Nicolau Maquiavel – Escritos Políticos A maneira de tratar os povos rebelados do Vale do Chiana. Depois de ter vencido os povos do Lácio, que se rebelaram contra os romanos mais de uma vez, Lúcio Fúria Camilo voltou para Roma e apresentou ao Senado um projeto sobre o que era preciso fazer com as terras e cidades dos latinos. Suas palavras, quase que literalmente, foram: Padres conscritos, o que tinha de se fazer com a guerra e com as armas no Lácio, por bondade dos deuses e pelo valor de nossos soldados, foi feito. Os exércitos inimigos morreram em Peda e Astura. Tanto as terras quanto as cidades dos latinos, e Antium, a cidade dos volscos, foram tomadas pela força ou foram guardadas para vós por meio de pactos. Agora, resta-nos procurar saber como nos proteger para o futuro. Podemos nos tornar cruéis ou podemos perdoá-las, pois, rebelando-se, nos põem em perigo com frequência. Deus vos fez poderoso para escolher se é necessário ou não manter o Lácio ou se é preciso vos assegurardes perpetuamente do poder dele. Pensai, pois, se queres acerbamente corrigir o que lhe foi dado ou se queres arruinar todo o Lácio e fazer dele um deserto de onde mais de uma vez tendes tirado exércitos auxiliares em vossos perigos ou, ainda, se queres, com o exemplo dos maiores, aumentar a república romana fazendo com que aqueles que venceram venham residir em Roma. E, assim, diante da oportunidade de aumentar a cidade, devo dizer que aquele império é muito bem formado, firme e com súdito, fiéis, todos bem afeiçoados ao príncipe. Mas, sobre o que for preciso deliberar deve-se de fato fazê-lo. Há tantos povos entre a esperança e o medo que é preciso tirá-los dessa ambiguidade e preocupá-los com penas ou prêmios. Minha tarefa foi agir para que isso estivesse em meio ao vosso arbítrio, e o fiz. Agora, tens o poder de deliberar o que venha a ser cômodo e útil para a república. Os príncipes do Senado louvaram o relatório do cônsul, mas devido a causas diversas, nas cidades e nas terras rebeladas, disseram que não era possível aconselhá-los sobre o ocorrido cada uma de maneira geral – somente em particular. Como a causa de cada uma das cidades foi proposta pelo cônsul, também foi deliberado pelos senadores que os lanúvios fossem cidadãos romanos e que as coisas sagradas que lhes foram tomadas na guerra fossem devolvidas. Também os cidadãos romanos (aricinos, nomentanos e pedanos) foram consagrados cidadãos romanos. Aos tusculanos foram conservados os seus privilégios e a culpa de sua rebelião recaiu aos poucos sobre os mais suspeitos. Os veliternos foram cruelmente castigados, pois eram antigos cidadãos romanos e já tinham se rebelado muitas vezes. Dessa forma, a cidade foi destruída, e todos os seus cidadãos foram para Roma. Para Antiuni mandaram gente nova, tiraram-lhes todos os navios e os proibiram de construir outros. Por isso, podemos considerar como os romanos pensaram que fosse preciso ganhar-lhes a confiança pelos benefícios ou tratá-los de maneira a que jamais pudessem duvidar no decorrer do julgamento dessas cidades rebeladas. Por consequência, disseram ser danoso qualquer outro caminho que se fosse tomado, e, voltando ao julgamento, usaram um ou outro termo para beneficiar os que podiam se reconciliar e os que nada podiam fazer para incomodar. Para os que não incomodavam, os romanos tinham dois processos a aplicar: um era o de destruir as cidades e fazer com que seus habitantes fossem morar em Roma; o outro era afastar os cidadãos antigos e mandar novos habitantes. Também era possível deixar os cidadãos antigos, mas seria necessário colocar outros tantos novos, para que nunca pudessem maquinar nem deliberar qualquer coisa contra o Senado. Essas duas maneiras de garantia foram usadas ainda nesse julgamento, servindo para destruir Velitrae e mandando novos habitantes para Antiuni. Ouvi dizer que a história é a mestra das nossas ações e máximas dos príncipes, e, de certo modo, o mundo sempre foi habitado por homens com as mesmas paixões, além de sempre existir alguém que serve, e que manda, alguém que serve com má vontade e alguém, que serve de bom grado, e alguém que se rebela e se rende. Se há quem não acredite nisso, que se mire em Arezzo e em todas as cidades do vale do Chiaria, pois fazem coisa muito semelhante àquela que foi praticada pelos povos latinos. Lá e também aqui vimos a rebelião e depois a rendição. Ainda que no modo de rebelar-se e no de render-se haja muitas diferenças, são, contudo, semelhantes à rebelião e à rendição. Portanto, se é verdade que a história se tornaria a mestra de nossas ações, não é de todo ruim para quem devia punir e julgar as cidades do vale do Chiaria tomar o exemplo e imitar os que já foram donos do mundo; especialmente em um caso em que eles ensinam como se deve conduzir ao governo, porque, como eles fizeram julgamento diferente, por ser diferente o pecado daqueles povos, assim deve fazer vós, encontrando a diferença dos pecados também em vossos rebelados. E se disser: “nós o fizemos”, não negue que o tenha feito em parte, mas que faltou alguma coisa para mais e melhor. Tenho que foi bem julgado que em Cortona, Castiglione, Borgo, Foiano seguiram as lições, que foram aduladas e que vós vos preocupastes em reavê-las pelos benefícios, porque acho semelhança no caso das cidades com os dos lanúvios, arícios, nomentanos, tusculanos e pedanos que – por parte dos romanos – mereciam tal julgamento. No entanto, não aprovo que os aretinos não tenham sido tratados como eles, semelhante aos veliternos e anzianos. E se a sentença dos romanos merece ser elogiada, muito mais a vossa deve ser condenada. Antigamente, os romanos julgaram que os povos rebelados deveriam ser beneficiados ou extintos e que qualquer outro meio seria muitíssimo perigoso. Não me parece que tenhais feito qualquer uma dessas coisas aos aretinos porque não constitui benefício algum fazê-los vir a Florença depois de lhes ter tomado as honras, ter vendido suas propriedades, ter falado mal deles publicamente e ter mantido suas casas sob os olhos da guarda. Não se chama garantir-se contra eles deixar de pé os muros da cidade nem deixar que ali fiquem os cinco sextos da antiga população, não lhes dar companhia de pessoas que os possam subjugar e não os governar de modo que, nos impedimentos e nas guerras que tiverem de ser movidas, não tenhais de contar com maior despesa em Arezzo que ao encontro de qualquer inimigo que vos assaltar. Em 1498, quando Arezzo ainda não havia se rebelado nem se tornado tão cruel com relação àquela cidade, se viu a situação em que as forças dos venezianos em Bibbiena, as tropas do duque de Milão e a companhia do Conde Rinuccio eram desnecessárias para calar Arezzo. Disso, se não tivesse duvidado, poderia servir em Casentino contra os inimigos e não seria preciso tirar Paolo Vitelli de Pisa e mandá-lo a Casentino, o que levou muito mais perigo e mais despesas do que se eles tivessem permanecido fiéis, pois desconfiavam dos aretinos. De acordo com aquilo que se viu e com os termos em que foram trazidos, pode-se fazer seguramente o juízo de que se fossem tomados de assalto (que Deus o guarde) Arezzo se rebelaria ou apresentaria o impedimento para guardá-la, inviabilizando a despesa para a cidade. Hoje, se fosse possível ou não atacar e se houvesse quem tivesse ou não tais intenções com relação a Arezzo, não a deixaria passar em branco. E deixando de discorrer sobre aqueles temores que podia ter dos príncipes ultramontanos, conversemos sobre o medo que nos está mais próximo. Quem observou o duque sabe que para manter os Estados que tem ele nunca pensou em fazer base sobre amizades italianas. Estimou pouco os venezianos e menos ainda a vós mesmos. Isso o fez pensar em tornar-se tão grande Estado na Itália que o desse segurança somente por si mesmo, além de desejar que outro potentado quisesse sua amizade. E quando este seja seu ânimo e que ele aspire ao império da Toscana como o mais apropriado e apto para fazer um reino com os demais Estados que tem (e ele tem, de fato, esse projeto julgado como necessário, seja pelas coisas mencionadas, seja pela sua ambição, e também por ter ficado indeciso quanto ao acordo e nunca ter desejado concluir alguma coisa convosco), nos resta agora ver se o tempo lhe é oportuno para realizar esses seus desígnios. E lembra-me ter ouvido dizer ao Cardeal Soderini que, entre outros louvores que se podiam dar de grande homem ao papa e ao duque, estava o de que são conhecedores da ocasião e que a sabem usar muito bem, opinião esta que está comprovada pela experiência oportuna das coisas conduzidas. Se quiséssemos discutir se agora é tempo oportuno e seguro para que ele vos ataque, eu diria que não. Mas se considerarmos que o duque não pode esperar que as coisas se decidam por lhe restar pouco tempo da vida do pontífice, é necessário que ele use a primeira ocasião que lhe for oferecida e que entregue boa parte de sua causa à sorte. Da “missão diplomática ao Duque Valentino” Magnifici et excelsi Domini, Domini mel singularissimi (Magníficos e excelentíssimos senhores, senhores meus prezadíssimos), logo depois de minha partida não me sentia muito bem montado, e como parece que minha comissão requer rapidez, mudei de cavalo na Scarperia e, trocando de montaria, viajei sem interrupção. Cheguei aqui hoje, mais ou menos às dezoito horas. Deixei para trás cavalos e criados, apresentei-me logo a Sua Excelência, que me acolheu cordialmente e, apresentando-lhe minhas cartas credenciais, expus todas as razões da minha missão e agradeci a restituição dos tecidos. Depois, vim falar da cisão dos Orsini, de sua dieta e dos que os seguiram nessa empreitada, de como V.Sas. estavam sendo rogados e sobre a amizade que têm pelo rei da França, e da devoção que conservam para com a Igreja. Também falei – com todas as palavras – quais as razões que obrigam V.Sas. a conservar a amizade deles e a evitar tornarem-se seus adversários. Atestei, também, que em qualquer situação V.Sas. respeitariam todas as ações de Sua Excelência que fossem compatíveis com a amizade do rei da França e com a antiga devoção à Igreja, bem como a afeição que mostraram a Sua Senhoria, tratando como amigos todos os amigos e aliados de França. Quanto à restituição, Sua Excelência nada respondeu. Mas, referindo-se a outras particularidades, agradeceu a V.Sas. os oferecimentos e demonstrações de gratidão Depois, disse ter sempre desejado a amizade de V.Sas., não a tendo conseguido mais pela maldade de outras pessoas do que por culpa própria e que queria contar-me particularmente aquilo que nunca dissera a alguém a respeito da sua vinda a Florença com o seu exército. Além disso, disse como os Orsini e os Vitelli queriam persuadi-lo a voltar para Roma por Florença (o que foi recusado por ele) após a conquista de Faenza e depois de ter tentado a campanha de Bolonha, pois o papa lhe ordenou coisa diferente. Chorando, Vitellozzo Vitelli (irmão de Paolo, senhor da Città di Castello) lançara-se aos pés, suplicando que seguisse aquele caminho e prometendo não fazer violência alguma contra o país nem contra as cidades. Nem assim condescendia ele, mas insistiram tanto, que Sua Excelência prometeu cumprir sob justamente a condição de não haver violência contra o país e as cidades e também de não se procurar favorecer aos Mediei. Mas, querendo tirar proveito da sua vinda a Florença, pensou fazer amizade com V.Sas., o que se comprova pelo fato de ter falado pouco ou quase nada a respeito dos Mediei, em qualquer negociação, como sabem os comissários que trataram com ele, e o de nunca ter consentido que Piero viesse ao seu campo. Disse muitas vezes que, quando estavam em Campi, os Orsini e os Vitelli pediram licença para uma apresentação de projetos de fácil execução, ao que ele nunca quis aceder, e antes os fez ver mil vezes que os combateria. Mais tarde, feita a composição com V.Sas., pareceu aos Orsini e Vitelli que Sua Excelência tivesse obtido tudo o que desejava e que a expedição tivesse resultado em seu exclusivo benefício e, diante dos danos, resolveram prejudicar o acordo com desonestidades para que V.Sas. suspeitassem e esse acordo fosse quebrado. Não repararam, pois, que ele não podia estar em todo lugar e que, também, V.Sas. não tinham ainda concedido o empréstimo conforme o combinado. As coisas ficaram assim até junho passado, quando houve a rebelião de Arezzo, da qual ele afirma, como já disse ao Bispo de Volterra, não ter tido conhecimento antes, mas que a tinha até considerado como um bem porque lhe parecera ocasião oportuna a que se manifestassem os sentimentos de V.Sas. para com ele. Então, nada se fez, seja pela má sorte comum, seja por não ter a vossa cidade a disposição de tratar e concluir aquilo que teria sido a salvação de cada um, o que foi dito não causou grande aborrecimento. E disposto a encontrar benefícios, tendo em vista a boa vontade do rei, escreveu a Vitellozzo e mandou que se retirasse de Arezzo. Não contente com isso, foi a Città di Castello com a sua tropa. E poderia ter tomado a cidade, pois os principais homens da terra tinham vindo oferecer-se-lhe, de onde disse ter se originado a primeira ira e descontentamento. Sua Excelência disse também que não sabia a origem da indignação dos Orsini contra o papa na corte do rei da França. Depois de ver que Sua Majestade o tinha tratado com mais consideração que ao próprio Cardeal Orsini, e isso ocorreu ao mesmo tempo em que corriam certos rumores de que o rei tinha intenção de tirar-lhe o poder, partiram e marcaram um encontro com os falidos. E se tivesse havido mais de uma embaixada de parte do Senhor Giulio Orsini, que lhe assegurava não lhe fazer oposição alguma, etc., e se bem que não fosse razoável que eles descobrissem o tipo de jogo, principalmente a lhes tirar dinheiro, logo que tivessem de fazê-lo, já os julgava mais loucos do que poderia esperar, pois é certo que não tinham escolhido bem o momento para ofensas, já que o rei da França estava na Itália, e, vivendo a santidade de nosso Senhor, estava diante de duas coisas que o animavam muito e que, para fazê-lo mudar de planos, seriam necessárias outras águas que não os Orsini. Nem a perturbação no ducado de Urbino lhe era motivo de perturbação, pois ainda não esquecera o meio de readquiri-lo quando o perdesse. Além disso, considerando que já era tempo de fazerem-se-lhe obrigados, se V.Sas. quisessem ser seus amigos, bem era possível, e nem havia de se preocupar com os Orsini, de se ligar por amizade com V.Sas., o que não pudera fazer antes. Mas se V.Sas. adiassem essa tarefa, e ele, neste ínterim, se tivesse reconciliado com os Orsini, que ainda o procuram, a situação se repetiria, pois eles só poderiam ficar satisfeitos com a reposição dos Médici, ou seja, V.Sas. estariam na mesma dificuldade e com o mesmo temor. Daí pensa-se que V.Sas. devem, sem muito tardar, declararem-se seus amigos, pois adiar a decisão pode fazer com que haja acordo com danos para V.Sas. ou pode ser que haja vitória de uma das partes, cujo