Tomás de Aquino – Suma Teológica – Seleção de Textos (1ª PARTE, QUESTÕES XIII, XVI, XVII, XXXI) QUESTÃO XIII Dos Nomes Divinos. Depois de considerado o que pertence ao conhecimento divino, devemos tratar dos nomes divinos, pois nomeamos as coisas conforme as conhecemos. E, nesta questão, discutem-se doze artigos: 1.° - se Deus pode ser nomeado por nós; 2° - se há nomes predicados substancialmente de Deus; 3.° - se há nomes atribuídos propriamente a Deus ou se todos lhe são atribuídos metaforicamente; 4.° - se são sinônimos muitos nomes aplicados a Deus; 5.° - se há nomes atribuídos a Deus e às criaturas unívoca ou equivocamente; 6.° - suposto que sejam atribuídos analogicamente, se se atribuem primeiro a Deus ou às criaturas; 7.° - se certos nomes se atribuem a Deus, temporalmente; 8.° - se o nome de Deus indica natureza ou operação; 9.° - se o nome de Deus é comunicável; 10.º - se deve ser tomado unívoca ou equivocamente, segundo designa Deus pela sua natureza, pela participação e pela opinião; 11.° - se a denominação — Aquele que é — é própria por excelência de Deus; 12.° - se podemos formar, a respeito de Deus, proposições afirmativas. Art. I — SE ALGUM NOME CONVÉM A DEUS. O primeiro discute-se assim — Parece que nenhum nome convém a Deus. 1. — Pois diz Dionísio: Que não se lhe pode dar nenhum nome, nem formar qualquer opinião a respeito dele. E a Escritura: Qual é o seu nome, e qual é o nome de seu filho, se é que o sabes? 2. Demais. — Todo nome ou é abstrato ou concreto. Os concretos não convém a Deus, que ê simples. Os abstratos também não, porque não exprimem nada de perfeitamente existente. Logo, nenhum nome pode ser atribuído a Deus. 3. Demais. — Os nomes exprimem a substância qualificada; os verbos e os particípios a exprimem no tempo; e os pronomes, demonstrativa ou relativamente. Ora, nada disto convém a Deus que não tem qualidade nem acidente, nem está no tempo, nem cai sob o alcance dos sentidos, de modo que possa ser designado, nem pode ser expresso relativamente; pois os relativos fazem lembrar o que já foi dito, seja um nome, particípio ou pronome demonstrativo. Logo, Deus não pode, de nenhum modo, ser nomeado por nós. Mas, em contrário, a Escritura: O Senhor é como um homem guerreiro, seu nome é onipotente. SOLUÇÃO. Segundo o Filósofo, as palavras são sinais dos conceitos, que são semelhanças das coisas. Por onde é claro que as palavras se referem às coisas que devem significar, mediante a concepção do intelecto. Logo, na medida em que uma coisa pode ser conhecida por nós, nessa mesma pode ser por nós nomeada. Ora, como já demonstramos, nós não podemos ver a Deus em essência, nesta vida. Mas somente o conhecemos por meio das criaturas, e por via da casualidade, da excelência e da remoção. Portanto, nós podemos nomeá-lo por meio das criaturas. Não, porém, que o nome que o designa exprima a divina essência como ela é, assim como a palavra homem significa a essência do homem em tal como é, exprimindo-lhe a definição, que lhe declara a essência, pois a noção significada pelo nome é a definição. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Dizemos que Deus não tem nome ou está acima de qualquer denominação, porque a sua essência sobrepuja o que dele inteligimos e exprimimos pela palavra. RESPOSTA À SEGUNDA. Como chegamos ao conhecimento e à denominação de Deus, por meio das criaturas, os nomes que lhe atribuímos têm a significação que convém às criaturas materiais, cujo conhecimento nos é conatural, como já dissemos. E como, dentre essas criaturas, as que são perfeitas e subsistentes são compostas; e não sendo, por outro lado, a forma delas completa e subsistente, mas, antes, o que faz com que alguma coisa exista, daí provém que todos os nomes que impomos para significar o que é completo e subsistente têm significação concreta, como convém a compostos. Os nomes, porém, impostos para significar formas simples, exprimem algo, não como subsistente, mas como aquilo pelo que alguma coisa existe; assim a brancura significa aquilo que faz com que uma coisa seja branca. Ora, sendo Deus simples e subsistente, atribuímos-lhe nomes abstratos, para lhe exprimirem a simplicidade: os nomes concretos, para lhe exprimirem a subsistência e a perfeição; embora todos esses nomes sejam deficientes para lhe exprimirem o modo de ser, assim como o nosso intelecto não o conhece, nesta vida, tal como é. RESPOSTA A TERCEIRA. Significar a substância qualificada é significar o suposto com a natureza ou a forma determinada, na qual subsiste. Por onde, assim como certos nomes são atribuídos a Deus concretamente para lhe significarem a subsistência e a perfeição, como já dissemos, assim também se lhe atribuem nomes que significam a substância qualificada. Quanto aos verbos e aos particípios, que exprimem o tempo, eles se atribuem a Deus, porque a eternidade inclui todos os tempos; pois, assim como não podemos apreender e exprimir os seres simples subsistentes, senão ao modo que convém aos compostos, assim não podemos compreender ou exprimir pela palavra a eternidade simples senão ao modo das coisas temporais; e isto por causa da conaturalidade do nosso intelecto com as coisas compostas e temporais. Por fim, os pronomes demonstrativos se aplicam a Deus, enquanto designam o que é compreendido, e não o que é sentido, pois, na medida em que compreendemos, nessa mesma designamos. E assim do modo pelo qual os nomes, os particípios e os pronomes demonstrativos se atribuem a Deus, desse mesmo podem ser significados pelos pronomes relativos. Art. II — SE ALGUM NOME SE PREDICA DE DEUS SUBSTANCIALMENTE. O segundo discute-se assim. — Parece que nenhum nome se predica de Deus substancialmente. 1. — Pois diz Damasceno: Tudo o que dizemos de Deus não exprime o que ele é substancialmente, mas significa o que não é, ou alguma relação, ou alguma particularidade consecutiva à sua natureza ou ação. 2. Demais — Dionísio diz: Em todos os santos teólogos acharás um hino às felizes participações da tearquia, exprimindo manifestativa e laudativamente cada uma das denominações de Deus. O sentido deste lugar é que os nomes que os Santos Doutores consagram ao divino louvor se distinguem pelas participações de Deus. Ora, o que exprime a participação de um ser não significa nada do que lhe pertence à essência. Logo, os nomes predicados de Deus não se lhe atribuem substancialmente. 3. Demais — Um ser é nomeado por nós conforme o modo pelo qual o compreendemos. Ora, nós não inteligimos a Deus em substância, nesta vida. Logo, nenhum dos nomes que lhe aplicamos se lhe aplica substancialmente. Mas, em contrário, diz Agostinho: Em Deus se identificam o ser forte, sábio, ou o que quer que digamos da sua simplicidade, para lhe significar a substância. Logo, todas essas denominações exprimem a divina substância. SOLUÇÃO. Os nomes atribuídos a Deus negativamente ou os que exprimem alguma relação dele com a criatura é claro que de nenhum modo lhe significam a substância, mas dele removem alguma coisa ou exprimem alguma relação que têm com algum ser ou antes, que algum ser tem com ele. Mas as opiniões variam quanto aos nomes que de Deus se predicam absoluta e afirmativamente, como bom, sábio e outros. — Assim, uns disseram que, embora todos esses nomes se prediquem de Deus afirmativamente, contudo são destinados, antes, para dele remover, que para afirmar alguma coisa. Por onde, dizem, quando afirmamos que Deus é vivo, queremos exprimir que não tem o mesmo modo de ser das coisas inanimadas, e assim por diante. Esta é a opinião de Moisés Maimônides. — Outros, porém, dizem que tais nomes são impostos para exprimir as relações de Deus com as criaturas; assim, quando dizemos que Deus ê bom, o sentido é que Deus é a causa da bondade das coisas, e assim por diante. Mas, estas duas opiniões são inconvenientes, por três razões. — Primeiro, porque nenhuma dessas duas opiniões pode explicar a razão por que certos nomes se predicariam de Deus, de preferência a outros. Pois ele é causa, tanto dos corpos como dos bens; portanto, se quando dizemos que Deus é bom queremos dizer que Deus é a causa dos bens, semelhantemente, quando dizemos que Deus ê corpo, também significa isso que é a causa dos corpos. E, do mesmo modo, dizendo que é corpo, dele removemos que seja um ente puramente potencial, como a matéria-prima. — Segundo, porque resultaria de tais opiniões que todos os nomes aplicados a Deus não lhe convém senão em sentido secundário, como quando dizemos que um remédio é são para em sentido secundário significar somente que é causa da saúde no animal que, primariamente, se chama são. — Terceiro, porque tais opiniões vão contra a intenção dos que falamos de Deus, que, quando dizemos que Deus é vivo, queremos dizer coisa diferente, que quando dizemos que é a causa da nossa vida, ou que difere dos corpos inanimados. E, portanto, devemos pensar, de outro modo, que tais nomes significam certamente a substância divina e de Deus se predicam substancialmente, mas o representam de modo deficiente, o que assim se demonstra. Os nomes exprimem a Deus do modo pelo qual o nosso intelecto o conhece. Ora, como o nosso intelecto o conhece por meio das criaturas, há de conhecê-lo do modo pelo qual estas o representam. Já demonstramos, porém, que Deus encerra em si, primariamente, quase absoluta e universalmente simples, todas as perfeições das criaturas. Por onde uma criatura qualquer o representa e tem com ele semelhança, na medida em que tem alguma perfeição; não, porém, que o represente como sendo da mesma espécie ou do mesmo gênero, mas como um princípio excelente em relação a cuja forma os efeitos são deficientes, sem deixarem, contudo, de exprimir alguma semelhança dele; assim a forma dos corpos inferiores representa a virtude solar. E isso já o expusemos quando tratamos da perfeição divina. Por onde os nomes em questão exprimem a divina substância, embora imperfeitamente, assim como imperfeitamente as criaturas o representam. Assim, pois, quando dizemos que Deus é bom, o sentido não é que Deus é a causa da bondade, ou que Deus não é mau, mas que a bondade que atribuímos às criaturas preexiste em Deus de modo eminente. Donde, pois, não se segue que a Deus convém o ser bom, porque causa a bondade, mas, antes, pelo contrário, porque é bom difunde nas coisas a bondade, conforme aquilo de Agostinho: Porque ele ê bom é que nós somos. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Damasceno diz que tais nomes não significam o que é Deus, porque nenhum deles exprime o que Deus perfeitamente é, mas cada um o significa imperfeitamente, assim como imperfeitamente o representam as criaturas. RESPOSTA A SEGUNDA. Às vezes, uma coisa é a origem da qual um nome tira a sua significação, e outra, o objeto que ele designa. Assim, o nome de lápide ou pedra se origina daquilo que lesa o pé; não é, porém, usado para significar aquilo que lesa o pé, mas uma espécie de corpo; do contrário, tudo o que lesa o pé seria lápide ou pedra. Donde devemos concluir que os nomes divinos em questão são, certo, originados das participações da divindade. Assim, pois, como as criaturas representam a Deus, embora imperfeitamente, segundo as diversas participações das divinas perfeições, assim o nosso intelecto conhece e nomeia a Deus conforme cada uma dessas participações. Esses nomes, porém, não são impostos para significar as participações mesmas; e, quando dizemos que Deus é vivo, queremos dizer que de Deus procede a vida, querendo assim significar o princípio mesmo das coisas, no qual preexiste a vida, embora de modo mais eminente do que o que nós podemos compreender ou exprimir. RESPOSTA A TERCEIRA. Não podemos, nesta vida, conhecer a essência de Deus, tal como ela é em si mesma; mas a conhecemos enquanto representada nas perfeições das criaturas, e assim é que os nomes que impomos a significam. Art. III — SE ALGUM NOME SE PREDICA DE DEUS PROPRIAMENTE. O terceiro discute-se assim. — Parece que nenhum nome se predica de Deus propriamente. 1. — Pois todos os nomes que aplicamos a Deus são tirados das criaturas, como já se disse. Ora, tais nomes se aplicam a Deus metaforicamente; assim, quando dizemos que Deus é pedra ou leão ou algo semelhante. Logo, os nomes que atribuímos a Deus se aplicam metaforicamente. 2. Demais. — Um nome que é removido de um ser, mais verdadeiramente do que é dele predicado, não se lhe aplica propriamente. Ora, todos os nomes — como bom, sábio e semelhantes — removem-se de Deus mais verdadeiramente do que dele se predicam, como se lê claramente em Dionísio. Logo, nenhum desses nomes se predica propriamente de Deus. 3. Demais. — Sendo Deus incorpóreo, os nomes de corpos não se lhe atribuem senão metaforicamente. Ora, todos os nomes em questão implicam certas condições corpóreas, como o tempo, a composição e outras semelhantes. Logo, todos esses nomes se atribuem a Deus metaforicamente. Mas, em contrário, diz Ambrósio: Há certos nomes que indicam evidentemente uma propriedade divina. Outros que exprimem, com clara verdade, a majestade divina; outros, por fim, que se aplicam a Deus por metáfora e semelhança. Logo, todos esses nomes se predicam de Deus metaforicamente. SOLUÇÃO. Como já dissemos, conhecemos a Deus pelas perfeições que dele procedem para as criaturas, perfeições que nele existem de modo mais eminente que nestas. Ora, o nosso intelecto as apreende conforme o modo pelo qual elas existem nas criaturas, e, como as apreende, assim as exprime por nomes. Ora, nos nomes que atribuímos a Deus há dois elementos a se considerarem, a saber: as perfeições mesmas que eles significam, como bondade, vida e outras; e o modo de significar. Quanto ao que significam tais nomes, convém a Deus propriamente mais que às criaturas, e dele se predicam primariamente. Quanto ao modo de significar, não se lhe atribuem propriamente, pois esse modo é próprio das criaturas. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Alguns nomes significam as perfeições procedentes de Deus para as coisas criadas, de maneira que o modo imperfeito mesmo pelo qual a perfeição divina é participada pela criatura está incluído na significação deles; assim, pedra significa um ser material. E tais nomes não se podem atribuir a Deus senão metaforicamente. Os nomes, porém, que significam as perfeições mesmas absolutamente, sem que nenhum modo de participação se inclua na significação deles — como ente, bom, vivente e semelhantes —, esses atribuem-se a Deus propriamente. RESPOSTA A SEGUNDA. Dionísio diz que os nomes em questão podem ser negados de Deus, porque a significação deles não lhe convém, do modo mesmo pelo qual a exprimem, mas de modo mais excelente. E, por isso, Dionísio diz, no mesmo lugar, que Deus está acima de toda substância e de toda vida. RESPOSTA A TERCEIRA. Os nomes que se predicam propriamente de Deus implicam condições corpóreas, não pela significação mesma deles, mas pelo modo de significar. Os que, porém, se atribuem a Deus metaforicamente implicam condição corporal, pela sua significação mesma. Art. IV — SE OS NOMES PREDICADOS DE DEUS SÃO SINÔNIMOS. O quarto discute-se assim. — Parece que os nomes predicados de Deus são sinônimos. 1. — Pois chamam-se sinônimos os nomes que significam absolutamente o mesmo. Ora, os que de Deus se predicam significam absolutamente o mesmo. Assim, a bondade de Deus é a sua essência e também a sua sabedoria. Logo, tais nomes são absolutamente sinônimos. 2. Demais. — Nem vale dizer que esses nomes significam a mesma realidade, mas exprimem noções diversas. — Pois a noção a que não corresponde nenhuma realidade é vazia de sentido. Se, portanto, as noções em questão forem muitas e a realidade uma só, tais noções são vazias de sentido. 