Søren Aabye Kierkegaard – Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus Pode haver um ponto de partida histórico pare uma consciência eterna? Como pode tal ponto de partida interessar-me mais do que historicamente? Pode-se construir uma felicidade eterna sobre um saber histórico? "Bem enforcado é melhor do que malcasado." Shakespeare Sumário Prefácio Propositio Capítulo I - Experimento teórico Capítulo II - O Deus como mestre e salvador - Um ensaio poético Capítulo III - O paradoxo absoluto - Um capricho metafísico Capítulo IV - A situação do discípulo contemporâneo Interlúdio - O passado é mais necessário do que o futuro? Capítulo V - O discípulo de segunda mão Moral da história Prefácio Isto que aqui se oferece não passa de um pequeno folheto, proprio Marte, propriis auspiciis, proprio stipendio (Por nossos próprios meios, sob nossos próprios auspícios, às nossas próprias custas), sem nenhuma pretensão de participar da evolução da ciência, onde a gente adquire sua legitimação quer como um representante da passagem, da transição, ou da conclusão, quer como um precursor, como participante, como colaborador ou como seguidor voluntário, como herói, ao menos um herói relativo, ou no mínimo como um corneteiro de importância absoluta. Não é senão um pequeno folheto e não se tornaria mais do que isso nem mesmo se eu, como o "Magister" de Holberg, pretendesse prossegui-lo, volente deo (Se Deus quiser), em dezessete outros; não se tornará mais do que isso, como um autor de historietas tampouco faria coisa diferente se enchesse alguns infólios. Contudo, o serviço que presto está de acordo com os meus talentos, eu que me abstenho de servir o Sistema, não como aquele nobre romano: merito magis quam ignavia (Mais pelos méritos do que pela preguiça), mas sim porque sou um ocioso por comodidade, ex enimi sententia (Eu reconheço francamente), e por boas razões. Não obstante, não quero tornar-me culpado de uma epragmosyne (Omissão) (que constitui decerto em todos os tempos um crime contra o Estado, mas principalmente em um período de fermentação), posto que ela na Antiguidade era até proibida, sob pena de morte. Suposto, porém, que com sua intervenção alguém cometesse um crime ainda maior, por ter apenas aumentado a confusão, não seria melhor que tratasse de cuidar de si? Não é dado a cada um ver a obra de seu espírito coincidir afortunadamente com o interesse geral, tão afortunadamente que se torna mesmo difícil julgar até que ponto ele se preocupa com aquilo por interesse próprio ou pelo bem geral. Pois Arquimedes não ficou sentado, tão impassível como sempre, a estudar seus círculos depois que Siracusa foi tomada? E acaso não foi ao soldado romano que o assassinou que ele disse essas belas palavras: Nolite perturbare circuios meos? (Não perturbe meus círculos) Aquele, porém, que não é tão afortunado, trate de procurar outro modelo. Quando Corinto foi ameaçada por um sítio de Filipe, e todos os seus habitantes se lançaram numa febril atividade: um a lustrar suas armas, outro a carregar as pedras e um terceiro a reparar as muralhas, e Diógenes viu isso, cingiu apressadamente seu manto e pôs-se com grande zelo a rodar seu barril pelas ruas, para lá e para cá. Quando então lhe perguntaram por que fazia isso, respondeu: "eu também estou ocupado e fico a rodar meu barril para não ser o único ocioso entre tanta gente aplicada". Tal conduta pelo menos não é sofística, se é que Aristóteles está correto ao explicar que a arte sofística é aquela com a qual se ganha dinheiro. Tal conduta pelo menos não pode tornar-se culpada de um mal-entendido, pois decerto seria impensável que a alguém ocorresse a ideia de considerar Diógenes o salvador e benfeitor da cidade - e também seria certamente impossível que alguém tivesse a ideia de atribuir importância histórico-mundial a um pequeno folheto (o que pelo menos eu considero o maior perigo que poderia suceder aos meus intentos), ou de supor que o seu autor fosse um Salomão Goldkalb do Sistema, tão esperado em nossa querida capital, Copenhague. Para que tal coisa ocorresse, o culpado teria de ser por natureza singularmente estúpido, e, provavelmente por ficar clamando, dia após dia, em um coro alternado antistrófico, cada vez que alguém o convencesse de que agora estava começando uma nova era, uma nova época etc., seus gritos teriam esvaziado a tal ponto sua cabeça daquele quantum satis (Quantidade suficiente) de bom-senso - que lhe fora concedido tão parcimoniosamente - que ele acabaria por atingir aquela bem-aventurança que se poderia chamar a doidice vociferante da loucura superior, cujo sintoma é a gritaria, as exclamações convulsivas, enquanto que o conteúdo da gritaria é constituído por palavras do tipo: "era", "época", "era e época", "época e era", "o Sistema"; e o estado do bem-aventurado é uma exaltação irracional, já que ele vive como se cada dia fosse não apenas um dia extra de ano bissexto, que ocorre a cada quatro anos, mas como um daqueles dias que são intercalados uma vez a cada mil anos, enquanto que o conceito, tal como um artista de circo dos dias de festa no parque de diversões (de "Dyrehav"), a todo instante tem que executar uma cambalhota revirando-se em seu contrário, até revirar o próprio homem. Que o céu proteja, a mim e ao meu folheto, de tal situação, não deixe que um desses barulhentos falastrões com sua intromissão venha arrancar-me da minha despreocupada autossatisfação, como autor de um pequeno folheto, impedir que um leitor bom e benevolente verifique sem nenhum constrangimento se há qualquer coisa no folheto que ele possa aproveitar; e colocar a mim mesmo no embaraço tragicômico de ter de rir da minha própria desgraça, como certamente deve ter-se rido de toda a sua desgraça a boa cidade de Fredericia, ao ler no jornal a narrativa do incêndio lá ocorrido: "ressoou o tambor de alarme, as bombas de incêndio correram pelas ruas" - embora só exista em Fredericia um único carro de bombeiros e por certo não muito mais que uma rua, e a notícia do jornal forçava a gente a concluir que a única bomba, ao invés de correr em direção ao fogo, ficara a ziguezaguear sua importância pela rua -, embora o meu folheto não pareça lembrar de jeito nenhum o soar do tambor, e apesar de seu autor ser, com toda a certeza, o último homem do mundo inclinado a tocar o alarme. Qual é então minha opinião? ... Que ninguém me pergunte por ela. E após a questão de saber se eu tenho ou não uma opinião, nada pode ser mais indiferente para os outros do que saber qual seria ela. Ter uma opinião é ao mesmo tempo demais e de menos para mim. Ter uma opinião pressupõe uma existência segura e confortável, tal como ter neste mundo mulher e filhos; um privilégio que não é outorgado àquele que tem de estar noite e dia a caminho, mas sem ter assegurado seu sustento. No mundo do espírito, esta é a minha situação; pois para isto me formei e me formo ainda, para a todo o tempo poder dançar com leveza a serviço da ideia, tanto quanto possível para a honra da divindade e para meu próprio prazer, renunciando à felicidade doméstica e à respeitabilidade burguesa, a esta communio bonorum (Comunhão de bens) e a esta ditosa harmonia que é ter uma opinião. - Se tenho alguma recompensa por isso? Se eu mesmo, como aquele que serve ao altar, posso comer daquilo que é oferecido sobre o altar?... Deixem isto comigo. Aquele a quem eu sirvo tem um bom crédito, como diriam os homens do dinheiro, embora sua garantia tenha uma forma distinta daquela que eles conhecem. Por outro lado, se alguém quiser ter a bondade de supor que eu tenho uma opinião, e se levar sua gentileza ao extremo de adotá-la por acreditar que é a minha, então lamento pela cortesia que é dada a alguém que não merece, e lamento por sua opinião, caso ele não tenha outra além da minha; a minha própria vida eu posso arriscar, posso jogar com minha vida na maior seriedade, mas não com a de outro. É disso que eu sou capaz, a única coisa que eu posso fazer pela ideia, eu que não tenho doutrina a oferecer, "não consigo dar um curso de um dracma, para nem falar de um curso de cinquenta dracmas" (Crátilo). Eu só tenho minha vida, e esta eu ponho logo em jogo toda vez que uma dificuldade se apresenta. Aí a dança vai fácil; pois a ideia da morte é uma leve dançarina, a minha dançarina, qualquer ser humano me é pesado, demais; e por isso, eu suplico, per deos obsecro (Pelos favores dos deuses), que ninguém se incline diante de mim, porque eu não danço. J.C. PROPOSITIO A questão é formulada pelo ignorante, que nem ao menos sabe o que é que o levou a perguntar desta maneira. Capítulo I Experimento teórico A Em que medida pode-se aprender a verdade? É com esta pergunta que queremos começar. Era uma pergunta socrática, ou se tornou tal, graças à pergunta socrática: em que medida pode-se aprender a virtude? - pois a virtude é definida, por sua vez, como um conhecimento (cf. Protágoras, Górgias, Menon, Eutidemo). Na medida em que se deve aprender a verdade, é preciso pressupor que ela não estava presente, ou seja, à medida que deve ser aprendida, a gente a procura. Aqui aparece a dificuldade, sobre a qual Sócrates, no Menon (§ 80 conclusão), chama a atenção, qualificando-a de "proposição polêmica": que é impossível a um homem procurar o que sabe e igualmente impossível procurar o que não sabe, pois o que sabe, não pode procurar porque sabe, e aquilo que não sabe não pode procurar porque não sabe nem ao menos o que deve procurar. Sócrates resolve a dificuldade explicando que todo aprender, todo procurar, não é senão um recordar, de sorte que o ignorante apenas necessita lembrar-se para tomar consciência, por si mesmo, daquilo que sabe. A verdade não é, pois, trazida para dentro dele, mas já estava nele. Sócrates desenvolve então esta ideia, e nela se concentra propriamente o patos grego, já que ela se torna uma prova da imortalidade da alma, prova retrógrada, bem entendido, isto é, uma prova da preexistência da alma. (Pensada de maneira absoluta, sem que se reflita também sobre os diversos estados da preexistência, esta ideia grega retorna sempre, tanto na especulação antiga como na moderna: um eterno criar; um eterno sair do Pai; um eterno devir da divindade; um eterno sacrificar-se; uma ressurreição já ocorrida; um julgamento já vencido. Todas essas ideias constituem aquela ideia grega da reminiscência, só que nem sempre o notamos porque chegamos até ela avançando. Quando esta ideia se dispersa numa enumeração dos diversos estados da preexistência, então os eternos "pré-" deste pensamento aproximativo equivalem aos eternos "pós-" das aproximações correspondentes. A contradição da existência é explicada estatuindo-se um "pré-" feito à medida de nossa necessidade (um estado anterior, em virtude do qual o indivíduo chegou ao seu estado atual, de resto inexplicável), ou estatuindo-se um "pós-" feito à medida de nossa necessidade (numa outra esfera o indivíduo estará melhor colocado, e em vista disso o seu estado presente deixa de ser inexplicável)). Por esta consideração, vê-se com que lógica maravilhosa Sócrates permaneceu fiel a si mesmo e realizou artisticamente o que tinha compreendido. Ele sempre foi uma parteira, não porque "não tinha o positivo” (É assim que isso se chama em nossa época, quando já se tem o positivo, mais ou menos como se um politeísta pretendesse ridicularizar a negatividade do monoteísmo; pois, afinal de contas, o politeísta tem muitos deuses, e o monoteísta só um; os filósofos possuem muitas ideias, que valem todas só até certo ponto, Sócrates tem apenas uma, que é absoluta), mas porque se dava conta de que esta relação é a mais alta que um homem pode ter com outro. E neste ponto ele não deixará de ter razão em toda a eternidade, pois, mesmo que alguma vez se desse um ponto de partida divino, esta permanece a verdadeira relação entre dois homens, quando se reflete sobre o absoluto ao invés de flertar com o contingente, e quando se renuncia, do fundo do coração, a compreender essa meia-verdade que parece ser o prazer dos homens e o segredo do Sistema. Sócrates, ao contrário, era uma parteira examinada pelo próprio deus, e a obra que realizava era uma missão divina (d. a Apologia de Platão), embora aparecesse aos olhos dos homens como um original ("atopotatos", Teeteto, § 149); e havia um sentido divino naquilo que Sócrates também compreendia quando dizia que o deus lhe interditava de dar à luz ("o deus me obriga a partejar os outros, mas me proíbe de procriar" - Teeteto, § 150), pois de homem a homem a ajuda no parto (maieuesthai) é a relação suprema; dar à luz é algo que só cabe ao deus. Considerado socraticamente, todo ponto de partida no tempo é eo ipso algo de contingente, algo inconsistente, uma ocasião. O mestre também não é mais do que isso, e quando oferece a si e a seu ensinamento de qualquer outra maneira, então não está dando, mas tomando; então não é nem amigo do outro e muito menos seu mestre. Esta é a profundidade do pensamento socrático, esta sua humanidade tão nobre e tão completa, que não procura vaidosamente a companhia de boas cabeças, mas também se sente igualmente aparentada com um peleiro, motivo pelo qual desde logo "convenceu-se de que a física não é assunto para o homem e por isso começou a filosofar sobre o ético nas oficinas e no mercado" (Diógenes Laércio, 11, 5,21), mas filosofava de maneira igualmente absoluta, qualquer que fosse o seu interlocutor. Com ideias pela metade, com hesitações e com regateios, com afirmações e concessões, como se o indivíduo devesse até certo ponto alguma coisa a outro, mas depois, por outro lado, até certo ponto não devesse nada; com palavras soltas que esclarecem tudo, a não ser: qual é este até certo ponto; com tudo isso não se vai mais longe do que Sócrates, e não se chega, de jeito nenhum, perto do conceito de revelação: fica-se apenas na conversa fiada. Sob o ponto de vista socrático, cada homem é para si mesmo o centro, e o mundo inteiro só tem um centro na relação com ele, porque seu conhecimento de si mesmo é um conhecimento de Deus. E assim que Sócrates se compreendia e é assim, segundo sua concepção, que todo homem teria de compreender-se e, em virtude disso, teria de compreender sua relação com o indivíduo, sempre com a mesma humildade e o mesmo orgulho. Com efeito, Sócrates teve coragem e sensatez para bastar-se a si próprio, mas também para, em suas relações com os outros, ser somente a ocasião, até diante do homem mais imbecil. Ó altivez rara, rara em nosso tempo, onde o pastor é um pouco mais que o sacristão, onde a cada dois homens um é autoridade, enquanto todas essas diferenciações e toda esta variada autoridade é mediada na loucura comum e num commune naufragium; pois enquanto homem algum jamais foi verdadeiramente autoridade, ou trouxe algum proveito ao outro por sê-lo, ou conseguiu em verdade tomar clientes consigo, de uma outra maneira isso pode ter um melhor sucesso; porque uma regra que nunca falha é: que um bobo, quando passa, leva muitos outros consigo. Se é isto o que sucede com o aprender a verdade, o fato de que eu a tenha aprendido de Sócrates, de Pródicos ou de uma empregada doméstica só pode ocupar-me sob o ponto de vista histórico ou, se eu tiver a exaltação de um Platão, sob o ponto de vista poético. Mas esta exaltação apaixonada, por mais bela que seja e por mais que eu deseje para mim mesmo e para cada um esta eukataforia eis pathos (disposição para o enlevo), contra a qual só o estoico podia prevenir-nos, e embora eu não tenha altivez socrática e abnegação socrática para pensar o seu nada - esta exaltação apaixonada é apenas uma ilusão, como diria Sócrates, sim, uma falta de clareza, onde a diversidade terrestre fermenta quase que voluptuosamente. O fato de o ensinamento de Sócrates ou de Pródicos ter sido este ou aquele também não pode interessar-me de outra maneira senão sob o ponto de vista histórico, pois a verdade, na qual repouso, estava em mim mesmo e produziu-se a partir de mim mesmo, e nem o próprio Sócrates seria capaz de me dar esta verdade, assim como o cocheiro não é capaz de puxar a carga do seu cavalo, se bem que possa ajudá-lo com o chicote. (Cito uma passagem do Clitofón apenas a título de dito de um terceiro, dado que esse diálogo é considerado apócrifo. Clitofón reclama que Sócrates ficaria, em relação à virtude, apenas encorajando (protetrámenos), de tal modo que, a partir do momento em que ele recomendou suficientemente a virtude em geral, deixaria cada um por si próprio. Clitofón acha que este comportamento tem sua razão no fato de que Sócrates nada mais sabe ou nada mais quer comunicar). Minha relação com Sócrates e Pródicos não pode ocupar-me com referência à minha felicidade eterna, pois esta é dada retrogradamente na posse daquela verdade que eu possuía desde o início sem saber. Se eu pensasse poder encontrar-me numa outra vida com Sócrates, Pródicos ou a empregada doméstica, então cada um deles, ainda ali, não seria mais do que uma ocasião, o que Sócrates exprime corajosamente ao dizer que, mesmo nos infernos, não faria outra coisa senão interrogar; pois a ideia final de todo perguntar é que o indivíduo interrogado deve portanto possuir a verdade e obtê-la por si mesmo. O ponto de partida temporal é um nada, pois no mesmo instante em que descubro que, desde toda eternidade, eu soube a verdade sem sabê-lo, neste momento aquele instante escondeu-se no eterno, absorvido por ele, de sorte que por assim dizer eu não poderia encontrá-lo, mesmo se o procurasse, porque não está aqui ou ali, mas ubique et nusquam (em toda parte e em nenhum lugar). B Se, porém, as coisas devem ser colocadas de outra maneira, o instante no tempo precisa ter uma significação decisiva, de modo que eu não possa esquecê-lo em nenhum instante, nem no tempo nem na eternidade, porque o eterno, que antes não existia, vem a ser nesse instante. Partindo deste pressuposto vamos agora considerar a questão de saber até que ponto se pode aprender a verdade. a) O estado anterior Começaremos com a dificuldade socrática: de que maneira pode-se procurar a verdade, já que isto é igualmente impossível, quer se a tenha, quer não. O pensamento socrático Suprimia, a rigor, a disjunção, na medida em que se mostrava que, no fundo, todo homem possui a verdade. Tal era a sua explicação, e já vimos as consequências disto no que concerne ao instante. Se este deve agora adquirir uma importância decisiva, é preciso que o homem que procura não tenha dito a verdade até aquele instante preciso, nem mesmo sob a forma da ignorância, pois senão o instante não seria mais do que ocasião; sim, ele nem mesmo deve ser alguém que procura; pois desta maneira devemos exprimir a dificuldade se não quisermos explicá-la socraticamente. Ele deve, pois, ser definido como fora da verdade (não "vindo para ela como prosélito", mas "afastando-se dela"), ou como não verdade. Ele é, pois, a não verdade. Mas de que maneira se deve agora lembrá-lo, ou de que lhe serviria lembrar-lhe o que não soube, e do que portanto não pode de jeito nenhum dar-se conta? b) O mestre Se o mestre deve ser a ocasião que faz o aprendiz lembrar-se, neste caso ele não pode evidentemente contribuir para que este se recorde de que propriamente sabe a verdade, pois o aprendiz é, como vimos, a não verdade. Daquilo que o mestre aqui pode vir a ser, para ele, a ocasião de lembrar-se, é de que ele é a não verdade. Mas com esta tomada de consciência o aprendiz é justamente excluído da verdade, mais do que quando ignorava ser a não verdade. Deste modo, portanto, o mestre, justamente ao recordar-lhe, repele o aprendiz para longe de si, só que o aprendiz, ao voltar-se desta maneira para dentro de si mesmo, não descobre que anteriormente conhecia a verdade, mas descobre sua não verdade, um ato de consciência com referência ao qual vale o princípio socrático de que o mestre é apenas a ocasião, seja ele quem for, e mesmo que fosse um deus; pois minha própria não verdade, não posso descobri-la senão por mim mesmo, pois só quando eu a descubro é que ela está descoberta, e não antes, ainda que todo mundo a conhecesse. (Em virtude do pressuposto relativo ao instante que foi admitido mais acima, esta é a única analogia com o socrático.) Se, agora, o aprendiz deve adquirir a verdade, então o mestre tem de trazê-la a ele, e não só isto, mas é preciso que lhe dê juntamente a condição para compreendê-la; pois se o próprio aprendiz fosse, por si mesmo, a condição, então precisaria apenas recordar-se; pois sucede com a condição para se compreender a verdade o mesmo que com o poder perguntar sobre ela: a condição e a pergunta contêm o condicionado e a resposta. (Caso as coisas não fossem assim, o instante só poderia ser compreendido socraticamente.) Aquele, porém, que dá ao aprendiz não só a verdade, mas também junto com ela a condição, não é um mestre. Todo ensinamento repousa no fato de que a condição, em última análise, está presente; quando esta falta, um mestre nada consegue; pois, caso contrário, seria necessário que o mestre não transformasse, mas recriasse o aprendiz, antes de começar a ensinar-lhe. Ora, isto nenhum homem consegue; caso isto deva suceder, é preciso que o próprio deus o faça. Na medida então em que o aprendiz existe, é evidente que foi criado, e nesta medida Deus deve ter-lhe dado a condição para compreender a verdade (pois caso contrário ele seria antes apenas um animal, e não se tornaria homem senão por este mestre que lhe daria a verdade, junto com a condição). Mas na medida em que o instante deva ter uma importância decisiva (e se isto não for admitido, recairemos no socrático), o aprendiz tem de estar sem a condição, portanto ter sido despojado desta. Isto não pode ter acontecido por parte do deus (pois seria uma contradição), nem por uma casualidade (pois seria uma contradição que o inferior pudesse sobrepor-se ao superior); é preciso, então, que isto tenha acontecido por causa do próprio aprendiz. Se este pudesse ter perdido a condição de tal maneira que isso não ocorresse por causa dele, e encontrar-se neste estado de perda também não por sua causa, então só teria possuído a condição casualmente, o que é uma contradição, pois a condição para a verdade é uma condição essencial. A não verdade está, pois, não somente fora da verdade, mas polemiza contra a verdade, o que se exprime dizendo-se que o próprio aprendiz pôs fora e põe fora a condição. O mestre é então o próprio deus que, atuando como ocasião, leva o aprendiz a lembrar-se de que é a não verdade e que o é por sua própria culpa. Mas a este estado (o de ser a não verdade e de sê-lo por própria culpa), que nome lhe podemos dar? Chamemo-lo de pecado. O mestre é então o deus, que dá a condição e que dá a verdade. Agora, como deveremos chamar tal mestre? Porque há um ponto sobre o qual estamos de acordo: é que já ultrapassamos de muito o conceito de um mestre. Enquanto o aprendiz está na não verdade, porém por causa dele mesmo (e de outro modo, afinal, ele não pode estar assim, como já o vimos antes), poderia parecer que ele era livre; pois estar junto a si mesmo é justamente liberdade. E, no entanto, como se sabe, ele não é livre, está ligado, excluído, pois estar livre da verdade é justamente ser excluído, e ser excluído por si mesmo é justamente estar ligado. Mas porque está ligado por sua própria causa, não pode desligar-se ou libertar-se por si mesmo; pois aquilo que aí me liga deve também ser capaz de me libertar, se o quiser, e como é ele mesmo, deve podê-lo. Sem dúvida, primeiramente deveria querê-lo. Mas suposto agora que ele se lembrou com tanta profundidade daquilo cuja ocasião lhe foi fornecida por este mestre (não esqueçamos jamais que este não é senão uma ocasião), que afinal recordou; suposto então que ele o quisesse. Neste caso (em que, ao querê-lo, ele o pode por si mesmo) o fato de ter sido ligado torna-se um estado passado, que, no instante da libertação, teria desaparecido sem deixar vestígios, e o instante não teria adquirido uma significação decisiva. Ele teria ignorado o fato de ter ligado a si mesmo e agora se liberaria a si mesmo. (Aqui podemos conceder-nos um bom tempinho, e, aliás, não há por que ter pressa. E certo que quem anda devagar às vezes não alcança a meta, mas quem corre demais muitas vezes também pode passar por ela sem parar. Gostaríamos de tratar deste assunto um pouco à moda grega. Se um menino tivesse recebido de presente uma pequena soma de dinheiro e então com isso pudesse comprar, por exemplo, um bom livro ou um brinquedo, já que as duas coisas teriam o mesmo preço, caso ele comprasse o brinquedo, poderia ainda, com o mesmo dinheiro, comprar o livro? De maneira nenhuma; pois aí o dinheiro já teria sido gasto. Mas talvez ele pudesse dirigir-se ao livreiro e perguntar-lhe se este não ficaria com seu brinquedo, dando-lhe em troca o livro. Suponhamos que o livreiro respondesse: "Meu querido menino, o teu brinquedo não tem nenhum valor; é bem verdade que naquela ocasião em que ainda tinhas o dinheiro tanto poderias comprar o livro quanto o brinquedo; mas com o teu brinquedo acontece algo singular; pois logo depois de comprado perde todo o valor". Será que o menino não acharia tudo isso muito estranho? E assim também houve um tempo em que o homem pelo mesmo preço teria podido comprar a liberdade e a não liberdade, e esse preço era a escolha livre da alma e a entrega que há na escolha. Aí ele escolheu a não liberdade; mas se agora quisesse dirigir-se à divindade e perguntar se poderia receber a outra em troca, decerto a resposta seria: "É inegável que antes tu terias podido comprar aquela que tu preferisses; mas com a não liberdade ocorre algo muito estranho: logo que foi adquirida não tem mais nenhum valor, não obstante o fato de que se pague por ela igualmente caro". Será que tal homem não diria: Mas isso é muito estranho! Ou então, caso dois exércitos inimigos estivessem ordenados para a batalha e chegasse um cavaleiro que fosse convidado por ambos os lados a participar, e, ao escolher um dos partidos, viesse a ser derrotado e feito prisioneiro. Como prisioneiro seria levado à presença do vencedor e seria louco o suficiente para oferecer seus serviços sob as mesmas condições que antes lhe haviam sido propostas. Será que o vencedor não lhe diria: "Ó meu caro, agora és meu prisioneiro; é verdade que antes foi diferente e tu terias podido escolher de outra maneira, mas agora está tudo mudado". Não é estranho? Se fosse diferente, o instante não deveria ter nenhum valor decisivo, e nesse caso o menino, no fundo, poderia já estar com o livro comprado e apenas estaria ignorando isso e, preso a um mal-entendido, pensaria que tivesse comprado o brinquedo; assim, no fundo, o prisioneiro teria lutado no outro lado, mas apenas não teria sido visto por causa da neblina, no fundo ele teria apoiado aquele de quem agora apenas imagina ser prisioneiro. - "Nem o corrupto nem o virtuoso tem poder sobre o seu comportamento moral, mas eles tinham, antes, poder para se tornarem uma coisa ou outra: assim também alguém, que arremessa uma pedra, tem poder sobre ela antes de a ter arremessado, mas não o tem depois de tê-la arremessado" (Aristóteles). De outra maneira, o arremessar se tornaria uma ilusão, e aquele que a arremessou conservaria a pedra na mão, apesar de todo o seu arremesso, dado que ela, como a "seta voadora" dos céticos, não voaria). Assim pensado, o instante não adquire, pois, uma significação decisiva, e no entanto era isso justamente que queríamos admitir como hipótese. Portanto, segundo a hipótese, ele não poderá libertar-se por si mesmo. (E assim é, na verdade, pois ele se serve da força da liberdade em proveito da não liberdade, dado que é livre nela, e assim aumenta pelo esforço conjugado a força da não liberdade que o torna escravo do pecado.) - Agora, como devemos chamar esse mestre que lhe dá novamente a condição e, com esta, a verdade? Vamos chamá-lo um salvador, pois ele salva o aprendiz da não liberdade, salva-o de si mesmo; um libertador, pois liberta aquele que se tinha aprisionado a si mesmo, e ninguém, em verdade, acha-se tão terrivelmente cativo, e de nenhum cativeiro é tão impossível evadir-se como daquele no qual o indivíduo mesmo se mantém! E, no entanto, ainda não se disse tudo, pois, como se