Anselmo de Aosta - Monológio CARTA AO ARCEBISPO LANFRANCO Ao seu senhor. Padre e Doutor Lanfranco, digno de toda reverência e amor, arcebispo de Canterbury, primaz a Inglaterra, benemérito da Igreja Católica por sua fé e serviços, o irmão Anselmo de Bec, pecador por sua vida e monge pelo hábito. Desde que tudo há de ser feito com conselho, porém não com um conselho qualquer, mas, como está escrito na Sagrada Escritura: "faze tudo com conselho" e "teu conselheiro seja único entre mil", por isso escolhi um que vós já conheceis. E não entre mil, mas entre todos os mortais, para recorrer a ele nas minhas dúvidas a fim de ensinar-me o que não sei, corrigir-me nos excessos ou aprovar-me nas coisas certas. E, embora não possa utilizar-me dele quanto desejaria, hei de servir-me dele na medida do possível. Há muitos que, apesar de não possuírem vossos dotes de prudência, poderiam suprir com seus conhecimentos a minha falta de experiência e sufragar-me quando a minha ignorância o reclamasse. Mas não conheço nenhum deles, a cuja doutrina e juízo eu possa recorrer com igual confiança e prazer como a vós, e que com idêntica compreensão paternal possa dispor-se a ajudar-me ou a preencher, com alegria, as minhas lacunas. Sem dúvida tudo o que me concedeis sai do vosso coração paternal, está repleto de sabedoria, revestido de autoridade, saturado de amor. Por isso, o que me vem da vossa pessoa é-me sumamente agradável e inspira-me confiança. Mas, afinal, por que expor estas coisas a quem já as conhece? Melhor é deixá-las de lado e seguir adiante. Alguns confrades de hábito, servos vossos e companheiros meus, insistiram muito e frequentemente para que concordasse em escrever o que podeis ver agora no pequeno prefácio deste trabalho. Mas com este opúsculo aconteceu que, tanto aqueles para os quais foi escrito, como muitos outros, não apenas pediram para lê-lo, mas também para transcrevê-lo. Eu, porém, estou na dúvida se devo negar ou conceder o solicitado, pois, no primeiro caso, poderiam odiar-me por considerar-me presunçoso e, no segundo, ignorante. É por isso que recorro ao meu conselheiro particular: submeto ao vosso juízo este escrito devendo ser examinado, para que com a autoridade desse conselheiro seja retirado o que está mal e venha a ser dado, corrigido, aos que o desejam. PRÓLOGO Alguns irmãos de hábito pediram-me muitas vezes e com insistência para transcrever, sob forma de meditação, umas ideias que lhes havia comunicado em conversação familiar, acerca da essência divina e outras questões conexas com esse assunto. Isto é, atendendo mais a como devia ser redigida esta meditação do que à facilidade da tarefa ou à medida das minhas possibilidades, estabeleceram o método seguinte: sem, absolutamente, recorrer, em nada, à autoridade das Sagradas Escrituras, tudo aquilo que fosse exposto ficasse demonstrado pelo encadeamento lógico da razão, empregando argumentos simples, com um estilo acessível, para que se tornasse evidente pela própria clareza da verdade. Desejaram, também, que não descurasse responder a eventuais objeções, por quanto simples e inconsistentes, que se me apresentassem ao longo do trabalho. Comensurando as minhas forças com o empreendimento, procurei, por muito tempo, escusar-me com várias argumentações, pois, sendo as suas exigências bastante grandes para que a matéria fosse acessível, isto aumentava para mim a dificuldade de corresponder aos seus desejos. Vencido, finalmente, pela cansativa insistência dos seus pedidos como pela admirável legitimidade do seu zelo, comecei o trabalho, porém a contragosto, devido à dificuldade da tarefa e à fraqueza das minhas forças. Entretanto, levei-o a cabo com prazer, pelo carinho que lhes devoto, e procurei seguir, quanto pude, o método traçado por eles. Para tanto me confortava também a esperança de que este escrito ficaria conhecido apenas por aqueles que o encomendaram e que, rapidamente cansados de lê-lo, sepultariam no desprezo e no esquecimento uma obra feita mais para que me deixassem em paz do que para corresponder, com competência, à sua justa curiosidade. Entretanto, aconteceu, contra minha esperança, e não sei como, que foram tiradas várias cópias do manuscrito para decorá-lo e conservá-lo por muito tempo, não apenas pelos meus confrades, mas ainda por muitas outras pessoas. Ao examiná-lo repetidas vezes, nada encontrei que esteja em discordância com os escritos dos padres católicos e maximamente com os de Santo Agostinho. Por isso, se alguém tiver a impressão de que, neste opúsculo, alguma coisa pareça demasiadamente nova ou que não esteja de acordo com a verdade, rogo-lhe não tachar-me, precipitadamente, de inovador presunçoso ou de defensor da falsidade. Leia primeiro o tratado De Trinitate, do citado Santo Agostinho, e, depois, julgue o meu opúsculo segundo essa obra. Quando, por exemplo, sustento que a Trindade pode ser considerada como três substâncias, sigo a opinião dos gregos, que admitem três substâncias numa pessoa única, compartilhando, assim, da mesma nossa fé, segundo a qual confessamos três pessoas em uma única substância. Eles, pois, entendem por substância em Deus aquilo que nós entendemos por pessoa. Tudo o que ali digo, digo-o como um homem que examina e busca, na solidão do seu pensamento, as coisas que anteriormente não havia compreendido: justamente o que os meus confrades queriam e eu desejava satisfazer-lhes. Igualmente, solicito e rogo com insistência a quem deseje transcrever o opúsculo não omitir este prólogo. Julgo ser de grande utilidade, para compreender o que segue, ler antes com que intenção e método procedeu a dissertação. Acho também que quem leu primeiro este prefácio não se deixará levar por um julgamento precipitado, se encontrou nele algo que se opõe à sua opinião. CAPÍTULO I Que há algo sumamente bom, grande e superior a tudo o que existe. Se houvesse alguém que, pelo fato de nunca ter ouvido falar nisso ou por não acreditar, ignorasse existir uma natureza superior a tudo o que existe — a única suficiente por si mesma, em sua felicidade —, e que concede, por sua bondade, à criatura ser aquilo que é, permitindo-lhe, inclusive, ser boa sob algum aspecto; se esse alguém ignorasse isso e muitas outras coisas, nas quais nós cremos com certeza acerca de Deus e das suas criaturas, penso que tal pessoa, embora de inteligência medíocre, possa chegar a convencer-se, ao menos em grande parte, dessas coisas, usando apenas a razão. E poderá fazê-lo de várias maneiras. Eu lhe indicarei apenas uma, que acho ser a mais fácil. Como todos aspiram a fruir das coisas que julgam boas, nada mais provável que essa pessoa venha, um dia, a dirigir a sua mente para a busca do ser pelo qual são boas as coisas que ela deseja só porque assim as julga e, desta maneira, guiada pela razão e ajudada pelo ser que busca, consiga chegar, através do raciocínio, às coisas que irracionalmente ignoram. E se, nesta obra, disser algo que não está demonstrado por uma autoridade maior, quero que se entenda de maneira que, apesar de ter sido deduzido como consequência necessária por causa das razões que me pareciam certas, nem por isso deve-se considerar absolutamente necessário, mas somente que assim a coisa me parece, no momento. É fácil que alguém pense em seu íntimo: "Como há um número imenso de bens, cuja múltipla diversidade experimenta-se pelos sentidos corpóreos e discerne-se pela razão, será que devo acreditar que existe um ser único pelo qual, somente, são boas todas as coisas que são boas, ou, ao contrário, umas delas são boas por um motivo e, outras, por outro motivo”? Para qualquer um que queira prestar atenção, é certo e evidente que todas as coisas, entre as quais haja uma relação de mais ou de menos ou de igualdade, são assim em virtude de "algo" que não é diferente, mas o mesmo, em todas elas, não