3. Demais. — O que tem unidade real e racional tem mais unidade que o que tem unidade real e multiplicidade racional. Ora, Deus é uno por excelência. Logo, não pode ter unidade real e multiplicidade racional e, portanto, os nomes que dele se predicam, não significando noções diversas, são necessariamente sinônimos. Mas, em contrário. — Todos os sinônimos unidos uns aos outros não passam de tautologia, como quando se diz roupa vestimenta. Se, portanto, todos os nomes predicados de Deus são sinônimos, não se pode, com conveniência, dizer que Deus ê bom, ou coisa semelhante; e, contudo, diz a Escritura: O fortíssimo, grande e poderoso, o Senhor dos exércitos é o teu nome. SOLUÇÃO. Os nomes de que tratamos não são sinônimos predicados de Deus. E isto já o veríamos facilmente, se disséssemos que tais nomes são usados para negar ou para exprimir a relação de causa, que há entre Deus e as criaturas; então, já seriam diversas as noções desses nomes, conforme as coisas diversas que negam ou os efeitos diversos que conotam. — Mesmo, porém, admitindo que, como já dissemos, tais nomes exprimam a substância divina, embora imperfeitamente, ainda resulta claro, segundo o que já estabelecemos, que eles têm noções diversas. Pois a noção significada pelo nome é uma concepção do intelecto relativa ao que essa noção exprime. Ora, como o nosso intelecto conhece a Deus por meio das criaturas, forma, para o inteligir, conceitos proporcionados às perfeições que de Deus procedem para as criaturas; perfeições essas que, nele, preexistem com unidade e simplicidade e, nestas, divididas e múltiplas. Assim, pois, como às diversas perfeições das criaturas corresponde um princípio simples, representado, vária e multiplamente, pelas diversas perfeições delas, assim às várias e múltiplas concepções do nosso intelecto corresponde algo de absolutamente uno e simples, apreendido imperfeitamente por tais concepções. E, portanto, os nomes atribuídos a Deus, embora signifiquem uma mesma realidade, contudo não são sinônimos, porque a designam sob noções múltiplas e diversas. POR ONDE É CLARA A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Pois chamam-se sinônimos os nomes que, tendo uma determinada noção, significam uma mesma realidade. Os nomes que exprimem noções diversas de uma mesma realidade não significam uma mesma coisa, primariamente e em si mesma, porque o nome não exprime uma realidade senão mediante um conceito do intelecto, como já dissemos. RESPOSTA A SEGUNDA. As noções várias de tais nomes não são inúteis e vãs, porque a todos eles corresponde algo de simples, que eles representam múltipla e imperfeitamente. RESPOSTA A TERCEIRA. É pela sua perfeita unidade mesma que o que existe múltipla e divididamente, nas criaturas, Deus o encerra em si simples e multiplamente. E porque o nosso intelecto o apreende multiplamente, tal como as coisas o representam, é que Deus, uno na realidade, é múltiplo racionalmente. Art. V — SE É UNIVOCAMENTE QUE OS MESMOS NOMES SE ATRIBUEM A DEUS E AS CRIATURAS. O quinto discute-se assim. — Parece que é univocamente que os mesmos nomes se atribuem a Deus e às criaturas. 1. — Pois todo equívoco se reduz ao unívoco, como o múltiplo à unidade. Assim, se o nome de cão se predica equivocamente do que ladra e do cão marinho, é necessário que seja predicado de certos animais univocamente, a saber, de todos os que ladram; pois, do contrário, teríamos que proceder ao infinito. Ora, há certos agentes unívocos que convém com os seus efeitos pelo nome e pela definição, por exemplo, um homem gera outro; outros agentes, porém, são equívocos, assim o sol causa o calor, embora não seja cálido senão equivocamente. Parece, pois, que o primeiro agente, ao qual todos os outros se reduzem, é um agente unívoco, e, portanto, os nomes atribuídos a Deus e às criaturas são predicados univocamente. 2. Demais. — Onde há equívoco não há semelhança; ora, como há semelhança da criatura com Deus conforme aquilo da Escritura — Façamos o homem à nossa imagem e semelhança —, conclui-se que alguma realidade, pelo menos, podemos atribuir univocamente a Deus e às criaturas. 3. Demais. — A medida é homogênea com o medido, como diz Aristóteles. Ora, Deus é a medida primeira de todos os seres, como no mesmo lugar o diz. Logo, Deus é homogêneo com as criaturas, e portanto podemos predicar dele e delas algo de unívoco. Mas, em contrário. — O que se predica de vários sujeitos, por um mesmo nome, mas não no mesmo sentido, é deles predicado equivocamente. Ora, nenhum nome convém a Deus no mesmo sentido por que convém à criatura; assim, a sabedoria nas criaturas é qualidade, não porém em Deus; pois, como o gênero faz parte da definição, se ele varia, varia também o sentido. E o mesmo se dá com tudo o mais. Logo, tudo o que se diz de Deus e das criaturas diz-se equivocamente. Demais. — Deus dista mais das criaturas que estas umas das outras. Ora, dá-se que, por causa da distância entre certas criaturas, nada pode predicar-se delas univocamente. Assim acontece com as que não convém num mesmo gênero. Logo, com maior razão, não se pode predicar nada univocamente, senão só equivocamente, de Deus e das criaturas. SOLUÇÃO. É impossível predicar-se qualquer coisa, univocamente, de Deus e das criaturas. Pois todo o efeito que não iguala a virtude da causa agente recebe a semelhança do agente, não segundo o mesmo sentido, mas deficientemente; de modo que o que nos efeitos existe dividida e multiplamente, existe na causa simples e uniformemente; assim, o sol, pela sua virtude una, produz nos seres da terra formas várias e múltiplas. Do mesmo modo, como já dissemos, todas as perfeições que existem nas coisas criadas, dividida e multiplamente preexistem em Deus, una e simplesmente. Por onde, quando um nome, designando uma perfeição, é atribuído a uma criatura, esse nome exprime essa perfeição distintamente e enquanto que, pela sua definição, se separa do mais. Assim, pelo nome de sábio, aplicado ao homem, exprimimos uma perfeição distinta da essência, da potência, do ser e do mais que lhe convém. Quando, porém, atribuímos esse nome a Deus, não pretendemos exprimir nada distinto da sua essência, do seu poder ou do seu ser. De maneira que o nome de sábio, atribuído ao homem, circunscreve, de certo modo, e abrange o seu significado; não, porém, quando atribuído a Deus, porque, então, deixa a qualidade significada como incompreendida e excedente à significação do nome. Por onde é claro que o nome de sábio não tem o mesmo sentido, atribuído a Deus e ao homem. E o mesmo se dá com todos os outros. Logo, nenhum nome é predicado univocamente, de Deus e das criaturas. Nem em sentido puramente equívoco como alguns disseram. Porque, então, por meio das criaturas, não poderíamos conhecer nem demonstrar nada de Deus, sem cairmos no sofisma de equivocação. Demais, esta opinião vai tanto contra o Filósofo, que demonstra muitas verdades a respeito de Deus, como contra o Apóstolo, que diz: As coisas de Deus invisíveis se veem depois da criação do mundo, consideradas pelas obras que foram feitas. Devemos, portanto, dizer que os nomes em questão predicam-se de Deus e das criaturas, analogicamente, isto é, em virtude de uma proporção. E isto pode se dar com os nomes de dois modos. Ou porque muitos termos são proporcionais a uma mesma realidade. E, assim, são se diz tanto de um remédio como da urina, enquanto que esta e aquele se ordenam e proporcionam à saúde do animal, da qual a urina é o sinal e o remédio, a causa da saúde do animal. Ou porque um termo é proporcional a outro; assim, são se diz do remédio e do animal, por ser aquele a causa da saúde deste. E, deste modo, certos nomes predicam-se de Deus e das criaturas analogicamente e não em sentido puramente equívoco, nem puramente unívoco, pois não podemos designar a Deus senão pelas criaturas, como já dissemos. E, assim, o que dizemos de Deus e das criaturas dizemo-lo por haver certa ordem da criatura para Deus, como princípio e a causa em que preexistem excelentemente todas as perfeições dos seres. De modo que esta como que comunidade de denominações é um meio termo entre a pura equivocação e a simples univocação. Pois as predicações análogas não têm o mesmo sentido, como o têm as unívocas, nem sentidos totalmente diversos, como as equívocas; mas o nome assim empregado em sentido múltiplo significa proporções diversas relativas a um termo uno. Assim, o nome de são aplicado à urina é tomado como sinal da saúde do animal; aplicado a um remédio, porém, significa que este é a causa da saúde. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Embora as predicações equívocas se reduzam às unívocas, contudo, nas ações, o agente não unívoco precede, necessariamente, ao unívoco. Pois aquele é causa universal de toda a espécie; por exemplo, o sol é a causa da geração de todos os homens. O agente unívoco, porém, não é causa agente universal de toda a espécie; do contrário, seria a causa de si mesmo, pois está contido na espécie; mas é causa particular de um determinado indivíduo, que leva a participar da espécie. Por onde a causa universal de toda a espécie não é o agente unívoco. Ora, a causa universal tem prioridade sobre a particular. Por outro lado, o agente universal, embora não seja unívoco, também não é absolutamente equívoco, porque então não poderia produzir um ser semelhante a si; mas pode ser chamado agente análogo. É assim que todas as predicações unívocas se reduzem a um termo primeiro não unívoco, mas análogo, que é o ser. RESPOSTA A SEGUNDA. A semelhança da criatura com Deus é imperfeita a tal ponto, que não comporta gênero comum, como já dissemos. RESPOSTA A TERCEIRA. Deus não é uma medida proporcionada ao medido. Por onde, não é necessário que esteja contido no mesmo gênero da criatura. E quanto às objeções em contrário, elas concluem que os nomes em questão não se predicam univocamente de Deus e das criaturas; mas isto não prova que se prediquem equivocamente. Art. VI — SE OS MESMOS NOMES SE PREDICAM PRIMEIRO DAS CRIATURAS QUE DE DEUS. O sexto discute-se assim. — Parece que os mesmos nomes se predicam primeiro das criaturas que de Deus. 1. — Pois como conhecemos um ser, assim o denominamos; porque, segundo o Filósofo, os nomes são os sinais das coisas inteligidas. Ora, nós conhecemos a criatura antes de conhecermos a Deus. Logo, todos os nomes que impomos convém primeiro às criaturas que a Deus. 2. Demais. — Segundo Dionísio, nomeamos a Deus por meio das criaturas. Ora, os nomes transferidos destas para Deus, como leão, pedra e outros, predicam-se primeiro delas que dele. Logo, todos os nomes se predicam primeiro das criaturas que de Deus. 3. Demais. — Todos os nomes predicados, em comum, de Deus e das criaturas, atribuem-se a Deus como causa de todos os seres, conforme diz Dionísio. Ora, o que se predica de um ser como causa é predicado em segundo lugar; assim, diz-se primeiro, do animal, que é são, do que do remédio, causa da saúde. Logo, tais nomes predicam-se das criaturas, antes de se predicarem de Deus. Mas, em contrário, diz a Escritura: Dobro os meus joelhos diante do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a paternidade toma o nome nos céus e na terra. E o mesmo se deve dizer dos outros nomes que se predicam de Deus e das criaturas. Logo, tais nomes se predicam primeiro de Deus que das criaturas. SOLUÇÃO. Todos os nomes atribuídos analogicamente a vários seres necessariamente hão de ser dependentes de um primeiro termo, a que são relativos; e, portanto, este termo há de entrar na definição de todos esses nomes. E como a noção expressa pelo nome é a definição, conforme Aristóteles, é necessário que este nome seja atribuído, primeiramente, ao termo da analogia, que entra na definição dos outros, e, em segundo lugar, à destes, conforme se aproximam mais ou menos do primeiro termo. Por exemplo, são, atribuído ao animal, entra na definição dessa mesma palavra são atribuída ao remédio, assim chamado por causar a saúde do animal; e também entra na definição de são, atribuído à urina, assim chamada por ser o sinal da saúde do animal. Por onde todos os nomes predicados metaforicamente de Deus atribuem-se primeiro às criaturas que a Deus, porque, referidos a ele, não significam senão uma semelhança com tais criaturas ou tais outras. Assim, rir, atribuído a um prado, não significa senão que o prado, quando floresce, é agradável, como o homem, quando ri, por semelhança de proporção; e, do mesmo modo, o nome leão, aplicado a Deus, não significa senão que Deus age fortemente, nas suas obras, como o leão, nas suas. Por onde é claro que tais nomes, aplicados a Deus, não podem ser definidos senão por comparação com o sentido que têm quando atribuídos às criaturas. Quanto aos nomes que não são atribuídos a Deus metaforicamente, o mesmo diríamos, se eles fossem predicados de Deus só causalmente, como certos disseram. Assim, quando dizemos Deus é bom, não quereríamos dizer senão que Deus é a causa da bondade da criatura; e então o nome bom, atribuído a Deus, abrangeria na sua significação a bondade da criatura e, por consequência, dir-se-ia da criatura, antes de ser predicado de Deus. Mas, como já demonstramos, tais nomes atribuem-se a Deus não só causai, mas também essencialmente. Assim, quando dizemos Deus é bom, ou é sábio, queremos dizer não somente que é causa da sabedoria ou da bondade, mas que estas qualidades nele preexistem de modo mais eminente. Por onde, neste sentido, deve-se dizer que, levando em consideração a coisa significada pelo nome, cada um deles é predicado de Deus antes de o ser das criaturas, porque dele é que lhes derivam as perfeições denominadas. Mas, quanto à imposição dos nomes, nós os damos, primeiro, às criaturas, que é o que primeiro conhecemos, e, por isso, eles têm um modo de significar que convém às criaturas. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. A objeção procede quanto à imposição do nome. RESPOSTA A SEGUNDA. O caso dos nomes atribuídos a Deus metaforicamente não é o mesmo que o dos demais nomes, como dissemos. RESPOSTA A TERCEIRA. A objeção procederia se tais nomes fossem predicados de Deus só causai e não essencialmente, como quando se diz: o remédio é são. Art. VII — SE OS NOMES QUE IMPLICAM RELAÇÃO COM AS CRIATURAS SÃO ATRIBUÍDOS A DEUS TEMPORALMENTE. O sétimo discute-se assim. — Parece que os nomes que implicam relação com as criaturas não são atribuídos a Deus temporalmente. 1. — Pois todos esses nomes exprimem a divina substância, como em geral se diz. Por onde, conforme Ambrósio, o nome de Senhor é nome de poder, que é a divina substância; e Criador significa a ação de Deus, que é a sua essência. Ora, a substância divina não é temporal, mas eterna. Logo, tais nomes não são atribuídos a Deus temporal mas eternamente. 2. Demais. — Um ser a que convém um nome, a partir de certo tempo, pode ser considerado como feito. Ora, a Deus não convém o ser feito. Logo, de Deus nada é predicado no tempo. 3. Demais. — Se certos nomes são predicados de Deus temporalmente, por importarem relação com as criaturas, o mesmo se pode dizer de todos os nomes que implicam tais relações. Ora, alguns desses nomes predicam-se de Deus ab eterno. Assim, ab eterno Deus conhece e ama a criatura, conforme aquilo da Escritura: Com amor eterno te amei. Logo, todos os demais nomes que importam relação com as criaturas, como Senhor e Criador, predicam-se de Deus ab eterno. 4. Demais. — Os nomes de que tratamos exprimem uma relação. Mas, necessariamente, essa relação é alguma coisa em Deus ou somente na criatura. Ora, este último caso não pode ser, porque então Deus seria denominado Senhor, segundo a relação contrária que existe nas criaturas; mas nada é denominado pelo que é contrário. Logo, a relação é alguma coisa em Deus. Ora, em Deus não pode haver nada de temporal, porque ele está fora de qualquer tempo. Logo, tais nomes não se atribuem a Deus temporalmente. 