sabe, pela não liberdade ele se tornara culpado de alguma coisa, e se aquele mestre lhe dá a condição e a verdade, então ele é justamente um reconciliador, que retira a cólera que paira sobre a culpa. O aprendiz jamais poderá esquecer tal mestre, pois no mesmo instante mergulharia novamente em si mesmo assim como aquele que, outrora na posse da condição, ao esquecer que Deus existe, mergulhou na não liberdade. Caso se reencontrassem numa outra vida, o mestre ainda poderia dar a condição àquele que não a tivesse recebido. Mas, diante daquele que já a teria recebido, sua atitude seria outra. A condição seria, de fato, um depósito pelo qual o depositário sempre precisa prestar contas. Mas tal mestre, como o chamaríamos? Um mestre bem pode avaliar seu aluno, se ele faz progressos ou não, mas condená-lo não pode, pois deve ser bastante socrático para entender que não é capaz de dar o essencial ao aprendiz. Aquele mestre não é pois propriamente mestre, mas é um juiz. Mesmo quando o aprendiz apropriou-se da condição em toda a medida do possível e graças a ela se aprofundou na verdade, não pode ainda assim jamais esquecer aquele mestre ou deixá-lo desaparecer à maneira socrática, a qual no entanto é muito mais profunda que toda mesquinhez inoportuna e toda exaltação ilusória, sim, é mesmo o que há de mais alto, se a nossa hipótese alternativa não for a verdade. E, agora, o instante. Tal instante tem uma natureza própria. Sem dúvida é breve e temporal como o é todo instante, passando, como todos os outros, ao instante seguinte, e no entanto é o decisivo, pleno de eternidade. Tal instante deve com efeito ter um nome especial; vamos chamá-lo: plenitude dos tempos. c) O discípulo Se o discípulo é a não verdade (e senão, retomamos ao socrático), mas é no entanto homem, e ele vem a receber a condição e a verdade, não se torna homem evidentemente apenas a partir de agora, pois já o era; porém torna-se um outro homem, não no sentido engraçado, como se ele se tornas-se outro homem da mesma qualidade que antes, mas torna-se um homem de outra qualidade, ou, como também podemos chamá-lo, um homem novo. Na medida em que era a não verdade, estava sempre a se afastar da verdade. Ao receber, no instante, a condição, seu caminho tomou a direção oposta ou se inverteu. Vamos chamar a esta mudança de conversão, embora não tenhamos até aqui empregado este termo; mas é justamente por isso que o escolhemos, para evitar confusão; pois até parece ter sido criado para designar a mudança da qual falamos. Na medida em que se encontrava na não verdade por sua própria culpa, esta conversão não pode suceder sem ser admitida na sua consciência, ou sem que ele se torne consciente de que aquilo era por sua própria culpa. E com esta consciência despede-se de seu estado anterior. Mas como é que a gente se despede, senão com a tristeza na alma? Entretanto, aqui esta tristeza é por ter ficado tanto tempo no estado anterior. Vamos chamar esta tristeza de arrependimento, pois que outra coisa não é o arrependimento, que olha decerto para trás, porém de tal maneira que exatamente por isso acelera a caminhada para frente! Na medida em que era a não verdade e agora, graças à condição, recebe a verdade, opera-se nele uma mudança, como a do não ser para o ser. Mas esta passagem do não ser para o ser é a do nascimento. Mas o que existe não pode nascer, e contudo ele nasce. Chamemos de renascimento esta passagem pela qual o discípulo vem ao mundo uma segunda vez, tudo como pelo nascimento, como um homem isolado, que ainda não sabe nada do mundo em que nasce, se é habitado, se existem outros homens, pois pode-se certamente ser batizado en masse, mas jamais renascer en masse. Assim como aquele que na maiêutica socrática dava à luz a si mesmo esquecia todas as outras coisas do mundo e num sentido mais profundo nada devia a homem algum, assim também o renascido não deve mesmo nada a homem algum, porém tudo àquele mestre divino. E assim como aquele esquecia o mundo inteiro ao descobrir a si mesmo, este tem que esquecer-se de si mesmo ao pensar nesse mestre. Se, portanto, o instante deve ter uma significação decisiva - e fora disso falaríamos a linguagem socrática, o que quer que disséssemos e ainda que usássemos muitas palavras estranhas, e ainda que não nos compreendendo a nós mesmos achássemos que tínhamos ido muito mais longe do que aquele sábio simples, que julgava com integridade entre o deus, os homens e ele mesmo, mais incorruptível que Minos, Eaco e Radamante -, então a ruptura aconteceu, e o homem não pode voltar atrás e não mais lhe há de aprazer recordar aquilo que a memória lhe traz à recordação, e ainda menos conseguirá, com suas próprias forças, trazer novamente o deus para seu lado. Mas isso que aqui analisamos deixar-se-á pensar? Não queremos apressar-nos com a resposta, e não fica devendo uma resposta apenas o que por causa da prolixidade de sua reflexão jamais chegou a responder, mas também aquele que demonstrou uma maravilhosa rapidez ao responder, decerto, mas não a desejável demora ao examinar a dificuldade antes de explicá-la. Antes de responder, perguntaremos então quem é que deve responder à pergunta. Deixa-se pensar o ter nascido? Sim, por que não? Mas quem é que deve pensá-lo? O que nasceu ou o que não nasceu? Esta última alternativa é evidentemente um absurdo, que não pode ocorrer a ninguém, pelo menos a ninguém que tenha nascido. Quando, pois, aquele que nasceu se pensa nascido, pensa evidentemente esta passagem do não ser para o ser. Pois da mesma maneira se passarão as coisas com o renascer. Ou será que a coisa tornou-se mais difícil pelo fato de que aquele não ser que precede ao renascimento contenha mais ser do que o não ser que precede ao primeiro? Mas quem é, afinal de contas, que deverá pensar isto? É evidente que tem que ser o renascido, pois se o não renascido o fizesse, isto seria certamente um absurdo; e não seria bastante ridículo que esta ideia ocorresse ao homem que não é renascido? Se um homem está originalmente na posse da condição para compreender a verdade, pensa então que Deus existe pelo fato de que ele mesmo existe. Se está na não verdade, é preciso que o pense dele mesmo, e a recordação não lhe será de nenhuma ajuda, salvo para pensar isto. Se ele irá mais longe, cabe ao instante decidir (se bem que este já tenha atuado para lhe fazer entender que ele é a não verdade). Caso não compreenda isto, deve-se remetê-lo a Sócrates, ainda que com sua pretensão de ter ido muito mais longe vá causar a este sábio um grande incômodo, como o faziam aqueles que se irritavam contra ele a cada tolice que arrancava deles ("desde a primeira tolice que arranco deles" - cf. Teeteto, § 151), a ponto de quererem até mordê-la. No instante o homem torna-se consciente de que nasceu, pois seu estado precedente, ao qual não deve reportar-se, era o de não ser. No instante ele se torna consciente de seu renascimento, pois seu estado precedente era o de não ser. Se seu estado precedente tivesse sido o de ser, em nenhum dos casos o instante teria tido para ele uma significação decisiva, conforme foi exposto mais acima. Enquanto, pois, todo o patos grego se concentra sobre a recordação, o patos de nosso projeto concentra-se sobre o instante, e que maravilha! Ou não é uma coisa altamente patética passar do não ser à existência? Aí está, pois, o meu projeto! Mas talvez alguém diga: "é o mais ridículo de todos os projetos, ou melhor, tu és o mais ridículo de todos os fazedores de projetos; pois se alguém projeta uma tolice, pelo menos continua verdadeiro o fato de que foi ele que a projetou; tu, porém, ao contrário, comportas-te como um lazzarone que cobra para mostrar um lugar que qualquer um pode ver; tu és como aquele homem que de tarde mostrava por dinheiro um cabrito, enquanto que de manhã era possível vê-lo de graça pastando na praça do mercado". - "Talvez seja assim, e eu me escondo de vergonha. Mas, supondo que eu seja assim tão ridículo, permite que me reabilite fazendo um novo projeto. Pois é claro que a pólvora já foi inventada há muitos séculos, e eu seria então ridículo se quisesse fingir que a inventei; mas seria igualmente ridículo se eu supusesse que alguém a inventou? Vê, agora eu quero fazer a gentileza de admitir que foste tu que inventaste o meu projeto, e tu não podes exigir, afinal, mais gentileza do que isto. Mas se tu o negares, negarás também que alguém o inventou, quer dizer, algum homem? Neste caso, eu estou tão próximo de o ter inventado quanto qualquer outro homem. Assim, não te enfureces comigo porque eu atribuo mentirosamente a mim o que pertence a um outro homem, mas te enfureces comigo porque atribuo mentirosa mente a mim algo que não pertence a homem algum, e te enfureces igualmente quando eu atribuo mentirosamente a ti a invenção. Não é esquisito que haja algo assim, a respeito do qual cada um que o conhece sabe ao mesmo tempo que não foi ele que o inventou, sem que este "passa-adiante" se interrompa ou possa interromper-se, ainda que se perguntasse a todos os homens? E no entanto esta singularidade me encanta ao máximo, dado que ela faz a prova da correção de minha hipótese e a demonstra. Também seria absurdo exigir de um homem que descobrisse por si mesmo que ele não existia. Mas esta passagem faz parte do renascer: a passagem do não estar-aí ao estar-aí. Se posteriormente o compreendeu ou não, isto não tem nada a ver com a coisa, pois só pelo fato de a gente saber usar a pólvora, e analisá-la em suas diferentes partículas, daí não segue que a gente a tenha inventado. Portanto, podes enfurecer-te comigo ou contra qualquer outro homem que finja ser o autor da invenção; mas por isso não precisas enfurecer-te contra a sua ideia". Capítulo II O Deus como mestre e salvador Um ensaio poético Consideremos por um momento Sócrates que, afinal, também foi um mestre. Nasceu sob determinadas condições, formou-se no povo ao qual pertencia e quando, numa idade mais madura, sentiu uma vocação e um impulso, começou, à sua maneira, a ensinar outras pessoas. Após ter assim vivido algum tempo como Sócrates, apresentou-se, quando o momento lhe pareceu conveniente, como o mestre Sócrates. Ele, que tinha sofrido a influência das circunstâncias, imprimiu nestas por sua vez a sua marca. Ao realizar sua obra, ele satisfazia tanto à exigência que estava nele quanto àquela que outros homens podiam reclamar dele. Assim compreendido, e aliás é assim que Sócrates o compreendia, o mestre situa-se numa relação de reciprocidade na medida em que, para ele, a vida e as circunstâncias tornam-se o ensejo de tornar-se mestre, e ele, por sua vez, ensejo para que outros aprendam alguma coisa. Sua relação é, então, constantemente tanto autopática quanto simpática. Assim também o entendia Sócrates, e por isso não queria receber nem honras, nem dignidades, nem dinheiro pelo seu ensinamento, pois julgava com a integridade de um morto. Ó rara modéstia, rara em nosso tempo, onde as somas de dinheiro e as coroas de louro não podem ser suficientemente grandes e brilhantes para retribuir o brilho do ensinamento; mas onde também todo o ouro do mundo e todas as honras são justamente a recompensa do ensinamento, pois este tem o mesmo valor que aqueles. Mas nosso tempo, como se sabe, está de posse do positivo, e entende bem do assunto; Sócrates, ao contrário, carecia do positivo. Mas vejamos que esta falha não explica sua estreiteza de espírito, devida, sem dúvida, a seu zelo pelo humano, a esta inveja divina com a qual se disciplinava a si mesmo como disciplinava os outros e na qual ele amava o divino. Entre homem e homem não há relação mais alta que esta: o discípulo é a ocasião para que o mestre se compreenda a si mesmo, o mestre a ocasião para que o discípulo se compreenda a si mesmo. Em sua morte, o mestre não deixa atrás de si nenhuma reivindicação sobre a alma do discípulo; tampouco o discípulo poderia ter a pretensão de que o mestre lhe devesse algo. E ainda que eu tivesse o entusiasmo de um Platão, ao ouvir Sócrates, e o meu coração batesse fortemente como o de Alcibíades, mais forte ainda que o dos coribantes, se minha admiração apaixonada não pudesse satisfazer-se senão abraçando este homem magnífico, sem dúvida Sócrates me sorriria, dizendo: “Ó meu caro, que amante enganador que és! pois queres divinizar-me por causa de minha sabedoria e queres ser aquele que melhor me compreendeu, aquele de cujo abraço admirativo não posso arrancar-me; não serás um sedutor?" E se eu não quisesse compreendê-lo, então sua fria ironia me lançaria no desespero quando me explicasse ter em relação a mim uma dívida tão grande quanto aquela que tenho em relação a ele. Ó rara probidade, que não engana ninguém, nem mesmo aquele que colocaria sua felicidade no ser enganado; rara em nossos dias, onde todos vão mais longe do que Sócrates, tanto na arte da autoavaliação quanto na de serem úteis a um discípulo, tanto na sensibilidade do trato como na volúpia que o quente bafejo da admiração proporciona! Ó rara fidelidade, que não seduz ninguém, nem mesmo aquele que faz uso de toda a arte de sedução para se deixar seduzir! Mas o deus não precisa de nenhum discípulo para compreender-se a si mesmo; e assim nenhuma ocasião pode agir sobre ele de modo a equivalerem ocasião e decisão. Que é que pode, então, movê-lo a apresentar-se? Ele tem de mover-se a si mesmo e continuar sendo o que Aristóteles diz dele: "Sem mover-se move tudo" (akínetos pánta kineí). Porém, se ele se move, então não é uma necessidade que o faz mover-se, assim como se não pudesse suportar o silêncio, mas precisasse irromper na palavra. Mas se não é por necessidade que se move, o que é que o move, o que será, senão o amor? Pois o amor justamente não tem a satisfação do desejo fora dele, mas em si mesmo. Sua decisão, que não entretém uma relação recíproca direta com a ocasião, deve existir desde toda a eternidade, embora, realizando-se no tempo, ela se torne justamente o instante, pois aí onde a ocasião e o ocasionado se correspondem diretamente, exatamente como no deserto a resposta ao grito, aí o instante não aparece, porém a reminiscência o engole em sua eternidade. O instante vem à luz justamente pela relação da decisão eterna para com a ocasião que lhe é desigual. Se não for assim desta maneira, recairemos no socrático e então não alcançaremos o deus, nem a decisão eterna, nem o instante. Por amor, portanto, o deus tem de decidir-se eternamente a agir; mas como seu amor é a razão, o amor deve ser também o fim, pois seria igualmente uma contradição que o deus tivesse um motivo e um fim que não se correspondessem. O amor deve, pois, dirigir-se àquele que aprende e o fim deve ser o de ganhá-lo, pois só no amor o diferente se iguala, e só na igualdade e na unidade há compreensão, mas sem aquela compreensão perfeita o mestre não é o deus, a não ser que a razão devesse ser procurada na recusa daquele que aprende em alcançar aquilo que lhe foi possibilitado. Contudo, este amor é fundamentalmente infeliz, pois eles são tão diferentes um do outro! E aquilo que parece tão fácil, que o deus tenha de ser capaz de fazer-se compreender, não é tão fácil assim, uma vez que ele não deve anular a diferença. Não queremos precipitar-nos, e mesmo que pareça a alguém que estamos desperdiçando tempo em vez de chegar ao resultado decisivo, nosso consolo é que daí não se segue que nosso esforço seja perdido. - Muito já se falou no mundo a respeito do amor infeliz, e qualquer um sabe muito bem o que esta expressão significa: que os amantes não podem unir-se; quanto às razões, podem ser realmente as mais variadas. Há outra espécie de amor infeliz, aquele do qual falamos, e para o qual nenhuma relação humana pode dar uma perfeita analogia, mas que não obstante podemos, falando por um momento de maneira precária, dar uma comparação terrena. A infelicidade não consiste em que os amantes não possam ficar juntos, mas em que não consigam compreender-se. Esta aflição é afinal infinitamente mais profunda que aquela da qual as pessoas falam; pois tal infelicidade visa ao coração do amor e fere para a eternidade, ao inverso da outra, que não nos atinge senão no exterior e por certo tempo, e que para as almas generosas não é senão uma brincadeira, como o fato de os amantes não se unirem no tempo. E este sofrimento, infinitamente mais profundo, pertence essencialmente ao homem superior, porque apenas ele compreende ao mesmo tempo a incompreensão; não pertence, para falar propriamente, senão ao deus, pura e exclusivamente, porque nenhuma relação humana pode fornecer dele uma analogia válida, por mais que queiramos aqui esboçar uma comparação, para despertar o espírito e levá-lo a compreender o divino. Suponhamos ter havido um rei que amava uma moça pobre. Porém, talvez o leitor já tenha perdido a paciência só de ouvir este começo, igual ao dos contos de fada e que não tem nada de sistemático. Ó!, é verdade que o douto Polos achava fastidioso que Sócrates todo o tempo só falasse de comida e de bebida, de médicos e outras futilidades sobre as quais ele, Polos, absolutamente não falava (d. Górgias). Mas não tinha Sócrates ao menos uma vantagem, a de estar familiarizado desde a infância, como qualquer um de nós, com os conhecimentos necessários a este respeito? E não seria desejável que eu pudesse, o que já ultrapassaria de muito minhas capacidades, ater-me ao comer e ao beber e não precisasse apelar para os reis que, como se sabe, nem sempre têm os pensamentos de todo mundo, quando chegam a pensar como reis? Mas será que não se poderia perdoar isso no meu caso, já que não passo de um poeta que agora (lembrando as belas palavras de Temístocles) quer desenrolar o tapete do seu discurso para que o trabalho não fique oculto, enrolado? Suponhamos, então, ter havido um rei que amava uma moça pobre. O coração do rei não fora contaminado por aquela sabedoria que se prega em voz tão alta, e desconhecia as dificuldades que o intelecto descobre para tornar o coração cativo e que ocupam tanto os poetas e tornam necessárias suas fórmulas mágicas. Sua resolução era fácil de executar, pois todo homem de Estado temia sua cólera e não ousaria fazer-lhe reparos, e cada Estado estrangeiro tremia diante do seu poder e não ousaria abster-se de enviar embaixadores às bodas, carregados de votos de felicidade, e o mais vil cortesão, rastejando no pó, não ousaria ofendê-lo de medo de ter a cabeça esmagada. Cuidemos então que as harpas sejam afinadas, que o canto dos poetas comece a fazer-se ouvir, que nada falte à festa, enquanto o amor celebra seu triunfo, pois o amor é regozijante quando une iguais, mas triunfante quando iguala no amor os que eram desiguais! - Surgiria, então, uma preocupação na alma do rei. Quem pensaria nisso senão um rei que pensa de maneira real? Não diria uma única palavra a ninguém de sua preocupação, pois, se o fizesse, qualquer cortesão haveria de dizer: "O que Vossa Majestade fez por esta jovem é um benefício do qual ela não poderá jamais vos agradecer bastante durante toda a vida"; e então decerto o cortesão teria provocado a cólera do rei, que o faria executar por crime de lesa-majestade para com sua bem-amada; e com isso teria também provocado, de outra maneira, o sofrimento do rei. Solitário, este remoeria a preocupação em seu coração: seria a jovem igualmente feliz, conseguiria adquirir suficiente franqueza para jamais lembrar-se daquilo que o rei não quereria senão esquecer: que ele era o rei e que ela fora uma jovem pobre? Pois, se isto acontecesse, se esta lembrança devesse despertar nela para, como um rival acobertado, desviar seus pensamentos do rei, se a atraísse para o hermetismo de uma dor secreta e passasse às vezes sobre sua alma como a morte sobre a sepultura: que valeria, então, o esplendor de seu amor? Então na verdade ela teria sido mais feliz em seu canto obscuro, amada por um de seus iguais, contente em sua humilde choupana, mas franca em seu amor e alegre da manhã à noite. Que plenitude, que superabundância de sofrimento não encontramos aqui, tão amadurecido, por assim dizer, quase sucumbindo sob o peso de sua fecundidade, não esperando senão a hora da colheita, quando o pensamento do rei há de debulhar todos os grãos do sofrimento! Pois mesmo que a jovem se contentasse de não ser nada, isto não poderia satisfazer o rei, justamente porque ele a amava e porque lhe seria mais penoso ser considerado seu benfeitor do que perdê-la. E se, então, ela nem tivesse podido compreendê-lo? - pois já que estamos falando impropriamente do humano nada impede, afinal, que admitamos uma diferença de mentalidade que torne a compreensão impossível - que profundo sofrimento não dormita neste amor infeliz, e quem ousaria despertá-lo? Contudo, um homem não experimentará tal sofrimento, pois nós o remeteremos então a Sócrates, ou àquilo que, num sentido ainda mais belo, consegue tornar iguais os desiguais. Ora, se o instante deve ter uma importância decisiva (e sem isso recairemos no socrático, mesmo que acreditando ultrapassá-lo), o discípulo está na não verdade, sim, está aí por sua própria culpa - e, não obstante, ele é objeto do amor do deus, que quer ser seu mestre, e a preocupação do deus é de estabelecer a igualdade. Se esta não puder ser estabelecida, o amor será infeliz e o ensinamento desprovido de significado, porque não conseguem compreender-se mutuamente. Haverá quem pense, decerto, que isto poderia ser indiferente ao deus, porque este não necessita do discípulo, mas com isso se esquece, ou melhor, prova-se, ai! quão distante se está de compreender, pois tal pessoa esquece que ele afinal de contas ama o discípulo. E assim como aquele sofrimento real só se encontra numa alma de rei, e na multidão de línguas humanas nenhuma sequer lhe dá um nome, assim também toda a língua humana é tão egoísta que nem quer suspeitar que haja semelhante aflição. Mas é por isso que o deus reserva para si este sofrimento insondável, o de saber que pode afastar o discípulo, passar sem ele, que o discípulo por sua própria culpa caiu na perdição, que pode deixá-lo afundar - e de saber como é quase uma impossibilidade manter esta franqueza do discípulo, sem a qual a compreensão e a igualdade desaparecem e o amor é infeliz. Aquele que não tem nem um leve pressentimento desta aflição é uma alma miserável, cunhada como uma moeda de pouco valor, que não traz nem a efígie de César nem a de Deus. Assim está pois colocada a tarefa, e nós convidamos o poeta, se já não foi convidado a outro lugar e se ele não é um daqueles que é preciso antes afastar, com tocadores de flauta e outros farsantes, da casa do sofrimento, para que a alegria possa voltar. A tarefa do poeta será encontrar uma solução, um ponto de unidade onde a compreensão do amor esteja verdadeiramente realizada, onde a preocupação do deus encontre consolo para sua dor; pois a insondabilidade do amor consiste em que não se contenta com aquilo com que o objeto do amor em sua loucura talvez se proclame feliz. A. A unidade é obtida graças a uma elevação. O deus quereria então elevar para junto de si o discípulo, exaltá-lo, deliciá-lo com um júbilo milenar (pois mil anos são para ele como um só dia), fazê-lo esquecer da incompreensão em meio ao alvoroço da alegria. Ó sim! o discípulo estaria talvez muito inclinado a contentar-se com esta situação, e não seria magnífico, como aquela moça pobre, encontrar sua felicidade no fato de que o deus lançou-lhe um olhar favorável, não seria magnífico vir em sua ajuda para tomar tudo isso em vão, enganado pelo seu próprio coração?! Não obstante, aquele nobre rei perceberia claramente a dificuldade. Ele era um tanto quanto conhecedor dos homens, e entendia perfeitamente que no fundo a jovem estava enganada, e é certamente a maneira mais terrível quando nem ao menos se suspeita disso, mas se está como que encantado com seus belos vestidos. A unidade poderia ser obtida se o deus se mostrasse ao discípulo, aceitasse sua adoração e o levasse a esquecer-se de si mesmo. Assim o rei poderia ter-se mostrado à mocinha pobre, em todo o seu esplendor, teria podido fazer erguer-se sobre sua choupana o sol de sua glória e fazê-lo brilhar sobre o lugar onde ele apareceu e fazê-la esquecer-se de si mesma num encantamento próximo da adoração. Ai! e isto talvez tivesse contentado a moça, mas não o rei que não procurava sua própria glorificação, mas a da moça. Daí seu sofrimento tão pesado por não ser compreendido por ela, mas mais pesado ainda, caso fosse preciso enganá-la. E o simples fato de dar ao seu amor uma expressão imperfeita já teria sido, aos olhos do rei, um embuste, embora ninguém o compreendesse e as censuras ferissem sua alma. Por este caminho então o amor não vem a ser bem-sucedido, muito embora talvez aparentemente o amor do discípulo e da moça possam contentar-se, porém não o do mestre e o do rei, aos quais nenhuma ilusão pode satisfazer. Assim, o deus tem sua alegria em vestir o lírio do campo com mais esplendor do que Salomão; mas se se pudesse falar de uma compreensão, então o lírio estaria realmente preso a um triste engano se, ao ver suas vestes magníficas, achasse que é por causa das vestes que ele é o amado; enquanto ele, agora, apruma-se intrepidamente no prado, a brincar com o vento, despreocupado como o sopro deste, no outro caso, decerto, murcharia e não conseguiria ter a mesma franqueza para levantar a cabeça. Esta seria a preocupação do deus; pois a haste do lírio é frágil e logo se quebra. Mas se o instante há de ter uma significação decisiva, então, a que ponto indizível não se elevará seu sofrimento! Havia um povo bastante familiarizado com o divino; este povo acreditava que ver o deus era o mesmo que a morte. - Quem compreenderá esta contradição da tristeza: pois não se revelar é a morte do amor, e revelar-se é a morte da pessoa amada. Oh! a mente dos homens aspira tão frequentemente à força e ao poder, e dado que é para estes fins que seus pensamentos se voltam sem cessar, como se tudo se resolvesse pelo fato de obtê-los, não suspeitam de que no céu não há apenas alegria, mas também tristeza: quão penoso é ter de recusar ao discípulo o que este aspira com toda a sua alma, e ter de recusar-lhe justamente porque ele é o amado! B. A unidade deve então ser obtida de outra maneira. Aqui, mais uma vez, queremos lembrar-nos de Sócrates; pois em que consistia afinal a sua ignorância, senão na expressão desta unidade exigida por seu amor ao discípulo? Mas esta unidade era, ao mesmo tempo, a verdade, como já vimos. Se, ao contrário, o instante deve ter uma significação decisiva, esta unidade não será então a verdade, pois aqui o discípulo deve tudo ao mestre. Da mesma maneira que, pensando socraticamente, o amor do mestre seria apenas o de um impostor se deixasse o discípulo na crença de ser de fato seu devedor, quando deveria ajudá-lo a bastar-se a si mesmo, assim o amor do deus, caso ele queira ser o mestre, não deve ser apenas um amor que auxilia, mas um amor que engendra, através do qual ele gera o discípulo, ou melhor, aquele que já chamamos de o renascido, palavra empregada por nós para significar a passagem do não ser ao ser. Aí será verdade, pois que o discípulo lhe deve tudo, mas é isso justamente o que torna tão difícil a compreensão do discípulo: que não é mais nada e, no entanto, não foi aniquilado, que lhe deve tudo, e no entanto guarda seu ânimo franco, que compreende a verdade e, ao mesmo tempo, é esta que o liberta, que ele apreende a culpa da não verdade e que, por sua vez, o ânimo franco vence na verdade. De homem a homem, ser aquele que auxilia é o máximo, mas gerar é algo reservado ao deus, cujo amor é gerador, não aquele amor gerador sobre o qual Sócrates sabe falar tão belamente numa ocasião festiva. Pois este não indica, com efeito, a relação do mestre com o discípulo, mas a do autodidata com o belo quando, desviando o olhar da beleza esparsa, ele contempla o belo em si e para si e assim "engendra muitas belas palavras e pensamentos magníficos" ("ele poderá engendrar multidão de belos e magníficos discursos, assim como pensamentos nascidos na inexaurível aspiração do saber" - "O Banquete", § 210 D); e por isso pode-se dizer que ele gera e produz aquilo que já há muito tempo carregava no seu interior. A condição, ele já a possui