Você está em Material de apoio > Entrevistas

Entrevista

  (15/Set)

Entrevistando o filósofo Tarcísio Haroldo Cavalcante Pequeno

 
Mini-currículo:

- Pós Doutorado no Imperial College, na Inglaterra.
- Doutor em Teoria da Computação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro pela PUC-Rio.
- Doutorado Sanduíche na Universidade de Waterloo, no Canadá.
- Mestre em Computação pela PUC-Rio.
- Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará.
- Professor de Filosofia, Lógica e Inteligência Artificial.

Foi

- Professor Visitante na University of New Hampshire, Estados Unidos.
- Professor Associado da PUC-Rio.
- Professor Titular da UFC.
- Membro da Diretoria Nacional da SBPC.
- Secretário Regional da SBPC.

É

- Diretor-Presidente da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP.
- Professor Titular da Universidade de Fortaleza - UNIFOR.
- Pesquisador e Consultor do CNPq.
- Membro do Comitê Assessor para área de Ciências da Computação da CAPES.



ENTREVISTA


Só Filosofia: Prof. Tarcísio Pequeno, o senhor vem traçando uma caminhada intelectual bastante diversificada, passando pela física, pela filosofia, pela computação. Fale um pouco sobre seus interesses e como faz essa conversação entre áreas de conhecimento aparentemente tão diversas.

Tarcísio Pequeno: Bom, do meu ponto de vista, primeiro não acho que sejam tão diversas assim, e na realidade, eu teria várias maneiras de explicar? todas elas não verdadeiras. Eu poderia dar um nexo causal, um nexo lógico, científico pra essas conexões e mostrar que tem um caminho único, mas eu estaria mentindo. Falando a verdade o que acontece é o seguinte: como normalmente acontece na vida, as coisas não são planejadas e não têm esses nexos tão claros e bem definidos assim.
Primeiro, eu sempre gostei muito de física quando estudante, e na realidade, eu fiz vestibular para a escola de engenharia precisamente porque lá era o lugar, na época, onde melhor se ensinava ciências exatas. Já havia sido recém criado o curso de Física, no entanto, a física que se ensinava na escola de engenharia era melhor do que a física que se ensinava no curso de física, então, eu fiz engenharia. Nesse período chegaram doutores na Física, o curso foi melhorando e eu fazia, em paralelo, cadeiras avulsas no Instituto de Física.
Eu gostava muito de física, inclusive, minha primeira contratação pela Universidade Federal do Ceará, meu primeiro concurso foi para física. Acontece que, nesse ínterim, devido a meus outros interesses de natureza completamente existencial, e sendo, como eu sou, de temperamento romântico, nos diversos sentidos da palavra, mas também nesse sentido usual, eu me apaixonei muito cedo, aliás, todo mundo se apaixona muito cedo. Eu dei consequência a essa paixão e acabei tendo que casar? tendo porque, enfim, houve uma aventura amorosa, naquela época era o que se usava, houve uma fuga, eu tive que casar, e, ainda estudante, me vi na contingência de ganhar dinheiro, uma vez que minha esposa já estava inclusive grávida. Por isso tive que procurar um lugar onde um estudante pudesse ganhar dinheiro, ingressei na IBM e comecei a trabalhar com computação. Na realidade isso me tirou da física e inicialmente eu gostei, aquilo me fascinou, depois me fascinou menos, mas, de qualquer forma, já me desviou do meu objetivo. Então, não foi uma escolha racional, foi uma obra das circunstâncias.
