Tomás de Aquino – Súmula Contra os Gentios CAPITULO PRIMEIRO O ofício do sábio. "Minha boca meditará sobre a verdade; meus lábios maldirão o ímpio.” O uso comum que, no entender do Filósofo (Aristóteles), deve ser seguido quando se trata de dar nome às coisas, manda que se chamem sábios aqueles que organizam diretamente as coisas e presidem ao seu reto governo. Entre outras ideias, o Filósofo afirma que "o ofício do sábio é colocar ordem nas coisas". Ora, todos quantos têm o ofício de ordenar as coisas em função de uma meta devem haurir desta meta a regra do seu governo e da ordem que criam, uma vez que todo ser só ocupa o seu devido lugar quando é devidamente ordenado ao seu fim, já que o fim constitui o bem de todas as coisas. Assim também acontece no setor das artes. Constatamos, efetivamente, que uma arte, detentora de um fim, desempenha em relação a outra arte o papel de reguladora e, por assim dizer, de princípio. A medicina, por exemplo, preside à farmacologia e a regula, pelo fato de que a saúde, que é o objeto da medicina, constitui a meta ou o objetivo de todos os remédios cuja composição compete à farmacologia. O mesmo acontece com a arte de pilotar, com respeito à arte de construir navios, e com a arte da guerra, com respeito à cavalaria e aos fornecimentos militares. Estas artes, que presidem a outras, chamamo-las arquitetônicas ou artes principais, e os que se dedicam a elas, e que denominamos arquitetos, fazem jus ao nome de sábios. Todavia, sendo que tais profissionais tratam dos fins em áreas particulares, e não atingem o fim último e universal de todas as coisas, denominamo-los sábios nesta ou naquela área, do mesmo modo como São Paulo Apóstolo afirma "ter colocado os fundamentos como um sábio arquiteto". O nome de sábio, pura e simplesmente, isto é, no sentido estrito do termo, está reservado àqueles que tomam por objeto de sua reflexão o fim ou a meta do universo, que constitui ao mesmo tempo o princípio de tudo. É neste sentido que, para o Filósofo, o ofício do sábio é o estudo das causas mais altas. Ora, o fim último de cada coisa é o que é visado pelo seu primeiro Autor e causa motora. E o primeiro Autor e causa motora do universo é uma inteligência, como veremos mais adiante. Por conseguinte, o fim supremo do universo é o bem da inteligência. Este bem consiste na verdade. Consequentemente, a verdade será o fim último de todo o universo, e a grande preocupação primária da sabedoria consistirá no estudo desta verdade. Aliás, foi para manifestar a verdade que a divina Sabedoria, depois de ter revestido a nossa carne humana, declara ter vindo a este mundo: "Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade". A seu turno, o Filósofo declara que a Primeira Filosofia é a ciência da verdade: não de qualquer verdade, mas daquela verdade que constitui a fonte de toda verdade e propriedade do princípio primário do ser de todas as coisas que existem. Esta verdade é o princípio de toda verdade, já que o estabelecimento dos seres na verdade vai de par em par com o seu estabelecimento no ser. Ora, é próprio de um e mesmo sujeito cultivar um dos elementos contrários e refutar ou rejeitar o outro. Assim, por exemplo, a medicina, que é a arte de restaurar a saúde, é também a arte de combater as enfermidades. Por conseguinte, assim como o oficio do sábio é meditar sobre a verdade, sobretudo a partir do primeiro princípio, e dissertar sobre as outras coisas, da mesma forma compete-lhe combater contra os erros contrários à verdade. Este duplo ofício do sábio está exposto com perfeição pela Sabedoria, nas palavras que citamos ao início deste capítulo: o sentido do mencionado versículo é dizer a verdade divina, que é a verdade por excelência e por antonomásia: "Minha boca meditará sobre a verdade". E o sentido do outro versículo ("Meus lábios maldirão o ímpio") é: combater contra o erro que se opõe à verdade. Este último versículo designa o erro que se opõe à verdade divina, erro que é contrário à religião, sendo que esta última recebe também o nome de piedade, o que explica por que o erro contrário recebe o nome de impiedade. CAPITULO SEGUNDO O plano do autor. Dentre todos os estudos aos quais se dedicam os homens, o estudo da sabedoria supera a todos em perfeição, em sublimidade, em utilidade e em alegria que proporciona. Supera em perfeição, pois, quanto mais o homem se dedica à sabedoria, tanto mais participa da verdadeira felicidade. Com efeito, o Sábio afirma: "Feliz o homem que se aplicar ao estudo da sabedoria". Em sublimidade, pois é sobretudo em virtude do estudo da sabedoria que o homem se aproxima da semelhança com Deus, o qual "tudo fez com sabedoria"; e, uma vez que a semelhança com alguém causa o amor, o estudo da sabedoria une de maneira especial a Deus na amizade, o que faz com que o livro da Sabedoria diga que a sabedoria constitui para todos os homens "um tesouro inesgotável, um tesouro tal, que os que dele hauriram participaram da amizade de Deus". O estudo da sabedoria ultrapassa todos os outros também em utilidade, pois a própria sabedoria conduz ao reino da imortalidade, como declara o Livro da Sabedoria: "O desejo da sabedoria conduzirá ao reino eterno". Supera, finalmente, em alegria que proporciona, pois "o contato e a comunhão com a sabedoria não comportam nem amargura nem tristeza, mas só prazer e alegria". Haurindo, portanto, da misericórdia de Deus a audácia de assumir o ofício de sábio, ofício que ultrapassa as nossas forças, propusemo-nos, na medida de nossas possibilidades, expor a verdade professada pela fé católica e refutar os erros contrários. Para retomar as palavras de Santo Hilário, "o ofício primário da minha vida, ofício ao qual me sinto vinculado em consciência diante de Deus, é que todas as minhas palavras e todos os meus sentimentos falem d'Ele”. E difícil refutar todos os erros, e isto por duas razões. A primeira está em que as afirmações sacrílegas de cada um daqueles que caíram no erro não nos são conhecidas a tal ponto que possamos extrair delas argumentos para confundi-los. Aliás, era assim que procediam os antigos doutores para destruir os erros dos pagãos, cujas posições podiam conhecer, ou porque eles mesmos haviam sido pagãos, ou porque pelo menos viviam entre os pagãos e conheciam os seus ensinamentos. A segunda razão que nos impede de refutar todos os erros contrários à fé católica é que alguns dos autores desses erros, como os maometanos e os pagãos, não concordam conosco no reconhecimento da autoridade das Sagradas Escrituras, mediante as quais poderíamos convencê-los, ao passo que, com respeito aos judeus, podemos discutir à base do Antigo Testamento, e, com respeito aos cristãos heréticos, podemos discutir com base nos escritos do Novo Testamento. Assim sendo, somos obrigados a recorrer à razão natural, à qual todos devem necessariamente aderir. Acontece, porém, que a razão natural pode enganar-se nas coisas de Deus. No estudo atento que faremos de uma determinada verdade particular, mostraremos quais são os erros que esta verdade exclui, e ao mesmo tempo exporemos como esta verdade, estabelecida pela via demonstrativa, concorda com a fé da religião cristã. CAPÍTULO TERCEIRO A possibilidade de descobrir a verdade divina. Existem muitas maneiras de descobrir a verdade. Como diz muito bem o Filósofo (Aristóteles), citado por Boécio, "é próprio do homem culto exigir, em cada assunto, o rigor que comporta a natureza da matéria". Consequentemente, cumpre-nos começar por mostrar de que maneira se pode descobrir a verdade proposta. As verdades que professamos acerca de Deus revestem uma dupla modalidade. Com efeito, existem a respeito de Deus verdades que ultrapassam totalmente as capacidades da razão humana. Uma delas é, por exemplo, que Deus é trino e uno. Ao contrário, existem verdades que podem ser atingidas pela razão: por exemplo, que Deus existe, que há um só Deus, etc. Estas últimas verdades, os próprios filósofos as provaram por via demonstrativa, guiados que eram pelo lume da razão natural. Que existe em Deus um domínio ininteligível, o qual ultrapassa totalmente as capacidades da razão humana, é evidente. O princípio de todo conhecimento que a inteligência pode conseguir acerca de uma coisa é o conhecimento da substância desta coisa, visto que, segundo o ensinamento do Filósofo, o princípio de demonstração é '"aquilo que uma coisa é". Por conseguinte, a maneira pela qual a substância da coisa é apreendida pela inteligência comandará necessariamente a maneira pela qual se conhecerá tudo quanto diz respeito a esta coisa. Se, portanto, a inteligência humana apreende a substância de uma determinada coisa, por exemplo, da pedra ou do triângulo, nada do que está dentro do domínio inteligível desta coisa ultrapassará a capacidade da razão humana. Tal não é o nosso caso com referência a Deus. A inteligência humana é incapaz, pelas suas próprias forças, de apreender a substância