então nele mesmo, e a produção (o parto) não é senão um trazer à luz o que já estava a postos; é por isso que nesta produção o instante é logo reabsorvido na lembrança. E daquele que nasce, morrendo a cada vez, é evidente que tampouco se pode dizer que nasce, já que não faz senão lembrar-se cada vez mais nitidamente de que existe; e aquele que, por sua vez, apenas gera as manifestações do belo, não as gera, mas deixa que o belo que há nele as engendre a partir de si mesmo. Se, portanto, não foi possível obter a unidade através de uma subida, é preciso experimentar por uma descida. Suponhamos que o discípulo seja "x", e que este "x" tem de incluir também o menor de todos, pois se mesmo Sócrates não tinha predileção pelas boas cabeças, como poderia o deus fazer distinções? Para que a unidade se concretize, o deus tem de fazer-se igual ao discípulo. E assim ele quer mostrar-se igual ao menor de todos. Mas o menor de todos é, como se sabe, o que tem de servir aos outros, e por conseguinte o deus deve mostrar-se sob a figura do servo. Mas esta figura do servo não é uma coisa sobreposta como o manto de mendigo do rei, que por isso mesmo esvoaçava solto e traía o rei; não é, também, sobreposta como o leve manto de verão de Sócrates que, embora feito de nada, esconde e revela; não, ela é sua figura verdadeira; pois aí reside o insondável do amor: em querer, não como brincadeira, mas seriamente e em verdade, ser igual à pessoa amada; e esta é a onipotência decisiva do amor, conseguir aquilo de que nem o rei nem Sócrates eram capazes, razão por que suas figuras emprestadas não deixavam de ser uma espécie de embuste. Vê, aí está ele - o deus. Onde? Aí mesmo; não podes vê-lo? Ele é o deus e, não obstante, não tem onde repousar sua cabeça, e não ousa apoiar-se em nenhum homem para não vir a escandalizá-lo. Ele é o deus e, no entanto, seu andar é mais cauteloso do que se os anjos o levassem, não por cuidado de não ferir o pé, mas por temor de calcar os homens no pó caso estes se escandalizassem dele. Ele é o deus e, não obstante, seu olhar paira preocupado sobre a espécie humana, pois a haste frágil dos indivíduos pode ser quebrada tão depressa quanto um talo de erva. Que vida! puro amor e pura aflição: querer exprimir a unidade do amor e aí não ser compreendido; ter de temer a perdição de cada um e, no entanto, não poder, em verdade, salvar um único homem a não ser desta maneira; pura aflição, enquanto os dias e as horas estão repletos já com as aflições do discípulo que se confia a ele. É assim, pois, que o deus se apresenta sobre a terra, igual ao último dos homens, pela onipotência de seu amor. Ele sabe que o discípulo é a não verdade - e se este se enganasse, se se abatesse e perdesse a franqueza! Oh! suportar assim o céu e a terra num fiat onipotente, de sorte que tudo desabasse se pela menor parcela de tempo este viesse a faltar, como esse fardo é leve comparado ao de ter de suportar a possibilidade do escândalo do gênero humano, quando foi por amor que ele se tornou seu salvador! Mas a figura do servo não era simulada, por isso o deus tudo deve sofrer, e tudo suportar, a fome no deserto, a sede nos suplícios, o abandono na morte, absolutamente igual ao último dos homens - "vê, que homem", pois seu sofrimento não se reduz ao sofrimento da morte, mas toda esta vida constitui, afinal, uma paixão, e é o amor que sofre, é o amor que tudo dá, estando ele mesmo em necessidade. Maravilhosa abnegação! Mesmo ao menor dos discípulos ele pergunta inquieto: amas-me então realmente? Pois ele mesmo sabe onde ameaça o perigo e sabe, não obstante, que qualquer caminho mais fácil seria um embuste, ainda que o discípulo não o compreendesse. Qualquer outra revelação seria, para o amor, um embuste, pois ou bem ele deveria primeiro ter operado uma mudança do discípulo (mas o amor não transforma o amado, mas se transforma a si próprio), ocultando-lhe a necessidade desta mudança, ou levianamente deveria continuar a ignorar que toda sua compreensão mútua não era senão ilusão. (Esta é a não verdade do paganismo.) Qualquer outra revelação seria, para o amor do deus, um embuste. E ainda que os meus olhos tivessem mais lágrimas que os de uma pecadora arrependida e cada uma destas lágrimas maior preço que todas as lágrimas de uma pecadora perdoada; ainda que eu pudesse encontrar um lugar ainda mais humilde do que aos pés dele; e ainda que eu me sentasse mais humildemente que uma mulher cujo coração não tivesse escolhido senão a única coisa necessária; e ainda que eu amasse com mais devotamento que o servo fiel que o ama até a última gota de seu sangue; e ainda que eu tivesse a seus olhos mais graça que a mais pura das mulheres - se, então, eu quisesse pedir-lhe para modificar sua decisão, para se mostrar de outra maneira, para poupar-se, ele então fixaria seus olhos em mim, e diria: Homem, que tenho eu a ver contigo? Afasta-te, pois tu és satanás, mesmo se não te dás conta! Ou se uma só vez ele estendesse a mão num gesto de comando e seu gesto fosse obedecido e eu então acreditasse compreendê-lo melhor e amá-lo também mais, aí eu o veria, sem dúvida, chorar sobre mim e ouvi-lo-ia dizer: como pudeste tornar-te tão infiel a mim e assim contristar o amor; então tu só amas o onipotente que faz milagres, e não aquele que se rebaixou igualando-se a ti! Mas a figura do servo não era uma forma simulada; por isso ele precisa expirar na morte e deixar novamente a terra. E embora minha dor fosse mais profunda que a da mãe quando a espada lhe atravessou o coração, e minha situação mais terrível que a do crente quando a força da fé se rompe, e minha miséria mais tocante que a daquele que crucifica sua esperança e só retém a cruz - apesar disso, se eu lhe suplicasse que se poupasse e permanecesse entre nós, sem dúvida eu o veria triste até a morte, mas triste também por minha causa, pois aquele sofrimento também era para meu bem; mas seu sofrimento seria também pelo fato de eu não ter podido compreendê-lo. Ó cálice amargo, se a ignomínia da morte é mais amarga que o absinto para os mortais, o que não será, então, para o imortal! Ó ácida beberagem - mais ácida que o vinagre - não se ter para se reconfortar senão a incompreensão da pessoa amada! Ó consolo na aflição, o de sofrer como culpado, mas o que não será o de sofrer sendo inocente! Assim fala o poeta; pois como haveria de suspeitar que o deus queria manifestar-se de uma tal maneira para provocar a mais terrível decisão? Como haveria de ocorrer-lhe brincar levianamente com a dor do deus, e numa mentira poética eliminar o amor para substituí-lo pela cólera? E o discípulo, ele não tem participação alguma na história desta paixão, ainda que sua sorte não seja a do mestre? E, no entanto, é assim que deve ser e é o amor que ocasiona todo este sofrimento, justamente porque o deus não é zeloso de si mesmo, mas em seu amor quer ser igual ao menor de todos os homens. Quando alguém planta uma bolota de carvalho num vaso de terra, este se rompe; quando alguém derrama vinho novo em odres velhos, estes se partem. Mas o que se passa, então, quando o deus se implanta na fraqueza de um homem, se este não se torna um homem novo e um vaso novo? Esta metamorfose, porém, como é difícil! Que parto doloroso! E a relação da compreensão, como é frágil, tocando a cada instante os limites do erro, quando a angústia da culpa procura perturbar a paz do amor! E a relação da compreensão, como é espantosa! Pois é menos espantoso cair com o rosto no chão quando as montanhas tremem à voz do deus do que estar sentado junto dele como ao lado de igual, e no entanto esta é afinal de contas a preocupação do deus, sentar-se justamente desta maneira! Se agora alguém dissesse: "Esta tua invenção poética é o mais miserável dos plágios que jamais ocorreu, pois não é nada mais nada menos do que aquilo que qualquer criança sabe", eu teria de ouvir, ruborizado, que sou um mentiroso. Mas por que o mais miserável? Qualquer poeta que rouba, rouba afinal de outro poeta, e desta maneira todos nós somos igualmente miseráveis; sim, meu roubo é talvez menos prejudicial, dado que é mais facilmente descoberto. Mas quem é então o poeta? Se eu fosse tão gentil a ponto de considerar-te, a ti que me julgas, como sendo o poeta, talvez tu ficasses novamente furioso. Se não existisse um poeta quando há contudo um poema, isso seria tão estranho quanto ouvir uma peça de flauta apesar de não existir um flautista. Ou será que este poema é como um provérbio popular, para o qual não se conhece o criador, porque é como se toda a humanidade o tivesse inventado? E então foi talvez por isso que tu chamaste meu plágio de o mais miserável, porque eu não o roubei de nenhum homem particular, mas o roubei do gênero humano, e pretensiosamente, sendo apenas um homem individual, sim, até mesmo um miserável ladrão, eu fingi ser todo o gênero humano? Será que é assim que acontece, de modo que eu, andando pelo meio dos homens, vejo que todos conhecem o poema, mas cada um ao mesmo tempo sabe que não foi ele quem o inventou - de modo que eu poderia concluir daí que foi o gênero humano quem o inventou? Não seria estranho? Pois se todo o gênero o tivesse inventado, então poder-se-ia exprimir isso dizendo que qualquer um estaria igualmente próximo de o ter inventado. Não te parece que acabamos entrando numa questão difícil, enquanto que no começo tudo parecia tão facilmente resolvido com tua breve e zangada censura de que o meu poema seria o mais miserável dos plágios, e com o meu rubor por precisar ouvir isso? Então talvez nem seja nenhuma criação poética, ou talvez ela não seja devida a algum homem, nem a todo o gênero humano; agora enfim eu te compreendo, é por isso que tu chamaste o meu caso de o mais miserável dos plágios, porque eu não roubei de um homem individual, nem roubei do gênero, mas roubei da divindade, sim eu por assim dizer roubei a divindade e, de maneira blasfema, sendo embora um homem individual, sim apesar de ser um miserável ladrão, fingi ser o deus; Ó, meu caro, agora eu te compreendo totalmente, e compreendo que tua ira está justificada. Mas aí a minha alma também é arrebatada por uma nova admiração, sim, ela se enche de adoração; pois também teria sido estranho, sem dúvida, que aquilo fosse uma invenção poética humana. Bem poderia ocorrer ao homem poeticamente imaginar-se a si mesmo em igualdade com o deus ou o deus em igualdade com ele, mas não inventar que o deus se configurasse poeticamente a si mesmo em igualdade com o homem; pois se o deus não o deixasse perceber, como é que ocorreria ao homem a ideia de que o deus santo poderia necessitar dele? Esta seria afinal a pior das ideias, ou melhor, um pensamento tão ruim que não lhe poderia ocorrer, muito embora ele, uma vez informado pelo deus a este respeito, venha a dizer adorando: "este pensamento não brotou de meu coração", e o considere o mais maravilhoso e o mais belo de todos os pensamentos. E tudo isso não será uma maravilha, e esta palavra não será, por sua vez, um feliz presságio em meus lábios, pois não estaremos aqui, como eu o dizia, e como tu mesmo o disseste sem querer: ante o milagre? E uma vez que estamos ambos diante do prodígio, cujo silêncio solene não pode ser perturbado pelas querelas humanas a respeito do meu e do teu, e cujo discurso, a exigir veneração, atroa sobre a disputa humana pelo meu e o teu, então me perdoa por eu ter estado no mais estranho dos erros, pensando que eu é que tinha inventado aquilo. Era um erro, e o poema era tão diferente de qualquer criação poética humana, que nem era um poema, mas sim o milagre. Capítulo III O paradoxo absoluto Um capricho metafísico Apesar de Sócrates ter-se empenhado ao máximo para reunir os conhecimentos sobre o homem e para conhecer a si mesmo, sim, apesar de ter sido louvado através dos séculos como o homem que certamente melhor conheceu o homem, ele confessava entretanto que a razão de sua repugnância em refletir sobre a natureza de seres como Pégaso ou as górgonas provinha de uma questão que não havia elucidado: a de saber se ele mesmo (o conhecedor do homem) não seria um monstro mais estranho que Typhon ou um ser mais amável e simples, que por sua natureza participava de algo divino (cf. Pedra, § 229 E). Isto parece um paradoxo. Contudo, não é necessário pensar mal do paradoxo, pois o paradoxo é a paixão do pensamento, e o pensador sem um paradoxo é como o amante sem paixão, um tipo medíocre. Mas a potência mais alta de qualquer paixão é sempre querer a sua própria ruína, e assim também a mais alta paixão da inteligência consiste em querer o choque, não obstante o choque, de uma ou de outra maneira, tenha de tornar-se a sua ruína. Assim, o maior paradoxo do pensamento é querer descobrir algo que ele próprio não possa pensar. Esta paixão do pensamento está, no fundo, presente nele por todas as partes, assim também como no pensamento do indivíduo, na medida em que este, enquanto pensante, não é somente ele mesmo. Mas por causa do hábito não se percebe isso. Assim também, o caminhar do homem, conforme dizem os naturalistas, é um contínuo cair; mas um homem decente e bem-educado, que toda manhã vai ao seu escritório e ao meio-dia volta à sua casa para almoçar, provavelmente achará que isso é um exagero, pois o seu avançar é, afinal, a mediação. Como lhe ocorreria a ideia de que vai caindo sem cessar, ele que não faz outra coisa senão seguir atrás de seu nariz? Contudo, para podermos começar, façamos uma proposição ousada: suponhamos que sabemos o que é o homem. (Talvez pareça algo ridículo querermos dar a esta proposição a forma da dúvida ao "supô-la"; pois tais coisas qualquer um já sabe em nossa época teocêntrica. Quem dera que fosse assim! Demócrito também o sabia, pois ele define o homem nestes termos: "O homem é o que todos nós sabemos"; e continua: "pois nós todos sabemos o que é um cão, um cavalo, uma planta etc., e nada disso é um homem". Nós não queremos ser tão maliciosos nem temos tanta graça quanto Sexto Empírico, que a partir daí, como se sabe, deduzia muito corretamente que o homem é um cão: pois se o homem é o que todos sabemos, e sabemos todos o que é um cão, ergo... Não, nós não seremos tão maliciosos; mas ainda cabe perguntar: será que o assunto está tão bem esclarecido em nossa época, que esta, pensando no pobre Sócrates e em seu embaraço, não precisaria se mostrar um pouco inquieta com respeito a si mesma?). Aqui temos então o critério da verdade que toda a filosofia grega buscou, ou pôs em dúvida, ou postulou, ou fecundou. E não é notável que tenha sido assim com os gregos? Não está aí como que uma breve síntese do significado do helenismo, um epigrama que ele mesmo escreveu sobre si, e com o que ele também está mais bem servido do que com as dissertações, às vezes tão prolixas, que foram escritas sobre ele? Desse modo, essa proposição bem merece ser adotada, e também por outra razão já indica da nos dois capítulos precedentes, já que, se desejamos explicar Sócrates de outra maneira do que temos feito, devemos tomar cuidado para não cair nas armadilhas dos céticos gregos mais antigos ou mais tardios. Se não nos ativermos à teoria socrática da reminiscência e à ideia de que todo homem, tomado individualmente, é o homem, então encontraremos Sexto Empírico, disposto a tornar não só difícil como até impossível a passagem que se encontra no "aprender". E Protágoras inicia no ponto em que Sexto as havia deixado, diz que tudo é à medida do homem, no sentido de que ele é a medida dos demais, e de nenhum modo no sentido socrático de que o indivíduo é sua própria medida, nem mais nem menos. Assim, sabemos então o que é o homem, e esta sabedoria, cujo valor eu serei o último a subestimar, pode enriquecer-se constantemente, assumir importância, e também, consequentemente, tornar-se a verdade; mas aí se detém a inteligência, como Sócrates se detinha; pois é então que desperta a paixão paradoxal da inteligência, que quer o choque, e quer, sem compreender direito a si mesma, sua própria ruína. É assim, aliás, que ocorre no caso do paradoxo do amor. O homem vive tranquilamente em si mesmo e então desperta o paradoxo do amor que ele tem por si mesmo sob a forma de amor por outro, por um ser que lhe falta. (O amor a si próprio está no fundamento de todo amor ou vai ao fundo em todo amor, eis por que, se quisermos imaginar uma religião do amor, esta, tão epigramática quanto verdadeiramente, só há de pressupor uma única condição e a admitirá como dada: amar a si mesmo, para em seguida ordenar que se ame ao próximo como a si mesmo.) Ora, assim como o amante é transformado por este paradoxo do amor, de modo que quase já não se reconhece a si mesmo (como o testemunham os poetas, que são os porta-vozes do amor, assim como os amantes mesmos, já que estes só permitem aos poetas tomar-lhes a palavra, mas não o estado), da mesma maneira aquele paradoxo pressentido pela inteligência reage sobre o homem e seu conhecimento de si, de sorte que este homem, que acreditava conhecer-se, já não sabe com certeza se não é talvez um animal tão estranho como Typhon ou se não possui em seu ser algo de mais doce e mais divino: "Como eu disse, não é sobre nada disso que me interrogo, mas sobre mim mesmo: sou eu um monstro mais complexo e mais cheio de orgulho - do que Typhon - ou quem sabe um ser mais doce e simples, dotado por natureza de um destino divino e modesto" (Fedro, § 230 A). Mas o que é este desconhecido contra o qual a inteligência em sua paixão paradoxal se choca, e que perturba o homem em seu autoconhecimento? E o desconhecido. No entanto, ele não é, certamente, um ser humano, na medida em que o homem sabe o que o homem é, nem qualquer outra coisa que o homem conheça. Chamemos então este desconhecido: o deus. É apenas um nome que lhe damos. Dificilmente ocorreria à inteligência querer provar que esse desconhecido (o deus) existe de fato. Se, com efeito, o deus não existe, é claro que seria impossível prová-lo, e se ele de fato existe, é claro que seria uma tolice querer provar isso; pois eu já o pressupus, justamente no instante em que a prova começa, não como algo duvidoso (o que um pressuposto aliás nunca pode ser, já que é um pressuposto), mas como algo já resolvido, pois de outro modo eu não iria começar, entendendo facilmente que o todo seria uma impossibilidade se ele não existisse. Mas se, ao contrário, com a expressão provar a existência do deus, tenho em mente querer provar que o desconhecido, que existe, é o deus, então me expresso de maneira menos feliz. Pois neste caso não provo nada, e menos ainda uma existência, mas apenas desenvolvo uma definição conceitual. Em geral, provar que qualquer coisa existe é sempre uma questão difícil; sim, o que é ainda pior para os corajosos que a tanto se atrevem, a dificuldade é tal que a celebridade raramente aguarda aqueles que a isso se dedicam. A demonstração toda se transforma sempre em algo completamente diferente, em um desenvolvimento exterior da conclusão que tiro ao ter admitido que o objeto em questão existe. Assim, minha conclusão nunca termina na existência, mas sim eu tiro conclusões a partir da existência, quer eu me movimente na esfera dos fatos sensíveis e palpáveis, quer no domínio do pensamento. Assim, eu não provo que uma pedra existe, mas sim que algo, que de fato existe, é uma pedra; o tribunal não prova que um criminoso existe, mas prova que o acusado, que evidentemente existe, é um criminoso. Quer chamemos existência de accessorium ou de prius eterno, ela jamais poderá ser provada. Tomemos o tempo que for preciso; nós não temos assim nenhum motivo para nos apressarmos como aqueles que, preocupados consigo mesmos, ou com o deus, ou com alguma outra coisa, têm de apressar-se para ter provado que tal coisa existe. Nesse caso pode, de fato, haver razão para a pressa, especialmente quando o envolvido se dá conta sinceramente do risco de que ele mesmo ou aquilo que está em questão não exista antes que ele o tenha provado, e não cultive secreta mente a ideia de que aquilo no fundo existe, sim, quer ele o prove quer não. Caso alguém quisesse, a partir dos feitos de Napoleão, provar a existência de Napoleão, não seria este um procedimento sumamente estranho? Porque, se é verdade que a sua existência explica bem os seus feitos, os seus feitos não podem provar a sua existência, a menos que eu antes já tenha compreendido a palavra: "sua", de tal maneira que com ela já pressupus que ele existe. Contudo, Napoleão é apenas aquele indivíduo, e consequentemente não há nenhuma relação absoluta entre ele e seus feitos; de modo que outra pessoa bem poderia ter realizado os mesmos feitos. Talvez seja essa a razão pela qual eu não possa deduzir a existência a partir dos feitos. Se chamo a esses feitos "os feitos de Napoleão", a prova se torna supérflua, pois de antemão já o terei nomeado; se o ignoro, jamais conseguirei provar, a partir dos feitos, que eles são de Napoleão, mas apenas provar (de modo puramente ideal) que tais feitos são os de um grande general etc. Contudo, entre o deus e suas obras há uma relação absoluta; Deus não é um nome, mas um conceito, talvez isso se deva a que sua essentia involvit existentiam. (Assim Espinosa, que, aprofundando-se no conceito de Deus, procura derivar daí o ser por meio do pensamento, porém, bem entendido, não como uma característica contingente, mas como determinação essencial. Isto é o que há de profundo em Espinosa, mas examinemos como é que ele procede. Em Principia Philosophiae Cartesianae, Pars I, Propositio VII, Lemma I, diz ele: "quo res sua natura perfectior est, eo majorem existentia et magis necessariam involvit; et contra, quo magis necessariam existentiam res sua natura involvit, eo perfectior". Então, quanto mais perfeito algo é, mais ser ele tem; quanto mais ser ele tem, mais perfeito é. Isto, entretanto, é uma tautologia, o que fica ainda mais claro numa nota, "nota II": quod hic non loquimur de pulchritudine et allis perfectionibus, quas homines ex superstitione et ignorantia perfectiones vocare voluerunt. Sed per periectiotietn intelligo tantum realitatem sive esse. Ele explica pertectio por realitas, esse; de modo que quanto mais perfeito algo é, mais ele é; porém, sua perfeição consiste em ter mais esse, isto quer dizer então que, quanto mais algo é, tanto mais é. Isto quanto à tautologia, mas agora, vamos adiante. O que está faltando aqui é uma distinção entre ser de fato e ser ideal. O uso, em si e por si nada claro, de se falar em mais ou menos ser, e consequentemente em graus de realidade ou do ser, torna-se ainda mais confuso quando aquela distinção acima não é feita - dito em bom dinamarquês: quando Espinosa fala profundamente porém não pergunta primeiro pela dificuldade. Em relação ao ser fatual, não tem nenhum sentido falar de mais ou menos ser. Uma mosca, se ela é, tem tanto ser quanto o deus; a observação boba que eu aqui escrevo tem, no que toca ao ser de fato, tanto ser quanto a profundeza de Espinosa, pois, quanto ao ser de fato, vale a dialética de Hamlet: ser ou não ser. O ser de fato é totalmente indiferente à diversidade de toda e qualquer definição essencial, e tudo que existe participa do ser sem ciúme mesquinho, e participa no mesmo grau. Idealmente, o caso é bem diferente, isto é totalmente certo. Mas no momento em que eu falo de ser no sentido ideal, não mais falo do ser, mas da essência. A idealidade suprema tem o necessário, por isso é. Mas este ser é sua essência, razão pela qual ele não pode justamente entrar dialeticamente nas determinações do ser de fato, porque ele é; nem se pode atribuir-lhe mais ou menos ser em relação a outras coisas. Isto se exprimiu outrora, embora de modo algo imperfeito, dizendo-se que se Deus é possível, ele é eo ipso necessário (Leibniz). O princípio de Espinosa está, portanto, totalmente correto, e a tautologia está em ordem; mas também é certo que ele se esquivou completamente da dificuldade; pois a dificuldade consiste em chegar a apreender o ser de fato, e introduzir dialeticamente a idealidade de Deus na esfera do ser de fato). As obras de Deus, então, só o deus pode realizá-las. Corretíssimo, mas quais são, afinal, as obras do deus? As obras a partir das quais eu quero provar sua existência não existem, de jeito nenhum, de modo imediato. Ou acaso se encontram visivelmente diante de nosso nariz a sabedoria na natureza, a bondade, ou a sabedoria no governo do mundo? Não nos deparamos aqui com a mais terrível das dúvidas religiosas, e não é impossível liquidar todas essas dúvidas religiosas? Mas, a partir de tal estado de coisas, não tentarei provar a existência de Deus, e mesmo se eu começasse jamais chegaria ao fim, e, além disso, teria que viver constantemente in suspenso, temendo que de repente alguma coisa tão terrível acontecesse que viesse a demolir minha pequena prova. De quais obras, então, proponho-me derivar a prova? Das obras contempladas idealmente, isto é, tal como elas não se revelam imediatamente. Mas neste caso não é a partir das obras que construo a prova; eu simplesmente desenvolvo a idealidade que já havia pressuposto; e por causa de minha confiança nisso, ouso desafiar todas as objeções, até mesmo aquelas que ainda não foram feitas. No começo de minha prova eu já pressuponho a idealidade, e pressuponho que terei sucesso em levá-la até o fim; mas o que é isso senão pressupor que o deus existe e que é confiando nele que começo? E como é então que a existência do deus emerge da prova? Será que isto se dá assim tão simplesmente? Por acaso vale aqui o mesmo que com aqueles "bonecos cartesianos"? Logo que eu largo o "joão-teimoso", ele volta à sua posição sobre a bola de chumbo. Contanto que eu o largue: é preciso portanto largá-lo! Assim também ocorre com a prova; enquanto eu me agarro à demonstração (quer dizer, enquanto eu me obstino em provar) a existência não aparece, se não por outro motivo, então talvez porque tento prová-la, mas desde que a largo, a existência aparece. Porém, o ato de largá-la representa, afinal de contas, algo. Sim, é "meine Zuthat" (minha contribuição); é portanto forçoso não esquecer este pequeno instante, por mais curto que ele seja: e aliás ele não tem necessidade de ser longo, dado que é um salto. Por menor que seja este momento, mesmo que reduzido ao "agora mesmo", este "agora mesmo" deve ser levado em conta. Caso alguém já tenha se esquecido disso, então eu quero, nem que seja para mostrar que o momento existe de fato, aproveitar um momento para contar uma pequena anedota. Crisipo fazia experimentos para, interceptando o movimento de vaivém de um sorites, detectar o surgimento da qualidade. Mas não entrava na cabeça de Carnéades quando é que surgia realmente a qualidade. Então Crisipo lhe disse que se poderia interromper a contagem por um instante, que então, que então - então daria para compreender isso melhor. Mas Carnéades respondeu: "Por favor, por mim, tu não precisas te constranger, tu podes não apenas interromper, mas até te deitar e dormir, que isto tampouco ajudará; quando tu despertares, nós começaremos de novo por onde tiveres parado". E assim são as coisas; não adianta querer dormir para se afastar de algo e nem querer dormir para se aproximar de algo. Aquele então que quer provar a existência de Deus (num outro sentido que não o de aclarar-se o conceito de Deus, e sem a reservatio finalis que já indicamos, de que a existência, mesmo a partir da prova, aparece graças a um salto) demonstra, na falta disso, uma proposição completamente diferente, algo que talvez nem precisasse de uma demonstração, e em todo caso nunca mais do que isso. Pois o insensato diz em seu coração que não há nenhum Deus, mas aquele que disser em seu coração, ou diante dos homens: "esperem um pouquinho, que eu vou provar que ele existe", oh, mas que sábio excepcional ele não será!