5. Demais. — A relação faz com que uma atribuição seja relativa; por exemplo, dominador vem de domínio, como branco, de brancura. Se, pois, a relação de domínio não existe realmente em Deus, mas só racionalmente se conclui que Deus não é realmente Senhor, o que é falso, de maneira evidente. 6. Demais. — Quando dois termos relativos não são simultâneos por natureza, um pode existir sem que exista o outro; assim, o cognoscível existe, embora não exista conhecimento, como diz Aristóteles. Ora, os termos relativos predicados de Deus e das criaturas não são simultâneos por natureza. Logo, podemos atribuir alguma coisa a Deus em relação com a criatura, mesmo que esta não exista. E assim os nomes Senhor e Criador predicam-se de Deus ab eterno e não no tempo. Mas, em contrário, diz Agostinho que a denominação relativa de Senhor convém a Deus temporalmente. SOLUÇÃO. Certos nomes, que implicam relação de Deus com a criatura, dele se predicam temporalmente e não ab eterno. Para o demonstrar, deve saber-se que alguns ensinaram que a relação não é uma realidade da natureza, mas só da razão. Ora, esta opinião é evidentemente falsa, porquanto os seres da natureza têm uma ordem natural e relação mútua entre si. Contudo, deve saber-se que, exigindo a relação dois extremos, três condições podem torná-la um objeto da natureza ou um simples ser de razão. — Assim, às vezes, esses dois extremos são seres somente de razão, e isso quando a ordem ou relação entre eles depende só da apreensão racional: por exemplo, se dissermos que um mesmo ser é, para si, isso mesmo que é. Pois, quando a razão apreende uma mesma realidade sob dupla concepção, afirma-a como duas, e assim apreende certa relação dessa coisa consigo mesma. E o mesmo se dá com todas as relações entre o ser e o não ser, relações que a razão forma, apreendendo o não ser como um extremo. E, ainda, o mesmo é o caso de todas as relações consequentes a um ato da razão, como o gênero, a espécie e outros. — Outras relações há, além dessas, nas quais os dois extremos são realidades da natureza; e isso se dá quando há uma relação entre dois termos fundada em algo que lhes convém realmente aos dois. E o que aparece manifestamente em todas as relações consequentes à quantidade, como grande e pequeno, duplo e meio, e semelhantes, pois a quantidade está realmente em cada um dos extremos. E o mesmo sucede com as relações resultantes da ação e da paixão, como motivo e móvel, pai e filho e outras. — Outras vezes, por fim, um dos termos da relação é uma realidade da natureza e, o outro, somente de razão; e isto se dá sempre que os dois extremos não são da mesma ordem. Assim, o sentido e a ciência referem-se ao sensível e ao inteligível, que, como coisas, e quanto ao ser natural que têm, são estranhos à ordem do ser sensível e à do inteligível. Por onde, no caso da ciência e da sensação, há uma relação real, por se ordenarem essas atividades a conhecer e a sentir as coisas; mas estas, em si mesmas consideradas, são estranhas a tal ordem e por isso não têm relação real com a ciência e com a sensação, mas relação somente de razão, enquanto o nosso intelecto as apreende como termos das relações da ciência e do sentido. Por onde diz o Filósofo que essas coisas são tomadas relativamente, não porque se refiram a outras, mas porque as outras se lhes referem a elas. Assim, também, não dizemos que uma coluna está à direita senão porque há um animal, por exemplo, colocado à sua direita, e, por isso, tal relação não está realmente na coluna, mas no animal. Ora, Deus, estando fora de toda a ordem das criaturas, ordenando-se-lhes todas elas, e não inversamente, é manifesto que elas se referem realmente a Deus, que, porém, não tem nenhuma relação real com a criatura, mas só racional, enquanto elas se lhe referem. Assim, pois, nada impede que os nomes em questão, que implicam relação com a criatura, sejam predicados de Deus temporalmente; não que haja nele qualquer mutação, que só existe na criatura, assim como uma coluna está à direita de um animal, sem que haja nela nenhuma mudança, a qual existe só no animal, que mudou de lugar. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Certos nomes relativos são impostos para exprimir as relações em si mesmas, como Senhor e servo, pai e filho, e outros; e estes se chamam relativos quanto ao ser. Outros, porém, são impostos para exprimir coisas a que certas relações são consecutivas, como motor e móvel, chefe e chefiado e semelhantes, que se chamam relativos quanto à apelação. Assim também, em relação aos nomes divinos, devemos considerar as diferenças seguintes. Certos exprimem a relação mesma que Deus mantém com a criatura, como Senhor. E estes significam a substância divina, não direta, mas indiretamente, porque a pressupõem, assim como o domínio pressupõe o poder que é, no caso, a substância divina. Outros nomes, porém, exprimem diretamente a essência divina e, por via de consequência, implicam uma relação, como, Salvador, Criador e semelhantes, que exprimem a ação de Deus, que é a sua essência. Ora, estas duas categorias de nomes predicam-se de Deus temporalmente, se considerarmos a relação que implicam, principal ou consequentemente; não, porém, se considerarmos como significando a essência, direta ou indiretamente. RESPOSTA A SEGUNDA. Assim como as relações predicadas de Deus temporalmente nele não existem senão como distinções da nossa razão, do mesmo modo não podemos aplicar a Deus as expressões — ser feito, ter sido feito — senão como um modo nosso de falar, sem que haja nenhuma mudança em Deus mesmo; tal é o caso do passo da Escritura: Senhor, tu tens sido feito o nosso refúgio. RESPOSTA A TERCEIRA. A operação do intelecto e a da vontade existem no agente; e, por isso, os nomes que exprimem relações consequentes à atividade dessas duas faculdades predicam-se de Deus ab eterno. As relações, porém, resultantes de atos exteriores, isto é, de atos que, segundo o nosso modo de entender, se exteriorizam quanto aos seus efeitos, essas incluem o tempo, na sua significação; assim quando dizemos que Deus é Salvador, Criador, etc. RESPOSTA A QUARTA. As relações expressas pelos nomes em questão, predicados de Deus temporalmente, em Deus existem só como distinção da nossa razão; as relações, porém, opostas a estas estão realmente nas criaturas. Nem há inconveniente em Deus ser denominado pelas relações realmente existentes na criatura, contanto que a nossa inteligência subentenda que nele existem as relações opostas a essas; de modo tal que, digamos, Deus é relativo à criatura, porque a criatura se refere a ele, assim como o Filósofo diz que o cognoscível é considerado relativamente à inteligência, porque a ele é relativa a ciência. RESPOSTA A QUINTA. Estando a relação de sujeição realmente na criatura, esta é que, propriamente, se refere a Deus e não Deus a ela. Donde se segue que Deus é Senhor, não só conforme o nosso modo de falar, mas realmente, pois é chamado Senhor, do mesmo modo por que dizemos que a criatura lhe está sujeita. RESPOSTA A SEXTA. Para conhecermos se os termos relativos são simultâneos por natureza ou não, devemos considerar não a ordem das coisas a que eles se referem, mas as significações mesmas deles. Se, pois, um dos termos relativos inclui o outro na sua significação e não inversamente, não são simultâneos por natureza como duplo, meio, pai e filho, e semelhantes, e não inversamente, não são simultâneos por natureza. E tal é a relação entre a ciência e o cognoscível. Pois a palavra cognoscível exprime uma potência, ao passo que ciência exprime um hábito ou um ato. Por onde o cognoscível, pela sua significação mesma, preexiste à ciência. Se, porém, considerarmos o cognoscível como atual, então é simultâneo com a ciência, também atual, pois o conhecido não é nada se dele não há nenhuma ciência. Por onde, embora Deus tenha prioridade sobre as criaturas, como, porém, a significação da palavra — Senhor — implica a existência do servo, e vice-versa, esses dois termos relativos, Senhor e servo, são simultâneos por natureza. Por onde Deus não era Senhor antes de existir a criatura que lhe estivesse sujeita. Art. VIII — SE O NOME DE DEUS E UM NOME DE NATUREZA. O oitavo discute-se assim. — Parece que o nome de Deus não é um nome de natureza. 1. Pois, diz Damasceno que Deus vem de théin, que significa prover todas as coisas e delas cuidar; ou também pode vir de áithein, isto é, arder, porque o nosso Deus é o fogo que consome toda malícia; ou ainda de theásthai, isto é, ver todas as coisas. Ora, todos estes nomes designam operações. Logo, o nome de Deus significa operação, e não natureza. 2. Demais. Nós nomeamos um ser na medida em que o conhecemos. Ora, a natureza divina é-nos desconhecida. Logo, o nome de Deus não significa a natureza divina. Mas, em contrário, diz Ambrósio que Deus é nome de natureza. SOLUÇÃO. A origem da significação de um nome nem sempre se identifica com a coisa mesma que o nome significa. Assim, como conhecemos a substância de um ser pelas suas propriedades ou operações, denominamos também, às vezes, essa substância por alguma de suas operações ou propriedades. Por exemplo, denominamos a substância da pedra por uma das suas ações a de ferir o pé; contudo, este nome é usado não para significar tal ação, mas a substância mesma da pedra. Os seres, porém, como o calor, o frio. a brancura e semelhantes, não são denominados por meio de outros. E, por isso, o que o nome de tais seres significa é idêntico à causa que deu origem à significação. Ora, como a natureza de Deus não nos é conhecida senão pelas suas operações e pelos seus efeitos, podemos denominá-lo mediante estes e aqueles, como já dissemos. Por onde o nome de Deus é um nome que designa operação, considerando-lhe a origem, que é a providência universal das coisas. Pois todos os que falam de Deus entendem designar, com esse nome, o ser cuja providência universal cuida de todos os seres. Por isso diz Dionísio que a divindade é a que vê tudo com providência e bondade perfeita. E assim o nome de Deus, originado dessa operação, foi imposto para significar a natureza divina. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Tudo isso a que se refere Damasceno diz respeito à providência, origem da significação do nome de Deus. RESPOSTA A SEGUNDA. Na medida em que podemos conhecer a natureza de um ser pelas suas propriedades e efeitos, podemos também impor-lhe um nome. Ora, como sabemos o que é a pedra por lhe conhecermos a substância, mediante uma de suas propriedades, esse nome — pedra — significa a natureza da pedra em si mesma, pois significa-lhe a definição pela qual sabemos o que ela é; porque a definição é a noção expressa pelo nome, como diz Aristóteles. Ora, pelos efeitos divinos não podemos conhecer a natureza divina tal qual é, de modo que lhe conheçamos a essência, que só podemos conhecer pelo método de eminência, de causalidade e de negação, como já dissemos. Por onde o nome de Deus significa a natureza divina; pois é imposto para significar um ser superior a tudo o que existe, princípio de tudo e de tudo separado. E é isso o que querem exprimir os que usam de tal nome. Art. IX — SE O NOME DE DEUS É COMUNICÁVEL. O nono discute-se assim. — Parece que o nome de Deus é comunicável. 1. Pois, a qualquer ser a que se comunica o que é significado pelo nome, comunica-se também o próprio nome. Ora, o nome de Deus, como já se disse, significa a natureza divina, comunicável aos demais seres, conforme aquilo da Escritura: Comunicou-nos as mui grandes e preciosas graças que tinha prometido, para que, por elas, sejais feitos participantes da natureza divina. Logo, o nome de Deus é comunicável. 2. Demais. — Só os nomes próprios não são comunicáveis. Ora, o nome de Deus não é próprio, mas apelativo, pois, como é claro, tem plural, conforme a Escritura: Eu disse: Sois deuses. Logo, o nome de Deus é comunicável. 3. Demais. — O nome de Deus tem a sua origem na operação, como já se disse. Ora, outros nomes que impomos a Deus, originados das suas operações ou dos seus feitos, como bom, sábio e outros, são comunicáveis. Logo, o nome de Deus é comunicável. Mas, em contrário, diz a Escritura: Deram às pedras e ao pau um nome incomunicável; referindo-se ao nome de deidade. Logo, o nome de Deus é incomunicável. SOLUÇÃO. Um nome pode ser comunicável de dois modos: propriamente e por semelhança. É propriamente comunicável o nome que se aplica a muitos seres na sua significação total; e, por semelhança, quando é imposto só em relação a uma parte da sua significação. Assim, o nome de leão é, propriamente, comunicado a todos os seres que têm a natureza que tal nome exprime; e, porém, comunicável, por semelhança, aos seres que participam algo de leonino, como a audácia ou a fortaleza, e são por isso metaforicamente chamados leões. Ora, para sabermos que nomes são propriamente comunicáveis, devemos considerar que toda forma existente num sujeito singular, que a individua, é comum a muitos seres, realmente, ou, pelo menos, racionalmente. Assim, a natureza humana é comum a muitos seres, real e racionalmente; ao passo que a natureza do sol não o é, real, mas só racionalmente, pois pode ser entendida como existente em muitos sujeitos; e isto porque o intelecto intelige a natureza de uma espécie por abstração do singular. Por onde, existir num sujeito singular ou em vários é um fato estranho ao conceito que fazemos da natureza da espécie, e, por isso, o conceito da natureza específica ficando salvo, pode ser inteligido como existente em vários seres. O singular, pelo contrário, por isso mesmo que o é, é separado de tudo o mais, e, por isso, todo nome imposto para significar o singular é incomunicável, real e racionalmente. Pois a pluralidade de um determinado indivíduo não pode cair sob a nossa apreensão. Por onde, nenhum nome que signifique um determinado indivíduo é comunicável propriamente a muitos outros, mas só por semelhança; assim, um indivíduo pode ser denominado metaforicamente Aquiles por ter alguma das propriedades de Aquiles, por exemplo, a fortaleza. As formas, porém, que não se individuam por meio de nenhum suposto estranho, mas por si mesmas, porque são formas subsistentes, se as considerarmos em si mesmas, não podem comunicar-se nem real nem racionalmente, mas só, talvez, por semelhança, como já dissemos tratando dos indivíduos. Mas, como não podemos inteligir as formas simples por si subsistentes, tais quais elas são em si mesmas, mas as inteligimos como se fossem seres compostos, que têm as formas realizadas na matéria, por isso, como já dissemos, impomos-lhes nomes concretos, que designam a natureza existente em algum suposto. Por onde, no que diz respeito ao conteúdo dos nomes, o caso dos nomes que impomos para significarem as naturezas das coisas compostas é o mesmo que o dos que impomos para significarem as naturezas simples subsistentes. Portanto, sendo o nome de Deus imposto para significar a natureza divina, como já dissemos, e não sendo esta multiplicável, como ficou demonstrado, resulta que o nome de Deus é, certo, realmente incomunicável, mas pode ser comunicável conforme a opinião de alguém; assim como o nome sol é comunicável, na opinião dos que admitem vários sóis. E, neste sentido, diz a Escritura: Servíeis aos que por natureza não são deuses; o que comenta a Glosa: Não são deuses por natureza, mas na opinião dos homens. Contudo, se o nome de Deus não é comunicável na sua significação total, o é por algo que nele existe, por certa semelhança; e, neste sentido, chamamos deuses aos que participam, por semelhança, algo de divino, conforme aquilo da Escritura: Eu disse: sois deuses. Se, porém, existisse algum nome imposto para significar Deus, não em sua natureza, mas como sujeito, enquanto que ele é tal ser, esse nome seria, de qualquer modo, incomunicável, como se dá, talvez, com o tetragrama entre os hebreus; e o mesmo se daria se alguém impusesse ao sol um nome que designasse precisamente esse indivíduo. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. A natureza divina não é comunicável senão pela participação da semelhança. RESPOSTA A SEGUNDA. O nome de Deus é apelativo, e não próprio, porque significa a natureza divina como se ela existisse num sujeito; embora Deus mesmo, na realidade, não seja universal nem particular. Pois os nomes não seguem o modo de ser real das coisas, mas o que existe no nosso conhecimento. E, contudo, na verdade das coisas, o nome de Deus é incomunicável, como já dissemos, referindo-nos ao nome do sol. RESPOSTA A TERCEIRA. Os nomes — bom, sábio e semelhantes — são, certo, impostos como derivados das perfeições que procedem de Deus para as criaturas. São, porém, aplicados para significar não a natureza divina, mas as perfeições mesmas, absolutamente falando; e, portanto, mesmo na verdade das coisas, são comunicáveis a muitos. Mas o nome de Deus é imposto como tendo a sua origem na operação própria a Deus — e que nós experimentamos continuamente —, para significar a natureza divina. Art. X — SE O NOME DE DEUS SE PREDICA UNIVOCAMENTE, QUANTO A NATUREZA, A PARTICIPAÇÃO E A OPINIÃO. O décimo discute-se assim. — Parece que o nome de Deus se lhe atribui univocamente, quanto à natureza, à participação e à opinião. 1. Pois entre quem afirma e quem nega não há contradição se as palavras têm sentidos diversos, pois a equivocação impede que se contradigam. Ora, o católico, dizendo um ídolo não é Deus, contradiz o pagão que afirma: um ídolo é Deus. Logo, Deus é tomado univocamente nessas duas expressões. 2. Demais. Assim como um ídolo é Deus conforme certa opinião e não na realidade das coisas, assim o gozo dos prazeres carnais também se chama felicidade, de acordo com certa, opinião e não na realidade. Ora, a palavra felicidade predica-se univocamente tanto da que o é, por opinião, como da que verdadeiramente é tal. Logo, também o nome de Deus se predica univocamente do Deus real, como do que uma opinião considera tal. 3. Demais. São unívocos os termos que têm a mesma significação. Ora, quando um católico diz que Deus é uno, ele entende por esse nome um ser onipotente e digno de veneração mais que todos os outros; e o mesmo entende o gentio quando diz que um ídolo é Deus. Logo, em ambos os casos o nome de Deus é empregado univocamente. Mas, em contrário. O que está na inteligência é uma semelhança do que existe na realidade, como diz Aristóteles. Ora, o termo animal é empregado equivocamente quando atribuído a um animal verdadeiro e a um animal pintado. Logo, o nome de Deus é predicado equivocamente quando é atribuído ao Deus verdadeiro e ao que a opinião julga tal. Demais. Ninguém pode exprimir o que não conhece. Ora, o gentio não conhece a natureza divina. Logo, quando diz um ídolo é Deus, não exprime a verdadeira deidade, a qual o católico exprime dizendo que Deus é um só. Logo, o nome de Deus não se predica unívoca mas equivocamente do Deus verdadeiro e do que uma opinião qualquer julga como tal. SOLUÇÃO. O nome de Deus não é tomado, nas três significações propostas, nem unívoca nem equívoca, mas analogicamente, o que assim se demonstra. Os termos unívocos têm a mesma significação; os equívocos têm significação diversa; nos análogos, porém, é necessário que a significação de um nome, tomado numa acepção, apareça na definição desse mesmo nome tomado em outras acepções. Assim, a palavra ser, predicado da substância, entra na definição de ser quando predicado do acidente; do mesmo modo são, predicado de um animal, entra na definição de são predicado da urina e de um remédio; pois da saúde do animal a urina é o sinal, e o remédio, a causa. Ora, o mesmo se dá com o caso em questão, pois, quando o nome de Deus é tomado pelo verdadeiro Deus, este vocábulo exprime, quer uma opinião, quer uma participação. Assim, quando dizemos que alguém é Deus por participação, entendemos por esse nome um ser que tem semelhança com o verdadeiro Deus. Semelhantemente, quando dizemos que um ídolo é Deus, queremos, com o nome Deus, designar um ser que a opinião dos homens considera tal. Por onde é manifesto que são diferentes as significações desse nome; mas uma delas está contida nas outras e, portanto, é claro que tal nome é predicado analogicamente. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. A multiplicidade de acepções dos nomes não depende da predicação, mas da significação deles. Pois o nome de homem tem sempre a mesma significação, seja qual for a sua predicação, verdadeira ou falsa. Mas teria múltiplas acepções, se com ele quiséssemos significar seres diversos; assim, se um quisesse designar com esse nome o homem verdadeiro e, outro, uma pedra ou coisa semelhante. Por onde é claro que, quando o católico diz que um ídolo não é Deus, contradiz ao pagão que tal afirma, porque ambos empregam o nome de Deus para designar o Deus verdadeiro. Mas, quando o pagão diz que um ídolo é Deus, não emprega esse nome para significar um Deus que uma opinião considera como tal, porque então diria a verdade; pois que também os católicos às vezes empregam esse nome nessa significação, como quando a Escritura diz: Todos os deuses das gentes são demônios. E o mesmo devemos responder à segunda e a terceira objeções. Pois essas objeções procedem, quanto à diversidade da predicação do nome e não quanto à diversidade da significação. RESPOSTA A QUARTA. Não é em sentido puramente equívoco que predicamos o nome de animal, do animal verdadeiro e do pintado. Mas o Filósofo toma os nomes equívocos em sentido lato, enquanto em si incluem os análogos; pois o ente, empregado analogicamente, é atribuído, às vezes equivocamente, aos diversos predicamentos. RESPOSTA A QUINTA. Nem o católico nem o pagão conhecem a natureza de Deus como ela é em si mesma; mas só a conhecem pelas noções de causalidade ou de excelência ou de remoção, como já dissemos. E, neste sentido, quando o gentio usa do nome de Deus, dizendo um ídolo é Deus, pode tomá-lo na mesma significação em que o toma o católico quando diz que um ídolo não é Deus. Porém, se houvesse alguém desprovido totalmente da noção de Deus, esse não poderia nomeá-lo, a não ser no sentido em que nós proferimos nomes cuja significação ignoramos. Art. XI — SE A DENOMINAÇÃO — AQUELE QUE É — É POR EXCELÊNCIA O NOME PRÓPRIO DE DEUS. O undécimo discute-se assim. — Parece que a denominação —Aquele que é— não é, por excelência, o nome próprio de Deus. 1. Pois o nome de Deus é incomunicável, como já dissemos. Ora, isto não se dá com a denominação Aquele que é. Logo, esta denominação não é própria de Deus. 2. Demais. Dionísio diz que o nome de bem é manifestativo de todas as processões de Deus. Ora, convém a Deus, por excelência, ser o princípio universal das coisas. Logo, a denominação própria de Deus, por excelência, é a de bem e não Aquele que é. 3. Demais. Todo nome divino parece que deve implicar uma relação com as criaturas, pois não conhecemos a Deus senão por meio destas. Ora, a denominação Aquele que é não implica nenhuma relação com as criaturas. Logo, essa denominação — Aquele que é — não é, por excelência, própria de Deus. Mas, em contrário, a Escritura: a Moisés que perguntava: Se eles me disserem: que nome é o seu? Que lhes hei de responder? — respondeu-lhe o Senhor: Eis aqui o que tu hás de dizer aos filhos de Israel: Aquele que ê me enviou a vós. Logo, é a denominação Aquele que é, por excelência, própria de Deus. SOLUÇÃO. A denominação Aquele que é, por excelência, é própria de Deus, por três razões. Primeira, pela sua significação, pois não significa nenhuma forma, mas o próprio ser. Ora, sendo em Deus a existência idêntica à essência, o que não se dá com nenhum outro ser, como já demonstramos, é manifesto que, entre outras, a denominação de que se trata é a que convém a Deus, por excelência; pois um ser é denominado pela sua forma. Segunda, por causa da sua universalidade. Pois todos os outros nomes são menos gerais, ou, se são equivalentes à denominação vertente, contudo, acrescentam-lhe algo, racionalmente, e de certo modo informam-na e a determinam. Ora, o nosso intelecto não pode, nesta vida, conhecer a essência mesma de Deus, tal como ela em si é; por onde, seja qual for o modo por que determinamos o que inteligimos de Deus, não poderemos nunca compreender o que Deus em si mesmo é. E, portanto, quanto menos determinados e quanto mais gerais e absolutos forem certos nomes, tanto mais propriamente nós os atribuiremos a Deus. E por isso diz Dionísio que, de todos os nomes atribuídos a Deus, é o principal — Aquele que é; pois, compreendendo tudo em si, exprime o ser mesmo, como uma espécie de pélago infinito e indeterminado da substância. Ao passo que qualquer outro nome determina apenas um aspecto da substância da coisa designada, a denominação Aquele que é não determina nenhum modo de ser, porque se comporta indeterminadamente em relação a todos e, portanto, designa o pélago mesmo infinito da substância. Terceira, pelo que está incluído na sua significação mesma, que é o ser presente, que se atribui a Deus por excelência, cujo ser não conhece pretérito nem futuro, como diz Agostinho. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. A denominação Aquele que é, quanto à sua origem, é mais própria de Deus que este último nome mesmo; pois ela se origina do ser, tanto quanto à sua significação como quanto ao conteúdo desta, conforme já dissemos. Mas, quanto ao ser designado, o nome de Deus é mais próprio, porque é usado para significar a natureza divina; se bem que mais próprio ainda é o nome do tetragrama, imposto para significar a própria essência incomunicável e, por assim dizer, singular de Deus. RESPOSTA A SEGUNDA. O nome de bem é o principal nome de Deus, como causa; mas não de Deus considerado em absoluto, pois. absolutamente falando, nós inteligimos o ser antes de inteligirmos a causa. RESPOSTA A TERCEIRA. Não é necessário que todos os nomes divinos impliquem relação de Deus com as criaturas; mas basta que sejam impostos fundados em certas perfeições, que procedem de Deus para elas; e entre essas perfeições a primeira é o ser mesmo, donde derivou a denominação — Aquele que é. Art. XII — SE PODEMOS FORMAR SOBRE DEUS PROPOSIÇÕES AFIRMATIVAS. O duodécimo discute-se assim. — Parece que não podemos formar sobre Deus proposições afirmativas. 1. Pois diz Dionísio que as negações, sobre Deus, são verdadeiras, mas as afirmações são inconsistentes. 2. Demais. Boécio diz que a forma simples não pode ser sujeito. Ora, Deus é forma simples, por excelência, como já se demonstrou. Logo, não pode ser sujeito. Ora, todo o ser sobre o qual podemos formar uma proposição afirmativa é tomado como sujeito. Logo, não podemos formar sobre Deus proposições afirmativas. 3. Demais. Todo o intelecto, que compreende as coisas diferentemente do que elas são, é falso. Ora, Deus tem o ser sem nenhuma composição, como já se provou. E, como todo intelecto que afirma alguma coisa a intelige com composição, resulta que não podemos, verdadeiramente, formar sobre Deus proposições afirmativas. Mas, em contrário, a fé não contém nada de falso. Ora, ela encerra certas proposições afirmativas, como: Deus é trino e uno, é onipotente. Logo, podemos formar, verdadeiramente, a respeito de Deus proposições afirmativas. SOLUÇÃO. Podemos formar, verdadeiramente, a respeito de Deus, proposições afirmativas. Para evidenciá-lo devemos considerar que, em qualquer proposição afirmativa verdadeira, é necessário que o predicado e o sujeito exprimam a mesma realidade, de certo modo, e coisas diversas, quanto à noção. E isto é claro, não só quanto às proposições em que a predicação é acidental, mas também em relação àquelas em que ela é substancial. Pois é manifesto que — homem e branco — têm idêntico sujeito, mas representam noções diferentes; pois uma é a noção de homem e outra a de branco. E o mesmo se dá quando digo o homem é um animal racional; pois o homem é, em si mesmo e verdadeiramente, animal racional; porque o mesmo é o suposto da natureza sensível, em virtude da qual é chamado animal, e da natureza racional, em virtude da qual é chamado homem. Por onde, também neste caso, o predicado e o sujeito têm idêntico suposto, mas noções diversas. E, ainda, isto mesmo se dá, de certo modo, com as proposições nas quais um sujeito é predicado de si mesmo; pois então àquilo que a inteligência toma como sujeito ela faz desempenhar o papel de suposto; e ao que toma como predicado dá a natureza de forma do suposto; e é isto que leva os lógicos a dizerem que os predicados são tomados formalmente e os sujeitos, materialmente. Ora, a esta diversidade racional corresponde a pluralidade de predicado e de sujeito; ao passo que a identidade real, o intelecto a exprime pela composição mesma. — Ora, Deus, em si mesmo considerado, é absolutamente uno e simples; contudo, o nosso intelecto o conhece por meio de conceitos diversos, já que não pode vê-lo tal como em si mesmo é. Mas, embora o intelija sob noções diversas, sabe contudo que a todas as suas noções corresponde um mesmo ser simples. Por onde, essa pluralidade racional ele o representa pela pluralidade de predicado e sujeito; e a unidade, por meio da composição. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Dionísio diz que as afirmações sobre Deus são inconsistentes; ou inconvenientes, segundo outra tradução, porque nenhum nome lhe convém quanto ao modo de significar, como já dissemos. RESPOSTA A SEGUNDA. O nosso intelecto não pode compreender as formas simples subsistentes tais como elas em si mesmas são; mas as apreende ao modo dos compostos, nos quais há um sujeito e o que a esse sujeito é inerente. Por onde apreende a forma simples como se fosse sujeito e lhe atribui alguma coisa. RESPOSTA A TERCEIRA. A proposição — o intelecto que compreende as coisas diferentemente do que elas são é falso — tem duplo sentido, porque o advérbio diferentemente pode determinar o verbo compreende em relação ao objeto compreendido, ou ao sujeito que compreende. No primeiro caso, a proposição é verdadeira e o seu sentido é: qualquer intelecto que compreende uma coisa, diferentemente do que ela é, é falso. Ora, isto não se dá no caso vertente, porque o nosso intelecto, quando forma uma proposição sobre Deus, não diz que ele é composto, mas simples. No segundo caso, porém, a proposição é falsa; pois, então, o modo pelo qual o intelecto compreende é diferente do pelo qual a coisa existe. Pois é manifesto que o nosso intelecto intelige imaterialmente as coisas materiais que lhe são inferiores; não que as intelija como imateriais, mas porque tem um modo imaterial de as inteligir. E, semelhantemente, quando intelige os seres simples, que lhe são superiores, intelige-os ao seu modo, como se fossem compostos, mas sem pensar quê sejam realmente compostos. E, assim, o nosso intelecto não é falso, quando afirma em Deus alguma composição. QUESTÃO XVI Da verdade. Tendo a ciência por objeto a verdade, depois da consideração da ciência de Deus, devemos tratar da verdade, sobre a qual se discutem oito artigos: 1.° - se a verdade existe na realidade, ou somente no intelecto; 2.° - se existe somente no intelecto que compõe e divide; 3.° - da relação da verdade com o ser; 4.