efeito desta seria tornar-se inimiga ou desobrigada para com V.Sas. Quando for necessário tomar partido, coisa que terá de acontecer, não vê V.Sas. tomando um partido diferente daquele em que estão a majestade do rei e a santidade de nosso Senhor, contando ainda que lhe será muito grato que, se Vitellozzo ou os outros se dirigirem a um dos seus Estados, façam V.Sas. demonstração de suas milícias nas bandas do Borgo ou nas fronteiras para que assim lhe dê prestígio. Fiquei a escutar atentamente as referidas atitudes de Sua Excelência, atitudes essas que mencionei não apenas no seu sentido, como também nas mesmas palavras que escrevi prolixamente para que V.Sas. possam ficar a par de tudo. Só não vos escrevo o que respondi, pois não é necessário. Esforcei-me para não sair dos limites da minha missão e não respondi coisa alguma com relação ao negócio daquela demonstração. Apenas disse-lhe que escreveria a V.Sas. sobre suas boas intenções e que estas lhes seriam extraordinariamente gratas. E se Sua Excelência mostrasse o desejo que se fizesse depressa o acordo entre V.Sas. e ele, não obstante ter eu procurado fazê-lo falar para tirar alguma particularidade de suas palavras, andou sempre ao largo e nem pude saber nada a mais, a não ser o que acima escrevi. Quando cheguei, ouvi que houvera alguma coisa no ducado de Urbino, e, tendo Sua Excelência já dito que não lhe importava qualquer alteração naquele ducado, pareceu-me oportuno perguntar-lhe qual era a real situação, e Sua Excelência me respondeu: “A minha clemência e pouca estimação dos fatos prejudicaram-me. Tomei aquele ducado em três dias, como sabes, e não arranquei um fio de cabelo sequer a ninguém, salvo a Messer Dolce e a outros dois, que ofenderam a santidade de nosso Senhor. Antes, o que é melhor, tinha combinado certas coisas com vários funcionários daquele Estado, com um encarregado de construir um muro que mandei fazer na Fortaleza de São Leão, e há dois dias esse encarregado tramou certa maquinação com alguns camponeses, sob pretexto de puxar para o alto uma trave, de modo que, forçada, a pequena cidade acabou por se render. Todos a proclamam sua: os venezianos, os Vitelli, os Orsini, mas por enquanto ninguém se descobriu. Embora tenha eu perdido aquele ducado, porque se trata de um Estado débil e mal ordenado, e por estarem os seus homens descontentes e fatigados pelo serviço da milícia que lhes foi imposto, espero porém a tudo prover, e escreverás aos teus senhores que pensem muito bem naquilo que vão fazer e decidam depressa, porque, se o duque de Urbino voltar a Veneza, não será para proveito deles nem do nosso, o que faz prestarmos maior fé um no outro”. Isso é, com efeito, tudo o que posso escrever a V.Sas. por enquanto. E como devo eu escrever-lhes sobre as tropas, os alojamentos e muitos outros pormenores daqui que a este senhor pertence, mesmo com minha chegada hoje não posso saber a verdade, por isso, reservo-me para outra vez e recomendo a V.Sas. Die 7 Octobris 1502. Servitor Nicolaus Machiavellus Imolac. Escrevo-lhes ainda esta manhã porque o mensageiro até agora não encontrou cavalo para a viagem, e preciso dizer que ontem, durante a conversa que tive eu e Sua Excelência, me foi dito por ele que, na véspera, Pandolfo Petrucci (senhor de Siena) mandou alguém disfarçado para garantir que não daria apoio a quem contrariasse Sua Excelência, e disso lhe falou muito longamente. Ontem, quando chegava, encontrei-me com o Messer Agapito de Gherardi (secretário de César Bórgia) a duas milhas daqui, com cerca de sete ou oito cavalos, que reconheceu e lhe disse eu para onde ia e quem me mandava. Acolheu-me muito bem e, depois de fazer um pouco do caminho, voltou. Esta manhã, soube que o dito Messer Agapito tinha sido mandado daqui a V.Sas. pelo duque e que voltava do caminho com a minha chegada. Iterum valete. Die 8 Octobris 1502. Dei ao portador dois ducados para que esteja aqui amanhã, dia 9, antes do amanhecer. Peço-lhes que reembolsem a Ser Agostino Vespucci. Como o Duque Valentino matou Vitellozzo Vitelli, Oliverotto da Fermo e o Duque de Gravina Orsini Depois de regressar da Lombardia, local onde fora se desculpar com o Rei Luís de França pelas calúnias feitas pelos florentinos com relação à rebelião de Arezzo e de outras cidades do Vale do Chiaria, o Duque Valentino foi para Ímola com o intuito de atacar Giovanni Bentivoglio, o tirano de Bolonha, pois o duque queria ter essa cidade sob seus domínios e também torná-la capital de seu ducado da Romanha. Já sabido dos Vitelli e dos Orsini, bem como de seus seguidores, isso lhes pareceu que o duque tivesse muito poder, e que se devia temer que não procurasse eliminá-los a fim de se tornar o único bem armado na Itália. Sobre essa pauta para discussão, reuniram-se em conselho em La Magione, no Perugino. No conselho estavam presentes o cardeal, Pagolo e o Duque de Gravina Orsini, Vitellozzo Vitelli, Oliverotto da Fermo, Giampagolo Baglioni (tirano de Perúgia) e Messer Antônio da Venafro, mandado por Pandolfo Petrucci, chefe de Siena. Ali foram travados alguns debates sobre a grandeza do duque e de seus propósitos e sobre como era necessário frear-lhe suas ações, caso contrário corria-se o perigo de ruína comum. Deliberaram também não abandonar os Bentivoglio e procurar o apoio dos florentinos. Mandaram seus homens a um lugar e a outro, prometendo a um ajuda, e ao outro, unir-se a eles contra o inimigo comum. Toda a Itália logo soube dessa reunião, e os povos que, sob o domínio do duque, não estavam satisfeitos, dentre eles os urbineses, tiveram a esperança de que poderia haver uma renovação das coisas. Daí nasceu que, com os ânimos suspensos, alguns chefes de Urbino decidiram se ocupariam o Forte de São Leão, que estava com o duque, e tiveram tal oportunidade. O grande castelão fortificava-se e, fazendo para ali transportar madeira, fizeram os conjurados com que as traves, apoiando-se na fortaleza, estivessem sobre a ponte, para que, impedida, não pudesse ser levantada por aqueles que estavam dentro. E assim saltaram na ponte, e depois, na fortaleza. Logo que a conquista da fortaleza foi conhecida, todo aquele Estado rebelou-se e tornou a chamar o duque antigo. Tinha-se esperança que fossem ajudados, não tanto pela ocupação da fortaleza quanto pela reunião de La Magione. Conhecida a rebelião de Urbino, julgaram os conjurados que não se devia perder tal ocasião e, reunindo o seu povo, marcharam para tomar alguma cidade daquele Estado que tivesse ficado em poder do duque. Novamente, mandaram a Florença uma solicitação para que pudessem auxiliar a resolver esse problema comum, mostrando o perigo vencido e fazendo ver que não se deveria aguardar outra ocasião. Mas os florentinos, pelo ódio que votavam aos Vitelli e aos Orsini, oriundo de diversas razões, não só não aderiram a eles como mandaram Nicolau Maquiavel, seu secretário, para oferecer conselho e auxílio ao duque contra os novos inimigos. O duque estava temeroso em Ímola porque, repentinamente e fora de qualquer precaução, tendo-se tornado inimigo de seus próprios soldados, encontrava-se desarmado e com a guerra iminente. Mas reanimando-se com as ofertas dos florentinos, realizou acordos e também preparou auxílios, pois tinha pouca gente. Tais preparativos foram executados de duas maneiras: mandando pedir tropa ao rei de França e estabelecendo certa quantia em dinheiro para alguns homens de armas e outros que, de qualquer maneira, militassem a cavalo, dando dinheiro a todos. Não obstante, os inimigos avançaram, marchando em direção a Fossombrone, onde se haviam fortificado os elementos do duque cujas fileiras foram rompidas pelos Vitelli e Orsini. Essa ação fez com que o duque procurasse remediar a situação com acordos, e sendo grande simulador, não deixou de fazer, de todas as maneiras, com que acreditassem que desejava que fosse deles o que haviam conquistado pelas armas; que lhe bastava ter o título de príncipe, mas que desejava ter o principado – e tanto os persuadiu que mandaram ao duque o Senhor Pagolo para tratar do acordo e sustaram a guerra. Mas o duque não interrompeu as suas próprias providências e por todos os meios aumentava o número de cavalos e soldados; e para que tais providências não fossem notadas, mandava separadamente suas tropas para todos os lugares da Romanha. No entanto, haviam chegado quinhentas lanças francesas e, embora se encontrasse já tão forte de modo que poderia, com a guerra aberta, vingar-se de seus inimigos, julgou que seria mais seguro e mais útil enganá-los e não firmar, e eis, por isso, as cláusulas do acordo. E tanto trabalhou pela coisa que assinou com eles um tratado de paz onde se confirmavam as normas referidas. Deu-lhes quatro mil ducados de presente, prometeu não ofender os Bentivoglio e fez amizade com Giovanni; e fez mais, que não os pudesse constranger a ir pessoalmente à sua presença a não ser que assim o quisessem. Por outro lado, eles prometeram restituir-lhe o ducado de Urbino e tudo o que por eles foram ocupados, além de servi-lo em todas as suas expedições e nunca nem sem seu consentimento mover uma guerra ou auxiliar alguém. Feito o acordo, Guid’Ubaldo (duque de Urbino), retirou-se novamente para Veneza, tendo antes destruído todas as fortalezas daquele Estado, pois, confiando nos povos, não queria que aquelas fortalezas – as quais não julgava que pudesse defender – fossem ocupadas pelo inimigo e, por meio delas, pudesse manter freados seus inimigos. Mas, tendo feito esta convenção, e tendo-se dispersado a sua gente por toda a Romanha, o Duque Valentino, com seus homens de armas francesas, partiu de Ímola no fim de novembro e foi para Cesena. Lá, esteve muitos dias em conversações com os enviados de Vitelli e dos Orsini, que se encontravam com suas tropas no ducado de Urbino, sobre a nova empresa que se deveria levar adiante. E sem nada concluir, Oliverotto da Fermo foi mandado a oferecer-lhe que, se desejasse realizar o empreendimento de Toscana, ali estavam para ajudá-lo, e se não quisesse iriam tomar Sinigaglia. Ao que respondeu o duque que à Toscana não queria fazer guerra por serem os florentinos seus amigos, mas que estaria satisfeito se fossem a Sinigaglia. Em consequência, veio depois de pouco tempo a notícia de como a cidade havia se rendido; mas que a fortaleza não queria se render porque era intenção do castelão entrega-la ao duque e não a outrem; e por isso o concitavam a apresentar-se. Ao duque pareceu que a ocasião era boa, pois, sendo chamado por eles, não poderiam ter a desconfiança que teriam se ele tivesse ido por si mesmo. E para se garantir mais, licenciou toda a tropa francesa, que voltou à Lombardia, exceto cem lanças do Senhor de Cindales, seu cunhado. Ao partir de Cesena, em meados de dezembro, foi a Fano, onde, com toda a astúcia e sagacidade de que era capaz, persuadiu os Vitelli e os Orsini que o esperassem em Sinigaglia; fez-lhes ver como aqueles selvagens não fariam acordo com eles, nem fiel nem permanente, e que ele próprio era homem que queria valer-se das armas e do conselho dos amigos. E embora Vitellozzo estivesse muito renitente, e a morte do irmão tivesse ensinado que não se deve ofender um príncipe e depois fiar-se nele, persuadido por Paolo Orsino, subjugado por meio de favores e de promessas, corrompido pelo duque, consentiu em esperá-lo. Dessa forma, o duque comunicou sua intenção a oito dos seus mais fiéis, na véspera (30 de dezembro de 1502, quando devia partir de Fano), entre os quais Dom Michele e Monsenhor d’Euna que, mais tarde, foi cardeal e lhes deu a incumbência de, logo que Vitellozzo, Paolo Orsino, o Duque de Gravina e Oliverotto fossem ao seu encontro, fazer com que entre cada dois deles se interpusesse a um daqueles (designando o homem certo aos homens certos) e que os entretivessem até Sinigaglia. Imposto foi que não os deixassem partir enquanto não houvessem chegado ao alojamento do duque e fossem presos. Em seguida, ordenou que todos os seus homens, infantes e cavaleiros, que juntos somavam mais de dez mil infantes e dois mil cavalos, estivessem às primeiras horas da manhã no Metauro, local onde deveriam esperá-lo. Encontrando-se no Metauro, no fim de dezembro, com aquela gente, fez-se caminhar para frente cerca de 200 cavalos; moveu, depois, a infantaria e, em seguida, a sua pessoa com o restante dos homens armados. Fano e Sinigaglia são duas cidades da Marca, distantes quinze milhas uma da outra, situadas na margem do mar Adriático. Quem vai para Sinigaglia tem à mão direita os montes; por vezes, suas raízes limitam-se com o até a água o espaço é mínimo, e onde estão mais distantes, não chega a duas milhas. A cidade de Sinigaglia afasta-se pouco mais que um tiro de arco e do mar está distante menos de uma milha. Junto a essa cidade corre um pequeno rio, cujas águas banham a parte dos muros que está na direção de Fano, olhando a estrada. Quem chega próximo de Sinigaglia vem, durante um bom caminho, ao longo dos montes. Ao alcançar o rio que passa ao longo de Sinigaglia, volta-se à mão direita ao longo da margem, tanto que, andando o espaço de uma arcada, chega-se a uma ponte que passa aquele rio e está quase defronte à entrada de Sinigaglia, não por linha reta, mas na direção transversal. Diante da porta há um burgo de casas com uma praça cujos lados são contornados pela margem do rio. Como os Vitelli e os Orsini deram ordem de esperar o duque e pessoalmente honrá-la, se haviam retirado para os acampamentos mais distantes com o intuito de dar lugar à tropa, a seis milhas de Sinigaglia. Em Sinigaglia, só ficou o Oliverotto com seu bando, que era de mil infantes e cento e cinquenta cavalos, que estavam alojados no burgo a que acima se fez referência. Dessa maneira, o duque Valentino dirigiu-se para Sinigaglia e quando chegou à ponte, com os primeiros cavalos, não a transpôs, deteram-se, voltaram os cavaleiros às garupas de suas montadas – parte para o rio e parte para o campo – e deixaram caminho de permeio, local por onde as tropas de infantaria passavam e, sem se deter, entravam na cidade. Vitellozzo, Pagolo e o Duque de Gravina, montados em mulas, foram ao encontro do duque, acompanhados de poucos cavaleiros. Vitellozzo, desarmado e todo aflito, com uma capa forrada de verde, como se soubesse de sua próxima morte, dava de si alguma admiração, conhecida a coragem do homem e sua fortuna passada. Dizem que quando ele se separou de seu pessoal para ir ao encontro do duque, em Sinigaglia, ele o fez como se fosse a sua última partida, aos membros da sua casa recomendou-a e a sua glória, advertiu os sobrinhos que se lembrassem não da fortuna de suas casas, mas da virtude de seus pais. Enfim, com os três diante do duque e saudando-o civilmente, foram recebidos de bom grado e logo foram cercados por aqueles cuja tarefa era observá-los. Quando o duque percebeu que faltava Oliverotto, pois ele havia ficado com seus homens em Sinigaglia ou atendia diante da praça do seu alojamento sobre o rio a mantê-los em ordem e exercitá-los naquilo, fez