(Que magnífico tema para o cômico delirante!) Ora, se ele não estiver, no instante em que começa a sua demonstração, numa perfeita indecisão entre a existência e a não existência do deus, é claro que não a demonstrará; e se ele colocar esta indecisão logo de entrada, nem sequer chegará a começar, em parte por receio de não ter sucesso, já que talvez o deus não exista, e em parte por não ter por onde começar. - Na Antiguidade, problemas deste tipo nem se colocariam. Sócrates, pelo menos, que aliás, como dizem, teria exposto a prova físico-teleológica da existência de Deus, não procedeu desta maneira. Ele constantemente pressupõe que o deus existe e com esta pressuposição busca entretecer a natureza com ideia de finalidade. Caso se lhe tivesse perguntado por que se comportava desta maneira, teria sem dúvida explicado que não tinha coragem suficiente para se lançar numa exploração tão temerária sem pelo menos ter assegurado a retaguarda sobre o fato da existência do deus. Apoiado sobre a palavra do deus ele deita por assim dizer uma rede para apreender a ideia da finalidade: pois não faltam à própria natureza figuras aterradoras e subterfúgios para confundir. A paixão paradoxal da inteligência choca-se portanto constantemente contra este desconhecido, que decerto existe, mas que também é desconhecido, e nesta medida inexistente. A inteligência não pode ir mais longe: mas o seu sentido do paradoxo leva-a a aproximar-se do obstáculo e a ocupar-se dele; porque, pretender exprimir a sua relação com ele negando a existência daquele desconhecido, não dá certo, visto que o enunciado desta negação envolve precisamente uma relação. Mas o que é então este desconhecido (pois dizer que ele é o deus significa simplesmente que ele é para nós o desconhecido)? Enunciando-se sobre ele que ele é o desconhecido, dado que não se pode conhecê-lo, e que, se mesmo assim se pudesse conhecê-lo, não se poderia enunciá-lo, a paixão não se dará por satisfeita, embora ela tenha captado corretamente o desconhecido como limite: mas o limite é justamente o tormento da paixão, ainda que ao mesmo tempo seu incitamento. E no entanto ela não consegue ir mais adiante, quer ela arrisque uma saída via negationis, quer via eminentiae. O que é então o desconhecido? É o limite, ao qual se chega constantemente, e enquanto tal, quando substituímos categoria do movimento pela categoria do repouso, é o que difere, o absolutamente diferente. Mas o diferente absoluto é aquele para o qual não se tem signo distintivo. Definido como o Absolutamente-Diferente, ele parece estar a ponto de se revelar; mas não é assim; pois a diferença absoluta, a inteligência não pode nem pensar; pois esta não pode negar-se de uma maneira absoluta, porém ela usa a si mesma para tanto, e portanto pensa em si mesma a diferença que ela pensa por si mesma; e absolutamente não pode passar por cima de si mesma, e portanto só pensa aquela elevação para além de si mesma que ela pensa por si mesma. Na medida então que o desconhecido (o deus) não é apenas limite, a ideia única do diferente vem a emaranhar-se nas múltiplas ideias do diferente. O desconhecido encontra-se assim numa Diáspora, e a inteligência tem uma cômoda escolha entre aquilo que lhe está à mão e aquilo que sua imaginação pode inventar (o monstruoso, o ridículo etc. etc.). Mas esta diferença não se deixa captar. Cada vez que isto acontece, trata-se, no fundo, de uma arbitrariedade, e nas profundezas do temor a Deus espreita loucamente a caprichosa arbitrariedade, que sabe que foi ela mesma quem produziu o deus. Assim, se a diferença não se deixa apreender, por falta de sinal distintivo, ocorre com a diferença e a igualdade como com todos estes contrários dialéticos: são idênticos. A diferença, que se agarra à inteligência, perturba-a de tal maneira que esta não se reconhece mais e, bem consequentemente, confunde-se com a diferença. Com respeito a invenções fantásticas, o paganismo foi bastante fecundo; mas no que concerne à última suposição que adotamos, àquela autoironia da inteligência, vou apenas salientá-la em alguns traços, sem levar em consideração se ela ocorreu historicamente ou não. Existe então um homem individual, ele tem a mesma aparência que os demais, cresce como todos os demais, casa-se, tem um ganha-pão, preocupa-se com os recursos para o amanhã, como compete a cada homem (já que pode ser muito bonito viver como as aves do céu, mas isto não é lícito, e pode acabar da maneira mais triste, ou porque ele morrerá de fome, caso persista, ou porque teria de viver às custas dos outros). Este homem é ao mesmo tempo o deus. De onde o sei? É claro, eu não posso sabê-lo; porque neste caso eu precisaria conhecer o deus e a diferença; e eu não conheço a diferença, dado que a inteligência tornou-a idêntica àquilo de que se diferencia. Desse modo, Deus se tornou o mais perigoso dos impostores, pelo fato de que a inteligência se enganou a si mesma. A inteligência recebeu o deus tão próximo quanto possível e contudo igualmente distante. Mas agora alguém dirá: "És um caçador de quimeras, disso estou convencido, mas decerto não acreditas, de modo algum, que me passe pela cabeça preocupar-me com tal quimera, tão estranha ou tão ridícula que jamais terá ocorrido a alguém, e sobretudo tão absurda que seria necessário esvaziar minha consciência de todo o seu conteúdo para achá-la". Com toda segurança é isto o que tu tens de fazer; mas será justificável querer conservar todos os pressupostos que tens na consciência e ainda querer achar que pensas sobre a tua consciência sem pressupostos? Mas tu não negas decerto a consequência do que acabo de expor: que a inteligência, ao definir o desconhecido como o diferente, acaba extraviando-se e confunde a diferença com a semelhança? Mas disso parece resultar outra coisa: que o homem, para verdadeiramente chegar a saber algo do desconhecido (do deus), deve primeiro vir a saber que este é diferente dele, absolutamente diferente dele. Por si mesma, a inteligência não pode chegar a sabê-lo (dado que isso seria, como já vimos, uma autocontradição). Mas se deve vir a sabê-lo, será necessário que receba este saber do deus, e se o recebe não pode, por sua vez, compreendê-lo e, portanto, não pode chegar a sabê-lo, pois como compreender o Absolutamente-Diferente? Se isso não ficar claro de imediato, resultá-lo-á à luz das consequências, porque se o deus é absolutamente diferente do homem, o homem é absolutamente diferente do deus, mas como a inteligência poderia compreender tal coisa? Estamos aqui aparentemente diante de um paradoxo. Apenas para saber que o deus é o diferente, já o homem necessita do deus, e vem então a saber que o deus é absolutamente diferente dele. Mas se o deus deve ser absolutamente diferente dele, isto não pode ter seu fundamento naquilo que o homem deve a deus (pois sob este aspecto ele até lhe está aparentado), mas sim no que deve a si mesmo ou naquilo de que se tenha feito culpado. Em que consiste, pois, a diferença? Sim, em quê senão no pecado, já que da diferença, da absoluta, é o homem mesmo o culpado? E o que exprimíamos antes ao dizer que o homem é a não verdade, e o é por sua própria culpa, e nós concordávamos, brincando, mas com seriedade, que seria demasiado exigir do homem que descobrisse isso por si mesmo. Agora acabamos de chegar ao mesmo resultado. O conhecedor dos homens ficou quase desamparado em relação a si mesmo, ao chocar-se contra a diferença; logo ele já não sabia se era um monstro mais estranho que Typhon ou se tinha algo de divino em si. O que é que lhe faltava então? A consciência do pecado, que nem ele podia ensinar a outros e nem os outros a ele, e que só o deus poderia ensinar-lhe - se quisesse ser mestre. Mas é claro que queria fazê-lo, como o pintamos no poema, e queria para tanto tornar-se igual ao indivíduo a fim de que este pudesse compreendê-lo de todo. Deste modo, o paradoxo torna-se ainda mais terrível, ou o mesmo paradoxo tem essa dupla natureza pela qual se mostra como o absoluto: negativa, ao colocar em descoberto a diferença absoluta do pecado; positiva, ao querer abolir esta diferença absoluta na igualdade absoluta. Agora, tal paradoxo deixa-se pensar? Não queremos nos apressar, e quando o debate gira em torno da solução para uma questão, aí não se disputa como nas pistas de corrida, e não é a velocidade, mas sim a correção, o que alcança a vitória. A inteligência decerto não o pensa; não pode sequer ocorrer-lhe tal ideia, e quando o paradoxo é anunciado, ela não pode compreendê-lo, e apenas sente que ele será a sua perdição. A este respeito, a inteligência tem bastante que objetar-lhe, e contudo, por outro lado, a inteligência quer mesmo, em sua paixão paradoxal, a sua própria perdição. Mas esta perdição da inteligência é também o que quer o paradoxo, e dessa maneira estão de acordo; mas este acordo só está presente no instante da paixão. Consideremos a relação do amor, ainda que esta seja uma imagem imperfeita. O amor a si mesmo está no fundamento do amor, mas sua paixão paradoxal quer, no seu ápice, precisamente sua própria perdição. É também isto o que quer o amor, e assim estas duas potências se entendem na paixão do instante e esta paixão é justamente o amor. Por que um amante haveria de ser incapaz de pensá-lo, mesmo que aquele que no amor a si mesmo se debate contra o amor não consiga e nem sequer se atreva a concebê-lo, porque isso é a sua perdição? É assim que ocorre com a paixão do amor. Sem dúvida, o amor a si próprio foi ao fundo; mas, não obstante, ele não foi aniquilado, e sim convertido em prisioneiro, e constitui os spolia opima (espólios abundantes) do amor, porém pode outra vez voltar à vida, e isso se torna a provação do amor. O mesmo sucede com a relação entre o paradoxo e a inteligência, só que esta paixão tem outro nome, ou melhor, só que ainda temos de tratar de encontrar-lhe um nome. Apêndice O escândalo provocado pelo paradoxo Uma ilusão acústica Se o paradoxo e a inteligência toparem um com o outro na compreensão mútua de sua diferença, este encontro será feliz, como na mútua compreensão do amor, feliz nesta paixão a que ainda não demos um nome e só mais tarde vamos dar. Se o encontro não se dá na compreensão, então a relação é infeliz e este, se me permitem chamá-lo assim, amor infeliz da inteligência (o qual, notemos bem, é como o amor infeliz que tem seu fundamento no amor de si mesmo mal compreendido; a analogia não alcança mais longe, porque o poder do acaso aqui nada consegue), poderíamos caracterizá-lo mais precisamente como: o escândalo. Ora, todo escândalo, em seu fundamento mais profundo, é padecente. (A língua dinamarquesa chama corretamente Affekten (o afeto) de SindsUdelse (afeição mental [Lidelse = paixão, padecimento]), enquanto que nós quando empregamos a palavra Affekt somos propensos a pensar mais imediatamente na audácia convulsiva que impressiona, e com isso esquecemos que se trata de um padecimento. Assim, por exemplo, orgulho, obstinação etc.). É o mesmo que se dá com este amor infeliz de que agora falamos; ainda quando o amor a si mesmo (e não parece já uma contradição que o amor de si mesmo seja um padecer?) se anuncia na façanha mais temerária, num ato surpreendente, ele é padecente, ele está ferido, e é a dor dessa ferida que lhe dá essa ilusória expressão de força, que se assemelha ao agir e facilmente pode enganar, especialmente porque o que o amor de si próprio mais esconde é isso. Ainda quando arrase o objeto do amor; ainda quando se discipline, atormentando-se, para uma endurecida indiferença, e se martirize para mostrar a indiferença; ainda que, ainda que chegue a entregar-se com triunfante leviandade à alegria de ter sido bem-sucedido em sua simulação (esta forma é a mais enganadora de todas), ainda aí ele está padecendo. E o mesmo se dá com o escândalo; ele pode expressar-se do jeito que quiser, continua padecente, mesmo quando festeja com maligna satisfação o triunfo da insensibilidade espiritual. Quer o escandalizado fique aí sentado esmagado, e quase como um mendigo crave os olhos no paradoxo, petrificado em seu sofrimento, quer ele se arme com o escárnio e alveje com os dardos da pilhéria, lançando-os como que à distância - ele está padecendo, e não à distância. Quer o escândalo chegue e arranque do escandalizado sua última migalha de consolo e alegria, quer o fortaleça, o escândalo é, mesmo assim, um padecimento; ele lutou contra o mais forte, e o estado de suas forças corresponde, no aspecto corporal, ao de um lutador que teve a espinha dorsal quebrada, o que, diga-se de passagem, proporciona uma elasticidade toda especial. Entretanto, podemos, se quisermos, distinguir entre o escândalo padecente e o escândalo agente, porém sem esquecer que o escândalo padecente sempre é agente o bastante para não se deixar anular de todo (pois escândalo é sempre uma ação e não um acontecimento), e que o escândalo agente é sempre tão fraco que não consegue livrar-se da cruz em que está cravado, nem arrancar-se a flecha que o feriu. (O uso do idioma demonstra também que todo escândalo é padecente. A gente diz "estar escandalizado", o que quase só exprime o estado, mas emprega-se em sentido idêntico at tage Forargelse [literalmente: "tomar escândalo"] (identidade do agente e do padecente). Em grego se diz skandalídsesthai. Esta palavra vem de skándalon (um choque) e significa portanto tomar choque. Aqui se mostra claramente o rumo; não é o escândalo o que choca, mas sim o escândalo é o que recebe o choque, portanto passivo, ainda que tão ativo que é ele mesmo que o toma. Por isso, não foi a inteligência mesma que inventou o escândalo; pois o choque paradoxal que a inteligência isolada desenvolve não descobre nem o paradoxo nem o escândalo). Mas precisamente porque o escândalo é assim padecente, a descoberta não pertence, se quisermos nos expressar assim, à inteligência, porém ao paradoxo; pois como a verdade é index sui et falsi (critério dela mesma e do falso), o paradoxo também o é, e o escândalo não se compreende a si mesmo (Nesse sentido justifica-se o princípio socrático de que todo pecado é ignorância; o pecado não se compreende na verdade; mas disso não se segue que ele não possa por certo querer-se na não verdade), mas é compreendido pelo paradoxo. Portanto, enquanto o escândalo, como quer que ele se exprima, parece soar de outro lugar, sim, do lado oposto, é o paradoxo o que ressoa através dele, e isso constitui certamente uma ilusão acústica. Mas se o paradoxo é index e judex sui et falsi (critério e juiz de si mesmo e do falso), então o escândalo pode ser tomado como uma prova indireta da correção do paradoxo; pois o escândalo é o cálculo errôneo, é aquela consequência da inverdade, com que o paradoxo empurra para longe de si. As palavras do escandalizado não provêm dele próprio, mas vêm do paradoxo, assim como aquele que faz caricaturas de alguém não inventa nada, mas meramente copia o outro às avessas. Quanto mais profunda é a expressão do paradoxo na paixão (agindo ou padecendo), tanto mais se mostra o quanto o escândalo deve ao paradoxo. a escândalo não foi portanto inventado pela inteligência, longe disso; pois senão a inteligência também precisaria ter podido inventar o paradoxo; não, com o paradoxo o escândalo entra na existência, ele vem a ser; aqui temos de novo o instante, ao redor do qual tudo gira. Recapitulemos. Se não admitirmos o instante, recairemos no socrático: mas foi precisamente dele que partimos, de modo a descobrir algo. Uma vez estabelecido o instante, existe o paradoxo; pois na sua forma mais abreviada pode-se denominar o paradoxo o instante: com o instante o discípulo está na não verdade; o homem, que conhecia a si mesmo, agora torna-se indeciso a respeito de si mesmo, e recebe, em vez do conhecimento de si, a consciência do pecado, e assim por diante; pois tão logo pomos o instante, tudo segue-se daí. Do ponto de vista psicológico, o escândalo irá matizar-se numa extrema diversidade entre as determinações do mais ativo e do mais passivo. Introduzirmo-nos nessa descrição não constitui o interesse de nossa investigação; porém é importante, isto sim, manter em vista que todo escândalo constitui essencialmente uma má compreensão do instante, porque, como sabemos, ele é o escândalo frente ao paradoxo, e o paradoxo por sua vez é o instante. A dialética do instante não é difícil. Na perspectiva socrática, não se pode vê-lo nem discerni-lo; ele não existe, não foi e não virá; é por isso, aliás, que o discípulo mesmo é a verdade e o instante da ocasião não passa de uma brincadeira, assim como uma sobrecapa que não faz parte essencialmente do livro; e o instante da decisão é uma loucura; pois, se a decisão tem de ser posta, então (conforme acima) o discípulo passa a ser a inverdade, porém é precisamente isto o que torna necessário um começo no instante. A expressão do escândalo é que o instante é a loucura, que o paradoxo é a loucura; e o que é a pretensão do paradoxo: que a inteligência é o absurdo, ressoa então, devido a um eco, como vindo da parte do escândalo. Na outra alternativa, o instante precisa sempre entrar em cena, a gente se reporta a ele, e o instante deve ser "aquilo que importa"; porém, depois que o paradoxo converteu a inteligência em absurdo, o que a inteligência considera importante já não é critério algum. O escândalo fica, pois, fora do paradoxo e o motivo é: quia absurdum. Contudo, não foi a inteligência quem descobriu isso, já que, pelo contrário, foi o paradoxo quem o descobriu, e que agora recebe o testemunho do escândalo. A inteligência afirma que o paradoxo é o absurdo, porém isto é apenas uma caricatura, pois afinal o paradoxo é o paradoxo quia absurdum. O escândalo mantém-se exterior ao paradoxo e se agarra à verossimilhança, enquanto que o paradoxo é o que há de mais inverossímil. Mais uma vez, não é a inteligência que o descobre, já que ela fica só falando na linguagem do paradoxo, por estranho que pareça; pois o paradoxo mesmo diz: "as comédias, os romances, as mentiras precisam ser verossímeis", mas eu, como poderia sê-lo? O escândalo permanece exterior ao paradoxo: que há de prodigioso nisso se o paradoxo é o prodígio? Eis o que a inteligência não descobriu, pelo contrário, é o paradoxo que lhe indica seu lugar na cátedra da admiração, e lhe replica: Ora, de que te admiras? É precisamente como tu dizes e o admirável é que tu crês que isso seja uma objeção; porém a verdade na boca de um hipócrita me é mais cara do que ouvi-la de um anjo ou um apóstolo. Quando a inteligência se ufana do próprio esplendor, comparando-se com o paradoxo, tão reles e desprezível, não foi ela quem inventou isso, senão que o paradoxo mesmo é o inventor, que cede à inteligência todo o esplendor, inclusive os pecados esplêndidos (vitia splendida). Quando a inteligência quer compadecer-se do paradoxo e ajudá-lo a encontrar a explicação, decerto o paradoxo não se sente bem aí, mas considera natural que a inteligência o faça; pois acaso não é para isso que existem nossos filósofos, para tornar triviais e cotidianas as coisas sobrenaturais? Quando a inteligência não consegue meter o paradoxo na cabeça, não é ela quem o inventou, mas o paradoxo mesmo, que seria bastante paradoxal para não ter escrúpulos de dizer que a inteligência é tão estúpida, que diante de uma mesma coisa no máximo diz "sim" e "não", o que não é nenhuma boa teologia. As mesmas coisas ocorrem com o escândalo. Tudo o que ele diz do paradoxo, foi dele que o aprendeu, ainda quando, aproveitando-se de uma ilusão acústica, pretenda havê-lo inventado ele mesmo. Porém, quem sabe, alguém dirá: "Estás ficando realmente maçante; pois agora temos outra vez a mesma história: todas essas expressões que colocas na boca do paradoxo simplesmente não te pertencem". "E como elas poderiam pertencer-me, se são do paradoxo?" "Deixa de sofismar. Bem entendes o que quero dizer, estas expressões não te pertencem, mas são bem conhecidas e todo o mundo sabe de quem são". "Oh, meu caro, isso que dizes não me aflige em nada, como talvez penses, senão que pelo contrário alegra-me extraordinariamente; pois eu confesso que me arrepiava quando as escrevia, já não me reconhecia mais a mim mesmo, ao imaginar que eu, que de resto sou tímido e medroso, pudesse dizer algo assim. Porém, se estas expressões não são minhas, queres dizer-me de quem são?" "Nada mais fácil. A primeira é de Tertuliano, a segunda de Hamann, a terceira de Hamann, a quarta de Lactâncio e repetida frequentemente, a quinta de Shakespeare numa comédia chamada Bem está o que bem termina, Ato II, Cena III; a sexta de Lutero, a sétima é uma réplica do Rei Lear. Bem vês que estou a par das coisas e que posso agarrar-te em flagrante". - "Oh, sim, estou vendo; porém queres me dizer se toda essa gente não falou de uma relação entre o paradoxo e o escândalo, e não queres anotar que eles afinal não eram os escandalizados, mas justamente aqueles que se mantinham no paradoxo, e contudo falavam como se o fossem, e o escândalo não poderia encontrar uma expressão mais significativa? Não é estranho que o paradoxo, deste modo, tire o pão da boca - por assim dizer - do escândalo, e o transforme numa arte assim sem pão, e que não recebe nenhuma recompensa por seus esforços, mas que é tão excêntrica como se, por exemplo, em uma discussão de tese, não refutasse o autor, mas por distração o defendesse? Não te parece que as coisas são assim? Mas o escândalo tem pelo menos um mérito: o de fazer ver mais nitidamente a diferença; pois de fato, naquela feliz paixão, à qual ainda não demos nome, a diferença está num bom entendimento com a inteligência. A diferença é necessária para que se unam num terceiro termo; porém a diferença está precisamente em que a inteligência renuncia a si mesma e que o paradoxo se abandona (halb zog sie hin, halb sank er hin - Em parte o atraía, em parte o deixava cair), e a compreensão está nesta feliz paixão que por certo receberá um nome, ainda que este ponto seja o menos importante. Que importa que minha felicidade tenha ou não um nome, se eu sou feliz? Mais eu não exijo". Capítulo IV A situação do discípulo contemporâneo Assim, o deus apresentou-se então como mestre (pois agora prosseguimos nossa ficção poética); revestiu-se da forma do servo, pois enviar outro em seu lugar, alguém de sua maior confiança, não poderia satisfazê-lo, assim como não satisfaria àquele nobre rei a possibilidade de enviar em seu lugar o homem mais confiável de seu reino. Contudo, o deus tinha ao mesmo tempo mais outro motivo; pois de homem a homem o que há de mais alto e mais verdadeiro é certamente a relação socrática. Se o deus, então, não viesse pessoalmente, tudo permaneceria socrático, não obteríamos o instante e seríamos privados do paradoxo. Entretanto, a forma de servo tomada pelo deus não era fingida, mas real, não era um corpo parastático, mas real, e desde o momento em que pela decisão todo-poderosa de seu amor todo-poderoso o deus tornou-se servo, ficou, por assim dizer, ele mesmo amarrado à sua decisão, e agora (para falarmos insensatamente), querendo ou não, ele tem de permanecer como tal. Não pode, pois, delatar-se; não tem, como aquele nobre rei, a possibilidade de mostrar, de repente, que continua sendo o rei, o que, porém, não é uma perfeição no caso do rei (reservar esta possibilidade), mas apenas mostra sua impotência e a impotência de sua decisão: que não consegue tornar-se realmente o que quereria ser. Entretanto, embora não possa enviar alguém em seu lugar, bem que o deus poderia mandar na frente alguém que conseguisse despertar a atenção do discípulo. Este precursor não pode, naturalmente, conhecer nada daquilo que o deus quer ensinar; pois a presença do deus não é, como se sabe, algo contingente em relação a seu ensinamento, mas é o essencial, e a presença do deus sob a forma humana, sim, sob a forma humilde de um servo, é justamente a doutrina, e o deus deve dar, ele mesmo, a condição (cf. capítulo 1.) de outra maneira o discípulo não poderá compreender coisa alguma. Graças a tal precursor o discípulo poderá, então, tornar-se atento, mas nada mais do que isso. No entanto, o deus não assumiu a forma de um servo para zombar dos homens; sua intenção não pode ser a de andar assim pelo mundo sem que um único homem o saiba. Quer, pois, fazer que compreendam alguma coisa a respeito dele, embora nenhuma tentativa acomodatícia de tornar compreensível ajude de modo essencial àquele que não recebe a condição, razão por que tais tentativas só lhe são arrancadas, no fundo, a contragosto, e tanto podem afastar o discípulo quanto aproximá-la. Ele se diminuiu a si mesmo e assumiu para si a forma de um servo, mas não veio evidentemente para viver como um servo ao serviço de algum homem individual, ocupando-se de suas tarefas, sem dar a conhecer quem ele era, nem ao seu senhor nem aos outros servos; tal ira nós não ousaríamos atribuir ao deus, evidentemente. O fato de que estava na forma de um servo só quer dizer que ele era um homem humilde, o homem humilde que não se distinguia da multidão dos homens nem por seus trajes delicados nem por qualquer outra vantagem terrestre, que não se podia distingui-lo dos outros homens, nem mesmo aos olhos dessas incontáveis legiões de anjos que deixou atrás de si quando se reduziu a esta humildade. Mas embora fosse o homem humilde, suas preocupações não serão como as que os homens geralmente têm. Seguirá decerto o seu caminho, sem se preocupar com a troca e a distribuição dos bens da terra, como aquele que nada possui e nada deseja possuir, sem se preocupar com sua alimentação, assim como as aves do céu, despreocupado da casa e do lar, assim como aquele que não tem ninho nem pousada, e nem os procura, despreocupado de enterrar os mortos, sem se voltar para nada daquilo que geralmente atrai a atenção dos homens, sem ligação com nenhuma mulher, sem estar preso aos seus encantos, querendo agradá-la, mas procurando apenas o amor do discípulo. Tudo isto parece belo, sem dúvida, mas será também conveniente? Não se eleva ele, com isso, acima do que ordinariamente se tem como válido? Pois será correto que um homem viva tão despreocupado como as aves do céu, sem nem mesmo fazer como elas, voando daqui para ali para procurar o que comer, já que deveria, não obstante, pensar no dia de amanhã? Imaginar poeticamente o deus de outra maneira, nós não podemos, mas o que demonstra afinal um poema? Será permitido vagabundear assim tão inconstantemente e, quando a noite chega, tomar um quarto não importa onde? A questão é saber se a um homem é lícito agir desta maneira, pois caso contrário o deus não teria realizado algo humano. Sim, se ele tiver capacidade para isto, ouse também fazê-lo; se pode, deste modo, perder-se no serviço do espírito ao ponto de jamais se lembrar de beber e de comer, se está seguro de que a falta disso não o distrairá, que a necessidade não prejudicará sua constituição e não o fará lamentar-se por não ter compreendido as lições pueris antes de querer compreender mais, sim, então ele ousará também agir desta maneira e sua grandeza será mais magnífica que a tranquila confiança do lírio. Já este sublime absorver-se em sua obra fará o mestre atrair sobre si a atenção da multidão, no seio da qual se encontrará decerto o discípulo, que provavelmente pertencerá, ele também, por sua vez, à classe mais modesta do povo; pois os sábios e os eruditos quererão decerto propor-lhe antes questões sutis, convidá-lo para colóquios ou submetê-lo a um exame, para então assegurar-lhe uma posição estável e um ganha-pão. Deixemos agora o deus circular pela cidade onde ele apareceu (é indiferente qual seja a cidade); só o anúncio de sua doutrina constitui sua única necessidade vital, é para ele alimento e bebida; ensinar aos homens é seu trabalho, e o seu repouso é ocupar-se dos discípulos; não tem amigos, nem parentes, mas o discípulo é seu irmão e sua irmã. E fácil então de explicar que logo se tece um rumor, que cativa em suas malhas a multidão curiosa. Por toda parte onde o mestre se mostra, a multidão se aglomera ao redor dele, curiosa de ver e curiosa de ouvir, todos desejando poder contar aos outros que o viram e o ouviram. Esta multidão curiosa, será ela o discípulo? De maneira alguma. Ou, quando um indivíduo dos mestres encarregados do ensino naquela cidade vem em segredo procurar o deus para medir sua força no combate de uma discussão, será este o discípulo? De maneira alguma; se a multidão ou se este doutor aprende alguma coisa, então o deus é apenas, em sentido puramente socrático, a ocasião. A aparição do deus é agora a nova do dia, na praça do mercado, nas casas, na reunião do conselho, no palácio do governador, é ocasião de inúmeras conversas insensatas e