ou a essência íntima de Deus. Com efeito, o nosso conhecimento intelectual, conforme o modo próprio da vida presente, tem seu ponto de partida nos sentidos corporais, de tal modo que tudo o que não cai sob o domínio dos sentidos não pode ser apreendido pela inteligência humana, a não ser na medida em que os objetos sensíveis (acessíveis aos sentidos) permitem deduzir a existência de tais coisas. Ora, os objetos sensíveis não podem conduzir a nossa inteligência a enxergar neles aquilo que constitui a substância ou essência divina, pois se verifica uma diferença de nível entre os efeitos e o poder da coisa. E, todavia, os objetos sensíveis conduzem a nossa inteligência a certo conhecimento de Deus, até ao ponto de conhecermos que Ele existe, e mesmo até conhecermos tudo o que se deve atribuir ao primeiro princípio. Por conseguinte, existem em Deus verdades inteligíveis, as quais são acessíveis à razão humana: em contrapartida, outras há que superam totalmente as forças da razão humana. É fácil fazer a mesma constatação a partir dos graus de conhecimento que podemos ter das coisas. Tomemos dois seres, dos quais um possui um conhecimento mais agudo de uma coisa do que o outro: o que tem a inteligência mais aguda conhece muitas coisas que o outro é incapaz de apreender. E o caso que se dá com o camponês, que é incapaz de compreender as sutis considerações da Filosofia. Ora, a inteligência dos anjos supera de muito a dos homens, em proporção muito maior do que a inteligência do filósofo mais profundo supera a inteligência do ignorante mais rude, pois esta última diferença permanece dentro dos limites da espécie humana, limites que a inteligência dos anjos ultrapassa. O conhecimento que o anjo possui de Deus é tanto mais profundo e perfeito do que o conhecimento que o homem possa lograr de Deus, quanto o seu ponto de partida é um efeito mais nobre, na medida em que a própria substância do anjo, a qual por um conhecimento natural o conduz até ao conhecimento de Deus, supera em dignidade as coisas sensíveis e a própria alma humana, que faz a inteligência humana altear-se até ao conhecimento de Deus. Todavia, quanto mais a inteligência de Deus ultrapassa a do anjo! Muito mais do que a inteligência do anjo ultrapassa a do homem! Pois a capacidade da inteligência de Deus está no mesmo nível com a sua substância. Em razão disto, Deus conhece perfeitamente o que Ele é, conhece tudo o que n'Ele constitui objeto de conhecimento. O anjo não conhece por conhecimento natural o que é Deus, pois a própria substância do anjo, que constitui para ele o instrumento para conhecer a Deus, constitui um efeito que não atinge o nível do poder da causa. Da mesma forma, o anjo não pode apreender por conhecimento natural tudo o que Deus conhece acerca de si mesmo, como tampouco a razão humana é capaz de apreender tudo quanto o anjo conhece em virtude do seu poder natural. Consequentemente, assim como seria loucura um ignorante julgar falso o que ensina um filósofo, sob pretexto de que não o pode compreender, da mesma forma, e com muito maior razão ainda, seria para o homem uma grande tolice julgar falso o que é revelado pelo ministério dos anjos, sob pretexto de que a razão humana não consegue descobrir tais coisas. As deficiências que experimentamos dia por dia no conhecimento das coisas nos transmitem o mesmo ensinamento. Ignoramos a maioria das propriedades das coisas sensíveis, e na maior parte dos casos somos incapazes de descobrir plenamente as razões dessas propriedades que os nossos sentidos percebem. Com muito maior razão, a inteligência do homem não chega a descobrir todas as realidades inteligíveis desta substância altíssima que é Deus. Tudo isto concorda com o ensinamento do Filósofo Aristóteles, que afirma em seu segundo livro da Metafísica que a nossa inteligência se comporta com respeito aos seres mais altos, que por natureza são os mais evidentes, da mesma maneira que os olhos do morcego se comportam com relação ao sol. Também a Sagrada Escritura afirma o mesmo. Com efeito, lê-se no livro de Jó, no capítulo 11: "Pretendes por acaso compreender os vestígios de Deus, e descobrir à perfeição o Todo-poderoso?" E no capítulo 31 lê-se: "Sim, Deus é tão grande que ultrapassa o nosso conhecimento". Lemos além disso na Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios: "'Só conhecemos parcialmente". Em consequência, tudo aquilo que é dito acerca de Deus, e que a razão humana em si mesma