um sinal com os olhos a Dom Michele, que fora confiada a parte referente a Oliverotto, que agisse de maneira que este não se livrasse. Dom Michele, então, no seu cavalo, adiantou-se e chegando junto a Oliverotto disse-lhe de como não era oportuno ter a sua gente reunida fora do alojamento porque este seria tomado pelo duque. Concitou-o a alojá-las e a que fosse com ele ao encontro do duque. Como Oliverotto cumpriu a ordem, veio o duque, que, vendo-o, o chamou. Oliverotto, fez a reverência e juntou-se aos outros. Dentro de Sinigaglia e com todos apeados no alojamento do duque, entrando com ele em uma sala secreta, o duque os fez prisioneiros. Este logo montou a cavalo e mandou que fossem saqueadas as tropas de Oliverotto e dos Orsini. Assim foi com as de Oliverotto, por estarem próximas; já as dos Orsini e dos Vitelli, mais distantes e pressentindo a ruína de seus senhores, tiveram tempo para se reunirem e se salvarem, lembrando-se da virtude e da disciplina das casas dos Orsini e dos Vitelli, que eram estreitamente aliadas contra os inimigos. Mas os soldados do duque, descontentes com o saque das forças de Oliverotto, começaram a saquear Sinigaglia, e se não fosse o duque ter refreado a insolência deles, principalmente com a morte de muitos, tê-la-iam saqueado toda. E à noite, com os tumultos já cessados, ao duque pareceu bem mandar matar Vitellozzo e Oliverotto, pois, conduzindo-os juntamente a certo local, mandou estrangulá-los. Tem-se que não foram usadas por nenhum deles palavras dignas de sua vida passada porque Vitellozzo rogou que por ele se suplicasse ao papa, que lhe desse indulgência plena dos seus pecados; Oliverotto, com toda a culpa das injúrias feitas ao duque, chorando, atirava-a a Vitellozzo; Pagolo e o duque de Gravina Orsini foram mantidos vivos, até que o duque soube que, em Roma, o papa prendia o Cardeal Orsini, o arcebispo de Florença e Messer Iacopo da Santa Croce. Depois desta nova, aos dezoito de janeiro, em Castel della Pieve, foram estrangulados da mesma maneira. E essa é a descrição de como o Duque Valentino matou Vitellozzo, Oliverotto da Fermo, Paolo Orsino e o Duque de Gravina Orsini, em Sinigaglia. Discurso sobre a Alemanha e o imperador Porque escrevi sobre o imperador e a Alemanha quando aqui cheguei, no ano passado, não sei que dizer mais. De novidade, direi somente sobre a natureza do imperador. De homem pródigo que é, sobre todos os outros que em nossos tempos ou que antes existiram, faz-se com que sempre tenha necessidade, nem soma alguma exista que lhe baste, em qualquer grau que a fortuna se encontre. É inconstante porque hoje quer uma coisa e amanhã não; quer as coisas que não pode ter, e das que pode se afasta; por isso, toma sempre o partido inverso. É, por outro lado, homem belicoso; comanda e conduz bem um exército, com justiça e com ordem. Pode suportar qualquer fadiga, mais que nenhum outro trabalhador; é animoso nos perigos, de tal modo que, como capitão, não é inferior a nenhum outro. É humano quando dá audiência, mas a quer dar à sua vontade; não quer ser cortejado pelos embaixadores, senão quando lhes manda fazê-lo. É muito reservado. Está sempre em contínuas agitações de alma e de corpo, mas com frequência desfaz à noite o que conclui pela manhã. Por isso, as legações junto a ele tomam-se difíceis porque a parte mais importante que tenha alguém que seja enviado de um príncipe ou república é interpretar bem as coisas futuras, tanto os tratados quanto os fatos, pois quem deles faz sábias conjecturas e se faz compreender bem ao seu superior dá razão para que este possa adiantar-se sempre e assegurar-se a seu devido tempo. E isso, quando bem feito, honra a quem está fora e beneficia quem está dentro. O contrário acontece quando é mal feito. Para vir a descrevê-las, vós estareis em lugares onde se manejarão as duas coisas: guerra e tratados. A querer desempenhar bem vosso ofício, é dever dizer que opinião se tenha de uma e de outra coisa. A guerra deve-se medir com a tropa, com o dinheiro, com o governo e com a fortuna, e quem tem mais das mencionadas coisas deve-se crer que vencerá. E seja quem possa vencer considerado por isso, é necessário que se entenda aqui, a fim de que vós e a cidade possais melhor deliberar. Os tratados são concluídos de várias maneiras, ou seja, parte entre os venezianos e o imperador, parte entre o imperador e a França, parte entre o imperador e o papa, parte entre o imperador e vós. Pelos vossos próprios acordos deveria ser fácil fazer a sua interpretação e ver qual é o intento do imperador para convosco, o que deseja, para onde esteja voltado o seu ânimo e o que seja necessário realizar para fazê-lo recuar ou ir adiante. Neste momento, ao encontrar esse ponto, é preciso ver se está mais a propósito temporizar que concluir. Estará em vós deliberá-lo, com relação a quanto se estenderá a vossa comissão. Relatórios sobre as coisas da Alemanha – de julho de 1508 O Imperador reuniu a Dieta, composta por todos os príncipes da Alemanha, em junho passado, em Constança. A proposta era obter meios garantidos para invadir a Itália e coroar-se imperador, o que fez por sua vontade própria e, ainda, por ter sido solicitado pelo enviado do pontífice, prometendo-lhe grande ajuda por parte deste. O imperador pediu à Dieta três mil cavalos e dezesseis mil infantes e prometeu juntar nesse total, por si mesmo, até trinta mil pessoas. O motivo para que ele pedisse tão pouca gente para tão grande empresa foi porque julgou que bastassem, persuadindo-se de que se poderia valer dos venezianos e de outros da Itália, como adiante se dirá. Nunca julgou que os venezianos lhe faltassem, tendo-os servido pouco antes, quando temiam a França, depois da tomada de Gênova, pois havia mandado, a pedido deles, cerca de dois mil homens a Trento. Também declarara que queria reunir os príncipes e que tinha ido a Suábia para ameaçar os suíços se estes não rompessem com a França. Isso fez com que o Rei Luís regressasse a Lion logo depois da conquista de Gênova e, parecendo ao imperador que lhes tirara a guerra de cima, acreditava que em tudo o devessem apoiar; e se comprove em dizer mais de uma vez que não tinha amigos na Itália por causa dos venezianos. Os outros motivos ainda por que pediu tão pouca gente foram que o império lhas prometesse e cumprisse ou que condescendesse de bom grado em pô-las todas sob sua obediência e não procurasse dar capitães nomeados pelo império que fossem seus iguais. Porque não faltou quem relembrasse na Dieta (entre os quais estava o arcebispo de Mogúncia) que convinha tornar grande a expedição, provendo, pelo menos, a quarenta mil homens e lhes dar, em nome do império, quatro capitães, etc. Irado, o imperador reclamou: "Eu posso enfrentar as dificuldades, quero também as honras"; pediu os referidos dezenove mil homens e, ainda mais, que lhe dessem cento e vinte mil florins para suprir à necessidade do acampamento e para pagar soldo a cinco mil suíços por seis meses, como melhor lhe parecia. O imperador propôs que as tropas estivessem reunidas no dia de São Galo. Parecia-lhe tempo mais que suficiente para tê-las prontas e cômodo ao modo pelo qual elas faziam a guerra. Depois, declarou que dentro do tempo referido teria realizado três coisas: uma, ter ganho o apoio dos venezianos, dos quais não desconfiou até a última hora, não obstante de ter sido, depois, expulso o enviado deles, como já se sabe; a outra, ter firmes os suíços; e a terceira, ter tirado do pontífice e de outros da Itália uma boa quantia de dinheiro. E foi, então, combinando essas coisas. Chegou o dia de São Galo; as tropas começaram a reunir-se, e ele, das três, não havia realizado nenhuma. Parecendo-lhe não poder mover-se nem deixando ainda de esperar conduzi-las a termo, enviou as forças parte para Trento, parte para outros lugares; e não deixava as suas pretensões, de modo que ele se viu em janeiro, consumi da a metade do tempo previsto pelo império, sem ter feito coisa alguma. Chegado a esse extremo, fez um ultimatum de autoridade para ter os venezianos, aos quais mandou Fra Bianco, o Padre Luca, o déspota da Morea e os seus arautos várias vezes. E eles, quanto mais eram solicitados, tanto mais o percebiam fraco e mais lhes fugia a vontade. Nem assim percebiam alguma daquelas coisas pelas quais as alianças de Estados se fazem; que são, ou para ser defendido, ou por medo de ser ofendido, ou por lucro, mas viam que entravam para uma aliança onde a despesa e o perigo eram deles, e o lucro, de outros. Portanto, o imperador, sem ter outro partido a tomar, sem perder mais tempo, deliberou atacá-los, acreditando, talvez, fazê-los recuar, e talvez lhe tenha sido dada a intenção disso pelos seus enviados – ou, pelo menos, com a desculpa de tal ataque, fazer com que o império afirmasse e aumentasse suas tropas de reforço, percebendo que as primeiras não bastaram. E como sabia que, antes de ter recebido mais reforços, não podia estar fazendo a guerra, para não deixar o país à discrição, reuniu, antes do assalto, no dia 8 de janeiro, em Buggiano, lugar que fica a um dia de Trento, a Dieta do condado do Tirol. É esse condado toda a parte que era de seu tio e lhe rende mais de trezentos mil florins, que, sem imposição de nenhum tributo, dá mais de dezesseis mil homens de guerra, e os seus habitantes são muito ricos. Essa dieta ficou dezenove dias em atividade e concluiu por dar mil infantes para a sua vinda à Itália, mas não chegou a cinco mil em três meses. Finalmente, foram necessários dez mil para a defesa do país. Depois dessa conclusão, seguiu para Trento e em 6 de fevereiro realizou aqueles dois ataques contra Roveredo e Vicenza, com cerca de cinco mil homens ao todo. Partiu logo em seguida e com aproximadamente mil e quinhentos infantes e camponeses entrou no vale de Codaura em direção ao Trivigiano; apoderou-se de um vale e de diversas fortalezas, e vendo que os venezianos não se mexiam, deixou avisadas aquelas tropas de que deviam entrar em ação e voltou para tomar conhecimento das disposições do império. Os infantes foram mortos em Codaura, e ele mandou o Duque de Brunswick, de quem nunca se soube coisa alguma. Reuniu a Dieta na Suábia, em VIm, no terceiro domingo da Quaresma. Como tudo lhe parecia ir mal, dirigiu-se a Gueldre e mandou o Padre Luca aos venezianos para tentar a trégua, que se concluiu ainda nesse mês de junho, no dia 6, perdendo o que possuía no Friul e quase perdido Trento, que foi defendida pelo condado do Tirol. Se fosse pelo imperador e pelas forças imperiais faltaria pouco para que perdessem, pois todos partiam nos maiores perigos da guerra, quando se esgotava o prazo de seis meses. Sei que os homens que ouviram e viram essas coisas confundem-se e divergem em muitas partes; nem sabem por que não se viram essas dezenove mil pessoas que o império prometeu, nem por que a Alemanha não se tenha ressentido da perda de sua honra, nem por que razão o imperador se tenha enganado tanto. E assim, cada qual tem opinião diferente sobre aquilo que se deva temer ou esperar para o futuro, bem como para onde as coisas podem ser orientadas. Como estive no local e ouvi falar muitas vezes a muitos, nem tendo tido outra tarefa que não esta, farei referência a todas as coisas que guardei. Se não distintamente as farei todas juntas, misturadas, a responderem aos quesitos acima, mas não as apresento como verdadeiras e ponderáveis, e sim como coisas ouvidas; parecendo-me que o ofício de um servidor seja colocar diante do seu senhor tudo quanto ele apura, para que, daquilo que seja bom, ele possa fazer cabedal. Cada um daqueles a quem eu ouvi falar está de acordo em que se o imperador tivesse uma das duas coisas, sem dúvida lhe teria saído bem qualquer desígnio na Itália, sabendo-se como ela está condicionada, quais são, ou que mudasse de natureza, ou que a Alemanha o ajudasse deveras. Começando-se pela primeira, dizem que, considerados os seus fundamentos, se ele deles se soubesse valer não seria inferior a nenhum outro potentado cristão. Dizem que os seus Estados lhe dão renda de seiscentos mil florins sem requerer qualquer tributo, e por cem mil florins lhe vale o ofício imperial. Essa renda é toda sua, e não a tem por necessidade obrigada a nenhuma despesa, pois em três coisas onde os outros príncipes são obrigados a despender, ele não gasta um soldo; por não ter homens armados, não paga guarnições de fortalezas nem oficiais de terra, pois gentis-homens do país estão armados às próprias custas; às fortalezas compete guardá-las ao país; e as cidades têm os seus burgomestres, que se interessam por elas. Poderia, portanto, se fosse um rei da Espanha, em pouco tempo criar tão grande base por si mesmo, que lhe sairia bem qualquer coisa; com um capital de oitocentos ou novecentos mil florins, o império não seria tão desprezível e o país, por pouco que fizesse, não deixaria de obter grande aumento. Além disso, com a possibilidade de fazer guerra de súbito, por ter gente armada em toda parte, poderia, provido de dinheiro, mover uma campanha sem delongas, encontrando desprevenido, com relação a armas, qualquer um deles. A isso, junte o fato de que a reputação que advém do fato de ele ter, por sobrinhos, o rei de Castela, o duque de Borgonha e o conde de Flandres, e a aliança com a Inglaterra, todas essas coisas lhe seriam de grande utilidade quando bem empregadas, de modo que, sem dúvida, todos os projetos na Itália lhe resultariam bem. Mas mesmo com todas as arrecadações mencionadas, ele nunca tem dinheiro algum; e o que é pior, não vê para onde vai o dinheiro. Quanto a lidar com as outras coisas, o Padre Luca, que é um dos principais homens de que ele se utiliza, disse-me as seguintes palavras: o imperador não pede conselho a ninguém e é aconselhado por todos; quer fazer tudo por si e nada faz a seu modo, pois, não obstante ele nunca descobrir os seus segredos espontaneamente, como o assunto os descobre, o imperador dá as costas aos que lhe estão ao derredor e se afasta da sua primeira ordem. E são estas duas coisas: a liberalidade e a facilidade, que o fazem louvado de muitos, que o arruínam. Nem a sua vinda à Itália é por outra razão tão espantosa quanto essa porque, com a vitória, as necessidades lhe cresciam, não lhe convindo firmar pé assim tão depressa, nem mudando de maneiras, mesmo que as frondes das árvores da Itália tivessem sido transformadas em ducados, ainda não lhe bastariam. Com dinheiro na mão, não há coisa alguma que não se tivesse obtido e, contudo, muitos julgavam prudentes aos que custavam mais a dar-lhe dinheiro a primeira vez, porque esses não teriam de custar ainda mais a dar-lhes a segunda. E quando eles não tivessem tido outras ações contra o príncipe, este lhes teria pedido dinheiro em empréstimo; e se não lhe fosse emprestada a soma pedida até então, ter-se-iam eles tirado fora. E eu quero, com isso, retratar a mais pura verdade. Em 29 de março, quando Messer Pagolo perguntou, depois de despachar Francisco eu fui visitá-lo com o capítulo feito relativamente a