ociosas, talvez também ocasião de reflexões mais sérias - mas para o discípulo a nova do dia não é ocasião de nenhuma outra coisa, nem mesmo ocasião de aprofundar-se em si mesmo, com toda honestidade socrática. Não, ela é o eterno, o começo da eternidade. A novidade do dia é o começo da eternidade?! - Se o deus se prestasse a nascer num albergue, deixasse envolver-se de trapos, e dormisse numa manjedoura, seria isto uma contradição maior do que a novidade do dia ser o cueiro do eterno, e mesmo, como no caso presente, sua figura real, de sorte que o instante seja realmente a decisão da eternidade! Se o deus não desse também a condição para compreender isso, como poderia ocorrer ao discípulo tal ideia? Mas, que o próprio deus dá junto a condição, isso já expusemos anteriormente como a consequência do instante, e mostramos que o instante é o paradoxo, e que sem ele nós não ultrapassamos a Sócrates, mas sim voltamos a ele. Queremos aqui, em seguida, cuidar de deixar bem claro que mesmo para o discípulo contemporâneo toda a questão é a de um ponto de partida histórico; pois se não cuidarmos desde já, a dificuldade se tornará insuperável mais tarde (no capítulo V), quando se tratar da situação daquele discípulo que chamamos de discípulo de segunda mão. Um ponto de partida histórico para sua consciência eterna, também o contemporâneo recebe; pois ele é, com efeito, contemporâneo de algo histórico que não quer ser simplesmente o instante da ocasião, e este fato histórico quer ter para ele outro interesse além do meramente histórico, quer condicionar sua felicidade eterna, sim (invertamos as consequências), se não for assim, este mestre não será o deus, mas apenas um Sócrates que, não se comportando como Sócrates, nem chega a ser um Sócrates. Mas de que modo o discípulo chega a entender-se com este paradoxo? Pois não estamos dizendo que deva compreendê-lo, mas somente dar-se conta de que está diante do paradoxo. Já mostramos como isso acontece. Acontece quando a inteligência e o paradoxo se chocam de maneira feliz no instante, quando a inteligência se põe de lado e o paradoxo se entrega; e o terceiro, no qual isto se opera (pois isto não se produz nem pela inteligência, que está despedida, e muito menos pelo paradoxo, que se abandona - isto opera-se, pois, em algo), é aquela paixão à qual agora queremos dar um nome, se bem que não seja precisamente seu nome o que importa. Nós queremos chamá-la: fé. Esta paixão deve ser, pois, aquela condição mencionada e que o paradoxo traz consigo. Não esqueçamos que, se o paradoxo não dá ao mesmo tempo a condição, então o discípulo já está na posse da condição. Se está, porém, na posse da condição, então ele é eo ipso a verdade, e o instante é apenas o instante da ocasião (cf. o capítulo I). Ora, para o discípulo contemporâneo é bastante fácil receber toda espécie de esclarecimento histórico. Mas não esqueçamos que no tocante ao nascimento do deus ele estará na mesma situação que o discípulo de segunda mão, de modo que, se quisermos insistir sobre a exatidão absoluta do saber histórico, só haverá uma única pessoa inteiramente informada, a saber, a mulher da qual ele quis nascer. Do ponto de vista histórico, portanto, é fácil ao discípulo contemporâneo tornar-se testemunha ocular; a infelicidade, porém, consiste em que o fato de conhecer uma circunstância histórica, sim, até mesmo conhecer todas as circunstâncias históricas com a certeza da testemunha ocular, de maneira alguma transforma uma testemunha ocular num discípulo, o que aliás se pode ver pelo fato de que para ele este saber não significa nada mais do que algo histórico. Mostra-se aqui de imediato que o histórico, no sentido mais concreto, é indiferente; podemos fazer intervir a ignorância nesta relação e deixá-la como que aniquilar historicamente, pedaço a pedaço, o histórico; desde que ainda se conserve o instante como ponto de partida do eterno, o paradoxo está a postos. Se houvesse um contemporâneo que tivesse reduzido seu sono ao mínimo para seguir este mestre, a quem seguisse de maneira mais inseparável que a do pequeno peixe que segue o tubarão, se mantivesse a seu serviço uma centena de espiões para espiar o mestre, conferenciando ele mesmo todas as noites com esses espiões, de sorte que viesse a conhecer todos os sinais particulares do mestre até o menor detalhe, soubesse o que ele tinha dito, onde estivera a cada hora do dia, porque o seu zelo o levava a considerar como importantes as coisas mais insignificantes, um tal contemporâneo seria o discípulo? De jeito nenhum. Poderia lavar suas mãos, caso alguém o acusasse de inexatidão histórica, porém nada mais do que isso. Se outro não se tivesse ocupado senão da doutrina professada na ocasião pelo mestre, se a menor palavra saída de sua boca tivesse tido para ele mais importância do que o pão de cada dia, se ele mantivesse uma centena de outros que recolhessem cada letra a fim de que nenhuma se perdesse; e se conferenciasse cuidadosamente com esses para produzir a mais confiável exposição da doutrina, teria sido por isso o discípulo? De jeito nenhum, tampouco quanto Platão era outra coisa do que discípulo de Sócrates. Se houvesse um contemporâneo que tivesse residido em países estrangeiros e só regressasse ao seu quando a este mestre não restassem mais que um ou dois dias de vida, se este contemporâneo fosse ainda impedido por negócios de ver este mestre e só chegasse no último momento, quando este estava por entregar o espírito, esta ignorância em relação ao histórico seria um obstáculo a que pudesse ser discípulo, se o instante era para ele a decisão da eternidade? Para aquele primeiro contemporâneo, aquela vida só teria sido um acontecimento histórico; para o segundo, aquele mestre teria sido a ocasião para se compreender a si mesmo e ele poderia vir a esquecer aquele mestre (cf. capítulo I); pois diante de uma compreensão eterna de si mesmo, um saber relativo à pessoa do mestre é um saber contingente e histórico, um assunto de memória, Enquanto o eterno e o histórico permanecem exteriores um ao outro, o histórico é meramente ocasião. Se, então, aquele estudioso cheio de zelo, mas que não chegou a tornar-se discípulo, devesse discursar em altos brados sobre o quanto era devedor àquele mestre, de sorte que seus louvores fossem quase intermináveis e seus douramentos quase inestimáveis, se ele se encolerizasse conosco caso procurássemos explicar-lhe que este mestre tinha sido só a ocasião, então nem seus louvores nem sua cólera seriam úteis ao nosso exame, pois ambos teriam o mesmo motivo: é que ele, sem ter nem mesmo a coragem de compreender, não quis recusar-se à louca pretensão de ir mais além. Quem quiser ficar fabulando e trombeteando como ele, apenas se iludirá a si mesmo e aos outros na medida em que se convencerá a si mesmo e aos outros de que realmente tem ideias - já que as deve a outro. Mas se bem que a cortesia, em geral, não custe nada, a dele é paga muito caro; pois seus agradecimentos entusiastas, que talvez não dispensem as lágrimas e até as provoquem nos outros, não passam de um mal-entendido: pois as ideias que um tal tipo possui, não as deve seguramente a ninguém, e sua conversa fiada ele também não deve a ninguém mais. Ai, quantos não houve que foram tão corteses a ponto de pretender serem devedores de tanto e tanto a Sócrates, e isso, não obstante não lhe devessem absolutamente nada! Pois aquele que melhor compreende Sócrates compreende justamente que não lhe deve nada. É isso o que Sócrates mais quer e é belo que o tenha podido querer. E aquele que acredita ser devedor a Sócrates de tantas coisas pode estar bastante certo de que Sócrates com alegria o dispensa de saldar sua dívida, já que ele provavelmente não sem aflição tomaria conhecimento de que havia feito presente ao interessado de um capital que este estaria aplicando com usura. Mas se, ao contrário, tudo aqui se passa de uma maneira não socrática, como aliás o admitimos, então o discípulo deve àquele mestre tudo (o que é impossível de dever a Sócrates, pois este, como se sabe, se dizia incapaz de dar à luz), e esta relação não se deixa exprimir fabulando ou trombeteando, mas somente naquela paixão feliz a que chamamos fé, cujo objeto é o paradoxo, mas o paradoxo une justamente a contradição, é a eternização do histórico e a historização da eternidade. Quem quer que compreenda de outra maneira o paradoxo pode ficar com a honra de tê-lo explicado, honra que só adquiriu por não ter querido contentar-se com compreendê-lo, Vê-se, pois, facilmente (se é que de resto se precisa demonstrar o que implica a despedida da inteligência) que fé não é um conhecimento; pois todo conhecimento é ou bem o conhecimento do eterno, que deixa excluídos o temporal e o histórico como indiferentes, ou bem o conhecimento puramente histórico; e nenhum conhecimento pode ter como objeto este absurdo, de que o eterno seja o histórico. Se eu conheço a doutrina de Espinosa, no instante em que a conheço não me ocupo com Espinosa, mas com sua doutrina, enquanto numa outra hora me ocupo historicamente com ele; o discípulo, ao contrário, ao crer se relaciona com aquele mestre, de tal maneira que ele se ocupa eternamente com a sua existência histórica. Ora, se admitirmos que as coisas se passam da maneira como acima admitimos (e sem isso retornaríamos aliás ao socrático), que aquele mestre, ele próprio, dá ao discípulo também a condição, então o objeto da fé não será mais a doutrina, mas sim o mestre; pois é justamente nisto que consiste o socrático: que aquele que aprende, por já ser ele mesmo a verdade e já ter a condição, possa mandar embora o mestre; sim, aí residiam a arte e o heroísmo socráticos, no ajudar os homens a se tornarem capazes de fazer isso. Fixar-se sempre no mestre é então o que a fé tem de fazer. Mas, para que o mestre possa dar a condição, ele tem que ser o deus, e para colocar o que aprende na posse dela ele tem que ser homem. Esta contradição é, por sua vez, o objeto da fé, e é o paradoxo, o instante. Que o deus já tivesse de uma vez por todas dado ao homem a condição, é o eterno pressuposto socrático, que não se choca hostilmente contra o tempo, mas é, isto sim, incomensurável com as determinações temporais; mas a contradição está em que ele receba a condição no instante, condição que, sendo uma condição para a compreensão da verdade eterna, é eo ipso a condição eterna. Se as coisas se passam de outra maneira, então permanecemos na reminiscência socrática. Vê-se, pois, facilmente (se é que de resto se precisa demonstrar o que decorre da despedida da inteligência), que a fé não é um ato de vontade; pois todo querer humano só é capaz de alguma coisa no interior da condição. Se deste modo eu tiver a coragem de querê-lo, compreenderei o socrático, isto é, compreenderei a mim mesmo, porque, do ponto de vista socrático, estou de posse da condição e portanto posso querê-lo. Mas, se não estou de posse da condição (e é isto o que admitimos, afinal, para não voltarmos ao socrático), todo o meu querer não serve, em suma, de nada, se bem que, uma vez que a condição seja dada, volte a valer novamente o que era válido no ponto de vista socrático. O contemporâneo interessado em aprender está de posse, portanto, de uma vantagem, pela qual, ai!, a posteridade, para não ficar sem fazer nada, não deixará de invejá-lo. O contemporâneo pode ir pessoalmente ao encontro deste mestre e observá-lo - e, então, ousaria crer em seus olhos? Sim, por que não? Mas ousaria também por isso crer que ele é o discípulo? De jeito nenhum, e se ele crê em seus olhos está enganado; pois o deus não se deixa conhecer diretamente. Então, ele pode fechar os seus olhos? Inteiramente correto, mas, se é assim, então que lhe adianta ser contemporâneo? E se ele fechar os olhos, decerto quererá imaginar o deus. Mas se ele pode fazê-lo por si mesmo, então está certamente de posse da condição. E aquilo que ele imagina será sem dúvida uma figura que se mostra ante o olhar interior da alma; mas se ele vê esta figura, então a figura do servo o perturbará quando ele abrir os olhos. Vamos adiante: aquele mestre acaba morrendo; muito bem, então está morto, o que é que faz agora aquele que era seu contemporâneo? Talvez tenha desenhado o seu retrato, talvez tenha até toda uma série de retratos que expõem e reproduzem escrupulosamente cada mudança de idade ou de estados de alma, que possa ter ocorrido no aspecto exterior daquele mestre; quando ele os olhar e se assegurar de que era aquela a aparência do mestre, ser-lhe-á permitido crer em seus olhos? Sim, por que não? Mas, será ele por isso o discípulo? De jeito nenhum. Mas então, bem que ele pode representar-se o deus. Porém o deus não se deixa representar, foi por isto que ele assumiu a forma de servo; e no entanto esta forma não era um embuste, pois, se o fosse, aquele instante não seria o instante, mas uma contingência, uma aparência que, como ocasião, desaparece infinitamente na comparação com o eterno. E se aquele que aprende pudesse por suas próprias forças representá-lo, então estaria de posse da condição, precisaria apenas recordar-se para representar o deus, tal como seria capaz de fazer, mesmo se não soubesse nada a seu respeito. Mas, se fosse assim, este ato de recordar-se desapareceria no mesmo instante como um átomo na possibilidade eterna que estava em sua alma e que agora se tornou real, mas que, por sua vez, enquanto realidade, pressupôs-se eternamente a si mesma. De que maneira aquele que busca aprender torna-se crente ou discípulo? Quando a inteligência é despedida e ele recebe a condição. Quando é que a recebe? No instante. O que é que esta condição condiciona? Que ele compreenda o eterno. Mas tal condição só pode ser uma condição eterna. - Portanto, no instante ele recebe a condição eterna, e sabe disso porque a recebeu no instante; pois de outro modo não faria nada mais do que tomar consciência de que já a possuía desde a eternidade. No instante, ele recebe a condição, e a recebe daquele mestre mesmo. Todas aquelas fábulas e trombeteadas, segundo as quais ele, mesmo não tendo recebido do mestre a condição, tinha sido suficientemente astuto para descobrir o incógnito do deus: que o tinha percebido por si mesmo, pois se sentia tão maravilhosamente cada vez que via aquele mestre; que havia alguma coisa na voz e no rosto daquele mestre etc. etc. - tudo isso não passa de tagarelices de velhas comadres, com o que ninguém se torna discípulo, mas apenas zomba do deus. (Qualquer determinação que pretenda fazer o deus se tornar conhecido imediatamente é por certo uma marca de milha da aproximação, mas não conta na direção desejada e sim no sentido oposto, não dirige para o paradoxo, mas sim de volta do paradoxo, recuando para aquém de Sócrates e da ignorância socrática. Preste-se bastante atenção a isso para que não ocorra no mundo do espírito o que aconteceu a um caminhante a quem um inglês, perguntado por ele se aquele caminho levava a Londres, respondeu que sim, mas o viajante não obstante não chegou a Londres porque o inglês tinha silenciado que ele teria de fazer meia-volta, visto que estava justamente se afastando de Londres). Aquela forma não seria um incógnito e se o deus por sua decisão todo-poderosa, que é igual a seu amor, quer igualar-se ao mais humilde, não há taberneiro nem professor de filosofia que possa imaginar-se suficientemente engenhoso para perceber qualquer coisa se o próprio deus não lhe der a condição para tanto. E quando o deus, sob a forma de servo, estende sua mão todo-poderosa, aquele que fica olhando, maravilhado, de boca aberta, não vá imaginar que é o discípulo só porque está maravilhado e porque consegue reunir em torno de si outros que por sua vez ficarão maravilhados com sua narrativa. Se o deus não dá junto a condição, então é que aquele que aprende já sabia desde o começo como são as coisas com o deus, ainda que não soubesse que o sabia, e aquela outra relação não é a socrática, e sim algo de infinitamente mais baixo. Mas, para o discípulo, a forma exterior do deus (não os seus detalhes) não é algo indiferente. Ela é o que o discípulo viu com seus olhos e tocou com suas mãos, mas não é tão importante ao ponto de ele deixar de ser crente se lhe acontecesse um dia ver o mestre na rua sem reconhecê-lo de chofre ou mesmo percorrer um trecho do caminho ao lado dele sem aperceber-se de que era ele. Mas ao discípulo o deus deu a condição para ver, e abriu-lhe os olhos da fé. Só que ver esta forma exterior era uma coisa terrível: andar com ele como um de nós e a cada instante em que faltasse a fé ver somente a forma do servo. Assim, quando o mestre, morrendo, afastar-se do discípulo, a memória poderá reproduzir sua forma, mas não é por isso que ele crê, mas sim porque recebeu do mestre a condição, por isso ele revê o deus no quadro confiável da recordação. Assim é o discípulo que está ciente de que, sem a condição, nada teria visto, já que a primeira coisa que compreendeu foi que ele mesmo era a não verdade. Mas, então, a fé é tão paradoxal quanto o paradoxo? Corretíssimo; senão como teria seu objeto no paradoxo e como poderia ser feliz em sua relação com ele? A própria fé é um milagre, e tudo o que vale para o paradoxo vale também para a fé. Porém, no interior deste milagre, tudo se passa outra vez à maneira socrática, mas de tal forma que jamais seja abolido o milagre, o qual consiste em que a condição eterna seja dada no tempo. Tudo se passa socraticamente; pois a relação entre um contemporâneo e o outro contemporâneo, na medida em que os dois são crentes, é inteiramente socrática, cada um não deve nada ao outro, mas os dois devem tudo somente ao deus. Talvez alguém diga: "Então o contemporâneo não leva nenhuma vantagem por ser contemporâneo; e no entanto, se admitimos o que tu admitiste a respeito da aparição do deus, é natural que consideremos bem-aventurada a geração contemporânea, que o viu e ouviu". - "Sim, verdadeiramente é natural, tão natural, penso eu, que decerto aquela geração, ela mesma, considerou-se bem-aventurada; nós deveríamos admiti-lo, pois senão ela não seria bem-aventurada, e nosso elogio apenas expressa que, nas mesmas circunstâncias, agindo-se de outra maneira, poder-se-ia ter-se tornado bem-aventurado. Mas, se é assim, então afinal o elogio pode ser bastante diferente, quando levamos em consideração este ponto; sim, em última instância a questão pode tornar-se talvez totalmente ambígua. Se acaso, como lemos em antigas crônicas, um imperador celebrasse suas núpcias durante oito dias seguidos, com uma festividade jamais vista, de tal modo que até o ar que se respirasse estivesse cheio de aromas agradáveis, enquanto que os ouvidos recebessem constantemente o ressoar das liras e das canções, para exaltar o gozo daquilo que era oferecido preciosamente na mais rica abundância; fosse dia ou fosse noite, pois a noite ficava clara como o dia devido à luz dos archotes, enfim, vista à luz do dia ou à luz dos archotes, a rainha fosse mais formosa, mais graciosa do que qualquer outra mulher sobre a face da terra, e aquilo tudo fosse um encantamento, mais maravilhoso do que a mais ousada realização do desejo mais ousado - suponhamos que isto tivesse acontecido e que nós tivéssemos de nos contentar com a frugal notícia de que aquilo tinha acontecido -, por que, humanamente falando, não deveríamos considerar bem-aventurados os contemporâneos da festa? Seus contemporâneos, quer dizer, aqueles que viram e ouviram e tocaram com suas mãos; pois, de resto, de que adiantaria ser contemporâneo? O esplendor das núpcias do imperador e a abundância do gozo podiam, sem dúvida nenhuma, ser vistos e percebidos imediatamente, de modo que se alguém lhes fosse contemporâneo, no sentido mais estrito, certamente haveria de ter visto e seu coração ter-se-ia enchido de alegria. Mas, se acaso o esplendor fosse diferente, de modo que não pudesse ser visto de forma imediata, que adiantaria então, neste caso, ser seu contemporâneo? Nem por isso se seria contemporâneo do esplendor. A tal contemporâneo não se poderia chamar de bem-aventurado, nem elogiar seus olhos e seus ouvidos, visto que ele não seria contemporâneo e nada teria visto e nem ouvido daquele esplendor, o que porém não teria a sua razão no fato de que o tempo e a ocasião (entendidos num sentido imediato) lhe teriam sido negados, mas sim em algo de diferente, que lhe podia faltar, mesmo que sua presença tivesse sido favorecida até num grau supremo pelas oportunidades de ver e ouvir, e mesmo que ele (num sentido imediato) não as tivesse deixado passar sem aproveitar. Mas o que quer dizer que alguém possa ser contemporâneo sem contudo ser contemporâneo, que alguém pode ser portanto contemporâneo e contudo, embora usando da vantagem de sê-lo (em sentido imediato), ser o não contemporâneo; que quer isso dizer, senão que pura e simplesmente não se pode ser contemporâneo, de forma imediata, de um tal mestre e de um tal acontecimento, de modo que o verdadeiro contemporâneo não é verdadeiro contemporâneo por força da contemporaneidade imediata, mas sim em virtude de uma outra coisa? Portanto, o contemporâneo pode, não obstante isso, ser não contemporâneo; o verdadeiro contemporâneo o é não por força da contemporaneidade imediata, ergo também o não contemporâneo (num sentido imediato) tem de poder ser contemporâneo graças àquela outra coisa pela qual o contemporâneo torna-se verdadeiro contemporâneo. Mas o não contemporâneo (num sentido imediato) é, afinal, o póstero, portanto o póstero tem de poder ser um verdadeiro contemporâneo. Ou quem sabe seria o contemporâneo, o contemporâneo que elogiamos, aquele que pudesse dizer: eu comi e bebi diante de seus olhos, e aquele mestre ensinava em nossas ruas, eu o vi muitas vezes, ele era um homem insignificante, de origem humilde e só uns poucos indivíduos acreditavam encontrar nele o extraordinário, o que eu pura e simplesmente não conseguia descobrir, ainda que eu, quanto ao fato de ser seu contemporâneo, o tenha sido mais que qualquer outro? Ou quem sabe o contemporâneo seria aquele contemporâneo a quem o deus teria de dizer, se acaso um dia se encontrassem numa outra vida e ele quisesse apelar para a sua contemporaneidade: "Eu não te conheço"? E assim isso seria na verdade tão verdadeiro quanto o é que aquele contemporâneo não teria conhecido o mestre, o que só o crente (ou seja, o contemporâneo não imediato) consegue, aquele que recebeu do próprio mestre a condição, e por isso o conhecia do mesmo modo como era conhecido". - "Espera um instante; se continuas falando assim eu não consigo aduzir nenhuma palavra; pois tu falas mesmo como quem quer disputar uma tese de doutorado, sim, tu falas como um livro e, o que é bastante infeliz para ti, como um livro bem determinado; pois tu, por tua vez, sabendo ou não sabendo, apenas introduziste algumas palavras que não pertencem a ti mesmo e nem foram colocadas por ti na boca do interlocutor, mas são palavras conhecidíssimas, só que tu utilizas o singular em vez do plural. As palavras da Bíblia (pois são palavras da Bíblia) dizem o seguinte: nós comemos e bebemos diante de seus olhos e ele ensinava em nossas ruas - verdadeiramente eu não vos conheço. Mas isso ainda passa; contudo, será que não exageras na conclusão, quando deduzes, do fato de o mestre responder ao indivíduo: eu não te conheço, que ele não teria sido contemporâneo com o mestre ou não o teria conhecido? Se aquele imperador de quem tu falas fosse responder a alguém que insistisse em ter sido contemporâneo de suas magníficas núpcias: 'eu não te conheço', teria o imperador com isso provado que o outro não tinha sido contemporâneo?” - "Aquele imperador não o teria provado, de jeito nenhum, no máximo teria demonstrado ser um insensato, que não queria contentar-se, como Mitridates, com saber o nome de cada soldado, mas queria conhecer todos os contemporâneos e decidir, baseado no seu conhecimento, se o indivíduo fora ou não seu contemporâneo. Afinal, o imperador podia ser conhecido imediatamente, e por isso o indivíduo poderia muito bem ter conhecido o imperador, mesmo que o imperador não o tivesse conhecido; mas aquele mestre, do qual falamos, não era, afinal de contas, imediatamente cognoscível, e sim somente se ele mesmo desse a condição. Quem recebeu a condição recebeu-a dele próprio e portanto aquele mestre teria de conhecer a cada um que o conhece, e o indivíduo só pode conhecer o mestre por ser por ele mesmo conhecido. Não será assim, e não vês, quem sabe, em seguida, o que está implicado no que dissemos? Se o crente é o crente e este é o que conhece o deus por ter recebido do próprio deus a condição, então o póstero tem de ter recebido do próprio deus a condição, exatamente no mesmo sentido, e não a pode receber de segunda mão - dado que, se assim o fosse, a segunda mão teria de ser o próprio deus - e neste caso nada se teria dito desta segunda mão. Mas se o póstero receber a condição do próprio deus, então ele será o contemporâneo, o verdadeiro contemporâneo, o que afinal só o crente é, e cada crente é." - "Eu bem que entendo, agora que tu o dizes, e já vislumbro as consequências, cheias de ramificações, embora eu me admire de que isso não me tenha ocorrido, e eu daria muito para ter sido aquele que o descobriu." - "E eu, porém, daria ainda mais para o ter compreendido totalmente, pois isso me ocupa mais do que saber quem foi que o inventou. Mas eu ainda não o compreendi bem, como mostrarei numa próxima oportunidade, quando então espero poder contar com teu apoio, já que tu compreendeste tudo logo. Em compensação, se permites, quero aqui neste lugar dar aquilo que os juristas chamam de uma duplicata, com referência ao que eu mesmo até aqui desenvolvi e compreendi. E enquanto eu preparo a duplicata, cuida tu mesmo do teu direito e defende-o; pois eu te cito, por meio deste, sub poena praeclusi et perpetui silentii (sob pena de completo e definitivo silêncio). A contemporaneidade imediata só pode ser ocasião: a) Ela pode servir de ocasião para que o contemporâneo obtenha um saber histórico. Neste sentido, o contemporâneo daquelas núpcias imperiais tem mais sorte do que aquele que é contemporâneo do mestre; pois este último recebeu apenas a oportunidade de ver a figura do servo e, no máximo, mais uma ou duas ações maravilhosas, sobre as quais não pode saber com certeza se deve admirá-las ou então se indignar por ter sido feito de bobo, dado que jamais conseguirá mover o mestre a fazer tudo de novo, assim como o faz um prestidigitador, como quando este dá aos espectadores a oportunidade de verem melhor como as coisas se juntam; b) Ela pode servir de ocasião para que o contemporâneo aprofunde-se socraticamente em si mesmo, com o que então aquela contemporaneidade desaparece como um nada em comparação com o eterno que ele descobre em si mesmo; c) Finalmente (e esta é aliás a nossa suposição, para não retomarmos ao socrático), ela se torna ocasião para que o contemporâneo enquanto não verdade receba do deus a condição, e então contemple o esplendor com os olhos da fé. Sim, bem-aventurado tal contemporâneo! Mas tal contemporâneo não é, afinal, uma testemunha ocular (num sentido imediato), mas ele é contemporâneo como crente, na autópsia da fé. Nesta autópsia, porém, qualquer não contemporâneo (num sentido imediato) é, por sua vez, contemporâneo. Na medida então em que um póstero, talvez até mesmo comovido com a sua própria exaltação apaixonada, suspira por ser um contemporâneo (num sentido imediato), aí ele demonstra que é um enganador, que pode ser reconhecido, como o falso Smerdes, pelo fato de não ter orelhas - neste caso, não ter os ouvidos da fé - ainda que ele possua orelhas tão grandes como as de um burro, com as quais, embora contemporâneo (num sentido imediato), alguém pode ficar escutando até deixar de ser contemporâneo. Se um póstero continua a fabular sobre o esplendor de ser contemporâneo (num sentido imediato) e fica todo dia querendo pôr-se a caminho, aí é preciso deixá-lo ir, mas se tu o observares reconhecerás facilmente, tanto por seu caminhar quanto pelo caminho que ele toma, que ele não se dirige ao horror do paradoxo, mas sim vai saltando como um dançarino para ainda chegar a tempo às núpcias do imperador. E mesmo que ele dê à sua expedição um nome santo, e ainda que pregue aos outros a coletividade, de modo que a ele se associe uma multidão para a viagem, dificilmente ele descobrirá a terra santa (num sentido imediato), já que esta não se encontra nem no mapa nem na terra, mas sua viagem é uma brincadeira igual àquele jogo de 'seguir o outro até a casa da vovó'. E mesmo que ele não se conceda nenhum descanso, nem de noite nem de dia, e ande tão depressa como nem um cavalo pode correr e nem uma língua humana pode mentir, ele ficará apenas girando por aí com sua rede, como um caçador de passarinhos, sem saber o que fazer; pois se o pássaro não vier em sua direção nada adiantará andar por aí com a rede de caçar passarinhos. - Num único aspecto, exclusivamente, eu estaria tentado a considerar o contemporâneo (num sentido imediato) mais feliz do que os pósteros. Se admitimos que se passaram séculos entre aquele acontecimento e a vida do póstero, decerto muita conversa fiada terá corrido entre os homens a respeito daquele acontecimento, tanta conversa insensata, que nem os boatos, falsos e confusos, que o contemporâneo (no sentido imediato) tivesse tido de suportar, tornariam tão difícil a possibilidade da relação correta; e isso, tanto mais quanto, segundo a probabilidade humana, o eco secular, tal como o eco de algumas de nossas igrejas, não apenas se espalharia sobre a fé como uma conversa mole, mas até a transformaria em conversa mole, o que no entanto jamais poderia acontecer com a primeira geração, quando a fé deve ter-se mostrado em toda a sua originalidade e, graças ao confronto, fácil de se distinguir de tudo o mais. Interlúdio O passado é mais necessário do que o futuro? ou O possível, ao se tornar real, tornou-se por isso mais necessário do que era? Meu caro leitor! Admitamos, pois, que aquele mestre se mostrou, que morreu e foi enterrado, e que entre o capítulo IV e o V se passou então um certo tempo. Numa comédia sucede também que entre dois atos ocorra um lapso de vários anos. Para dar a entender o transcorrer deste tempo, às vezes se faz então uma orquestra tocar uma sinfonia ou alguma outra coisa semelhante, para com isso encurtar o tempo, preenchendo-o. De uma maneira semelhante eu também pensei numa forma de preencher o tempo intermediário, refletindo sobre a questão que está aí colocada. Quão longo deva ser este tempo intermediário, tu mesmo podes determiná-lo, mas se te agrada poderemos admitir, meio seriamente, meio por brincadeira, que transcorreram exatamente mil e oitocentos e quarenta e três anos. Aí tu vês que eu por amor à ilusão preciso dar-me um bom tempo, pois mil e oitocentos e quarenta e três anos é um favorecimento raro que decerto em breve me poderá colocar na dificuldade oposta àquela em que se encontram os nossos filósofos, para os quais em geral o tempo não permite mais do que alusões; ao contrário daquela dificuldade em que se encontram os historiadores, aos quais quem deixa em aperto é o material e não o tempo. Se me achas um pouquinho prolixo, repetindo a mesma coisa - "sobre o mesmo assunto", bem entendido -, tens de refletir que é por amor à ilusão, e então por certo me hás de perdoar minha prolixidade e explicá-la de outra maneira que melhor te satisfaça do que através da suposição de que eu me tivesse permitido achar que esta questão necessitaria da reflexão, inclusive da tua, como se eu estivesse suspeitando de ti, de que tu mesmo não tivesses entendido completamente aquela questão. E isto, não obstante eu não duvide, de jeito nenhum, de que tu já compreendeste toda a filosofia recente e te apropriaste dela, dela que, assim como os tempos mais recentes, parece sofrer de uma estranha distração, que confunde as exposições com os títulos dos capítulos; pois quem seria tão maravilhosamente, tão maravilhosamente grande quanto a filosofia recente e os tempos recentes - no que toca aos títulos. 