Tomás de Aquino – Questões Discutidas Sobre a Verdade ARTIGO PRIMEIRO Que é a verdade? I — TESE: PARECERIA QUE O VERDADEIRO É EXATAMENTE O MESMO QUE O ENTE. 1. Diz Agostinho no livro dos Solilóquios que "o verdadeiro é aquilo que é". Ora, aquilo que é, outra coisa não é senão o ente. Logo, o verdadeiro é exatamente a mesma coisa que o ente. 2. Todavia, objetar-se-á que o verdadeiro e o ente se equivalem, sim, segundo os supostos, diversificando-se, porém, segundo o conceito. A isto se responderá: o conceito de cada coisa é aquilo que é significado ou expresso pela sua definição. Ora, aquilo que é, é designado por Agostinho (na passagem citada) como a definição do verdadeiro, depois de rejeitadas algumas outras definições. Logo, visto que tanto o verdadeiro como o ente concordam no fato de serem ambos "aquilo que é", parece que ambos se identificam no conceito. 3. Além disso, todas as coisas que se diferenciam pelo conceito estão uma para a outra de tal modo, que uma delas se pode compreender sem a outra. Daí que Boécio, no livro Sobre as Semanas, afirma que se pode compreender que Deus é ou existe, mesmo que a inteligência separe d'Ele a sua bondade. Ora, o ente de forma alguma pode ser compreendido, se dele se separar o verdadeiro, visto que o ente se compreende como ente pelo fato de ser verdadeiro. Logo, o verdadeiro e o ente não se diferenciam quanto ao conceito. 4. Além disso, se o verdadeiro não for a mesma coisa que o ente, necessariamente será uma disposição do ente. Ora, o verdadeiro não pode ser uma disposição do ente. Não é uma disposição que corrompe totalmente o ente, pois do contrário seguiria o seguinte: é verdadeiro, logo é um não ente, da mesma forma como se impõe a conclusão: este homem está morto, logo não é mais um homem. Tampouco o verdadeiro é uma disposição que diminua o ente ou tire algo dele, pois do contrário não seguiria o seguinte: é verdadeiro, logo é ente, da mesma forma como não procede dizer: os dentes dele são brancos, logo ele é branco. Tampouco o verdadeiro é uma disposição que limite ou especifique o ente, pois, se o fora, o verdadeiro não seria conversível com o ente. Por conseguinte, o verdadeiro e o ente são exatamente a mesma coisa. 5. Além disso, aquelas coisas cuja disposição é a mesma se equivalem. Ora, o verdadeiro e o ente têm a mesma disposição. Logo, são a mesma coisa. Com efeito, afirma-se no livro II da Metafísica: "A disposição de uma coisa no ser é como a sua disposição na verdade". Logo, o verdadeiro e o ente se equivalem completamente. 6. Além disso, todas as coisas que não se equivalem, diferem entre si de alguma forma. Ora, o verdadeiro e o ente não diferem entre si de maneira alguma. Não diferem pela essência, visto que o ente, pela sua própria natureza, é verdadeiro. Tampouco se diversificam em virtude de outras diferenças, pois teriam que concordar em algum gênero. Logo, o verdadeiro e o ente se equivalem totalmente. 7. Além disso, se o verdadeiro e o ente não fossem exatamente a mesma coisa, necessariamente o verdadeiro acrescentaria alguma coisa ao ente. Isto é evidenciado pelo Filósofo (Aristóteles), que no livro IV da Metafísica afirma: "Ao definirmos o verdadeiro, dizemos ser ele aquilo que é; ou, então, não ser ele aquilo que não é". Portanto, o verdadeiro inclui tanto o ente como o não ente. Logo, o verdadeiro nada acrescenta ao ente, e consequentemente parece identificar-se totalmente com ele. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE O VERDADEIRO NÃO E A MESMA COISA QUE ENTE. 1. A tautologia é uma repetição inútil. Ora, se o verdadeiro fosse a mesma coisa que o ente, seria uma tautologia, porquanto se afirma que "um ente é verdadeiro". Ora, é falso dizer que tal afirmação constitui uma tautologia. Logo, o verdadeiro e o ente não exprimem exatamente a mesma coisa. 2. Além disso, o ente e o bom são conversíveis. Ora, o verdadeiro não é conversível com o bom, visto que uma coisa pode ser verdadeira sem ser boa; por exemplo, o fato expresso nesta proposição: este homem está fornicando. Logo, tampouco o verdadeiro é conversível com o ente. 3. Além disso, Boécio afirma no livro Sobre as Semanas: "Em todas as criaturas, o ser (esse) difere daquilo que é (quod est) ". Ora, o verdadeiro segue o ser das coisas. Logo, o verdadeiro se diferencia, nas criaturas, daquilo que é. Ora, aquilo que é, equivale ao ente. Em consequência, o verdadeiro, nos seres criados, se diferencia do ente. 4. Além disso, todas as coisas que estão uma para a outra da mesma forma que a anterior está para a posterior necessariamente se diferenciam entre si. Ora, com o verdadeiro e o ente é isto que ocorre, porquanto, segundo se lê no livro Sobre as Causas, a primeira das coisas criadas é o ser. E o Comentador, ao glosar o referido livro, diz: "Tudo o que se afirmar para além do ente são predicados ou informações que se adicionam ao ente" e, por conseguinte, lhe são posteriores. Logo, o verdadeiro e o ente se diferenciam um do outro. 5. Além disso, as coisas que se predicam em comum da causa e dos efeitos, identificam-se entre si mais na causa do que nos efeitos, e, sobretudo, identificam-se mais ao serem predicadas de Deus do que ao serem predicadas dos seres criados. Ora, em Deus os quatro elementos, a saber, o ente, o uno, o verdadeiro e o bom, se apropriam ou predicam da forma seguinte: o ente pertence à essência, o uno à pessoa do Pai, o verdadeiro à pessoa do Filho, o bom à pessoa do Espírito Santo. Ora, as pessoas divinas não se diferenciam apenas logicamente, mas realmente, e por conseguinte uma não pode ser predicada da outra. Logo, com muito maior razão se deve dizer que os quatro conceitos mencionados não podem distinguir-se apenas logicamente. III — RESPOSTA À QUESTÃO ENUNCIADA. Assim como nas demonstrações é necessário operar uma redução a certo número de princípios evidentes à inteligência, o mesmo ocorre ao investigarmos o que é uma determinada coisa. Do contrário se chegaria, tanto em um caso como em outro, ao infinito, o que tornaria totalmente impossíveis a ciência e o conhecimento das coisas. Ora, a primeira coisa que a inteligência concebe como a mais conhecida, e à qual se reduz tudo, é o ente, conforme afirma Avicena no início da sua Metafísica. Daí que necessariamente todos os outros conceitos da inteligência se obtêm por adjunção ao ente. Ora, ao ente não se pode acrescentar algo à maneira de uma natureza estranha, assim como, por exemplo, a diferença específica se acrescenta ao gênero, ou o acidente ao sujeito, uma vez que toda natureza é essencialmente um ente. Razão pela qual o Filósofo demonstra que o ente não pode ser um gênero e que só se pode afirmar que certas coisas são passíveis de ser acrescentadas ao ser, no sentido de que exprimem um determinado modo do mesmo, modo que não está expresso no próprio termo ente. A adjunção ao ente pode ocorrer de duas maneiras. A primeira se dá quando o modo expresso constitui certo modo especial do ente, pois há graus diferentes do ente, e de acordo com eles existem gêneros diversos de coisas. Pois a substância não acrescenta ao ser qualquer diferença que pudesse significar alguma natureza somada ao ente. O termo substância designa antes certo modo peculiar do ente, isto é, o que é em virtude de si mesmo. O mesmo acontece com os outros gêneros. A segunda maneira de adjunção ao ente ocorre quando o modo expresso compete a cada ser de maneira geral. Este modo pode ser compreendido de duas maneiras: primeiro, enquanto ele convém a todo ente considerado em si mesmo; segundo, enquanto convém a todo ente em relação a outro. No primeiro caso, isto significa que o modo exprime no ente algo de maneira afirmativa ou negativa. Ora, não existe nenhuma afirmação positiva e absoluta que se possa atribuir a cada ente, a não ser a sua própria essência, em virtude da qual se denomina ente. Assim é que se dá o nome de coisa, a qual se diferencia do ente, conforme ensina Avicena no início da Metafísica, pelo fato de que o ente deriva da atualidade do ser, ao passo que o termo coisa exprime a "quididade" (quidditas) ou "entidade" do ente. A negação, porém, que convém de maneira absoluta a todo ente é a indivisão. Esta se exprime pelo termo "uno", visto que o uno outra coisa não é senão um ente indiviso. Se, contudo, o modo do ente for entendido no segundo sentido, isto é, segundo a relação de uma coisa à outra, isto pode ocorrer de dois modos. Primeiro, conforme a divisão ou distinção de uma coisa da outra: é o que se expressa no termo "algo", que etimologicamente significa mais ou menos "outra coisa" (aliud quid). Por conseguinte, assim como o ente se diz uno, enquanto é em si mesmo indiviso, da mesma forma se denomina algo, enquanto se distingue de outros. A outra maneira é segundo a concordância de um ente com o outro. E isto só é possível se se considera alguma coisa apta a concordar com todo e qualquer ente. Tal é a alma, que em certo sentido é tudo, conforme se afirma na obra Sobre a Alma. A alma é dotada de uma faculdade cognoscitiva e outra tendencial (appetitiva), sendo que a concordância do ente com a faculdade tendencial se exprime com o termo "o bem" (bonum), conforme está dito no livro da Ética: "O bem é aquilo a que tendem todas as coisas". Em contrapartida, a concordância do ente com a inteligência (faculdade cognoscitiva) está expressa no termo "verdadeiro". Com efeito, toda cognição se efetua mediante uma assemelhação do sujeito que conhece com a coisa conhecida, de tal maneira que a assemelhação foi denominada causa da cognição, assim como a visão apreende a cor pelo fato de tornar-se capaz disto pela imagem da respectiva cor. Em consequência, a primeira relação do ente com o intelecto consiste no fato de aquele corresponder a este, correspondência que se denomina assemelhação ou concordância entre o objeto e a inteligência, sendo nisto que se concretiza formalmente o conceito de verdade. Por conseguinte, o que o verdadeiro acrescenta ao ente é a concordância ou assemelhação entre a coisa e a inteligência, concordância da qual deriva a cognição da coisa, como ficou explanado. Assim, pois, a entidade da coisa antecede a esfera da verdade, ao passo que a cognição constitui certo efeito da verdade. Conforme quanto expusemos, existe uma tríplice divisão da verdade e do verdadeiro. A primeira tem como critério aquilo que antecede a verdade e no qual se fundamenta o verdadeiro. É assim que Agostinho define: "O verdadeiro é aquilo que é"; e Avicena: "A verdade de cada coisa é aquela propriedade do seu ser que foi estabelecida para ela". Outros há que assim definem: "O verdadeiro é a indivisão do ente e daquilo que é". A segunda definição baseia-se naquilo que constitui formalmente o conceito de verdadeiro. Assim diz Isaque: "A verdade consiste na assemelhação da coisa com a inteligência", enquanto que Anselmo oferece a seguinte definição: "A verdade consiste na retidão, perceptível exclusivamente ao espírito". Com efeito, é desta retidão que se fala no sentido de certa assemelhação, conforme diz o Filósofo, que dizemos na definição do verdadeiro, que é aquilo que é, ou que não é aquilo que não é. A terceira definição da verdade e do verdadeiro baseia-se no efeito que segue. Nesta linha Hilário afirma: "O verdadeiro é o ente que se revela e se explica". E Agostinho: "A verdade é aquilo através do qual se revela aquilo que é". Ou então, na mesma obra: "A verdade é o critério pelo qual julgamos o que é terrestre". IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. Com a citada definição Agostinho quer definir o verdadeiro como sendo aquilo que tem fundamento na realidade, sem querer negar que o verdadeiro se define pela conformidade entre a coisa e o intelecto. Em outros termos, dir-se-á que, ao afirmar que "o verdadeiro é aquilo que é", o verdadeiro não se entende aqui enquanto significa o ato de ser, mas enquanto é a designação do intelecto composto, ou seja, enquanto significa a simples afirmação da proposição, de forma que o sentido é: o verdadeiro é aquilo que é, ou seja, predicando-se o ente de alguma coisa que é. Destarte, a definição de Agostinho coincide praticamente com a definição acima citada do Filósofo. 2. A resposta se deduz do que já foi explanado. 3. A afirmação de que uma coisa pode ser entendida sem a outra pode ser compreendida de duas maneiras. Primeiro, no sentido de que se compreende uma coisa, sem compreender a outra. É o que acontece com as coisas que se diferenciam apenas pela razão: uma coisa pode ser compreendida sem a outra. No segundo sentido, o conhecimento de uma coisa sem o conhecimento da outra se entende de tal modo, que uma é conhecida sem que a outra exista. Neste segundo o ente não pode ser conhecido sem o verdadeiro, pois o ente não pode ser conhecido se não corresponder à inteligência ou com ela não concordar. Isto não significa que quem conhece o ente conhece necessariamente também o verdadeiro, assim como nem todo aquele que conhece o ente conhece automaticamente o intelecto operante, e todavia permanece de pé que sem o intelecto agente o homem nada pode conhecer. 4. O verdadeiro é uma disposição do ente, não no sentido de acrescentar-lhe alguma natureza, nem no sentido de exprimir alguma modalidade especial do ente, mas enquanto constitui algo que se encontra no ente de maneira geral, e no entanto não é explicitado pelo termo ente. Logo, não é necessário que se trate de uma disposição que corrompe o ente, ou que tire algo dele, ou que o limite. 5. Disposição não se entende aqui no sentido de qualidade, mas enquanto implica certa ordem. Uma vez que o ente no sentido mais perfeito é aquilo que constitui causa do ser de outros, e o verdadeiro no sentido mais perfeito é aquilo que constitui causa da verdade de outros, conclui o Filósofo que a ordem de uma coisa no ser é a mesma que a ordem desta coisa quanto à verdade. Isto no sentido de que, lá onde se encontra o ser na sua maior plenitude, ali também está o verdadeiro na acepção mais plena do termo. Tal acontece, não porque o ente e o verdadeiro constituam em seus conceitos a mesma coisa, mas porque, se alguma coisa tem a capacidade de assemelhar-se à inteligência ou de concordar com ela, isto acontece na medida em que participa do ente. Consequentemente, o conceito de verdadeiro segue o conceito de ente, sendo logicamente posterior a ele. 6. O ente e o verdadeiro distinguem-se também pelo fato de o conceito de verdadeiro poder encerrar algo que não se contém no de ente, embora o conceito de verdadeiro contenha tudo o que se encerra no de ente. O ente e o verdadeiro não se diferenciam nem pela essência nem por diferenças opostas. 7. O verdadeiro nada acrescenta ao ente, pois o ente, compreendido de certa maneira, se predica do não ente, isto é, enquanto o não ente é apreendido pela inteligência. Daí que, no livro IV da Metafísica, o Filósofo afirma que tanto a negação como a privação do ente se denominam entes. Também Avicena diz, no início da Metafísica, que não se pode fazer uma enunciação a não ser do ente, visto que, necessariamente, aquilo acerca de que se faz alguma proposição deve ser apreendido pelo intelecto. Donde se infere que todo verdadeiro é de algum modo um ente. V — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA CONTRATESE. 1. Ao denominar-se um ser verdadeiro, não se incide em tautologia, pois com o termo verdadeiro se exprime algo que não está ainda contido no termo ente. A razão da não tautologia não está em que o ente e o verdadeiro se diferenciem realmente. 2. Embora seja um mal este homem estar fornicando, todavia, pelo fato de possuir algo do ente, conaturalmente tem capacidade de estar em conformidade com a inteligência, e por isso contém a noção de verdadeiro. Por conseguinte, não ultrapassa o ente nem é por ele ultrapassado. 3. Quando se afirma que "o ente difere daquilo que é", distingue-se o ato de ser daquilo a que compete este ato. Ora, o conceito de ente toma-se do ato de ser, e não daquilo a que compete o ato de ser, e por conseguinte o argumento não procede. 4. O verdadeiro é posterior ao ente, no sentido de que o conceito de verdadeiro difere do de ente da maneira acima exposta. 5. O argumento apresenta três falhas. a) Embora as três pessoas divinas se diferenciem entre si por distinção real, as coisas apropriadas a cada pessoa não diferem realmente, mas apenas na ordem lógica. b) Embora as três pessoas se distingam realmente uma da outra, todavia não se distinguem do ente. Logo, tampouco o verdadeiro atribuído à pessoa do Filho se distingue realmente do ente que está da parte da essência. c) Embora o ente, o verdadeiro, o uno e o bom se identifiquem, em Deus, mais do que nas coisas criadas, não é necessário que, pelo fato de se distinguirem logicamente em Deus, nas criaturas se distingam também realmente. Isto acontece com aquelas coisas que pelo seu próprio conceito não se identificam, tais como a sabedoria e o poder, os quais, embora em Deus constituam uma só coisa, nas criaturas se distinguem realmente. Ora, o ente, o verdadeiro, o bom e o uno, pelo seu conceito, se identificam. Daí que, onde quer que se encontrem concretizados, constituem realmente uma só coisa, embora seja mais perfeita a unidade quando se encontram em Deus do que quando se encontram nas criaturas. ARTIGO SEGUNDO A verdade encontra-se primariamente na inteligência ou nas coisas? I — TESE: PARECERIA QUE A VERDADE SE ENCONTRA PRIMARIAMENTE NAS COISAS, E NÃO NA INTELIGÊNCIA. 