Bom, então, se junta assim essa formação em computação e física. Na PUC, do Rio de Janeiro, onde eu fiz meus estudos de pós-graduação, que era uma excelente intituição, que me encantou, tinha pessoas de altíssimo nível, inclusive fundamental e básico, e foi onde eu entrei em contato com pessoas que estudavam seriamente e com grande qualidade a lógica matemática, e como, apesar de estar na computação, eu não gostava dos aspectos práticos da computação, eu gostava dos aspectos mais teóricos de qualquer ciência, na computação, escolhendo lógica matemática, inteligência artificial, prova automática de teoremas etc, foi minha maneira de me reconcilliar com a ?física?, na verdade com uma certa estrutura de ciência e de conhecimento que me atraiam.
Então, dediquei-me à computação e fui migrando gradativamente para as áreas mais teóricas e fundamentais, até virar, praticamente, um especialista em lógica matemática.
E daí para a filosofia? Bem, nessa hora eu poderia mentir bastante. Eu poderia dizer, bom, estou estudando lógica matemática, inteligência artificial, todo mundo sabe que há uma correlação muito estreita entre inteligência artificial, lógica matemática? a própria lógica já é uma área ambígua, pertence à computação, à matemática, à filosofia. Inteligência artificial também é uma área de fronteira entre a computação, a psicologia e a filosofia, então eu posso dizer que isso naturalmente foi me levando para a filosofia. Já havia um parentesco, e, na realidade, na Puc do Rio, ainda, eu já comecei a interagir com o departamento de filosofia, e quando voltei pro Ceará eu dei consequência e continuidade a essa ligação. Então estaria perfeitamente explicado e lógico, mas não foi assim nem foi por causa disso.
Na realidade, mesmo na Física, sempre me agradaram os aspectos mais fundamentais da ciência, e eu também sempre li sobre Filosofia da Ciência e sobre filosofia em geral. Lia como hobby, jamais pensei em me dedicar àquilo de uma forma profissional ou técnica, porque eu achava até uma espécie de trapaça. Aquilo era uma coisa agradável pra fazer quando eu estava um pouco mais cansado do trabalho mais duro, com as ciências mais duras, aquilo me distraía, ler textos de filosofia, assim como me distrái ler textos de história e outras coisas que me agradam. Se eu pensasse, puxa, eu posso transformar isso na minha atividade profissional para ganhar a vida, eu me sentiria trapaceando, isso aqui não é trabalho, isso é um hobby, é o que a gente faz quando está cansado de fazer as outras coisas.
Eu nunca achei aquelas leituras de filosofia, da época de Platão, Aristóteles e alguns filósofos da ciência como Eddington, Popper - que eu já conhecia logo após a adolescência, eu nunca considerei que isso fosse alguma coisa para se fazer a sério. Mas o fato é que mesmo na física eu gostava dos fundamentos da física, assim como na computação o que me interessava eram os fundamentos da computação, e eu entendi, claramente, que durante todo tempo eu gostava de filosofia, na realidade eu gostava de filosofia.
Sentia um pouco a falta? reclamava um pouco da falta de precisão e de exatidão da filosofia, e, de fato, os discursos filosóficos frouxos ainda hoje me desagradam profundamemente. Sentia essa falta, essa lacuna, justamente isso que dá a ela uma cara de não-trabalho, mas, por outro lado, eu vi que em todas as coisas que eu me interessava, na realidade eu me interessava pelos aspectos filosóficos das coisas. Portanto, a minha aproximação, depois de juntar essas coisas todas com a filosofia, não foi propriamente por esse caminho da lógica, acabei utilizando ele, mas não por isso, porque filosofia, na realidade, a minha vida toda, de uma certa forma, eu fiz.

