não seja nada, então o cristianismo deveria de fato estar numa louca alegria por ter conseguido um tão bom partido e ter obtido honra e dignidade quase iguais às da especulação. Se, pelo contrário, o tornar-se cristão é a mais difícil de todas as tarefas, então o ilustríssimo especulante parece ter tirado maior lucro à medida que passa a ser cristão graças à sua firma. Mas o tornar-se cristão é realmente a mais difícil de todas as tarefas, porque a tarefa, embora a mesma, varia de acordo com as habilidades dos respectivos indivíduos. Esse não é o caso das tarefas que pressupõem diferenças. No que toca ao entender conceitual, por exemplo, alguém com boa cabeça tem uma vantagem direta sobre o de inteligência limitada, mas isso não vale em relação ao crer. Com efeito, quando a fé exige que se renuncie ao entendimento, então ter fé torna-se tão difícil para o mais inteligente quanto para o de inteligência mais limitada, ou se torna até mesmo mais difícil para o primeiro. Vê-se de novo o equívoco de se transformar o cristianismo em uma doutrina, onde o que interessa é compreender, pois, deste modo, o tornar-se cristão reside na diferença. [VII 327] O que falta então aqui? O acordo preliminar, onde se fixa o status de cada uma das partes antes da nova firma ser estabelecida. - Mas vamos adiante: esta especulação cristã especula, então, no interior do cristianismo. Porém, essa especulação é algo diferente daquele usus instrumentalis [lat.: uso instrumental] da razão e algo diferente daquela especulação que, de modo inteiramente consequente, já que era especulação apenas dentro do cristianismo, admitia que fosse verdade na filosofia uma coisa que não o era na teologia. Assim entendido, está certo especular no interior de uma pressuposição, o que a especulação cristã afinal quer indicar com o predicado "cristão". Mas se essa especulação, que começa com uma pressuposição, enquanto especulação avança sempre mais e por fim especula inclusive a pressuposição, ou seja, remove a pressuposição - o que acontece? Bem, neste caso a pressuposição era um jogo de sombras. Sobre os habitantes de Mol narra-se que esses, comovidos pela visão de uma árvore que se inclinava sobre o rio, com a ideia de que ela estivesse com sede, resolveram ajudá-la. Para esse fim, um Molbo pendurou-se à árvore, o próximo agarrou-se às suas pernas, e, assim formaram toda uma corrente, com o propósito comum de ajudar a árvore - tudo isso com o pressuposto de que o primeiro deles seguraria firme. Pois o primeiro era a pressuposição. Mas o que acontece? Subitamente, este se solta para cuspir nos punhos e assim segurar-se ainda melhor - e então? Então todos os Molboer caíram na água - e por quê? Porque a pressuposição foi abandonada. Especular no interior de uma pressuposição de modo a que finalmente se especule a pressuposição é exatamente a mesma proeza que pensar, no interior de um hipotético "se", algo tão evidente que ele adquire o poder de transformar em realidade a hipótese no interior da qual se obteve tal poder. - E de que outra pressuposição se pode, em suma, falar em relação à assim chamada especulação cristã, a não ser dessa, de que o cristianismo seja o exato oposto da especulação, que ele seja o miraculoso, o absurdo, com a exigência de que o indivíduo deva existir nele e não perder tempo com o compreender especulativo. Se se há de especular no interior dessa pressuposição, então a especulação terá como tarefa, por sua vez, o concentrar-se na impossibilidade de se compreender de modo especulativo o cristianismo, [VII 328] algo que foi descrito anteriormente como a tarefa do sábio singelo. Mas talvez diga o especulante: "Se o cristianismo deve ser assim o exato oposto da especulação, seu contrário absoluto, então nem posso chegar a especular sobre ele; pois toda especulação consiste na mediação e na afirmação de que só há opostos relativos". "Talvez seja assim", eu responderia, "mas por que falas assim? É para me apavorar, para que eu tenha medo da especulação e do enorme prestígio de que ela goza numa certa opinião pública, ou é para me conquistar, de modo a que eu tenha de considerar a especulação como o bem supremo?" Aqui não se questiona se o cristianismo tem razão, mas sobre o que o cristianismo é. A especulação deixa de lado o acordo preliminar, por isso é que dá certo com a mediação. Antes de mediar, ela já mediou, ou seja, transformou o cristianismo em uma doutrina filosófica. Assim, porém, que o acordo estabelece o cristianismo como o oposto da especulação, então a mediação é eo ipso impossível, pois toda mediação se dá no interior da especulação. Se o cristianismo é o oposto da especulação, então ele é também o oposto da mediação, pois a mediação é a ideia da especulação; o que significará, então, mediá-lo? Mas o que é o oposto da mediação? É o paradoxo absoluto. Deixemos então alguém que não se declara cristão perguntar o que é o cristianismo. Assim a coisa fica o mais natural possível, e evita-se a confusão, tão ridícula quanto triste, de que Fulano e Beltrano, que são eles mesmos sem mais cristãos, para uma nova confusão se deem ao trabalho de explicar o cristianismo especulativamente, o que é quase insultá-lo. Se o cristianismo fosse uma doutrina filosófica, então poder-se-ia honrá-lo dizendo que ele é difícil de compreender (especulativamente), mas, se o próprio cristianismo assume que a dificuldade está em se tornar e em ser um cristão, então não deveria ser difícil compreendê-lo - a saber, compreendê-lo de tal modo que se possa começar pela dificuldade - de se tornar e de ser um cristão. O cristianismo não é uma doutrina (Oxalá não surja aqui em seguida um apressadinho para explicar ao mundo dos leitores quão tolo é todo o meu livro, o que se vê mais do que o suficiente pelo fato de eu espalhar algo desse tipo, que o cristianismo não é uma doutrina. Vamos nos compreender mutuamente. Uma coisa é decerto uma doutrina filosófica, que quer ser captada conceitualmente [begribes] e especulativamente compreendida [forstaaes], outra coisa uma doutrina que quer ser realizada [realiseres] na existência. Quando, no que concerne a esta última doutrina for o caso de compreensão, então esta compreensão tem de ser compreender que se deve existir nela, compreender quão difícil é isso, existir nela, quão enorme tarefa existencial essa doutrina coloca ao que a aprende. Quando, assim, a uma época dada, em relação a uma doutrina desse tipo (uma comunicação existencial) tornou-se comum admitir que é extremamente fácil ser o que a doutrina manda, mas que é tão difícil compreender a doutrina especulativamente: aí alguém pode estar em bom entendimento com esta doutrina (comunicação existencial), quando se procura mostrar quão difícil é segui-la em existindo. Em relação a uma doutrina dessas é, pelo contrário, um mal-entendido querer especular sobre ela. Uma dessas doutrinas é o cristianismo. Querer especular sobre ele é um mal-entendido e, quanto mais a gente avança por este caminho, tanto maior é o mal-entendido que a gente comete. Quando finalmente se alcança aquele ponto de não apenas querer especular, mas de tê-lo compreendido especulativamente, chega-se ao extremo do mal-entendido. Este ponto foi alcançado graças à mediação de cristianismo e especulação, e por isso é bem correto dizer que a moderna especulação é o supremo mal-entendido do cristianismo. Se as coisas estão de fato assim, e se está dado, além disso, que o século XIX é tão terrivelmente especulativo, então há que se temer que a palavra doutrina a cada instante seja compreendida no sentido de uma doutrina filosófica que deve e quer ser compreendida conceitualmente. Para evitar tal equívoco, optei por chamar o cristianismo de uma comunicação existencial, para designar corretamente sua diferença frente à especulação), mas expressa uma contradição existencial e uma comunicação existencial. Se o cristianismo fosse uma doutrina, [VII 329] eo ipso não configuraria a oposição à especulação, mas seria um momento no interior desta. O cristianismo tem a ver com existência, com o existir, mas existência e existir são justamente o oposto da especulação. A doutrina eleática, por exemplo, não se relaciona à existência, mas sim à especulação; por isso, é justo assinalar-lhe seu lugar no interior da especulação. Justamente porque o cristianismo não é doutrina, por isso vale, como já foi desenvolvido, que existe uma enorme diferença entre saber o que é cristianismo e ser cristão. Em relação a uma doutrina, esta distinção é impensável, porque a doutrina não se relaciona com o existir. Não posso remediar se nossa época inverteu a relação e transformou o cristianismo numa doutrina filosófica, que deve ser compreendida, e o ser cristão numa insignificância. De resto, que só porque o cristianismo não é uma doutrina se deva concluir que o cristianismo é vazio de conteúdo, é apenas uma chicana. [VII 330] Quando um crente existe na fé, sua existência tem um enorme conteúdo, mas não no sentido de um ganho em parágrafos. Tentei expressar a contradição existencial do cristianismo no problema: que uma felicidade eterna seja decidida aqui no tempo por uma relação com algo de histórico. Se eu dissesse que o cristianismo é uma doutrina sobre a Encarnação, sobre a Redenção etc., o mal-entendido logo ficaria facilitado. A especulação apodera-se dessa doutrina, aponta para a interpretação menos perfeita etc., do paganismo e do judaísmo. O cristianismo se torna um momento, talvez um momento supremo, mas essencialmente especulação. §3 O problema das Migalhas como um problema introdutório, não ao cristianismo, mas ao tornar-se cristão. Dado que nem nas Migalhas nem agora tive a pretensão de explicar o problema, mas apenas de propô-lo, assim também meu procedimento é: o de continuamente aproximar-me dele, introduzi-lo, porém, convém notar, que esta introdução fique de um gênero próprio, dado que não há nenhuma transição direta da introdução para o tornar-se cristão, mas que, ao contrário, este é o salto qualitativo. Tal introduzir, portanto (justamente porque o introduzir em sentido usual é uma contradição com relação à decisão do salto qualitativo), é [do tipo] repelente; não facilita entrar naquilo ao qual conduz; ao contrário, dificulta. Muito embora seja algo bonito e bem-intencionado, considerando que o ser um cristão há de ser o bem supremo, querer auxiliar as pessoas a se tornarem tais facilitando o acesso: eu assumo, confiadamente, a responsabilidade de tornar isso difícil, tão difícil quanto possível, segundo minhas parcas capacidades, sem, porém, fazer com que seja mais difícil do que o é - esta responsabilidade eu assumo para mim, isso é algo que se pode por certo tomar sobre si num experimento. Eu penso assim: se isso é o bem supremo, então é melhor que eu saiba com certeza que não o possuo, a fim de eu poder aspirar com toda a força alcançá-lo, do que, enfeitiçado numa ilusão, imaginar que o possuo e, por conseguinte, nem ter em mente buscá-lo. Assim compreendido, não nego de jeito nenhum que considero o batismo das crianças não apenas defensável como ortodoxo, e louvável como uma expressão da piedade dos pais, que não poderiam suportar ficar separados de seus filhos no que se refere ao que, para eles, é uma questão de felicidade, [VII 331] mas também, ainda num outro sentido, para o qual não se atenta, eu o considero como um bem - porque ele deixa o tornar-se cristão ainda mais difícil. Isso eu já expus em outro lugar; aqui devo apenas complementar. Que a decisão exterior, pela qual me torno um cristão, esteja antecipada, faz com que a decisão, se ocorrer, torne-se puramente interior e que sua interioridade seja, por isso, até maior do que se a decisão também ocorresse no exterior. Quanto menos exterioridade, mais interioridade. É algo de profundo e maravilhoso que a mais apaixonada decisão se produza numa pessoa de tal modo que não seja exteriormente detectada de jeito nenhum: era cristã, e contudo se tornou tal. Assim, se um cristão batizado na infância se torna verdadeiramente um cristão, e se torna tal com a mesma interioridade como quando alguém que não é cristão passa para o cristianismo, a interioridade de sua passagem só pode ser a maior de todas, justamente porque não há nenhuma exterioridade. Mas, por outro lado, a ausência do exterior é decerto uma tentação e pode facilmente tornar-se uma tentação para muitos, para assim deixar em suspenso a decisão, tal como se pode ver melhor na possibilidade de que um ou outro venha a se surpreender com a ideia de que ser batizado na infância possa significar que ficou mais difícil tornar-se um cristão. Entretanto, esse é o caso, e todas as analogias hão de confirmar a correção da proposição: quanto menos exterioridade, mais interioridade - se esta está verdadeiramente lá; mas também, quanto menos exterioridade, maior a possibilidade de que a interioridade fique inteiramente ausente. A exterioridade é o vigia que acorda o adormecido; a exterioridade é a mãe cuidadosa que chama seu filho; a exterioridade é o apelo que põe de pé o soldado; a exterioridade é o toque de marchar que ajuda cada um ao grande esforço; mas a ausência da exterioridade pode significar que a interioridade mesma chama por alguém interiormente: ai, mas igualmente pode significar que a interioridade esteja ausente. Contudo, não é só assim que aquilo que tenho de chamar de uma introdução ao tornar-se cristão é extremamente diferente daquilo que em geral se chama introdução, mas é também extremamente diferente de uma introdução ao cristianismo, no caso de esta partir do ponto de vista de que o cristianismo é uma doutrina. Tal introduzir não conduz ao tornar-se cristão, mas höchstens [al.: no máximo] à percepção, por meio de uma visão histórico-universal, da excelência do cristianismo em relação ao paganismo, ao judaísmo etc. O introduzir ao qual eu me dedico consiste em, rechaçando, fazer com que seja difícil tornar-se cristão, e ele concebe o cristianismo não como uma doutrina, mas como uma contradição existencial e comunicação existencial; [VII 332] não introduz, por isso, em termos histórico-universais, mas psicologicamente, ao tornar atento ao quanto ele deve ser vivido e ao quão difícil é tornar-se realmente atento à dificuldade da decisão. O que eu tenho dito bastante frequentemente, mas não consigo repetir frequentemente o bastante, tanto por mim, porque isso me ocupa muito profundamente, quanto também por causa dos outros, para que não os confunda, vou aqui repetir: não é ao homem simples que este [modo de] introduzir pode fazer com que seja difícil tornar-se cristão. Que aí também dele se exige o máximo esforço para se tornar cristão, é bem a minha opinião, além de que ninguém lhe presta favor algum ao tornar isso fácil demais, mas qualquer tarefa existencial essencial refere-se igualmente a todo homem e, portanto, faz com que a diferença seja proporcional ao modo como o indivíduo é dotado. Dominar-se a si mesmo é tão difícil para o sagaz quanto para o simples, talvez até mais difícil, porque sua sagacidade o ajudará com muitas escusas astutas. Compreender que um ser humano não é capaz de nada (a bela e profunda expressão da relação para com Deus) é tão difícil para um rei notavelmente dotado quanto para uma pessoa pobre, miserável, talvez até mais difícil, porque facilmente lhe tenta o fato de ele ser capaz de tantas coisas. O mesmo se dá com o tornar-se e o ser cristão. E quando a cultura e coisas semelhantes conseguiram fazer com que seja tão fácil tornar-se um cristão, então está certo que o indivíduo singular, segundo suas parcas habilidades, procure torná-lo difícil, contanto que, de qualquer modo, não torne a coisa mais difícil do que ela já é. - Mas quanto mais cultura e conhecimento - tanto mais difícil é tornar-se um cristão. Se se quiser considerar o diálogo Hippias como uma introdução ao que é o belo, então se terá nele uma espécie de analogia ao tipo de introdução como aquela de que estou falando. Ou seja, depois de apresentadas algumas tentativas de explicar o que é o belo, todas elas reduzidas a nada, o diálogo termina com o dito de Sócrates de que do diálogo ele tirou o proveito de ter aprendido que a questão é difícil. Se Sócrates tem razão num tal procedimento, visto que o belo é uma ideia, e não se relaciona com o existir, não decidirei. Mas quando, na Cristandade, parece que muito já foi feito, ou se quer fazer, para se chegar a esquecer o que é o cristianismo, então o melhor juízo é o que considera uma introdução apropriada [VII 333] (para nada dizer sobre ser a única em relação ao tornar-se cristão) se, em vez de se assemelhar às introduções usuais - e aos tarefeiros que os hotéis enviam a acolher de imediato os viajantes na alfândega e recomendar-lhes suas instalações -, termina por fazer o tornar-se cristão difícil, embora a introdução tenha também procurado mostrar o que o cristianismo é. Vê só, a hospedaria precisa dos viajantes; porém, com relação ao cristianismo, seria mais apropriado se as pessoas compreendessem que elas é que precisam do cristianismo. A distinção entre saber o que é o cristianismo (o mais fácil) e ser um cristão (o mais difícil) não se aplica ao belo ou à doutrina sobre o belo. Se o diálogo Hippias tivesse elucidado o que é o belo, nada teria restado que criasse dificuldade, e aquele diálogo não teria absolutamente nada que correspondesse ao caráter dúplice de nosso empreendimento: o qual elucida o que é o cristianismo, mas só dificulta o tornar-se cristão. Mas se o tornar-se cristão é o difícil, a decisão absoluta, então não pode haver introdução sem algo de repelente que, justamente pela repulsão, chama atenção para o fato de que esta é a decisão absoluta. Mesmo com a mais longa introdução voltada para a decisão, a gente não se aproxima um único passo da decisão, pois, caso contrário, a decisão não é a decisão absoluta, o salto qualitativo, e a gente é feito de bobo em vez de ser auxiliado. Que a introdução, entretanto, em seu máximo não chegue nem um passo mais perto daquilo a que introduz, expressa, por sua vez, que ela só pode ser repelente. A filosofia introduz diretamente ao cristianismo; a introdução historicizante e retórica idem, e isto dá certo - porque ali se introduza uma doutrina, mas não ao tornar-se cristão. SECTIO 2 O PROBLEMA PROPRIAMENTE DITO A felicidade eterna do indivíduo é decidida no tempo através de uma relação para com algo histórico que, além disso, é histórico de tal modo que sua composição contém algo que, de acordo com sua natureza, não pode tornar-se histórico e que, por conseguinte, deve tornar-se tal em virtude do absurdo. O problema é patético-dialético. O patético reside no primeiro, [VII 334] pois a paixão de uma pessoa culmina na relação patética para com uma felicidade eterna. O dialético reside no último, e a dificuldade é justamente que o problema esteja assim composto. Amar é pathos imediato; relacionar-se com uma felicidade eterna é, na esfera da reflexão, pathos imediato; o dialético reside em que a felicidade eterna, com a qual se pretende que o indivíduo se relacione de forma pateticamente correta, seja, ela própria, feita dialética por meio de determinações ulteriores, que, por sua vez, operam como um incitamento para levar a paixão ao seu extremo. Quando alguém expressa, existindo, e por mais tempo expressou, que renuncia, e que renunciou a tudo para se relacionar com o absoluto, a presença de condições exerce uma influência absoluta no tensionamento da paixão tão alto quanto possível. Já em relação ao pathos relativo, o dialético é como óleo no fogo, que expande o âmbito interior e inflama intensamente a paixão. Mas já que está esquecido o que significa existir sensu eminenti, como usualmente localizamos o patético na imaginação e no sentimento e deixamos que o dialético o anule, ao invés de reunir a ambos na contemporaneidade da existência, assim, em nosso filosófico século XIX, o patético caiu em descrédito, e o dialético tornou-se desapaixonado, assim como se tornou muito fácil e geläufigt [al. (com terminação dinamarquesa): corriqueiro, simples, comum] pensar contradições - pois a paixão é justamente o palpitante da contradição, e quando isso é deixado de lado a paixão é uma Plaisanterie [fr.: amenidade], um Bonmot [fr.: observação graciosa]. Um problema existencial é, pelo contrário, patético-dialético, o aqui exposto exige interioridade existencial para alcançar o patético, paixão no pensamento para alcançar a dificuldade dialética, e paixão concentrada, porque há que existir nela. Para elucidar o problema, devo, primeiro, discutir o patético, e depois o dialético, mas peço ao leitor que continuamente recorde que a dificuldade finalmente consiste em compor as duas coisas, que o existente, que, em absoluta paixão, expressa pateticamente por sua existência sua relação patética para com a felicidade eterna, deva agora relacionar-se com a decisão dialética. Tanto como está tensionado pateticamente em relação com sua felicidade eterna, na mesma medida há de socraticamente temer estar num erro. Por isso, seu esforço é o maior possível, ainda mais porque o logro é muito fácil, pois não há nada de exterior para se ver. No amor humano, o indivíduo tem a ver com outro ser humano, pode ouvir seu sim ou seu não; em todo empreendimento do entusiasmo, o indivíduo tem ainda algo de exterior, mas em relação à felicidade eterna o indivíduo tem a ver apenas consigo mesmo em interioridade. Tem grátis a palavra em sua língua mãe; pode em seguida aprender a recitar de cor um pouco disso e um pouco daquilo; no que toca ao exterior, a representação de uma felicidade eterna não oferece nenhum proveito para uma pessoa, [VII 335] pois ela só se apresenta quando esta pessoa aprendeu a desprezar o exterior e esqueceu a concepção mundana do que é vantajoso; no que toca ao exterior, a falta dessa concepção tampouco prejudica uma pessoa; pode muito bem tornar-se sem ela "um esposo, um pai, um rei dos atiradores" e, se é algo assim o que deseja, esta representação irá apenas perturbá-lo. O pathos existencial essencial em relação a uma felicidade eterna é comprado tão caro que, num sentido finito, comprá-lo deve ser simplesmente considerado como loucura, como é bem frequentemente expresso de diversas maneiras: uma felicidade eterna é um papel cujo preço de mercado não tem mais cotação no especulativo século XIX; na melhor das hipóteses, os reverendos curas d'alma podem usar uma promissória assim cassada para fazer de bobos os campônios. O engano é tão fácil - que o senso comum deve sentir-se simplesmente orgulhoso por não ter, tolamente, embarcado nesta galera. Por isso é tão tolo, a não ser que alguém tenha uma vida dialética à Ia de um apóstolo, querer tranquilizar as pessoas na questão da felicidade, pois, em relação a algo em que a pessoa individual só tem a ver consigo mesma, o máximo que uma pessoa pode fazer pela outra é torná-la inquieta. A O patético § 1 A expressão inicial do pathos existencial, a orientação absoluta (Respeito) frente ao absoluto expressa pela ação na transformação da existência - o pathos estético - O engano da mediação - O movimento monástico da Idade Média - Ao mesmo tempo relacionar-se absolutamente com seu próprio absoluto e relativamente com os relativos Em relação a uma felicidade eterna como o bem absoluto, pathos não significa meras palavras, mas sim que esta representação transforma toda a existência de um existente. O pathos estético se expressa em palavras e pode, em sua verdade, significar que o indivíduo sai de si mesmo para se perder na ideia, enquanto que o pathos existencial resulta de a ideia relacionar-se com a existência do indivíduo recriando-a. Se o absoluto [VII 336], ao relacionar-se com a existência do indivíduo, não a transforma absolutamente, então o indivíduo não se comporta de modo patético-existencial, mas de modo patético-estético, por exemplo, ao ter uma representação correta, mas, note-se, pela qual ele está fora de si mesmo na idealidade da possibilidade com a correção da representação; não está junto a si mesmo na existência com a correção da representação na idealidade da realidade efetiva, não está, ele mesmo, transformado na realidade efetiva da representação. Para um existente, uma felicidade eterna se relaciona essencialmente com o existir, com a idealidade da realidade efetiva e, portanto, o pathos precisa corresponder a isso. Se se quiser tomar o enamoramento no sentido estético, é importante que a concepção do poeta a respeito do apaixonar-se seja mais elevada do que tudo o que a realidade efetiva oferece; é importante que o poeta possa possuir uma idealidade, comparada com a qual a realidade efetiva seja apenas um frágil reflexo; é importante que, para o poeta, a realidade efetiva seja meramente a ocasião que o enseja a abandonar a realidade efetiva para buscar a idealidade da possibilidade. O pathos poético é, portanto, essencialmente fantasia. Mas se, pelo contrário, se quer estabelecer eticamente uma relação de poeta para com a realidade efetiva, isso então é um mal-entendido e um retrocesso. O importante aqui, como em toda parte, é manter cada uma das esferas separada das outras, é respeitar a dialética qualitativa, a sacudida da decisão que modifica tudo, de modo que o que era o mais alto numa outra esfera deve ser absolutamente rejeitado nesta. Caso se tome o religioso, o importante é que este tenha percorrido o ético. Por isso, um poeta religioso é um caso especial. Com o auxílio da fantasia, quer, com efeito, um tipo desses, relacionar-se com o religioso, mas justamente por isso acaba por se relacionar esteticamente com algo de estético. Celebrar as façanhas de um herói da fé é uma tarefa tão estética quanto celebrar as façanhas de um herói guerreiro. Se o religioso é verdadeiramente o religioso, já percorreu o ético e o tem em si mesmo, então não pode esquecer que, no sentido religioso, o pathos não consiste em entoar cantos de louvor e celebrar façanhas nem em compor livros de canções, mas sim está no existir pessoalmente, de modo que a produção de poeta, se não ficar totalmente ausente, ou se fluir tão abundante quanto antes, é considerada pelo próprio poeta como algo de casual, o que mostra que ele se entende a si mesmo religiosamente, pois esteticamente a produção de poeta é o importante e o poeta é o contingente. Portanto, uma natureza poética que, pelas circunstâncias, pela educação, e coisas tais, traçou um rumo do teatro para a Igreja, pode provocar grande confusão. Fascinadas pelo estético que há nela, as pessoas acham que se trata de uma individualidade religiosa, ai, de uma proeminente individualidade religiosa (e justamente este aspecto de ser uma individualidade proeminente é apenas uma reminiscência estética [VII 337], pois, do ponto de vista religioso, não há proeminência, a não ser uma autoridade dialético-paradoxal do apóstolo, e proeminência, do ponto de vista religioso, de acordo com a dialética qualitativa que separa as esferas, é justamente retrocesso), embora também possa pura e simplesmente nem ser uma individualidade religiosa. Seu pathos é um pathos poético, o pathos da possibilidade, com a realidade efetiva como ocasião; mesmo que tenha pathos histórico-universal, trata-se do pathos da possibilidade - e, do ponto de vista ético, o pathos da imaturidade, pois, eticamente, maturidade é compreender a própria realidade ética efetiva como infinitamente mais importantes (Enquanto por isso muitas vezes se viu no mundo uma individualidade religiosa petulante que, ela mesma tão desmedidamente segura em sua relação para com Deus e atrevidamente convencida de sua salvação, com muita presunção gasta seu tempo em duvidar da dos outros e em ajudá-los, eu acredito que seria um discurso apropriado para uma pessoa verdadeiramente religiosa, se ela dissesse: Não duvido da salvação de ninguém; a única pela qual temo é a minha própria; mesmo que veja uma pessoa caída muito fundo, jamais ouso desesperar de sua salvação, mas, se se tratasse de mim mesmo, então decerto seria forçado a encarar o terrível pensamento. Uma individualidade autenticamente religiosa é sempre tão doce para com os outros, tão criativa ao imaginar desculpas; só em relação a si mesma ela é fria e rigorosa como um grande inquisidor. Com os outros, ela é como um idoso benevolente costuma ser com um jovem; só em relação a si mesma ela é velha e incorruptível) do que a concepção de toda a história do mundo. O pathos correspondente e adequado a uma felicidade eterna é a transformação por meio da qual o existente, ao existir, modifica tudo em sua existência conformando tudo com aquele bem supremo. (É assim que o indivíduo se conduz (também) nas coisas pequenas quando organiza sua vida. Se alguém precisa trabalhar para viver ou se neste aspecto foi favorecido, se quer viver casado ou solteiro etc., são coisas que mudam sua existência no momento da escolha ou no momento de assumir a responsabilidade. Mas já que mesmo isso é mutável, já que ele pode de repente se apaixonar, pode de repente ficar pobre etc., essas coisas não podem, a não ser por um absurdo, transformar sua existência de modo absoluto. Por mais estranho que seja, a sabedoria de vida relacionada a isto ou àquilo não é tão rara na vida, nem é, de jeito nenhum, tão raro ver um existente que expressa existindo que se relaciona com um fim relativo, que construiu sua vida sobre ele, que renuncia ao que nele o perturbaria, e põe sua esperança no que poderá ganhar com ele. Mas um existente que expressa existindo, que se relaciona com o bem absoluto é talvez uma grande raridade, um existente que verdadeiramente pode dizer: Eu existo de tal modo, renunciando transformei minha existência de tal modo que, se eu só esperasse para esta vida, seria o mais miserável de todos, isto é, o mais horrivelmente enganado, enganado por mim mesmo ao não me agarrar. [VII 338] - Quão alarmados os homens das finanças não se tornam quando o pagamento dos juros é subitamente interrompido; quão horrorizados os viajantes dos mares não ficariam se o governo bloqueasse os portos; mas posito [lat.: suposto], que eu suponha que a felicidade eterna não virá - quantos dentre os senhores cheios de esperança (e todos nós, é claro, esperamos por uma felicidade eterna) se achariam, por isso, numa situação embaraçosa?). [VII 338] Em relação à possibilidade, a palavra é o pathos supremo; em relação à realidade efetiva, a ação é o pathos supremo. Que um poeta, por exemplo, não se deixe influenciar por sua própria produção poética é algo que esteticamente está em ordem, ou é completamente indiferente, pois esteticamente a produção poética e a possibilidade são o que há de mais alto. Mas, eticamente, em contraste, isso é algo de infinita importância, pois eticamente a obra poética é infinitamente indiferente, mas para o poeta sua própria existência deveria ser infinitamente mais importante do que tudo o mais. Esteticamente, portanto, o pathos mais elevado por parte do poeta seria anular a si mesmo, ser desmoralizado, se isso se fizesse necessário, a fim de produzir obras poéticas de primeira qualidade; esteticamente é correto, para lembrar com uma palavra forte o que decerto ainda se faz, até mais frequentemente do que pensamos, vender a própria alma ao diabo - contanto que se produzam obras maravilhosas. Eticamente, talvez o pathos mais elevado consistisse em renunciar à brilhante existência de poeta sem dizer uma única palavra. Quando apraz a uma assim chamada individualidade religiosa descrever, com todo o encantamento da fantasia, uma felicidade eterna: isto significa que ela é um poeta escapado do estético que quer ter cidadania no religioso, sem nem compreender a língua materna deste. O pathos do ético consiste no agir. Portanto, quando um homem diz, por exemplo, que, por causa de sua felicidade eterna, sofreu fome, frio, esteve na prisão, em perigo no mar, foi desprezado, perseguido, flagelado etc., esse singelo discurso é um testemunho do pathos ético, visto que simplesmente se refere ao que ele, agindo, sofreu. Onde quer que o ético esteja incluído, toda atenção é chamada de volta para o próprio indivíduo e para o agir. Assim, o pathos do casamento é agir; o pathos do enamoramento é poesia. Eticamente, o pathos mais elevado é o pathos do estar-interessado (o que se exprime deste modo, que eu, agindo, transformo toda a minha existência na relação com o objeto do interesse); esteticamente, o pathos mais elevado é o do estar-desinteressado. Quando um indivíduo rejeita a si mesmo para alcançar algo de grande, [VII 339] é movido pelo entusiasmo estético; quando desiste de tudo para salvar a si mesmo, é movido pelo entusiasmo ético. O que aqui escrevo deve ser considerado como uma cartilha do ABC, não em sentido especulativo, mas em sentido simples. Qualquer criança sabe disso, ainda que não exatamente com a mesma experiência; qualquer um o compreende, embora não exatamente com a mesma certeza; qualquer um pode compreendê-lo; pois, de modo bem consequente, o ético é sempre muito fácil de compreender, provavelmente para que não se desperdice tempo com a compreensão, porém se possa começar imediatamente. Só que, em compensação, é muito difícil de cumprir - do mesmo modo para o sagaz e para o simples, já que a dificuldade não reside na compreensão; pois nesse caso o sagaz teria uma grande vantagem. A existência é composta de infinitude e de finitude; o existente é infinito e finito. Agora, se para ele uma felicidade eterna é o bem mais elevado, então isso significa que os momentos da finitude são, de uma vez por todas, reduzidos por sua ação àquilo a que se deve renunciar em relação com a felicidade eterna. Uma felicidade eterna se relaciona pateticamente com alguém essencialmente existente, não com um orador que seja tão cortês a ponto de incluí-Ia na lista de coisas boas pelas quais ele suplica. A gente geralmente abomina negar que haja tal bem; então o inclui, mas, exatamente ao incluí-lo, mostra que não conta com ele. Não sei se há que rir ou chorar ao ouvir a lista: um bom ganha-pão, uma esposa bonita, saúde, o posto de conselheiro de justiça - e, então, uma felicidade eterna, o que é o mesmo que admitir que o Reino dos céus é um reino em meio a todos os outros reinos da terra, e querer buscar informações sobre ele na geografia. É bem estranho que só por falar sobre uma coisa alguém já possa mostrar que não está falando sobre essa coisa; pois dever-se-ia crer que só se poderia mostrar tal coisa ao não se falar dela. Se fosse assim, então se pode ter falado alguma coisa sobre a felicidade eterna e, contudo, quando se fala assim, nada se diz sobre ela ou, expressando de modo mais definido, não se falou sobre ela. Esteticamente, a gente pode muito bem desejar saúde, boa fortuna, a moça mais bonita - em resumo, tudo o que é estético-di ai ético; mas então ao mesmo tempo desejar para si a felicidade eterna é galimatias duplo, em parte porque a gente quer isso ao mesmo tempo e, com isso, se converte a felicidade eterna num prêmio sob a árvore de Natal, e em parte porque se deseja, pois uma felicidade eterna se relaciona essencialmente ao existir, e não, estético-dialeticamente a alguém que cultiva desejos como nas histórias infantis. Entretanto, a felicidade eterna muitas vezes tem de se contentar com ser incluída entre outros bon-bon [fr.: docinhos], e se considera como três bien [fr.: muito bem] da parte de uma pessoa, que ela ao menos a inclua; [VII 340] isso é considerado como quase o máximo que se pode fazer a esse respeito. E se vai mais longe, pois no que toca às outras coisas boas não se supõe que elas venham só porque as desejamos; mas a felicidade eterna, basta que a desejemos, para que venha. O homem experiente sabe, com efeito, que os dons da fortuna são distribuídos de maneira variada (porque a diferença é justamente a dialética da fortuna), mas a felicidade eterna (que, é bom notar, foi também transformada num dom da fortuna) é repartida igualmente para todos os senhores que a desejarem. Confusão dupla: primeiro, que a felicidade eterna se torne um bem desse tipo (considerada como um ganha-pão excepcionalmente avantajado e coisas tais), e então que seja repartido igualmente, o que é uma contradição em relação com ser dom da fortuna. De fato, o estético e o ético foram misturados em cômoda algaravia: do estético se toma a definição essencial, e do ético a igualdade na repartição. Mas dirá, talvez, um desses senhores aspirantes, um "homem sério" que realmente quer fazer alguma coisa por sua felicidade eterna: "Não se pode aprender com certeza, breve e claramente, o que é uma felicidade eterna? Não podes descrevê-la para mim 'enquanto eu me barbeio’, tal como a gente descreve os encantos de uma mulher, a púrpura real, ou regiões distantes?" Que bom que eu não posso fazê-lo, que bom que eu não seja uma natureza poética ou um clérigo bonachão, pois aí eu seria capaz de começar a fazê-lo, e talvez tivesse êxito - em, novamente, classificar a felicidade eterna sob as categorias estéticas, de modo a que o máximo de pathos se tornasse a magnificência da descrição, ainda que seja uma tarefa que, esteticamente, baste para levar ao desespero - dever, esteticamente, compor algo [a partir] de uma abstração como uma felicidade eterna. Esteticamente, é bem válido que eu, como um espectador, me encante pelo cenário da peça, pelo luar teatral, e vá para casa depois de ter passado uma noitada extremamente agradável, mas, eticamente, o que importa é que não há nenhuma outra transformação a não ser a minha própria. Eticamente, é inteiramente consistente que o pathos supremo do essencialmente existente corresponda ao que, esteticamente, vem a ser a representação mais pobre, e essa é uma felicidade eterna. De modo correto (esteticamente entendido) e engraçado já foi dito que os anjos são os mais aborrecidos de todos os seres, a eternidade a mais longa e mais aborrecida de todas as jornadas, dado que já um domingo é bastante aborrecido, uma felicidade eterna é uma infindável Einerlei [al.: mesmice], [VII 341] e que até a infelicidade é preferível. Mas, eticamente, está tudo certo, para que o existente não seja levado a desperdiçar tempo imaginando e imaginando - mas seja, sim, motivado a agir. Ora, se um existente deve relacionar-se pateticamente com uma felicidade eterna, então importa que a existência dele expresse a relação. Logo que se sabe como um indivíduo existe, então também se sabe como ele se relaciona com uma felicidade eterna, isto é, se ele se relaciona ou não; tertium non datur [lat.: não há terceira opção], precisamente porque o absoluto não pode ser tomado junto. Contudo, ninguém sabe disso, a não ser o próprio indivíduo consigo mesmo em sua própria consciência, e por isso ninguém precisa ouvir a conversa de outro, ou ler o escrito de outro, ou ir ver o pastor, a comédia, ou a comédia do pastor - para ver e ouvir: o luar teatral do além, o murmurinho do riacho nas verdes campinas da eternidade. Precisa apenas prestar atenção à sua própria existência; então ele já sabe. Se isso não transformar sua existência absolutamente, então ele não se relaciona com uma felicidade eterna; se há algo a que ele não quer renunciar em nome disso, então ele não se relaciona com uma felicidade eterna. Até mesmo um relativo transforma parcialmente a existência de um ser humano. Mas, já que a existência, em nosso especulativo século XIX, foi desafortunadamente transformada num pensar a respeito de tudo o que for possível, nós, ainda mais raramente, vemos uma existência enérgica orientada apenas para um relativo. Querer juntar dinheiro energicamente já transforma uma vida humana, para nem falar sobre o absoluto, o querer no mais alto sentido. Todo querer relativo se distingue por querer algo em função de alguma outra coisa, mas o supremo deve ser querido em função de si mesmo. E este supremo não é um algo, pois, se assim o fosse, corresponderia relativamente a alguma outra coisa e seria finito. Mas é uma contradição querer absolutamente algo finito, pois o finito deve realmente chegar a um fim, e, por conseguinte, há de vir um tempo em que não poderá mais ser querido. Mas querer absolutamente é querer o infinito, e querer uma felicidade eterna é querer absolutamente, porque ela tem de poder ser querida a qualquer instante. E por isso é tão abstrata e, do ponto de vista estético, a mais pobre das representações, porque é o absoluto para alguém que se esforçará absolutamente - e que não imaginará, irrefletidamente, que já concluiu o que tinha que ser feito, e não se tornará tolamente envolvido em pechinchar, com o quê apenas perderia o absoluto [VII 342] e no sentido finito é tolice, justamente porque no sentido infinito é o absoluto. E por isso aquele que quer, de maneira alguma quer saber qualquer coisa sobre este, exceto que ele existe, pois tão logo aprende algo sobre ele, já começa a desacelerar seu passo. Mas o patético reside em, existindo, expressar isso na existência; o patético não reside em dar testemunho de uma felicidade eterna, mas em transformar a própria existência num testemunho dela. O pathos poético é o pathos da diferença, mas o pathos existencial é o pathos do homem pobre, o pathos para qualquer um, porque qualquer ser humano pode agir em si mesmo, e, às vezes, encontramos numa criada o pathos procurado em vão na existência de um poeta. O próprio indivíduo pode então facilmente examinar o modo pelo qual se relaciona com uma felicidade eterna ou se se relaciona mesmo com ela. Precisa apenas permitir que a resignação inspecione toda a sua imediatidade, com todos os seus anseios etc. Se encontrar um único ponto fixo, um enrijecimento, então ele não está se relacionando com uma felicidade eterna. Nada é mais fácil - quer dizer, se isso é difícil é justamente porque sua espontaneidade não está desejando expor-se à inspeção; mas é claro que isso já é uma prova mais do que suficiente de que o indivíduo não se relaciona com uma felicidade eterna. Pois, com efeito, que a resignação visite a espontaneidade, significa que o indivíduo não pode ter sua vida nela, e a resignação significa aquilo que pode acontecer na sua vida. Mas se o indivíduo se encolhe neste ponto, quer seja tão feliz que não ouse informar-se sobre nada de diferente, ou, embora imaginando-se o mais infeliz de todos, mesmo assim suspeite de que poderia tornar-se ainda mais infeliz; quer seja esperto e calcule com as probabilidades, ou fraco e ponha sua esperança nos outros - em resumo, se o indivíduo se encolhe neste ponto, então não se relaciona com uma felicidade eterna. - Se, entretanto, a resignação visitante não descobre nenhuma irregularidade, isto mostra que o indivíduo, no instante da visitação, se relaciona com uma felicidade eterna. Mas talvez diga alguém, alguém bem situado, com esposa e filhos, numa vida confortável, aconchegadamente abrigado, e que é um conselheiro da justiça, um "homem sério" que, contudo, quer fazer algo por sua felicidade eterna, contanto que os negócios de seu ofício e de sua esposa e filhos o permitam, um entusiasta que, sabe deus, não receie despender dez táleres reais nisso: "Vamos em frente com este serviço de inspeção, mas tão logo, tão logo quanto possível tiver terminado, então passaremos à mediação, não é verdade? Pois eu devo dizer, a mediação é uma invenção magnífica; parece ter surgido de dentro do meu próprio coração, ela pertence inteiramente ao século XIX e, portanto, inteiramente a mim, que também pertenço ao século XIX, e eu admiro enormemente seu grande inventor, e todos precisam admirá-lo, todos os que, orientados histórico-universalmente, [VII 343] tenham entendido a legitimidade relativa de todos os pontos de vista anteriores, bem como a necessidade de que todos devam chegar à mediação". Sim, quem dera estar no lugar da mediação: ser reconhecido desta maneira até por conselheiros da justiça, e além disso por um conselheiro da justiça que observa a história do mundo, portanto, certamente um conselheiro da justiça incomum - mas não, estou me esquecendo do tempo em que vivemos, o teocêntrico século XIX; todos nós contemplamos a história do mundo - do ponto de vista de Deus. Mas esqueçamos o conselheiro da justiça e a história do mundo e o que ambos têm que decidir entre eles; vê bem, quando um alto oficial do governo ou o rei em pessoa viaja para revisar os cofres estatais, um oficial desonesto pode, às vezes, ter sucesso em deixar o caixa em ordem para o dia da inspeção, e pensa: Logo que este dia tiver passado, então tudo voltará à antiga rotina. Porém a resignação não é um rei que revisa o cofre a cargo de outro homem, mas está, certamente, de posse da consciência que o próprio indivíduo tem de si mesmo. Assim, a resignação não é de nenhuma maneira um viajante; ela toma a liberdade dê permanecer com a pessoa em questão a fim de fazer de cada dia um dia de inspeção, a não ser que seja posta porta afora, com o que tudo estará perdido, e o que decerto não é nenhuma mediação. Mas quando a resignação permanece lá e jamais cochila, quando está à mão ao menor desvio e não se afasta de seu lado quando ele sai, quer ele empreenda algo de grande ou de pequeno, e habita porta a porta com seus mais secretos pensamentos: O que há, onde está então a mediação? Eu acho que lá fora. O que é, com efeito, a mediação quando quer intrometer-se dentro do ético e do ético-religioso? É uma invenção miserável da parte de um homem que se tornou infiel a si mesmo e à resignação; ela é uma falsidade da indolência e, contudo, uma falsidade presunçosa, que se faz passar também por resignação, o que é o mais perigoso de tudo, como quando um ladrão se faz passar por policial. O mesmo se mostra em questões menores. A gente aguenta manter-se trabalhando por meio ano, talvez até, entusiasticamente, por um ano inteiro, num ou noutro empreendimento, sem perguntar pelo salário, ou se se está realizando alguma coisa, ou sobre segurança e garantias, porque a incerteza do entusiasmo é maior do que todas essas coisas; mas então a gente se cansa, aí se quer ter certeza, ao menos quer ter algo em troca dos incômodos. E quando as pessoas se cansam em relação ao eterno, quando ficam calculistas como um judeu trapaceiro, sensíveis como um pastor de beatas velhas, sonolentas como as virgens imprevidentes; [VII 344] quando quase não têm mais a capacidade de captar a verdade da existência (i. é, o que significa existir) como um tempo de enamoramento e como a corrida do entusiasmo rumo ao incerto: então chega a mediação. Ficar apaixonado por meio ano e com louco atrevimento arriscar tudo, isto já é alguma coisa; mas então, então a gente tem que, por Deus, conquistar a moça e chegar a estirar seus membros cansados no privilegiado leito nupcial. E em relação ao relativo à mediação bem pode ter sua significação, e este pode suportar ser mediado, porque não seria razoável relacionar-se de forma absoluta para com um relativo. Mas o absoluto só está presente quando o indivíduo se relaciona absolutamente com ele, e como uma felicidade eterna se relacionando com uma pessoa existente, é impossível que eles obtenham um ao outro, ou na tranquilidade pertençam um ao outro na existência, isto é, na temporalidade, do modo como uma moça e um jovem podem muito bem ter um ao outro no tempo, porque ambos são existentes. Mas o que significa que eles não possam ter um ao outro no tempo? Qualquer um que esteja apaixonado o sabe; significa que o tempo aqui é um tempo do enamoramento. Em relação a um relativo, parte do tempo é um tempo do enamoramento, e então chega o tempo da certeza, mas dado que a felicidade eterna está num nível mais alto do que uma mocinha, sim, até mais do que uma rainha, está certo que o tempo do enamoramento se torne um tanto mais longo, não, não um tanto mais longo, pois a felicidade eterna não é uma coisa que está num nível mais alto do que uma rainha, ela é, isso sim, o absoluto, mas então está de fato em ordem que todo o tempo, a existência, seja o tempo do enamoramento. No que tange a esta orientação para o absoluto, qualquer resultado, mesmo o mais magnífico que possa surgir na mente de alguém que anseia e na imaginação criativa de um poeta, seria uma perda absoluta se devesse ser a recompensa, e aquele que se esforça estará em melhor situação se disser: Não, obrigado! Permitam-me apenas relacionar-me com o absoluto. Quem não admirou Napoleão, quem, com um arrepio de devotamento - tal como a criança ouve o conto de fadas uma e outra vez com um arrepio relutante, mas tanto mais maravilhado, porque o adulto de resto deixa que o conto de fadas pertença à fantasia - não pensou que aqui o conto mais fantástico se tornou realidade efetiva! Ora, Thiers empenhou-se por contar esta história, e eis que, com a maior tranquilidade, com a experiência de um estadista, como se fosse inteiramente normal, ao descrever com admiração os planos de Napoleão para o mundo, disse mais de uma vez: Mas tudo dependeu, aqui como sempre, do resultado. [VII 345] Quem quiser representar-se de uma vez a grandeza de Napoleão e relembrar o comentário tão ligeiro, tão natural, tão geläufigt [al.: corrente, familiar] feito por Thiers, creio que terá a maior de todas as impressões de tristeza ao pensar sobre o que constitui a glória humana. Em verdade, se Napoleão é tão grande quanto a mais temerária representação, se sua vida inteira é como um conto de fadas, então, tal como no conto de fadas, há, na verdade, ainda outra figura fantasiosa. Trata-se de uma velha bruxa enrugada, um ser murcho, um animalzinho, uma aranha tendo numa antena algumas cifras - eles são o resultado. E o herói sobre-humano do conto de fadas, a quem nada, nada, pode resistir, está, contudo, em poder deste animalzinho - e se este animalzinho não o quiser, então toda a aventura ficará reduzida a zero, ou se tornará a história de uma aranha com uma estranha marca numa antena. Vê, a pessoa mais pobre e mais miserável, que emprega absolutamente tudo a fim de se relacionar com o absoluto - sim, é claro, isso não se torna um conto de fadas, mas tampouco uma história sobre um animalzinho com uma marca vermelha numa das antenas. Em relação ao plano mais sagaz, mais temerário, para recriar o mundo inteiro, importa que se torne grande em virtude do resultado, mas em relação a uma resolução simples e franca de um pobre ser humano, importa que este plano seja superior a qualquer resultado; sua grandeza não é dependente do resultado. E, contudo, mais bem-aventurado do que ser o maior homem do mundo e trabalhar como um escravo do resultado, quer este suceda como desejado, quer não suceda - é estar ali onde somos todos pequenos, nada diante de Deus, mas onde o resultado vale por zero e é infinitamente menos do que o menor no Reino dos Céus, enquanto que no mundo o resultado é o senhor de todos os senhores e o tirano dos monarcas. Quem não admirou Napoleão - que ele pudesse ser um herói e um imperador e que considerasse o ser poeta como algo secundário que ele incluía em si, pois as palavras em sua boca, a réplica -, de fato, nem mesmo um poeta que pusesse o seu prazer em ser o maior de todos os poetas seria capaz de colocar em sua boca uma réplica mais magistral. E no entanto eu creio que aconteceu, uma vez que ele mesmo não soubesse o que estava a dizer. Esta é uma história verdadeira. Enquanto fazia a ronda nos postos avançados, encontrou um jovem oficial que atraiu sua atenção. Retomou [à capital] e o oficial daquele posto assim e assim foi recompensado com uma medalha. Mas eis que o oficial tinha sido substituído e outro está em seu lugar. Ninguém consegue compreender de onde e por que aquela condecoração; o destinatário original fica a par do fato e envia a Napoleão uma petição com requerimento de retificação. Napoleão responde: Não, esse homem não me pode servir; ele não traz a sorte a seu lado. Se é que alguém pode sentir quando a morte caminha sobre seu túmulo; [VII 346] se é que é assim - e assim é num conto de fadas, e estamos realmente num conto de fadas -, que um homem, tão vivo em meio aos outros, se despedace à menção de uma palavra, se reduza a poeira e seja soprado para longe: então, no espírito dos contos de fadas, isso deveria ter acontecido a Napoleão neste caso, porque essa palavra teria mais a ver com ele do que com o oficial. Numa seção anterior, procurei mostrar a característica quimérica da mediação quando ela deve ser uma mediação entre a existência e o pensamento para um existente, visto que tudo o que é dito sobre a mediação pode ser verdadeiro e glorioso, mas se torna inverdade na boca de um existente, pois este, como existente, está impedido de obter tal ponto de apoio fora da existência, a partir do qual possa mediar aquilo que, além disso, por estar em processo de devir, impede a completude. Também foi mostrado que, em relação a um existente, toda a conversa sobre mediação é enganadora, já que o pensamento abstrato, para nem falar do pensamento puro, justamente ignora a existência, o que, do ponto de vista ético, é tão carente de mérito que chega a ser o oposto - é condenável. Fora da existência um existente pode decerto estar de dois modos, mas em nenhum desses modos ele chega a mediar. Um dos modos consiste em abstrair de si mesmo, ao conquistar uma impassibilidade e uma ataraxia cética, um estado de indiferença abstrata, que na Grécia era considerada algo muito difícil. O outro modo pelo qual um indivíduo pode estar fora da existência consiste em estar em estado de paixão, mas no instante da paixão ele ganha justamente a impulsão para existir. Admitir que um existente tem sucesso na mediação, pouco a pouco, é a tentativa usual de distrair a atenção para longe da dialética qualitativa com o auxílio de uma fantástica desaparição do tempo e de uma quantificação corruptora. Assim se examinou a mediação em sentido filosófico; aqui estamos numa investigação ética, e por isso a mediação tem de ser a mediação entre os momentos singulares da existência - se o absoluto é também um momento entre os outros momentos. Agora, aqui reside o mal-entendido, e facilmente se mostra que a mediação, como algo de superior à resignação, é, justamente, retrocesso. A resignação fez o indivíduo encarar, [VII 347] ou verificou se ele tinha encarado, uma felicidade eterna como o absoluto. Este então, não é um momento em meio aos outros momentos. O tanto-um-quanto-o-outro da mediação não é muito melhor, nem mesmo menos ingênuo, do que a tagarelice jovial, mais acima já descrita, que tudo inclui. No instante da resignação, da auto-orientação, da escolha, queremos deixar o indivíduo reverenciar o absoluto - mas então, então vem a mediação. Assim, também se pode ensinar um cão a andar sobre duas patas por um instante (Não exatamente isso, porque a pessoa que esteve sempre apropriadamente voltada em direção ao absoluto pode mesmo degenerar, afundar, afundar muito baixo, mas jamais consegue esquecê-lo de todo, o que está posto corretamente quando se diz que se requer uma elevação para que se possa descer. Mas a miserável invenção da mediação mostra que a pessoa que media não esteve jamais propriamente direcionada para o absoluto), mas então, então vem a mediação, e o cão anda sobre quatro patas - a mediação também faz isso. No sentido espiritual, o andar ereto do ser humano é seu respeito absoluto pelo absoluto; de outro modo, ele anda de quatro. No que tange aos momentos relativos, a mediação pode ter sua significação (de que todos são iguais diante da mediação), mas no que toca ao absoluto, mediação significa que o absoluto é reduzido a um relativo. Tampouco é verdade que o absoluto se concretize nos relativos, pois a distinção absoluta da resignação irá salvaguardar, a cada momento, o absoluto de toda e qualquer confraternização. É verdade que o indivíduo orientado em direção ao absoluto vive nos relativos, mas não está neles de modo a que o absoluto aí se esgote. É verdade que, diante de Deus e diante do absoluto, somos todos iguais, mas não é verdade que para mim ou para um indivíduo particular Deus ou o absoluto sejam iguais a tudo o mais. Pode ser muito louvável para o indivíduo particular ser um conselheiro de câmara, um trabalhador competente no escritório, primeiro amante nas representações teatrais da Sociedade Perpétua, um quase virtuoso na flauta, campeão do clube de tiro, diretor de um asilo, pai nobre e respeitado, em resumo, o diabo de um camarada que pode ser tanto-um-quanto-o-outro e consegue tempo para tudo. Mas o conselheiro que se cuide para não se tornar demais um diabo de camarada, que pode fazer tanto-um-quanto todo o resto e-ainda ter tempo [VII 348] para direcionar sua vida ao absoluto. Em outras palavras, este tanto-um-quanto-o-outro significa que o absoluto está no mesmo nível de tudo o mais. Mas o absoluto tem a notável característica de querer ser o absoluto a todo instante. Se, então, no instante da resignação, da auto-orientação, da escolha, um indivíduo o tiver entendido, isso certamente não quer dizer que ele deva esquecê-lo no instante seguinte. Portanto, como o expressei antes, a resignação permanece no indivíduo e a tarefa está longe de ter o absoluto mediado entre toda a sorte de tanto-um-quanto-o-outro que, bem pelo contrário, consiste em buscar um existir que tem no longo prazo o pathos do grande instante. O que particularmente contribuiu para fazer a mediação eclodir e se firmar nas pernas na esfera ética foi o modo como o movimento monástico medieval foi usado de modo intimidativo. O povo foi convencido de que o respeito absoluto do existente pelo absoluto conduziria ao mosteiro: que o próprio movimento monástico seria uma enorme abstração, a vida monacal uma abstração continuada, de modo que se passaria a vida só orando e cantando hinos - ao invés de jogando cartas no clube; pois se há de ser permitido, sem mais nem menos, caricaturar um lado, então decerto também se está autorizado a representar o outro lado como ele mesmo se caricaturou. Para, então, refrear o movimento monástico, do qual a sabedoria mundana soube tirar grande vantagem, e que até hoje algumas vezes ainda usa para pregar indulgência [liberadora] de qualquer ocupação com o divino, sim, num país protestante em que o protestantismo tem dominado por trezentos anos, onde quem quisesse entrar para um convento se veria em embaraço ainda maior do que aquele em que estava o pai preocupado que escreveu: Aonde devo mandar meu filho estudar; no século XIX, em que o espírito mundano triunfa, aqui ou ali ainda ouvimos um pastor que, num discurso em que encoraja os ouvintes a participar de alegrias inocentes da vida, adverte contra a entrada para o mosteiro; isso a gente ouve e vê, eis que o pastor transpira e seca o suor, tão arrebatado está por seu assunto - portanto, para refrear o movimento monástico, a gente inventou essa conversa enganadora da mediação. Pois tal como é conversa enganadora introduzir o nome de Deus na tagarelice ordinária, assim também é tolice colocar o absoluto [VII 349] na mesma linha que a dignidade de campeão do clube de tiro ou coisas semelhantes. Mas embora a Idade Média tenha errado por excentricidade, disso não se segue, de jeito nenhum, que a mediação seja louvável. A Idade Média tinha certa semelhança com a Grécia e tinha aquilo que os gregos tinham - paixão. Portanto, o movimento monástico é uma decisão apaixonada, como convém em relação ao absoluto e, neste ponto, é muito preferível, em sua nobre linhagem, à lastimável sabedoria de corretor da mediação. A mediação quer reconhecer (mas ilusoriamente, é bom notar, nem pode ser de outro modo) o instante patético da resignação, a orientação voltada ao absoluto, mas então quer incluir este em meio aos outros, e quer tirar vantagem, em sentido finito, da relação com este. Perguntemos então assim: Qual é o máximo que uma pessoa pode ganhar ao se relacionar com o absoluto? Em sentido finito, não há nada a ganhar, mas tudo a perder. Na temporalidade, a expectativa de uma felicidade eterna é a recompensa mais elevada, porque uma felicidade eterna é o absoluto, e que não só não haja recompensa a esperar, mas haja também sofrimento a suportar, eis justamente o sinal de que se está em relação com o absoluto. Tão logo o indivíduo não consiga se satisfazer com isso, significa que o indivíduo retrocede, à sabedoria mundana, ao apego judaico às promessas para esta vida, ao quiliasmo e a coisas do tipo. Nisso reside, precisamente, a dificuldade da tarefa de se relacionar absolutamente com o absoluto. Acontece repetidamente na vida humana que a gente procure escapatórias para ver se é possível liberar-se de caminhar assim nas pontas dos pés, livrar-se de - satisfazer-se com a relação para com o absoluto. Vê, o pastor diz, de fato: Há dois caminhos - e certamente é um desejo piedoso que o pastor deva dizer isso com justa ênfase. Então, há dois caminhos, diz o pastor, e quando ele começa este discurso nós sabemos muito bem o que ele quer dizer, mas podemos de bom grado escutá-lo mais uma vez, pois não se trata de anedota ou chiste, que só podem ser ouvidos uma vez. Há dois caminhos: um deles serpenteia sorridente e despreocupado, fácil de percorrer, acenando, coberto de flores, em meio a adoráveis regiões, e a marcha por ele é algo tão suave quanto dançar pelos prados; o outro caminho é estreito, pedregoso, difícil no início, mas, pouco a pouco... Ê o caminho do prazer e o caminho da virtude. Assim fala às vezes o pastor, mas o que acontece? [VII 350] Tal como o caminho da virtude vai mudando pouco a pouco, assim também muda (Eu bem que gostaria de saber que passagem do Novo Testamento o pastor usa como fundamento do discurso edificante sobre o "pouco a pouco". No Novo Testamento, também consta que há dois caminhos, e que um deles é estreito e que o portão é apertado e que ele conduz à salvação e que são poucos os que o encontram, porém ali absolutamente nada é dito sobre o "pouco a pouco". Mas assim como em Copenhague existe um comitê que trabalha para embelezar a cidade, assim também parece que uma moderna sabedoria pastoral opera para embelezar o caminho da virtude com decorações estéticas) o discurso do pastor e, pouco a pouco, os dois caminhos começam a se assemelhar um ao outro quase por completo. A fim de atrair o leitor à virtude, a descrição do caminho da virtude se torna quase sedutora. Mas atrair é uma coisa perigosa. O orador abandona a ética e opera de um modo que esteticamente é correto, com a ajuda da perspectiva abreviada - e então? Bem, então não há realmente dois caminhos, ou há dois caminhos de prazer, sendo um deles um pouquinho mais sagaz do que o outro, tal como quando, ao escalar uma montanha para apreciar a vista, o mais sagaz está em não se virar muito depressa - para apreciá-la ao máximo. E então? Então o amante do prazer (o eudemonista) não só é louco por escolher o caminho do prazer em vez do caminho da virtude, mas é, sim, um amante louco do prazer por não escolher o prazeroso caminho da virtude. Tão logo o "pouco a pouco" no caminho da virtude adquire um colorido estético na boca de um pastor: então estás com a boca cheia de mentiras, meu velho! Então Sua Reverência se permite esquecer que dispõe da existência como ninguém ousaria fazê-lo. Ele aponta para um tempo, e toda sua doutrina da virtude é uma doutrina da sagacidade. Mas se uma pessoa religiosa ouvisse uma pregação como essa, diria para sua alma: "Não te deixes perturbar por ele; ele próprio pode não estar consciente de querer enganar-te, de querer deixar-te impaciente quando este "pouco a pouco" se estender por anos, talvez por toda a tua vida. Não, ao invés disso, trata de saber, desde o início, que ele pode permanecer estreito, pedregoso e espinhoso até o fim, de modo que eu tenho de aprender a segurar firme o absoluto, guiado por esta luz na noite de sofrimentos, mas não desencaminhado pela probabilidade e pela consolação temporária". Ê bem-sabido que sobre o templo de Delfos havia também a inscrição: ne quid nimis [lat.: nada em excesso]. Este lema é a summa summarum [VII 351] de toda sabedoria de vida finita: se ele for O máximo, então o cristianismo deve ser imediatamente revogado como um achado juvenil e imaturo. Basta tentar aplicar este ne quid nimis à divindade que se permite ser crucificada, e imediatamente se há de conjurar a zombaria sobre a religião tão engenhosa como raramente se ouviu neste mundo, dado que os zombadores da religião de ordinário são esquentados e estúpidos; pois esta seria quase a objeção mais espirituosa, que, com um traço de humor, abstendo-se de qualquer combate à eterna e histórica verdade do cristianismo, simplesmente se dispensaria de relacionar-se com ela, com estas palavras: "É demais, Reverendíssimo, que o Deus se deixe crucificar". Em muitos relacionamentos na vida, essa máxima, ne quid nimis, pode ser válida, mas, aplicada à relação absoluta apaixonada, ao absoluto, ela é galimatias. O que importa, ao contrário, é arriscar absolutamente tudo, apostar absolutamente tudo, desejar absolutamente o mais elevado, mas então, de novo, importa que mesmo a paixão absoluta e a renúncia a tudo o mais não adquiram a aparência de mérito, de aquisição de uma felicidade eterna. A primeira expressão verdadeira do relacionar-se com o absoluto é o renunciar a tudo, mas para não começar no mesmo instante o retrocesso, deve-se verdadeiramente compreender que esta renúncia a tudo nada seria, contudo, caso devesse ser merecedora do bem mais elevado. O erro do paganismo encontra-se, no primeiro ponto, em não querer arriscar tudo; o erro da Idade Média no segundo ponto: compreender mal o significado de arriscar tudo; a mixórdia de nossa época faz a mediação. O equívoco do movimento monástico (abstraindo-se do erro do presumido merecimento) estava em que a interioridade absoluta, provavelmente para demonstrar de forma bem enérgica que existia, adquiriu sua expressão óbvia numa exterioridade específica distinta, por meio da qual esta se torna, contudo, apenas relativamente diferente de todas as outras exterioridades, como quer que seja. A mediação ou bem faz a relação para com o absoluto ser mediada para fins relativos, por meio da qual ela própria se torna relativa, ou então faz a relação para com o absoluto, como um abstrato, exaurir-se em fins relativos como predicados, por meio da qual a majestade da relação absoluta se torna algo que não diz nada, torna-se uma elegante introdução à vida que, entretanto, permanece do lado de fora da vida, é como uma página de título que não é incluída quando o livro é encadernado. Mas não se pode dizer que a relação ao absoluto se esgota em fins relativos, pois a relação absoluta pode exigir o renunciar a todos eles. Por outro lado, aquele que se relaciona com o absoluto pode muito bem viver nos fins relativos exatamente para praticar a relação absoluta ao renunciar a eles. [VII 352] Já que quase todo mundo em nossa época é, no papel, um gewaltig Karl [al.: sujeito poderoso] então às vezes se tem que lidar com preocupações infundadas. Sirva como exemplo disso o perigo em que incorrem as pessoas do nosso tempo, de acabar tudo tão rápido que ficam na embaraçosa situação de ter que encontrar algo com que preencher seu tempo. Coloca-se numa folhinha de papel: "duvidar de tudo" - então já se terá duvidado de tudo; basta que uma pessoa tenha apenas trinta anos, e já fica na embaraçosa situação de ter que conseguir algo com que preencher o tempo, especialmente "se a gente não se preparou direito para a própria velhice, porque não aprendeu a jogar cartas". Assim também: renunciar a tudo - e pronto. Dizem que renunciar a tudo é uma enorme abstração - é por isso que se deve tratar de passar adiante e se agarrar a algo. Mas que tal se a gente, cuja tarefa consiste em renunciar a tudo, começasse por renunciar a alguma coisa? Tal como deve aborrecer ao professor, e tal como na escola em geral se reconhece o aluno medíocre por vir correndo com seu papel uns dez minutos depois da tarefa ter sido anunciada, dizendo: "estou pronto", assim também, ao longo da vida, os homens medíocres prontamente vêm correndo e estão prontos, e quanto maior é a tarefa, tanto mais rapidamente estão prontos; assim também deve ser cansativo para o poder que governa a existência ter que lidar com uma geração como esta. A Sagrada Escritura fala sobre a longanimidade de Deus com os pecadores como sendo algo incompreensível, o que decerto o é, mas que paciência angelical não se precisa para lidar com tais homens que em seguida já estão prontos. À medida que, então, o indivíduo, depois de ter recebido a orientação absoluta rumo ao absoluto, não deve retirar-se do mundo (e para quê esta exterioridade; mas não nos esqueçamos jamais de que a interioridade sem exterioridade é a interioridade mais difícil de todas, na qual a autoilusão é o mais fácil) - o que acontece? Bem, então é sua tarefa expressar existencialmente que tem sempre a orientação absoluta rumo ao absoluto, o absoluto respeito (respicere [lat.: olhar para]). Ele deve expressá-lo existindo, pois pathos em palavras é pathos estético; deve expressá-lo existindo, e contudo nenhuma exterioridade direta ou distinta tem de ser expressão direta disso, pois assim teríamos ou bem o movimento monástico ou bem a mediação. Ele pode então viver exatamente como os outros seres humanos, mas a resignação provará se, da manhã à noite, ele trabalha para manter a solenidade com a qual [VII 353] ganhou pela primeira vez a orientação rumo ao absoluto. Ele não reconhece, e não reconhecerá, um tanto um/quanto outro; ele o abominará assim como abomina que se use o nome de Deus em vão, assim como o amante abomina a ideia de amar alguma outra pessoa. E a resignação, a comandante em chefe da existência, fará a inspeção. Mas se ela descobrir que ele está perdendo elevação, que está desejando andar de quatro, que tem frequentado uma personagem suspeita, a mediação, que esta enfim sairá com a vitória: então a resignação ficará fora deste indivíduo, ficará ali, como se retrata o gênio da morte, inclinando-se sobre uma tocha extinta, porque ali o absoluto desaparece da visão turva do indivíduo. No exterior talvez nenhuma mudança seja discernível, pois a relação para com o absoluto não significa entrar para o mosteiro e depois, quando se estiver aborrecido disso, tornar a vestir roupas seculares, por meio do que a mudança se torna exteriormente discernível; e a relação para com o absoluto não significa de jeito nenhum que o absoluto se esgote nos [fins] relativos, pois então a mudança que havia ocorrido numa pessoa teria que ser de novo discernível exteriormente. Num certo sentido, há algo de terrível em falar deste modo a respeito da vida interior de alguém, que ela possa estar ali e não estar ali, sem que isso seja notado diretamente no exterior. Mas é também glorioso falar deste modo sobre a vida interior - se ela está ali, pois esta é precisamente a expressão de sua interioridade. Tão logo a interioridade deva expressar-se no exterior de modo decisivo e comensurável, teremos o movimento monástico. A mediação nada sabe propriamente a respeito de qualquer relação para com o absoluto, porque essa relação se esgota nos relativos. Mas então o que acontece com a interioridade? Bem, o que ocorre é que a tarefa consiste em praticar a relação absoluta para com o absoluto de modo que o indivíduo se esforce para alcançar este máximo: ao mesmo tempo relacionar-se com seu absoluto e com o relativo - não mediando-os, mas sim relacionando-se absolutamente com seu absoluto, e relativamente com o que é relativo. Esta última relação pertence ao mundo, a primeira ao próprio indivíduo, e é difícil relacionar-se, ao mesmo tempo, de modo absoluto com o absoluto e assim, no mesmo instante, participar, como outros seres humanos, de ambas as coisas, de uma e de outra. Se alguém estiver envolvido em algum grande projeto, isto bastará para fazer com que lhe seja difícil ser como os outros. Fica distraído, não quer participar em outras coisas, incomoda-se por qualquer agitação ao seu redor, a azáfama dos outros lhe é enfadonha; anseia por um cubículo para si, onde possa sentar e meditar sobre seu grande projeto - e pode ser uma tarefa adequada para diplomatas e agentes policiais [VII 354] adquirir a arte e o autodomínio que capacitam a simultaneamente agarrar-se ao grande projeto e ir a um baile, conversar com senhoras, jogar boliche, e o que mais se quiser. Mas o absoluto é o maior de todos os planos com que um ser humano pode se relacionar, e por isso a Idade Média desejou um cubículo para poder se ocupar apropriadamente com o absoluto; mas foi precisamente por isso que o absoluto se perdeu, porque isso ainda era, afinal de contas, algo exterior. Quando um casal passou talvez toda uma semana socialmente ocupado, então às vezes dizem que na semana que transcorreu não tiveram tempo para viver um para o outro, e o dizem, embora tenham estado juntos no mesmo lugar e, consequentemente, tenham se visto. Alegram-se em pensar num dia, no futuro, em que realmente sejam capazes de viver um para o outro, e isto pode ser muito bonito da parte de pessoas casadas. Parece estar numa situação semelhante aquele que quer se relacionar com o absoluto, mas, por estar na existência e nas múltiplas ocupações da existência, é continuamente impedido de fazê-lo. Mas então estaria tudo em ordem se de vez em quando ele realmente vivesse um dia para o seu absoluto. Mas aqui está justamente a dificuldade. Isto é, marido e mulher se relacionam um com o outro em termos relativos, e por isso está tudo bem em terem aquele dia no qual realmente vivam um para o outro. Mas relacionar-se com o absoluto de vez em quando é relacionar-se relativamente com seu absoluto - contudo, relacionar-se relativamente com o absoluto é se relacionar com um relativo, pois a relação é o decisivo. Então, a tarefa consiste em exercitar sua relação com o absoluto de modo a que se a tenha constantemente junto a si, enquanto a gente permanece nas metas relativas da existência - e não nos esqueçamos de que na escola, ao menos, era o caso de que se reconhecia um discípulo medíocre pelo fato de que dez minutos após o anúncio da tarefa já vinha correndo com sua folha de papel e dizia: eu já acabei. A mediação, portanto, fica fora. Quero tomar como o apaixonar-se, e deixar um indivíduo, por um mal-entendido, interpretá-lo como o absoluto. Ele não vai deixar o mundo; quer ser como o resto de nós, talvez um conselheiro da justiça, talvez um comerciante etc., mas assim como uma vez ele entendeu absolutamente que seu apaixonar-se era para ele o absoluto, do mesmo modo sua tarefa absoluta será entendê-lo deste modo; e assim como uma vez foi horrível para ele que seu apaixonar-se não fosse o absoluto, mas sim que