Tomás de Aquino – Compêndio de Teologia (CAPÍTULOS I A XXXVI E LXXVI A C) CAPITULO PRIMEIRO — Proêmio 1. O Filho do Pai Eterno, o qual com a sua imensidade abarca tudo quanto existe, visando a erguer até às alturas da glória divina o homem decaído pelos pecados, quis tornar-se pequeno, assumindo a nossa pequenez e sem abandonar a sua majestade. Para que ninguém pudesse considerar-se escusado de apreender a doutrina celeste, condensou em breve súmula, para os nãoespecialistas, o essencial da doutrina da salvação humana, que havia transmitido para os estudiosos difusamente e com clareza através dos diversos livros das Sagradas Escrituras. Com efeito, a salvação humana consiste no conhecimento da verdade, a fim de que a inteligência humana não seja obscurecida por erros. Além disso, consiste a salvação humana no perseguir o fim devido, para que o homem não se desvie da verdadeira felicidade, buscando objetivos indevidos. Consiste outrossim a salvação humana na observância da justiça, a fim de que o homem não se polua com os diversos vícios. Condensou Jesus Cristo o conhecimento da verdade humana necessária para a salvação em alguns poucos e breves artigos de fé. Eis por que o Apóstolo escreve na Epístola aos Romanos. 9. 28: "Deus usará de palavra breve sobre a terra". Esta é a palavra da fé que pregamos. Retificou a intenção humana pela palavra breve, com a qual, ao mesmo tempo que nos ensinou a orar, revelou a que devem tender a nossa intenção e a nossa esperança. Consumou a justiça humana, a qual consiste na observância da Lei, no preceito único do amor, visto como "a plenitude da Lei é o amor". Daí ensinar o Apóstolo, que toda a perfeição da vida presente consiste na fé, na esperança e na caridade, que constituem como que capítulos a englobarem a nossa salvação, dizendo: "Agora permanecem a fé, a esperança e a caridade". Efetivamente, segundo o dizer de Santo Agostinho, é através destas três virtudes que se cultua a Deus. 2. Para que eu possa, estimadíssimo filho Reginaldo, transmitir-te um compêndio da doutrina cristã que possas ter constantemente diante dos olhos, tudo quanto a seguir tencionamos expor concentra-se em torno a essas três virtudes. Trataremos, pois, em primeiro lugar, da fé, a seguir da esperança, em terceiro lugar da caridade. Esta é a Tradição Apostólica, sendo também o que exige a reta razão. Pois o amor não é verdadeiro se não se estabelecer primeiro o verdadeiro objetivo da esperança; nem tal pode acontecer, se antes não se verificar o conhecimento da verdade. Primeiramente, portanto, é necessária a fé, pela qual possas conhecer a verdade. Em segundo lugar a esperança, através da qual a tua intenção possa atingir o fim devido. Em terceiro lugar é indispensável a caridade, que deve impregnar totalmente o teu espírito. PRIMEIRA PARTE - A FÉ PRIMEIRO TRATADO Deus uno e trino, e as coisas por Ele criadas. CAPÍTULO SEGUNDO — Sequência da exposição sobre a fé. 3. A fé constitui certo antegozo daquele conhecimento que nos fará felizes no futuro. Por isso diz o Apóstolo São Paulo na Epístola aos Hebreus que a fé constitui "a substância das coisas que se esperam", como que fazendo já viverem em nós as coisas esperadas, ou seja, a felicidade futura, à guisa de prelúdio. O Senhor ensinou que este conhecimento que nos torna felizes tem por objeto duas coisas: a divindade da Santíssima Trindade e a humanidade de Jesus Cristo. Eis por que, em se dirigindo ao Pai, Jesus exclamou: "A vida eterna consiste no seguinte: que conheçam a Ti. Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste". Em consequência, é em torno destas duas verdades que gira todo o conhecimento da fé: a divindade da Santíssima Trindade e a humanidade de Jesus Cristo. Tal não é de admirar, visto que a humanidade de Cristo constitui o caminho pelo qual se chega à Divindade. Por isso é necessário, para os que peregrinam no mundo, conhecer a via pela qual se possa atingir a meta. Por outra parte, na pátria celeste a ação de graças a Deus não seria suficiente, se os santos não conhecessem o caminho pelo qual alcançaram a salvação. Eis por que o Senhor Jesus Cristo disse aos seus discípulos: "Conheceis para onde vou, conheceis também o caminho". No que concerne à Divindade, importa conhecer três coisas: primeiramente a unidade da essência divina, em segundo lugar a trindade das Pessoas, em terceiro lugar os efeitos, ou seja, a obra da criação produzida pela Divindade. CAPITULO TERCEIRO — Deus existe. 4. Quanto à unidade da essência divina, a primeira coisa a crer é que Deus existe, o que aliás é óbvio à própria razão. Efetivamente, observamos que tudo quanto se move é movido por outros. Assim, os seres inferiores são movidos pelos superiores, da mesma forma como os elementos são movidos pelos corpos celestes. Nos elementos terrestres, por sua vez, o que é mais forte move o que é mais fraco. Também nos corpos celestes, os inferiores são movidos pelos superiores. Ora, é impossível que este processo se prolongue até ao infinito. Com efeito, se tudo aquilo que é movido por outro é como que um instrumento da primeira causa movente, caso não existisse uma primeira causa movente, todas as causas motoras seriam instrumentos. Se procedermos até ao infinito na sucessão das causas motoras, não existe uma primeira causa motora. Nesta hipótese, todos os infinitos que movem e que são movidos serão instrumentos. Ora, até mesmo os nãos letrados percebem que seria irrisório afirmar que os instrumentos não são movidos por algum agente principal. Equivaleria isto aproximadamente a afirmar a possibilidade de fazer uma caixa ou uma cama com a serra e o machado, porém sem a intervenção de um carpinteiro. Em consequência, é indispensável que haja uma primeira causa motora, superior a todas as outras. A esta causa motora denominamos Deus. CAPÍTULO QUARTO — Deus é imóvel. 5. Daqui se infere ser necessário que o Deus que põe em movimento todas as coisas é imóvel. Com efeito, por ser a primeira causa motora, se Ele mesmo fosse movido, sê-lo-ia ou por si mesmo ou por outro. Ora. Deus não pode ser posto em movimento por outra causa motora, pois neste caso haveria outra causa anterior a Ele, com o que já não seria Ele a primeira causa motora. Se fosse movido por si mesmo, teoricamente isto poderia ocorrer de duas maneiras: ou sendo Deus, sob o mesmo aspecto, causa e efeito ao mesmo tempo, ou sendo Ele, sob um aspecto, causa de si mesmo, e, sob outro, efeito. Ora, a primeira hipótese não pode ocorrer, pois tudo o que é movido está em potência, ao passo que o que move está em ato (na qualidade de causa motora). Se Deus fosse sob um e mesmo aspecto causa e efeito ao mesmo tempo, seria necessariamente potência e ato sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, o que é impossível. Tampouco pode-se verificar a segunda hipótese acima apontada. Pois, se Deus fosse sob um aspecto causa motora, e sob outro efeito movido, já não seria a primeira causa em virtude de si mesmo. Ora, o que é por si mesmo, é anterior ao que não o é. Logo, é necessário que a primeira causa motora seja totalmente imóvel. 6. A mesma argumentação pode ser feita a partir das causas motoras e dos defeitos existentes no universo criado. Com efeito, parece que todo o movimento procede de uma causa imóvel, a qual não é movida segundo o mesmo tipo de movimento. Assim, observamos que os processos de alteração, de geração e de corrupção verificados no reino criado inferior se reduzem ao corpo celeste (o sol) como à sua primeira causa motora, a qual por sua vez não é movida por nenhuma outra situada dentro da mesma esfera, uma vez que não pode ser gerada, nem corrompida, nem alterada. Conclui-se, portanto, necessariamente que Aquele que constitui o princípio primário de todo movimento é totalmente imóvel. CAPITULO QUINTO — Deus é eterno. 7. Do exposto se infere, igualmente, que Deus é eterno. Pois, se algo começa a ser e deixa de ser, isto ocorre porque passa por movimentos ou alterações. Ora, já ficou demonstrado que Deus é totalmente imóvel, consequentemente é também eterno. CAPITULO SEXTO — Deus existe necessariamente por si mesmo. 8. Com isto se demonstra necessário que Deus exista. Pois tudo aquilo que uma vez pode existir e outra vez não existir, é mutável. Já demonstramos, porém, que Deus é totalmente imutável. Portanto, não é possível que Deus uma vez exista e outra vez não exista. Ora, tudo aquilo que existe sem possibilidade de não existir, existe necessariamente, visto ser a mesma coisa o existir necessariamente e o ser impossível não existir. Portanto, a existência de Deus constitui uma necessidade. 9. Além disso, tudo o que pode existir e não existir, necessita de outra causa que o faça passar da não existência para a existência. Ora, tal causa lhe é necessariamente anterior. Nada há, porém, antes de Deus. Portanto, é impossível que Deus uma vez exista e outra vez não exista, senão que a sua existência constitui uma necessidade. Todavia, visto haver algumas coisas necessárias que têm a causa da sua necessidade, a qual necessariamente é anterior às mesmas, Deus, por ser o princípio anterior a tudo quanto existe, não tem, fora de si mesmo, nenhuma causa da sua necessidade de existir. Daqui se infere a necessidade de que Deus exista por si mesmo. CAPITULO SÉTIMO — Deus existe sempre. 10. Disto se conclui que Deus existe sempre. Pois tudo quanto existe necessariamente existe sempre, já que uma coisa cuja não existência é impossível não pode não existir, e por consequência nunca pode deixar de existir. Ora. Deus existe necessariamente, segundo já foi demonstrado. Portanto. Deus existe sempre. 11. Além disso, nada começa ou deixa de existir a não ser em virtude de algum movimento ou de alguma alteração. Já demonstramos, porém, que Deus é absolutamente imutável. Em consequência, é impossível que tenha uma vez começado a existir, ou que um dia deixe de existir. 12. Há mais. Tudo aquilo que não existiu sempre, se um dia começa a existir, carece de outra causa que o traga à existência, visto que nada pode passar por si mesmo da potência ao ato, do não ser ao ser. Deus, porém, não pode ter nenhuma causa fora de si mesmo, por ser o primeiro ente, e a causa é anterior ao efeito. É portanto necessário que Deus tenha existido sempre. 13. Finalmente, alguém que não existe em virtude de alguma causa extrínseca, existe por si mesmo. Ora. Deus não tem a causa do seu existir fora de si mesmo, pois se assim fosse esta causa lhe seria anterior. Logo. Deus tem o ser de si mesmo e por si mesmo. Ora. o que existe por si mesmo existe sempre e necessariamente. Consequentemente, Deus existe sempre. CAPITULO OITAVO — Em Deus não há sucessão temporal. 14. De quanto expusemos até aqui evidencia-se que não há em Deus qualquer sucessão temporal, senão que Deus existe totalmente e simultaneamente. A sucessão temporal ocorre exclusivamente nas coisas que de um modo ou de outro estão sujeitas ao movimento, de vez que são o antes e o depois no movimento que constituem a sucessão temporal. Ora, Deus não está em absoluto sujeito ao movimento, conforme ficou demonstrado. Donde se infere que não há n'Ele qualquer sucessão de tempo. Deus existe em sua totalidade e simultaneamente. 15. Além disso, se o ser de alguma coisa não existir total e simultaneamente, necessariamente algo dela pode desaparecer, e algo de novo lhe pode ocorrer. Desaparece o que nela é passageiro, ocorrendo-lhe de novo o que se espera no futuro. Deus, porém, nada pode perder, nem tampouco nada de novo pode ocorrer-lhe, por ser Ele imóvel. Por isso o seu ser existe na totalidade e simultaneamente. A partir desses dois argumentos depreende-se que Deus é eterno em toda a propriedade do termo. Eterno no sentido estrito da palavra é aquilo que existe sempre, e cujo ser existe totalmente e ao mesmo tempo. É o que ensina Boécio ao dizer que "a eternidade consiste na posse total, simultânea e perfeita da vida sem fim". CAPITULO NONO — Deus é simples. 16. Do exposto segue também que a causa primeira motora é necessariamente simples. Pois em tudo quanto é composto há dois elementos que estão um para o outro como a potência está para o ato. Ora, na primeira causa motora, se for totalmente imóvel, é impossível que haja potência e ato, pois tudo o que está em potência é passível de movimento. Conclui-se daqui a impossibilidade de a primeira causa motora ser composta. 17. Além disso, todo ser composto tem necessariamente outro que o antecede, uma vez que os elementos de um composto são necessariamente anteriores ao próprio composto. Aliás, ao observarmos a ordem dos compostos, constatamos que os elementos mais simples vêm antes, uma vez que os elementos mais simples precedem por natureza aos corpos mistos ou compostos. Entre os próprios elementos, aliás, o primeiro é o fogo, o mais simples de todos. A todos os elementos precede o corpo celeste (o sol), o qual reveste maior simplicidade, isento de qualquer alteração. Também daqui se infere que o primeiro dentre os seres deve ser, por necessidade, totalmente simples. CAPÍTULO DÉCIMO — Deus é a sua própria essência. 