1. Devir Como é que muda o que vem a ser; ou qual é a mudança (kinesis) própria do devir? Qualquer outra mudança (alloiosis) pressupõe que exista aquilo em que se dá o processo da mudança, mesmo quando a mudança consiste no cessar de existir. Mas com o devir não é assim; pois, caso o que está vindo a ser não permaneça inalterado em si mesmo na mudança do devir, então o que está vindo a ser não será mais este que está vindo a ser, e sim outro, e a questão estará incorrendo numa metabasis eis alio genos (passagem para outro gênero), na medida em que o questionador, no caso dado, vê na mudança do devir outra mudança, que lhe confunde a questão, ou então ele se engana quanto ao que está vindo a ser, e fica portanto sem condições de colocar a questão. Se um plano, na medida em que ele vem a ser, se altera em si mesmo, então não é mais este plano o que vem a ser; mas se ao contrário ele vem a ser sem se alterar, então qual é a mudança do devir? Esta mudança não é então mudança na essência, mas no ser, e é mudança do não existir para o existir. Mas este não ser, que o que está vindo a ser abandona, é claro que também tem de existir; pois senão o que está vindo a ser "não permaneceria inalterado no devir", a não ser na medida em que não tivesse sido de jeito nenhum, com o que então a mudança do devir se tornaria absolutamente diferente de qualquer outra mudança - agora por outra razão, já que simplesmente não seria nenhuma mudança; pois qualquer mudança tem sempre algo pressuposto. Mas tal ser, que contudo é não ser, é a possibilidade; e um ser que é ser, é o ser real, ou a realidade; e a mudança do devir é a passagem da possibilidade à realidade. O necessário pode devir? Devir é uma mudança, mas o necessário simplesmente não pode mudar-se, dado que se relaciona sempre consigo mesmo, e se relaciona consigo mesmo da mesma maneira. Todo vir a ser é um padecer e o necessário não pode padecer, não pode padecer a paixão da realidade, que consiste em que o possível (não apenas o possível que vem a ser excluído, mas até mesmo o possível que vem a ser assumido) mostre-se como nada no instante em que vem a ser real, pois a possibilidade é nadificada pela realidade. Tudo o que vem a ser mostra, justamente pelo fato de devir, que não é necessário, pois a única coisa que não pode devir é o necessário, porque o necessário é. Então necessidade não é unidade de possibilidade e de realidade?" - O que significaria isto? Possibilidade e realidade não são diferentes na essência, mas no ser, Como é que desta diferença se deveria formar uma unidade, a qual seria necessidade, que não é determinação de ser, mas de essência, pois a essência do necessário consiste em ser? Nesse caso, afinal, possibilidade e realidade, tornando-se necessidade, viriam a ser uma essência absolutamente diferente, o que não é nenhuma mudança, e, ao se tornarem necessidade ou o necessário, viriam a ser a única coisa que exclui o vir a ser, o que é tão impossível quanto autocontraditório. (A proposição aristotélica: "E possível", "é possível que não", "não é possível". - A doutrina de Epicuro sobre as proposições verdadeiras e falsas assume aqui um papel perturbador, pois reflete sobre a essência, não sobre o ser e, consequentemente, por este caminho não se chega a nada no que concerne à determinação do porvir.) A necessidade sé mantém por si mesma; absolutamente nada devém com necessidade, assim como a necessidade não devém ou tampouco como algo, em se tornando, torna-se necessário. Não há absolutamente nada que exista por ser necessário, mas sim o necessário existe porque é necessário ou porque o necessário é. O real não é mais necessário do que o possível, pois o necessário é absolutamente diferente dos dois. (A doutrina de Aristóteles sobre as duas espécies de possível em relação ao necessário. Seu erro está no começar pela proposição: que tudo o que é necessário é possível. Para escapar então de afirmar o contraditório e mesmo o autocontraditório sobre o necessário, socorreu-se criando duas espécies de possível, em lugar de descobrir que sua primeira proposição é incorreta, dado que o possível não se deixa predicar do necessário.) A mudança do devir é a realidade, a passagem acontece pela liberdade. Nenhum devir é necessário; nem antes de devir, pois desse jeito não pode devir; nem depois que deveio, pois neste caso não deveio. Todo devir acontece em liberdade, não por necessidade; nada do que está vindo a ser vem a ser devido a uma razão; mas tudo por uma causa. Toda e qualquer causa remonta a uma causa atuando livremente. O engano gerado pelas causas intermediárias consiste em que o devir parece necessário. A verdade delas consiste em que, devindas elas mesmas, remetem definitivamente a uma causa livremente atuante. Mesmo a consequência de uma lei natural não explica a necessidade de nenhum devir, quando se reflete de maneira definitiva sobre o devir. O mesmo se dá com as manifestações da liberdade, quando não nos deixamos enganar por elas, mas refletimos sobre seu devir. 2. O histórico Tudo o que veio a ser é eo ipso histórico; pois mesmo que não se possa predicar nada mais de histórico, o predicado decisivo do histórico pode lhe ser atribuído: que ele veio a ser. Aquilo cujo devir é o devir simultâneo ("Nebeneinader:", o espaço) não tem nenhuma outra história senão essa; mas mesmo vista desta maneira (en masse) e abstraindo-se do que uma consideração com mais espírito chama, num sentido particular, de a história da natureza, a natureza tem uma história. Mas o histórico é o passado (pois o presente confinando com o futuro ainda não se tornou histórico); como então se pode dizer que a natureza, embora imediatamente presente, é histórica, sem que com isso se tenha em vista aquela consideração mais espiritual? A dificuldade provém de que a natureza é abstrata demais para ser, rigorosamente falando, dialética em relação ao tempo. Esta é a imperfeição da natureza, não ter história em nenhum outro sentido, e sua perfeição está em conter, não obstante, uma alusão à história (ou seja: que ela deveio, o que é o passado; que ela existe, o que é o presente), enquanto que a perfeição da eternidade consiste em não ter história, e é a única coisa que existe e contudo absolutamente não possui história. Contudo o devir pode incluir em si uma reduplicação, isto é, uma possibilidade de devir no interior de seu próprio devir. Aqui reside o histórico no sentido mais estrito, que é dialético em relação ao tempo. O devir, que é aqui o que há de comum com o vir a ser da natureza, é uma possibilidade, uma possibilidade que para a natureza é toda sua realidade. Mas este devir histórico propriamente dito é interior a um devir, jamais se poderá perder isso de vista. O devir histórico mais especial devém por uma causa relativamente livre, que por sua vez remete definitivamente a uma causa absolutamente livre. 3. O passado O que aconteceu, aconteceu, não pode ser refeito; não pode, deste modo, ser mudado (o estoico Crisipo - o megárico Diodoro). Esta imutabilidade é a da necessidade? A imutabilidade do passado foi obtida por uma mudança, pela mudança do vir a ser, mas tal imutabilidade não exclui toda mudança, evidentemente, já que não a excluiu; pois toda mudança só é, afinal (dialeticamente em relação ao tempo), excluída, porque é excluída a cada instante. Considerar o passado como necessário implica em esquecer que ele deveio; mas tal esquecimento seria talvez também necessário? O que aconteceu, aconteceu assim como aconteceu, e assim é imutável; mas esta imutabilidade é a da necessidade? A imutabilidade do passado consiste em que o "assim" de sua realidade não pode vir a ser diferente; mas segue-se daí que o "como" possível deste passado não teria podido vir a ser de outra maneira? A imutabilidade do necessário, bem ao contrário, consiste no relacionar-se sempre consigo mesmo e relacionar-se sempre consigo mesmo do mesmo modo; ela exclui toda e qualquer mudança, não se contenta com a imutabilidade do passado que, como foi mostrado, não é dialética apenas em relação a uma mudança anterior, da qual resulta, porém tem de ser dialética até mesmo em relação a uma mudança de ordem superior, que a anula. (Por exemplo, a do arrependimento que quer abolir uma realidade). O futuro ainda não aconteceu, mas não é por isso menos necessário do que o passado, visto que o passado não se tornou mais necessário por ter acontecido, mas ao contrário mostrou, por ter acontecido, que não era necessário. Se o passado se tivesse tornado necessário, não se deveria poder concluir o oposto no que concerne ao futuro, porém, ao contrário, daí se seguiria que o futuro também era necessário. Caso a necessidade pudesse penetrar num único ponto, não se poderia mais falar de passado e de futuro. Querer predizer o futuro (profetizar) e querer compreender a necessidade do passado é completamente a mesma coisa, e é apenas uma questão de moda se a uma geração uma parece mais plausível do que a outra. O passado, afinal de contas, deveio; o devir é a mudança da realidade pela liberdade. Ora, se o passado se tivesse tornado necessário, não mais pertenceria à liberdade, isto é, àquilo pelo qual ele veio a ser. A liberdade estaria então numa posição ruim, faria ao mesmo tempo rir e chorar, pois levaria a culpa daquilo que não seria de sua competência, produziria aquilo que a necessidade logo haveria de engolir, e a própria liberdade tornar-se-ia uma ilusão, e o devir não menos; a liberdade tornar-se-ia bruxaria, e o devir alarme falso. (A geração que profetiza desdenha o passado, não quer ouvir o testemunho dos escritos; a geração que se apressa a compreender a necessidade do passado não gosta de ser questionada sobre o futuro. O comportamento de ambas é bastante consequente: pois cada uma delas, no seu oposto, teria oportunidade de ver quão tolo é o seu comportamento. O método absoluto, que é invenção de Hegel, é já na lógica um caso bem difícil, sim, uma brilhante tautologia, posta ao serviço da superstição científica, com muitos sinais e feitos miraculosos. Nas ciências históricas ele se constitui numa ideia fixa, e aquilo de que ali o método logo começa por se tornar concreto, dado que a história, afinal, é a concreção da ideia, certamente forneceu a Hegel oportunidade de mostrar uma rara erudição, um raro poder de dar forma à matéria, que com ele recebe bastante movimento, porém também deu oportunidade para que se distraísse a mente do estudioso, de modo que este, talvez justamente por causa do respeito e da admiração pela China e pela Pérsia, pelos pensadores medievais, pelos filósofos da Grécia, pelas quatro monarquias da história universal (uma descoberta que, assim como não escapara a Geert Westphaler , assim também destravou a tagarelice de muito Geert Westphaler hegeliano tardio), esquecesse então de examinar se no fim, no termo desta excursão pelo país das maravilhas, comprovava-se aquilo que no começo fora constantemente prometido, e que aliás era o ponto capital, aquilo que toda a glória mundana não poderia substituir, e a única coisa que poderia compensar pela enervante tensão em que se foi mantido - a correção do método, Por que é mesmo que se ficou logo concreto, por que se começou imediatamente a fazer experimentações in concreto? Ou será que talvez na brevidade desapaixonada da abstração, que não possui meios de distrair e de encantar, não se conseguiria já resolver a questão sobre o que significa a ideia tornar-se concreta, o que é o devir, como a gente se relaciona com aquilo que veio a ser etc., assim como também já na Lógica se poderia ter respondido adequadamente o que quer dizer passagem, antes de se passar a escrever três livros nos quais se demonstrou a passagem nas determinações categoriais, se assombrou a superstição, e se tornou tão desagradável a posição daquele que com alegria queria dever muito ao espírito superior e agradecer pelo que lhe devia, e contudo não consegue esquecer, a todas essas, aquilo que o próprio Hegel deveria considerar como sendo o ponto capital?). 4. A concepção do passado A natureza, enquanto determinação do espaço, só existe imediatamente. Tudo o que é dialético em relação ao tempo tem uma duplicidade em si: a de poder, após ter estado presente, subsistir como algo passado. O histórico propriamente dito é sempre o passado (ele passou; se há anos ou dias, não faz nenhuma diferença) e tem realidade enquanto algo passado; pois é certo e garantido que aconteceu. Mas isso, que ele tenha de fato acontecido, é justamente, por sua vez, sua incerteza, que impedirá de conceber-se o passado como se este tivesse sido assim desde toda eternidade. É só nesta contradição de certeza e de incerteza, que é o discrímen do que veio a ser e assim também do passado, que se compreende o passado; compreendido de outro modo, a concepção do passado se engana sobre si mesma (que ela é uma concepção) e sobre seu objeto (que algo deste gênero pode tornar-se objeto de concepção). Toda concepção do passado que pretende tê-lo compreendido a fundo ao construí-lo, não faz senão ludibriar-se profundamente. (Uma teoria da manifestação, em lugar da construção, à primeira vista ilude, porém no momento seguinte tem-se outra vez a construção secundária e a manifestação necessária.) O passado não é necessário, já que vem a ser, nem se torna necessário ao vir a ser (uma contradição), e ainda menos torna-se necessário por meio de alguma concepção. (A distância no tempo faz com que o sentido espiritual se iluda, assim como a distância no espaço provoca a ilusão sensorial. O contemporâneo não vê a necessidade do que devém, mas quando transcorreram séculos entre o devir e o observador - então este vê a necessidade, do mesmo modo como aquele que, à distância, vê o quadrado como se fosse redondo.) Se o passado se tornasse necessário em virtude da concepção que se faz dele, então o passado ganharia o que a concepção perderia, pois esta compreenderia algo de diferente, o que não deixa de ser uma compreensão miserável. Na medida em que aquilo que é compreendido se transforma, na compreensão, esta se transforma numa incompreensão. Um conhecimento do presente não dá a este qualquer necessidade, uma presciência do futuro não dá a este nenhuma necessidade (Boécio), um conhecimento do passado não dá a este nenhuma necessidade; pois toda compreensão, bem como todo conhecimento, não tem contribuições a dar. Aquele que compreende o passado, o filósofo-histórico, é portanto um profeta do retrospecto (Daub). Que ele seja um profeta significa justamente que na base da certeza do passado encontra-se a incerteza, a qual vale para o passado tanto quanto para o futuro, aquela possibilidade (Leibniz - os mundos possíveis) da qual seria impossível que o porvir resultasse com necessidade, nam necessarium se ipso prius sit, necesse est (pois é necessário que o necessário se pressuponha a si mesmo). O historiador se encontra, pois, outra vez frente ao passado, movido por aquela paixão que é o apaixonado sentido do devir, isto é, a admiração. Se o filósofo não admira absolutamente nada (e como poderia, a não ser por uma nova espécie de contradição, vir a admirar uma construção necessária?) não tem então, eo ipso, nada a ver com o histórico, pois em toda parte onde se encontrar o devir (que está, como se sabe, no passado), a incerteza (própria do devir), mesmo daquilo que deveio da maneira mais certa, só poderá exprimir-se por esta paixão que é digna do filósofo e necessária a ele (Platão - Arístóteles). Mesmo que aquilo que deveio fosse a coisa mais certa do mundo, mesmo que a admiração lhe desse antecipadamente seu testemunho dizendo que, se não tivesse acontecido, ter-se-ia de inventá-lo (Baader), mesmo então a paixão da admiração se contradiria se quisesse atribuir falsamente uma necessidade ao que veio a ser e, assim, fazer-se de boba. - Já a própria palavra e mesmo o conceito de método demonstram suficientemente que a progressão de que aqui se poderia tratar é de natureza teleológica. Mas em toda progressão deste gênero, a cada instante há uma pausa (aqui a admiração encontra-se in pausa e espera o devir), que é a do devir e da possibilidade, justamente porque o telas permanece fora. Mas se só há um único caminho possível, então o telas não está fora da progressão, mas na progressão mesma - sim, por trás dela, assim como é o caso na progressão imanente. Isto no que concerne à concepção do passado. Aí se pressupôs contudo que o conhecimento do passado esteja dado. Como é que ele vem a ser adquirido? O histórico não pode ser reconhecido imediatamente (como verdadeiro), porque tem em si a ambiguidade do devir. A impressão imediata produzida por um fenômeno da natureza ou por um acontecimento não é a impressão do histórico, porque o vir a ser não pode ser percebido imediatamente (como verdadeiro), mas somente o presente. Mas a presença do histórico contém em si o devir, de outro modo não é o presente do histórico. A percepção imediata e o conhecer imediato não podem enganar. Já por isso se vê que o histórico não pode tornar-se um objeto para eles, porque o histórico contém em si esta ambiguidade que é própria ao devir. Em relação ao imediato, com efeito, o devir é uma ambiguidade, pela qual o mais seguro torna-se duvidoso. Assim, quando aquele que está percebendo vê uma estrela, a estrela se lhe torna duvidosa no instante em que ele se dá conta de que ela veio a ser. É como se a reflexão excluísse a estrela da percepção visual. Pelo menos uma coisa é clara: que o órgão para o histórico tem de ter sido formado em conformidade ao seu objeto, tem de ter em si aquela correspondência pela qual não cessa de abolir em sua certeza a incerteza que corresponde à incerteza do devir, que é dupla: o nada do-que-não-está-sendo e a possibilidade anulada, que é, ao mesmo tempo, a abolição de toda outra possibilidade. Ora, desta natureza é justamente a fé; pois na certeza da fé continua presente, como uma coisa abolida, a incerteza que corresponde de toda maneira à do devir. Assim a fé crê no que não vê. Não crê que a estrela existe, pois isto se vê, mas crê que a estrela veio a ser. O mesmo vale em relação a um acontecimento. Aquilo que aconteceu deixa-se conhecer imediatamente, mas de jeito nenhum o fato de que aconteceu, tampouco o fato de que acontece, mesmo que aconteça, como se diz, diante do próprio nariz. A ambiguidade do que aconteceu é que aconteceu. Aí se encontra a passagem vinda do nada, do não ser e do "como" multiplamente possível. A percepção imediata, o conhecer imediato não tem noção da incerteza com que a fé se aproxima de seu objeto, mas também nem imaginam a certeza que se desenvolve da incerteza. A percepção imediata e o conhecimento imediato não podem enganar. Compreender isso é importante para se compreender a dúvida e para, por intermédio desta, indicar outra vez à fé o seu lugar. Ora, encontra-se esta ideia na base do ceticismo grego, por mais estranho que isso possa parecer. Contudo, não é tão difícil compreendê-lo, ou compreender que luz isso lança sobre a fé, quando não se está inteiramente confundido pelo duvidar de tudo hegeliano, contra o qual realmente não se deve pregar; pois o que os hegelianos dizem a este respeito é de tal natureza que parece antes favorecer uma dúvida mais modesta, que apenas procura saber em que medida se daria o caso de que, alguma vez, eles tenham duvidado de qualquer coisa que seja. O ceticismo grego era retirante (Epoché, suspensão do juízo). Os gregos não duvidavam em virtude do conhecimento, mas em virtude da vontade (negar assentimento, Metriopathein). Ora, disso se segue que a dúvida só pode ser abolida pela liberdade, através de um ato da vontade, coisa que qualquer cético grego haveria de compreender, porquanto se compreendia a si mesmo; mas ele não queria abolir seu ceticismo, justamente porque queria duvidar. Isso era problema dele, mas que não se lhe atribua a tolice de acreditar que alguém duvidaria por necessidade, e mais, o que é pior, que em tal caso a dúvida poderia ser anulada. O cético grego não nega a verdade da percepção e do conhecimento imediato, mas, diz ele, o erro tem uma razão inteiramente diversa; vem da conclusão que eu tiro. Basta que eu consiga abster-me de concluir, e jamais serei enganado. Se, por exemplo, a percepção à distância me mostrar um objeto redondo que, visto de perto, é quadrado, ou uma vara quebrada na água, embora seja reta quando se a retira, não terá sido a percepção quem me enganou, mas eu só me enganei quando concluí algo da vara ou daquele objeto. É por isso que o cético sempre se mantém in suspenso e este estado é o que ele queria. Enquanto que o ceticismo grego foi chamado de filosofia inquisitiva, aporética, cética, estes predicados não exprimiam ainda o que é característico do ceticismo grego; que sempre empregou o conhecimento apenas para salvaguardar esta disposição de ânimo que era o essencial e, por esta razão, não queria mesmo exprimir positivamente (thetikös) o resultado negativo do conhecimento para não ser apanhado em flagrante delito de raciocínio indutivo. A atitude mental era o principal (os céticos dizem que o fim supremo é a suspensão do juízo seguida pela ataraxia como sua sombra). (Que a percepção sensorial e o conhecimento imediatos não podem enganar, é enfatizado tanto por Platão quanto por Aristóteles. E mais tarde por Descartes, o qual diz, exatamente como os céticos gregos, que o erro provém da vontade que se precipita ao tirar conclusões. Isso lança também uma luz sobre a fé; quando se decide a crer ela corre o risco de estar cometendo um erro, mas mesmo assim ela quer crer. De outra maneira jamais se há de crer; querer escapar do risco é o mesmo que querer saber com certeza que se pode nadar, antes mesmo de entrar na água). Em oposição a isso, mostra-se facilmente que a fé não é um conhecimento, mas sim um ato da liberdade, uma expressão da vontade. A fé crê no devir e suprimiu em si a incerteza que corresponde ao nada do não ser. Crê neste "assim" do que deveio e já suprimiu, portanto, o "como" possível do que deveio, e embora sem negar a possibilidade de outro "assim", o "assim" do que deveio é todavia para a fé o que há de mais certo. O que pela fé se torna histórico e, enquanto histórico, torna-se objeto da fé (um correspondendo ao outro) não engana, à medida que existe imediatamente e é captado imediatamente. O contemporâneo pode, se quiser, servir-se de seus olhos etc., mas preste muita atenção à conclusão. Não pode conhecer imediatamente que isto deveio, mas também não pode conhecer com necessidade que isto deveio; pois a primeira expressão do devir é justamente a interrupção da continuidade. No instante em que a fé crê que isto deveio, aconteceu, ela torna esta coisa (devinda, acontecida) duvidosa no devir, e duvidoso seu "assim" no "como" possível do devir. A conclusão da fé não é uma conclusão, mas uma decisão, e é por isso que a dúvida fica excluída. Quando a fé conclui: isto existe, ergo, veio a ser, esta conclusão poderia parecer uma conclusão do efeito à causa. Entretanto, não é bem assim e, mesmo se assim fosse, é preciso lembrar que a conclusão do conhecimento vai da causa ao efeito ou, mais exatamente, da razão à consequência (Jacobi). Não é bem assim, pois não posso, de modo imediato, perceber nem conhecer se o que percebo ou conheço imediatamente é um efeito, pois, imediatamente, apenas é. Que seja um efeito, isso eu creio, pois para predicar que é um efeito devo tê-lo tornado duvidoso na incerteza do devir. Porém, se a fé se resolve a isso, então a dúvida fica abolida; no mesmo instante a situação de equilíbrio, a indiferença da dúvida é suprimida, não pelo conhecimento, mas pela vontade. Por aproximações, então, a fé é a coisa mais "disputável" (pois a incerteza da dúvida, que é forte e insuplantável no tornar ambíguo - dis-putare, sucumbe na fé), e é a menos disputável em virtude de sua nova qualidade. A fé é o oposto da dúvida. Fé e dúvida não são duas espécies de conhecimento que se deixam determinar no prolongamento uma da outra; pois nenhuma das duas é um ato de conhecimento, e elas são paixões opostas. A fé é o sentido que capta o devir, e a dúvida, o protesto contra toda conclusão que quer ir além da percepção imediata e do conhecimento imediato. O duvidador não nega, por exemplo, sua própria existência, mas não conclui nada; pois não quer ser iludido. Embora se sirva da