virasse um disparate de tanto um/quanto outro, do mesmo modo ele trabalhará com toda a sua força para que isso nunca aconteça. Onde fica a mediação, então? E qual foi o erro? O erro foi ter interpretado o apaixonar-se como o absoluto. Mas, em relação ao absoluto, o indivíduo se comporta corretamente, ao se comportar deste modo. Em tudo o que empreende, onde quer que esteja, qualquer que seja sua condição, quer o mundo acene ou ameace, quer ele próprio brinque ou esteja sério, [VII 355] a resignação vê aí, antes de tudo, que o respeito absoluto pelo absoluto é absolutamente preservado. Mas isso não é nenhuma mediação, tampouco como não constitui uma mediação entre o céu e o inferno dizer que há um abismo escancarado entre eles; e um abismo escancarado deste tipo está firmado no respeito entre o absoluto e os [fins] relativos. Mas se é assim, e a tarefa consiste em exercitar a relação absoluta, então a existência se torna enormemente tensa, pois é continuamente feito um movimento duplo. O movimento monástico quer expressar a interioridade por meio de uma exterioridade que se supõe que seja interioridade. Nisto reside a contradição, pois ser um monge é uma coisa exterior, tanto quanto ser um conselheiro da justiça. A mediação suprime o absoluto. Mas uma pessoa existente de modo verdadeiramente patético expressará para si mesma, a cada momento, que o absoluto é o absoluto. O sentido profundo reside na calma inviolabilidade da interioridade, mas aí também reside a possibilidade do engano e a tentação de se dizer que se fez e se está fazendo isso. Agora, se alguém quer contar uma mentira a esse respeito, é problema seu, e terei prazer em acreditar em tudo o que diz. Pois se se trata de algo grandioso, eu talvez possa ser ajudado a fazer o mesmo, e se ele realmente o fez, isto não me concerne de modo algum. Eu só lhe daria a regra de prudência de que ele não acrescente que ele também media, pois assim ele denunciaria a si mesmo. O existente que recebeu sua orientação absoluta para o absoluto, e compreende a tarefa de exercitar a relação, pode talvez ser um conselheiro da justiça, pode ser um entre outros conselheiros de justiça, e, contudo, ele não é como os outros conselheiros de justiça, mas quando a gente olha para ele, ele é exatamente como os outros; talvez ele ganhe o mundo todo, mas não é como aquele que almeja isto; talvez se torne rei, mas toda vez que coloca a coroa em sua cabeça, e toda vez que estende seu cetro, a resignação antes inspeciona para ver se ele está expressando, existindo, o absoluto respeito pelo absoluto - e a coroa perde o brilho, ainda que ele a use de maneira régia, ela perde o brilho como outrora, naquele grande instante da resignação, ainda que agora ele a use na terceira década de seu reinado, ela perde o brilho como fará algum dia diante dos olhos dos espectadores e diante de seus próprios olhos, que vão se finando na hora da morte; mas ela perdeu assim o brilho, para ele, no auge de seu vigor. O que foi feito, então, da mediação? E, contudo, aqui ninguém foi para o mosteiro. O indivíduo não deixa de ser um humano, não se despoja do hábito da finitude, composto de múltiplas formas, a fim de colocar as vestes abstratas do mosteiro, mas ele não mediatiza entre o absoluto e a finitude. [VII 356] Na imediatidade, o indivíduo está firmemente enraizado na finitude; quando a resignação se convenceu de que o indivíduo ganhou a orientação absoluta rumo ao absoluto, então tudo mudou, as raízes foram cortadas. Ele vive na finitude, mas não tem sua vida nela. Sua vida, como a vida de outro, tem os diversos predicados de uma existência humana, mas ele está em meio a esses como alguém que anda com as roupas emprestadas de um desconhecido. Ele é um estranho no mundo da finitude, mas não define sua diferença em relação à mundanidade por um traje estrangeiro (isto é uma contradição, já que com isso ele se define justamente de forma mundana); ele está incógnito, mas seu incógnito consiste justamente em que ele se apresenta igual a todo mundo. Assim como o dentista desprende a gengiva e corta o nervo, e aí mantém o dente assentado, assim também sua vida na finitude está desprendida, e a tarefa não consiste em fazer o dente enraizar-se outra vez, o que seria a mediação. Tal como no grandioso instante da resignação não se mediou, mas sim se escolheu, assim a tarefa consiste em ganhar a habilidade de repetir a escolha da paixão, e expressá-la existindo. O indivíduo está decerto na finitude (e a dificuldade é afinal de contas preservar na finitude a escolha absoluta), mas assim como no instante da resignação retirou a força vital da finitude, assim a tarefa consiste em repetir isso. Suponhamos que o mundo ofereça tudo ao indivíduo; talvez ele o aceite, mas diz: Oh, tudo bem, mas este "Oh, tudo bem" significa o respeito absoluto pelo absoluto. Suponhamos que o mundo retire tudo dele; ele se lamenta, mas diz: Oh, tudo bem - e este "Oh, tudo bem" significa o respeito absoluto pelo absoluto. Deste modo, não se existe imediatamente na finitude. Se para o Eterno, Onisciente, Onipresente é de igual importância que um ser humano seja privado de sua felicidade eterna ou que um pardal caia por terra; se se há de mostrar, quando tudo tiver alcançado o repouso na eternidade, que a mais insignificante circunstância era absolutamente importante - sobre isso eu não decidirei; eu posso dizer na verdade que o tempo não mo permite - ou seja, porque eu estou no tempo. Na existência, isso é impossível para um existente, dado que está no devir, e, para um existente, uma mediação grandiloquente (o que, no sentido grego, não se realiza nem com o maior esforço numa vida inteira, mas, no sentido alemão, se legitima no papel) não passa de macaquice. O olho de um mortal não consegue suportar, e a ética o proíbe absolutamente de querer ousar suportar a vertigem de que a coisa mais insignificante fosse tão importante quanto o absolutamente decisivo, e um existente não pode achar descanso e não ousa conceder-se descanso para se tornar fantasmagórico, [VII 357] pois não se torna eterno enquanto estiver na existência. Na existência, a ordem é sempre "avante", e enquanto vigora o "avante", o que importa é exercitar a distinção absoluta, o importante é ter adquirido uma habilidade para fazê-lo sempre mais facilmente, e uma boa consciência. Mas de novo não se trata de mediação quando o muito experiente consola-se em saber, em consciência, que está fazendo a distinção absoluta com facilidade e alegria. Ou, quando a esposa idosa está alegremente convicta de que seu marido é absolutamente fiel a ela, do que é mesmo que ela está convencida? É da mediação que ele faz e de seu coração dividido na mediação, ou não está ela convencida de que ele no silêncio faz, continuamente, a distinção absoluta do amor apaixonado, só que ela, em alegre confiança, está convencida de que ele o faz com facilidade e lealdade e que, portanto, ela não precisa de nenhuma prova exterior? Mas não nos esqueçamos de que o casamento não é o absoluto, e que, por isso, só vale imperfeitamente para o casamento o que vale absolutamente para o absoluto. Se Deus se relacionasse diretamente como um ideal para a condição humana, seria correto querer expressar semelhança direta. Se, assim, uma pessoa excelente é para mim o ideal, está bem correto que eu queira expressar uma semelhança direta, porque, sendo ambos seres humanos, nós dois estamos na mesma esfera. Mas há uma diferença absoluta entre Deus e um ser humano (pois deixa que a especulação conserve a humanidade para fazer elucubrações com ela); a relação absoluta de um ser humano para com Deus deve, portanto, expressar especificamente a diferença absoluta, e a semelhança direta se torna impertinência, frivolidade, presunção etc. (É algo diferente quando, em uma época muito infantil e em inocente ingenuidade, Deus se torna um honorável velhinho, ou algo similar, e vive em boas relações com as pessoas piedosas. Assim, eu me lembro de ter lido nas Biblische Legenden der Muselmãnner [al.: Lendas bíblicas dos muçulmanos], publicadas por Weil, sobre uma das pessoas piedosas mencionadas de que o próprio Deus a seguira pessoalmente na terra e andara à frente do caixão na procissão do funeral e os quatro anjos atrás. Que algo assim seja inocente ingenuidade, mostra-se, entre outras coisas, pelo fato de que, quando alguém o lê agora, isso evoca um efeito de humor puro e inocente. [VII 358] Esta piedade infantil não quer, logicamente, ofender a Deus, mas, ao contrário, fica feliz em adorná-lo com aquilo que pode imaginar de melhor). Se Deus, em sua sublimidade, dissesse a um ser humano: "Tu não és mais importante para mim do que um pardal" [VII 358]; e o ser humano tivesse como sua tarefa expressar uma semelhança direta para com a sublimidade divina, então o mérito consistiria, de fato, em replicar: "Nem Tu, nem tua existência têm mais importância para mim do que um pardal" - quer se interpretasse isso agora positivamente, porque tudo teria se tornado igualmente importante para esta pessoa elevada, quer negativamente, porque tudo teria para ela importância tão igual, que nada seria importante para ela. Mas isto, claro, ainda é blasfêmia insana. Justamente porque há entre Deus e homem a diferença absoluta, o homem expressa a si mesmo da maneira mais perfeita quando ele expressa a diferença absolutamente. Adoração é o máximo para uma relação de um ser humano com Deus, e, com isso, para sua semelhança com Deus, já que as qualidades são absolutamente diferentes. Mas adoração significa justamente que, para ele, Deus é absolutamente tudo, e aquele que adora é, por sua vez, o que deve ser absolutamente diferenciado. O que deve ser absolutamente diferenciado se relaciona com seu absoluto, mas, eo ipso, também com Deus. E a distinção absoluta está justamente habilitada para abrir caminho tal como um policial faz numa procissão; ele dissolve a tropelia da multidão, a turba dos fins relativos, para que aquele que deve ser absolutamente diferenciado possa se relacionar com o absoluto. Para um existente, querer se aproximar da igualdade que possivelmente existe para o eterno, não é mérito algum. Para um existente, a decisão apaixonada é justamente o máximo. Com o existir passa-se o mesmo que com o andar. Quando tudo é e está em repouso, dá a impressão enganadora de que tudo é igualmente importante, isto é, caso eu consiga uma visão disso que esteja igualmente em repouso. Ao contrário, tão logo o movimento se inicie, e eu em meio ao movimento, então o andar será uma diferenciação constante. Só que esta comparação não consegue estabelecer a diferenciação absoluta, porque andar é apenas um movimento finito. Mas porque a tarefa consiste em exercitar a distinção absoluta, daí não segue que o existente se torne indiferente à finitude. Este foi o exagero da Idade Média; ela não tinha plena confiança na interioridade, a não ser que esta se tornasse uma exterioridade. Mas quanto menos exterioridade, tanto mais interioridade, e aquela interioridade que se expressa por seu contrário (mas o contrário consiste justamente em que o indivíduo seja inteiramente como todos os outros, que não haja absolutamente nada para ser notado na exterioridade) é a mais elevada interioridade - se ela existir. Isso se precisa acrescentar constantemente, como também: quanto menos exterioridade, mais fácil o engano. [VII 359] Um homem maduro pode muito bem participar da brincadeira das crianças com total interesse, pode ser aquele que realmente anima a brincadeira, mas mesmo assim ele não brinca como uma criança; do mesmo modo se relaciona com o finito aquele que entende como sua tarefa o exercitar a distinção absoluta. Mas ele não faz mediações. A Idade Média foi uma interioridade desconfiada que, por isso, queria vê-la naquilo que é exterior; era uma interioridade infeliz na medida em que ela se assemelhava a uma relação amorosa em que os amantes são zelosos com a expressão externa do amor apaixonado; assim, acreditava que Deus fosse zeloso pela expressão no exterior. A interioridade verdadeira não exige nenhum sinal no exterior. No exercício da distinção absoluta, a paixão da infinitude está presente, mas quer ser interioridade, sem ciúme, sem inveja, sem desconfiança; não quer pairar contenciosamente, marcada como algo que chama a atenção na existência, por meio do que ela justamente sai perdendo, tal como quando a imagem invisível de Deus é representada de forma visível; não quer perturbar a finitude, mas também não quer mediatizar. Em meio à finitude e aos múltiplos ensejos da finitude para que o existente esqueça a distinção absoluta, ela quer ser apenas a interioridade absoluta para este, e de resto, ele pode ser um conselheiro da justiça etc. Mas o máximo da tarefa está em ser capaz de ao mesmo tempo relacionar-se absolutamente com o absoluto e relativamente com os relativos, ou ter a todo o momento o absoluto junto a si. Se não dá para fazer isto, ou se não se quer aceitar isso como a tarefa, então as analogias ao movimento monástico devem ser incondicionalmente preferidas, gostando ou não, quer se queira chorar ou rir sobre esta afirmação no especulativo século XIX. No movimento monástico havia pelo menos paixão e respeito pelo absoluto. Mas o movimento monástico não deve ser realizado como algo de meritório; pelo contrário, tem de realizar-se humildemente diante de Deus, e não sem algum envergonhamento. Tal como uma criança enferma não considera um mérito a permissão de ficar em casa com seus pais; tal como uma amada não considera meritório o não poder ficar por um instante sem a visão de seu amado e a incapacidade de reunir força para ter consigo o pensamento dele enquanto de resto cuida de seu trabalho, assim como não vê como meritório que se lhe permita sentar-se com ele no local de trabalho dele e ficar o tempo todo com ele: assim também tem de encarar sua relação para com Deus o candidato ao mosteiro. E, se o faz, não haverá nenhuma outra objeção à sua escolha, não importa o que se queira dizer no século XIX. Mas a criança doente logo descobrirá a dificuldade, não porque os pais não sejam carinhosos e amorosos, mas porque a convivência cotidiana faz surgir muitos pequenos conflitos; [VII 360] e a amada logo descobrirá a dificuldade, não porque o amado não seja um homem bom, mas porque a visão dele, entra dia sai dia, e a toda hora, às vezes produz uma certa canseira - e o candidato ao mosteiro decerto também se sentirá assim. Pois aqui, de novo, um pastor muitas vezes nos fará de bobos. Ele afirma, no domingo, que está tudo tão calmo e solene na igreja, e que se pudéssemos apenas ficar ali constantemente, então por certo nos tornaríamos pessoa santas - porém precisamos sair para a confusão do mundo. O pastor devia envergonhar-se de querer nos convencer de que o erro reside no mundo, e não em nós; devia envergonhar-se de nos ensinar a sermos arrogantes, como se estivéssemos escolhendo a tarefa mais difícil, especialmente se lá fora no mundo não tivéssemos também conosco a cada momento o absoluto. Eu pensava que o pastor tinha que nos ensinar a humildade e, por esta razão, dizer: "Ide agora para casa, que cada um faça o seu trabalho tal como lhe foi designado por Deus, e agradecei a Deus, que conhece a fraqueza de uma pessoa, que não seja exigido de vós ficar aqui e nada mais fazer o dia inteiro além de cantar salmos e rezar e louvar a Deus. Nesse caso, talvez viésseis a descobrir provações espirituais que Deus vos permite continuar ignorando". Ir à igreja uma vez por semana, quando, de resto, a gente se move na multiplicidade da vida, evoca facilmente uma ilusão, com a ajuda da perspectiva reduzida da estética. Mas exatamente por isto, o pastor deveria prestar atenção e não abusar sempre de novo da Idade Média para encantar a congregação para presunções grandiosas. Em nossos dias, não há realmente tão grande motivo para se advertir contra o mosteiro, e na Idade Média o motivo talvez fosse outro diferente daquele que à primeira vista se pensa. Se eu tivesse vivido na Idade Média, jamais poderia ter-me decidido a escolher o mosteiro. Por que não? Porque aquele que o fazia era, com toda seriedade, visto na Idade Média como um santo. Então, quando eu andasse pelas ruas e um pobre miserável, que talvez fosse muito melhor do que eu (E este "talvez" nem é tão hipotético, ainda que eu fosse outro diferente do que sou; pois a pessoa que, com seriedade e sinceridade, considera outra pessoa como santa, mostra eo ipso, por esta humildade, que ela é melhor do que a outra), me encontrasse, se curvaria diante de mim e, com todo pathos e seriedade, suporia que eu fosse um santo. Mas para mim isto parece ser o mais terrível de tudo, e ser uma profanação do sagrado, uma infidelidade para com a relação com o absoluto. Em nosso tempo, se fosse fundado um mosteiro, uma pessoa seria considerada maluca se quisesse entrar nele. Quando, hoje em dia, se lê o programa de um médico [VII 361] para o estabelecimento de um hospício, isto tem certa semelhança com o convite para um mosteiro. Isso eu considero como um ganho extraordinário; ser considerado maluco, isso é aceitável, isso encoraja, protege a calma interioridade de uma relação absoluta, mas ser considerado seriamente como santo, isso poderia angustiar alguém até à morte. Em minha opinião, transformar o mosteiro num asilo de loucos é o que há de mais próximo depois do exterior que seja igual ao de todas as outras pessoas. Aí a exterioridade não corresponde diretamente à interioridade, o que foi justamente o erro da Idade Média. Eu, pelo menos, penso da seguinte maneira: se me deixarem ser alguma coisa no mundo, dificilmente será grande coisa, e, por menor que seja, devo procurar contentar-me com isso, mas me dispensem de uma coisa, de ser considerado, com seriedade, como um santo; pois se alguém me chamasse de santo, para escarnecer de mim, aí seria was anders [al.: outra coisa, diferente], isso dá para ouvir, isso até encoraja. Mas veneração, como convém, pelo movimento monástico da Idade Média! O pastor diz, aliás, corretamente que ao entrar para o mosteiro se evita o perigo, e que por isso há mais grandeza em se manter na vida entre os perigos - mas decerto não com a ajuda da mediação? Temos de pelo menos tentar nos entender reciprocamente, e entrar em acordo a respeito do que quer dizer perigo. O candidato ao mosteiro considerava como o maior perigo o não se relacionar absolutamente com o absoluto a cada momento. Deste perigo a mediação nada sabe; com o auxílio da mediação, evita-se o perigo absoluto e o esforço absoluto, evita-se a convivência com o absoluto na solidão e no silêncio, na qual a mínima perda é portanto uma perda absoluta, na qual o mínimo retrocesso é perdição, na qual não há nenhuma distração (absolutamente nenhuma, mas a recordação de um retrocesso, por menor que seja, queima como uma insolação o infeliz que não tem para onde escapar), na qual toda fraqueza, todo esmorecimento, toda indisposição é como um pecado mortal, e cada hora dessas é como uma eternidade, porque o tempo não anda: é isto que se evita, e isto é o que o pastor chama de evitar o perigo, porque a pessoa permanece nos perigos relativos, nos perigos da multiplicidade, onde a experiência mais simples ensina cada um que nunca se perde tudo (exatamente porque aqui se trata da multiplicidade), mas perde de um jeito e ganha de outro, onde os perigos são aqueles da profissão e do sustento da vida, e os da saúde, e o de ser xingado pelo jornal etc. É mesmo muito triste que repetidamente se abuse da excentricidade da Idade Média, a fim de ensinar as pessoas a se gabarem como alguns endiabrados, e quando se fala desse jeito em nossa época, isso soa como paródia tal como o seria se um homem num asilo de anciãos quisesse explanar que a maior coragem não está em tirar-se a própria vida, mas em abster-se disso e, [VII 362] por meio disso, induzir inclusive todas as comadres do asilo a se considerarem a si mesmas como as pessoas mais corajosas do mundo - pois elas, afinal, tiveram a coragem de se abster! Ou é como se alguém, numa reunião da gente mais endurecida, discursasse sobre a grandeza de se aguentar a própria tristeza como um homem, e deixasse de lado a determinação dialética intermediária, da grandeza de ser capaz de entristecer-se como um homem. Podemos ir ao teatro para sermos iludidos, que o ator e o espectador lá trabalhem num belo acordo para fascinar e se deixar fascinar na ilusão: isso é magnífico. No pior dos casos, que eu seja enganado pelo meu criado que me bajula, por alguém que deseja de mim um serviço, pelo meu sapateiro por eu ser seu melhor cliente, a quem ele não gostaria de perder: mas por que devo ser iludido numa igreja, e quase temer por mim, se sou um bom ouvinte! Ou seja, se sou um bom ouvinte, então ouço de tal jeito que é como se o pastor o tempo todo pregasse a meu respeito; pois o que de resto é vaidade e talvez muito comum no mundo, é exatamente o que é louvável e talvez muito raro numa igreja. E por que chego quase a temer por mim? Seria porque o pastor descreve a nós, seres humanos (i. é, a mim, se sou um bom ouvinte que assume que é sobre mim que ele está pregando), como tão corruptos, que me causa arrepios ser alguém assim, fico pálido e, arrepiado, mas também com contrariedade, digo: "Não, não sou tão mau"? Ah, não! Sua Reverência descreve a nós, seres humanos (i. é, a mim, se sou um bom ouvinte que assume que é sobre mim que ele está pregando), de modo tão magnífico, como sendo tão mais perfeitos que aqueles habitantes silenciosos dos mosteiros, que eu (que assumo, afinal, que é de mim que ele fala) fico completamente envergonhado e embaraçado e com a face vermelha, e sou obrigado a dizer, constrangido: "Não. Vossa Reverência é mesmo excessivamente gentil", e interrogando levantar os olhos para ver se quem fala é um pastor ou um congratulante de ano-novo. (Ver-se-á que o sermão de hoje do pastor é um tanto diferente de seu sermão do domingo passado, no qual ele encorajava a comunidade cristã, para quem ele pregava, a aceitar a fé cristã e se tornar cristã (cf. o capítulo anterior). Isto está inteiramente de acordo se o batismo das crianças faz de nós cristãos sem mais nem menos, por sermos batizados na infância; o equívoco [Misligheden] reside apenas, como já foi apontado, em ao mesmo tempo reconhecer o batismo infantil como decisivo em relação ao tornar-se cristão. E diferente quando o pregador faz com que todos os seus ouvintes sejam grandes heróis, sem mais nem menos. O discurso religioso tem a ver essencialmente com indivíduos e funciona essencialmente como um intermediário entre o indivíduo e o ideal, e tem seu máximo no ajudar o indivíduo a expressar o ideal. [VII 363] Assume essencialmente que todas as pessoas a quem se dirige estão extraviadas; conhece cada desvio do caminho do erro, cada um de seus esconderijos, cada condição do extraviado no caminho do erro. Mas raramente se prega assim em nosso tempo objetivo. Prega-se sobre a fé e sobre as façanhas da fé - e se é esteticamente indiferente à questão de se todos nós que ouvimos somos crentes, ou então esteticamente cortês o bastante para assumir que nós o somos. Deste modo, a fé se torna uma espécie de figura alegórica e o pastor uma espécie de trovador, e o sermão sobre a fé se torna uma analogia de algo, como a Batalha de São Jorge Cavaleiro contra o dragão. A cena ocorre no ar, e a fé sobrepuja todas as dificuldades. Assim também com a esperança e o amor. O discurso eclesiástico se torna uma contrapartida à primeira tentativa medieval no gênero dramático (os assim chamados mistérios), quando matérias religiosas eram tratadas dramaticamente e, bastante estranham ente, comédias eram encenadas justamente no domingo, e justamente nas igrejas. Só porque se fala num tom de voz cerimonioso (quer numa forma mais artística, quer num baixo profundo, a zombar de toda arte, de um crente despertado), e numa igreja, a respeito da fé, da esperança e do amor, de Deus e de Jesus Cristo, ainda assim não se segue, de jeito nenhum, que se trata de um discurso piedoso; o decisivo reside no modo [hvorledes: como] pelo qual o orador e os ouvintes se relacionam com o discurso, ou que se pressupõe que se relacionem com o discurso. O orador não tem de se relacionar com seu assunto apenas pela fantasia, mas como sendo ele próprio aquilo de que se fala, ou, esforçando-se para isso, tem de ter o "como" de sua própria experiência ou o "como" da experiência continuada; e os ouvintes têm de ser esclarecidos pelo discurso e encorajados a se tornarem aquilo de que se fala (no fundo, dá no mesmo, quer se assuma então uma relação direta ou indireta entre o orador e o ouvinte. Se uma relação indireta é assumida como a verdadeira, aí o discurso se tornará um monólogo, mas, é bom notar, a respeito do "como" pessoalmente vivenciado pelo orador, e neste "como", e ao falar de si mesmo, ele falará indiretamente do ouvinte). Quando se fala de modo piedoso sobre a fé, o principal é que isso nos esclareça sobre como tu e eu (i. é, os indivíduos particulares) nos tornamos crentes, e que o orador nos ajude a nos arrancar de todas as ilusões, e esteja bem-informado a respeito do longo e penoso caminho, e sobre a recaída etc. Se se transforma o tornar-se um crente numa coisa fácil (como, p. ex., em apenas ter sido batizado na infância) e o discurso só trata da fé, toda a relação é, afinal de contas, apenas estética, e estamos de fato numa comédia - dentro da igreja. Por uma bagatela temos acesso às representações dramáticas do pastor, onde nos sentamos e observamos o que a fé é capaz de fazer - não como crentes, mas como espectadores das façanhas da fé, do mesmo modo como, em nossos dias, não temos pensadores especulativos, [VII 364] mas espectadores das façanhas da especulação. Mas dá para compreender, para uma época teocentricamente especulativa e objetiva, é provavelmente demasiado pouco - deixar-se envolver com essas últimas dificuldades, onde se torna, em última instância, algo tão agudo, tão penetrante, tão inquietante, tão intransigente quanto possível a questão sobre até que ponto o indivíduo [den Enkelte], tu e eu, é um crente, e sobre o modo como nos relacionamos com a fé dia após dia). [VII 363] Não, veneração, como convém, pelo movimento monástico da Idade Média; a mediação, por outro lado, é uma revolta dos fins relativos contra a majestade do absoluto, [VII 364] que deve ser rebaixado à categoria de qualquer outra coisa, e contra a dignidade do ser humano, que deve ser transformado num servidor exclusivo dos fins relativos; a mediação é uma invenção fantástica, à medida que quer ser superior à disjunção absoluta. No papel, a mediação causa uma impressão bastante boa. Primeiro a gente põe a finitude, depois a infinitude, e então a gente diz, no papel: Há que fazer a mediação. E inegavelmente um existente também descobriu aí o ponto seguro fora da existência onde pode fazer a mediação: no papel. Foi descoberto o ponto arquimédico, só não se tem notícia de que tenha conseguido mover o mundo. Quando, ao contrário, o palco não é no papel, mas na existência, porque o mediador é um existente (e com isso impedido de ser um mediador), ele irá então, caso se torne consciente do que significa existir (i. é. que ele existe), neste mesmo exato instante tornar-se aquele que distingue absolutamente, não entre finitude e infinitude, mas entre existir de modo finito e de modo infinito. Pois a infinitude e a finitude estão reunidas no existir e no existente, o qual não precisa se preocupar em criar existência, ou em copiar no pensamento a existência, mas tanto mais com o existir. No papel, até mesmo a existência é produzida com a ajuda da mediação. Na existência, onde o existente se encontra, a tarefa é mais simples: se ele, por favor, quer se dignar a existir. Existindo, ele não deve, então, formar a existência a partir de finitude e infinitude, mas, composto de finitude e de infinitude, deve ele, existindo, vir a ser só uma das partes; e ambas as partes a gente não vem a ser de uma só vez, tal como se é por ser um existente, pois esta é justamente a diferença entre ser e devir, e a quimérica habilidade da mediação, se esta pertence a algum lugar, é uma expressão - para o começo. [VII 365] Em vários aspectos, é isso que aconteceu na filosofia mais recente, a saber, que por ter tido a tarefa de combater uma desorientação da reflexão logo que a concluiu, confunde o final de seu trabalho com o final de tudo o mais, enquanto que o final de sua obra é, höchstens [al.: no máximo, na melhor das hipóteses], o começo do trabalho propriamente dito. Pode-se ser tanto bom quanto mau, tal como se diz muito simplesmente que um ser humano tem uma disposição tanto para o bem quanto para o mal; mas não se pode tornar-se simultaneamente bom e mau. Esteticamente, tem-se exigido do poeta que não represente estes modelos abstratos da virtude nem personagens diabólicos, mas que faça como o fez Goethe, cujos personagens são tanto bons quanto maus. E por que esta é uma exigência legítima? Porque nós queremos que os poetas representem os seres humanos como eles são, e todo ser humano é tanto bom quanto mau, e porque o medium do poeta é o medium da fantasia, é o ser e não o devir; é, no máximo, o vir a ser em uma perspectiva muito limitada. Mas retira o indivíduo deste medium da fantasia, deste ser, e coloca-o na existência - então a ética imediatamente o confronta com sua exigência para ele, se ele agora se digna a vir a ser, e então ele vem a ser - ou bom, ou mau. No instante sério do exame de consciência, no instante sagrado da confissão, o indivíduo se retira do processo do tornar-se e analisa, no reino do ser, como ele é; ah, o resultado, infelizmente, é que ele é tanto bom quanto mau; mas tão logo ele esteja outra vez no processo de vir a ser, ele vem a ser ou bom ou mau. Esta summa summarum, que todos os seres humanos sejam tanto bons quanto maus, não interessa de jeito nenhum à ética, que não tem o medium do ser, mas o do vir a ser e, por isso, condena toda explicação do devir que ilusoriamente queira explicar o devir no interior do ser, com o quê a decisão absoluta de vir a ser é essencialmente revogada e tudo o que se diz a seu respeito é essencialmente alarme falso. Por isso, a ética precisa também condenar todo aquele júbilo que em nossos dias se ouve a respeito de se ter ultrapassado a reflexão. Quem é este que se supõe ter ultrapassado a reflexão? Um existente. Mas a própria existência é justamente a esfera da reflexão, e um existente está na existência, portanto, na reflexão: Como é que ele faz, então, para ultrapassá-la? Que, em certo sentido, o princípio da identidade seja mais elevado, que seja aquilo que fundamenta o princípio da contradição, não é difícil de perceber. Mas o princípio da identidade é apenas o limite; ele é como as montanhas azuladas, como a linha que o desenhista chama de linha de fundo, o desenho é o principal. A identidade é, portanto, uma intuição mais baixa do que a contradição, que é mais concreta. [VII 366] A identidade é por isso terminus a quo [lat.: o ponto de partida], mas não ad quem [lat.: meta final], para a existência. Um existente pode maxime [lat.: no máximo] chegar, e chegar sempre de novo, à identidade ao abstrair da existência. Mas, dado que a ética considera cada existente como seu servidor por toda a vida, ela o proibirá absolutamente de começar esta abstração, nem por um instante. Em vez de dizer que o princípio da identidade suprime a contradição, a contradição é o que suprime a identidade ou, como Hegel tão frequentemente o diz, deixa-a "ir ao fundo". A mediação quer facilitar a existência para o existente, ao omitir uma relação absoluta para com um absoluto; o exercício da distinção absoluta torna a vida absolutamente tensa, justamente quando também se deve manter-se na finitude e ao mesmo tempo relacionar-se absolutamente com o absoluto e relativamente com os relativos. Entretanto, há, de qualquer modo, em todo este esforço, um apaziguamento e um sossego, pois não é nenhuma contradição relacionar-se com o absoluto de forma absoluta, isto é: com toda sua força e renunciando a tudo o mais, porém é a reciprocidade absoluta no igual pelo igual. Pois a cruel autocontradição da paixão mundana surge do fato de o indivíduo se relacionar absolutamente com um relativo. Vaidade, avareza, inveja etc., são essencialmente loucura, pois esta é justamente a expressão mais comum da loucura: relacionar-se absolutamente com o relativo, e, esteticamente, deve ser concebida de modo cômico, pois o cômico reside sempre na contradição. É desequilíbrio mental (visto esteticamente, cômico), que um ser, que é estruturado de modo eterno, aplique todo o seu poder para agarrar o perecível, para segurar o instável, e acredite que ganhou tudo quando ganhou este nada - e foi ludibriado; acredite que perdeu tudo quando perdeu este nada - e não foi ludibriado. Pois o perecível é nada, tão logo tenha passado, e sua essência consiste em ser passado, tão rapidamente quanto o instante do prazer sensual, que é a distância mais afastada do eterno: um instante no tempo cheio de vazio. Mas talvez diga alguém, um "homem sério": "Será mesmo certo e seguro, então, que há tal bem, é certo e seguro que há uma felicidade eterna à nossa espera? - porque, neste caso, eu ainda quero tratar de alcançá-la; de outro modo, eu seria louco ao arriscar tudo por ela". Na exposição do pastor aparece frequentemente essa ou outra locução similar, enquanto se forma a transição àquela parte do discurso na qual, para consolo e apaziguamento da congregação, se demonstra que há uma felicidade eterna à nossa espera - [VII 367] de modo que a congregação possa tratar de alcançá-la ainda com maior zelo. Tal demonstração é como leite para o gato, e é aceita como o é a Palavra de Deus pelo estudante [de teologia] - "os exercícios práticos são protelados, como de costume". Ainda bem que eu não sou nenhum homem sério, nenhum filósofo afirmativo, nenhum clérigo fiador, pois, senão, também eu seria obrigado a demonstrar. Por sorte, minha leviandade me libera de demonstrar e, na qualidade de leviano, atrevo-me a ser da opinião de que, se alguém, acreditando nas afirmações de todos esses filósofos e na caução de toda a clerezia, decide tratar de alcançar uma felicidade eterna, então ainda não está tratando de alcançá-la, e sua confiança nas afirmações de todos esses filósofos e na caução de toda a clerezia é precisamente aquilo que o impede (o pastor acredita, é claro, que se trata de uma falta de confiança), e o induz a querer, por Deus!, também participar, a querer fazer uma transação racional, uma proveitosa especulação na bolsa de valores, em vez de uma aventura arriscada; o induz a fazer um movimento simulado, uma arrancada simulada rumo ao absoluto, não obstante permaneça completamente no interior do relativo, uma passagem simulada, tal como aquela do eudemonismo ao ético no interior do eudemonismo. Em suma, é inacreditável o quanto as pessoas são astutas e inventivas em evitar a decisão final, e quem já testemunhou as estranhas caretas de diversos soldados de infantaria, quando devem entrar na água, encontrará no mundo do espírito bem frequentemente analogias a esse respeito. O caso é o seguinte: o indivíduo só se torna infinitizado graças à aventura de risco; ele não é o mesmo indivíduo, e a aventura de risco não é um empreendimento entre muitos outros, um predicado a mais a respeito daquele único e mesmo indivíduo, não, pela aventura de risco ele próprio se torna outro. Antes de ter arriscado, ele só pode entendê-la como loucura (e isto ainda é preferível a ser um tagarela que não reflete, que senta e imagina entendê-la como sabedoria - e, contudo, desiste de realizá-la, com o que diretamente se denuncia como louco, enquanto que aquele que a considera como loucura ainda se afirma como esperto por deixá-la de lado), e quando arriscou, já não é mais o mesmo. Assim, o discrimen [lat.: marca distintiva] da passagem ganha espaço adequado, um abismo escancarado no meio do caminho, correspondendo como palco à paixão da infinitude, uma garganta que o entendimento não consegue transpor, nem para frente nem para trás. Mas já que eu não me envolvi de modo nenhum em demonstrar que haja uma felicidade eterna (em parte porque afinal não cabe a mim, mas, höchstens [al.: no máximo], ao cristianismo que a proclama, e em parte porque ela não existiria de jeito nenhum se se deixasse demonstrar, já que a existência do bem ético absoluto só pode ser demonstrada pelo fato de o indivíduo [VII 368], ele mesmo existindo, expressar que este existe), então eu quero, por um instante, observar mais de perto as palavras daquele homem sério; elas bem que merecem atenção. Ele requer, portanto, que deva ser certo e definido que este bem está à nossa espera. Mas é realmente demais exigir que algo que está à nossa espera seja certo e definido, porque o que pertence ao futuro e o que pertence ao presente têm justamente um pequeno instante entre eles, o qual faz com que seja possível esperar pelo futuro, mas impossível, in praesenti [lat.: no presente], ter certeza e definição. A situação presente é de certeza e definição, mas uma relação do presente para com um futuro é, eo ipso, de incerteza e, por isso, muito corretamente, uma relação de expectativa. Especulativamente, é válido que eu, recordando, retrospectivamente, seja capaz de alcançar o eterno; é válido que o eterno se relacione diretamente com aquilo que é eterno, mas um existente, olhando para frente, só pode se relacionar com o que é eterno como com o que é futuro. - O homem sério continua: Tão logo consiga ter certeza de que tal bem está à nossa espera, arriscará tudo por ele; de outro modo, seria loucura arriscar tudo. O homem sério fala quase como um brincalhão; está bem claro que quer zombar de nós, tal como o soldado da infantaria quando corre para saltar, e realmente corre - mas dá um tchau para o salto. Contanto que seja certo: aí ele quer arriscar tudo. Mas o que é mesmo arriscar? Arriscar é o correlativo da incerteza; logo que há certeza, acaba o risco. Se ele, portanto, obtém certeza e definição, torna-se impossível chegar a arriscar tudo; pois assim não arrisca nada, ainda que renuncie a tudo - e se ele não consegue obter certeza, bem, então, diz o homem sério, com a maior seriedade, bem que, então, ele não arriscará tudo - seria, afinal de contas, loucura. A ousadia do homem sério se torna decerto, deste modo, um alarme falso. Se aquilo de que tomarei posse com a ousadia é certo, então não estou ousando, então estou negociando. Deste modo, nada ouso ao dar uma maçã por uma pera, se estou segurando a pera em minha mão enquanto faço a troca. Rábulas e velhacos têm bastante experiência a esse respeito. Não acreditam uns nos outros e, por isso, querem ter em mãos o que estão por adquirir em um negócio. De fato, eles têm um conceito de risco tão agudo, que consideram arriscado até mesmo que o outro se vire e cuspa, para que este não faça nenhum truque. Não significa arriscar, se eu entregar todas as minhas posses por uma pérola, se, no momento da troca, seguro a pérola em minha mão. [VII 369] Se fosse talvez uma pérola falsa, com a qual fui enganado, então teria feito um mau negócio, mas não teria arriscado coisa nenhuma. Mas se, ao contrário, esta pérola estiver talvez muito afastada, na África, em algum lugar escondido, aonde é difícil de chegar, se eu nunca tiver tido a pérola em minha mão, e então deixar casa e família, renunciar a tudo, fizer aquela longa e árdua excursão sem certeza de ter sucesso em meu empreendimento - bem, então estou me arriscando (Devo, com prazer, ilustrar a mesma coisa com um exemplo mais nobre. O amante pode "arriscar" tudo por seu amor, para a posse de sua amada; mas o homem casado, que está de posse de sua amada, não arrisca nada por ela, mesmo que com ela suporte tudo, mesmo quando se submete a tudo por causa dela, e, por conseguinte, o homem casado ofende sua esposa quando quer usar a expressão que é a do mais alto entusiasmo apaixonado do amante. O homem casado tem a posse de sua amada, e se a felicidade eterna pudesse estar presente para alguém deste mesmo modo, então ele também não estaria se arriscando. Mas o azar é que ela não pode estar totalmente presente deste modo, mesmo para uma pessoa existente que tenha arriscado tudo - enquanto estiver existindo - e, portanto, ainda um pequeno N.B., a saber, que ela precisa ter arriscado tudo, pois não recebe a certeza adiantada e das mãos de um filósofo fornecedor de asserções ou de um pastor fiador. Pois é bem estranho que, embora a felicidade eterna seja o mais elevado bem e seja muito mais incrível do que bens terrenos e reinos, é, contudo, absolutamente o bem que, quando alguém o entrega não pergunta, de modo algum, a respeito da certeza do outro homem, e quando alguém o recebe não lhe adianta, de modo algum, ter todas as pessoas como fiadores, mas o assunto se decide pura e exclusivamente entre aquele que a cede e as respectivas pessoas - quase uma loucura tão grande, eu quase diria, tanto da parte daquele que a cede, por não olhar melhor por sua própria vantagem e segurança, quanto da parte daquele que recebe, por não se tornar desconfiado e suspeitoso de dano, quando ele, sozinho, deve perder de vista todos os fiadores) - e então em uma noitada qualquer no clube se ouvirá o que dizia o homem sério: que isso é loucura. Mas quaisquer que sejam os estranhos acontecimentos que aquele aventureiro deva vivenciar na longa e perigosa viagem à África, eu contudo não creio que lhe possa ocorrer nada de mais extraordinário do que aquilo que acontece com as palavras do homem sério; pois a única palavra verdadeira que resta em toda a sua seriedade é esta: que isso é loucura. (Toda sabedoria de vida é, com efeito, abstração, e apenas o eudemonismo mais medíocre não tem nenhuma abstração, mas é o gozo do instante. No mesmo grau em que o eudemonismo é sagaz, tem alguma abstração; quanto mais sagacidade, mais abstração. Com isso, o eudemonismo adquire uma semelhança fugaz com o ético e o ético-religioso e, [VII 370] momentaneamente, pode parecer que poderiam marchar juntos. E, contudo, não é assim, pois eis que o primeiro passo do ético é a abstração infinita, e o que acontece? O passo se torna grande demais para o eudemonismo, e, embora alguma abstração seja sagacidade, a abstração infinita, entendida de modo eudemonista, é loucura. - Talvez um filósofo queira dizer que me movo apenas na esfera da representação. Sim, no papel decerto é mais fácil de sintetizar, ali a gente arrisca tudo e, ao mesmo tempo, a gente tem tudo. Mas na medida em que eu na existência deva arriscar tudo, isso é realmente uma tarefa para a vida toda, e se eu assim devo permanecer na existência com minha ousadia, devo continuar a me arriscar permanentemente. O honrado filósofo, como de costume, transfere o palco da existência para o papel). Sim, claro que é loucura. [VII 370] Arriscar-se é sempre loucura, mas arriscar tudo por uma felicidade eterna esperada é loucura geral. Ao contrário, a questão sobre a certeza e a definição é sagacidade, pois há subterfúgios para evitar o esforço da ação e da ousadia, e jogar o problema para o saber e a conversa fiada. Não, se eu devo verdadeiramente ousar e, agindo, tratar de alcançar o bem mais elevado, então a incerteza tem de estar aí, e eu tenho de ter, se posso colocar as coisas assim, espaço para me mover. Mas o maior espaço que posso ter para me mover, onde há espaço suficiente para o mais veemente gesto de infinita paixão, é o da incerteza do saber sobre uma felicidade eterna, ou que o ato de escolhê-la é, em sentido finito, loucura: vê, agora há espaço, agora podes arriscar! E por isso a felicidade eterna, enquanto o bem absoluto, tem a particularidade de só poder ser definida pelo modo como é adquirida, enquanto que outros bens, justamente porque seu modo de aquisição é casual ou, de qualquer modo, relativamente dialético, têm de ser definidos por si mesmos. Pois o dinheiro, por exemplo, tanto pode ser adquirido pelo trabalho quanto pode também ser obtido sem trabalho, e, por sua vez, estas duas maneiras são diferentes sob diversos aspectos, mas o dinheiro ainda é o mesmo bem; o conhecimento, por exemplo, é adquirido de modos diferentes, de acordo com o talento e circunstâncias exteriores e, por isso, não se deixa definir pela maneira de aquisição; mas da felicidade eterna nada mais se deixa dizer, senão que ela é o bem que é alcançado pelo ato de arriscar tudo de maneira absoluta. Qualquer descrição da glória deste bem [VII 371] já é, de certo modo, uma tentativa de tornar possíveis vários modos de aquisição - uma maneira mais fácil, por exemplo, e uma maneira mais difícil, o que mostra que a descrição não está descrevendo o bem absoluto, mas apenas imagina que o esteja fazendo, quando está, essencialmente, falando sobre bens relativos. E por isso, num certo sentido, é tão fácil falar deste bem, porque ele é certo - quando tudo se fez incerto - e porque o orador nunca estará em apuros, como é o caso dos bens relativos quando se mostra que o que ajuda uma pessoa a alcançá-los não ajuda outra. E o discurso a respeito deste bem é tão curto porque não há nada mais a dizer além de: Arrisca tudo. Não há anedotas a contar a respeito de como Pedro acumulou riqueza trabalhando, e Paulo ao ganhar na loteria, e João por herança, e Mateus por uma reforma monetária, e Cristóvão ao comprar um móvel de um negociante de peças de segunda mão etc. Mas, num outro sentido, o discurso é tão longo, sim, o mais longo de todos os discursos, porque arriscar tudo demanda uma transparência de consciência que só se adquire muito lentamente. Aqui reside a tarefa do discurso religioso; se ele devesse dizer apenas a palavra breve, "Arrisca tudo", não se precisaria mais do que um único orador em todo o reino; por outro lado, o discurso mais longo não pode esquecer jamais o risco. A exposição religiosa pode ocupar-se com tudo, só que ela deve continuamente relacionar tudo com a categoria absoluta da religiosidade; precisa percorrer todos os caminhos, saber onde moram todos os erros, onde os ânimos têm seus esconderijos, como as paixões se compreendem na solidão (e qualquer ser humano que tenha paixão é sempre um tanto solitário; só os babões se entregam de corpo e alma ao social), saber onde as ilusões exercem sua tentação, onde os caminhos bifurcam etc. - para continuamente trazer tudo para a relação com a categoria absoluta da religiosidade. Se neste sentido um ser humano puder fazer algo por outro, então não deve dar-se ao trabalho de se mudar para a China ou a Pérsia, pois assim como o discurso religioso é mais elevado do que qualquer outro discurso, assim também todo verdadeiro discurso religioso nada sabe além do bem absoluto, uma felicidade eterna, já que sabe que a tarefa não consiste em partir do indivíduo para a geração, mas sim partindo do indivíduo, através da geração (o universal) alcançar o indivíduo. [VII 372] O discurso religioso é o caminho para o bem, quer dizer, ele reproduz o traçado (Aqui mais uma vez vemos por que o orador religioso não pode usar a perspectiva abreviada. Com efeito, esteticamente não há nenhum caminho, porque o estético se relaciona com a imediatidade, e a expressão para isto é a perspectiva abreviada. Eticamente e ético-religiosamente, contudo, é justamente sobre o caminho que se reflete e, por isso, eticamente e ético-religiosamente, é uma ilusão o que esteticamente é verdade) do caminho, que é tão longo quanto a vida; ele copia o caminho que a pessoa religiosa descreve, não no mesmo sentido em que o planeta descreve sua órbita ou o matemático descreve um círculo. Mas não há nenhum atalho para o bem absoluto, e dado que ele só pode ser definido pelo modo de aquisição, então a sua dificuldade absoluta é o único sinal de que se esteja em relação com o bem absoluto. Topar por acaso com este num caminho mais fácil (por ter nascido em anos especialmente propícios, p. ex., no século XIX, por ser uma boa cabeça, por ser conterrâneo de um grande homem ou por ser da parentela de um apóstolo), ser um sortudo, é apenas prova de que se foi ludibriado; pois os Srs. Sortudos não pertencem à esfera religiosa. O mérito do discurso religioso está em tornar o caminho difícil, pois o caminho é o decisivo - de outro modo, só temos estética. Mas o cristianismo fez com que o caminho se tornasse o mais difícil de todos, e é só ilusão, que embaraçou muita gente, que o cristianismo tenha facilitado o caminho, já que justamente só ajudou as pessoas por tornar o início tal que tudo ficou muito mais difícil do que jamais. Se um pagão apenas vislumbrou o bem absoluto, então o cristianismo ajudou - pelo absurdo. Se se deixa isso de lado, então tudo se tornou realmente muito mais fácil do que no paganismo; mas se isto for sustentado, então tudo fica muito mais difícil, porque é mais fácil manter uma esperança fraca com suas próprias forças do que obter certeza em virtude do absurdo. Quando um sofredor estético geme e busca consolo no ético, esse de fato conforta - aber [al.: mas] antes faz com que o sofredor estético sofra ainda mais do que antes. Se isso for excluído, o ético certamente faz com que tudo seja muito fácil e confortável, mas então se está também tomando o ético em vão. Um sofredor estético, por mais que ele gema, pode muito bem sofrer ainda mais, e então quando manda chamar o ético - [VII 373] bem, este antes o ajuda a cair da frigideira para o fogo, de modo a que aí sim tenha motivo para gritar - e só então este pode ajudá-lo. O mesmo se dá com o cristianismo. O cristianismo exige que o indivíduo, existindo, arrisque tudo (o patético); isso um pagão também pode fazer - arriscar tudo, por exemplo, diante do "se acaso" da imortalidade. Mas então exige que o indivíduo também arrisque seu pensamento, arrisque acreditar contra o entendimento (o dialético). E enquanto aquele homem sério nunca chegou, de jeito nenhum, ao ponto de arriscar, porque queria ter certeza, é certo que há uma única certeza, a saber: que é o risco absoluto. Lutar, existindo, pela vida toda, baseado no "se acaso" da imortalidade, pode parecer bastante árduo, e ganhar uma demonstração da ressurreição, uma enorme facilidade - se acaso a própria demonstração não for o mais difícil de tudo. Ganhar tudo com a ajuda de um mediador parece de fato bastante fácil em comparação com o paganismo, onde a sabedoria, por meio de enormes esforços, atingiu apenas um pouquinho, mas suponhamos que o mais difícil de tudo seja saber se há um mediador! Ganhar tudo com a ajuda de um evangelho parece de fato bastante fácil - se a maior de todas as dificuldades não fosse que haja um evangelho. Ser capaz de fazer tudo pela força de Deus seria bastante fácil - se a maior de todas as dificuldades não fosse não ser capaz de fazer nada por si mesmo, tão difícil que talvez haja poucos, em cada geração, que possam verdadeiramente dizer que, dia a dia, estejam, ainda que moderadamente, conscientes de que um ser humano não é capaz de absolutamente nada. Se esse ponto dialético for negligenciado, e daí? Daí tudo se torna conversa fiada de mulherzinha e gritaria de mulher, pois, como se sabe, judeus e mulheres gritam num único minuto o que um homem não consegue fazer em toda sua vida. Se o dialético for negligenciado, então a demonstração da ressurreição se torna, bem ironicamente, uma demonstração excessiva, e a certeza da imortalidade se torna menor do que no paganismo; então o mediador se torna uma personagem dúbia, uma pessoa esteticamente pomposa, com uma auréola e um chapéu de fazer mágicas; então o evangelho se torna boato, um pequeno mexerico da cidade; então aquele que pela força de Deus é capaz de tudo, torna-se o que por si mesmo é capaz de fazer um pouco, e é bastante gentil para fingir que isso tenha se dado pela força de Deus, torna-se aquele que está muito atrás daquela pessoa que, existindo, mesmo moderadamente pratica a árdua consciência de não ser capaz de nada. Se o dialético for negligenciado, então todo o cristianismo se tornará uma fantasia fácil, torna-se nada mais do que superstição, aliás, a mais perigosa espécie de superstição, porque é uma crendice na verdade, caso o cristianismo seja a verdade. A crendice na inverdade tem, com efeito, a possibilidade de que a verdade possa vir e acordá-la, mas quando há verdade, e a crendice, ao relacionar-se com ela, transmuda-a em inverdade, então nenhuma salvação mesmo é possível. Não, a facilidade do cristianismo só se conhece por uma única coisa: [VII 374] pela dificuldade; desse modo seu jugo é fácil e sua carga, leve - para aquele que jogou para longe de si todas as cargas, as cargas da esperança e do medo e do desânimo e do desespero - mas isto é muito difícil. E a dificuldade é, por sua vez, absoluta, não se presta à dialética da comparação (mais fácil para uma pessoa do que para outra), porque a dificuldade relaciona-se absolutamente com cada indivíduo em particular, e exige absolutamente seu esforço absoluto, mas não mais do que isso, pois tão pouco como na esfera do religioso há sortudos ou sorteios de números de loteria, tampouco há individualidades injustiçadas. §2 A expressão essencial do pathos existencial: sofrimento - Fortuna e infortúnio como visão estética da vida em contraste com o sofrimento como visão religiosa da vida (iluminada pelo discurso religioso) - A realidade efetiva do sofrimento (humor) - A realidade efetiva do sofrimento em última instância como sinal de que um existente se relaciona com uma felicidade eterna - A ilusão da religiosidade - Provação [espiritual] - A razão e o significado do sofrimento em primeira instância: morrer para a imediatidade e contudo permanecer na finitude - Um interlúdio (Divertissement) editicante - Humor como incógnito da religiosidade Do parágrafo precedente deve-se recordar que o pathos existencial é ação, ou a transformação da existência. Estabeleceu-se que a tarefa consistia em relacionar-se, simultaneamente, de modo absoluto com o absoluto e de modo relativo com os [fins] relativos. Mas esta tarefa precisa agora ser entendida de maneira mais específica em sua dificuldade concreta, para que o pathos existencial não seja revogado no interior do pathos estético, como se o pathos existencial consistisse em dizer tal coisa de uma vez por todas, ou uma vez por mês, com a inalterada paixão da imediatidade. Se tudo se resolvesse no papel, começar-se-ia prontamente na tarefa ideal, mas na existência o início tem de ser feito exercitando-se a relação com o absoluto e retirando-se o poder da imediatidade. No papel, o indivíduo é um terceiro, alguma coisa rápida que está prontamente à disposição. O indivíduo real está, sem dúvida, na imediatidade e, propriamente, até aí, de modo absoluto nos fins relativos. [VII 375] Agora o indivíduo começa, mas, é bom notar, não se relacionando ao mesmo tempo de modo absoluto com o absoluto e de modo relativo com os fins relativos, pois, estando na imediatidade, está posicionado bem ao inverso; mas começa praticando a relação absoluta, pela renúncia. A tarefa é ideal e talvez nunca seja completada por ninguém; é só no papel que se começa sumariamente e prontamente se termina. Para se relacionar absolutamente com o absoluto, o indivíduo deve ter praticado a renúncia aos fins relativos, e só então se pode falar sobre a tarefa ideal: ao mesmo tempo relacionar-se absolutamente com o absoluto e relativamente com os relativos. Não antes disso, pois até que isso tenha acontecido o indivíduo é sempre algo imediato e, deste modo, se relaciona absolutamente com fins relativos. E mesmo quando já ultrapassou a imediatidade, está, com sua vitória, outra vez na existência e, por meio disso, outra vez impedido de expressar absolutamente a relação absoluta para com o absoluto. O pathos estético se distancia da existência ou está nela de um modo ilusório, enquanto que o [pathos] existencial aprofunda-se no existir, penetra toda ilusão com a consciência do existir, e se torna cada vez mais concreto ao transformar a existência pela ação. Ora, agir poderia parecer o exato oposto de sofrer e, portanto, estranho dizer que a expressão essencial do pathos existencial (que é ação) seja sofrimento. Entretanto, só é assim aparentemente, e de novo se mostra aqui, o que é sinal da esfera religiosa - que o positivo se reconheça pelo negativo (Queira o leitor recordar: a revelação se conhece pelo mistério, a felicidade, pelo sofrimento, a certeza da fé, pela incerteza, a facilidade, pela dificuldade, a verdade, pela absurdidade; se não for assim, então o estético e o religioso se fundem em uma confusão comum) (em contraste com o caráter direto (A esfera existencial do paganismo é essencialmente o estético e, por isso, está certo que isto se espelhe na representação de Deus de acordo com a qual, Ele próprio, imutável, tudo move. Esta é a expressão para o agir no exterior. O religioso [Det Religieuse] reside na dialética da interiorização e, por isso, em relação à concepção de Deus, isto significa que Ele próprio movido, se deixa transformar [selv bevaeges, forandres: ele mesmo (co)movido, se deixa alterar]) da imediatidade e com o caráter relativamente direto da reflexão): que o agir religioso se reconhece pelo sofrimento. A ambiguidade consiste nisso, que agir pode também significar agir no exterior, [VII 376] o que pode ser totalmente verdadeiro, mas pode também significar e sugerir que o discurso não esteja na esfera do religioso, e sim numa outra esfera. Agir no exterior decerto transforma a existência (como quando um imperador conquista o mundo inteiro e torna os povos escravos), mas não a própria existência do indivíduo; e o agir no exterior decerto transforma a existência do indivíduo (como quando um tenente se torna imperador, ou um mascate judeu um milionário, ou algo assim que nos ocorra), mas não transforma a existência interior do indivíduo. Portanto, toda ação desse tipo é apenas pathos estético, e sua lei é a lei da relação estética: o indivíduo que não foi feito dialeticamente transforma o mundo, mas se mantém, ele mesmo, inalterado, pois o indivíduo estético nunca tem o dialético em si mesmo, mas sim fora dele; ou o indivíduo é transformado no exterior, mas permanece interiormente inalterado. O palco, então, está no exterior, e por isto até mesmo a introdução do cristianismo em um país pode ser um assunto estético, a não ser que seja feita por um apóstolo, pois sua existência é paradoxalmente dialética; de outro modo, vale o seguinte: se o indivíduo não se transforma por si mesmo e continuamente, a introdução, por este, do cristianismo num reino não é uma ação mais religiosa do que a de conquistar países. Mas o essencial pathos existencial se relaciona com o existir essencialmente; e existir essencialmente é interioridade, e o agir da interioridade é o sofrer, pois o indivíduo é incapaz de transformar a si mesmo; isso se torna, por assim dizer, uma autotransformação de faz de conta, e por isso o sofrer é a ação mais elevada do interior. E quão difícil é esta façanha, compreendê-lo-á mesmo aquele que só possui uma parcela pequena da impaciência da imediatidade, que se orienta para o exterior, não para o interior, para nem mencionar aquele que está quase totalmente voltado para o exterior - contanto que, deste modo, não se mantenha inteiramente ignorante de que há de fato uma interioridade. Imediatidade é felicidade, pois na imediatidade não há nenhuma contradição; a pessoa imediata, vista essencialmente, é afortunada, e a visão de vida da imedialidade é a felicidade. Caso se lhe perguntasse de onde tira esta visão de vida, esta relação essencial com a felicidade, ela poderia responder com inocência virginal: eu mesma não o compreendo. A contradição vem de fora e é a infelicidade. Se não vem de fora, a pessoa imediata permanece sem saber se ela existe. Quando esta de fato vem, ela sente a infelicidade, mas não compreende o sofrimento. A pessoa imediata nunca chega a um entendimento com a infelicidade, com efeito, não se torna dialética em si mesma; e se não escapa dela, torna-se por fim evidente que ela carece de autocontrole, [VII 377] ou seja, desespera porque não o compreende. Infelicidade é semelhante a uma passagem estreita no caminho da imediatidade; agora ela está no infortúnio, mas, essencialmente, sua visão de vida precisa sempre imaginar que este vai cessar, porque ele é o estranho. Se ele não cessa, ela desespera, e com isso cessa a imediatidade, e se torna possível a transição para outro entendimento do infortúnio, isto é, para compreender o sofrimento, um entendimento que não só compreende este ou aquele infortúnio, mas compreende essencialmente o sofrimento. Felicidade, infelicidade, destino, entusiasmo imediato, desespero, isso é o que a visão de vida estética tem à sua disposição. A infelicidade é uma ocorrência em relação à imediatidade (destino); visto idealmente (na direção da visão de vida da imediatidade), ela está, ou deve estar, excluída. O poeta expressa isso ao elevar a imediatidade a uma idealidade que é a felicidade da imediatidade, tal como não se encontra no mundo finito. Aqui o poeta se serve da felicidade. Por outro lado, o poeta (que deve sempre operar apenas dentro dos limites da imediatidade) leva o indivíduo a sucumbir ao infortúnio. Este é o significado comumente encontrado para a morte do herói ou da heroína. Mas compreender o infortúnio, chegar a um entendimento com ele, reverter tudo e fazer do sofrimento o ponto de partida para uma visão de vida: isso o poeta não consegue; com tais coisas o poeta não deve se envolver, pois estaria agindo atabalhoadamente. A interioridade (o indivíduo ético e ético-religioso) compreende, por outro lado, o sofrimento como o essencial. Enquanto que o imediato desvia involuntariamente o olhar do infortúnio, não sabe que ele existe, se não se acha ali externamente: a pessoa religiosa tem o sofrimento continuamente junto a si, exige sofrimento (Trata-se, portanto, de uma colisão religiosa inteiramente correta, mas também de um mal-entendido estético não imperceptível, quando (p. ex., nas lendas maometanas sobre a Bíblia, publicadas por Weil) o homem religioso pede a Deus que ele possa ser provado naqueles grandes sofrimentos, como Abraão ou outro escolhido qualquer. Uma oração que pede tais coisas é uma escuma que cobre a religiosidade, no mesmo sentido em que o entusiasmo de um Aladim e a felicidade de uma mocinha são a escuma que cobre a imediatidade; o mal-entendido reside em que este religioso, de qualquer modo, compreende o sofrimento como vindo de fora, portanto esteticamente. [VII 378] Nessas narrativas, o resultado em geral é que a pessoa religiosa demonstra ser fraca demais para suportar o sofrimento. Entretanto, com isso nada fica explicado, e o resultado, outra vez, reside num não imperceptível confinium [lat.: território-limite] entre o estético e o religioso) [VII 378] no mesmo sentido em que a pessoa imediata exige a boa fortuna, e exige e tem sofrimento mesmo que o infortúnio não esteja presente no exterior; pois não é o infortúnio o que exige; deste modo a relação ainda seria estética e ela seria essencialmente não dialética em si mesma. Mais raramente, talvez, do que uma obra poética perfeita, a gente vê ou ouve uma exposição religiosa correta, que seja clara sobre quais categorias deve usar, e como deve usá-las. Mas, assim como numa obra poética às vezes encontramos uma réplica na boca de uma determinada personagem que é de tal modo refletida, que a personagem com isso extrapola todo o âmbito da poesia; assim também o discurso religioso é bastante frequentemente uma triste mixórdia de um pouco de todas as esferas. Mas, dá para entender: para se tornar um poeta exige-se uma vocação, para se tornar um orador religioso bastam somente três exames e assim decerto se recebe uma nomeação. O discurso religioso não precisa, naturalmente, falar sempre sobre o sofrimento, mas, no que quer que diga, para onde quer que se vire, qualquer caminho que tome a fim de conquistar pessoas, o quanto testemunhe, em monólogo, do próprio existir do orador, deve sempre ter sua categoria de totalidade presente como um padrão de medida, de modo que a pessoa experiente perceba prontamente a orientação global na visão de vida da exposição. Assim, a exposição religiosa pode falar sobre qualquer coisa, desde que tenha, direta ou indiretamente, seu critério absoluto continuamente junto a si. Assim como é algo que confunde (Se, porém, se admite, o que eu em relação a várias alocuções [Foredrag] religiosas concedo de boa vontade, que é mais difícil ser ouvinte de um discurso [Tale] desse tipo do que ser orador [Taler], então, decerto de modo irônico, a alocução religiosa é tornada supérflua, e útil apenas como um purgatório onde o indivíduo se disciplina a si mesmo para na Casa de Deus poder por tudo edificar-se) estudar geografia somente com mapas de países, e jamais ter visto num mapa-múndi a relação dos países entre si, de modo que, por exemplo, enganosamente, a Dinamarca parece ser tão grande quanto a Alemanha: assim também confundem as particularidades de uma exposição religiosa [VII 379] se a categoria de totalidade não estiver presente por toda parte para orientar, ainda que indiretamente. A exposição religiosa tem, essencialmente, de elevar pelo sofrimento. Tal como a fé da imediatidade se baseia na felicidade, a fé do religioso se baseia em que a vida está justamente no sofrimento. Resoluta e poderosamente deve, portanto, avançar para as águas profundas. Logo que o discurso religioso mira de esguelha para a felicidade, ele consola com a probabilidade, fortalece provisoriamente: é um falso ensinamento, é uma regressão ao estético e, portanto, obra de incompetente. Pois para a imediatidade, a poesia é a transfiguração da vida; mas para a religiosidade, a poesia é uma bela e amável brincadeira, cujo consolo a religiosidade, entretanto, desdenha, porque é justamente no sofrimento que o religioso respira. A imediatidade expira na infelicidade; no sofrimento o religioso começa a respirar. O importante é manter sempre as esferas separadas com acuidade umas das outras por meio da dialética qualitativa, para que tudo não se torne uma única coisa; mas o poeta certamente se torna um embrulhão quando quer levar consigo um pouquinho do religioso, e o orador religioso se torna um enganador que atrasa os ouvintes ao querer se meter sem competência no estético. Logo que um discurso religioso reparte as pessoas em felizes e infelizes, é eo ipso obra de incompetente, pois, do ponto de vista religioso, todos os seres humanos são sofredores, e o importante é chegar até o sofrimento (não mergulhando nele, mas descobrindo que se está nele), e não escapar da infelicidade. Visto religiosamente, a pessoa afortunada, a quem o mundo todo se curva, é tão plenamente sofredora, se for religiosa, quanto aquela que foi alcançada pelo infortúnio que vem de fora. Visto religiosamente, a distinção "feliz/infeliz" é claro que pode ser usada, mas apenas brincando e ironicamente, para com ela animar, a fim de acolher o indivíduo no sofrimento e para, a partir daí, definir o que é o religioso. Mas o discurso religioso que se ouve hoje em dia raramente é correto em suas categorias. O orador mais honrado esquece que religiosidade é interioridade, que interioridade é a relação do indivíduo consigo mesmo diante de Deus, seu reflexo no interior de si mesmo, e que é precisamente daí que vem o sofrimento, mas aquilo que lhe pertence essencialmente também está enraizado nisso, de modo que sua ausência significa ausência de religiosidade. O orador percebe o indivíduo como alguém que apenas se relaciona com um mundo, um pequeno ou grande mundo circundante, e agora ele serve algo sobre fortuna e infortúnio, que a pessoa desafortunada não deve perder a coragem, pois há muitos que são ainda mais desgraçados. Além disso, há, afinal, a probabilidade de que, "com a ajuda de Deus, as coisas certamente fiquem melhores (Um monte de gente admite, assim sem mais, que, sempre que o nome de Deus é mencionado, o discurso é piedoso. Desse modo, o blasfemar, usando o nome de Deus, seria também um discurso piedoso. [VII 380] Não, uma visão de vida estética, ainda que recheada com os nomes de Deus e de Cristo, continua a ser uma visão de vida estética, e, quando ela é exposta, temos uma exposição estética, não uma religiosa), [VII 380] e de que finalmente uma pessoa se torne alguma coisa através das adversidades - de fato, o Conselheiro de Justiça Madsen teria se tornado um conselheiro se não tivesse etc. etc.! Vê só, as pessoas realmente gostam de escutar isso, pois é religioso pregar a dispensa indulgente do religioso - do entusiasmo do religioso com o sofrimento. Quando o orador religioso esquece que seu âmbito é o da interioridade e o da relação do indivíduo consigo mesmo, tem então essencialmente a mesma tarefa que tem o poeta, e deveria manter sua boca fechada, porque o poeta pode fazer melhor. Quando o orador religioso fala sobre o infortúnio da maneira mencionada, então, do ponto de vista religioso, isto não é apenas escandaloso (a saber, porque se faz passar por um orador religioso), mas ele também lança sobre si mesmo o merecido castigo satírico de que seja tirada desse discurso a conclusão de que há favoritos da fortuna que não sofrem absolutamente - o que, de um ponto de vista religioso, é o que há de mais duvidoso. O convite para uma fala religiosa é bem simplesmente este: Vinde todos os que estais cansados sob o peso de vosso fardo - e a alocução pressupõe que todos sejam sofredores - sim, que todos o deveriam ser. O orador não deve descer até os ouvintes e apontar para um, se houvesse um desses, e dizer: "Não, tu és demasiado feliz para necessitares do meu discurso"; pois, se isto fosse ouvido dos lábios de um orador religioso, haveria de soar como a ironia mais mordaz. A distinção entre afortunado e desafortunado é apenas brincadeira, e portanto o orador deve dizer: "Nós somos todos sofredores, mas alegres no sofrimento; eis o que nos esforçamos por ser; ali está ele, o afortunado, a quem tudo, tudo, tudo favorece como num conto de fadas, mas ai dele se ele não for um sofredor". Contudo, raramente a alocução religiosa é disposta deste modo; na melhor das hipóteses, a consideração propriamente religiosa vem no terceiro momento, isto é, depois que se usou de todos os subterfúgios possíveis nas duas primeiras terças partes para escapar do religioso, e se deixou o ouvinte religioso na dúvida se viera para a dança com o poeta ou para a edificação com o pastor. Assim facilmente parece que o religioso, em vez de ser igual para todos, e de o ser com igual sofrimento, o que constitui a vitória do sofrimento sobre a brincadeira acerca da fortuna e do infortúnio seria apenas para os extremamente desafortunados - [VII 381] uma honra muito gloriosa para o religioso, de poder participar como uma miserável subdivisão subordinada a uma seção da estética. É bem verdade que o religioso é o último consolo, mas, não obstante, há uma miséria ainda maior do que ser o mais desafortunado no sentido poético, e é aquela de ser tão incomparavelmente afortunado a ponto de nem entender o sofrimento que constitui o elemento vital do religioso. Em geral, o pastor decerto pensa que tais pessoas tão incomparavelmente afortunadas só aparecem nos contos de fadas, mas que na vida o infortúnio agarra a maioria, e com isso o pastor, por sua vez, precisa tratá-las. Pode até ser, mas o pastor deveria ter tal confiança no religioso, que não precisasse impingi-lo às pessoas. Deveria gracejar despreocupado caso um homem se tornasse tão afortunado quanto alguém num conto de fadas e, contudo, ser da opinião de que o sofrimento faz parte da vida verdadeira. Deveria atingir com rigor aqueles que apenas se entristecem pelo infortúnio e só querem ouvir o consolo de que seu infortúnio, por sua vez, vai certamente acabar, porque tal pessoa quer na verdade evadir-se do religioso. Tal como La Fontaine ficava se lastimando e fazia seus heróis infelizes em três volumes (bem propriamente uma tarefa poética), assim também o orador religioso, se ouso dizê-lo, deve ter seu divertimento em fazer seus heróis tão afortunados quanto queriam ser, transformá-los em reis e imperadores, em amantes felizes que obtêm a moça, e em milionários etc. - mas ao mesmo tempo deve atentar para granjear sofrimento para eles no interior. Pois quanto mais felicidade e favorecimento no mundo externo, quando há, ainda assim, sofrimento, tanto mais claro fica que este está no interior, justamente interior. E tanto mais claro se torna que o religioso, de prima qualidade, é diferente da melange [fr.: mistura] do pastor. Quando a visão de vida religiosa se mantiver em sua categoria, o orador religioso terá bastante elevação religiosa para dispor comicamente sobre todo o âmbito da poesia. Tomemos uma individualidade que viva no desejo. Quando se dirige ao poeta, este prontamente percebe que ela é utilizável de duas maneiras, seja na direção da fortuna, com a ajuda da magia do desejo, seja na direção do infortúnio até o desespero. Poeticamente, a tarefa consiste no dar asas à fantasia, quer se torne feliz, quer infeliz, e o mais importante é: nada de atabalhoamento. Mas que a mesma individualidade vá ao pastor; este, em elevação religiosa, lhe transformará a coisa toda numa brincadeira. Em sua entusiástica convicção religiosa a respeito do significado do sofrimento para a vida mais elevada, [VII 382] o pastor lhe ensinará a sorrir sobre a ardência do desejo e a elevar-se sobre a dor do desejo frustrado - ao anunciar sofrimentos maiores. Pois no aperto, quando a carruagem está atolada no intransponível ou ameaçando tombar na trilha, então o cocheiro usa o chicote, não por crueldade, mas por estar convicto de que isto ajudará, e só os melindrosos não ousam bater. Mas nada de atabalhoar. O discurso religioso afirma para si a respeitosa liberdade de abordar diretamente o que significa ser um ser humano, quase do modo como o faz a morte, que também aborda diretamente o ser dos homens, quer sejam imperadores, conselheiros de justiça ou bandidos, quer sejam extremamente afortunados e classificados pela fortuna com nota dez e estrelinha, ou que sua posição seja muito desafortunada, nota zero e abaixo da crítica. Se o pastor não consegue transformar alguém que vive no desejo numa pessoa religiosa, ou, melhor, se não é isto o que o pastor quer, então o pastor é apenas um poeta charlatão - então se deve deixar o poeta orientar, e ou bem tornar-se afortunado ou bem desesperar. A relação deve ser esta: se o discurso do poeta for tão arrebatador que deixe as moças e os rapazes com as faces coloradas de entusiasmo, então o entusiasmo do discurso religioso deve ser tal que faça o poeta empalidecer de inveja de que haja um entusiasmo desse tipo, no qual não se trata de tornar-se afortunado, e nem de se perder na temeridade do desespero, não, no qual o que entusiasma é sofrer; mas a mentalidade mundana dirá que a poesia é uma extravagância de moça, a religiosidade, um frenesi de homens. É por isso que o orador religioso não precisa usar um discurso veemente, dado que ele demonstra sua superioridade do modo mais seguro justamente pela invencibilidade com que se mantém dentro da posição inexpugnável do religioso; pois o religioso não combate contra o estético como com igual, não combate contra ele, mas o sobrepujou como uma brincadeira. Tal como se há de reconhecer o poeta pelo fato de saber manobrar, com pathos, a paixão fantasista do infinito na fortuna e no desespero, como também pelo fato de puxar pelo nariz, de modo cômico e hilário, toda paixão finita e todo filistinismo, assim também se há de reconhecer o orador religioso por saber manobrar com pathos o entusiasmo do sofrimento e por espreitar, gracejando, a paixão fantasista do infinito. E como o poeta deve ser um espírito benevolente que logo está pronto a servir as pessoas afortunadas na terra encantada da ilusão, ou um espírito solidário que logo está pronto a servir o desafortunado, e também benevolente ao emprestar sua voz sonora para o desesperado, assim também o orador religioso, em relação à paixão fantasista da infinitude, deveria ser ou tão casmurro, indigente e indolente, [VII 383] quanto o são o dia na sala de estar e a noite no leito do enfermo e a semana na preocupação com o ganha-pão, de modo que as coisas não pareçam mais fáceis na igreja do que na sala de estar, ou então deve ser mais ágil do que o poeta em fazer a cada um tão afortunado quanto ele quiser, mas, é bom notar, ironicamente, a fim de mostrar que toda esta fortuna é irrelevante, e o infortúnio também; mas o sofrimento pertence essencialmente à vida mais elevada. - Quando então Julieta desfalece por ter perdido Romeu, quando a imediatidade tiver expirado em seu peito e ela tiver perdido Romeu de tal modo que nem mesmo Romeu pudesse consolá-la, pois a possessão, ela mesma, se tornaria apenas uma melancólica recordação diária, e quando o último amigo, o último amigo de todos os amantes infelizes, o poeta, silenciar, o orador religioso deve ousar, contudo, quebrar o silêncio. Talvez para apresentar um pequeno sortimento de excelentes motivos de consolo? Neste caso, a ofendida Julieta certamente voltaria seu olhar para o poeta, e ele, com sua autoridade esteticamente triunfante, ao assegurar a Sua Reverência um lugar nas partes burlescas (Tão logo um pastor esteja inseguro de sua própria categoria religiosa e se confunda com Anklänqe [al.: evocações] poéticas envolvidas em experiências de vida, o poeta é então naturalmente muito superior a ele. Aquele que compreende como calcular as relações das categorias entre si perceberá com facilidade que justamente tal cura d'almas estaria perto de ser um dos motivos mais normais para um personagem cômico numa tragédia. Uma pessoa comum, que representasse a mesma conversa sem fundamento, cujo segredo consiste em ter perdido o ponto poético, um aprendiz de barbeiro, p. ex., ou um papa-defuntos, seria naturalmente cômica, mas não tão profundamente cômica como o cura d'almas, cujo nome e veste preta têm pretensões do mais elevado pathos. Usar, pateticamente, um cura d'almas numa tragédia é um equívoco, pois se ele representar essencialmente o que ele essencialmente é, toda a tragédia se romperá, e, se não o representar essencialmente, deve ser, eo ipso, representado de modo cômico. Vemos com bastante frequência monges hipócritas e sinistros em tragédias; eu creio que um tal Zé-Mané eclesiástico-mundano, todo paramentado, estaria mais próximo da situação de nossa época) da tragédia, defenderia aquilo que em toda a eternidade pertence por direito ao poeta: a amável, a desesperada Julieta. Não, o orador religioso deverá ousar proclamar novo sofrimento, ainda mais terrível, e isto fará Julieta reerguer-se. - Ou quando um desesperado, assim que alguém se aproxima, prontamente, com uma olhadela arrogante, o condena como traidor, ou seja, um que quer consolar; quando a ira em sua face condena à morte o que ousa querer consolar, [VII 384] de modo que todos os consoladores e os motivos de conforto se derretem e se juntam em burlesco terror, tal como o leite fresco coalha em uma tempestade: assim o orador religioso saberá como se fazer ouvir - ao falar de um sofrimento e de um perigo ainda mais terríveis. Sobretudo, o discurso religioso jamais deve usar a perspectiva abreviada, que corresponde ao estético como um movimento ético fictício. Esteticamente, esta perspectiva é o encantamento mágico da ilusão e a única coisa correta, porque a poesia se relaciona com alguém que observa. Mas o discurso religioso deve se relacionar com alguém que age, que quando volta para casa precisa esforçar-se para agir de acordo com ele. Se, então, o discurso religioso utiliza aquela perspectiva, surge a confusão funesta de a tarefa parecer muito mais fácil lá na igreja do que em casa, nos aposentos do dia a dia, e neste caso só se tem prejuízo ao ir à igreja. Por isso o orador deve desdenhar a perspectiva abreviada como uma ilusão da juventude - para que aquele que foi tentado em seus aposentos caseiros não seja forçado a desdenhar o discurso do orador como falta de maturidade. Quando um poeta a utiliza, e o observador está ali calmamente sentado, mergulhado na contemplação, ela é magnífica, encantadora; mas quando o orador religioso a utiliza, e o ouvinte é alguém que age, alguém a caminho, ela só o leva a bater o nariz contra a porta da sala. O orador religioso opera de maneira oposta, pela ausência de um fim, pelo fato de não haver um resultado, justamente porque o sofrimento faz parte, de modo essencial, da vida religiosa. Embora as pessoas frequentemente se preocupem tolamente em saber se o pastor realmente faz o que ele diz, sou da opinião de que toda crítica impertinente desse tipo deve ser evitada e reprimida, mas uma única coisa pode e deve ser exigida do orador, que seu discurso seja tal que se possa agir em conformidade com ele, para que o ouvinte verdadeiro não seja feito de bobo - justamente ao querer fazer o que o pastor diz - porque, de fato, conversa-fiada de pastor é vapor solto no ar, esteja o pastor azafamado em vastas visões histórico-mundiais e incomparáveis visões falconídeas, de acordo com as quais não se consegue agir; ou conversando esteticamente de modo tão obscuro que também fica totalmente impossível agir de acordo; ou descrevendo imaginários estados de alma pelos quais a pessoa que age procura em vão na realidade efetiva; ou consolando com ilusões que a pessoa ativa não encontra na realidade efetiva; ou evocando paixões, do modo como elas, quando muito, parecem ser para os que não as têm; ou superando perigos que não existem, e deixando sem mencionar os perigos reais; superando-os com as forças teatrais que não se encontram na vida e deixando sem uso as forças da realidade efetiva: em suma, jogando seus trunfos esteticamente, especulativamente, de modo histórico-universal, e mostrando renúncia no religioso. [VII 385) Mas o sofrimento, como a expressão essencial do pathos existencial, significa que se sofre realmente, ou que a realidade efetiva do sofrimento é o pathos existencial, e que pela realidade efetiva do sofrimento se compreende sua continuidade como essencial para a relação patética com uma felicidade eterna, de modo que o sofrimento não é enganadoramente revogado e o indivíduo não avança para além dele, o que seria um retrocesso obtido pelo ato de transferir, de uma ou outra maneira, da existência para um medium fantástico. Assim como a resignação verificava que o indivíduo tinha a orientação absoluta rumo ao absoluto, assim a continuidade do sofrimento é a garantia de que o indivíduo fica em posição e se mantém em posição. A pessoa imediata não consegue compreender o infortúnio; apenas o percebe; assim, o infortúnio é mais forte do que ela, e esta relação à paixão imaginária da imediatidade é desespero. Pela perspectiva abreviada, o poeta o descreve bem corretamente no medium da fantasia, como se agora a coisa toda tivesse acabado. Na existência isto se mostra diferente, e aqui a pessoa imediata frequentemente se torna ridícula por uma choradeira de mulherzinha que ocorre num instante e é esquecida no instante seguinte. Quando a imediatidade no indivíduo existente recebeu um pequeno dano, um pequeno golpe - então uma saída precisa ser encontrada, já que a cena não se passa no medium da fantasia. Então aparece toda a multidão de gente experimentada e entendida, de remendões e funileiros e, com o auxílio da probabilidade e dos motivos de consolo, junta os pedaços ou cose os trapos. A vida continua; junto aos homens sagazes do meio eclesiástico ou secular a gente busca conselho e a coisa toda vira um embrulho: a gente larga o poético e não agarra o religioso. Visto religiosamente, o importante, como já foi dito, é captar o sofrimento e permanecer nele de tal modo que se reflita sobre o sofrimento, não a partir do sofrimento. Enquanto que assim a produção poética se situa no medium da fantasia, uma existência de poeta pode às vezes prover um confinium [lat.: território limite] ao religioso, embora qualitativamente diferente dele. Um poeta frequentemente está sofrendo na existência, mas o que se oferece para a reflexão é a obra poética que daí se produz. O poeta existente que sofre na existência não compreende o sofrimento deste modo, de jeito nenhum; ele não se aprofunda neste, mas busca, no sofrimento, escapar do sofrimento e encontrar alívio na produção poética, na poética antecipação de uma ordem de coisas mais perfeita [mais feliz). Assim também um ator, especialmente um ator cômico, [VII 386] pode, às vezes estar sofrendo na existência, mas não se concentra no sofrimento; busca escapar dele e encontra alívio na confusão que sua arte favorece. Mas o poeta e o ator retomam da fascinação da obra poética e da desejada ordem das coisas da fantasia, da confusão com a personagem poética, para o sofrimento da realidade efetiva que eles não conseguem compreender porque têm sua existência na dialética estética entre fortuna e infortúnio. O poeta pode transfigurar (transfigurere) toda a existência, mas não consegue explicar-se a si mesmo, porque não quer tornar-se religioso e compreender o segredo do sofrimento como a forma da vida mais elevada, mais elevada do que toda boa fortuna e diferente de todo infortúnio. Pois o rigor do religioso está em que ele começa fazendo com que tudo seja mais rigoroso, e sua relação com a poesia não é como uma nova invenção que se deseja, não é como uma escapatória totalmente nova com a qual a poesia não sonhou, mas sim como a dificuldade que cria homens tal como a guerra cria heróis. A realidade efetiva do sofrimento não é, portanto, idêntica à verdade da expressão, embora uma pessoa que esteja realmente sofrendo sempre se expressará verdadeiramente; mas aqui não se trata da expressão, porque o próprio discurso é sempre um tanto abreviado, visto que as palavras são um medium mais abstrato do que o existir. Assim, se eu fosse imaginar uma existência de poeta sofrendo corporal e psiquicamente em sua agonia final e [imaginasse] que, em meio a seus papéis póstumos, se encontrasse o seguinte desabafo: "Tal como o doente anseia por jogar longe as bandagens, assim também meu espírito saudável anseia por lançar para longe esta exaustão corporal, o sufocante cataplasma que é o corpo e a exaustão do corpo. Tal como o general que está vencendo exclama, quando o cavalo que ele monta é derrubado: Um novo cavalo - oh, oxalá a saúde vitoriosa de meu espírito pudesse gritar: Um novo corpo, pois só o corpo está gasto. Tal como aquele cuja vida está em perigo no mar, quando outro que se afoga quer se agarrar a ele, afasta-o de si, com a força do desespero, assim também meu corpo se pendura como um fardo pesado ao meu espírito, de modo que me arrasta para a morte. Feito um navio a vapor na tempestade, com maquinaria demasiado grande em proporção à estrutura do casco, assim eu sofro". Aí não se pode negar a verdade da expressão, nem o terror do sofrimento, mas decerto a realidade patética do sofrimento. Como assim, alguém pergunta - não é isto a realidade efetiva do sofrimento, este horror? Não, pois o existente compreende, ainda, o sofrimento como fortuito; tal como ele, abstratamente, deseja descartar o corpo, do mesmo modo deseja descartar o sofrimento como fortuito, e o que vale é que a realidade efetiva do sofrimento, do modo como se coloca para a pessoa religiosa, seria para ele uma doutrina pesada. [VII 387] A realidade efetiva do sofrimento significa sua permanência essencial, e é sua relação essencial para com a vida religiosa. Esteticamente, sofrimento relaciona-se como algo fortuito com a existência. Portanto, este sofrimento fortuito pode muito bem perdurar, mas uma permanência de algo que se situa como o fortuito não é uma permanência essencial. Tão logo, portanto, o orador religioso use a perspectiva abreviada, quer concentre todo o sofrimento num único instante, quer abra um panorama sorridente de tempos melhores: ele regressa ao estético e sua concepção de sofrimento vem a ser um movimento religioso simulado. Quando a Escritura diz que Deus habita um coração contrito, com isso não se exprime uma relação fortuita, transitória, momentânea (nesse caso, também a palavra "habita" seria muito inadequada); mas, ao contrario, exprime-se a significação essencial do sofrimento na relação para com Deus. Se, entretanto, o orador religioso não estiver familiarizado e não for bem experiente na esfera do religioso, compreenderá a afirmação assim: o infortúnio vem de fora e esmaga o coração de um homem; então começa a relação com Deus, e então, sim, então, pouco a pouco, a pessoa religiosa se torna feliz de novo... - alto lá, só um pouquinho: Ela se torna feliz devido à relação para com Deus? Pois neste caso ela também permanece no sofrimento. Ou talvez ela se torne feliz ao herdar algum dinheiro de um tio rico, ou ao arranjar um novo amor, ou pelo fato de Sua Reverência ter bondosamente iniciado uma subscrição em seu favor no jornal Adresseavisen? Neste caso, o discurso retrocede (Deste modo, o discurso religioso também retrocede quando um homem, p. ex., diz: "Depois de muitos erros, finalmente aprendi a me apoiar em Deus com seriedade, e desde então Ele não me abandonou. Meus negócios florescem, meus projetos prosperam, estou agora feliz no casamento e meus filhos são saudáveis etc." Este homem religioso retornou à dialética estética, pois mesmo que lhe agrade dizer que agradece a Deus por toda essa bênção, a questão ainda é o modo como ele agradece, se o faz diretamente, ou se antes faz o movimento da incerteza que é o sinal característico da relação para com Deus. Com efeito, assim como uma pessoa que está experimentando o infortúnio não tem o direito de dizer diretamente a Deus que se trata de infortúnio, já que deve suspender o juízo no movimento da incerteza, assim também não deve tomar para si todos esses ganhos como um sinal da relação com Deus. [VII 388] A relação direta é estética, e indica que o homem que agradece não se relaciona com Deus, mas com sua própria noção de felicidade e infelicidade. Ou seja, se uma pessoa não pode saber com certeza se o infortúnio é um mal (a incerteza da relação para com Deus como a forma para sempre agradecer a Deus), então também não pode saber com certeza se a fortuna é um bem. A relação com Deus tem apenas um testemunho, a própria relação com Deus; tudo o mais é ambíguo; pois no que toca à dialética da exterioridade, é piamente verdadeiro, para todo ser humano, por mais velho que seja, que: nós nascemos ontem e não sabemos nada. Quando, p. ex., o grande ator Seydelmann (tal como li em sua biografia escrita por Rötscher) foi coroado, uma noite, no teatro de ópera sob um "aplauso que durou vários minutos", e então foi para casa e agradeceu a Deus do fundo do coração por isto - exatamente o fervor interior de seu agradecimento mostra que ele não agradecia a Deus. Com a mesma paixão com a qual ele agradeceu, teria se revoltado contra Deus se tivesse sido vaiado; se tivesse agradecido religiosamente e, portanto, a Deus, então o público de Berlim e a coroa de louros e o aplauso que durou vários minutos teriam se tornado ambíguos, na incerteza dialética do religioso), embora às vezes seja nesta última parte que Sua Reverência, o pastor, [VII 388] se torne mais eloquente e gesticule com mais vigor, provavelmente porque a categoria religiosa não é tão palatável, mas fica mais fácil se ele atamancar um pouco fazendo-se de poeta. Atamancar - sim, atamancar -, pois a sabedoria de vida que tal cura d'almas acrescenta ao poético é um escândalo para a poesia; é uma tentativa repugnante e desonrosa de tratar Julieta como uma morta de aparência. Pois aquele que, depois de morto, desperta para a mesma vida, estava apenas aparentemente morto, e Catarina (seu nome não é Julieta; como a gente diz às crianças: uma moça da roça tomou o lugar da bem-amada da poesia) o demonstrará ao achar um novo marido. Ao contrário, o morto que desperta para a vida numa nova esfera estava, está e permanecerá morto de verdade. Não, assim é magnífico com a poesia deixar Julieta morrer, mas aquela sabedoria de vida, que é um escândalo para a poesia, é para a religiosidade uma abominação. O discurso religioso homenageia Julieta como morta, e justamente por isso quer operar até o limite do milagre ordenando que Julieta desperte para uma nova vida em uma nova esfera. E o religioso é uma nova vida, enquanto que a conversa-fiada do pastor não tinha nem a magnanimidade estética para matar Julieta (Quando se disse acima que o discurso religioso bate duramente, enquanto que o estético poupa, e agora se diz que a poesia tem a coragem de matar Julieta, isto também acerta o alvo sem que nossa apresentação seja prejudicada por qualquer autocontradição. Pois deixar Julieta morrer é a simpatia delicada do estético, mas anunciar um novo sofrimento, e então bater duramente, é a simpatia rigorosa do religioso), nem o entusiasmo do sofrimento para crer numa nova [VII 389] vida. A realidade efetiva do sofrimento significa, pois, sua essencial permanência como essencial para a vida religiosa, enquanto que, visto esteticamente, o sofrimento se mantém em uma relação fortuita com a existência - pode bem estar aí, mas pode terminar; visto religiosamente, contudo, com o fim do sofrimento, termina a vida religiosa. Dado que um humorista existente é o mais próximo que se pode chegar da pessoa religiosa, ele também possui uma concepção essencial do sofrimento onde ele próprio está, ao não entender o existir como algo uno, e fortuna e infortúnio como algo que acontece ao existente, mas ele existe de tal modo que o sofrimento se mantém em relação ao existir. Mas é então que o humorista faz a volta ilusória e revoga o sofrimento na forma do gracejo. Ele entende o significado do sofrimento em relação ao existir, mas não entende o significado do sofrimento; entende que este é inerente ao existir, mas não entende seu significado para além deste fato de ser inerente. O primeiro ponto é a dor no humorístico; o segundo é o gracejo - e é por isso que a gente chora e ri quando ele fala. Ele alcança o segredo da existência na dor, mas então volta para casa de novo. A profundidade consiste em que ele compreende o sofrimento como inerente à existência e que, portanto, todos os seres humanos sofrem enquanto existem. Por sofrimento o humorista não entende infortúnio, como se um existente fosse feliz desde que tal infortúnio específico não estivesse lá. Isto o humorista entende muito bem, e então pode às vezes lhe ocorrer mencionar um pequeno aborrecimento completamente fortuito, a que ninguém chamaria de infortúnio, e dizer que poderia ser feliz, não fosse por isso. Por exemplo, quando um humorista diz: "Se eu pudesse viver para ver o dia em que meu senhorio instalasse uma nova sineta no pátio do lugar em que vivo, de modo que se pudesse saber clara e rapidamente para quem ela estaria tocando de noite, eu já me estimaria sumamente afortunado". Ao ouvir algo desse tipo, qualquer um que entenda de réplicas entenderá prontamente que o orador suspendeu a distinção entre fortuna e infortúnio em uma maluquice superior - porque todo mundo sofre. [VII 390] O humorista entende o que há de profundo, mas ao mesmo tempo lhe ocorre que muito provavelmente não vale a pena dar-se ao trabalho de explicá-lo. Esta revogação é o gracejo. Por isso, quando um humorista existente conversa com uma pessoa espontânea, com uma pessoa desafortunada, por exemplo, que tem sua vida na distinção entre fortuna e infortúnio, de novo ele produz na situação um efeito humorístico. A expressão para o sofrimento que o humorista tem à sua disposição satisfaz o desafortunado, mas então a profundidade vem e remove a distinção na qual o desafortunado tem sua vida, e então vem o gracejo. Se, desse modo, o desafortunado dissesse, "Para mim está acabado, tudo está perdido", o humorista talvez desse continuidade, "Sim, que pobres coitados somos nós, seres humanos, nas várias misérias desta vida; somos todos sofredores; se ao menos eu pudesse viver para ver o dia em que meu senhorio instalasse uma nova sineta... eu já me estimaria sumamente afortunado". E o humorista de forma alguma diz isso para afrontar o desafortunado. Mas o mal-entendido está em que por derradeiro o desafortunado acredita na fortuna (pois a imediatidade não consegue entender o sofrimento), razão por que o infortúnio, para ele, é algo de determinado em que ele cola toda a sua atenção, com o pensamento de que se isto fosse removido, então ele poderia ser feliz; o humorista, ao contrário, entendeu o sofrimento de tal modo que considera toda documentação supérflua e expressa isso ao mencionar a primeira coisa que lhe vem à cabeça. O autor latino diz: respicere finem [lat.: olha para o fim], e emprega esta expressão com seriedade; mas a própria expressão contém uma espécie de contradição, visto que tinis, como o fim, ainda não chegou e, portanto, situa-se à frente da pessoa, enquanto que respicere significa rever: uma contradição semelhante é, a rigor, a explicação humorística da existência. Ela admite que, se existir é como percorrer um caminho, [VII 391] então a peculiaridade da existência está em que a meta situe-se atrás - e, contudo, se seja forçado a continuar andando para frente, porque andar para frente é, de fato, a imagem do existir. O humorista entende o significado do sofrimento como inerente ao existir, mas então o revoga completamente, pois a explicação se encontra atrás. Como um humorista existe, assim também ele se expressa, e na vida se ouve, às vezes, afinal, um humorista falando; em livros suas réplicas frequentemente não se encaixam bem. Deixemos então um humorista expressar-se, e ele falará, por exemplo, assim: Qual é o significado da vida? Sim, dize-me; como eu poderia sabê-lo; nós nascemos ontem e não sabemos nada. Mas ao menos isto eu sei, que o que há de mais agradável é bater botas, desconhecido, pelo mundo, sem ser conhecido por Sua Majestade, o Rei, por Sua Majestade, a Rainha, por Sua Majestade, a Rainha-Mãe, por Sua Alteza Real, o Príncipe Ferdinando, pois tão nobre círculo de relações apenas torna a vida pesada e penosa, tal como o deve ser para um príncipe, que viva na pobreza num vilarejo, se sua família real o conhecer. Assim também me parece que ser conhecido por Deus no tempo torna a vida enormemente tensa. Por toda parte onde Ele estiver junto, cada meia hora terá uma importância infinita. Mas não se consegue aguentar viver desse modo por sessenta anos; já é bem difícil suportar três anos de estudo extenuante para um exame, que ainda não é tão extenuante quanto tal meia hora. Tudo se dissolve em contradição. Ora nos exortam insistentemente, que deveríamos viver com toda a paixão do infinito e adquirir o eterno. Está bem, a gente se atira ao trabalho, corre o mais que pode rumo ao infinito e mergulha com a maior pressa na paixão; homem algum no bombardeio poderia correr mais depressa; nem o judeu que caiu da galeria poderia cair de modo mais precipitado [cf. At. 20,9]. O que acontece? Então ouvimos: O leilão foi adiado; não haverá nenhuma batida de martelo hoje, mas talvez só daqui a sessenta anos. Então a gente arruma as coisas e quer ir embora; o que acontece? Neste mesmo instante, o orador se precipita atrás da gente e diz: Sim, seria possível, porém, talvez neste segundo, que tudo viesse a ser decidido pela batida do dia do juízo dos mortos. O que isto significa? Am Ende [al.: no final] todos os homens chegam no mesmo ponto. Com a existência acontece o mesmo como entre mim e meu médico. Eu me queixei de um mal-estar; ele respondeu: Decerto o senhor bebe café demais e caminha de menos. Três semanas mais tarde torno a falar com ele e digo: Realmente não me sinto bem, mas desta vez não pode ser por beber café, pois não experimento café, nem por falta de movimento, pois caminho o dia todo. Ele responde: [VII 392] Bem, então a causa deve ser que o senhor não toma café e caminha demais. Ficamos então assim: meu mal-estar era e permaneceu o mesmo, mas quando bebo café, provém do fato de que bebo café, e quando não bebo café, provém do fato de que não bebo café. E é assim também conosco, humanos. Toda a nossa existência terrena é uma espécie de mal-estar. Se alguém pergunta a razão, pergunta-se a ele, em primeiro lugar, como organizou sua vida; assim que ele responde, a gente lhe diz: Aí está, eis a razão. Se outro pergunta pela razão, a gente se comporta com este da mesma forma, e se este responder o contrário, a gente lhe diz: Aí está, eis a razão - a gente sai com o ar de importante como quem já explicou tudo, até ter dobrado a esquina, e então coloca o rabo entre as pernas e some na poeira. Mesmo que alguém me desse dez moedas de prata, eu não me responsabilizaria por explicar o enigma da existência. E por que, afinal, deveria fazê-lo? Se a vida é um enigma, termina, decerto, com aquele que propôs o enigma, ele próprio, explicando. Eu não inventei a temporalidade, mas por outro lado percebi que nos jornais semanários Den Frisindede, Freischutz, e em outras publicações que oferecem enigmas, a solução segue no próximo número. "Agora, é claro, usualmente acontece que uma velha solteirona ou pensionista seja mencionada e receba os parabéns por ter decifrado o enigma - portanto, conheceu a solução com um dia de antecedência - a diferença aí não é tão grande." Em nosso tempo tem-se tentado com bastante frequência confundir o humorístico com o religioso, e até mesmo com o religioso-cristão, e é por isso que busco retornar a isso por toda parte. Não há realmente nada forçado nisso, pois o humorístico, justamente como o confinium do religioso, é muito abrangente, ele pode assumir, especialmente em um tom melancólico, uma semelhança enganosa com o religioso no sentido mais amplo, mas, contudo, enganosa somente para aquele que não está acostumado a procurar pela categoria de totalidade. Ninguém pode saber disso melhor do que eu, que sou essencialmente um humorista e que, tendo minha vida na imanência, procuro pelo religioso-cristão. Para aclarar a realidade efetiva do sofrimento como sua continuidade essencial, vou ainda enfatizar uma derradeira tentativa dialética de revogá-lo, transformando-o para tanto num momento constantemente superado. Visto esteticamente, o infortúnio se relacionaria com o existir como o que é fortuito; visto esteticamente, não se refletiria sobre o sofrimento, mas distanciando-se dele. [VII 393] Esteticamente estouvada, a sabedoria de vida, ou a sagacidade adquirida da vida, quer pôr a significação do sofrimento numa teleologia finita; por meio das adversidades, o ser humano é treinado para se tornar algo na finitude; o humor compreendia o sofrimento como inerente ao existir, mas revogava o significado essencial do sofrimento para a pessoa existente. Vejamos agora se não é possível revogar o sofrimento por meio de uma teleologia infinita. O próprio sofrimento tem de fato significado para a felicidade eterna de uma pessoa - ergo, devo estar realmente contente pelo sofrimento. Portanto, pode um existente, ao mesmo tempo em que por seu sofrimento expressa sua relação para com uma felicidade eterna como o absoluto, pode, ao mesmo tempo, ao estar consciente da relação, estar para além do sofrimento, pois nesse caso a expressão para a relação essencial para com uma felicidade eterna não é o sofrimento, mas a alegria - não se trata, naturalmente, da alegria direta que o discurso religioso às vezes quer nos inculcar e nos reconduzir a um breve upa-upa esteticamente desembaraçado - não, alegria na consciência de que o sofrimento significa a relação. Não vamos agora dar um passo à frente, e colocar no papel: O que é o mais elevado? e, tendo estabelecido que a última é a mais elevada, talvez até encerrar a questão; mas antes vamos gravar em nós mesmos que a questão não se faz in abstrato, "Qual destas duas relações é a mais elevada?", mas sim "Qual delas é possível para um existente?" Pois estar na existência é sempre um tanto embaraçoso, e a questão é se esta não é mais uma de suas pressões, a saber, que o existente não possa fazer a transformação dialética pela qual o sofrimento se converte em alegria. Na felicidade eterna não há nenhum sofrimento, mas quando um existente se relaciona com ela, a relação é bem apropriadamente expressa pelo sofrimento. Se um existente fosse capaz, por seu saber de que este sofrimento significa a relação, de se erguer para além do sofrimento, seria então também capaz de se transformar de um existente em um eterno, mas isso ele deixa para lá. Mas se for incapaz disso, estará novamente na posição do sofrimento, de modo que seu saber estará bem fixado no âmbito da existência. No mesmo instante, a completude da alegria se frustra, como se frustrará sempre que for possuída numa forma imperfeita. A dor sobre isso é, de novo, a expressão essencial da relação. Mas a gente lê afinal no Novo Testamento que os apóstolos, quando foram açoitados com varas, retiraram-se alegremente, agradecendo a Deus por lhes ter sido concedida a chance de sofrer algo por causa de Cristo. [VII 394] Inteiramente correto, e não duvido de que os apóstolos tenham tido o poder da fé para, mesmo na dor corporal, se alegrar e agradecer a Deus, tal como mesmo entre pagãos encontramos exemplos de uma força de alma que se alegra até mesmo nos momentos de dor corporal como [Mucius] Scaevola, por exemplo. Mas o sofrimento de que se fala naquela passagem não é o sofrimento religioso, sobre o qual em suma só se fala pouco no Novo Testamento, e quando um assim chamado discurso religioso quer nos impingir que tudo o que um apóstolo sofre é eo ipso sofrimento religioso, isso só mostra quão pouco claro é tal discurso em relação às categorias, pois isto é uma contrapartida à suposição de que todo discurso em que aparece o nome de Deus seja um discurso piedoso. Não, quando o indivíduo está seguro em sua relação para com Deus e sofre apenas no exterior, este não é sofrimento religioso. Este tipo de sofrimento é dialeticamente estético, tal como o infortúnio em relação com o imediato, pode vir e pode ir embora; mas ninguém tem o direito de negar que uma pessoa seja religiosa por não ter enfrentado infortúnios em sua vida. Mas por estar sem esse tipo de infortúnio não quer dizer que não tenha sofrimento, se ela é realmente religiosa, pois o sofrimento é a expressão da relação para com Deus, isto é, o sofrimento religioso que é o sinal característico da relação com Deus, e do fato de não ter ficado feliz por ser dispensada da relação com um absoluto. Portanto, ao mesmo tempo em que o mártir (pois não direi mais nada aqui sobre o apóstolo, dado que sua vida é paradoxalmente dialética, e sua relação qualitativamente diferente da dos outros, e sua existência justificada quando ela é como a de ninguém mais ousaria ser) é martirizado, pode muito bem em sua alegria estar para além do sofrimento corporal, mas ao mesmo tempo em que um indivíduo sofre religiosamente, ele, em sua alegria pela significação deste sofrimento como relação, não pode estar para além do sofrimento; pois o sofrimento tem a ver especificamente com o fato de ele estar separado da alegria, mas indica também a relação, de modo que estar sem sofrimento indica que não se é religioso. O imediato não é essencialmente existente, pois, ele é, enquanto imediato, a feliz unidade de finitude e infinitude, ao que corresponde, como foi mostrado, fortuna e infortúnio como provenientes do exterior. O religioso está voltado para o interior e tem consciência de que, existindo, está em devir, e não obstante se relaciona com uma felicidade eterna. Assim que o sofrimento termina e o indivíduo conquista uma segurança, de tal modo que [VII 395] como o imediato, se relaciona apenas com a fortuna e o infortúnio: isto é um sinal de que é uma individualidade estética que se extraviou dentro da esfera religiosa; e confundir as esferas é sempre mais fácil do que mantê-las separadas umas das outras. Um esteta extraviado desse tipo pode ser um despertado ou um especulante. Um despertado está absolutamente seguro em sua relação com Deus (pobre moço, esta segurança é infelizmente o único sinal seguro de que um ser humano existente não se relaciona com Deus), e se ocupa apenas em tratar o resto do mundo em e com tratados: um especulante já concluiu no papel e confunde isto com a existência. O Apóstolo Paulo menciona em algum lugar o sofrimento religioso, e aí se descobrirá também que o sofrimento é sinal de bem-aventurança. Eu me refiro, naturalmente, à passagem de Coríntios sobre o espinho na carne. Ele conta que isto lhe aconteceu uma vez, se foi no corpo ou fora do corpo, não sabe, que foi arrebatado ao terceiro céu. Vamos lembrar de uma vez por todas que é um apóstolo quem fala, e então fala simples e singelamente sobre o assunto. Então isto lhe aconteceu uma vez, apenas uma vez; ora, é óbvio, isto decerto não pode acontecer a cada dia com um existente; ele está impedido disto justamente por existir, sim, impedido na medida em que só um apóstolo, como um assinalado, o vivencia uma única vez. Ele não sabe se foi no corpo ou fora do corpo, mas isto decerto não pode acontecer a um existente todos os dias, exatamente porque é um ser humano particular existente; aprendemos com o apóstolo, de fato, que isto ocorre tão raramente que só aconteceu ao apóstolo, o assinalado, uma única vez. E então? Que sinal o apóstolo tem de que isto lhe tenha acontecido? Um espinho na carne - portanto, um sofrimento. O resto de nós seres humanos ficamos satisfeitos com menos, mas a relação permanece bem a mesma. O religioso não é arrebatado para o terceiro céu, mas talvez não compreenda o sofrimento que é um espinho na carne. O homem religioso se relaciona com uma felicidade eterna, e a relação é reconhecível pelo sofrimento, e o sofrimento é a expressão essencial da relação - para um existente. Assim como, para um existente, os mais elevados princípios do pensamento só podem ser demonstrados negativamente, e querer demonstrá-los positivamente logo revela que o demonstrador, enquanto é por certo um existente, está a ponto de se tornar fantástico: [VII 396] assim também, para um existente, a relação existencial para com o bem absoluto só pode ser definida pelo negativo: a relação para com uma felicidade eterna pelo sofrimento, tal como a certeza da fé, que se relaciona com uma felicidade eterna, é definida pela incerteza. Se removo a incerteza - para obter uma certeza ainda maior -, então não tenho um crente em humildade, em temor e tremor, mas sim um rapazote estético, um tipo levado que, dito impropriamente, quer confraternizar com Deus, mas, dito propriamente, não se relaciona com Deus de jeito nenhum. A incerteza é o sinal emblemático, e certeza sem ela é o sinal de que a gente não se relaciona com Deus. Assim, na hora do pedido de casamento, estar absolutamente certo de ser amado é um sinal seguro de que não se está apaixonado. (Não sendo o amor natural [Elskov] o absoluto, a comparação deve ser tomada cum grano salis [lat.: com as devidas nuanças], ainda mais porque, na esfera do estético, estar apaixonado é a felicidade direta). Mas, não obstante, ninguém consegue fazer um apaixonado pensar que não é uma felicidade estar apaixonado. Assim também com a incerteza da fé; mas, não obstante, ninguém consegue fazer um crente imaginar que crer não seria uma felicidade. Mas assim como uma mocinha se relaciona com um herói, um amante se relaciona com um crente - e por quê? Porque o amante, por sua vez, se relaciona com uma mulher, um crente, porém, com Deus - e para isto vale absolutamente o adágio latino interest inter et inter [lat.: há que distinguir entre uma coisa e outra]. É por isso também que o amante só tem razão relativamente, e o crente tem razão absolutamente ao não quererem ouvir nada sobre outro tipo de certeza. Pois amar, sim, isto é belo, encantador. Oxalá eu fosse um poeta capaz de proclamar corretamente o elogio do amor e descrever sua magnificência. Se ao menos eu merecesse sentar no banco e escutar quando o poeta o fizesse: mas isso é só um gracejo, eu não quero parecer desdenhoso, como se o amor natural fosse um sentimento fugaz, não, mesmo quando o mais feliz dos amores encontra sua expressão mais duradoura no mais feliz dos casamentos - sim, é magnífico estar casado e consagrado, com todas as suas adversidades e canseiras, a este bem-aventurado passatempo, oxalá eu fosse um orador capaz de testemunhar em favor da fama do casamento, de modo a que o infeliz, que nostálgico se mantém fora dele, não ousasse me ouvir, e o presunçoso que se mantém de fora, zombando, [VII 397] descobrisse ao ouvir, com horror, o que havia perdido: mas isto, contudo, é só um gracejo. Eu o percebo quando coloco o casamento lado a lado com o absoluto, com uma felicidade eterna, e para estar certo de que é do absoluto que estou falando, deixo a morte julgar como árbitro entre os dois, aí eu ouso dizer com verdade: é indiferente se alguém foi ou não casado, assim como é indiferente se alguém é judeu ou grego, livre ou escravo. O casamento é ainda uma brincadeira, uma brincadeira que deve ser tratada com toda seriedade, sem que por isso a seriedade consista no próprio casamento, mas que seja um reflexo da seriedade da relação com Deus, um reflexo da relação absoluta do esposo para com seu absoluto e da relação absoluta da esposa para com seu absoluto. Mas voltemos ao sofrimento como sinal da felicidade [eterna]. Se, só porque um despertado consegue evitar o sofrimento, e um especulante consegue revogá-lo (revocare) e fazer da própria felicidade eterna um sinal da felicidade eterna (assim como aliás toda especulação imanente é essencialmente uma revogação da existência, o que a eternidade certamente é, mas o especulante certamente não está na eternidade), portanto, se alguém, porque um existente não consegue revogar o sofrimento e fazer da própria felicidade eterna um sinal de felicidade eterna, o que significaria que o existente faleceu e passou para a vida eterna, quiser chamar a religião de uma ilusão: muito bem - mas tenha-se a bondade de lembrar que esta é uma ilusão que veio depois do entendimento. Poesia é ilusão antes do entendimento, religiosidade, ilusão depois do entendimento. Entre a poesia e a religiosidade, a sabedoria mundana da vida representa seu vaudeville. Todo indivíduo que não vive nem poética, nem religiosamente, é tolo. Como assim, tolo? Essas pessoas sagazes e experientes que sabem de tudo, que têm solução para tudo e conselho para cada um, são tolas? E em que reside sua tolice? Sua tolice está em que, depois de terem perdido a ilusão poética, não tiveram bastante imaginação e paixão de imaginação suficiente para penetrar a miragem da probabilidade e a credibilidade de uma teleologia finita, tudo o que se rompe tão logo o infinito põe-se em movimento. Se a religiosidade é uma ilusão, então há três tipos de ilusão: a da poesia, da bela imediatidade (na ilusão está a felicidade, e aí, depois desta, chega o sofrimento com a realidade); a ilusão cômica da tolice; e a ilusão feliz da religiosidade (na ilusão reside a dor, e a felicidade chega depois desta). [VII 398] A ilusão da tolice é, naturalmente, a única intrinsecamente cômica. Embora toda uma tendência na poesia francesa tenha sido um tanto ativa em apresentar comicamente a ilusão estética, o que é um insulto ao estético e de modo algum um mérito aos olhos do religioso (a saber, que um poeta queira fazê-lo): então seria mais útil se a poesia assumisse bem para si mesma a sabedoria mundana da vida, que é - e este é exatamente o sinal do quanto ela é cômica - igualmente cômica quer calcule corretamente (E talvez ainda mais cômica quando calcula corretamente; pois quando calcula errado a gente sente um pouco de compaixão pelo pobre rapaz. Quando, portanto, p. ex., um homem calcula fazer, graças a essas e aquelas ligações, e assim graças ao seu conhecimento do mundo, um rico casamento, e isto dá certo e ele fica com a moça e ela tem dinheiro: neste caso a comi cidade exulta de alegria, pois agora ele se tornou espantosamente tolo. Suponhamos que ele tenha conseguido a moça, mas, vejam só, ela não tinha dinheiro; então um pouco de compaixão ainda haveria de se misturar aí. Mas, ordinariamente, a maioria das pessoas reconhece o cômico num terceiro aspecto, no resultado infeliz (o qual, contudo, não é o cômico, mas o lamentável), assim como reconhecem o patético num terceiro aspecto, no resultado feliz (o que, contudo, não é o patético, mas o fortuito). Desse modo, quando um maluco com sua ideia fixa leva a si e a outros à confusão que comporta perdas e danos, não é de jeito nenhum tão cômico como quando a existência se orienta pela sua ideia fixa. Ou seja, não é bem cômico que a existência deixe alguém descobrir que um maluco é maluco, mas é cômico que ela o oculte) quer calcule incorretamente, porque todo seu cálculo é uma presunção, uma azáfama em meio à quimérica noção de que haja algo que seja certo no mundo da finitude. Mas não era Sócrates, então, sábio a respeito da vida? De fato, mas expliquei várias vezes que, em um sentido mundano, sua tese principal é ainda a fala de um louco, exatamente por fazer o movimento da infinitude. Não, poesia é juventude, e sabedoria mundana vem com os anos, e religiosidade é a relação para com o eterno; mas os anos só tornam uma pessoa cada vez mais tola se ela perdeu sua juventude e não ganhou a relação para com o eterno. Vê só, o homem sério de quem falamos antes, o homem que queria saber que uma felicidade eterna é certa e definitiva para então arriscar tudo, pois, de outro modo, isto seria afinal uma loucura: Será que ele não consideraria que é uma loucura geral [VII 399] arriscar tudo quando o sofrimento se torna a certeza - a expressão correta para a incerteza? No interior do sofrimento religioso encontra-se a determinação: provação espiritual, e só aí ela pode ser definida. Embora de resto eu só tenha a ver com o discurso religioso na medida em que este é o órgão da visão de vida religiosa, posso, de passagem, levar em consideração sua natureza fática em nossos dias e, aqui de novo, para aclarar a religiosidade de nosso tempo, que tem a pretensão de ter ido além da religiosidade da Idade Média e, ao tentar eu indicar o lugar da provação espiritual, lembrar, de passagem que, hoje em dia, quase nunca se escuta mencionar a provação espiritual ou, na medida em que ela é mencionada, a vemos ser sem mais nem menos amalgamada às tentações, sim, até mesmo às contrariedades da vida. Tão logo se omite a relação para com o absoluto e se a deixa exaurir nos [fins] relativos, cessa a provação espiritual. Esta é, na esfera da relação com Deus, aquilo que a tentação é na esfera da relação ética. Quando o ponto máximo do indivíduo está na relação ética com a realidade efetiva, o maior de todos os perigos é a tentação. Está, portanto, inteiramente correto que se omita a provação espiritual, e é apenas uma negligência adicional que a gente a use como idêntica com a tentação. Mas não só desta maneira a provação espiritual é diferente da tentação; também a posição do indivíduo é diferente. Na tentação, é o inferior que tenta; na provação espiritual, é o superior, na tentação é o inferior que quer atrair o indivíduo; na provação espiritual, é o superior, o qual, parecendo invejoso do indivíduo, quer assustá-lo, fazendo-o recuar. Por isso, a provação espiritual tem início apenas na esfera propriamente religiosa, e lá, só em seu percurso final, e cresce de modo diretamente proporcional à religiosidade, porque o indivíduo descobriu o limite, e a provação espiritual expressa a reação do limite contra o indivíduo finito. Era, portanto, um alarme falso, como foi mostrado acima, quando o pastor diz no domingo, que é tão bom de estar na igreja e que, se ousássemos permanecer ali, decerto nos tornaríamos santos; temos, porém, de sair para retomar ao mundo. Se, com efeito, fosse permitido a uma pessoa permanecer ali, aí ela descobriria a provação espiritual, e muito provavelmente sairia tão mal desta labuta que não teria assim tanta vontade de agradecer ao pastor por isto. No instante em que o indivíduo conseguisse, pela renúncia aos fins relativos, exercitar a relação absoluta (e isto pode aliás ser assim em instantes singulares, embora mais tarde o indivíduo esteja outra vez lançado nesse conflito), e agora deve se relacionar absolutamente com o absoluto: então descobre o limite, [VII 400], a provação espiritual se torna então a expressão para o limite. O indivíduo é decerto inocente na provação espiritual (enquanto que não é inocente na tentação), mas, não obstante, o seu sofrimento é terrível, talvez, pois nada sei a respeito, e se alguém procurar por um conforto duvidoso, prontamente lhe comunicarei que quem não for muito religioso também não será exposto a provações espirituais; porque a provação espiritual é justamente a reação frente à expressão absoluta da relação absoluta. A tentação ataca o indivíduo em seus momentos de fraqueza; a provação espiritual é a Nemesis [gr.: (deusa da) vingança e (da) justiça punitiva] sobre os momentos fortes da relação absoluta. A tentação tem, pois, uma conexão com o habitus [lat.: constituição] ético do indivíduo, enquanto que a provação espiritual carece de continuidade, e significa a própria resistência do absoluto. Entretanto, que a provação espiritual exista é algo que não se deixa negar; e exatamente por isto poderia aparecer em nosso tempo um caso psicológico nada desprezível. Suponhamos que uma pessoa com uma necessidade profundamente religiosa ouvisse constantemente apenas o tipo de discurso sacro em que tudo se arredonda pelo exaurir do absoluto nos fins relativos, e então? Ela mergulharia no mais profundo desespero, já que, em sua interioridade, vivenciaria outra coisa e, contudo, nunca ouvira o pastor falar sobre isto, sobre o sofrimento no interior da pessoa, sobre o sofrimento da relação com Deus. Por veneração ao pastor e à dignidade da posição do pastor, talvez fosse levada a interpretar este sofrimento como um mal-entendido, ou como algo que outras pessoas provavelmente também vivenciaram, mas acharam tão fácil de ultrapassar que nem mesmo foi mencionado - até que, com o mesmo horror da primeira vez em que isto ocorreu, descobre a categoria da provação espiritual. Deixemos que ela subitamente tope com um dos antigos livros de edificação e lá encontre bem corretamente descrita a provação espiritual: sim, muito provavelmente ela ficaria tão alegre quanto Robinson [Crusoé] ao encontrar Sexta-Feira; mas o que será que ela julgaria do discurso religioso-cristão que estava acostumada a ouvir? O discurso religioso deveria propriamente ser de tal tipo que, ao ouvi-lo, a gente obtivesse o mais acurado entendimento das ilusões religiosas de sua época, e de si mesmo como pertencente a esta época. Mas o que estou eu a dizer? Este entendimento pode ser obtido também ao se ouvir um discurso religioso que nem mesmo alude a provações religiosas. É óbvio que se obtém o entendimento, mas apenas indiretamente pelo discurso. Essa é, então, a permanência essencial do sofrimento, sua realidade efetiva, por meio da qual ele permanece até mesmo na pessoa mais desenvolvida religiosamente, [VII 401] mesmo que fosse um dado que a pessoa religiosa tivesse lutado até vencer aquele sofrimento que consiste na extinção da imediatidade. O sofrimento dura, portanto, enquanto o indivíduo vive, mas para que não nos apressemos a recorrer a este último sofrimento, devemos parar os indivíduos no primeiro, pois sua luta é tão prolongada e a recaída nele é tão frequente, que um indivíduo muito raramente consegue fazer seu caminho através dele, ou tê-lo dominado por muito tempo. A razão deste sofrimento é que, em sua imediatidade, o indivíduo está, a rigor, de forma absoluta nos fins relativos; seu significado é a reviravolta da relação, morrer para a imediatidade, ou existindo expressar que o indivíduo não consegue nada por si mesmo, mas nada é diante de Deus, pois aqui, outra vez, a relação com Deus se reconhece no negativo, e a autoaniquilação é a forma essencial da relação com Deus; e isto não se deve expressar no exterior, pois assim temos o movimento monástico, e a relação é contudo secularizada; e não deve imaginar que isso se faça de uma vez por todas, pois isto é estética. E mesmo que pudesse ser feito de uma vez por todas, ele, dado que é um existente, experimentaria novamente sofrimento na sua repetição. Na imediatidade, o desejo é conseguir tudo, e a crença da imediatidade, ideal mente, está em ser capaz de tudo; e a sua incapacidade se funda em algum empecilho que vem do exterior, que ela portanto ignora no mesmo sentido em que ignora o infortúnio; pois a imediatidade não é em si mesma dialética. Em termos religiosos, a tarefa está em entender que uma pessoa não é absolutamente nada diante de Deus, ou não ser absolutamente nada e, com isso, estar diante de Deus, e ela continuamente insiste em ter tal incapacidade diante de si, e o desaparecimento desta é o desaparecimento da religiosidade. A capacidade juvenil da imediatidade pode tornar-se cômica para um terceiro, enquanto que a incapacidade da religiosidade nunca pode tornar-se cômica para um terceiro, pois não há nenhum traço de contradição. (Não há nenhuma contradição no fato de que alguém não seja capaz de absolutamente nada diante de Deus, a não ser tomar consciência disso; pois isto é apenas outra expressão para a absolutidade de Deus, e que alguém não fosse nem potencialmente capaz disso, seria uma expressão de que ele pura e simplesmente não existiria [slet ikke var til]. Não há nenhuma contradição, e, portanto, isto não é cômico, de jeito nenhum; [VII 402] pelo contrário, é cômico, por exemplo, que andar de joelhos devesse significar alguma coisa diante de Deus, assim como o cômico, em geral, se manifesta da maneira mais clara na idolatria, na superstição, e em coisas semelhantes. Entretanto não se deve afinal esquecer jamais de levar em consideração o aspecto pueril que pode estar na base do erro e fazer com que isto seja mais melancólico do que cômico. Tal como uma criança que deseja dar uma verdadeira alegria a um idoso pode inventar o que há de mais estranho, mas, contudo, fazendo-o com a piedosa intenção de agradar o velhinho, do mesmo modo o religioso pode também causar uma impressão melancólica quando, em zelo piedoso, já não sabe mais o que fará para agradar a Deus, e assim descobre algo totalmente absurdo [hitter paa noget ganske Urimeligt]). A pessoa religiosa não pode ser cômica deste modo, [VII 402] mas, pelo contrário, o cômico pode apresentar-se para ela, a saber, quando, para todos os efeitos no mundo exterior, parece que ela conseguiu muita coisa. Mas se esta brincadeira deve ser uma brincadeira piedosa e assim permanecer, não pode, em nenhum momento, distraí-Ia da seriedade do fato de que, diante de Deus, ela nada é e de nada é capaz, e do trabalho de manter isto, e do sofrimento de expressar isto em existindo. Assim, se Napoleão tivesse sido uma individualidade autenticamente religiosa, teria tido uma rara oportunidade para o mais divino divertimento; pois aparentemente ser capaz de tudo e então divinamente entender isto como ilusão: sim, de fato isto é uma brincadeira séria! Afinal, o cômico está presente em toda parte, e toda existência pode, prontamente, ser definida por e referida à sua esfera particular quando se fica sabendo como ela se relaciona com o cômico. A pessoa religiosa é aquela que descobriu o cômico na escala maior e, contudo, não considera o cômico como o mais elevado, pois a religiosidade é o pathos mais puro. Mas se ela encara a comicidade como o mais elevado, então sua comicidade é eo ipso mais baixa; pois a comicidade reside sempre numa contradição, e se o próprio cômico é o mais elevado, então ele carece da contradição na qual o cômico está e na qual ele se destaca. É por isso que vale, sem exceção, que, quanto mais competente uma pessoa for para existir, tanto mais ela descobrirá o cômico. (Mas o mais alto cômico, tal como o mais alto patético, raramente é objeto da atenção das pessoas e nem mesmo pode ser exposto pelo poeta, porque ele não alardeia, como se diz, enquanto que o pathos mais baixo e o cômico mais baixo fazem alarde ao se darem a conhecer por meio de um terceiro. O mais alto não faz alarde porque ele pertence à esfera final da interioridade e, em sentido sagrado, se ocupa consigo mesmo). Já aquela pessoa que apenas concebeu um grande plano com vistas a executar algo no mundo o descobrirá. Pois que tenha consigo sua resolução, vivendo tão somente para esta, e então saia e se envolva com as pessoas: aí o cômico aparecerá - se ela permanecer em silêncio. [VII 403] A maioria das pessoas não tem grandes planos e frequentemente fala orientada pelo senso comum finito ou de modo totalmente imediato. Basta que a pessoa mantenha o silêncio, e aí quase que de cada duas palavras ditas, uma tocará sua grande resolução de um modo cômico. Mas se abandonar sua grande resolução e sua intensa existência interior em relação a ela: então o cômico se esvai. Se não consegue manter silêncio a respeito de seu grande plano, e precisa tagarelar sobre ele de modo imaturo, aí é ela mesma que se torna cômica. Mas a resolução da pessoa religiosa é a mais alta de todas, infinitamente mais alta do que todos os planos para transformar o mundo e para criar sistemas e obras de arte: por isso, entre todas as pessoas, a religiosa é aquela que deve descobrir o cômico - se ela realmente for religiosa; pois, de outro modo, ela própria se torna cômica. (Mais, porém, sobre isto ulteriormente.) O sofrimento como o morrer para a imediatidade não consiste, portanto, em flagelações e coisas do tipo; não se trata de atormentar-se. Com efeito, aquele que se atormenta não expressa, de modo algum, que de nada é capaz diante de Deus, pois acha que o autotormento já é afinal alguma coisa. Mas o sofrimento está contudo presente e pode continuar enquanto uma pessoa existir; pois, por mais rápido que se diga que uma pessoa nada é diante de Deus, tanto mais difícil é expressá-lo existindo. Mas descrever e representar isto com mais detalhes é, de novo, difícil, porque afinal de contas o discurso é um medium mais abstrato do que a existência, e, em relação ao ético, todo discurso envolve um pequeno engano, porque o discurso, apesar das medidas de precaução mais sutis e qualificadas, ainda tem sempre uma aparência de perspectiva abreviada, de modo que, mesmo que o discurso faça o esforço mais entusiasmado e mais desesperado para mostrar o quão difícil isso é, ou que numa forma indireta ensaie um extremo esforço, realizar permanece contudo sempre mais difícil do que parece ser no discurso. Mas quer se fale ou não do fato de existindo se expressar esta morte [para a imediatidade], esta precisa ser afinal realizada; e religiosidade não é irreflexão, de modo que a gente de vez em quando diz o que há de mais elevado e aí, mediando, deixa dois mais dois ser cinco. O religioso não proclama indulgência, mas anuncia, isto sim, que o maior dos esforços não é nada - porém ao mesmo tempo o exige. Aqui, mais uma vez, o negativo é o sinal, pois o maior dos esforços se distingue pelo fato de que a gente por ele se torna nada, e se a gente se torna alguma coisa, o esforço é, eo ipso, menor. Quão irônico não parece, que, no entanto, nas situações inferiores, numa esfera mais baixa, já seja assim, pois com metade da aplicação e com um pouco de trabalho de remendão uma pessoa se convencerá de que entende de diversas ciências de todos os tipos e fará sucesso no mundo e será muito lida; com aplicação total e honestidade absoluta, terá dificuldade em entender até um minúsculo fragmento daquilo que todos entendem, [VII 404] e será considerado um indolente maçante. Mas aquilo que vale apenas relativamente nesta esfera mais baixa é absolutamente válido na esfera religiosa, e nos religiosos experimentados encontra-se por isso exposto como uma derradeira provação espiritual, que o mais extremo esforço queira seduzir alguém, com o significado de ser alguma coisa. Dado que sou agora forçado a admitir, consternado, que não tenho condições de falar sobre a China, a Pérsia, o sistema, a astrologia ou a ciência veterinária: então (a fim de aparecer ao menos com alguma coisa em meu apuro) adestrei minha pena, de acordo com as capacidades a mim conferidas, para conseguir copiar e descrever tão concretamente quanto possível a vida cotidiana, que muitas vezes é diferente da vida dominical. Se alguém considerar aborrecido este gênero de apresentação, ou aborrecida a minha apresentação, abandone-a; não estou escrevendo para ganhar alguma medalha e, devo admitir com prazer, caso seja isso o que se exige de mim, que é muito mais difícil, ligado com complicações muito maiores, e uma responsabilidade bem diferente, matar um tio rico ao modo das novelas, a fim de obter dinheiro na narrativa, ou intercalar dez anos, deixar passar algum tempo, durante o qual a coisa mais importante aconteceu, e depois começar com o fato de que já aconteceu; e que se requer uma concisão muito mais aguda para descrever a vitória da fé em meia hora do que para descrever aquilo com que uma pessoa ordinária preenche seu dia na sala de estar. Sim, para isso se requer rapidez, para escrever uma narrativa de trinta páginas cuia ação se passa em cem anos, ou um drama no qual a ação se desenrola por três horas, mas nela acontece tanta coisa, e tantos eventos se precipitam de tal modo que tais coisas não acontecem a um ser humano em toda a sua vida! Mas, o que não se requer para descrever uma pessoa em sua vida cotidiana; se é que não se cai num embaraço pela insuficiência da linguagem, porque esta é tão abstrata em comparação com o existir no sentido da realidade. Mas o orador religioso deve afinal dignar-se a fazê-lo, dado que é justamente com a sala de estar que ele tem a ver; e o orador religioso que não sabe como se apresenta a tarefa, no dia a dia e na sala de estar, bem que poderia, do mesmo modo, calar-se, pois as visões dominicais da eternidade só levam ao vento. É óbvio, o orador religioso não deve permanecer na sala de estar; deve saber como agarrar-se à categoria de totalidade de sua esfera, mas também deve saber começar a partir de qualquer lugar. E é dentro de casa mesmo que se deve travar a batalha, para que a peleja da religiosidade não se torne um desfile de troca da guarda uma vez por semana; é na sala de casa que se deve travar a batalha, e não de maneira fantástica dentro da igreja, de modo que o pastor esgrima no ar e os ouvintes assistam; [VII 405] na sala de casa, contudo, deve travar-se a batalha, pois a vitória deve consistir justamente em que os aposentos domésticos se transformem num santuário. Que se atue então diretamente na igreja passando em revista as forças de combate: sob qual bandeira se combaterá, em nome de quem a vitória será conquistada; descrevendo a posição do inimigo; repercutindo o ataque; louvando o aliado onipotente e fortalecendo a confiança ao despertar a desconfiança: confiança nele junto com desconfiança em relação a si mesmo - e que se atue indiretamente pela simpatia irônica, mas por isso mesmo a mais terna, da solidariedade oculta; mas o principal é, contudo, que o indivíduo singular retorne da igreja para casa com desejo e ardor, para querer combater na sala de casa. Se a atividade do pastor na igreja for tão somente uma tentativa de uma vez por semana rebocar a nave cargueira da comunidade para mais perto da eternidade, a coisa toda se transformará em nada, pois uma vida humana não pode ficar como um navio de carga, parando no mesmo lugar até o próximo domingo. Por isso, a dificuldade tem de ser exposta justamente na igreja, e é melhor voltar desanimado da igreja, e achar a tarefa mais fácil do que se acreditava, do que sair da igreja presunçoso e ficar desanimado na sala de casa. Assim, o orador religioso há de se guardar até de concentrar momentos intensos em um discurso, ou de ter seu mais intenso momento no discurso, para não enganar a si mesmo e aos outros. Antes será como alguém que bem poderia falar em um tom mais elevado, mas que não ousa fazê-lo, para que o "segredo da fé" não seja fraudado e prostituído pela publicidade excessiva, mas antes seja "guardado" (lTm 3,9) de tal modo que seja mesmo maior e mais forte nele mesmo do que parece ser no discurso dele. Dado que, com efeito, o principal da tarefa do orador, assim como de todos os outros, é expressar existindo o que ele proclama, e não, uma vez por semana, eletrizar a comunidade, levá-la a estrebuchar galvanicamente, então será cauteloso para que não experimente, ele próprio, o desgosto de ver que o que parecia ser tão magnífico no grandiloquente discurso se torna inteiramente diferente no uso diário. Mas por nada no mundo deve ceder, rebaixar o preço, pechinchar; mesmo quando ele parece bem distante da exigência absoluta da religiosidade, esta deve estar presente, deve determinar o preço e o juízo; mesmo quando se envolve com as mais miseráveis frações da vida cotidiana, o seu absoluto denominador comum deve estar sempre presente, ainda que oculto, pronto, a qualquer segundo, para pôr sua exigência absoluta. E como estão as coisas no que toca à tarefa para o uso diário; pois tenho meu tema favorito sempre in mente: Será mesmo que está correto o ímpeto de nosso teocêntrico século XIX para ir além do cristianismo, ímpeto para especular, ímpeto para uma evolução contínua, [VII 406] ímpeto para uma nova religião ou para a abolição do cristianismo? No que tange à minha própria humilde pessoa, o leitor terá a bondade de se lembrar de que sou um daqueles que acham a questão e a tarefa difíceis demais, o que parece indicar que não as levei a cabo, eu, que nem mesmo me dou por um cristão, porém, é bom notar, não no sentido de que eu tenha deixado de ser cristão por ir mais além. Mas já é immer [al.: sempre] alguma coisa chamar a atenção para a dificuldade disto, mesmo que se faça, como aqui, apenas num Divertissement edificante, que é executado essencialmente com o auxílio de um informante que despacho por entre as pessoas nos dias de semana, e também com o apoio de alguns diletantes que, contra a vontade, vêm participar do jogo. No domingo passado, o pastor disse: "Não deves te fiar no mundo, nem nas pessoas, nem em ti mesmo, mas só em Deus; pois um ser humano não é, ele mesmo, capaz de nada". E todos nós entendemos, e eu com os outros; porque o ético e o ético-religioso são tão fáceis de entender, mas, em compensação, tão difíceis. Uma criança pode compreendê-lo: o mais simples de todos pode compreender, bem do jeito que é dito, que não somos capazes de absolutamente nada, que deveríamos desistir de tudo, renunciar a tudo; aos domingos isto se compreende de modo terrivelmente fácil (sim, terrivelmente, porque esta facilidade com bastante frequência vai pelo mesmo caminho das boas intenções), in abstracto, e na segunda-feira fica tão difícil compreender que se trata desta coisa pequena e específica no interior da existência concreta e relativa, na qual o indivíduo tem sua vida cotidiana, na qual o poderoso é tentado a esquecer a humildade, e o pequeno a confundir a humildade perante Deus com a modéstia relativa face aos que estão por cima; e, contudo, esta pequena coisa é de fato algo totalmente específico, uma pura bagatela em comparação com tudo o mais. Sim, mesmo quando o pastor reclama que ninguém age de acordo com sua admoestação, isto é tão terrivelmente fácil de compreender, mas no dia seguinte é tão difícil a compreensão de que, mesmo nesta coisa simples, nesta pequena bagatela, a gente dá sua própria contribuição, faz por merecer sua parte. - Depois o pastor acrescenta: "Sobre isto devemos sempre refletir". E todos nós o compreendemos, porque "sempre" é uma palavra magnífica, que diz tudo de uma só vez, e é tão terrivelmente fácil de compreender, mas, em compensação, fazer sempre uma coisa é o mais difícil de tudo, e é extremamente difícil, às quatro horas da tarde de uma segunda-feira, compreender este "sempre" ainda que aplicado só a uma meia hora. Mesmo no discurso do pastor já havia algo que indiretamente fazia com que alguém atentasse para esta dificuldade; pois havia algumas locuções do discurso formuladas de tal modo que pareciam sugerir que ele dificilmente o fazia exatamente sempre, sim, que ele dificilmente o teria feito em qualquer dos poucos momentos nos quais tinha meditado sobre sua prédica, [VII 407] sim, dificilmente o teria feito em qualquer parte da curta duração da prédica. Hoje então é segunda-feira, e o informante tem tempo mais do que suficiente para se envolver com as pessoas; pois o pastor fala diante das pessoas, mas o informante conversa com elas. Ele então se engaja em uma conversa com alguém, e a conversa finalmente foca naquilo que o espião gostaria de destacar. Ele diz: "Isso é bem verdade, mas há ainda algo que não és capaz de fazer; não és capaz de construir um palácio com quatro alas e piso de mármore". A pessoa a quem ele se dirigiu responde: "Não, nisso estás certo. Como eu seria capaz de fazê-lo? O que eu ganho dá para viver, eu poupo alguma coisa a cada ano, mas verdadeiramente não tenho capitais para construir palácios, e, além do mais, não entendo nada de construções". Portanto, ele não é capaz de fazê-lo. O informante o deixa e agora tem a honra de se encontrar com um homem todo-poderoso. Bajula sua vaidade, e por fim a conversa chega ao assunto dos palácios. "Mas um palácio com quatro alas e piso de mármore talvez exceda os poderes de Vossa Excelência." "Como assim?", responde a pessoa a quem ele se dirigiu. "O Senhor parece esquecer de que já o fiz; que o meu grande palácio na praça do castelo é exatamente conforme a construção que o senhor está descrevendo." Portanto, ele é capaz de fazê-lo, e o informante se retira com uma reverência, e faz votos de felicidade ao homem todo-poderoso. Ao sair andando, encontra um terceiro e conta a ele sobre a conversa que teve com os outros dois, e este terceiro exclama: "Sim, é estranha a sina de um homem no mundo; a fortuna de um homem difere extremamente. Um é capaz de tanto, e outro, de tão pouco; e contudo cada ser humano deveria ser capaz de algo, caso aprendesse pela experiência e pela sabedoria mundana a se manter dentro de seus limites". Portanto, a diferença é notável, mas não é ainda mais notável que três diferentes discursos sobre a diferença digam uma só e a mesma coisa, e digam que todos os seres humanos são iguais em capacidade? O homem n. 1 é incapaz de fazer isto ou aquilo [só] porque não tem dinheiro; isto é: visto essencialmente, ele é capaz. O homem n. 2 é capaz de fazê-lo; essencialmente ele é capaz, e o fato de que seja capaz se mostra casualmente pelo fato de que tem dinheiro. Pela sagacidade, o homem n. 3 é capaz de fazê-lo até prescindindo de algumas das condições e, mesmo assim, ser capaz; quão capacitado estaria caso tivesse as condições! - Mas no domingo, que foi ontem, o pastor dizia que um ser humano não é capaz de absolutamente nada, e nós todos o entendíamos. Quando o pastor diz isso na igreja, nós todos o entendemos, e se alguém quisesse tentar expressá-lo existencialmente e desse sinais disto nos seis dias da semana, [VII 408] não demoraria até todos entendermos: que está maluco. Mesmo a pessoa mais temente a Deus terá um grande número de oportunidades, todos os dias, de pegar-se na ilusão de ser capaz de algo. Mas quando o pastor diz que um ser humano não é capaz de absolutamente nada, todos o entendemos de modo terrivelmente fácil; e um filósofo especulativo, por sua vez, entende esta facilidade de tal modo que, através dela, demonstra a necessidade de se ir além, ir além para o que é mais difícil de entender: China, Pérsia, o sistema, porque o filósofo especulativamente desdenha o pobre Witz [al.: gracejo] sobre a sala de estar, pois, em vez de ir da igreja, e da abstrata representação dominical do ser humano, para casa, para si mesmo, ele vai da igreja diretamente para a China e a Pérsia, a astronomia - sim, para a astronomia. Aquele velho mestre Sócrates fez o contrário; renunciou à astronomia e escolheu a coisa mais elevada e mais difícil: compreender-se a si mesmo diante do deus. Mas o filósofo especulativo demonstra esta necessidade de ir além com tal necessidade, que até um pastor perde o equilíbrio e, no púlpito, tem a opinião de cátedra de que a compreensão com a qual o indivíduo singular se dá conta de que por si mesmo não é capaz de absolutamente nada só vale para os homens simples e humildes; até os adverte ex cathedra, ou, o que eu queria mesmo dizer, do púlpito, para se contentarem com esta mísera tarefa, e não ficarem impacientes porque se lhes nega elevarem-se à compreensão da China e da Pérsia. E nisso o pastor tem razão, que a tarefa é para o simples; porém seu segredo consiste justamente em que também é difícil para a cabeça mais eminente, dado que a tarefa não é, afinal, comparativa: para uma pessoa simples em comparação com uma cabeça excelente, e sim para uma cabeça excelente em comparação consigo mesma diante de Deus. E nisso o filósofo tem razão, que compreender China e Pérsia é sempre algo mais do que a abstrata compreensão domingueira do abstrato homem domingueiro: com efeito, China e Pérsia são algo de mais concreto; mas mais concreto do que qualquer outro compreender, o único absolutamente concreto é aquele com o qual o indivíduo singular se compreende a si mesmo em comparação consigo mesmo diante de Deus; e é o compreender mais difícil de todos, porque aqui a dificuldade não ousa servir de desculpa para ninguém. - E assim se avança, nos seis dias da semana somos todos capazes de algo, o rei é capaz de mais do que o ministro; o jornalista engenhoso diz: mostrarei a este e àquele o de que sou capaz, ou seja, de torná-lo ridículo; [VII 409] o oficial de polícia diz ao homem de japona: Tu nem sabes do que sou capaz - ou seja, de prendê-lo: a cozinheira diz à mulher pobre que vem todo sábado: parece que esqueceu do que sou capaz de fazer - a saber, de intrigar os patrões para que aquela pobre mulher não receba os restos da semana. Nós somos todos capazes de algo, e o rei sorri da capacidade do ministro, e o ministro ri da capacidade do jornalista, e o jornalista, da do policial, e o policial, da do que veste japona, e o da japona, da da mulher do sábado - e no domingo nós vamos todos à igreja (com exceção da cozinheira, que jamais tem tempo, pois no domingo sempre há um almoço social na casa do conselheiro) e lá ouvimos o pastor dizer que um ser humano não é capaz de absolutamente nada - aliás, se, por sorte, não tivermos ido à igreja de um pastor especulativo. Porém, só mais um instante: nós chegamos à igreja; com a ajuda de um sacristão muito poderoso (pois um sacristão é especialmente poderoso nos domingos, e com um olhar silencioso indica a este e àquele o de quanto é capaz), cada um de nós toma seu lugar de acordo com a sua fortuna específica na sociedade; aí o pastor sobe ao púlpito - mas ainda no último instante há um homem muito poderoso que chegou atrasado, e o sacristão tem de mostrar o que consegue fazer: aí o pastor começa, e todos compreendemos, de nossos diferentes lugares e respectivos pontos de vista, o que o pastor diz de seu elevado ponto de vista: que um ser humano não é capaz de absolutamente nada. Amém. Na segunda-feira, o pastor é um homem muito poderoso; todos temos que reconhecer a verdade disso, com a exceção dos que são mais poderosos - Mas uma das partes tem que ser uma brincadeira: ou o que o pastor diz tem de ser uma brincadeira, uma espécie de jogo de salão, de vez em quando meditar em que um ser humano não é capaz de nada; ou o pastor tem contudo de estar certo quando diz que uma pessoa deve meditar sempre sobre isto - e nós outros, inclusive o pastor, e eu com eles, estamos errados quando fazemos uma exegese tão medíocre da palavra "sempre", mesmo que a uma pessoa sejam concedidos 30, 40 ou 50 anos para se aperfeiçoar, embora de tal modo que cada dia seja um dia de preparação, mas também um dia de prova. Hoje então é terça-feira, e o nosso informante está visitando um homem que mandou fazer uma enorme construção às portas da cidade, ele outra vez direciona a conversa para a capacidade de um ser humano e para a capacidade do estimado anfitrião; mas eis que este homem diz, não sem certa solenidade: "Um homem não é capaz de absolutamente nada; foi com a ajuda de Deus que fui capaz de acumular esta grande fortuna, e é com a ajuda de Deus que eu..." Aqui a calma solene da conversa é interrompida, dado que se ouve um barulho lá fora. O homem se desculpa e se apressa a sair; deixa as portas meio abertas atrás de si, e agora nosso informante, [VII 410] que tem bons ouvidos, para sua grande surpresa, ouve, uma após outra, as seguintes palavras: "Vou lhes mostrar o que sou capaz de fazer". O informante quase não consegue impedir o riso - ora, o informante também é, afinal, um ser humano, que a qualquer instante pode ser tentado a se convencer de que é capaz de alguma coisa, como agora, por exemplo, que