18. Conclui-se, igualmente, que Deus é a sua própria essência. Pois a essência de uma coisa consiste naquilo que significa a sua definição. Ora, isto é idêntico à coisa da qual constitui a definição, a não ser acidentalmente, isto é, enquanto à coisa definida ocorre algo que vai além da sua definição. Assim, ao homem pode acrescentar-se o ser branco, além da sua definição de animal racional e mortal. Daí que dizer animal racional e mortal equivale a dizer homem, porém não é a mesma coisa que dizer homem branco, considerando-se o seu ser branco. Por isso, em todas as coisas que não constam de dois elementos, dos quais um é por si mesmo e o outro acidentalmente, a essência das mesmas coincide necessária e totalmente com elas mesmas. Em Deus, que é simples, conforme ficou demonstrado, não existem dois elementos, dos quais um seria por si mesmo e o outro acidentalmente. Em consequência, é necessário que a sua essência seja absolutamente idêntica a Ele mesmo. 19. Além do mais, em todas as coisas em que a essência não coincide totalmente com o ser, encontra-se algo de potência e algo de ato, pois a essência está formalmente para a coisa da qual é a essência da mesma forma que o ser-homem está para o homem. Sendo que em Deus não há potência e ato, mas exclusivamente ato, Ele mesmo constitui a sua essência. CAPÍTULO ONZE — A essência de Deus coincide com o seu ser. 20. É necessário, igualmente, que a essência de Deus coincida com o seu ser. Com efeito, em todas aquelas coisas em que a essência difere do ser, necessariamente há uma diferença entre o seu ser e a sua essência, pois é em virtude do seu ser que se diz existir uma coisa, ao passo que é em virtude da sua essência que se diz o que tal coisa é. Daqui que a definição, ao manifestar a essência de uma coisa, demonstra o que ela é. Ora, em Deus não há diferença entre o seu ser e a sua existência, visto não ser Ele um ser composto, mas simples. N'Ele, portanto, coincidem totalmente a essência e o existir. 21. Além disso, ficou demonstrado que Deus é puro ato, sem qualquer vestígio de potencialidade. Consequentemente, é necessário que a sua essência seja o ato último, pois todo ato que se refere ao último está em potência para o ato último. Acontece que o ato último é o próprio ser. Uma vez que todo movimento consiste em passar da potência ao ato, necessariamente o ato último será aquele para o qual tende todo movimento. E uma vez que o movimento natural tende àquilo que é desejado naturalmente, é necessário que o ato último seja aquele que todos os seres desejam. Tal é o ser. Necessariamente, por conseguinte, a essência divina, por ser o ato puro e último, coincide com o próprio ser de Deus. CAPÍTULO DOZE — Deus não constitui uma espécie enquadrada em um gênero. 22. Conclui-se que Deus não constitui uma espécie enquadrada em algum gênero. Com efeito, é a diferença somada ao gênero que constitui a espécie, donde segue que a essência de qualquer espécie contém algo a mais com respeito ao gênero. Entretanto, o próprio ser, que é a essência divina, nada contém em si que lhe possa ser acrescentado. Por conseguinte. Deus não constitui uma espécie englobada em algum gênero. 23. Analogamente, já que o gênero contém diferenças, em qualquer composto de gênero e diferenças existe ato mesclado à potencialidade. Já mostramos, entretanto, que Deus é puro ato, sem vestígio de potencialidade. Consequentemente, a sua essência não se constitui de gênero e diferenças, e logicamente não está englobada em nenhum gênero. CAPITULO TREZE — É impossível que Deus seja um gênero de alguma coisa. 24. Cumpre agora mostrar que tampouco é possível que Deus seja um gênero. O gênero permite saber o que é uma determinada coisa, não, porém, que a mesma existe, uma vez que são as diferenças específicas que constituem as coisas em seu próprio ser. Ora, o que Deus é, é o próprio ser. Logo, é impossível que Ele seja um gênero. 25. Todo gênero é subdividido por uma série de diferenças específicas. Ao contrário, o próprio ser não comporta diferenças, pois estas não participam do gênero a não ser acidentalmente, enquanto as espécies constituídas pelas diferenças participam do gênero. Não pode haver qualquer diferença que não participe do ser, porquanto o não ser não constitui diferença específica de nada. Por consequência, é impossível que Deus seja o gênero comum que se predica de várias espécies. CAPÍTULO CATORZE — Deus não constitui uma espécie predicável de uma pluralidade de indivíduos. 26. Tampouco é possível que Deus seja como que uma espécie predicável de uma pluralidade de indivíduos. Com efeito, os diversos indivíduos que coincidem em uma essência de espécie distinguem-se por alguns elementos que vão além da essência da espécie, assim como os homens coincidem no "ser-homem" ("humanidade"), diferenciando-se, entretanto, um do outro por aquilo que vai além do conceito de homem. Tal não pode ocorrer em Deus, porquanto Deus é a sua própria essência, conforme ficou demonstrado. Por conseguinte, é impossível que Deus seja uma espécie predicável de uma pluralidade de indivíduos. 27. Vários indivíduos compreendidos sob uma espécie diferem segundo o ser, e todavia coincidem em uma só essência. Por conseguinte, onde quer que haja vários indivíduos sob uma só espécie, necessariamente o ser difere da essência da espécie. Em Deus, contudo, o ser e a essência identificam-se, sendo portanto impossível que Ele seja uma espécie predicável de uma pluralidade de indivíduos. CAPÍTULO QUINZE — Deus é necessariamente uno. 28. Evidencia-se também que necessariamente só pode haver um Deus. Com efeito, na hipótese de haver vários deuses, estes se chamariam tais ou em sentido equívoco ou em sentido unívoco. Se em sentido equívoco, a hipótese não vinga, porquanto nada impede que outros chamem Deus ao que nós denominamos pedra. Se for em sentido unívoco, será necessário que esses pretensos deuses convenham ou no gênero ou na espécie. Ora, já ficou demonstrado que Deus não pode ser nem um gênero nem uma espécie a englobar uma pluralidade de indivíduos. Logo. é impossível a existência de mais de um Deus. 29. É impossível atribuir a mais de um aquilo que individualiza a essência comum. Por conseguinte, embora possa haver muitos homens, é impossível que deste homem concreto possa existir mais do que um exemplar. Se, porém, a essência é individualizada por si mesma e não por algo diferente, é impossível atribuí-la a mais de um indivíduo. Ora, é sabido que a essência divina se individualiza por si própria, visto que em Deus não há diferença entre a essência e o ser, uma vez que ficou demonstrado que Deus é a sua própria essência. Logo, é impossível existir mais do que um Deus. 30. Há uma dupla maneira pela qual uma forma pode ser múltipla: uma é pelas diferenças, como a cor em diversas variantes da mesma; a outra é pelo sujeito, como a brancura. Por conseguinte, toda forma que não pode ser multiplicada através de diferenças, se não for uma forma existente no sujeito, não pode ser multiplicada. Assim, por exemplo, a brancura, se não se concretizar num sujeito, será necessariamente uma só. Acontece que a essência divina é o próprio ser, o qual não comporta diferenças, conforme demonstramos acima. Em consequência, já que o próprio ser divino é como que uma forma subsistente em si mesma, é impossível que a essência de Deus seja mais do que uma, sendo portanto impossível a existência de mais do que um Deus. CAPÍTULO DEZESSEIS — É impossível que Deus seja corpo. 31. Partindo dessas premissas, torna-se também evidente ser impossível que Deus seja corpo. Efetivamente, todo corpo é um conglomerado de partes múltiplas. Aquele que é totalmente simples não pode, por conseguinte, ser um corpo. 32. Como é óbvio, nenhum corpo é capaz de colocar outros em movimento, a não ser movendo-se a si mesmo. Se a primeira causa motora, que é Deus. é absolutamente imóvel, conclui-se para a impossibilidade de ser Ele um corpo. CAPÍTULO DEZESSETE — É impossível que Deus seja uma forma do corpo ou uma força no corpo. 33. Tampouco é possível que Deus seja uma forma do corpo ou uma força no corpo. Com efeito, todo corpo é móvel, e, ao mover-se, move-se também, ao menos acidentalmente, o que nele está. Entretanto, a primeira causa motora não pode mover-se, nem por si mesma nem acidentalmente, por ser ela necessariamente imóvel, conforme ficou comprovado no capítulo IV. Consequentemente, é impossível que Deus seja uma forma ou uma força no corpo. 34. Todo ser ou coisa que move outro, para poder fazê-lo, deve necessariamente ter domínio sobre a coisa movida. De fato, observa-se que, quanto mais a força motora superar a da coisa movida, tanto mais rápido é o movimento. Ora, a que é a primeira de todas as causas motoras deve necessariamente ter o máximo domínio sobre as coisas movidas. Tal não poderia acontecer se a causa motora primária estivesse de qualquer forma subordinada à coisa movida, o que necessariamente ocorreria se fosse a sua forma ou a sua força. Deduz-se, por conseguinte, que a primeira causa motora não pode ser um corpo, nem uma força no corpo, nem uma forma do mesmo. Eis por que Anaxágoras postulou uma inteligência capaz de comandar e de pôr em movimento tudo quanto existe. CAPITULO DEZOITO — Deus é infinito na sua essência. 35. Do exposto pode-se também inferir que Deus é infinito. Não por via de privação, isto é, numa linha de quantidade, como quando se denomina infinito o que, em razão do seu gênero, deveria ter conaturalmente fim, mas na realidade não tem. Deus é infinito por via de negação, isto é, no sentido de que não tem nenhum limite. Pois todo ato é finito em razão da potencialidade, a qual é uma força receptiva. Com efeito, constatamos que as formas são limitadas, segundo a potência da matéria. Se, por conseguinte, a primeira causa motora é puro ato, sem qualquer mescla de potencialidade, e isto pelo fato de não ser nem a forma nem a força de algum corpo, é necessário que esta primeira causa motora seja infinita. 36. E o que demonstra também o reino da criação. Pois, quanto mais altas forem algumas coisas nos seres, tanto maiores são, a seu modo. Com efeito, é entre os elementos superiores que encontramos os quantitativamente maiores, como também na simplicidade. E o que demonstra a sua proveniência, pois, multiplicando-se a proporção, o fogo é tirado do bronze, o ar da água, a água da terra. E evidente que o sol supera a totalidade dos elementos. Necessariamente, portanto, Aquele que é o primeiro de todos os seres, e antes do Qual nada pode existir, deve ser infinito. 37. Não deve causar espécie afirmar que Aquele que é simples e destituído da forma corpórea é infinito e pela sua imensidade supera quantitativamente qualquer corpo, visto que já a nossa inteligência, incorpórea e simples, ultrapassa quantitativamente e abarca todos os corpos, graças ao conhecimento que a caracteriza. Com muito maior razão deve-se dizer que Aquele que é o primeiro de todos supera pela sua imensidade tudo quanto existe, abarcando tudo. CAPÍTULO DEZENOVE — Deus é infinito em seu poder. 38. Nesta linha, conclui-se igualmente que Deus é infinito em poder. Com efeito, se Deus é infinito na sua essência, segue que também o é no seu poder. 39. Depreende-se isto também de um olhar atento à ordem da natureza. Tudo aquilo que tem potência, na mesma medida tem poder receptivo e passivo; se for ato, terá poder ativo. Em consequência, o que for pura potência, isto é, a matéria primeira, tem uma virtude infinita para receber, totalmente destituído de virtude ativa. Em contrapartida, quanto mais uma determinada coisa for ato, tanto maior será a sua virtude ativa, razão pela qual o fogo é o mais ativo dos elementos. Deus, por ser puro ato e não apresentar vestígio sequer de potencialidade, é infinito em seu poder ativo, ultrapassando tudo quanto existe. CAPITULO VINTE — O ser infinito não implica imperfeição em Deus. 40. Embora o infinito encontrável nas quantidades do reino criado seja imperfeito, em Deus o ser infinito não implica imperfeição alguma. Com efeito, o infinito que se encontra nas quantidades da natureza é característico da matéria, enquanto esta não tem limites. A imperfeição atinge as coisas pelo fato de a matéria estar sujeita à privação, ao passo que a perfeição deriva toda da forma. Por conseguinte, uma vez que Deus é infinito por ser exclusivamente forma ou ato, sem qualquer vestígio de matéria ou potencialidade, o seu ser infinito pertence à sua perfeição suprema. 41. A mesma conclusão segue de outra consideração. Ainda que, em se tratando de uma e mesma coisa que passa da imperfeição à perfeição, o imperfeito seja anterior ao perfeito — assim como o estado de criança antecede ao de adulto —, todavia o normal é que tudo quanto é imperfeito tenha origem do perfeito. Assim é que a criança se origina do adulto, e o sêmen, do animal ou da planta. Logo, Aquele que por natureza antecede a todas as coisas e constitui a causa motora de tudo deve necessariamente ser o mais perfeito de todos. CAPITULO VINTE E UM — Deus possui, em grau eminente, toda perfeição encontrável nas coisas. 