vossa petição. Quando ele chegou ao trecho que diz: "O imperador não pode exigir outra soma de dinheiro, etc.", queria que antes de exigir se pusesse por direito. Perguntei-lhe eu o porquê, e respondeu-me que queria que o imperador vos pudesse solicitar dinheiro em empréstimo, e então lhe respondi de maneira que ele se contentou. E notai isto: que das suas frequentes desordens nascem as suas frequentes necessidades, e das suas frequentes necessidades nascem os frequentes pedidos, e destes, as frequentes Dietas, e de seu pouco critério, as fracas resoluções e execuções. Mas na Itália, se tivesse vindo à Itália, vós o não teríeis podido satisfazer nas reuniões da Dieta como faz a Alemanha. E tanto mais o prejudica essa sua liberalidade, que para fazer a guerra lhe é necessário mais dinheiro que a qualquer outro príncipe porque os seus povos, por serem livres e ricos, não são instados nem pela necessidade nem atraídos por qualquer afeição, mas o servem pela determinação da sua comunidade e pelo seu preço, de maneira que, se ao fim de trinta dias o dinheiro não aparece, logo partem e não os podem reter rogos, ou esperança, ou ameaça, faltando-lhes o dinheiro. E se digo que os povos da Alemanha são ricos, é porque assim o são de fato. O que os faz ricos, em grande parte, é o viver como pobres, uma vez que, não edificam, não vestem e não têm mantimentos em casa, bastando que tenham pão e carne em abundância e uma estufa para fugir do frio. Quem não conhece ou não tem outras coisas, passa sem elas e não as procura. Gastam consigo dois florins em dez anos, e cada qual vive segundo a sua vontade e à devida proporção. Ninguém se importa com o que lhe falta e sim com o que tem de necessário; suas necessidades são bem menores que as nossas, e desse costume resulta que não sai dinheiro de seu país e também que estão contentes com o que lá se produz; gozam da vida rústica e livre que levam e não querem ir à guerra se não são bem pagos, nem isso também lhes bastaria se as comunidades assim não lhes determinassem. E, então, ao imperador seria necessário muito mais dinheiro do que ao rei da Espanha ou a outros que tenham ordenado o seu povo de maneira diferente. A sua fácil e boa natureza faz com que cada um que ele tem ao seu redor o engane; e um dos seus declarou-me que cada homem e cada fato o pôde enganar uma vez quando ele o percebeu, mas são tantos os homens, tantos os fatos, que lhe pode suceder ser enganado todos os dias, mesmo que ele sempre perceba que foi enganado. Possui infinitas virtudes, e, se combinasse as duas faces mencionadas, seria um homem perfeito, pois é perfeito capitão, mantém o país com grande justiça, é acessível às audiências, é benéfico, além de muitas outras qualidades de excelente príncipe. Por fim, conclui-se que, se temperasse aquelas duas, podem todos perceber que todas as coisas lhe dariam bom resultado. Da potência da Alemanha ninguém pode duvidar. Nela há abundância de homens, de riquezas e de armas. Quanto à riqueza, não há comunidade que não tenha dinheiro economizado e, além do mais, todos dizem que só Estrasburgo tem vários milhões de florins em prata, isso porque não se tem despesas que os faça gastar mais dinheiro que a que fazem para se fornecer de munições, nas quais tendo despendido certa soma de uma vez, despendem depois muito pouco para mantê-la. E nisso são bem ordenados porque têm sempre em público o que comer, beber, queimar durante um ano, e, igualmente, o que por um ano trabalhar nas suas indústrias, para poder, em caso de necessidade, dar de comer à plebe e aos que vivem dos braços, por um ano inteiro, sem perda. Com soldados não se gasta porque há homens armados e exercitados. Gastam pouco com salários e em outras despesas, de forma que cada comunidade se encontra rica. Resta agora que as cidades se unam aos príncipes para favorecer os empreendimentos do imperador ou que, por si mesmas, sem os príncipes, o desejem levar adiante, pois que bastariam a isso. Os que falam disso, tratam que a causa da desunião está no fato de existirem muitos temperamentos contrários naquela província, o que produz desunião geral, dizendo que os suíços estão em inimizade com a Alemanha, as comunidades com os príncipes e os príncipes com o imperador. Parece, talvez, um pouco estranho dizer que os suíços e as comunidades sejam inimigos, atendendo ambos ao mesmo desígnio de salvar a liberdade e guardar-se dos príncipes, mas essa sua desunião existe porque os suíços são não somente inimigos dos príncipes como das comunidades, mas também são inimigos dos gentis-homens, pois no seu país não existem, nem de uma nem de outra espécie, e gozam de uma verdadeira liberdade sem qualquer distinção dos homens, exceto aqueles que exercem a magistratura. Esse exemplo dos suíços faz medo aos gentis-homens que permaneceram nas comunidades; toda a sua indústria está em mantê-los desunidos e com poucos amigos. Todos aqueles homens das comunidades que atendem aos ofícios da guerra, movidos por uma inveja natural, são ainda inimigos dos suíços, e parecem-lhes ser menos estimados nas armas que aqueles, de modo que não se pode reunir em um campo pequeno um grande número desses homens que não briguem entre si. Quanto à inimizade dos príncipes com as comunidades e com os suíços, não é preciso falar mais, já é coisa conhecida, e assim também acontece entre o imperador e os ditos príncipes. E deveis compreender que, tendo o imperador seu ódio principal contra os príncipes e não podendo por si mesmo rebaixá-los, valeu-se dos favores das comunidades e, por essa mesma razão, de um tempo a esta parte, entreteve os suíços, que lhe pareciam ultimamente ter chegado a certo grau de confiança. Assim se deu que, consideradas em geral todas essas divisões, e juntando-se depois àquelas que existem entre um príncipe e outro, e entre uma comunidade e outra, dificulta a união de que o imperador teria necessidade. E aquilo que fazia com que todos confiassem, que tornava gloriosas as ações do imperador e plausíveis as suas empresas, é que não se via príncipe na Alemanha que pudesse opor-se aos seus desígnios, como antigamente houve – o que era e é a verdade. Mas aquilo em que os outros se enganavam é que não somente o imperador pode ser retido na guerra e em tumultos na Alemanha, mas pode ser ainda retido se não tiver ajuda; e aqueles que não ousam mover-lhe a guerra ousam retirar-lhe os auxílios; e quem não ousa negar-lhe ousa, prometidos que os tem, a não observar a promessa; e quem ainda não ousa isso ousa diferir-lhos, de modo que não cheguem em tempo útil. E todas essas coisas o ofendem e o perturbam, sabe-se disso por ter-lhe a Dieta prometido, como se disse acima, dezenove mil homens, e por não se terem visto nunca tantos que chegassem a cinco mil. Pode-se considerar que se origine tal fato das razões mencionadas, ou de ter ele tomado dinheiro em vez de gente, e talvez por ter tomado cinco por dez. Para chegar até a outra afirmação relativa à potência da Alemanha e de sua união, digo que esse poder está mais nas comunidades que nos príncipes. Nos príncipes são de duas naturezas: temporais ou espirituais. Os temporais estão como que reduzidos a uma grande debilidade; em parte por eles mesmos, sendo cada principado dividido em diversos príncipes pela divisão igual da herança que eles observam, em parte por havê-los rebaixado o imperador com o favor das comunas, como se disse, de tal maneira que são amigos inúteis e inimigos pouco temíveis. Existem ainda, como foi dito, os príncipes eclesiásticos. Estes, se as divisões hereditárias não os aniquilaram, os reduziram à ambição das suas comunidades, com o favor do imperador e de tal maneira que os arcebispos eleitores e outros semelhantes nada puderam fazer nas grandes comunidades próprias, do que advém que nem eles nem as suas terras, sendo divididas juntamente, podem favorecer empresas do imperador quando bem o desejassem. Mas venhamos às comunidades francas e imperiais, tidas como nervo daquela província onde há dinheiro e ordem. Estas têm muitas razões de não se mostrar solícitas em prover dinheiro ao imperador, pois a intenção principal é manter a própria liberdade e não conquistar mais império; aquilo que não desejam para si não cuidam para que outrem o tenha. Além disso, por serem tantas e por cada qual governar-se por si, as suas provisões, quando o desejam fazer, são tardas e não possuem a utilidade que seria de desejar. Por exemplo, há nove anos, os suíços assaltaram o Estado de Maximiliano e a Suábia. Foi conveniente ao rei reprimi-los, e eles se obrigaram a manter em campo catorze mil homens, mas destes nunca se viu nem a metade, pois, quando os de uma comunidade vinham, os da outra se retiravam. Assim, desesperado, o imperador fez acordo com os suíços e lhes deixou Basiléia. Ora, se nos seus próprios interesses as comunas têm usado desses termos, pensai no que fariam quando se tratasse de empresas de outrem. Donde todas estas coisas reunidas fazem com que essa potência se torne pequena e pouco útil ao imperador. É por que os venezianos, no comércio que mantêm com os mercadores das comunas da Alemanha, compreenderam isso melhor do que quaisquer outros da Itália, e por isso melhor se opuseram; se eles houvessem temido esta potência não se lhe teriam oposto, e, mesmo quando se lhe tivessem oposto, teriam julgado possível que aquelas comunas se pudessem unir, nunca o teriam feito – isso porque lhes parecia conhecer essa impossibilidade, e foram fortes como se viu. Não obstante, quase todos os italianos que estão na corte do imperador (dos quais ouvi dizer as coisas mencionadas) permanecem agarrados a esta esperança, a saber, de que a Alemanha se empenhe em unir-se agora, e o imperador, a atirar-se-lhe ao ventre e manter agora aquela ordem de capitães e das gentes de que se falou no ano passado na Dieta de Constança; e também que o imperador agora cederá por necessidade, e eles o farão de bom grado, para reaver a honra do império; e a trégua não os incomodará, pois será feita pelo imperador e não por eles. Ao que responde alguém não dar muita fé a que isso esteja para acontecer – porque se vê todos os dias que as coisas são descuradas quando estão em uma cidade da qual muitos são os donos – tanto mais deve acontecer em uma província. Além disso, as comunidades sabem que a conquista da Itália seria para os príncipes e não para elas; e esses podem vir a gozar pessoalmente as cidades da Itália, enquanto que elas não, e onde a recompensa deva ser desigual, os homens pouco se esforçam e de má vontade agem. Assim, permanece essa opinião indecisa, sem poder resolver-se sobre o que há de acontecer. É isso o que eu entendo da Alemanha. Com relação às outras coisas, se poderia haver paz ou guerra entre os príncipes, ouvi muitas coisas, mas, por se basearem somente em conjecturas (do que se tem aqui mais verdadeira notícia e melhor juízo), deixo-as de lado. Saudações. Resumo das coisas da Alemanha As tropas alemãs são pesadas, mas são muito bem montadas e bem armadas. Deve-se porém notar que não valeriam nada em uma peleja de armas contra os italianos ou contra os franceses, e isso não pela qualidade dos homens, mas porque não usam nos cavalos qualquer tipo de armadura, e as selas, que são pequenas, fracas e sem estribos, permitem que qualquer pequeno choque os atire ao chão. Eis outra coisa que os torna pior: do busto para baixo, ou seja, coxas e pernas, não se tem qualquer resguardo. Isso faz com que não possam os cavaleiros aguentar a primeira investida, e nisso consiste a importância das tropas e do feito de armas. Desprovidos de segurança, não podem combater com arma curta, pois podem ser atingidos, bem como seus cavalos, em lugares desguarnecidos, além de existir a possibilidade de que qualquer cavaleiro possa ser arrancado da montaria com lança. Ainda há, contudo, o próprio peso, que mal se aguenta quando se agitam os cavalos. As tropas de infantaria são ótimas e compostas de homens de bela estatura, ao contrário dos suíços, que são pequenos e não são limpos nem tão pouco belos, mas não se armam com mais de uma lança ou adaga, visando para ser mais ágeis, prestos e leves. E costumam dizer que fazem assim por não ter outro inimigo que não a artilharia, da qual uma armadura, couraça, cota de malha não os defenderia. Outras armas não temem, pois afirmam possuir tal ordem, que não é possível se penetrar entre eles, nem se lhes aproximar quando a lança é longa. São ótimos homens nas batalhas em campos, mas para o assalto a fortalezas não valem muito, e tampouco para defendê-las. Em geral, não valem onde não podem manter a ordem da sua milícia. Disto se teve a experiência depois que tiveram de se avir com os italianos; e máxime onde tivera de conquistar cidadelas, como aconteceu em Pádua e outros lugares, no que provaram mal, e, ao contrário, onde se encontraram em campo fizeram boa figura. Se na jornada de Ravena, entre os franceses e os espanhóis, aqueles não tivessem contado com os lansquenetes, perderiam a batalha, pois enquanto uma parte da tropa se empenhava com a outra, os espanhóis haviam já rompido a infantaria francesa e da Gasconha; e se os alemães com a sua presteza não os socorressem, ali teriam todas sido mortas e tomadas. Por isso, não há muito tempo, quando o Rei Católico declarou guerra à França na Guiena, as tropas espanholas temiam mais ao grupo de alemães que o rei tinha com dez mil homens que a todo o resto da infantaria e, consequentemente, evitavam encontros. Da natureza dos franceses Esquecem injúrias e benefícios passados, cuidam pouco do futuro, seja o bem ou o mal dele, pois dão muita atenção à utilidade e aos danos do momento. São antes retrógrados que prudentes. É um povo que não se importa muito com o que se escreva ou se diga sobre eles. São mais cobiçosos de dinheiro que de sangue. São liberais somente em ouvir. A um senhor ou gentil-homem que desobedeça ao rei em uma coisa que pertença a um terceiro não resta remédio que não o de lhe obedecer de qualquer maneira, quando ainda está em tempo; e quando não, ficar quatro meses sem aparecer na corte. E esse foi causa de um dos arrebatamentos de Pisa, por duas vezes: uma quando Entraigues tomava as rédeas da pequena cidade; a outra quando o campo francês nos veio. Quem quer levar um negócio a bom termo na corte precisa de muito dinheiro, grande diligência e boa fortuna. Se a intenção for um benefício, pensarão antes na utilidade que dele poderão tirar e, depois, no serviço que poderão prestar. Os primeiros acordos com eles são sempre os melhores. Quando não te podem fazer bem, prometem; quando podem fazer, fazem-no com dificuldade – ou nunca. São humilíssimos na má sorte; na boa, insolentes. Tecem bem as suas intrigas urdidas com a força. Quem vence está, por isso mesmo e quase sempre, com o rei; quem perde, raríssimas vezes, e por isso, quem tem de realizar uma empresa, deve logo considerar se ela lhe sairá bem ou não. É esse capítulo conhecido de Valentino, pois o fez vir a Florença com o exército. Estimam