Resenhas de um Clássico

(17/Jul) O Medo à Liberdade, de Erich Fromm
O Medo à Liberdade (1983), originalmente publicado nos EUA, em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, pelo filósofo, sociólogo e psicanalista Erich Fromm, é uma das mais importantes críticas psicossociais do autoritarismo, da destrutividade e do conformismo típicos do séc. XX. Para a visão profundamente humanista do autor, a razão capaz de explicar esses fenômenos é uma mescla de observações dos aspectos psicológicos da neurose com os fatores sociais que a impulsionam e a alimentam. Tudo sob o princípio filosófico existencial de que, nas escolhas da vida, a liberdade humana entre evoluir ou regredir é uma obrigação, uma responsabilidade que ninguém pode se furtar.

Sua tese é que na presente busca do sucesso financeiro, ao lado da liberdade material conquistada ao longo da história do ocidente, os indivíduos se isolaram cada vez mais uns dos outros. Essa mesma liberdade econômica, carregada de solidão, tornou-se motivo de medo e angústia, levando as pessoas a desejarem uma fuga psicológica de alienação, por meio de ilusões de “terem” algo ou de “pertencerem” a uma corporação ou grupo que lhes fariam sentir menos sós. Se na antiguidade o perigo era os homens tornarem-se escravos, atualmente tornou-se o de serem alienados psíquicos, autômatos. Pudessem encontrar uma alternativa saudável ao conflito, haveriam de reconhecer a importância do outro nos vínculos de cooperação e solidariedade. Mas, a solidão e a impotência encontraram na indústria moderna artifícios da felicidade de consumo e estímulos para o rápido alívio psicológico da condição humana – que em seu dinamismo tende a procurar soluções de alguma forma, com possibilidades de satisfação, ainda que ao preço da violência, da neurose e servidão voluntária. Explicando o fenômeno do nazifacismo, que bem conheceu, esclarece que a ânsia de poder não é originada da força, mas da fraqueza.

Fromm faz assim uma análise da patologia da alienação psíquica inconsciente da sociedade industrial, que se caracteriza pelo comportamento social consumista e pelo sistema patriarcalista autoritário, reclamando uma necessidade ética urgente de mudanças nas determinações sócio-econômicas. Do ponto de vista psicopatológico, segundo ele, o centro gravitacional da cultura capitalista é o consumismo passivo. O consumo, no entanto, é próprio da vida, do crescimento biológico e das relações humanas; afinal, precisa-se comer, vestir, trocar valores de uso econômico e outros. Todavia, há uma espécie compulsiva de consumo que unicamente visa aliviar a ansiedade, a insegurança ou mesmo o desespero subjacentes à nossa época. Ironicamente, constata ele, o homem contemporâneo, com seu avançado conhecimento intelectual, desconhece-se enquanto totalidade espiritual, não sabe bem o que deseja e por isso não consegue satisfazer-se plenamente, sentindo-se vazio de realizações.

Pode-se dizer, acertadamente, que ele foi o primeiro filósofo a construir uma antropologia filosófica, e uma problematização da liberdade, vinculando intimamente os pensamentos de Marx e Freud, reconhecendo claramente a superioridade do primeiro. A bem dizer, foi em 1930, com o livro o Dogma de Cristo (1986)2, que Fromm uniu de maneira concreta esses dois pensadores. Quem o afirma, com razão, é Franz Borkenau3, erudito do partido comunista que freqüentou o ambiente do Instituto de Frankfurt e escreveu uma resenha do mesmo texto no lançamento da revista Zeitschrift für Sozialforschung, de publicações desta Escola. Trata-se ali do uso da psicanálise aplicado aos fenômenos históricos, compreendendo as idéias e ideologias individuais como um resultado de necessidades psíquicas básicas submetidas a condições sociais e econômicas específicas. No entendimento de Martin Jay4, Fromm então afirmara em termos psicológicos o que Horkheimer e Marcuse, depois de sua ruptura com Heidegger, diziam sobre a noção abstrata de historicidade.

Para Fromm a função da ideologia e do autoritarismo pode equiparar-se aos sistemas neuróticos. A correlação direta entre o conceito marxista de “ideologia” e o conceito psicanalítico de “racionalização” veio a ser feita por Erich Fromm em 1932, no artigo Método e Função de uma Psicologia Social Analítica5, onde ele afirma que a psicanálise pode mostrar como a situação econômica é transformada em ideologia, através dos impulsos naturais do homem. Mas, é no apêndice de O Medo à Liberdade que Fromm expõe sua teoria do “caráter social”6, de uma estrutura libidinal típica, deduzida da soma de caracteres individuais de uma sociedade de classes. Esse caráter se constitui de uma base ou norma de socialização que atende interesses da elite dominante e serve de modelo à feitura de um caráter individual. O tipo de caráter social é produzido e recompensado individualmente pela comunidade conforme o que cada época exige. Então a necessidade social é internalizada num impulso da personalidade, de tal forma que ela se aproximará automaticamente mais do comportamento coletivo e sustentará a coesão da estrutura sócio-econômica geradora dessa mesma necessidade. Para Fromm, o processo de ideologização é politicamente determinado por vários agentes sociais, como a escola, a família, a comunicação de massa, entre outros.