42. Daqui segue que todas as perfeições encontráveis em qualquer coisa estão presentes, originariamente e em superabundância, em Deus. Com efeito, tudo aquilo que conduz algo à perfeição deve antes, ele mesmo, possuir tal perfeição, assim como o mestre, antes de poder transmitir a ciência aos outros, deve possuí-la ele mesmo. Se, por conseguinte, Deus é a primeira causa motora, que induz todas as outras coisas à perfeição, é necessário que todas as perfeições das coisas preexistam n'Ele em superabundância. 43. Tudo aquilo que encerra alguma perfeição, se lhe faltar outra perfeição, é limitado sob algum aspecto genérico ou específico, pois, pela forma, que constitui a perfeição das coisas, todas as coisas são colocadas no gênero ou na espécie. Ora, o que está subordinado à espécie ou ao gênero não pode ter uma essência infinita. Se, por conseguinte, a essência de Deus é infinita, é impossível que encerre apenas a perfeição de algum gênero ou alguma espécie, estando destituído das outras. Pelo contrário, terá em si as perfeições de todos os gêneros e de todas as espécies existentes. CAPITULO VINTE E DOIS — Em Deus todas as perfeições constituem uma só coisa. 44. Se atendermos a tudo quanto até aqui foi dito, evidencia-se que todas as perfeições em Deus constituem uma única coisa. Demonstramos acima, com efeito, que Deus é um ser simples. Ora, onde reina a simplicidade não há lugar para diferenças. Se, portanto, em Deus se encerram as perfeições de todas as coisas criadas, é impossível que as mesmas sejam em Deus distintas. Conclui-se, pois, que todas as perfeições em Deus formam uma única coisa. 45. Isto se torna também evidente a partir das faculdades cognoscitivas do homem. Pois a faculdade superior, em seu gênero, é a cognoscitiva, que abrange tudo quanto é apreendido pelas forças inferiores, visto que a inteligência julga, por uma operação una e simples, tudo quanto nos vem pelos olhos, pelos ouvidos e pelos demais sentidos. 46. Fenômeno análogo constata-se nas ciências. As ciências inferiores são múltiplas, diversificando-se conforme a diversidade do objeto a que visam, porém acima de todas elas está a que se denomina Primeira Filosofia, que se relaciona com todas as outras ciências. 47. O mesmo aparece no que diz respeito à esfera dos poderes. Assim é que o poder do rei, por ser uno, engloba em si todos os poderes próprios de cada cargo. Desta forma, pois, as perfeições que se encontram em multiplicidade nas coisas inferiores devem necessariamente encontrar-se conglobadas n'Aquele que constitui o ápice das coisas, Deus. CAPÍTULO VINTE E TRÊS — Em Deus não há acidente algum. 48. Do que explanamos depreende-se igualmente que em Deus não pode haver acidente algum. Se n'Ele todas as perfeições constituem uma coisa só, e se por outra parte pertencem à perfeição o ser, o poder, o agir, etc., é necessário que n'Ele tudo se identifique com a sua essência. Logo, nada do que existe nas mencionadas perfeições constitui n'Ele acidente. 49. E impossível denominar infinita uma perfeição na qual pudesse caber algo mais. Ora, se existisse algo cuja perfeição fosse um acidente, necessariamente se poderia acrescentar alguma perfeição à essência, visto que todo acidente se soma à essência. Neste caso não se poderia dizer que a essência de tal ser encerra uma perfeição infinita. Ora, ficou demonstrado que Deus goza de perfeição infinita na sua essência. Consequentemente, nenhuma perfeição n'Ele pode ser acidental; tudo quanto n'Ele se encontra constitui a sua própria substância ou essência. 50. A mesma conclusão pode ser facilmente deduzida da simplicidade de Deus, bem como do fato de ser Ele puro ato e desfrutar da primazia entre todos os seres. Pois há um modo de composição do acidente em relação ao sujeito. Aquilo que é sujeito não pode ser puro ato, visto que o acidente constitui uma forma ou um ato do sujeito. Além disso, tudo quanto existe por si mesmo é anterior ao que existe acidentalmente. De tudo isto se infere que em Deus nada pode ser mero acidente. CAPÍTULO VINTE E QUATRO — A multiplicidade de nomes atribuídos a Deus não contradiz a sua simplicidade. 51. Com isto evidencia-se a razão da multiplicidade de nomes atribuídos a Deus, embora Ele seja em si mesmo absolutamente simples. Por ser a nossa inteligência incapaz de apreender a essência divina em si mesma, eleva-se ao seu conhecimento a partir das coisas criadas. Nestas encontram-se diversas perfeições, sendo que a única raiz e origem de todas reside em Deus, conforme demonstramos. E, uma vez que não podemos designar alguma coisa a não ser segundo aquilo que compreendemos (já que os nomes e termos são sinais da inteligência), não logramos designar a Deus senão partindo das perfeições que encontramos nas coisas, cuja origem reside no próprio Deus. Ora, sendo múltiplas as perfeições encontráveis nas coisas, é necessário atribuir uma pluralidade de nomes a Deus. Se enxergássemos a essência de Deus em si mesma, não seria necessária esta multiplicidade de nomes, senão que o conhecimento da mesma seria simples, como simples é a sua ausência: é o que aguardamos para o dia da nossa glorificação, no dizer de Zacarias, o Profeta: "Naquele dia o Senhor será um só, o seu nome será único". CAPÍTULO VINTE E CINCO — Embora diversos, os nomes atribuídos a Deus não são sinônimos. 52. Partindo do exposto podemos fazer três considerações. A primeira é que os diversos nomes, embora signifiquem em Deus uma única coisa, não são sinônimos. Pois, para que diversos nomes sejam sinônimos, exige-se que signifiquem a mesma coisa, além de representarem o mesmo conceito do intelecto. Lá onde se designa a mesma coisa, porém segundo aspectos diversos, ou seja, concepções diferentes que a inteligência tem daquele objeto, os nomes não são sinônimos, pois o sentido não é totalmente igual, uma vez que os termos designam diretamente os conceitos, os quais constituem semelhanças das coisas. Por conseguinte, traduzindo os diversos nomes dados a Deus concepções diversas que d'Ele possui a nossa inteligência, tais termos ou nomes não são sinônimos, ainda que signifiquem exatamente a mesma coisa. CAPITULO VINTE E SEIS — Pelas definições dos próprios nomes não é possível definir o que existe em Deus. 53. A segunda consideração é a seguinte. Já que a nossa inteligência não é capaz de compreender perfeitamente a essência divina segundo nenhum dos conceitos subjacentes aos nomes atribuídos a Deus. é impossível, através da simples definição de tais nomes, definir o que existe em Deus, assim como tampouco a definição da sabedoria divina é a definição do poder de Deus, e assim por diante. 54. Há outro modo de tornar isto evidente. Toda definição consta de gênero e diferenças específicas: também aquilo que se define propriamente é uma espécie. Ora, como ficou demonstrado acima, a essência de Deus não se engloba em nenhum gênero nem em nenhuma espécie. Donde segue a impossibilidade de dar uma definição da mesma. CAPITULO VINTE E SETE — Os nomes atribuídos a Deus e a outras coisas não revestem sentido inteiramente unívoco nem equívoco. 55. A terceira consideração é que os nomes conferidos a Deus e a outras coisas não são inteiramente unívocos nem inteiramente equívocos. Não são unívocos, pois a definição daquilo que se diz de uma criatura não é a definição do que se diz de Deus. Ora, a definição de afirmações unívocas deve necessariamente ser a mesma. Tampouco os citados nomes são de todo equívocos. Com efeito, quando se trata de denominações inteiramente equívocas, o mesmo nome ou termo é atribuído a uma coisa, desconsiderando totalmente a outra; daí, por um não se pode raciocinar sobre o outro. Acontece, todavia, que esses nomes dados a Deus e a outras coisas se atribuem a Deus segundo certa relação que têm com tais coisas, nas quais a inteligência considera a significação das mesmas; daí, partindo das outras coisas, é possível raciocinar sobre Deus. Portanto, tais nomes não se atribuem a Deus e a outras coisas em sentido totalmente equívoco. Por conseguinte, tais nomes se atribuem a Deus por analogia, ou seja, segundo a proporção que têm com uma coisa. Pelo fato de compararmos outras coisas com Deus como sendo a primeira origem das mesmas, atribuímos a Deus tais nomes, que designam as perfeições das outras coisas. Daqui se conclui que, embora esses nomes, pela sua destinação, se atribuam primariamente às criaturas, pelo fato de que, partindo destas, a inteligência se eleva a Deus, todavia, se considerarmos o conteúdo significado pelo nome, deve-se dizer que tais nomes se atribuem primeiramente a Deus, do qual derivam as perfeições para as outras coisas. CAPITULO VINTE E OITO — Deus é necessariamente dotado de inteligência. 56. Cumpre agora mostrar que Deus é um ser dotado de inteligência. No capítulo XXI demonstramos que Deus possui cumulativamente todas as perfeições de todos os seres. Ora, entre todas as perfeições dos seres parece destacar-se a inteligência, visto que as coisas intelectuais superam quaisquer outras. Por isso é necessário que Deus seja dotado de inteligência. 57. Ficou igualmente demonstrado acima que Deus é puro ato, sem mescla de potencialidade. Sendo, porém, a matéria um ser em potência, Deus deve necessariamente ser isento da mesma. É o ser imune da matéria que faz com que um ente tenha inteligência. A prova disto está em que as formas materiais se tornam inteligíveis na realidade pelo fato de serem tiradas da matéria e das condições materiais. Logo Deus é um ser dotado de inteligência. 58. Finalmente, ficou demonstrado que Deus é a primeira causa motora. Ora, isto parece ser próprio da inteligência, pois ela parece usar de todas as outras forças como instrumentos para mover; daí. o homem utiliza a sua inteligência como instrumento para dominar os animais, as plantas e as coisas inanimadas. Se, portanto. Deus é a primeira causa motora, necessariamente deve possuir inteligência. CAPITULO VINTE E NOVE — Em Deus a intelecção não é potência nem hábito, mas ato. 59. Não havendo em Deus nada em potência, mas exclusivamente em ato, conforme ficou demonstrado, é necessário que a sua inteligência não esteja em potência nem em hábito, mas tão somente em ato, o que significa que na sua intelecção Deus não admite sucessão de tempo. Com efeito, quando uma inteligência apreende muitas coisas em tempos sucessivos, inevitavelmente, enquanto compreende uma coisa em ato, entende a outra só em potência, já que não existe sucessão temporal em coisas que acontecem simultaneamente. Se, por conseguinte. Deus nada apreende em potência, o seu intelecto não admite qualquer sucessão temporal, razão pela qual compreende ao mesmo tempo todas as coisas que apreende, não podendo, além disso, apreender nada de novo, pois uma inteligência que apreende algo de novo é um intelecto que antes estava só em potência. Outra conclusão lógica é que a inteligência de Deus não pode compreender de maneira discursiva, isto é, entendendo uma coisa a partir da outra, como ocorre com a nossa inteligência. Com efeito, o nosso intelecto procede de maneira tal que do conhecido chegamos ao desconhecido, ou àquilo que antes não havíamos considerado. Isto não pode acontecer com a inteligência de Deus. CAPITULO TRINTA — Deus não compreende através de elementos intermediários, mas através da sua própria essência. 60. Do acima explanado infere-se, igualmente, que Deus não compreende as coisas através de elementos intermediários, mas através da sua própria essência. Toda inteligência que compreende as coisas através de elementos diferentes dela mesma está para estes elementos como a potência está para o ato, uma vez que esta "imagem" inteligível constitui uma perfeição da mesma e a faz compreender em ato ou na realidade. Ora, se em Deus nada existe em estado de potencialidade, por ser Ele puro ato, necessariamente o conhecimento que possui das coisas não passa por outros elementos ("imagens" inteligíveis), mas procede diretamente da sua própria essência. Daqui segue também que o objeto direto e principal da inteligência de Deus é Ele próprio. Pois a essência de uma coisa não conduz própria e diretamente ao conhecimento daquilo de que é a essência: assim, pela definição do homem conhecemos propriamente o que é o homem; pela definição do cavalo, o que é o cavalo. Se, portanto, Deus compreende tudo em sua própria essência, necessariamente o objeto direto e principal do seu entendimento é Ele mesmo. E já que Ele mesmo é a sua essência, conclui-se que n'Ele se identificam totalmente o ato de compreender, o objeto da compreensão e aquilo através do qual se processa a intelecção. CAPITULO TRINTA E UM — Deus é a sua própria intelecção. 