grosseiramente, e de maneira desconforme à dos senhores italianos, a sua própria honra, e por isso bem pouco se importam de haver mandado a Siena a pedir Montepulciano e não ser obedecidos. São inconstantes e levianos. Têm fé no vencedor. São inimigos do falar romano e de sua fama. Dos italianos, não tem bom tempo na corte senão quem não tem mais o que perder e navega por perdido. Relação sobre a França Percebe-se que a coroa e os reis da França são hoje mais ricos e mais poderosos do que nunca. As razões são destacadas abaixo. A coroa, sendo transmitida por sucessão de sangue, tornou-se rica porque, às vezes, o rei sem filhos e sem quem o possa suceder na própria herança, os seus haveres e os Estados ficaram para a coroa. Como isso tem acontecido a muitos reis, a coroa veio a ser muito enriquecida pelos muitos Estados que lhe couberam. Isso aconteceu com o ducado de Anjou, e no presente acontecerá ao atual rei, que, por não ter filhos varões, deixará para a coroa o ducado de Orleans e o Estado de Milão, de modo que hoje todas as boas terras da França pertencem à coroa e não particularmente aos seus barões. Poderosíssima, há também outra razão: é que no passado, a França não estava unida devido aos poderosos barões, que tudo ousavam e lhes bastava a vontade para se entregar a qualquer empreendimento contra os reis, como acontecia com os duques de Guiena e de Bourbon, que, hoje, são todos muito obsequiosos. Veio a ser assim o mais forte. Eis outra razão que a qualquer outro príncipe vizinho bastava somente a vontade de atacar o reino da França, e isso porque sempre havia um duque da Bretanha ou um duque de Guiena, da Borgonha ou de Flandres que lhe servia de ajuda, cedia-lhe o passo e o fazia de amigo, como acontecia quando os ingleses estavam em guerra com a França, que sempre por intermédio de um duque da Bretanha davam trabalho ao rei e, da mesma maneira, um duque da Borgonha por meio de um duque de Bourbon. Agora sendo os bretanhos, guienos, bourboneses e a maior parte dos povos de Borgonha súditos muito obsequiosos da França, não só faltam a tais príncipes os tais meios para invadir o reinado da França, mas os têm hoje por inimigos. E ao rei, também, que por possuir esses Estados torna-se mais poderoso, e o inimigo, mais fraco. Outra razão é que hoje os barões mais ricos e mais poderosos da França são de sangue real e da linha hereditária, de modo que, na falta de um de seus superiores e ascendentes, a coroa lhe pode ser outorgada. Por isso, cada qual se mantém unido à coroa, esperando que ou ele mesmo ou um de seus filhos possam chegar àquele grau. Rebelar-se ou tomar-se inimigo poderia ser mais prejudicial que benéfico, como esteve para acontecer a esse rei, preso na jornada da Bretanha, pois fora a favor do duque e contra os franceses. Ainda se discutiu se, como Rei Carlos foi morto por aquela falta e defecção, devesse ele ter perdido o direito de sucessão. E se ele não fosse um homem de dinheiro devido às economias que fizera e que com elas pôde contar para gastar, depois daquele que podia ser rei, afastado, via-se um menino, ou seja, o Senhor de Angouleme; esse rei, pelas razões já expostas e por merecer também algum favor, foi feito rei. A última razão existente é que os Estados dos barões da França não se dividem entre os herdeiros, como se faz na Alemanha e em outras partes da Itália: unem-se os primogênitos, os verdadeiros herdeiros, e os outros irmãos ficam em paz. Ajudados tanto pelo primogênito quanto pelo irmão, dão-se a todos as armas e vão se empenhando na tarefa, até chegar ao ponto e nas condições de poder comprar para si um Estado, e com essa esperança vivem. Disso advém que os homens de armas franceses são hoje os melhores que existem, pois que são todos nobres e filhos de senhores com condições de chegar a esse grau. As tropas de infantaria que se formam na França não podem ser boas porque faz muito tempo que não têm guerra e, por isso, não têm experiência. Além do mais, os homens estão pelas cidades, todos com condição popular e como trabalhadores; estão, de certa maneira, submetidos aos nobres, que se tornam tão abatidos na ação que chegam a ser desprezíveis. Assim se vê que o rei não se serve deles nas guerras porque provam mal, havendo, entretanto, os gascões de que o rei se serve, pois são um pouco melhores que os outros. Isso é gerado pelo fato de serem vizinhos das fronteiras da Espanha, mas que trazem pouco do caráter espanhol. Mas deram, pelo que se viu há muitos anos a esta parte, mais provas de serem ladrões que homens valentes; provam muito bem quando defendem e assaltam fortalezas, mas em campanha dão resultado ruim: assim vêm a ser o contrário dos alemães e dos suíços, inigualáveis no campo, mas que nada valem para defender e ofender fortalezas. É por isso que o rei da França se serve sempre dos suíços ou dos lansquenetes porque os seus homens de armas, onde se tenha inimigo, não se fiam dos gascões. E se a infantaria fosse da qualidade que são os homens de armas franceses, não haveria dúvida de que lhes bastaria o ânimo para defender-se de todos os príncipes. Os franceses são mais valentes que fortes ou destros e, no primeiro ímpeto, se puderem resistir à sua ferocidade, mostram-se tão humildes que perdem de tal maneira o ânimo, tornando-se iguais a fracas mulheres. Também não suportam aborrecimentos e incômodos. Com o tempo, descuram as coisas de n'1odo que seja fácil superá-las quando forem encontradas em desordem. E disto se teve muitas vezes a experiência no reino de Nápoles e, ultimamente, em Garigliano, onde havia mais que o dobro dos espanhóis e se julgava que os devessem a cada momento aniquilar. Contudo, os franceses começaram a retirar-se um a um para as cidades vizinhas, em busca de uma vida com mais conforto, porque começava o inverno e as chuvas eram fortes. Dessa forma, o campo ficou desfalcado e com pouca ordem, o que favoreceu a vitória dos espanhóis contra todas as razões. Aos venezianos teria acontecido o mesmo; não teriam perdido a jornada de Vailà, se tivessem seguido os franceses pelo menos dez dias, mas o furor de Bartolommeo d’Alviano encontrou um furor maior. O mesmo aconteceu aos espanhóis em Ravena, que não se aproximavam dos franceses e os desorganizavam, considerando a falta de víveres e de disciplina, que impediam os venezianos de lhes chegar de Ferrara; os de Bolonha teriam sido impedidos pelos espanhóis, mas como uns tiveram pouco conselho e os outros tiveram menos juízo, o exército francês venceu – embora com vitória sangrenta. E se o conflito foi grande, maior teria sido se a força principal de um campo e de outro tivesse sido da mesma categoria, tanto um quanto o outro. Mas o exército francês era forte em homens armados; o espanhol, na infantaria; e por isso, não houve grande carnificina. Contudo, quem quiser superar os franceses deve guardar-se do seu primeiro ímpeto, pois, entretendo-os pelas razões já mencionadas, os vencerá. Por isso César disse que os franceses são no princípio mais do que homens e no fim, menos do que mulheres. Devido à sua grandeza e pela comodidade de grandes rios, a França é fértil e opulenta; os rebanhos e os trabalhos manuais valem pouco ou são fiados, pois falta dinheiro à população que apenas pode reunir o suficiente para pagar os impostos ao seu senhor, ainda que sejam baixíssimos. Isso acontece porque eles não têm onde vender os seus rebanhos; porque todo homem colhe para vender e, se em uma cidade houvesse alguém que quisesse vender uma medida de grão, não encontraria comprador, pois todos têm grão a venda; E os gentis-homens, do dinheiro que recebem dos súditos, exceto para se vestirem, não gastam com nada porque eles têm gado próprio e suficiente para consumir, bem como criações de aves, lagos e lugares cheios de caça de toda a espécie. Em geral, assim é cada Um deles nas cidades. Todo o dinheiro se concentra nas mãos dos senhores e, por isso, hoje sua riqueza é grande; por isso, também quando um do povo tem um florim, sente-se como rico. Os prelados da França tiram dois quintos das rendas daquele reino porque existem muitos bispados que têm o temporal e o espiritual e, além disso, tendo bastante para a sua subsistência, todas as prestações e dinheiro que lhes vão às mãos não lhes saem mais – segundo a natureza, avara dos prelados e religiosos – e aquilo que vai aos capítulos e colégios das igrejas é gasto em pratas, joias e riquezas para ornamento das igrejas. Assim, o que possuem as Igrejas e o que têm os prelados em particular, entre dinheiro e prataria, vale tesouros infinitos. Ao consultar e governar as coisas da coroa e o Estado da França, os prelados sempre intervêm em maior parte. Os outros senhores não se importam porque sabem que eles próprios é que têm de executar as medidas propostas pelo governo. E assim, cada qual se contenta, um com o ordenar, outro com o executar, embora intervenham ainda velhos e já vividos homens de guerra, para que, quando se deve tratar de coisas semelhantes, possam orientar os prelados, que não têm prática disso. Os benefícios da França, em virtude da pragmática obtida pelos pontífices há muito tempo, são conferidos pelos seus colégios, de maneira que os cônegos, quando o seu arcebispo ou bispo morre, todos reunidos conferem o benefício a quem deles lhes parecer que mereça. Dessa maneira, frequentemente têm alguma dissensão, pois há sempre quem se favoreça com o dinheiro e alguém com a virtude e boas obras. A mesma coisa fazem os monges ao eleger os abades. Os outros pequenos benefícios são conferidos pelos bispos, aos quais estão submetidos, e, se por acaso o rei quisesse contrariar tal pragmática, elegendo um bispo a seu modo, seria necessário que usasse de força porque o negariam a posse, e mesmo que sejam a isso obrigados costumam, mesmo que o rei seja morto, desapossar o prelado para dar o benefício a outra pessoa, eleita por eles. A natureza dos franceses é ambiciosa em relação ao que é de propriedade de outros e, juntamente com o que é seu e o dos outros, ademais, é pródiga. Assim sendo, um francês roubaria alguém e, no mesmo momento, desfrutaria a coisa roubada com aquele de quem a saqueou. Natureza oposta à espanhola, que daquilo que te é roubado nunca mais porá os olhos em coisa alguma. A França teme demasiadamente aos ingleses pelas grandes incursões e danos que em outros tempos fizeram ao reino. É por tal motivo que entre o povo a palavra "inglês" é temida, pois não distingue ele, o povo, que sua pátria está hoje bem organizada, ao contrário do que era outrora, uma vez que está armada, mais experiente, unida e tem em seu poder aqueles Estados em que os ingleses se estabeleciam, como acontecia com o ducado da Bretanha e o da Borgonha. Ao contrário, os ingleses não são disciplinados, pois há tanto tempo que não entram em combate que, desses homens de hoje, não há um que tenha visto, sequer uma vez, inimigo pela frente. De mais a mais, falta-lhes quem os sustente no continente, salvo o arquiduque. Temeriam muito aos espanhóis devido à sua sagacidade e vigilância. Mas se por acaso o rei dos espanhóis quiser atacar a França, terá grande desvantagem porque, do seu Estado, ponto de partida em direção à boca dos Pireneus que penetram no reinado da França, o caminho é tão estéril e longo. Todas as vezes em que os franceses mirassem aquelas saídas a Perpignan, como as que se dirigem à Guiena, o exército espanhol poderia ser desorganizado, se não fosse pela falta de socorro seria ao menos pelos víveres, tendo de caminhar por tão longa via em que as terras que se deixam para trás são como que inabitadas, devido à sua esterilidade, e as que são habitadas têm apenas o suficiente para a vida de seus habitantes. Esta é a razão pela qual os franceses da vertente dos Pireneus temem muito pouco aos espanhóis. Dos flamengos, os franceses não receiam porque os flamengos não são produtores, devido à fria natureza do país, nem do que viver e, principalmente, de trigo e vinho, que é necessário importar da Barganha, da Picardia e de outras localidades francesas. Além disso, os povos de Flandres vivem de trabalhos manuais vendidos nos mercados (Lion e Paris) porque não há onde comercializar do lado do mar; e, do lado da Alemanha, acontece o mesmo porque tem tal povo as ditas mercadorias e até as fabricam mais que eles. Assim, sempre que deixassem de negociar com os franceses, ficariam sem ter onde vender suas mercadorias e ainda sofreriam não apenas com a falta de víveres como também de mercado para o que produzissem. Isso faz com que os flamengos nunca, senão forçados, comecem uma guerra com os franceses. Teme muito a França dos suíços pela sua vizinhança e pelos repentinos ataques que lhe podem fazer, já que não é possível, pela sua presteza, prover a tempo. E fazem, antes, mais pilhagens e correrias que outra coisa porque, sem artilharia, sem cavalos e estando as vizinhas cidades francesas bem defendidas, não conseguem grande progresso. A natureza dos suíços é mais apta à guerra de campo que ao abater e defender fortificações. De má vontade, os franceses, naqueles confins, combatem os suíços porque não têm infantaria boa que lhes faça frente, e homens de armas sem infantaria valem nada de nada. E ainda há de se considerar o terreno, tão acidentado que lanças e cavaleiros mal se movimentam. Os suíços, desfavoravelmente, deixam suas fronteiras em direção à planície, abandonando, como se disse, cidades muito povoadas e bem fortificadas, o que os faz duvidar de poder voltar aos seus postos, se descessem à planície, e de não ter falta de mantimentos. Da região que fica em direção à Itália não receiam, já que existem os montes Apeninos, as grandes cidades que têm nas raízes dessa serra. Cada vez que alguém quisesse assaltar o Estado da França, teria de avançar em país tão estéril que seria necessário assediar pela fome ou deixar para trás fortalezas (pura loucura), ou ainda expugná-las. Dessa maneira, do lado da Itália não temem pelas razões citadas, por não haver na Itália príncipe em condições de atacá-los e também por não estar a nação unida como nos tempos dos romanos. Do lado do meio-dia, não teme o reinado de França por ter aí os marinheiros. E nos portos há sempre navios do rei e de outros habitantes do reino em número suficiente para defender a região de um não esperado combate. Porque a um assalto premeditado há tempo de reparar; é necessário tempo a quem o quiser fazer para prepará-la e ordená-la, e isso vem-se a saber por todos: em todas essas províncias, o reino da França, ordinariamente, tem guarnições de homens armados para garantir a segurança. Gasta-se pouco para guardar as terras porque os súditos do rei lhe são obsequiosos, tanto que de fortalezas não usa para guardar o reino. E lá nos confins, onde haveria alguma necessidade de despender, estando aí as guarnições de homens de armas, está livre de despesas porque tem-se tempo de prever um ataque em grande escala, já que requer tempo para poder ser organizado e realizado. Os franceses são humildes, obedientes