interessando se aquilo que se encontra nas coisas esteja em proporção igual ou desigual. Com efeito, todas as coisas que são ditas justas entre si ou, mais ou menos justas, em relação a outras, não podem ser entendidas dessa forma a não ser em relação à justiça, que não é algo diferente nas diferentes coisas. Sendo, portanto, certo que todas as coisas, quando comparadas entre si, apresentam-se boas no mesmo grau ou em grau diferente, é necessário que elas sejam boas por um "algo" que é o mesmo em todas, embora às vezes pareçam sê-lo umas por um motivo e, outras, por outro. Um cavalo, por exemplo, parece ser bom por dois motivos: por ser forte e por ser veloz. Mas, embora o cavalo seja bom pela força e pela velocidade, não parece, com isso, que a força e a velocidade possam ser o mesmo. Ainda: se o cavalo é bom enquanto é forte e veloz, então por que um ladrão, forte e veloz, é mau? Evidentemente deve-se dizer que o ladrão é mau porque danoso e o cavalo bom, porque útil. Na verdade, nada sói julgar-se bom senão por alguma utilidade, como acontece com a saúde e aquilo que lhe diz respeito; ou por sua honestidade, como é o caso da beleza e daquilo que a fomenta. Mas, como esta demonstração não pode ser destruída por nenhum meio, é necessário deduzir, também, que tudo o que é útil e honesto, se realmente é bom, é bom por aquilo pelo qual é bom tudo o que é bom. Quem poderia pensar, entretanto, que não seja um grande bem aquilo pelo qual todas as coisas são boas? De fato ele é bom por si mesmo, pois todos os outros bens derivam dele. Por isso, conclui-se que os restantes bens não procedem de si mesmos e, sim, de outro e que ele é o único bem por si mesmo. Mas, o bem que deriva de outro não é igual ao que é bom por si, nem maior do que ele. Único bem supremo só será, portanto, aquele que é soberanamente bom por si, porque somente aquilo que supera aos outros de tal maneira a não ter nem igual nem superior é supremo. Ora, o que é soberanamente bom também é soberanamente grande. Existe, então, alguma coisa que é soberanamente grande, vale dizer, sumamente superior a todas as outras que existem. CAPÍTULO II Sobre o mesmo assunto. Mas, assim como vimos existir um ser soberanamente bom, pois todas as coisas são tais devido a um bem único, da mesma maneira devemos necessariamente induzir que há também um ser soberanamente grande, pois todas as coisas que são grandes devem-no a um ser que é grande por si. Ele é grande não no sentido espacial, como se diria dos corpos, mas no sentido em que quanto maior é, mais digno e melhor é, como acontece com a sabedoria. E, desde que não pode haver nada sumamente grande se não é sumamente bom, decorre que deve existir um ser que, igualmente, é o maior e o melhor, isto é, sumamente superior a todas as coisas. CAPÍTULO III De como há uma natureza pela qual existe tudo o que existe. Ela existe por si e é sumamente superior a todos os seres. Ainda: não apenas tudo o que é bom e grande é assim em virtude de uma única e mesma coisa, mas parece também que tudo o que existe exista devido a uma única e mesma coisa. Com efeito, tudo o que existe ou provém de algo ou deriva do nada. Mas o nada não pode gerar nada e sequer é possível pensar que algo não seja gerado senão por algo. Portanto, tudo o que existe só pode existir gerado por algo. Assim sendo, tudo o que existe é gerado: ou por uma causa só ou por muitas. Se por muitas, elas, ou convergem num princípio único pelo qual todas as coisas existem, ou existem por si, ou criaram-se mutuamente. Mas se muitas coisas procedem do mesmo princípio já não têm origem múltipla, e, sim, única, e se existem cada uma por si mesma, deve-se supor, então, a existência de uma força, ou natureza, que possui a propriedade de existir por si, da qual as coisas tiraram a propriedade de existir por si. Neste caso, porém, não resta dúvida de que são aquilo que são devido àquela causa pela qual possuem a propriedade de existir por si mesmas. Portanto, é mais acertado dizer que existem todas por um princípio do que por vários, pois, sem ele, não poderiam subsistir. No que diz respeito à existência de muitas coisas por criação mútua, repugna à razão, por completo, que algo possa ser gerado por aquilo a que deu o ser. Não acontece nem com as coisas relativas que uma seja gerada pela outra, mutuamente. Com efeito, o dono e o escravo são tais, respectivamente um ao outro, pelas suas condições relativas; mas como pessoas às quais aplicamos essas qualificações, eles não existem em virtude de um ter gerado o outro, por criação mútua; e as próprias relações que há entre eles não são produzidas por uma ação recíproca, porque só existem devido aos sujeitos aos quais as atribuímos. Se, portanto, todas as coisas que existem derivam dessa mesma causa, não há dúvida de que ela é única; e que existe por si. E, se tudo o que existe procede de uma causa única, é necessário que ela exista por si e o resto derive a sua origem de outra. Mas tudo o que se origina de outro é menor do que a causa que produz todos os seres e que só existe por si. Assim, o que existe por si mesmo é superior a todas as coisas. Há, pois, uma causa que, única, é superior a todas as coisas existentes. Mas, aquilo que é superior a todas as coisas, e que comunica o ser, a bondade e a grandeza a tudo o que é bom e grande, torna-se necessário que seja sumamente bom e grande e que esteja soberanamente acima de todas as coisas que existem. Conclui-se, assim, que deve haver um ser perfeitamente bom e grande; enfim, superior a todas as coisas, quer se denomine ele essência, substância ou natureza. CAPÍTULO IV Sobre o mesmo assunto Ainda: se alguém examinar a natureza das coisas, queira ou não queira, haverá de convir que nem todas podem ser colocadas no mesmo plano de dignidade; mas, ao contrário, umas delas distinguem-se pela diferença de graus. Com efeito, quem duvidasse que é melhor, por sua natureza, o cavalo que a madeira, e o homem melhor ainda que o cavalo, não seria digno de ser chamado homem. Se, entretanto, não é possível duvidar que algumas naturezas sejam melhores que outras, a razão, todavia, convence-nos haver, entre elas, uma que é tão superior às demais que não admite nenhuma que lhe seja superior. Com efeito, se a distinção dos diferentes graus fosse infinita de forma a haver sempre um ser superior aos outros, dever-se-ia concluir que não haveria um limite naquela multiplicidade de naturezas. Mas, como um raciocínio deste tipo é tão absurdo quanto quem o formulasse, é lícito induzir que há, necessariamente, uma natureza, cuja superioridade se afirma de modo a não poder ser inferior a nenhuma outra. Essa natureza, contudo: ou é única ou há várias do mesmo gênero, iguais entre si. Porém, as coisas não podem ser múltiplas e iguais, entre si, por motivos diferentes, e, sim, por um só e idêntico motivo, que as torna igualmente grandes. Esse motivo: ou é aquilo pelo qual receberam a existência, isto é, a sua essência, ou algo diferente da sua essência. Se não for outra coisa que a sua essência, então, como não há várias essências mas uma só, também não haverá várias naturezas, mas apenas uma. E aqui, entendo por natureza o mesmo que por essência. Se depois, aquele "algo" de idêntico, pelo qual essas várias naturezas são grandes, é diferente da essência das coisas, elas serão menores do que aquilo que lhes comunicou a grandeza porque, tudo o que é grande por comunicação de outro, evidentemente é menor do que aquilo donde recebeu a grandeza. Elas, portanto, não são tão grandes que não admitam nada acima de si. Igualmente, se não é possível que essas naturezas sejam iguais e supremas, nem por parte da sua essência nem por parte de um ser estranho, resulta que não podem, de maneira nenhuma, existir. Resta, portanto, essa natureza única, de tal forma superior a