1. Conforme expusemos no artigo I, o verdadeiro é conversível com o ente. Ora, o ente se encontra antes de tudo fora da inteligência. Logo, também o verdadeiro se encontra antes fora da inteligência, ou seja, nas próprias coisas. 2. Além disso, as coisas não estão na inteligência pela sua essência, mas pela sua imagem (species), como se lê no livro III da obra Sobre a Alma. Se a verdade se encontrasse primariamente na inteligência, a verdade não constituiria a essência da coisa mas apenas uma semelhança ou imagem dela, e o verdadeiro seria apenas uma imagem do ente existente fora do intelecto. Ora, a imagem da coisa, que existe na inteligência, não se predicaria da coisa existente fora da inteligência, como também não seria conversível com ela. Portanto, tampouco o verdadeiro seria conversível com o ente, o que é falso. 3. Além disso, tudo aquilo que está em alguma coisa é posterior à coisa na qual está. Se, portanto, a verdade estivesse antes na inteligência do que nas coisas, o juízo sobre a verdade ocorreria segundo o parecer da inteligência. Com o que se voltaria ao erro dos filósofos antigos, segundo os quais tudo o que alguém opina é verdadeiro, e duas afirmações contraditórias seriam verdadeiras ao mesmo tempo. Ora, isto é absurdo. 4. Além disso, se a verdade residisse primariamente na inteligência, seria necessário que uma coisa que pertence à compreensão da verdade fizesse parte da definição da própria verdade. Ora, Agostinho recusa tais definições da verdade no livro dos Solilóquios; por exemplo, a seguinte: "Verdadeiro é aquilo que é como aparece". Com efeito, se esta definição fosse correta, não seria verdadeiro o que não aparece. Ora, isto é falso em se tratando das pedrinhas mais escondidas que se encontram nas entranhas da terra. Agostinho rejeita também esta definição: "Verdadeiro é aquilo que é tal qual aparece ao sujeito cognoscente, se este quiser e puder conhecer". Com efeito, segundo esta definição, uma coisa deixaria de ser verdadeira, se o sujeito cognoscente não quisesse ou não pudesse conhecê-la. O mesmo aconteceria com quaisquer outras definições da verdade, nas quais se colocasse alguma referência necessária à inteligência. Por conseguinte, a verdade não está primariamente na inteligência. II - CONTRATESE PARECERIA QUE A VERDADE RESIDE PRIMARIAMENTE NA INTELIGÊNCIA, E NÃO NAS COISAS. 1. O Filósofo afirma no livro VI da Metafísica: "O verdadeiro e o falso existem só na inteligência". 2. Além disso, a verdade consiste na conformidade entre a coisa e o intelecto. Ora, esta conformidade só pode residir no intelecto. Logo, também a verdade só pode residir na inteligência. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Quando se predica algo de alguma coisa antes das outras, não é necessário que o objeto ao qual se atribui antes o predicado comum seja a causa dos outros, senão que a causa ê aquilo no qual se encontra primeiro a noção completa deste predicado comum. Assim, por exemplo, a sanidade é predicada antes de tudo do animal, no qual por primeiro se verifica o conceito completo de sanidade, embora também o remédio se possa qualificar como sadio, pelo fato de gerar sanidade. Consequentemente, já que o verdadeiro se predica de muitas coisas, em sentido primário e em sentidos secundários, necessariamente se predica prioritariamente daquilo em que a noção de verdade se encontra em sua plenitude. Ora, o complemento ou plenitude de qualquer movimento é constituído pelo seu fim ou termo. O movimento da faculdade cognoscitiva encontra o seu termo na inteligência, pois a coisa conhecida deve necessariamente encontrar-se na inteligência que conhece, segundo o modo característico desta última. Ao contrário, o termo da faculdade tendencial são as coisas, razão pela qual o Filósofo, em sua obra Sobre a Alma, estabelece certo circuito nos atos da alma e da inteligência, no sentido de que o objeto que está fora da inteligência põe em movimento a inteligência; o objeto conhecido, por sua vez, desperta a faculdade tendencial (appetitiva), e esta faz com que a inteligência retorne ao objeto, do qual partiu todo o movimento do processo cognoscitivo. E já que o bem, conforme ficou demonstrado no artigo anterior, está correlacionado à faculdade tendencial, ao passo que o verdadeiro se relaciona com a inteligência, afirma o Filósofo que o bem e o mal se encontram nas coisas, ao passo que o verdadeiro e o falso residem na inteligência. Ora, uma coisa só se diz verdadeira na medida em que concorda com a inteligência que a conhece. Por conseguinte, o verdadeiro se encontra primeiramente na inteligência, e só depois nas coisas. Todavia, cumpre notar que uma é a relação que o objeto tem com o conhecimento prático e outra a que tem com o conhecimento teórico. O conhecimento prático causa as coisas, razão pela qual constitui a medida das coisas que vêm a ser por obra dele. Ao contrário, o conhecimento teórico, pelo fato de receber das coisas, é de certa maneira movido pelas próprias coisas, sendo portanto estas que constituem a medida dele. Daqui se conclui que são as coisas da natureza, das quais a nossa inteligência haure o seu conhecimento, que constituem a medida do nosso intelecto, conforme se afirma no livro X da Metafísica. Estas, porém, derivam a sua medida da inteligência de Deus, no qual tudo está encerrado, da mesma forma que tudo o que constitui produto da mente humana se encontra na inteligência do artífice. Assim, pois, a inteligência de Deus constitui a medida de tudo, não podendo, porém, ser medida ou comensurada por ninguém e por nada, ao passo que as coisas da natureza são ao mesmo tempo comensurantes e comensuradas. Ao contrário, a nossa inteligência é comensurada; é também comensurante, não porém em relação às coisas criadas, mas em relação aos produtos do engenho humano. Portanto, o objeto natural está colocado entre duas inteligências e se denomina verdadeiro segundo a sua conformidade com ambas. Segundo a conformidade com a inteligência divina, a coisa criada se denomina verdadeira, na medida em que cumpre a função para a qual foi destinada pela inteligência divina, como demonstram Anselmo, Agostinho e Avicena, com a definição acima referida. Segundo a conformidade com a inteligência humana, a coisa criada se denomina verdadeira, na medida em que é apta a fornecer por si mesma uma base para um julgamento correto. Analogamente, falsas se denominam aquelas coisas que têm aptidão para aparentarem algo que na realidade não são, ou aparecem diversamente do que na realidade são, segundo o que afirma o quinto livro da Metafísica. A primeira acepção da verdade reside na coisa antes da segunda, visto que a conformidade com a inteligência divina é anterior à conformidade com a mente humana. Consequentemente, mesmo que não houvesse inteligência humana, as coisas continuariam a denominar-se verdadeiras, em relação à mente divina. Se, porém, por uma hipótese impossível, não existisse nem a inteligência humana nem a divina, já não teria sentido algum falar de verdade. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. Segundo quanto acima explanamos, a verdade se predica primariamente da inteligência que conhece, e só depois do objeto ou coisa que concorda com a inteligência cognoscente, sendo que em ambos os sentidos o verdadeiro é conversível com o ente, embora de maneira diversa, ou seja: ao predicar-se das coisas, o verdadeiro equivale ao ente na linha da predicação, uma vez que todo ser concorda com a inteligência divina e pode fazer com que a inteligência humana concorde com ele, e vice-versa. Se, porém, o verdadeiro se entender com referência à inteligência, já não equivale ao ente que reside fora do intelecto na linha da predicação, mas na linha da semelhança ou da pertinência comum, isto é, no sentido de que a todo conhecimento verdadeiro corresponde necessariamente um ente, e vice-versa. 2. A resposta segue do ponto acima. 3. Aquilo que reside num outro ser só depende dele quando é causado por derivação dos seus princípios. Assim, por exemplo, a luz, que é produzida no ar por fatores a ele extrínsecos — no caso o sol —, depende mais do movimento do sol do que do ar. Analogamente, a verdade, produzida na inteligência pelas coisas criadas, não depende do julgamento da alma, e sim da própria existência das coisas. Em outros termos: uma proposição é verdadeira ou falsa, na medida em que a coisa for um ente ou um não ente. O mesmo se dá com o conhecimento. 4. Nas referidas passagens, Agostinho fala daquela visão da inteligência humana, da qual a verdade da coisa não depende. Efetivamente, existem muitas coisas que não são apreendidas pela nossa inteligência. Contudo, nada existe que não possa ser apreendido, em ato, pela inteligência divina, e em potência, pelo intelecto humano, visto que o intelecto agente se define como sendo aquele que pode fazer tudo, e o intelecto possível se define como sendo aquele que é passível de tornar-se qualquer coisa. Consequentemente, na definição da coisa verdadeira pode entrar a visão atual (em ato) da inteligência divina, ao passo que a visão da inteligência humana só pode entrar se for entendida na linha da potência, conforme se evidencia do que foi exposto acima. ARTIGO TERCEIRO A verdade reside somente no intelecto sintetizante e analisante? I — TESE: PARECERIA QUE A VERDADE NÃO RESIDE EXCLUSIVAMENTE NO INTELECTO SINTETIZANTE E ANALISANTE. 1. O verdadeiro se denomina tal em virtude da comparação do ente com a inteligência. Ora, a primeira operação pela qual a inteligência é comparada com a coisa é enquanto forma as quididades das coisas, ao conceber as definições destas últimas. Logo, a inteligência reside primária e mais propriamente nesta operação (e não na atividade sintetizante e analisante da inteligência). 2. Além disso, a verdade consiste na conformidade da coisa com o intelecto. Ora, assim como o intelecto sintetizante e analisante pode pôr-se em conformidade com as coisas, da mesma forma o pode a inteligência que compreende as quididades das coisas. Logo, a verdade não está exclusivamente no intelecto sintetizante e analisante. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE A VERDADE RESIDE EXCLUSIVAMENTE NO INTELECTO SINTETIZANTE E ANALISANTE. 1. No livro VI da Metafísica lê-se o seguinte: "O verdadeiro e o falso não estão nas coisas, mas na inteligência. Nos elementos simples, contudo, nem mesmo o que alguma coisa é, está na mente". 2. Além disso, no livro III da obra Sobre a Alma se lê que a inteligência das coisas indivisíveis reside naquelas coisas, nas quais não há nem verdade nem falsidade. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Assim como o verdadeiro se encontra antes na inteligência do que nas coisas, da mesma forma reside antes na atividade do intelecto sintetizante e analisante do que na do intelecto formador das essências ou quididades das coisas. Com efeito, o conceito de verdade consiste na concordância entre a coisa e o conhecimento. Ora, uma e mesma coisa não pode concordar consigo mesma, porém é uma concordância de coisas diversas. Em consequência, o conceito de verdade se verifica na inteligência primariamente no instante em que esta começa a possuir algo de próprio, que a coisa existente fora da inteligência não possui, mas que corresponde ao objeto, de modo que possa surgir a concordância entre ambos (a inteligência e a coisa). Ora, o intelecto que forma as quididades das coisas só possui uma imagem do objeto existente fora do espírito, como acontece com os sentidos, que apreendem as imagens das coisas sensíveis. No momento, porém, em que a inteligência começa a fazer um julgamento sobre a coisa apreendida, este julgamento constitui algo de próprio do intelecto, algo que não se encontra no próprio objeto. Quando aquilo que está na coisa extrínseca concorda com o julgamento da inteligência, diz-se que o julgamento é verdadeiro. Ora, o intelecto formula o seu julgamento sobre o objeto apreendido, no momento em que diz que alguma coisa é ou não é, sendo que esta é a função do intelecto sintetizante e analisante. Baseado nisto, o Filósofo afirma em sua Metafísica que a síntese e a análise estão na inteligência e não nas coisas. Daí que a verdade reside primariamente na atividade sintetizante e analisante da inteligência. Secundária e posteriormente, o verdadeiro se encontra no intelecto formulador de definições. Consequentemente, uma definição se diz verdadeira ou falsa, ocorrendo esta última quando se define uma coisa como sendo o que não é, como por exemplo quando se atribui ao triângulo a definição do círculo. A definição é também falsa, quando não é possível combinar ou concordar entre si as partes que a compõem. Assim, por exemplo, quando se define algo como sendo um ser vivente destituído de sensibilidade, a composição ou síntese que se pretende com isto afirmar é falsa, pois não existe ser vivente destituído de sensibilidade. Ora, uma definição só se diz verdadeira ou falsa com referência à componibilidade ou síntese entre as partes que a compõem, da mesma forma como a coisa se diz verdadeira em referência ao intelecto. Do acima exposto evidencia-se o seguinte: o verdadeiro se predica antes de tudo em relação à atividade sintetizante ou analisante da inteligência; em seguida, das definições das coisas, conforme a síntese nelas contida for verdadeira ou falsa; em terceiro lugar, o verdadeiro se predica das coisas enquanto concordam com a inteligência divina ou têm aptidão natural a concordar com o intelecto humano; em quarto lugar predica-se do homem, que pode escolher suas proposições, verdadeiras ou falsas, ou que, no que diz ou faz, formula a respeito de si mesmo ou de outros um juízo verdadeiro ou falso. Ora, a verdade se predica dos termos, do mesmo modo que se predica dos conhecimentos expressos pelos termos. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. Embora a formação das quididades (definições) constitua a primeira operação da inteligência, todavia o intelecto não tem, em virtude dela, algo mais de próprio que possa estar em conformidade com a coisa. Por conseguinte, a verdade não reside propriamente nesta operação da inteligência. 2. A resposta se deduz do ponto acima. ARTIGO QUARTO Haverá uma só verdade, em virtude da qual todas as coisas são verdadeiras? I — TESE: PARECERIA QUE HÁ UMA só VERDADE DA QUAL DERIVAM TODAS AS OUTRAS. 1. Anselmo diz no livro Sobre a Verdade (capítulo XIV) que, assim como o tempo está para tudo o que é temporal, da mesma forma a verdade está para todas as coisas verdadeiras. Ora, o tempo está para todas as coisas temporais de maneira tal, que há um tempo só. Logo, também a verdade está para todas as coisas verdadeiras de maneira tal, que existe uma só verdade. 2. Todavia, a verdade reveste uma dupla acepção. No primeiro sentido, a verdade identifica-se com a essência de uma coisa, conforme a definição de Agostinho no livro dos Solilóquios: "Verdadeiro é aquilo que é". Por conseguinte, já que existem muitas essências, deve haver também muitas verdades. Na segunda acepção, a verdade se define enquanto se exprime na inteligência, conforme a definição de Hilário: "O verdadeiro é declarador do ser". Assim, visto que nada pode manifestar algo ao intelecto a não ser conforme a virtude da Verdade Primeira divina, todas as verdades constituem de certo modo uma só coisa ao moverem a inteligência, da mesma forma que todas as coisas constituem uma só coisa ao moverem a visão, isto é, enquanto movem a visão sob o aspecto de uma só coisa, a luz. —Argumento em contrário: o tempo é numericamente um só, em tudo o que é temporal. Se, portanto, a verdade está para as coisas verdadeiras da mesma forma que o tempo está para as coisas temporais, necessariamente haverá uma só verdade numérica para todas as coisas verdadeiras. Não é suficiente que todas as verdades constituam uma só coisa ao moverem a inteligência, ou que constituam uma só coisa em seu exemplar. 3. Além disso, Anselmo raciocina da maneira seguinte no livro Sobre a Verdade: Se a muitas coisas verdadeiras corresponderem muitas verdades, concluir-se-á que as verdades variam de acordo com o variar das coisas verdadeiras. Ora, as verdades não variam conforme variam as coisas verdadeiras, pois, mesmo quando perecem as coisas verdadeiras e as coisas retas, continuam a subsistir a verdade e a retidão, em virtude das quais as coisas são verdadeiras ou retas. Por conseguinte, existe uma só verdade. Anselmo demonstra a premissa menor da maneira seguinte: perecendo o elemento significado, ainda permanece a retidão da significação, visto que o que é reto existe para que seja significado aquilo que aquele sinal significava. Pela mesma razão, perecendo qualquer coisa verdadeira ou reta, a sua retidão ou verdade continua a existir. 