ao extremo, e têm o rei em grande veneração. Pela abundância dos rebanhos, vivem com pouquíssimo gasto e, também, cada qual tem qualquer coisa de estável para si próprio. Trajam-se grosseiramente e de panos de pouco dispêndio; não usam seda de qualidade nenhuma, nem homens nem mulheres para que os gentis-homens não notem. Os bispados do reino da França, segundo a moderna recensão, são em número de 146 e, computados, os arcebispados são em número de 18. As paróquias são um milhão e mais setecentas e, computadas, 740 abadias. Os priorados não interessam. A receita regular e a extraordinária da coroa, não foi possível sabê-las. Interroguei a muitos, e todos me disseram ser tão grande quanto o rei as desejar. Entretanto, alguém diz uma parte da receita regular, isto é, o dinheiro do rei, e é produto do imposto sobre o sal, sejam os impostos do pão, vinho, carne e similares, tem ele um milhão e setecentos escudos, e a receita extraordinária tira-a ele como a dispõe. Tais rendas, baixas ou altas, são pagas ao bel-prazer do rei. Ainda nisso lançam-se empréstimos que raramente são devolvidos, que são pedidos por cartas régias, no seguinte talhe: "O rei, nosso senhor, recomenda-se a vós, e como há carência de moeda, roga a vós que lhe empresteis a soma que contém a carta." E isso paga-se em mãos do recebedor do lugar; em cada cidade há um, que recebe todos os proventos, sejam de imposto sobre o sal, de talha ou de empréstimos. As terras súditas da coroa não têm entre elas outra ordem que a que lhes dá o rei de fazer dinheiro ou pagar impostos ut supra. Sem efeito é a autoridade dos barões sobre os súditos. O seu imposto é sobre o pão, vinho, carne, como já se demonstrou, tanto por lar anualmente, não passando de seis ou oito soldos por lar, de três em três meses. Talhas ou empréstimos não podem ser impostos sem o consentimento do rei, o que raramente é consentido. A coroa não tira deles outra utilidade que não seja a entrada do sal; nunca os faz pagar talha, exceto em alguma enorme necessidade. A ordem do rei quanto às despesas extraordinárias, tanto na guerra como em outra situação, é que os tesoureiros devem pagar os soldados, e eles devem registrá-los. Os pensionistas e gentis-homens vão aos generais e fazem com que se lhes dê o desencargo, isto é, a apólice do seu pagamento mensal; os gentis-homens e pensionistas, de três em três meses, vão ao recebedor da província onde moram e são imediatamente pagos. Os gentis-homens do rei são em número de 200. O seu soldo é de 20 escudos por mês, e cada 100 deles têm um chefe, que costuma ser Ravel de Vidames. Não há número fixo para os pensionistas, e tanto podem ser poucos quanto muitos, como agradar ao rei, e alimenta-os a esperança de alcançar um posto maior, e, por esse motivo, não há ordem. Com o assentimento do rei, o ofício dos generais da França é tomar tanto por lar quanto por talha e ordenar que as despesas, tanto as regulares quanto as extraordinárias, sejam pagas no tempo correto, ou seja, os desencargos como ficou dito acima. Os tesoureiros ficam com o dinheiro, e pagam segundo a ordem e o desencargo dos generais. O ofício do grão-chanceler é de legítima autoridade; pode fazer graça e condenar à sua vontade, mesmo à pena capital, sem nenhum consentimento prévio do rei. Pode repor os litigantes obstinados em bons termos. Pode conferir os benefícios somente com o consentimento do rei pois os benefícios se fazem por cartas reais, lacradas com o grande selo real e, nem mais nem menos, ele tem o selo. Seu salário é de dez mil francos ao ano e onze mil francos para ter mesa. Por ter mesa entende-se dar de comer e de cear àqueles tantos cidadãos do Conselho que seguem o grão-chanceler, ou melhor, advogados e outros gentis-homens que o acompanham. A pensão que o rei da França ofertava ao rei da Inglaterra consistia em cinquenta mil francos por ano e servia como recompensa de certas despesas feitas pelo pai do atual rei da Inglaterra no ducado da Bretanha, que se extinguiu e não se paga mais. Atualmente, na França, não existe mais que um superintendente real, mas quando há mais que um não digo grandes, pois não existe mais de um, seu ofício é exercido sobre os homens de armas ordinários e extraordinários que, por dignidade de seu cargo, são obrigados a lhe prestar obediência. Os governadores da província são tantos quantos o rei deseje, pagos como ao rei melhor convier e feitos vitalícios segundo a benevolência real. Outros governadores e os lugares-tenente das cidades pequenas são todos nomeados pelo rei. Deve-se saber que todos os ofícios do reino são ofertados ou vendidos pelo rei, e nunca por outrem. A reunião dos Estados gerais se dá anualmente, em agosto, outubro ou janeiro, conforme o desejo do rei. A despesa e a receita ordinárias daquele ano são determinadas pelas mãos dos generais e, então, distribui-se a entrada conforme a saída, elevando-se ou diminuindo-se as pensões e pensionistas, segundo a ordem do rei. Da quantia que se distribui pelos gentis-homens e pensionistas não há número fixo, mas nada se aprova pela Câmara de Contas, sendo a autoridade do rei o bastante. A função da Câmara de Contas é rever as contas de todos os que administram o dinheiro da coroa, sejam generais, tesoureiros ou até mesmo recebedores. A Universidade de Paris é paga pelas entradas das fundações dos colégios, mas não a miúdo. Os parlamentos são cinco: Paris, Ruão, Toulouse, Bordeaux e Delfinato, e de nenhum se apela. Os principais centros de estudos são quatro: Paris, Orleans, Bourges e Poitiers. Em seguida, Tours e Angers, de pouca valia. As guarnições permanecem onde o rei deseja que fiquem e são tantas quantas ele julgar necessário, tanto com relação à artilharia quanto aos próprios soldados. No entanto, todas elas têm peças de artilharia, com munição; em dois anos muitas dessas partes foram construídas em vários lugares do reino, às custas das cidades, sendo isso possível pelo aumento da renda de certo valor por animal ou por medida. Normalmente, quando o reino não teme nada de ninguém, as guarnições são quatro: Guiena, Picardia, Barganha e Provença. Depois se vão mudando e alargando mais aqui ou ali, segundo as suspeitas que se tenham. Esforcei-me por saber quanto está destinado anualmente ao rei para as despesas de sua casa e para ele pessoalmente. O que sei é que o dinheiro é tanto quanto ele desejar. Designados para a guarda do rei, são 400 archeiros. Entre eles há 100 escoceses, e cada homem recebe 300 francos por ano, e mais um saio, pois usam o uniforme do rei. Os do Corpo do Rei, que sempre estão ao seu lado, são 24 deles, com 400 francos destinados a cada um por ano. O seu comandante é o Senhor D' Aubigny e o capitão, o Senhor Gabriel. A guarda dos homens a pé é composta por alemães. Deles, 100 são pagos a 12 francos por mês, e era costume ter ate 300 com pensão de 10 francos; além disso, a todos cabiam duas vestimentas por ano, para cada um: uma para o verão e uma para o inverno, túnica, meias e uniforme. No tempo do Rei Carlos, os do Corpo tinham túnicas de seda. Foreiros são os designados para alojar a corte. Eles são 32 e têm 300 francos e um saio por ano para cada uniforme. Quatro são os seus menescais e recebem 600 francos cada um. Para alojá-los observam a seguinte ordem: dividem-se em quatro, um quarto, com um menescal, ou seu lugar-tenente se aquele não estiver na corte, fica no lugar para onde a corte parte a fim de que seja feito o necessário pelos chefes dos alojamentos; um vai com a pessoa do rei; outro quarto onde, no dia, deve chegar o rei; e o outro quarto vai onde o rei deve ir no dia seguinte. Observa-se ainda uma ordem admirável de modo que, ao chegar, cada qual tem seu lugar, o que é pertinente inclusive às meretrizes. O alcaide-mor é o funcionário que sempre acompanha o rei e sua função é de mera influência. Em todos os lugares aonde vai a corte, ele é o primeiro e podem os da cidade onde estiver sofrer sua ação como do próprio lugar-tenente. Aqueles que por motivo de crime caem sob sua mão não podem apelar para nenhum parlamento. O seu salário é geralmente de seis mil francos. Há dois juízes no cível, pagos pelo rei a 600 francos ao ano cada; assim, um lugar-tenente no criminal, que tem 30 archeiros pagos como citado acima. Dispõe-se tanto no cível como no criminal, e uma única vez que o autor se defronte com o réu é suficiente para expedir a causa. Os mestres da casa do rei são oito, mas não há certeza sobre seus proventos porque há quem receba mil francos, há outros que recebem mais e há quem receba menos, depende do desejo do rei. E depois do grão-mestre que sucedeu ao Senhor de Chaumont, está o Senhor de La Palice, cujo pai teve já o mesmo ofício, recebendo onze mil francos e não tem outra autoridade que a de estar acima dos demais mestres da casa. O almirante da França está no governo de todas as armadas marítimas e tem a seu cuidado todas elas e todos os portos do reino. Pode tomar navios e agir como bem entender quanto aos navios da armada; atualmente, é Prejanne e recebe dez mil francos de proventos. Os cavaleiros da ordem não estão em número certo porque são tantos quantos deseje o rei. Quando são criados, juram defender a coroa e jamais voltar as costas a ela. Não podem nunca ser destituídos senão na morte. A sua pensão é de quatro mil francos, quando muito, havendo até alguns com menos. Tal grau não se dá a qualquer um. A função dos camareiros é distrair o rei, adentrar seus aposentos, aconselhá-lo; de fato, são os primeiros do reino pela sua reputação. Alguns têm pensão gorda que varia de seis, oito, dez mil francos; alguns, nada, pois o rei os nomeia com frequência para honrar algum homem de bem, ainda que esse homem seja um forasteiro. Entretanto, têm o privilégio no reino de não pagar imposto e sempre têm as suas despesas pagas na corte pela mesa dos camareiros, que é a primeira depois da do rei. O escudeiro-mor está junto do rei, em qualquer situação. Sua função é estar sempre governando os 12 escudeiros do rei como acontece com o senescal-mor, o grão-mestre e o camareiro-mor para com os seus subordinados, e tem de tomar conta dos cavalos do rei, montá-lo e apeá-lo do animal, guardar os apetrechos do rei e levar-lhe a espada. Todos os senhores do Conselho do Rei têm pensão de seis a oito mil francos, conforme a vontade do rei e são o Senhor de Paris, o Senhor de Bouvines, o bailio de Amiens, o Senhor de Bussy, e o grão-chanceler. Efetivamente, Rubertet e o Senhor de Paris governam tudo. Atualmente, depois que morreu o cardeal de Ruão, não se mantém mesa para ninguém. Como já não existe o chanceler-mor, faz suas vezes o Senhor de Paris. Os direitos que o rei da França pretende ter sobre o Estado de Milão advêm do fato de que seu avô teve por mulher uma filha do duque de Milão, o qual morreu sem filhos varões. O Duque Giovanni Galeazzo teve duas filhas e não sei quantos filhos varões. Entre as mulheres houve uma que se chamou Madonna Valentina e foi casada com o Duque Luís de Orleans, avô desse rei, descendente também da estirpe de Pepino. Morto o Duque Giovanni Galeazzo, sucedeu-lhe o Duque Filipe, seu filho, mas que morreu sem ter filhos legítimos e deixou apenas uma filha bastarda. Depois, aquele Estado foi usurpado por estes Sforza ilegitimamente, segundo se comenta, porque aquele Estado deveria ir às mãos dos sucessores e herdeiros da Madonna Valentina. Desde o dia em que os Orleans se aparentaram com a casa de Milão, acrescentaram uma serpente às armas dos três lírios, e assim ainda o é. Em cada paróquia de França á um homem bem pago pela dita e se denomina o franco archeiro. Ele é obrigado a ter um bom cavalo e estar guarnecido de armas para todas as requisições do rei enquanto estiver fora do reino, devido a guerras ou qualquer outro motivo. São um milhão e setecentos e são obrigados a cavalgar para a província onde tenha-se ocorrência de assalto ou onde haja suspeita de tal coisa. Os alojamentos, por obrigação de seu cargo, dão-no os foreiros a quem acompanha a corte e, geralmente, cada homem de destaque ou de bem do lugar hospeda os cortesãos. E, para que ninguém tenha motivo de fazer queixas, tanto para o que aloja quanto para o que é alojado, a corte fixou uma taxa, que universalmente se usa para cada um; assim: um soldo por quarto, ao dia, onde deve haver cama e travesseiro, mudando-se a cada oito dias. Duas moedas por homem ao dia para a roupa branca, vinagre, vinho de uva são obrigados a mudar a dita roupa branca pelo menos duas vezes por semana, mas, como a localidade e o país têm abundância delas, muda-se conforme for solicitado. Além disso, são obrigados a dirigir, varrer e arrumar as camas. São pagas duas moedas a cada um, por dia, e também para cada cavalo na estalagem. Não são obrigados a dar coisa alguma aos cavalos, somente esvaziar a estrebaria de sujeira. São tantos que pagam menos, ou pela sua boa natureza ou pela do patrão, porém geralmente essa é a taxa normal da corte. Os direitos que pleiteiam os ingleses sobre o reinado de França, os mais novos penso que são estes. Carlos VI deste nome, rei de França, desposou Catarina, filha legítima e natural de Henrique, filho legítimo e natural do rei da Inglaterra; no contrato, sem mencionar Carlos VII, que foi depois rei da França, além do dote dado a Catarina, instituiu-se herdeiro do reino da França após sua morte, ou seja, de Carlos VI, Henrique, seu genro e marido de Catarina; e também no caso de que o dito Henrique morresse antes de Carlos VI, seu sogro, e deixasse filhos varões legítimos e naturais. Ainda, em tal caso, os filhos de Henrique sucederiam a Carlos VI. O que, por ter sido preterido do pai, Carlos VII, não teve efeito, já que estava contra as leis. Ao contrário, os ingleses dizem que o referido Carlos VII nasceu de união incestuosa. Os arcebispados da Inglaterra são sô dois e 22 bispados; paróquias: 52 mil. Discurso ao Magistrado dos Dez sobre as coisas de Pisa Que seja necessário reaver Pisa se for de interesse para manter a paz. Disso ninguém duvida, não me parece que é preciso demonstrar com outras razões que aquelas que por vós mesmos já conhecem. Examinarei somente os meios que conduzem ou que possam conduzir a tal resultado, e estes me parecem ou a força ou o amor, ou seja, recuperá-la por assédio ou que ela venha às vossas mãos voluntariamente. E porque este seria o mais seguro e, em consequência, mais almejado caminho, examinaremos se é possível ou não e, assim, trataremos desse ponto. Quando Pisa, sem empreendimento armado, deva ir às mãos, que por si mesmo volte aos vossos braços, ou que outrem dela faça um presente. Como mal se pode crer que eles mesmos estejam para voltar para o vosso patrocínio, demonstram assim os tempos presentes, em que, destituídos de qualquer força, tendo ficado sós e muito fracos, súditos não aceitos por Milão, separados dos genoveses, mal vistos pelo pontífice e pelos saneses, pouco estimados, mantêm-se obstinados, confiando na vã esperança de outros e na debilidade de vossa desunião; nunca quiseram