61. É necessário também que o próprio Deus seja a sua intelecção. Com efeito, visto que o compreender é um "ato segundo" (o "ato primeiro" é a própria inteligência ou a ciência), toda inteligência que não é a sua própria intelecção está para a sua intelecção da mesma forma que a potência está para o ato. Pois sempre, na ordem das potências e dos atos, o que é anterior é potencialidade em relação ao que segue, e o último na ordem é o que completa, em se tratando de uma e mesma coisa (tratando-se de coisas diversas, ocorre a ordem contrária): pois o movente e o agente estão para o movido e o "agido" da mesma forma que o agente está para a potência. Em Deus, porém, por ser Ele puro ato, não existe nada que esteja para outro elemento como a potência está para o ato. Por conseguinte, é necessário que o próprio Deus seja a sua intelecção. 62. De certo modo a inteligência está para o ato de compreender como a essência está para o ser. Ora, Deus compreende através da sua própria essência, e a sua essência é o seu ser. Logo, a sua inteligência é a sua própria intelecção. E assim, pelo fato de Deus entender, não se lhe atribui composição, pois n'Ele não há distinção entre a inteligência, o ato de compreender e as "imagens inteligíveis". Estes três elementos não são outra coisa senão a própria essência de Deus. CAPÍTULO TRINTA E DOIS — Deus é necessariamente dotado de vontade. 63. É também evidente que Deus deve necessariamente ser dotado de vontade. Ele se compreende a si mesmo, Ele que é o Bem perfeito, conforme vimos. Ora, o que é bom, uma vez compreendido, ama-se necessariamente, e é com a vontade que se ama. Portanto, é necessário que Deus seja dotado de vontade. 64. Foi demonstrado que Deus é a primeira causa motora. Ora, a inteligência não move nada, a não ser em virtude do desejo (apetite); ora, o desejo que segue à inteligência é a vontade. Consequentemente, Deus é um ser necessariamente dotado de vontade. CAPITULO TRINTA E TRÊS — A vontade de Deus coincide necessariamente com a sua inteligência. 65. É patente que a vontade de Deus, necessariamente, não ê outra coisa senão a sua inteligência. Pois o bem, uma vez compreendido, por ser objeto da vontade, move a vontade, sendo o ato e a perfeição da mesma. Em Deus, entretanto, não há diferença entre aquilo que move e aquilo que é movido, entre o ato e a potência, entre a perfeição e o perfectível, segundo consta da exposição anterior. Por conseguinte, necessariamente a vontade divina coincide com o próprio bem apreendido pela inteligência. Ora, a inteligência divina e a mesma coisa que a essência de Deus. Portanto, a vontade de Deus é uma e mesma coisa que a sua inteligência e a sua essência. 66. Entre as outras perfeições existentes nas coisas, as mais elevadas são a inteligência e a vontade. A prova disso está em que se encontram nos seres mais nobres. Acontece que as perfeições de todas as coisas constituem em Deus uma só coisa, isto é, a sua essência. Consequentemente, a inteligência e a vontade se confundem, em Deus com a sua essência. CAPITULO TRINTA E QUATRO — A vontade divina é o próprio querer de Deus. 67. Conclui-se, igualmente, que a vontade de Deus é o seu próprio querer, pois ficou demonstrado que a vontade de Deus coincide com o bem querido por Ele. Isto não poderia ocorrer, se o querer não fosse a mesma coisa que a vontade, uma vez que o querer pertence à vontade por causa do bem querido. Portanto, a vontade de Deus se confunde com o seu querer. 68. A vontade de Deus é a mesma coisa que a sua inteligência e a sua essência. Ora, a inteligência de Deus é a sua intelecção, a essência é o seu ser. Por conseguinte, é necessário que a vontade equivalha ao seu querer. Evidencia-se assim que a vontade de Deus não contradiz a sua simplicidade. CAPITULO TRINTA E CINCO — Tudo quanto expusemos condensa-se em um só artigo de fé. 69. De tudo quanto foi exposto até aqui, coligimos que Deus é uno, simples, perfeito, infinito, dotado de inteligência e vontade. Tudo isto está englobado num breve artigo do Símbolo Apostólico, ao confessarmos que cremos no Deus uno e onipotente. O nome "Deus" parece derivar do grego Theós, o qual por sua vez vem de theástai, que significa ver, considerar. Logo, o próprio nome de Deus implica ser Ele dotado de inteligência, e consequentemente também de vontade. Ao dizermos que Deus é uno excluímos tanto a pluralidade de deuses como qualquer composição Ele. Com efeito, o que não é simples não se pode dizer uno. Ao afirmamos que Deus é onipotente, queremos expressar que Ele possui um poder infinito, ao qual nada se pode subtrair. Nisto se inclui que Deus é infinito e perfeito, já que o poder de alguma coisa é consequência da essência. CAPÍTULO TRINTA E SEIS — Tudo isto foi afirmado pelos filósofos. 70. Tudo quanto dissemos até aqui foi sutilmente considerado por vários filósofos pagãos, ainda que alguns deles hajam incidido em certos erros. Os que acertaram com a verdade só conseguiram chegar a ela após longa e trabalhosa pesquisa. Há, contudo, outras coisas que a doutrina cristã nos transmite acerca de Deus. Trata-se de coisas que os filósofos pagãos não conseguiram atingir. Para isto, segundo a fé cristã, recebemos uma iluminação que ultrapassa a razão humana. Referimo-nos às seguintes verdades: embora Deus seja uno e simples, há um Deus Pai, um Deus Filho e um Deus Espírito Santo, de tal forma, porém, que os três não constituem três deuses, mas um só Deus. É o que tencionamos desenvolver a seguir, na medida do possível. CAPÍTULO SETENTA E SEIS — As substâncias imateriais são dotadas de livre arbítrio. 133. A partir disto se torna evidente que as substâncias imateriais são dotadas de livre arbítrio. Com efeito, a inteligência não age nem tende ao seu objeto sem discernimento, como ocorre com os seres inanimados. Por outra parte, o discernimento da inteligência não provém do instinto, conforme acontece nos animais, mas da própria apreensão, pois a inteligência conhece a meta, bem como o que conduz à mesma, e a relação entre uma e outra coisa. É por esta razão que a própria inteligência pode ser causa do seu discernimento, mercê do qual pode desejar e fazer algo com vistas a um fim. Denominamos livre aquilo que é causa de si mesmo. Portanto, a inteligência deseja e opera com discernimento livre, o que vale dizer que está dotada de livre arbítrio. Logo, as substâncias mais elevadas na escala dos seres gozam de livre arbítrio. 134. Livre é o que não está obrigado ou coagido em relação a uma determinada coisa. Ora, as substâncias intelectuais não tendem obrigatoriamente a um determinado bem, mas o fazem após a apreensão por parte da inteligência, e o objeto desta apreensão é o bem enquanto universal (ainda não especificado). Por conseguinte, a tendencialidade ("apetite") das substâncias dotadas de inteligência é livre, visto estar aberta à escolha de qualquer bem. CAPITULO SETENTA E SETE — Reina hierarquia de ordem e de grau entre as substâncias imateriais, conforme a perfeição da natureza. 135. Assim como estas substâncias dotadas de inteligência superam as outras em grau, da mesma forma é necessário que haja hierarquia de grau entre elas mesmas. Não podendo diferenciar-se umas das outras em virtude da matéria, que não possuem, e sendo que existe pluralidade entre elas, necessariamente a diferença que as distingue provém da distinção formal, que constitui a diversidade de espécie. Ora, em quaisquer coisas em que reina diversidade específica, cumpre considerar nelas algum grau e alguma ordem. A razão disto está em que, assim como nos números a adição ou a subtração das unidades variam a espécie da unidade, da mesma forma é pela adição e subtração das diferenças que as coisas da natureza se diferenciam especificamente. Assim, os seres apenas animados distinguem-se dos que, além de animados, são sensíveis, e os que são apenas animados e sensíveis diferenciam-se dos que, além de serem animados e sensíveis, são também racionais. É, pois, necessário que as mencionadas substâncias imateriais se diferenciem entre si por graus e ordens. CAPÍTULO SETENTA E OITO — A diferença de ordem e de grau quanto à inteligência. 136. Como o modo de operar está em função do modo da substância da coisa, é necessário que as substâncias ou seres imateriais superiores tenham uma inteligência mais nobre, por possuírem formas de intelecção e forças mais universais e mais unidas. Ao contrário, as substâncias imateriais inferiores têm inteligência mais fraca, por disporem de formas mais múltiplas e menos universais. CAPÍTULO SETENTA E NOVE — A substância pela qual o homem compreende intelectualmente é a mais baixa existente na categoria das substâncias intelectuais. 137. Já que não se pode proceder até ao infinito na escala das coisas, da mesma forma que na escala das substâncias mencionadas se encontra uma que é suprema e que se aproxima o máximo de Deus, assim também é necessário que haja uma que seja a mais baixa e que confine o máximo com a matéria corporal. Isto pode ser evidenciado da maneira seguinte. A capacidade de compreender coloca o homem acima de outros animais. Pois é óbvio que dentre os animais só o homem é capaz de apreender os universais, as relações entre as coisas, as coisas imateriais, que só se percebem através da inteligência. Ora, é impossível que a intelecção seja um ato exercido por algum órgão corporal, assim como a visão é exercida através dos olhos. Com efeito, é necessário que todo instrumento da faculdade cognoscitiva seja isento daquele gênero de coisas que constitui objeto de conhecimento do mesmo, assim como a pupila dos olhos, por sua natureza, não tem cores, pois é deste modo que se reconhecem as cores, pelo fato de as mesmas serem recebidas pela pupila e se refletirem nela. Com efeito, o elemento receptor, para ser tal, não deve já possuir o que ainda está para receber. Ora, a inteligência conhece todas as naturezas ou seres sensíveis. Se, por consequência, o seu conhecimento se operasse através de um órgão corporal, seria necessário que tal órgão fosse destituído de toda natureza sensível, o que é impossível. 138. Toda inteligência cognoscitiva se conhece pelo modo segundo o qual a "imagem" (species) da coisa conhecida se encontra nela, pois esta constitui para ela o princípio cognoscitivo. Ora, a inteligência conhece as coisas de modo imaterial, também as que por sua natureza são materiais, haurindo a forma universal das condições materiais individualizantes. Portanto, é impossível que a "imagem" (species) do objeto conhecido se encontre na inteligência materialmente, razão pela qual ela não pode ser recebida num órgão corporal, visto que todo órgão corporal é material. 139. O mesmo se depreende do fato de que o sentido se enfraquece e se corrompe por efeito de sensações sensíveis fortes. O ouvido, por exemplo, por efeito de sons fortes, a vista em virtude de objetos muito brilhantes. Tal ocorre porque se destrói a harmonia do órgão. Ao contrário, a inteligência se robustece quanto mais alto for o objeto a ser compreendido; efetivamente, quem consegue compreender as coisas mais elevadas, tem maior capacidade, e não menor, para entender outras. Se, portanto, o homem é uma criatura dotada de inteligência, e o conhecimento pela inteligência não se processa através de um órgão corporal, será necessariamente através de alguma substância imaterial que o homem compreende. Pois o que em si mesmo pode operar sem o corpo, também a sua substância independe do corpo. Pois todas as forças e formas que em si não podem subsistir sem o corpo não podem tampouco operar sem o corpo; assim, não é propriamente o calor que aquece, mas o corpo que aquece por efeito do calor. Por conseguinte, esta substância incorpórea através da qual o homem compreende é a mais baixa na escala das substâncias intelectuais e a mais próxima da matéria. CAPITULO OITENTA — A diferença da inteligência e o modo de compreender. 140. Já que o ser intelectual está acima do ser meramente sensível, assim como a inteligência está acima dos sentidos, e já que as coisas inferiores imitam na medida do possível as superiores, assim como os corpos geráveis e corruptíveis imitam de algum modo as rotações dos corpos celestes, é necessário também que os seres sensíveis se assemelhem a seu modo aos intelectuais. Destarte, partindo da semelhança dos seres sensíveis, podemos de algum modo alcançar o conhecimento dos seres intelectuais. Ora, existe nas coisas sensíveis algo que é o mais alto, o ato, ou seja, a forma, e algo que é o mais baixo, a potência, isto é, a matéria, bem como existe algo de intermediário, ou seja, o composto de matéria e forma. O mesmo ocorre no ser intelectual. O intelectual em grau máximo, Deus, é puro ato. As outras substâncias intelectuais têm algo de ato e algo de potencialidade. A mais inferior das substâncias intelectuais, mediante a qual o homem conhece e compreende, é, no ser intelectual, quase pura potencialidade. Confirma-se isto também pelo fato de que o homem, no início, só tem potência intelectual, sendo que só aos poucos esta potência passa ao ato. É por isso que aquilo através do qual o homem conhece ou compreende se denomina "inteligência possível". CAPITULO OITENTA E UM — O intelecto possível no homem recebe as formas inteligíveis das coisas sensíveis. 