é incapaz de descobrir, não deve ser de imediato considerado como falso, como acreditaram os maniqueus e a maior parte dos infiéis. CAPITULO QUARTO É justo que as verdades divinas acessíveis à razão nos sejam propostas como objetos de fé. Uma vez que em Deus há duas espécies de verdades, algumas das quais são acessíveis à nossa inteligência e outras ultrapassam totalmente as nossas capacidades, é justo que Deus proponha como objetos de fé tanto umas como outras. Comecemos por demonstrar isto, com referência às verdades que são acessíveis à nossa razão natural. Com isto daremos uma resposta àqueles que consideram inútil a transmissão de tais verdades como objetos de fé por via de inspiração sobrenatural, de vez que tais verdades nos são conhecidas através de nosso próprio conhecimento natural. Verificar-se-iam três grandes inconvenientes, se tais verdades naturais acerca de Deus estivessem abandonadas exclusivamente às forças da razão humana. O primeiro deles está em que poucos homens desfrutariam do conhecimento de Deus. Pois para chegar a tal conhecimento exige-se uma longa e laboriosa busca, o que é impossível para a maior parte dos homens, por três motivos. Primeiramente, certas pessoas são afastadas desta busca por más disposições de seu próprio temperamento, que as desviam do saber. Nenhum estudo seria capaz de fazer com que tais pessoas atingissem o ponto mais alto do conhecimento humano, isto é, o conhecimento de Deus. Para outros o obstáculo é constituído pelos afazeres materiais. E indispensável que haja, entre os homens, quem se ocupe com a administração dos bens temporais. A estes falta, evidentemente, o tempo necessário para a busca contemplativa que lhes permitiria atingir o ápice da pesquisa humana, ou seja, o conhecimento de Deus. Para outros, enfim, o obstáculo é a preguiça. O conhecimento de tudo o que a razão pode descobrir acerca de Deus exige preliminarmente numerosos conhecimentos, pois quase toda a reflexão filosófica está orientada para o conhecimento de Deus. Esta é a razão pela qual a Metafísica, consagrada ao estudo das coisas divinas, ocupa cronologicamente o último lugar no ensinamento das disciplinas filosóficas. Por conseguinte, ninguém pode entregar-se à pesquisa da verdade divina sem muito trabalho e diligência. Este trabalho, muito poucos estão dispostos a assumi-lo por amor à ciência, embora Deus tenha colocado este desejo no mais profundo do coração humano. O segundo inconveniente que surgiria, caso Deus não houvesse revelado sobrenaturalmente as verdades que, em si, são acessíveis à razão natural, consistiria no seguinte: os homens que chegassem à descoberta de tais verdades só o conseguiriam com dificuldade e após muito tempo de busca. Isto, devido à profundidade desta verdade, profundidade que só se consegue compreender pela simples razão natural, se a inteligência humana primeiro se capacitar para isto mediante um longo tirocínio; além disso, em razão da necessidade de múltiplos conhecimentos preliminares, como já foi dito; finalmente, pelo fato de que, no período da juventude, a alma é agitada pelos diversos movimentos das paixões e consequentemente não tem aptidões para conhecer uma verdade tão profunda, uma vez que, no dizer do Filósofo no sétimo livro da Física, o homem se torna prudente e sábio somente à medida que as suas paixões se acalmam. Em consequência, se o único caminho para o conhecimento de Deus fosse a razão natural, o gênero humano permaneceria envolto nas trevas mais profundas da ignorância: o conhecimento de Deus, que contribui enormemente para tornar os homens perfeitos e bons. constituiria o privilégio de um pequeno grupo de pessoas, e mesmo estes só chegariam a este privilégio após muito tempo de pesquisa. O terceiro grande inconveniente de que acima falávamos consistiria no seguinte: as pesquisas da razão humana estariam, na maioria dos casos, eivadas de erros, em razão da fraqueza conatural da nossa inteligência, em razão também da mistura das imagens. Para muitos permaneceriam dúvidas em relação ao que é demonstrado como verdade absoluta, por não conhecerem o valor da demonstração, e sobretudo pela incapacidade de discernir a veracidade ou nãoveracidade dos que se apresentam como sábios. Face a tudo isto, era necessário que Deus transmitisse aos homens, pelo caminho da fé, uma certeza bem firme e uma verdade sem mescla, no que concerne às coisas de Deus. Ora, a misericórdia divina proveu a isto de maneira