aceitar, tamanha é a sua traição, qualquer penhor vosso e da embaixada. Portanto, estando eles em tamanha calamidade no presente e não lhes esmorecendo o ânimo, não se pode nem se deve de qualquer maneira acreditar que por vontade própria venham sob vossa obediência. Sobre ser-vos concedida a cidade por quem a possuísse, devemos considerar que aquele que a possuísse entrou chamado por eles ou foi à força. Se tivesse entrado pela força, nenhuma razão viria justificar que a concedesse, pois quem pode entrar pela força também poderá guardá-la, pois Pisa não é cidade que deixe de boa vontade alguém ensenhorear-se dela. Se tivesse entrado por amor e pelo chamado pelos pisões, baseando-se no recente exemplo dos venezianos, não me parece que devemos crer que alguém desejasse destruir a sua confiança e, a pretexto de querer defendê-los, os traísse e os fizesse prisioneiros. Mas mesmo que tal possuidor quisesse que ela voltasse para vós, abandoná-la-ia e a deixaria como presa, como fizeram os venezianos. Por estas razões, não se vê nenhum caminho pelo qual Pisa, sem se usar da força, possa ser recuperada. Sendo, portanto, necessária a força, parece-me que convém considerar se devemos dela usar nestes tempos ou não. Para ultimar o empreendimento de Pisa é preciso conquistá-la ou por assédio e fome, ou por expugnação, levando a artilharia a suas fronteiras. E tratando-se da primeira parte do assédio, deve-se considerar se os luquenses estão a ponto de desejar ou de poder considerar que de sua cidade não saiam víveres para Pisa; quando quisessem ou fosse possível, todos se lembrariam que bastaria somente guardar as praias, e para conseguir tal resultado bastaria manter um acampamento em San Piero in Grado, com a ponte sobre o Amo, mediante a qual vossa gente pudesse estar, a um determinado aviso, na foz do rio Morto ou Serchio, enfim, onde fosse necessário, tendo alguma cavalaria e infantaria em Librafatta ou em Cascina. Entretanto, uma vez que se duvida da vontade dos luquenses, e porque se deve também duvidar de que, quando estes estivessem de acordo, não lhes fossem possível manter fechada a sua cidade por ser ela que se deve manter a distância e por não terem os seus súditos uma obediência total, pensa-se que, querendo assediar Pisa, não se deve confiar inteiramente que esta parte seja guardada pelos luquenses, mas que é necessária a reflexão aos florentinos. E é por isso que não basta organizar um único acampamento em San Piero in Grado, mas sim pensar em realizar ou outro, ou até dois outros, como melhor se julgue ou como melhor se possa fazer. Contudo, dizem que a mais certa e firme maneira seria fazer três acampamentos: um em San Piero in Grado, outro em Santacopo e outro na Beccheria. E, considerando os couraceiros e cavalaria ligeira que tivessem, caberiam para cada acampamento 20 daqueles 100 homens da cavalaria ligeira e 800 infantes. E tais acampamentos, estando neste triângulo, manteriam Pisa assediada, embora contra a vontade dos luquenses, fortificando-se com fossos, como saberiam fazer. Também deixariam perplexos os pisões, de tal maneira que se pode crer que se entregassem logo. E como em San Piero in Grado o ar não é bom, onde, se por acaso se devesse manter um acampamento, a tropa adoeceria e, talvez, como pareceria muito pesado manter os mencionados três acampamentos, manter-se-ia o referido acampamento de San Piero in Grado, enquanto naquele lugar um grande bastião pudesse ser construído com capacidade para 300 ou 400 homens em guarda, o que se poderia fazer em um mês; construído o bastião, levantar o acampamento, deixar o bastião e a guarda e ficar com aqueles dois acampamentos; assim, não se viria a ter a despesa de três acampamentos senão por um mês. Um desses dois modos referidos, ou de três acampamentos ou do bastião com dois acampamentos, é o mais aprovado por esses senhores e o que consideram mais útil e mais apto para deixar Pisa à mercê da fome. Mas se não desejam tanto gasto e querem fazer justamente dois acampamentos, é necessário por demais manter um deles em San Piero in Grado, ou mesmo não se construindo o forte, ou construindo-o e até que ele fosse construído. Dizem que se desejaria manter o outro acampamento em Poggiolo, na ponte Cappellese; para que guardasse Casoli e os montes, duvida-se que desse campo Caso li pudesse ser bem guardada. Quanto aos montes, seria necessário manter na Verruca 200 infantes ou manter em Val di Calci 400; depois, construir um forte entre Lucinari e Amo, com capacidade para 100 homens em guarda e manter pelo menos 50 cavaleiros em Cascina. E este seria outro modo de assediar Pisa, mas não tão potente quanto um dos dois primeiros – o dos três acampamentos ou do bastião com dois acampamentos. É verdade que enquanto se constrói o bastião é possível manter três acampamentos e, construído o bastião, reduzi-los para dois; ou enquanto se constrói o bastião, manter dois acampamentos, acrescidas aquelas outras coisas já mencionadas; e, construído o bastião, deixar aí a guarda e reduzir-se com os dois acampamentos aos postos e lugares supramencionados, em Santacopo um, o outro ... ou ainda ... E aqui haveria maior gasto, de um jeito ou de outro, quanto se gasta em um mês com mil infantes mais. Veio-lhes ao pensamento outra coisa: considerar se se deve fazer este bastião em San Piero in Grado ou não. Alguém fez esta distinção e disse: se os florentinos estão com ânimo de forçar Pisa, não podendo fazê-la render-se pela fome, julgo supérfluo construir o bastião porque depois de um mês terá chegado o tempo de ir em direção aos muros da cidade, isto é, em meados de maio. E assim, os gastos com o bastião vêm a ser inúteis, pois se não têm o ânimo de tentar a força, mas de se manter no assédio, todos julgando que se deva construir o bastião. Alguns dizem também que se os florentinos desejam tentar a força, devem construir o bastião porque poderia não ser possível a conquista e, se não conseguirem, o bastião já estaria construído, de modo que possam manter-se no assédio. Ainda, examinou-se se é possível crer que o assédio seja suficiente sem a força, e são do parecer que dessa forma não basta porque creem que tenham mantimentos até a próxima colheita, pelas notícias obtidas daqueles que vêm de Pisa, e pelo sinal de que lá o pão é vendido e, pelo obstinado ânimo deles e estando para sofrer muito, não se vê que sofram há já tempo aquilo que seu ânimo perspicaz os pode induzir a sofrer. Por isso, pensam que vós sereis obrigados a tentar a força. Pensam bem que será impossível que vos resistam, tendo vós estes modos de mantê-los presos possivelmente uns 40 ou 50 dias. Nesse meio tempo, é necessário procurar tirar de lá quantos homens de guerra for possível e não somente os que quiserem sair, mas também premiar a quem não deseja sair para que saia depois. Passado esse tempo, reunir rapidamente o máximo de infantes, organizar, em seguida, duas baterias e quanto mais seja necessário para aproximar-se dos muros; também dar licença livre para que saia quem quiser, mulheres, crianças, jovens, velhos, todos mesmo, já que todos servem para defendê-la. E assim, encontrando-se os pisões sem defensores, batidos por dois lados, em três ou quatro turnos, seria impossível que resistissem, a não ser por um milagre – de acordo com o que os mais entendidos nesta matéria disseram. Discurso sobre a maneira de prover-se de dinheiro. (Palavras que se devem dizer sobre a provisão do dinheiro, fazendo-se primeiro um pouco de prefácio e de causa.) Todas as cidades que, por determinado tempo, foram governadas por príncipe absoluto, pelos aristocratas ou até pelo povo, como aqui se governa, têm tido por defesa as forças combinadas à prudência – porque essa não é suficiente – e aquelas ou não levam algo a bom termo, ou, quando levam, não mantêm. São, pois, essas duas coisas o nervo de todas as senhorias que existiram e que sempre existirão no mundo, e quem observou as mutações dos reinos, as ruínas das províncias e das cidades não as viu causadas por outra coisa senão pela falta de armas ou de moeda. Dado que seja concedido que isso possa ser verdade, como é, segue-se, necessariamente, que devem querer, na vossa cidade, uma e outra dessas duas coisas; e procurar bem, se elas existem, conservá-las; e se não existem, consegui-las. Na verdade, há dois meses que tive esperanças de que este fim seria conseguido; mas vi, depois, tanta dureza de vossa parte que fiquei de todo prostrado. E vendo que podeis ouvir e ver, mas não ouvis nem vedes aquilo de que se admiram os inimigos, persuado-me de que Deus não vos castigou ainda a seu modo e que vos reserva para flagelo maior ainda. A razão pela qual há dois meses eu estava confiante era o exemplo que tiveram pelo perigo corrido há poucos meses, e as decisões que depois disso foram tomadas, pois vi corpo na perdida Arezzo, entre outras cidades que depois foram recuperadas, assumistes o governo. Supus que se convenceram de que, pelo fato de não ter havido lá força nem prudência, retomaram-nas; julguei que, como tinham dado passagem à prudência por virtude disso, deveriam ainda dar lugar à força. Supuseram isso mesmo os nossos elevados senhores e assim também todos aqueles cidadãos que, por inúmeras vezes, cansaram inutilmente de apresentar uma providência. Nem quero discutir se isso que acontece atualmente é bom ou não porque acredito em quem se achou para organizá-lo e, depois, quem se achou para aprová-lo. Desejaria bem que ainda fossem da mesma opinião e não acreditassem em quem vos diz o que é necessário. Repito que sem força as cidades não se mantêm, mas vêm a seu fim, e o fim é a desolação ou a servidão total. Estiveram este ano perto de uma e de outra, e para aí retomarão se não mudarem de pensamento, eu lhes garanto. Que não se diga depois "não me alertaram" e se afirmam "para que queremos forças? Estamos sob a proteção do rei; os inimigos desapareceram; Valentino não tem motivos para provocar-nos", retrucarei que tal opinião não poderia ser mais temerária, pois toda a cidade, todo o Estado deve considerar inimigos todos aqueles que pensam que podem ocupar o seu próprio Estado e aqueles de quem não seja possível defender-se. E nem há exemplo sequer de prudência de senhoria ou república que quisesse manter o seu Estado à discrição de outros, ou que lhe parecesse estar em situação segura. Não vamos nos enganar. Examinemos detalhadamente a nossa situação e a encaremos com seriedade. Se estão desarmados, desconfiados ficaram os vossos súditos; e disso há poucos meses a experiência ocorreu. É natural que seja assim porque os homens não podem nem devem ser fiéis servidores do senhor por quem não possam ser nem defendidos nem castigados. Pistóia, Romanha e Barda são províncias que se tomaram ninhos e covis de toda qualidade de latrocínios. Como podem defendê-las sabem bem as regiões que foram assaltadas, não existindo mais a ordem de antigamente, devem saber então que não mudaram de opinião, nem de ânimo, nem podem chamá-los de súditos, mas sim daqueles que os assaltaram primeiro. Saí, agora, de casa e considerai o que está em redor; encontrar-vos-eis no meio de duas ou três cidades que desejam mais a vossa morte do que a sua própria vida. Ide mais para diante; saí da Toscana e considerai toda a Itália; vê-la-eis passar da dominação do rei para a dos venezianos, a do papa e a de Valentino. Começai a considerar o rei. Aqui é preciso dizer a verdade, e eu a direi. Para este não existe outro empecilho na Itália, senão vós. E aqui não há remédio porque nem todas as forças, todas as providências vos salvariam; ou haverá outros empecilhos, como bem se vê que há, e nesse caso há remédio ou não, segundo a vossa vontade. E o remédio é fazer com que exista tal relação de forças, que, em qualquer ordem sua, tenha ele de contar convosco como com os outros da Itália; e por estarem desarmados, não dar ânimo a qualquer poderoso de pedir ao rei a vós como presa; nem dar ocasião ao rei de que este vos coloque entre os perdidos, mas comportar-se de modo que ele os estime e nem outrem julgue fácil subjugar-vos. Vamos considerar agora os venezianos. Aqui não é necessário esforçar-se muito para compreender, todos sabem a sua ambição, e que devem receber de vós 180 mil ducados, e que eles só esperam uma oportunidade, e que é melhor que gastem fazendo-lhes a guerra que dar para que eles a façam. Passemos ao papa e ao seu duque. Essa parte não tem necessidade de comentário algum. É sabido por todos quais são a natureza e o apetite destes, bem como os seus processos, e que confiança se pode ter neles e deles receber. Direi somente que nunca se concluiu com eles acordo algum e direi, posteriormente, o que não ficou para nós. Mas, suponhamos que concluíssemos um acordo amanhã. Disseram que esses senhores são vossos amigos, que não vos podem ofender, e novamente vos digo porque, entre os cidadãos, as leis, os contratos e os pactos obrigam à fé; entre os senhores, às armas. E se disserem "recorreremos ao rei", já tendo dito isso, todavia o rei não está em condições de defendê-los, porque os tempos não são os mesmos e nem sempre se pode evitar a ação armada de outro. Entretanto, é conveniente ter a espada ao alcance das mãos e cingi-Ia quando o inimigo está distante; assim, já não chega a tempo nem encontra saída. E deve-se recordar neste ponto o que aconteceu quando Constantinopla foi tomada pelos turcos. O imperador previu a sua ruína; chamou os seus súditos e, não podendo prover à defesa com o que era renda ordinária, expôs-lhes os perigos, mostrou-lhes os remédios, e esses não lhe deram importância. Veio o cerco. Aqueles cidadãos que não quiseram ouvir os apelos de seu senhor, quando ouviram soar a artilharia nas suas fronteiras e avançar o exército inimigo correram chorando ao imperador com sacos cheios de dinheiro. Foram expulsos, e o senhor disse "podem morrer com o vosso dinheiro porque não quiseram viver sem ele". Mas não é necessário ir a Grécia para ter exemplos, há tais em Florença. Em setembro de 1500, Valentino partiu de Roma com seu exército e era desconhecido se ele devia passar pela Toscana ou pela Romanha, cujas cidades ficariam à mercê porque estavam desguarnecidas. Todos rogavam a Deus para que lhes desse tempo. Mas Valentino voltou na altura de Pesaro, e como o perigo se afastasse, entraram a ter uma confiança temerária, de modo que não se pôde nunca tomar mais nenhuma providência. Não faltou quem avisasse e previsse todos os perigos que depois ocorreram, nos quais os obstinados, vós, não acreditaram até que chegaram em 26 de abril de 1501. A perda de Faenza aconteceu, e assim viram as lágrimas do vosso porta-bandeira, que chorou sobre vossa incredulidade e obstinação e obrigou a ter compaixão. Não chegaram a tempo, pois vencendo-o seis meses antes, teriam frutos a colher; vencendo-o seis dias antes, pouco puderam tirar da vitória para vossa própria salvação, porque a 4 de maio souberam que o exército inimigo chegara a Firenzuola; houve grande confusão na cidade, as consequências