141. Uma vez que quanto mais elevada for uma substância intelectual, tanto mais universais são as suas formas inteligíveis, segue-se que a inteligência humana que denominamos "possível" tem dentre as demais substâncias intelectuais as formas menos universais, decorrendo dali que recebe as formas inteligíveis a partir das coisas sensíveis. 142. Isto aparece também de outra consideração. É preciso que a forma seja adequada ao objeto a ser apreendido. Ora, como o intelecto possível do homem é dentre todas as substâncias intelectuais a mais próxima à matéria corporal, é necessário que as duas formas inteligíveis sejam as mais próximas possíveis das coisas materiais. CAPITULO OITENTA E DOIS — O homem precisa das potências sensitivas para compreender. 143. Cumpre ter presente que as formas existentes nas coisas corpóreas são particulares e materiais. No intelecto, entretanto, tais formas são universais e imateriais, o que é comprovado pelo modo de operar da inteligência. Com efeito, compreendemos de modo universal e imaterial. Ora, é necessário que o modo de compreender corresponda às imagens inteligíveis (species intelligibiles) através das quais opera a inteligência. É necessário, por conseguinte, já que é impossível ir de um extremo ao outro sem passar pelo meio, que as formas inteligíveis provenientes dos seres corpóreos cheguem ao intelecto através de alguns meios. Tais são precisamente as potências sensitivas, as quais recebem as formas das coisas materiais, porém já isentas de matéria: no olho aparece a imagem da pedra, mas não a sua matéria, porém nas potências sensitivas as formas das coisas são recebidas de maneira particular (não universal), pois pelas potências sensitivas só podemos conhecer coisas particulares. Por isso é necessário que o homem, para poder compreender, esteja dotado também de sentidos. A prova disto está em que aquele a quem falta um dos sentidos, falta-lhe igualmente a ciência das coisas sensíveis abarcadas pelo respectivo sentido, assim como o cego de nascimento não pode ter o conhecimento das cores. CAPITULO OITENTA E TRÊS — É necessária a existência de um intelecto agente. 144. Daqui se infere que a ciência das coisas em nossa inteligência não é causada pela participação ou influência de certas formas inteligíveis subsistentes em si mesmas, segundo afirmaram alguns filósofos platônicos, mas o intelecto adquire a ciência a partir das coisas sensíveis, através dos sentidos. Contudo, como nas potências sensitivas as formas das coisas são particulares, conforme expusemos acima, as coisas não são inteligíveis em ato mas apenas em potência. Pois o intelecto só compreende universais. Ora, o que está só em potência só pode passar ao ato mediante algum agente. E indispensável, por consequência, algum agente que torne inteligíveis em ato as "imagens" recebidas nas potências sensitivas. Isto não pode ser feito pelo chamado intelecto possível, pois este é mais potência em relação às coisas inteligíveis do que causador de intelecção. É preciso, portanto, postular outro intelecto, que faça com que as imagens inteligíveis em potência sejam inteligíveis em ato, assim como a luz faz com que as cores visíveis em potência se tornem visíveis em ato. É o que chamamos de intelecto agente, o qual seria ocioso postular, se as formas das coisas fossem inteligíveis em ato, como afirmaram os filósofos platônicos. 145. Portanto, para podermos compreender, é-nos necessário antes de tudo o intelecto possível, que recebe as imagens das coisas inteligíveis. Em seguida, requer-se o intelecto agente, que faz as coisas tornarem-se inteligíveis em ato. Uma vez que o intelecto possível foi atingido pelas imagens inteligíveis, denomina-se intelecto habitual, já que possui as imagens inteligíveis de modo tal, que pode dispor delas quando quiser, mediante certo processo situado entre a pura potência e o ato completo. Quando tiver as mencionadas imagens em ato completo, chama-se intelecto em ato. Destarte, compreende as coisas em ato quando a imagem da coisa se tornar forma do intelecto possível. Eis por que se diz que o intelecto em ato é aquilo que é compreendido em ato. CAPÍTULO OITENTA E QUATRO — A alma humana é incorruptível. 146. Na linha das premissas colocadas, é necessário que a inteligência, com a qual o homem compreende, seja incorruptível, pois cada coisa age segundo o seu ser. Ora, a inteligência tem um tipo de operação que não age pelo corpo, conforme ficou explanado, donde segue que opera por si mesma, sendo portanto uma substância que subsiste no seu ser. Já deixamos, igualmente, demonstrado que as substâncias intelectuais são incorruptíveis. Consequentemente, a inteligência através da qual o homem compreende é incorruptível. 147. O sujeito próprio da geração e da corrupção é a matéria. Em consequência, tanto mais uma coisa é imune da corrupção quanto mais for isenta de matéria, pois as coisas em si corruptíveis são as compostas de matéria e forma. As formas materiais são corruptíveis acidentalmente, não por si mesmas. As formas imateriais, que ultrapassam a matéria, são de todo incorruptíveis. Ora, a inteligência, por sua natureza, está totalmente acima da matéria, o que aparece no seu modo de operar; com efeito, só compreendemos certas coisas se as separarmos da matéria. Por conseguinte, a inteligência é por sua própria natureza incorruptível. 148. A corrupção não pode ocorrer se não houver um processo contrário, pois nada se corrompe se não for por efeito de algo que lhe é contrário. Daí que os corpos celestes, nos quais não existe processo contrário, são incorruptíveis. Ora, a inteligência não sofre processo contrário, pois as coisas que em si são contrárias entre si, não o são quando colocadas na inteligência, já que a razão inteligível dos contrários é una, uma vez que através de um se compreende outro. Por consequência, é impossível que a inteligência seja corruptível. CAPITULO OITENTA E CINCO — A unidade do intelecto possível. 149. Possivelmente alguém objetará: a inteligência é incorruptível, sim, porém é uma só em todos os homens, caso em que, após o desaparecimento de todos os homens, permaneceria apenas um intelecto universal. Que existe uma só inteligência em todos os homens, poder-se-ia demonstrar de vários modos (segundo a citada objeção). 1) Primeiramente, do ponto de vista do objeto compreendido. Se a inteligência que está em mim é uma, e a que está em ti é outra, necessariamente também a imagem inteligível que está em mim será outra do que aquela que está em ti, e, por conseguinte, o que compreendo eu será diferente do que compreendes tu. Consequentemente, nesta hipótese, a imagem compreendida será diversificada conforme o número existente de indivíduos, sendo portanto individual, e não universal. Donde parece dever-se concluir que não foi compreendida em ato, mas apenas em potência, pois as imagens individuais são compreendidas em potência, e não em ato. 2) Se, como foi demonstrado acima, a inteligência é uma substância que subsiste no seu ser, e as substâncias intelectuais numericamente diversas não constituem uma só espécie infere-se que, se a minha inteligência for numericamente diferente da tua, será diferente também do ponto de vista da espécie, donde seguiria que eu e tu não pertencemos à mesma espécie. 3) Uma vez que todos os indivíduos participam da mesma natureza da espécie, é necessário supor a existência de algo além da natureza da espécie, algo em virtude do qual os indivíduos se distinguem um do outro. Ora, se em todos os homens houver uma só inteligência do ponto de vista da espécie, e muitas do ponto de vista numérico, é necessário que exista algo que faça com que uma inteligência se distinga numericamente da outra. Este algo não pode provir da substância da inteligência, uma vez que esta não se compõe de matéria e forma. Conclui-se que qualquer diferença que derivasse da substância da inteligência seria uma diferença formal e diversificadora da espécie. Segue, portanto, que a inteligência de uma pessoa não pode ser numericamente diversa da de outra, a não ser quanto à diversidade de corpos. Uma vez corrompidos os diversos corpos, parece não restar mais uma pluralidade de intelectos, mas um só. 150. É evidente, todavia, que isto é impossível. Para demonstrá-lo há de se proceder da mesma forma como se procede contra os que negam os princípios, a fim de colocarmos firmemente algo que de forma alguma se possa negar. Suponhamos que este homem. Sócrates ou Platão, compreenda ou entenda algo. O objetante não poderia negar esta afirmação, se ele mesmo não compreendesse que deve negá-la. Ao negar, porém, afirma, pois negar e afirmar são coisas próprias da pessoa dotada de inteligência. Todavia, se este homem compreende, aquilo que compreende formalmente será necessariamente a forma dele, pois nada age a não ser enquanto é atualmente. Por conseguinte, aquilo mediante o qual o agente age constitui o ato dele, assim como o calor que aquece o frio é ato deste calor. Consequentemente, a inteligência pela qual o homem compreende é a forma deste homem. Ora, é impossível que uma forma numericamente única pertença numericamente a diversos, pois pessoas numericamente diferentes não podem ser a mesma coisa. Ora, cada qual é o que é em virtude da forma que lhe é própria. Logo, é impossível que a inteligência, através da qual o homem conhece e compreende, seja uma só em todos os homens. 151. Certos autores, ao dar-se conta do problema, tentaram encontrar uma via de escape. Alegam que o intelecto possível recebe as imagens inteligíveis mediante as quais entra em ato. As imagens inteligíveis estariam de certo modo nas aparências das coisas. Na medida em que, portanto, a imagem inteligível está no intelecto possível e nas aparências encontráveis em nós, na mesma medida o intelecto possível se continua e se une conosco, de modo que possamos compreender através do mesmo. 152. Esta solução carece totalmente de validade. Primeiramente, porque a imagem inteligível, qual se encontra nas aparências das coisas, é compreendida apenas em potência, e só ao encontrar-se no intelecto possível é compreendida em ato, pois na forma em que se encontra no intelecto possível não se encontra nas aparências, senão que, pelo contrário, é extraída das aparências. Neste caso não resta já nenhuma ligação do intelecto possível conosco. Aliás, mesmo que restasse alguma ligação, seria insuficiente para fazer com que compreendêssemos, pois, pelo fato de a imagem de alguma coisa estar na inteligência, não segue que tal coisa se compreenda realmente, mas apenas que é compreendida. Com efeito, a pedra não compreende, mesmo que a sua imagem esteja no intelecto possível. Tampouco se pode concluir, do fato de as imagens das aparências presentes em nós estarem no intelecto possível, que nós as compreendamos. O máximo que se pode concluir disto é que nós somos compreendidos, ou melhor, que as aparências das coisas que estão em nós são compreendidas. 153. Isto aparece com maior evidência ao considerarmos a comparação feita por Aristóteles na obra Sobre a Alma. Segundo ele, a inteligência está para as imagens das coisas como a visão está para as cores. Com efeito, é óbvio que, pelo fato de as cores da parede estarem na visão, não se conclui que a parede vê, mas que é vista. Da mesma forma, do fato de as imagens das coisas existentes em nós surgirem na inteligência, não segue que nós compreendamos, mas que somos compreendidos. 154. Se compreendemos formalmente pela inteligência, é necessário que o próprio compreender da inteligência seja o compreender do homem, assim como é idêntico o aquecimento do fogo e do calor. Portanto, se o intelecto fosse numericamente o mesmo em mim e em ti, seguir-se-ia necessariamente que, no tocante ao mesmo objeto, a minha compreensão seria igual à tua, o que é impossível, pois, sendo diferentes os agentes, diversa será também numericamente a ação de uns e de outros. Em consequência, não é possível que haja uma só inteligência em todos. Conclui-se, igualmente, que, se o intelecto é incorruptível, como se demonstrou acima, uma vez destruídos os corpos, permanecerão tantas inteligências quantos forem os indivíduos humanos. 155. As objeções encontram fácil solução. 