todas, que não admite ser inferior a nenhuma outra. Há, pois, uma natureza superior a tudo o que existe. Isto, porém, não pode verificar-se a não ser que ela exista por si mesma e tenha comunicado a existência a tudo o resto, porque — como há pouco a razão nos demonstrava — aquilo que é por si, e pelo qual todas as coisas existem, é superior ao resto. Ora, esse ser supremo, existente necessariamente por si e que comunica a existência a tudo, ou é único ou há vários. Mas é evidente que não pode haver vários seres supremos. Disso se conclui que há uma natureza ou substância que é boa e grande por si, que é o que é por si, e pela qual existe a bondade e a grandeza e tudo o que há; e ela é o bem supremo, a grandeza suprema, o ser soberano ou subsistente, isto é, o ser por excelência entre todos os seres. CAPITULO V Assim como esta natureza existe por si e as outras por ela Assim ela procede de si mesma e, as outras, dela, visto serem aceitáveis as conclusões alcançadas até agora, torna-se útil indagar se essa natureza suprema e todas as coisas que existem derivam necessariamente dela e existem necessariamente por ela. Está claro poder-se afirmar que aquilo que deriva de uma coisa existe também por esta coisa; e o que existe por uma coisa, também existe da mesma coisa, assim como, por exemplo, dir-se-ia de um objeto que é de tal matéria e por tal artífice porque recebeu a existência de e por ambos, embora existir pela matéria e da matéria seja diferente de existir pelo artífice e do artífice. Disso decorre que todas as coisas que existem são aquilo que são por essa natureza suprema e que ela existe por si mesma, enquanto as demais existem por algo diferente delas mesmas. E vice-versa: tudo o que existe, deriva de essa mesma natureza suprema, quando, ao contrário, as outras coisas decorrem de algo diferente delas; e ela, no entanto, procede de si mesma. CAPITULO VI Que essa natureza transitou ao ser sem a ajuda de nenhuma causa, e, no entanto, ela não existe do nada e pelo nada. De que maneira deve ser entendido que ela é por si e de si Como a expressão "existir por algo e de algo" nem sempre tem o mesmo sentido, faz-se mister indagar com maior atenção de que maneira todas as coisas existentes podem existir pela natureza suprema ou derivar dela, e como tudo aquilo que existe por si mesmo ou por outro não pode ter o mesmo modo de existir. Examinaremos, em primeiro lugar, e em particular, a natureza suprema que existe por si e, sucessivamente, trataremos dos seres que existem em virtude de outro, diferente deles mesmos. Sendo, portanto, certo que essa natureza suprema é por si mesma tudo aquilo que é, e que as outras coisas são aquilo que são devido a ela, devemos perguntar: De que modo pode, essa natureza, existir por si mesma? Tudo aquilo que se diz existir por algo existe: ou por uma causa eficiente, ou pela matéria ou por qualquer outro elemento funcionando como meio instrumental. Mas tudo isso, produzido por um desses três meios, deriva de outra coisa e, assim, é posterior e menor, sob vários aspectos, do que aquilo que lhe confere a existência. Ora, a natureza suprema, de maneira absoluta, não deriva de outra e não é posterior a si mesma ou menor do que ela própria ou do que qualquer outra coisa. Disso decorre que ela não pode ter sido feita nem por si mesma, nem por outro ser; e nem ela nem outro ser é a matéria donde tirou a existência; nem ela ajudou a si mesma, nem outro ajudou-a a ser aquilo que não era. E então? Tudo aquilo que não tem causa eficiente nem matéria anterior ou que não deve a sua existência à ajuda de outro parece dever considerar-se o nada ou, se é algo, existir do nada e pelo nada. Ora, segundo os princípios já expostos à luz da razão, penso ter demonstrado que essas condições não se aplicam à natureza suprema. Entretanto, não omitirei nada que possa oferecer a prova dessa proposição. Com efeito, como esta meditação me levou a uma grande e prazerosa alegria, não devo negligenciar nenhuma objeção, ainda que simples e fátua, que se me apresente ao longo da discussão. Assim, afastando toda dificuldade, por pequena que seja, avançarei com maior segurança nas sucessivas argumentações, caso precise persuadir alguém, como está no meu propósito, acerca do que estou discutindo, e qualquer inteligência, embora pouco perspicaz, poderá assim penetrar com facilidade as coisas que ouve expor. Que aquela natureza, portanto, sem a qual não há nenhuma outra coisa, possa ser considerada o nada é tão falso quanto é absurdo afirmar que tudo o que existe não existe. Igualmente não é possível pensar que tenha sido feita do nada porque é completamente incompreensível que algo exista pelo poder criador do nada. Mas, vamos supor que derive do nada: derivaria, então: ou por si, ou por outro ser ou pelo nada. É evidente, porém, que do nada, nada emana. Logo, deveria ter saído do nada ou por sua própria força ou pela força de outro ser. Se fosse pela sua própria força, esta existiria anteriormente àquela natureza e tornaria esta natureza anterior a si mesma. Mas, já o demonstramos, a natureza suprema não pode ser anterior a si mesma e, assim, ela não pode ter saído do nada por sua própria virtude. Se, depois, quiséssemos admitir que fora criada do nada pela ajuda de outro ser, então ela não seria a máxima entre todas as coisas e, sim, inferior, pelo menos a uma; e não existiria por si mesma, mas devido a outra. Ainda: se ela derivasse do nada por meio de alguma coisa, esta coisa que lhe deu a existência deveria ser um grande bem por ter causado um bem tão grande. Mas não pode haver nenhum bem anterior àquele sem o qual não há bem; e este bem, sem o qual não existe bem nenhum, é evidente que só pode ser a natureza suprema, de que estamos tratando. Coisa alguma, portanto, nem se processada na inteligência, existiu e ajudou essa natureza a derivar do nada. Finalmente, se a natureza suprema derivasse do nada ou tivesse sido gerada pelo nada, é evidente que ela: ou não seria aquilo que é por si e em si, ou se identificaria com o nada. Duas alternativas, cuja falsidade é supérfluo demonstrar. Apesar de a substância suprema não ter sido criada por uma causa eficiente, nem formada por alguma matéria, nem ter recebido auxílio externo para existir, nem, por isso, ela provém, portanto, do nada ou foi gerada pelo nada: tudo o que ela é, é por si mesma e de si mesma. Então como haverá de entender-se que ela é por si e de si, se não foi criada e não é a matéria donde saiu e não recebeu ajuda alguma para transitar ao ser? Eu creio que se deva compreender no mesmo sentido e da mesma maneira com que se compreende quando dizemos que a luz ilumina, iluminando por si e de si mesma. De fato a relação que há entre luz, iluminar, iluminando, corresponde à que se estabelece entre essência, ser e ente, isto é, existente ou subsistente. Portanto, a essência suprema, o ser soberano, o ente absoluto, isto é, sumamente existente ou sumamente subsistente, mantém as mesmas relações que luz, iluminar, iluminando. CAPÍTULO VII Como todas as coisas recebem a existência de e por essa natureza suprema. No que diz respeito a todos os seres existentes por uma causa distinta deles mesmos, resta-nos, agora, esclarecer como tenham sido criados pela substância suprema; se, isto é, ela os produziu completamente ou foi a matéria de todos. Inútil perguntar-se aqui se as coisas foram criadas por ela no sentido em que as tenha ajudado a existir usando de outro ser como de causa agente ou de matéria preexistente. Demonstramos, há pouco, ser absurdo que a natureza suprema crie através de outro e não diretamente, como causa principal. Por isso, penso dever-se indagar, antes de mais nada, se todas as coisas criadas por um ser diferente delas mesmas tenham sido originadas de alguma matéria. Não duvido que esta imensa mole de