4. Além disso, nas coisas criadas nenhuma verdade é a sua própria verdade, assim como a verdade do homem não é o homem, e a verdade da carne não ê a carne. Ora, todo ente criado é verdadeiro. Logo, nenhum ente é criado e é uma verdade. Consequentemente, toda verdade é algo de incriado, só podendo existir uma verdade. 5. Além disso, entre as criaturas nada existe superior à inteligência humana, exceto Deus, segundo o dizer de Agostinho. Ora, a verdade, segundo a demonstração de Agostinho no livro dos Solilóquios, é maior do que a inteligência humana, pois não se pode dizer que seja menor. Com efeito, se a inteligência fosse superior à verdade, caber-lhe-ia julgar sobre a verdade, o que é falso. A inteligência não julga sobre a verdade, mas segundo a verdade, da mesma forma que ao juiz não compete julgar sobre a lei, mas segundo a lei, conforme diz o mesmo Agostinho no livro Sobre a Verdadeira Religião. Tampouco se pode dizer que a inteligência esteja em pé de igualdade com a verdade, pois a verdade é para o intelecto o critério à luz do qual deve julgar tudo, visto que a inteligência não pode tomar-se como critério para julgar acerca das coisas. Logo, a verdade só pode ser o próprio Deus. Por conseguinte, só existe uma verdade, à luz da qual todas as coisas são verdadeiras. 6. Além disso, Agostinho que a verdade não é percebida pelos sentidos corporais, e o prova da maneira seguinte: pelos sentidos corporais só se percebe o que é mutável. Ora, a verdade é imutável, portanto não pode ser apreendida pelos sentidos. Analogamente, pode-se argumentar: tudo o que é criado, é mutável. Ora, a verdade é imutável, logo não pode ser uma coisa criada. Se não é criada, é incriada. Portanto, só existe uma verdade. 7. Além disso, no lugar citado Agostinho argumenta no mesmo contexto, da maneira seguinte: não existe nenhuma coisa sensível — e portanto acessível aos sentidos — que não encerre algo que se assemelhe ao falso, de maneira que não seja possível discernir. Com efeito, para citar um só exemplo: tudo quanto apreendemos através dos sentidos corporais, também quando as coisas não estão presentes aos sentidos, recebemos as imagens dessas coisas como se nos estivessem presentes, como acontece também no sono ou em acessos de furor. Ora, a verdade nada encerra em si que se assemelhe ao falso. Logo, não pode ser apreendida pelos sentidos. Analogamente, poder-se-ia argumentar: tudo o que é criado contém algo que se assemelha ao falso, isto é, enquanto carrega em seu bojo alguma deficiência. Logo, nenhuma coisa criada pode ser verdadeira. Consequentemente, só existe uma verdade. II — CONTRATESE: PARECERIA HAVER UMA MULTIPLICIDADE DE VERDADES. 1. Afirma Agostinho no livro Sobre a Verdadeira Religião: "Assim como a semelhança é a forma das coisas semelhantes, da mesma maneira a verdade é a forma das coisas verdadeiras". Ora, a coisas semelhantes múltiplas correspondem semelhanças múltiplas. Logo, a coisas verdadeiras múltiplas correspondem verdades múltiplas. 2. Além disso, assim como toda verdade criada deriva da verdade incriada e dela haure a sua força, da mesma forma toda luz inteligível deriva da primeira luz à guisa de modelo ou exemplar, haurindo desta primeira luz fontal a sua força de iluminar. Ora, diz-se que há muitas luzes inteligíveis, conforme demonstra com evidência Dionísio. Logo, por analogia se deve conceder que as verdades são múltiplas. 3. Além disso, embora as cores atinjam ou movam a visão em virtude da luz, todavia se diz simplesmente que as cores são múltiplas e diferentes, não se podendo dizer que sejam uma só coisa, a não ser falando analogicamente. Logo, embora todas as verdades criadas se exprimam na inteligência em virtude da Verdade Primeira, todavia não se pode dizer que constituam uma só verdade, a não ser falando em sentido analógico. 4. Além disso, assim como uma verdade criada não pode manifestar-se na inteligência a não ser em virtude da verdade incriada, da mesma forma nenhum poder criado pode operar alguma coisa a não ser em virtude do poder incriado. Ora, não dizemos que, para todas as coisas que têm poder, existe um só poder. Logo, tampouco se deve dizer que há para todas as coisas verdadeiras uma só verdade. 5. Além disso, Deus é comparado às coisas sob o ponto de vista de uma tríplice causalidade: eficiente, exemplar e final, sendo que, em virtude de certa apropriação, a essência das coisas se refere a Deus como causa eficiente, a verdade como causa exemplar, a bondade como causa final, embora cada uma das três (essência, verdade e bondade) possa ser referida a Deus segundo qualquer um dos três tipos de causalidade, com propriedade de expressão. Ora, não dizemos que a todas as coisas boas corresponde uma só bondade, ou que todos os entes possuem uma só essência. Logo, tampouco se deve dizer que para todas as coisas verdadeiras corresponde uma única verdade. 6. Além disso, embora haja uma só verdade incriada, da qual derivam todas as verdades criadas, esta derivação não é de natureza igual para todas as verdades criadas. Com efeito, embora a verdade incriada esteja para todas as coisas de maneira semelhante, todavia a relação que todas as coisas têm com ela não é semelhante, no dizer do livro Sobre as Causas. Donde, a verdade das coisas necessárias não deriva da verdade incriada do mesmo modo que a verdade das coisas contingentes. Ora, a diferença e a pluralidade no modo de reproduzir o modelo projeto divino implica uma diferença ou pluralidade também nas coisas criadas. Logo, analogamente se dirá que as verdades criadas são múltiplas e diferentes. 7. Além disso, a verdade consiste na conformidade entre a coisa e a inteligência. Ora, sendo as coisas de espécies diferentes e múltiplas, não pode existir uma só conformidade entre a coisa e o intelecto, senão que deve haver conformidades múltiplas, correspondentes à multiplicidade das coisas. Logo, já que as coisas verdadeiras são de espécies diferentes, não pode existir uma verdade única para muitas coisas verdadeiras. 8. Além disso, Agostinho ensina no livro XII Sobre a Trindade: "Deve-se crer que a natureza da inteligência humana está de tal modo relacionada com as coisas inteligíveis, que enxerga tudo o que conhece sob certa luz sui generis". Ora, a luz sob a qual o intelecto humano tudo vê é a verdade. Logo, a verdade pertence ao gênero da própria inteligência, e portanto é necessário que cada coisa criada constitua uma verdade. Consequentemente, a cada coisa criada corresponde uma verdade. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Conforme se evidencia do que precede, a verdade reside, em sentido próprio, na inteligência divina ou na humana, assim como a sanidade se encontra no ser vivente. Nas outras coisas a verdade se encontra pela relação que estas têm com o conhecimento, da mesma forma que a certas outras coisas atribuímos a sanidade, pelo fato de elas operarem ou receberem a sanidade. Por conseguinte a verdade reside na inteligência de Deus em sentido próprio e primário, na inteligência humana em sentido próprio e secundário; nas coisas, a verdade se encontra em sentido impróprio e secundário, isto é, só com referência a uma das duas verdades que acabamos de mencionar (a verdade existente na mente divina e a existente no intelecto humano). A verdade do conhecimento divino é, portanto, uma só, derivando dela uma pluralidade de verdades para a inteligência humana, da mesma forma que de uma só face de homem deriva uma pluralidade de imagens no espelho, segundo a glosa de Agostinho ao salmo 11, versículo 2º: "As verdades foram desvalorizadas pelos filhos dos homens". Ao contrário da verdade divina, a verdade que reside nas coisas é múltipla, assim como é múltipla a essência das coisas. A verdade que se predica das coisas enquanto relacionadas com o intelecto humano é de certo modo acidental às coisas, visto que estas permaneceriam em sua essência, na hipótese de que a inteligência humana não existisse nem pudesse existir. Ao contrário, a verdade que se predica das coisas enquanto relacionadas com a inteligência de Deus reside nelas indissoluvelmente, visto que não podem subsistir a não ser pela inteligência divina, que as produz e as mantém no ser. Consequentemente, a verdade reside nas coisas, antes pela sua relação com o intelecto divino do que pela sua relação com a inteligência humana, pois com respeito ao intelecto divino as coisas criadas são efeitos, ao passo que com respeito à inteligência humana são causas, pois é delas que a inteligência humana haure o seu conhecimento. Se, por conseguinte, por verdade no sentido próprio se entende aquela à luz da qual todas as outras coisas são em sentido primário verdadeiras, conclui-se que todas as coisas que são verdadeiras são-no em virtude de uma única verdade, que é a da inteligência de Deus. É neste sentido que Anselmo fala da verdade no livro Sobre a Verdade. Ao contrário, se por verdade no sentido próprio se entende aquela em virtude da qual as coisas se denominam verdadeiras em sentido secundário, existe uma pluralidade de verdades, em correspondência à pluralidade de inteligências. Se, porém, se considerar a verdade em sentido impróprio, verdade segundo a qual todas as coisas se denominam verdadeiras, neste caso existem muitas verdades, embora a cada coisa corresponda uma só verdade. Todavia, as coisas se denominam verdadeiras segundo a verdade que habita na inteligência divina ou na humana (assim como um determinado alimento se diz saudável em força da sanidade contida no ser vivente, e não em virtude de uma forma eventualmente inerente a ele). Toda coisa se denomina verdadeira segundo a verdade que reside na própria coisa (verdade esta que não é outra coisa senão a essência, a qual concorda com a inteligência ou faz esta última concordar com ela) à guisa de uma forma inerente, da mesma maneira que um alimento se denomina saudável em virtude de uma qualidade que lhe é própria e que precisamente faz com que o alimento se denomine saudável. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. O tempo está para as coisas temporais do mesmo modo que a medida ou critério comensurante está para a coisa comensurada. Logo, é evidente que na citada passagem Anselmo fala daquela verdade que constitui apenas o critério ou medida comensurante de todas as coisas. Esta verdade, realmente, é uma só, assim como o tempo é um só, como se conclui no segundo argumento. Em contrapartida, a verdade que reside na inteligência humana ou nas próprias coisas não está para as coisas como o critério extrínseco e comum para as coisas medidas ou comensuradas, mas está para as coisas, ou como o elemento comensurado está para o critério comensurante (tal é o caso da verdade existente no intelecto humano, sendo que aqui a verdade variará necessariamente de acordo com a variação das coisas), ou como critério ou medida extrínseca. Tal é o caso da verdade existente nas próprias coisas. Ora, também estas medidas ou critérios comensurantes são necessariamente múltiplos, de acordo com a multiplicidade das coisas comensuradas, assim como a corpos diversos correspondem dimensões diversas. 2. Concedemos o que afirma este argumento. 3. A verdade que permanece, ao perecerem as coisas, é a verdade existente na inteligência divina. Esta verdade é numericamente uma só. Ao contrário, a verdade que reside nas coisas ou na inteligência humana varia conforme variam as coisas. 4. A afirmação de que nenhuma coisa é a sua própria verdade vale para as coisas que têm o ser completo na natureza, da mesma forma que a afirmação de que nenhuma coisa é o seu próprio ser. E, contudo, o ser de uma coisa é algo criado. Da mesma forma, a verdade de uma coisa é algo criado. 5. A verdade sob cuja luz a inteligência humana tudo julga é a Verdade Primeira. Pois, assim como da verdade da mente divina derivam para a inteligência dos anjos as imagens infusas das coisas, a cuja luz os anjos compreendem tudo o que compreendem, da mesma forma deriva da verdade do intelecto de Deus, à guisa de modelo, a verdade dos primeiros princípios, à luz dos quais a nossa inteligência formula os seus juízos sobre tudo. E uma vez que só podemos formular os nossos juízos a partir da verdade dos referidos princípios, na medida em que tal verdade constitui um espelho da Verdade Primeira, dizemos que julgamos tudo a partir da Verdade Primeira. 6. A verdade imutável de que fala Agostinho é a Verdade Primeira. Esta, realmente, não é perceptível aos sentidos nem constitui algo criado. 7. Deve-se dizer que mesmo a verdade criada nada encerra que se assemelhe ao falso, embora toda coisa criada carregue em seu bojo algo que se assemelha à falsidade. Com efeito, diz-se que cada coisa criada encerra algo de semelhante à falsidade, enquanto apresenta deficiências (próprias de tudo quanto é criado). Contudo, a verdade reside na coisa criada, não enquanto esta encerra deficiências, mas enquanto se liberta das mesmas e está em conformidade com a Verdade Primeira. V — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA CONTRATESE. 1. No sentido próprio, a semelhança reside em cada uma das duas coisas comparadas. Ao contrário, a verdade, por constituir uma concordância entre a inteligência e a coisa, não reside, no sentido próprio, em ambas (na inteligência e na coisa), mas só no intelecto. Ora, como só existe uma inteligência (a divina), à qual tudo deve conformar-se para poder denominar-se verdadeiro, conclui-se que todas as coisas devem denominar-se verdadeiras em virtude da conformidade com uma só verdade, embora em uma pluralidade de coisas semelhantes exista uma pluralidade de semelhanças. 2. Embora a luz inteligível tenha o seu exemplar ou modelo na luz divina, todavia o termo luz se predica em sentido próprio também das luzes inteligíveis criadas. Ao contrário, a verdade não se predica em sentido próprio das coisas, pois estas, no sentido próprio, têm o seu exemplar ou modelo da inteligência divina. Por conseguinte, não falamos de uma só luz, como falamos de uma só verdade (incriada). 3. Valem as considerações que acabamos de fazer no ponto 2. As cores se denominam visíveis em sentido próprio, embora só possam ser vistas através da luz. 4. Valem também aqui, mutatis mutandis, as considerações feitas no ponto 2. 5. Também para este argumento vale a resposta dada no ponto 2, mutatis mutandis. 6. Ainda que a verdade divina não constitua modelo ou exemplar de modo igual para todas as coisas criadas, nem por isso se exclui que todas as coisas sejam verdadeiras em virtude de uma única verdade, e isto em sentido próprio. Com efeito, o que há de diferente nas coisas criadas não se denomina verdade com aquela propriedade de termo que se verifica ao falarmos da verdade exemplar incriada. 7. Embora as coisas de espécie diferente não apresentem a mesma conformidade com a inteligência divina, esta é uma só, e é com ela que concordam todas as coisas denominadas verdadeiras. Ora, da parte da inteligência divina existe uma só conformidade com todas as coisas, se bem que as coisas não concordem com ela de maneira igual. Por conseguinte, permanece de pé que existe uma só verdade (incriada), da qual derivam todas as outras, no sentido acima explicado. 8. Na passagem invocada, Agostinho fala da verdade exemplarizada pela própria inteligência divina no nosso intelecto, assim como no espelho aparece a semelhança do nosso rosto. Ora, conforme as explanações que demos acima, tais verdades, existentes nas nossas inteligências e derivantes da Verdade Primeira, são múltiplas. Ou então dir-se-á que a Verdade Primeira pertence, de certo modo, ao gênero da alma (inteligência), entendendo-se o termo gênero na acepção ampla, isto é, no sentido de que todos os seres inteligíveis (espirituais) ou incorpóreos se dizem pertencer a um só gênero, à guisa do que se lê no livro inspirado dos Atos, capítulo XVII, versículo 28: também nós "pertencemos ao seu gênero". ARTIGO QUINTO Haverá alguma outra verdade eterna, além da verdade primeira? I — TESE: PARECERIA EXISTIR MAIS DO QUE UMA VERDADE ETERNA. 1. Anselmo afirma no Monológio (capítulo XVII), ao falar da verdade das proporções (coisas enunciáveis): "Quer se diga que a verdade tem início ou fim, quer se negue isto, a realidade é que a verdade carece de princípio e de fim". Ora, o princípio de que a verdade ou tem início ou fim, ou não os tem, vale para todas as verdades. Portanto, nenhuma verdade tem início nem fim. Ora, isto é o mesmo que dizer que todas as verdades são eternas. 2. Além disso, tudo aquilo cujo ser segue à destruição do seu ser é eterno, visto que, quer se diga que existe, quer se diga que não existe, segue que existirá: e é necessário dizer, de cada coisa, que exista ou não exista, quanto a cada momento temporal. Ora, à destruição da verdade segue que a verdade existe, visto que, se a verdade não existe, é verdadeiro que a verdade não existe, e nada pode ser verdadeiro a não ser em virtude da verdade. Logo, a verdade é eterna. 