da vossa obstinação começaram a ser vistas; vistes arder as vossas casas, saquear tudo, matar os vossos súditos, fazê-los prisioneiros, violar as vossas mulheres, estragar as vossas propriedades, sem que pudessem remediar. E àqueles que, havia seis meses, não tinham querido concorrer para o pagamento de 20 ducados, foram cobrados a vós 200 e pagaram os 20 de qualquer maneira. E quando deveriam acusar a vossa incredulidade e obstinação, acusaram a malícia dos cidadãos e a ambição dos aristocratas; da mesma forma em que aqueles que, errando sempre, pretendem nunca haver errado, e quando veem o sol não acreditam nunca mais que haja chuva, como agora. E não pensem que em oito dias Valentino pode estar com o seu exército sobre vós; e os venezianos, em dois dias. Não consideram que o rei esteja muito ocupado com os suíços na Lombardia e que não terminou ainda a sua guerra nem com a Alemanha nem com a Espanha e que, no reino, foi derrotado. Não vedes a vossa própria fraqueza nem a variação da fortuna. Os outros costumam tomar-se prudentes pelos perigos que os vizinhos sofrem; vós não sois prudentes nem pelos vossos perigos; não confiais em vós mesmos; não sabeis o tempo que perdem e que já perderam, o que ainda chorais, e sem proveito, se não mudardes de opinião. Porque eu vos digo que a fortuna não muda de sentença onde não se muda de ordem; nem os céus querem ou podem suportar uma coisa que irá ser arruinada de qualquer modo. O que eu não posso crer que seja o vosso caso, vendo florentinos livres; está em vossas mãos a vossa liberdade própria. A esta eu creio que ainda têm aquele respeito que tem sempre aquele que nasceu livre e deseja viver livre. Breve descrição do governo da cidade de Luca A cidade de Luca está separada em três partes denominadas San Martino, San Paolino e San Salvadore. A primeira suprema magistratura da cidade é executada por nove cidadãos eleitos, três de cada uma das partes mencionadas, que juntamente com outro chefe, denominado porta-bandeira de justiça, compõem o que se chama a Senhoria, ou ainda, querendo-se chamá-los por um antigo nome: Anciões. Junto a eles há um conselho de 36 cidadãos, assim nomeado pelo próprio número, e ainda há um conselho nomeado como Conselho Geral, composto por 72 cidadãos. Em tomo dessas três instituições gira toda a atividade do seu Estado, além das circunstâncias que na continuidade deste resumo serão mencionadas. A autoridade da Senhoria sobre o seu condado é por demais ampla, sobre os cidadãos é nula; somente dentro da cidade ela convoca os Conselhos, neles propõe as coisas sobre as quais se deve deliberar; escreve aos embaixadores e recebe correspondência; reúne as práticas, que eles chamam colóquios, dos seus mais sábios cidadãos, o que prepara a deliberação a ser adotada nos Conselhos; fiscaliza as coisas, relembra-as; e, efetivamente, é como um primeiro motor de todas as ações que se originam no governo da cidade. Essa senhoria funciona dois meses e quem dela participa não pode ser reeleito durante dois anos. O Conselho dos 36 e a Senhoria distribuem todas as honras e utilidades do Estado, e como querem que sempre se encontrem trinta e seis cidadãos em exercício, afora a Senhoria, cada senhor em toda reunião do Conselho pode chamar dois suplentes, que exercem o ofício com a mesma autoridade que os 36 cidadãos. O modo de distribuição é o sorteio a cada dois anos de todos os senhores e porta-bandeiras que nos dois próximos anos devem entrar em exercício. E para fazer isso, reunidos que estejam os senhores com o Conselho dos trinta e seis em um salão, para isso preparado, colocam em outro salão próximo àquele os secretários das votações, Com um frade, e outro frade fica à porta que está entre as duas salas. A ordem é que cada qual que assuma nomeie outro à sua escolha. Começa, então, o porta-bandeira por se levantar, e segreda ao ouvido do frade que está à porta de entrada dos secretários o nome daquele em quem vota e em quem ele deseja que os outros votem. Depois, dirige-se aos secretários, e coloca na urna o seu voto. Regressando o porta-bandeira ao seu lugar, dirige-se-lhe um dos senhores mais antigos; depois, os outros, cada qual por sua vez. Depois dos senhores, vai todo o Conselho, e cada qual, quando chega ao frade, pergunta quem foi nomeado e a quem ele deve entregar o partido; e não antes, de modo que para deliberar não é necessário mais tempo, senão o que se emprega para ir do frade aos secretários. Depois que cada qual votou, esvazia-se a urna, e se há três quartos a favor, ele é inscrito para um dos senhores; se não há, fica entre os que perderam. Feito isso, o mais antigo dos senhores vai e nomeia outro em segredo, ao frade. Depois, cada qual vai entregar-lhe o voto. E cada qual, por sua vez, nomeia um, e as mais das vezes constituem eles mesmos a Senhoria em três turnos de Conselho. E para que vençam é necessário que haja 108 senhores vencidos e 12 porta-bandeiras; assim sendo, designam entre eles por escrutínio os funcionários encarregados do sorteio, os quais dispõem sobre a data deste; e assim, os nomes sorteados a cada dois meses se publicam. Na distribuição dos outros serviços obram de maneira diferente. Fazem o escrutínio deles uma vez por ano, de maneira que, para o serviço que funciona seis meses, fazem, em cada escrutínio, dois oficiais. Mantêm, para a eleição, "a seguinte ordem: mandam primeiro uma comunicação de que, devendo-se proceder à escolha dos oficiais do ano futuro, quem quiser postos que providencie para sua inscrição. Quem desejar o cargo vai inscrever-se com o chanceler, e este coloca que todas as inscrições dos nomes em uma bolsa. Depois, reunido que esteja o Conselho para distribuir os serviços, o chanceler vai tirando os nomes da bolsa, um de cada vez. Se o inscrito está presente, diz-se "quero ser votado para tal serviço", e assim continua a eleição. Se vence por três quartos, tal ofício está provido e é posto de lado. Para esse serviço não se procede mais à eleição. Se não consegue os três quartos, a inscrição é rasgada e não pode mais entrar em competição. Tira-se da bolsa outra inscrição, e assim por diante, até que sejam providos todos os serviços do ano futuro, sendo, como disse, dois para cada um dos serviços que duram seis meses. É de notar-se, portanto, a diferença destes modos com relação ao dos florentinos e os outros, pois, no escrutínio da Senhoria, quem escrutina vai ao encontro da urna; e em outros lugares a urna é que vai ao encontro dos escrutinados. Na escolha dos serviços em outros lugares, propõe-se que serviço se vai escolher, e depois se trata do sorteio dos homens que concorrem; e querem que muitos concorram, e ainda que muitos disputem e o serviço seja dado a quem tem mais merecimento. Mas os luquenses fazem o contrário, primeiro se procede ao sorteio do homem, depois declaram a que ofício ele deve ir, querem que tal declaração fique a critério do escolhido e quem é escolhido avalia suas próprias forças e, segundo elas, escolhe seu ofício. E se escolhe mal, sofre o dano e perde a faculdade de ir à eleição naquele ano. Se vence, é seu o ofício, nem querem que vá a concurso um outro, para dá-lo a quem merece mais, porque lhes pareceria injúria que outro lhe pudesse tirar o que lhe fora dado. De qual seja a melhor dessas maneiras, ou a luquense ou a vossa ou a dos venezianos, deixarei a outrem o juízo. O Conselho Geral, como disse, são 72 cidadãos que se reúnem com a Senhoria e cada um dos senhores pode nomear três cidadãos, que, reunidos a eles, têm a mesma autoridade. Este conselho permanece por um ano, e o conselho dos 36 permanece por seis meses, com a única proibição de não poderem ser eleitos de novo os que pertenceram ao anterior. O Conselho dos 36 se renova por si mesmo. O Geral é reformado pela Senhoria e por 12 cidadãos eleitos pelos 36. Este Conselho Geral é o príncipe da cidade porque faz e desfaz leis; faz tréguas, amizades; exila e mata cidadãos; afinal, não há apelo possível nem nada que o freie, uma vez que a coisa tenha sido resolvida pelos três quartos dele. Têm, além "das ordens mencionadas, três secretários que exercem, as funções durante seis meses. O ofício destes é o que chamamos espiões ou, com nome mais honesto, guardas do Estado. Estes podem, sem qualquer consulta, deportar um forasteiro ou mata-lo; eles vigiam as coisas da cidade; examinam coisas que ofendam o Estado e que digam respeito aos cidadãos e as referem ao porta-bandeira à Senhoria, aos "colóquios", para que sejam examinadas e corrigidas. Têm, além disso, mais três cidadãos que exercem as funções seis meses e que chamam condottieri, têm autoridade de contratar infantes e outros soldados, têm uma autoridade forasteira – que tem autoridade nas coisas civis e militares sobre os cidadãos e sobre quem quer que seja. Também têm magistratura sobre os comerciantes, sobre as artes, sobre as vias e edifícios públicos, como têm todas as outras cidades – com as quais viveram até agora e entre tantos poderosos inimigos se mantiveram. Nem se pode com efeito senão geralmente louvá-los. Mas quero que consideremos o que neste governo há de bom ou de mau. O não ter a Senhoria autoridade sobre os cidadãos está muito bem feito, porque assim o observaram as boas repúblicas. Os cônsules romanos, o doge e a Senhoria de Veneza não tinham e não têm autoridade nenhuma sobre os seus cidadãos, porque este é reputado o primeiro sinal de uma república, e tão evidente é, que se se lhe ajuntar autoridade, é preciso convir que em brevíssimo tempo surjam maus efeitos. Fica bem mal ao governo de uma república a ausência de majestade, como acontece em Luca, porque durando ele só dois meses e sendo longo o impedimento de reeleição, necessariamente aí têm assento homens mal reputados, cuja ordem não é boa, pois aquela majestade e prudência que não está na coisa pública procura-se nos particulares. Daí advém a necessidade que eles têm de fazer os colóquios com o parecer dos cidadãos que não estão nem entre os magistrados nem nos conselhos, proceder que nas repúblicas bem constituídas não se usa. E se se considerar quem participava da Senhoria em Veneza ou quem podia ser cônsul em Roma, ver-se-á que os chefes destes Estados, se não tinham autoridade, tinham majestade porque, se é bom que lhes faltasse uma, também seria mau que não tivessem outra. A maneira como distribuem os luquenses a Senhoria e os serviços é boa, civil e bem considerada. É verdade que se desvia da constituição das repúblicas passadas porque naquelas a maioria distribuía os ofícios, o meio-termo aconselhava, a minoria executava, e em Roma o povo elegia, o Senado aconselhava, os cônsules e os outros magistrados menores executavam. Em Veneza o Conselho distribui, os Pregai aconselham, a Senhoria executa. Em Luca essas ordens estão confundidas porque o número menor distribui; o menor e o maior, parte aconselha e parte executa; e embora na república de Luca não resulte mal, não deve imitar esta ordem de coisas quem organiza uma república. A razão pela qual o resultado não é ruim é porque as honras e as utilidades naquela cidade são procuradas com pouca ambição. Por um lado são fracas, por outro, quem desejaria procurá-las é rico e estima mais os seus trabalhos que aquelas, e por isso se vem a cuidar menos de quem os administre. Ainda há que considerar o pequeno número de cidadãos privados e o fato de não serem os Conselhos vitalícios, mas somente durarem seis meses, o que faz com que todos queiram e esperem deles participar. Além disso, a autoridade que os senhores têm de nomear a cada Conselho dois ou três para cada um tranquiliza numerosos amigos. Muitos que não esperam vencer as eleições pensam ter amizade com um que os possa fazer convocar. Dessa forma, pouco lhes importa que distribua o do grupo dos 36 ou o dos 72. Mantêm, ainda, no reunir estes Conselhos, outra ordem, que serve para satisfazer o povo e abreviar os trabalhos; que se, quando eles se reúnem em Conselho e haja terminado o prazo dentro do qual os conselheiros devem apresentar-se e faltar algum, a Senhoria pode mandar aos seus homens que conduzam os primeiros cidadãos que encontrem que tenham sido do número dos inscritos para preencher a vaga dos faltosos. É ainda bem estatuído que o Conselho Geral tenha autoridade sobre os cidadãos porque isso vale por um grande freio para castigar os que desejassem tornar-se muito grandes. Mas já não é bom que não exista uma magistratura de poucos cidadãos, quatro ou seis, por exemplo, que possa castigar, pois qualquer uma dessas providências que falte em uma república causa desordem. A maioria serve para castigar os grandes e as ambições dos ricos, a minoria serve para amedrontar e para frear a insolência dos jovens, porque todos os dias nesta cidade acontecem coisas que a maioria não pode corrigir, de onde advém que os jovens ganham audácia, a juventude se corrompe e, corrompida, pode tornar-se instrumento da ambição. Luca, portanto, falha desses elementos que contivessem a juventude, viu crescer essa insolência e causar maus efeitos na cidade; daí, para freá-la, fez uma lei, há muitos anos, que se chama lei dos díscolos, que quer dizer dos insolentes e malcriados, e pela qual se proveu que no Conselho Geral, duas vezes cada ano, em setembro e março, todos os que aí estão reunidos dispõem sobre o que lhes parece deva ser exilado. Leem-se depois as listas, e aquele que é mencionado dez vezes ou mais, o seu nome é submetido ao voto, e se a inclusão vence pelos três quartos, ele é mandado para fora do país por três anos. Essa lei foi muito bem considerada e fez grande bem àquela república porque por um lado ela é um grande freio para os homens; por outro, não pode formar multidão de exilados; porque, desde os primeiros três anos em que a lei foi feita em diante, tantos exilados voltam quantos saem. Mas essa lei não basta, porque os jovens que são nobres, ricos e de alto parentesco, por causa do caráter estrito da votação, não a temem, e vê-se que nestes tempos houve uma família – os Poggio – da qual surge toda a sorte de exemplos não bons em uma república boa e para o que, até agora, não encontraram remédio. Parecerá talvez a alguém que exista desordem, que todos os partidos dos luquenses se devam vencer pelos três quartos. A isso se responde que, desordenando-se as coisas nas repúblicas sempre do sim ao não, é muito mais perigoso naquele voto o sim do que o não; e mais se tem de advertir àqueles que querem que se faça alguma coisa do que àqueles que não o querem; e por isso julga-se menos mau que alguns possam contentar-se facilmente de que não se faça um bem, do que eles possam facilmente fazer um mal. Contudo, se esta dificuldade está resolvida, não existe bem geral, porque são muitas as coisas que seria bom facilitar. E castigar os cidadãos é uma, porque se a sua pena se devesse declarar pelos dois terços, parentes e amizades poderiam com maior dificuldade impedi-los. Isto é, efetivamente, tudo quanto se pode dizer do governo de Luca e o que nele existe de bom e de mau.