dialética para sempre tornar o contrário também verossímil, não é no entanto em virtude desta dialética que põe seu ceticismo, aquilo não passa de obras exteriores e acomodações humanas; não alcança portanto nenhum resultado, nem mesmo negativo (pois isto ainda significaria reconhecer o conhecimento), mas por força da vontade decide afastar-se e abster-se de toda conclusão (philosophia ephektike). Em lugar da imediatidade da percepção e do conhecimento (que contudo não pode captar o histórico), aquele que não é contemporâneo do histórico dispõe das informações dos contemporâneos, às quais se relaciona do mesmo modo que o contemporâneo à imediatidade. Pois mesmo que o relatado na informação tenha sofrido uma mudança, ele não pode recebê-lo de tal modo que recuse seu assentimento e o faça histórico, sem com isso transformá-lo no a-histórico por si. A imediatidade da informação, isto é, que a informação está aí, é o imediatamente presente, mas a historicidade neste presente consiste em que ele veio a ser, e no passado consiste em ter sido algo presente ao ter vindo a ser. Ora, quando o póstero crê no que passou (não em sua verdade, pois essa é um assunto do conhecimento, que diz respeito à essência e não ao ser; mas crê que era um presente pelo fato de que deveio), então aí se encontra a incerteza do devir; e esta incerteza do devir (o nada do que-não-está-sendo - o "como" possível do "assim" real) deve ser para ele a mesma que para o contemporâneo, seu espírito deve estar in suspenso do mesmo modo como aquele do contemporâneo. Ele não retém portanto nenhuma imediatidade para si, tampouco necessidade do devir, mas somente o "assim" do devir. O póstero crê, então, decerto, em virtude do depoimento do contemporâneo, mas somente no mesmo sentido em que o contemporâneo em virtude da percepção e do conhecimento imediatos, pois não é em virtude destes que o contemporâneo pode crer e assim tampouco o póstero em virtude das informações que possui. Assim, em nenhum instante o passado se torna necessário, como também não era necessário quando veio a ser, nem se mostrava necessário para o contemporâneo que acreditava nele, isto é, acreditava que ele deveio; pois a fé e o devir se correspondem mutuamente e concernem a determinações abolidas do ser: o passado e o porvir; e ao presente, somente quando este é considerado sob a determinação abolida do ser, como aquilo que deveio; enquanto que a necessidade concerne à essência, e de tal modo que a determinação da essência é justamente excluir o devir. Aquela possibilidade de onde saiu o possível que se tornou real acompanha sempre o que deveio, e permanece junto com o passado, mesmo após milênios. Sempre que o póstero repete que tal coisa deveio (o que faz ao acreditar), retoma a possibilidade dela, quer se trate aqui de representações mais específicas desta possibilidade, quer não. Anexo Aplicação O que aqui foi dito vale a respeito do histórico, puro e simples, cuja contradição consiste apenas em que ele veio a ser, cuja contradição (A palavra contradição não pode ser tomada aqui naquele sentido banalizado que Hegel tenta impingir a si mesmo, aos outros e à contradição, como se esta tivesse o poder de produzir alguma coisa. Enquanto algo não tiver vindo a ser, a contradição é apenas o ímpeto na admiração, o nisus (impulso) desta, não o nisus do devir; logo que a coisa veio a ser, a contradição se apresenta de novo na paixão que reproduz o devir) é apenas a do devir; pois aqui de novo não se pode deixar-se iludir, como se o compreender que algo veio a ser ficasse mais fácil depois que veio a ser do que o era antes de ter vindo a ser; pois quem acha que é assim, nem mesmo compreendeu que aquilo veio a ser, ele tem somente a imediatidade da percepção e do conhecimento do presente, no que o devir não está incluído. Queremos agora retomar ao nosso esboço poético e à nossa suposição de que o deus (aqui) esteve. A respeito do simplesmente histórico vale que não pode tornar-se histórico para a percepção ou o conhecimento imediato, nem para o contemporâneo nem para o póstero. Há algo de sui generis no tocante àquele fato histórico (que é o tema de nossa criação poética), já que não constitui um fato histórico imediato, e sim um fato que se baseia numa autocontradição (o que é suficiente para mostrar que não há nenhuma diferença entre o contemporâneo e o póstero; pois frente a uma contradição, e àquele risco que está ligado com o dar-lhe assentimento, a contemporaneidade imediata não é vantagem nenhuma). Contudo, trata-se de um fato histórico, e somente para a fé. A fé é tomada então aqui primeiramente num significado imediato e geral, como sendo a relação com o histórico; mas depois a fé tem de ser tomada no sentido mais eminente, tal como esta palavra só pode ocorrer uma única vez, isto é, muitas vezes, mas apenas numa única relação. Compreendido eternamente não se crê que há um deus, mesmo que se admita que ele existe. Esta seria uma maneira equivocada de falar. Sócrates não possuía uma crença na existência de um deus. Aquilo que ele sabia a respeito do deus, ele o alcançara através da reminiscência, e a existência do deus não era para ele, de maneira alguma, algo histórico. Se o seu conhecimento do deus era muito imperfeito em comparação com o daquele que, segundo a nossa suposição, recebe do próprio deus a condição, é algo que agora não interessa, pois a fé não tem a ver com a essência, mas com ser, e a suposição de que há um deus o determina eternamente, e não historicamente. O histórico consiste em que ele veio a ser (para o contemporâneo), consiste em que ele foi um ser presente por ter vindo a ser (para o póstero). Mas é nisto justamente que se situa a contradição. Ninguém pode, então, imediatamente, tornar-se contemporâneo deste fato histórico (cf. o precedente); mas ele constitui o objeto da fé, dado que se trata do devir. A questão aqui não é a da sua verdade, mas sim a de saber se se quer dar assentimento ao fato de que o deus veio a ser, pelo que a essência eterna do deus inflete para dentro das determinações dialéticas do devir. Assim, aquele fato histórico mantém-se em aberto; não tem nenhum contemporâneo imediato, dado que é histórico na primeira potência (a fé em sentido geral); não tem nenhum contemporâneo imediato na segunda potência, dado que se baseia sobre uma contradição (a fé em sentido eminente). Mas esta última igualdade entre os que, na relação temporal, estão mais diferenciados absorve a diferença que, quanto à primeira relação, conserva-se entre os diferentes em direção ao tempo. Cada vez que o crente faz este fato tornar-se objeto para a fé faz com que isto se torne histórico para ele e retoma as determinações dialéticas do devir. Por muitos milênios que tenham transcorrido, por mais consequências que aquele fato tenha produzido, ele não se torna por isso mais necessário (e as próprias consequências serão, em última análise, apenas relativamente necessárias, dado que repousam sobre aquela causa que age livremente), para nem falar do maior dos absurdos, de que deveria tornar-se necessário em razão de suas consequências, já que afinal de contas as consequências costumam ter o seu fundamento em outra coisa, ao invés de fundamentar esta outra coisa. E por mais que o contemporâneo ou o homem da primeira geração tenha visto preparativos, prenúncios e sintomas, aquele fato histórico ainda não se tornaria mais necessário ao vir a ser, ou seja: aquele fato é tão pouco necessário enquanto futuro como enquanto passado. Capítulo V O discípulo de segunda mão - "Meu caro leitor! Dado que, conforme a nossa suposição, passaram-se mil e oitocentos e quarenta e três anos entre o discípulo contemporâneo e esta nossa conversa, parece haver motivo suficiente para propor a questão do discípulo de segunda mão, já que decerto esta situação deve ter-se repetido muitas vezes. A questão parece ser ineludível, como também a exigência de uma explicação para as dificuldades que possivelmente poderiam apresentar-se quando se trata de determinar o discípulo de segunda mão, tanto em sua igualdade quanto em sua diferença frente ao contemporâneo. Mas não obstante isso, será que não deveríamos primeiro refletir sobre a questão, para saber se ela é tão correta quanto rápida em se apresentar? Com efeito, se acaso se evidenciasse que a questão não é correta, ou que não se pode questionar desta maneira sem se questionar como um insensato, e portanto sem estar autorizado a acusar de insensatez aquele que possui suficiente bom-senso para não se sentir capaz de responder: então as dificuldades parecem estar afastadas." - "Inegavelmente; pois quando não se pode perguntar, a resposta não deve causar nenhum embaraço, e a dificuldade se tornou então extraordinariamente fácil." - "Mas isto não se segue do que foi dito; pois suponhamos que a dificuldade consistisse em entender que não se pode perguntar desta maneira. Ou talvez tu já tivesses entendido isso; quem sabe era isso o que tinhas em mente quando, no nosso último diálogo (capítulo IV), expressavas que me havias compreendido com todas as consequências de meu enunciado, enquanto que nem eu ainda teria compreendido completamente a mim mesmo?" - "Não era essa, de maneira alguma, a minha opinião, assim como também não acho que a questão se deixe eludir, dado que ela logo inclui uma nova questão, a saber, se não haveria alguma distinção entre os muitos que cabem sob a definição de discípulos de segunda mão; com outras palavras, se é correto dividir um período tão enorme de tempo em duas partes tão desiguais: o contemporâneo - o póstero." - "Tu queres dizer que é preciso poder falar de um discípulo de 5ª, de 7 ª - mão, e assim por diante; mas se, apenas para agradar-te, se adotasse essa linguagem, seguir-se-ia daí que o discurso sobre todas essas distinções, contanto que não estivesse em discordância consigo mesmo, não se deixaria concentrar numa unidade contraposta à categoria do discípulo de segunda mão? Ou será que o discurso procederia corretamente se ele se comportasse como tu, de modo que fosse singelo o bastante para fazer o mesmo que tu fazes com tanta astúcia, transformar a questão do discípulo de segunda mão numa questão completamente diferente, com o que tu terias ocasião de, ao invés de concordar com minha proposta ou discordar dela, zombar de mim com uma nova questão? Mas já que tu provavelmente não desejas continuar este diálogo, por temor de que possa descambar em conversa de sofista e querelas, eu prefiro interromper; mas pelas análises que agora tenciono expor tu verás que foram levadas em conta as asserções que surgiram entre nós”. § I. A categoria do discípulo de segunda mão em suas diferenças intrínsecas Aqui não se reflete portanto sobre a relação do discípulo secundário para com o contemporâneo, porém a distinção sobre a qual aqui se reflete é tal que a igualdade dos mutuamente diferentes permanece frente a um terceiro; pois aquela diferença que é diferente apenas de si mesma permanece, sem dúvida, no interior da igualdade consigo mesma. Por esta razão não constitui, de modo algum, nenhuma arbitrariedade interromper onde se quiser; pois a diferença relativa não é, aqui, nenhum sorites, do qual a qualidade deve surgir através de um coup de main, quando a diferença se encontra no interior de uma qualidade determinada. Um sorites só se produziria se se tornasse o ser contemporâneo dialético no mau sentido, por exemplo, com o mostrar que num certo sentido absolutamente ninguém era contemporâneo, pois ninguém poderia ser contemporâneo com todos os momentos; ou com o perguntar onde é então que a contemporaneidade terminaria, onde começaria a não contemporaneidade, e se não haveria por acaso um confrinium sobre o qual se pudesse barganhar, de modo que o raciocínio comercial pudesse dizer: até certo ponto etc. etc. Todas as sutilezas desumanas desse tipo não levam a nada, ou talvez em nosso tempo levem a ser considerado como autenticamente especulativo, dado que o desprezado sofisma, sabe lá o diabo como ele surgiu, tornou-se o segredo aflito da autêntica especulação, e aquilo que antigamente era considerado negativo: o até certo ponto (esta tolerância paródica que faz a mediação de tudo sem se preocupar com pequenos detalhes) tornou-se o positivo, e o que o tempo antigo chamava positivo, a paixão pelas distinções, tornou-se uma bobagem. Ora, contra posições aparecem com mais força ao serem colocadas lado a lado, e por isso escolhemos aqui a primeira e a última geração de discípulos secundários (aquelas que delimitam o spatium dado, os mil oitocentos e quarenta e três anos), e procuramos restringir-nos ao mínimo; pois afinal não falamos a linguagem da história, mas sim a da álgebra, e não desejamos distrair nem seduzir ninguém com os encantos da variedade. Pelo contrário, lembramos constantemente de conservar, sob a diversidade, a igualdade comum na diversidade frente ao contemporâneo (somente no próximo parágrafo veremos mais de perto que a questão do discípulo de segunda mão, compreendida essencialmente, é uma questão incorreta), bem como que a diferença não pode aumentar tanto que acabe por confundir tudo. a) A primeira geração de discípulos secundários Esta tem então a vantagem (relativa) de estar mais perto da certeza imediata, de estar mais perto de obter um relato exato e confiável sobre o que se passou, da parte de pessoas cuja confiabilidade pode-se submeter a controle de outros modos. O valor desta certeza imediata já foi calculado por nós no capítulo quarto. Estar mais perto dela é sem dúvida uma ilusão; pois quem não estiver tão perto da certeza imediata que imediatamente esteja certo, estará absolutamente longe. Queremos, porém, levar em consideração esta diferença relativa (que a primeira geração dos discípulos secundários tem frente às gerações posteriores); quão valiosa devemos considerá-la? Nós só podemos avaliá-la com referência à vantagem que o contemporâneo tem; mas afinal nós já mostramos no capítulo quarto que a sua vantagem (a certeza imediata em sentido rigoroso) é ambígua (anceps - perigosa), e vamos continuar fazendo isso no próximo parágrafo. - Ou se acaso na geração seguinte tivesse vivido um homem que reunisse o poder de um tirano à paixão de um tirano, e lhe ocorresse a ideia de não se preocupar com outra coisa senão com fazer aparecer a verdade sobre este ponto, será que com isso ele se tornaria o discípulo? Supondo que ele se apoderasse de todas as testemunhas contemporâneas ainda viventes e de todas aquelas pessoas que lhe foram mais próximas, fizesse interrogá-las individualmente com a maior exatidão, mandasse encarcerá-las como àqueles setenta tradutores, deixasse-as passar fome para forçá-las a dizer a verdade, fizesse confrontá-las umas com as outras da maneira mais astuciosa, tudo isso apenas para assegurar-se, por todos os meios, de uma informação confiável - com a ajuda desta informação ele seria o discípulo? Será que o deus não precisaria antes rir-se dele por querer desta maneira obter pela força aquilo que não se deixa comprar com dinheiro, mas também não se deixa tomar de jeito nenhum, pela violência? Mesmo que aquele fato do qual falamos constituísse um simples fato histórico, a dificuldade não deixaria de aparecer logo que ele quisesse obter uma concordância absoluta em todos os pormenores, e isso teria de ser para ele de uma extrema importância, porque a paixão da fé, isto é, aquela paixão que é tão intensa quanto a fé, teria sido dirigida para o meramente histórico. É bastante conhecido que os homens mais sinceros e mais verazes são os que mais se enredam em contradições quando expostos a um tratamento inquisitorial e à ideia fixa de um inquisidor, enquanto que só um criminoso abjeto, graças à exatidão que uma má consciência aguça, consegue evitar contradições em suas mentiras. Mas afora isso, aquele fato do qual falamos não é, afinal de contas, nenhum fato simplesmente histórico, então de que lhe adiantaria tudo aquilo? Se pretendesse elaborar um relatório circunstanciado, que coincidisse letra por letra e minuto a minuto - estaria então, sem dúvida nenhuma, iludido. Ele teria obtido uma certeza até maior do que a do contemporâneo, que vira e ouvira, pois este poderia facilmente descobrir que às vezes não vira ou mesmo se enganara ao ver, e a mesma coisa quanto ao ouvir, e poderia sempre de novo pensar que não havia visto ou ouvido imediatamente o deus, e sim teria visto um homem de aparência humilde que dizia a respeito de si que era o deus, com outras palavras, ele precisaria lembrar-se de que aquele fato se fundava numa contradição. Estaria aquele homem bem servido com a confiabilidade do relato? Do ponto de vista histórico, sim, mas de resto não; pois toda aquela conversa sobre a beleza terrena do deus (dado que ele só se mostrava na forma de um servo - um homem individual, como qualquer um de nós - o objeto do escândalo), sobre sua divindade imediata (dado que a divindade não constitui nenhuma determinação imediata, e o mestre teria de primeiro desenvolver a mais profunda autorreflexão naquele que aprende, a consciência do pecado, como a condição para a compreensão), sobre a miraculosidade imediata de seu agir (dado que o caráter miraculoso não existe imediatamente, mas somente para a fé, na medida em que quem não crê nada vê de miraculoso), é aqui como em toda parte galimatias, uma tentativa de evitar a reflexão com conversa fiada. Esta geração tem a vantagem relativa de situar-se mais próximo do abalo provocado por aquele fato. Este abalo e suas vibrações posteriores contribuem para despertar a atenção. A importância de tal atenção (que pode também transformar-se em escândalo) já levamos em consideração no capítulo quarto. Digamos então que seja para ela uma vantagem (em comparação com os pósteros) estar-lhe um pouco mais próximo, porém só há alguma vantagem, de qualquer forma, em correspondência com a dúbia vantagem de que goza o contemporâneo. A vantagem é completamente dialética, assim como também a atenção. A vantagem consiste em tornar-se atento, seja que a pessoa se escandalize seja que creia. Com efeito, a atenção não toma partido, de maneira alguma, em favor da fé, assim como se a fé brotasse da atenção como sua simples consequência lógica. A vantagem consiste em que se entra num estado tal que a decisão se mostra mais nitidamente. Isto constitui uma vantagem, e esta vantagem é a única que significa algo, sim, e tanto assim que este estado é terrível e de maneira alguma uma situação cômoda e agradável. Posto que aquele fato jamais entrou na rotina humana através da parva irreflexão, cada geração há de exibir a mesma relação para com o escândalo como a primeira; pois não há nenhuma imediatidade que nos faça chegar mais próximo daquele fato. Por mais que alguém seja educado e treinado para aquele fato, de nada lhe adianta. Pelo contrário, principalmente se o educador já tiver sido por sua vez bem-educado naqueles moldes, isso até poderá ajudar o sujeito a se tornar um conversador fiado bem treinado, em cujo espírito não caberá a menor suspeita de escândalo e nem haverá lugar para a fé. b) A última geração Esta se encontra então longe daquele estremecimento, mas em compensação tem as consequências, para nelas se apoiar, tem a demonstração da verossimilhança, fornecida pelo resultado; tem imediatamente diante de si as consequências, com as quais aquele fato certamente deve ter abrangido tudo, tem suficientemente próxima a prova da verossimilhança, da qual, porém, não há nenhuma passagem para a fé, já que, como foi mostrado, a fé de modo algum toma partido em prol da verossimilhança, o que, aliás, dito da fé, constituiria uma calúnia. (A ideia (como quer que ela deva ser mais determinada in concreto) de pretender vincular a prova da verossimilhança a algo inverossímil (digamos para provar - que é verossímil? mas com isso se altera o conceito; ou para provar - que é inverossímil? mas, afinal, usar a verossimilhança para isso, constitui uma contradição) quando levada a sério é tão tola que se deveria considerar impossível o seu surgimento; em compensação, como jogo e brincadeira, em minha opinião, extremamente engraçado, e muito divertido de praticar nesta situação constrangedora. - Um nobre homem quer servir à humanidade com uma prova de verossimilhança, para ajudá-la a enfrentar o inverossímil. É bem-sucedido no intento, acima de qualquer limite; comovido, ele aceita congratulações e agradecimentos, não somente das pessoas importantes, que sabem degustar corretamente a prova, mas também da comunidade - ai, e aquele nobre homem com isso justamente pôs o jogo a perder. - Ou então um homem tem uma convicção; o conteúdo desta convicção é o absurdo, o inverossímil. Nosso homem é bastante vaidoso. Procede-se então da seguinte maneira. Do modo mais tranquilo e amigável, a gente o leva a desembuchar sua convicção. Como não suspeita de nenhuma maldade, ele a expõe sem rodeios. Logo que ele termina, a gente cai por cima dele de um modo tal que estimule tanto quanto possível a sua vaidade. Ele fica constrangido, embaraçado, envergonha-se "de ter podido admitir algo absurdo". Em vez de responder calmamente: "Meu senhor, o senhor é um louco; isto é o absurdo, e não deixa de sê-lo apesar de todas as objeções que eu mesmo já aprofundei de maneira mais terrível do que qualquer outra pessoa poderia expô-lo, ainda que eu tenha optado finalmente pelo inverossímil", ele procura levar a cabo uma prova da verossimilhança. Então a gente se mostra solícito, a gente se supera e conclui afinal mais ou menos assim: "Ó, agora eu percebo que é a coisa mais verossímil do mundo". A gente o abraça e, se quiser levar a brincadeira adiante, beija-o, e agradece-lhe ob meliorem informetionem (pelo ensinamento mais correto), olha-o ainda uma vez nos olhos românticos ao afastar-se, e se separa dele como de um amigo e irmão de leite, para a vida e para a morte, que a gente por ser uma alma irmã compreendeu por toda a eternidade. - Tal brincadeira é justifica da; pois se o homem não fosse vaidoso eu teria feito papel de bobo diante da honesta seriedade de sua convicção. - O que Epicuro diz a respeito da relação do indivíduo com a morte (embora sua consideração seja uma razão bem medíocre de consolo), vale também da relação entre verossimilhança e inverossimilhança: "quando sou, ela (a morte) não é, e quando ela (a morte) é, então eu não sou"). Posto que aquele fato veio ao mundo como o paradoxo absoluto, de nada adianta tudo o que é posterior, pois isso permanece por toda a eternidade consequência de um paradoxo, e com isso, em última análise, tão inverossímil quanto o paradoxo, a não ser que se queira admitir que consequências (que afinal de contas são algo derivado) recebam força retroativa para mudar a natureza do paradoxo, algo tão admissível quanto que um filho recebesse força retroativa para mudar a natureza de seu pai. Mesmo que se pense a consequência de modo puramente lógico, e portanto sob a forma da imanência, permanece contudo verdadeiro que a consequência só pode ser determinável como sendo de gênero idêntico ao da causa; mas não pode de jeito nenhum possuir uma força retroativa. Ter as consequências a seu favor é portanto uma vantagem tão duvidosa quanto ter a certeza imediata, e quem aceita as consequências como um dado imediato é enganado exatamente como aquele que toma a certeza imediata pela fé. A vantagem das consequências parece consistir em que aquele fato pouco a pouco se iria naturalizando. Se tal é o caso (ou seja, se isto pode ser pensado) então a geração posterior está até em nítida vantagem frente à contemporânea (e seria preciso ser muito estúpido para poder interpretar neste sentido a consequência e contudo fantasiar a respeito da felicidade de ser contemporâneo daquele fato), e ela consegue apropriar-se muito sem-cerimônias daquele fato, sem nada perceber da ambiguidade da atenção, da qual tanto pode brotar o escândalo quanto a fé. Entretanto, aquele fato não respeita nenhum treinamento, é orgulhoso demais para desejar um discípulo que queira aderir em virtude do final feliz que a coisa recebeu, desdenha ser naturalizado sob a proteção de um rei ou de um professor; ele é e continua sendo o paradoxo, e não se deixa assimilar pela especulação. Aquele fato existe somente para a fé. Ora, é certo que a fé pode vir a ser uma segunda natureza num homem, mas este homem, de quem ela se torna a segunda natureza, tem de ter tido, indubitavelmente, também uma primeira, já que a fé se tornou outra, a segunda. Se aquele fato deve ser naturalizado, tal coisa pode ser expressa da seguinte maneira, no que diz respeito ao indivíduo: que o indivíduo já nasce com a fé, isto é, com sua segunda natureza. Se começarmos deste modo a nossa análise, logo todos os galimatias começarão a rejubilar-se; pois a partir daí está tudo solto e não se segura mais nada. Esse galimatias deve ter sido inventado na tentativa de "ir mais além", pois na concepção socrática ainda havia verdadeiramente bastante sentido, muito embora logo a tenhamos abandonado para descobrir o que acima projetamos, e tal galimatias consideraria decerto como uma profunda ofensa se alguém dissesse que ele não passou muito além do socrático. Até mesmo numa metem psicose ainda há algum sentido, mas nascer já com a sua segunda natureza, com outra natureza que depende de um fato histórico dado no tempo, isto sim é na verdade o non plus ultra da loucura. Do ponto de vista de Sócrates, já havia um indivíduo antes dele passar a existir, e é disso que ele se recorda, de modo que a reminiscência é a preexistência (e não reminiscência da preexistência); a natureza (a única, pois aqui não se fala de uma primeira e uma segunda natureza) determina-se em continuidade consigo mesma. Aqui, ao contrário, tudo é voltado para o porvir e é histórico, de modo que já nascer com a fé é no fundo tão plausível quanto nascer com 24 anos de idade. Se fosse realmente possível indicar um indivíduo que já tivesse nascido com a fé, então este seria uma monstruosidade mais notável do que aquilo, de que fala o barbeiro na comédia "O superatarefado", que teria nascido nos "Neuen Buden": e ainda que a barbeiros e homens atarefados pudesse parecer uma coisinha adorável, seria o triunfo supremo da especulação. - Ou será que um indivíduo já nasce com duas naturezas ao mesmo tempo, e, bem entendido, não com duas naturezas que se sintetizam para formar a natureza humana comum, mas sim com duas naturezas humanas completas, sendo que uma das delas pressupõe algo histórico entrementes acontecido? Neste caso, tudo o que projetamos em nosso primeiro capítulo se confunde, e não nos situamos nem ao menos no socrático, mas sim numa confusão que nem Sócrates teria condições de resolver. Produz-se, daí para a frente, uma confusão muito parecida com aquela que Apolônio de Tiana inventou, com consequências retroativas. Pois este, com efeito, não se contentava, como Sócrates, com recordar-se de si mesmo antes de ter entrado nesta existência (eternidade e continuidade da consciência, eis a ideia de Sócrates e sua profundidade), mas se apressava para ir mais longe, pois se lembrava até de quem ele era antes de ter sido ele mesmo. Se aquele fato de que falamos for naturalizado, então o nascimento não será mais o nascimento, mas será ao mesmo tempo o renascimento, de tal modo que aquele que nunca existiu renasce - ao nascer. - Na vida individual, isso se exprime da seguinte maneira: o indivíduo já nasce com a fé; para o gênero humano, pode exprimir-se a mesma coisa da seguinte maneira: que depois que aquele fato se produziu, o gênero humano tornou-se totalmente outro, e apesar disso se determina em continuidade com o anterior. Neste caso, o gênero humano deveria adotar um novo nome; pois a fé, assim como a projetamos, não é decerto nada de inumano enquanto nascimento no interior de um nascimento (o renascimento), mas tornar-se-ia, pelo contrário, certamente uma monstruosidade fantástica se fosse assim como a objeção proposta quer que ela seja. A vantagem da consequência é uma vantagem duvidosa também por outra razão, na medida em que ela não é uma simples consequência daquele fato. Avaliemos no Maximo dos máximos a vantagem da consequência que consistiria em ter aquele fato transformado