salutar, obrigando-nos a aceitar como objetos de fé aquelas mesmas coisas que, de per si, seriam acessíveis à razão. Desta maneira, todos têm a possibilidade de participar do conhecimento de Deus, sem perigo de dúvida ou de erro. Esta é a razão pela qual se lê na Epístola aos Efésios: '"Não vos comporteis como fazem os pagãos na vaidade dos seus julgamentos e dos seus pensamentos entrevados". E em Isaías lemos: "Todos os teus filhos serão instruídos pelo Senhor". CAPÍTULO QUINTO É justo que as verdades inacessíveis à razão sejam propostas aos homens como objetos de fé. Possivelmente parecerá a alguns que Deus não deveria propor ao homem como objeto de fé a não ser quanto a sua razão pode descobrir. Com efeito, a sabedoria divina não costuma porventura prover às necessidades de cada um segundo a sua natureza? Diante disto, cumpre-nos demonstrar agora que é necessário, para o homem, que Deus lhe proponha como objeto de fé aquelas coisas que ultrapassam as forças da sua razão. Ninguém tende a uma determinada coisa pelo desejo e pelo estudo, se tal coisa não lhe for previamente conhecida. Ora, uma vez que a Providência divina — como veremos mais adiante — destina os homens a uma felicidade bem maior do que aquela que a fraqueza humana pode experienciar no decurso da vida presente, era necessário que o espírito humano fosse atraído a um nível mais elevado do que aquele que a nossa razão pode alcançar na terra, a fim de que aprenda o que se deve desejar e se empenhe em buscar aquilo que supera totalmente o estado da vida presente. Esta é a função principal da religião cristã, a qual, mais do que qualquer outra, promete bens espirituais e eternos. Razão pela qual a maior parte das verdades que esta religião propõe supera o intelecto do homem, ao passo que a Lei antiga, que prometia sobretudo coisas temporais, propunha poucas coisas que ultrapassam as forças da razão humana. É também por isto que os grandes filósofos antigos, no intuito de conduzir os homens dos prazeres sensíveis à vida virtuosa, se empenhavam em demonstrar que há outros bens superiores aos sensíveis, cujo gozo delicia de maneira muito mais delicada os que se entregam às virtudes da vida ativa ou às virtudes da vida contemplativa. Há outro motivo que justifica a transmissão das verdades inacessíveis à razão, por parte de Deus: tal revelação é necessária para que desfrutemos de um conhecimento mais verdadeiro de Deus. Efetivamente, só podemos dizer que conhecemos verdadeiramente a Deus se o conhecermos como alguém que está acima de tudo o que o homem possa conceber, visto que o conhecimento de Deus ultrapassa o nosso conhecimento natural, como expusemos acima. Pelo fato de o homem perceber que Deus lhe propõe verdades divinas superiores à sua razão, confirma-se ainda mais nele a crença de que este Deus é superior a tudo quanto se possa pensar. Outra consequência derivante da revelação sobrenatural consiste na eliminação deste vício que é a presunção humana, presunção que constitui a mãe de todos os erros. Certos homens, com efeito, confiam a tal ponto em suas capacidades, que timbram em medir a natureza inteira com o metro da sua inteligência, estimando verdadeiro tudo o que enxergam e falso tudo o que não enxergam. A fim de que o espírito humano, liberto de tal presunção, pudesse conquistar a verdade com modéstia, era necessário que Deus propusesse à sua inteligência certas verdades totalmente inacessíveis à sua razão. No livro X de sua Ética, o Filósofo (Aristóteles) aponta outra razão da utilidade ou necessidade de uma revelação sobrenatural. A propósito de certo Simônides, que queria convencer os homens a renunciar a conhecer a Deus e a dirigir a sua pesquisa para as realidades humanas, afirmando que o homem deve degustar as coisas humanas, e o ser mortal deve desfrutar as coisas mortais, o Filósofo afirma que o liberto na medida de suas possibilidades, deve altear-se ao nível das coisas imortais e divinas. Igualmente, no livro XI Sobre os Animais, afirma que, por mais limitado que seja o nosso conhecimento acerca das substâncias superiores, este pouco é mais desejado e mais amado que todo o conhecimento que possamos adquirir das coisas inferiores. Ainda mais, no livro II da obra Sobre o Céu e o Mundo, afirma que, por mais limitada que seja a solução que conseguirmos encontrar para os problemas que representam para nós os corpos celestes, a alegria que os discípulos sentem é intensíssima. Tudo isto demonstra que