coisas que é o universo, com todas as suas partes, seja formada de água, terra, ar e fogo. Ora, estes quatro elementos podem ser pensados sem a forma que têm nas coisas visíveis, de maneira a poder-se considerar a sua natureza, indeterminada e confusa, como matéria de todos os corpos em suas formas distintas. Não é disto que eu duvido, repito, mas quero saber de onde provém a matéria do universo, da qual estamos falando. Se, pois, ela procede de outra, na verdade, esta outra é que é a matéria do universo corpóreo. Se, portanto, o universo das coisas visíveis e invisíveis se origina de alguma matéria, não apenas não poderá existir, mas sequer poderá dizer-se que derive de outra matéria que não seja uma destas: ou da natureza suprema, ou de si mesma, ou de uma terceira essência, que seria, sem dúvida, o nada. De fato não é absolutamente possível pensar que existam outras coisas afora estas duas: aquela que é a máxima entre todas, existente por si mesma, e aquelas que formam o conjunto do universo, e que não existem por si, mas devido àquela que é a máxima entre todas. Isto porque, aquilo que, de maneira nenhuma, tem existência, pode ser matéria de algo. Por outro lado, o universo também não pode ter-se originado da sua própria natureza porque ela, por sua vez, não existe por si. Se isso pudesse acontecer, o universo, sob certo aspecto, existiria por si e, ao mesmo tempo, por causa de outra coisa, diferente daquela que criou tudo. E, assim, o ser que criou todas as coisas existentes não seria mais o único, o que é completamente falso. Igualmente, tudo o que tem origem de alguma matéria é constituído por algo diferente de si e é posterior a ela. Mas, como nada pode derivar de si mesmo e ser posterior a si mesmo, decorre que não há coisas que possam originar-se, materialmente, de si mesmas. Se, finalmente, algo pudesse originar-se da matéria da natureza suprema, então haveria algo inferior a ela, o que tornaria o bem supremo sujeito a mudar e a corromper-se, o que é infame afirmar. Como tudo o que é distinto da natureza suprema é menor do que ela, é impossível que algo derive dela, desta maneira. Ainda: o que pode mudar e corromper o bem supremo, não resta dúvida de que não pode ser o bem. E se houvesse alguma natureza inferior, formada da mesma substância do bem supremo — desde que nada existe que não derive da essência suprema —, o bem supremo ficaria corrompido e mudado por essa mesma natureza. Assim, a essência suprema, que nada mais é do que o bem supremo, de maneira alguma seria o bem, o que é inadmissível. Portanto, nenhuma natureza inferior está constituída pela matéria da natureza suprema. Se, desta maneira, resulta que a essência daquelas coisas que derivam de outra não provém da matéria da essência suprema, nem de si próprias, nem de outro ser, devemos concluir que não derivam de nenhuma matéria. Por esse motivo, como tudo o que existe deve-se à essência suprema e nada pode haver sem que ela seja causa eficiente ou material, decorre necessariamente que, salvo ela mesma, não há nada que não seja produzido pela sua ação. E como nada existe ou existiu, afora ela mesma e as coisas que produziu, absolutamente nada ela pôde fazer por meio de outra coisa ou instrumento ou auxílio, mas só por si mesma. E tudo o que fez, não há dúvida de que o fez de algo, como da matéria, ou do nada. Portanto, vê-se claramente que a essência de todas as coisas, não derivadas da essência suprema, foi feita por aquela natureza suprema, e sem nenhuma matéria prévia; e não há dúvida de que ela produziu, por si só, por si mesma e do nada, o imenso universo das coisas, esta numerosa multiplicidade de seres, formando-a tão estupendamente bela, tão proporcionalmente variada, tão harmoniosamente diversificada. CAPITULO VIII Como há de ser compreendido que ela criou tudo do nada. Mas, ao falar-se do nada, apresenta-se uma dúvida. Todo ser que produz outro é causa daquilo que origina e faz-se mister que toda causa preste uma ajuda qualquer à essência do seu efeito. Esse princípio está tão consagrado pela experiência que não seria possível tirá-lo da mente de ninguém por meio da discussão, apenas mediante engano. Se, portanto, alguma coisa foi feita do nada, o nada é a causa daquilo que foi produzido. Mas, de que modo aquilo que não possui existência pode oferecer ajuda a algo para transitar ao ser? E se o nada não pode oferecer nenhuma ajuda, como persuadir a alguém que uma coisa consegue originar-se do nada? De que modo persuadi-lo? Mais ainda. O nada ou é alguma coisa ou não é nenhuma. Se é alguma coisa, então tudo o que saiu do nada foi feito de algo. Mas, ao contrário, se não é nenhuma coisa, fica incompreensível como algo possa ser feito do nada, que é carência de tudo: do nada, nada se origina, como sói dizer-se comumente. Donde se conclui que tudo aquilo que foi feito recebeu a origem de algo, pois uma coisa é feita de algo ou de nada. Pense-se, então, o nada como sendo alguma coisa ou nenhuma, porém fica evidente que tudo o que foi feito origina-se de algo. Esta conclusão, entretanto, se certa, vem contrariar quanto foi afirmado anteriormente porque, assim, aquilo que não era nada se tornará algo e aquilo que era o ser supremo se tornará nada. Realmente, eu, depois de encontrar uma substância suprema, cheguei à consequência, através do raciocínio, de que todas as coisas foram feitas por ela e feitas de tal forma que as criou, inegavelmente, sem nenhuma outra causa pela qual elas pudessem existir. Ora, se aquilo donde elas foram extraídas, e que eu julgava ser nada, é, ao contrário, algo, evidentemente tudo aquilo que eu acreditava ter descoberto acerca da essência suprema é nada. Prometi não deixar escapar, nesta meditação, nenhuma objeção possível, por insensata que pareça: então, o que haveremos de entender por nada? Há, creio, três maneiras de resolver esta dificuldade que se manifesta quando dizemos que uma coisa é feita do nada. A primeira é aquela de dizer que uma coisa é feita do nada, mas, ao contrário, entender que não está absolutamente feita, como, por exemplo, acontece quando, indicando um homem que está calado e perguntamos a alguém: "O que é que está dizendo?" e temos a resposta: "Nada", vale dizer, está calado. Não fala. Através desta maneira, a quem nos perguntasse acerca da essência suprema e daquilo que não existe ou nunca existiu, de que foi feito, a resposta correta é: "de nada"; isto é, não foi feito. Nesse sentido a resposta, porém, não se aplica a nenhuma das coisas que foram feitas. A segunda maneira é aquela que poderia ser indicada como verdadeira, mas na realidade é falsa. Costuma-se dizer que uma coisa foi feita do nada para significar que está feita daquilo que não é, verdadeira e absolutamente, o nada. Neste caso estamos supondo que o nada, de certo modo, seja verdadeiramente algo, donde uma coisa possa tirar sua origem. Mas, neste sentido, a expressão é falsa e sempre implica o impossível e a contradição. Finalmente, a terceira maneira consiste em dizer que algo foi feito do nada para significar que a coisa realmente foi feita sem que exista, entretanto, nada que possa originá-la. Fala-se, assim, por exemplo, de um homem oprimido pela tristeza sem motivo: "está triste", dizemos, "por nada". Se entendermos neste último sentido o que expusemos acima (a saber: que, salvo a essência suprema, todas as coisas que derivam dela foram criadas por ela do nada, isto é, que não foram feitas de algo), a nossa conclusão estará de acordo com as premissas e não decorrerá dela nenhuma contradição. Assim, sem nenhum inconveniente ou contradição poder-se-á dizer que as coisas feitas pela substância criadora foram feitas do nada, do mesmo modo que costumamos nos referir a um homem que, de pobre, ficou rico ou que, depois da doença, recobrou a saúde, querendo significar, com