1) A primeira razão aduzida apresenta várias falhas. Primeiramente: Concedemos que a mesma coisa é compreendida por todos os homens, ou seja, o objeto da inteligência é idêntico para todos. Todavia, o objeto da inteligência não é a imagem inteligível, mas a própria coisa. Pois as ciências intelectuais não têm todas por objeto as imagens inteligíveis, mas as naturezas das coisas, assim como o objeto da visão é a cor, e não a imagem da cor, que está nos olhos. Embora, por conseguinte, cada homem tenha a sua inteligência diferente, a coisa compreendida é uma só, assim como uma determinada cor é uma só, embora vista por muitos. Além disso, não é necessário, se alguma coisa é individual, que seja compreendida só em potência e não em ato, pois isto só ocorre nas coisas individualizadas pela matéria, uma vez que é necessariamente imaterial o que é compreendido em ato. Daqui segue que as substâncias imateriais, embora sejam seres existentes por si, são compreendidas em ato. Donde as imagens inteligíveis, que são imateriais, embora sejam numericamente diferentes em mim e em ti, nem por isso deixam de ser inteligíveis em ato, porém a inteligência que compreende através delas, o seu objeto se reflete sobre si mesmo, compreendendo tanto o seu próprio ato de compreender como a imagem através da qual compreende. Finalmente, deve-se considerar o seguinte. Mesmo afirmando-se a existência de um só intelecto para todos os homens, permanece o mesmo problema, pois continuaria a existir uma multiplicidade de inteligência, já que há muitas substâncias separadas dotadas de intelecto, donde seguiria que as coisas compreendidas são numericamente distintas, e por consequência individuais, e não seriam compreendidas em ato primeiro. Portanto, é evidente que, se a razão invocada vingasse, eliminaria a pluralidade de inteligências tout court, e não apenas nos homens. Como esta conclusão é obviamente falsa, é evidente que a mencionada razão não procede. 2) Também a segunda razão aduzida perde a sua força ao considerarmos a diferença reinante entre a alma intelectual e as substâncias separadas. Com efeito, a alma intelectiva, por sua própria natureza, está destinada a unir-se como forma a algum corpo. Em razão disto, na definição da alma entra o corpo, e, por consequência, conforme a relação com os diversos corpos, as almas se diversificam numericamente, o que não ocorre no caso das substâncias separadas. 3) Do exposto conclui-se também como refutar a terceira razão aduzida. Com efeito, a alma intelectiva, em virtude da sua espécie, não tem como parte integrante o corpo, mas a faculdade ou capacidade de unir-se a ele. A alma se diversifica, portanto, numericamente, pelo fato de poder unir-se a corpos distintos, faculdade que permanece subsistindo, depois que são destruídos os corpos. Pois as almas podem unir-se a corpos diversos, ainda que, na realidade, não se unam. CAPÍTULO OITENTA E SEIS — O intelecto agente não é o mesmo em todos. 156. Houve alguns filósofos que, embora concedessem que o intelecto possível é numericamente diverso nos homens, afirmaram ser o intelecto agente um só em todos. Ainda que esta opinião não seja tão inaceitável como a primeira, pode ser refutada à base de razões semelhantes. 157. É próprio do intelecto possível receber as coisas passíveis de intelecção e compreendê-las, ao passo que a característica do intelecto agente é tornar as coisas inteligíveis em ato, por abstração. Ora, de ambas as operações é capaz este determinado homem. Pois este homem, quer seja Sócrates ou Platão, é capaz de receber as coisas inteligíveis, de abstrair, de compreender as coisas abstraídas. Logo, é necessário que tanto o intelecto possível como o intelecto agente estejam unidos como forma a este homem concreto, sendo portanto necessário que ambos se diferenciem numericamente conforme o número de homens realmente existentes. 158. É necessário que o elemento agente e o elemento paciente, ou seja, o elemento ativo e o passivo, sejam adequados ou proporcionados um ao outro, assim como a matéria e a forma, uma vez que a matéria entra em ato pelo agente. Daí que a cada potência passiva corresponda uma potência ativa sui generis, pois o ato e a potência participam do mesmo gênero. Ora, o intelecto agente está para o intelecto possível como a potência ativa está para a passiva. Portanto, ambos participam necessariamente do mesmo gênero. Logo, uma vez que o intelecto possível não está, pelo seu ser, separado de nós, mas a nós unido como forma, e se diversifica conforme o número de homens existentes, é necessário que também o intelecto agente esteja unido a nós como forma, diversificando-se conforme o número de homens existentes. CAPITULO OITENTA E SETE — O intelecto possível e o intelecto agente fundam-se na essência da alma. 159. Já que tanto o intelecto possível como o intelecto agente estão formalmente unidos a nós, é necessário dizer que ambos convergem na mesma essência da alma. Pois tudo aquilo que se une formalmente a alguma coisa lhe está unido como forma substancial, ou então como forma acidental. Se, pois, o intelecto possível e o intelecto agente estão unidos ao homem como forma substancial, visto que uma coisa não pode ter mais do que uma forma substancial, é forçoso dizer que o intelecto possível e o intelecto agente convergem em uma só essência da forma, ou seja, a alma. Se ambos estiverem unidos ao homem como forma acidental, é óbvio que nenhum dos dois pode ser um acidente do corpo. Aliás, pelo fato de as operações de ambos não se verificarem através dos órgãos corporais infere-se que ambos são acidentes da alma. Ora, só existe uma alma em cada homem. Por consequência, o intelecto agente e o intelecto possível convergem necessariamente em uma única essência da alma. 160. Toda ação que é própria de uma espécie provém do princípio derivante da forma que perfaz a espécie. Ora, o compreender constitui uma ação própria da espécie humana. Conclui-se daqui que o intelecto agente e o intelecto possível, por serem o princípio ou a origem desta operação derivam necessariamente da alma humana, da qual o homem deriva a sua espécie. Ora, não derivam da alma humana como se procedessem desta para o corpo, uma vez que a mencionada operação não se processa através de um órgão corporal. Ora, quem tem a potência tem também o ato. Logo, o intelecto possível e o intelecto agente convergem na essência una da alma. CAPÍTULO OITENTA E OITO — O modo como as duas potências convergem na essência una da alma. 161. Resta agora compreender o modo como isto se verifica, pois parece haver aqui um problema. O intelecto possível está em potência com respeito a todas as coisas inteligíveis, ao passo que o intelecto agente faz com que as coisas inteligíveis em potência se tornem inteligíveis em ato, sendo necessário que esteja para estas coisas da mesma forma que o ato está para a potência. Ora, parece impossível que uma e mesma coisa esteja, sob o mesmo aspecto, em potência e em ato. Pareceria, por conseguinte, impossível que numa e mesma substância da alma possam convergir o intelecto possível e o intelecto agente. 162. O problema encontra fácil solução, se considerarmos de que modo o intelecto possível está em potência com respeito às coisas inteligíveis, e de que maneira o intelecto agente faz com que estas se tornem inteligíveis em ato. O intelecto possível está em potência com relação às coisas inteligíveis pelo fato de não ter, em virtude da sua natureza, nenhuma forma predeterminada das coisas sensíveis, assim como a pupila dos olhos tem potência com relação a todas as cores. Na medida em que as imagens hauridas das coisas sensíveis são semelhanças de determinadas coisas sensíveis, estão para o intelecto possível como o ato está para a potência. Ora, as imagens estão em potência com respeito a algo que a alma intelectiva tem em ato, e este algo consiste no fato de ser extraído das coisas materiais. Quanto a isto, a alma intelectiva está para a mesma como o ato está para a potência. Ora, não é contraditório afirmar que uma coisa está em potência quanto a um determinado aspecto e em ato quanto a outro. Por exemplo, os corpos naturais são ao mesmo tempo ativos e passivos em relação uns aos outros, pois cada um está em potência com respeito ao outro. Da mesma forma, não é contraditório que a mesma alma intelectiva esteja em potência quanto a todas as coisas inteligíveis (tal é o caso do intelecto possível) e em ato com respeito às mesmas (tal é o caso do intelecto agente). 163. Isto se torna ainda mais claro analisando-se o modo como a inteligência faz com que as coisas se tornem inteligíveis em ato. Este processo não consiste em que as coisas inteligíveis derivam do intelecto agente para o intelecto possível, pois, se assim fora, não necessitaríamos de imagens e de sentidos para compreender. O intelecto agente torna as coisas inteligíveis em ato, haurindo-as das imagens, assim como a luz faz com que as coisas brilhem em ato, e isto não como se a luz contivesse em si mesma as cores, mas como que emprestando visibilidade às cores. 164. Assim, portanto, deve-se manter que uma e mesma alma intelectiva, a qual não encerra em si as coisas sensíveis, pode recebê-las de fora para serem compreendidas, e é também capaz de tornar inteligíveis em ato as imagens das coisas, tirando delas as imagens inteligíveis. A potência da alma, entendida como capacidade de receber as imagens inteligíveis, denomina-se intelecto possível, ao passo que esta mesma potência, entendida como capacidade de extrair das coisas as imagens inteligíveis, chama-se intelecto agente. Este consiste em uma espécie de luz intelectiva, a qual a alma intelectiva possui em comum com as substâncias intelectuais superiores (os anjos). CAPITULO OITENTA E NOVE — Todas as potências radicam na essência da alma. 165. Não é só o intelecto agente e o intelecto possível que convergem na essência una e única da alma humana, senão também todas as outras potências, que são princípios de operação da alma. Todas essas potências radicam de alguma forma na alma. Algumas, tais como as potências da esfera vegetativa e sensitiva, estão na alma como em um princípio, e no conjunto como em um sujeito, já que as suas operações são conjuntas, e não só da alma, uma vez que o sujeito da ação é também o sujeito da potência. Outras potências, porém, estão na alma como em um princípio e um sujeito, porque as suas operações são da alma sem órgão corporal. Tais são as potências da esfera intelectiva. Ora, não é possível existir mais de uma alma no homem. Por consequência, é necessário que todas as potências da alma pertençam à mesma alma. CAPITULO NOVENTA — Há uma só alma em um corpo. 166. Que é impossível existir mais de uma alma em um mesmo corpo, demonstra-se da seguinte maneira. Torna-se evidente que a alma constitui a forma substancial do ser animado, pelo fato de que é em virtude dela que o ser tem gênero e espécie. Ora, é impossível que uma e mesma coisa tenha mais de uma forma substancial. Pois a forma substancial se diferencia da forma acidental pelo fato de fazer com que uma coisa seja isto e não aquilo, ao passo que a forma acidental advém a alguma coisa que já é isto ou aquilo, fazendo com que este isto ou aquilo adquira qualidade, quantidade, ou relação. Se houvesse numa e mesma coisa mais de uma forma substancial, haveria duas alternativas: o que faria com que uma coisa fosse isto e não aquilo seria a primeira das formas substanciais, ou não seria a primeira delas. Ora, se não fizer, já não é forma substancial. Se fizer, todas as formas sucessivas sobreviriam àquilo que já é isso e não aquilo. Consequentemente, neste caso nenhuma das formas sucessivas seria forma substancial, mas acidental. É óbvio, portanto, que é impossível haver mais do que uma forma substancial em uma e mesma coisa. Tampouco é possível existir mais do que uma alma no mesmo ser. 167. É manifesto que o homem é qualificado como ser vivente por possuir uma alma vegetativa; como animal, por ter uma alma sensitiva; como homem, por ter uma alma intelectiva. Se existissem três almas no homem — uma vegetativa, outra sensitiva, outra racional — seguir-se-ia que uma alma lhe confere gênero e a outra lhe confere espécie. Isto é impossível, pois, se assim fora, do gênero e da diferença específica não resultaria um todo único, pura e simplesmente, mas um todo acidental, uma espécie de miscelânea, tal como a junção do musical e do branco. Por conseguinte, é necessário que no homem exista uma só alma. CAPITULO NOVENTA E UM — Razões que pareciam provar a existência de mais do que uma alma no homem. 168. Pareceria haver algumas razões que contrariam a unicidade da alma. 1) A primeira é que a diferença específica está para o gênero do mesmo modo que a forma está para a matéria. Ora, a animalidade constitui no homem o gênero, enquanto que a racionalidade constitui a sua diferença específica. Portanto, como o animal é um corpo animado por uma alma sensitiva, pareceria que o corpo animado por uma alma sensitiva ainda está em potência com respeito à alma racional, e assim a alma racional seria uma alma diferente da sensitiva. 2) A inteligência não possui um órgão corporal, enquanto que as potências sensitivas e as nutritivas o possuem. Por conseguinte, parece ser impossível que a mesma alma seja ao mesmo tempo intelectiva e sensitiva, pois uma coisa não pode ao mesmo tempo existir e não existir separadamente. 