o conhecimento das realidades mais nobres, por mais imperfeito que seja, confere à alma uma perfeição muito alta. Mesmo que a razão humana não consiga apreender plenamente as verdades suprarracionais, haure delas uma grande perfeição ao recebê-las de alguma forma pela via da revelação sobrenatural, ao menos de alguma maneira. Eis por que se lê no Livro do Eclesiástico: "Muitas coisas te foram reveladas, que ultrapassam o espírito humano". E na primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios: "Ninguém conhece os segredos de Deus, a não ser o Espírito de Deus. Ora, Deus no-los revelou através do Seu Espírito". CAPÍTULO SEXTO Não constitui leviandade dar assentimento às coisas da fé, mesmo quando ultrapassam a nossa razão. No dizer da segunda Epístola de São Pedro, os que dão fé a tal verdade, "cuja experiência não pode ser feita pela razão humana", não agem com leviandade, "como se andassem atrás de fábulas sofisticadas". Pois foi a própria Sabedoria divina, que conhece perfeitamente todas as coisas, quem se dignou revelar "estes segredos da Sabedoria divina". Com efeito, Deus manifestou a sua presença, bem como a verdade do seu ensinamento e da sua inspiração, através de provas adequadas, operando de maneira bem visível coisas que ultrapassam de muito as possibilidades da natureza inteira, no intuito de confirmar as verdades que superam as forças do intelecto humano: curas maravilhosas de enfermos, ressurreições de mortos, alterações impressionantes dos corpos celestes e, o que é mais admirável, inspiração do espírito dos homens, de tal modo, que pessoas ignorantes e simples, uma vez repletas do dom do Espírito Santo, lograram em um instante a mais alta sabedoria humana e a mais elevada eloquência. Face a tais coisas, uma inumerável multidão, movida pela eficácia de uma tal demonstração, não pela violência das armas nem pela promessa de prazeres materiais, e, o que é ainda mais impressionante, sob a tirania dos perseguidores, não somente pessoas simples, mas também pessoas muito sábias, inscreveram-se sob o signo da fé cristã, esta fé que prega verdades inacessíveis à inteligência humana, reprime os desejos da carne e ensina a desprezar todos os bens do presente mundo. Que os espíritos dos mortais deem o seu assentimento a tudo isto, e que, menosprezando as realidades visíveis, só se desejem os bens invisíveis, eis certamente o maior milagre e a obra evidente da inspiração de Deus. Tudo isto não aconteceu de um só golpe e como que ao acaso, mas conforme uma disposição divina. Para comprová-lo, existe o fato de que Deus, muito tempo antes, predisse tudo isso pela boca dos Profetas, cujos livros nós veneramos, visto que são portadores de um testemunho em favor da nossa fé. A Epístola aos Hebreus faz referência a este tipo de confirmação, ao dizer: "Esta — a salvação do homem — inaugurada pela pregação do Senhor, nos foi garantida por aqueles que o ouviram, apoiando Deus mesmo os testemunhos deles mediante sinais, prodígios e diversas comunicações do Espírito Santo". Esta tão admirável conversão do mundo a Jesus Cristo constitui uma prova muito firme em favor dos milagres antigos, tal que não é necessário que eles se renovem, pois transparecem com evidência nos seus efeitos. Certamente seria um milagre mais impressionante do que todos os outros o fato de que o mundo tenha sido vocacionado, sem sinais dignos de admiração, por homens simples e de extração humilde, a crer verdades tão altas, a operar obras tão difíceis, a esperar bens tão elevados. E, mesmo assim. Deus, ainda em nossos dias, não cessa de confirmar a nossa fé pelos milagres dos seus santos. Os fundadores de seitas procederam de maneira inversa. Tal é o caso evidente de Maomé, que seduziu os povos com promessas de prazeres carnais, a cuja base está a concupiscência da carne. Soltando as rédeas à voluptuosidade, Maomé promulgou mandamentos conformes às suas promessas, mandamentos aos quais os homens carnais podem obedecer com facilidade. No que concerne às verdades. Maomé só revelou verdades fáceis de compreender para qualquer espírito medianamente aberto. Em compensação, entremeou as verdades do seu ensinamento com muitas fábulas e com as doutrinas mais falsas. Não trouxe quaisquer provas sobrenaturais, as únicas que constituem um testemunho adequado em favor da inspiração divina, quando uma obra visível, a qual só pode ser obra de Deus, demonstra que o doutor de verdade é invisivelmente inspirado