isso, que ele agora é rico e, antes, não possuía nada, ou que, agora, tem a saúde que, antes, não tinha. Assim, também sem inconvenientes pode ser entendida a afirmação que a essência criadora fez a universalidade das coisas do nada, ou que o universo foi criado, por meio dela, do nada. O que vale dizer que todas aquelas coisas que antes não existiam, porque eram nada, agora são algo. Com esta mesma expressão com que se afirma que ela fez todas as coisas ou que todas as coisas foram feitas por ela, compreende-se que, quando ela criou, criou efetivamente algo, e que quando as coisas foram criadas, realmente elas tornaram-se algo. Assim, quando vemos alguém, de condição bastante humilde, ser elevado por outro a grandes honras e riquezas, dizemos: — Sicrano foi feito do nada por fulano; isto é, aquele homem, que antes era considerado um nada, chegou a ser alguém pela ação de outro. CAPÍTULO IX Que as coisas que foram feitas do nada eram, no entanto, algo antes de sua criação com referência á razão do criador. Mas aqui parece-me divisar a necessidade de examinar com certo cuidado em que sentido é possível dizer que as coisas não eram nada antes de serem feitas. Com efeito, não se pode fazer uma coisa qualquer, se já não se encontra, na inteligência de quem pretende fazê-la, o modelo, ou para falar mais exatamente, a forma, a semelhança, a norma da coisa a ser feita. É evidente, portanto, que antes que todas as coisas fossem feitas, já existia na inteligência da natureza suprema a essência, a qualidade, a maneira de como haveriam de ser. Por isso, aquelas coisas que foram feitas nada eram antes de serem feitas, no sentido em que não eram aquilo que agora são, nem existia uma matéria de que haveriam de ser feitas; todavia, elas eram algo em relação à razão de quem cria; razão pela qual, e segundo a qual, seriam feitas. CAPITULO X Que aquela razão é, por assim dizer, certa maneira de falar as coisas, assim como faz o artífice antes de compor sua obra que, primeiro, a expressa dentro de si. Mas, a forma das coisas, preexistentes na razão suprema aos seres criados, que haveria de ser se não uma maneira de dizer as mesmas em sua razão, assim como faz o artífice, antes de realizar uma obra, que a concebe e a expressa em sua imaginação? Por "dizer na mente ou na razão" entendo aqui não aquilo que acontece quando pensamos nas palavras que indicam as coisas, mas quando divisamos as mesmas diretamente, sejam elas futuras ou já existentes, pela força do pensamento. O uso contínuo ensina-nos que é possível falar uma coisa de três maneiras: ou dizendo a coisa por signos sensíveis, vale dizer, percebidos pelos sentidos corpóreos, portanto, pela sensibilidade; ou representando esses signos, que são sensíveis externamente, de uma maneira não sensível, mediante o pensamento; ou não usando destes signos, nem sensivelmente nem de maneira não sensível, mas dizendo as coisas dentro de nossa mente com a imaginação, reproduzindo as formas corpóreas, ou com a atividade racional, conforme a diversidade das próprias coisas. Com efeito, eu posso pensar um homem de uma maneira distinta quando digo a palavra homem para significá-lo; ou diferente, quando considero tacitamente esse nome na minha mente; e diferente, quando esse mesmo nome é intuído pela mente através de uma imagem corpórea ou mediante uma imagem mental. Mediante uma imagem corpórea, quando a mente representa a si mesma a figura sensível dele; mediante uma imagem mental, isto é, quando pensa a essência universal dele, que é a de ser animal, racional, mortal. Cada uma destas três diferentes maneiras de falar tem a sua própria palavra; mas as palavras daquela expressão que coloquei como terceira e última, quando se referem a coisas conhecidas, são naturais e sempre iguais entre todos os povos. E, como todas as restantes palavras foram inventadas por meio destas, quando estas estão presentes, nenhuma outra palavra é necessária para conhecer a coisa; mas quando estas faltam, porque é impossível usá-las, não há outro meio que sirva para dar a ideia das coisas. Poder-se-ia dizer, sem cair no absurdo, que essas palavras são tanto mais verdadeiras quanto mais se parecem com as coisas das quais são palavras e com quanto maior eficácia as expressam. Com efeito, salvo aquelas coisas das quais nos servimos, em lugar de seus nomes, para significá-las, como é o caso de alguns sons, por exemplo, a vogai A; salvo estas, dizia, nenhuma outra palavra parece ser tão parecida com a coisa da qual é palavra, e exprimi-la tão plenamente, como aquela semelhança que a mente de quem pensa formula em seu íntimo por meio da imaginação. É justo, portanto, dizer que essa palavra deve ser considerada a mais própria e a principal da coisa. Por isso, se nenhuma palavra, que expressa uma coisa qualquer, se aproxima suficientemente de seu objeto como aquela que usa signos semelhantes; se não pode haver expressão mais fiel das coisas futuras e das já existentes do que aquela que está na mente, devemos concordar, então, que a substância suprema falou as coisas de uma maneira análoga a esta, antes que as coisas existissem, para que elas pudessem ser criadas por seu meio, e que a substância suprema continua a falá-las, após tê-las criado, para que possam ser conhecidas por seu meio. CAPITULO XI Como a comparação com o artífice está longe de ser exata. Embora seja certo que a substância suprema, antes de criar cada coisa de acordo com sua palavra íntima, a tenha dito dentro de si, de maneira semelhante àquela com que o artífice concebe, primeiro, em sua mente a obra que, depois, executa de acordo com sua ideia, entretanto enxergo, nesta semelhança, uma diferença bastante grande. A substância suprema, na verdade, não tirou certamente, de alguma parte, a matéria para compor, nela, a forma das coisas a serem feitas, nem para fazê-las como elas são. O artífice, ao contrário, não pode conceber, através da sua imaginação, uma coisa corpórea a não ser que ela, em seu conjunto ou em suas partes, já se tenha deixado conhecer, de alguma maneira, por meio de outras coisas. Ele não consegue, também, executar a obra assim imaginada, se lhe faltar a matéria ou o resto que se faz necessário para que a obra imaginada possa ser realizada. Embora, pois, o homem, por meio do pensamento ou da pintura, chegue a representar um animal como não existe em parte nenhuma, todavia, ele só conseguirá seu propósito reunindo aquelas partes do animal que imprimiu na memória através de outras coisas conhecidas anteriormente. Assim diferem, uma da outra, as palavras das obras a serem feitas, na substância criadora e na mente do artífice: aquela da substância suprema não foi tirada de parte alguma, não recebeu ajuda de outros, mas foi suficiente por si, como causa primeira e única, para levar a efeito a obra; esta, a do artífice, ao contrário, não é nem primeira nem única, nem suficiente sequer para iniciar a obra. Disso decorre que as coisas que foram criadas por aquela de forma alguma são diferentes daquilo que são, devido a ela; mas, ao contrário, as coisas feitas pelo artífice não poderiam existir se já — anteriormente — não fossem algo, diferente da palavra do próprio artífice. CAPITULO XII De que maneira a palavra da essência suprema é a própria essência suprema. Considerando, porém, que a razão nos mostra, com plena evidência, que tudo aquilo que a substância suprema fez derivou de si mesma e não de outro, e que criou todas as coisas mediante a sua palavra íntima, dizendo-as uma por uma, com palavras diferentes, ou todas de uma vez, com uma palavra só, quem poderia hesitar em concluir que a palavra da suprema essência é a própria essência suprema? Julgo, portanto, não dever desconsiderar-se, por negligência, esta palavra. Entretanto, antes de tratar dela, acho oportuno indagar, com atenção, algumas