3) A alma racional é incorruptível, conforme acima demonstramos, enquanto que a alma vegetativa e a sensitiva são corruptíveis, por constituírem atos de órgãos corruptíveis. Portanto, não parece possível que a mesma alma seja ao mesmo tempo vegetativa, sensitiva e racional, por ser impossível que a mesma coisa seja corruptível e incorruptível. 4) No processo de geração do homem aparece a vida, a qual provém da alma vegetativa, antes que o ser concebido apareça como um animal em virtude dos sentidos e do movimento. E o animal aparece como um ser dotado de movimento e de sentidos, antes de aparecer como dotado de inteligência. Se, portanto, é em virtude da primeira alma que o ser recém concebido primeiro vive a vida da planta, depois a do animal e finalmente a do homem racional, pareceria que o vegetativo, o sensitivo e o racional procedem de um princípio externo, ou que o intelectivo provém da força contida no sêmen. Ambas as hipóteses parecem, porém, inaceitáveis. Com efeito, as operações da alma vegetativa e as da sensitiva são impossíveis sem o corpo, tampouco o seu princípio pode ser sem o corpo. Ora, a alma intelectiva opera sem o corpo, parecendo portanto impossível que alguma força existente no corpo constitua a sua causa. Consequentemente, parece impossível que a mesma alma seja ao mesmo tempo vegetativa, sensitiva e racional. CAPÍTULO NOVENTA E DOIS — Solução das mencionadas objeções. 169. Para esclarecer as dúvidas acima, cumpre considerar que, assim como nos números as espécies se diversificam pelo fato de uma se acrescentar à outra, da mesma forma, nas coisas materiais, uma espécie supera em perfeição a outra. Com efeito, tudo quanto existe de perfeição nos corpos inanimados encontra-se nas plantas, e muito mais; e tudo o que de perfeição têm as plantas possuem-no os animais, com algo a mais; e assim por diante, até chegarmos ao homem, que é a mais perfeita das criaturas dotadas de corpo material. Ora, tudo quanto é imperfeito constitui como que a matéria em relação ao mais perfeito. 170. Isto se evidencia de diversos modos. Com efeito, os elementos são a matéria dos corpos constituídos de partes semelhantes, e por sua vez os corpos constituídos de partes semelhantes são a matéria em relação aos animais. O mesmo vale para uma e mesma coisa. Pois aquilo que nas coisas naturais atinge um grau superior de perfeição, pela sua forma possui tudo quanto existe de perfeição na natureza inferior, e em virtude desta mesma forma possui quanto de perfeição se lhe acrescenta. Assim, a planta deve à sua alma o ser substância e o ser comporei, e além disso o ser um ente animado. O animal, por sua vez, deve à sua alma tudo isto, e além disso o ser sensível, ao passo que o homem deve à sua alma tudo isto, e mais o fato de possuir uma inteligência. 171. Se, portanto, se considerar em uma determinada coisa o que pertence à perfeição de um grau inferior, será material com respeito ao que pertence à perfeição do grau superior. Assim, se se considerar no animal que ele tem a vida da planta, isto é a matéria com respeito àquilo que pertence à vida sensitiva, característica do animal. Ora, o gênero não é matéria (se o fosse, não se poderia atribuí-lo ao todo), mas constitui algo tirado da matéria, já que o gênero de alguma coisa é a denominação da coisa a partir do que nela existe de material. Da mesma maneira, a diferença específica é tomada da forma. Por isso o corpo vivo ou animado é o gênero animal, ao passo que o sensitivo constitui a diferença constitutiva do mesmo. Analogamente, a animalidade constitui o gênero do homem, ao passo que a racionalidade constitui a sua diferença constitutiva. Todavia, como a forma do grau superior encerra em si todas as perfeições do grau inferior, não existem duas formas, sendo que de uma delas derivaria o gênero e de outra a espécie, mas é da mesma forma, enquanto esta encerra a perfeição do grau inferior, que deriva o gênero, ao passo que, enquanto encerra a perfeição do grau superior, dela deriva a diferença específica. 172. 1) Resposta à primeira objeção. Conclui-se, portanto, que, embora o elemento animal seja o gênero do homem e o racional constitua a diferença constitutiva, contudo não é necessário que haja no homem uma alma sensitiva e outra intelectiva, segundo afirmava a primeira objeção. 2) Daqui segue também a solução da segunda objeção. Dissemos acima que a forma da espécie superior engloba todas as perfeições dos graus inferiores. Deve-se ter presente, contudo, que uma espécie material é tanto mais elevada quanto menos tiver estado sujeita à matéria, decorrendo daqui que, quanto mais nobre for uma forma, tanto mais se eleva, necessariamente, acima da matéria. Por conseguinte, a alma humana, a mais nobre das formas materiais, atinge o mais alto grau de elevação, pelo fato de poder operar sem a participação da matéria corporal. Todavia, já que a mesma alma engloba as perfeições dos graus inferiores, possui também as operações das quais participa a matéria corpórea. Entretanto, é evidente que a operação procede da coisa conforme a força ou o poder da mesma. É necessário, portanto, que a alma humana tenha algumas forças ou potências que constituem princípios das operações exercidas pelo corpo, sendo necessário que estas sejam atos de algumas partes do corpo: estas são as potências da esfera vegetativa e sensitiva. A alma humana possui também algumas potências que constituem princípios das operações exercidas sem o corpo, e tais são as potências da esfera intelectiva, que não constituem atos de órgãos corporais. É por isso que tanto o intelecto possível como o intelecto agente se denominam separados, por não possuírem órgãos dos quais sejam atos, tais como a visão e o ouvido, mas estão apenas na alma. que é a forma do corpo. Por consequência, não é necessário que haja uma alma intelectiva e outra sensitiva no homem, pelo simples fato de que o intelecto se chama separado e não dispõe de órgão corporal. 3) Daqui se conclui outrossim que não é indispensável afirmar a existência de uma alma intelectiva e de outra sensitiva no homem, pelo fato de esta última ser corruptível, ao passo que a intelectiva é incorruptível, conforme alegava a terceira objeção. Pois o ser incorruptível compete à esfera intelectiva na medida em que é independente do corpo corruptível. Portanto, assim como na mesma essência da alma se fundamentam as potências que são separadas, e as não separadas, da mesma forma nada impede que algumas das potências da alma pereçam, ao passo que outras permanecem incorruptíveis. 4) Na esteira dessas premissas soluciona-se também a quarta objeção. Todo movimento natural procede paulatinamente do imperfeito ao perfeito, o que, aliás, ocorre de maneira diferente no processo de alteração e no de geração. Com efeito, toda qualidade admite o mais e o menos, e por conseguinte a alteração, que constitui um movimento na ordem da qualidade, embora seja una e contínua, procede da potência ao ato, passando do imperfeito ao perfeito. Ora, a forma substancial não admite o mais e o menos, visto que o ser substancial de cada coisa é indiviso. Daí que a geração natural não procede com continuidade, através de uma multiplicidade de graus intermediários, do imperfeito ao perfeito, senão que para cada grau de perfeição se requer uma nova geração e uma nova corrupção. É, pois, verdade que, em se tratando da geração do homem, o ser concebido vive primeiro a vida da planta, através da alma vegetativa; depois, desaparecendo esta forma pela corrupção, adquire mediante outra geração a alma sensitiva, em virtude da qual vive a vida animal; em seguida corrompe-se esta alma e entra a forma última e completa, ou seja, a alma racional, que encerra todas as perfeições que existiam nas formas anteriores. CAPITULO NOVENTA E TRÊS — A alma racional não é produzida por geração. 173. Esta forma última e completa, isto é, a alma racional, não se origina da força contida no sêmen — pois esta não é senão a força própria de um corpo — mas provém de um agente superior. Com efeito, a alma racional ultrapassa toda a natureza e a força do corpo, uma vez que nenhum corpo é capaz de atingir a sua operação intelectual. Se, por conseguinte, nada é capaz de operar além da sua espécie — já que o ativo é mais nobre que o passivo, e o que faz é mais nobre do que o que é feito —, é impossível que a força de algum corpo seja capaz de produzir a alma racional. Logo, nem a força que reside no sêmen humano é capaz de fazê-lo. 174. Por não ser a alma racional composta de matéria e forma, segundo demonstramos acima, conclui-se que não pode ser produzida a não ser por criação. Ora, só a Deus compete criar. Em consequência, só Deus pode ser o autor da alma racional. 175. Isto se demonstra também a partir da natureza. Efetivamente, observamos nas artes ordenadas umas às outras que a arte mais elevada reveste a última forma, ao passo que as artes inferiores preparam a matéria para a última forma. Ora, é óbvio que a alma racional é a forma última e a mais perfeita que pode caber à matéria gerável e corruptível. Compreende-se que os agentes naturais são capazes de produzir as disposições e formas anteriores e menos perfeitas. O agente supremo, porém, que é Deus, produz a última forma, isto é, a alma racional. CAPITULO NOVENTA E QUATRO — A alma racional não constitui parte da substância de Deus. 176. Nem por isto se deve pensar que a alma racional constitua uma parcela da substância de Deus, conforme erroneamente acreditam alguns. Pois já demonstramos que Deus é um ser simples e indivisível. Por conseguinte, ao unir a alma racional ao corpo, não o faz como que a extraindo da sua própria substância divina. 177. Já demonstramos também ser impossível que Deus seja a forma de algum corpo. Ora, a alma racional é a forma do corpo, e por conseguinte não pode ser parte da substância de Deus. 178. Ficou igualmente provado que Deus não se move nem é movido, nem por si nem acidentalmente. Ora, é precisamente isto que ocorre com a alma racional, que passa da ignorância para a ciência, do vício para a virtude. Por conseguinte, não pode ela ser uma parcela da substância divina. CAPITULO NOVENTA E CINCO — As coisas que têm o ser de uma força extrínseca procedem diretamente de Deus. 179. Do que vimos expondo até aqui conclui-se necessariamente que as coisas que só podem ser produzidas por criação procedem diretamente de Deus. É manifesto que os corpos celestes só podem ser produzidos por criação. Pois na verdade não se pode dizer que se originaram de alguma matéria preexistente, visto que, se assim fora, seriam geráveis, corruptíveis e passíveis de mudanças contrárias, o que não acontece, conforme se pode depreender do seu movimento circular. Efetivamente, os corpos celestes caracterizam-se pelo movimento circular, e o movimento circular não admite contrário. Segue-se, por consequência, que os corpos celestes foram criados diretamente por Deus. 180. Coisa análoga ocorre com os elementos de que é feito o universo. Estes não podem originar-se de alguma matéria preexistente, pois esta deveria ter tido alguma forma, e portanto seria necessário que algum corpo, diverso dos elementos, fosse anterior aos elementos na ordem da causalidade material. Ora, se a matéria anterior aos elementos tivesse outra forma, seria necessário que um desses elementos fosse anterior aos outros na mesma ordem, se a matéria, a qual precede a forma do elemento, tivesse outra forma. É necessário, por conseguinte, que também os elementos básicos do universo tenham sido criados diretamente por Deus. 181. Se assim é, muito maior ainda é a impossibilidade que as substâncias incorpóreas e invisíveis tenham sido produzidas por algum agente material, visto que todas essas substâncias são imateriais. Logo, é impossível que tais seres provenham de alguma matéria preexistente. Resta como única alternativa o haverem sido criadas diretamente por Deus. Eis a razão pela qual a fé católica professa que Deus é o criador do céu e da terra, de todas as coisas, as visíveis e as invisíveis. CAPITULO NOVENTA E SEIS — Deus não opera por necessidade, mas em virtude da sua livre vontade. 182. Da nossa exposição segue também que Deus não criou as coisas em virtude de uma necessidade, mas voluntariamente. Com efeito, quem faz uma coisa por necessidade só pode fazer isto por estar impossibilitado de fazer outra coisa. Ao contrário, quem age voluntariamente pode produzir livremente mais do que uma coisa, visto que todo aquele que age, age através da forma que lhe é própria. Ora, a forma natural, pela qual uma coisa age compulsoriamente, é uma só. Ao contrário, as formas intelectivas, pelas quais uma coisa age voluntariamente, são múltiplas. Por conseguinte, já que Deus criou diretamente muitas coisas, é evidente que Deus criou as coisas livremente, e não em virtude de uma necessidade fatal. 