Só Filosofia: Encontramos também em seu histórico uma preocupação com atividades bastante concretas, que se evidenciam, principalmente, no núcleo de computação da Universidade Federal do Ceará, onde o senhor foi o maior responsável pela implantação dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado desta instituição, além de um bem estruturado laboratório de Inteligência Artificial. Teria alguma dica de como fazer tanto num país que ainda investe tão pouco em Educação?

Tarcísio Pequeno: Dica eu não tenho, e devo também dizer algo: essas coisas que porventura eu fiz, de uma certa forma, eu as fiz todas a contra-gosto. Eu fiz por falta de outra pessoa que fizesse. Se estudar filosofia, durante certa época, parecia não ser uma atividade para ser tomada a sério, mas como hobby, também, fazer certas coisas práticas, como, por exemplo, quando comecei minha carreira em computação, eu me dediquei a coisas práticas: fui programador da IBM, depois fui diretor do Centro de Processamento de Dados da então companhia telefônica do Estado do Ceará, com responsabilidade, tendo que implementar sistemas, serviços, tendo que criar programas de faturamento e cobrança, enfim, quando eu tinha que programar computadores, fazer as coisas funcionarem, produzir.
Depois, na própria universidade, quando criei o Centro de processamento de Dados, mais tarde chamado de NPD (Núcleo de Processamento de Dados), eu e um grupo de bolsistas estudantes, só havia eu já formado, com alguma experiência, onde eu treinava meus próprios ajudantes etc., tudo isso eu chamo de trabalho, isso eu chamo de trabalho mesmo, e no sentido latino de trabalho, tortura, é o tripalium. Isso aí era o preço que eu tinha que pagar, um preço tal, que aí foi o contrário, eu fui maquinando para, tão logo fosse possível, não ter mais que pagar. Foi o que aconteceu quando eu, finalmente, larguei, depois de ter sido diretor do centro de Processamento de Dados da companhia telefônica e da Universidade, por um tempo acumulando as duas funções, trabalhando arduamente, até que fiz o concurso para a universidade e larguei tudo.
Quando, então, eu tive a oportunidade de sair para fazer mestrado, aquilo foi uma descontração na minha vida e uma forma de retornar ao meu meio natural e largar esse negócio de fazer coisas. Nesse período, eu passei cerca de dez anos da minha vida, talvez mais, durante um período de 1975 a 1992, sem fazer coisas, mas realmente me dedicando a uma vida acadêmica e a minhas buscas existenciais. Eu assumi então esse tipo de trabalho. Eu considerava que já tinha pagado um preço durante os anos como estudante, ainda muito novo, de 1968 a 1975, quando tive que trabalhar muito e dormir, inclusive, muito poucas horas por dia. Nesse novo período eu relaxei e achei que aquilo era uma brincadeira, fazer mestrado, doutorado, coisas que nunca me deram trabalho fazer, nunca me tiraram noite de sono, nunca me angustiaram. Fiz com alegria e facilidade, ao mesmo tempo em que dava aula, enfim, aquilo foi uma brincadeira, uma diversão. Sem contar com as meninas bonitas que tinham na PUC e que a gente podia namorar.
Mas eu sempre mantive contato com um grupo aqui no Ceará, com o qual eu me sentia com alguma responsabilidade, aqueles meninos que tinham trabalhado comigo como bolsistas desde o tempo do NPD, eu sentia uma responsabilidade por isso, e sempre, mesmo de fora, ou quando podia vinha passar uma temporada, ainda fizemos algumas coisas juntos, como o curso de tecnólogo, que eu criei ainda antes de ir ? o primeiro curso de computação do Estado do Ceará, depois o curso de graduação plena em computação ? também o primeiro do Estado, que eu fiz a grade, o projeto do curso e tudo mais, fiz quando afastado, como uma espécie de pedágio que eu paguei, mas também porque achava importante.
Criei também um curso de especialização, até como parte desse projeto porque, para que a graduação pudesse ser criada, nossos professores teriam que ser mais bem treinados e, portanto, criei o curso de especialização, do qual eu fui o primeiro coordenador e professor, para ajudar a melhorar o nível dos nossos professores pra que eles pudessem ser professores do curso de graduação que estávamos criando. Tudo isso eu fiz enquanto morava fora, meio assim como quem paga um pedágio.
Agora, quando voltei para o Ceará, em 1992, eu já voltei mesmo disposto a construir realmente um grupo científico aqui, a pós-graduação, o mestrado etc., quando eu era o único doutor até então. Aí arregacei as mangas pra fazer, continuei estudando, brincando e namorando, mas arregacei as mangas pra fazer esse negócio.
Então fizemos o curso, também fomos pioneiros em implantar a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) no Ceará, fui coordenador da rede, num consórcio Internet-Ceará, criamos o mestrado, no devido tempo, trouxemos as pessoas, fizemos um grupo, concurso, criamos o laboratório de Inteligência Artificial. Tivemos uma estratégia, para fazer isso, foi tudo de caso pensado, tudo com má vontade, como eu já disse, fazendo por um sentido de obrigação e dever, não como uma coisa que eu goste de fazer.
Eu gosto de fazer duas coisas: gosto de estudar e ficar sem fazer nada.

Só Filosofia: Como mencionado, sua carreira acadêmica mostra-se bastante diversificada, trazendo contribuições em áreas como a Filosofia - onde colabora efetivamente como professor e orientador, a Ciência da Computação e, principalmente, acredito, a Linguagem, Inteligência Artificial e a Lógica. Recentemente, teve um artigo publicado numa conceituadíssima revista científica internacional: Synthese - An International Journal for Epistemology, Methodology and Philosophy of Science , onde o senhor desenvolve o que chama de Lógica do Raciocínio Complexo. Poderia nos falar um pouco sobre essa Lógica?