propriedades dessa mesma substância suprema. CAPITULO XIII Assim como todas as coisas foram criadas pela essência suprema, assim também vivem por causa dela. Fica, portanto, claro que tudo aquilo que não se identifica com a natureza suprema foi feito por ela. Ora, ninguém, a não ser um insensato, pode pôr em dúvida que todas as coisas criadas vivem e continuam a existir, enquanto existem, porque essa mesma substância as conserva, e que continuam recebendo o ser daquela que as fez do nada. Com efeito, por uma razão completamente semelhante àquela que nos permitiu concluir que todas as coisas que existem, existem por uma única causa, que única existe por si mesma, enquanto as demais existem em virtude apenas do ser que as produziu; por essa razão, é possível demonstrar que tudo aquilo que tem vida vive por causa de algo que é o único a ter vida por si mesmo, quando, ao contrário, as outras coisas vivem por causa de um princípio distinto delas. Ainda. Como tudo aquilo que tem sido criado vive, necessariamente, em virtude de outro, e este outro tem vida totalmente própria, segue-se que, da mesma maneira — pois nada existe senão criado pela essência suprema —, nada vive a não ser pela ação conservadora e sempre presente da mesma essência. CAPITULO XIV Como a essência suprema se encontra em todas as coisas e por toda parte, e como tudo existe dela, por ela e nela. Assim sendo, ou melhor, por ser necessariamente assim, devemos deduzir que lá, onde não se encontra a substância suprema, não há nada. Ela, portanto, encontra-se por toda parte e em todas as coisas e por todas as coisas. Mas, assim como seria absurdo pensar que o universo possa superar a imensidade do seu criador, que o mantém em vida, assim seria igualmente absurdo que o criador não pudesse absolutamente dominar a universalidade das coisas que produziu. É evidente, portanto, que a essência suprema é o esteio de todas as coisas, que as domina, as encerra e as penetra. Consequentemente, se juntarmos as provas anteriores a estas, devemos admitir que essa mesma substância se encontra em todas as coisas e por todas as coisas, e que todas as coisas existem dela, por ela e nela. CAPÍTULO XV O que se pode dizer ou não dizer dela, substancialmente. A esta altura, e com justo motivo, sinto-me fortemente impelido a investigar, com a maior diligência possível, quais, entre as qualidades que se atribuem aos objetos, sejam as que podem convir, substancialmente, a essa admirável natureza. Embora eu duvide bastante poder-se encontrar, entre os nomes e as palavras com que designamos as coisas criadas do nada, um termo que seja condignamente atribuível à substância criadora do universo, deve-se, no entanto, procurar ver até que ponto a razão pode levar adiante essa indagação. No que diz respeito às coisas relativas, não há dúvida de que nenhuma delas é substancial ao ser a que se aplicam e, por isso, quando se afirma, da natureza suprema, alguma relação, esta não pode expressar-lhe a substância. Assim, pois, as afirmações de que ela é suprema, ou maior que todas as coisas criadas por ela, ou outras afirmações semelhantes a essas, em sentido relativo, está claro que não podem expressar a essência natural dela. Com efeito, se nunca tivesse existido nenhuma das coisas em relação às quais ela é definida como suprema ou maior, essa natureza não poderia ser considerada nem suprema nem maior; no entanto, nem por isso seria menos boa ou perderia algo de sua grandeza essencial. Isso resulta claro do fato de que tudo aquilo que ela é de bom e de grande, derivou-o de si mesma e não de outro ser. Portanto, se é possível considerar a natureza suprema como não suprema sem, por isso, ela vir a ser maior ou menor de quando se considera como superior a todas as coisas, torna-se evidente que a palavra suprema simplesmente não expressa aquela essência que é completamente maior e melhor do que tudo aquilo que ela não é. O que a razão acaba de nos descobrir acerca do ser supremo se encontrará também em todas as outras condições relativas que poderíamos examinar. Mas, deixando de lado aquilo que se refere ao relativo, porque incapaz de demonstrar a essência de qualquer coisa, vamos dirigir a nossa atenção para outra dificuldade. Se estudarmos bem cada ser em particular, ver-se-á que tudo aquilo que não faz parte dos seres relativos é tal que — para ele — é melhor ser aquilo que é do que não ser e, em determinados casos, é melhor não ser do que ser aquilo que é. Com as expressões "ser" e "não ser" não entendo aqui senão "verdadeiro" e "não verdadeiro", "corpo" e "negação do corpo" e outros exemplos semelhantes que poderiam ser acrescentados a estes. Não há dúvida de que uma coisa sempre vale mais do que a sua negação, como, por exemplo, ser sábio vale mais do que não ser sábio; isto é, o sábio é preferível ao não sábio. Entretanto, embora um justo que não é sábio pareça melhor do que um não justo que é sábio, nem por isso é pura e simplesmente melhor ser não sábio do que sábio, pois todo aquele que não é sábio com certeza é inferior ao sábio pelo fato de não ser sábio, quando todo homem que não é sábio seria melhor que o fosse. De maneira semelhante, o verdadeiro certamente é melhor do que o não verdadeiro, o justo melhor do que o não justo, e aquilo que tem vida melhor do que aquilo que não vive. Mas, algumas vezes, pode acontecer que seja melhor não ser do que ser; como no caso de não ser de ouro do que ser de ouro. Para o homem é melhor, por exemplo, não ser de ouro do que ser de ouro, quando, para outras coisas, seria melhor ser de ouro do que não ser de ouro, como para o chumbo. Com efeito, por não serem de ouro nem o homem nem o chumbo, constatamos que o homem é coisa melhor do que o ouro, porque, se fosse de ouro, seria de natureza inferior; mas o chumbo, que é bastante mais vil do que o ouro, se fosse ouro, seria, ao invés, outro tanto precioso. Pelo fato de que a natureza suprema possa ser pensada como não suprema, de forma que supremo não possa ser absolutamente melhor do que não supremo e vice-versa, é fácil ver que há muitas coisas relativas que não estão contidas nesta divisão. Se, no entanto, algumas delas estão contidas, esta é uma questão que deixo de lado por ser suficiente, para o meu objetivo, o que delas sabemos: isto é, que nenhuma expressa a substância simples da natureza suprema. No que diz respeito a todos os seres diferentes da natureza suprema, se os examinarmos um por um, veremos que é melhor, para eles, ser do que não ser e, em certos casos, não ser do que ser; mas da natureza suprema não é lícito pensar que, nem em certos casos, possa apresentar-se como melhor para ela não ser do que ser. Disto decorre, necessariamente, que a sua existência é coisa melhor do que a sua não existência. Ela, na verdade, é a única acima da qual não pode haver, de forma alguma, nada melhor, e ela é a melhor de todas as coisas que não sejam aquilo que ela mesma é. Ela, pois, não é corpo, nem nenhuma das coisas que se percebem pelos sentidos corpóreos. Sem dúvida, existe algo, portanto, que não é aquilo que essas coisas são; e é maior do que elas. Com efeito, a mente racional, cuja essência, qualidade e grandeza não se percebem pelos sentidos corpóreos, tanto está acima das coisas que dependem destes, como seria inferior se fosse uma dessas coisas. Por isso nunca podemos dizer que a essência suprema é um desses seres acima dos quais encontra-se algo diferente deles. E, como ensina a razão, devemos afirmar, a respeito dela em grau absoluto, todos os atributos abaixo dos quais está tudo aquilo que ela não é. Disso decorre, necessariamente, que ela é viva, sábia, onipotente, verdadeira, justa, feliz, eterna e tudo aquilo que, igualmente, é melhor ser do que não ser, de maneira absoluta. Mas, por que indagar ainda sobre essa natureza desde que