° - da relação da verdade com a bondade; 5.° - se Deus é a verdade; 6.° - se todas as coisas são verdadeiras por uma só verdade ou por muitas; 7.° - da eternidade da verdade; 8.° - da incomutabilidade da mesma. Art. I - SE A VERDADE EXISTE SOMENTE NO INTELECTO, OU, ANTES, NAS COISAS. O primeiro discute-se assim. Parece que a verdade não está somente no intelecto, mas antes nas coisas. 1. Pois Agostinho reprova esta definição da verdade: A verdade é aquilo que é visto; porque, então, as pedras, ocultas no mais profundo seio da terra, não seriam verdadeiras pedras, porque não se veem. Também reprova esta outra: A verdade é tal, que é vista pelo sujeito, se quiser e puder conhecê-la; pois, se assim fosse, nenhuma verdade existiria, se ninguém pudesse conhecê-la. E define assim a verdade: A verdade é o que é. Donde se conclui que a verdade está nas coisas e não no intelecto. 2. Demais. Tudo o que é verdadeiro o é pela verdade. Se, pois, a verdade existe somente no intelecto, nada será verdadeiro senão na medida em que for inteligido; erro dos antigos Filósofos, como se vê em Aristóteles, dizendo ser verdadeiro tudo o que é visto. Donde se segue que os contraditórios são simultaneamente considerados verdadeiros por diversos. 3. Demais. A causa de ser uma coisa o que é, é essa coisa ainda em maior grau, como diz Aristóteles. Mas, conforme uma coisa é ou não é, assim a opinião ou a oração é verdadeira ou falsa, conforme o Filósofo. Logo, a verdade está mais nas coisas que no intelecto. Mas, em contrário, diz o Filósofo: O verdadeiro e o falso não estão nas coisas, mas no intelecto. SOLUÇÃO. Assim como o bem designa o termo para o qual tende o apetite, assim a verdade o termo para o qual tende o intelecto. Ora, a diferença entre o apetite e o intelecto, ou qualquer conhecimento, está em que o conhecimento supõe o objeto conhecido, no conhecente, ao passo que o apetite supõe que o apetente se inclina para a coisa mesma apetecida. E, assim, o termo do apetite, que é o bem, está na coisa apetecível, enquanto o termo do conhecimento, que é a verdade, está no próprio intelecto. Ora, o bem está na coisa, enquanto esta se ordena para o apetite; por isso, a noção da bondade deriva da coisa apetecível para o apetite, sendo, assim, a razão por que chamamos bom ao apetite do bem. Do mesmo modo, a verdade, estando no intelecto, enquanto este se conforma com a coisa inteligida, necessariamente a noção da verdade deriva para essa coisa, da maneira que também esta se chama verdadeira, enquanto se ordena, de certo modo, para o intelecto. Ora, a coisa inteligida pode se ordenar para certo intelecto, ou em si, ou por acidente. Em si, ordena-se para o intelecto do qual o seu ser depende; por acidente, a um intelecto do qual é cognoscível. Como se dissermos que a casa depende, em si, do intelecto do artífice; e, por acidente, é relativa a um intelecto do qual não depende. Ora, julgamos uma coisa fundada não no que nela existe por acidente, mas no que lhe pertence por essência. Por onde, uma coisa é considerada verdadeira, absolutamente falando, quando se ordena para o intelecto, do qual depende. Por isso, são chamadas verdadeiras as coisas artificiais, em ordem ao nosso intelecto; assim, é chamada verdadeira a casa resultante da semelhança da forma, existente na mente do artífice; e verdadeira a oração, enquanto procede do intelecto verdadeiro. Semelhantemente, as coisas naturais chamam-se verdadeiras, enquanto realizam a semelhança das espécies existentes na mente divina; assim, chamamos verdadeira à pedra que realiza a natureza própria da pedra, preexistente no conceito do intelecto divino. Por onde a verdade principalmente existe no intelecto e secundariamente nas coisas, enquanto estas dependem do intelecto, como do princípio. E, por onde, a verdade é conhecida de modos diversos. Assim, Agostinho diz: A verdade é o meio pelo qual se manifesta aquilo que é. E Hilário: A verdade é declarativa e manifestativa do ser. O que é próprio dela, enquanto existente no intelecto. Mas pertence à verdade da coisa em ordem ao intelecto, a seguinte definição de Agostinho, no mesmo lugar: A verdade é a suma semelhança do princípio, a qual não tem nenhuma dessemelhança. E esta definição de Anselmo: A verdade é a retidão perceptível só da mente; pois reto é o que concorda com o princípio. E outra, de Avicena: A verdade de uma coisa é a propriedade do ser que lhe foi atribuído. Quando, porém, dizemos que a verdade é a adequação da coisa com o intelecto, essa definição pode convir a um e outro modo. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Agostinho refere-se à verdade da coisa; e exclui dessa noção da verdade a comparação com o nosso intelecto. Pois de toda definição se exclui o que lhe é acidental. RESPOSTA A SEGUNDA. Os antigos filósofos não diziam que as espécies das coisas naturais procediam de algum intelecto, mas que provinham do acaso. E, por considerarem que a verdade implica relação com o intelecto, viam-se forçados a constituir a verdade das coisas em dependência do nosso intelecto; donde as incongruências assinaladas pelo Filósofo, no lugar citado. Mas tais incongruências desaparecem se admitirmos que a verdade das coisas consiste na relação com o intelecto divino. RESPOSTA A TERCEIRA. Embora a verdade do nosso intelecto seja causada pela realidade, não é necessário que a noção dela se encontre primariamente na realidade. Assim como a noção da saúde não se encontra primeiro no remédio que no animal; pois é a virtude e não a sanidade do remédio a causa da saúde, que não é um agente unívoco. Semelhantemente, não é a verdade da coisa, mais o seu ser, que causa a verdade do intelecto. Por isso, o Filósofo diz, no lugar citado, que a opinião ou a oração é verdadeira porque a realidade existe, não porque seja verdadeira. Art. II — SE A VERDADE EXISTE SOMENTE NO INTELECTO QUE COMPÕE E DIVIDE. O segundo discute-se assim. — Parece que a verdade não existe somente no intelecto que compõe e divide. 1. Pois, o Filósofo diz que, assim como os sentidos dos sensíveis próprios são sempre verdadeiros, assim também o intelecto, que apreende a quididade. Ora, a composição e a divisão não existem, nem no sentido, nem no intelecto, que apreende a quididade. Logo, a verdade não existe somente no intelecto que compõe e divide. 2. Demais. Isaque diz que a verdade é a adequação da coisa com o intelecto. Ora, como o intelecto das vozes complexas pode-se-lhes adequar, assim também o das incomplexas, e, ainda, o sentido, que recebe a coisa como ela é. Logo, a verdade não está somente na composição e na divisão do intelecto. Mas, em contrário, diz o Filósofo que, dos seres simples e da quididade, não há verdade nem no intelecto nem nas coisas. SOLUÇÃO. A verdade, como dissemos, na sua noção primária, existe no intelecto. Pois, sendo toda realidade verdadeira, na medida em que tem a forma própria da sua natureza, necessariamente o intelecto conhecente será verdadeiro, na medida em que tem semelhança com a coisa conhecida que é a forma do mesmo, enquanto conhecente. E, por isso, a verdade é definida como a conformidade de coisa com a inteligência. Donde, conhecer tal conformidade é conhecer a verdade. Ora, esta o sentido de modo nenhum a conhece. Pois, embora a vista, por exemplo, tenha a semelhança do visível, contudo não conhece a relação existente entre a coisa vista e aquilo que apreende dessa coisa. O intelecto, porém, pode conhecer a sua conformidade com a coisa inteligível; contudo, não apreende essa conformidade quando conhece a essência de uma coisa. Mas, quando julga estar a coisa de conformidade com a forma que dela apreendeu, então somente conhece e afirma a verdade. E isso o intelecto faz, compondo e dividindo. Pois, em toda proposição, o intelecto aplica alguma forma expressa pelo predicado a alguma coisa expressa pelo sujeito ou dela remove. Por onde, bem vemos que o sentido é verdadeiro, em relação à coisa que percebe, como também o é o intelecto, quando conhece a essência, sem que por isso conheça ou diga a verdade. E o mesmo se dá com as vozes incomplexas. A verdade, pois, pode existir no sentido, ou no intelecto, que conhece a essência, como numa coisa verdadeira; não, porém, como o conhecido no conhecente, que é o que implica o nome de verdadeiro. Ora, a perfeição do intelecto é a verdade enquanto conhecida. Logo, propriamente falando, a verdade está no intelecto que compõe e divide, não porém no sentido nem no intelecto, que conhece a essência. Donde se deduzem claras as respostas às objeções. Art. III - SE A VERDADE E O SER SE CONVERTEM. O terceiro discute-se assim. — Parece que a verdade e o ser não se convertem. 1. — Pois, a verdade existe propriamente no intelecto, como se disse; o ser, porém, existe propriamente nas coisas. Logo, não se convertem. 2. Demais. — O que se estende ao ser e ao não ser não se converte com o ser; ora, a verdade estende-se ao ser e ao não ser, pois, é verdade que o que é, é, e o que não é, não é. Logo, a verdade e o ser não se convertem. 3. Demais. — Os seres que se relacionam por anterioridade e posterioridade não se convertem uns nos outros. Ora, é certo que a verdade é anterior ao ser, pois este não é inteligido, senão sob a noção da verdade. Logo, não são conversíveis. Mas, em contrário, diz o Filósofo que a mesma é a disposição das coisas, no ser e na verdade. SOLUÇÃO. Como o bem tem a natureza de apetecível, assim a verdade se ordena ao conhecimento. Ora, cada ser é cognoscível na medida em que é, e, por isso, diz Aristóteles: Que a alma é, de certo modo, tudo, quanto ao sentido e ao intelecto. E, portanto, assim como o bem se converte com o ser, assim também a verdade. Mas, assim como o bem acrescenta ao ser a noção de apetibilidade, assim, a verdade, a relação com o intelecto. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. A verdade está nas coisas e no intelecto. Mas a verdade existente nas coisas converte-se substancialmente com o ser; a que, porém, existe no intelecto converte-se com o ser, como o manifestativo com o manifestado. Pois isto é da essência da verdade. Embora possamos dizer que também o ser está nas coisas e no intelecto, como a verdade; embora a verdade esteja, principalmente, no intelecto, ao passo que o ser está, principalmente, nas coisas. E isto é assim por haver, entre a verdade e o ser, uma diferença de razão. RESPOSTA A SEGUNDA. O não ser não tem por onde seja conhecido; mas o é enquanto o intelecto o torna cognoscível. Por onde, a verdade funda-se no ser, ao passo que o não ser é um ente de razão, isto é, apreendido pela razão. RESPOSTA A TERCEIRA. O dizer-se que o ser não pode ser apreendido sem a noção da verdade pode-se entender duplamente. De um modo, significa que não podemos apreendê-lo, sem que a noção da verdade acompanhe essa apreensão; e, neste sentido, a locução é verdadeira. De outro modo, poderíamos compreendê-la, como significando que não podemos apreender o ser sem apreendermos a noção da verdade, o que é falso. A verdade, porém, não pode ser apreendida sem apreendermos a noção do ser, porque este se inclui na noção daquela. Seria isto o mesmo que compararmos o inteligível com o ser que, não podendo ser inteligido sem ser inteligível, pode ser inteligido sem que seja inteligida a sua inteligibilidade. Semelhantemente, o ser inteligido é verdadeiro; contudo, não é inteligindo o ser que inteligimos o verdadeiro. Art. IV — SE O BEM É RACIONALMENTE ANTERIOR A VERDADE. O quarto discute-se assim. Parece que o bem é racionalmente anterior à verdade. 1. Pois o que é mais universal é, na razão, anterior, como se lê em Aristóteles. Ora, o bem é mais universal que a verdade, que é certo bem do intelecto. Logo, o bem é, racionalmente, anterior à verdade. 2. Demais. O bem está nas coisas, a verdade, porém, na composição e divisão do intelecto. Ora, as coisas existentes realmente são anteriores às existentes no intelecto. Logo, o bem é racionalmente anterior à verdade. 3. Demais. A verdade é uma espécie de virtude, como se lê em Aristóteles. Ora, a virtude está incluída no bem, pois ela é uma boa qualidade da mente, como diz Agostinho. Logo, o bem é anterior à verdade. Mas, em contrário, o que existe em muitos é racionalmente anterior. Ora, a verdade existe em certas coisas, nas quais não existe o bem, a saber, nas matemáticas. Logo, a verdade é anterior ao bem. SOLUÇÃO. Embora o bem e a verdade se convertam no ser, pelo suposto, contudo diferem pela razão. E, assim, a verdade, absolutamente falando, é anterior ao bem, o que se evidencia pelas duas considerações seguintes. Primeiro, porque a verdade está mais próxima do ser, e este é anterior ao bem; pois a verdade diz respeito ao próprio ser, simples e imediatamente, ao passo que a noção do bem é consecutiva ao ser, enquanto este é, de certo modo, perfeito, pois é, como tal, apetecível. Segundo, porque o conhecimento naturalmente precede ao apetite; por onde, a verdade, dizendo respeito ao conhecimento, e o bem, ao apetite, a verdade será racionalmente anterior ao bem. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. A vontade e o intelecto mutuamente se incluem; pois o intelecto intelige a vontade e a vontade quer que o intelecto intelija. Assim, entre as coisas ordenadas ao objeto da vontade estão contidas também as que pertencem ao intelecto, e reciprocamente. Por onde, na ordem das coisas apetecíveis, o bem comporta-se como universal e a verdade, como particular; mas, na ordem dos inteligíveis dá-se o inverso. Logo, por ser a verdade certo bem, segue-se que este é anterior, na ordem dos apetecíveis; não, porém, que seja anterior, absolutamente. RESPOSTA A SEGUNDA. E anterior, na razão, o que em primeiro lugar cai sob a apreensão do intelecto. Ora, o intelecto, em primeiro lugar, apreende o ser em si; em segundo, a sua intelecção do ser; em terceiro, a sua apetência do ser. Donde, em primeiro lugar está a noção do ser; em segundo, a verdade; em terceiro, a do bem, embora o bem esteja nas coisas. RESPOSTA A TERCEIRA. A verdade, considerada como virtude, não é verdade comum, mas certa verdade, pela qual o homem se mostra como é, nas palavras e obras. A verdade da vida é aquela pela qual o homem, na sua vida, realiza o fim para o qual foi ordenado pelo intelecto divino; e, deste modo a verdade existe em outras coisas. A verdade da justiça é aquela pela qual o homem atribui a outrem o que lhe deve, segundo a ordem das leis. Ora, destas verdades particulares não se pode passar para a verdade geral. Art. V — SE DEUS É A VERDADE. O quinto discute-se assim. Parece que Deus não é a verdade. 1. Pois a verdade existe na composição e divisão do intelecto. Ora, em Deus, não há composição nem divisão. Logo, não há verdade. 2. Demais. — A verdade, segundo Agostinho, é semelhança de princípio. Ora, não há em Deus semelhança de princípio. Logo, em Deus não há verdade. 3. Demais. — Tudo o que dizemos de Deus dizemo-lo como da causa primeira universal, porque o ser de Deus é a causa de todo o ser, e a sua bondade, a causa de todo o bem. Se, pois, há em Deus verdade, tudo o que é verdadeiro sê-lo-á por ele. Ora, é verdade que alguns pecam. Logo, isso provirá de Deus, o que é claramente falso. Mas, em contrário, a Escritura: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. SOLUÇÃO. A verdade existe no intelecto, que apreende a realidade como ela é; e, na realidade, enquanto tem o ser conformável com o intelecto. Ora, isto existe sobretudo em Deus. Pois o seu ser não só é conforme com o seu intelecto, mas também é o seu próprio inteligir; e o seu inteligir é a medida e a causa de qualquer outro ser e de qualquer outro intelecto; e ele mesmo é o seu ser e o seu inteligir. Donde se segue que não somente há nele verdade, mas também que é a mesma suma e primeira verdade. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Embora no intelecto divino não haja composição nem divisão, contudo ele julga de tudo e conhece todos os complexos, pela sua simples inteligência; e assim há verdade no seu intelecto. RESPOSTA A SEGUNDA. A verdade do nosso intelecto está em conformar-se com o seu princípio, isto é, com as coisas de que tira o conhecimento. E também a verdade das coisas consiste em conformarem-se com o seu princípio, isto é, com o intelecto divino. Ora, propriamente falando, não se pode dizer da verdade divina, a não ser, talvez, enquanto a verdade é própria do Filho, que tem princípio. Mas, se nos referimos à verdade essencialmente dita, a conformidade com o princípio não tem lugar, senão resolvendo a afirmativa na negativa, assim quando dizemos que o Pai é por si, porque não é por outro. Semelhantemente, a verdade divina pode ser considerada semelhança de princípio, enquanto o seu ser não é dessemelhante do seu intelecto. RESPOSTA A TERCEIRA. O não ser e as privações não têm a verdade por si mesmas, mas só pela apreensão do intelecto. Ora, toda apreensão do intelecto provém de Deus. Donde, tudo o que houver de verdade na afirmação — é verdade que este fornicou — vem de Deus. Mas quem objetar: logo, vem de Deus a fornicação deste — cometerá um sofisma de acidente. Art. VI — SE HÁ UMA SÓ VERDADE PELA QUAL TODAS AS COISAS SÃO VERDADEIRAS. O sexto discute-se assim. Parece que uma só é a verdade, pela qual todas as coisas são verdadeiras. 1. Pois, segundo Agostinho, nada é maior que a mente humana, exceto Deus. Ora, a verdade é maior que a mente humana; do contrário esta julgaria da verdade, ao passo que, na realidade, ela tudo julga segundo a verdade e não segundo a si mesma. Logo, só Deus é a verdade, e portanto não há outra verdade fora dele. 2. Demais. Anselmo diz que, assim como o tempo está para as coisas temporais, assim, a verdade, para as coisas verdadeiras. Ora, um só é o tempo de todas as coisas temporais. Logo, uma só é a verdade, pela qual todas as coisas são verdadeiras. Mas, em contrário, a Escritura: Vieram a menos as verdades entre os filhos dos homens. SOLUÇÃO. De certo modo, uma é a verdade pela qual todas as coisas são verdadeiras, e, de certo modo, não. Para evidenciá-lo devemos saber que, quando alguma coisa é predicada univocamente de muitas, ela se encontra em qualquer destas, segundo a sua noção própria; assim, animal, em qualquer espécie de animal. Mas, quando uma coisa se predica analogicamente de muitas, encontra-se, segundo a noção própria, numa delas somente, da qual as outras tiram a sua denominação; assim, aplicamos o vocábulo — são — ao animal, à urina e ao remédio. Não que a saúde exista somente no animal, mas pela saúde deste é que o remédio se denomina são, porque a produz; e a urina, enquanto sinal da saúde. E embora a saúde não exista no remédio, nem na urina, contudo, em ambos existe alguma cousa pela qual um produz a saúde e a outra a significa. Ora, a verdade existe primariamente no intelecto e, posteriormente, nas coisas, enquanto estas se ordenam ao intelecto divino. Se, portanto, considerarmos a verdade em sua noção própria, enquanto existente no intelecto, então, em muitos intelectos criados, existem muitas verdades. E também em um só e mesmo intelecto, conforme os vários objetos conhecidos. Donde o dizer a Glosa àquilo da Escritura — Vieram a menos as verdades entre os filhos dos homens: assim como da face de um mesmo homem resultam várias imagens semelhantes no espelho, assim de uma mesma verdade divina resultam muitas verdades. Se, porém, considerarmos a verdade enquanto existente nas coisas, então estas são todas verdadeiras, em virtude de uma primeira verdade, à qual cada uma delas se assemelha, segundo a sua entidade. E assim, embora muitas sejam as essências ou as formas das coisas, uma só é a verdade do intelecto divino, em virtude da qual se denominam verdadeiras. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. A alma julga de todas as coisas, não segundo qualquer verdade, mas segundo a verdade primeira, enquanto esta nela se reflete, como num espelho, por meio dos inteligíveis primeiros. Donde se segue que a verdade primeira é maior que a alma. Mas é verdade que nada de subsistente é maior que a mente racional, exceto Deus. RESPOSTA A SEGUNDA. O dito de Anselmo é exato, consideradas as coisas verdadeiras por comparação com o intelecto divino. Art. VII — SE A VERDADE CRIADA É ETERNA. O sétimo discute-se assim. — Parece que a verdade criada é eterna. 1. Pois, Agostinho diz que nada é mais eterno do que a noção do círculo, e que dois e três são cinco. Ora, tais verdades são criadas. Logo, a verdade criada é eterna. 2. Demais. Tudo o que existe sempre é eterno. Ora, os universais existem em toda a parte e sempre. Logo, são eternos; e portanto também o é a verdade, em máximo grau universal. 3. Demais. Do que é verdade, no presente, podemos dizer que sempre foi verdade que haveria de ser. Ora, como a verdade da proposição, no presente, é uma verdade criada, assim também, a verdade da proposição, no futuro. Logo, alguma verdade criada é eterna. 4. Demais. Tudo o que não tem princípio nem fim é eterno. Ora, a verdade dos enunciáveis não tem princípio nem fim. Porque, se a verdade começou a existir, como antes não existisse, era verdadeiro que não existia em virtude de alguma verdade; e, assim, a verdade existia antes de ter começado a existir. Semelhantemente, se dissermos que a verdade tem fim, segue-se que existe depois de cessar de existir, pois será verdade que não existe. Logo, a verdade é eterna. Mas, em contrário, só Deus é eterno. SOLUÇÃO. A verdade dos enunciáveis não é outra senão a do intelecto, pois o enunciável existe no intelecto e nos termos. Ora, enquanto no intelecto, tem a verdade por si mesmo. Mas, enquanto nos termos, diz-se verdadeiro, por significar alguma verdade do intelecto, e não por nenhuma verdade existente nele próprio, como num sujeito; do mesmo modo que a urina se diz sã não pela saúde, que nela existia, mas por significar a saúde do animal. Semelhantemente, as coisas se chamam verdadeiras pela verdade do intelecto. Por onde, se nenhum intelecto fosse eterno, nenhuma verdade sê-lo-ia; mas, porque só o intelecto divino é eterno, só nele a verdade tem a sua eternidade. Nem daí resulta que algum outro ser, além de Deus, seja eterno; porque a verdade do intelecto divino é o próprio Deus. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. As noções do círculo e que dois e três são cinco têm a eternidade na mente divina. RESPOSTA A SEGUNDA. O existir alguma coisa, sempre e em toda a parte, pode se entender de dois modos. De um modo, porque pode, por si, estender-se a todos os tempos e a todos os lugares; assim, convém a Deus existir em toda a parte e sempre. De outro modo, por não ter em si motivo para se determinar a algum lugar ou tempo; assim, uma se chama a matéria-prima, não por ter uma forma, como o homem, que é um pela unidade formal, mas pela remoção de todas as formas determinantes. E, deste modo, dizemos que todo universal existe em toda parte e sempre, por se abstraírem os universais do lugar e do tempo. Mas daí não se segue que sejam eternos, a não ser em algum intelecto eterno. RESPOSTA A TERCEIRA. O que agora existe foi futuro antes de existir, porque pela sua causa havia de existir. Por isso, supressa a causa, tal existência não mais se realizaria. Ora, só a causa primeira é eterna. Donde, do que existe não se deduz que sempre foi verdadeiro o que haveria de existir, senão enquanto essa existência futura dependia de causa sempiterna; e tal causa só é Deus. RESPOSTA A QUARTA. Não sendo eterno o nosso intelecto, também não é eterna a verdade dos enunciáveis formados por nós, mas começou em algum tempo. E, antes que tal verdade existisse, não era verdadeiro dizer que não existia, senão em virtude do intelecto divino, no qual somente a verdade é eterna. Mas, atualmente, é verdadeiro dizer que a verdade, antes, não existia. O que não é verdadeiro senão pela verdade atualmente existente em nosso intelecto e não por alguma verdade fundada no real. Pois a verdade de que se trata é uma verdade relativa ao não ser. Ora, o não ser não tira de si mesmo a sua verdade mas, somente, do intelecto que o apreende. Logo, dizer-se que a verdade não existia é verdadeiro, na medida em que lhe apreendemos o não ser, como lhe precedendo o ser. Art. VIII — SE A VERDADE É IMUTÁVEL. O oitavo discute-se assim. — Parece que a verdade é imutável. 1. — Pois diz Agostinho que a verdade não é igual à mente, porque seria mutável como a mente. 2. Demais. — O que permanece, após todas as mutações, é imutável. Assim, a matéria prima é ingênita e incorruptível, porque permanece, após todas as gerações e corrupções. Ora, a verdade permanece, após todas as mutações, porque, após todas elas. é verdadeiro dizer-se existir ou não existir. Logo, a verdade é imutável. 3. Demais. — Se a verdade da enunciação muda, há de sobretudo mudar com a mudança da realidade. Ora, tal não se dá; pois, segundo Anselmo, a verdade é certa retidão, pela qual uma coisa realiza o modo por que existe na mente divina. Ora, esta proposição — Sócrates está sentado — tira da mente divina a significação de Sócrates sentar-se — significação que permanece, mesmo que ele não esteja sentado. Logo, a verdade da proposição de maneira nenhuma se muda. 4. Demais. — Onde existe a mesma causa existe o mesmo efeito. Ora, a mesma realidade é a causa da verdade destas três proposições: Sócrates está sentado, estará sentado, e esteve sentado. Logo, a mesma é a verdade delas. Mas, necessariamente, uma dessas três proposições será a verdadeira. Logo, a verdade delas permanece imutável e, pela mesma razão, a verdade de qualquer outra proposição. Mas, em contrário, a Escritura. Vieram a menos as verdades entre os filhos dos homens. SOLUÇÃO. A verdade, propriamente, só existe no intelecto. Pois as coisas se dizem verdadeiras pela verdade existente em algum intelecto; donde, a mutabilidade da verdade deve ser considerada em dependência do intelecto. Ora, a verdade deste consiste na sua conformidade com as coisas inteligidas, conformidade que pode variar de dois modos, assim como qualquer outra semelhança, pela mutação de um dos extremos. Assim, de um modo, a verdade varia por parte do intelecto, enquanto que da mesma coisa, existindo da mesma maneira, cada qual tem a sua opinião. De outro modo, se a coisa mudar-se, ficando a opinião a mesma. E, de ambos os modos, a mutação se faz do verdadeiro para o falso. Se, porém, existir algum intelecto no qual não possa haver variação de opiniões, ou a cujo conhecimento nenhuma coisa possa escapar, nesse a verdade é imutável. Ora, tal é o intelecto divino. Logo, a verdade do intelecto divino é imutável; ao passo que é mutável a do nosso, não porque seja sujeito a mutação, mas porque o nosso intelecto se muda da verdade para a falsidade; pois, assim, as formas podem-se considerar mutáveis. Mas a verdade do intelecto divino é aquela pela qual as coisas naturais se chamam verdadeiras, e é absolutamente imutável. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Agostinho refere-se à verdade divina. DONDE A SEGUNDA. A verdade e o ser convertem-se e são generalíssimos. Donde, assim como o ser não é gerado nem corrompido em si mesmo, mas por acidente, enquanto tal ser e tal outro é corrompido ou gerado, como diz Aristóteles, assim a verdade muda; não que nenhuma permaneça, mas porque não permanece aquela que antes existia. RESPOSTA A TERCEIRA. Uma proposição é verdadeira não só como as outras realidades o são, assim chamadas enquanto realizam o que é ordenado pelo intelecto divino; mas ainda, de certo modo especial, enquanto exprime a verdade do intelecto. E esta consiste na conformidade do intelecto com o seu objeto, desaparecida a qual, muda-se a verdade da opinião e, por conseguinte, a da proposição. Assim, pois, a proposição — Sócrates está sentado — é verdadeira, estando ele sentado, tanto pela verdade do objeto, enquanto é uma voz significativa, como pela verdade da significação, enquanto significa uma opinião verdadeira. Porém, quando Sócrates se levanta, permanece a primeira verdade, mas muda a segunda. RESPOSTA A QUARTA. O sentar-se de Sócrates, causa da verdade da proposição — Sócrates está sentado —, não tem a mesma causalidade, enquanto ele está sentado, e depois e antes de sentar-se. Por onde, também a verdade por ele causada apresenta-se diversamente e é diversamente expressa pelas proposições no presente, no passado e no futuro. Portanto, de ser uma dessas três proposições verdadeira, não resulta que a mesma verdade permaneça invariável. QUESTÃO XVII Da falsidade. Em seguida devemos tratar da falsidade. E, nesta questão, discutem-se quatro artigos: 1.° - se há falsidade nas coisas; 2.° - se há nos sentidos; 3.° - se há no intelecto; 4.° - da oposição entre o verdadeiro e o falso. Art. I — SE HÁ FALSIDADE NAS COISAS. O primeiro discute-se assim. — Parece que não há falsidade nas coisas. 1. Pois, diz Agostinho: Se a verdade é o que ê, havemos de concluir que o falso em nenhuma parte existe, quem quer que a isso repugne. 2. Demais. Falso vem de falir (enganar). Ora, as coisas não enganam, como diz Agostinho, porque não manifestam senão a sua espécie. Logo, nelas não há falsidade. 3. Demais. As coisas chamam-se verdadeiras relativamente ao intelecto divino, enquanto o imitam. Ora, qualquer coisa, como tal, imita a Deus. Logo, é verdadeira e sem falsidade. Portanto, nenhuma coisa é falsa. Mas, em contrário, diz Agostinho: Todo corpo é verdadeiro corpo e falsa unidade; porque imita a unidade mas não é unidade. Ora, todas as coisas imitam a divina unidade, mas deficientemente. Logo, em todas há falsidade. SOLUÇÃO. Como o verdadeiro e o falso se opõem, e os contrários têm o mesmo sujeito, necessariamente há de existir, em primeiro lugar, a falsidade, na potência onde, em primeiro, existe a verdade, isto é, no intelecto. Ora, nas coisas não há verdade nem falsidade, senão pela relação delas com o intelecto. E como um ser se nomeia, absolutamente, segundo o que lhe convém, por essência, e, relativamente, segundo o que lhe convém, por acidente, uma coisa se pode chamar falsa, absolutamente, pela relação essencial com o intelecto de que depende e a que se compara por si. Porém, relativamente a outro intelecto, com o qual se relacione acidentalmente, só se pode chamar falsa relativamente. Ora, as coisas naturais dependem do intelecto divino como as artificiais do humano. E estas chamam-se falsas, absolutamente e em si mesmas, quando lhes falta a forma da arte; e por isso dizemos que um artífice fez obra falsa quando falhou na operação da sua arte. Assim, pois, nas coisas dependentes de Deus, não pode haver falsidade, relativamente ao intelecto divino, porque tudo o que existe, nelas, procede da ordenação desse intelecto. Exceto talvez os agentes voluntários que têm o poder de se subtrair a tal ordenação, nisso consistindo o mal da culpa. E, em tal sentido, os pecados chamam-se na Escritura falsidades e mentiras, segundo aquilo: Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Assim também, e ao contrário, a operação virtuosa se chama verdade da vida, enquanto se subordina à ordem do divino intelecto, conforme a Escritura: Aquele que obra a verdade chega-se para a luz. Mas, relativamente ao nosso intelecto, com o qual as coisas naturais têm relação acidental, podem chamar-se falsas, não simples mas relativamente, e isto de dois modos. Primeiro, em razão do significado; chamando-se assim, falso nas coisas, ao que é significado ou representado por palavra ou pensamento falso. E deste primeiro modo qualquer coisa pode chamar-se falsa, relativamente ao que nela não existe. Assim, como se dissermos que é falso o diâmetro comensurável, segundo o Filósofo; ou se dissermos, com Agostinho, que um trágico é um falso Heitor. E ao contrário, uma coisa pode chamar-se verdadeira, pelo que lhe convém. Segundo, em razão da causa. E, assim, chama-se falsa a uma coisa que é causa de se formar dela uma opinião falsa. Pois é-nos natural julgar das coisas pela aparência exterior, porque o nosso conhecimento, atingindo primeiramente e em si mesmo os acidentes exteriores, tem a sua origem nos sentidos. Por isso, as coisas que, pelos seus acidentes externos, se assemelham a outras, chamam-se falsas por comparação com estas últimas; assim, o fel é um falso mel e o estanho uma falsa prata. E, deste modo, diz Agostinho: Chamamos falsas às coisas que apreendemos como verossímeis. E o Filósofo diz que se chamam falsas todas as coisas a que é natural mostrarem-se quais não são ou o que não são. E também, deste modo, chama-se falso ao homem amante das opiniões ou locuções falsas. Mas não por poder formá-las, porque, então, também os sapientes e os sábios se chamariam falsos, como diz Aristóteles. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. A realidade, relativamente ao intelecto, chama-se verdadeira, pelo que é; falsa, pelo que não é. Por onde, um verdadeiro ator trágico é um falso Heitor, como diz Agostinho. Assim pois, como há certo não ser, nas coisas existentes, assim também há nelas certa razão de falsidade. RESPOSTA A SEGUNDA. As coisas nos enganam, não por si mesmas, mas por acidente, oferecendo ocasião à falsidade, por terem a semelhança com outras coisas, de que não têm a existência. RESPOSTA A TERCEIRA. Relativamente ao intelecto divino, não se chamam falsas as coisas. Porque, então, seriam absolutamente falsas; mas relativamente ao nosso intelecto, sendo então falsas por acidente. RESPOSTA A QUARTA, EM CONTRARIO. A semelhança ou representação deficiente não induz razão de falsidade, senão quando dá ocasião a falsa opinião: por isso, não é qualquer semelhança que torna falsa uma realidade, mas uma semelhança tal que seja capaz de causar opinião falsa, e isso não a toda pessoa, mas em geral. Art. II — SE HÁ FALSIDADE NOS SENTIDOS. O segundo discute-se assim. — Parece que, nos sentidos, não há falsidade. 1. Pois, diz Agostinho: Se todos os sentidos do corpo indicam o que os afeta, ignoro o que mais se possa exigir deles. Por onde se vê que não somos enganados pelos sentidos; e, portanto, neles não há falsidade. 2. Demais. O Filósofo diz que a falsidade não é própria dos sentidos, mas da fantasia. 3. Demais. — Nas vozes incomplexas não há verdade nem falsidade, mas só nas complexas. Ora, compor e dividir não pertence aos sentidos. Logo, neles não há falsidade. Mas, em contrário, diz Agostinho: Parece que todos os nossos sentidos nos enganam, transviados pela semelhança. SOLUÇÃO. Não há falsidade nos sentidos, senão do mesmo modo pelo qual há verdade. Ora, esta neles não existe, de modo que a conheçam, mas enquanto verdadeiramente apreendem os sensíveis, como dissemos antes. E isso se dá porque eles apreendem as coisas como elas são. Donde o poder haver neles falsidade quando apreendem ou julgam as coisas de maneira diversa do que são. Mas os sentidos apenas podem conhecer as coisas enquanto têm em si a semelhança delas. Ora, a semelhança de uma coisa pode existir nos sentidos de três modos. Primariamente e em si mesma, como, por exemplo: na vista está a semelhança da cor e dos outros sensíveis próprios. Ou, em si mesma, mas não primariamente, como, por exemplo: na vista está a semelhança da figura ou da grandeza e de todos os outros sensíveis comuns. De um terceiro modo, nem primariamente, nem em si, mas por acidente; por exemplo: na vista está a semelhança do homem, não enquanto homem, mas enquanto tal ser colorido é homem. Por onde, relativamente aos sensíveis próprios, os sentidos não têm conhecimento falso, senão por acidente, e em casos excepcionais. Por exemplo, por não ter sido, em virtude de uma indisposição do órgão, convenientemente recebida a forma sensível; assim como outros seres passivos, por causa de indisposição, recebem deficientemente a impressão dos agentes. Donde vem que, pela corrupção da língua enferma, as coisas doces parecem amargas. Porém, quanto aos sensíveis comuns e aos por acidente, mesmo os sentidos bem dispostos podem julgar falsamente, por não se referirem a esses sensíveis direta mas acidental ou consequentemente, porque se referem também a outras coisas. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Para os sentidos, sentir é ser afetado; donde, se se exprimem da maneira pela qual são afetados, não nos enganamos no juízo pelo qual julgamos sentir alguma coisa. Mas, de serem às vezes afetados de maneira diferente da realidade, resulta nos exprimirem a coisa diferentemente do que ela é; e, então, eles nos enganam em relação à coisa; mas não em relação ao sentir, em si mesmo. RESPOSTA A SEGUNDA. Dizemos não ser a falsidade própria aos sentidos, porque não se enganam em relação ao seu objeto próprio. Por isso, outra tradução diz mais claramente que o sentido do sensível próprio não é falso. À fantasia porém atribui-se a falsidade, porque representa a semelhança da coisa, mesmo ausente. Donde, quando alguém toma a semelhança pela realidade mesma, provém de tal apreensão a falsidade: e, por isso, o próprio Filósofo diz que as sombras, as pinturas e os sonhos se dizem falsos, por não existirem as realidades de que têm a semelhança. RESPOSTA A TERCEIRA. A objeção procede, pois não há falsidade nos sentidos, como há no sujeito, que conhece o verdadeiro e o falso. Art. III — SE HÁ FALSIDADE NO INTELECTO. O terceiro discute-se assim. Parece que não há falsidade no intelecto. 1. Pois, diz Agostinho: Todo o que se engana não entende aquilo por onde se enganou. Ora, diz-se que há falsidade num conhecimento quando por ele nos enganamos. Logo, não há falsidade no intelecto. 2. Demais. — O Filósofo diz que o intelecto é sempre reto. Logo, nele não há falsidade. Mas, em contrário, diz Aristóteles: Onde há composição de intelecções há o verdadeiro e o falso. Ora, tal composição existe no intelecto. Logo, nele há o verdadeiro e o falso. SOLUÇÃO. Como as coisas têm o ser pela forma própria, assim a potência cognoscitiva, o conhecimento, pela semelhança da coisa conhecida. Ora, a uma coisa natural não lhe falta o ser, que, pela sua forma, lhe convém, embora possa faltar-lhe algum acidente ou consequente. Assim, a um homem podem-lhe faltar os pés, mas não a essência humana. Assim também à potência cognoscitiva não lhe pode faltar o conhecimento quanto à coisa por cuja semelhança é informada, embora lhe possa faltar algum consequente ou acidente dela. Pois, como dissemos, a vista não se engana relativamente ao seu sensível próprio, mas, sim, aos sensíveis comuns que lhe são consequentes, e aos sensíveis por acidente. Por onde, como o sentido é informado diretamente pela semelhança dos sensíveis próprios, assim também o intelecto, pela semelhança da quididade da coisa. Portanto, quanto à quididade, o intelecto não se engana, como também não se engana um sentido quanto ao seu sensível próprio. Porém, o intelecto pode enganar-se no compor ou dividir, atribuindo à coisa, cuja quididade intelige, algo que dela não resulte ou lhe seja contrário. Pois o intelecto, julgando de tais realidades, comporta-se como os sentidos quando julgam dos sensíveis comuns acidentais; sempre conservada, contudo, a diferença já explicada, quando tratamos da verdade, a saber, que a falsidade pode existir no intelecto, não somente quando é falso o seu conhecimento, mas também porque ele a conhece, assim como conhece a verdade; ao passo que, nos sentidos, a falsidade não existe como conhecida. Como, porém, só pode existir falsidade no intelecto quando ele compõe, também pode ela existir por acidente na operação do intelecto, que conhece a quididade, quando tal conhecimento implica a composição. O que se pode dar de dois modos. De um modo, se o intelecto atribuir a definição de uma coisa a outra; como, por exemplo, se atribuir ao homem a definição do círculo. E, então, a definição de uma coisa é falsa, atribuída a outra. De outro modo, quando compõe entre si partes da definição que não se podem adunar; e, então, a definição não somente é falsa em relação a uma determinada coisa, mas é falsa em si mesma. Por exemplo, se formasse esta definição — animal racional quadrúpede —, o intelecto, que assim definisse, seria falso, porque é falso ao formar esta composição — algum animal racional é quadrúpede. Por isso, o intelecto não pode ser falso, quando conhece as quididades simples; mas, ou é verdadeiro, ou não intelige absolutamente nada. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. A quididade da coisa sendo o objeto próprio do intelecto, dizemos propriamente que inteligimos alguma coisa quando dela julgamos, reduzindo-a à quididade; e tal se dá nas demonstrações em que não há falsidade. E nesse sentido é que se entende a expressão de Agostinho quando diz: Todo o que se engana não entende aquilo por onde se enganou. E não como querendo significar que não nos enganamos em nenhuma operação do intelecto. RESPOSTA A SEGUNDA. O intelecto dos princípios é sempre reto, pois sobre eles não se engana, pela mesma razão por que não se engana sobre a quididade. Pois princípios evidentes são os que se conhecem logo que se lhes conheçam os termos, porque o predicado está incluído na definição do sujeito. Art. IV — SE o VERDADEIRO E O FALSO SÃO CONTRÁRIOS. O quarto discute-se assim. — Parece que o verdadeiro e o falso não são contrários. 1. Pois o verdadeiro e o falso opõem-se como o que é ao que não é; porque a verdade é o que é, como diz Agostinho. Ora, o que é e o que não é não se opõem como contrários. Logo, O verdadeiro e o falso não são contrários. 2. Demais. Um dos contrários não existe no outro. Ora, o falso existe no verdadeiro, pois, como diz Agostinho, um trágico não seria um falso Heitor, se não fosse um verdadeiro trágico. Logo, o verdadeiro e o falso não são contrários. 3. Demais. Em Deus não há nenhuma contrariedade. Pois, diz Agostinho, nada é contrário à substância divina. Ora, Deus se opõe à falsidade; pois a Escritura chama ao ídolo mentira: Tem abraçado a mentira, isto é, os ídolos, diz a Glosa. Logo, o verdadeiro e o falso não são contrários. Mas, em contrário, o Filósofo considera a falsa opinião contrária à verdadeira. SOLUÇÃO. O verdadeiro e o falso opõem-se como contrários e não como a afirmação e a negação, consoante disseram alguns. Para evidenciá-lo devemos considerar que a negação não acrescenta nada, nem determina sujeito algum e, por isso, pode predicar-se tanto do ser como do não ser, ex., não vendo e não sentando. A privação, porém, não acrescenta nada, mas determina o seu sujeito. Pois a negação está no sujeito, diz Aristóteles; assim, cego só se chama àquele a que é natural ver. O contrário, porém, acrescenta alguma coisa e determina o sujeito; o negro, por exemplo, é uma espécie de cor. A falsidade acrescenta alguma coisa. Pois consiste, como diz o Filósofo, em afirmar ou parecer que é alguma coisa que não é, ou que não é o que é. Assim, pois, como a verdade estabelece a acepção adequada à coisa, a falsidade, a que não é adequada. Logo, é manifesto que a verdade e a falsidade são contrárias. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. O que é na realidade, é a verdade das coisas; mas o que é, como apreendido, é a verdade do intelecto, no qual reside a verdade primariamente. Donde, o falso é aquilo que não existe como apreendido. Ora, apreender o ser é contrário a apreender o não ser; pois, como prova o Filósofo, à opinião — o bem é o bem — é contrária à outra — o bem não é o bem. RESPOSTA A SEGUNDA. O falso não se funda no verdadeiro, que lhe é contrário, do mesmo modo que o mal não se funda no bem contrário; mas no que lhes é sujeito. E isto se dá tanto com a verdade como com a bondade, porque a verdade e o bem são comuns e convertem-se no ser. Por onde, assim como toda privação se funda num sujeito, que é o ser, assim todo mal se funda nalgum bem, e toda falsidade nalguma verdade. RESPOSTA A TERCEIRA. Os contrários e os opostos, privativamente, é natural fundarem-se num mesmo sujeito; por isso, em Deus, em si mesmo considerado, não há nenhuma contrariedade, nem em razão da sua bondade, nem da sua verdade, porque no seu intelecto não pode existir nenhuma falsidade. Mas, relativamente à apreensão nossa, há nele contrariedade, pois, à verdadeira opinião, a respeito de Deus, se opõe a falsa. E assim os ídolos se chamam mentiras, opostas à verdade divina, porque a falsa opinião sobre eles contraria a verdadeira, sobre a unidade de Deus. QUESTÃO XXXI. Da unidade e da pluralidade em Deus. Em seguida devemos tratar da unidade e da pluralidade em Deus. E nesta questão discutem-se quatro artigos: 1.° - do nome de Trindade; 2.° - se se pode dizer: O Filho é diferente do Pai; 3.° - se a locução exclusiva da diferença pode acrescentar-se, em Deus, ao nome essencial; 4.° - se pode acrescentar-se ao termo pessoal. Art. I — SE EM DEUS HA TRINDADE. O primeiro discute-se assim. Parece que não há Trindade em Deus. 1. Pois todo nome divino significa substância ou relação. Ora, o nome de Trindade não significa substância, porque então se predicaria de cada uma das pessoas; nem relação, porque não é empregado como referente a outro. Logo, não se deve aplicar a Deus o nome de Trindade. 2. Demais. O nome de Trindade, significando multidão, é coletivo e portanto não convém a Deus, porque a unidade expressa pelo nome coletivo é mínima, ao passo que a de Deus é máxima. Logo, o nome de Trindade não convém a Deus. 3. Demais. Todo trino é tríplice. Ora, a triplicidade, sendo uma espécie de desigualdade, não existe em Deus. Logo, nem a Trindade. 4. Demais. Sendo Deus a sua essência, tudo o que nele existe está na unidade da sua essência. Ora, se em Deus há Trindade, esta existirá na unidade da sua essência. Logo, haverá nele três unidades essenciais, o que é herético. 5. Demais. Em tudo o que se diz de Deus, o concreto é predicado do abstrato; assim a deidade é Deus e a paternidade é o Pai. Ora, à Trindade se não pode chamar trina, porque então haveria nove realidades em Deus, o que é errôneo. Logo, não se deve aplicar o nome de Trindade a Deus. Mas, em contrário, diz Atanásio: Devemos venerar a Unidade na Trindade e a Trindade na Unidade. SOLUÇÃO. O nome de Trindade em Deus significa um determinado número de pessoas. Pois, assim como pomos a pluralidade de pessoas em Deus, assim também devemos usar do nome de Trindade; porquanto o mesmo que a pluralidade significa indeterminadamente, determinadamente o significa o nome de Trindade. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. O nome de Trindade, segundo a etimologia do vocábulo, significa a essência una de três pessoas; e é como se disséssemos unidade de três. Mas na sua expressão própria esse vocábulo significa antes o número das pessoas de uma mesma essência. Por isso não podemos dizer que o Pai seja Trindade, pois não é três pessoas. Porque o vocábulo não significa as relações mesmas das pessoas, mas antes o número delas, nas suas relações mútuas. E daí vem que este, pela sua denominação, não é um termo que exprima relação. RESPOSTA A SEGUNDA. Duas coisas implica o nome coletivo: a pluralidade dos supostos e certa unidade, a saber, a de uma determinada ordem. Assim, o povo é uma multidão de homens compreendidos numa mesma ordem. Ora, quanto à primeira, o nome de Trindade convém com os nomes coletivos; mas, quanto à segunda, deles difere; pois na divina Trindade não somente há unidade de ordem, mas com esta vai também a de essência. RESPOSTA A TERCEIRA. Trindade se emprega em sentido absoluto, pois significa o número ternário das pessoas. Ao passo que a triplicidade significa proporção de desigualdade; pois é uma espécie de proporção desigual, como está claro em Boécio. Logo, não há em Deus triplicidade, mas Trindade. RESPOSTA A QUARTA. Pela Trindade divina se entendem o número e as pessoas enumeradas. Assim, quando falamos da Trindade na unidade, não introduzimos o número na unidade da essência, como se esta fosse três vezes uma; mas as pessoas enumeradas na unidade da natureza, assim como dizemos que os supostos de uma natureza nela existem. E, inversamente, dizemos que há unidade na Trindade, como dizemos que a natureza está nos seus supostos. RESPOSTA A QUINTA. Quando dizemos — A Trindade é trina —, com a ideia de número, que aí introduzimos, exprimimos a multiplicidade do mesmo número, em si mesmo; pois o que chamamos trino importa distinção nos supostos do ser do qual o predicamos. Portanto, não podemos dizer que a Trindade é trina; pois seguir-se-ia, de ser trina a Trindade, que três seriam os seus supostos; assim como, de dizer-se que Deus é trino, resulta serem três os supostos da divindade. Art. II — SE o FILHO E OUTRO QUE NÃO O PAI. O segundo discute-se assim. — Parece não é o Filho outro que não o Pai. 1. Pois outro implica relação de diversidade substancial. Se, portanto, o Filho é outro que não o Pai, resulta que é deste diverso, o que vai contra Agostinho quando afirma que, dizendo três pessoas, não queremos nisso compreender a diversidade. 2. Demais. Todos os seres entre si outros, de algum modo entre si diferem. Se pois o Filho é outro que não o Pai, resulta que é deste diferente; o que vai contra Ambrósio, dizendo: O Pai e o Filho são unos pela divindade; nem há entre eles diferença de substância ou qualquer outra diversidade. 3. Demais. De ser outro deriva o ser alheio. Ora, o Filho não é alheio ao Pai; pois Hilário diz que nas pessoas divinas nada é diverso, nada alheio, nada separável. Logo, o Filho não é outro que não o Pai. 4. Demais. Outro e outra coisa significam o mesmo e só diferem pela significação genérica. Ora, se o Filho é outro que não o Pai, resulta que o primeiro é outra coisa, diferente do Pai. Mas, em contrário, diz Agostinho: Una é a essência do Pai, do Filho e do Espírito Santo, na qual não é uma coisa o Pai, outra, o Filho e a outra, o Espírito Santo, embora pessoalmente seja um o Pai, outro, o Filho, outro, o Espírito Santo. SOLUÇÃO. Pois que se incorre em heresia proferindo palavras desordenadas, como diz Jerônimo, por isso, quando se fala da Trindade, é necessário proceder com cautela e modéstia. Porque, como diz Agostinho, em nenhum assunto mais perigosamente se erra, em nenhum a perquirição ê mais laboriosa e a descoberta mais frutuosa. Importa por isso, ao tratarmos da Trindade, evitar dois erros opostos, prudentemente caminhando entre um e outro. Tais são o erro de Ario, ensinando a Trindade das substâncias com a das pessoas; e o de Sabélio, ensinando a unidade de pessoa com a de essência. Por onde, para escapar ao erro de Ario, devemos evitar aplicar a Deus os nomes de diversidade e diferença, para não o privarmos da unidade de essência. Podemos, porém, usar da palavra distinção, por causa da oposição relativa. E assim, quando em qualquer escritura autêntica encontramos a diversidade ou diferença de pessoas, diversidade ou diferença significam distinção. E, para não destruirmos a simplicidade da divina essência, devemos evitar os nomes de separação e divisão, que é a do todo em suas partes. Para não destruirmos a igualdade, devemos evitar o nome de disparidade. Para não eliminarmos a semelhança, devemos evitar as palavras alheio e discrepante; assim, diz Ambrósio que no Pai e no Filho não há discrepância, mas a divindade una; e segundo Hilário, como se disse, em Deus nada é alheio, nada separável. Por outro lado, para evitarmos o erro de Sabélio, devemos evitar a palavra singularidade a fim de não tolhermos a comunicabilidade à essência divina; por isso diz Hilário: E sacrilégio ensinar que o Pai e o Filho são cada qual um Deus. Devemos também evitar a expressão único para não tolhermos o número das pessoas; donde, o dito de Hilário, no mesmo livro, que de Deus se excluem os conceitos de singular e de único. Dizemos contudo único Filho, por não haver vários filhos em Deus; não dizemos, porém, único Deus, por ser a divindade comum a todas as pessoas. Também devemos evitar a palavra confuso, para não tolhermos às pessoas a ordem de natureza; donde o dizer de Ambrósio: Nem é confuso o que é uno, nem pode ser múltiplo o que não é diferente. Enfim, devemos evitar o nome de solitário para não tolhermos o consórcio das três pessoas; assim, Hilário diz: Não devemos ensinar que Deus é solitário nem diverso. Ora, a palavra outro, no masculino, só importa distinção de suposto. Por isso, podemos com conveniência dizer que o Filho ê outro que não o Pai, por ser outro suposto da natureza divina, como é outra pessoa e outra hipóstase. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Outro, sendo um nome particular, diz respeito ao suposto, e por isso satisfaz-lhe a noção da distinção de substância, que é a hipóstase ou a pessoa. Mas a diversidade exige a distinção substancial da essência. E, portanto, não podemos dizer que o Filho seja diverso do Pai, embora seja outro. RESPOSTA A SEGUNDA. Diferença importa distinção formal. Ora, em Deus há uma só forma, como se lê na Escritura: O qual, tendo a natureza de Deus. Por onde, não convém propriamente a Deus o nome de diferença, como é claro pela autoridade aduzida. Contudo, Damasceno usa do nome de diferença, tratando das pessoas divinas, no sentido em que a propriedade relativa é significada a modo de forma; e daí o dizer ele que não diferem entre si as hipóstases pela substância, mas pelas propriedades determinadas. Ao passo que a diferença é tomada no sentido de distinção, como se disse. RESPOSTA A TERCEIRA. Alheio é o estranho e dessemelhante. Ora, tal não dizemos quando empregamos a palavra outro. E, assim, dizemos que o Filho é outro que não o Pai, embora não digamos que seja alheio. RESPOSTA A QUARTA. O gênero neutro é uniforme, ao passo que o masculino e o feminino são formados e distintos. E, por isso, pelo gênero neutro convenientemente exprimimos a essência comum; mas, pelo masculino e pelo feminino, um suposto determinado em a natureza comum. Por isso, quando se trata do homem, à pergunta — Quem é este? — responde-se — Sócrates — que é o nome do suposto. Mas, à pergunta — Que coisa é este? — responde-se — animal racional e mortal. Por onde, em Deus a distinção, sendo pessoal e não essencial, dizemos que o Pai é outro que não o Filho, não, porém, outra coisa; e, ao inverso, dizemos que são um, não, porém, uno. Art. III — SE A LOCUÇÃO EXCLUSIVA, SÓ - DEVE-SE ACRESCENTAR AO TERMO ESSENCIAL, EM DEUS. O terceiro discute-se assim. — Parece que não devemos acrescentar, ao termo essencial em Deus, a locução exclusiva só. 1. — Pois, segundo o Filósofo, só é quem não está com outro. Ora, Deus está com os anjos e as almas santas. Logo, não podemos dizer que Deus está só. 2. Demais. — Tudo o que se acrescentar ao termo essencial, em Deus, pode ser predicado de qualquer das pessoas, em si, e de todas simultaneamente. Assim, podemos dizer com conveniência que Deus é sábio; podemos dizer — o Pai é Deus sábio, e a Trindade é Deus sábio. Ora, Agostinho escreve: Devemos examinar a opinião que ensina não ser só o Pai o verdadeiro Deus. Logo não se pode dizer — só Deus. 3. Demais. — A locução só, acrescentada ao termo essencial, constituirá uma predicação pessoal ou uma predicação essencial. Ora, pessoal não pode ser; porque a proposição só Deus é Pai é falsa, pois também o homem pode sê-lo. Nem essencial, porque, se fosse verdadeira a proposição — Só Deus cria —, sê-lo-ia também esta outra — Só o Pai cria —, porque tudo o que é dito de Deus pode sê-lo do Pai. Ora, esta última proposição é falsa, porque também o Filho é criador. Logo, a locução só não se pode acrescentar ao termo essencial, em Deus. Mas, em contrário, a Escritura: Ao Rei dos séculos imortal, invisível, a Deus só. Esta locução só pode ser tomada como categoremática ou sincategoremática. Categoremática é a locução que atribui de modo absoluto uma realidade a um suposto, como branco, ao homem, quando dizemos homem branco. Donde, se neste sentido tomássemos a locução só, de nenhum modo poderia ser acrescentada a qualquer termo, em Deus; porque afirmaria a soledade relativamente ao termo ao qual se acrescentasse; donde resultaria ser Deus solitário, o que vai contra o que dissemos. Porém, sincategoremática é a locução que implica uma ordenação do predicado para o sujeito como a locução todo ou nenhum. E semelhantemente a locução só, porque exclui qualquer outro suposto, da união com o predicado. Assim, quando dizemos — Sócrates só escreve — não queremos com isso significar que Sócrates seja solitário, mas que ninguém participa com ele do ato de escrever, embora muitos coexistam com ele. E deste modo nada impede se acrescente a locução só a algum termo essencial em Deus, excluindo-se todos os outros seres de uma união predicativa com Deus; como se disséssemos — só Deus é eterno; pois nada fora dele o é. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. Embora os anjos e as almas santas estejam sempre com Deus, todavia, se nele não houvesse pluralidade de pessoas, estaria só ou solitário. Pois não exclui a solidão o estar associado com um ser de natureza diversa; assim dizemos que alguém está só num jardim embora nele haja muitas plantas e animais. E, de idêntica maneira, Deus estaria só e solitário, embora estando com ele anjos e homens, se não existissem várias pessoas divinas. Logo, a sociedade com os anjos e as almas não exclui de Deus a solidão absoluta, e muito menos a relativa, referente a um atributo. RESPOSTA A SEGUNDA. A locução só, propriamente falando, não se emprega em relação ao predicado, que é tomado formalmente; pois diz respeito ao suposto, por excluir este, ao qual se une, outro suposto. Mas o advérbio somente, sendo exclusivo, pode ser empregado em relação ao sujeito e ao predicado, e assim podemos dizer — somente Sócrates corre, isto é, nenhum outro; e — Sócrates corre somente, isto é, nada mais faz. Por onde, não se pode propriamente dizer — o Pai só é Deus, ou — a Trindade só é Deus; a menos que em relação ao predicado não se subentenda alguma particularidade, como no dizer a Trindade é o Deus que só é Deus. Ora, quando Agostinho diz que não só o Pai é Deus, mas só a Trindade o é, exprime-se expositivamente como se afirmasse: quando se diz — Ao rei dos séculos invisível, a Deus só —, esse dito não se aplica à pessoa do Pai, mas só à Trindade. RESPOSTA A TERCEIRA. De outro modo a locução só pode se acrescentar ao termo essencial; pois duplo é o sentido da proposição — só Deus é Pai. — Porque a palavra — Pai — pode ser predicada da pessoa do Pai, e então a proposição é verdadeira, pois tal pessoa não é homem. Ou pode significar a relação somente, e então é falsa, pois a relação de paternidade também se encontra em outros seres, embora não univocamente. Do mesmo modo, é verdadeira a proposição — só Deus cria —, mas dela se não segue — logo, só o Pai; porque, como dizem os lógicos, a locução exclusiva imobiliza o termo ao qual se une, de modo a se não poder descer abaixo dele, para nenhum suposto. Assim, não há sequência nestas duas proposições: Só o homem é um animal racional mortal; logo, só Sócrates. Art. IV — SE A LOCUÇÃO EXCLUSIVA PODE SER UNIDA AO TERMO PESSOAL, MESMO SE O PREDICADO FOR COMUM. O quarto discute-se assim. — Parece que a locução exclusiva pode se unir ao termo pessoal, mesmo se o predicado for comum. 1. Pois, diz o Senhor, falando ao Pai: Para que te conheçam por um só verdadeiro Deus a ti. Logo, só o Pai é Deus verdadeiro. 2. Demais. Diz a Escritura: Ninguém conheceu o Filho senão o Pai, o que é como se dissesse: Só o Pai conheceu o Filho. Ora, ter conhecido o Filho é comum. Donde se conclui o mesmo que antes. 3. Demais. A locução exclusiva não exclui aquilo que pertence à noção do termo ao qual se une; e, portanto, não lhe exclui a parte nem o todo. Assim, não há sequência nestas proposições: Sócrates só é branco; logo, a sua mão não é branca; ou logo, o homem não é branco. Ora, uma pessoa está compreendida na noção de outra, como o Pai na do Filho, e reciprocamente. Portanto, o dizer-se que só o Pai é Deus não exclui o Filho ou o Espírito Santo. Donde se conclui que essa locução é verdadeira. 4. Demais. Canta a Igreja: Tu só és altíssimo, Jesus Cristo. Mas, em contrário. — A locução — Só o Pai é Deus — comporta duas interpretações, a saber: o Pai é Deus — e — Nenhum outro senão o Pai é Deus. Ora, esta última é falsa, pois o Filho é outro que não o Pai e é Deus; logo, também esta outra é falsa: Só o Pai é Deus. E assim em casos semelhantes. SOLUÇÃO. Quando dizemos — Só o Pai é Deus — esta proposição pode ter sentido múltiplo. Assim, significando só a soledade em relação ao Pai, é falsa, pois é tomada em sentido categoremático. Mas, se for tomada em sentido sincategoremático, de novo pode ter sentido múltiplo. Se implicar alguma exclusão da forma do sujeito, então é verdadeira e o sentido de — só o Pai é Deus — é: Aquele com o qual nenhum outro é Pai, é Deus. E neste sentido expõe Agostinho: Dizemos que o Pai é só, não que esteja separado do Filho ou do Espírito Santo; mas, assim dizendo, queremos significar que, existindo simultaneamente com ele, não são o Pai. Mas este sentido não resulta do modo habitual de falar, sem se subentender alguma outra proposição como esta: Aquele que só é chamado Pai, é Deus. Pois, no seu sentido próprio, a locução exclusiva repele qualquer união com o predicado. Assim que a proposição é falsa se exclui outro, no masculino; é, porém, verdadeira se exclui somente outra coisa, no neutro; pois o Filho é outro que não o Pai, não porém outra coisa; e semelhantemente o Espírito Santo. Mas a locução só, dizendo respeito propriamente ao sujeito, como vimos, mais se emprega para excluir outro que outra coisa. Por onde, tal locução não a devemos aplicar extensivamente, mas explicá-la como for encontrada em escritura autêntica. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. O dito — um só verdadeiro Deus a ti — não se entende da pessoa do Pai, mas de toda a Trindade, como expõe Agostinho. Ou se se entender da pessoa do Pai, não se excluem as outras pessoas por causa da unidade de essência; pois, só exclui apenas outra coisa, como dissemos. E SEMELHANTE é A RESPOSTA A SEGUNDA. Pois, quando dizemos do Pai algo de essencial, não excluímos o Filho ou o Espírito Santo, por causa da unidade de essência. Por onde devemos saber que, no lugar citado, a expressão ninguém não é, conforme a significação desse vocábulo, o mesmo que nenhum homem, pois não poderíamos excetuar a pessoa do Pai. Mas essa palavra é tomada no sentido usual, distributivamente, para significar qualquer natureza racional. RESPOSTA A TERCEIRA. A locução exclusiva não exclui o que pertence à noção do termo ao qual está unida, se não diferem pelo suposto, como a parte e o todo. Ora, o Filho difere do Pai, pelo suposto; e, portanto, a razão não é a mesma. RESPOSTA A QUARTA. Não dizemos, em sentido absoluto, que só o Filho seja altíssimo; mas que só é altíssimo com o Espírito Santo, na glória de Deus Pai.