por Deus. Ao contrário. Maomé alegava que tinha sido enviado para usar a força das armas, provas que costumam aduzir os ladrões, assaltantes e tiranos. De resto, os que desde o começo creram nele não foram pessoas instruídas nas ciências humanas e divinas, mas homens selvagens, habitantes dos desertos, completamente ignorantes de qualquer ciência de Deus, sendo que um grande número deles o ajudou, pela violência das armas, a impor a sua lei aos outros povos. Além disso, não há nenhuma profecia divina que dê testemunho em favor de Maomé. Ao contrário, Maomé deforma os ensinamentos do Antigo e do Novo Testamento mediante histórias legendárias, como se torna evidente a todo aquele que estudar a sua lei. Além disso, usando de uma medida cheia de astúcia, proíbe aos seus discípulos a leitura dos livros do Antigo e do Novo Testamento, que poderiam convencê-los de laborarem em erro. É, por conseguinte, evidente que os que dão crédito às palavras de Maomé o fazem com leviandade. CAPÍTULO SÉTIMO As verdades da razão natural não contradizem as verdades da fé cristã. Se é verdade que a verdade da fé cristã ultrapassa as capacidades da razão humana, nem por isso os princípios inatos naturais à razão podem estar em contradição com esta verdade sobrenatural. É um fato que esses princípios naturalmente inatos à razão humana são absolutamente verdadeiros; são tão verdadeiros, que chega a ser impossível pensar que possam ser falsos. Tampouco é permitido considerar falso aquilo que cremos pela fé, e que Deus confirmou de maneira tão evidente. Já que só o falso constitui o contrário do verdadeiro, como se conclui claramente da definição dos dois conceitos, é impossível que a verdade da fé seja contrária aos princípios que a razão humana conhece em virtude das suas forças naturais. A mesma coisa que o mestre inculca no espírito do seu discípulo, a ciência do mestre a inclui, a menos que este ensinamento do mestre esteja imbuído de hipocrisia, o que não se pode supor em Deus. Ora, o conhecimento dos princípios que nos são conhecidos naturalmente nos é dado por Deus, uma vez que Deus é o autor da nossa natureza. Por conseguinte, tais princípios naturais estão incluídos também na sabedoria divina. Portanto, tudo aquilo que contradiz a tais princípios, contradiz à sabedoria divina. Ora, isto não pode acontecer em Deus. Tudo o que a revelação divina nos manda crer, é impossível que contrarie ao conhecimento natural. Argumentos contrários amarram nossa inteligência e a impedem de chegar ao conhecimento do verdadeiro. Se, portanto, Deus infundisse em nós conhecimentos contrários, a nossa inteligência seria com isso mesmo impedida de conhecer a verdade. Deus não pode fazer tais coisas. Além disso, as propriedades naturais não podem alterar-se enquanto permanecer a natureza das coisas. Ora, no mesmo indivíduo é impossível coexistirem simultaneamente opiniões ou juízos contrários entre si. Consequentemente, Deus não pode infundir no homem opiniões ou uma fé que vão contra os dados do conhecimento adquirido pela razão natural. É isto que faz o Apóstolo São Paulo escrever, na Epístola aos Romanos: "A palavra está bem perto de ti, em teu coração e em teus lábios, ouve: a palavra da fé, que nós pregamos". Todavia, já que a palavra de Deus ultrapassa o entendimento, alguns acreditam que ela esteja em contradição com ele. Isto não pode ocorrer. Também a autoridade de Santo Agostinho o confirma. No segundo livro da obra Sobre o Gênese Comentado ao Pé da Letra, o Santo afirma o seguinte: "Aquilo que a verdade descobrir não pode contrariar aos livros sagrados, quer do Antigo quer do Novo Testamento". Do exposto se infere o seguinte: quaisquer que sejam os argumentos que se aleguem contra a fé cristã, não procedem retamente dos primeiros princípios inatos à natureza e conhecidos por si mesmos. Por conseguinte, não possuem valor demonstrativo, não passando de razões de probabilidade ou sofismáticas. E não é difícil refutá-los. CAPITULO OITAVO Comportamento da razão humana em face da verdade da fé. Para quem reflete, torna-se claro que as realidades sensíveis em si mesmas, que fornecem à razão humana a fonte do conhecimento, conservam nelas certo vestígio de semelhança com Deus, embora se trate de um vestígio tão imperfeito, que é incapaz de exprimir a substância de Deus. Todo efeito possui, a seu modo, certa semelhança com a sua causa, embora o efeito nem sempre atinja a semelhança perfeita com a causa agente. No