ficou manifesto o que ela é e o que ela não é, entre todas as coisas? CAPITULO XVI Ser justa e ser a justiça, para a essência suprema, é a mesma coisa; e assim o mesmo acontece com os outros atributos, dos quais nenhum expressa sua qualidade e grandeza, mas a essência. Mas quando se fala que essa natureza suprema é justa ou grande, ou outra coisa semelhante, não se enuncia o que ela é, mas, antes, como é e quão grande é. Estas expressões, pois, dizem respeito à qualidade e à quantidade. " Com efeito, tudo o que é justo, é justo devido à justiça; e isto vale para as demais propriedades, de maneira que também a natureza suprema não é justa senão pela justiça. Portanto, a substância sumamente boa pareceria que, se é chamada de justa, o fosse devido ao fato de participar desta virtude, isto é, da justiça. Mas se assim fosse, não seria justa por si mesma, e, sim, por outro. Isto, porém, opõe-se à verdade, já bem esclarecida, de que ela é boa e grande e subsistente — tudo o que ela é — por si mesma e não por outro. Se, portanto, por um lado não é justa senão pela justiça, e se, pelo outro, não pode ser justa senão por si mesma, o que haverá de mais evidente e de mais necessário, do que concluir que essa natureza é a própria justiça? E que, quando se diz que é justa pela justiça, é a mesma coisa que dizer que é justa por si? E quando se diz que é justa por si, não queremos significar senão que ela é justa pela justiça? Por isso, se perguntássemos o que é esta natureza suprema, da qual estamos falando, acaso poderíamos responder com maior verdade do que dizer que é a justiça? Há de se indagar, pois, em que sentido se deve entender que essa natureza, que é a própria justiça em si, é dita justa. Com efeito, como um homem não pode ser a justiça, mas tê-la (um homem justo não quer dizer um homem existindo como justiça e, sim, que possui a justiça); e, como não é exato falar da natureza suprema que possui a justiça, mas que é a justiça, então quando dizemos que ela é justa, devemos entender que existe como justiça e não que tem a justiça. Ainda. Desde que, ao afirmar que essa natureza suprema existe como justiça, não estamos expressando qual ela seja, mas o que ela é, segue-se que, quando se diz que é justa, indica-se a sua essência e não a sua qualidade. Igualmente, como é a mesma coisa dizer, a respeito da essência suprema, que é justa e que é a justiça; e como, também, ao dizer dela que existe como justiça é o mesmo que afirmar que é a justiça, não há diferença, portanto, em se afirmar que ela é a justiça e que é justa. Desta maneira, quando se pergunta "o que ela é", torna-se exatamente indiferente responder que ela é justa ou que é a justiça. Aquilo que foi esclarecido, mediante este exemplo, acerca da justiça, a razão obriga nossa inteligência a estendê-lo a todos os outros atributos com que possa ser qualificada, de maneira semelhante, a natureza suprema. Assim, tudo aquilo que se pode afirmar dela não expressa qual ela é ou quão grande ela é, mas o que ela é. Evidentemente, tudo aquilo que ela é de bom, é-o em sumo grau. Portanto, ela é a essência suprema, a justiça suprema, a sabedoria suprema, a verdade suprema, a bondade suprema, a grandeza suprema, a beleza suprema, a imortalidade suprema, a incorruptibilidade suprema, a felicidade suprema, a eternidade suprema, o poder supremo, a unidade suprema. O que vale dizer que ela outra coisa não é senão o ser supremo, soberanamente vivente. E assim por diante. CAPÍTULO XVII A natureza suprema é de tal forma simples que tudo o que pode ser afirmado da sua essência nela resulta uma mesma e única coisa; e que nada pode ser-lhe atribuído, substancialmente, sem que se refira à sua essência. Como? Se essa natureza suprema reúne em si tantos bens, será que ela é composta por uma multiplicidade de bens, ou, antes, trata-se de um bem único, expresso com muitos nomes? Tudo aquilo que é composto necessita, para existir, das partes que o compõem, às quais deve aquilo que é, porque recebe delas o que é; e elas não existem por causa dele. Assim, ele não é soberano em nada. Se essa natureza fosse composta, portanto, de muitos bens, necessariamente, estaria sujeita às condições dos seres compostos. As verdades necessárias, porém, expostas acima, destroem e rechaçam, com raciocínio claro, a falsidade sacrílega desta afirmação. Então, se essa natureza, de forma alguma, é composta e, no entanto, por si só ela com certeza é todos aqueles bens, estes bens, necessariamente, não podem ser muitos, mas um só. Por conseguinte, quer se considere cada um isoladamente, quer se tomem em conjunto, todos eles não diferem um de outro. Por isso, quando se fala "justiça" ou "essência", expressa-se a mesma coisa como quando usamos as outras designações, tomadas conjuntamente ou uma por uma. Por tal motivo, assim como tudo aquilo que pode ser afirmado da natureza suprema é, essencialmente, uma coisa só, assim ela é aquilo que é, de uma única maneira, e de um só ponto de vista, essencialmente. Quando dizemos, a respeito de um homem, que é corpo, razão e homem, não consideramos estas diferentes qualidades do mesmo modo e do mesmo ponto de vista, porque, sob certo aspecto, ele é corpóreo e, sob outro, racional, e cada uma destas qualidades não constitui tudo aquilo que é o homem em seu conjunto. Mas a essência suprema de maneira nenhuma é algo que possa ser diferente, se considerada sob aspectos e pontos de vista diferentes, porque aquilo que ela é de alguma maneira, é-o, essencialmente, na totalidade do seu ser. Não pode ser afirmado, portanto, nada acerca da sua essência que possa expressar verdadeiramente qual e quão grande ela é, mas o que ela é. Com efeito, tudo aquilo que admite qualidade e quantidade admite também distinção em sua quididade e, portanto, não é simples, mas composto. CAPITULO XVIII A essência suprema não tem nem princípio nem fim. A partir de quando teria começado a existir essa natureza simples, criadora e conservadora de todas as coisas? Até quando existirá? Ou, antes, será que para ela não há nem "a partir de quando", nem "até quando", isto é, ela não tem princípio nem fim? Com efeito, se tem princípio, deriva-o ou dela mesma ou por ela mesma, ou de outro ou por outro, ou do nada ou pelo nada. Mas por uma verdade já demonstrada, resulta que ela de maneira nenhuma existe de outro ou do nada, nem por outro ou pelo nada. Portanto, de forma alguma pode ter recebido o princípio por outro ou de outro, pelo nada ou do nada. Mas não pode ter tido princípio nem dela mesma ou por ela mesma, embora ela exista de si e por si, porque ela existe de si e por si, porém, de uma maneira que não permite ter duas essências, uma existente por si e em si e, outra, derivada desta e por esta. Com efeito, tudo aquilo que tem princípio de outro ou por outro não é de forma alguma igual àquilo donde, ou pelo qual, recebeu a existência. A natureza suprema, portanto, não teve princípio nem de si nem por si. Como não recebeu a existência nem por si, nem por outro nem de outro, nem pelo nada nem do nada, por conseguinte, ela não tem princípio de maneira nenhuma. Mas, nem terá fim. Se tivesse fim, não seria, pois, nem sumamente imortal, nem sumamente incorruptível. Entretanto, já foi demonstrado que é sumamente imortal e incorruptível. Logo, não tem fim. Ainda. Se tivesse que ter fim, ela acabaria ou por sua própria vontade ou contra a sua vontade. Porém, não seria, certamente, um bem em si, aquele por cuja vontade fosse destruído o bem supremo. Ora, ela é o bem verdadeiro e supremo e, por isso, é tão certo que não pode acabar por sua própria vontade, como é certo que ela é o bem supremo. Se tivesse que acabar contra a sua vontade, então não seria o ser sumamente poderoso e onipotente, quando, através de um raciocínio necessário, foi demonstrado, ao contrário, que ela é