3. Além disso, se a verdade das proposições não for eterna, deve-se determinar quando as proposições são verdadeiras e quanto não o são. Ora, neste caso esta proposição é verdadeira, isto é, que nenhuma proposição é verdadeira. Logo, existe a verdade das proposições, o que é contrário à suposição feita. Por conseguinte, não se pode afirmar que a verdade das proposições não é eterna. 4. Além disso, o Filósofo demonstra, no livro I da Física, que a matéria é eterna (embora isto seja falso), pelo fato de ela permanecer depois de corromper-se e existir antes de ser gerada, visto que, se se corrompe, corrompe-se em algo, e se é gerada, é gerada de algo. Ora, aquilo de que algo é gerado é a matéria, e aquilo em que se corrompe é também a matéria. Coisa análoga ocorre com a verdade. Se se afirma que ela se corrompe ou é gerada, segue-se que ela existe antes de ser gerada e continua a existir depois de corromper-se, visto que, se é gerada, passou do não ser ao ser, e, se se corrompe, passou do ser para o não ser. Ora, quando a verdade não existe, é verdadeiro afirmar que a verdade não existe. Ora, isto não pode ser, se a verdade não existir. Logo, a verdade é eterna. 5. Além disso, tudo aquilo cuja não existência é incompreensível é eterno, visto que tudo aquilo o que poderia não existir pode ser concebido como não existente. Ora, também a verdade das proposições é algo cuja não existência seria incompreensível, visto que a inteligência não pode compreender alguma coisa, se não compreender que a coisa é verdadeira. Logo, a verdade das proposições é eterna. 6. Além disso, Anselmo argumenta da seguinte maneira no Monológio: "Quem for capaz, reflita e diga quando esta verdade teve início ou quando deixou de ser". 7. Além disso, o que agora é futuro, sempre foi futuro, e o que foi passado, sempre será passado. Ora, se assim é, uma proposição referente ao futuro é verdadeira, visto que é algo futuro, e igualmente uma proposição referente ao passado é verdadeira, visto que é algo passado. Logo, a verdade de uma proposição referente ao futuro sempre existiu, e a verdade de uma proposição referente ao passado sempre existirá. Consequentemente, não só a Verdade Primeira é eterna, mas muitas outras também o são. 8. Além disso, Agostinho afirma no livro Sobre o Livre Arbítrio que não existe nada mais eterno do que estas duas verdades: a ideia do círculo, e dois mais três são cinco. Ora, estas duas verdades são verdades criadas. Logo, existem outras verdades eternas, além da Verdade Primeira. 9. Além disso, para que um enunciado seja verdadeiro, não se exige que uma coisa seja enunciada em ato, mas basta que exista realmente a coisa acerca da qual se pode fazer a enunciação. Ora, antes que o mundo fosse, houve, além de Deus, algo acerca do qual se podia fazer uma enunciação. Ora, tudo o que existiu antes do mundo é eterno. Logo, a verdade das enunciações é eterna. Demonstração da premissa média. O mundo foi feito do nada, isto é, depois da existência do nada. Logo, antes que o mundo fosse, existia o não ser. Ora, uma enunciação verdadeira não se faz só acerca de alguma coisa que existe, mas também acerca de uma coisa que não existe, pois, assim como se pode enunciar que aquilo que é, existe, da mesma forma se pode enunciar que aquilo que não é, não existe. Por conseguinte, antes que o mundo fosse, já havia alguma coisa acerca da qual se podia fazer uma anunciação verdadeira. 10. Além disso, tudo aquilo que é conhecido, é verdadeiro enquanto é conhecido. Ora, Deus conheceu todas as proposições desde a eternidade. Logo, todas as proposições são verdadeiras desde a eternidade, e por conseguinte existem muitas verdades eternas. 11. Ao argumento acima se poderia objetar o seguinte. O argumento não demonstra que as coisas são verdadeiras em si mesmas, senão apenas na inteligência divina. A isto se pode contraobjetar: é necessário que as coisas conhecidas sejam verdadeiras conforme são conhecidas. Ora, as coisas são conhecidas por Deus desde toda a eternidade não somente conforme estão presentes na inteligência divina, mas enquanto existem na sua própria natureza. A este propósito cabe citar o livro inspirado do Eclesiástico, capítulo XXIII, versículo 29: "Ao Senhor nosso Deus são conhecidas todas as coisas antes que fossem criadas, assim como as conhece depois da criação das mesmas". Consequentemente, Deus conhece as coisas, depois de criadas, da mesma forma que as conheceu antes da sua criação. Logo, desde toda a eternidade existiram muitas verdades, não somente na inteligência de Deus, mas também em si mesmas. 12. Além disso, diz-se sem restrições que alguma coisa é ou existe, conforme está na sua efetivação. Ora, o conceito de verdade se efetiva na inteligência. Se, portanto, se pode dizer sem restrições que desde toda a eternidade houve muitas coisas verdadeiras no intelecto divino, deve-se admitir que haja muitas verdades eternas. 13. Além disso, no dizer do Livro da Sabedoria, "a justiça é perpétua e imortal". Ora, a verdade constitui parte da justiça, como diz Túlio Cícero na sua Retórica. Logo, a verdade é perpétua e imortal. 14. Além disso, os conceitos universais são perpétuos e incorruptíveis. Ora, o verdadeiro é sumamente universal, por ser conversível com o ente. Logo, a verdade é perpétua e incorruptível. 15. Ao argumento acima se poderia objetar que o conceito universal, embora não se corrompa por si mesmo, corrompe-se acidentalmente. A isto se pode observar o seguinte, insistindo no argumento: uma coisa deve ser designada mais pelo que ela é em si mesma do que pelo que é acidentalmente. Se, portanto, a verdade é perpétua e incorruptível em si mesma, e só se corrompe e é gerada acidentalmente, deve-se admitir sem restrições que a verdade é universalmente eterna, ou, por outra, que todas as verdades são eternas. 16. Além disso, Deus sempre foi anterior ao universo, e isto desde toda a eternidade. Logo, a relação de prioridade ou anterioridade (com respeito ao universo criado) existiu em Deus desde a eternidade. Ora, afirmando-se um dos termos da relação, deve-se necessariamente afirmar também o outro. Logo, também a posterioridade do mundo em relação a Deus (ou seja, o fato de o universo ser posterior a Deus no tempo) é eterna. Logo, de certo modo existe, fora de Deus, algo que é eterno, algo que é verdadeiro. Consequentemente, o fato de o universo ser posterior a Deus constitui uma verdade eterna. 17. Ao argumento acima se poderia objetar o seguinte. A mencionada relação de anterioridade e posterioridade não constitui algo fundado na natureza das coisas mas apenas na razão humana. A isto se responderá o seguinte, invocando Boécio no final da obra A Consolação da Filosofia (livro V, última prosa): Deus é por natureza anterior ao mundo, mesmo que este existisse desde a eternidade. Logo, a mencionada relação de prioridade é uma relação fundamentada na própria natureza, e não apenas na razão humana. 18. Além disso, a verdade da significação é a retidão da significação. Ora, desde toda a eternidade foi correto que alguma coisa é significada. Logo, a verdade da significação existiu desde toda a eternidade. 19. Além disso, foi verdadeiro desde toda a eternidade que o Pai gerou o Filho e que o Espírito Santo procedeu de ambos. Ora, as verdades contidas na frase anterior são múltiplas (no mínimo duas, a saber: que o Filho foi gerado pelo Pai, e que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho). Logo, existe mais do que uma verdade eterna. 20. Ao referido argumento se objetará: essas verdades são tais em virtude de uma única verdade. Logo, o argumento não obriga a admitir a existência de mais de uma verdade eterna. A isto se replicará: uma é a razão ou verdade, em virtude da qual o Pai é Pai e gera o Filho, outra é a razão ou verdade, em virtude da qual o Filho é Filho e produz o Espírito Santo. Logo, estas duas proposições não são verdadeiras em virtude de uma única verdade. 21. Além disso, embora o ser homem e o ter capacidade para rir sejam conversíveis, todavia não se exprime uma e mesma verdade ao enunciar as duas proposições seguintes: a) O homem é homem; b) O homem é um ser capaz de rir. Com efeito, o termo homem exprime uma realidade diferente da que é expressa pelo termo "capaz de rir" (risibile). Da mesma forma (reforçando o argumento anterior), a propriedade expressa pelo termo Pai não é a mesma que a expressa pela palavra Filho. Logo, as citadas proposições não encerram uma só verdade, mas várias. 22. Ao mencionado argumento se replicará: as proposições acima citadas não existiram desde toda a eternidade. Contrarréplica: sempre que houver uma inteligência capaz de fazer uma anunciação, a anunciação pode existir. Ora, desde toda a eternidade existiu uma inteligência divina que compreendeu que o Pai é Pai, e o Filho é Filho. Isto equivale a dizer que desde toda a eternidade existiu uma inteligência divina que enunciou ou pronunciou as citadas proposições, visto que, segundo Anselmo, para a Inteligência Suprema o dizer (enunciar, pronunciar) equivale ao compreender. Logo, as mencionadas proposições existiram desde toda a eternidade. II — CONTRATESE: PARECERIA NÃO EXISTIR NENHUMA OUTRA VERDADE ETERNA, ALEM DA VERDADE PRIMEIRA INCRIADA. 1. Nenhuma coisa criada é eterna. Ora, todas as verdades, exceto a Primeira, são criadas. Logo, só a Verdade Primeira é eterna. 2. Além disso, o ente e o verdadeiro são conversíveis. Ora, só existe um ente eterno. Logo, só existe uma verdade eterna. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Conforme expusemos, a verdade implica concordância e comparação (comensuração), razão pela qual uma coisa se denomina verdadeira enquanto é comparada (comensurada) com outra e lhe é conforme. Ora, um corpo é comensurado por uma medida intrínseca (como por exemplo a linha, a superfície ou a profundidade) e à base de uma medida extrínseca (por exemplo, o objeto localizado é comensurado pelo espaço, o movimento pelo tempo, o pano pelo metro). Assim também uma coisa pode ser denominada verdadeira de dois modos: em relação à verdade a ela inerente e em relação a uma verdade extrínseca. Assim, todas as coisas verdadeiras se denominam tais com respeito à Verdade Primeira. Ora, como a verdade existente na inteligência é comensurada pelas próprias coisas, conclui-se que não só a verdade das coisas mas também a verdade do conhecimento ou da anunciação que o exprime se denominam tais com respeito à Verdade Primeira. Nesta concordância ou comparação (comensuração) entre o conhecimento da inteligência e o objeto, porém, não é necessário que os dois membros ou termos de comparação tenham existência atual, visto que a nossa inteligência pode concordar com coisas que ainda não existem, mas existirão futuramente. Do contrário, não poderia ser verdadeira a frase: Nascerá o Anticristo. Logo, esta afirmação se diz verdadeira com respeito à verdade que está só na mente, mesmo que a própria coisa ainda não exista. De maneira análoga, também a inteligência de Deus pode desde toda a eternidade concordar com alguma coisa que não existiu desde a eternidade mas só começou a existir no tempo. Em consequência, o que só começou a existir no tempo pode ser denominado verdadeiro desde toda a eternidade, com respeito à verdade eterna (subsistente em Deus). Se por verdade entendermos a verdade criada — isto é, a que reside nas coisas e na inteligência criada —, neste sentido a verdade não é eterna: nem a verdade inerente às coisas, nem a inerente às enunciações, pois não são eternas nem as próprias coisas nem o conhecimento nos quais residem as verdades criadas. Ao contrário, se por verdade criada — segundo a qual todas as coisas se denominam verdadeiras — se entender aquela medida ou critério externo que é a Verdade Primeira, nesta acepção toda e qualquer verdade é eterna, tanto a das coisas como a das enunciações e do conhecimento. É neste sentido que Agostinho entende a verdade nos Solilóquios e Anselmo no Monológio. Daí afirmar Anselmo, no livro Sobre a Verdade: "Poderás compreender de que maneira demonstrei no meu Monológio que a verdade suprema não tem início nem fim, pela veracidade do que escrevi". Desta Verdade Primeira, porém, só pode ser uma para todas as coisas. Pois na nossa inteligência a verdade se diversifica apenas de dois modos: devido à diversidade das coisas apreendidas — das quais o intelecto forma concepções diversas, às quais correspondem verdades diversas na inteligência — e devido ao modo de conhecer. Com efeito, a carreira de Sócrates constitui uma coisa única, porém a inteligência, que conjuntamente conhece o tempo por via de síntese e de análise, conhece de maneira diversa a carreira de Sócrates como presente, como passada e como futura. Consequentemente, a inteligência forma concepções diversas, nas quais se encontram verdades diversas. Todavia, nenhuma dessas duas espécies de diversidade pode ocorrer no conhecimento divino. Com efeito, Deus não tem conhecimentos distintos de coisas diversas, senão que com um só conhecimento conhece tudo, visto que Deus não conhece cada coisa infundindo-lhe o seu próprio conhecimento, mas através de uma só coisa, ou seja, a sua própria essência. Analogamente, o conhecimento de Deus não se prende ao tempo, pois que a sua medida é a eternidade, a qual abstrai do tempo e até absorve em si todo o tempo. Por conseguinte, não existem muitas verdades eternas, mas uma só. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. Conforme se depreende da exposição que o próprio Anselmo faz no livro Sobre a Verdade, ao afirmar que a verdade da proposição não tem princípio nem fim, não o fez porque a proposição não tivesse início, mas porque não se pode compreender quando aquela proposição da qual estava tratando, e que significava que algo é verdadeiramente futuro, existiria e não seria verdadeira. Daqui se conclui que Anselmo não quis afirmar que a verdade inerente à coisa criada, ou a proposição, não tem início nem fim. O que, na intenção de Anselmo, não tem início nem fim é a Verdade Primeira, a qual constitui a medida ou critério extrínseco, à luz do qual a proposição se denomina verdadeira. 2. Fora da alma encontramos dois elementos: a própria coisa e as privações ou negações da coisa. Estes dois elementos não têm a mesma relação com a verdade, por ser também diversa a relação que têm com a inteligência que conhece. Com efeito, o próprio objeto, em virtude da imagem que contém, concorda com a inteligência divina, assim como o produto da arte humana concorda com o projeto ou desenho original. Em virtude da sua imagem, o objeto é apto para fazer o nosso conhecimento concordar com ele, enquanto, mediante a sua imagem, acolhida pelo espírito, é apreendido pela inteligência. Consideremos agora aquilo que não existe fora da alma: não contém em si nada que possa fazer com que concorde com a inteligência divina, nem nada mediante o qual possa ser apreendido pela mente humana. Se, portanto, tal coisa pode concordar com alguma inteligência cognoscente, isto não se deve ao não ser em si, mas ao intelecto, o qual acolhe em si a ideia do não ser. O objeto real, que constitui algo de positivo existente fora da inteligência, este sim encerra algo em virtude do qual pode ser denominado verdadeiro. Com o não ser da coisa não ocorre isto, pois tudo o que lhe for atribuído procede da inteligência. Quando, portanto, a inteligência fala do não ser da verdade, isto é verdade, pois, se a verdade aqui subentendida vale do não ser, não lhe compete nada fora da inteligência. Por isso, à destruição da verdade que se encontra na coisa segue apenas o ser da verdade que está exclusivamente na inteligência. Disto, por conseguinte, só se pode concluir para a verdade que está no intelecto, a qual verdade é eterna. Esta verdade reside necessariamente na inteligência divina, a qual é a verdade eterna. Por conseguinte, o argumento aduzido prova precisamente que só a Verdade Primeira é eterna. 3. A resposta segue do que acabamos de expor. 4. A resposta segue do que foi exposto no ponto 2. 5. É impossível conceber uma não existência pura e simples da verdade. Pode-se, contudo, imaginar que não houvesse nenhuma verdade criada, da mesma forma que se poderia imaginar que não houvesse nenhuma coisa criada. Com efeito, a inteligência pode imaginar que não existe ou não conhece, embora não possa imaginar sem existir e sem conhecer. Pois o intelecto não precisa necessariamente entender tudo o que encerra em si, visto que nem sempre reflete sobre si mesmo. Consequentemente, não é absurdo a inteligência imaginar a não existência da verdade criada, sem a qual não pode conhecer. 6. e 7. O que é futuro ainda não existe (é não ente) enquanto tal, o mesmo acontecendo com o que é passado, enquanto tal. Por conseguinte, assim como da verdade do não ser não se pode concluir a eternidade de qualquer outra verdade que não seja a Verdade Primeira (cf. supra), da mesma forma esta conclusão não se pode haurir da verdade do passado e do futuro. 8. As palavras de Agostinho devem entender-se no sentido de que as mencionadas verdades são eternas enquanto estão na inteligência divina. Ou então o termo eterno é tomado como sinônimo de perpétuo. 