inteiramente o mundo, impregnando de sua onipresença até os pormenores mais insignificantes - como é que isso ocorreu? Certamente isso não aconteceu de um único golpe, porém sucessivamente; e de que maneira, sucessivamente? Ora, por certo de tal maneira que cada geração individual, por sua vez, entrasse em relação com aquele fato? Esta determinação intermediária tem então de ser submetida a controle, de sorte que toda a força das consequências só pode trazer proveito a alguém por meio de uma conversão. Ou será que um mal-entendido não pode igualmente trazer consequências, e uma inverdade não pode igualmente ser bem poderosa? Ou será que isso não ocorreu desse modo com cada geração? Ora, se todas as gerações em conjunto fossem confiar à última, sem mais nem menos, toda a glória das consequências - então as consequências certamente seriam um mal-entendido. Ou Veneza não teria sido edificada sobre o mar, mesmo se fosse edificada de tal modo, que por fim surgisse uma geração que simplesmente nem percebia mais aquilo; e não seria um triste mal-entendido se esta última geração cometesse o erro de começar a construir até as nuvens, e a cidade afundasse? Consequências, porém, que se constroem sobre um paradoxo são afinal, humanamente falando, edificadas sobre o abismo, e o conteúdo total das consequências, que só se transmite ao indivíduo sob a concordância de que elas ocorrem em virtude do paradoxo, é claro que não deve ser tomado como um bem estável, já que o todo é flutuante. c) Comparação Não queremos perseguir esta análise mais adiante, mas sim deixar que cada um em particular se exercite em retomar à ideia a partir dos mais variados ângulos, e empregar sua fantasia para encontrar os casos mais peculiares de diferenças relativas e situações relativas, para daí extrair o resultado. Deste modo, a quantidade fica limitada e terá sua liberdade de ação no interior de limites. A quantidade é a variedade da vida e não para de trabalhar em sua tapeçaria multicolorida; ela é como aquela Parca que fiava, mas aí é importante que o pensamento, como a segunda Parca, cuide de cortar o fio, o que (abandonada a imagem) deve ser feito cada vez que a quantidade pretender fundar a qualidade. A primeira geração de discípulos secundários tem, pois, a vantagem de enfrentar a dificuldade; pois, quando aquilo de que devo apropriar-me é algo difícil, sempre constitui uma vantagem, um alívio, que se me apareça como difícil. Se a última geração, ao observar a primeira e ao vê-la quase sucumbindo sob o terror, tivesse a ideia de dizer: "Não dá para compreender; pois a coisa toda não é tão pesada, que não se pudesse pegá-la e sair correndo com ela", sem dúvida encontraria quem lhe respondesse: "Por obséquio, corre tu mesma, mas cuida bem para ver se aquilo que estás carregando na corrida é realmente aquilo de que estamos falando; e a nossa discussão não é para saber se um vento é bastante leve para que possamos correr carregando-o". A última geração tem a vantagem da facilidade, mas logo que descobrir que esta facilidade é justamente o ponto dúbio que engendra a dificuldade, esta corresponderá à dificuldade do terrível, e o terrível a agarrará tão primitivamente como à primeira geração de discípulos secundários. § 2. A questão do discípulo de segunda mão Antes de passar ao exame mesmo da questão, queremos apresentar em seguida algumas observações para orientação: a) Se se considera aquele fato como pura e simplesmente histórico, é importante ser contemporâneo, e constitui uma vantagem ser contemporâneo (isso compreendido no sentido do capítulo quarto) ou estar tão próximo quanto possível, ou poder assegurar-se da veracidade dos contemporâneos etc. Todo fato histórico é apenas um fato relativo, e por isso está muito certo que o poder do relativo, o tempo, decida o destino relativo dos homens no que toca à contemporaneidade; pois apenas disso se trata, e só a infantilidade ou a estupidez pode superestimar a questão para fazê-la absoluta. - b) Se aquele fato é um fato eterno, então qualquer época lhe estará igualmente próxima; mas notemos bem que não é assim o que ocorre na fé; pois a fé e o histórico se correspondem perfeitamente um ao outro, e por isso é apenas uma acomodação a uma forma menos correta de falar quando emprego aqui a palavra "fato", que provém do histórico. - c) Se aquele fato é um fato absoluto, ou, para precisar ainda mais, é aquilo que expusemos, então seria uma contradição que o tempo pudesse diferenciar, isto é, diferenciar em sentido decisivo, a relação dos homens para com aquele fato, pois o que é essencialmente diferençável pelo tempo eo ipso não pode ser absoluto, pois daí seguiria ser o absoluto um casus na vida, um status relativo a outras coisas, enquanto que, embora declinável em todos os casibus da vida, ele é sempre o mesmo, e embora em constante relação com o outro, é sem dúvida um status absolutus. Mas o fato absoluto é também ao mesmo tempo um fato histórico. Se não atentarmos para isso, todo o nosso discurso hipotético se reduzirá a nada; pois aí falaríamos apenas de um fato eterno. O fato absoluto é um fato histórico e, como tal, objeto da fé. Daí que o seu aspecto histórico deva ser acentuado, decerto, mas não de maneira que se torne absolutamente decisivo para os indivíduos; pois assim recairíamos no ponto a) (ainda que, compreendido assim, isso constitua uma contradição, pois um simples fato histórico não é um fato absoluto e não tem poder sobre nenhuma decisão absoluta); mas o histórico não pode ser afastado, de jeito nenhum, senão teríamos apenas um fato eterno. - Ora, como o histórico é para o contemporâneo a ocasião de tornar-se discípulo, recebendo, bem entendido, a condição do próprio deus (pois senão estaremos falando socraticamente), do mesmo modo o relato dos contemporâneos será para qualquer póstero a ocasião de tornar-se discípulo, desde que, bem entendido, receba a condição do deus. Agora então podemos começar. Do próprio deus recebe a condição aquele que, graças à condição, vem a ser discípulo. Se é assim que se passam as coisas (e é isso o que desenvolvemos no precedente, onde se mostrou que a contemporaneidade imediata é apenas a ocasião, ainda que, notemos bem, não no sentido de que a condição já estivesse presente, sem mais, naquele que recebe a ocasião), onde ainda caberá aquela questão do discípulo de segunda mão? Pois quem recebeu do próprio deus o que possui, é claro que o possui de primeira mão; e quem não o recebeu do próprio deus não é discípulo. Admitamos que as coisas se passem de outra maneira e que a geração contemporânea tenha recebido do deus a condição e que agora as gerações seguintes devam receber a condição daqueles contemporâneos; o que se seguiria daí? Não queremos distrair nossa atenção, imaginando a pusilanimidade histórica com que provavelmente, por uma nova contradição e para uma nova confusão (pois quando começa a barafunda não há mais como detê-la), logo seriam pesquisados os relatos dos contemporâneos, como se tudo dependesse deles. Não, se o contemporâneo deve dar ao póstero a condição, então este último acaba por crer no primeiro. Dele receberia a condição e com isso o contemporâneo tornar-se-ia objeto de fé para o póstero; pois justamente aquele de quem o indivíduo recebe a condição é eo ipso (cf. mais acima) objeto de fé e é o deus. Tal contrassenso bastará para espantar o pensamento, fazendo-o recuar de tal suposição. Mas se, ao contrário, o póstero também recebe a condição do deus, então o elemento socrático retoma, no interior, notemos bem, da diferença total que se constitui por aquele fato e pela relação do indivíduo (do contemporâneo e do póstero) com o deus. Se, pelo contrário, aquele contrassenso não se deixa pensar, é em outro sentido do que quando dizemos que não se deixam pensar aquele fato e a relação do indivíduo para com o deus. Nossa admissão hipotética daquele fato e da relação do indivíduo ao deus não contém nenhuma autocontradição, e o pensamento pode deste modo ocupar-se disso como da coisa mais estranha. Aquela consequência sem sentido de que falamos contém, ao contrário, uma autocontradição, ela não se contenta com estatuir um absurdo (algo que não combina), como é a nossa hipótese, mas produz ainda no interior desse absurdo aquela autocontradição de que o deus para o contemporâneo é o deus, mas o contemporâneo é, por sua vez, o deus para o terceiro. Nosso projeto só num ponto foi mais além de Sócrates: ao pôr o deus numa relação com o indivíduo, mas quem ousaria apresentar-se diante de Sócrates com esta conversa mole, de que um homem é um deus em sua relação com outro homem? Não, de que modo um homem se relaciona com outro homem, Sócrates o compreendia com um heroísmo tal que já requer intrepidez para ser compreendido. E contudo o importante é adquirir a mesma compreensão no interior da formação agora admitida, de que cada homem, na medida em que é crente, não deve nada a outro homem, mas sim tudo ao deus. Entende-se por certo sem maior esforço que essa compreensão não seja fácil, sobretudo ela não é fácil de conservar constantemente (pois não é difícil compreendê-la de uma vez por todas sem pensar nas objeções concretas, ou seja, fingir que se compreendeu); e aquele que quiser começar a exercitar-se nessa arte da compreensão não deixará de flagrar-se mais de uma vez em mal-entendido, e, se quiser conversar sobre isso com outros, trate de prestar bem atenção. Mas quando se compreendeu isso, compreender-se-á também que não se trata e não poderia tratar-se de um discípulo de segunda mão; pois o crente (e só ele, afinal, é discípulo) tem constantemente a autópsia da fé, e não vê com os olhos de um outro, e só vê o mesmo que qualquer crente vê - com os olhos da fé. Que pode então fazer o contemporâneo pelo póstero? a) Pode narrar ao póstero que ele mesmo creu naquele fato; o que não é propriamente nenhuma comunicação (isso se expressa quando se diz que não se dá contemporaneidade imediata e que o fato está baseado na contradição), mas apenas constitui uma ocasião. Com efeito, quando digo: isso ou aquilo aconteceu, narro algo historicamente; mas quando digo: "creio e tenho crido que isto aconteceu, não obstante seja para a inteligência uma loucura e para o coração humano um escândalo", já fiz no mesmo instante justamente tudo o que é possível para impedir que qualquer outro se determine por continuidade imediata comigo, para afastar de mim toda companhia, já que cada indivíduo tem de comportar-se, acuradamente, da mesma maneira; b) Pode narrar desta forma o conteúdo da fé, conteúdo este que no entanto só é para a fé, inteiramente no mesmo sentido que as cores só são para a vista e os sons para o ouvido. Desta forma ele pode fazê-lo; em qualquer outra forma fala apenas ao vento e induz talvez o póstero a determinar-se por continuidade com o palavrório. Em que sentido a credibilidade do contemporâneo pode interessar ao póstero? Não para saber se realmente teve a fé do modo como testemunhou de si mesmo. Isto não concerne, absolutamente, ao póstero, não lhe traz nenhum proveito, não o afasta nem o aproxima de ter sua própria fé. Só aquele que recebe, ele mesmo, a condição do deus (o que corresponde inteiramente ao que se exige do homem, que abandone sua razão, e, por outro lado, é a única autoridade que corresponde à fé), somente este crê. Se quiser crer (isto Interlúdio - O discípulo de segunda mão é, imaginar que crê) só porque muita gente honesta da nossa região creu (isto é, disseram que tinham fé; pois um homem não pode controlar o outro além daí; mesmo que aquele outro aguentasse pacientemente, suportasse e sofresse tudo por causa da fé; quem está fora não pode ir além daquilo que o outro diz a respeito de si mesmo, pois a inverdade pode ir, visto acuradamente, tão longe quanto a verdade - aos olhos humanos - não aos olhos de Deus), então será um bobo, e, visto essencialmente, depende só do acaso que ele creia em virtude de ideias próprias e de uma opinião talvez largamente difundida entre gente honesta ou que creia num Münchhausen. Se a credibilidade do contemporâneo deve interessar-lhe (e, ai, podemos estar certos de que esta é uma coisa que despertará uma enorme sensação e dará ocasião para que se escrevam grossos volumes; pois esta aparência ilusória de seriedade, que consiste em examinar se Fulano ou Beltrano é digno de fé, ao invés de procurar sua própria fé, é um hábito excelente para o comodismo espiritual e os mexericos da cidade à moda europeia), deve ser no que tange ao histórico. Mas a qual histórico? Aquele histórico que tão somente pode vir a ser objeto para a fé, e que um indivíduo não pode comunicar ao outro, isto é, que um pode muito bem comunicar ao outro, mas, atenção, não de modo que o outro o creia, enquanto que ele, quando o comunica na forma da fé, faz exatamente toda a sua parte para impedir ao outro que o aceite em sentido imediato. Se o fato do qual falamos fosse um simples fato histórico, então a exatidão do historiador seria de grande importância. Aqui não é este o caso, já que nem dos mais delicados pormenores pode-se destilar fé. O fato histórico de que o deus tenha estado sob forma humana é o ponto capital e os restantes pormenores históricos nem são tão importantes, por se tratar do deus, quanto o seriam caso se tratasse de um homem. Os juristas dizem que um crime capital absorve todos os outros de menor importância - o mesmo ocorre com a fé: sua absurdidade absorve completamente os pormenores. As discrepâncias ou incongruências, que em outros casos perturbariam tanto, aqui não perturbam e não alteram em nada a coisa. Ao contrário, altera muito se alguém, por causa de cálculos menores, quer entregar a fé ao que faz a melhor oferta; altera tanto que ele jamais chegará à fé. Mesmo que a geração contemporânea não tivesse deixado nada mais do que estas palavras: "Nós cremos que, no ano tal e tal, o deus mostrou-se na humilde aparência de um servo, viveu e ensinou entre nós, e depois morreu" - isso é mais do que suficiente. A geração contemporânea teria feito todo o necessário; pois este pequeno Anúncio, este Nota Bene da história universal é suficiente para tornar-se uma ocasião ao póstero; enquanto que o mais prolixo dos relatos não poderia vir a significar mais para o póstero em toda a eternidade. Caso se deseje expressar a relação do póstero com o contemporâneo da maneira mais breve possível, mas sem renunciar pela brevidade à exatidão, pode-se então dizer: o póstero crê por meio do (por ocasião do) relato do contemporâneo, em virtude da condição que ele mesmo recebe do deus. - O relato do contemporâneo é a ocasião para o póstero, assim como a contemporaneidade imediata o é para o contemporâneo; e se o relato é aquilo que convém que seja (o relato de um crente) então ocasionará exatamente a mesma ambiguidade da atenção que ele mesmo teve, ocasionada pela sua contemporaneidade imediata. Mas se o relato não é tal, então ele é ou bem o de um historiador, e não trata propriamente do objeto da fé (como quando um historiador contemporâneo, que não era crente, relata isso ou aquilo); ou bem o de um filósofo, e não trata do objeto da fé. O crente, ao contrário, oferece o seu relato justamente de tal maneira que ninguém pode aceitá-lo imediatamente; pois a expressão "eu o creio (a despeito da razão e do meu próprio talento inventivo)" representa um "porém" bastante problemático. Não existe nenhum discípulo de segunda mão. Visto essencialmente, o primeiro e o último são iguais, só que a geração posterior tem a ocasião no relato do contemporâneo, enquanto que a contemporânea tem a sua na contemporaneidade imediata, e nesta medida não deve nada a nenhuma geração. Mas esta contemporaneidade imediata é mera ocasião, e isso não pode expressar-se mais enfaticamente do que dizendo-se que o discípulo, se se compreendeu a si mesmo, justamente teria de desejar que ela cessasse, o deus deixando novamente a terra. Porém quem sabe alguém dirá: "Isso tudo é muito curioso; agora já li tua exposição até o fim, e realmente não sem certo interesse, e fiquei contente de ver que não continha nenhuma senha secreta, nenhuma escrita invisível. Mas por mais volteios e giros que faças, assim como o Saft sempre termina na despensa, tu também terminas sempre introduzindo no que dizes alguma palavrinha ou frase que não é tua, e que perturba pela recordação que evoca. Esta ideia de que seja proveitoso ao discípulo que o deus vá embora, encontra-se no Novo Testamento, no Evangelho de São João. Contudo, quer isso tenha ocorrido intencionalmente ou não, quer tenhas querido dar a esta observação um efeito particular ao recordá-la dessa forma, quer não, com o rumo que a coisa tomou, a vantagem do contemporâneo, que eu originalmente me inclinava a avaliar muito alto, parece ter-se reduzido bastante, dado que não se pode falar de um discípulo de segunda mão, o que aliás em bom dinamarquês significa que todos são essencialmente idênticos. Mas isto não é tudo: a partir da tua última observação, a contemporaneidade imediata parece ter-se tornado uma vantagem tão ambígua, que o máximo que se pode dizer dela é que seria melhor que cessasse. Dito de outra maneira, ela constitui um estado intermediário que tem decerto a sua importância, e que não se pode suprimir sem que, como tu dirias, se recaia no socrático, mas que não obstante não tem para o contemporâneo uma importância absoluta, de modo que sua interrupção o privasse do essencial, dado que pelo contrário com isso ele até sai ganhando, apesar de que, se isso não tivesse acontecido, ele teria perdido tudo e recaído no socrático". - "Muito bem formulado, retrucaria eu, se a modéstia não mo proibisse; pois tu falas, afinal, como se fosse eu mesmo. Sim, é isto aí: a contemporaneidade imediata não constitui de jeito nenhum uma vantagem decisiva quando se aprofunda a questão, sem curiosidade, pressa ou desejo, sim, quando não se está já ansioso, pronto para saltar, disposto como aquele barbeiro da Grécia Antiga a arriscar a vida a fim de ser o primeiro a contar as notáveis notícias, ou quando não se é tão louco a ponto de chamar de martírio uma morte como esta. A contemporaneidade imediata constitui tão pouca vantagem, que o contemporâneo deveria justamente desejar que ela cessasse, para não ser tentado a correr atrás dela e ver com seus olhos corporais e ouvir com seus ouvidos terrenos; o que não é senão um vão esforço e uma triste, sim, perigosa fadiga. No entanto, tu mesmo o observaste, isso pertence propriamente a outra ordem de reflexões, em que se questionaria qual a vantagem que o crente contemporâneo, após ter-se tornado crente, poderia obter desta contemporaneidade. O póstero não pode ser tentado dessa maneira; pois ele só dispõe do relato do contemporâneo, o qual, enquanto constitui um relato, tem a forma proibitiva da fé. Por isso, se ele se compreende a si mesmo, tem de desejar que o relato do contemporâneo não seja demasiado prolixo e sobretudo não esteja espalhado por tantos livros que cubram a terra. Na contemporaneidade imediata há uma inquietude que só acaba quando se ouve o 'Está consumado', mas sem que por isso a quietude deva então mandar embora a história, porque neste caso tudo voltaria a ser socrático". - "Dessa maneira ter-se-ia estabelecido a igualdade e as partes em luta teriam sido reconduzidas à igualdade". - "Esta é também a minha opinião; mas ao mesmo tempo tens de considerar que o conciliador é ninguém menos do que o próprio deus. Porque, como imaginar que o deus pudesse estabelecer um acordo com alguns homens de tal modo que este acordo estabelecesse uma diferença que elevaria um clamor aos céus? Isso seria, aliás, provocar a discórdia. Será que o deus permitiria que o poder do tempo decidisse a quem ele havia de favorecer, ou não seria digno do deus tornar o acordo igualmente difícil para todos os homens de todos os tempos e todos os lugares; igualmente difícil, porquanto ninguém é capaz de dar-se a si mesmo a condição, mas de maneira nenhuma deveria recebê-la de outro homem, o que haveria de provocar nova discórdia; igualmente difícil, mas ao mesmo tempo igualmente fácil, visto que é o deus quem a dá? Eis por que desde o começo considerei meu projeto (na medida em que assim se possa considerar uma hipótese) como um projeto piedoso, e ainda o considero assim, sem contudo por isso ser indiferente a qualquer objeção humana, antes, pelo contrário, volto a rogar-te que, se tu tens alguma objeção legítima, a apresentes". - "Como te tornas solene de repente! Ainda que o assunto não o exigisse, seria preciso fazer alguma objeção, nem que fosse só para manter esta solenidade, a não ser que ficasse ainda mais solene o abster-se, e que tua cerimoniosa exortação não tivesse em vista senão impor indiretamente o silêncio. Para que pelo menos a natureza de minha objeção não perturbe a solenidade, retirá-la-ei deste ambiente solene que, a meu juízo, é um dos sinais pelos quais uma geração tardia se distingue da contemporânea. Pois isso entendo muito bem que a geração contemporânea deve perceber e sentir muito profundamente a dor que reside no devir de tal paradoxo, que reside, como o disseste, nesta implantação do deus na vida humana; mas é necessário que esta nova ordem de coisas pouco a pouco se imponha vitoriosamente, e finalmente há de chegar a feliz geração que entre os cantos de júbilo recolherá o fruto do grão que foi semeado com lágrimas pela primeira. Mas esta geração triunfante que "passa através da vida acompanhada de cantos e música", não é por certo diferente da primeira e das demais que a precederam?" - "Sim, é incontestavelmente diferente delas e talvez tão diferente que já nem lhe reste aquela igualdade que é a condição para que nos ocupemos dela, a condição cuja ausência provocará o desconcerto em nossos esforços para estabelecer a igualdade. Mas tal geração triunfante, que passa pela vida ao som de cantos e música, como tu dizes, e com a qual me recordavas, se a memória não me falha, a tradução de uma passagem da Bíblia (em estilo de estudante e impregnada da velha escuma nórdica), feita por um gênio bem conhecido, será realmente crente? Em verdade, se ocorresse à fé alguma vez a ideia de avançar assim, marchando triunfalmente en masse, então ela não precisaria autorizar alguém a cantar refrões satíricos, porque de nada adiantaria proibi-lo a todos. Mesmo que os homens emudecessem, ouviríamos sobre esta louca procissão uma risada estridente como aqueles sons zombeteiros que a natureza faz ouvir no Ceilão; pois a fé que triunfa é a mais ridícula de todas as coisas. Se a geração contemporânea de crentes não teve tempo de triunfar, nenhuma outra o conseguirá; pois a tarefa é a mesma, e a fé é sempre militante; mas enquanto ainda houver luta haverá possibilidade de derrota, e por isso, no que concerne à fé, jamais se triunfa antes do tempo, ou seja, jamais se triunfa no tempo; pois onde se encontrará tempo para compor cânticos triunfais ou ocasião para cantá-los! Se isso acontecesse, seria como se um exército, pronto para o combate, em vez de atacar, retomasse em triunfo à caserna na cidade - e mesmo que ninguém risse disso, ainda que toda a geração contemporânea simpatizasse com esse abracadabra - a risada abafada da existência não acabaria explodindo, no momento menos esperado? Acaso com isso a conduta do assim chamado crente de gerações posteriores não seria análoga à do contemporâneo, senão ainda pior, quando o contemporâneo instava, em vão, com o deus para que este não se expusesse à humilhação e ao desprezo? (capítulo II). Pois este assim chamado crente das gerações tardias não quereria contentar-se, ele mesmo, com a humilhação e o desprezo, contentar-se com a loucura militante, mas estaria disposto a crer, desde que isto fosse feito "com cantos e música". A tal homem o deus decerto não diria, nem poderia dizer, como ao contemporâneo: "Então tu só amas ao Onipotente, ao que faz o milagre, e não àquele que se humilhou à tua imagem e semelhança". E aqui eu vou interromper. Ainda que eu fosse melhor dialético do que sou, teria, não obstante, um limite, e no fundo é justamente a firmeza no absoluto e nas distinções absolutas o que torna alguém um bom dialético, algo que se perdeu completamente de vista em nossa época, na abolição e com a abolição do princípio de contradição, sem entender aquilo que já Aristóteles acentuava, que esta proposição (de que o princípio de contradição é abolido) está baseada sobre o princípio de contradição, dado que de outro modo a proposição contrária (de que ele não é abolido) seria igualmente válida. Só mais uma observação ainda quero fazer, quanto a tuas numerosas alusões a respeito das ideias emprestadas que introduzi no que ficou dito. Não nego que seja esse o caso, nem quero agora ocultar, de jeito nenhum, que isto foi feito intencionalmente, e também que na sequência deste folheto, se algum dia eu chegar a escrever uma continuação (Apesar da forma frouxa da promessa, Clímacus a cumprirá, publicando o Postscriptum final não científico em fevereiro de 1846), tenho em mente nomear as coisas pelo seu verdadeiro nome e revestir o problema de seu costume histórico. Se é que chegarei a escrever uma continuação, pois se um escritor de folhetos, como eu, não tem nenhuma seriedade, como sem dúvida já ouviste dizer de mim, de que maneira então poderia querer ao final simular uma seriedade que não tenho, só para agradar os homens, ao fazer o que talvez seja uma grande promessa? Com efeito, escrever um folheto é uma frivolidade - mas prometer o sistema, eis aí o que é sério; e isto já transformou muito homem em gente extremamente séria, aos olhos dele mesmo e dos demais. Mas não é difícil perceber qual será a roupagem histórica da continuação. Como se sabe, o cristianismo é, com efeito, o único fenômeno histórico que, apesar de histórico, melhor dito, precisamente por causa do histórico, pretendeu ser para o indivíduo o ponto de partida de sua consciência eterna, pretendeu interessar-lhe de outra maneira que não a meramente histórica, pretendeu fundamentar-lhe a sua salvação em sua relação a algo histórico. Nenhuma filosofia (pois esta só se dirige ao pensamento), nenhuma mitologia (pois esta só se dirige à imaginação), nenhum saber histórico (que se restringe à memória) jamais teve esta ideia, da qual podemos dizer neste contexto, com toda a ambiguidade, que não surgiu de nenhum coração humano. Isto, no entanto, é algo que desejei até certo ponto esquecer e, fazendo uso da liberdade ilimitada que uma hipótese fornece, supus que tudo não passasse de um excêntrico achado de minha própria mente, que eu porém não queria abandonar antes de ter examinado a fundo. Os monges nunca terminaram de contar a história do mundo porque sempre começavam pela criação do mundo; se se deve, ao tratar da relação entre filosofia e cristianismo, começar por narrar previamente o que foi dito antes, como lograremos - já nem digo terminar, mas - chegar a começar? Pois a história, afinal, continua a crescer. Mas caso se deva começar com Pôncio Pilatos, "aquele grande pensador e sábio, executor Novi Testamenti" (executor do Novo Testamento), que, afinal de contas, à sua maneira prestou vários serviços ao cristianismo e à filosofia, se bem que não tenha inventado a mediação, e caso antes de começar com ele ainda se deva aguardar a aparição de um ou outro escrito decisivo (talvez o Sistema), de cuja publicação tantas vezes já ocorreu o anúncio ex cathedra, de que maneira se chegará a começar? Moral da história Este projeto ultrapassa, indiscutivelmente, o socrático, coisa que se mostra em cada ponto. Que seja ou não, por isso, mais verdadeiro do que o socrático, é uma questão completamente diferente, que não se deixa decidir no mesmo alento, dado que aqui admitiu-se um novo órgão: a fé, e uma nova pressuposição: a consciência do pecado, uma nova decisão: o instante, e um novo mestre: o deus no tempo, sem os quais verdadeiramente eu não teria ousado apresentar-me ante a inspeção do grande mestre da ironia, admirado através dos milênios, de quem me aproximo com o coração saltando de entusiasmo como diante de mais ninguém. Mas ultrapassar Sócrates, quando se diz essencialmente o mesmo que ele, só que apenas não tão bem, isso pelo menos não é socrático.