foi ele quem pegou no ridículo o homem poderoso. Mas se uma pessoa, existindo, deve todos os dias meditar sobre o que o pastor diz nos domingos e agarrar-se a isto, e compreendê-lo como a seriedade da vida, e com isso, por sua vez, compreender todas as suas capacidades e incapacidades como uma brincadeira: isto significa que não vai realizar absolutamente nada, porque afinal tudo é vaidade e futilidade? Oh, não, neste caso não terá a oportunidade de compreender a brincadeira, pois não há contradição em colocar tudo isso junto com a seriedade da vida, nenhuma contradição: em que tudo seja vaidade nos olhos de um ser vaidoso. Preguiça, inoperância, esnobismo a respeito do finito são uma brincadeira medíocre ou, melhor, não são uma brincadeira, de jeito nenhum, mas encurtar a noite de sono e comprar cada hora do dia e não se poupar, e aí então compreender que tudo isso é uma brincadeira: sim, isso é seriedade. E, visto religiosamente, o positivo sempre se reconhece pelo negativo: seriedade pela brincadeira, quando ela é seriedade religiosa, não seriedade direta, uma tola autovalorização burocrática de um conselheiro da justiça, uma tola importância de um jornalista ante seus contemporâneos, uma tola importância de um renascido diante de Deus, como se Deus não pudesse criar milhões de gênios se estivesse em qualquer tipo de apuro. Ter o destino de muitas pessoas nas suas mãos, transformar o mundo, e então continuamente compreender que isto é brincadeira, sim, isto é seriedade! Mas, para ser capaz disso, todas as paixões da finitude devem estar extintas, todo egoísmo erradicado, o egoísmo que quer possuir tudo e o egoísmo que orgulhosamente vira as costas para isso tudo. Mas aí está justamente o nó da questão, e aqui está o sofrimento de morrer para si mesmo, e, embora a característica do ético seja que é bem fácil entendê-lo em sua expressão abstrata, é tão difícil entendê-lo in concreto. Nós devemos ter sempre em mente que um ser humano não é capaz de absolutamente nada, diz o pastor; portanto, quando um homem quer ir ao Dyrehaven, ele deve também ter isto em mente, por exemplo, que não é capaz de se divertir, além de que a ilusão de se ser facilmente capaz de divertir-se no Dyrehaven, desde que tenha grande desejo de ir lá, é uma tentação da imediatidade, além de que, a ilusão de se poder facilmente ir até lá, desde que se tenha os meios para tanto, é uma tentação da imediatidade. Hoje, então, é quarta-feira, e uma quarta-feira na estação do Dyrehaven; então vamos de novo enviar nosso informante até lá. [VII 411] Talvez um ou outro religioso ache que não lhe convenha ir ao Dyrehaven. Se este for o caso, devo, em virtude da dialética qualitativa, pedir respeito para o mosteiro, porque atamancar não leva a nada. Se a pessoa religiosa deve de algum modo diferenciar-se pela aparência externa, então o mosteiro é a única expressão poderosa para tanto: o resto é só trabalho de remendão. Mas nossa época, é claro, foi além da Idade Média em religiosidade. O que, então, expressava a religiosidade da Idade Média? Que na finitude há algo que não se deixaria pensar junto com o pensamento de Deus, ou existindo pôr-se de acordo com ele. A expressão apaixonada para isso seria romper com a finitude. Se a religiosidade de nosso tempo foi mais além, então, como resultado, ela é capaz de, na existência, sustentar o pensamento de Deus junto à mais frágil expressão da finitude, por exemplo, com a diversão no Dyrehaven; a não ser que a religiosidade de nossa época tenha avançado tanto a ponto de retomar a formas infantis de religiosidade, em comparação com as quais o entusiasmo juvenil da Idade Média é algo magnífico. Uma forma pueril de religiosidade é, por exemplo, receber de Deus uma vez por semana a permissão para, por assim dizer, divertir-se por toda a semana seguinte, e então, de novo no próximo domingo, pedir permissão para a outra semana, ao ir à igreja e ouvir o pastor dizer: Devemos ter sempre em mente que um ser humano não é capaz de nada. A criança não tem reflexão e por isso não carece de reunir no pensamento o que é diferente. Para a criança, o momento mais sério é quando precisa pedir permissão aos pais; se eu tiver permissão, pensa a criança, então decerto, por Deus, vou me divertir. E quando tiver visitado o pai no escritório e obtido a permissão, sairá de lá em júbilo, consolando-se com a ideia de que facilmente terá a permissão da mãe; já saboreia um antegozo da alegria e, em relação àquele momento mais sério no escritório, pensa algo assim: Graças a Deus, agora está resolvido - isso a criança pensa, penso eu, porque a criança propriamente não pensa. Se a mesma relação se repete na vida de alguém mais idoso em sua relação com Deus, isto é infantilidade, que, tal como a fala da criança, se reconhece por uma predileção por termos abstratos: "sempre", "nunca", "só desta vez" etc. A Idade Média fez uma poderosa tentativa de existindo pensar Deus e a finitude juntos, mas chegou ao resultado de que isto não poderia ser feito, e a expressão para tanto é o mosteiro. A religiosidade de nossa época vai mais adiante. Mas se a relação com Deus e a finitude devem combinar até nos menores aspectos (onde a dificuldade se torna maior) unidos na existência, então a aquiescência precisa encontrar sua expressão na esfera mesma da religiosidade e ser de tal natureza que o indivíduo não ultrapasse de novo a relação com Deus para voltar a existir inteiramente em outras categorias. [VII 412] Formas mais baixas do que o movimento monástico da Idade Média serão rapidamente distinguíveis nesta separação, por meio da qual a relação com Deus se torna algo por si mesmo e o restante da existência, outra coisa. Há, portanto, três formas inferiores: (1) quando o indivíduo volta para casa, depois da relação dominical com Deus, para existir de modo puramente imediato na dialética do agradável e do desagradável; (2) quando ele volta para casa, depois da relação dominical com Deus, para existir numa ética finita, e nem se dá conta, enquanto cuida de sua profissão, ganha dinheiro etc., da continuidade da relação com Deus; (3) quando ele volta para casa, depois da relação dominical com Deus, para levar sua vida numa visão ético-especulativa que, sem mais, deixa a relação com Deus exaurir-se em fins relativos, uma visão de vida cuja fórmula é esta: competência em sua ocupação, seja como rei, como carpinteiro, como dançarino de corda bamba etc., é a mais alta expressão da relação com Deus, e portanto não se precisa, propriamente, ir à igreja. Em outras palavras, ao ir à igreja uma vez por semana, toda religiosidade deste tipo se livra de se manter na relação com Deus em tudo; no domingo, ela obtém a permissão, não para se divertir ao longo de toda a semana como a criança, mas permissão para não pensar mais em Deus ao longo de toda a semana. Portanto, a religiosidade que vai além da Idade Média tem de, em sua piedosa reflexão, encontrar expresso que a pessoa religiosa deve existir na segunda-feira do mesmo modo, e que deve existir na segunda-feira nas mesmas categorias. O digno de veneração na Idade Média era que se preocupava com isto seriamente, mas aí chegou à conclusão de que isto só se poderia fazer no mosteiro. A religiosidade de nossa época vai além: no domingo, o pastor diz que precisamos manter sempre em mente que não somos capazes de nada; e no resto, devemos ser exatamente como as outras pessoas, não precisamos entrar para o mosteiro; podemos ir ao Dyrehaven - mas, N.B. [Nota bene: convém notar], por certo devemos primeiro manter em mente a relação com Deus, graças à ideia religiosa intermediaria de que um ser humano não é capaz de absolutamente nada. E isto é o que faz a vida ser extremamente tensa; e é isto que faz com que seja possível que talvez todos os seres humanos possam, em verdade, ser os verdadeiramente religiosos, porque a interioridade oculta é verdadeira religiosidade, a interioridade oculta na pessoa religiosa que até emprega toda a sua arte justamente para que ninguém perceba nada nela. Pois, assim como a onipresença de Deus se reconhece pela invisibilidade, a verdadeira religiosidade se reconhece pela invisibilidade, isto é, não é para ser vista; o deus a quem se pode apontar é um ídolo, e a religiosidade para a qual se pode apontar é uma espécie imperfeita de religiosidade. [VII 413] Mas que esforço! Vê, uma cantora não consegue cantar em vibrato sem parar; de vez em quando, uma nota sai em tremolo. Mas a pessoa religiosa, cuja religiosidade consiste na interioridade oculta, lança o vibra to, se posso falar assim, da relação com Deus em tudo e, o que é o mais difícil de tudo, mesmo quando uma ocasião especial é designada para isto, ela o faz tão facilmente que o faz sem gastar tempo. Portanto, a graça chega bem no lugar certo, embora ela faça, em silêncio, primeiro para si mesma, o movimento para Deus; então, quando convidada, ela chega bem a tempo com a animação desejada, embora faça antes o movimento para Deus. Ah, e quando de resto uma pessoa tem ao menos um pequeno esforço extra para oferecer, este a perturba quando está se vestindo para uma festa e ela chega atrasada, e a gente vê isto nela; mas o mais exaustivo de todos os pensamentos, comparado com o qual mesmo o sério pensamento sobre a morte é mais leve - a ideia de Deus -, a pessoa religiosa consegue mover com a mesma leveza como tu e eu, João e José e o Conselheiro Madsen - pois é bem certo que não há ninguém que detecte algo em nós. Agora o informante sai por aí; encontra talvez um homem que é incapaz de ir ao Dyrehaven porque não tem dinheiro, quer dizer, alguém que é capaz de fazê-lo. Se o informante lhe desse dinheiro e dissesse: Ainda assim és incapaz de fazê-lo, o homem muito provavelmente o consideraria um maluco, ou iria supor que havia alguma coisa oculta ali, que talvez o dinheiro fosse falso, ou que talvez os portões da cidade estivessem trancados e a alfândega também, em resumo, por cortesia pelo informante e a fim de não recompensar logo sua liberalidade chamando-o de maluco, decerto experimentaria algumas conjecturas perspicazes, e quando todas elas se provassem falhas pela negação do informante de que houvesse qualquer coisa deste tipo obstaculizando: aí ele o consideraria um maluco, lhe agradeceria pela dádiva - e depois iria ao Dyrehaven! E esse mesmo homem compreenderia muito bem o pastor no domingo seguinte, quando este pregasse ensinando que um ser humano não é capaz de absolutamente nada, e que nós devemos meditar sempre sobre isto. Justamente nisso reside o divertido, que ele possa compreender o pastor muito bem; pois se houvesse uma única pessoa tão simples a ponto de não compreender a tarefa que o pastor tinha essencialmente estabelecido, quem então poderia suportar a vida! - Então o informante encontra outro homem, que diz: "Ir ao Dyrehaven [VII 414] quando se tem os meios para tanto, quando seus negócios o permitem, quando se leva junto esposa e filhos, sim, até os criados, e volta para casa numa hora decente, trata-se de uma alegria inocente, e se deve participar das alegrias inocentes, não se deve covardemente entrar para o mosteiro, que só significa fugir do perigo". O informante responde: "Mas não disseste no começo da nossa conversa que ouviste o pastor dizer no domingo que um ser humano não é capaz de absolutamente nada, e que devemos meditar sempre sobre isto, e não disseste que o compreendias?" "Sim." "Então estás esquecendo do que se trata nesta questão. Quando dizes que se trata de um prazer inocente, isto é o contrário de um prazer culpado, mas esta contraposição pertence à moral ou à ética. O pastor, entretanto, estava falando da tua relação com Deus. Pelo fato de ser eticamente permitido ir ao Dyrehaven, não fica só por isso dito que seja religiosamente permitido e, de qualquer modo, de acordo com o pastor, é justamente esta coisa que tu deves demonstrar ao conectá-la com o pensamento de Deus; mas é bom notar, não em termos gerais, pois com certeza não és um pastor, que deve pregar sobre este tema, embora na vida cotidiana tu e muitos outros pareçam confundir-se com tal pessoa, de modo que se vê que até mesmo ser pastor não deve ser o mais difícil. Um pastor fala em termos gerais a respeito dos prazeres inocentes, tu, porém, deves, existindo, expressar o que o pastor diz. Tu não deves, então, hoje, por ocasião de tua ida ao Dyrehaven, fazer um pequeno discurso sobre os prazeres inocentes da vida; este é encargo do orador. Mas, por ocasião de tua ida ao Dyrehaven hoje, quarta-feira, quatro de julho, junto com tua esposa, filhos e criados, deves meditar sobre o que o pastor disse no domingo, que um ser humano não é capaz de absolutamente nada, e que tu deves meditar sempre sobre isto. Era sobre teu procedimento em relação a isto que eu desejava informação tua, pois se eu desejasse algum tipo de discurso, teria ido ao pastor." "Que absurdo", replica o homem, "exigir mais de mim do que do pastor. Acho inteiramente correto que o pastor pregue deste modo, afinal de contas, é para isso que ele é pago pelo Estado, e, no que toca ao meu cura d'almas, Pastor Mikkelsen, estarei sempre pronto a atestar que ele prega a verdadeira doutrina evangélica, e é por isso que vou à igreja dele; pois não sou um herético que quer alterar a fé; mesmo que, de acordo com o que tu dizes, possa ser duvidoso, se eu sou ou não realmente um crente, uma coisa é certa, que eu sou um crente ortodoxo, que abomina os batistas. Por outro lado, jamais me ocorre colocar tais ninharias, como ir ao Dyrehaven, em conexão com o pensamento de Deus; de fato, isto me parece ser um insulto a Deus, e uma coisa eu sei, que isto também não ocorre a uma única pessoa entre as muitas que conheço." [VII 415] "Então tu pensas que está bem, assim como pensas que tudo bem que o pastor pregue deste modo, e que pregue sobre o fato de que ninguém realiza o que ele diz." "Conversa absurda", replica o homem, “é claro que penso que tudo bem que tal homem de Deus fale deste modo aos domingos, e nos funerais e nos casamentos; de fato, não mais do que duas semanas atrás lhe agradeci no jornal Adresseauisen pelo magnífico discurso que pronunciou, por sua própria iniciativa, e do qual eu jamais esquecerei.” “É melhor dizeres, do qual tu sempre lembrarás, pois esta expressão recorda melhor o objeto de nossa conversa, que devemos sempre meditar que um ser humano não é capaz de absolutamente nada. Mas vamos interromper esta conversa, pois afinal não nos entendemos mutuamente, e eu não recebi de ti a informação que procuro, sobre o como tu procedes para realizar aquilo que o pastor diz, embora eu esteja disposto a reconhecer em ti um inegável talento para ser um pastor. Entretanto tu podes me fazer este favor, se quiseres: dá-me por escrito tua declaração e, se puderes, arranja-me atestados similares, das muitas pessoas que conheces, de que nunca ocorre nem a ti, nem a elas, conectar o pensamento de Deus com algo assim como ir ao Dyrehaven”. Queremos agora dispensar o informante, e só para compensar, para ver se ele escorrega, levantemos a questão de para que ele quer usar esses atestados e o que ele propriamente planeja. Ele fala assim: "Para que quero esses atestados? Bem, vou te dizer. De acordo com o que tenho ouvido, o clero está realizando com efeito algumas convenções em que os reverendos irmãos propõem e resolvem a questão: O que é que a época exige? - naturalmente, no sentido religioso, pois de outro modo tal convenção se assemelharia a um encontro dos representantes dos cidadãos. Dizem que agora a convenção teria chegado à conclusão de que desta vez é um novo livro de hinos o que o tempo demanda. Que o exija é, afinal, bem possível, mas daí ainda não segue que precise dele. Por que não ocorreria com a época, enquanto personalidade moral, aquilo que ocorre com outras personalidades morais [VII 416], embora não justamente na qualidade do que é moral, ou seja, que ela exija aquilo de que não precisa, que as muitas coisas que exige, mesmo que as obtivesse, não satisfariam seu desejo, porque este consiste em: exigir, reclamar para si. A época poderia talvez logo exigir que o pastor tivesse uma nova veste para poder edificar tanto melhor; não seria impossível que a época realmente pudesse exigir isto, e, em relação a uma tal exigência, eu não teria nenhuma aversão a admitir que a época realmente sentiria uma necessidade dela. Vê, o meu intento agora é recolher uma boa quantidade de declarações por escrito referentes ao modo como a gente compreende, na segunda-feira e nos outros dias da semana, o sermão dominical do pastor - para que, se possível, eu possa contribuir para a resposta da questão: O que é que o tempo exige? - ou, como eu preferiria me expressar: do que a época carece, de modo que a questão não se formularia assim: O que falta à religiosidade de nosso tempo?, porque é sempre enganoso incluir a resposta na pergunta, mas deste modo: O que falta ao nosso tempo? Religiosidade. Todos correm atrás do que a época demanda; ninguém parece se preocupar com o que o indivíduo necessita. Talvez não haja absolutamente nenhuma necessidade de um livro de hinos. Por que ninguém pensa numa proposta que parece tão próxima, mais próxima do que muitos acreditam: fazer uma tentativa provisória de reencadernar em nova forma o velho livro de hinos, para ver se a nova encadernação serviria, especialmente se fosse permitido ao encadernador colocar na lombada "O novo livro de hinos"? É claro que alguns poderiam objetar que, por causa da boa e velha capa, seria uma pena fazer isto, pois, por estranho que pareça, diz-se que os exemplares da congregação do velho livro de hinos estão em boas condições, provavelmente porque o livro é tão pouco usado, e além disso a nova encadernação seria uma despesa totalmente supérflua; mas contra esta objeção deve-se responder, com uma voz profunda, convém notar, com uma voz profunda: Qualquer homem sério, em nossa época seriamente preocupada, percebe que algo deve ser feito - assim qualquer objeção desaparece como nada. Pois que algumas pequenas congregações privatizantes e círculos isolacionistas dogmáticos realmente sentissem a necessidade de um novo livro de hinos para que suas palavras-chave fossem ouvidas nas abóbodas das igrejas a partir do coral dos renascidos, isso não seria um problema tão sério. Mas quando toda uma época, em uníssono e em polifonia, exige um novo livro de hinos, sim, quase que vários novos livros de hinos: então algo tem de ser feito; assim como está não pode continuar, ou vai tornar-se o declínio da religiosidade. [VII 417] Por que será que na capital a gente frequenta relativamente tão pouco a igreja? Oh, naturalmente e claro como o sol, é por culpa do velho livro de hinos. Por que será que os que vão à igreja, contra as boas regras só chegam lá quando o pastor está subindo ao púlpito, ou um pouquinho mais tarde? Oh, naturalmente e claro como o sol, é por sua repugnância ao velho livro de hinos. O que foi que arruinou a monarquia assíria? Discórdia, Madame. Por que será que as pessoas, indecorosa e prontamente, saem correndo da igreja assim que o pastor diz amém? Oh, naturalmente e claro como o sol, é por repugnância ao velho livro de hinos. Por que será que a devoção caseira é tão rara, embora aí também se pudesse usar outros livros de hinos de livre opção? Oh, naturalmente e claro como o sol, a repugnância ao velho livro de hinos é tão grande que a gente não tem vontade nenhuma, enquanto ele existir; pois sua mera existência sufoca toda devoção. Por que será que a congregação, infelizmente, age tão pouco de acordo com aquilo que é cantado no domingo? Oh, naturalmente e claro como o sol, porque o velho livro de hinos é tão ruim que até impede a pessoa de agir de acordo com o que está nele. E por que será que, infelizmente, tudo isso já ocorria muito antes da necessidade de um novo livro de hinos ser mencionada? Oh, naturalmente e claro como o sol, esta era a necessidade profunda da congregação, a necessidade profunda que até então ainda não ficara clara - já que não havia nenhuma convenção. Mas, justamente por essa razão, me parece que deveríamos retardar a abolição do velho, para que não se caia no grande embaraço de ter que explicar os mesmos fenômenos quando o novo livro de hinos já estiver introduzido. Se o velho livro de hinos jamais teve serventia, agora a tem; com o auxílio dele, a gente pode explicar tudo, tudo que de outro modo seria inexplicável se se tem em mente que a época está tão seriamente preocupada, assim como o clero, não apenas cada um com sua própria pequena congregação, e com os indivíduos nelas, mas com toda a época. Por outro lado, suponhamos que alguma outra coisa acontecesse antes que o novo livro de hinos estivesse pronto; suponhamos que o indivíduo singular se decidisse a colocar o acento da culpa num outro lugar e nostalgicamente tentasse reconciliar-se com o livro de hinos e com o dia da sua Confirmação, que este evoca; suponhamos que o indivíduo singular escrupulosamente acorresse à igreja, chegasse pontualmente, cantasse os hinos, ouvisse a prédica, permanecesse ali conforme o decoro, retivesse a impressão na segunda-feira, fosse mais além, até na terça, sim, até mesmo no sábado: aí então a demanda por um novo livro de hinos talvez diminuísse - mas, por outro lado, dado que os indivíduos tivessem pouco a pouco aprendido a se socorrer, o clero teria tempo e ócio para se sacrificar inteiramente participando de convenções, onde os reverendos irmãos levantariam e responderiam a questão: [VII 418] o que é que a época exige - no sentido religioso, naturalmente; pois de outro modo uma tal convenção se assemelharia completamente a um encontro de representantes dos cidadãos." Assim falaria o informante, que agora pode ir cuidar de sua vida; e então de volta ao que diz o pastor, que um ser humano não é capaz de absolutamente nada, e que devemos meditar sobre isto sempre - portanto, também quando vamos ao Dyrehaven. Provavelmente, muitos já se entediaram há tempos com este exemplo concreto que nunca termina e que no entanto não diz nada, em comparação com a ideia de que não somos capazes de absolutamente nada e de que devemos meditar sobre isto o tempo todo. Mas a coisa é assim, o ético e o ético-religioso, em generalidade abstrata, são ditos tão rapidamente e são terrivelmente fáceis de se entender; já na concreção da vida diária, falar sobre isto é algo muito demorado, e seu exercício é por demais difícil. Hoje em dia dificilmente um pastor se atreve a falar na igreja sobre ir ao Dyrehaven, ou mesmo a nomear tal palavra: tão difícil é, mesmo em um discurso devoto, conectar o Dyrehaven e a ideia de Deus. Mas, por outro lado, todos somos capazes de fazer isto. Onde, então, ficaram as tarefas difíceis? Na sala lá de casa e na estrada costeira que vai até o Dyrehaven. Hoje em dia, o discurso religioso, embora pregue contra o mosteiro, observa a mais severa decência monástica, e se distancia tanto da realidade efetiva como o fazia o mosteiro e, com isso, de um modo indireto revela suficientemente, que no dia a dia a gente existe realmente sob outras categorias, ou que o religioso não se assimilou a existência cotidiana. É deste modo que se vai mais além do que a Idade Média. Mas nesse caso o religioso, em virtude da dialética qualitativa, precisa clamar pelo mosteiro. Se este não deve ser pregado e se ainda se supõe que a religiosidade esteja mais adiantada do que a da Idade Média: então que o pastor tenha a bondade de falar das coisas mais simples e se abster das verdades eternas in abstracto. Pois ninguém me há de convencer de que seja tão fácil no que há de mais insignificante ter a representação de Deus junto a si. Mas isto também não quer dizer que o pastor deva sentar-se na sala lá de casa como um "João das Fontes" e ficar falando sobre passear na floresta, pois isto é realmente fácil demais, a não ser que sua própria dignidade lhe tornasse a coisa um pouco difícil. Não, o que se tem em mente é que fale devotamente sobre isto e, com a autoridade divina do religioso, transforme até o falar sobre isso em um discurso edificante. Se for incapaz de fazê-lo, se achar que não dá para fazer, deve advertir contra isto - e então julgar a Idade Média de modo respeitoso. Se ao contrário o discurso religioso indiretamente reforça em nós a ilusão de que a religiosidade consiste em uma vez por semana se ter uma noção fantasiosamente decente sobre si mesmo, em ouvir algumas verdades eternas proferidas in abstracto e em atacar aqueles que não vão à igreja, e aí, no restante, viver em outras categorias: [VII 419] que milagre, então, que a confusão de querer ir além acabe se impondo cada vez mais? Uma clerezia competente deve ser a moderadora da época e, se cabe ao pastor consolar, ele também deve, quando necessário, saber como tornar o religioso tão difícil a ponto de colocar de joelhos todo e qualquer insubordinado, e como os deuses empilharam montanhas sobre os Titãs que assaltavam o céu, a fim de subjugá-los, assim deveria ele jogar sobre cada rebelde o fardo pesado da tarefa religiosa (naturalmente, impondo-o também a si mesmo), para que ninguém imagine que o religioso seja alguma coisa com que se possa correr por aí, uma travessura, ou no máximo algo para pessoas simples e obtusas, ou imagine que a religiosidade seja relativa e comparativamente dialética, e idêntica ao convencional adestramento da finitude; ou que o religioso deva ser dificultado graças a panoramas histórico-universais e resultados sistemáticos, pelos quais ele apenas se torna ainda mais fácil. Portanto, quando o orador religioso, ao expor que um ser humano não é capaz de absolutamente nada, relaciona com isso algo totalmente particular, enseja ao ouvinte que olhe profundamente para seu próprio interior, ajuda-o a dispersar presunções e ilusões, a deixar de lado, ao menos por um momento, a cobertura doce de cidadão provinciano em que de resto se encontra. Aquilo com que o orador religioso propriamente opera é, em última instância, a relação absoluta de que um ser humano não seja capaz de absolutamente nada, mas aquilo com que ele negocia é o aspecto particular que ele conecta com isso. Se apenas se restringe a dizer, "nada", "sempre", "nunca", "tudo", pode facilmente acontecer que tudo isso resulte em nada; mas caso se esqueça de si mesmo e dos absolutos básicos "nada" (O discurso religioso pode, portanto, tranquilamente assumir um tom um pouco trocista, justamente como a existência o é; pois o aspecto de troça reside em que nós, humanos, temos a mente cheia de grandes ideias, e aí então chega a existência e nos oferece o dia a dia), "sempre", "nunca", "tudo": então estará transformando o templo, se não em uma caverna de bandidos, pelo menos em uma bolsa de valores. Se ninguém mais quer tentar correlacionar o caráter absoluto do religioso com o particular, uma combinação que, na existência, é justamente a base e o significado do sofrimento: então eu o farei, eu que não sou nem orador religioso, nem uma pessoa religiosa, mas tão somente um psicólogo experimentador humorístico. Se alguém quiser rir disso, deixemos que ria, [VII 420] mas eu ainda gostaria de ver o este ta ou o dialético que fosse capaz de mostrar o mínimo traço de comicidade no sofrimento da religiosidade. Se há alguma coisa que estudei desde os fundamentos e até o extremo, é o cômico; justamente por isto sei também que do sofrimento religioso o cômico está excluído, que este é inacessível ao cômico, porque o sofrimento é precisamente a consciência da contradição, que é, por isso, patética e tragicamente assimilada à consciência da pessoa religiosa, e, justamente por isso, o cômico está excluído. O que a representação de Deus ou a de sua felicidade eterna deve produzir num ser humano, é que este transforme toda a sua existência em relação a ela, uma transformação que significa um morrer para a imediatidade. Isto acontece lentamente, mas então ele se sentirá enfim (Eu uso aqui uma forma fantástica no sentido do desvanecimento do tempo: "lentamente - mas então enfim". Dado que o interesse de minha tarefa ainda não começou, isto assim fica bem) absolutamente cativo da representação absoluta de Deus, porque a representação absoluta de Deus não significa: ter a representação absoluta en passant [fr.: de passagem], mas sim: ter a representação absoluta a cada momento. Isto é a cessação da imediatidade e a sentença de morte do aniquilamento. Tal como o pássaro que volteava despreocupado, quando fica preso; tal como o peixe que destemidamente cortava a água e infalivelmente dirigia-se às regiões encantadas das profundezas, quando deitado na terra, fora de seu elemento; assim, também, a pessoa religiosa está cativa, porque a absolutidade não é diretamente o elemento para um ser finito. E como aquele que está doente e não pode mover-se, porque tudo dói, e como aquele que está doente não pode deixar de se mover enquanto tiver vida, embora tudo doa: assim, também, a pessoa religiosa, em sua pequenez humana, está presa à finitude, trazendo em si a representação absoluta de Deus. Nem o pássaro na gaiola, nem o peixe na praia, nem o inválido no leito de doente, nem o prisioneiro na cela mais estreita, são tão cativos quanto aquela pessoa que está cativa na representação de Deus; pois, tal como Deus, assim também a representação cativante está presente em todo lugar e a todo instante. De fato, assim como deve ser horrível para uma pessoa considerada morta, se ainda estiver viva, ter o poder dos sentidos, poder ouvir o que os presentes dizem sobre ela, mas sem conseguir, de modo algum, expressar que ainda está viva, assim também é o sofrimento do aniquilamento para a pessoa religiosa quando, em sua insignificância, ela possui a representação absoluta, mas não a reciprocidade. Se é que aconteceu e se é uma verdade poética [VII 421] que já apenas um grande e abrangente plano, se devesse ser depositado na mente de uma pessoa, viria a destruir o frágil vaso; se é que aconteceu que uma moça, ao ser amada por aquele que admirava, fosse aniquilada no sofrimento da felicidade: que milagre, então, que o judeu assumisse que a visão de Deus significaria a morte, e os pagãos, que a relação com Deus seria o prenúncio da loucura! Mesmo que a representação de Deus seja a do amparo absoluto, é também o único amparo que é absolutamente capaz de mostrar a uma pessoa seu próprio desamparo. A pessoa religiosa jaz na finitude como uma criança desamparada; quer segurar-se absolutamente à representação, e é isto o que a aniquila; quer fazer tudo, e enquanto o está querendo, começa a impotência, porque para um ser finito há de fato um entrementes; ela quer fazer tudo; quer expressar esta relação absolutamente, mas não consegue fazer com que a finitude seja comensurável com ela. Há alguém que queira rir? Se jamais a posição das estrelas no céu indicou algo de terrível, então a posição das categorias aqui não indica risada e gozação. Experimenta agora conectar com isto uma ida ao Dyrehaven. Tu vais te arrepiar; procurarás escapatórias; vais achar que há objetivos mais elevados pelos quais se pode viver. Sim, certamente. E então vais virar as costas. Mas há, porém, um entrementes - e, neste meio tempo, a impotência então retoma. Tu dirás: Pouco a pouco. Mas lá onde pela primeira vez o primeiro início deste pouco a pouco se manifesta como a passagem a partir do Absoluto combinado com isto, lá sim é que mora o terror. Permitir, à maneira novelística, que o tempo de um ano se interponha significa, naturalmente, apenas zombar, em termos religiosos, de mim mesmo e da pessoa religiosa. O religioso perdeu a relatividade da imediatidade, sua diversão, seu passatempo - justamente seu passatempo; a representação absoluta de Deus o consome como o abrasamento do sol de verão quando este não quer se pôr, como o abrasamento do sol de verão quando não quer cessar. Mas, então, ele está doente; um sono refrescante irá revigorá-lo, e dormir é um passatempo inocente. Sim, alguém que jamais tratou com outros, que não seus companheiros de dormitório, bem pode achar que não há problema algum em ir para a cama; mas para aquele que pelo menos chegou a lidar com um plano grandioso, por certo o grito do vigia noturno seria um triste memento, e a lembrança da hora de dormir, mais lamentável do que a chegada da morte, [VII 422] pois o sono da morte é só um instante, e uma pausa num instante, mas dormir é um prolongado adiamento. Mas, nesse caso, ele deve começar com alguma coisa. Talvez com a primeira que aparecer? Não, que um habilidoso balconista da finitude sempre tenha algo em mãos para manipular; aquele que já teve algum relacionamento com uma pessoa amada, ainda que fosse só no pensamento do amor, sabe de algo diferente: quando o querer tudo fazer ainda não parece ser o bastante, e o esforço de querer tudo produz a fadiga, e outra vez ele está no começo. Mas, então, ele tem de voltar-se para si mesmo, compreender-se a si mesmo. Talvez expressá-lo em palavras? Se aquele que acredita que falar significa deixar a língua correr pode orgulhar-se de nunca ter ficado embaraçado, falto de palavras, jamais ter procurado em vão por palavras: aquele que só cai em silêncio de admiração diante da grandeza humana decerto aprendeu que ao menos naquele instante não precisava de nenhuma exortação para manter a língua no freio. E aquele que nunca foi para a cama chorando, chorando não por não conseguir dormir, mas por não ousar manter-se em vigília por mais tempo, e aquele que nunca atravessou sofrendo a impotência do começar; e aquele que jamais fez silêncio: deveria ao menos nunca se ocupar de falar sobre as esferas da religiosidade, mas sim ficar no lugar que é sua casa: no quarto de dormir, no armazém, no mexerico das ruas. Mas quão relativo pode ser, contudo, aquilo que permite a alguém experimentar algo assim, quão relativo, para o homem religioso, em comparação com relação absoluta para com o absoluto! Um ser humano não é capaz de absolutamente nada, sobre isto deve sempre meditar. O religioso está neste estado - ele não é capaz, então, nem de ir ao Dyrehaven; e por que não? Por que, a seus próprios olhos, ele é melhor do que os outros? Absit [lat.: longe disto], esta é a superioridade do movimento monástico; não, mas porque ele é um verdadeiro religioso, não um pastor fantasioso que fala sobre: "sempre", nem um ouvinte fantasioso que entende "sempre - e nada"; mas porque ele, hora após hora, entende que não é capaz de nada. Em estado de doença, o religioso não é capaz de unir a representação de Deus a uma coisa finita casual assim como ir ao Dyrehaven. A dor ele concebe, e por certo é realmente uma expressão mais profunda de sua impotência que ele a compreenda melhor em relação a algo tão trivial como isto, do que à grandiloquente expressão "nada", a qual, se nada mais se diz, facilmente se torna nada-dizente. A dificuldade não está em que não seja capaz disso (falando humanamente), [VII 423] a dificuldade está em entender, antes de tudo, que não é capaz disso, e destruir a ilusão (já que deve realmente sempre meditar sobre o não ser capaz de absolutamente nada) - de que já ultrapassou esta dificuldade, e então a dificuldade está em: com Deus, ser capaz de fazê-lo. Quanto mais decisivo for um empreendimento, uma resolução, um evento, tanto mais fácil é (porque é mais direto) unir a isso a representação de Deus - tanto mais fácil, isso quer dizer, a facilidade tem sua razão no fato de se poder ser tanto mais facilmente ludibriado por si mesmo numa ilusão. Nos romances e nas novelas, não é raro que se veja, nas grandes decisões, ou bem os personagens fictícios ajoelhados em oração num grupo pitoresco, ou bem o protagonista ajoelhado em oração num local afastado. Entretanto, os honrados autores e autoras são ingênuos o bastante para revelarem indiretamente, pelo conteúdo da oração, por sua forma e pela atitude dos orantes, que seus heróis e heroínas não muitas vezes oraram antes em suas vidas, ainda que a cena tenha lugar no ano de 1844, num país cristão, e que os personagens em ação sejam cristãos, e que o romance, assim como a novela, tenha a missão de retratar as pessoas como realmente o são, ou até um pouco melhores. Com grande interioridade, o protagonista fictício une a representação de Deus com o mais importante dos eventos - mas, visto religiosamente, a interioridade daquele que ora não consiste definitivamente na sua impetuosidade no instante, mas sim na sua continuidade. Mas quanto mais insignificante uma coisa é, por outro lado, tanto mais difícil é uni-la à representação de Deus. E, contudo, é justamente nisto que a relação com Deus deve ser conhecida. No assumir uma grande resolução, no publicar uma obra que supostamente transformará o mundo inteiro em um terremoto, em celebrações de bodas de ouro, em um perigo no mar, e em nascimentos clandestinos, o nome de Deus é talvez tão frequentemente usado a modo de interjeição quanto é usado religiosamente. Por isso, a gente não deveria se deixar enganar quando um pastor omite os pequenos eventos da vida e concentra sua eloquência e sua arte mímica em episódios grandiosos, e, quando muito, meio envergonhadamente, em nome da decência, acrescenta na conclusão que também na vida cotidiana convém mostrar a mesma fé, a mesma esperança, e a mesma coragem (em vez disso, convém a um discurso religioso, ao contrário, ser disposto de modo inverso, e falar dos pequenos eventos, da vida cotidiana, e então, quando muito, acrescentar algumas poucas palavras de precaução contra a ilusão que tão facilmente pode ser a base daquela religiosidade que só se reconhece nos dias 29 de fevereiro (Em suma, não há nada tão bem escoltado [convoieret] pelo cômico quanto o religioso [det Religieuse], e sua Nemesis não está tão prontamente à mão em nenhuma outra parte quanto na esfera do religioso. [VII 424] Quando se ouve um discurso religioso estetizante numa igreja, é, naturalmente, dever de cada um edificar-se, mesmo que Sua Reverência diga disparates sempre de modo muito maluco, mas quando em outra ocasião a gente volta a ele, o efeito cômico não é desinteressante, e a lei que vale aqui é que onde o orador iça todas as velas a fim de expressar o mais elevado, satiriza sem o saber: "A pessoa ajoelhada em oração se levanta tão fortalecida, oh, tão fortalecida, tão extraordinariamente fortalecida". Mas, de um ponto de vista religioso, a verdadeira força é aquela que está preparada para a luta que pode começar de novo, talvez neste exato momento. "O indivíduo se liga a Deus por meio de uma promessa, de uma promessa sagrada, de que ele para sempre e eternamente etc., e então ele se sente tão seguro, oh, tão seguro." Mas, na perspectiva religiosa, a gente é cautelosa quanto a fazer promessas (cf. Eclesiastes), e a interioridade da promessa, vista religiosamente, distingue-se pela brevidade do termo fixo e pela desconfiança em relação a si própria. Não, a interioridade da alma toda e o assentimento do coração purificado da duplicidade na promessa para o dia de hoje, ou para esta manhã, vista religiosamente, tal promessa tem muito mais interioridade do que o estetizante brindar em homenagem a Nosso Senhor. Uma sugere que quem faz a promessa tem sua vida cotidiana colocada na esfera religiosa; o outro revela, um tanto satiricamente, que aquela pessoa que reza é um participante de visita introduzido por um pastor)), [VII 424] pois isto é estética e, visto esteticamente, a evocação de Deus não é nem mais nem menos do que a mais ruidosa interjeição, e a manifestação de Deus nos eventos é um Tableau teatral [fr.: quadro, composição]. Abandonamos o religioso na crise da doença; mas esta doença não é para a morte. Queremos agora reconfortá-lo justamente pela mesma representação que o aniquilou, pela representação de Deus. Uso mais uma vez uma perspectiva reduzida, porque o interesse de minha tarefa ainda não está aqui, e não reside em como o ético (que, entretanto, é sempre algo distanciado da absoluta relação com Deus) deve intervir regulando, e assumir o comando. Devo, entretanto, reter o leitor com algumas observações. Antes de tudo, que em cada geração não há por certo muitos que aguentem o sofrimento, ao menos o do início da relação religiosa absoluta; e em seguida, que um início no âmbito da existência é bem outra coisa que algo já decidido de uma vez por todas, pois é só no papel que a gente apronta a primeira fase e depois não tem mais nada a ver com ela. A decisão absoluta [VII 425] no âmbito da existência é e sempre será apenas uma aproximação (porém, isto não é para ser entendido de modo comparativo em relação ao mais ou menos dos outros, pois então o indivíduo teria perdido sua idealidade), pois o eterno mira lá de cima o existente, o qual, por existir, está em movimento e, assim, no instante em que o eterno o alcança, já está um pequeno momento mais adiante. O que o começo da decisão absoluta no âmbito da existência menos é, é o 'de uma vez por todas', algo já vencido, pois o existente não é um X abstrato que realiza algo e depois vai mais além, segue pela vida sem fazer a digestão, se posso colocar as coisas assim; mas o existente se torna concreto no vivenciado e, quando vai mais além, tem isto consigo e pode portanto perdê-lo a qualquer instante; ele o tem junto a si, não do modo como a gente tem algo no bolso, mas em virtude desta coisa determinada, ele é o que é de modo mais especificamente determinado, e se a perdesse perderia sua própria determinação mais específica. Pela decisão na existência, um existente, mais especificamente determinado, tornou-se o que é; se deixa isto de lado, não é como se perdesse algo, de modo que não se perdesse a si mesmo e só tivesse perdido algo, mas então ele perdeu a si mesmo e deve começar do começo. O religioso, então, superou a doença (amanhã pode talvez haver a recidiva por um pequeno descuido), ele se fortalece talvez com a reflexão edificante de que Deus, que criou o ser humano, conhece decerto melhor todas as numerosas coisas que a um ser humano parecem ser impossíveis de serem unidas ao pensamento de Deus, todos os desejos terrestres, toda a confusão em que ele pode ser aprisionado, e a necessidade de diversão, de descanso, assim como do sono noturno. Óbvio que aqui não estamos falando da indulgência que é pregada no mundo, onde um ser humano se consola com o outro, consolam-se mutuamente e deixam Deus excluído. Todo ser humano é estruturado gloriosamente, mas o que arruína a muitos é, entre outras coisas, esta desgraçada verbosidade entre os homens sobre o que se deve sofrer, mas também amadurecer, no silêncio, essa confissão diante de seres humanos em vez de diante de Deus, esta comunicação cordial a este e àquele sobre algo que deveria ser um segredo e estar diante de Deus no ocultamento, este impaciente anseio ardente de consolação provisória. Não, na dor da aniquilação, o religioso aprendeu que a indulgência humana não serve para nada; por isso, nada ouve desta parte, mas fica diante de Deus e passa pelo sofrimento de ser um ser humano e assim estar diante de Deus. Por isso, não pode consolá-lo aquilo que o bando de humanos conhece uns dos outros, que têm uma representação provinciana do que significa ser um ser humano, e uma geläufig [al.: fluente], loquaz representação, de décima sétima mão, do que significa estar diante de Deus. De Deus ele deve buscar sua consolação, [VII 426] para que toda a sua religiosidade não se torne um diz-que-diz-que. Com isto não está dito, de jeito nenhum, que ele deva descobrir novas verdades etc., não, ele deve apenas vigiar-se a si mesmo para não ser enrolado pelo falatório e pelo gosto da oratória, e com isso impedido de vivenciar, por si mesmo, o que milhares e milhares antes dele já vivenciaram. Se já vale para o enamoramento que um enamoramento só se enobrece quando ensina uma pessoa a fazer segredo sobre seus sentimentos, quanto mais não vale isso para o religioso! Pensemos sobre algo que o paganismo poetizou, que um deus se apaixonasse por uma mortal. Se ela permanecesse insciente de que ele era um deus: aí esta relação seria a pior miséria possível; pois, na opinião de que o mesmo padrão dever-se-ia aplicar a ambos, ela se desesperaria ao exigir de si mesma a igualdade. Se descobrisse, por outro lado, que ele era o deus, aí ela seria, primeiro, quase aniquilada em toda a sua humilde condição, de modo que dificilmente ousaria admitir sua pequenez; faria uma tentativa desesperada atrás da outra para elevar-se até ele; ficaria angustiada a cada ocasião que sua pequenez fizesse necessário eles se separarem; ela seria sempre mais tomada pela angústia no tormento de saber se faltava vontade ou faltava capacidade. Façamos agora uma aplicação ao religioso. Onde está, então, o limite, para o indivíduo singular, em sua existência concreta, entre o que é falta de vontade e o que é falta de capacidade; entre o que é indolência e egoísmo mundano e o que é a limitação da finitude? E quando então passou para um existente o período de preparação, quando esta questão não pode mais ser levantada com todo o seu preocupado esforço inicial; quando é o tempo, na existência, que é realmente uma preparação? Que todos os dialéticos se reúnam, não conseguirão decidi-lo para um indivíduo particular in concreto [lat.: em concreto]. Pois a dialética, em sua verdade, é um poder bem-disposto a servir, que descobre e ajuda a achar onde está o absoluto objeto de fé e de adoração, onde está o absoluto - ou seja, lá onde a diferença entre saber e não saber se abisma na absoluta adoração prestada pela insciência, lá onde a incerteza objetiva vota contra para forçar a avançar a apaixonada certeza da fé, lá onde, em submissão absoluta, o conflito sobre o certo e o errado se abisma em absoluta adoração. A dialética, ela própria, não vê o absoluto, mas conduz, por assim dizer, o indivíduo a ele e diz: Aqui ele deve estar, posso garantir; se adorares aqui, estarás adorando a Deus. [VII 427] Mas a adoração, ela mesma, não é a dialética. Uma dialética que faz mediações é um gênio malogrado. - Portanto, a mulher mortal que fosse amada pelo deus seria, primeiro, aniquilada em sua pequenez, mas então de certo se reergueria pela representação de que ele certamente saberia mais do que ela sobre tudo isso. Seria aniquilada ao pensar divinamente sobre ele, mas, por outro lado, seria erguida pela representação de que ele pensava humanamente a respeito dela. De fato, mesmo que uma moça de condição humilde se unisse a um rei de um povo estrangeiro, o quanto ela não sofreria para achar a despreocupada franqueza em relação a tudo que lhe lembrasse sua pequenez, de tal modo que isto parecesse ter de limitar sua relação, para encontrar paz no litígio de fronteiras entre ser indulgente consigo e exigir demais de si mesma? Mas também faz parte desta pequenez do ser humano que ele seja temporal e que não consiga suportar, na temporalidade, levar ininterruptamente a vida da eternidade. E se sua vida está na temporalidade, ela é, eo ipso, fragmentada; se é fragmentada, é, naturalmente, mesclada com diversão, e na diversão ele está ausente de sua relação para com Deus, ou não está, contudo, presente como no momento intenso. Se as pessoas dizem que é duro separar os amantes, não o seria então duro para a pessoa religiosa? E seria menos duro por ser uma diversão e não algo de trabalhoso o que separa, quando a necessidade de diversão mostra justamente da maneira mais forte sua pequenez? Pois nossa pessoa religiosa não está colocada numa posição tal que o pastor tenha que exortá-la a querer procurar por Deus; pelo contrário, ela está de tal modo tomada que precisa de alguma diversão para não vir a perecer. Vê, aqui o movimento monástico é tentador. Não seria possível com um esforço supra-humano chegar mais perto de Deus, manter a relação sem interrupção, sem dormir, se possível! A gente costuma dizer, aliás, que o amor é capaz de igualar os dois. Sim, e a gente tem razão quando está falando sobre a relação entre dois seres humanos, porque eles se situam essencialmente no mesmo nível, e a diferença é o acidental. Mas dado que entre Deus e o homem há uma diferença absoluta, esta igualdade direta é uma ideia atrevida que produz vertigem; mas o fato de ser assim não representa comparativamente nenhuma desobrigação do ser humano em relação ao esforço extremo. Dado, porém, que entre Deus e o homem há esta diferença absoluta, como se expressa então a igualdade do amor? Pela diferença absoluta. E qual é a forma da diferença absoluta? Humildade. Qual humildade? Aquela que admite inteiramente sua pequenez humana com corajosa confiança humilde diante de Deus como aquele que certamente conhece isto melhor do que a pessoa mesma. O movimento monástico é uma tentativa de querer ser mais do que um ser humano, [VII 428] uma tentativa entusiástica, talvez piedosa, de se igualar a Deus. Mas aí reside o sofrimento profundo da verdadeira religiosidade, o mais profundo que se pode pensar: relacionar-se com Deus de modo absolutamente decisivo, e não poder ter nenhuma expressão exterior decisiva para isto (pois o amor feliz se expressa exteriormente pelo fato de os amantes se ganharem mutuamente), porque a mais decisiva expressão exterior é apenas relativa, é tanto demais quanto de menos, é demais porque inclui uma arrogância em relação a outras pessoas, e de menos porque não obstante ainda é uma expressão mundana. Assim, então, há dois caminhos a se considerar: o caminho da diversão humilde e o caminho do esforço desesperado, o caminho para o Dyrehaven e o caminho para o mosteiro. Para o Dyrehaven? Ó, sim, vamos mencionar só este; eu poderia do mesmo modo mencionar muitas outras coisas sob a mesma rubrica. Um tolo rirá talvez deste pensamento, uma nobre pessoa religiosa se sentirá insultada, e ambos demonstrarão que a coisa está correta. Mas por que mencionar um nome como o do Dyrehaven? No entanto, é muito mais correto, aos domingos, falar em expressões muito indefinidas e flutuantes, gerais, domingueiras, sobre estas alegrias inocentes - e então, nos dias úteis, falar sobre elas com a linguagem cotidiana. Sim, claro que é mais correto; e eu pressinto qual a irritação que, neste contexto, o termo Dyrehaven irá despertar num homem respeitável, porque, nesta conexão talvez isto lembre em que sentido a religiosidade de nossa época está para além da Idade Média; e porque é desagradável ter uma expressão como essa, que traz o elemento religioso para tão perto da vida, em vez de vê-lo a distância ao dizer "nada", "tudo", "sempre", "nunca", "vigilância diária" etc. - Nossa pessoa religiosa escolhe o caminho para o Dyrehaven, e por quê? Porque não ousa escolher o caminho para o mosteiro. E por que não ousa fazê-lo? Porque este é demasiado nobre. Então ela vai ao outro. "Mas ela não se diverte", dirá talvez alguém. Sim, sim, é claro que ela se diverte. E por que ela se diverte? Porque a mais humilde expressão para a relação com Deus é reconhecer sua humanidade, e é humano divertir-se. Se uma mulher consegue transformar-se totalmente só para agradar o marido, por que a pessoa religiosa, em sua relação com Deus, não conseguiria divertir-se, se isto é a mais humilde expressão da relação com Deus? Se acaso um pobre trabalhador se apaixonasse por uma princesa e acreditasse ser amado por ela, qual seria o modo mais humilde para manter a relação? Não seria, talvez, permanecer exatamente como os outros trabalhadores, ir ao trabalho como sempre, compartilhar com os outros, e então, se durante o trabalho se pusesse a pensar na relação, aí se animar com a ideia de que a humildade seria mais agradável [VII 429] à princesa do que qualquer outra coisa, se ele, porém, pensasse nela constantemente em seu ânimo tranquilo e estivesse mais do que pronto a expressar a relação do modo mais vigoroso que pudesse ousar? Pois nunca poderia ocorrer ao humilde trabalhador que a princesa fosse tão tola, e tão tolamente presa ao mundano, que sentisse alguma alegria se o mundo tomasse consciência, pela conduta afetada do trabalhador, de que ela era amada por um trabalhador. Mas há certa espécie de religiosidade que, talvez porque o primeiro início da aniquilação não foi eficaz e não serviu bastante no sentido da interioridade, tem uma representação de Deus como sendo um déspota ciumento, de entendimento limitado, que é consumido por um veemente desejo de que o mundo saiba, pela conduta afetada de uma pessoa particular, que Deus foi amado por uma pessoa particular. Como se Deus desejasse uma distinção, ou como se isto fosse uma distinção apropriada para Deus, pois qualquer um pode perceber que mesmo para uma princesa não é nenhuma distinção ser amada por um trabalhador! Uma religiosidade deste tipo é, ela própria, doente e malsã e, por isso, também torna Deus doente. Que possa ocorrer a uma pessoa tirânica exigir que se torne bem claro para o mundo, pela submissão manifesta dos outros, quanto poder ela tem sobre eles, é algo que afinal não prova nada com referência a Deus. Ou quiçá a pessoa religiosa tomaria em consideração fazer tudo isso, se lhe pudesse ocorrer pensar deste modo acerca de Deus, a saber, que Deus de fato estivesse carente - da admiração do mundo e da estranha afetação dos crentes despertados que atrairiam a admiração do mundo e, com isso, dirigiriam a mais elevada atenção do mundo para a existência de Deus - o coitado do Deus que, em sua posição embaraçosa, por ser invisível e contudo tão ávido de ter a atenção pública dirigida para Ele, fica lá sentado e esperando que alguém faça isto por Ele. Até agora eu mantive isto um tanto abstrato e agora deixarei as coisas correrem como se fosse hoje, pois hoje é realmente quarta-feira, na temporada do Dyrehaven, e nossa pessoa religiosa irá ao bosque, enquanto que eu, experimentando, verifico os estados psicológicos. Falar sobre isto a gente consegue; fazê-lo é outra coisa. E, no entanto, falar sobre isto, num certo sentido, talvez não seja tão fácil; estou bem consciente do risco que estou correndo, de que estou pondo em jogo meu bocadinho de renome como autor, já que todos acharão isto extremamente aborrecido. Ainda estamos na mesma quarta-feira na temporada do Dyrehaven; tudo gira em torno de ir ao Dyrehaven e até agora já se gastaram tantas páginas, que um romancista estaria em condição de ter narrado os mais interessantes eventos dos últimos dez anos, incluindo cenas grandiosas e situações excitantes e encontros amorosos e nascimentos clandestinos; [VII 430] de fato, gastaram-se tantas páginas que, com a metade delas, um pastor poderia ter acabado com o tempo e a eternidade e a morte e a ressurreição, com Tudo e Sempre e Nunca e Nada, e acabado de tal modo que se poderia ter, numa única pregação, o bastante para toda a vida. É então uma quarta-feira na temporada do Dyrehaven. A pessoa religiosa familiarizou-se com a noção comum da importância da necessária distração, mas daí afinal não se segue, de jeito nenhum, que esta seja necessária justamente hoje. É aqui justamente que reside a dificuldade da concreção, que permanecerá enquanto a pessoa religiosa estiver na existência, quando ela for relacionar tal noção com o momento determinado de um dia determinado, com tal e qual estado de alma definido, com tais e tais circunstâncias determinadas. Quando a vida é compreendida deste modo, desaparecem as vãs diferenças quantitativas, pois o "como" da interioridade determina o significado, e não o "o quê" da quantidade. Ora, nosso religioso é um homem independente e próspero, que possui cavalo e carruagem próprios; ele, na questão em pauta, tanto tem tempo quanto tem meios para ir todos os dias ao Dyrehaven, se fosse preciso. Assim a questão se apresenta melhor, pois, como já foi dito acima, o discurso religioso deve ser bastante irônico para fazer as pessoas extraordinariamente felizes nas questões exteriores, só para que o [essencial do] religioso possa chegar a se mostrar da maneira mais clara. Um homem que tenha só uma única quarta-feira livre, na temporada do Dyrehaven, talvez não tenha tantas dificuldades em dar uma saída, mas esta facilidade, e a dificuldade de não poder dar umas saídas nos outros dias, também possibilitam que o religioso não se torne o fator determinante. Aqui se dá o mesmo que com a seriedade. Muito homem acredita ser sério porque tem mulher e filhos e penosos negócios. Mas daí não segue, contudo, que tenha seriedade religiosa; sua seriedade poderia também ser mau humor e má vontade. Quando se há de apresentar a seriedade religiosa, mostra-se mais vantajoso fazê-lo em favoráveis condições externas, pois, nesse caso, não pode facilmente ser confundida com alguma outra coisa. Ele irá, então, antes assegurar-se de que não é um prazer momentâneo, uma ideia imediata, o que o determina; ele quererá saber por si mesmo que necessita da distração, e se confortará com a ideia de que Deus decerto também tem de saber disso. Não se trata da impertinente segurança de um despertado em relação a Deus, como quando um camarada estético e otimista desse tipo se deixa reconhecer por ter recebido, carta branca de Deus, de uma vez por todas. [VII 431] Mas embora ele saiba disso em sua consciência e de que não procura distração por um prazer da imediatidade, porque ele com o maior prazer preferiria dispensá-la, a preocupação ainda levantará desconfiança sobre si mesmo e o fará perguntar a si mesmo se não poderia dispensá-la por mais algum tempo. Mas aqui, também, ele sabe em consciência que já no último domingo sentiu a necessidade de distração sem ceder a ela, a fim de provar de que canto vinha o impulso; pois de uma coisa ele está convencido, de que Deus não irá deixá-lo desamparado, mas o ajudará a descobrir qual é a coisa certa, lá onde é tão difícil de encontrar a fronteira entre a indolência e o que é limitação da finitude. Mas eis que, no mesmo instante em que ele, preocupado, dispensaria se possível a distração, visando aguentar mais um dia, quase no mesmo instante desperta a irritabilidade humana que sente bem o aguilhão de ser assim dependente, de ter que sempre entender que não se é capaz de absolutamente nada. E esta irritabilidade é obstinada e impaciente; ela quase deseja concordar com a preocupação numa dúbia conspiração, pois a preocupação renunciaria à distração por entusiasmo, mas a obstinação o faria por orgulho. E esta irritabilidade é sofística; quer fazê-lo pensar que a relação com Deus se desvirtua ao ser posta em conexão com ninharias deste tipo, e que se manifesta em sua verdade apenas nas decisões maiores. E esta irritabilidade é orgulhosa, pois, embora a pessoa religiosa tenha, mais de uma vez, se assegurado de que entregar-se à necessária distração é a mais humilde expressão da relação com Deus: é sempre aliciador compreender o que talvez não se deva realizar no mesmo instante, no instante intenso do entusiasmo, quando o trabalho está caminhando bem, é aliciador em comparação com entendê-lo justamente quando o que deve ser realizado é algo totalmente específico. Mas esta provação desaparece de novo, porque a pessoa religiosa silencia, e a pessoa que silencia diante de Deus aprende a ceder, mas também aprende que isto é abençoado. Se nossa pessoa religiosa tivesse à mão um amigo falador, facilmente teria chegado ao Dyrehaven, pois isto é coisa simples quando se tem cavalo e carruagem e bastante dinheiro, e se é conversador - mas então não teria sido nossa pessoa religiosa, e nossa pessoa religiosa também chegou ao Dyrehaven. Agora ficou resolvido que se procure distração; no mesmo instante, a tarefa se altera. Se um pouco mais tarde passa por sua alma a ideia de que isto tudo, afinal, é um desacerto, então ela simplesmente lhe contrapõe uma consideração ética, pois, em face de uma resolução tomada após [VII 432] honesta deliberação, uma ideia fugaz não deve brincar de senhor e mestre; ela desarma esta ideia eticamente, para que não chegue mais uma vez à relação mais elevada, com o que a significação da distração resolvida seria anulada. O rumo aqui também não vai na direção da relação com Deus, como quando o pastor prega, mas é a relação com Deus, ela mesma, que ordena à pessoa religiosa que procure alguma outra coisa por um momento, como se isto fosse um acordo entre a solicitude de Deus e a legítima defesa da pessoa. A consideração ética é bem simplesmente esta, que quando não tem solução, é pior tornar-se um conversador fiado do que, com decisão, realizar o que foi decidido, o que talvez até tenha sido menos adequadamente considerado, porque o palavrório é a ruína absoluta de toda e qualquer relação espiritual. - Vê, nós todos, com certeza, estamos esperando por um grande evento, de modo que tenhamos a oportunidade de mostrar, agindo, que camaradas nós somos; e quando um príncipe herdeiro assume o governo do mais poderoso reino da Europa, responsabiliza-se pelo destino de milhões de pessoas, há aí uma oportunidade de tomar uma decisão e de agir sensu eminenti [lat.: em sentido eminente]. Incontestável! Mas isto é o que há de profundo e, ao mesmo tempo, de irônico na existência, que a ação possa se dar do mesmo modo, inteiramente sensu eminenti, quando o agente é uma pessoa muito simples, e o ato a ser realizado consiste em ir ao Dyrehaven. Pois o mais elevado que Sua Alteza Imperial pode fazer, afinal, é tomar sua decisão diante de Deus. O acento está nisso: "diante de Deus"; os muitos milhões são apenas uma ilusão. Mas o mais humilde ser humano também pode tomar sua decisão diante de Deus, e aquele que realmente fosse uma pessoa religiosa de tal tipo que pudesse decidir diante de Deus ir ao Dyrehaven não passaria vergonha diante de nenhuma Alteza Imperial. Isso no tocante ao sofrimento religioso, que consiste em morrer para a imediatidade: que baste sobre o assunto. Eu mesmo percebo melhor que qualquer um quão pobre parece ser investigar tais questões do dia a dia, que qualquer um, até a mais simples criadinha e o mais simples soldado raso, conhece; quão imprudente é reconhecer a sua dificuldade e, com isso, trair talvez uma falta de talento para se elevar, um bocadinho que seja, acima do horizonte da classe mais humilde; quão próximo espreita a sátira por se ter gastado tempo e aplicação ao longo de vários anos e se terminar sem nada avançar além do que sabe a pessoa mais tola de todas - aí, em vez de, ao longo do mesmo tempo e com a mesma aplicação, ter quiçá podido apresentar algo referente à China, à Pérsia, ou até à astronomia. Talvez não haja dez pessoas que aguentem ler o que é exposto aqui, e dificilmente haveria uma única pessoa no reino que teria vontade de assumir o incômodo de reunir algo assim por escrito; [VII 433] mas este último ponto de algum modo me consola, pois se todos poderiam fazê-lo, se o produto não passaria de trabalho de copista, fica sendo então justamente o meu mérito o de ter feito aquilo que todos poderiam fazer (aqui reside o que é tão desencorajador para o frágil coração humano), mas que nenhum outro está com vontade de fazer. Então, ninguém está com vontade de expô-lo; mas, existindo, expressá-lo, fazê-lo? Sim, é claro que a ação tem sempre vantagem sobre a exposição; que o que precisa de bastante tempo para ser exposto pode ser feito muito rapidamente - se se é capaz [de fazê-lo]. Mas antes de se ter chegado então ao ponto de ser capaz, quanta inconveniência antes de se ser capaz de fazê-lo? Bem, apenas digo que não sou capaz de fazê-lo, mas já que o segredo reside precisamente na interioridade oculta da religiosidade, então talvez todos sejam capazes de fazê-lo - pelo menos não se percebe nada sobre isso. - Se, por outro lado, alguém se horroriza diante do enorme esforço que pode ser viver deste modo, e de quão exaustivo, isto é, eu posso saber bem como é, já que eu, que só fico aqui sentado e faço experimentações a respeito, e portanto me mantenho essencialmente de fora, sinto o esforço até deste trabalho: bem, prefiro não dizer mais nada, ainda que eu admire a proeza interior da religiosidade, a admire como a maior das maravilhas, mas também francamente admito que comigo não daria certo: partindo da e com a mais alta representação de Deus e de sua felicidade eterna, conseguir divertir-me no Dyrehaven. Maravilhoso isto é, assim o considero, e eu por certo não falo sobre isto com a intenção, se tal me fosse possível, de tornar a vida das pessoas pobres ainda mais difícil (ah, longe disso!), pois já é difícil o bastante, ou de atormentar alguém fazendo com que sua vida fique mais difícil (Deus me livre!), pois já é difícil o bastante; ao contrário, espero prestar um favor aos mais cultos, quer elogiando a interioridade oculta da religiosidade deles (porque o segredo consiste em que ninguém perceba nada, e por certo não há ninguém que perceba algo), quer, se possível, fazendo com que a coisa seja tão difícil que consiga satisfazer as demandas dos mais cultos, dado que eles, em seu ir além, é claro que já deixaram para trás tantas dificuldades. Pois se alguém se horroriza ante o esforço enorme de viver deste modo, aí eu acho ainda mais horroroso que se possa ir ainda mais além, e, além disso, vá além saltando para a especulação e a história do mundo, acho isto ainda mais horrível; mas, o que estou dizendo, tudo que vai além se reconhece, afinal, por ser não apenas isto, mas também algo mais; portanto acho isto mais horrível - e também algo mais: horrivelmente tolo. [VII 434] O significado do sofrimento religioso está em morrer para a imediatidade; sua realidade efetiva consiste em sua permanência essencial; mas esta pertence à interioridade e não deve expressar-se no exterior (o movimento monástico). Quando tomamos um homem religioso, o cavaleiro da interioridade oculta, e o colocamos no plano da existência, uma contradição aparecerá quando ele se relacionar com o mundo à sua volta, e ele próprio deve estar consciente disto. A contradição não consiste em que ele seja diferente de todos os outros (pois esta autocontradição é justamente a lei da Nemesis do cômico ao movimento monástico), mas a contradição está em que ele, com toda esta interioridade oculta nele, com esta prenhez de sofrimento e bênção em seu interior, pareça ser bem como os outros - e com isso a interioridade de fato justamente se oculta, pelo fato de ele parecer ser exatamente como os outros. (Outro autor (em Ou isto, ou aquilo) reportou corretamente o ético à determinação: de que é dever de todo e qualquer ser humano tornar-se aberto [aabenbar: manifesto, transparente] - portanto, ao revelar-se [Aabenbarelsen]. Religiosidade, por outro lado, é interioridade oculta, mas, note-se, não a imediatidade que deve ser franca, não a interioridade inexplicada, mas a interioridade cuja determinação esclarecedora está em ser oculta. - De resto, nem precisaria ser lembrado que, quando digo que o incógnito do religioso deve parecer ser exatamente como todos os outros, isto não quer dizer que seu incógnito é a realidade de um bandido, um ladrão, um assassino; pois tão fundo o mundo por certo não afundou a ponto de que uma aberta ruptura com a legalidade possa ser vista como o universalmente humano. Não, a expressão "parecer-se inteiramente com todos os outros seres humanos" naturalmente garante a legalidade, mas isto pode muito bem ocorrer sem que haja qualquer religiosidade na pessoa). Algo de cômico está presente aqui, pois aqui há uma contradição, e onde há uma contradição, o cômico também está presente. Este [aspecto] cômico, entretanto, não é para os demais que nada sabem a respeito, mas é para a própria pessoa religiosa quando o humor é seu incógnito, como diz Frater Taciturnus (cf. Estádios no caminho da vida). E vale a pena compreender isto mais de perto; pois, logo depois da confusão da especulação moderna que acha que fé é imediatidade, a confusão mais perturbadora talvez seja que o humor é o que há de mais alto, pois humor ainda não é religiosidade, mas o seu confinium; sobre o que já se encontrarão algumas [VII 435] observações acima, que devo pedir ao leitor que recorde. Porém, é o humor o incógnito do religioso? Seu incógnito não está nisto, que não haja nada a ser percebido, absolutamente nada que poderia levantar suspeita sobre a interioridade oculta, nem mesmo algo assim como o humorístico? Em seu máximo supremos, se este pudesse ser alcançado na existência, seria decerto assim (Em Temor e tremor, foi descrito um "cavaleiro da fé" deste tipo. Mas essa descrição foi apenas uma antecipação temerária, e a ilusão foi alcançada ao descrevê-lo em um estado de completude [Faerdighed: acabamento, perfeição] (portanto, num falso plano [Medium]), ao invés do plano existencial [Existenz-Mediet], e o começo foi feito esquivando-se dessa contradição - de que modo um observador poderia se tornar tão atento a ele, de modo que pudesse se colocar de fora, admirando, e admirar-se de que nada houvesse, absolutamente nada, para perceber, a não ser que Johannes de Silentio queira dizer que o cavaleiro da fé é sua própria produção poética, mas aí a contradição retoma, residindo na duplicidade [Dupplicitet: ambiguidade] de que ele simultaneamente se relaciona, como poeta e observador, com a mesma coisa; criando, como poeta, um personagem no plano da imaginação (pois este é, afinal, o plano poético) e, como observador, observa a mesma figura poética no plano existencial. - A esta dificuldade dialética, Frater Taciturnus já parece ter estado atento, pois evitou tal equívoco graças à forma do experimento. Ele não se relaciona com o Quidam do experimento observando-o, mas sim transpõe sua observação em produção poético-psicológica e então de novo se aproxima o mais possível da realidade efetiva, usando, em vez da perspectiva abreviada, (de modo aproximativo) a forma do experimento e o padrão de longitude [Laengdemaal: medida de duração] da realidade efetiva); mas, enquanto continuarem a luta e o sofrimento na interioridade, a pessoa religiosa não conseguirá ocultar completamente sua interioridade, mas não a expressará diretamente, e a impedirá negativamente com a ajuda do humorístico. Um observador que se põe em meio às pessoas para encontrar a pessoa religiosa seguiria, portanto, o princípio de que todos em que descobrisse o humorístico tornar-se-iam objetos de sua atenção. Mas se ele se tivesse esclarecido a relação da interioridade, saberia também que pode ser enganado, pois o religioso não é um humorista, mas em sua aparência externa é um humorista. Assim, um observador que está procurando pela pessoa religiosa e pretende reconhecê-la pelo humorístico, seria enganado caso se encontrasse comigo; encontraria o humorístico, mas se enganaria se tirasse qualquer conclusão a partir daí, porque eu não sou o religioso, mas só e unicamente humorista. [VII 436] Talvez alguém ache que é uma terrível pretensão atribuir a mim mesmo a designação de humorista, e também ache que, se eu realmente fosse um humorista, ele certamente deveria demonstrar um honroso respeito em relação a mim; não vou me estender nem sobre uma coisa nem outra, pois aquele que levanta esta objeção está manifestamente supondo que o humor seja o mais elevado. Eu, ao contrário, afirmo que infinitamente mais elevada do que o humorista está a pessoa religiosa stricte sic dictus [lat.: no estrito sentido da palavra], e que é qualitativamente diferente do humorista. E no que tange ao resto, que não queira considerar-me um humorista: muito bem, então eu estou disposto a transpor a situação do observador de mim para aquele que faz a objeção; deixar o observador prestar atenção a ele: o resultado será o mesmo - o observador é enganado. Há três esferas existenciais: a estética, a ética, a religiosa. A essas correspondem duas zonas-limite: ironia é o continium entre o estético e o ético; o humor é o continium entre o ético e o religioso. Tomemos a ironia. Quando um observador descobre um irônico, fica atento, pois pode ser que o irônico seja um ético, mas ele pode também estar enganado, pois não está dito que o irônico seja um ético. O imediato se reconhece prontamente, e, assim que é reconhecido, está dado que não é nenhum ético; pois não fez o movimento da infinitude. A réplica irônica, quando é correta (e supõe-se que o observador seja um homem experiente, que sabe como trapacear e confundir o orador a fim de ver se se trata de algo aprendido de cor, ou se há ali moeda corrente irônica de sobra, tal como um irônico existente sempre o terá), trai que o orador fez o movimento da infinitude, mas nada mais do que isto. A ironia aparece à medida que justapõe continuamente as particularidades da finitude e a exigência ética infinita, e faz surgir a contradição. Aquele que pode fazê-lo com habilidade, de maneira a não se deixar prender por nenhuma relatividade na qual sua habilidade se inibisse, há de ter feito um movimento da infinitude, e, deste modo, pode ser que seja ético. (Se o observador for capaz de capturá-lo numa relatividade que ele não tenha força de captar ironicamente, então ele não será propriamente irônico. Com efeito, [VII 437] se a ironia não for tomada em sentido decisivo, então no fundo todos os homens serão irônicos. Assim que uma pessoa que tem sua vida numa certa relatividade (e isto mostra justamente que não é irônica) é transposta desta para uma relatividade que ela considera como inferior (um homem da nobreza, p. ex., posto num grupo de camponeses, um professor numa companhia de sacristãos de aldeia, um milionário da cidade junto com vendedores ambulantes, um cocheiro do palácio real numa sala com carroceiros de turfa, uma cozinheira de mansão junto a capinadoras etc.), então ela é irônica, quer dizer, ela não é irônica, dado que sua ironia é apenas a ilusória superioridade da relatividade, mas os sintomas e as réplicas terão certa similaridade; porém a coisa toda é apenas um jogo no interior de certa pressuposição, e a inumanidade se reconhece bem na incapacidade da pessoa a que nos referimos de entender a si mesma ironicamente, e a inautenticidade se reconhece pela subserviência desta mesma pessoa quando se apresenta uma relatividade que é mais elevada do que a sua, Ai, isso é o que o mundo chama de modéstia: o irônico, este é orgulhoso!). [VII 437] O observador não será, portanto, capaz nem mesmo de capturá-lo por este não conseguir entender-se ironicamente, pois até isto este consegue, consegue falar de si mesmo como de uma terceira pessoa, colocar-se como uma evanescente individualidade em conexão com a exigência absoluta - de fato, colocar ambos juntos. Como é estranho que a expressão que significa a última dificuldade da existência, que consiste justamente em colocar junto o absolutamente diferente (tal como a representação de Deus junto com a ida ao Dyrehaven), que a mesma expressão ["implicação"], em nossa língua também signifique "implicância"! Mas embora isto esteja dado, não está dado ainda que ele seja um ético. Ético ele só o é ao se relacionar, no interior de si mesmo, com a exigência absoluta. Tal ético emprega a ironia como seu incógnito. Sócrates era um ético neste sentido, porém, é bom notar, voltado para a fronteira do religioso, e é por isso, afinal, que acima (na Seção 2, Capo 2) foi apontado o que há de análogo com a fé na existência dele. O que é, então, ironia, se se quer chamar Sócrates um irônico e não se quer, como o Mag. Kierkegaard, consciente ou inconscientemente, trazer à luz apenas um aspecto? Ironia é a unidade de paixão ética, que na interioridade acentua infinitamente o próprio eu em relação à exigência ética - e de cultura, que na exterioridade abstrai infinitamente do eu próprio como uma finitude em meio a outras finitudes e individualidades. Esta abstração faz com que ninguém perceba o primeiro aspecto, e é ali justamente onde reside a arte, e, com isso, a verdadeira infinitização do primeiro aspecto está condicionada. (A tentativa desesperada da malograda ética hegeliana de fazer do Estado a última instância do ético é uma tentativa altamente antiética de finitizar os indivíduos, uma fuga antiética da categoria da individualidade para a categoria da geração (comparar o Cap. I da Seção II). O ético em Ou isto, ou aquilo já protestava, direta e indiretamente, contra tal coisa, indiretamente na conclusão do ensaio Sobre o equilíbrio entre o estético e o ético na personalidade, onde ele próprio precisa fazer uma concessão em relação ao religioso; e, mais uma vez, na conclusão do artigo sobre o casamento (no livro dos Estádios), onde, mesmo a partir da ética que ele defende, que é diametralmente oposta à hegeliana, decerto eleva em espiral o preço do religioso tanto quanto possível, mas, mesmo assim, ainda deixa espaço para ele). [VII 438] A grande massa das pessoas vive de maneira inversa; esfalfam-se em ser alguma coisa quando alguém as está olhando; elas são, possivelmente, alguma coisa aos seus próprios olhos, assim que os outros as estejam olhando; mas, em seu interior, onde a exigência absoluta as está olhando, não sentem o gosto por acentuar o próprio eu. Ironia é uma determinação existencial, e não há nada de mais ridículo do que considerá-la como um modo de falar, ou quando um autor se regozija por se expressar aqui ou ali ironicamente. Aquele que tem a ironia essencialmente, ele a tem o tempo todo, não vinculada a nenhum forma, porque ele tem a infinitude dentro dele. Ironia é cultura do espírito e segue, por isso, logo após a imediatidade; depois vem o ético, depois o humorista, depois a pessoa religiosa. Mas por que o ético usa a ironia como seu incógnito? Porque capta a contradição que há entre o modo em que ele existe em seu íntimo e o fato de que seu exterior não o expressa; pois decerto o ético se revela, na medida em que se exaure nas tarefas da sua realidade fática, mas a pessoa imediata também o faz, e o que faz com que o ético seja o ético é o movimento (Quando Sócrates se relacionava negativamente frente à realidade efetiva do Estado, em parte isto se devia a que ele haveria justamente de descobrir afinal o ético, e, em parte, à sua posição dialética como exceção e extraordinarius, e, finalmente, ao fato de ser ele um ético voltado para a fronteira do religioso. Assim como se encontra nele uma analogia para a fé, assim também pode ser encontrada uma analogia para a interioridade oculta, só que ele a expressa externamente apenas pela ação negativa, pela abstinência, e até aí contribuiu para que a gente atentasse para ela. A interioridade oculta da religiosidade no incógnito do humor se esquiva à atenção ao ser como os outros, só que há uma ressonância humorística na réplica singela e um toque disso no modo de vida cotidiano, mas há que ser realmente um observador para se atentar a isso; para a abstinência de Sócrates qualquer um tinha de atentar) pelo qual ele integra sua vida exterior [VII 439], voltando-a para dentro, com a exigência infinita do ético, e isto não aparece de modo direto. Para não se deixar perturbar pela finitude, por tudo o que há de relativo no mundo, o ético coloca o cômico entre si e o mundo e, assim, se assegura de não se tornar ele próprio cômico por um ingênuo mal-entendido de sua paixão ética. Um entusiasta imediato solta seus gritos pelo mundo da manhã à tarde; sempre do alto de seus coturnos, ele atormenta as pessoas com seu entusiasmo, e não percebe de jeito nenhum que isto não faz com que se entusiasmem, a menos que seja para lhe baterem; não há dúvidas de que está bem-informado, e a ordem pede uma transformação completa - do mundo inteiro; claro, é aqui que ouviu errado, porque a ordem pede por uma transformação completa de si mesmo. Se um entusiasta desses for contemporâneo de um irônico, este naturalmente dele tirará proveito cômico. O ético, pelo contrário, é bastante irônico para ver muito bem que aquilo que o ocupa absolutamente, não ocupa os outros absolutamente; ele mesmo compreende esta discordância, e intercala o cômico entre eles, a fim de ser capaz de, tanto mais intensamente, segurar o ético dentro de si mesmo. Agora se inicia a comédia, pois o juízo dos homens sobre uma pessoa destas será sempre: para ele, nada é importante. E por que não? Porque para ele o ético é absolutamente importante; pois nisso ele é diferente dos homens em geral, para os quais tantas coisas são importantes, sim, quase tudo é importante - mas nada é absolutamente importante. - Porém, como já foi dito, um observador pode ser enganado se tomar um irônico por um ético, pois a ironia é apenas a possibilidade. Assim sucede também com o humorista e com o religioso, pois, de acordo com o que foi dito acima, a dialética própria do religioso interdita a expressão direta, a diferença perceptível, protesta contra a comensurabilidade da exterioridade, e contudo valoriza, na falta de melhor, o movimento monástico, bem acima da mediação. O humorista continuamente (não no sentido do "sempre" do pastor, mas a qualquer momento do dia, onde quer que esteja e o que quer que esteja pensando ou fazendo) coloca a representação de Deus em conexão com algo mais e traz à tona a contradição - mas ele não se relaciona pessoalmente com Deus em paixão religiosa (stricte sic dictus: [lat.: no sentido estrito da palavra]); transforma-se a si mesmo fazendo pilhéria e no entanto de maneira profunda num lugar de passagem para todas estas transações, mas ele não se relaciona pessoalmente com Deus. A pessoa religiosa faz o mesmo, coloca a representação de Deus em conexão com tudo e vê a contradição, [VII 440] mas em seu ser mais interior relaciona-se com Deus; enquanto que a religiosidade imediata repousa sobre a piedosa crendice de ver Deus diretamente em todas as coisas; e o despertado impertinentemente põe Deus na obrigação de estar presente onde ele está, de modo que basta que alguém o veja para estar certo de que Deus está junto, dado que o despertado o tem em seu bolso. Religiosidade com humor como incógnito é, portanto: a unidade de paixão religiosa absoluta (interiorizada dialeticamente) e maturidade espiritual, que chama a religiosidade de volta da exterioridade para a interioridade e, assim, é de novo nisto de fato a absoluta paixão religiosa. O religioso descobre que aquilo que o ocupa absolutamente parece ocupar os outros muito pouco, mas daí não tira nenhuma conclusão, em parte porque não tem tempo para tanto, e em parte porque não pode saber com certeza se todas estas pessoas não seriam, apesar de tudo, cavaleiros da interioridade oculta; ele se deixa forçar pelo mundo circundante a fazer o que a interiorização dialética exige dele - dispor um véu entre as pessoas e ele mesmo, a fim de guardar e proteger a interioridade de seu sofrimento e de sua relação com Deus. Daí não se segue, porém, que tal pessoa religiosa se torne inativa; ao contrário, ela nem se retira do mundo, mas permanece nele, porque isto constitui justamente o seu incógnito. Mas, diante de Deus, ela aprofunda interiormente sua atividade exterior ao reconhecer que não é capaz de nada, ao romper com toda relação teleológica dirigida ao exterior, todo provenu [fr.: provento] dela na finitude, mesmo que ainda trabalhe dando o máximo de sua habilidade; e isto justamente é entusiasmo. Um despertado sempre acrescenta o nome de Deus exteriormente (Lembremo-nos: que a vida de um apóstolo é paradoxalmente dialética; daí provém que ela se volte ao exterior; qualquer um que não seja apóstolo torna-se, por este meio, apenas um esteta extraviado); a certeza de sua fé é suficientemente segura. Mas a certeza da fé é de fato distinguível pela incerteza, e assim como sua certeza é a mais elevada de todas, assim também esta mesma certeza é a mais irônica de todas, pois de outro modo não se trata da certeza da fé. Ela está certa de que tudo o que agrada a Deus sucede bem para o piedoso - isto é certo, oh, tão certo; sim, nada é tão certo quanto isto. Mas agora o próximo ponto, e convém notar que a investigação não se dá no papel, mas na existência, e que o crente é um existente individual na concreção da existência. Então esta é a certeza eterna, que o que agrada a Deus sucederá bem ao piedoso. Mas agora o próximo ponto; isto que agrada a Deus, o que é? É isto ou é aquilo, é este estado civil que ele deve escolher, é esta moça que ele deve desposar, este trabalho que ele deve começar, este projeto que ele deve abandonar? [VII 441] Sim, talvez, e talvez não. Isto não é bastante irônico? E contudo é eternamente certo e não há nada de tão certo quanto isto, que o que agrada a Deus irá suceder bem ao piedoso. Sim, mas exatamente por esta razão, a pessoa religiosa não deve se preocupar tanto com o que é exterior, mas deve perseguir os bens mais elevados, paz de alma, a salvação de sua alma: isto sempre agrada a Deus. E isto é certo, tão certo como que Deus vive, que o que agrada a Deus irá suceder bem ao piedoso. Então agrada a Deus que ele venha a fazer tal coisa, mas quando é que ele terá sucesso? Prontamente, ou em um ano, ou talvez não antes do fim de sua vida mortal, não podem a luta e a provação durar tanto? Talvez sim, talvez não. Isto não é bastante irônico? E contudo é certo, muito certo, que o que agrada a Deus irá suceder bem ao piedoso; se esta certeza falha, a fé falha, mas se a incerteza, que é sua marca e sua forma, cessa, então nós não avançamos em religiosidade, mas recaímos em formas infantis. Tão logo a incerteza não seja a forma da certeza, tão logo a incerteza não mantenha a pessoa religiosa continuamente suspensa em busca de continuamente alcançar a certeza, tão logo a certeza por assim dizer marque com chumbo, a pessoa religiosa, bem, então ela está naturalmente a ponto de fazer parte da massa. - Mas da interioridade oculta com o humor como seu incógnito parece seguir que a pessoa religiosa está preservada de se tornar um mártir, o que o despertado quer acima de tudo. Sim, de fato, o cavaleiro da interioridade oculta está protegido. Ele é uma criança mimada em comparação com o despertado, que caminha cheio de confiança rumo ao martírio - a não ser que martírio signifique o sofrimento da aniquilação, em que se morre para a imediatidade, a resistência da própria divindade contra um existente que fica impedido em seu relacionar-se absolutamente consigo, e finalmente a vida no mundo, com esta interioridade, sem ter uma expressão para ela. Psicologicamente, vale pura e simplesmente a lei de que a mesma força que, quando é empregada para fora, consegue isso ou aquilo, esta mesma força necessita ali uma força ainda maior para impedi-la de agir no exterior. Força direcionada para fora e resistência que vem do exterior, então a resistência deve ser avaliada como apenas resistência pela metade; metade é apoio. A interioridade oculta tem seu martírio em si mesma. Mas então é possível que de cada duas pessoas uma seja um cavaleiro da interioridade oculta? Bem, por que não? A quem isto pode prejudicar? Talvez a um ou outro que tenha sim alguma religiosidade e considere irresponsável que isto não seja adequadamente apreciado, portanto, a alguém que não consegue suportar a visão da mais apaixonada interioridade assemelhando-se enganosamente a seu oposto no mundo exterior. Mas por que uma pessoa religiosa deste tipo não escolhe o mosteiro, [VII 442] onde há até mesmo avanço e promoção, uma hierarquia para os religiosos? Ao cavaleiro da interioridade oculta, isto não chega a perturbar; está exclusivamente ocupado em ser [tal cavaleiro], menos em parecer (à medida que ele precisa empregar algum esforço para impedi-lo), e de modo algum preocupado em saber se todos os outros homens são considerados tais. Mas deixemos esta mirada hipotética e retomemos ao observador: este pode ser enganado se tomar sem mais nem menos um humorista por um religioso. Em seu íntimo, o religioso é tudo menos humorista; ao contrário, está absolutamente ocupado em sua relação com Deus. Não coloca, de jeito nenhum, o cômico entre si e os outros para torná-los ridículos, ou para rir deles (tal orientação ao exterior está fora da religiosidade), mas dado que, por ser a verdadeira religiosidade interioridade oculta, não se atreve a expressá-la no mundo exterior, porque com isso ela seria mundanizada, precisa descobrir continuamente a contradição; e justamente porque não teve ainda inteiro sucesso em revogar a interioridade, o humor se torna seu incógnito e um indicium [lat.: indício]. Não oculta então sua interioridade para conceber os outros como cômicos; não, ao contrário, para que a interioridade dentro dele possa ser verdadeira, ele a oculta, e, com isso, descobre o cômico, mas não arranja tempo para compreendê-lo. Ele não se sente, de modo algum, como melhor do que os outros, pois tal religiosidade comparativa é justamente exterioridade e, portanto, não é religiosidade. Ele não acha, de jeito nenhum, que alguém tenha por loucura aquilo que para ele é o que há de mais importante; e mesmo que alguém diga isso, não tem tempo para escutar, mas sabe que o limite do entendimento mútuo está na paixão absoluta. Paixão absoluta não pode ser compreendida por um terceiro; isso vale tanto para a relação de outros com ele quanto para a sua com outros. Na paixão absoluta, o apaixonado está no ápice de sua subjetividade concreta, por se ter refletido fora de qualquer relatividade exterior, porém um terceiro é justamente uma relatividade. Quem quer que esteja absolutamente apaixonado já sabe disto. Quem está absolutamente apaixonado não sabe se está mais ou se está menos apaixonado do que outros, pois aquele que o sabe não está, de fato, absolutamente apaixonado; ele não sabe, de jeito nenhum, que é a única pessoa que verdadeiramente esteve apaixonado, pois, se o sabe, justamente não está absolutamente apaixonado - e contudo sabe que um terceiro não pode compreendê-lo, porque um terceiro, no assunto da paixão, o compreenderá na generalidade, não na absolutidade da paixão. Se alguém achar que isto se dá porque o objeto do amor natural tem um momento de casualidade pelo fato de ser este indivíduo particular e então objeta que Deus, afinal de contas, não é uma coisa individual e que, portanto, [VII 443] uma pessoa religiosa precisa compreender outra na paixão absoluta: a isso há que se responder que toda compreensão entre os homens deve sempre estar em alguma terceira coisa, algo de mais abstrato, que nenhum deles é. Mas na paixão absoluta, ocorre o extremo da subjetividade, e é justamente no intenso "como" desta paixão que o indivíduo está distanciado ao máximo deste terceiro. Mas o amor natural tem uma dialética totalmente diferente da religiosidade, pois o amor pode se expressar no exterior, a religiosidade não, se é que a verdadeira religiosidade consiste na interioridade oculta, e se até mesmo o movimento monástico é um engano. Se alguém disser que esta interioridade oculta com o humor como seu incógnito é orgulho, então apenas denunciará que ele próprio não é o religioso, pois, de outro modo, estaria exatamente na mesma situação do outro, absolutamente voltado para dentro. O que o objetor realmente pretende com sua objeção é arrastar o religioso para uma querela relativa sobre qual dos dois é mais religioso e, por meio disso, alcança que nenhum deles venha a sê-lo. Em suma, há um grande número de objeções que contêm apenas autodenúncias e, pensando sobre tais coisas, frequentemente recordo a estória de um tenente e um judeu que se encontraram na rua. O tenente ficou irado porque o judeu olhou para ele, e exclamou: "O que são esses olhos arregalados para cima de mim, judeu!" O judeu, ironicamente correto, respondeu: "De onde sabe, Sr. Tenente, que estou olhando para você?" Não, se algo é orgulho e arrogância, sem querer acusar a ninguém, e menos ainda de modo a que este tomasse consciência disso: então o é toda expressão direta para a relação com Deus, toda expressão direta por meio da qual o religioso quer se dar a conhecer. Se a relação com Deus é a mais alta distinção de um ser humano (ainda que esta distinção esteja franqueada a qualquer um), então a expressão direta é arrogância, sim, mesmo a expressão de ser aquilo que se chama de um proscrito, sim, mesmo a mudança da zombaria do mundo a respeito de alguém em uma expressão direta do fato de se ser religioso é arrogância, pois a expressão direta inclui uma acusação indiretamente contra todos os outros, de que não são religiosos. O humano é a interioridade oculta em paixão absoluta; aqui está, mais uma vez, a implicação de que todos os outros têm de ser igualmente capazes de se aproximar de Deus, pois aquele que, em absoluta interioridade, quer estar sabendo que ele é um escolhido, eo ipso carece de interioridade, já que sua vida é comparativa. É este comparativo e relativo que, com bastante frequência, numa ilusão inconsciente, procura uma indulgência que alivia, na forma de mútuas efusões cordiais. O que está absolutamente apaixonado não tem nada a ver com qualquer terceiro; [VII 444] de boa vontade assume que qualquer outro esteja tão apaixonado como ele; não acha ninguém ridículo na qualidade de amante; mas o que considera ridículo é que alguém, na qualidade de amante, se relacione com um terceiro, tal como, ao inverso, todo amante com certeza consideraria ridículo quem quisesse ser um terceiro. A religiosidade da interioridade oculta não se acha melhor do que nenhum outro homem, não pretende sobressair, na relação com Deus, em um modo que não seja possível a qualquer um, e aquele que se humilha diante do ideal nem se considera bom, muito pior do que os outros, mas também sabe que se acaso está presente um terceiro como testemunha (com seu conhecimento, senão seria o mesmo que não haver nenhuma) de que ele se humilhou diante de Deus, então não foi diante de Deus que ele se humilhou. Disso se segue, porém, bem consequentemente, que ele irá justamente participar dos cultos exteriores de adoração do divino; pois em parte sua necessidade de estar lá será como a de todos os outros, em parte porque sua abstenção seria uma tentativa mundana de chamar negativamente atenção sobre si, e, finalmente, porque nenhum terceiro está lá, pelo menos não com o conhecimento da pessoa religiosa. Ela naturalmente assume que cada um que lá está encontra-se lá por conta própria, não para observar os outros, o que nem mesmo é o caso da pessoa que, de acordo com as palavras de um aristocrático proprietário de terras, vai à igreja por causa de seus servos, para se adiantar a eles com um bom exemplo - de como não se deve ir à igreja. O cômico vem à tona pela relação da interioridade oculta com o mundo circundante à medida que o religioso ouve e vê o que produz um efeito cômico quando esse é posto em conexão com a sua paixão interior. Por isso, mesmo se duas pessoas religiosas conversassem uma com a outra, uma produziria um efeito cômico sobre a outra, porque cada uma delas teria continuamente sua interioridade in mente e agora ouve o que a outra diz, paralelo a isso, e o ouve como cômico, pois nenhuma delas ousaria expressar diretamente a interioridade oculta; no máximo, acabariam por desconfiar uma da outra por causa da ressonância humorística. Agora, se há ou se já houve tal religioso, se todos o são ou ninguém, eu não decido, e me é impossível poder decidir. Mesmo se eu fosse realmente um observador, com relação a tal religioso eu jamais iria além de conceber uma suspeita, com base no humorístico - e no que toca a mim, sei muito bem que não sou este religioso. Bem, mas de qualquer modo eu poderia me conceder o prazer de me sentar aqui e experimentar como seria na vida uma pessoa religiosa desse tipo, sem tornar-me especulativamente culpado do paralogismo [VII 445] de concluir do hipotético ao ser, contrariando a velha sentença: conditio non ponit in esse [lat.: a condição não leva ao ser], muito menos de ir do meu pensamento hipotético à conclusão de que ele seja eu mesmo, em virtude da identidade entre pensar e ser. Meu experimento é tão inocente e está tão distante quanto possível de ofender qualquer pessoa, porque não chega perto demais de uma pessoa, dizendo ser ela uma pessoa religiosa, e nem ofendes uma pessoa, negando que o seja. Isto abre a possibilidade de que ninguém o seja e de que todos o sejam - com exceção daqueles a quem isto não chega a ofender, já que eles mesmos dizem que não são religiosos deste modo, quer o digam diretamente, como eu, ou indiretamente, por terem ido mais além. Aqui se teria de incluir um ou outro despertado, que se ofenderia caso se dissesse ser ele uma pessoa religiosa daquele tipo - e meu experimento não deve ofender ninguém. Ele admite de bom grado que um despertado como esse não é o cavaleiro da interioridade oculta; isto é fácil de reconhecer, pois o despertado é fácil de reconhecer. Tal como há uma impiedade que se faz notar e quer ser notada, assim também há uma piedade semelhante, embora convenha prestar atenção à questão de até que ponto esta cognoscibilidade não tem mesmo sua razão de serem que o despertado, subjugado pelo religioso, está doente, e, portanto, a cognoscibilidade é uma inabilidade de que ele mesmo sofre, até que a religiosidade se concentre nele de um modo mais saudável no seu interior. Mas onde a piedade quer ser reconhecida, a situação é diferente. É uma expressão devota e, no sentido mais estrito, piedosa, para a relação com Deus, reconhecer-se como um pecador; há uma impiedade que quer ser conhecida pela obstinação com que vociferando o nega; mas então há este outro lado da cognoscibilidade: se três despertados travam uma contenda entre si para decidir qual deles é o maior de todos os pecadores, uma batalha por esta dignidade: então, é claro, esta expressão piedosa se tornou para eles um título mundano. No século XIX, uma tese proposta pelo Lorde Shaftesbury, que fazia do riso a prova da verdade, provocou uma ou outra pequena investigação para saber se era ou não assim. [VII 446] Em nosso tempo, a filosofia hegeliana quis dar supremacia ao cômico, o que poderia parecer especialmente engraçado da parte da filosofia hegeliana, que, de todas as filosofias, era a menos capaz de suportar um golpe deste ângulo. Na vida cotidiana, a gente ri quando algo se torna risível, e depois de rir assim, às vezes a gente diz: Porém é injustificável que se tome uma coisa dessas como ridícula. Mas se a coisa ficar bem boa de rir, a gente não consegue deixar de espalhar a estória - naturalmente, com a edificante sentença adicional, depois de ter rido: É injustificável que se tome uma coisa dessas como ridícula. A gente não percebe o quão ridículo é que a contradição resida na tentativa fingida de agir de modo ético graças a uma edificante sentença adicional, ao invés de renunciar à sentença antecedente. Quando as coisas chegaram a este ponto, quando o avanço e a generalização da cultura e da polidez, o refinamento da vida, contribuem para o desenvolvimento do senso do cômico, de modo que uma preponderante predileção pelo cômico seja característica de nosso tempo, o qual, tanto no sentido correto quanto no incorreto, parece regozijar-se com a observação aristotélica que eleva o senso do cômico a algo que caracteriza a natureza humana: então o discurso religioso teria de ter estado, há muito tempo, atento ao modo como o cômico se relaciona com o religioso; pois aquilo que ocupa tanto a vida das pessoas, o que repetidamente retoma em conversas, no convívio social, em livros, na modificação de toda a visão da vida, não se permite que o religioso ignore, a não ser que as performances de domingo na igreja sejam uma espécie de indulto em que, com devoção aborrecida, uma pessoa compra, numa hora, permissão para rir durante toda a semana sem se envergonhar. A questão da legitimidade do cômico, de sua relação com o religioso, se ele próprio não tem uma legítima significação no discurso religioso, é uma questão de essencial importância para uma existência religiosa em nosso tempo, no qual o cômico triunfa por toda parte. Exclamar "oh" e "ai" ante esta manifestação só mostra o quão pouco os defensores respeitam o religioso que defendem, pois exigir que o religioso seja instalado com suas prerrogativas na vida cotidiana é algo que mostra muito maior respeito pelo religioso do que mantê-lo afetadamente afastado, a uma distância dominical. [VII 447] A coisa é bem simples. O cômico está presente em qualquer estádio da vida (só que a posição é diferente), pois onde há vida, há contradição, e onde há contradição, o cômico está presente. O trágico e o cômico são o mesmo, na medida em que ambos são a contradição, mas o trágico é contradição sofredora, e o cômico é contradição indolor. (A definição aristotélica (Poética, Capo V): pois o ridículo pode ser definido como um engano ou uma deformação que não produz dor ou dano aos outros, não é de tal natureza que impeça que famílias inteiras do cômico estejam seguras em seu ridículo, e fica de fato duvidoso em que medida a definição, mesmo em relação ao cômico que abarca, não nos coloca em colisão com o ético. Seu exemplo: que a gente ria de uma face feia e retorcida desde que, convém notar, isto não cause dor no que tem tal face, não é totalmente correto nem foi tão felizmente escolhido, de modo que, por assim dizer, de um só golpe explicasse o mistério do cômico. O exemplo carece de reflexão, pois, mesmo que a face retorcida não cause dor, é de fato ainda doloroso ser caracterizado de modo a logo provocar o riso apenas pelo fato de se mostrar a face. É bonito e correto que Aristóteles queira apartar do ridículo aquilo que provoca compaixão, ao qual também pertencem o miserável [Ynkelige] e o digno de lástima [Ynkevaerdige]. Mesmo entre poetas cômicos, aliás de primeira classe, podem-se achar exemplos de uso em que não se emprega o ridículo puro, mas sim com um acréscimo do lastimável ("Trop", p. ex., em algumas cenas é mais digno de pena do que ridículo. O Assoberbado, por outro lado, é de um ridículo sem mistura justamente porque está de posse de todas as condições que se requer para viver de modo feliz e sem aflições). Neste sentido, o exemplo aristotélico carece de reflexão, mas a definição carece desta na medida em que concebe o ridículo como alguma coisa, em vez de ser o cômico uma relação, a discrepância da contradição, mas indolor. - Lançarei aqui, desordenadamente [tumultuarisk], alguns exemplos para mostrar que o cômico está presente onde quer que haja uma contradição, e onde justificadamente se abstrai da dor por esta não ser essencial. Hamlet jura sobre uma tenaz de fogo; o cômico reside na contradição entre a solenidade de um juramento e o atributo que anula o juramento, não importando qual era seu objeto. [VII 448] - Se alguém dissesse: "Ouso arriscar minha vida na aposta de que há, no mínimo, quatro xelins em ouro na encadernação deste livro", isso seria cômico. A contradição reside entre o pathos mais elevado (apostar a vida) e o objeto; o que é aguçado chistosamente pela expressão "no mínimo", que abre a perspectiva para a possibilidade de quatro xelins e meio, como se esta então fosse menos contraditória. - De Holofernes se dizia que tinha a altura de 7 côvados e 1/4. A contradição reside essencialmente nesta última parte. 7 côvados é fantástico, mas o fantástico não costuma usar quartas partes ao contar; "um quarto", como medida, faz recordar a realidade. Aquele que ri dos 7 côvados não ri corretamente, mas quem ri de 7 côvados e 1/4, este sabe do que está rindo. - Quando o pastor gesticula mais, veementemente lá onde a categoria vem de uma esfera mais baixa, isso é cômico. E como se alguém, calmo e indiferente, dissesse: "Eu darei minha vida por minha pátria"; e então com o mais elevado pathos, com gestos e expressão facial, acrescentasse: "Sim, por dez táleres eu o faço". Mas quando isto acontece na igreja, não posso rir disso, porque não sou um espectador [Tilskuer] ,estético, e sim um ouvinte [Tilhorer] religioso, não importa o que o pastor seja. - E genuinamente cômico quando Pryssing diz "este aí [han]" para Trop. Por quê? Porque a relatividade de Mecenas que P. quer fazer valer frente a Trop, por meio desta fala, está em contradição com o ridículo total no interior do qual P. e Trop são homens iguais em bases iguais. - Quando uma criança de quatro anos se dirige a uma criança de três anos e meio e diz, solicitamente: "Vem, meu cordeirinho", isto é cômico, mesmo que se sorria em vez de rir, porque, em si mesma, nenhuma criança é ridícula, e não se sorri sem alguma emoção. Mas o cômico está na relatividade que o pequeno quer fazer valer em relação ao outro pequeno. O que emociona está na maneira infantil com que isto é feito. - Quando um homem solicita uma permissão para trabalhar como estalajadeiro e esta lhe é negada, isto não é cômico; mas se for negada por haver muito poucos estalajadeiros, isto é cômico, porque a razão em favor da solicitação é usada como um motivo contrário. Assim se conta de um padeiro que disse a uma pobre mulher: "Não, mãezinha, a senhora [hun] não vai ganhar nada; há pouco esteve aqui outra que também não ganhou nada; nós não podemos dar para todos". O cômico reside em que ele por assim dizer chega à soma e ao resultado: "todos", ao subtrair. - Quando uma moça solicita permissão para trabalhar como prostituta e esta lhe é negada, isto é cômico. Considera-se corretamente que é difícil se tornar algo respeitável (p. ex., quando alguém solicita tornar-se Monteiro-Mor [Jaegermester: Mestre de caça] [VII 449] e lhe é negado, isto não é cômico), mas a negação de uma solicitação para se tornar algo desprezível é uma contradição. E evidente que, se ela recebe a permissão, isto também é cômico, mas a contradição é outra: que a autoridade legal mostre sua impotência justamente ao mostrar seu poder, seu poder ao dar a permissão, sua impotência ao não poder tornar tal coisa lícita. - Enganos e equívocos são cômicos e devem todos ser explicados pela contradição, não importa o quão complicadas as combinações se tornem. - Quando algo intrinsecamente cômico se tornou rotineiro e pertence à ordem do dia, a gente não liga mais para isso, e não se ri disso, até que se mostre como elevado à segunda potência. Quando a gente sabe que um homem é distraído, a gente se familiariza com isso e não reflete sobre a contradição até que esta ocasionalmente se redobre, quando a contradição consiste em que, aquilo que deveria servir para ocultar a primeira distração, revela uma ainda maior. Como quando um distraído vai com as mãos a uma travessa de espinafre que o garçom está oferecendo, dá-se conta de sua distração, e, para ocultá-la, diz: "Oh, pensei que fosse caviar", pois caviar tampouco se pega com os dedos. - Uma lacuna [Spring: salto] na fala pode ter um efeito cômico porque a contradição é a lacuna junto à representação racional de fala, que é justamente o que faz a conexão [det Sammenhaengende]. Se quem fala é um louco, a gente não ri disto. - Quando um camponês bate à porta de um homem, que é alemão, e conversa com ele para perguntar se por acaso não mora na casa um homem, cujo nome ele esqueceu, mas que havia encomendado uma carga de turfa, e o alemão, impaciente por não conseguir entender o que o camponês está dizendo, exclama, "Das ist doch wunderlich [Mas é estranho]", para a imensa alegria do camponês, que diz: "Certo! O homem se chamava Wunderlich", neste caso, a contradição consiste em que o alemão e o camponês não conseguem conversar um com o outro porque a linguagem é um empecilho, e que, não obstante, o camponês consegue a informação graças à linguagem. - Algo que não seja intrinsecamente ridículo pode, por meio da contradição, evocar o riso. Quando um homem ordinariamente anda por aí vestido de modo estranho e então afinal aparece uma vez bem-vestido, a gente ri disso porque se lembra do outro. - Quando um soldado para na rua olhando fixamente para o esplendor de uma vitrine de uma loja de presentes galantes, e chega mais perto para ver melhor, quando, com sua face realmente incandescente e seus olhos fixos nos adornos da vitrine, não percebe que o vão da entrada avança desproporcionadamente, de modo que ele desaparece no vão justamente quando está para ter uma visão adequada, então a contradição está no movimento, a direção para cima, da cabeça e do olhar, e a direção para baixo, ao cair no vão. Caso ele não estivesse olhando para cima, isso não seria tão risível. Portanto, é mais cômico quando um homem que está andando e olhando para as estrelas cai num buraco do que quando isto acontece a alguém que não está tão elevado acima do mundo terreno. [VII 450] - Portanto, um homem que encheu a cara [em fuld Mand] pode ter um efeito cômico deste tipo porque expressa uma contradição de movimento. O olho exige a regularidade do andar; quanto mais houver alguma razão para insistir nisso, mais cômico será o efeito da contradição (então um ébrio completo [Paerefuld: borracho até as tampas] é menos cômico). Se um chefe, p. ex., vem passando, e o bêbado, atento a ele, quer compor-se e andar reto, o cômico se torna mais nítido porque a contradição também se torna assim. Ele tem sucesso por alguns passos, até que o espírito da contradição mais uma vez o carrega. Caso tenha total sucesso enquanto passa por seu chefe, aí a contradição será outra, é que nós sabemos que ele está bêbado e, no entanto, isto não é visto. No primeiro caso, rimos dele quando cambaleia, porque o olho exige regularidade; no outro caso, rimos dele porque está se mantendo direito quando nosso conhecimento de que ele está bêbado exige vê-lo cambalear. Do mesmo modo, há também um efeito cômico quando vemos um homem sóbrio em uma conversa sincera e íntima com um homem que ele não sabe que está bêbado, mas o espectador está sabendo. A contradição reside na reciprocidade dos dois homens conversando, ou seja, que ela não ocorre, e o sóbrio não se deu conta disso. E cômico, quando na conversação do dia a dia um homem emprega a forma da pergunta retórica do sermão (a qual não exige uma resposta, mas apenas prepara a transição para que ele mesmo responda); é cômico quando aquele com quem ele fala entende mal [misforstaaer] a questão e se prontifica a responder. O cômico reside na contradição entre querer ser orador e ao mesmo tempo interlocutor, ou em querer ser orador numa conversa; o engano da segunda pessoa o torna evidente e constitui um justo castigo [Nemesis], pois aquele que fala de tal modo com outra pessoa, indiretamente diz: Nós dois não conversamos, mas quem fala sou eu. - A caricatura é cômica, de que modo? Graças à contradição entre semelhança e dessemelhança; a caricatura precisa assemelhar-se a alguém, e mais, a uma pessoa real, definida; se não se assemelha a absolutamente ninguém, não é cômica, e sim uma tentativa direta de fantasia insignificante. - A sombra de um homem numa parede, enquanto a gente se senta e conversa com ele, pode ter um efeito cômico, porque é a sombra do homem com quem a gente está conversando (a contradição: que a gente, ao mesmo tempo, vê que ela não é ele). Se alguém vê a mesma sombra na parede, mas sem que haja ninguém, ou se alguém vê a sombra e não vê o homem, então isso não é cômico. Quanto mais se acentua a realidade do homem, tanto mais cômica se torna a sombra. Se alguém se deixa cativar, p. ex., pela expressão facial, pelo som agradável da voz, e pela propriedade dos comentários - e então no mesmo instante vê a sombra formando uma careta - o efeito cômico é o maior de todos, a não ser que isto magoe. Se aquele com quem se está conversando é um néscio, a sombra não tem tanto efeito cômico, na medida em que até satisfaz a gente ver que, de algum modo, se assemelha a ela ideal mente. [VII 451] - O contraste produz um efeito cômico pela contradição, qualquer que seja a relação: quer se use o que em si e por si não é ridículo para ridicularizar aquilo que é ridículo [latterligt: risível], ou o ridículo ridicularize o que em si e por si não é ridículo, ou o ridículo e outro ridículo se ridicularizem reciprocamente, ou que o não ridículo, em si e por si, e outra coisa não ridícula, em si e por si, se tornem ridículos ao serem relacionados. - É cômico, quando um pastor teuto-dinamarquês (usando Flaesk para traduzir Fleisch), proclama do púlpito: "O Verbo se fez carne de porco". O cômico não está exatamente na contradição comum que surge quando alguém fala uma língua estrangeira que não conhece bem, e evoca com esta palavra um efeito completamente diferente do que desejava evocar; mas porque é um pastor e está a pregar, a contradição se aguça, já que o falar, em relação ao sermão de um pastor, só é usado num sentido mais especial, e o mínimo que se assume como dado é que ele seja competente para falar a língua. Além disso, a contradição também roça o domínio ético: que se pode, inocente, tornar-se culpado de uma blasfêmia. - Quando, caminhando pelo cemitério, se lê numa lápide as efusões, em verso, de um homem que lamenta em três linhas a perda de seu filhinho, até que finalmente prorrompe no verso, "Consola-te, razão, ele vive!", e se vê que esta efusão está assinada: Hilário, Carrasco - isto por certo produz um efeito cômico em todos. Primeiro, o próprio nome (Hilário), nesta conexão, produz um efeito cômico; involuntariamente pensa-se: Bem, se um homem se chama Hilário, não surpreende que saiba consolar-se! Então vem sua dignidade como carrasco. É verdade que todo ser humano pode ter sentimentos, mas há ainda certas ocupações que não conseguem ser percebidas numa relação próxima com o sentimento. Enfim, a irrupção: "Consola-te, razão!" Pois que a um professor de Filosofia possa ocorrer confundir-se a si mesmo com a razão, ainda daria para pensar, mas no caso de um carrasco isso não daria tão certo. Se alguém disser que o carrasco não se dirige a si mesmo (Consola-te, homem racional!), mas à razão, aí a contradição se torna até mais cômica, pois, diga-se o que se quiser sobre a razão em nossa época, ainda será, contudo, ousado demais admitir que ela esteja por desesperar com o pensamento de que Hilário perdeu seu filho. - Que bastem estes exemplos, e a quem esta nota [de rodapé] perturbar, que a deixe sem ler. Facilmente se verá que os exemplos não foram reunidos com cuidado, mas também que não são restos de naufrágio de estetas. Certamente há bastante de cômico [VII 452] por toda parte e a qualquer momento, se se tiver um olho para tal; dever-se-ia poder avançar à vontade se, tendo clareza sobre onde se deve rir, não se soubesse ao mesmo tempo onde não se deve rir. Deixemos que o cômico participe; tão pouco como chorar é indecente [usaedelig: imoral], tampouco é indecente rir. Mas assim como é indecente/imoral andar por aí lamentando a todo o momento, também é indecente/imoral abandonar-se à excitação da indefinição que se encontra no ato de se rir quando não se sabe direito se se deve rir ou não, de modo que não se tenha alegria do riso, e que se torne impossível lamentar-se se se riu no lugar errado. A razão pela qual o cômico se tornou tentador em nossa época é que o próprio cômico quase parece desejar a aparência de coisa ilícita, a fim de ter o fascínio pelo proibido e, por sua vez, como o proibido, sugerir que o riso possa consumir tudo. Ainda que eu, qua autor, não tenha muito do que me orgulhar, estou contudo orgulhoso na consciência de que dificilmente abusei de minha pena no que toca ao cômico, jamais lhe permiti estar a serviço do momento, nunca empreguei a interpretação cômica a qualquer coisa ou a qualquer pessoa sem antes ver, pela comparação de categorias, de que esfera vinha o cômico e como estava relacionado à mesma coisa ou à mesma pessoa interpretada com pathos. Dar-se conta corretamente daquilo em que reside o cômico é algo que também satisfaz, e muita gente poderia talvez perder o riso se o compreendesse; mas uma pessoa assim jamais teve realmente um senso de comi cidade, e contudo é com o riso de tais pessoas que contam aqueles que são canhestros [litske] no cômico. Haveria talvez também aquele que só consegue ser comicamente produtivo na traquinagem e na animação exagerada, alguém que, caso se lhe dissesse, "Lembra-te que és eticamente responsável pelo uso que fazes do cômico", e ele se desse tempo para refletir sobre este aviso, poderia perder sua vis comica [lat.: vigor cômico]. Contudo, no que toca ao cômico, é o exato oposto que dá a ele seu cerne e o impede de soçobrar. Traquinagem e exagero de animação como poderes produtivos resultam na risada aguda da indefinição e excitação sensível, o que é extraordinariamente diferente do riso que acompanha a calma transparência do cômico. Quem quiser passar por uma boa escola deverá, por algum tempo, abster-se de rir daquilo que desperta paixão antipática, na qual forças sombrias podem tão facilmente arrebatar alguém, e exercitar-se em enxergar o cômico na pessoa ou na coisa que se quer tratar, onde a simpatia e o interesse, sim, a predileção, formam a resistência formadora contra o desatino). Que aquilo que a interpretação cômica vê comicamente possa provocar [VII 448] na figura cômica um pretenso sofrimento, não altera em nada a questão. Assim, seria incorreto, por exemplo, conceber comicamente o Assoberbado. A sátira também provoca dor, [VII 449] mas esta dor é teleologicamente dialética em direção à cura. A diferença entre o trágico e o cômico consiste [VII 450] na relação da contradição com a ideia. A interpretação cômica [VII 451] produz a contradição ou permite que esta se revele ao ter in mente a saída; por isso, a contradição é indolor. A interpretação trágica vê a contradição e desespera da saída. [VII 452] É evidente que isso deve ser entendido de tal modo que as diferentes nuanças, por sua vez, obedeçam à dialética qualitativa das esferas, a qual condena a arbitrariedade subjetiva. Se acaso alguém quisesse tornar tudo cômico com nada, ver-se-ia prontamente que sua comicidade é irrelevante, [VII 453] pois esta carece de apoio em alguma esfera, e o próprio inventor poderia tornar-se cômico do ponto de vista da esfera ética, porque ele próprio, enquanto um existente, precisa ter seu apoio na existência, de um modo ou de outro. Se alguém dissesse: O arrependimento é uma contradição, ergo ele é cômico - ver-se-ia prontamente que é insensatez. O arrependimento reside na esfera ético-religiosa e, portanto, é determinado de tal modo que tem acima dele apenas uma esfera, a saber, o religioso no sentido mais estrito. Mas não seria isto, é claro, o que se usaria para tornar ridículo o arrependimento, ergo, usar-se-ia algo mais baixo e, nesse caso, o cômico é ilegítimo ou algo quimericamente superior (a abstração), e, nesse caso, o tipo risonho é, ele próprio, cômico, tal como tenho frequentemente apontado acima em relação aos especulantes, a saber, que, ao se tornarem fantásticos e ao terem desta maneira chegado ao ponto mais alto da estrada, se tornaram cômicos. O inferior nunca pode fazer com que o superior fique cômico, isto é, não pode interpretar o mais alto como cômico, e não tem o poder de fazê-lo cômico; coisa bem diferente é que o inferior, ao ser unido ao superior, possa fazer a relação ficar ridícula. Assim, um cavalo pode também ocasionar que um homem se mostre ridículo, mas o cavalo não tem o poder de torná-lo ridículo. Os diferentes estádios da existência ocupam suas respectivas posições a partir de sua relação com o cômico, conforme tenham o cômico neles ou fora deles, todavia não no sentido de que o cômico devesse ser o que há de mais elevado. A imediatidade tem o cômico fora dela, pois onde quer que haja vida, há contradição, mas na imediatidade não há contradição, portanto, esta vem de fora. O senso comum limitado interpretará a imediatidade comicamente, mas, ao fazê-lo, torna-se, ele próprio, cômico, pois aquilo que supostamente deve justificar sua comicidade é que ele facilmente conhece o caminho de saída, mas a saída que ele conhece é ainda mais cômica. Este é um cômico injustificado. Onde quer que haja uma contradição e não se conheça a saída, não se saiba a contradição suspensa e justificada num mais elevado, a contradição não será indolor (Contudo, isto deve ser entendido de tal modo que a gente não esqueça que desconhecer a saída pode ser interpretado como cômico. Assim, o Assoberbado é cômico, porque é cômico que um homem sensato, e próspero, não conheça o caminho de saída de toda essa bobagem de papelada de escritório, a saída que bem simplesmente consiste não em contratar mais outros escreventes para conferir as anotações, mas sim em mostrar a todos a porta da rua), e onde a justificação é algo de quimericamente mais elevado (da coberta de penas para a palha), é ainda mais cômico porque a contradição é maior. É assim na relação entre a imediatidade [VII 454] e o senso comum limitado. Assim também o cômico do desespero é injustificado, porque o desespero justamente não conhece nenhuma saída, não conhece a contradição suspensa e deve, portanto, interpretar a contradição como trágica; o que é justamente o caminho para a sua cura. Aquilo pelo qual o humor é justificado é seu lado trágico, que ele se reconcilia com a dor da qual o desespero quer abstrair, embora este não conheça nenhuma saída. Ironia se justifica em relação com a imediatidade, porque o equilíbrio, não como a abstração, mas como arte da existência, é mais elevado do que a imediatidade. Por isso, só um irônico existente está justificado na relação com a imediatidade; a ironia total, de uma vez por todas, como um achado barato, no papel, é injustificada, como toda abstração, em relação a qualquer esfera da existência. Com efeito, ironia por certo é a abstração, e a composição abstrata, mas a justificação do irônico existente reside em que ele próprio, existindo, expressa que ele aí conserva a sua vida, e não se enfeita com a grandiosidade da ironia enquanto ele mesmo leva sua vida em filistinismo; pois neste caso sua comicidade seria injustificada. A imediatidade tem o cômico fora dela; a ironia o tem em si mesma. (Aristóteles faz o comentário (Retórica, 3, 18): A ironia convém mais a um homem livre do que a bufonaria; o irônico brinca para se divertir, o bufão, para divertir os outros. O próprio irônico goza o cômico, contrastando com o bufão, que está a serviço dos outros ao tornar uma coisa risível. Portanto, um irônico que precisa da ajuda de parentes e amigos e de aplausos para gozar o cômico é eo ipso um irônico medíocre, e está no caminho de se tornar um scurra [lat.: galhofeiro], Mas também em outro sentido o irônico tem o cômico dentro de si mesmo e, ao se tornar consciente disso, se assegurou de não tê-lo fora de si. Tão logo um irônico existente escorrega de sua ironia, torna-se cômico, como se, p. ex., Sócrates se tivesse tornado patético no dia do julgamento. Aqui reside justamente o justificado, quando a ironia não é um achado impertinente, mas sim uma arte da existência, pois neste caso um irônico resolve tarefas maiores do que um herói trágico, justamente por seu irônico autodomínio). O ético que tem ironia como seu incógnito é capaz, por sua vez, de ver o cômico na ironia, mas só tem legitimação para o ver ao manter-se continuamente no ético e, portanto, o vê apenas como algo constantemente evanescente. [VII 455] O humor tem o cômico em si, é justificado no humorista existente (pois o humor de uma vez por todas, in abstracto, é, como tudo o que é abstrato, injustificado; o humorista se justifica ao ter sua vida nisso), ele só não está justificado em relação ao religioso, mas justifica-se em relação a tudo o que se faz passar por religiosidade. A religiosidade que tem humor como seu incógnito é capaz, por sua vez, de ver o humorístico de forma cômica, mas só tem justificação para isso ao, constantemente, manter-se a si mesma, em paixão religiosa, orientada para a relação com Deus, e, portanto, o vê apenas como algo constantemente evanescente. Agora chegamos ao limite. A religiosidade que é interioridade oculta é eo ipso inacessível à interpretação cômica. Não pode ter o cômico fora de si mesma justamente porque ela é interioridade oculta e, por conseguinte, não pode entrar em contradição com algo. Aquela contradição que o humor domina, a mais alta abrangência do cômico, foi ela mesma que trouxe à consciência e a tem junto a si mesma como algo mais baixo. Deste modo, ela está absolutamente armada contra o cômico, ou está protegida pelo cômico contra o cômico. Quando por vezes a religiosidade na Igreja e no Estado buscou ajuda no legislador e na polícia para proteger-se do cômico, a intenção pode ter sido muito boa; mas uma questão é até que ponto o determinante em última instância é algo de religioso; e é uma injustiça contra o cômico considerá-lo como um inimigo do religioso. Tampouco como a dialética, tampouco o cômico é um inimigo do religioso - ao qual, ao contrário, tudo serve e obedece. Mas aquela religiosidade que essencialmente tem pretensão de exterioridade, que essencialmente torna a exterioridade comensurável, deve decerto precaver-se e temer mais por si mesma (que não se transforme em estética) do que ter medo do cômico, o qual poderia legitimamente ajudá-la a abrir os olhos. Muita coisa no catolicismo pode servir de exemplo para isso. No que toca ao indivíduo, aí vale o seguinte: o [indivíduo] religioso que quer que tudo seja sério, talvez tão sério quanto ele mesmo, porque ele é tolamente sério, está numa contradição; e o religioso que não conseguisse suportar, se tivesse de acontecer, que todos rissem daquilo que o ocupa absolutamente, carece de interioridade e, por isso, quer consolar-se com a ilusão dos sentidos de que muitas pessoas são da mesma opinião que ele, sim, do mesmo parecer, e quer ser edificado em acrescentando o histórico-universal ao seu bocadinho de realidade efetiva, "dado que agora de fato por toda parte começa a se agitar uma nova vida, o anunciado novo ano com visão e coração para a causa". [VII 456] A interioridade oculta é inacessível ao cômico, o que também se pode ver a partir do fato de que se tal religioso pudesse ser subitamente incitado a fazer valer sua religiosidade no exterior, se, por exemplo, esquecesse de si mesmo e entrasse em conflito com um religioso da espécie comparativa, e de novo esquecesse de si mesmo e da exigência absoluta da interioridade ao querer ser comparativamente mais religioso do que o outro: nesse caso, ele seria cômico, e a contradição consistiria em querer ser simultaneamente visível e invisível. Contra formas pretensiosas de religiosidade, o humor usa legitimamente o cômico, justamente porque um religioso deve por certo conhecer, por si mesmo, a saída, desde que o queira. Se tal não se pode assumir, então tal concepção se torna duvidosa no mesmo sentido como o seria a concepção cômica do Assoberbado [de Holberg], se ficasse estabelecido que realmente era insano. A lei do cômico é bem simples: ele está em toda parte em que haja contradição e onde a contradição seja indolor por ser vista como superada, já que o cômico certamente não anula a contradição (ao contrário, faz com que ela se torne manifesta), mas o cômico justificado pode fazê-lo; de outro modo, ele não estaria justificado. O talento reside em ser capaz de descrevê-lo in concreto. O teste para o cômico está em verificar que relação entre as esferas o enunciado cômico inclui; se a relação não está correta, o cômico é injustificado; e uma comicidade que não mora em absolutamente nenhum lugar é eo ipso injustificada. O sofístico em conexão com o cômico tem por isso seu refúgio no nada, na pura abstração, e está expresso por Górgias na abstração: aniquilar a seriedade por meio do cômico, e o cômico por meio da seriedade (cf. ARISTÓTELES. Retórica, 3, 18). Aqui é com lixo que tudo se quita, e facilmente se descobre o equívoco de que um existente se tenha transformado em um fantástico X; pois ainda tem de ser afinal um existente o que quer usar este procedimento, o que só torna a ele mesmo ridículo, quando se aplica a ele a fórmula de exorcismo contra os especulantes que já foi mostrada acima: "Posso ter a honra de perguntar com quem tenho a honra de falar, se se trata de um ser humano etc.?" Górgias aterrissa, com efeito, com sua descoberta, nos fantásticos arrabaldes do puro ser, porque, quando ele aniquila um por meio do outro, então sobra nada. Contudo, Górgias, mais provavelmente, apenas desejava descrever a esperteza de um advogado manhoso, que vence ao trocar sua arma com a arma de seu opositor; [VII 457] mas um advogado chicaneiro não é nenhuma instância legítima em relação ao cômico; pode esperar sentado pela legitimação - e se contentar com o lucro, que todos sabem que sempre foi o resultado favorito dos sofistas - dinheiro, dinheiro, dinheiro, ou qualquer coisa que esteja no mesmo nível deste. Na esfera religiosa, quando esta é mantida pura na interioridade, o cômico está a serviço. Poder-se-ia dizer, por exemplo, que o arrependimento é uma contradição, ergo, há nele algo de cômico, certamente não para o estético ou para o senso comum limitado, que são inferiores, ou para o ético, que tem sua força nesta paixão, ou para a abstração, que é fantástica e, por isso, inferior (foi o querer interpretar, deste ponto de vista, como cômico [o arrependimento], o que rejeitamos como sem sentido no precedente), mas para o próprio religioso, que conhece um remédio para isso, uma saída. Porém não é assim; o religioso não conhece nenhum remédio para o arrependimento que abstraia do arrependimento; o religioso, ao contrário, usa continuamente (Daí provém igualmente que mesmo quando o religioso concebe o sofrimento estético com certo traço cômico, ele o faz com delicadeza, porque se reconhece que este sofrimento terá sua hora. O arrependimento, em contraste, visto religiosamente, não terá sua hora para então passar; a incerteza da fé não terá sua hora para então passar; a consciência do pecado não terá sua hora para então passar: neste caso retomaríamos ao estético) o negativo como sua forma essencial, a consciência do pecado é assim um elemento determinado copertencente à consciência do perdão do pecado. O negativo não é de uma vez por todas e então o positivo, mas o positivo está continuamente no negativo, e o negativo é a marca distintiva, assim, o princípio regulador: ne quid nimis [lat.: nada em demasia] não pode ser empregado aqui. Quando o religioso é interpretado esteticamente, quando a indulgência por quatro xelins é pregada na Idade Média, e se assume que com isto se quita a questão, se alguém quer se agarrar a esta ficção: então o arrependimento há de ser concebido como cômico, então a pessoa contrita pelo arrependimento é tão cômica como o Assoberbado, contanto que tenha os quatro xelins, pois a saída é realmente tão fácil, e, nesta ficção, se assume afinal que esta é a saída. Mas todo este galimatias é consequência de o religioso ter se tornado uma farsa. Mas, no mesmo grau em que se aboliu o negativo na esfera religiosa, ou se faz com que ele seja de uma vez por todas e com isso baste, no mesmo grau o cômico se afirmará contra o religioso, [VII 458] e com direito - porque o religioso se tornou estética e contudo ainda quer ser o religioso. Encontram-se bem frequentemente exemplos de um esforço mal-entendido para afirmar o patético e o sério em um sentido risível, supersticioso, como um bálsamo universal da felicidade, como se a seriedade fosse, em si e por si mesma, um bem ou algo a ser tomado sem receita; então tudo estaria bem desde que se fosse sério, só sério e sempre sério, mesmo que muito estranhamente acontecesse que a gente nunca tivesse sido sério no lugar certo. Não, tudo tem sua dialética, sua dialética com a qual, convém notar, a coisa não se torna sofisticamente relativa (isto é a mediação), mas com a qual o absoluto se torna distinguível como o absoluto em virtude do dialético. Portanto, é tão questionável, justamente tão exatamente questionável, ser patético e sério no lugar errado, tanto como rir no lugar errado. Nós, unilateralmente, dizemos que um tolo ri o tempo todo, porque decerto é verdade que é tolice rir o tempo todo; mas é unilateral rotular de tolice só o abuso do riso, dado que a tolice é igualmente grande e igualmente perniciosa quando se expressa pelo fato de se ser também todo o tempo seriamente tolo. §3 A expressão decisiva do pathos existencial é culpa - Que a investigação anda para trás ao invés de para frente - O eterno recordar da culpa é a mais alta expressão da relação da consciência de culpa para com uma beatitude eterna - Expressões mais baixas da consciência de culpa e formas de reparação que lhes correspondem - A penitência autoinfligida - Humor - A religiosidade da interioridade oculta O leitor dialético verá facilmente que a investigação anda para trás, ao invés de para frente. No § 1, a tarefa foi posta: relacionar-se ao mesmo tempo de modo absoluto com o absoluto e de modo relativo com os [fins] relativos. Justo quando o começo tinha de ser feito aqui, mostrou-se que primeiro a imediatidade tinha de ser ultrapassada, ou que o indivíduo tinha de morrer para ela, antes que se pudesse falar de realizar a tarefa do § 1. O § 2 fez do sofrimento a expressão essencial do pathos existencial, sofrimento como o morrer para a imediatidade, sofrimento como a marca distintiva na relação de um existente com o absoluto. No § 3, faz-se da culpa a expressão decisiva para o pathos existencial, e a distancia em relação à tarefa do § 1 fica ainda maior, contudo não de tal modo que a tarefa seja esquecida, [VII 459] mas de modo a que a investigação, de olho nela, aprofundando-se na existência, ande para trás. Com efeito, é assim que ocorre na existência, e a investigação procura imitá-lo. In abstracto e no papel isto é mais fácil de fazer. Ali se propõe a tarefa, faz-se do indivíduo algo de abstrato que, de todas as maneiras, está à disposição tão logo a tarefa seja proposta - e então se está pronto. Na existência, o indivíduo é uma concreção, o tempo é concreto, e mesmo enquanto o indivíduo para para pensar, ele é eticamente responsável pelo emprego do tempo. A existência não é uma coisa abstrata feita às pressas, mas um esforçar-se e um contínuo "entrementes"; mesmo no instante em que a tarefa é posta, algo já se perde, porque entrem entes se existiu, e o começo não foi prontamente feito. Assim a coisa anda para trás: a tarefa é trazida ao indivíduo na existência, e justamente quando quer jogar-se nela com vontade (o que contudo só pode ser feito in abstracto e no papel, porque o hábito daquele que abstrai: calças folgadas de esbanjador, é bem diferente do daquele que existe: a camisa de força da existência), e quer começar, descobre-se que outro começo é necessário, o começo de um enorme rodeio que é morrer para a imediatidade; e justo quando o começo está para ser feito aqui, descobre-se que, já que o tempo do entrementes passou, foi feito um mau começo, e que o começo deve ser feito por um tornar-se culpado, e a partir desse instante a culpa total, que é decisiva, pratica usura com nova culpa. A tarefa parecia ser tão sublime, e se pensou "elas por elas", assim como a tarefa é, tem que ser aquele que deve realizá-la, mas então vem a existência com um aber [al.: porém] depois do outro, então vem o sofrimento como uma determinação mais próxima, e se pensou: Ora, um pobre existente tem que suportá-lo, dado que está na existência; mas então chega a culpa como a determinação decisiva: agora o existente está realmente em apuros, isto é, agora está no âmbito da existência. E, contudo, este andar para trás é um progresso, na medida em que aprofundar-se em algo é avançar. In abstracto e no papel, o que constitui o engano é que o indivíduo deva, tal como Ícaro, sair voando rumo à tarefa ideal. Mas tal progresso é, enquanto quimérico, um puro retrocesso, e cada vez que um existente começa algo assim, o inspetor da existência (o ético) lhe chama a atenção de que está se fazendo culpado, mesmo que ele próprio não atente a isto. Por outro lado, quanto mais o indivíduo se aprofunda na existência, mais avança, [VII 460] mesmo que a expressão, se quisermos, recue. Mas assim como toda deliberação mais profunda é um retomar aos fundamentos, assim também o chamado de volta da tarefa para o mais concreto é justamente um aprofundar-se na existência. Em comparação com a totalidade da tarefa, o realizar um pouco dela é um retrocesso, e, contudo, é um avanço em comparação com: a tarefa toda e absolutamente nada realizado. Li em algum lugar um sumário de um drama indiano - o drama mesmo eu não li. Dois exércitos estão parados frente a frente. Justo quando a batalha vai começar, o comandante mergulha em pensamentos. Com isto inicia-se o drama que contém seus pensamentos. É assim que se mostra a tarefa para um existente, por um instante ela ilude, como se esta vista fosse a coisa toda, como se ele agora estivesse pronto (pois o início sempre tem uma certa semelhança com o fim), mas aí a existência interfere, e quanto mais ele, agindo, lutando, aprofunda-se na existência (este é o traço distintivo essencial do âmbito da existência, um pensador abstrai mais ou menos da existência), mais distante está da tarefa na tarefa. Mas como a consciência da culpa pode tornar-se a expressão decisiva para a relação patética de um existente para com uma felicidade eterna, e de tal modo que qualquer existente que não tenha esta consciência, não esteja eo ipso relacionando-se com sua felicidade eterna? Dever-se-ia pensar, afinal, que esta consciência é a expressão de que alguém não está em relação com a felicidade eterna, expressão definitiva de que esta pessoa está perdida, e a relação abandonada. A resposta não é difícil. Justamente porque é um existente que deve relacionar-se com ela, mas a culpa é a mais concreta expressão da existência, a consciência da culpa é a expressão desta relação. Quanto mais abstrato é o indivíduo, tanto menos ele se relaciona com uma felicidade eterna e mais se distancia também da culpa; pois a abstração põe a existência em indiferença, mas culpa é a expressão da mais forte autoafirmação da existência e, afinal, é um existente que deve relacionar-se com uma felicidade eterna. Entretanto, a dificuldade é decerto outra; pois, enquanto a culpa é explicada pela existência, o existente parece ter sido feito sem culpa; parece que ele tem de conseguir [VII 461] sacudir de si a culpa sobre aquele que o pôs na existência, ou sobre a própria existência. Nesse caso, a consciência da culpa não é outra coisa senão uma nova expressão para o sofrimento na existência, e a investigação não terá chegado além daquela do § 2, e, por isso, o § 3 deveria afinal ser suprimido ou tratado como um apêndice ao § 2. Portanto, o existente poderia empurrar a culpa, de si mesmo para a existência, ou para aquele que o pôs na existência, e deste modo ficar sem culpa. Atentemos, de modo dialeticamente bem simples, sem [provocar] nenhuma trovoada ética, para onde estamos indo. O procedimento proposto contém uma contradição. Jamais poderá ocorrer àquele, que é essencialmente inocente, empurrar a culpa para longe de si; pois o inocente não tem absolutamente nada a ver com a categoria da culpa. Portanto, quando num caso particular, alguém empurra a culpa para longe de si mesmo e acredita ser inocente, faz neste mesmo momento uma confissão, de que ele, em última análise, é alguém que essencialmente é culpado, só que, neste aspecto particular, possivelmente não seria culpado. Mas aqui não se trata, por certo, de um caso particular, no qual alguém que, reconhecendo-se como essencialmente culpado precisamente por sua justificação, empurra a culpa para longe de si, mas sim da relação essencial de um existente na existência. Mas isto de querer essencialmente jogar para longe de si mesmo a culpa, isto é, a determinação total da culpa, para assim tornar-se inocente, é uma contradição, dado que este comportamento é justamente uma autoacusação. Se vale para qualquer determinação, mais vale para a "culpa": ela captura; sua dialética é tão ardilosa que aquele que se justifica totalmente justamente se denuncia, e aquele que se justifica parcialmente, denuncia-se totalmente. Contudo, isto não significa o mesmo que o velho adágio: qui s'excuse accuse [fr.: Quem se escusa, (se) acusa]. O provérbio quer dizer que aquele que se defende ou se desculpa com relação a algo, pode fazê-lo de tal modo que acaba acusando-se desta mesma coisa, assim que a desculpa e a acusação referem-se à mesma coisa. Não é este o significado aqui; não, quando alguém realmente se desculpa no particular, ele se denuncia no todo. Qualquer um que não viva apenas comparativamente logo atentará para isto. No dia a dia da vida, a culpa total, como algo que é universalmente dado, pouco a pouco se torna tão pressuposta, que acaba esquecida. E, contudo, é esta totalidade da culpa que em última instância torna possível para alguém ser culpado ou não culpado no caso particular. Aquele que é total ou essencialmente inocente não pode de jeito nenhum ser culpado no caso particular, mas aquele que é totalmente culpado pode muito bem ser inocente num caso particular. Portanto, não apenas por ser culpado no particular [VII 462] ele se denuncia como sendo essencialmente culpado (totum est partibus suis prius [lat.: o todo tem prioridade sobre suas partes]), mas igualmente por ser inocente neste caso particular (tatum est partibus suis prius). A prioridade da culpa total não é nenhuma determinação empírica, nenhuma summa summarum, pois uma determinação de totalidade jamais aparece numericamente. A totalidade da culpa nasce para o indivíduo quando este conecta a sua culpa, seja ela apenas uma, seja a mais insignificante de todas, à relação com uma felicidade eterna. Foi por isso que começamos dizendo que a consciência da culpa é a expressão decisiva para a relação com uma felicidade eterna. Aquele que não se relaciona com esta, jamais chegará a compreender-se como total ou essencialmente culpado. A mínima culpa, mesmo que o indivíduo daí em diante fosse um anjo, quando conectada à relação para com uma felicidade eterna, é o suficiente; pois a conexão dá a determinação da qualidade. E no pôr em conexão consiste todo aprofundamento na existência. Comparativamente, relativamente, diante de um tribunal humano, percebida na memória (em vez de na recordação da eternidade), uma única culpa (entendida coletivamente) não é, de jeito nenhum, suficiente para tanto; tampouco o é a soma de todas elas. O nó, entretanto, está em que é simplesmente antiético levar sua vida no comparativo, no relativo, no exterior, e ter o tribunal policial, o tribunal de conciliação [de pequenas causas], um jornal, ou alguns notáveis da província, ou a plebe da capital, como a última instância em relação a si mesmo. Nos teólogos ortodoxos mais antigos, quando defendem a eternidade das penas do inferno, lemos a determinação de que a magnitude do pecado requer tal punição, e que a magnitude do pecado, por sua vez, define-se por ser um pecado contra Deus. O que há de ingênuo e exterior nisso é o fato de que, realmente, pareça ser uma corte, um tribunal, uma terceira parte, que delibera e vota nesta causa entre Deus e homem. Assim sempre aparece algo de ingênuo e exterior, tão logo um terceiro fala sobre aquilo que diz respeito essencialmente ao indivíduo, justamente em sua isolação diante de Deus. O ingênuo e o exterior desaparecem completamente quando é o próprio indivíduo que põe a representação de Deus em conexão com a representação de sua culpa, mesmo que esta agora fosse tão pequena - não, alto lá, isso o indivíduo não sabe, pois isso, afinal, é o comparativo, que desencaminha. Quando a representação de Deus a acompanha, a determinação de culpa se transforma em uma determinação de qualidade. Colocada em conexão com o comparativo como critério, a culpa se torna algo quantificável; [VII 463] confrontada com a qualidade absoluta, a culpa se torna dialética como qualidade. (No discurso religioso, acham-se às vezes exemplos da tática oposta, quando o orador religioso, trovejando culpa sobre a cabeça do indivíduo, quer comparativamente introduzir o indivíduo à força na totalidade da consciência da culpa. Isso justamente não se deixa fazer; e quanto mais ele troveja, quanto mais abominável ele o torna em comparação com os outros homens, tanto menos alcança o que pretendia, e quando ele gesticula com a maior veemência, está muito mais longe disso, para nem falar da olhadela irônica que isso proporciona sobre o estado da alma de Sua Reverência. A coisa vai melhor de outra maneira, quando o orador religioso, "humilde diante de Deus, submisso à majestade real do ético", em temor e tremor pelo que se refere a si mesmo, conecta a culpa com a representação de uma felicidade eterna, assim o ouvinte não se inflama, mas é influenciado indiretamente à medida que lhe parece que o pastor estava falando apenas sobre si mesmo. Na tribuna, constitui um gesto soberbo apontar o dedo acusativamente para Catilina quando ele está lá sentado, no púlpito é melhor bater no próprio peito, especialmente quando o discurso trata da totalidade da culpa; pois quando o pastor bate em seu próprio peito, impede toda comparação; se apontar o dedo para si mesmo, teremos então de novo o comparativo). A infantilidade e a consciência de culpa comparativa se caracterizam por não captarem a exigência da existência: pôr em conexão. Assim, a infantilidade, em relação ao pensar, se distingue por pensar apenas ocasionalmente, por ocasião disto ou daquilo, e então, outra vez, sobre outra coisa, se caracteriza por não ter, bem no fundo, um pensamento único, mas muitos pensamentos. No que toca à consciência de culpa, a infantilidade admite que hoje, por exemplo, é culpada disso e daquilo, então por oito dias é inocente, mas então no nono dia tudo dá errado outra vez. A consciência de culpa comparativa se caracteriza por ter seu critério fora dela mesma, e quando o pastor no domingo usa um critério muito elevado (sem, contudo, usar o da eternidade), parece ao que faz a comparação ser terrível aquilo de que se tornou culpado; em boa companhia na segunda-feira, isso já não lhe parece tão ruim, e assim o contexto externo vai determinando uma interpretação completamente diferente, que, contudo, apesar de suas variações, perde sempre uma coisa: a determinação essencial da eternidade. [VII 464] Portanto, a consciência essencial de culpa é o maior aprofundamento possível na existência, e simultaneamente expressa que um existente relaciona-se com uma felicidade eterna (a consciência infantil e comparativa da culpa relaciona-se consigo mesma e com o comparativo), é a expressão da relação ao expressar a relação falha. (Isto é: no interior da determinação de totalidade, na qual agora nos encontramos. O leitor se recordará (da segunda seção, Cap. II, por ocasião da discussão das Migalhas) de que o acentuar paradoxal da existência mergulha paradoxalmente na existência. Isto é o especificamente crístico [det specifike Christelige] e vai reaparecer na Seção B. As esferas se relacionam da seguinte maneira: imediatidade; senso comum finito; ironia; ética com a ironia como incógnito; humor; religiosidade com humor como incógnito - e então, finalmente, o crístico, reconhecível pela acentuação paradoxal da existência, pelo paradoxo, pela ruptura com a imanência e pelo absurdo. Portanto, religiosidade com humor como incógnito não é ainda religiosidade crística. Mesmo que esta seja também interioridade oculta, relacionase com o paradoxo. É claro que o humor também tem a ver com paradoxos, mas também continuamente limita-se ao interior da imanência, e continuamente parece estar consciente de outra coisa - daí o gracejo). Contudo, por mais que a consciência seja sempre tão decisiva, é ainda sempre a relação que suporta a não relação, só que o existente não consegue segurar a relação porque a relação falhada posiciona-se continuamente no meio como expressão para a relação. Mas, por outro lado, não se repelem mutuamente (a felicidade eterna e o existente), de tal modo que a ruptura se constitua como tal, ao contrário, é só por se manter unida que a não relação se repete como a consciência decisiva da culpa essencial, não desta ou daquela culpa. Quer dizer, a consciência da culpa como essencial reside por certo ainda na imanência, diferentemente da consciência do pecado. Na consciência da culpa, é o mesmo sujeito que, ao pôr a culpa em conexão com a relação para com uma felicidade eterna, torna-se essencialmente culpado, porém a identidade do sujeito é de tal forma que a culpa não transforma o sujeito em outro, o que é a expressão para a ruptura. Mas uma ruptura, em que consiste a acentuação paradoxal da existência, não pode intrometer-se na relação entre um existente e o eterno, porque o eterno em toda parte abrange o existente, e por isso a não relação permanece no interior da imanência. Caso a ruptura deva se constituir, o próprio eterno tem de determinar-se como algo temporal [VII 465], como [o que está] no tempo, como histórico, pelo qual o existente e o eterno no tempo têm a eternidade entre si. Isto é o paradoxo (sobre o qual se refere no precedente, na segunda seção, Cap. II, e no que segue em B). Na esfera religiosa, o positivo se distingue pelo negativo; a relação com uma felicidade eterna se distingue pelo sofrimento (§ 2); ora, a expressão negativa é decididamente mais forte: a relação se distingue pela totalidade da consciência da culpa. Com relação à consciência da culpa como sinal distintivo, o sofrimento poderia parecer ser uma relação direta (naturalmente, não uma relação esteticamente direta: felicidade que se reconhece pela