Em O Medo à Liberdade, ele acentua o pessimismo de Freud e nega seu instinto de Tânatos, equiparando-o, no entanto, com a necessidade de destruição, dizendo que o desejo de destruir é bastante variável em grupos sociais diferentes e mesmo dentro da própria cultura. Para Fromm, o instinto de morte ou a necessidade de destruição eram produtos da frustração do instinto de vida7. Afastada a dualidade dos instintos de vida e morte, ele retorna à dicotomia freudiana anterior, aos impulsos eróticos e de conservação. Nessa obra, ainda recusa a teoria metapsicológica da libido, de Freud. A novidade é que com esta também rechaça sua própria interpretação “psicologista” em O Dogma de Cristo, onde pretendera explicar a formação do cristianismo primitivo como o resultado da ambivalência face à imagem do pai.

Ao se fazer uma incursão na obra de Erich Fromm, sobre a questão da liberdade, observa-se que em 1941 tem fim sua ênfase no determinismo social absoluto. Abriu-se espaço para a possibilidade de escolhas reais na sociedade, na medida em que ele passou a entender que o indivíduo adquire um maior grau de conscientização de sua psique. Pela primeira vez surge o conceito de “natureza humana”, mediante a necessidade individual de relacionar-se com o mundo exterior e assim evitar a solidão intolerável. Mas, o quadro geral das necessidades essenciais do homem só viria a ser plenamente elaborado em Psicanálise da Sociedade Contemporânea (1983)8, em 1955. Até então não há uma visão clara, aos seus olhos, daquela essência humana, definida em si mesma, para além das variáveis culturais. John H. Schaar, numa crítica a Fromm, diz algo a respeito:

“É interessante especular sobre as razões que Fromm teve para modificar a posição sobre a questão da natureza humana essencial, contra o determinismo social. Talvez a explicação possa ser explicada em termos de um crescente otimismo ostensivo, quase fanático, em sua obra. Em O Medo à Liberdade, Fromm propôs uma tese determinista pesadamente social, como um antídoto ao pessimismo freudiano. Em suas obras posteriores, teve de reformular a natureza humana, considerando o otimismo intrínseco a ela, porque a ameaça ao homem passou a ser não o pessimismo freudiano, mas as sociedades insanas. O otimismo de Fromm permaneceu aproximadamente o mesmo, mas os inimigos do otimismo se haviam modificado.”9

Em O Medo à Liberdade ele estuda a evolução histórica das comunidades pré-individualistas, anteriores à modernidade industrial, que valorizam a totalidade social, mas negligenciam o indivíduo. Após se referir ao nascimento da história cultural do homem, faz um paralelo com o nascimento biológico do indivíduo. Exatamente como uma criança nasce com todas as potencialidades humanas a serem desenvolvidas sob condições sociais e culturais favoráveis, também a raça humana se transformaria, no processo histórico, naquilo que ela é potencialmente. Segundo Fromm, o nascimento de cada pessoa reproduz os mesmos conflitos básicos encontrados no imaginário e histórico surgir da civilização. De maneira que ele põe a evolução filogenética ao lado da evolução psico-ontogênica, comparando abordagens paleo-antropológicas com abordagens psicológicas. Na evolução da história cada geração incorporaria em si todo o processo de busca de liberdade e de satisfação produtiva das necessidades básicas da condição humana, obtido pelas gerações anteriores. Fromm entende que a liberdade não é uma questão metafísica, é o resultado inevitável do processo de individuação e de crescimento da cultura. Segundo ele, a história da humanidade é a história da individuação em busca da liberdade, lembrando que o século do nazismo deu provas suficientes de que a civilização, e os indivíduos em geral, historicamente abandonaram o duro esforço da liberdade, preferindo os mecanismos de fuga da alienação.

Na origem de sua existência, o homem se viu como um estranho no mundo; sentiu-se solitário e temeroso. Compelido para fora da Natureza, ele rompeu com as determinações biológicas do puro instinto, permitindo que a vida tomasse consciência de si mesma através da possibilidade de desenvolvimento da razão. Segundo Erich Fromm, num momento qualquer da Natureza, essa nova espécie animal, o homem, perdeu sua plástica capacidade de adaptar-se ao ambiente selvagem, e tornou-se biologicamente o ser mais inerme e desamparado do gênero. Se, em princípio, o homem se encontrava na totalidade com a Natureza, tornou-se fragmentado e carente do sentimento de união ao afastar-se dela. Devido à sua consciência imaginativa, capaz de transcender o instante presente, ele também descobriu o involuntário fato de que sua vida termina com a morte. A razão, uma vez deduzindo a finitude humana, viu-se presa à dicotomia irresolúvel entre vida e morte. E pressentindo jamais haver tempo suficiente para concretizar todas as suas ambições de vida, então experimentou a sensação fatídica da impotência.