183. Quem age em virtude da sua inteligência e vontade é anterior, na ordem dos agentes, a quem age por necessidade da natureza, pois quem age voluntariamente escolheu um objetivo que o move, ao passo que quem age necessariamente fá-lo por um objetivo que lhe foi determinado por outrem. Ora, é evidente que Deus é o primeiro de todos os agentes, e portanto opera livremente, e não por necessidade da natureza. 184. Demonstramos acima que o poder de Deus é infinito, donde se infere que Ele não é determinado necessariamente em relação a este ou àquele efeito, mas pode determinar-se Ele mesmo livremente, em relação a qualquer efeito. Ora, aquele que não é determinado necessariamente por nenhum efeito, quando se determina a si mesmo a produzir certo efeito, fá-lo ou porque o deseja ou porque o quer livremente. Assim, por exemplo, o homem pode passear ou não passear, e por isso se diz que passeia quando quiser. Portanto, é necessário que os efeitos que Deus causa procedam da sua livre vontade. Logo. Deus não age em virtude da necessidade, mas em força da sua livre vontade. Esta é a razão pela qual a fé católica não só denomina a Deus criador, mas também "'fazedor", pois o fazer é próprio do artífice que opera livremente. E, já que todo ser que age livremente o faz pela concepção da sua inteligência — a qual se denomina "o verbo" (palavra) do agente e o verbo-palavra de Deus é o Filho —, por este motivo a fé católica fala do Filho, através do qual tudo foi feito. CAPITULO NOVENTA E SETE — Deus é imutável no seu agir. 185. Pelo fato de que Deus cria as coisas voluntariamente, conclui-se com evidência que pode criá-las sem que ocorra qualquer mudança n'Ele. Efetivamente, a diferença entre o que age por necessidade e o que age livremente está no seguinte: o primeiro age sempre da mesma forma, enquanto que o segundo age cada vez como quer. Pode acontecer, sem que haja mudança nele, que neste momento queira fazer uma coisa que anteriormente não quis fazer. Por conseguinte, pode ocorrer que Deus, embora seja eterno, tenha criado as coisas no tempo, e não desde toda a eternidade, sem que devido a isto se deva dizer que Deus é passível de mudança. CAPITULO NOVENTA E OITO — Uma objeção que pareceria provar ser o movimento eterno. 186. Pareceria que, se Deus pode produzir um novo efeito em virtude da sua vontade eterna e imutável, necessariamente deve haver um movimento anterior a este novo efeito. Realmente, parece que, se a vontade adia para mais tarde o que quer fazer, não pode proceder desta forma a não ser devido a uma razão que agora existe e depois cessa de existir, ou então devido a uma razão que agora não existe mas no futuro existirá. Assim, pode ocorrer que o homem, no verão, queira vestir uma determinada roupa, a qual, porém, não quer vestir agora, mas só futuramente, visto que agora faz calor, e o calor só cederá quando chegar o futuro inverno. Se, portanto, Deus quis desde toda a eternidade produzir um determinado efeito, e todavia não o produziu desde toda a eternidade, pareceria que não o fez, ou porque esperava pelo futuro que ainda não existia, ou então porque no futuro deixaria de existir uma razão que então existia. Ora, ambas as hipóteses supõem em Deus movimento, ou seja, mudança. Pareceria, por conseguinte, que uma vontade anterior não pode produzir um efeito mais tarde, se não houver um movimento anterior. E assim, se a vontade com a qual Deus quis criar o universo foi eterna, e sem embargo o mundo não foi criado desde toda a eternidade, pareceria que houve movimento ou mudança antes da criação do universo, e por conseguinte também coisas passíveis de movimento ou mudança. Ora, se essas coisas passíveis de movimento, por sua vez, foram criadas por Deus no tempo, e não desde toda a eternidade, de novo parece dever-se postular a existência anterior de outros movimentos, e consequentemente de outras coisas passíveis de movimento, e assim por diante, até ao infinito. 187. A solução desta objeção apresenta-se relativamente fácil se ponderarmos a diferença que vai entre o agente universal e o agente particular. A ação do agente particular é proporcionada à norma e à medida que o agente universal estabeleceu, e isto se pode observar na esfera civil. Com efeito, o legislador propõe a lei como uma norma e medida segundo as quais um determinado juiz deve dar o seu pronunciamento. Ora, o tempo é a medida das ações que acontecem no tempo. A ação do agente particular é proporcionada ao tempo, no sentido de que o agente particular age agora e não antes, movido por uma determinada razão. Ao contrário, o agente universal, que é Deus, foi quem instituiu esta medida, ou seja, o tempo, e o fez segundo a sua vontade livre. Portanto, existe a categoria tempo nas coisas criadas por Deus. Por conseguinte, assim como a quantidade e a medida de cada coisa é aquela que Deus lhe quis dar, da mesma forma a quantidade de tempo de cada coisa é aquela que Deus lhe quis dar, de modo que tanto o tempo como as coisas criadas no tempo tiveram início no momento em que Deus quis que o tivessem. A mencionada objeção procederia no caso de um agente que pressupõe o tempo e age no tempo, mas não instituiu ele próprio o tempo. Logo, o problema de saber por que a vontade eterna (de Deus) produz um determinado efeito agora, e não antes, pressupõe um tempo preexistente, pois o agora e o antes pressupõem parcelas do tempo. Consequentemente, no que tange à criação universal das coisas, entre as quais figura também o tempo, o que interessa não é o porquê do agora e do antes, mas por que razão Deus quis que houvesse uma medida de tempo. Ora, isto depende da vontade divina, para a qual é irrelevante assinalar este ou aquele período de tempo. 188. A mesma consideração pode ser feita com respeito à dimensão do universo. Não interessa perguntar por que Deus colocou o universo corpóreo em tal posição e não em outra, pois fora do universo não existe outro lugar. Deve-se à vontade divina que o universo corpóreo tenha tais dimensões, que nenhuma parte do mesmo caia fora do espaço a ele reservado, qualquer que seja a sua posição. Por conseguinte, embora antes da criação do universo não houvesse tempo, e embora fora do universo não haja nenhum outro lugar, costumamos todavia falar assim, dizendo, por exemplo, que antes da existência do mundo nada existia, exceto Deus, ou que fora do mundo não existe corpo algum. Em assim falando, não tencionamos dizer que "antes" signifique o tempo e "fora" designe o lugar, senão que estamos tão somente usando a linguagem da imaginação. CAPÍTULO NOVENTA E NOVE — Solução das objeções que afirmam a eternidade da matéria. 189. Poderia parecer, contudo, que, embora a criação das coisas não seja eterna, a matéria, esta sim, seria eterna. 1) Com efeito, tudo aquilo que primeiro foi não ser e agora é ser passou por uma mudança do não ser para o ser. Se, portanto, as coisas criadas, como o céu, a terra e outras congêneres, não existiram desde toda a eternidade, mas começaram a existir depois da nãoexistência, parece dever-se necessariamente afirmar que mudaram do não ser para o ser. Ora, toda mudança e todo movimento têm um sujeito, visto que o movimento é um ato próprio daquilo que existe só em potência. O sujeito da mudança, mediante a qual uma determinada coisa é criada para o ser, não é a própria coisa criada, visto que esta constitui o termo ou ponto terminal do movimento, sendo impossível que o mesmo movimento possa constituir o termo e ao mesmo tempo o sujeito. O sujeito da mencionada mudança é aquilo pelo qual a coisa é criada, isto é, a matéria. Parece, por conseguinte, que, se as coisas passaram da não existência para a existência, necessariamente a matéria existiu antes delas. Ora, se também esta matéria preexistente passou do não ser para o ser, deve ter havido antes dela outra matéria. Ora, não se pode levar este processo até ao infinito. Logo, pareceria dever-se chegar necessariamente à existência de uma matéria eterna, a qual não passou do não existir para o existir, mas existiu sempre, desde toda a eternidade. 2) Se o universo passou a existir depois de um tempo de não existência, parece dever-se obrigatoriamente argumentar da seguinte maneira: antes que o mundo existisse, de duas, uma: ou era possível que o mundo passasse a existir, ou não era possível. Se não era possível que o universo passasse a existir, necessariamente se afirmará que era impossível que o mundo passasse a existir. Ora, o que é impossível que exista, necessariamente não existe. Logo, o mundo não pode ter sido criado. Já que esta última afirmação é evidentemente falsa, necessariamente se dirá que, se o universo começou a existir depois de um período de não existência, o que antes de existir era apenas possível, passou a existir na realidade. Logo, havia algo em potência, para que dali procedesse o universo. Ora, o que está em potência para tornar-se o ser de alguma coisa é a matéria desta, assim como a madeira é a matéria da qual se faz um assento. Por conseguinte, pareceria que a matéria existiu necessariamente desde toda a eternidade, embora o universo não seja eterno. 190. Todavia, já que ficou demonstrado acima que também a matéria só pode ter sido criada por Deus, pela mesma razão a fé católica não professa que a matéria é eterna, como tampouco o mundo é eterno. Com efeito, é necessário que a causalidade divina se manifeste nas coisas de tal modo, que apareça que as coisas criadas por Deus começaram a existir após um período de não existência. Isto demonstra com clareza meridiana que não devem a existência a si mesmas, porém ao Criador eterno. Contudo, as razões acima mencionadas não nos obrigam a afirmar a eternidade da matéria. A criação universal das coisas não se denomina mudança no sentido adequado da palavra. Pois em nenhuma mudança o sujeito desta é produzido pela mudança, já que, como dissemos acima, uma e mesma coisa não pode ser ao mesmo tempo sujeito e termo. Logo, sendo que a criação universal de Deus se estende a tudo quanto existe, esta criação não constitui uma mudança no sentido verdadeiro da palavra, mesmo que as coisas criadas tenham passado do não ser para o ser. A passagem da não existência para a existência não é suficiente para que haja uma verdadeira mudança, a não ser que se suponha que o sujeito ora está sob a privação, ora sob a forma. Efetivamente, há casos em que ocorre passagem sem que haja verdadeiro movimento ou verdadeira mudança; por exemplo, quando se diz que do dia se passa à noite. Por conseguinte, embora o universo tenha começado a existir depois de não ter existido, não é necessário que tal tenha ocorrido através de uma mudança, mas sim mediante criação. Esta não constitui mudança no sentido próprio do termo, senão que constitui uma relação da coisa criada, dependente do Criador no seu ser. Para que haja uma verdadeira mudança, é preciso que exista um algo que uma vez é isto e depois passa a ser aquilo. Ora, tal não ocorre no caso de uma verdadeira criação, ou pelo menos não ocorre criação no sentido adequado e próprio da palavra, senão apenas em linguagem da imaginação, isto é, enquanto imaginamos que uma e mesma coisa primeiro não existiu e depois passou à existência. Logo, só em sentido analógico se pode dizer que a criação constitui uma mudança. A segunda objeção também não procede. Embora seja verdadeiro dizer que, antes de o universo existir, era apenas possível que ele passasse à existência, isto não implica potência. Pois denomina-se possível o que significa algum modo da verdade, logo este possível não implica potência, conforme ensina o Filósofo no sétimo livro da sua Metafísica. Mesmo que o dizer que era possível que o mundo passasse a existir implicasse potência, não se trataria necessariamente de potência passiva, mas de potência ativa, isto é: concluir-se-ia apenas que era possível que o mundo passasse a existir, no sentido de que Deus podia criar o mundo antes que este existisse na realidade. Logo, não há necessidade de admitir que a matéria preexistiu ao universo. Eis por que a fé católica não admite nada de eterno afora Deus, razão pela qual professa ser Ele o criador de todas as coisas, as visíveis e as invisíveis. CAPÍTULO CEM — Deus faz tudo em vista de um fim. 191. Uma vez demonstrado que Deus criou as coisas não por necessidade natural mas em virtude de sua inteligência e vontade, e já que todo ser dotado de inteligência e vontade age em vista de uma meta, conclui-se necessariamente que tudo quanto Deus criou, existe por causa de uma finalidade. 192. A criação das coisas por parte de Deus é a melhor, pois é próprio de quem é o Melhor fazer tudo da melhor maneira. Ora, é melhor fazer uma coisa em vista de um fim do que fazê-la sem visar a uma finalidade. Por conseguinte, Deus fez as coisas com vistas a uma meta. 193. O sinal disto encontra-se, aliás, na própria natureza, pois esta não faz nada em vão, mas sempre visando a algum objetivo. Ora, não seria razoável dizer que há mais ordem nas coisas produzidas pela natureza criada do que no primeiro agente da natureza (Deus), pois toda a ordem da natureza deriva d'Ele. É evidente, portanto, que Deus criou as coisas em vista de um fim.