Tarcísio Pequeno: Bom, isso na realidade foi meu principal projeto, minha principal área de investigação profissional depois do doutorado. Eu fiz um trabalho no mestrado, e no doutorado, fiz um trabalho que, de certa forma, seguia a linha do mestrado, mas em níveis extremamente mais complexos, foi um trabalho que, na realidade, eu fiz a várias mãos.
Eu tive o privilégio de ser o primeiro doutor em computação formado no Brasil, fui formado num sistema sanduíche entre a PUC, do Rio de Janeiro, e a Universidade de Waterloo, no Canadá. Na realidade, eu ia fazer o doutorado inteiramente no Canadá, mas recebi uma oferta da PUC, já me fazendo professor pleno, já me dando todas as condições de trabalho etc. Eu faria o doutorado, então, sem sair do conforto da minha vida no Rio de Janeiro. Além disso, com o compromisso de passar um ano no Canadá, com uma bolsa sanduíche ? o que de fato aconteceu, e com o privilégio de trabalhar com uma equipe com três orientadores de altíssimo nível: os professores Roberto Nunes de Carvalho, Paulo Veloso e o Carlos Pereira de Lucena, que era meu orientador oficial. Na realidade, eu trabalhava com esse grupo, e tive a oportunidade de fazer um doutorado em situação bastante especial: com status de professor, com as condições de professor, com três orientadores e com todos os meios e liberdade, possibilidade de viajar etc.
A tese era interessante e, além desse grupo, incluía-se ainda o professor Tom Maibaum, que, na época, estava na Universidade de Waterloo, depois se transferiu para o Imperial College, em Londres ? aonde é professor ainda hoje. Esse grupo se desenvolveu e, quando eu fui pro Canadá, foi precisamente pra trabalhar com o Tom Maibaum, que anteriormente havia passado um ano no Brasil e com o qual eu já havia trabalhado também. Com esse grupo de professores que eu mencionei, nós desenvolvemos umas soluções realmente originais e interessantes na época, e concebemos, de forma independente, o conceito de lógica não-monotônica , na mesma época em que esse conceito estava sendo concebido internacionalmente e aparecia publicado num número especial da revista Artificial Intelligence. Esse grupo, centrado no Brasil, estava desenvolvendo isso em paralelo.
Bom, acontece normalmente, nos primeiros anos após o doutorado, de a pessoa se dedicar a continuar os trabalhos decorrentes do doutorado. Não foi exatamente assim comigo, pois, ao terminar o doutorado, eu gostava da ferramenta e do estudo lógico, inclusive gostei da lógica não-monotônica, mas eu não gostava da questão, do problema, porque eu trabalhava num sistema para a construção logicamente correta de programas grandes, trabalhava na área de prova automática de teoremas, e esse viés via programação me interessava cada vez menos. O meu interesse era muito maior na questão do raciocínio, da lógica que estava ligada à inteligência artificial, então eu comecei a dirigir nessa direção, de forma mais ou menos anuclear, porque fui um dos pioneiros da inteligência artificial.
Eu não gosto de estar dizendo essas coisas, porque parece até certos amigos que eu tenho? parece que eu fiz tudo e comecei tudo, mas, de fato, fui um dos pioneiros da inteligência artificial no Brasil.
Comecei a orientar alunos, inclusive na própria PUC, nessa direção, e comecei a me encaminhar para a utilização desse tipo de lógica e da lógica em geral, em inteligência artificial. Nesse momento, eu fiz um pós-doutorado no Imperial College, em Londres, e por ocasião, lá trabalhei com o Tom Maibaum, trabalhei um pouco com o Dov Gabbay, mas não foi por conta deles não, na realidade, foi por conta daquilo mesmo que eu já vinha pensando, já vinha trabalhando. E pelo fato de eu ter disponibilidade e tempo, sentado naquela grama daqueles parques ingleses maravilhosos com um bloquinho de notas, eu tive oportunidade de ir concebendo um tipo de lógica que resolvia os problemas que se colocavam no dia-a-dia da fronteira da área de inteligência artificial, isso foi em 1989.