felicidade). Pode-se dizer, então, que a consciência da culpa é uma relação repulsiva. Mais correto, entretanto, é dizer que sofrimento é a reação direta de uma relação repulsiva; a consciência da culpa é a reação repulsiva de uma relação repulsiva, porém, convém notar, ainda continuamente no interior da imanência, mesmo que um existente seja continuamente impedido de ter sua vida nela, ou de ser sub specie aeterni [lat.: sob o aspecto da eternidade], mas só a tem numa possibilidade suspensa, não como se suspende o concreto para encontrar o abstrato, mas como se suspende o abstrato ao permanecer no concreto. A consciência da culpa é a expressão decisiva para o pathos existencial em relação a uma felicidade eterna. Logo que se remove a felicidade eterna, também se exclui essencialmente a consciência da culpa, ou se mantém em categorias infantis que estão no mesmo nível das notas de uma criança no boletim, ou se torna uma legítima defesa civil. Portanto, a expressão decisiva da consciência da culpa é, por sua vez, a continuação essencial desta consciência, ou a recordação eterna da culpa, porque é continuamente conectada à relação com uma felicidade eterna. Aqui não se trata então de uma questão infantil de começar tudo outra vez, de ser um bom menino outra vez, mas também não se trata de uma questão de indulgência universal, dado que todos os homens são assim. Como disse, basta uma única culpa, e então com isto o existente que se relaciona com uma felicidade eterna está aprisionado para a eternidade, pois a justiça humana só sentencia à prisão perpétua na terceira ofensa, mas a eternidade sentencia logo de primeira para toda a eternidade; está preso para sempre, estirado nas correias da culpa, e jamais se livra das correias, não como um animal cargueiro, do qual pelo menos de vez em quando a carga é removida, não como o trabalhador de sol a sol, que pelo menos de vez em quando tem um tempo livre; nem sequer à noite está essencialmente livre das correias. Chama de grilhão esta recordação da culpa e diz que ele nunca será removido do prisioneiro, e terás descrito apenas um lado da questão; pois ao grilhão se liga mais proximamente a noção de privação da liberdade, mas a recordação eterna da culpa é também uma carga que precisa ser arrastada de um canto para o outro no tempo, [VII 466] e por isso é melhor chamares esta recordação eterna da culpa de correias/arreios e dizer do prisioneiro: nunca ficará sem os arreios. Pois sua consciência é a de estar decisivamente alterado, embora a identidade do sujeito ainda seja a ideia de que é ele próprio que se torna consciente disto ao conectar a culpa com a relação com uma felicidade eterna (A consciência do pecado é o paradoxal, e com isso outra vez bem consequentemente é isto o paradoxal, que o existente não o descubra por si mesmo, mas venha a conhecê-lo a partir do exterior. Com isso, a identidade se rompe). Mas ele ainda se relaciona com uma felicidade eterna, e a consciência da culpa é uma expressão mais elevada do que o sofrimento. Além disso, no sofrimento da consciência da culpa, a culpa é por sua vez ao mesmo tempo o que alivia e o que rói, alivia porque é a expressão da liberdade, tal como esta pode ser na esfera ético-religiosa, onde o positivo se distingue pelo negativo, a liberdade pela culpa, e não se distingue diretamente de modo estético: liberdade que se reconhece pela liberdade. Desse jeito, se retrocede; sofrer culpado é uma expressão inferior a sofrer inocente, e, contudo, é uma expressão superior, porque o negativo é uma marca do positivo mais elevado. Um existente que sofre apenas como inocente, eo ipso não se relaciona com uma felicidade eterna, a não ser que o existente seja ele mesmo o paradoxo, com cuja determinação estamos em outra esfera. É verdade a respeito de todo existente puro e simples que, se está sofrendo apenas como inocente (naturalmente compreendido no sentido total, não no sentido de que neste e naquele caso, ou em muitos casos, sofra como inocente), então não está se relacionando com uma felicidade eterna e evitou a consciência da culpa ao existir abstratamente. Isto deve ser afirmado para que as esferas não se confundam e não escorreguemos subitamente de volta a categorias muito inferiores à da religiosidade da interioridade oculta. Só na religiosidade paradoxal, no crístico, e do paradoxo, pode ser verdade que sofrer como inocente seja uma expressão superior à de sofrer como culpado. Para classificar as totalidades das esferas, usa-se bem simplesmente o humor como terminus [lat.: termo] para definir a religiosidade da interioridade oculta, e usa-se esta religiosidade como terminus para definir o crístico. O crístico também se distingue por sua categoria, e onde quer que esta não esteja presente, ou seja usada como conversa mole, o crístico não está presente, de jeito nenhum, a não ser que se admita que o mencionar o nome de Cristo já seja cristianismo, inclusive o tomar o nome de Cristo em vão. A eterna recordação da consciência da culpa é sua expressão decisiva; porém a expressão mais forte do desespero no instante não é pathos existencial. Relacionar-se de modo patético existencial com uma felicidade eterna não é jamais [VII 467]: de vez em quando pegar para valer, mas sim é constância na relação, a constância com a qual ela é colocada em conexão com tudo; pois nisto consiste toda a arte da existência, e é aqui talvez que os humanos mais fracassam. Que promessas sagradas não sabe um homem fazer num momento de perigo mortal, mas assim que este passa, bem, aí tudo é bem rápida e completamente esquecido, e por quê? Porque ele não sabe colocar em conexão; quando o perigo mortal não vem de fora, não sabe por si mesmo colocá-lo em conexão com o seu esforço. Quando a terra treme com a erupção do vulcão, ou quando a peste se espalha sobre a terra: quão rápida e radicalmente até mesmo o mais lerdo, até mesmo o mais sonolento, compreende a incerteza de tudo! Mas quando isso passa, bem, então é incapaz de estabelecer a conexão, e, contudo, era precisamente aí que deveria aplicar-se para consegui-lo: pois quando a existência faz a conexão por ele, quando a fúria dos elementos prega para ele mais do que o faz a eloquência domingueira: aí então o compreender achega-se quase por conta própria, de fato, tão facilmente que a tarefa antes consiste em, tendo compreendido a mesma coisa mais cedo, impedir o desespero. No eterno recordar da consciência da culpa, o existente relaciona-se com uma felicidade eterna, mas não de modo que tenha agora chegado diretamente mais perto dela; pois, ao contrário, está agora distanciado dela tanto quanto possível, contudo ainda se relaciona com ela. O dialético que há aqui, embora no interior da imanência, levanta sua voz contrária para potenciar o pathos. Na relação que serve de base para a não relação, na imanência pressentida que serve de base para a separação dialética, ele se prende à felicidade eterna pelo mais fino dos fios, por assim dizer, graças a uma possibilidade, que continuamente perece: justamente por isso o pathos é bem mais forte, se ele está aí. A consciência da culpa é o decisivo, e uma única culpa posta em conexão com a relação a uma felicidade eterna já basta, e contudo vale para a culpa, mais do que para qualquer outra coisa, que ela semeia a si própria. A culpa total, entretanto, é o decisivo; tornar-se catorze vezes culpado é uma brincadeira infantil, comparado com isso - é por isso que a infantilidade sempre permanece no numérico. Quando, ao contrário, a consciência da nova culpa é remetida outra vez à consciência absoluta da culpa, o eterno recordar da culpa é, com isso, preservado, caso o existente esteja a ponto de esquecê-la. Se alguém disser que nenhum ser humano consegue aguentar tal recordação da culpa, que isto tem de levar à insanidade ou à morte: então que se atente para ver quem é que o diz; pois o senso comum limitado frequentemente fala desse modo, para pregar indulgência. [VII 468] E este modo de falar raramente deixa de lograr seu efeito, desde que estejam reunidos três ou quatro, pois eu duvido que alguém na solidão tenha sido capaz de se enganar com este discurso, mas quando se está junto em grande número e se ouve que os outros se comportam deste modo, aí a gente se sente menos embaraçada; quão desumano, também, querer ser melhor do que os outros! Mais uma vez, um despiste, pois aquele que está sozinho com o ideal não tem como saber se ele é melhor ou pior do que os outros. Portanto é possível que este eterno recordar possa levá-lo à insanidade ou à morte. Está bem, vê que um ser humano não consegue sobreviver por muito tempo a pão e água, mas então um médico pode discernir como arranjar as coisas para o indivíduo, de modo a que ele, reparem, não chegue a viver como rico, mas que a dieta de fome lhe seja tão cuidadosamente calculada, que possa continuar vivo. Justamente porque o pathos existencial não é o do instante, mas o da permanência, o próprio existente, que se entusiasma no pathos e não olha em torno, depravado pelos usos e costumes, à procura de subterfúgios, procurará encontrar o mínimo de esquecimento, de que precisa para aguentar, dado que, é claro, ele próprio está atento a que o momentâneo é um mal-entendido. Mas já que é impossível encontrar uma certeza absoluta neste dialetizar, ele terá, a despeito de todo o seu empenho, uma consciência da culpa, outra vez totalmente definida pelo fato de que, em sua relação com uma felicidade eterna ele jamais ousaria dizer que fez tudo o que podia para segurar a recordação da culpa. O conceito de culpa como uma categoria de totalidade pertence essencialmente à esfera religiosa. Tão logo o estético quer ocupar-se com ele, este conceito se torna dialético como fortuna e infortúnio, com o que tudo acaba confundido. Esteticamente, a dialética da culpa é esta: o indivíduo é inocente, então chegam culpa e inocência como categorias alternantes na vida, ora o indivíduo é culpado disto ou daquilo, ora é inocente. Não tivesse ocorrido isto ou aquilo, o indivíduo não se teria tornado culpado; em outras circunstâncias, aquele que agora é considerado inocente, ter-se-ia tornado culpado. Este pro et contra [lat.] como summa summarum (portanto, não um caso avulso de culpa ou inocência no interior da categoria de totalidade da culpa) é objeto da atenção dos tribunais, do interesse dos romancistas, do mexerico da cidade e da meditação de alguns pastores. As categorias estéticas são fáceis de reconhecer, e até se pode muito bem, é claro, usar o nome de Deus, o dever, a culpa etc., sem falar ética ou religiosamente. O estético consiste em que o indivíduo seja, em última instância, não dialético em si mesmo. Ele vive sessenta anos, é condenado três vezes e colocado sob vigilância policial; vive sessenta anos e não foi jamais condenado por nada, mas há vários rumores feios a seu respeito; vive sessenta anos, um homem realmente simpático: [VII 469] e daí? Aprendemos alguma coisa disso? Não, ao contrário, ganhamos uma noção de como uma única vida humana atrás da outra pode passar na tagarelice, quando o existente não tem dentro de si mesmo a interioridade que é a terra natal e o solo nativo de todas as categorias de totalidade. O discurso religioso tem a ver essencialmente com a categoria de totalidade. Pode usar um crime, pode usar uma fraqueza, pode usar uma negligência, em resumo, qualquer tema particular; mas o que distingue o discurso religioso como tal é que ele se move deste particular para a categoria de totalidade, conectando este particular à relação com uma felicidade eterna. Pois o discurso religioso sempre tem a ver com a categoria de totalidade, não cientificamente (de modo que se faça abstração do particular), mas existencialmente, e por isso o que tem de fazer é submeter o indivíduo singular, por bem ou por mal, direta ou indiretamente, dentro da totalidade, não para que este desapareça nela, mas para que fique conectado com ela. Se o discurso religioso espraia-se apenas em particularidades, se distribui ora o louvor, ora a reprovação, se aprova alguns encomio publico ornatus [lat.: honrados com louvor público] e reprova outros: então ele se confunde com um júri solene de exames para adultos, só que sem menção de nomes. Se a intenção do discurso religioso é ajudar a polícia, trovejando contra crimes que se esquivam do poder da polícia, mais uma vez é verdade que, se o orador religioso não troveja em virtude da categoria de totalidade, e esta, por si só, é tão séria que não necessita de muita contundência gesticulatória, então Sua Reverência se confunde com uma espécie de agente de polícia, e deveria, mais apropriadamente, circular com um cassetete e ser remunerado pela edilidade. Na vida diária, no comércio, no trato social, um é culpado por isto, outro por aquilo, e fica-se nisso; mas um discurso religioso tem a ver com a interioridade, na qual a categoria de totalidade agarra o homem. A categoria de totalidade é o religioso; tudo o mais que carece disso é, visto essencialmente, ilusão dos sentidos, por meio da qual até o maior dos criminosos é não obstante no fundo inocente, e uma pessoa de boa índole é um santo. Que a recordação retenha eternamente a culpa é a expressão do pathos existencial, a expressão mais elevada, por isso mais elevada até do que a penitência [VII 470] mais entusiasmada que deseja reparar a culpa (Recordemos que o perdão dos pecados é a satisfação paradoxal em virtude do absurdo. Apenas para que fiquemos atentos a quão paradoxal isto é, a recordação eterna da culpa como a mais elevada expressão tem de intervir para que as esferas não se confundam e não se tagarele sobre o crístico em meio a categorias infantis do perdão dos pecados, que se situam num plano onde o ético não aflorou, muito menos o religioso, e menos ainda o crístico). Esta retenção da culpa não consegue encontrar sua expressão em algo exterior, por meio do qual ela ficasse finita; pertence, portanto, à interioridade oculta. Aqui, como em toda parte, nossa apresentação a ninguém ofende, não ofende pessoa alguma ao dizer dela que é religiosa, ao revelar o que ela oculta; não ofende ninguém ao negar que seja uma pessoa religiosa, pois o nó da questão está justamente em que ela é oculta - e não há ninguém que note alguma coisa. Indicarei agora brevemente as concepções de culpa e as respectivas concepções de satisfação, que são mais baixas do que a recordação eterna da culpa na interioridade oculta. Dado que no parágrafo precedente fui muito minucioso, posso aqui ser bem mais breve; pois o que foi mostrado no parágrafo precedente como mais baixo tem de se mostrar de novo aqui. Também aqui, como em toda parte, só a categoria é respeitada e, por isso, incluo concepções que, embora frequentemente chamadas de cristãs, quando reportadas à categoria, muitas vezes provam que não o são. Que um pastor, mesmo um pastor paramentado de seda, que um cristão batizado, ornado com títulos e enfileirado entre os verdadeiros cristãos, embaralhe algo, não faz com que tal coisa seja cristianismo, tampouco como se seguiria diretamente, do fato de um médico rabiscar algo numa folha de receita, que esta coisa seja por isso um remédio - pode até ser aguapé. Nada há de tão novo no cristianismo que aparentemente não tenha havido antes no mundo (Nesse caso, o cristianismo seria reconhecível diretamente de modo estético: a novidade pela novidade; e aí tudo estaria de novo confundido. Uma novidade direta pode ser o sinal distintivo, p. ex., de uma descoberta mecânica, e esta novidade é acidentalmente dialética, mas esta novidade não pode, de jeito nenhum, causar escândalo. Escândalo ocorre, em última instância, para um indivíduo em relação àquilo que é essencial, quando alguém quer fazer com que seja novo para ele algo que ele essencialmente crê já possuir. Aquele que não tem absolutamente nenhuma religiosidade não pode por certo de jeito nenhum escandalizar-se com o cristianismo, e a razão por que os judeus estiveram mais próximos do que todos os outros de se escandalizar foi porque estavam mais próximos dele do que os outros. Se o cristianismo tivesse apenas acrescentado algo novo ao velho, isto só teria podido provocar escândalo relativamente; mas justamente porque quis tomar todo o velho e fazê-lo novo, o escândalo estava tão próximo. [VII 471] Se a novidade do cristianismo nunca tivesse surgido no coração de um ser humano, no sentido de que ele nunca tivesse tido nada em seu lugar que imaginasse ser o mais elevado, nunca poderia causar escândalo. Justamente porque sua novidade não é direta, mas antes precisa anular uma ilusão, o escândalo é possível. Por isso, a novidade do cristianismo tem atrás de si, como baliza [Terminus], a eterna religiosidade da interioridade oculta; pois em relação ao eterno, uma novidade é certamente um paradoxo. Tomado ao acaso, junto com outras novidades, ou afirmado por uma asserção de que em meio a todas as novidades ele é a mais notável, ele é apenas estética), e, contudo, tudo é novo. [VII 471] Se acaso alguém usa o nome do cristianismo e o de Cristo, mas as categorias (apesar das expressões) não têm nada de crísticas, será isto então cristianismo? Ou se por acaso alguém (cf. Seção I, Cap. II) propõe que uma pessoa não pode ter seguidores e outro se põe como adepto desta doutrina, não há assim um mal-entendido entre eles, a despeito de todas as asseverações do adepto sobre sua admiração e sobre o quanto se apropriou totalmente - do mal-entendido? O sinal distintivo do cristianismo é o paradoxo, o paradoxo absoluto. Tão logo uma assim chamada especulação cristã abole o paradoxo e transforma esta determinação em um momento [logo superado], aí todas as esferas estão confundidas. Uma concepção mais baixa de culpa é então qualquer uma que não coloque a culpa, através de um eterno recordar, em conexão com a relação para com uma felicidade eterna, porém, pela memória, coloca-a em conexão com algo de mais baixo, algo de comparativo (sua própria casualidade, ou de outros) e permite que o esquecimento se intrometa nas particularidades da culpa. Isto torna a vida fácil e desembaraçada, como o é a vida de uma criança, porque a criança tem muita memória (orientada para o exterior), mas nenhuma recordação, no máximo a interioridade do instante. Fica sempre uma questão a respeito de quantas pessoas há que, em última análise, se relacionam de forma absoluta na determinação do espírito; fica uma questão, mas eu não digo, pois claro que é possível que nós todos o façamos, posto que a interioridade oculta é justamente a oculta. Certo é apenas isto, que a questão não é, de jeito nenhum, igual àquela sobre capacidades, graduações, habilidade, conhecimentos etc. A pessoa mais humilde pode relacionar-se consigo absolutamente na determinação do espírito, de modo tão pleno quanto a mais dotada; pois dons, conhecimentos e talento são afinal um "o quê", mas o caráter absoluto da relação do espírito é um "como" em relação ao que se é, seja isto muito ou pouco. Uma concepção mais baixa de culpa é qualquer uma que queira colocar a culpa em conexão com a representação de uma felicidade eterna momentaneamente, aos domingos, por exemplo, [VII 472] na celebração das matinas do ano-novo, com O coração de jejum, e depois ficar livre de novo por toda a semana, ou por todo o ano. Uma concepção mais baixa de culpa é qualquer mediar: pois mediação libera sempre da relação absoluta para com o absoluto, e deixa que esta se esgote em predicados fragmentários, no mesmo sentido em que uma nota de cem táleres vale o mesmo que tantas e tantas de um. Mas a relação absoluta é justamente o absoluto por ter o seu por si mesmo, por relacionar-se com o absoluto, uma joia que só pode ser possuída inteira e não pode ser trocada. A mediação dispensa o homem de se aprofundar na categoria de totalidade e faz com que ele se encha de ocupações exteriores, torna sua culpa algo de exterior, a dor de seu castigo algo de exterior; pois o lema da mediação e sua indulgência é que o exterior é o interior e o interior o exterior, com o que a relação absoluta do indivíduo para com o absoluto é suprimida. Tal como a concepção de culpa é mais baixa, assim também corresponde a cada concepção uma satisfação que é mais baixa do que aquela concepção superior a todas, que é a do eterno recordar, que, por isso, não aceita nenhuma satisfação, embora a imanência subjacente, dentro da qual está o dialético, seja uma possibilidade insinuada. Uma satisfação mais baixa é o conceito civil de punição. Este conceito corresponde a esta ou aquela culpa e, portanto, está completamente fora da categoria de totalidade. Uma satisfação mais baixa é o conceito estético-metafísico de nemesis [gr.: (deusa da) vingança e (do) castigo implacável]. Nemesis é algo exteriormente dialético, é a consequência ou a justiça natural da exterioridade. O estético é uma interior idade não aberta; por isso, aquilo que é ou deve ser interioridade precisa manifestar-se no exterior. É como quando numa tragédia o herói do tempo passado se mostra como um espírito para alguém que está dormindo: o espectador tem de ver o espírito, embora aquilo que se mostra seja a interioridade de quem está dormindo. Assim também com a consciência da culpa: a interioridade torna-se exterioridade. Por isso as Fúrias eram visíveis, mas exatamente sua visibilidade tornou a interioridade menos terrível, e justamente por causa de sua visibilidade foi estabelecido um limite para elas: no templo, as Fúrias não ousavam entrar. Se, por outro lado, toma-se a consciência da culpa contudo meramente como mágoa em relação a uma culpa específica, aí este ocultamento é justamente o terrível; pois mágoa ninguém pode ver, e mágoa acompanha a pessoa através de qualquer limiar. A visibilidade das Fúrias expressa simbolicamente, porém, a comensurabilidade entre o exterior e o interior, [VII 473] por meio da qual a consciência da culpa é finitizada, e a satisfação reside no sofrimento da punição na temporalidade, e a reconciliação consiste na morte, e tudo termina na exaltação melancólica que é o abrandamento da morte, de que agora tudo passou e não havia nenhuma culpa eterna. Uma satisfação mais baixa é uma penitência auto infligi da, não apenas porque ela é autoinfligida, mas porque até a penitência mais entusiástica finitiza a culpa, ao torná-la comensurável, enquanto que seu mérito é descobrir, no interior, a culpa que escapa da atenção, não apenas da polícia, mas também da Nemesis. O que foi dito acima sobre o movimento monástico da Idade Média, vale outra vez aqui: todo respeito pela penitência da Idade Média! Ela constitui sem dúvida um ensaio pueril e entusiástico em grande estilo, e aquele que não consegue penetrar na perspectiva da Idade Média, e consegue mesmo enaltecer o esquecimento e a falta de reflexão e o "vejam só o meu vizinho" como algo de mais verdadeiro, só pode ter perdido toda a fantasia e, graças ao seu grande senso comum, ter se tornado quase que completamente estúpido. Pois se a penitência na Idade Média não era verdadeira, então era uma comovente e entusiástica inverdade, e mesmo que o esquecimento e a falta de reflexão não sejam culpados da falsa representação de Deus, de que Ele haveria de se comprazer ao ver um ser humano se flagelar, então com certeza é uma inverdade ainda mais terrível deixar Deus o tempo todo fora do jogo, se ouso dizê-lo assim, e consolar-se com a ideia de não se ter sofrido nenhuma condenação, e ser até diretor de baile no clube. A Idade Média, por outro lado, se assim posso dizer, deixou que Deus participasse do jogo; entende-se, as noções são bastante pueris; mas Deus está presente contudo absolutamente. Ensaiemos o seguinte experimento mental: um homem que põe sua culpa em conexão com a representação de uma felicidade eterna e que, justamente por isso, isola-se consigo mesmo, com sua culpa, e com Deus (aqui reside o verdadeiro, em comparação com toda atividade e despreocupação comparativas no cardume de arenques), imaginemos seu desesperado meditar sobre se não haveria afinal algo que ele pudesse encontrar para a satisfação pela culpa, imaginemos a aflição da inventividade, se não seria afinal possível encontrar alguma coisa que pudesse contentar novamente Deus: e podemos rir, se conseguirmos, do sofredor que encontra a penitência, à medida que assumimos - o que aliás sempre convém fazer num experimento mental - que, com toda honestidade, sua intenção e seu desejo é que Deus pudesse comover-se e abrandar-se com todo este sofrimento. Certamente há algo de cômico aí, porque esta concepção transforma Deus em uma figura de história de aventuras, um Holofernes, um paxá com três rabos de cavalo, a quem tais coisas poderiam agradar: mas será melhor abolir Deus de tal jeito [VII 474] que Ele se torne um medalhão ou um pedante que se assenta nos céus e não consegue aparecer, de modo que ninguém o percebe, porque o efeito produzido por Ele só atinge o indivíduo singular através da massa compacta das causas intermediárias, e o choque se reduz, portanto, a um toque imperceptível? Será melhor abolir Deus capturando-o nas malhas da lei natural e no desenvolvimento necessário da imanência? Não, todo respeito pela penitência da Idade Média e pelo que, fora do cristianismo, apresenta analogias com ela; aí reside sempre o elemento verdadeiro de que o indivíduo não se relaciona com o ideal através da geração ou do estado ou do século ou do preço de mercado dos homens na cidade onde vive, quer dizer, impede-se por meio dessas coisas de se relacionar com o ideal, porém ele se relaciona com o ideal mesmo que erre em seu entendimento a respeito. O que uma moça não descobrirá a fim de voltar às boas com o amado, se crê que ele está ofendido? Mesmo que lhe venha à mente algo de risível, o amor que há nela não santifica o ridículo? E não será no caso dela o verdadeiro que ela se relacione idealmente para com seu amor na originalidade apaixonada da ideia e, por isso, não procure a companhia de nenhuma comadre que possa lhe dizer de que modo outras moças tratam seus amados? Quem tiver olhos para as categorias, facilmente perceberá que a primeira moça é cômica apenas para uma concepção mais pura, que, por isso, sorri dela com leveza e simpatia, para ajudá-la rumo a algo melhor, mas sempre com respeito por sua paixão; e que, por outro lado, uma comadre, uma mexeriqueira, que só sabe coisas de terceira mão, é incondicionalmente cômica no papel de uma apaixonada, na qual tais ocupações secundárias caracterizam uma baixeza de sentimentos, o que, pior do que a infidelidade, prova que não tem nada a que ser fiel. E assim também: sobre o religioso que se extravia na originalidade, a paixão da originalidade lança uma luz benevolente, em contraste com o religioso que aprende da rua, do jornal, do clube, como lidar com Deus, e como os outros cristãos sabem lidar com Ele. Por causa do enredamento com a ideia de estado, de socialidade forçada, de comunidade e de sociedade, Deus já não consegue atingir diretamente o indivíduo singular; por maior que seja a ira de Deus, a punição que está para cair sobre o culpado tem de se transplantar através de todas as instâncias da objetividade: deste modo, com a terminologia filosófica mais vinculante e cheia de reconhecimento, conseguiu-se despachar Deus para longe. A gente se apressa para obter uma representação de Deus cada vez mais verdadeira, mas parece esquecer-se dos fundamentos iniciais: que se deve temer a Deus. Um religioso objetivo na massa humana objetiva não teme a Deus; não o escuta na trovoada [VII 475], pois esta é uma lei da natureza, e talvez tenha razão; não o vê nos eventos, pois trata-se da necessidade imanente entre causa e efeito, e talvez tenha razão; mas então, e a interioridade do isolamento diante de Deus? Bem, isso é muito pouco para ele; isso ele não conhece, ele que está em vias de realizar o objetivo. Se a nossa época é mais imoral do que outras, não devo decidir, mas tal como uma penitência degenerada foi a imoralidade específica numa época da Idade Média, assim também a imoralidade de nossa época poderia facilmente tornar-se uma debilidade fantástico-ética, uma dissolução de um desespero voluptuoso e mole, no qual indivíduos, como num sonho, tateiam à busca de uma representação de Deus, sem sentir nenhum terror nisso, ao contrário, jactando-se desta superioridade, que, em sua vertigem de pensamento, e com a imprecisão da impessoalidade, têm um vislumbre, por assim dizer, de Deus no indefinido, e, fantasticamente, encontram-se com aquele cuja existência se mantém mais ou menos como a das sereias. E o mesmo poderia facilmente repetir-se na relação do indivíduo consigo mesmo, que o ético e a responsabilidade e a força de agir e o enrijecedor isolamento do arrependimento evaporam-se num brilhantismo da dissolução, no qual o indivíduo sonha consigo mesmo metafisicamente, ou deixa a existência toda sonhar a respeito de si mesma, e confunde-se com Grécia, Roma, China, história do mundo, com a nossa época, e com o século; capta de modo imanente a necessidade de seu próprio desenvolvimento e aí, por sua vez, objetivamente deixa seu próprio eu flutuar, no todo, como uma penugem, esquecendo-se de que mesmo que a morte transforme o corpo de uma pessoa em pó e o misture com os elementos, é terrível que, em vida, ela se torne uma forma a mais no imanente desenvolvimento do infinito. Então, seria melhor pecarmos, pecarmos para valer, seduzir moças, assassinar homens, roubar na estrada: de tais coisas a gente pode afinal arrepender-se, e tal criminoso Deus consegue, afinal, agarrar. Mas desta distinção, que se elevou tão alto, desta é difícil arrepender-se; tem uma aparência de profundidade que engana. Então, seria melhor escarnecer de Deus, para valer, como já aconteceu antes no mundo; isso sempre será preferível à presunção debilitante com que se quer provar a existência de Deus. Pois provar a existência de alguém que existe é o atentado mais desavergonhado, dado que é uma tentativa de torná-lo ridículo; mas a desgraça está em que a gente nem ao menos suspeita disso, e que, em total seriedade, considera-se tal coisa como um empreendimento piedoso. Como pode ocorrer, porém, a quem quer que seja provar que ele existe, a não ser porque a gente se permitiu ignorá-lo: e agora a gente o faz de um modo ainda pior ao provar sua existência a um palmo do nariz dele. [VII 476] A existência ou a presença de um rei tem geralmente uma expressão própria de subordinação e reverência: e que tal, se alguém, diante de sua soberana presença, quisesse provar que ele existia? A gente o prova, desse modo? Não, a gente o faz de bobo, pois sua presença a gente demonstra pela expressão de reverência, por mais diferentes que sejam os costumes de cada país: e assim se prova também a existência de Deus pela adoração - não pelas demonstrações. Um pobre coitado de um escritor a quem, mais tarde, um pesquisador retira da obscuridade do esquecimento, com certeza há de ficar louco de alegria pelo fato de o pesquisador ter conseguido demonstrar sua existência; mas um ser onipresente só mesmo pela piedosa estupidez de um pensador pode ser levado a este embaraço ridículo. Mas se isso pode acontecer assim, ou quando numa época é este o caso: de onde provém, senão justamente do fato de que a gente deixa de lado a consciência da culpa? Assim como o papel-moeda pode ser um importante meio em função do comércio entre as pessoas, mas, em si mesmo, é uma quantidade quimérica se em última instância não há lastro: assim também, a concepção comparativa, convencional, exterior, burguesa do ético é decerto útil em situações ordinárias, mas se fica olvidado que o lastro do ético tem de estar presente na interioridade do indivíduo, se é que deve estar algures, e se toda uma geração pudesse esquecê-lo, então a geração - ainda que se quisesse admitir que ali não havia um único criminoso, mas só gente muito decente (o que, aliás, não se pode nem de longe dizer incondicionalmente que educação e cultura tragam consigo) - então esta geração seria, contudo, no essencial eticamente empobrecida e essencialmente uma geração que está indo à falência. No trato com as pessoas é bem correto julgar cada terceiro como um terceiro, mas se esta habilidade no trato social também leva cada indivíduo particular a julgar a si mesmo, em sua interioridade diante de Deus, como um terceiro, isto é, apenas exteriormente, aí o ético está perdido, a interioridade sumiu, a ideia de Deus já não diz mais nada, desapareceu a idealidade, pois aquele cuja interioridade não reflete o ideal não tem nenhuma idealidade. Em relação à multidão das pessoas (i. é, quando o indivíduo olha para os outros, mas isto, é claro, faz um círculo, uma vez que cada um dos outros é, por sua vez, o indivíduo singular), é correto usar um critério comparativo; mas se este uso do critério comparativo assume o controle de tal modo que, em seu ser mais interior, o indivíduo o use para si mesmo, o ético se extinguiu, e o ético desgastado bem poderia encontrar seu lugar em um jornal comercial sob a rubrica: preço mediano e qualidade mediana. [VII 477] O que havia de respeitável na penitência da Idade Média era que o indivíduo aplicava o critério absoluto em relação a si mesmo. Se não se conhece nada mais elevado do que o comparativo, o critério cívico, provinciano, do crente sectário, bem-ajustado: então não se pode sorrir da Idade Média. Todos concordam, afinal de contas, em que o filistinismo burguês é cômico. Mas o que é o filistinismo? É possível não ser um filistino em uma cidade grande? Por que não? O filistinismo burguês consiste sempre no uso do relativo como absoluto em relação ao essencial. Que muita gente não o perceba quando o que se utiliza é uma relatividade óbvia, apenas mostra sua limitação em relação ao cômico. Dá-se, com a concepção do filistinismo burguês, o mesmo que com a de ironia; cada um, até o mais terra a terra, procura de modo canhestro ser irônico, mas lá onde a ironia realmente começa, todos caem fora, e o bando desses todos, em que cada um por si é relativamente irônico numa escala decrescente, volta-se amargurado contra o irônico de verdade. Ser a melhor de todas as pessoas de Kjoge, é algo de que em Copenhague a gente se ri; mas ser a mesma coisa em Copenhague é igualmente ridículo, pois o ético e o ético-religioso não têm a ver absolutamente nada com o comparativo. Todo critério comparativo, seja o de Kjoge ou o de Copenhague ou o de nossa época ou o deste século, caso isso deva ser o absoluto, é filistinismo burguês. Por outro lado, logo que o indivíduo voltar-se para si mesmo com a exigência absoluta, aparecerão também analogias com a penitência autoinfligida, mesmo que não se expressem tão ingenuamente e, sobretudo, se conservem no refúgio da interioridade e ao abrigo da exterioridade óbvia, que tão facilmente se torna uma invitação ao mal-entendido, tão nocivo ao indivíduo quanto aos outros; pois toda comparação atrasa, e é por isso que a mediocridade a aprecia tanto e, se possível, captura todo mundo nela, como numa armadilha, com sua desprezível amizade, quer o prisioneiro seja admirado como algo de acima do comum - em meio a mediocridades, quer seja ternamente abraçado por seus iguais. Está total e completamente em ordem que cada ser humano, até mesmo o mais excelente, como um terceiro em relação a outro ser humano (motivado por simpatia ou por qualquer outra coisa), aplique um critério inferior àquele que todo ser humano deveria e poderia ter dentro de si mesmo devido à relação silenciosa com o ideal. Aquele, portanto, que acusa os homens, que foram eles que o corromperam, fala bobagem e apenas acusa a si mesmo, que se esquivou de algo e agora quer voltar sorrateiramente para algo, pois por que não se preveniu contra isso, [VII 478] e por que continua [na mesma situação], em vez de compensar se possível o que foi corrompido, buscando em silêncio pelo critério que há dentro de si? É bem certo que uma pessoa pode exigir de si mesma esforços contra os quais seu mais bem-intencionado amigo, se estivesse sabendo deles, lhe desaconselharia; mas ninguém acuse o amigo; ela acusa a si mesma, por ter procurado tal alívio regateando. Todo aquele que, em verdade, arriscou sua vida, teve o critério do silêncio; pois um amigo jamais pode nem deve recomendar tal coisa, muito simplesmente pelo motivo de que aquela pessoa que, quando está para arriscar sua vida, precisa de um confidente com quem irá deliberar a respeito - não serve para isso. Mas quando as coisas começam a ficar quentes, e o esforço final é exigido - então ela pula fora, então procura alívio com um confidente e recebe o conselho bem-intencionado: Poupe-se. Aí o tempo passa, e a necessidade desaparece. E quando então num momento posterior recebe a visita de uma recordação, então a gente culpa os outros, para mais uma prova de que se perdeu a si mesmo e de que sua idealidade está entre as coisas que se foram. Mas aquele que silencia não acusa ninguém além de si mesmo, não ofende ninguém com seu esforço; pois esta é sua convicção vitoriosa, que há e pode e deve haver em todo ser humano este consaber com o ideal, que exige tudo e só consola no aniquilamento diante de Deus. Que qualquer um que queira ser porta-voz da mediocridade resmungue contra ela ou faça alvoroço; se é legítimo defender-se contra um bandido na estrada, então também há uma defesa legítima e, acima de tudo, agradável a Deus, ao assédio da mediocridade - é o silêncio. Na relação do silêncio para com o ideal há um julgamento sobre um ser humano. Ai daquele que, como terceiro, atreve-se a julgar assim uma pessoa; não há apelação possível deste julgamento a alguma instância superior; pois esta é em absoluto a mais elevada. Mas há uma escapatória, e então se recebe um julgamento indescritivelmente mais brando. E quando então alguém numa certa ocasião repassa em sonhos sua vida, fica aterrorizado e acusa os homens - em mais uma prova de que o caso deste alguém ainda continua pendente do fórum da mediocridade. Na relação de silêncio para com o ideal, há um critério que transforma até o maior esforço em uma ninharia, transforma o esforço continuado ano após ano em um passinho de galo - mas na conversa vazia, passos de gigante são dados sem esforço. Assim, quando o desânimo se apossou de uma pessoa, quando ela achou cruel da parte do excelso que todo o seu esforço concentrado nele tenha desaparecido como nada, quando não pôde suportar que a intransponibilidade fosse o caminho e o critério do ideal: então ela procurou alívio e o encontrou, encontrou-o junto a alguém talvez sinceramente bem-intencionado, [VII 479] que fez o que se pode e deve exigir de um terceiro, e lhe agradeceu por isso até que, levianamente, acabou por acusar os homens porque ela própria, no caminho facilmente transitável da mediocridade, não avançou. No acordo do silêncio com o ideal, falta uma palavra cuja ausência não se sente, pois o que ela designa nem existe - é a palavra "desculpa". No clamor do exterior, na conformidade sussurrada entre o vizinho do lado e o da frente, esta palavra é a palavra radical e suas derivações são incontáveis. - Que isto seja dito em honra da idealidade do silêncio. Aquele que vive deste modo não pode, é claro, dizê-lo, pois é silencioso; pois bem, então o digo eu, e não preciso acrescentar então que não me apresento como alguém que o faça. Aquele que se volta para si mesmo com o critério absoluto será incapaz, é claro, de ir levando a vida na alegria de, pelo fato de guardar os mandamentos e não ter nenhuma condenação sobre si e de ser considerado pela clique [fr.: corja, coterie] dos despertados como uma pessoa bem cordial, ser então um sujeito simpático, que, se não morrer logo, se tornará, em pouco tempo, perfeito demais para este mundo; ao contrário, ele descobrirá a culpa, sempre de novo, e, por sua vez, a descobrirá no interior da categoria de totalidade: culpa. Mas está profundamente enraizado na natureza humana que culpa requer punição. Quão próximo se encontra, então, o inventar uma coisa qualquer, um trabalho penoso, talvez, mesmo que seja de tal modo dialético que possa, quem sabe, beneficiar outros, beneficência aos necessitados, negar a si mesmo um desejo etc. Será tão ridículo isso? Eu acho que isso é infantil e bonito. E, contudo, isto é, afinal, análogo à penitência autoinfligida, mas ainda finitiza a culpa, por mais bem-intencionado que seja. Há nisso uma esperança infantil e um desejo infantil de que tudo possa assim ser reparado, uma infantilidade em comparação com a qual a recordação eterna da culpa na interioridade oculta é terrível seriedade. O que é que faz a vida da criança ser tão fácil? É que tão seguido se fale de estar quites e de um novo começar a partir do zero. A infantilidade da penitência autoinfligida está em que o indivíduo quer, contudo, piedosamente, persuadir-se de que a punição é pior do que a recordação da culpa. Não, a punição mais pesada é justamente a recordação. Para a criança, a punição é o mais pesado, porque a criança não tem nenhuma recordação, e a criança pensa desse jeito: Se pudesse escapar da punição, estaria feliz e contente. Mas o que é interioridade? É recordação. A irreflexão das pessoas gregárias e comparadoras, que são bem iguais às outras aqui na cidade e assemelham-se umas às outras como soldadinhos de chumbo numa caixa, [VII 480] está em que todas as suas comparações carecem de um verdadeiro tertium comparationis [lat.: terceiro elemento em uma comparação, padrão]. A interioridade infantil do adulto é atenção para consigo mesmo, mas aquilo que engana é a quitação. Mas a seriedade é esta recordação eterna, e que justamente não se há de confundir com a seriedade de se casar, ter filhos, ter gota, fazer o exame da graduação em teologia, ser deputado do conselho estamental, ou até, quem sabe, carrasco. O humor, enquanto confinium [lat.: território-limite] da religiosidade da interioridade oculta, apreende a totalidade da consciência da culpa. Por isso, o humorista raramente fala desta ou daquela culpa, porque apreende o total, ou acentua casualmente esta ou aquela culpa particular porque a totalidade se exprime por meio dela indiretamente. O humorístico emerge em se deixando que o infantil se reflita na consciência total. A cultura do espírito na relação com o absoluto, quando justaposta com a infantilidade, produz o humor. Com bastante frequência, encontramos gente grande, com a confirmação feita, pessoas "cordiais" que, embora mais velhas em idade, fazem ou deixam de fazer tudo como uma criança e, mesmo aos quarenta anos, seriam sem dúvida consideradas como crianças promissoras, caso fosse uso e costume viver 250 anos. Mas infantilidade e gaiatice são muito diferentes de humor. O humorista tem o infantil, mas não é possuído por ele, continuamente o impede de se expressar diretamente, e lhe permite transparecer só através de uma cultura absoluta. Se, por isso, uma pessoa de cultura absoluta for colocada junto a uma criança, sempre descobrirão juntos o humorístico: a criança fala algo assim e não sabe de onde vem; o humorista entende o que foi dito. Cultura relativa, ao contrário, posta junto a uma criança, nada descobre, porque não presta atenção à criança e à sua tolice. Lembro-me de uma réplica numa situação específica que devo relatar agora. Foi num daqueles grupinhos que se formam de maneira efêmera no interior de uma reunião social maior. Uma jovem casada, motivada por algum evento infeliz que estava em discussão, de modo não inapropriado, expressou sua dor diante da vida, que cumpre tão pouco do que promete: "Não, a infância feliz, ou, melhor, a felicidade da criança!" Calou-se, curvou-se para uma criança que carinhosamente se agarrava a ela, e acariciou o queixo do pequeno. Um dos falantes, cuja emoção claramente simpatizava com a jovem esposa, continuou: "Sim, e sobretudo a felicidade da infância, de levar surra" (Quando a réplica foi feita, todos riram dela. Foi um puro mal-entendido. Tomaram a réplica por ironia, o que não era o caso, de jeito nenhum. Se a réplica tivesse sido irônica, seu autor teria sido um irônico medíocre; pois na réplica havia uma ressonância de dor, o que, do ponto de vista irônico, é totalmente incorreto. A réplica era humorística e, por isso, tornava a situação irônica por conta do mal-entendido. Isto, por sua vez, está de acordo, porque uma réplica irônica não pode tornar a situação irônica, pode, no máximo, trazer à consciência que a situação o é, enquanto que uma réplica humorística pode tornar a situação irônica. O irônico se afirma e evita a situação, mas a dor oculta do humorista contém uma simpatia em virtude da qual ele próprio ajuda a compor a situação e, assim, faz-se possível uma situação irônica. Mas bem frequentemente confunde-se o que aí é dito ironicamente com aquilo que, uma vez dito, pode ter um efeito irônico na situação. Neste caso, ela se tornou irônica porque riram e tomaram a réplica por galhofa [Drillerie], sem descobrir que a réplica continha muito mais melancolia [Veemod] em relação à felicidade da infância do que a réplica da jovem esposa. A concepção melancólica da infância situa-se em relação àquela oposição, a partir da qual se toma a visão nostálgica. Mas a maior oposição é a recordação eterna da culpa, e a nostalgia mais melancólica [veemodigste Laengsel] está bem propriamente expressa na saudade das surras recebidas. Quando a jovem esposa falou, ficaram um pouco comovidos; com a réplica do humorista ficaram quase ofendidos, apesar de terem rido, e, no entanto, ele dissera algo muito mais profundo. A partir de todas as maçadas da vida, das canseiras que consomem o espírito e da malvada fadiga, sim, da seriedade rabugenta dos cuidados da subsistência, sim, até mesmo da dor cotidiana de um casamento infeliz, ter saudades da felicidade da infância não chega, contudo, nem perto de ser tão melancólico quanto ter saudades dela a partir da recordação eterna da culpa, e era sobre isso que o humorista estava refletindo melancolicamente, pois, a partir da totalidade da consciência da culpa, ter saudades de uma representação imaginária da pura inocência da criança é propriamente parvoíce, embora seja algo muitas vezes usado de modo comovente - por gente superficial. A réplica não era uma galhofa descortês; ao contrário, era cheia de simpatia. Conta-se a respeito de Sócrates que um homem veio até ele e queixou-se de que o estavam difamando pelas costas; Sócrates respondeu: "Isto é algo com que se preocupar? Para mim é tão indiferente o que fazem comigo em minha ausência, que até poderiam surrar-me à vontade, eu estando ausente". Esta réplica é, corretamente, ironia; exclui aquela simpatia com a qual Sócrates poderia criar uma situação recíproca [VII 482] (e a lei para a ironia galhofeira é bem simplesmente esta: que a astúcia do irônico sempre impeça o diálogo de ser um diálogo, embora, sob todos os aspectos, pareça ser um diálogo, talvez até um diálogo cordial); ela é ironicamente galhofeira, ainda que o seja orientada para o ético, a fim de despertar o homem a conquistar autoafirmação. Portanto, Sócrates muito propriamente diz menos do que tinha dito o outro, pois difamação é alguma coisa, afinal de contas, mas surrar alguém em sua ausência é algo que nada significa. Uma réplica humorística, por outro lado, deve sempre conter alguma coisa profunda, embora escondida no chiste, e deve, por isso, dizer mais. Assim, quando um homem se volta para um irônico para lhe confiar um segredo, sob a promessa de silêncio, e este responde: "Confia totalmente em mim; a mim pode-se confiar incondicionalmente um segredo, pois eu o esqueço tão depressa quanto ele é dito": assim aqui bem corretamente, graças a esta dialética abstrata, aniquila-se a confiança. Caso o outro realmente lhe confesse seu segredo, estão de fato dialogando, mas se há de ser um diálogo confidencial, então isto é um mal-entendido. Se, contudo, aquele homem perseguido pela difamação tivesse dito, p. ex., para uma jovem o que disse a Sócrates, tivesse reclamado deste e daquele que falou mal dele em sua ausência, e a moça tivesse respondido: "Então eu posso me dar por feliz, pois de mim ele esqueceu completamente": aí a réplica tem um toque de humor, embora não seja humorística, à medida que não reflete sobre alguma categoria de totalidade, cujo oposto específico constitui o humorístico), [VII 481] e, logo após, afastou-se para conversar com a anfitriã que passava por ali. [VII 482] Justamente porque o chiste no humor reside na revogação (uma profundidade incipiente que é revogada), ele, naturalmente, recorre com frequência à infância. Se um homem como Kant, que paira nas alturas da erudição científica, dissesse, ao tratar das provas da existência de Deus: "Bem, não sei nada mais sobre isso do que aquilo que o meu pai me falou": isto é humorístico, e de fato diz mais do que um livro inteiro de provas, se o livro se esquecer disto. Mas justamente porque no humor há sempre uma dor escondida, há também uma simpatia. Na ironia não há nenhuma simpatia; ela é autoafirmação, e sua simpatia está, portanto, simpatizando, de todo indiretamente, não com algum ser humano, mas com a ideia de autoafirmação como possibilidade para cada um dos seres humanos. Por isso, nas mulheres frequentemente encontra-se humor, mas jamais ironia. Se uma tentativa dessas é feita, não lhes cai bem, e uma natureza puramente feminina há de considerar a ironia como uma espécie de crueldade. O humor reflete sobre a consciência da culpa em sua totalidade e, por isso, é mais verdadeiro do que toda medida e rejeição comparativas. [VII 483] A profundidade, porém, é revogada no chiste, bem do mesmo modo como mais acima, na concepção do sofrimento. O humor apreende a totalidade, mas justo quando deve começar a explicá-la, torna-se impaciente, revoga tudo: "Isto bem provavelmente se tornaria prolixo e profundo demais; por isso, eu revogo tudo e devolvo o dinheiro". "Nós somos todos culpados", diria um humorista, "caímos muitas vezes e em muitos pedaços, todos nós que pertencemos à espécie animal chamada humana, a qual Buffon descreve da seguinte maneira..." A isto poderia seguir, logo, uma definição de pura história natural. A oposição aqui chegou a seu máximo: entre um indivíduo que, na recordação eterna, tem a totalidade da consciência da culpa e um exemplar de uma espécie animal. Não se acha, pois, absolutamente nenhuma analogia com a metamorfose do desenvolvimento de um ser humano, suposto que este experimente o desenvolvimento mais elevado: submeter-se à determinação absoluta do espírito. Uma planta, enquanto espira, é essencialmente aquilo em que se torna como uma planta desenvolvida, e é assim também o animal; mas uma criança não, de onde também resulta que decerto haja, em toda geração, muitos que jamais chegarão a submeter-se à determinação do espírito (Recorde-se que com isso não se trata de diferenças de talento, mas sim de que há a possibilidade disso para todo ser humano, enquanto que a despeito disso a metamorfose é uma mudança tão qualitativa que não se deixa explicar pelo pouco a pouco de um desenvolvimento direto, muito embora a consciência eterna, desde que colocada, pressuponha eternamente a si mesma) de forma absoluta. A oscilação humorística entre indivíduo e espécie é, de resto, um retrocesso a determinações estéticas, e não é aí, de jeito nenhum, que reside o que há de profundo no humor. A totalidade da consciência da culpa no indivíduo singular diante de Deus em relação a uma felicidade eterna é o que define a religiosidade. Sobre isso o humor reflete, mas o revoga de novo. Em outras palavras, visto religiosamente, a espécie é uma categoria inferior à do indivíduo, e enfiar-se sob a rubrica da espécie é um subterfúgio. (Somente na determinação última do religioso, no religioso-paradoxal, o gênero humano se torna superior, mas também só em virtude do paradoxo; e, para tornar-se consciente do paradoxo, há que se interpor a determinação do religioso, de que o indivíduo [Individet] é superior à espécie, para que as diferenças das esferas não se amalgamem, e não se fale de modo estético sobre o religioso-paradoxal). O humor põe a recordação eterna da culpa em conexão com tudo o mais, mas, nesta recordação, não se relaciona ele mesmo com uma felicidade eterna. [VII 484] Agora chegamos à interioridade oculta. A recordação eterna da culpa não pode ser expressa no mundo exterior, que lhe é incomensurável, dado que toda expressão no exterior torna a culpa finita. Mas a recordação eterna da culpa no caso da interioridade oculta também não é, de jeito nenhum, desespero; pois desespero é sempre o infinito, o eterno, o total no momento da impaciência, e todo desespero é uma espécie de iracúndia. Não, a recordação eterna é o sinal característico da relação para com uma felicidade eterna, tão longe quanto possível de ser um sinal direto, mas, contudo, sempre suficiente para impedir o salto do desespero. O humor descobre o cômico ao colocar a culpa total em conexão com todas as relatividades entre os homens. O cômico reside em que a culpa total é o subjacente que sustenta toda esta comédia. Em outras palavras, se a inocência essencial, ou a bondade, subjaz ao relativo, isto não é cômico, pois não é cômico que no interior da determinação positiva se determine mais ou menos. Mas se a relatividade baseia-se na culpa total, então o mais ou menos baseia-se naquilo que é menos do que nada, e esta é a contradição que o cômico descobre. À medida que o dinheiro é algo, a relatividade entre o mais rico e o mais pobre não é cômica, mas se se tratar de dinheiro simbólico [para jogos], é cômico que se trate de uma relatividade. Se a razão para as pessoas ficarem a correr em círculo for a possibilidade de evitar o perigo, a correria não é cômica; mas se, por exemplo, ela se dá num navio que afunda, há algo de cômico em toda essa circulação, pois a contradição consiste em que, a despeito de toda a movimentação, não se movem para longe do lugar onde se dá o naufrágio. A interioridade oculta precisa também descobrir o cômico, não no fato de a pessoa religiosa ser diferente das outras, mas no fato de, embora mais pesadamente sobrecarregada por sustentar uma recordação eterna da culpa, ser como todas as outras. Ela descobre o cômico, mas como está sempre relacionando-se com uma felicidade eterna, em recordação eterna, o cômico é um elemento continuamente evanescente. Entreato entre A e B O problema exposto (cf. Seção 2, Capo 4) era um problema existencial e, como tal, patético-dialético. A primeira parte (A), já foi tratada, a parte patética: da relação com uma felicidade eterna. [VII 485] Agora deve-se passar para o dialético (B), que é o decisivo para o problema. Pois a religiosidade que foi tratada até agora e que doravante, por brevidade, aparecerá sob a denominação de religiosidade A, não é a especificamente cristã. Por outro lado, o dialético só constitui o decisivo na medida em que é conectado ao patético para um novo pathos. Em geral não se presta atenção às duas partes ao mesmo tempo. O discurso religioso quer representar o patético e eliminar o dialético, e, por isso, por mais bem-intencionado que seja, é às vezes um pathos confuso e tumultuário, do tipo salada mista: estética, ética, religiosidade A, cristianismo; por isso às vezes é autocontraditório, "mas há passagens adoráveis nele", especialmente adoráveis para quem deve agir e existir de acordo com elas. O dialético se desagrava ao escarnecer, secreta e ironicamente, dos gestos e das grandes palavras e, sobretudo, com seu juízo irônico sobre o discurso religioso, que muito bem pode ser ouvido, mas não pode ser executado. A ciência quer encarregar-se do dialético e, acaba por levá-lo para o medium da abstração, com o que o problema fica de novo mal resolvido, já que é um problema existencial, e a dificuldade dialética propriamente dita desaparece ao ser explicada no medium da abstração, que prescinde da existência. Se o discurso religioso tumultuário é para os homens sensíveis, rápidos em transpirar e livrar-se dele, a concepção especulativa é para os pensadores puros; nenhuma das alternativas, porém, é para seres humanos agentes e, por força do agir, existentes. A distinção entre o patético e o dialético deve, contudo, ser determinada mais precisamente, pois a religiosidade A não é, de jeito nenhum, não dialética, só que não é paradoxalmente dialética. A religiosidade A é a dialética da interiorização; é a relação com uma felicidade eterna não condicionada por algo, mas é a interiorização dialética da relação, portanto só condicionada pela interiorização, que é dialética. Por outro lado, a religiosidade B, como será doravante denominada, ou religiosidade paradoxal, como vinha sendo chamada, ou aquela religiosidade que tem o dialético num segundo lugar, impõe condições de tal modo que estas condições não são aprofundamentos dialéticos da interiorização, mas são algo determinado que determina mais precisamente a felicidade eterna (enquanto que, em A, a determinação mais precisa da interiorização é tão somente a determinação mais precisa), não ao determinar mais precisamente a apropriação que o indivíduo faz dela, mas ao determinar mais precisamente a felicidade eterna, porém não como uma tarefa para o pensamento, mas justamente de modo paradoxal como empurrando para um novo pathos. [VII 486] A religiosidade A tem de estar já presente no indivíduo antes que possa falar de tornar-se atento ao dialético B. Quando o indivíduo, na mais decisiva expressão do pathos existencial, relaciona-se para com uma felicidade eterna, pode-se então falar do tornar-se atento ao modo como o dialético em segundo lugar (secundo loco) o derruba para o pathos do absurdo. Ver-se-á, por isso, quão tolo é quando um homem sem pathos quer relacionar-se com o crístico, pois antes que absolutamente se possa falar sobre simplesmente se estar na situação de tornar-se atento a isso, deve-se, antes, existir na religiosidade A. O errado acontece, entretanto, com bastante frequência: a gente abusa sem mais de Cristo e do cristianismo e do paradoxal e do absurdo, em suma, de todo o crístico, num galimatias estético, bem assim como se o cristianismo fosse um gefundenes Fressen [al.: comida achada, pechincha) para imbecis por não poder ser pensado, e bem como se justamente a determinação de não poder ser pensado não fosse a mais difícil de se manter, quando se há de existir nela - a mais difícil de se manter, especialmente para boas cabeças. A religiosidade A pode estar presente no paganismo, e no cristianismo pode ser a de todo aquele que não é decididamente cristão, seja batizado ou não. Compreende-se, tornar-se uma edição wohlfeil [al.: barata] de um cristão com toda comodidade é muito mais fácil, e ao mesmo tempo tão bom quanto o mais elevado, afinal, ele foi batizado, recebeu de presente uma cópia da Bíblia e um livro de hinos; não é ele, então, um cristão, um cristão evangélico luterano? Porém, isto aí é um assunto para aqueles a quem diz respeito; minha opinião é que a religiosidade A (dentro de cujos limites levo minha existência) é tão fatigante para um ser humano que há sempre bastante tarefa nela; meu propósito é O seguinte: fazer difícil tornar-se um cristão, contudo, não mais difícil do que o é, e não, de modo algum, difícil para homens tolos e fácil para boas cabeças, mas difícil em termos qualitativos, e no essencial igualmente difícil para qualquer ser humano, pois, visto essencialmente, é igualmente difícil para qualquer ser humano renunciar a seu entendimento e a seu pensamento e manter sua alma no absurdo; e comparativamente é mais difícil para aquele que tem muito entendimento, quando a gente recorda que nem todo aquele que não perde seu entendimento por causa do cristianismo, demonstra com isto que o tem. Meu propósito é este, quer dizer, só na medida em que um experimentador que faz tudo por interesse próprio possa ter um propósito. Todo ser humano, o mais sábio e o mais simples, pode, em termos comparativos, de maneira essencialmente igual (o comparativo produz o mal-entendido, como quando uma boa cabeça se compara com um homem simples, [VII 487) ao invés de compreender que a mesma tarefa foi dada a cada um em particular e não para os dois em comparação), fazer a distinção entre aquilo que ele compreende e aquilo que ele não compreende (compreende-se, será o fruto de seu esforço mais exaustivo, esta fatigante conclusão, e dois mil anos se passaram entre Sócrates e Hamann: os dois que sustentaram esta distinção), pode descobrir que há algo que é, embora contra a seu entendimento e pensamento. Se ele arrisca toda a sua vida sobre este absurdo, então executa o movimento em virtude do absurdo, e está essencialmente enganado se o absurdo que escolheu se revelar como não sendo o absurdo. Se este absurdo é o cristianismo, então ele é um cristão crente (A definição de fé foi dada na Seção 2, Capo 2 e Capo 3, sobre idealidade e realidade [Realitet]. Se se raciocina da seguinte maneira: Não se pode parar no não compreender o paradoxo, porque esta é uma tarefa muito pequena e muito fácil ou muito cômoda - então a resposta deve ser: Não, pelo contrário, é exatamente o oposto, é o mais difícil de tudo, entra dia e sai dia relacionar-se com algo sobre o que se fundamenta a sua felicidade eterna, mantendo a paixão com a qual se compreende que não se pode compreender, especialmente quando é muito fácil escorregar para a ilusão de que agora a gente o compreendeu); mas se ele compreende que isso não é o absurdo, então não é, eo ipso, um cristão crente (mesmo que seja batizado, confirmado, portador da Bíblia e do livro de salmos; ainda que este fosse o esperado novo livro de salmos), até que outra vez anule a compreensão como ilusão e mal-entendido, e se relacione com o absurdo cristão. Com efeito, se a religiosidade A não intervém como o terminus a qvo [lat.: ponto de partida] para a religiosidade paradoxal, então a religiosidade A é mais elevada do que a B, pois, nesse caso, o paradoxo, o absurdo etc., não devem ser compreendidos sensu eminenti [lat.: em sentido eminente] (de que não podem absolutamente ser compreendidos, nem pelo mais sabido nem pelo mais tolo), mas empregados esteticamente a respeito do maravilhoso em meio a muitas outras coisas, o maravilhoso que é mesmo maravilhoso, mas que, no entanto, pode ser captado em conceitos. A especulação (à medida que não quer abolir toda religiosidade para nos introduzir em masse na terra prometida do puro ser) tem de consequentemente ser da opinião de que a religiosidade A é superior à B, dado que é a da imanência: Mas por que, então, chamá-la de cristã? O cristianismo não se contentará em ser uma evolução no interior da determinação total da natureza humana; um engagement [fr.: compromisso] deste tipo é muito pouco para se oferecer ao deus; tampouco quer ser uma vez o paradoxo para o crente, e então, de modo sub-reptício, pouco a pouco, torná-lo compreensível, [VII 488] pois o martírio da fé (crucificar o próprio entendimento) não é o martírio do momento, mas justamente o martírio da constância. Existindo religiosamente, a gente pode expressar sua relação com uma felicidade eterna (imortalidade, vida eterna) fora do cristianismo, e isto por certo também tem acontecido; pois da religiosidade A pode-se dizer que, mesmo que não tivesse ocorrido no paganismo, poderia ter ocorrido, porque tem como seu pressuposto apenas a natureza humana no que esta tem de comum, enquanto que a religiosidade com o dialético no segundo lugar não pode ter sido anterior a si mesma, e, depois de ter surgido, não se pode dizer que poderia ter ocorrido onde não ocorreu. O específico para o cristianismo é o dialético no segundo lugar, só que, é bom notar, isto não é tarefa para o pensamento (como se o cristianismo fosse uma doutrina, não uma comunicação existencial; cf. Seção 2, Capo 2; cf. Seção 2, Capo 4, sectio 1, § 2), mas relacionando-se com o patético como um incitamento para novo pathos. Na religiosidade A, uma felicidade eterna é algo simples, e o patético torna-se o dialético na dialética da interiorização; na religiosidade B, o dialético fica num segundo lugar, dado que a comunicação se orienta para a existência, pateticamente na interiorização. Conforme [o modo] como o indivíduo, existindo, expressa o pathos existencial (resignação - sofrimento - totalidade da consciência da culpa), no mesmo grau aumenta a sua relação patética com uma felicidade eterna. Quando então a felicidade eterna, por ser o absoluto, tornou-se para ele absolutamente o único consolo, e quando então no aprofundamento existencial, a relação com ela é reduzida ao seu mínimo, enquanto a consciência da culpa é a relação repulsiva e quer, continuamente, retirá-la dele, e, contudo, este mínimo e esta possibilidade são absolutamente mais para ele do que qualquer outra coisa: então o conveniente é começar com o dialético - quando ele estiver neste estado, [o dialético] provocará um pathos ainda mais elevado. Mas a gente não se prepara para tornar-se atento ao cristianismo com a leitura de livros, ou com as visões panorâmicas histórico-universais, mas com o aprofundar-se no existir. Qualquer outro estudo preliminar acabará eo ipso num mal-entendido, pois o cristianismo é comunicação existencial, ele se recusa a ser compreendido (cf. Seção 2, Capo 2), o dificultoso não é o compreender o que seja o cristianismo, mas sim o tornar-se e o ser um cristão (cf. Seção 2, Capo 4, sectio 1, § 2). Anotação: Uma vez que o edificante é um predicado essencial de toda religiosidade, a religiosidade A também terá o seu edificante. Onde quer que a relação com Deus seja encontrada pelo existente na interioridade da subjetividade, aí estará o edificante, que pertence à subjetividade, enquanto que pelo tornar-se objetivo a gente renuncia àquilo que, [VII 489] embora pertencente à subjetividade, não é, contudo, o arbitrário, tampouco como o amor e o amar, a que, aliás, a gente também renuncia ao tornar-se objetivo. A totalidade da consciência da culpa é o que há de mais edificante na religiosidade A. (Recorde o leitor de que uma relação direta com Deus não passa de estética e não é propriamente nenhuma relação com Deus, tampouco como uma relação direta com o absoluto é uma relação absoluta, dado que a separação [Udsondring: segregação] do absoluto não ocorreu. Na esfera religiosa, o positivo torna-se reconhecível pelo negativo. O maior bem-estar de uma imediatidade feliz, que lança gritos de alegria por causa de Deus e de toda a existência, é muito amável, mas não é edificante e, essencialmente, não é nenhuma relação com Deus). O edificante na esfera da religiosidade A é o da imanência, é a aniquilação, na qual o indivíduo põe a si mesmo de lado para encontrar Deus, já que, com efeito, é o indivíduo mesmo que constitui o obstáculo. (O estético sempre reside em que o indivíduo imagina estar muito ocupado atingindo Deus e agarrando-o - reside, pois, na ilusão de que o indivíduo não di ai ético já será bem jeitoso se conseguir agarrar Deus como algo exterior). O edificante é também aqui muito corretamente distinguível pelo negativo, pela autoaniquilação que encontra no interior de si mesma a relação com Deus, que, perpassado pelo sofrimento, mergulha na relação com Deus, fundamenta-se nela, porque Deus está no fundamento, assim que tudo que está no caminho seja removido, toda finitude, e, antes de tudo, o próprio indivíduo em sua finitude, em sua mania de querer ter razão frente a Deus. Esteticamente, o lugar sagrado de repouso do edificante está fora do indivíduo, que procura o lugar; na esfera ético-religiosa, o próprio indivíduo é o lugar, quando o indivíduo tiver aniquilado a si mesmo. Este é o edificante na esfera da religiosidade A. Se a gente não presta atenção a isto e não leva em conta esta determinação do edificante em meio a isso, tudo se confunde novamente quando se determina o edificante paradoxal, que então se confunde com uma relação estética voltada para fora. Na religiosidade B, o edificante é algo fora do indivíduo; o indivíduo não encontra edificação ao encontrar a relação com Deus no interior de si mesmo, mas relaciona-se com algo exterior a si mesmo a fim de encontrar edificação. O paradoxo está em que esta relação aparentemente estética, que o indivíduo se relacione com algo externo a ele mesmo, deve ser, contudo, a absoluta relação com Deus; pois na imanência Deus nem é uma coisa, mas sim tudo, e é infinitamente tudo, nem está fora do indivíduo, pois a edificação consiste justamente em que ele esteja no interior do indivíduo. O edificante paradoxal, portanto, corresponde à determinação de Deus no tempo como um ser humano individual, pois, quando é assim, o indivíduo relaciona-se com algo fora de si mesmo. Que isto não se deixa pensar é justamente o paradoxal. Algo diferente é saber se o indivíduo não é empurrado de volta para fora daí: isso é problema dele. Mas se não se sustenta o paradoxo deste modo, então a religiosidade A é mais elevada, e todo o cristianismo é jogado de volta para determinações estéticas, [VII 490] a despeito da insistência do cristianismo de que o paradoxo do qual fala não se deixa pensar; diferentemente, pois, de um paradoxo relativo, que pode ser pensado, höchstens [al.: no máximo, na pior das hipóteses], com dificuldade. Deve-se conceder à especulação que se mantenha na imanência, mesmo que isto deva ser entendido de modo diferente do puro pensar de Hegel, mas a especulação não pode chamar-se de cristã. É por isso que a religiosidade A nunca foi chamada por mim de cristã ou de cristianismo. B O dialético É com isto, essencialmente, que as Migalhas lidaram; por isso, posso reportar-me continuamente a elas, e posso ser mais breve. A dificuldade reside apenas em manter a dialética qualitativa do paradoxo absoluto e desafiar as ilusões dos sentidos. No que tange ao que pode, deve e virá a ser o paradoxo absoluto, o absurdo, o incompreensível, o importante é que a paixão mantenha dialeticamente a distinção da incompreensibilidade. Assim como, em relação a algo que pode ser compreendido, é ridículo ouvir uma supersticiosa e exaltada conversa obscura a respeito de sua incompreensibilidade, seu oposto também é ridículo: ver, em relação ao essencialmente paradoxal, tentativas de compreendê-lo, como se a tarefa fosse esta, e não, justamente o oposto qualitativo disso: sustentar que ele não pode ser compreendido, para que a compreensão, ou seja, a má compreensão, não acabe por confundir também todas as outras esferas. Se o discurso religioso-paradoxal não atenta a isto, abandona-se a uma justificada interpretação irônica, quer o discurso, com o obnubilamento de um despertado e o inebriamento espiritual vislumbre por trás da cortina, se aconselhe com obscuras runas, lance um olhar para a explicação, e após faça um sermão sobre isso em um tom cantante que é a ressonância do convívio antinatural do vidente com as coisas maravilhosas, dado que o paradoxo absoluto declina justamente de qualquer explicação; quer o discurso religioso-paradoxal modestamente renuncie à compreensão, disposto contudo a reconhecer que se trata de algo muito mais elevado; quer faça uma corrida de impulsão para a compreensão e somente depois conceda a incompreensibilidade; ou trace um paralelo entre a incompreensibilidade do paradoxo com alguma outra coisa etc. Todas essas coisas, que a ironia precisa farejar e trazer à luz do dia, baseiam-se no fato de que não se respeita a dialética qualitativa das esferas; que o que é o meritório em relação ao que não se compreende, [VII 491] mas que, não obstante, essencialmente é compreensível, a saber, o compreendê-lo, que isto, em relação ao que é essencialmente incompreensível, está longe de ter mérito. O mal-entendido se baseia em que, a despeito de uso do nome de Cristo etc., o cristianismo tem sido relegado ao estético (algo que os hiperortodoxos, inconscientemente, conseguem realizar especialmente bem), onde o incompreensível é o relativamente incompreensível (relativamente: quanto ao ainda não ter sido compreendido, ou quanto à necessidade de um vidente com olhos de falcão para compreendê-lo), o qual tem sua explicação, como algo de superior, no tempo, para trás, ao invés de ser o cristianismo uma comunicação existencial que faz com que o existir seja paradoxal, razão porque ele se mantém como o paradoxo enquanto se existe, e só na eternidade ele tem a explicação; sem que por isso fosse meritório querer, enquanto se está no tempo, atamancar numa explicação, isto é, querer fantasiar que se está na eternidade, pois enquanto se está no tempo, a dialética qualitativa acusa toda tentativa deste tipo de ser intromissão ilegítima. A dialética qualitativa continuamente inculca que não se deve flertar in abstracto com aquilo que é o mais elevado, e depois tentar aí agir canhestramente, mas que se deve compreender in concreto a própria tarefa e expressá-la essencialmente. Mas há certas coisas que entram com mais dificuldade na cabeça de certas pessoas, e, entre elas, inclui-se a determinação apaixonada do incompreensível. O discurso começa talvez de modo completamente adequado, mas, vupt, a natureza ultrapassa a disciplina, e Sua Reverência não consegue resistir à ilusão de que vislumbrar seja algo de mais elevado, e então começa a comédia. Já em relação a muitos problemas relativos, as pessoas seguidamente tornam-se ridículas por seu empenho atabalhoado em explicá-los com um indício profundo. Mas em relação ao paradoxo absoluto, este vislumbre e contração das pálpebras, este silêncio atento da congregação dos despertados, que só é quebrado quando um despertado depois do outro levanta-se e, numa postura tensa, procura vislumbrar aquilo que Sua Reverência vislumbra, enquanto as mulheres tiram seus chapéus para capturar cada palavra profética: toda esta tensão com relação aos vislumbres de Sua Reverência é muito ridícula. E o mais ridículo de tudo é que este vislumbre deva ser algo de mais elevado do que a paixão da fé; se devesse ser alguma coisa, deveria antes ser algo para tolerar como uma fraqueza num crente mais fraco, que não tivesse força para acentuar apaixonadamente a incompreensibilidade e, por isso, precisasse vislumbrar alguma coisinha; pois todo vislumbrar é impaciência. E o prazer de vislumbrar e de buscar indícios comumente também só é tentador para certa classe de pessoas limitadas e fantasiosas; [VII 492] qualquer um mais aplicado e mais sério esforça-se para saber o que é o que, se é algo que se pode e deve compreender, de modo que não vai querer vislumbrar; ou se é algo que não se pode nem se deve compreender, e aí tampouco vai querer vislumbrar nem tampouco, o