que concerne ao conhecimento da verdade de fé — verdade que só conhecem à perfeição os que veem a substância divina —, a razão humana se comporta de tal maneira, que é capaz de recolher a seu favor certas verossimilhanças. Indubitavelmente, estas não são suficientes para fazer-nos apreender esta verdade de maneira por assim dizer demonstrativa, ou como por si mesma. Todavia, é útil que o espírito humano se exercite em tais razões, por mais fracas que sejam, desde que não imaginemos que as possamos compreender ou demonstrar. Com efeito, na área das realidades mais elevadas, já constitui uma alegria muito grande o fato de se poder apreender algo, embora com humildade e com fraqueza. O que acabamos de expor é confirmado pela autoridade de Santo Hilário, que em seu livro Sobre a Trindade, em falando da verdade, assim se expressa: Em tua fé, empreende, progride, esforça-te. Sem dúvida, jamais chegarás ao termo, eu o sei, mas felicito-te pelo teu progresso. Quem persegue com fervor o infinito, avança sempre, mesmo se por acaso não chegar ao fim. Todavia, acautela-te ante a pretensão de penetrar o mistério, ante o risco de te afundares no segredo de uma natureza que te possa parecer sem limites, imaginando que estás compreendendo tudo. Procura entender que esta verdade ultrapassa toda e qualquer compreensão. CAPÍTULO NONO Plano e método da presente obra. De quanto até aqui dissemos, evidencia-se que o sábio tem por ofício dirigir o seu esforço à dupla verdade das realidades divinas, ao mesmo tempo que à refutação dos erros opostos à mesma. A uma dessas tarefas, a investigação da razão pode bastar, ao passo que a outra excede todos os recursos do nosso entendimento. É óbvio que, em falando da dupla verdade, não a entendemos da parte do próprio Deus, que constitui a Verdade única e simples, mas da parte do nosso conhecimento, o qual em face às coisas de Deus reveste modalidades diferentes. A manifestação da verdade sob a primeira modalidade exige que procedamos pelo caminho de razões demonstrativas, capazes de convencer o adversário. Ora, tais razões não valem para a verdade considerada sob o segundo aspecto, não se deve visar como finalidade convencer o adversário mediante a argumentação, mas sim dar solução às objeções que ele alega contra a verdade, uma vez que a razão natural não pode contrariar a verdade de fé. Esta maneira peculiar de convencer aqueles que se opõem às verdades de fé é haurida das Escrituras Sagradas, confirmadas divinamente por milagres. Com efeito, o que ultrapassa a razão humana, cremo-lo exclusivamente em virtude da revelação de Deus. No intuito, porém, de aclarar esta verdade, pode-se invocar certos argumentos de probabilidade, nos quais a fé dos que já são cristãos pode encontrar tranquilidade, embora, em relação aos adversários, tais argumentos não se destinem por natureza a convencer. Não convém, portanto, insistir em tais argumentos, pois a própria insuficiência deles confirmaria ainda mais os adversários em seus erros, dando-lhes a impressão de que nós aderimos à verdade de fé estribados em razões tão pobres. Sendo, por conseguinte, nosso intento proceder consoante o método proposto, tentaremos manifestar esta verdade que a fé cristã professa, e que a razão humana descobre, aduzindo argumentos demonstrativos e também argumentos de mera probabilidade, sendo que alguns desses argumentos nos são fornecidos pelas obras dos filósofos e dos santos, os quais servirão para confirmar a verdade e convencer os adversários. Passando a seguir do que é mais claro para o que é menos claro, exporemos esta verdade que ultrapassa a razão humana, refutando os argumentos dos adversários e esclarecendo, na medida em que Deus o permitir, a verdade de fé por argumentos de probabilidade e de autoridade. Portanto, ao propor-nos seguir pelo caminho da razão o que a razão humana pode descobrir acerca de Deus, estudaremos antes de tudo o que é próprio de Deus, considerado em si mesmo. A seguir, estudaremos a origem das coisas criadas, a partir de Deus. Em terceiro lugar, trataremos de ver como as coisas criadas estão ordenadas a Deus como seu fim último. Ora, dentre todas as coisas que nos incumbe estudar acerca de Deus considerado em si mesmo, a primeira, que constitui aliás o fundamento indispensável de toda a presente obra, é a demonstração da existência de Deus. Com efeito, se não estiver bem assentado este ponto, desmorona fatalmente todo o estudo das realidades divinas.