Percebi que esses problemas se resolviam por uma série de observações que eu fiz, através da lógica não-monotônica ? que é uma lógica que permite fazer inferências muito além do que permite uma lógica dedutiva, que pode ser chamada uma lógica super-dedutiva, porém, as inferências não preservam a verdade estritamente, não carregam a certeza, está sujeita a falhas, como é o raciocínio necessário para lidar com o mundo real. Mas aí eu vi que essa lógica não podia ter por base a lógica clássica, que era o que faziam, até então, as pessoas que pesquisavam isso no mundo.
Nessa época, essa já era uma área bastante popular, praticamente dez anos depois do auge do meu doutorado e do lançamento da revista Artificial Intelligence ter introduzido essa linha. Já havia muitos pesquisadores, de muito boa qualidade, trabalhando com isso, mas, invariavelmente todos trabalhavam tomando por base a Lógica Clássica.
Eu percebi, e isso foi um insight de natureza mais filosófica que qualquer outra coisa, que uma lógica que não trabalha com a certeza, também não pode trabalhar com a não-contradição. Esse fenômeno aparecia sempre sob forma indesejável e sempre era xingado, recebia o nome de extensões anômalas, enfim, de contradições indesejáveis. Hegel já havia identificado isso e chamava de inductive inconsistense ? inconsistências indutivas, isso era considerado uma praga, uma doença.
O que eu fiz foi compreender que isso não era doença, pelo contrário, era uma característica natural, e era até um mérito dessas lógicas. Nessa época, eu já conhecia o Newton da Costa pessoalmente, enfim, conhecia bem os trabalhos dele, e compreendi que era preciso conciliar a contradição com a não-monotonicidade, porque essas coisas, na realidade, eram dois fenômenos lógicos, onde um acabava despertando o outro.
O que acontecia é que as pessoas que estudavam para-consistência eram pessoas da lógica pura, da matemática, e não conheciam nada de lógicas não-monotônicas, e quando um ou outro conhecia, não gostava. E as pessoas da área de lógicas não-monotônicas não conheciam para-consistência. Eu conhecia ambas e, além disso, tive essa percepção que, na base do raciocínio, essas coisas teriam que conviver. Então, comecei a construir uma lógica com essas características.
Comecei a trabalhar com ela em 1989, como eu disse, depois trabalhei com vários colaboradores, orientei várias teses de doutorado, em particular o Arthur Buchsbaum, que se tornou um grande colaborador no desenvolvimento dessa lógica, trabalhando comigo durante seu mestrado e doutorado. Depois, o próprio Marcelino Pequeno, que fez o doutorado no Empirial College, também em lógicas não-monotônicas, mas com outras abordagens, e que posteriormente percebeu importância dessa abordagem que eu estava dando e tornou-se outro colaborador. A Ana Teresa Martins, que também foi minha orientanda - também nessa direção, na Universidade de Pernambuco, mas eu a orientei daqui, o Ricardo Silvestre, ultimamente já aplicando essa lógica em Filosofia das Ciências na Universidade de Montreal - de quem eu fui co-orientador, enfim, tive vários colaboradores, todo um grupo e, a gente trabalha nisso desde 1989, há quase vinte anos.
Então, a lógica é isso, uma lógica que pretende dar conta da flexibilidade e da complexidade do que normalmente se chama raciocínio. Porque aquilo que a Lógica Clássica dedutiva implementa é uma forma muito apropriada à matemática, mas que não se pode, adequadamente, chamar-se de raciocínio. O raciocínio que aborda questões de natureza prática não pode se dar daquela maneira.