que neste caso é o mesmo, fazer pilhérias; pois, a despeito das sérias caretas e das sobrancelhas alçadas, esse vislumbre não passa de travessura, ainda que o Sr. Knud, seu autor, creia tratar-se da mais pura seriedade. Todo este vislumbre com tudo o que lhe pertence, que, afinal de contas, por qualquer que seja a razão, raramente aparece em nosso tempo, não é mais nem menos do que um piedoso flerte. Um clérigo cristão que não sabe, com humildade e com a paixão do esforço existencial, conter-se e à sua congregação ao anunciar que o paradoxo não pode e não deve ser compreendido, que não estabelece a tarefa como sendo justamente mantê-lo, e suportar esta crucifixão do entendimento, mas que compreendeu especulativamente tudo: é cômico. Mas quanto mais alguém acentua o incompreensível, se mesmo assim ele termina em vislumbres, tanto mais corrosivo é o seu flerte, porque tudo isso se torna um cumprimento a ele mesmo; enquanto que a dificuldade e a incompreensibilidade são um obstáculo aos "desprovidos de espírito", ele é bastante espirituoso - para vislumbrar [algum sentido] no discurso obscuro. O cristianismo é uma comunicação existencial que torna o existir paradoxal, e tão difícil como jamais o foi antes e jamais poderá ser fora dele; porém não é um atalho para o tornar-se incomparavelmente espirituoso. De modo especial entre estudantes universitários despertados aparece talvez, contudo, o fenômeno de que, quando não se consegue progredir pelo caminho estreito da ciência, do conhecimento e do pensamento, a gente pula fora e se torna absolutamente despertado [ou: esperto] - e incomparavelmente brilhante de espírito. É melhor, neste caso, o mal-entendido da especulação, no qual, fora isso, há uma abundância tanto para aprender quanto para admirar nos homens que combinam o poder do gênio com uma persistência férrea; é melhor o mal-entendido da especulação: de que ela possa tudo explicar. Com a crucifixão do entendimento feita pela fé ocorre o mesmo que com muitas determinações éticas. Alguém renuncia à vaidade - mas quer ser admirado por fazê-lo. Alguém abandona o entendimento, como ele o diz, para então crer - mas então adquire um entendimento mais elevado, um entendimento tão elevado que, em virtude deste, ele se comporta como um vidente incomparavelmente brilhante de espírito etc. Mas é sempre escabroso querer tirar vantagem ou receber da própria religiosidade vantagens que dão na vista. Porque um indivíduo, na fé, abandona o entendimento, e crê contra o entendimento, não deve, por isso, julgar o entendimento como uma coisa mais humilde, ou subitamente inventar falsamente para si mesmo [VII 493] uma distinção esplêndida no interior do âmbito total do entendimento; pois um entendimento superior ainda é também, afinal de contas, um entendimento. Aí reside a arrogância do despertado religioso; mas assim como se deve ser respeitoso ao lidar com um cristão, e assim como se deve ser cuidadoso com o doentio que às vezes pode perturbar e ter um efeito perturbador num período de transição: assim também se deve calmamente entregar um despertado arrogante ao tratamento da ironia. Se o morador do mosteiro, no período degenerado da Idade Média, quisesse tirar vantagem desta sua vida para ser honrado como um santo: assim também é digno de repreensão, e só um pouco mais ridículo, pretender tornar-se incomparavelmente brilhante de espírito graças à sua religiosidade; e se é um triste erro, em vez de se tornar sempre mais humilde, pela virtude e pela santidade, querer ser diretamente semelhante a Deus, então ainda mais ridículo é querer sê-lo por se ter um cérebro incomparavelmente brilhante; pois virtude e pureza estão de qualquer modo ainda essencialmente ligadas à natureza de Deus, mas essa outra determinação torna o próprio Deus ridículo como tertium comparationis [lat.: terceiro elemento para comparação]. Aquele que verdadeiramente renunciou ao seu entendimento e crê contra o entendimento sempre há de preservar um respeito cheio de simpatia por esta capacidade, cujo poder conhece muito bem por tê-la contra si; e também, com seu esforço diário para conservar-se na paixão da fé, que empurra para frente contra o entendimento, o que é como rolar um peso montanha acima, neste esforço ele estará impedido de bancar o gênio por conta de sua religiosidade. A contradição no despertado arrogante está em que ele, depois de ter sido introduzido, graças ao confronto da fé com o entendimento, no último recôndito da interioridade, quer também estar lá fora na rua e ser incomparavelmente brilhante de espírito. E a farsa, ou representação beneficente, se torna em seu progresso igualmente ridícula, tanto no caso de ele tirar proveito da admiração do mundo quando a ocasião se apresenta (uma nova inconsistência: que alguém que tenha um entendimento mais elevado vá permitir-se ser admirado pelo mundo, que, afinal, tem apenas um entendimento inferior, e cuia admiração, portanto, não tem sentido); ou no caso de ele condenar e trovejar contra a carência de espírito do mundo, quando este não quiser admirar (uma cerimônia estranha, dado que ele bem sabe, é claro, que o mundo tem apenas o entendimento inferior); reclamar por estar sendo mal compreendido, o que, de qualquer modo, está totalmente em ordem, e a reclamação acerca disso é apenas um mal-entendido, que trai a secreta ligação entretida por ele com o mundano. O mal-entendido consiste sempre na ilusão de que a incompreensibilidade do paradoxo devesse relacionar-se com a diferença entre maior ou menor entendimento, com a comparação entre cabeças boas e ruins. [VII 494] O paradoxo relaciona-se essencialmente com o fato de se ser um ser humano, e, qualitativamente, com cada ser humano em particular, tenha ele muito ou pouco entendimento. Portanto, o mais inteligente dos homens pode muito bem crer (contra o entendimento) e só ser impedido de crer, devido ao seu grande entendimento, por ter também a vantagem de saber bem o que significa crer contra o entendimento. Sócrates, cuja ignorância foi acima mostrada (Seção 2, Cap. 2) como uma espécie de analogia da fé (mantendo continuamente em mente, entretanto, que não há analogias ao religioso-paradoxal em sua integridade), não era um imbecil, porque não flertava com vislumbrar e saber isto ou aquilo; porém queria ser absolutamente ignorante. Mas, por outro lado, tampouco ocorreu jamais a Sócrates, depois de ter desaprovado o saber humano ordinário, querer ser admirado por seu entendimento superior, ou querer envolver-se diretamente com qualquer ser humano, dado que ele, em sua ignorância, tinha destruído essencialmente a comunicação com todos eles. Os despertados têm-se ocupado, bem frequentemente, com o mundo ímpio, que zomba deles, algo que eles próprios, em outro sentido, desejam, a fim de estarem bem certos de que são despertados - já que são escarnecidos - e então, outra vez, a fim de terem a vantagem de poder reclamar da impiedade do mundo. Entretanto, é sempre uma demonstração duvidosa da incredulidade do mundo que ele ria de um despertado - em especial quando este começa a vislumbrar coisas, pois aí este é realmente ridículo. Em nossa época, cuja tolerância ou indiferença é tão grande, por certo não seria absolutamente impossível para um cristão verdadeiro - que, rigoroso consigo mesmo, não se ocupa com julgar os outros - conseguir que lhe permitam ir levando a vida em paz; mas, dá para entender, ele ainda teria dentro de si o martírio: de crer contra o entendimento. Mas tudo o que é arrogante, se, por acréscimo, for autocontraditório, é cômico. Tomemos alguns exemplos de situações menores da vida, mas sempre lembrando para a aplicação a diferença absoluta, e lembrando que não possui nenhuma analogia com a esfera do paradoxalmente religioso, e, portanto, que este uso, quando entendido, é uma revogação. Um homem organiza sua vida de determinada maneira, uma maneira que, de acordo com seu conhecimento de si mesmo, de suas capacidades, defeitos etc., é a mais proveitosa para ele e, neste sentido, também a mais agradável; portanto, pode muito bem ser que este modo de vida, e especialmente sua realização consequente, a um primeiro olhar, ou a partir de muitos outros pontos de vista diferentes, se mostre ridículo: se ele for uma pessoa arrogante, seu estranho modo de vida será naturalmente aclamado como um entendimento superior etc. [VII 495]; se, ao contrário, ele for uma pessoa séria, ouvirá calmamente o ponto de vista da outra pessoa; pelo modo como se engaja num diálogo sobre isso, mostra que ele próprio percebe muito bem o aspecto cômico que a coisa toda tem para algum terceiro - e, depois, volta para casa muito calmamente e segue seu próprio plano de vida, concebido de acordo com seu conhecimento de si mesmo. Assim também com alguém que é verdadeiramente um cristão - se lembramos que não há analogia. Ele pode muito bem ter entendimento (de fato, tem de tê-lo para crer contra o entendimento), pode usá-lo em todas as outras circunstâncias, pode usá-lo no convívio com outros (já que é uma inconsistência querer conversar com alguém que não tenha um entendimento superior, quando a própria pessoa quer usar um entendimento superior, pois a conversa é a expressão do ordinário, e a relação entre alguém que tem um entendimento superior e uma pessoa ordinária será a de um apóstolo ou de um mestre absoluto, mas não de um companheiro), ele conseguirá entender muito bem qualquer objeção, até levá-las adiante tão bem quanto qualquer outra pessoa, pois, em outro caso, um entendimento superior se tornará, de modo dúbio, um ambíguo encorajador de bobagens e absurdos. É bastante fácil pular fora da cansativa tarefa de desenvolver e acurar o próprio entendimento e então provocar para si, no passo da valsa, um grito mais elevado, e defender-se de qualquer imputação com a observação: de que se trata de um entendimento superior (É por isto que foi dito acima que é sempre uma coisa grave apresentar como sendo o absurdo, o incompreensível, algo que outra pessoa possa explicar que é fácil de entender). Portanto, o cristão crente não só possui, mas também utiliza seu entendimento, respeita o que é comum a todos os humanos, não vem com a explicação de que se alguém não se tornar cristão será por falta de entendimento, mas na relação com o cristianismo ele crê contra o entendimento e emprega também aqui o entendimento - a fim de prestar atenção a que crê contra o entendimento. Por isso, não crê no sem-sentido contra o entendimento, como alguém poderia temer, pois o entendimento perceberá com acuidade que se trata de algo sem sentido e o impedirá de crer naquilo; mas ele usa tanto o entendimento que, graças a este, torna-se atento ao incompreensível, e então se relaciona com isto crendo contra o entendimento. - Uma individualidade ética entusiasmada emprega o entendimento para descobrir o que é mais sagaz, a fim de não fazê-lo: pois aquilo que nós, de ordinário, chamamos de mais sagaz, raramente é o nobre. Mas até mesmo este comportamento (uma espécie de analogia com o do crente, [VII 496] só que a compreensão da aplicação é revogação) bem raramente é entendido; e quando se vê uma pessoa entusiasticamente sacrificar-se, entusiasticamente escolher o esforço em vez do conforto, sim, um esforço que só é recompensado com ingratidão e perda, em vez do conforto que seria recompensado com admiração e vantagem: aí muitos pensam que isto é uma espécie de limitação, sorriem para ela, e talvez, em um acesso de bondade, chegam ao ponto de ajudar o pobre camarada a ver qual é a coisa mais sagaz a ser feita - embora só ajudem o pobre simplório a ter um pequeno vislumbre irônico sobre a alma do conselheiro. Tal aconselhar é um mal-entendido que se baseia mais na falta de entusiasmo do que na falta de entendimento. O ético cheio de entusiasmo não se deterá, portanto, de modo algum, nem na objeção nem na zombaria; muito antes disto lhe acontecer, já se teria posto em condições de ver que era provável que acontecesse; será mais capaz do que qualquer outro de interpretar seu esforço como cômico e então, muito calmamente, teria escolhido usar o entendimento para ver o que é mais sagaz, para então deixar de fazê-lo. A analogia não é direta, pois, para tal ético entusiasta, não há sofrimento nesta relação contra o entendimento; seu entusiasmado agir é contudo entendimento do que é infinito, e ele só rompe com a sordidez sagaz; nele não há ruptura, e nenhum sofrimento por ruptura. Mas um crente que crê, isto é, crê contra o entendimento (A fé pertence, essencialmente, à esfera do religioso-paradoxal, como tem sido continuamente enfatizado (cf., entre outras passagens, Seção 2, Cap. 2, e 3); toda outra fé é apenas uma analogia, que não é nenhuma, uma analogia que pode servir para tornar atento, mas nada mais, cujo entendimento é, por isto, uma revogação), leva a sério o mistério da fé e não flerta com o compreender, mas está consciente de que curiosidade que busca vislumbres é infidelidade e frauda a tarefa. O dialético do problema requer a paixão do pensar - não para querer entendê-lo, mas para entender o que significa romper desta maneira com o entendimento, e com o pensamento, e com a imanência, a fim de, então, perder o último ponto de apoio da imanência, a eternidade atrás de si e, situado no extremo da existência, existir em virtude do absurdo. Como já foi dito, é particularmente esta dialética que as Migalhas discutem; eu devo ser mais breve e, ao referir-me àquelas [Migalhas], apenas tentar, tanto quanto possível, resumi-las de modo ainda mais definido. § 1 [VII 497] A contradição dialética que é a ruptura: esperar uma felicidade eterna no tempo mediante uma relação com outro no tempo Nesta contradição a existência é paradoxalmente acentuada, e a distinção entre aqui e no além é absolutamente determinada pela acentuação paradoxal da existência, porque o próprio eterno veio a existir em um momento do tempo. Convém lembrar constantemente que não assumo para mim a tarefa de explicar o problema, mas apenas de apresentá-lo. A concepção da distinção entre "aqui e no além" é decisiva para toda comunicação existencial. A especulação a supera absolutamente (ela é uma expressão do princípio da contradição) no puro ser; esta superação, por sua vez, é uma expressão de que a especulação não é uma comunicação existencial, o que perfaz sua dubiedade, à medida que quer explicar a existência. A religiosidade A, que não é a especulação, porém é especulativa, reflete sobre esta distinção ao refletir sobre o existir; mas mesmo a categoria decisiva da consciência de culpa ainda se encontra no interior da imanência. O religioso-paradoxal determina a distinção absolutamente ao acentuar paradoxalmente o existir. Com efeito, já que o eterno veio a existir em um momento do tempo, o indivíduo existente não chega, no tempo, a relacionar-se com o eterno, ou recordar sua relação (isto é A), mas [só] consegue no tempo relacionar-se com o eterno [que está] no tempo; de modo que a relação está, portanto, dentro do tempo, relação esta que contraria diretamente todo pensamento, quer se reflita sobre o indivíduo, quer sobre o deus. A concepção da distinção "aqui e no além" é, no fundo, a concepção do existir, e em torno disso, outra vez, as distinções se concentram quando se leva em conta que o cristianismo não é uma doutrina, e sim uma comunicação existencial. A especulação abstrai da existência; para ela, o existir se transforma no ter existido (o caráter de passado), a existência [se transforma] no momento evanescente e superado no puro ser do eterno. A especulação jamais pode, como abstração, tornar-se contemporânea com a existência e, por isso, não pode captar a existência como existência, mas somente após. É isto o que explica por que a especulação prudentemente guarda distância da ética e por que se torna ridícula quando se mete nisto. A religiosidade A acentua o existir como realidade efetiva, e a eternidade, que na imanência subjacente ainda sustenta o todo, desaparece de tal modo que o positivo se deixa ver pelo negativo. [VII 498] Para a especulação, a existência já desapareceu e só há o puro ser; para a religiosidade A, só é efetividade a existência, e, contudo, o eterno está constantemente oculto para ela, e ocultamente presente. O religioso-paradoxal põe de modo absoluto a contradição entre a existência e o eterno; pois justamente isto, que o eterno esteja em um determinado momento temporal, expressa que a existência é abandonada pela imanência oculta do eterno. Na religiosidade A, o eterno está ubique et nusquam [lat.: em toda parte e em lugar algum], mas oculto da realidade efetiva da existência; no religioso-paradoxal, o eterno está num lugar determinado, e isto constitui justamente a ruptura com a imanência. Na Seção 2, Capo 2, ficou dito que aquilo que nossa época esqueceu, e o que permite explicar o mal-entendido da especulação sobre o cristianismo, é: o que significa existir e o que é interioridade. É bem correto que o religioso seja a interioridade existente, e a religiosidade se eleva tanto mais quanto mais se aprofunda esta determinação, e o religioso-paradoxal se torna o derradeiro. De acordo com sua determinação da interiorização dialética do indivíduo se escalonam todas as concepções da existência. Pressupondo o que foi desenvolvido a respeito neste livro, devo agora apenas recapitular lembrando que, naturalmente, a especulação está fora do jogo, dado que, como objetiva e abstrata, é indiferente quanto à categoria do sujeito existente, e no máximo tem a ver com a humanidade pura; enquanto comunicações existenciais entendem algo diferente por unum [um], quando se diz unumnoris, omnes [lat.: se conheces um, conheces todos], entendem algo diferente por "ti mesmo" quando se diz "conhece-te a ti mesmo", entendem com isto um ser humano real efetivo, e com isso indicam que elas não se ocupam com as diferenças anedóticas entre Fulano e Beltrano. - Se, em si mesmo, o indivíduo é não dialético e tem sua dialética fora de si mesmo: então temos as concepções estéticas. Se o indivíduo está orientado dialeticamente para seu interior em autoafirmação de tal modo que o último fundamento não se torna dialético em si, já que o si-mesmo subjacente é usado para ultrapassar e afirmar a si mesmo: então temos a concepção ética. Se o indivíduo está determinado dialeticamente orientado para o interior em autoaniquilação diante de Deus: então temos a religiosidade A. Se o indivíduo for dialético-paradoxal, se todo resíduo de imanência original estiver aniquilado, e toda conexão cortada, e o indivíduo situado nos extremos da existência: então teremos o religioso-paradoxal. Esta interioridade paradoxal é a maior possível, [VII 499] pois até a mais dialética determinação, se ainda estiver no interior da imanência, terá, por assim dizer, uma possibilidade de escape, de pular fora, de um retomar-se para dentro do eterno atrás de si; é como se não estivesse realmente tudo empenhado. Mas a ruptura faz da interioridade a maior possível. (De acordo com este esquema, a gente será capaz de orientar-se e, sem se deixar perturbar pelo uso que alguém faça do nome de Cristo e de toda a terminologia cristã em um discurso estético, será capaz de olhar somente para as categorias). De acordo com a concepção do que seja "existir" escalonam-se, por sua vez, as diversas comunicações existenciais. (A especulação, como abstrata e objetiva, ignora completamente o existir e a interioridade; e é, dado que o cristianismo de fato acentua paradoxalmente o existir, o maior mal-entendido possível em relação ao cristianismo.) A imediatidade, o estético, não encontra nenhuma contradição no existir; existir é uma coisa, contradição é outra coisa que vem de fora. O ético encontra a contradição, mas no interior da autoafirmação. A religiosidade A concebe a contradição como sofrimento na autoaniquilação, contudo no interior da imanência; mas, ao acentuar eticamente o existir, ela impede o existente de permanecer abstratamente na imanência, ou de se tornar abstrato ao querer permanecer na imanência. O religioso-paradoxal rompe com a imanência, e faz do existir a contradição absoluta, não no interior da imanência, mas contra a imanência. Não há nenhum parentesco imanente subjacente entre o temporal e o eterno, porque o próprio eterno veio ao tempo e aí quer constituir parentesco. Anotação: Compare-se isto com os dois primeiros capítulos das Migalhas a respeito do aprendizado da verdade, o instante, o deus no tempo como mestre. Na concepção estética, um é o mestre, o outro é o aprendiz; então este, por sua vez, é o mestre etc. - em resumo, a relação é a da relatividade. Religiosamente, não há nem discípulo nem mestre ("o mestre é apenas a ocasião", cf. Migalhas); cada indivíduo é no essencial eternamente estruturado de igual modo e essencialmente relacionando-se ao eterno; o mestre humano é uma passagem evanescente, No modo religioso-paradoxal, o mestre é o deus no tempo, o discípulo é uma nova criação ("O deus como mestre no tempo oferece também a condição", cf Migalhas). No interior do religioso-paradoxal, vale entre um homem e outro a religiosidade A. Portanto, quando um cristão (que paradoxalmente é um discípulo do deus, no sentido de ser uma nova criação), no interior do cristianismo, se torna, por sua vez, um discípulo deste ou daquele, aí desperta uma suspeita indireta de que todo o seu cristianismo ainda seja um pouco de galimatias estético. [VII 500] O problema tratado constantemente aqui era: como pode ser dado um ponto de partida histórico etc. Na religiosidade A não há nenhum ponto de partida histórico. O indivíduo descobre apenas no tempo que deve pressupor-se como eterno. O momento no tempo é, portanto, eo ipso engolido pelo eterno. No tempo, o indivíduo reflete sobre o fato de que é eterno. Esta contradição está apenas no interior da imanência. É diferente quando o histórico está fora e permanece fora, e o indivíduo, que não era eterno, agora se torna eterno, portanto não reflete sobre o que é, mas se torna o que não era, e, convém notar, torna-se algo que tem a dialética de que, assim que passe a ser, deve necessariamente ter sido, pois esta é a dialética do eterno. - O que é inacessível a qualquer pensamento é: que a gente possa tornar-se eterno embora a gente não o fosse. Em A, o existir, minha existência, é um momento no interior da minha consciência eterna (é bom notar, o momento que é, não o momento que passou, pois este último é uma volatilização da especulação), assim, alguma coisa de menor que me impede de ser o infinitamente maior que eu sou; em B, ao contrário, o existir, embora ainda menor por ser paradoxalmente acentuado, é, entretanto, muito maior, que só na existência eu me torno eterno e, portanto, o existir engendra de si mesmo uma determinação que é infinitamente maior do que o existir. §2 A contradição dialética de que uma felicidade eterna se baseie na relação com algo histórico Para o pensamento vale que o eterno é superior a tudo o que é histórico, dado que ele é o que serve de base. Na religiosidade da imanência, portanto, o indivíduo não baseia no seu existir no tempo a sua relação para com o eterno; mas, a relação do indivíduo para com o eterno determina, na dialética da interiorização, que este transforme sua existência de acordo com a relação, exprima sua relação pela transformação. A confusão da especulação, aqui como em toda parte, está em que esta se perde no puro ser. Visões irreligiosas e imorais da vida fazem do existir um nada, uma bobagem. A religiosidade A faz do existir algo tão tenso quanto possível (fora da esfera do religioso-paradoxal); mas não baseia a relação para com uma felicidade eterna sobre seu existir, e sim faz com que a relação para com uma felicidade eterna baseie a transformação da existência. Da relação do indivíduo para com o eterno resulta o "como" da existência dele, e não o contrário, razão pela qual vem à luz infinitamente mais do que tinha sido colocado. [VII 501] A contradição dialética consiste aqui, entretanto, essencialmente, em que o histórico esteja em outro lugar. Vale, com efeito, para todo saber e conhecimento histórico que, mesmo em seu máximo, ele é apenas uma aproximação. A contradição está em basear sua felicidade eterna em uma aproximação, o que só se deixa fazer quando não se tem nenhuma determinação eterna em si mesmo (o que, por sua vez, não se deixa pensar, nem o modo como alguém chega a tal ideia; portanto, o deus tem de dar a condição), e esta é a razão pela qual isto, por sua vez, está em conexão com a acentuação paradoxal da existência. Em relação ao histórico, todo saber ou todo conhecimento a respeito é, em seu máximo, uma aproximação, mesmo em relação ao próprio saber do indivíduo a respeito de sua própria exterioridade histórica. A razão disto é, em parte, a impossibilidade de ser capaz de identificar-se absolutamente com o objetivo e, em parte, que tudo o que é histórico, visto que deve ser conhecido, é, eo ipso, passado, e possui a idealidade da recordação. Na Seção 2, Capo 3, está exposta a tese de que a efetividade ética própria do indivíduo é a única realidade efetiva, mas a efetividade ética não está na exterioridade histórica do indivíduo. Que minha intenção era esta e aquela, posso, em toda a eternidade, saber absolutamente, pois esta é a expressão do eterno em mim, sou eu mesmo, mas a exterioridade histórica do próximo instante só pode ser alcançada approximando [lat.: por aproximação]. O historiador busca alcançar a maior certeza possível, e o historiador não cai em nenhuma contradição, pois não está apaixonado; no máximo tem ele a paixão objetiva do pesquisador, mas não está subjetivamente apaixonado. Participa, como pesquisador, de um esforço maior, de geração em geração; é sempre importante para ele, objetiva e cientificamente, chegar o mais próximo possível da certeza; mas isto para ele não é subjetivamente importante. Se, por exemplo, se tornasse subitamente uma questão de honra pessoal (o que, contudo, é um defeito em um pesquisador) para um pesquisador obter certeza absoluta sobre isto e aquilo, ele, tendo se exposto a uma Nemesis justa, descobriria que todo saber histórico é apenas uma aproximação. Isto não é nenhuma diminuição do pesquisar histórico, mas justamente ilumina a contradição em trazer a mais extrema paixão da subjetividade para a relação com algo histórico, que é a contradição dialética no problema, que não fala de alguma paixão injustificada, mas da mais profunda de todas. - O filósofo busca permear a efetividade histórica com o pensamento, está objetivamente ocupado com este trabalho e, quanto mais tem sucesso, menos importante torna-se para ele o detalhe histórico. Aqui, outra vez, nenhuma contradição. A contradição só aparece quando o sujeito, no extremo de sua paixão subjetiva (no cuidado por uma felicidade eterna), deve baseá-la em um conhecimento histórico, [VII 502] cujo máximo permanece uma aproximação. O pesquisador leva a vida calmamente; o que o ocupa objetiva e cientificamente não tira nem põe, em seu subjetivo ser e existir. Caso se suponha que alguém de um ou outro modo está subjetivamente apaixonado, e a tarefa então é renunciar a esta paixão, então a contradição também desaparecerá. Mas exigir a paixão subjetiva maior possível, até o ponto de odiar pai e mãe, e então colocá-la em conexão com o conhecimento histórico que, em seu máximo, só pode ser uma aproximação - isto é a contradição. E a contradição é, por sua vez, uma nova expressão para a paradoxal ênfase na existência; pois, se há algum resto de imanência, qualquer determinação eterna remanescente no existente; então não dá para fazer. O existente tem de ter perdido a continuidade consigo mesmo, precisa ter-se tornado outro (não diferente de si mesmo no interior de si mesmo), e agora, ao receber a condição do deus, tornar-se uma nova criatura. A contradição é que o tornar-se um cristão comece com o milagre da criação, e que isto aconteça a alguém que [já] foi criado, e que no entanto o cristianismo seja proclamado a todos os homens, que devem ser considerados como não existindo, dado que o milagre pelo qual eles vieram à existência tem de intervir como real [efetivo] ou como uma expressão da ruptura com a imanência e da resistência, que absolutamente faz com que a paixão da fé seja paradoxal enquanto haja existência na fé, isto é, por toda uma vida; pois ele sempre baseou, afinal, sua felicidade eterna em algo histórico. Aquele que, no estado de paixão maior possível, em tormentos a respeito de sua felicidade eterna, está, ou deveria estar, interessado em que isto e aquilo tenham existido; tem de estar, necessariamente, interessado em cada mínimo detalhe; e, contudo, não pode alcançar mais do que uma aproximação, e está absolutamente em contradição. Caso se conceda que a historicidade do cristianismo seja verdadeira: se todos os historiógrafos do mundo se reunissem para pesquisar e estabelecer a certeza, ainda seria impossível estabelecer mais do que uma aproximação. Portanto, historicamente, não há objeções a serem feitas, mas a dificuldade reside em outro lugar; ela surge quando a paixão subjetiva deve ser colocada em conexão com algo histórico, e a tarefa não é renunciar à paixão subjetiva. Se uma amada tivesse de receber, de segunda mão, uma garantia de que seu amado, que estava morto e de cuja boca ela jamais tinha ouvido a declaração, teria declarado que a amava: [VII 503] digamos que a testemunha seja ou as testemunhas sejam as mais confiáveis, digamos que o problema fica de tal forma que um historiador e um advogado minucioso e desconfiado venham a dizer: Isto é certo - a mulher apaixonada logo descobrirá o equívoco, e à apaixonada que não age assim, não se lhe faz justamente um compliment [fr.: cumprimento, louvor, elogio], pois a objetividade não é a coroa de glória de alguém que ama. Caso alguém, baseado em documentos históricos, encontrasse certeza absoluta em relação a se foi uma criança legítima ou ilegítima, e toda a sua paixão estivesse ligada a esta questão de honra pessoal, e as circunstâncias fossem tais que não houvesse tribunal, ou qualquer outra apropriada autoridade legal, que pudesse finalmente decidir o caso, de modo que pudesse encontrar repouso: será que conseguiria encontrar aquela certeza que bastaria para a sua paixão, ainda que encontrasse uma certeza que satisfaria ao mais meticuloso advogado e uma pessoa objetiva? Contudo, a mulher apaixonada e o homem preocupado com sua honra certamente se esforçariam para renunciar a esta paixão, encontrando conforto no eterno, que é mais abençoado do que o mais legítimo nascimento, e o é a felicidade especial de se estar apaixonado, seja amado ou não. Mas a preocupação com uma felicidade eterna é algo a que não se pode renunciar, porque, em relação a ela, não se tem nada mais que seja eterno e com o qual se possa consolar-se; e, contudo, ele deve basear sua felicidade eterna em algo histórico, do qual o conhecimento, em seu máximo, é uma aproximação. Anotação: Comparem-se com isto: Migalhas, Cap. III, IV, V passim. - A concepção objetiva do cristianismo é responsável pelo erro e pela aberração de que, ao aprender objetivamente o que o cristianismo é (tal como um pesquisador, um sábio, o encontra, por meio de investigação, informação, instrução), a gente se torna um cristão (o qual baseia sua felicidade na relação para com algo que é histórico). Deixa-se de fora justamente a dificuldade, ou se assume, o que a teoria da Bíblia e a teoria da Igreja basicamente assumem, que nós todos somos, sem mais, o que, de algum modo, chama-se de cristãos, e de agora em diante (pois no momento em que nos tornamos cristãos isto não era tão necessário) precisamos aprender objetivamente o que é o propriamente crístico (provavelmente para deixar de ser cristão, o que de fato foi tão fácil de se tornar que nem se precisou saber mesmo o que era cristianismo - isto é, para se deixar de ser cristãos e tornar-se pesquisadores). A dificuldade (que, convém notar, é essencialmente a mesma em todas as gerações, de modo que agora e no ano 1700, e assim por diante, é igualmente difícil tornar-se um cristão como o era na primeira geração, e como em qualquer geração em que o cristianismo se introduziu em um país) consiste em converter subjetivamente a informação sobre o histórico no interesse da própria felicidade eterna; e quem não tem esta suprema paixão subjetiva não é um cristão, pois, como foi dito em algum lugar mais cedo, um cristão objetivo é um pagão. Em relação à religiosidade A, vale o seguinte: quer a história do mundo, com seus seis mil anos, seja verdade ou não: isto não faz diferença para o existente, no que toca à sua felicidade, pois esta repousa, em última instância, na consciência da eternidade. [VII 504] Objetivamente, não é, de jeito nenhum, mais difícil vir a saber o que é o cristianismo do que vir a saber o que é o maometanismo, ou qualquer outra coisa histórica, a não ser pelo fato de que o cristianismo não é uma coisa simplesmente histórica; mas a dificuldade está em tornar-se cristão, porque qualquer cristão só o é ao ser pregado no paradoxo de ter baseado sua felicidade eterna na relação com algo histórico. Transformar especulativamente o cristianismo numa história eterna, o deus-no-tempo em um eterno vir-a-ser-da-divindade etc., não passa de escapatórias e jogo de palavras. Dito mais uma vez: a dificuldade consiste em que eu não posso vir a conhecer nada histórico de tal modo que eu (que, de fato, objetivamente, posso estar muito satisfeito com a informação), subjetivamente, possa basear nisso uma felicidade eterna, não a de alguém mais, mas a minha própria - isto é, que eu possa pensá-lo, Se eu o faço, rompo com todo pensamento, e então não deveria ser tolo o bastante para querer entendê-lo mais tarde, já que eu, se devo entender, não posso, nem antes e nem depois, vir a entender nada além do fato de que isto contraria todo pensamento. §3 A contradição dialética de que o histórico, de que aqui se trata, não é algo simplesmente histórico, mas é formado por aquilo que só pode tornar-se histórico contra sua essência, portanto, em virtude do absurdo. O histórico consiste em que o deus, o eterno, veio a ser em um momento específico do tempo como um ser humano individual. Esta natureza especial do histórico, que não se trata do histórico em sentido simples, mas do histórico que só contrariando sua essência pode ter vindo a sê-lo, ajudou a especulação a entrar em uma prazerosa ilusão sensorial. Algo histórico desta espécie, algo de eternamente histórico, como se diz, pode-se facilmente compreender, sim, até compreendê-lo eternamente. Muito obrigado pelo clímax; ele tem a peculiaridade de andar para trás; pois compreendê-lo eternamente é justamente mais fácil, contanto que a gente não se constranja pelo fato disto ser um mal-entendido. Se a contradição está no se basear uma felicidade eterna na relação com algo de histórico, então esta contradição não se anula, afinal, pelo fato de que o histórico do qual se trata seja formado por uma contradição, se ainda se há de manter que ele é algo de histórico; e se isto não for mantido, então o eterno não se tornou realmente histórico; e mesmo que isso não devesse ser mantido, o clímax sempre se torna ridículo, já que, se fosse preciso formá-lo, teria que ser formado ao contrário. Algo de eternamente histórico é um jogo de palavras, e é transformar o histórico em mito, mesmo se no mesmo parágrafo se combate a tendência mitologizante. Em vez de estar consciente de que há duas contradições dialéticas: a primeira, basear a sua felicidade eterna na relação com algo de histórico [VII 505], e então que este histórico seja composto contra todo pensamento; omite-se a primeira, e se volatiliza a última. Um ser humano, de acordo com sua possibilidade, é eterno, e toma consciência disto na temporalidade: esta é a contradição no interior da imanência. Mas que o eterno por natureza advenha no tempo, nasça, cresça, morra, é uma ruptura com todo pensamento. Se, ao contrário, o advir do eterno no tempo há de ser um eterno vir a ser: então a religiosidade B está abolida, "al Theologie Antropologie" [al.: "toda teologia é antropologia”], o cristianismo é transformado de uma comunicação existencial em uma engenhosa doutrina metafísica que se relaciona com professores, a religiosidade A é enfeitada com uma ornamentação estético-metafísica que, no aspecto categorial, nem tira nem põe. Comparem-se a esse respeito Migalhas, Capo IV e V, onde se enfatiza a dialética especial do histórico-paradoxal. Por isso fica também abolida a diferença entre o discípulo de primeira mão e o discípulo de segunda mão, porque, em relação ao paradoxo e ao absurdo, nós estamos todos igualmente próximos (cf., neste livro, Seção 2, Cap. 2). Anotação: Este é o religioso-paradoxal, a esfera da fé. Pode-se crer em tudo isto - contra o entendimento. Se alguém fantasia que o entende, pode estar certo de que o entende mal. Quem o entende diretamente (em contraste com o entender que isto não pode ser entendido) confunde o cristianismo com uma ou outra analogia do paganismo (analogia que é a do engano em relação à realidade efetiva fática), ou o confunde com a possibilidade subjacente a todas as analogias ilusórias do paganismo (que não possuem a invisibilidade essencial de Deus como determinação intermediária superior dialética, mas deixam-se enganar por uma direta perceptibilidade estética; cf. Seção 2, Cap. 2, Apêndice). Ou confundirá o cristianismo com algo que afinal de contas brotou do coração do homem, isto é, do coração da humanidade, confundi-lo-á com a ideia de natureza humana e esquecerá a diferença qualitativa que acentua os pontos de partida absolutamente diferentes: o que vem de Deus e o que vem do homem; graças a um mal-entendido, em vez de usar a analogia para, a partir dela, definir o paradoxo (a novidade do cristianismo não é uma novidade direta, e justamente por isto ele é paradoxal; cf. acima), ele, ao contrário, revogará o paradoxo com auxílio da analogia, que é, contudo, somente uma analogia do engano, cujo emprego é, portanto, a revogação da analogia, não do paradoxo. Mal-entendendo, entenderá o cristianismo como uma possibilidade e esquecerá que o que é possível no âmbito fantasioso da possibilidade, possível na ilusão, ou possível no fantástico medium do pensamento puro (e este é o básico para todo discurso especulativo sobre uma eterna encarnação da divindade, que a cena se transfira para o medium da possibilidade) [VII 506], no medium da realidade efetiva tem de tornar-se o paradoxo absoluto. Esquecerá, mal-entendendo, que o entender só vale para aquilo cuja possibilidade é superior à sua realidade efetiva; enquanto que aqui dá-se diretamente o oposto, a realidade efetiva é o mais elevado, é o paradoxo; pois o cristianismo como um projeto não é difícil de entender, a dificuldade e o paradoxo estão em que ele é real efetivo. Por isso, foi mostrado na Seção 2, Cap. 3, que a fé é uma esfera totalmente particular, que, paradoxalmente, afastando-se do estético e do metafísico, acentua a realidade efetiva, e distinguindo-se paradoxalmente do ético, acentua a realidade efetiva de outro, e não da própria; um poeta religioso constitui uma determinação duvidosa em relação ao religioso-paradoxal porque, esteticamente, possibilidade é superior a realidade efetiva, e o poético reside justamente na idealidade da intuição da fantasia, razão pela qual nós não raramente vemos hinos que, embora emocionantes e infantis e poéticos por meio de um traço de fantasia que toca os limites do fantástico, não são, considerados categorialmente, cristãos, considerados categorialmente, por meio daquilo que é tão delicioso, do ponto de vista poético: o azul celeste, o som de dim-dom dos sinos, favorecem o mítico muito melhor do que qualquer livre-pensador, pois o livre-pensador declara que o cristianismo é um mito; o poeta ingênuo ortodoxo abomina isto, e afirma a realidade efetiva histórica do cristianismo - em versos fantasiosos. Aquele que entende o paradoxo (no sentido de compreendê-lo imediatamente) esquecerá, mal-entendendo-o, que aquilo que uma vez alcançou, na paixão decisiva da fé, como o paradoxo absoluto (não como um paradoxo relativo, pois aí a apropriação não seria a fé), portanto, como aquilo que não era, absolutamente, seus próprios pensamentos, nunca poderá tornar-se seus pensamentos (em sentido imediato) sem transformar a fé em uma ilusão, com o que então, mais tarde, chegará a entender que o crer absolutamente que não se tratava de seus próprios pensamentos fora uma ilusão. Na fé, entretanto, ele pode muito bem continuar a preservar sua relação para com o paradoxo absoluto. Mas no interior da esfera da fé não pode jamais introduzir-se o momento em que ele compreende o paradoxo (em sentido imediato), porque, se isto acontece, então toda a esfera da fé se esvai como um mal-entendido. A realidade efetiva, isto é, que tal e tal coisa efetivamente aconteceu, é o objeto da fé e, contudo, não constitui decerto os pensamentos próprios de qualquer ser humano ou da humanidade, pois neste caso o pensamento é no máximo a possibilidade, mas a possibilidade como compreensão é exatamente aquela compreensão por meio da qual realiza-se o passo atrás, em que a fé cessa de existir. Aquele que compreende o paradoxo esquecerá, entendendo-o mal, que o cristianismo é o paradoxo absoluto (assim como sua novidade é a novidade absoluta), justamente porque ele aniquila uma possibilidade (as analogias do paganismo, uma eterna encarnação da divindade) como uma ilusão sensorial, e faz dela uma realidade efetiva, e justamente isto é o paradoxo, não o estranho, o incomum num (estético) sentido direto, mas o aparentemente conhecido, e contudo absolutamente desconhecido, que, justamente como realidade efetiva, transforma o aparente em um engano. Aquele que compreende o paradoxo esquecerá que, pelo entender (a possibilidade), retrocedeu ao antigo e perdeu o cristianismo. No medium de fantasia da possibilidade, Deus pode muito bem fundir-se com o ser humano para a imaginação, mas fundir-se na realidade efetiva com o ser humano individual é justamente o paradoxo. [VII 507] Contudo, confundir e avançar ao retroceder, ou condenar e berrar em defesa do cristianismo, quando a gente mesmo com barulho e fazendo-se de importante usa as categorias do mal-entendido, é consideravelmente mais fácil do que manter a rigorosa dieta dialética, e geralmente gratifica mais, quando se considera como gratificação (e não como um inquietante nota bene) adquirir adeptos; se se considera como gratificação (e não como um inquietante nota bene) ter satisfeito as exigências do tempo. Apêndice a B O retroagir do dialético sobre o patético aguçando o pathos, e os momentos simultâneos deste pathos. A religiosidade que não tem algo dialético no segundo lugar, ou seja, A, que é a transformação da existência patética própria do indivíduo (não a transformação paradoxal da existência para a fé pela relação com algo histórico), orienta-se para o puro ser humano de tal modo que se deve assumir que qualquer ser humano, visto essencialmente, é participante desta felicidade e por fim torna-se bem-aventurado. A diferença entre o religioso e aquele que não transforma religiosamente sua existência, torna-se uma diferença humorística: que, enquanto o religioso emprega toda a sua vida para tornar-se consciente de sua relação para com uma felicidade eterna, e o outro não se preocupa com isso (mas convém notar que o religioso tem a satisfação em si próprio e, voltado para seu interior, não se agita em reclamações sem sentido sobre o fato de outros alcançarem facilmente o que ele busca com dificuldade e com o esforço mais extremo), ambos, visto eternamente, chegam igualmente longe. Aqui reside o humor simpático, e a seriedade está em que o religioso não se deixe perturbar pela comparação com os outros. Assim, na religiosidade A, há uma possibilidade constante de retomar a existência na eternidade que mora lá atrás. A religiosidade B é isoladora, segregadora, é polêmica: só com esta condição venho a ser bem-aventurado, e, tal como me vinculo absolutamente a isto, assim também eu excluo qualquer outro. Este é o incitamento de particularismo no pathos comum. Todo cristão tem pathos como o da religiosidade A, e então este pathos da segregação. Esta segregação dá ao cristão certa semelhança com alguém que é feliz por favorecimento; e quando isto é concebido por um cristão, de modo egoístico, temos a desesperada presunção da predestinação. [VII 508] O felizardo não consegue simpatizar essencialmente com outros que não estão ou não conseguem chegar à posse do favorecimento. Por isto, o felizardo, ou precisa continuar a ignorar que existem outros, ou se tornará infeliz por causa desta consciência. Ter sua felicidade eterna fundada em algo histórico faz com que a felicidade do cristão se reconheça pelo sofrimento, assim como a determinação religiosa de ser um escolhido de Deus é paradoxalmente, tão contrário quanto possível a ser um sortudo, justamente porque o escolhido não é o infeliz; mas tampouco, de jeito nenhum, na compreensão direta, é o felizardo - não, isto é tão difícil de compreender que, para todos os outros, com exceção do eleito, deve ser algo sobre o que desesperar. É por isso que é tão repulsiva aquela concepção de ser o eleito que, esteticamente, deseja estar, por exemplo, no lugar de um apóstolo. A felicidade ligada a uma condição histórica exclui todos os que estejam de fora da condição e, entre estes, encontram-se inúmeros que estão excluídos sem culpa própria, mas pela circunstância acidental de o cristianismo não lhes ter sido ainda anunciado. O pathos aguçado, definido mais de perto, é: a) A consciência do pecado. Esta consciência é a expressão para a paradoxal transformação da existência. O pecado é o novo medium da existência. Existir significa, em outras circunstâncias, apenas que o indivíduo por ter vindo a ser está aí e em devir; agora isto significa que por ter vindo a ser se tornou um pecador; existir, em outras circunstâncias, não é um predicado mais precisamente determinante, mas sim é a forma de todos os predicados mais precisamente determinantes; a gente não se torna algo por vir a ser, agora, porém, o vir a ser significa tornar-se um pecador. Na totalidade da consciência da culpa, a existência se afirma de modo tão forte quanto possível no interior da imanência, mas a consciência do pecado é a ruptura; ao vir a ser, o indivíduo se torna outro, ou, no agora em que ele deve vir a ser, ele vem a ser ao vir a ser outro, pois, de outro modo, a determinação do pecado é colocada no interior da imanência. Desde a eternidade o indivíduo não é pecador; se então a essência estabelecida eternamente, que no nascimento vem a ser, vem a ser um pecador no nascimento ou nasce como um pecador: então é a existência que o envolve de tal modo que toda comunicação da imanência pela via da recordação em virtude do regresso ao eterno é rompida, e o predicado "pecador", que antes, mas também prontamente, aparece em virtude da existência, [VII 509] ganha um poder tão paradoxalmente opressivo que o vir a ser o transforma em outro. Esta é a consequência da aparição do deus no tempo, que impede o indivíduo de relacionar-se com o eterno com um movimento para trás, pois agora ele se move para frente a fim de no tempo tornar-se eterno graças à relação para com o deus no tempo. A consciência do pecado o indivíduo não pode, portanto, obter por si mesmo, o que é o caso em relação à consciência da culpa; pois na consciência da culpa a identidade do sujeito consigo mesmo é preservada, e a consciência da culpa é uma alteração do sujeito no interior do próprio sujeito; a consciência do pecado, ao contrário, é alteração do próprio sujeito, o que mostra que fora do indivíduo tem que haver aquele poder que esclarece para ele que ele ao vir a ser se tornou um outro, diferente do que era, que se tornou pecador. Este poder é o deus no tempo. (Compare-se isto com o Cap. 1 das Migalhas, o referente ao instante.) Na consciência do pecado, o indivíduo se torna consciente de si naquilo que o diferencia do humano comum, o qual, só por si mesmo, torna-se consciente do que significa existir qua ser humano. Pois já que a relação para com aquele evento histórico (o deus no tempo) condiciona a consciência do pecado, não poderia ter havido a consciência do pecado em todo o tempo antes deste evento histórico ter ocorrido. Entretanto, visto que o crente, na consciência do pecado, também quer tornar-se consciente do pecado de todo o gênero humano: assim aparece outro isolamento. O crente amplia a consciência do pecado a todo o gênero humano e, ao mesmo tempo, não sabe se toda a geração está salva, visto que a salvação do indivíduo singular dependerá, afinal, do fato de ter sido levado à relação com aquele evento histórico, o qual, precisamente por ser histórico, não pode estar em toda parte ao mesmo tempo, mas precisa de tempo para tornar-se conhecido pelos seres humanos, tempo durante o qual uma geração depois da outra morre. Na religiosidade A, a simpatia é com todos os seres humanos, porque ela se relaciona com o eterno, como todo ser humano supõe ser capaz, essencialmente, e porque o eterno está por toda parte, de modo que não se precisa de tempo algum para esperar ou enviar uma mensagem para aquilo que, por ser histórico, está impedido de estar em toda parte ao mesmo tempo, e cujo estar aí inúmeras gerações, sem nenhuma culpa própria, poderiam continuar ignorando. Ter a sua existência nesta determinação é pathos aguçado, tanto porque é algo que não se deixa pensar quanto porque é isolador. Com efeito, o pecado não é um ensinamento ou uma doutrina para pensadores, assim tudo se tornaria nada; ele é uma categoria existencial e justamente não se deixa pensar. [VII 510] b) A possibilidade do escândalo ou a colisão autopática. Na religiosidade A, o escândalo não é possível de jeito nenhum, pois mesmo a determinação mais decisiva está no interior da imanência. Mas o paradoxo, que exige a fé contra o entendimento, prontamente mostra o escândalo, seja ele, definido mais de perto, o escândalo que sofre ou aquele que zomba do paradoxo como tolice. Portanto, assim que aquele que teve a paixão da fé a perde, então eo ipso se escandalizou. Mas isto, mais uma vez, é o pathos aguçado, ter constantemente uma possibilidade que, se ocorrer, será uma queda tão mais profunda quanto a fé é algo mais elevado do que toda a religiosidade da imanência. Em nossos dias, o cristianismo se tornou tão naturalizado e de tal modo acomodado que ninguém sonha com o escândalo; ora, está muito bem assim, porque por uma insignificância a gente não se escandaliza, e é isto o que o cristianismo está a ponto de tornar-se. Em outras circunstâncias, ele é certamente o único poder que em verdade consegue provocar o escândalo, e a entrada estreita para o difícil caminho da fé é o escândalo, e a terrível resistência contra o início da fé é o escândalo, e se o tornar-se cristão realizar-se corretamente, o escândalo com certeza tomará sua porcentagem em cada geração, como o fez na primeira. O cristianismo é o único poder que em verdade pode provocar escândalo, porque ataques histéricos e sentimentais de escândalo acerca disto ou daquilo podem simplesmente ser rejeitados e explicados como uma carência de seriedade ética que está faceiramente ocupada em acusar o mundo todo, em vez de a si mesma. Para o crente, o escândalo está no início, e sua possibilidade é o incessante temor e tremor em sua existência. c) A dor da simpatia, em razão de que o crente não simpatiza de modo latente, como na religiosidade A, nem pode simpatizar, com todo ser humano qua ser humano, mas essencialmente só com os cristãos. Aquele que, com a paixão de toda a sua alma, baseia sua felicidade em uma condição, que é a relação com algo histórico, obviamente não pode, ao mesmo tempo, considerar esta condição como uma bobagem. Tal coisa só um dogmático moderno consegue fazer, um que não tem nenhuma dificuldade em realizar esta última, já que carece de pathos para a primeira. Para o crente, é verdade que, fora desta condição, não há felicidade, e para ele é verdade, ou pode vir a ser verdade para ele, que deve odiar pai e mãe. Pois não é o mesmo que odiá-los, se ele tem sua felicidade ligada a uma condição que ele sabe que eles não admitem? E não é isto um terrível aguçamento do pathos em relação a uma felicidade eterna? E suposto que este pai ou esta mãe ou este ser amado [VII 511] tenham morri do sem ter tido sua felicidade eterna baseada nessa condição! Ou que estivessem vivos, mas que ele não conseguisse conquistá-los! Ele pode desejar fazer o máximo por eles, cumprir todos os deveres de um filho e de um amante leal com o maior dos entusiasmos, deste modo, o cristianismo não ordena que se odeie; e, contudo, se esta condição os separa, separa-os para a eternidade; não é isto como se os odiasse? Tais coisas foram vivenciadas no mundo. Hoje em dia elas não são mais vivenciadas; afinal, todos nós somos cristãos. Mas em que será que nós todos nos tornamos com isso, e em que será que o cristianismo se transformou pelo fato de todos nós sermos cristãos sem mais nem menos? CAPÍTULO 5 Conclusão A presente obra fez do tornar-se um cristão algo difícil, tão difícil que o número dos cristãos entre as pessoas cultas na Cristandade talvez não venha a ser tão grande; talvez, pois eu não posso saber algo assim. Se este procedimento é cristão, não decido eu. Mas ir além do cristianismo e então buscar às apalpadelas em categorias que os pagãos já conheciam, ir além e então ficar bem longe de poder se comparar vantajosamente em aptidão existencial com os pagãos: no mínimo, isto não é cristão. Mas esta dificuldade não foi criada, de jeito nenhum para fazer com que tornar-se um cristão fosse difícil para os leigos. Em primeiro lugar, qualquer um pode, sim, tornar-se um cristão, e, em seguida, admite-se que qualquer um, que diga que ele é um cristão e que fez o máximo, é um cristão e fez o máximo, se não tiver, por querer fazer-se de importante avançando às cotoveladas, motivado alguém a verificar mais de perto, em termos puramente psicológicos e para aprender algo para si mesmo. Ai daquele que pretende julgar corações. Mas quando toda uma geração, embora de diversas maneiras, parece desejar unir-se para ir além en masse; quando toda uma geração, embora com pontos de vista diversos, persegue o tornar-se objetiva como o que há de mais elevado, com o quê se cessa de ser cristão, caso o fosse: isto decerto pode motivar um indivíduo a atentar para as dificuldades. [VII 512] Para o que, pelo contrário, não deve motivá-lo, é para esta nova confusão: querer, pela proposição das dificuldades, ter importância para qualquer outra pessoa, para nem falar para todo o gênero humano; pois deste modo, afinal de contas, também ele começa a ficar objetivo. Em tempos em que na idade adulta do homem, talvez sacudido de um lado para outro e experimentado na vida, talvez com a dor de ter de romper as mais ternas relações com pais e parentes, com a pessoa mais querida, a gente se decidia a se tornar um cristão: dificilmente sentia-se qualquer necessidade de ir mais além, porque se entendia o quanto de esforço era preciso a cada dia para manter-se nesta paixão, entendia-se em que terrores a gente tinha a sua vida. Em nossos dias, ao contrário, quando a impressão que se tem é de que já como uma criança de oito dias de vida a gente é efetivamente cristão, com o quê, de novo, a gente transforma Cristo, de sinal de escândalo em um amigo das crianças à la Tio Frantz, em um bom velhinho, ou em um professor de asilos de órfãos: a gente acha que, afinal, como homem adulto deve fazer alguma coisa e, assim, ir mais além. Só é uma pena que a gente não vá mais além em se tornando realmente um cristão, porém, graças à especulação e ao histórico-mundial, apenas regrida a concepções de vida mais baixas e, em parte, fantasiosas. Dado que estamos acostumados a, sem mais nem menos, ser cristãos e a ser chamados de cristãos, o equívoco também apareceu de que concepções de vida que são muito inferiores ao cristianismo se introduziram no interior do cristianismo, têm agradado mais às pessoas (os cristãos), como é natural, já que o cristianismo é o que há de mais difícil, e então foram elogiadas como descobertas superiores que ultrapassam o cristianismo puro e simples. Seria indubitavelmente melhor do que a indiferente manutenção do nome, seria um sinal de vida, se em nossa época vários simplesmente confessassem para si mesmos que poderiam desejar que o cristianismo simplesmente não tivesse vindo ao mundo, ou que eles próprios jamais tivessem se tornado cristãos. Que esta confissão acontecesse, contudo, sem escárnio, zombaria e ira; para que isto? Pode-se muito bem ter veneração por aquilo em que não se consegue forçar-se a ingressar. O próprio Cristo diz que se agradou daquele jovem que entretanto não conseguia decidir-se a dar todas as suas posses aos pobres. Cristão o jovem não se tornou, e ainda assim Cristo se agradou dele. Portanto, antes a sinceridade do que o meio-termo. Pois o cristianismo é uma gloriosa visão para nela se morrer, o único conforto verdadeiro, e o momento da morte é a situação do cristianismo. Talvez seja por isso que nem mesmo o indiferente [VII 513] quer abandoná-lo, mas tal como se faz um depósito em uma companhia funerária a fim de poder arcar com as despesas no tempo devido, assim também a gente deixa guardado o cristianismo até o fim: a gente é cristão e, contudo, só no momento da morte a gente se torna isto. Talvez houvesse alguém que, caso entendesse a si mesmo com toda sinceridade, antes teria de confessar que desejaria nunca ter sido educado no cristianismo, em vez de não fazer caso dele no indiferentismo. Antes a sinceridade que o meio-termo. Mas que a confissão aconteça sem ira, sem obstinação, com uma calma veneração por este poder que ele acha que lhe perturbou sua vida, por este poder que decerto poderia ter mostrado a ele o caminho, mas que não o ajudou. Se ocorreu que um pai, mesmo o pai mais amoroso e solícito, justamente no momento em que quis fazer o melhor para seu filho, fez o pior, o pior, que talvez tenha perturbado toda a vida do filho: deve por isso o filho, se se lembrar das circunstâncias, afogar sua piedade no esquecimento do indiferentismo ou transformá-la em ira? Bem, que as almas miseráveis, que só conseguem amar a Deus e aos homens quando as coisas estão caminhando segundo sua cabeça, que elas odeiem e se obstinem em mau gênio - um filho fiel ama, sem alteração; e será sempre característica de um ser humano medíocre se alguém, quando convencido de que aquele que o fez infeliz, o fez com a intenção de fazer o melhor para ele, conseguir afastar-se dele com ira e amargor, Deste modo, uma rigorosa educação no cristianismo talvez possa ter feito a vida de uma pessoa demasiado difícil, sem lhe ter, por outro lado, auxiliado; ela pode ter no silêncio de seu íntimo nutrido um desejo, tal como o fizeram aqueles cidadãos que suplicaram a Cristo que deixasse a sua região porque Ele os apavorara. Mas o filho cujo pai tornou infeliz, se tiver magnanimidade continuará a amar o pai. E quando sofrer pelas consequências, decerto há de suspirar de vez em quando, desanimado: Oxalá isto nunca me tivesse acontecido! Mas jamais se entregará ao desespero; trabalhará contra o sofrimento, transpondo-o. E, ao trabalhar, seu pesar será mitigado; logo lamentará mais por seu pai do que por si mesmo, esquecerá sua própria dor, em seu profundo e simpático pesar, compadecido a respeito do quão pesado seria para o pai se este entendesse o que se passava com ele - esforçar-se-á então mais e mais vigorosamente, sua salvação será importante para ele por causa dele e agora quase mais preciosa por causa de seu pai - então ele trabalhará: com certeza conseguirá. E, se tiver sucesso, então, por assim dizer, perderá a razão, [VII 514] no júbilo do entusiasmo; pois que pai fez tanto por seu filho, que filho pode afinal chegar a dever tanto a seu pai! E assim também com o cristianismo. Mesmo que este o tenha feito infeliz, ele não o abandonará por causa disso; pois jamais lhe ocorre a ideia de que o cristianismo possa ter vindo ao mundo para prejudicar os humanos; este se mantém para ele sempre digno de veneração. Ele não o abandona, e ainda que sussurre desalentado, "Quem dera eu jamais tivesse sido educado nesta doutrina", não o abandona. E o desalento se torna em tristeza, à ideia de que afinal deve ser quase pesado para o cristianismo que algo assim pudesse ter ocorrido; mas ele não o abandona. Ao final, o cristianismo por certo há de reparar isto para ele. Ao final, sim, não é pouco a pouco; é muito menos e contudo infinitamente muito mais. Mas só pessoas desleixadas abandonam aquilo de que um dia receberam uma impressão absoluta, e só almas miseráveis exploram de modo desprezível seu próprio sofrimento, tirando dele este lucro vil: o de poderem perturbar outros, de se fazerem de importantes por meio da mais baixa de todas as arrogâncias: de querer impedir outros de encontrar conforto, só porque não o encontraram para si. Se há alguém em nossa época a quem o cristianismo perturba, algo de que não duvido e que pode facilmente ser demonstrado a partir dos fatos: uma única coisa se pode exigir dele - que se cale; pois, visto eticamente, sua fala é um assalto de bandido e, em suas consequências, é até pior do que isso, porque acaba que nenhum dos dois tem nada, nem o bandido nem o assaltado. Tampouco como o cristianismo entrou no mundo na infância da humanidade, porém na plenitude dos tempos: tampouco o cristianismo combina, em sua forma decisiva, com todas as idades. Há momentos na vida que exigem algo que o cristianismo por assim dizer quer deixar completamente intocado, algo que, numa certa idade, parece ao homem ser o absoluto, embora, mais tarde na vida, a mesma pessoa perceba sua vaidade. Despejar com um funil o cristianismo na cabeça de uma criança é coisa que não dá para fazer, pois é sempre verdade que qualquer ser humano só entende aquilo que tenha serventia para ele, e a criança não tem nenhuma utilidade decisiva para o cristianismo. A lei, que caracteriza a entrada do cristianismo no mundo pelo que lhe precede, é sempre esta: Ninguém inicia por ser cristão; cada um se torna tal na plenitude do tempo - se é que ele se torna. Uma severa educação cristã nas categorias decisivas do cristianismo é um empreendimento muito arriscado; pois o cristianismo forma homens cuja força está em sua fraqueza; mas em sua configuração totalmente séria, se a gente força a criança a entrar nele, isto em geral produz jovens extremamente infelizes. A rara exceção é um golpe de sorte. [VII 515] Aquele cristianismo que é exposto para uma criança ou, antes, o cristianismo que a própria criança monta, quando não se exerce nenhuma pressão sobre ela, no sentido de forçar o existente para o interior das categorias cristãs decisivas: não é propriamente cristianismo, mas sim idílica mitologia. É a ideia da infância elevada à segunda potência, e a relação às vezes inverte-se de tal modo que os pais é que aprendem com a criança, ao invés de a criança aprender com os pais, de modo que o encantador mal-entendido da criança em relação ao crístico transfigura o amor do pai e ó amor da mãe em uma piedade que, contudo, não é propriamente, de jeito nenhum, cristianismo. Não faltam exemplos de pessoas que não tinham sido antes, elas mesmas, tocadas religiosamente, e que agora são tocadas por uma criança. Mas esta piedade não é aquela religiosidade que convém essencialmente a um mais idoso, e tampouco como a própria mãe é nutrida pelo leite que a natureza providencia para a criança: tampouco a religiosidade dos pais deve encontrar sua expressão decisiva nesta piedade. O amor do pai e o amor da mãe são tão fortemente ligados à criança, envolvem-na tão ternamente, que a própria piedade inventa, por assim dizer, o que contudo foi ensinado: que tem de haver um Deus que se responsabiliza pelas criancinhas. Mas se este estado de ânimo é toda a religiosidade dos pais, então eles carecem de religiosidade autêntica, e consolam-se apenas com uma melancolia que simpatiza indiretamente com o ser criança. Graciosas e amáveis são esta piedade dos pais e a disposição ao aprendizado e facilidade de entendimento da criança em relação a esta felicidade; porém cristianismo isto propriamente não é, é cristianismo no medium da intuição da fantasia; é um cristianismo do qual o terror foi retirado; conduz-se a criança inocente para Deus ou para Cristo. Acaso isto é cristianismo, cujo ponto decisivo está justamente em que seja o pecador que busca refúgio no paradoxo? É bonito e tocante e adequado que um homem de mais idade perceba sua culpa ao observar uma criança e, com melancolia, compreenda a inocência da criança; mas este estado de ânimo não é decisivamente cristão. Pois a visão sentimental da inocência da criança esquece que o cristianismo não reconhece nenhuma [inocência] desse tipo na humanidade caída; e que a dialética qualitativa define a consciência do pecado como mais próxima do que toda inocência. A concepção rigorosamente cristã da criança como pecadora não pode dar ao período da infância nenhuma vantagem, pois consciência do pecado a criança não tem e é, portanto, uma pecadora sem a consciência do pecado. Mas encontra-se, sem dúvida, uma passagem da Bíblia sobre a qual a gente se pode apoiar, e às vezes esta é entendida, talvez sem que a gente tome consciência, de tal modo que sua compreensão inclui a mais profunda sátira sobre todo o cristianismo e faz do cristianismo a mais inconsolável das visões de mundo, [VII 516] dado que torna indescritivelmente fácil para uma criança entrar no Reino dos Céus, impossível para um mais velho, e a consequência é de que o melhor e o mais adequado desejo seria desejar a morte da criança, quanto antes melhor. Trata-se do capítulo 19 de Mateus, em que Cristo diz: "Deixai em paz as criancinhas e não as impeçais de virem a mim, pois a elas pertence o Reino dos Céus". No capítulo inteiro fala-se sobre a dificuldade de se entrar no Reino dos Céus, e as expressões disso são as mais fortes possíveis. Versículo 12: "Há eunucos que castraram a si mesmos em nome do Reino dos Céus". V. 24: "É mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha do que um homem rico entrar no Reino de Deus". Os discípulos ficaram tão aterrorizados que disseram (v. 25): "Quem então pode ser salvo?" Depois que Cristo respondeu a isto, há também menção no v. 29 da recompensa para aqueles que deixaram casas e irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou esposa, ou filhos, ou terras, por causa do nome de Cristo - todas essas são expressões terríveis das colisões nas quais um cristão pode ser tentado. Portanto, a entrada no Reino dos Céus é tornada tão difícil quanto possível, tão difícil que até suspensões teleológicas do ético são mencionadas. No mesmo capítulo, narra-se bem brevemente um pequeno evento em que criancinhas são levadas a Cristo e que Ele disse aquelas palavras - porém, convém notar, intervém uma oração intermediária e um evento intermediário: que os discípulos repreenderam as crianças ou, mais corretamente, repreenderam aos que carregavam as crianças (cf. Mc 10,13). Agora, se as palavras de Cristo a respeito do ser criança devem ser entendidas literalmente, então surge a confusão de que, enquanto se faz com que seja o mais difícil possível para o adulto entrar no Reino dos Céus, a única dificuldade para uma criança é que a mãe a carregue para Cristo e que seja carregada até aí - e então chegamos rapidamente ao clímax do desespero: o melhor é morrer como criança. Mas em Mateus o significado não é difícil. Cristo diz essas palavras aos discípulos que repreenderam as crianças - e os discípulos, afinal, não eram criancinhas. Em Mt 18,2, é narrado que Jesus chamou uma criança para si, colocou-a no meio dos discípulos e disse: "Em verdade vos digo, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus". Ele não conversa com a criança, mas usa a criança frente aos discípulos. Se, entretanto, se supõe que o significado esteja simplesmente no encanto de se ser uma criancinha, um perfeito anjinho (mas nem mesmo pelos anjos o cristianismo parece ter predileção, dado que se dirige aos pecadores): então é cruel dizer tais palavras na presença dos apóstolos, que estavam, é claro, neste caso na triste situação de serem homens adultos; [VII 517] assim, com esta única explicação o cristianismo todo é desfigurado. Por que será que Cristo quis então ter discípulos que já eram adultos antes de se tornarem discípulos? Por que Ele não disse: ide, e batizai criancinhas? - Se é triste de ver uma especulação presunçosa que quer tudo entender, assim também sempre é triste que alguém sob a aparência de ortodoxia queira fazer do cristianismo um sentimentalismo de noite enluarada e de asilo de deficientes. Mas dizer aos homens, justo no instante em que se tornavam talvez demasiado impertinentes com Cristo e queriam exigir recompensa temporal pela relação mais próxima, ou contudo realçar mundanamente a relação próxima: que àquelas (ou seja, às criancinhas) pertence o Reino dos Céus - portanto arredar um bocado de si os discípulos com a ajuda de um paradoxo: isto, sim, é um discurso obscuro. Pois, falando humanamente, até é possível castrar a si mesmo e deixar pai e filhos e esposa, porém tornar-se uma criancinha quando já se é um adulto, isto é proteger-se por meio da distância do paradoxo contra toda impertinência. Os apóstolos repreendem as criancinhas; mas Cristo, por sua vez, não o faz. Ele nem mesmo repreende os apóstolos; Ele se volta para as criancinhas, mas fala aos apóstolos, e bem como aquele olhar que deu a Pedro, este voltar-se para as crianças é entendido como endereçado aos apóstolos, o juízo sobre eles, e no décimo nono capítulo de Mateus, que, aliás, trata da dificuldade de se entrar no Reino dos Céus, como a expressão mais forte da dificuldade. O paradoxo reside em se fazer de uma criança o paradigma: em parte porque, falando humanamente, uma criança absolutamente não o pode ser, dado que é imediata e não explica nada (por isso um gênio tampouco pode ser paradigma - é o aspecto triste na distinção do gênio), [VII 518) nem mesmo para outras crianças, pois cada criança é meramente imediata à si mesma; e, em parte, porque ela é tomada como paradigma para um adulto, o qual, na humildade da consciência da culpa, deve assemelhar-se à humildade da inocência. Mas já chega deste tema; uma concepção tão infantil do cristianismo como esta apenas o torna irrisório. Se se há de compreender literalmente este ser uma criança, então é um sem-sentido pregar o cristianismo para adultos. E no entanto é assim que o cristianismo é defendido pelos paladinos ortodoxos. Mas, é claro, se alguém quiser ter algo de que rir, dificilmente encontrará material mais abundante do que na maneira pela qual o cristianismo hoje em dia é defendido e atacado. Um ortodoxo troveja contra o egoístico dos livres-pensadores, "que não querem entrar no Reino de Deus como criancinhas, mas querem ser alguma coisa". Aqui a categoria está correta, mas agora ele, para dar mais ênfase ao seu discurso, reporta-se àquela passagem da Bíblia, entendida de modo literal, sobre ser uma criancinha (no sentido literal). Pode-se levar a mal que o livre-pensador considere Sua Reverendíssima um pouco maluco, no sentido bem literal? O difícil discurso com o qual começou o ortodoxo se tornou um galimatias: pois para uma criancinha ele não é difícil, de jeito nenhum, e para um adulto ele é impossível. Ser alguma coisa e querer ser alguma coisa é, num certo sentido, justamente a condição (a condição negativa) para como uma criancinha entrar no Reino dos Céus - se isto deve ser difícil - de outro modo, não é de se admirar que se permaneça de fora quando já se tem quarenta anos. Portanto, pode ser que o livre-pensador queira zombar do cristianismo, e, contudo, não há ninguém que o torne tão ridículo quanto o ortodoxo. Visto psicologicamente, este mal-entendido está em conexão com a segurança confortável com a qual se tornou idêntico o tornar-se um cristão e o ser um ser humano, em conexão com a relutância leviana e melancólica pelas decisões, que evita a toda hora comprometer-se, e por isso protela o tornar-se cristão para tão tarde que a questão acaba decidida antes que a gente se dê conta. Acentua-se o Sacramento do Batismo de modo ortodoxo tão exagerado que a gente convenientemente se torna heterodoxo no dogma do renascimento, esquece a objeção de Nicodemos e a resposta que lhe foi dada, porque, hiperortodoxamente, faz de uma criancinha um cristão verdadeiro por ter sido batizada. O cristianismo infantil, que em uma criancinha é adorável, em um adulto é a ortodoxia pueril que, bem-aventurada no reino fantástico, conseguiu levar o nome do cristianismo para o reino da fantasia. [VII 519] Uma ortodoxia deste tipo confunde tudo. Se ela percebe que o preço da determinação da "fé" começa a perder valor, que todos querem ir mais além e deixar a fé como algo para pessoas tolas: então ela tem de tratar de levantar este preço. O que acontece? A fé se torna algo totalmente extraordinário e raro, "não é coisa para qualquer um"; em suma, a fé se torna genialidade que diferencia. Se for assim, então só com esta cláusula todo o cristianismo está revogado - por um ortodoxo. Está muito bem que o ortodoxo queira elevar o preço, mas o valor diferencial confunde tudo, pois aquilo que diferencia não é difícil para o gênio e é impossível para outros. A fé é tomada corretamente como o mais difícil de tudo, mas de modo dialético qualitativo, isto é, igualmente difícil para todos, e é a determinação ética da fé que ajuda aqui, pois esta pura e simplesmente impede cada crente de ser curioso e comparativo; proíbe qualquer comparação entre este e aquele indivíduo, e assim a coisa se torna igualmente difícil para todos. - Uma ortodoxia infantil desse tipo também dirigiu uma atenção decisiva para o fato de que Cristo em seu nascimento foi embrulhado em trapos e colocado em uma manjedoura - em resumo, para o fator humilhante de sua vinda na forma modesta de um servidor, e acredita que este é o paradoxo em contraste com a possibilidade que tivesse vindo gloriosamente. Confusão. O paradoxo reside, em última análise, em que Deus, o Eterno, tenha advindo no tempo como um ser humano individual. Que este ser humano individual seja um servo ou um imperador, não tira nem põe, não é mais adequado para Deus