Há, pois, conflitos existenciais filosoficamente inerentes à condição humana. E a necessidade de encontrar soluções para essas dicotomias congênitas, tanto da espécie quanto do indivíduo, é a causa original de todas as motivações psicológicas do homem. Reagindo àquelas contradições ontológicas do nascimento da consciência, a auto sobrevivência psíquica busca uma direção humana que somente se desenvolve durante o crescimento da cultura, valendo-se dos poderes imanentes a si mesma: a capacidade de amar e trabalhar numa atividade produtiva, reintegrando-se espiritualmente com a unidade cósmica, viva, da Natureza; e a capacidade de imaginação e razão, de conhecer objetivamente a realidade, a fim de tornar o espaço do mundo significativo e habitável para o homem. A bem dizer, o homem nunca deixará de tentar desfazer-se, fugir, da sua existencial inquietação interior que o impele a ser si próprio e por si próprio, ou a concluir o processo evolutivo de nascer-se humano.

Essa necessidade básica de reintegração e unidade encontra, na psique, duas alternativas de solução. Numa delas, pode-se querer inconscientemente regredir à vida animal pré-humana anterior à racionalidade, com o propósito de apaziguar a insuportável sensação de isolamento. De que maneira? Abolindo a consciência de si mesmo, de suas qualidades humanas intrínsecas a serem desenvolvidas; fugindo às responsabilidades e esforços do crescimento e da liberdade. Nessa intenção regressiva de sedar os conflitos internos da mente, os indivíduos podem criar ideologias, socialmente aceitas, e prazeres narcisistas que recalquem a angústia ontológica do sentimento de solidão. Além de evitarem a percepção racional, também falseiam uma relação harmônica e integradora com o mundo. É o caso da violência urbana coletiva, num quadro de folie a millions, quando milhões de pessoas compartilham consensualmente dos mesmos vícios, de uma maneira não-problemática; numa sociedade “neurótica” igualmente regressiva. O mesmo acontece com as graves psicopatologias individuais, sendo estas as fugas regressivas que não foram culturalmente assimiladas como “normalidade”. Como revela o título da obra, é o medo à liberdade.

É importante esclarecer que para Erich Fromm as culturas tribais, em estado de pré-individualização, da mesma forma, constituem um estágio de solução regressiva. Para ele, o processo de individuação e diferenciação individual denota uma evolução irreversível da qualidade do amor erótico na comunidade primitiva para a qualidade do amor erótico individual, encontrado na civilização moderna. Porque uma vez que o homem adquire um mínimo de liberdade, individualismo e racionalidade, verdadeiramente não há, em última instância, como descartar-se daquilo que o torna humano e, no entanto, o tortura: sua razão e percepção de si mesmo, que é para ele o fardo de ser-se homem.

A segunda alternativa de solução às dicotomias da situação humana é chamada por Fromm de progressiva. É a conquista de uma nova união existencial-espiritual mediante só o desenvolvimento de todas as faculdades humanas, em potência no indivíduo; o que implica o reconhecimento da humanidade universal dentro de cada um e dentro das limitações impostas pelas leis exteriores à nossa subjetividade. Esta é verdadeiramente a solução para o problema da harmonia perdida, e também a única oferta de liberdade real para o projeto político de uma sociedade humanista. O nascimento humano é visto, segundo Fromm, como um longo e árduo processo de maturação do amor e da razão, por meio dos quais o indivíduo se liberta do triste sentimento de separação da harmonia com a Natureza; sem jamais poder, de fato, voltar à origem. O problema do nascimento exige uma compreensão ampla da situação humana muito além da excessiva importância conferida ao seu aspecto meramente perinatal. O recém-nascido provavelmente dá-se muito pouca conta do que significa nascer. Para Fromm, “nascemos” a todo instante. A todo instante defrontamo-nos com uma pergunta: devemos regredir ou evoluir?”

Responsável - Will Goya
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1. FROMM, E. O Medo à Liberdade. Tradução de Octávio Alves Velho. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1983.
2. FROMM, E. O Dogma de Cristo - e outros ensaios sobre religião, psicologia e cultura. Tradução de Waltensir Dutra. 5ª Ed. Rio de Janeiro: GUANABARA, 1986.
3. JAY, Martin. La imaginación dialéctica. Tradução espanhola de Juan Carlos Curutchet, Madrid: TAURUS, 1974, p. 160.
4. JAY Martin, op. cit., p. 160.
5. FROMM, E. Crise da Psicanálise - ensaios sobre Freud, Marx e Psicologia Social. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1971, p.153-4.
6. Entretanto, o “caráter social” foi apresentado pela primeira vez em Die psychoanalytische Charakterologie in ihrer Anwendung für die Soziologie, in Zeitschrift für Sozialforschung, I, Hirschefeld, Leipzig, 1931.
7. FROMM, E. O Medo à Liberdade. op. cit., p.149s.
8. FROMM, E. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. Tradução de E. A. Bahia e Giasone Rebuá. 10ª Ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1983.
9. SCHAAR, John H. O Mundo de Erich Fromm. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1965, p. 51.