Só Filosofia: É interessante observar como, partindo de uma disciplina árida e objetiva como a lógica, o senhor trava conversações com temas aparentemente tão díspares e que trazem conteúdos, muitas vezes, bastante subjetivos. Há alguns meses, por exemplo, o senhor realizou um longo seminário na Justiça Federal do Estado do Ceará com o tema: Lógica da Tolerância. Qual a relação entre o Raciocínio e Tolerância?

Tarcísio Pequeno: Essa minha lógica, ela é uma lógica tolerante, primeiro porque é uma lógica tolerante a contradições, mas isso todas as lógicas para-consistentes são, e as lógicas para-consistentes não podem propriamente ser chamadas de tolerantes, embora alguém já tenha até escrito artigo dizendo isso, mas não é tolerante no mesmo sentido da lógica com a qual eu trabalho.
Agora, esse conceito de complexidade, e da lógica da complexidade, essas coisas não apareceram no primeiro momento não, o primeiro insight foi esse que eu descrevi de combinação dessas duas características, onde uma provoca e complementa a outra (para-consistência e não-monotonicidade), mas, ao longo de uma década trabalhando com isso a gente começa a entender um pouquinho sobre as coisas, e umas das coisas que a gente vai entendendo é que esse conceito abriga, inclusive, aquilo que realmente constitui um raciocínio mais elaborado, não só um raciocínio prático, trivial, mas um raciocínio mais elaborado, como, por exemplo, um raciocínio que faria um economista, que faria um cientista político analisando cenários etc., que é um raciocínio que permite um conjunto complexo de premissas.
O que eu chamo um conjunto complexo de premissas é que, na lógica clássica, ou nas lógicas usuais, você trabalha com um conjunto unitário e consistente de premissas para, a partir daí, tirar suas conclusões. Se quiser tirar outro tipo de conclusão, trabalha com outros tipos de premissas, ao passo que, fazendo trabalhos práticos, um economista, por exemplo, estudando as perspectivas da contaminação do Brasil pela crise econômica de crédito mundial, ele vai considerar, inicialmente, um sistema de premissas fixado pela própria teoria econômica que ele utiliza, mas, depois, se utiliza de uma série de premissas secundárias que são conflitantes, que correspondem a diversas possibilidades e cenários que podem se desenvolver. Ele, então, vai construir seus raciocínios a partir de um conjunto que eu chamo de conjunto complexo de premissa e, para isso, ele precisa desenvolver um raciocínio complexo, que combina premissas, inclusive, contraditórias.
Essa lógica que eu desenvolvi é um formalismo matemático, rigorosamente matemático, que permite você trabalhar dessa maneira, e, então, a relação ao tema particular da tolerância, quer dizer, diante das aplicações humanísticas que ela tem, veio-me de uma leitura ? o livro por acaso está até por aqui, do Liberalismo Político do John Rawls.
O livro clássico dele é o A Theory of Justice, onde ele desenvolve o conceito de ´justice as fairness? (justiça como equidade), mas esse livro (Political Liberalism) eu considerei, todavia, mais instigante, mais inspirador, pelo menos para mim, porque ele fala sobre a filosofia política que está por trás da constituição da sociedade multi-cultural, e sociedades multi-culturais, no séc. XXI, são praticamente todas, sem contar que a própria sociedade global é, naturalmente, uma sociedade multi-cultural. Então, se examinarmos com detalhes, vamos perceber que esse sistema é um modelo perfeito para a minha lógica, que pode ser construído exatamente com as regras dessa lógica que eu desenvolvi. Não desenvolvi pra isso, nem pensando nisso, mas ela adere perfeitamente.

Só Filosofia: Bom professor, pra finalizar, não poderia deixar de perguntar como está sendo esse novo desafio frente à presidência da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP) ? órgão vinculado à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, assumido ao final do ano passado (2007).

Tarcísio Pequeno: Veja bem, eu já disse isso em outro lugar, e vou então repetir: está sendo um estorvo! É mais uma dessas coisas que eu faço por um senso de dever. Se eu cheguei a criticar algumas políticas do passado e sou convidado a assumir o cargo, seria uma incoerência de minha parte não aceitar essa responsabilidade, então o fiz, por obrigação. Minha conta na farmácia aumentou, a caixa de Lexotan, que dava pra seis meses, agora não chega a um, mas não posso deixar de admitir certo contentamento quando vejo as coisas tomando um novo rumo. Ainda estamos, digamos assim, limpando e arrumando a casa, mas já vemos, paralelamente, realizadas algumas ações bem concretas.
Estou tendo que abrir mão, de certa forma, de atividades que me eram muito caras, como meu futebolzinho e surfe na praia perto de casa, coisas que minha nova barriguinha não cansa de me lembrar?
Mais uma vez, relembrando meu início de carreira, estou tendo que andar empacotado (de terno), e mais uma vez, espero que isso passe rapidamente.

Responsável: Lilia Pinheiro
     

 
 
Como referenciar: "Entrevistando o filósofo Tarcísio Haroldo Cavalcante Pequeno - Entrevista" em Só Filosofia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 18/04/2024 às 05:56. Disponível na Internet em http://filosofia.com.br/vi_entr.php?id=2