ser um rei do que ser um mendigo; não é maior rebaixamento para Deus tornar-se um mendigo do que tornar-se um imperador. Reconhece-se prontamente a infantilidade; pois justamente porque a criança não tem nenhuma representação desenvolvida ou uma representação real de Deus (mas apenas interioridade da fantasia), ela não pode tomar consciência do paradoxo absoluto, mas tem uma comovente compreensão do humorístico: que o mais poderoso de todos, o Onipotente (contudo sem nenhuma decisiva determinação de pensamento, e por isso apenas diferenciado de modo imaginário daquilo que está no mesmo nível, ser rei e imperador), em seu nascimento, tenha descansado em uma manjedoura envolto em trapos. Se, ao contrário, a ortodoxia infantil insiste neste rebaixamento como o paradoxo: então isto mostra eo ipso que não atenta ao paradoxo. De que adianta, então, toda a sua defesa! Se está dado e assumido que é fácil compreender que Deus se torna um ser humano individual, então a dificuldade consiste somente no aspecto seguinte, que ele se torne um ser humano humilde e desprezado: então o cristianismo é, summa summarum, humor. O humor desvia um pouco da atenção para longe do que vem primeiro, da determinação "Deus", e agora acentua: que o maior de todos, o mais poderoso, o que é maior do que todos os reis e imperadores, [VII 520] que este se tornou o mais humilde de todos. Mas a determinação "o maior de todos, o mais poderoso, que é maior do que todos os reis e imperadores" é uma determinação muito indeterminada, é fantasia, e nenhuma determinação qualitativa como a de ser Deus. Em geral, é notável como a ortodoxia, quando em apuros, emprega fantasia - e assim produz o maior de todos os efeitos. Mas, como já foi dito, o maior de todos, o mais poderoso de todos, o que é maior do que todos os reis e imperadores, não é, por isto, Deus. Se se quer falar de Deus, então que se diga: Deus. É a qualidade. Se o pastor quer falar da eternidade, então que ele diga: eternidade, e, contudo, às vezes ele diz, quando quer dizer algo da maneira correta: na eternidade de todas as eternidades das eternidades. Mas se o cristianismo é humor, então tudo está confundido; então acaba que eu me torno um dos melhores cristãos; pois, considerado como humorista, não sou mau, porém sou mau o bastante para considerar isto tão humorístico quanto possível em comparação com o ser cristão, o que eu não sou. - Uma ortodoxia infantil acentua o sofrimento de Cristo de um modo que desencaminha. Nas mais fantasiosas determinações, que não são de forma alguma próprias para ordenar silêncio ao entendimento humano, já que pelo contrário fica fácil para este entender que é galimatias, acentua-se o pavoroso do sofrimento, o corpo delicado de Cristo, que sofre tão desmesuradamente; ou se acentua quantitativa e comparativamente que Ele, que era tão santo, o mais puro e o mais inocente de todos, que Ele teve que sofrer. O paradoxo está em que Cristo tenha vindo ao mundo para sofrer. Se se deixa isto de lado, então uma milícia de analogias captura sem problemas a fortaleza inexpugnável do paradoxo. Que o inocente possa vir ao mundo para sofrer (heróis nos reinos da intelectualidade e da arte, mártires da verdade, as mártires silenciosas do mundo feminino etc.) não é, de forma alguma, absolutamente paradoxal, mas sim humorístico. Mas a destinação dos mártires quando vieram ao mundo não era sofrer; seu destino era este ou aquele, e para realizá-lo tiveram que sofrer, suportar o sofrimento e enfrentar a morte. A religiosidade entende o sofrimento, determina-o teleologicamente para o sofredor. Portanto, assim como o sofrimento dos mártires comuns não constitui nenhuma analogia ao de Cristo, tampouco o é o sofrimento do crente; e o paradoxo absoluto se reconhece sem dúvida nisto, por qualquer analogon ser um engano. Então poderia antes parecer uma analogia, caso, seguindo uma visão de vida fantástica (a transmigração das almas), se devesse assumir que um ser humano, que já tenha existido uma vez, retome ao mundo para sofrer. Mas dado que esta analogia pertence a uma visão fantástica, ela é eo ipso um engano e, mesmo prescindindo disto, o para deste sofrimento é exatamente o oposto: um culpado que retoma ao mundo para sofrer sua punição. [VII 521] É por assim dizer uma fatalidade que paira sobre a ortodoxia infantil. Frequentemente ela é bem-intencionada, mas dado que não está orientada, frequentemente é levada ao exagero. Quando, portanto, se ouve um ortodoxo falar continuamente da fé das crianças, e da sabedoria das crianças e do coração feminino etc.: talvez seja apenas uma natureza algo humorística (eu, como humorista, protesto contra qualquer associação com ele, pois ele enfatiza o ponto errado) que conseguiu empurrar o cristianismo para dentro do infantil (literalmente entendido) e que agora sente saudade da infância, e cuja saudade é, por isto, especialmente reconhecível por ser uma saudade da ternura amorosa da mãe piedosa. Ele pode também ser um sujeito fraudulento que tenta evitar os horrores, quando numa idade mais adulta tiver de levar a sério o tornar-se em verdade uma criança, em vez de conjugar humoristicamente o infantil com o adulto. Pois uma coisa é certa, se uma criancinha (no sentido literal) deve proporcionar a determinação do que seja cristianismo: então este não será nada de terrível; este não será aquele fato que para judeus foi um escândalo e para gregos uma loucura. Quando se fala do cristianismo para uma criança, e esta criança não é violentamente maltratada num sentido metafórico: então ela se apropria de tudo o que há de gentil, infantil, amável e celestial; convive com o Menino Jesus e com os anjos, com os santos reis magos, vê a estrela na noite escura, percorre a longa estrada, e agora está no estábulo, milagre em cima de milagre, todo o tempo vê os céus abertos, com toda a interioridade da imaginação anseia por estas imagens - agora, nem vamos nos esquecer das broas de natal apimentadas e de todas as outras coisas magníficas que aparecem nesta ocasião; pois, sobretudo, não nos transformemos em velhacos que mentem sobre a infância, que mentirosamente se atribuem seu entusiasmo exagerado, e com mentiras negam à infância sua realidade efetiva. Realmente, teria que ser um sujeito imprestável aquele que não considera a infância tocante e amável e bem-aventurada; de um humorista, contudo, não se deveria de modo algum suspeitar que pudesse desconsiderar a realidade da infância, ele, que é o feliz amante infeliz das recordações. Mas, por outro lado, seria com certeza um guia cego aquele que, de um modo qualquer, dissesse que esta é a concepção decisiva do cristianismo, que se tornou para judeus um escândalo e para grego suma loucura. Cristo se transforma no menino deus, ou, para a criança um tantinho mais velha, na figura amistosa com rosto suave (a comensurabilidade mítica), não no paradoxo em quem ninguém conseguiria descobrir algo (literalmente compreendido), nem mesmo João, o Batista (cf. Jo 1,31.33), nem mesmo os discípulos antes de terem sua atenção despertada [VII 522] (Jo 1,36.42); o que Isaías profetizou (53,2.3.4, esp. v. 4). A concepção infantil de Cristo é essencialmente a de uma visão de fantasia, e a ideia de uma visão de fantasia é a comensurabilidade, e a comensurabilidade é essencialmente paganismo, seja este poder, glória, beleza, ou esteja dentro de uma contradição um tantinho humorística que no entanto não é ainda uma verdadeira máscara, mas um incógnito facilmente percebido. A comensurabilidade consiste em poder reconhecer diretamente. A figura do servo é o incógnito, mas a face amável é a possibilidade de reconhecer diretamente. Aqui, como em qualquer parte, há certa ortodoxia que, quando deve mostrar energia nas grandes festividades e ocasiões decisivas, bona lide [lat.: de boa-fé] socorre-se com um pouco de paganismo - e assim obtém o maior sucesso. Um pastor talvez permaneça, para o uso diário, mais ou menos dentro das determinações ortodoxas estritas e adequadas, mas o que acontece, em algum domingo ele deve fazer um esforço especial. Para bem mostrar o quão vivo Cristo paira diante dele, ele nos oferecerá um vislumbre de sua alma. Agora é adequado. Cristo é o objeto da fé, mas fé é tudo menos que uma visão de fantasia, e uma visão de fantasia não é exatamente uma coisa mais elevada do que a fé. Agora a coisa deslancha: o semblante gentil, a figura amável, o pesar no olhar etc. Não há, de forma alguma, nada de cômico no fato de alguém ensinar paganismo em vez de cristianismo, mas há algo de cômico quando um ortodoxo puxa todos os registros nos dias mais solenes, pega errado e, sem o perceber, abre a gaveta do paganismo. Se um organista todo dia tocasse uma valsa, certamente seria despedido; se porém um organista, que normalmente tocava as melodias dos hinos bem corretamente, nas maiores festividades, considerando que era acompanhado pelas trombetas, fosse tocar uma valsa - a fim de comemorar adequadamente o dia: isto com toda certeza seria cômico. E, no entanto, encontra-se entre ortodoxos um pouco deste paganismo sentimental e mimado, não para o uso diário, mas justamente nas grandes festividades, quando abrem bem seus corações, e a gente gosta de encontrar isso por sua vez na parte final do discurso. A reconhecibilidade direta é paganismo; todas as solenes asserções de que é de fato Cristo e de que Ele é o verdadeiro Deus de nada adiantam, caso terminem apesar de tudo na reconhecibilidade direta. Uma figura mitológica é reconhecível diretamente. Se a gente apresenta a um ortodoxo esta objeção, então fica furioso e pula da cadeira: [VII 523] Sim, mas Cristo é mesmo o verdadeiro Deus, e portanto decerto não é, não, uma figura mitológica... já dá para vê-lo pelo seu rosto suave. Mas, se dá para ver isto nele, então ele é eo ipso uma figura mitológica. Ver-se-á facilmente que permanece o espaço para a fé; pois, retira a reconhecibilidade direta, e a fé estará em seu devido lugar. Justamente a crucifixão do entendimento e da visão fantasiosa, que não podem ter reconhecibilidade direta - eis justamente o sinal distintivo. Mas é mais fácil esquivar-se do horror e entrar furtivamente num certo paganismo, que se tornou irreconhecível pela curiosa conexão, de servir, com efeito, como a explicação última e mais elevada em um discurso, que talvez tenha iniciado com determinações ortodoxas perfeitamente corretas. Se um ortodoxo, num momento de confiança, confidenciasse a alguém que ele na verdade não tinha propriamente fé: pois bem, nisso não haveria nada de risível; mas quando um ortodoxo, em bem-aventurada exaltação, ele mesmo quase surpreso com os altos volteios de seu discurso, abre-se totalmente para alguém em confiança, e tem o azar de pegar a direção errada, de modo que sobe descendo do mais alto para o mais baixo, aí fica mais difícil deixar um sorriso de lado. A idade infantil (entendida literalmente) não é, então, a verdadeira em relação ao tornar-se cristão. Ao contrário, a idade adulta, a idade da maturidade, é o tempo em que se deve decidir se uma pessoa quer ou não tornar-se tal. A religiosidade da infância é a base universal, abstrata, mas ainda com o coração cheio de fantasias, para toda religiosidade posterior; o tornar-se cristão é uma decisão, que pertence a uma idade muito mais tardia. A receptividade da criança é tão inteiramente carente de decisão que, aliás, a gente até diz: que se pode levar uma criança a crer em tudo. Evidentemente, o adulto levará a responsabilidade pelo que ele se permite impingir à criança, mas aquilo não deixa de ser bem verdade. O fato de ser batizada não pode de jeito nenhum torná-la mais velha em entendimento, nem a amadurece para a decisão. Uma criança judia, uma criança pagã, criada, desde o início, por carinhosos pais adotivos cristãos que a tratam com tanto amor quanto os pais tratam seu próprio filho: apropriar-se-á do mesmo cristianismo como a criança batizada. Se, ao contrário, não se permite à criança brincar, como convém, inocentemente com o que há de mais sagrado, se é severamente forçada a ajustar sua existência às determinações decisivamente cristãs, então esta criança sofrerá muito. Tal educação precipitará sua espontaneidade em desânimo e angústia, ou excitará o prazer e a angústia do prazer em uma escala jamais vista, que nem mesmo o paganismo conhecia. [VII 524] É belo e amável, e o oposto indefensável, que pais cristãos, tal como de resto cuidam da criança, também nutram a criança em suas representações infantis do religioso; o batismo das crianças, como foi dito frequentemente acima, é de todos os modos justificável como a antecipação da possibilidade, como impedindo o terrível dilaceramento, por terem os pais sua própria felicidade eterna ligada a algo, e seus filhos não a terem à mesma coisa; só um mal-entendido tolo, sentimental e maroto, não tanto em relação ao batismo das crianças, mas em relação à infância, é reprovável, mas então também a exterioridade sectária é igualmente reprovável, já que a decisão pertence propriamente à interioridade; é uma violência, por mais bem-intencionada que seja, constranger a existência da criança dentro das categorias cristãs decisivas; mas é uma imensa estupidez dizer que a infância (literalmente entendida) é o tempo propriamente decisivo para tornar-se cristão. Tal como já se quis enganosamente construir uma passagem direta do eudemonismo à ética por meio da sagacidade: assim também é uma invenção enganosa querer identificar, da maneira mais próxima possível, o tornar-se cristão com o tornar-se um ser humano, e querer convencer alguém de que a gente se torna decisivamente um cristão já na infância. E, na medida em que esta necessidade e esta inclinação a empurrar o tornar-se cristão para a infância se tornarem comuns: isto, justamente, será uma prova de que o cristianismo está no caminho da extinção; pois o que se quer é isto, quer-se transformar o tornar-se cristão em uma bela recordação, enquanto que, ao contrário, o tornar-se cristão é o mais decisivo no que uma pessoa se torna; quer-se enfeitar, fantasiosamente, a amável inocência da infância com a determinação adicional de que esta inocência significa ser cristão, e assim se quer fazer a tristeza ocupar o lugar da decisão. Nisto reside, com efeito, o elemento triste no humor legítimo, em que este reflete de modo puramente humano, honesto e sem enganação, sobre o que significa ser criança (literalmente entendido), e uma coisa permanece para sempre certa e verdadeira, e isto não pode ser refeito - a infância, depois que passou, torna-se apenas uma recordação. Mas o humor (em sua verdade) não se mete com a determinação decisiva cristã do tornar-se cristão, e não identifica o tornar-se cristão com o ser criança, literalmente entendido; pois neste caso o ser cristão se torna igualmente uma recordação. Aqui se mostrará bem o quanto é errado fazer com que o humor seja o mais elevado dentro do cristianismo, dado que o humor ou o humorista, desde que no interior do cristianismo, não se metem com a determinação cristã decisiva do tornar-se cristão. Humor é sempre um toque de retirada (da existência [VII 525] para o interior do eterno pela recordação do passado; da idade adulta para a infância etc.; cf. acima), é a perspectiva regressista: o cristianismo é a orientação para frente para o tornar-se cristão e fazer isto por meio do continuar a sê-lo. Sem calma ria não há nenhum humor; pois o humorista sempre tem tempo mais que suficiente, porque ele tem o tempo de sobra da eternidade atrás de si. O cristianismo não tem lugar para a tristeza; salvação ou perdição - salvação à frente, perdição atrás para todo aquele que se volta para trás, o que quer que veja; pois a esposa de Ló transformou-se em pedra quando olhou para trás porque viu a abominação da desolação, mas, compreendido de modo cristão, olhar para trás, mesmo que seja o olhar para a adorável, encantadora paisagem da infância, é perdição. - Quando se faz uma única concessão à especulação no que se refere a começar pelo puro ser: então tudo está perdido, e a confusão impossível de deter, dado que deve ser detida no interior do puro ser; quando se faz uma única concessão a uma ortodoxia infantil no que refere à excelência específica da infância para o tornar-se cristão, então tudo fica confundido. Mas agora aquela passagem da Bíblia; ela está realmente na Bíblia! Já me fiz bastante ridículo no precedente ao ter também que lidar com interpretações bíblicas pusilânimes e medrosas; não devo tentá-lo mais. Se uma ortodoxia infantil lançou um clarão cômico sobre o cristianismo, assim também o fez aquele tipo de interpretação bíblica que, em sua medrosa subserviência, sem tomar disto consciência, inverte a relação, e não está tão preocupada em entender a Bíblia como em ser entendida por ela, não está tão preocupada em entender a passagem da Bíblia quanto em ter alguma passagem para apelar - uma contradição, tal como quando alguém, que trabalha, quer se aconselhar com uma pessoa (isto, claro, é uma relação de dependência), mas pede conselho de tal modo que exige dela que responda assim ou assado, e se autoriza a fazer tudo para conseguir que ela responda exatamente assim. A submissão sob a autoridade do conselheiro se torna uma maneira esperta de obter vantagem da autoridade. Mas é isto um pedir conselho? É isto submeter-se ao que se chama de autoridade divina da Bíblia? Isto é, com certeza, uma tentativa covarde de, nunca agindo com as próprias mãos, empurrar para longe de si toda responsabilidade - exatamente como se a gente não tivesse nenhuma responsabilidade pela maneira com que se toma uma passagem bíblica a seu favor. [VII 526] Psicologicamente, é bastante notável o quão engenhosos, o quão inventivos, o quão sutis, o quão perseverantes nas investigações eruditas alguns homens podem ser, apenas para obter uma passagem bíblica em que se apoiar; em contraste, parecem absolutamente desatentos a que isto justamente seja uma maneira de fazer Deus de bobo, de tratá-lo como um pobre coitado que foi tão tolo a ponto de deixar algo escrito por Ele mesmo, e agora tem de aguentar o que os juristas querem fazer com isto. Assim se comporta uma criança ardilosa em relação a um pai severo, que não soube como conquistar o amor da criança; ela pensa algo deste tipo: Se eu conseguir sua permissão, pronto, aí tudo estará bem, mesmo que eu tenha de usar um pouco de astúcia. Mas uma relação deste tipo não é uma relação terna e íntima entre pai e filho. E, assim também, não é uma relação nada íntima entre Deus e um ser humano quando eles estão tão distantes um do outro que há espaço e uso para toda essa ansiosa sutileza e cismar de uma submissão desanimada. Exemplos de tal conduta encontram-se antes entre cabeças realmente talentosas, cujo entusiasmo não é proporcional à sua intelectualidade. Enquanto pessoas limitadas e atarefadas imaginam que estão agindo, agindo e agindo, é justamente a marca distintiva de certo tipo de cabeças intelectuais a virtuosidade com que sabem evitar agir. É chocante que Cromwell, que era afinal com toda certeza um leitor experiente da Bíblia, tivesse sutileza bastante para encontrar passagens bíblicas a seu favor, ou pelo menos para ver na vox populi [lat.: voz do povo], a vox dei [lat.: voz de Deus] que garantia haver um evento, um desígnio para que ele se tornasse protetor da Inglaterra, não uma ação da parte dele; pois o povo já o tinha de fato escolhido. Assim como raramente a gente vê um hipócrita genuíno, assim também raramente uma pessoa genuinamente inescrupulosa, mas uma consciência cheia de sutilezas não é rara, esteja ela numa atormentada autocontradição de simultaneamente ter que excluir em sua explicação uma responsabilidade, e ela mesma se manter inconsciente a respeito, ou uma morbidez em uma pessoa talvez bem-intencionada, uma morbidez que está vinculada a grandes sofrimentos e mantém a respiração do infeliz mais oprimida e dolorida do que a mais pesada das consciências, quando esta consegue expirar na sinceridade. Uma ortodoxia infantil, uma pusilânime interpretação da Escritura, uma defesa tola e não crística do cristianismo, uma má consciência nos defensores sobre sua própria relação com este são coisas que, entre outras, em nossa época, dão sua contribuição para provocar [VII 527] ataques apaixonados e loucos ao cristianismo. Não se pode barganhar, nem querer alterar o cristianismo, nem, de jeito nenhum, exceder-se ao se restringir no lugar errado, mas preste-se atenção para que este continue o que era, um escândalo para os judeus e uma loucura para os gregos, não alguma coisa meio boba da qual não se escandalizam nem gregos nem judeus, mas esses apenas sorriem dele, e só se irritam pela defesa que lhes apresentam. Mas sobre o trabalho da interioridade com o tornar-se e continuar a ser um cristão, ouve-se só pouca coisa. E, contudo, era justamente isto que especialmente precisava ser experimentado e precisa ser desenvolvido pela experiência depois que o cristianismo foi introduzido nos países, e nos países cristãos, em que não se espera que os indivíduos cristãos saiam pelo mundo como missionários a difundir o cristianismo. Nos primeiros tempos era diferente. Os apóstolos tornaram-se cristãos em idade adulta, portanto depois de terem passado boa parte de suas vidas em outras categorias (como uma consequência disto, a Escritura não pode conter nada a respeito das colisões que podem surgir quando se é criado desde a infância no cristianismo); eles se tornaram cristãos por meio de um milagre (No que precede, foi dito frequentemente que a existência de um apóstolo é dialético-paradoxal; devo agora mostrar como. A relação direta do apóstolo com Deus é di aI ético-paradoxal, pois uma relação direta é inferior (a determinação intermediária é a religiosidade da imanência, religiosidade A) à relação indireta da comunidade, dado que a relação indireta é entre espírito e espírito, a relação direta é estética - e contudo a relação direta é superior. Assim, a relação do apóstolo não é diretamente superior àquela da comunidade, tal como um pastor tagarela convence uma congregação bocejante, e com o que toda a questão retrocede para o estético. - A relação direta do apóstolo para com outras pessoas é dialético-paradoxal: o fato de que a vida do apóstolo esteja voltada para fora, ocupada em difundir o cristianismo em reinos e países, pois esta relação é inferior à relação indireta de um membro da comunidade para com outros, baseada em que ele essencialmente tem que lidar consigo mesmo. A relação direta é uma relação estética (orientada para fora), e, neste sentido, inferior, e, contudo, excepcionalmente é superior para o apóstolo: isto é o dialético-paradoxal. Não é diretamente superior, pois, nesse caso, obtemos toda a agitação histórico-universal de cada um [af En og Hver]. o paradoxo reside justamente em que o que vale como o mais alto para um apóstolo não vale do mesmo modo para outros) (aqui falta qualquer analogia em relação com as pessoas comuns), ou pelo menos tão rapidamente que não é dada nenhuma explicação pormenorizada sobre isto. Após isso, eles voltam sua atenção para fora para converter outros; mas aqui, mais uma vez, falta uma analogia com um pobre homem individual, [VII 528] que tem apenas a tarefa de existir como cristão. Quando não se está atento ao trabalho da interioridade, aí a urgência de ir além é facilmente explicada. A gente vive na Cristandade; a gente é cristão, pelo menos como todos os outros; dado que o cristianismo agora já durou por tantos séculos e permeou todas as relações, é tão fácil tornar-se cristão; não se tem a tarefa de um missionário; muito bem, então a tarefa agora é ir mais além e especular sobre o cristianismo. Mas especular sobre o cristianismo não é o trabalho da interioridade; a gente negligencia então as tarefas diárias de praticar a fé, a tarefa de sustentar-se em sua paixão paradoxal, superando todas as ilusões. A gente revira as coisas e esquece de que, com o incremento do entendimento, da cultura e da formação, torna-se mais e mais difícil sustentar a paixão da fé. Sim, se o cristianismo fosse uma doutrina sutil (diretamente compreendido), a formação ajudaria diretamente; mas em conexão a uma comunicação existencial, que acentua paradoxalmente o existir, a formação traz proveito apenas - ao tornar as dificuldades maiores. As pessoas de formação mais refinada têm assim apenas uma vantagem um tanto quanto irônica sobre a gente simples no que se refere ao tornar-se e continuar a ser cristão: a vantagem de ser mais difícil. Mas aqui de novo tem-se esquecido a dialética qualitativa e tem-se desejado formar, comparativa e qualitativamente, uma transição direta da cultura ao cristianismo. Por isso, o trabalho da interioridade será ampliado com os anos e dará ao cristão não missionário muito que fazer, não para o especular, mas para o continuar a ser cristão; não ficou mais fácil tornar-se cristão no século XIX do que nos primeiros tempos, ao contrário, tornou-se mais difícil, particularmente para os de formação mais refinada, e ficará mais difícil a cada ano. A predominância do entendimento na pessoa de formação refinada, a orientação rumo ao objetivo, continuamente criará nesta pessoa uma resistência ao tornar-se cristão, e a resistência é o pecado do entendimento: meias-medidas. Se o cristianismo alguma vez mudou a face do mundo ao subjugar as paixões cruas da imediatidade e ao enobrecer os estados, encontrará uma resistência igualmente perigosa na cultura. Mas se a luta há que ser aqui travada, então naturalmente deverá ser travada no interior das mais aguçadas determinações da reflexão. O paradoxo absoluto certamente suportará a si mesmo, porque, em relação ao absoluto, mais entendimento não chega mais adiante do que menos entendimento; ao contrário, eles chegam igualmente longe, a pessoa excepcionalmente dotada, devagar, a pessoa simples, rapidamente. - Que outros louvem então a cultura diretamente - muito bem, que seja louvada, mas eu prefiro, porém, louvá-la porque ela faz ser tão difícil o tornar-se cristão. [VII 529] Pois sou um amigo das dificuldades, em especial das que têm a propriedade humorística de que a pessoa da formação mais refinada, após ter passado pelos mais intensos esforços, essencialmente não chegou nem um pouco além do que pode chegar o mais simples dos seres humanos. Pois o mais simples dos seres humanos pode decerto tornar-se um cristão e continuar a sê-lo; mas dado que em parte porque não tem entendimento em grande escala, e em parte porque a condição da pessoa simples na vida volta sua atenção para fora: está assim dispensada do esforço com o qual a pessoa de formação mais refinada sustenta a fé, lutando cada vez mais, conforme sua cultura se avoluma. Dado, com efeito, que o mais elevado é tornar-se e continuar a ser cristão, a tarefa não pode consistir em refletir sobre o cristianismo, mas apenas em potencializar, graças à reflexão, o pathos com o qual a gente continua a ser cristão. É sobre isto que girou todo este livro, cuja primeira parte tratava da concepção objetiva do tornar-se ou do ser cristão, a última parte da [concepção] subjetiva. Objetivamente, define-se o tornar-se ou ser cristão da seguinte maneira: 1) Um cristão é aquele que aceita a doutrina cristã. Mas se o "o quê" desta doutrina deve, em última análise, decidir se a gente é cristão, então instantaneamente a atenção se volta para fora a fim de descobrir, até o mínimo detalhe, o que é a doutrina cristã, pois este "o quê" não decidirá afinal o que o cristianismo é, mas sim se eu sou cristão. - Neste mesmo instante tem início a erudita, a aflita, a timorata contradição da aproximação. A aproximação pode continuar enquanto quiser e baseado nisso no final a decisão, pela qual o indivíduo se torna cristão, é completamente relegada ao livro do esquecimento. Este equívoco foi remediado pela pressuposição de que qualquer um na Cristandade é cristão, nós todos somos aquilo que a gente chama de cristão. Com esta pressuposição as teorias objetivas funcionam melhor. Nós somos todos cristãos. A teoria da Bíblia deve agora dedicar-se a examinar com adequada objetividade o que é mesmo o cristianismo (e, no entanto, todos nós somos, afinal de contas, cristãos, e se assume que o [conhecimento] objetivo é o que nos torna cristãos, o [conhecimento] objetivo que nós recém agora vamos aprender a conhecer, nós que [já] somos cristãos - pois, se não somos cristãos, então o caminho iniciado é aquele que jamais conduz ao tornar-se cristão). A teoria da Igreja assume que nós somos cristãos, mas agora devemos, de modo puramente objetivo, assegurar-nos a respeito do que é o cristianismo [VII 530], para podermos nos defender contra o jugo turco, e o russo, e o romano, e lutando destemidamente abrir caminho para o cristianismo, fazendo de nosso tempo uma ponte, por assim dizer, para um futuro incomparável, que já se pode vislumbrar. Isto é pura estética; o cristianismo é uma comunicação existencial, a tarefa consiste em tornar-se cristão ou continuar a ser cristão, e a ilusão mais perigosa de todas é estar tão certo de o ser, que a gente se dispõe a defender toda a Cristandade contra o turco - ao invés de defender a fé dentro de si mesmo da ilusão a respeito do turco. 2) A gente diz: Não, não é qualquer aceitação da doutrina cristã que faz de alguém um cristão. O que é especialmente importante é a apropriação, que a gente se aproprie e mantenha firme esta doutrina de um modo totalmente diferente do que de qualquer outra coisa, que se queira viver e morrer nela, que se queira arriscar a vida por ela etc. Isso dá a impressão de ser já alguma coisa. A categoria "totalmente diferente" é, contudo, uma categoria bastante medíocre, e a fórmula toda, que faz uma tentativa de definir o ser cristão de um modo um pouco mais subjetivo, não é uma coisa nem outra, e, de algum modo, contorna a dificuldade com a distração e o engano da aproximação, mas carece da determinação categórica. O pathos da aproximação, de que aqui se trata, é o da imediatidade; pode-se muito bem dizer que um amante entusiasta se relaciona deste modo com seu amor: ele o mantém firme e se apropria dele de modo totalmente diferente de qualquer outro, quer viver nele e morrer nele, quer arriscar tudo por ele. Até aqui, não há nenhuma diferença essencial entre um amante e um cristão, no que se refere à interioridade, e a gente outra vez tem de recorrer ao "o quê", que é a doutrina, e então recaímos sob o n. 1. Com efeito, o importante é que se defina o próprio pathos da apropriação no crente de tal modo que ele não possa ser confundido com nenhum outro pathos. Nisto, com efeito, a concepção mais subjetiva tem razão, ao dizer que é a apropriação que decide a questão, mas ela não tem razão em sua determinação da apropriação, que não tem nenhuma diferença específica em relação a todo e qualquer outro pathos imediato. Isto tampouco acontece, de jeito nenhum, quando se define a apropriação como fé, para em seguida empurrar a fé na direção da compreensão, de modo que a fé se torna uma função provisória, por meio da qual a gente mantém firme provisoriamente algo que deve tornar-se um objeto para a compreensão, uma função provisória [VII 531] com a qual a gente pobre e os homens sem inteligência precisam contentar-se, enquanto que os livres-docentes e as boas cabeças vão mais além. O sinal distintivo do ser cristão (a fé) é a apropriação, mas de tal maneira que não é especificamente diferente de outra apropriação intelectual na qual uma aceitação temporária seja uma função provisória em relação à compreensão. Fé não se torna o específico para a relação com o cristianismo, e será mais uma vez o "o quê" se crê que vai decidir se alguém é ou não cristão. Mas com isto a questão retoma mais uma vez ao n. 1. Com efeito, esta apropriação, por meio da qual um cristão é cristão, tem de ser tão específica que não possa ser confundida com nenhuma outra. 3) A gente não define o tornar-se e manter-se cristão nem objetivamente pelo "o quê" da doutrina, nem mesmo subjetivamente pela apropriação, não com aquilo que aconteceu no [interior do] indivíduo, mas pelo que aconteceu com o indivíduo: que ele foi batizado. Na medida em que ao batismo se adiciona a aceitação da confissão de fé, nada de decisivo é ganho com isso, mas a determinação irá vacilar entre acentuar o "o quê" (a via da aproximação) e falar indeterminadamente sobre a aceitação e aceitação, e apropriação etc., sem qualquer determinação específica. Se a determinação deve consistir no ser batizado, então a atenção se voltará imediatamente para fora, para a consideração: Será que eu realmente fui batizado? Assim começa a aproximação em relação a um fato histórico. Se, por outro lado, alguém diz que no batismo ele com certeza recebeu o espírito e por força do testemunho do espírito sabe que foi sim batizado: então o raciocínio está diretamente invertido, do testemunho do espírito nele ele tira a conclusão de que tem de ter sido batizado; não tira a conclusão de que tem o espírito pelo fato de ter sido batizado. Mas se a conclusão deve ser tirada deste modo, o sinal distintivo do ser um cristão, bem corretamente, não é mais o batismo, mas a interioridade, e então mais uma vez tem-se de exigir uma determinação específica da interioridade e da apropriação, com o que o testemunho do espírito em um cristão é diferente de toda e qualquer atividade espiritual (definida de modo mais geral) em um ser humano. É curioso, de resto, que essa ortodoxia, que fez do batismo, em particular, o decisivo, esteja sempre reclamando que entre os batizados haja tão poucos cristãos, que, com a exceção de um pequeno rebanho imortal, sejam todos privados de espírito e pagãos batizados, o que parece indicar que o batismo não pode ser o fator decisivo no tornar-se cristão, nem mesmo [VII 532] de acordo com o subsequente da visão daqueles que no primeiro ponto urgiam sobre o batismo como o decisivo para o tornar-se cristão. Subjetivamente, define-se o ser cristão da seguinte maneira: A decisão reside no sujeito, a apropriação é a interioridade paradoxal que é especificamente diferente de qualquer outra interioridade. O ser um cristão não é determinado pelo "o quê" do cristianismo, mas pelo "como" do cristão. Este "como" só pode servir a uma única coisa, o paradoxo absoluto. Portanto, não há qualquer conversa indeterminada dizendo que ser cristão significa aceitar e aceitar, e aceitar de um modo totalmente diferente, apropriar-se, crer, apropriar-se na fé de um modo totalmente diferente (um monte de definições retóricas e fictícias); mas o ato de crer é especificamente determinado de modo diferente de qualquer outra apropriação e interioridade. Fé é a incerteza objetiva com a repulsão do absurdo, mantida firme na paixão da interioridade, que é justamente a relação da interioridade potencializada ao seu máximo. Esta fórmula aplica-se somente ao crente, a mais ninguém, não a um amante, ou a um entusiasta, ou a um pensador, mas só e somente ao crente que se relaciona com o paradoxo absoluto. A fé, portanto, não pode ser, de nenhum modo, alguma função provisória. Aquele que, no interior de um conhecimento superior, quiser entender sua fé como um elemento superado, cessou eo ipso de crer. A fé não pode contentar-se com a incompreensibilidade; pois justamente a relação para com, ou a repulsão pelo incompreensível, o absurdo, é a expressão para a paixão da fé. Com esta determinação do ser um cristão impede-se que a consideração erudita ou timorata da aproximação seduza o indivíduo para desvios, de modo que ele se torne erudito em vez de se tornar cristão, e, na maior parte dos casos, semiestudado em vez de se tornar cristão; pois a decisão reside na subjetividade. Mas a interioridade mais uma vez encontrou seu sinal distintivo específico, por meio do qual ela é diferente de todas as outras interioridades, e não é despachada com a categoria de conversa fiada: "inteiramente diferente"; pois esta se aplica a qualquer paixão no momento da paixão. Psicologicamente, é em geral um sinal seguro de que a gente começa a abandonar aquela paixão cujo objeto a gente quer tratar de forma objetiva. Em geral, vale a regra de que paixão e reflexão excluem-se mutuamente. Tornar-se objetivo desta maneira é sempre um retrocesso, pois na paixão há uma perdição do homem, tal como também sua elevação. Se a dialética e a reflexão não são utilizadas para potencializar a paixão, [VII 533] então tornar-se objetivo constitui um retrocesso; e mesmo aquele que se perdeu na paixão não perdeu tanto quanto aquele que perdeu a paixão; pois o primeiro tem a possibilidade. Assim se pretendeu em nossa época ser objetivo em relação ao cristianismo; a paixão com a qual cada um é cristão tornou-se pequena demais para eles e, ao nos tornarmos objetivos, todos obtivemos a perspectiva de nos tornarmos livres-docentes. Mas esta ordem de coisas fez a luta na Cristandade ficar por sua vez cômica, porque a disputa é, de tantas maneiras, meramente uma questão de troca de armas, e porque a disputa sobre o cristianismo está sendo travada na Cristandade por cristãos, ou entre cristãos, sendo que todos eles, ao quererem ser objetivos e ir mais além, estão a ponto de desistir de ser cristãos. Na ocasião em que o governo dinamarquês converteu o empréstimo inglês de 3% de Wilson para Rothschild, houve um grande clamor por justiça nos jornais; uma assembleia geral foi realizada por pessoas que não possuíam títulos hipotecários, mas que tinham tomado algum emprestado a fim de participarem da assembleia como portadoras de títulos; houve uma discussão, e convencionou-se que se deveria contestar a decisão do governo por meio da recusa em aceitar os novos títulos. E a assembleia geral foi feita por pessoas que não possuíam títulos e que, por isso, dificilmente entrariam na duvidosa situação da proposta do governo para que aceitassem os novos títulos. O ser cristão está a ponto de perder o interesse da paixão, e contudo ali se luta pró e contra, a gente argumenta a partir de si mesmo: Se isto não é cristianismo, então eu não sou cristão, o que, entretanto, com certeza eu sou; a questão foi revirada de tal modo que a gente se interessa por ser cristão a fim de ser capaz de decidir o que é o cristianismo, não pelo que é o cristianismo a fim de poder ser cristão. O nome "cristão" é usado da mesma maneira com que as pessoas pegavam títulos emprestados - a fim de comparecer à assembleia geral em que o destino dos cristãos é decidido por cristãos que, pelo seu próprio bem, não se preocupam em ser cristãos. - Pelo bem de quem, então, tudo isto é feito? Justo porque a gente em nosso tempo e na Cristandade de nosso tempo não parece estar suficientemente atenta à dialética da interiorização, ou a que o "como" do indivíduo é uma expressão igualmente exata e mais decisiva para o que ele tem do que o "o quê" a que ele apela: daí surgem em nossa época as confusões mais estranhas e, se a gente tiver no devido humeur [fr.: humor] e tiver tempo para tanto, as mais risíveis, [VII 534] de que se pode facilmente mostrar que nem a confusão do paganismo pode ter sido tão cômica, porque neste não havia tanta coisa em jogo, e as antíteses não estavam erguidas tão alto. Mas tem de ser elas por elas para manter a amizade, e a gente tem de continuar a ser otimista. Aquele que, fazendo experimentos no terreno da paixão, deixa-se excluir de todas as brilhantes e sorridentes perspectivas de se tornar um livre-docente e de tudo o que isto traz de vantagens: convém que pelo menos ele tenha uma pequena compensação humorística, pois leva a peito algo que outros, mirando o que há de mais alto, consideram uma bagatela: a pequena compensação humorística de que sua paixão deixe aguçado o seu senso do cômico. Aquele que, apesar de amigo das pessoas, expõe-se a ser execrado como egoísta, por não se preocupar objetivamente com o cristianismo pelo bem dos outros, deveria ter na qualidade de amigo do riso uma pequena indenização; realmente, não dá para passar vergonha por ser egoísta e não tirar nenhuma vantagem disto: assim, a gente não seria egoísta, afinal de contas. Um ortodoxo defende o cristianismo na mais terrível paixão; no suor do rosto e com os gestos mais preocupados, assegura que assume o mais puro e autêntico cristianismo; quer nele viver e morrer - e esquece que uma aceitação deste tipo é uma expressão ordinária demais para o relacionar-se com o cristianismo. Ele faz tudo em nome de Jesus, e usa o nome de Cristo em toda ocasião como um sinal seguro de que é cristão e chamado a defender a Cristandade em nosso tempo - e nem suspeita do segredinho irônico de que uma pessoa, só por descrever o "como" de sua interioridade, pode mostrar, indiretamente, que é um cristão sem mencionar o nome de Cristo. (Em relação ao ato de amar, para ilustrar de novo a mesma coisa, não vale dizer que alguém ao determinar o seu "como" já consegue dizer o que ou quem ele ama. Todos os amantes têm o "como" do amor [Elskovens] em comum, e agora o indivíduo particular tem que adicionar o nome de seu amado. Mas em relação ao ato de ter fé (sensu strictissimo), é verdade que este "como" convém apenas a um objeto. Se alguém diz, "Sim, mas então se pode aprender este 'como' de cor e recitá-lo": a resposta aí deve necessariamente ser: Isto não pode ser feito, pois aquele que o afirma diretamente contradiz-se, porque o conteúdo do enunciado tem de ser constantemente reduplicado na forma, e o isolamento na determinação tem de reduplicar-se na forma). - Um homem é despertado na noite de ano-novo precisamente às seis horas; agora ele está pronto. Fantasticamente engalanado com o fato daquele despertar, [VII 535] deve agora sair correndo por aí e proclamar o cristianismo - em um país cristão. Dá para entender, muito embora todos sejamos batizados, cada um bem pode precisar tornar-se cristão em outro sentido. Mas aqui está a diferença: conhecimento não falta num país cristão, o que falta é outra coisa, e esta outra coisa um ser humano não consegue comunicar a outro diretamente. E em categorias tão fantásticas quer um despertado atuar em favor do cristianismo: e contudo demonstra - exatamente quanto mais agitado esteja propagando e propagando - que ele próprio não é cristão. Pois o ser cristão é algo tão inteiramente refletido que não permite que a dialética estética teleologicamente faça uma pessoa ser para outra aquilo que não é para si mesma. - Do outro lado, um zombador ataca o cristianismo e, ao mesmo tempo, expõe-no de modo tão responsável que é um prazer lê-lo, e aquele que está sem saber a quem se dirigir para vê-lo corretamente apresentado quase tem que apelar para ele. Toda observação irônica consiste em prestar atenção ao "como", enquanto que a honorável pessoa com quem o irônico tem a honra de envolver-se presta atenção apenas ao "o quê". Um homem declara em alto e bom som, e encarecendo: Esta é minha opinião; contudo, não se limita a enunciar literalmente a fórmula breve, ele se explica mais em detalhes, aventura-se a variar as expressões: sim, porque fazer variações não é uma coisa tão fácil quanto se pensa, e mais de um estudante teria recebido laudabilis [lat.: com louvor] na prova de estilo se não tivesse feito variações, e uma porção de gente tem aquele talento para variar que Sócrates admirava em Polos: o de nunca dizer o mesmo - sobre a mesma coisa. O irônico, então, investiga: naturalmente, ele não presta tanta atenção ao que está escrito em letras maiúsculas ou ao que, pela dicção do orador, trai-se como simples fórmula (o "o quê" da honorável pessoa), mas ele presta atenção a uma oração subordinada que escapou à grandiosa atenção da honorável pessoa, a um pequeno predicado que acena etc., e agora, para sua admiração, alegre pelas variações (in variatione voluptas: [lat.: o prazer está na variação]), vê que o honorável cavalheiro não tem esta opinião, não porque seja um hipócrita, deus nos livre, este é um assunto sério demais para um irônico, mas sim porque o bom homem concentra-se mais em berrá-la para fora, e menos em possuí-Ia dentro de si. A honorável pessoa pode ter razão quanto ao ter aquela opinião, na medida em que se convence com todas as forças de sua vida que pode tudo fazer por ela em sua qualidade de boateira; [VII 536] pode arriscar sua vida por isto, em tempos muito confusos, pode até mesmo chegar ao ponto de perder sua vida por esta opinião (Em tempos tumultuados, quando um governo precisa defender sua sobrevivência com a pena de morte, não seria, de jeito nenhum, incompreensível que um homem pudesse ser executado por uma opinião que ele tivesse tido, decerto, no sentido jurídico e civil, e menos, por outro lado, no sentido intelectual) - agora sim eu sei, que diacho, que o homem tem de ter tido aquela opinião; e contudo, pode ter vivido, na mesma época, um irônico que, não obstante, na hora mesmo em que o pobre honorável homem estava sendo executado, não consegue impedir-se de rir, porque baseado em seus indícios ele sabe que o homem jamais chegou a ver claro sobre si mesmo. Risível isto é, mas que tal coisa possa acontecer não é desanimador para a vida; pois aquele que, no silêncio do recolhimento, honesto diante de Deus, preocupa-se consigo mesmo, a este o deus livra de estar em um extravio, por mais simples que ele seja, o deus o leva, no sofrimento da interioridade, para a verdade. Mas azáfama e barulho são marcas do extravio, o sinal de um estado anormal, tal como vento no estômago, e ser executado por casualidade numa virada de um tumulto não é o tipo de sofrimento que é essencialmente o da interioridade. Conta-se que ocorreu na Inglaterra que um homem foi assaltado na estrada por um bandido que se tinha tornado irreconhecível graças a uma longa peruca. Este se atirou sobre o viajante, agarrou-o pelo peito e gritou: Sua bolsa. Pegou a bolsa, ficou com ela, porém jogou fora a peruca. Um homem pobre vem andando pela mesma estrada, encontra a peruca, coloca-a, e chega à próxima cidade, onde o viajante já tinha dado o alarme, vem a ser reconhecido, preso e identificado pelo viajante, que presta juramento de que se tratava dele. Por casualidade, o bandido está presente na sala do tribunal, vê o engano, dirige-se ao juiz e diz: "Parece-me que o viajante está olhando mais para a peruca do que para o homem", e solicita permissão para fazer um experimento. Coloca a peruca, agarra o viajante pelo peito, com as palavras: Sua bolsa - e aquele viajante reconhece o bandido e se oferece para jurar por isto - só é pena que ele já havia prestado juramento uma vez. Assim se passa de um ou outro modo com qualquer um que tem um "o quê" e não presta atenção ao "como"; ele jura, presta juramento, corre de um lado para outro, arrisca sua vida e seu sangue, vem a ser executado - tudo por causa da peruca. [VII 537] Se não me falha a memória, já contei esta história uma vez neste livro; desejo contudo com ela encerrar o livro todo. Não creio que alguém poderá em verdade acusar-me ironicamente de tê-la variado de tal modo que não tenha permanecido a mesma. ADENDO O entendimento com o leitor O signatário, Johannes Climacus, que escreveu este livro, não se pretende um cristão; emprega, por certo, todas as suas forças na questão do quão difícil há de ser tornar-se um destes; mas menos ainda ele é alguém que, após ter sido cristão, deixou de sê-lo por ter ido mais adiante. Ele é um humorista; satisfeito com suas circunstâncias no momento, esperando que algo de melhor ser-lhe-á concedido, sente-se sumamente feliz, na pior das hipóteses, por ter nascido justamente no século especulativo, teocêntrico. Sim, o nosso tempo é um tempo para especulantes e para grandes homens com descobertas incomparáveis; e contudo eu creio que nenhum -destes honoráveis senhores consegue estar tão à vontade quanto um humorista, voltado aos assuntos privados, o está em toda a calma, quer ele, apartado, fique batendo no seu peito, quer ria calorosamente. Pode, portanto, muito bem ser um autor, desde que cuide que isto se dê para seu próprio prazer, que se mantenha apartado, que não se envolva com a aglomeração, não pereça na importância do tempo, não seja, como um espectador curioso de um incêndio, forçado a bombear água, ou simplesmente se envergonhe com a ideia de que poderia estorvar o caminho de alguma das diversas pessoas eminentes que têm e devem ter e têm de ter e querem ter importância. O livro todo gira, no distanciamento do experimento, sobre mim mesmo, só e exclusivamente sobre mim mesmo. "Eu, Johannes Climacus, agora com trinta anos de idade, nascido em Copenhague, uma pessoa simples e comum como a maioria o é, ouvi dizer que nos espera um bem supremo, que é chamado uma felicidade eterna, e que o cristianismo pretende ser a condição dela, conforme cada um se relacionar com ele: eu agora pergunto, de que modo me torno um cristão?" [VII 538] (cf. Introdução). Pergunto só por minha causa, sim, com certeza é assim que o faço, ou melhor, eu perguntei sobre isto, pois este é, afinal, o conteúdo deste livro. Por isso, ninguém se dê ao incômodo de dizer que este livro é completamente supérfluo e totalmente irrelevante para o nosso tempo, a não ser que tenha necessidade de, ao fim e ao cabo, dizer alguma coisa, pois, nesse caso, trata-se do desejado juízo que já foi, afinal, enunciado pelo próprio autor. Este compreende muito bem o quão embaraçoso é, se se prestar atenção ao livro, escrever uma coisa dessas em nossa época. Portanto, tão logo uma única pessoa - mas o que estou a dizer, como tu me arrebatas, coração vaidoso! não, não, não é bom cair em tentação; não fosse isso, eu queria dizer que tão logo uma única pessoa pudesse me informar onde e junto a quem se pede permissão para ousar, como uma pessoa singular, escrever ou estabelecer-se como autor em nome da humanidade, do século, do nosso tempo, do público, de muitos, da maioria, ou, o que deveria ser considerado como um favor ainda mais raro, ousar, como uma pessoa singular, escrever contra o público em nome de muitos, contra a maioria em nome de uma outra maioria em relação ao mesmo problema, e mesmo reconhecendo pertencer à minoria, ousar escrever em nome de muitos; e assim, como uma pessoa singular, ter ao mesmo tempo elasticidade polêmica, ao estar na minoria, e ter graça aos olhos do mundo por estar na maioria; se alguém pudesse me informar acerca de quais despesas estão incluídas no deferimento de tal pedido, pois mesmo que as custas não sejam calculadas em dinheiro, elas podem muito bem ser ainda desproporcionais: aí, suposto que as custas não excedessem as minhas capacidades, eu poderia talvez não ser capaz de resistir à tentação de escrever o mais rápido possível um livro extremamente importante que falasse em nome de milhões e milhões e milhões e bilhões. Até lá, ninguém poderá, afinal, consequente com seu ponto de vista, e do meu ponto de vista a repreensão é outra coisa, repreender o livro por ser supérfluo, se acaso não for capaz de explicar o que está em questão. Portanto, o livro é supérfluo, por isto, ninguém mesmo se dê ao trabalho de apelar para ele; pois quem apela para ele, eo ipso compreendeu-o mal. Ser uma autoridade é uma existência demasiado difícil de suportar para um humorista, que justamente considera como uma das comodidades da vida que existam tão grandes homens que poderiam e quereriam ser autoridade, de quem se tem o proveito de se poder sem mais nem menos aceitar as opiniões como algo natural, a não ser que se seja tolo o bastante para derrubar os grandes homens, pois isto é algo de quem ninguém tira proveito. Acima de tudo, que os céus preservem o livro e a mim de qualquer veemência aprovadora, [VII 539] de modo que um vociferante homem de partido o cite elogiosamente e me registre no alistamento. Se ele não se dá conta de que nenhum partido pode estar bem-servido com um humorista experimentador, então este último pode perceber muito melhor sua inaptidão para aquilo que, de qualquer maneira, deveria tentar evitar. Para ser homem de partido eu não tenho nenhuma aptidão, pois não possuo nenhuma opinião a não ser esta: de que tornar-se um cristão deve ser a coisa mais difícil de todas, uma opinião que não é uma opinião, e absolutamente não tem nenhuma das qualidades que ordinariamente caracterizam uma "opinião"; pois isto não me lisonjeia, já que não tenho a pretensão de ser cristão; ela não ofende o cristão, já que ele logicamente não pode ter nada contra minha consideração de que o que ele fez e está fazendo é o mais difícil de tudo; não ofende aquele que ataca o cristianismo, já que seu triunfo se torna tanto maior, ele que vai mais adiante - do que aquilo que é o mais difícil de tudo. Eu por conseguinte não desejo nenhuma prova da realidade efetiva de que realmente tenho uma opinião (um adepto, um hurra, ser executado etc.), pois não tenho nenhuma opinião, e desejo não ter nenhuma, contente e satisfeito com isso. Tal como nos livros católicos, especialmente os de tempos mais antigos, encontra-se uma anotação nas costas do livro que avisa o leitor de que tudo deve ser compreendido em concordância com o ensinamento de nossa santa madre Igreja universal: assim também o que eu escrevo contém o aviso de que tudo deve ser compreendido de tal modo que venha a ser revogado; que o livro não apenas tem uma conclusão, mas ainda de brinde uma revogação. Mais do que isso não se pode exigir, nem antes nem depois. Escrever e publicar um livro, quando não se tem nem um editor, que poderia ficar em apuro no caso de ele não vender, é de fato um inocente passatempo e diversão, um empreendimento privado lícito em um Estado bem-ordenado que tolera o luxo, e onde a todos se permite gastar seu tempo e seu dinheiro como quiserem, seja construindo casas, comprando cavalos, indo à comédia, ou escrevendo livros supérfluos e fazendo-os imprimir. Mas se isto pode ser considerado desta maneira, então se pode, por outro lado, julgar como um dos inocentes, lícitos e tranquilos prazeres da vida, que nem perturbam a lei de observância dos dias santos e nem outros preceitos de dever e retidão, imaginar-se um (a) leitor (a) com quem a gente possa, de vez em quando, envolver-se no livro, se a gente não faz, é bom notar, nem do modo mais remoto, [VII 540] uma tentativa ou gesto no sentido de querer obrigar uma pessoa singular de verdade a ser o/a leitor (a). "Apenas o positivo é uma interferência na liberdade pessoal de outra pessoa" (cf. Prefácio); o negativo é a cortesia que aqui nem se pode dizer que custe dinheiro, já que apenas a publicação o faz, e mesmo que alguém fosse tão descortês a ponto de querer empurrar o livro para as pessoas, ainda assim não se poderia dizer que alguém o comprou. Em um Estado bem-ordenado é permitido, claro, a cada um estar apaixonado bem em silêncio, e quanto mais profundamente secreto o amor for, tanto mais permitido ele é. Não é permitido, pelo contrário, que um homem aborde todas as moças e assegure a cada uma separadamente que ela é a verdadeira amada. E aquele que tem uma amada verdadeira está proibido pela fidelidade e pela decência de perder-se em um amor imaginário, mesmo que o faça muito secretamente. Mas quem não tem nenhuma: sim, este tem permissão para fazê-la - e o autor que não tem nenhum leitor de verdade tem permissão para ter um (a) leitor (a) imaginado (a): tem até permissão para admiti-la, pois não há naturalmente ninguém a quem ele ofenda. Louvado seja o Estado bem-ordenado; invejável felicidade para aquele que compreende como estimá-la! Como pode alguém estar tão ocupado querendo reformar o Estado e mudar a forma do governo! De todas as formas de governo, a monárquica é a melhor, mais do que qualquer outra, ela favorece e protege as fantasias secretas e as loucuras inocentes das pessoas particulares. Só a democracia, a forma mais tirânica de governo, obriga cada um a uma participação efetiva, da qual as sociedades de nosso tempo e assembleias gerais já estão nos lembrando suficientemente. É tirania que uma pessoa queira governar e então deixe o resto de nós livres? Não, mas é tirania que todos queiram mandar e, ainda por cima, queiram obrigar cada um a participar do governo, mesmo a pessoa que com a maior insistência declina de fazer parte do governo. Para um (a) autor (a), um (a) leitor (a) imaginado (a), enquanto ficção silenciosa e satisfação totalmente privada, é então algo que não interessa a nenhum terceiro. Que isto seja dito como uma apologia cívica e defesa para algo que não precisa de nenhuma defesa, pois, pelo silêncio, esquiva-se do ataque: a satisfação inocente e lícita, mas, contudo, talvez também menosprezada e mal-interpretada, de ter um (a) leitor (a) imaginado (a), um prazer da infinitude, a mais pura expressão de liberdade de pensamento, simplesmente porque renuncia à liberdade de expressão. Em honra e louvor de tal leitor (a), não me sinto capaz de falar dignamente; qualquer um que tenha tido convívio com ele (a) certamente não negará que se trata absolutamente do (a) mais agradável de todos (as) os (as) leitores (as). Ele (a) nos compreende no todo e parte por parte, ele (a) tem paciência para não pular os entreatos e apressar-se da trama do episódio para a urdidura do sumário, ele (a) é capaz de suportar por tanto tempo quanto o (a) autor (a) [VII 541], é capaz de compreender que a compreensão é a revogação; o entendimento com ele (a) como o (a) único (a) leitor (a) é justamente a revogação do livro, ele (a) é capaz de compreender que escrever um livro e revogá-la não é a mesma coisa que deixar de escrevê-la, que escrever um livro que não exige importância para alguém é contudo algo de diferente de deixá-la não escrito; e apesar de sempre concordar e nunca se colocar contra ninguém, pode-se mesmo assim ter mais respeito por ele (a) do que pelas contradições barulhentas de toda uma sala de conferências; mas neste caso pode-se também falar com ele (a) com inteira confiança. Tu que me lês! Que eu mesmo o diga: estou bem longe de ser um tipo de filósofo bom pra caramba, chamado a criar uma nova corrente [de pensamento]; sou um pobre ser humano individual existente com capacidades naturais sãs, não sem certa destreza dialética e tampouco inteiramente desprovido de estudo superior. Mas fui testado nos casibus [lat.: casos] da vida e apelo com confiança aos meus sofrimentos, não no sentido apostólico como uma questão de honra, pois demasiado frequentemente eles foram castigos que eu mesmo mereci, mas ainda assim eu me apoio neles como meus mestres, e com mais pathos do que aquele com que Stygotius apela para todas as universidades em que estudou e disputou. Eu me obstino numa certa sinceridade que me proíbe de papagaiar aquilo que não consigo entender e que me obriga, algo que em conexão com Hegel há muito me causa dor em meu desamparo, a renunciar a nele me amparar, a não ser em algumas partes, o que equivale a ter de renunciar ao reconhecimento que se ganha pela vinculação, enquanto eu continuo a ser o que eu mesmo admito que é infinitamente pouco, um evanescente, imperceptível átomo, como o é qualquer ser humano individual; uma sinceridade que, por sua vez, me conforta e me guarnece com um senso mais incomum do cômico e com uma certa capacidade de tornar ridículo o que é ridículo; pois por estranho que pareça, o que não é ridículo eu não consigo, de jeito nenhum, tornar ridículo, para isso se requerem provavelmente outras capacidades. Tal como eu me entendo, eu me desenvolvi tanto, justamente por pensar por mim mesmo, eduquei-me tanto pela leitura, orientei-me tanto interiormente, em existindo, que estou em condições de ser um aprendiz, um educando, o que já constitui uma tarefa. Não tenho pretensão de ser mais do que isto: ser capaz de começar a aprender em um sentido mais elevado. Oxalá se encontrasse entre nós o mestre! [VII 542] Não estou falando do professor da filologia clássica, pois este nós temos, e se fosse isto o que eu deveria aprender, seria ajudado tão logo adquirisse o conhecimento prévio necessário para ser capaz de começar; não estou falando do professor de história da filosofia, para a qual decerto careço dos conhecimentos prévios, se ao menos tivéssemos este mestre; não estou falando do mestre da difícil arte do discurso religioso, pois realmente temos alguém tão distinto, e sei que tenho me esforçado ao máximo para aproveitar de sua séria orientação, isso eu sei, senão pelo benefício da apropriação, para que maliciosamente eu não minta ser algo meu ou meça sua significação por minha contingência, então eu o sei pela veneração que tenho mantido por Sua Reverência; não estou falando do mestre da bela arte da poesia e seus segredos de linguagem e bom gosto, pois tal iniciado nós já possuímos, eu o sei, e espero não esquecê-lo jamais, nem a ele e nem o que devo a ele. Não, o mestre de que eu falo, e aliás de outro modo, ambíguo e dúbio, é o mestre da ambígua arte de pensar sobre a existência e de existir. Portanto, se ele fosse encontrado, aí ouso garantir que, por deus, algo resultaria disso, se ele, preto no branco, se responsabilizasse pela minha instrução e, para tanto, procedesse lentamente e parte por parte, permitindo, como convém numa boa instrução, que eu colocasse minhas questões, e que eu impedisse que qualquer assunto fosse abandonado antes de eu o ter compreendido completamente. Com efeito, o que não posso admitir é que tal mestre viesse a pensar que não tinha nada mais a fazer além daquilo que faz na escola pública um medíocre professor de religião: cada dia designar-me como matéria um parágrafo que eu deveria saber de cor para o dia seguinte. Mas já que até hoje não tive notícia de nenhum mestre deste tipo que professe justamente o que procuro (seja este um sinal alegre ou triste), minha busca é, então, eo ipso sem significação, e apenas para minha própria satisfação, como aliás deve ser quando um aprendiz no existir, que então não pode querer ensinar outros (e longe de mim esteja o vazio e vaidoso pensamento de ser um tal mestre), expõe algo que tal como se pode esperar de um aprendiz que essencialmente não sabe nada mais nada menos do que o que quase todas as pessoas sabem, [VII 543] só que ele sabe algo mais definido sobre o assunto e, em compensação, em relação ao muito que qualquer homem sabe ou pensa saber, ele sabe com certeza que não sabe. Pode ser que quanto a isso nem acreditassem em mim, se eu o dissesse a qualquer outra pessoa que não fosses tu, que me lês. Pois quando alguém em nossa época diz, "Eu sei tudo", então acreditam nele; mas daquele que diz, "Há muita coisa que não sei", suspeita-se de ter tendência para mentir. Tu te lembras que em uma das peças de Scribe um homem experiente em casos amorosos levianos narra que usa o seguinte procedimento quando está cansado de uma garota, ele lhe escreve: Eu sei tudo - e, acrescenta, este método até hoje nunca falhou. Em nossa época, eu não creio, de jeito nenhum, que tenha falhado para qualquer especulante que diga: Eu sei tudo; oh, mas as pessoas impiedosas e mentirosas que dizem que há muita coisa que não sabem, elas ganham o que merecem neste que é o melhor dos mundos, sim, o melhor dos mundos para todos aqueles que se divertem à custa dele por saberem tudo, ou por absolutamente não saberem nada. J.C. [VII 545] Uma primeira e última explicação Por uma questão de forma e de ordem, eu reconheço, por meio desta, algo que realiter [lat.: de fato] dificilmente alguém pode ter interesse em saber: que sou eu, como se diz, autor de Ou isto ou aquilo (Victor Eremita), Copenhague, fevereiro de 1843; Temor e tremor (Johannes de Silentio), 1843; A repetição (Constantin Constantius), 1843; O conceito de angústia (Vigilius Haufniensis), 1844; Prefácios (Nicolaus Notabene), 1844; Migalhas filosóficas (Johannes Climacus), 1844; Estádios no caminho da vida (Hilarius Bogbinder: William Afham, o Juiz, Frater Taciturnus), 1845; Pós-escrito conclusivo não científico às Migalhas filosóficas (Johannes Climacus), 1846; um artigo em Faedrelandet [A Pátria], n. 1.168, 1.843 (Victor Eremita); dois artigos em Faedrelandet, janeiro de 1846 (Frater Taciturnus). Minha pseudonímia ou polinímia não teve uma razão casual em minha pessoa (certamente não por medo de punição legal, com referência à qual não estou ciente de ter infringido algo, e tanto o impressor quanto o censor qua oficial público, foram sempre oficialmente informados, por ocasião da publicação, sobre quem era o autor), mas uma razão essencial na própria produção, que, por causa das réplicas e das diferenças das individualidades psicologicamente diversas, requeria poeticamente uma desconsideração quanto a bem e mal, compunção e jocosidade, desespero e soberba, sofrimento e júbilo etc., que só se limita idealmente pela consequência psicológica, o que nenhuma pessoa nos limites éticos da realidade efetiva ousa permitir-se ou pode querer permitir-se. O que está escrito, então, é meu, mas apenas na medida em que eu coloquei na boca da individualidade poeticamente real que produz, sua visão de vida, tal como se dá a perceber nas réplicas. [VII 546] Pois minha relação é ainda mais remota do que aquela de um poeta, que cria poeticamente personagens, porém é ele próprio o autor no prefácio. Eu sou, com efeito, impessoalmente ou pessoalmente na terceira pessoa, um souffleur [fr.: assoprador, ponto de teatro] que produziu poeticamente autores, cujos prefácios, por sua vez, são produções deles, sim, como o são até seus nomes. Não há, portanto, nos livros pseudonímicos uma única palavra que seja minha; não tenho nenhuma opinião sobre eles a não ser como um terceiro, nenhum saber sobre seu significado a não ser como leitor, nem a mais remota relação particular com eles, já que esta é impossível de ter com uma comunicação duplamente refletida. Uma única palavra enunciada pessoalmente por mim, em meu próprio nome, seria um importuno auto-olvido que, visto dialeticamente, seria culpado de ter, com esta única palavra, aniquilado essencialmente os pseudônimos. Tão pouco como, em Ou isto ou aquilo, sou o Sedutor ou o Assessor, tampouco, exatamente, sou o editor Victor Eremita; ele é um pensador subjetivo poeticamente real que, aliás, a gente torna a encontrar em In vino veritas. Em Temor e tremor, sou tão pouco, exatamente tão pouco, Johannes de Silentio quanto o Cavaleiro da fé que ele descreve e, mais uma vez, tampouco sou o autor do Prefácio do livro, que replica a individualidade de um pensador subjetivo poeticamente real. Na história de sofrimento (Culpado? - Não culpado?), sou tão pouco o Quidam do experimento quanto o Experimentador, justamente tão pouco um quanto o outro, dado que o Experimentador é um pensador subjetivo poeticamente real e o sujeito da experiência é sua criação psicologicamente consequente. Eu sou, portanto, o indiferente, ou seja, é indiferente o que eu sou e como eu o sou, justamente porque, por sua vez, a questão de saber se então, no mais íntimo de meu ser, o que eu sou e como eu o sou é também indiferente para mim, é algo de absolutamente irrelevante para esta produção. Portanto, aquilo que pode, de resto, ter seu feliz significado, em bela harmonia com o projeto de uma pessoa insigne, quando relacionado a algum projeto não dialeticamente reduplicado, teria aqui tão somente um efeito perturbador se relacionado ao pai adotivo completamente indiferente a uma produção talvez não insignificante. Meu fac-símile, meu retrato etc., bem como a questão de se uso chapéu ou casquete, só poderiam tornar-se objeto de atenção daqueles para quem o indiferente tornou-se importante - quiçá para compensar pelo fato de que para eles o importante tornou-se indiferente. No aspecto jurídico e literário, a responsabilidade é minha (Por esta razão, meu nome foi prontamente colocado como editor na página de título das Migalhas (1844), porque a significação absoluta do assunto tratado requeria na realidade efetiva a expressão da devida atenção, de que havia um responsável nominado para assumir o que a realidade poderia oferecer), mas, entendido de modo simples e dialético, eu sou aquele que ocasionou a audibilidade da produção no mundo da realidade efetiva, o qual, naturalmente, não pode envolver-se com autores reais na poesia e, por isso, de modo totalmente consequente, com absoluta razão no aspecto jurídico e literário, atém-se a mim. Jurídica e literariamente, pois toda produção poética seria eo ipso impossibilitada ou ficaria sem sentido ou insuportável [VII 547] caso as réplicas devessem ser as próprias palavras do produtor (entendido diretamente). Meu desejo, minha súplica é, portanto, de que, caso ocorra a alguém citar alguma passagem particular dos livros, que me preste o favor de citar o nome do respectivo autor pseudônimo, não o meu, isto é, de repartir as coisas entre nós de tal modo que a expressão pertença femininamente ao pseudônimo, e a responsabilidade civilmente a mim. Entendi muito bem, desde o início, e entendo que minha realidade pessoal é algo constrangedor, que os pseudônimos, preocupados pateticamente consigo mesmos, poderiam desejar afastar, quanto antes melhor, ou tornar tão insignificante quanto possível, e, contudo, por outro lado, ironicamente atenciosos, poderiam desejar ter consigo como uma resistência repulsiva. Pois minha relação [com eles] é a unidade de ser secretário e, bem ironicamente, o autor dialeticamente reduplicado do autor ou dos autores. Embora, portanto, decerto qualquer um que esteja em geral preocupado com tais coisas tenha me encarado até hoje sem mais como o autor dos livros pseudônimos, antes de chegar esta explicação, assim talvez num primeiro momento esta explicação provoque o estranho efeito de que eu, que contudo deveria sabê-lo melhor do que ninguém, sou o único que apenas com muita dúvida e ambiguidade me vejo como o autor, porque sou o autor em sentido impróprio, [enquanto que.] pelo contrário, sou, de modo bem próprio e literal, o autor, por exemplo, dos Discursos edificantes e de todas as palavras que há neles. O autor poetizado tem sua determinada visão da vida, e a réplica, que entendida deste modo possivelmente poderia ser significativa, espirituosa, estimulante, soaria talvez estranha, ridícula, repugnante, na boca de um homem individual faticamente determinado. Se alguém, assim, não familiarizado com um trato culto com a idealidade que distancia, por uma importunidade mal-entendida frente à minha personalidade fática, desfigurou para si a impressão dos livros pseudônimos, fez papel de bobo, realmente fez papel de bobo, ao ter de arrastar junto a minha realidade pessoal, ao invés de sair dançando com a leve idealidade, duplamente refletida, de um autor poeticamente real; com impertinência paralogística enganou a si mesmo ao tomar, de maneira absurda, minha individualidade privada da duplicidade dialética que evita as oposições qualitativas: verdadeiramente não é culpa minha, dado que eu, como convém, e no interesse da pureza da relação, de minha parte fiz tudo o que pude, o melhor que pude, para impedir o que uma parte do mundo dos leitores, curiosa de novidades, tudo fez, sabe Deus no interesse de quem, bem desde o início, para conquistar. A ocasião parece convidar, sim, quase exigi-lo mesmo do relutante: devo então usá-la para uma declaração aberta e direta, não como autor, pois isto afinal no sentido usual não sou, mas como alguém que cooperou para que os pseudônimos se tornassem autores. Primeiramente, quero agradecer à Providência, que de tão variadas maneiras tem favorecido meu esforço, [VII 548] favorecido por quatro anos e um quarto sem talvez um único dia de interrupção do esforço, tem me concedido muito mais do que jamais esperei, embora eu possa verdadeiramente testemunhar que empenhei minha vida até o extremo de minha capacidade; mais do que aquilo que, pelo menos, eu esperava, mesmo que para outros minha contribuição apareça como uma insignificância prolixa. Assim, com sincero agradecimento à Providência, não acho perturbador que não se possa dizer que eu tenha realizado alguma coisa ou, o que é mais indiferente, conquistado alguma coisa no mundo exterior; acho ironicamente correto que pelo menos os honorários devidos à produção e à minha ambígua autoria tenham sido antes bastante socráticos. - Em seguida, após ter convenientemente pedido desculpas e perdão se a alguém parecer inapropriado que eu fale deste modo, embora este mesmo quiçá considerasse como inapropriado que eu o omitisse: quero evocar, em rememoradora gratidão, meu falecido pai, o homem a quem devo mais do que a qualquer outro, também no que se refere ao meu trabalho. - Dos pseudônimos despeço-me a seguir com bons votos, cheios de incerteza sobre seu destino futuro, de que este, se for para o bem deles, seja exatamente como poderiam desejar; eu os conheço, afinal, a partir de nossa íntima convivência, uma coisa eu sei, que muitos leitores eles não podem esperar ou desejar - oxalá tenham a felicidade de encontrar os poucos leitores que anelam. - De meu (minha) leitor (a), se ouso falar de tal pessoa, solicitaria para mim, de passagem, uma lembrança esquecidiça, um sinal de que é de mim que se lembra, porque se lembra de mim como irrelevante aos livros, como a relação o exige, bem como o reconhecimento disto é sinceramente oferecido aqui no momento da despedida, quando aliás também agradeço cordialmente a todos os que se mantiveram calados, e, em profunda veneração, agradeço à firma Kts - pelo fato de ter falado. Caso os pseudônimos tenham de algum modo ofendido alguma pessoa respeitável, ou talvez algum homem que eu admire; caso os pseudônimos de algum modo tenham perturbado ou tornado duvidoso algo de verdadeiramente bom na ordem estabelecida: então não há ninguém tão disposto a pedir perdão quanto eu, que carrego a responsabilidade pelo uso da pena empunhada. O que assim eu sei sobre os pseudônimos naturalmente não me autoriza a nenhuma declaração, mas também não me autoriza a ter qualquer dúvida sobre seu assentimento, desde que sua significação (qualquer que possa vir a ser a realidade) incondicionalmente não reside em fazer qualquer nova proposta, alguma descoberta inaudita, ou em fundar um novo partido e querer ir mais além, mas justamente no oposto, em querer não ter nenhuma importância, em querer, na distância do afastamento da dupla reflexão, mais uma vez, ler solo [lat.: sozinho], de ponta a ponta, o escrito primordial das relações existenciais humanas individuais, o antigo texto primordial, bem conhecido, transmitido pelos nossos pais, se possível de um modo mais interiorizado. [VII 549] E oxalá nenhum pensador de primeira viagem queira meter a mão dialeticamente nesta obra, mas deixe-a ficar tal como agora ela está. Copenhague, fevereiro de 1846. S. Kierkegaard