9. Embora se possa fazer uma anunciação verdadeira tanto acerca do ente como acerca do não ente, a relação que o ente e o não ente têm com a verdade não é a mesma, conforme se depreende do que já dissemos (na resposta ao argumento número 22). 10. Desde toda a eternidade Deus conheceu muitas proposições ou enunciados, mas os conheceu em virtude de uma única compreensão ou conhecimento. Em consequência, só existiu uma verdade, desde toda a eternidade. Em virtude dessa única verdade, foi e é verdadeiro o conhecimento que Deus teve e tem de muitas coisas que só aconteceriam no futuro. 11. Do que expusemos acima se conclui que a inteligência está em conformidade não só com as coisas que existem atualmente, mas também com as que não existem atualmente. Isto ocorre sobretudo no caso da inteligência divina, para a qual o passado e o futuro se identificam. Por conseguinte, embora as coisas não tenham existido em sua própria natureza desde a eternidade, o intelecto divino, este sim, esteve eternamente em conformidade com as coisas que só existiriam realmente no futuro. Consequentemente, Deus possui desde toda a eternidade um conhecimento verdadeiro das coisas, também na própria natureza das coisas, embora as verdades das próprias coisas não tenham existido desde toda a eternidade. 12. Embora o conceito de verdade se efetive na inteligência, o mesmo não acontece com o conceito da própria coisa. Portanto, embora concedamos sem restrições que a verdade de todas as coisas, pelo fato de estar na inteligência divina, existiu desde toda a eternidade, não podemos conceder sem restrições que as coisas, pelo fato de existirem na inteligência divina, foram verdadeiras desde sempre. 13. Os dizeres do Livro da Sabedoria entendem-se da justiça divina. Ou então, se se tratar da justiça humana, denomina-se perpétua na mesma acepção que as coisas naturais, assim como dizemos que o fogo sempre vai para cima, como por instinto natural, a não ser que haja um obstáculo. E já que a virtude, no dizer de Túlio Cícero, é um hábito consentâneo à natureza da razão, a virtude, pela sua natureza, tende incessantemente ao ato que lhe é próprio, embora por vezes seja impedida de fazê-lo. Por isso se lê no início da obra intitulada Digesta que a justiça consiste na "vontade constante e perpétua de dar a cada um o que lhe compete". Todavia, a verdade de que estamos falando não constitui parte da justiça, mas reveste sentido diferente, conforme se depreende do acima exposto. 14. Se o conceito universal é denominado perpétuo e imperecível, Avicena o explica de duas maneiras: ou porque se denomina assim no sentido dos conceitos particulares, os quais, na opinião dos que professam ser o mundo eterno, nunca começaram nem deixarão de existir; ou, então, no sentido de que não perece por si mesmo, mas acidentalmente, por perecer o indivíduo. 15. De per si, pode-se atribuir algo a alguma coisa de duas maneiras. Primeiro, positivamente, assim como às chamas se atribui a propriedade de subirem. Quando for este o caso, é correto afirmar que uma coisa é designada mais pelo que ela é em si mesma do que pelo que é acidentalmente. Com efeito, é mais comum dizer que as chamas sobem e como tais são catalogadas com as outras coisas que sobem, do que dizer que as chamas vão para baixo, embora acidentalmente o fogo possa pingar para baixo, como no caso do ferro incandescente. Outras vezes, a atribuição se faz por via de remoção, isto é, removendo daquelas coisas o que conaturalmente tende a introduzir uma disposição contrária. Neste caso, se acidentalmente ocorrer à coisa algo disto, aquela disposição contrária se poderá enunciar da coisa sem restrição. Assim, a unidade, de per si, se atribui à matéria primeira, não porque esta possuísse alguma forma de unidade, mas por via de remoção das formas diversificantes. Daí que, quando ocorrem formas que diferenciam a matéria, dizemos com maior facilidade que as matérias são múltiplas do que unas. E o que ocorre no caso do argumento aduzido. Com efeito, o universal não se denomina imperecível no sentido de que possuísse em si mesmo uma forma de imortalidade, mas porque não possui por sua própria natureza aquelas disposições materiais que nos indivíduos constituem as causas da corrupção. Por isso se diz que o universal, existente nas coisas, perece neste ou naquele indivíduo particular. 16. Ao passo que todas as outras categorias colocam algo na natureza das coisas — assim, por exemplo, a quantidade designa um algo, precisamente por ser quantidade —, a categoria de relação é a única que não possui nada que acrescente algo à natureza das coisas, e isto porque a relação não designa um algo, mas um em relação a algo. Por isto existem certas relações que não colocam nada na natureza das coisas, mas apenas na esfera lógica. Isto pode ocorrer de quatro maneiras, conforme se pode ver nos escritos do Filósofo e de Avicena. Primeiro, quando alguma coisa é posta em relação consigo mesma, por exemplo, ao declararmos a sua identidade consigo mesma. Se esta relação colocasse na natureza das coisas algo a mais, além da sua identidade, proceder-se-ia até ao infinito, visto que a própria relação, em virtude da qual uma coisa se denomina idêntica consigo mesma, seria idêntica consigo mesma através de outra relação, e assim até ao infinito. Segundo, quando a própria relação é posta em relação com alguma coisa. Com efeito, não se pode dizer que a paternidade se relaciona com o seu sujeito através de outra relação intermediária, pois neste caso esta relação intermediária necessitaria, a seu turno, de outra relação intermediária, e assim se iria até ao infinito. É óbvio, portanto, que a relação expressa na comparação da paternidade com o seu sujeito não se coloca na natureza das coisas, mas apenas na esfera lógica. Terceiro, quando um dos termos da relação depende do outro, e não vice-versa, assim como o conhecimento depende dos objetos a serem conhecidos, e não vice-versa. A relação do conhecimento com o objeto a ser conhecido constitui algo de real na natureza das coisas, ao passo que a relação do objeto com o conhecimento existe apenas na esfera lógica. Quarto, o ser é comparado com o não ser, por exemplo, quando dizemos que nós somos antes daqueles que serão depois de nós; do contrário seguiria que poderia haver um número infinito de relações numa mesma coisa, se a geração continuasse até ao infinito no futuro. Dos dois últimos pontos aparece que aquela relação de prioridade nada coloca na natureza das coisas, mas apenas na inteligência que conhece; isto por duas razões: porque Deus não depende das criaturas, e porque tal prioridade exprime uma comparação entre o ser e o não ser. Daqui não se concluiria, portanto, que haveria alguma outra verdade eterna além da existente na inteligência de Deus, o qual é o único eterno; esta é a Verdade Primeira. 17. Se bem que Deus, por natureza, seja anterior a todas as criaturas, disto não segue que esta relação seja uma relação de natureza. É idêntica a relação existente entre a coisa, cognoscível, e o conhecimento: o objeto cognoscível denomina-se anterior ao conhecimento, embora a reação da coisa cognoscível ao conhecimento não exista na natureza. 18. Quando se diz que, mesmo não existindo a significação, é correto afirmar que alguma coisa é significada, isto é verdadeiro segundo a ordenação das coisas existente na inteligência divina, da mesma forma que, mesmo não existindo a caixa, continua sendo correto afirmar que a caixa tem tampa, segundo o projeto do marceneiro. Por conseguinte também daqui não é lícito deduzir que haja alguma verdade eterna, além da Verdade Primeira. 19. O conceito de verdadeiro está, sim, baseado no do ente. Todavia, embora haja em Deus pluralidade de pessoas e de "propriedades", existe n'Ele um só ser, pois o ser, predicado de Deus, só se predica segundo a essência. Todos estes enunciados — o Pai é ou gera, o Filho é ou é gerado — contêm uma só verdade, que é a Verdade una e eterna. 20. Embora o Pai seja Pai em virtude de outra coisa do que o Filho é Filho, pois o Pai é tal em virtude da paternidade, e o Filho é Filho em virtude da filiação, contudo é em virtude de uma e mesma coisa que tanto o Pai como o Filho são, visto que é pela essência divina que isto ocorre, e esta é uma só. A verdade, em Deus, não se fundamenta na paternidade como tal ou na filiação como tal (se assim fosse, haveria múltiplas verdades em Deus), mas na essência. A paternidade e a filiação constituem uma só essência, e portanto a verdade de ambas é uma só. 21. A propriedade expressa pelo termo homem e a expressa pelo termo "risível" (capaz de rir) não é a mesma em virtude da essência, nem tem um único ser, como acontece com a paternidade e a filiação divinas. Por conseguinte, não existe a semelhança na qual se baseia o argumento. 22. Todas as coisas que a inteligência divina conhece, por mais diversas que sejam, conhece-as em virtude de um só conhecimento, mesmo as coisas que encerram verdades diferentes. Consequentemente, com muito mais razão conhece tudo o que diz respeito às pessoas, mediante um só conhecimento. Logo, todas essas proposições ou verdades encerram uma única verdade. ARTIGO SEXTO A verdade criada será imutável? I — TESE: PARECERIA QUE A VERDADE CRIADA É IMUTÁVEL. 1. Anselmo afirma no livro Sobre a Verdade: "Vejo que por esta razão se demonstra que a verdade permanece imóvel". Ora, a razão alegada versava sobre a verdade da significação, conforme aparece do acima exposto. Logo, a verdade das proposições é imutável, e pela mesma razão o é também a verdade da coisa criada. 2. Além disso, se a verdade da proposição é mutável, a alteração ocorre em grau máximo ao alterar-se a coisa. Ora, alterando-se a coisa, a verdade da proposição permanece. Logo, a verdade da proposição é imutável. Demonstração da premissa menor. A verdade, segundo Anselmo, consiste em "certa retidão, enquanto cumpre o que recebeu na inteligência divina". Ora, a proposição "Sócrates está sentado" recebeu na inteligência divina o significar que Sócrates está sentado, significação esta que conserva também quando Sócrates não está sentado. Logo, mesmo que Sócrates não esteja sentado, permanece a verdade na proposição enunciada. Por conseguinte, a verdade contida na mencionada proposição não se modifica, mesmo que a coisa como tal se altere. 3. Além disso, se a verdade se alterasse, esta alteração não poderia ocorrer a não ser que se modificassem as coisas nas quais a verdade reside, da mesma forma que só se diz que as formas mudam ao se alterarem os sujeitos nas quais estas inerem. Ora, a verdade não muda ao se modificarem as coisas verdadeiras, visto que, mesmo desaparecendo as coisas verdadeiras, a verdade em si mesma permanece, conforme demonstram Agostinho e Anselmo. Logo, a verdade é totalmente imutável. 4. Além disso, a verdade de uma coisa constitui a causa da verdade da proposição, já que uma proposição se denomina verdadeira ou falsa pelo fato de que a coisa é ou não é. Ora, a verdade da coisa é imutável. Logo, também o é a verdade da proposição correspondente. Demonstração da premissa menor. No livro Sobre a Verdade Anselmo demonstra que a verdade de uma proposição permanece inalterada enquanto e na medida em que cumpre o que lhe corresponde na inteligência divina. Ora, cada coisa cumpre aquilo que lhe corresponde na inteligência divina. Logo, a verdade de cada coisa é imutável. 5. Além disso, aquilo que permanece inalterado depois de operadas todas as alterações nunca se altera. Com efeito, na mudança das coisas não dizemos que a superfície se altera, pois esta permanece a mesma apesar de qualquer mudança de cor. Ora, a verdade permanece inalterada na coisa, qualquer que seja a mudança verificada na própria coisa, visto que o ente e o verdadeiro são conversíveis. Logo, a verdade é totalmente imutável. 6. Além disso, onde quer que a causa seja a mesma, idêntico é também o efeito. Ora, a causa da verdade destas três proposições — "Sócrates está sentado", "Sócrates estará sentado" e "Sócrates esteve sentado" — é a mesma, ou seja, o fato de Sócrates estar sentado. Logo, também a verdade destas três proposições é a mesma. Ora, se uma das três coisas mencionadas é verdadeira, necessariamente serão sempre verdadeiras também as outras duas. Com efeito, se uma vez é verdade que "Sócrates está sentado", sempre foi e sempre será verdade que "Sócrates esteve sentado" ou "Sócrates estará sentado". Logo, a mesma verdade contida nas três proposições se comporta sempre da mesma maneira, e destarte é imutável. Pela mesma razão é imutável toda e qualquer outra verdade. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE A VERDADE CRIADA NÃO É IMUTÁVEL. Com efeito, ao alterarem-se as causas, alteram-se também os efeitos. Ora, as coisas que constituem a causa da proposição se alteram. Logo, altera-se também a verdade das proposições. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Ao dizer-se que uma coisa muda, isto pode entender-se em dois sentidos. Primeiro, no sentido de que a dita coisa é o sujeito da mudança; assim, quando dizemos que um corpo é mutável. Neste sentido, nenhuma forma é passível de mudança, pois ela subsiste em força de sua essência imutável. Aqui não se pergunta se a verdade é imutável neste primeiro sentido. A segunda acepção. Diz-se que uma coisa muda quando em relação a ela se opera alguma alteração. Assim, falamos de uma mudança da brancura, pelo fato de que o corpo se altera em relação a ela. É neste segundo sentido que se pergunta se a verdade é mutável. Para lograr clareza, cumpre assinalar o seguinte. Uma mudança de alguma coisa em relação à qual se opera uma alteração é algo de que por vezes se fala e por vezes não. Quando esta coisa é inerente àquilo que muda em relação a ela, diz-se que esta coisa também muda, assim como se fala de uma alteração da brancura ou da qualidade, quando algo se altera em relação a ela, pelo fato de que ambas se sucedem em consequência desta mudança. Ao contrário, quando a coisa em relação à qual se diz que o objeto muda é algo de extrínseco, neste caso a coisa não muda, mas permanece imóvel. Assim, não se fala de um movimento do lugar ou do espaço quando uma coisa muda de lugar. Ora, as formas inerentes, das quais se diz que se alteram ao alterar-se o sujeito ao qual inerem, são passíveis de um duplo tipo de mudança, conforme se trate de formas gerais ou de formas especiais. A forma especial não permanece a mesma (depois da mudança do sujeito): nem no seu ser nem no seu conteúdo. Assim, a brancura, uma vez ocorrida a alteração, de maneira alguma permanece. Diversamente acontece com a forma geral, que, uma vez ocorrida a alteração, permanece em seu conteúdo, mas não em seu ser. Exemplo: ao se operar uma mudança do branco para o preto, permanece uma cor enquanto cor, desaparecendo, todavia, a cor enquanto a cor branca. Ora, conforme acima explanamos, a Verdade Primeira constitui a medida extrínseca em virtude da qual as coisas se denominam verdadeiras, ao passo que a medida intrínseca é a inerente às próprias coisas. Consequentemente, as coisas criadas apresentam variação (imutabilidade) em sua participação da Verdade Primeira, ao passo que a própria Verdade Primeira, em virtude da qual as coisas se denominam verdadeiras, de modo algum se altera. É o que diz Agostinho na obra Sobre o Livre Arbítrio: "A nossa inteligência enxerga por vezes mais e por vezes menos da própria Verdade. Esta, porém, permanece inalterada em si mesma, sem aumentar nem diminuir". Todavia, se por verdade entendermos a que é inerente às coisas, neste caso se pode e deve dizer que a verdade é mutável: não no sentido de que a própria verdade mude, mas no sentido de que algo muda em relação a ela (o conhecimento subjetivo). Com efeito, segundo dissemos acima, a verdade se encontra nos seres criados de dois modos: nas próprias coisas e na inteligência. Ora, a verdade do operar (conhecimento) está compreendida na verdade da coisa, assim como a verdade da enunciação está compreendida na verdade do conhecimento por ela expressa. Ora, as coisas denominam-se verdadeiras em relação ao intelecto divino e em relação ao intelecto humano. Se a verdade de uma coisa se entender com respeito à inteligência divina, deve-se dizer que a verdade desta coisa mutável se transforma em outra verdade, mas não em falsidade, visto que a verdade é a forma mais geral que existe, uma vez que o verdadeiro e o ser são conversíveis. Por conseguinte, assim como depois de qualquer alteração o objeto permanece em seu ser, embora assumindo outra forma, do mesmo modo permanece sempre verdadeiro, porém em virtude de outra verdade. Com efeito, qualquer que seja a forma ou a privação que esta alteração produz no dito objeto, é segundo esta nova forma ou privação que o objeto estará conforme a inteligência divina, a qual o conhece como é em cada instante. Todavia, se a verdade do objeto se entender em relação ao intelecto humano, ou vice versa, neste caso o que se verifica é por vezes mudança da verdade para a falsidade, outras vezes, ao invés, mudança da verdade para outra verdade. Com efeito, a verdade é a concordância entre o intelecto e a coisa conhecida. Ora, se de duas coisas entre si concordantes se tira coisa igual de ambas, ambas devem continuar a concordar, embora não segundo a mesma quantidade. Da mesma forma, se tanto o conhecimento como a coisa conhecida se alteram correspondentemente, permanece a verdade, porém surge outra verdade (em outros termos: permanece a verdade, mas altera-se uma verdade). Exemplo: quando Sócrates está sentado, a nossa inteligência conhece que ele está sentado; ao depois, quando Sócrates não está sentado, a nossa inteligência conhece que não está sentado. Se, porém, no caso de duas coisas entre si concordantes se tira algo de uma sem nada tirar da outra, ou se de uma se tira mais do que da outra, forçosamente nascerá uma desigualdade ou discordância, a qual estará para a falsidade como a concordância está para a verdade. Em consequência, forçosamente se verificará falsidade se, sendo o conhecimento verdadeiro, a coisa se alterar, permanecendo o conhecimento inalterado. O mesmo acontecerá se o processo for inverso, ou no caso de tanto a coisa como o conhecimento da inteligência se alterarem, mas não de maneira semelhante. Em todos esses três casos verifica-se uma mudança de uma verdade para a falsidade. Exemplo: enquanto a cor de Sócrates for realmente branca, o conhecimento da minha inteligência é verdadeiro se afirmar que Sócrates é branco. Se, porém, Sócrates continuar a ter cor branca e o meu conhecimento intelectual passar a dizer que a sua cor é preta, haverá falsidade na minha inteligência. O mesmo ocorre se Sócrates passar a ter cor preta e a minha inteligência continuar a afirmá-lo branco, ou se a sua cor mudar para o pálido e a minha inteligência disser que a sua cor é vermelha. De tudo isto se conclui em que sentido se afirma que a verdade é mutável, e em que sentido é inalterável. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. Na citada passagem Anselmo fala da verdade como medida ou critério segundo o qual todas as coisas se denominam verdadeiras. 2. Já que a inteligência pode voltar-se e refletir sobre si mesma, compreendendo a si mesma como compreende as coisas, conforme se lê na obra Sobre a Alma, o que se refere ao intelecto pode ser considerado de duas maneiras, no que concerne à verdade. Primeiro, enquanto são coisas. Nesta acepção, a verdade é predicada delas no mesmo sentido que se predica das outras coisas. Nesta acepção, assim como uma coisa se diz verdadeira por cumprir o que é na mente divina em conservando a sua natureza, da mesma forma denomina-se verdadeira a enunciação quando conserva a sua natureza conforme a mente divina e não pode deixar de ser verdadeira enquanto a própria enunciação permanecer. No segundo sentido, as enunciações são comparadas com as coisas conhecidas, caso em que a afirmação se diz verdadeira se concordar com a respectiva coisa; este tipo de verdade, sim, é sujeito a mudança, conforme ficou dito acima. 3. A verdade que permanece ao desaparecerem as coisas verdadeiras é a Verdade Primeira, a qual nunca se altera, mesmo ao se alterarem as coisas. 4. É inalterável nas coisas enquanto subsistirem, o que perfaz a sua essência, assim como é essencial para uma enunciação que designe aquilo para a qual foi feita para designar. Disto não segue que a verdade da coisa de forma alguma seja mutável; o que segue é apenas que a verdade da coisa é imutável no que concerne à essência da coisa, enquanto a coisa subsistir. Todavia, naquelas coisas em que ocorre uma alteração da coisa por corrupção em relação a aspectos acidentais, a alteração da verdade ocorre mesmo enquanto a coisa subsistir. Por conseguinte, quanto aos acidentes, pode ocorrer alteração da verdade da coisa criada. 5. Depois de operadas todas as alterações, permanece a verdade, mas não a mesma, como se depreende do que acima dissemos. 6. A identidade da verdade não depende apenas da identidade da coisa, mas também da identidade da inteligência cognoscente, assim como a identidade de um efeito depende da identidade do agente operante e do paciente. Embora as três mencionadas proposições (Sócrates está sentado; Sócrates esteve sentado; Sócrates estará sentado) exprimam uma única coisa, o conhecimento subjacente a elas não é o mesmo, porquanto na atividade do intelecto sintetizante entra o fator tempo. Em consequência, alterando-se o tempo, altera-se também a verdade do conhecimento. ARTIGO SÉTIMO A verdade se predica, em Deus, da essência ou das pessoas? I — TESE: PARECERIA QUE, EM DEUS, A VERDADE SE PREDICA DAS PESSOAS. 1. Tudo o que em Deus implica uma relação de princípio predica-se das pessoas. Ora, a verdade implica uma relação de princípio, conforme se depreende por Agostinho, o qual afirma, no livro Sobre a Verdadeira Religião, que a verdade divina é a semelhança suprema de princípio, sem qualquer dessemelhança, da qual se origina a falsidade. Logo, a verdade, em Deus, se predica das pessoas. 2. Além disso, assim como nada é semelhante a si próprio, da mesma forma nada é igual a si próprio. Ora, segundo Hilário, a semelhança, em Deus, implica a distinção de pessoas, pelo fato de nada ser semelhante a si mesmo. Portanto, o mesmo ocorre com a igualdade. Ora, a verdade é certa igualdade (conformidade entre a coisa e o intelecto). Logo, a verdade implica, em Deus, uma distinção segundo as pessoas. 3. Além disso, tudo o que em Deus implica emanação ou derivação predica-se das pessoas. Ora, a verdade implica certa emanação, visto significar uma concepção do intelecto, como aliás também a palavra. Logo, assim como a palavra se predica das pessoas, o mesmo ocorre com a verdade. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE, EM DEUS, A VERDADE NÃO SE PREDICA DAS PESSOAS, MAS DA ESSÊNCIA. Com efeito, no dizer de Agostinho, "a verdade das três pessoas é uma só”. Logo, a verdade se predica, em Deus, da essência, e não das pessoas. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Predicada de Deus, a verdade pode revestir duas acepções: uma própria, a outra como que metafórica. Predicada de Deus no sentido próprio, a verdade designa a concordância da inteligência divina com a coisa. Como, porém, a inteligência divina conhece primeiro a sua essência, sendo através dela que conhece todo o restante, depreende-se que a verdade, em Deus, significa primariamente a conformidade da sua inteligência (conhecimento) com a sua própria essência, e só derivadamente a conformidade da sua inteligência com a coisa criada. Acontece, todavia, que o intelecto e a essência de Deus não concordam entre si à guisa de elemento comensurante e elemento comensurado — pois um não pode ser o princípio do outro —, mas identificam-se totalmente um com outro. Em consequência, a verdade resultante desta conformidade concordância não implica nenhuma razão de princípio originante, nem da parte da essência de Deus nem da parte da sua inteligência cognoscente, que constituem uma e mesma coisa. Por conseguinte, assim como em Deus o ato do intelecto cognoscente e o objeto conhecido constituem uma e mesma coisa, da mesma forma identificam-se totalmente a verdade do objeto conhecido e a verdade do intelecto que o conhece, sem qualquer conotação de princípio originante e efeito originado. Ao contrário, se a verdade da inteligência divina se entender no sentido da sua conformidade com as coisas criadas, também nesta acepção permanecerá ainda a mesma verdade, assim como é através de uma e mesma coisa que Deus compreende tanto a si mesmo como as coisas criadas. Neste caso, porém, o conceito de verdade em Deus adquire uma nova conotação, ou seja, a ideia de um princípio originante em relação às criaturas originadas, sendo que a inteligência divina constitui, com respeito às criaturas, a medida comensurante e a causa. Ora, todos os termos que, dentro da Santíssima Trindade, não designem princípio ou derivação de princípio, ou designem em Deus principialidade em relação às criaturas, predicam-se da essência divina (e não das pessoas divinas). Consequentemente, se a verdade, em Deus, for entendida no sentido próprio, conclui-se que ela é predicada da essência divina (e não das pessoas), ainda que se predique de maneira especial da Pessoa do Filho, como ocorre com as criações do espírito e com tudo o que concerne à inteligência. Metaforicamente, e em sentido análogo, fala-se da verdade em Deus, quando a compreendemos no sentido em que reside nas coisas criadas, caso em que falamos de verdade no sentido de que estas imitam o seu princípio originante, ou seja, a inteligência divina. Em consequência, semelhantemente a verdade em Deus se denomina, neste sentido, a imagem ou imitação do princípio originante, o que compete à Pessoa do Filho. Nesta acepção, a verdade se predica no sentido próprio da pessoa (e não da essência): no caso, do Filho. Assim se exprime Agostinho na obra Sobre a Verdadeira Religião. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. A resposta segue do que acabamos de expor. 2. A igualdade, quando predicada de Deus, por vezes designa uma diferença entre as pessoas; assim é, por exemplo, quando dizemos que o Pai e o Filho são iguais. Entendida neste sentido, a concordância ou igualdade implica uma diferença real entre os dois termos da relação. Em outros casos, porém, os termos conformidade e igualdade não implicam nenhuma diferença real, mas apenas uma distinção racional. Assim, por exemplo, quando afirmamos que a sabedoria e a bondade de Deus se identificam. Por conseguinte, a concordância ou identidade não implica necessariamente uma diferença entre as pessoas. Ora, tal é a diferença expressa pelo termo verdade, quando a definimos como a conformidade concordância igualdade entre a inteligência cognoscente e a essência de Deus. 3. Se bem que a verdade seja concebida pela inteligência, todavia o termo verdade não exprime o conceito de concepção, como acontece com o termo palavra. Por conseguinte, não existe a semelhança invocada pelo argumento. ARTIGO OITAVO Todas as verdades derivam da Verdade Primeira? I - TESE: NÃO PARECERIA QUE TODAS AS VERDADES DERIVAM DA VERDADE PRIMEIRA. 1. E verdadeiro que este homem comete fornicação. Ora, isto não procede da Verdade Primeira. Logo, nem toda verdade deriva da Verdade Primeira. 2. Ao argumento acima pode-se objetar, porém, que a verdade do sinal ou da inteligência, em virtude da qual isto se denomina verdadeiro, procede de Deus, não porém a verdade em virtude da qual se refere à coisa. A isto se responde: além da Verdade Primeira não existe apenas a verdade do sinal ou do intelecto, mas também a verdade da coisa. Portanto, se a verdade acima (este homem comete fornicação) não procede de Deus no que se refere à coisa, esta verdade da coisa não derivará de Deus, e assim segue a mesma conclusão, isto é, que nem todas as verdades derivam de Deus. 3. Além disso, segue: Este homem comete fornicação. Logo, é verdade que este homem comete fornicação, para que se opere a descida da verdade da proposição para a verdade do afirmado, a qual exprime a verdade da coisa. Consequentemente, a mencionada verdade consiste no fato de que este determinado ato se combina com este determinado sujeito. Ora, a verdade do afirmado não derivará da combinação do citado ato com o sujeito, a não ser que se entenda a combinação do ato feito imoralmente. Logo, a verdade da coisa se verifica não só em relação à própria essência do ato, mas também quanto à imoralidade. Ora, o mencionado ato (fornicação), considerado do ponto de vista da imoralidade, de forma alguma procede de Deus. Logo, nem todas as verdades derivam de Deus. 4. Além disso, Anselmo afirma que uma coisa se denomina verdadeira enquanto é tal como deve ser. Entre os modos segundo os quais se pode dizer que a coisa deve ser, Anselmo cita um modo, segundo o qual se diz que a coisa deve ser, pelo fato de que aconteceu com a permissão de Deus. Ora, a permissão de Deus se estende também à imoralidade do ato. Logo, a verdade da coisa engloba a mencionada imoralidade. Ora, a referida imoralidade de modo algum procede de Deus. Logo, nem todas as verdades derivam de Deus. 5. Ao argumento acima pode-se objetar: assim como a imoralidade ou a privação de alguma coisa não se denominam entes no sentido adequado, mas apenas no sentido analógico, da mesma forma se diz que o mencionado ato contém a verdade em sentido adequado, mas apenas com restrições. Ora, tal verdade tomada em sentido analógico não deriva de Deus. A isto se pode responder: O conceito de verdadeiro acrescenta ao de ente a relação com a inteligência. Ora, a privação ou a imoralidade, embora não sejam em si entes pura e simplesmente, todavia são apreendidas pelo intelecto, pura e simplesmente. Por conseguinte, ainda que não sejam entes no sentido adequado do termo, constituem verdade em sentido próprio. 6. Além disso, tudo aquilo que é ente apenas em sentido analógico pode ser reduzido a algo que é ente pura e simplesmente, em sentido próprio. Assim, por exemplo, o afirmar que este cidadão etíope é branco por causa dos dentes brancos se reduz a afirmar que os dentes deste cidadão etíope são brancos. Consequentemente, se uma verdade, pelo fato de ser tal em sentido analógico, não derivasse de Deus, dever-se-ia concluir também que nem todas as verdades denominadas tais pura e simplesmente procedem de Deus. O que seria absurdo. 7. Além disso, aquilo que não é causa de uma causa, tampouco é causa do efeito, assim como Deus não é a causa da imoralidade, por não ser a causa da deficiência no livre arbítrio, da qual provém a imoralidade. Assim como o ser é a causa da verdade nas proposições afirmativas, da mesma forma o não ser é a causa das proposições negativas. Logo, já que Deus não é a causa do que é não ente, conforme afirma Agostinho no livro LXXXIII das Questões , conclui-se que Deus não é a causa das proposições negativas. Logo, nem todas as verdades derivam de Deus. 8. Além disso, Agostinho afirma no livro dos Solilóquios que é verdadeiro aquilo que aparece tal como de fato é. Ora, uma determinada ação má aparece tal como de fato é. Logo, esta determinada ação má é verdadeira. Ora, nenhum mal vem de Deus. Logo, nem tudo o que é verdadeiro deriva de Deus. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE TODAS AS VERDADES PROCEDEM DA VERDADE PRIMEIRA. 1. A propósito da passagem da Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, capítulo XII, versículo 3 ("Ninguém, falando sob ação divina, pode dizer: 'Jesus seja maldito', e ninguém pode dizer: 'Jesus é o Senhor', senão sob a ação do Espírito Santo"), afirma Ambrósio: "Tudo o que é verdadeiro, por quem quer que seja dito. procede do Espírito Santo". 2. Além disso, toda bondade criada procede da Primeira Bondade Incriada, que é Deus. Logo, pela mesma razão toda verdade procede da Verdade Primeira, que é Deus. 3. Além disso, o conceito de verdade se efetiva na inteligência. Ora, toda inteligência deriva de Deus. Logo, toda verdade deriva de Deus. 4. Além disso, Agostinho afirma no livro dos Solilóquios que verdadeiro é aquilo que é. Ora, todo ser deriva de Deus. Logo, toda verdade provém de Deus. 5. Além disso, da mesma forma que o uno é conversível com o ente, assim também acontece com o verdadeiro. Ora, toda unidade procede da Unidade Primeira. Logo, também toda verdade deriva da Verdade Primeira. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Conforme acima expusemos, nas coisas criadas a verdade se encontra tanto nas próprias coisas como na inteligência. Nesta última, enquanto concorda com as coisas que chega a conhecer; nas coisas, enquanto concordam com a inteligência divina, a qual constitui a medida das mesmas, assim como a arte criadora humana é a medida de todas as suas produções. De certo modo a verdade reside também nas coisas criadas, enquanto têm aptidão para produzir uma compreensão verdadeira no intelecto humano, o qual tem nas coisas a sua medida comensurante. A coisa, existente fora do intelecto, mediante a sua forma imita (realiza) o modelo-projeto criador da inteligência de Deus. É precisamente em virtude desta conformidade com o projeto modelo divino que a coisa é capaz de produzir uma compreensão verdadeira de si mesma, sendo também graças à sua forma que toda coisa tem o ser. Por isso a verdade das coisas inclui em seu conceito o ser (entitas) das mesmas, acrescentando-lhe ainda a relação de conformidade concordância com o intelecto divino ou humano. Ao contrário, as negações e privações, que existem fora do intelecto e da alma, não possuem forma alguma, através da qual pudessem imitar-realizar o modelo-projeto do plano criador de Deus ou produzir a compreensão de si mesmas no espírito humano. Quando estão em conformidade com a nossa inteligência, isto está fundado na inteligência, que apreende o seu sentido. Em consequência, ao falar-se de uma pedra verdadeira e de uma cegueira verdadeira, observar-se-á que a verdade não se predica da mesma forma nos dois casos. A verdade que se predica da pedra contém em seu sentido o ser da pedra, acrescentando a isto a relação com a inteligência, relação que é causada pela própria pedra, uma vez que esta possui algo que torna possível a mencionada relação. Não acontece o mesmo com a verdade predicada da cegueira. Pois tal verdade não inclui em si a privação, na qual consiste a cegueira, mas inclui tão somente a relação da cegueira com a inteligência cognoscente. Ora, esta relação não tem nenhum fundamento da parte da cegueira, pois a conformidade da cegueira com o intelecto não se baseia em algo que a cegueira possua em si mesma. Como resultado temos o seguinte: a verdade que se encontra nas coisas criadas não pode compreender em si outra coisa senão o ser da respectiva coisa, e a sua conformidade com o conhecimento, bem como a conformidade do conhecimento com as coisas ou as privações das coisas. Tudo isto provém de Deus, uma vez que de Deus deriva também a forma das coisas, através da qual subsiste a mencionada conformidade concordância, como de Deus provém outrossim a própria verdade, como o bem ou o valor que é próprio da inteligência, segundo se lê no livro VI da Ética, isto é, que o valor de cada coisa consiste no seu agir perfeito. Ora, não existe nenhum outro agir perfeito da inteligência, a não ser o fato de ela conhecer a verdade. Assim, é na verdade que consiste o valor da inteligência. Ora, já que todo o bem e toda forma procedem de Deus, deve-se afirmar sem reservas que toda verdade tem a sua origem em Deus. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. Ao argumentar-se assim — Tudo o que é verdadeiro procede de Deus; ora, é verdadeiro que este homem comete fornicação — ocorre uma falácia, conforme se deduz do que acabamos de expor. Com efeito, ao dizermos que a fornicação é verdadeira, não afirmamos isto no sentido de que a imoralidade presente no ato da fornicação estaria incluída no conceito da verdade. O verdadeiro, no caso, designa apenas a conformidade deste ato com a inteligência. Por conseguinte, a conclusão que segue do argumento não é "A fornicação deste homem procede de Deus", mas "A verdade deste ato procede de Deus". 2. Conforme se evidencia da nossa exposição precedente, a imoralidade e outras deficiências não encerram a verdade do mesmo modo que as outras coisas. Por isso, embora a verdade das deficiências proceda de Deus, disto não se infere que as deficiências em si mesmas derivem de Deus. 3. Segundo o Filósofo no livro VI da Metafísica a verdade não consiste na composição ou combinação que reside nas coisas, mas na combinação operada pela inteligência. Aplicando ao presente caso: a verdade não consiste no fato de este ato (fornicação), conjuntamente com a sua qualificação imoral, inerir ao sujeito que o pratica, visto que tal diz respeito à Moral, que trata do bem e do mal. A verdade, no caso, consiste no fato de o ato praticado pelo sujeito estar em conformidade com o conhecimento da inteligência que o apreende. 4. O bom, o devido, o reto e todas as outras noções congêneres não têm a mesma relação em se tratando da permissão divina e de outros sinais da vontade de Deus. Neste último caso as mencionadas noções referem-se tanto àquilo que recai sob o ato da vontade como ao próprio ato da vontade. Assim, quando se diz que Deus ordena honrar os pais, a qualificação de "bom" cabe tanto à honra prestada aos pais como ao próprio Deus prescrever este dever de honrar os pais. Ao contrário, quando se trata de permissão, a qualificação de "bom" refere-se apenas ao ato de Deus permitir, e não ao que recai sob a permissão, isto é, o ato que é permitido por Deus. Logo, é bom o fato de Deus permitir ao homem cometer atos imorais. Disto não segue, todavia, que a imoralidade como tal encerre qualquer retidão ou bondade. 5. A resposta se deduz do ponto IV. 6. A verdade existente nas negações e nas deficiências reduz-se à verdade pura e simplesmente, verdade que reside na inteligência e que deriva de Deus. Consequentemente, o que procede de Deus é a verdade da existência dessas deficiências, e não as deficiências em si mesmas. 7. O não ser não constitui a causa da verdade das proposições negativas, como se as produzisse no intelecto. É a própria inteligência que faz isto, pondo-se em conformidade com o não ente que está fora da inteligência. Portanto, o não ser existente fora da inteligência não é causa eficiente da verdade, mas antes causa exemplar. Ora, o argumento aduzido supõe haver causalidade exemplar eficiente. 8. Embora o mal em si mesmo não proceda de Deus, provém de Deus, sim, o fato de a ação má ser julgada tal qual de fato é. Por conseguinte, a verdade em virtude da qual é verdadeiro que a citada ação é má deriva de Deus. ARTIGO NONO A verdade existirá nos sentidos? I — TESE: PARECERIA NÃO EXISTIR VERDADE NOS SENTIDOS. 1. Anselmo afirma no livro Sobre a Verdade que a verdade consiste na retidão, perceptível exclusivamente à inteligência. Ora, os sentidos não pertencem à natureza da inteligência. Logo, a verdade não reside nos sentidos. 2. Além disso, no livro LXXXIII das Questões, Agostinho demonstrou que a verdade do corpo não é conhecida pelos sentidos, sendo que as razões por ele invocadas foram expostas mais acima. Logo, a verdade não reside nos sentidos. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE EXISTE VERDADE NOS SENTIDOS. Efetivamente, no livro Sobre a Verdadeira Religião (capítulo XXXVI), Agostinho afirma que a verdade é aquilo mediante o qual se revela aquilo que é. Ora, aquilo que é aparece não só à inteligência mas também aos sentidos. Logo, a verdade reside também nos sentidos. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. A verdade está tanto na inteligência como nos sentidos, ainda que de maneira diversa. Na inteligência, a verdade reside como alguma coisa que resulta da atividade do intelecto, e como algo que é conhecido através da inteligência. Com efeito, a verdade resulta da atividade do intelecto, enquanto o juízo da inteligência diz respeito à coisa conforme o seu ser. A verdade é conhecida pelo intelecto, enquanto este reflete sobre o seu próprio ato. Isto, não apenas enquanto a inteligência conhece o seu próprio ato, mas também enquanto conhece a relação do ato com a coisa. Ora, isto só pode ser conhecido se se conhece a própria natureza do ato, e isto, por sua vez, só pode ser conhecido se se conhece a natureza do princípio ativo, que é a própria inteligência, a qual por natureza está inclinada a colocar-se em conformidade com as coisas. É por isto que a inteligência apreende a verdade enquanto reflete sobre si mesma. Outra é a maneira segundo a qual a verdade reside nos sentidos. Neles a verdade se encontra como algo que resulta da atividade dos mesmos, pois a verdade está nos sentidos, na medida em que o juízo dos mesmos diz respeito às coisas. Contudo, a verdade não se encontra nos sentidos como algo que foi conhecido por eles. Pois, quando o conhecimento sensitivo emite um juízo correto sobre as coisas, é importante notar que este conhecimento sensitivo — ao contrário do conhecimento intelectivo — não conhece a verdade através da qual julga corretamente. Pois, embora a faculdade sensitiva conheça e saiba que está agindo, não conhece a sua própria natureza, e consequentemente também não a natureza do seu agir e as relações deste último com as coisas, e por conseguinte também não a sua verdade. A razão disto está no seguinte: o que é mais perfeito dentro da esfera dos seres, como as substâncias espirituais, volta à sua própria essência com um regresso completo. Com efeito, para que alguma coisa possa conhecer algo que está fora dela, necessita de certa forma sair de si mesma; no momento, porém, em que toma consciência de que está conhecendo, já começa a voltar para si mesma, visto que o ato de conhecer está a meio caminho entre o elemento cognoscente e o elemento conhecido. A mencionada volta se completa enquanto o elemento cognoscente conhece a sua própria essência. Por isso se lê no livro Sobre as Causas que aquele que conhece a sua própria essência volta à sua própria essência em um regresso completo. O conhecimento sensitivo, por ser o que mais do que todos se aproxima do conhecimento próprio das substâncias espirituais, começa, sim, a voltar à sua própria essência, pois não conhece apenas o que cai sob o domínio dos sentidos, mas também o fato de estar em ação. Todavia, a sua volta à própria essência não chega a completar-se, porquanto o conhecimento sensitivo não conhece a sua própria essência. Para Avicena, a razão disto está no fato de o conhecimento sensitivo só se poder efetuar através de um órgão corporal. Ora, é impossível que um órgão se interponha entre a capacidade cognoscitiva dos sentidos e ela mesma. Com efeito, as potências naturais destituídas de sensibilidade de forma alguma podem voltar a si mesmas, pois não são capazes de tomar consciência de estarem agindo. Assim, por exemplo, o fogo não sabe que aquece. As respostas aos argumentos da tese e da contratese seguem do que acabamos de expor. ARTIGO DÉCIMO Existirá alguma coisa falsa? I — TESE: PARECERIA NÃO HAVER NADA QUE SEJA FALSO. 1. Segundo Agostinho, no livro dos Solilóquios, verdadeiro é aquilo que é. Logo, falso é aquilo que não é. Ora, aquilo que não é, não é coisa alguma. Logo, nada existe que seja falso. 2. A isto se poderia objetar: o verdadeiro é uma diferença que especifica o ente, e por conseguinte, assim como o verdadeiro é aquilo que é, da mesma forma o falso. Replica-se a isto: nenhuma diferença divisiva é conversível com aquilo de que é diferença. Ora, o verdadeiro é conversível com o ente, conforme ficou dito. Logo, o verdadeiro não é uma diferença divisiva do ente, para que alguma coisa possa dizer-se falsa. 3. Além disso, a verdade é a conformidade da coisa com o intelecto. Ora, todas as coisas estão em conformidade com a inteligência divina, visto que nada pode ser em si diferente do que é na inteligência divina. Logo, todas as coisas são verdadeiras, e consequentemente nada é falso. 4. Além disso, toda verdade encerra a verdade a seu modo. Com efeito, um homem se denomina verdadeiro pelo fato de ter a verdadeira forma de homem. Ora, não existe nenhuma coisa que não possua alguma forma, visto que todo ser procede da forma. Logo, todas as coisas são verdadeiras, e consequentemente nada existe que seja falso. 5. Além disso, o verdadeiro está para o falso da mesma forma que o bom para o mau. Ora, já que o mal reside nas coisas (que são em si boas), o mau só se concretiza no bom, como afirmam Dionísio e Agostinho. Logo, se a falsidade residisse nas coisas, seguir-se-ia que ela só se concretiza no verdadeiro. Ora, isto parece impossível, pois, se assim fora, uma e mesma coisa seria verdadeira e falsa, o que é impossível. 6. Além disso, Agostinho, no livro dos Solilóquios, formula a seguinte objeção. Se uma coisa "se denomina falsa, isto acontece ou porque é semelhante ou porque é dessemelhante. Se for por ser dessemelhante, nada existe que não se possa denominar falso, visto não haver nada que não seja dessemelhante de alguma coisa. Se for por ser semelhante, todas" as coisas reclamam ser verdadeiras pelo fato de serem semelhantes. Logo, de maneira alguma pode-se encontrar falsidade nas coisas. II — CONTRATESE: PARECERIA HAVER COISAS FALSAS. 1. Nos Solilóquios, Agostinho dá a seguinte definição de falso: "Falso é aquilo que se conforma em ser apenas semelhança de alguma coisa, não chegando a ser aquilo de que traz a semelhança. Ora, toda coisa criada traz a semelhança de Deus. Logo, uma vez que nenhuma coisa criada chega a ser igual a Deus, parece que toda criatura é falsa". 2. Além disso, afirma Agostinho no livro Sobre a Verdadeira Religião: "Todo corpo é um corpo verdadeiro e uma unidade falsa". Afirma ser uma falsa unidade, pelo fato de o corpo imitar a unidade, sem chegar a constituir uma verdadeira unidade. Ora, já que toda coisa criada, em qualquer uma das suas perfeições, imita a perfeição de Deus e no entanto dista infinitamente dela, parece que toda criatura é falsa. 3. Além disso, assim como o verdadeiro é conversível com o ente, da mesma forma o bom. Ora, o fato de que o bom é conversível com o ente não impede que alguma coisa seja má. Analogamente, tampouco pelo fato de o verdadeiro ser conversível com o ente impede que alguma coisa seja falsa. 4. No livro Sobre a Verdade, Anselmo afirma que a verdade de uma proposição é dupla. A primeira se verifica quando a proposição significa realmente o que está destinada a significar: por exemplo, a proposição — Sócrates está sentado — significa que Sócrates está sentado, quer o esteja, quer não. A segunda verdade se verifica quando a proposição significa aquilo para o que foi formulada. Com efeito, a proposição é formulada para significar o ser, quando este é realmente; e, segundo isto, a enunciação se diz verdadeira em sentido próprio. Logo, em virtude da mesma razão, toda coisa se denominará verdadeira quando cumpre aquilo para o que existe, e falsa, quando não o cumpre. Ora, toda coisa que não atinge o seu fim (falha no atingimento de sua meta) não cumpre aquilo para o que existe. Logo, já que existem muitas coisas assim, parece que há muitas coisas falsas. III — RESPOSTA À QUESTÃO ENUNCIADA. Assim como a verdade consiste na conformidade da coisa com o conhecimento, assim a falsidade consiste na não conformidade entre o conhecimento e a coisa. Ora, a coisa (objeto do conhecimento) é comparada tanto com a inteligência divina como com a humana, segundo expusemos acima. Em relação com o intelecto divino, a coisa é comparada como o elemento comensurado com o seu critério comensurante, no que concerne ao que é predicado positivamente das coisas ou ao que nelas se encontra. Pois todas estas coisas procedem do plano criador do espírito de Deus. A coisa é também comparada com a inteligência divina como o elemento conhecido com o elemento cognoscente. Nesse sentido, as próprias negações e defeitos estão em conformidade com a inteligência de Deus, visto que Ele conhece todas essas deficiências, embora não sendo Ele a causa das mesmas. Neste sentido é evidente que tudo está em conformidade com a inteligência divina, desde que permaneça na existência, sob qualquer forma que seja, mesmo sob o aspecto de privação ou de defeito. Em resultância disto, é também patente que toda e qualquer coisa é sempre verdadeira, se comparada com a inteligência divina, no dizer de Anselmo no livro Sobre a Verdade. Por conseguinte, existe verdade em todos os entes, pois aqui estão as coisas que se encontram na Verdade Suprema. Em consequência, nenhuma coisa pode ser falsa, se comparada com a inteligência de Deus. Quando, porém, as coisas são comparadas com a inteligência humana, então, sim, verifica-se por vezes uma desconformidade entre a coisa e o conhecimento, discordância que de certo modo é causada pela própria coisa. Com efeito, a coisa provoca na inteligência um conhecimento de si mesma, através daquilo que dela aparece externamente, visto que o nosso conhecimento começa pelos sentidos, cujo objeto natural são as qualidades sensíveis. Por isso se lê no primeiro livro Sobre a Alma que os acidentes contribuem muito para o conhecimento daquilo que constitui uma determinada coisa. Por conseguinte, quando em certa coisa aparecem externamente qualidades sensíveis as quais denotam uma natureza que não lhes corresponde, neste caso dizemos que esta coisa é falsa. Nesta linha, o Filósofo afirma que falso é aquilo que, conaturalmente, ou aparece diversamente do que é na realidade, ou parece ser uma coisa que na realidade não é. Por exemplo, ouro falso é aquele cuja cor e outros acidentes congêneres aparecem externamente como sendo de ouro, porém a sua natureza interna não lhes corresponde. Todavia, se é verdade que a própria coisa é causa da falsidade gerada na alma humana, não é verdade que o seja por necessidade, como se a coisa gerasse necessariamente o juízo falso da nossa inteligência. Com efeito, tanto a verdade como a falsidade têm a sua sede antes de tudo no julgamento dado pela inteligência. Ora, a inteligência, ao emitir um juízo sobre as coisas, não é passiva, mas antes ativa, ao menos de certo modo. Por isso, a coisa não se denomina falsa pelo fato de sempre provocar um juízo falso, mas pelo fato de que conaturalmente tende a provocar tal juízo através do que dela aparece externamente. Uma vez que, como já dissemos, o essencial é a comparação da coisa com a inteligência divina, deve-se afirmar que, com respeito ao intelecto de Deus, toda coisa é em si verdadeira. Ao contrário, a comparação (da coisa) com a inteligência humana é acidental: em relação a ela, a coisa não se pode denominar sempre absolutamente verdadeira. Em consequência, em si (simpliciter loquendo) toda coisa é verdadeira e nenhuma é falsa. Conforme as circunstâncias, porém (secundum quid), isto é, com referência ao nosso intelecto, certas coisas se denominam falsas. Em razão disso, impõe-se responder aos argumentos de ambas as partes. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. A definição "Verdadeiro é aquilo que é" não exprime com perfeição o conceito de verdade, mas apenas de maneira, digamos assim, material, enquanto o ser significa a afirmação da proposição, ou seja: verdadeiro é aquilo que se denomina e se conhece tal como realmente é. Analogamente se diz que falso é aquilo que não é, no sentido de que não é na realidade tal como se diz e se entende ser. Ora, isto pode acontecer nas coisas. 2. O verdadeiro, em se falando com propriedade de termos, não pode ser uma diferença específica do ente, pois este não possui diferença específica, como está demonstrado no livro III da Metafísica. Todavia, uma coisa verdadeira é, em relação ao ente, como uma diferença específica, como o bom, isto é, enquanto exprime acerca do ente algo que não está expresso neste termo. Sob este aspecto o conceito de ente é indeterminado com respeito ao verdadeiro. Assim sendo, o conceito de verdadeiro está para o ente como a diferença específica para o gênero. 3. É necessário admitir a razão invocada, pois afirma a conformidade da coisa em ordem ao intelecto divino (e neste sentido nenhuma coisa pode ser falsa). 4. Se bem que toda coisa possua alguma forma, todavia nem todos possuem aquele tipo de forma cujos indícios aparecem externamente através de qualidades sensíveis; e neste sentido a coisa se denomina falsa, enquanto de per si é capaz de, ou mesmo tende a produzir um juízo falso na inteligência humana. 5. Uma coisa existente fora da inteligência denomina-se falsa — conforme acima demonstramos — pelo fato de tender a produzir um juízo falso ao ser apreendida pela inteligência. Por conseguinte, o que se denomina falso, necessariamente é um ente. Consequentemente, já que todo ente, enquanto tal é verdadeiro, necessariamente a falsidade existente nas coisas funda-se na verdade. Por isso Agostinho diz no livro dos Solilóquios que o ator que em uma tragédia representa pessoas verdadeiras no palco não seria falso se não fosse um verdadeiro ator. Analogamente, um cavalo pintado num quadro não seria um cavalo falso se não fosse mera pintura. Disto não segue que os contraditórios sejam verdadeiros, pois a afirmação e a negação, enquanto expressa o verdadeiro e o falso, não se referem à mesma coisa. 6. Uma coisa se denomina falsa na medida em que tende a enganar. Quando digo enganar, tenciono expressar alguma ação que inclui deficiência. Ora, nada tende a agir senão enquanto é um ente, e toda deficiência é um não ente. Ora, toda coisa, enquanto é um ente, encerra semelhança de verdade, ao passo que, enquanto não o é, carece de semelhança com a verdade. Por isso, quando digo enganar, se isto se referir à ação, tem a sua origem da semelhança; se, porém, se referir à deficiência, na qual consiste formalmente o conceito de falsidade, provém da dessemelhança. É por esta razão que, no livro Sobre a Verdadeira Religião, Agostinho afirma que a falsidade se origina da dessemelhança. V — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA CONTRATESE. 1. A inteligência não costuma ser enganada por toda e qualquer semelhança, mas apenas por uma grande semelhança, na qual a dessemelhança é dificilmente identificável. Conforme a semelhança for maior ou menor, a inteligência se equivoca segundo a capacidade maior ou menor que tem de discernimento para descobrir a semelhança. Tampouco se deve considerar falsa uma coisa que pode induzir a um erro insignificante, mas apenas uma coisa que tende a induzir ao erro muitas pessoas, e pessoas sábias. Ora, as coisas criadas, embora tragam em si mesmas certa semelhança de Deus, todavia apresentam também dessemelhanças muito grandes em relação a Deus, de modo que a semelhança só pode induzir ao erro pessoas muito tolas. Consequentemente, a invocada semelhança e dessemelhança das coisas criadas em relação a Deus não autoriza a concluir que todas as coisas criadas devam denominar-se falsas. 2. Existia, no tempo de Agostinho, quem acreditasse que Deus tem corpo. E, já que Deus é a unidade mediante a qual todas as coisas são unas, acreditavam que o corpo é a própria unidade, devido à própria semelhança da unidade. Portanto, Agostinho denomina uma falsa unidade enquanto induziu ou pode ainda induzir alguns ao erro de pensar que ele constitui uma unidade. 3. Existe uma dupla perfeição: a assim chamada perfeição primária e a perfeição secundária. A perfeição primária é aquela forma de toda e qualquer coisa, em virtude da qual ela é um ente. Esta perfeição, nenhuma coisa a perde, enquanto subsistir. A perfeição secundária consiste na operação, a qual constitui a finalidade da coisa, ou seja, aquilo em força do qual se atinge o fim. Esta perfeição, por vezes, a coisa a perde. Ora, o conceito de verdadeiro deriva da perfeição primária das coisas. Com efeito, pelo fato de a coisa possuir a sua forma, realiza o modelo da inteligência divina e produz o conhecimento de si mesma no intelecto humano. O conceito de bondade provém da perfeição secundária. É por isso que o mal se encontra sem mais nas próprias coisas, ao passo que o falso não. 4. Segundo o Filósofo, no livro III da Ética, a verdade é a meta e o primeiro valor da inteligência, visto que esta só é perfeita quando o que ela concebe é verdadeiro. Ora, já que a enunciação é a expressão do conhecimento da inteligência, por isso a verdade constitui o seu fim. Nas outras coisas, porém, não é assim. Logo, deve-se negar a paridade invocada no argumento. O fato de uma coisa não cumprir cem por cento o fim para o qual existe, não autoriza a denominá-la falsa. ARTIGO ONZE Existirá falsidade nos sentidos? I — TESE: NÃO PARECERIA EXISTIR FALSIDADE NOS SENTIDOS. 1. A inteligência é sempre reta, conforme se diz no livro III da obra Sobre a Alma. Ora, o intelecto constitui a parte superior no homem. Logo, tampouco as outras partes comportam falsidade, assim como no mundo dos seres superiores as coisas inferiores estão dispostas segundo as superiores. Logo, também os sentidos, que constituem a parte inferior da alma, sempre serão retos, e consequentemente não há neles falsidade. 2. Além disso, Agostinho afirma no livro Sobre a Verdadeira Religião: "Os próprios olhos não nos enganam, pois só podem transmitir-nos o que lhes vem das coisas. Se todos os sentidos do corpo transmitem simplesmente o que lhes vem das coisas, não sei o que mais poderíamos exigir deles". Logo, não existe falsidade nos sentidos. 3. Além disso, diz Anselmo no livro Sobre a Verdade: "Acredito que a verdade ou a falsidade não se encontra nos sentidos, mas no nosso juízo". Logo, não existe falsidade nos sentidos. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE PODE HAVER FALSIDADE NOS SENTIDOS. 1. Anselmo afirma o seguinte: "A verdade reside nos nossos sentidos, mas não pura e simplesmente, visto que as coisas por vezes enganam". 2. Além disso, no dizer de Agostinho no livro dos Solilóquios, costuma denominar-se falso o que está muito longe de verossimilhança, porém apresenta alguma semelhança com o verdadeiro. Ora, os sentidos têm certa semelhança de algumas coisas que não são assim na realidade. Assim, por vezes acontece que os olhos enxergam duas coisas onde só existe uma. Logo, existe falsidade nos sentidos. 3. Ao argumento acima se poderia objetar. Os sentidos não se enganam nas coisas sensíveis próprias da sua esfera, mas enganam-se acerca das coisas comuns. A isto se pode replicar. Sempre que os sentidos apreendem uma coisa de maneira diferente do que ela é na realidade, a apreensão é falsa. Ora, quando um corpo branco é enxergado através de um vidro verde, os sentidos têm uma apreensão do objeto diferente do que ele é, pois o enxergam verde: e o julgarão verde, se não houver um juízo superior que descubra a falsidade. Portanto, os sentidos enganam-se também nas coisas sensíveis que são próprias à sua esfera. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. O nosso conhecimento, que parte das coisas, segue esta ordem: principia nos sentidos e completa-se na inteligência, de forma que os sentidos corporais se situam de certa maneira a meio caminho entre as coisas e a inteligência. Comparados às coisas, são como que algo de espiritual intelectual; comparados ao conhecimento espiritual, são como que coisas. Em consequência, diz-se que há falsidade nos sentidos, em uma dupla acepção. Primeiramente, conforme a relação do conhecimento sensitivo ao conhecimento espiritual-intelectual. Nesta acepção, os sentidos se denominam verdadeiros ou falsos como uma coisa, na medida em que provocam um juízo correto ou falso na inteligência. Em segundo lugar, conforme a relação dos sentidos com as coisas. Nesta acepção se diz que a verdade e a falsidade estão nos sentidos da mesma forma que na inteligência, isto é, enquanto se julga que alguma coisa é o que é, ou não é o que não é. Se, portanto, falarmos dos sentidos conforme a primeira acepção, dir-se-á que em certa acepção existe falsidade nos sentidos, em outra não. Com efeito, o sentido humano é uma coisa em si mesma, e ao mesmo tempo é algo que remete para outra coisa. Por conseguinte, se os sentidos forem comparados à inteligência, enquanto coisa, neste sentido não existe falsidade alguma em comparação com o intelecto. Pois, conforme for a sensação que os sentidos recebem das coisas, esta mesma sensação transmitem-na à inteligência. Por isso afirma Agostinho no livro Sobre a Verdadeira Religião que os sentidos não podem transmitir outra coisa senão a reação que lhes provocam as coisas. Se, porém, os sentidos forem comparados à inteligência, enquanto constituem algo que remete a outra coisa, neste caso por vezes representam as coisas de maneira diferente do que na realidade estas são, denominam-se falsos, enquanto conaturalmente tendem a provocar um juízo falso na inteligência, embora não o façam necessariamente, como dissemos, aliás, também das coisas. Com efeito, o juízo que a inteligência emite acerca das coisas, emite-o também sobre aquilo que lhe é oferecido pelos sentidos. Destarte, os sentidos, quando comparados com a inteligência sempre provocam um juízo correto em relação à sua própria disposição, não, porém, em relação à disposição das coisas. Por conseguinte, se os sentidos se consideram enquanto comparados com as coisas, deve-se dizer que neles há falsidade e verdade da mesma maneira que na inteligência. Ora, na inteligência a verdade e a falsidade se encontram primária e originariamente no juízo da atividade de síntese e de análise do intelecto; na formação das quididades, porém, só através da relação com o juízo que resulta da mencionada formação. Por isso se fala, nos sentidos, de verdade e de falsidade como algo que lhes é próprio, enquanto emitem juízos sobre o que pertence à esfera do sensível. Todavia, enquanto os sentidos apreendem coisas sensíveis, não se fala de verdade e falsidade no sentido próprio, mas só segundo a relação com o juízo que deriva da mencionada formação; ou seja, enquanto de tal apreensão é natural que siga tal juízo. O juízo de um determinado sentido sobre certas coisas se verifica naturalmente: por exemplo, o juízo sobre os dados sensitivos que lhes são próprios. Ao contrário, o juízo de um determinado sentido acerca de outras coisas se faz mediante certa comparação que no homem é feita pela força cognoscitiva, a qual é a potência da parte sensitiva, em lugar da qual, nos animais, está o juízo instintivo. Consequentemente, os sentidos emitem juízos sobre dados sensitivos comuns e sobre dados sensitivos acidentais. O agir natural de cada coisa, porém, se realiza sempre da mesma maneira, se não for impedido por algo de acidental, por exemplo, alguma deficiência interna ou algum obstáculo externo. Por consequência, o juízo que um determinado sentido formula sobre os dados sensitivos que lhe são próprios é sempre verdadeiro, a não ser que haja um obstáculo no órgão ou no meio de transmissão. Em se tratando, porém, dos dados sensitivos comuns e dos acidentais, os sentidos por vezes se enganam. Destarte, torna-se evidente em que sentido pode ocorrer falsidade no julgamento formulado pelos sentidos. No que concerne à apreensão por parte dos sentidos, importa saber que existe certa força apreensiva, que apreende a imagem sensível das coisas como um sentido criado especialmente para isto, quando a coisa sensível está presente. Existe também outra força, que apreende a imagem sensível das coisas, quando estas estão ausentes: tal é a imaginação. Por isso, os sentidos apreendem sempre a coisa como é na realidade, a não ser que haja algum impedimento no órgão ou na transmissão. Ao contrário, a imaginação via de regra apreende a coisa diferente do que é, porquanto apreende a coisa como presente, estando ela ausente. Nesta linha o Filósofo afirma no livro IV da sua Metafísica que a responsabilidade pela falsidade não cabe aos sentidos, mas à fantasia. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. No mundo dos seres superiores, estes nada recebem dos inferiores, mas é o inverso que ocorre. Ao contrário, em se tratando do homem, o intelecto, que é superior, recebe dos sentidos. Por conseguinte, a paridade invocada pelo argumento não existe. A resposta aos outros argumentos se deduz facilmente do que expusemos no ponto III deste artigo. ARTIGO DOZE Existirá falsidade na inteligência? I — TESE: NÃO PARECERIA HAVER FALSIDADE NA INTELIGÊNCIA. 1. O intelecto tem dois modos de operar: um é aquele mediante o qual forma as quididades das coisas, e nesta operação não há falsidade, como diz o Filósofo no livro III Sobre a Alma; o outro é aquele mediante o qual opera a síntese e a análise, sendo que também aqui não há falsidade, segundo se demonstra por Agostinho no livro Sobre a Verdadeira Religião, onde se lê: "Ninguém compreende coisas falsas". Logo, não existe falsidade no intelecto. 2. Lê-se em Agostinho, no livro LXXXIII das Questões: "Se alguém se engana, é porque não entende aquilo em que se engana". Logo, a inteligência é sempre verdadeira, e consequentemente não pode haver falsidade nela. 3. Al Gazali (teólogo árabe) afirma: "De duas. uma: ou compreendemos uma coisa como ela é, ou não compreendemos". Ora, todo aquele que compreende uma coisa como ela é, compreende de modo verdadeiro. Logo, o intelecto é sempre verdadeiro, e portanto não existe falsidade nele. II — CONTRATESE: PARECERIA EXISTIR FALSIDADE NA INTELIGÊNCIA. Pois o Filósofo afirma, no livro III Sobre a Alma, que, onde existe combinação ou síntese das coisas apreendidas (no intelecto sintetizante). ali já existem mesclados o verdadeiro e o falso. Logo, existe falsidade na inteligência. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. O termo intelecto ou inteligência, pela sua própria etimologia, significa que ele conhece o íntimo das coisas, pois o latim intelligere equivale a intus legere, ou seja, "ler dentro". Os sentidos e a imaginação apreendem apenas os acidentes externos, ao passo que a inteligência, e só ela, penetra até à essência das coisas. Todavia, para além disso, a inteligência, partindo das essências das coisas apreendidas, opera de muitas maneiras através do raciocínio e da pesquisa. O termo intelecto ou inteligência pode revestir duas acepções. A) No primeiro sentido, a inteligência se entende apenas em relação àquilo de que provém originariamente a designação. Nesta acepção falamos de "inteligência" e de "compreender" no sentido próprio, quando apreendemos as quididades das coisas, ou então, quando conhecemos o que é imediatamente conhecido em uma coisa, ao conhecermos a sua quididade. Tais são os primeiros princípios que compreendemos tão logo apreendemos os termos. Por isso denomina-se a inteligência o hábito dos princípios. A quididade de uma coisa constitui o objeto próprio da inteligência. Por conseguinte, assim como a apreensão sensitiva dos dados sensitivos específicos é sempre verdadeira, da mesma forma é sempre verdadeiro o conhecimento intelectual na apreensão daquilo que alguma coisa é. Todavia, acidentalmente pode ocorrer falsidade também aqui, isto é, enquanto a inteligência opera uma síntese ou uma análise falsa. Isto pode acontecer de duas maneiras. A primeira, quando a inteligência aplica a definição de uma coisa à outra: por exemplo, tomando a definição de "ser vivente racional e mortal" e aplicando-a ao asno. Ou, então, quando a inteligência combina partes de uma definição que não se podem combinar; por exemplo, definindo o asno como um ser irracional e imortal. Com efeito, o juízo "um ser irracional e imortal" é falso. Daqui se deduz que uma definição só pode ser falsa na medida em que implica uma afirmação falsa. Este duplo modo de verificar-se falsidade na inteligência humana é mencionado no livro V da Metafísica. Analogamente, também no terreno dos primeiros princípios não existe engano. Em consequência, se a inteligência se entender no seu sentido originário de "ler dentro", não pode existir falsidade nela. B) Todavia, a inteligência pode ser entendida também no sentido comum, isto é, enquanto abarca todas as operações, tais como o opinar e o raciocinar. Nesta acepção pode haver falsidade no intelecto. Nunca, porém, haverá falsidade se a redução aos primeiros princípios se fizer de modo correto. A resposta aos argumentos da tese e da contratese segue do exposto.