sumamente poderosa e onipotente. Logo, não acabará, também, nem contra a sua vontade. Assim, se a natureza suprema não tem fim, nem por sua vontade nem contra a sua vontade, ela não terá fim de maneira nenhuma. Mais ainda. Se essa natureza suprema tivesse fim ou princípio, não seria mais a verdade eterna, como foi provado, de maneira irretorquível, há pouco. Portanto, quem conseguir fazê-lo, procure representar a si mesmo, quando essa verdade começou, ou quando ela não era, isto é, quando ela era algo futuro; ou, também, quando essa verdade acabará, ou não será mais, isto é, será algo pretérito. Se não é possível pensar nenhuma destas duas coisas — e tanto uma como a outra não podem ser verdadeiras sem a verdade—, então é impossível também pensar que a verdade tenha um princípio e um fim. Finalmente, se a verdade teve princípio ou terá fim, então, antes ainda que ela começasse a existir, seria verdadeiro que não existia a verdade; e quando tiver cessado de existir, será verdadeiro que não existe mais a verdade. Mas, como não há o verdadeiro sem a verdade, porque então teria existido a verdade antes mesmo que a verdade existisse, e existiria a verdade ainda depois que a verdade tivesse acabado, o que é totalmente absurdo. Quer, portanto, se diga que a verdade teve princípio e terá fim, quer se compreenda que não tem nem um nem outro, a verdade não pode estar limitada nem por um princípio nem por um fim. A mesma consequência aplica-se à natureza suprema, porque ela é a verdade suprema. CAPÍTULO XIX Que nada existiu antes dela e nada existirá depois. Mas, eis que aparece de novo o nada e pretende afirmar a nulidade de tudo aquilo que se discutiu até aqui com a ajuda da razão e por meio do testemunho concorde da verdade e da necessidade. Com efeito, se as coisas expostas acima foram estabelecidas na base da verdade necessária, nada existiu antes da essência suprema e nada existirá depois dela. Por isso, o nada existiu antes dela e existirá depois, porque é necessário que alguma coisa, ou nada, tenha havido antes dela e haja depois dela. Quem diz que nada existiu antes dela e nada existirá depois dela, parece querer sustentar o seguinte: que houve um momento, anterior a ela, em que o nada existia e que haverá outro, depois dela, em que o nada existirá. Assim, quando o nada existia, ela não existia e quando o nada existir, ela não existirá. Mas, como não teve, então, princípio do nada, ou como não voltará ao nada, se ela ainda não existia quando o nada já existia, e não existirá mais quando o nada existir ainda? Por que ter levantado, pois este edifício de argumentos, se tão facilmente o nada pode demoli-lo? De fato, se se admite que a essência suprema sucede ao nada, que a precedeu, e que termina no nada, que a segue, tudo aquilo que a verdade edificou até aqui cai necessariamente por causa de um vazio nada. Não será melhor, então, combater o nada para que não faça ruir tantas coisas estabelecidas pela razão necessária, e, assim, não se perca, por causa de nada, aquele bem supremo que temos buscado e encontrado à luz da verdade? É preferível, portanto, demonstrar — se é possível — que não existiu nada antes da essência suprema, e que nada existirá depois dela, a conceder um lugar ao nada antes e depois dela, para que não aconteça de reduzir a nada, por causa justamente de um nada, aquele ser que, por si próprio, levou a existir aquilo que não era nada. Com efeito, quando se diz que nada existiu antes da essência suprema, a afirmação tem dois sentidos. O primeiro é este: antes que a essência suprema existisse, houve um tempo em que não existia nada; o segundo é que, antes da essência suprema, não havia coisa alguma, como, por exemplo, se eu dissesse que nada me ensinou a voar, afirmação que poderia explicar-se assim: foi o nada mesmo, vale dizer, o não algo, que me ensinou a voar, e isto é falso; ou: não foi nenhuma coisa que me ensinou a voar; e isto é verdadeiro. Ora, a inconveniência assinalada acima está em conexão com o primeiro sentido e, por isso, rechaça-se como falso, sob todos os aspectos. O segundo sentido, ao contrário, concorda por completo com as coisas ditas anteriormente e, devido à perfeita conexão com elas, aceita-se como verdadeiro. Por isso, quando se diz que nada existiu antes da essência suprema, há de se entender segundo o último sentido, e não se deve explicar de maneira que se possa entender que houve um tempo em que ela não existia e existia o nada, mas no sentido de que, antes dela, não havia nenhuma coisa. A mesma diferença de sentido deve ser colocada quando se diz que não haverá nada depois dela. Se, portanto, se considera com diligência esta interpretação que foi feita em torno do nada, será necessário concluir, com plena verdade, que nem coisa alguma, nem o nada, precedeu a essência suprema, ou irá ser-lhe posterior; e que nada existiu antes dela, ou seguirá a ela. Assim, a solidez das coisas já demonstradas não ficará abalada pela inanidade do nada. CAPITULO XX Que a essência suprema se encontra em todo lugar e em todo tempo. Muito embora tenhamos demonstrado, há pouco, que essa natureza criadora está por toda parte, em todas as coisas e por todas as coisas e que, por não ter nem princípio nem fim, segue-se que ela sempre existiu e existirá; apesar disso, entretanto, percebo sussurrar algumas palavras de contradição que me obrigam a investigar, com maior diligência, onde e quando ela existe. Portanto, a essência suprema: ou encontra-se por toda parte e sempre, ou somente nalguma parte e nalgum tempo, ou em nenhum lugar e tempo, e, ao dizer: por toda parte e sempre entendo determinadamente ou em algum ou em nenhum lugar e tempo. Mas haverá algo de mais contraditório do que aquilo que existe verdadeira e supremamente não possa encontrar-se em nenhum lugar e nunca? É falso, pois, que a essência suprema não se encontre em nenhum lugar e nunca. Ainda. Como não pode existir nenhum bem, nem coisa alguma sem ela, se ela não se encontrasse em nenhum lugar ou tempo, não haveria, em nenhum lugar e tempo, bem nenhum, nem coisa alguma. Mas não se precisa dizer quão falso seja isto. Consequentemente, é falso que ela não esteja em nenhum lugar e tempo. Ela, então, existe ou num lugar e tempo determinados ou em todas as partes e sempre. Mas se existe em algum lugar e tempo determinados, existirá alguma coisa somente lá, onde ela está e quando está, e, lá onde não está e quando não está, não haverá absolutamente nenhuma essência, porque sem ela não há nada. Disto decorre que haverá um lugar e um tempo, onde e durante o qual, não há nada. Ora, desde que esta conclusão é falsa, porque o próprio tempo e o próprio lugar são alguma coisa, segue que a natureza suprema não pode estar circunscrita num lugar e num tempo. Se ainda se dissesse que ela, por si mesma, encontra-se num lugar e num tempo determinados mas, pelo seu poder, está lá, onde e quando há alguma coisa, isto não seria verdadeiro, porque, sendo manifestado que o seu poder não é outra coisa senão ela mesma, de maneira alguma, este seu poder existiria sem ela. Consequentemente, como ela não existe em nenhum lugar e tempo determinadamente, é necessário que exista por toda parte e sempre, isto é, em todo lugar e tempo. CAPÍTULO XXI Que a natureza suprema não está em nenhum lugar e em nenhum tempo. Se é assim, a essência suprema ou está inteira em todo lugar e em todo tempo, ou somente uma parte qualquer dela está em todo lugar e tempo, de maneira que a outra se encontre fora de todo lugar e tempo. Se uma parte está em todo lugar e tempo, e a outra, fora, ela tem partes, o que é falso. Portanto, não está, em partes, por todo lugar e sempre. Todavia, como poderá estar inteira, por todo lugar e sempre? Esta hipótese há de ser entendida nestes sentidos: ou que possa estar inteira, simultaneamente, em todo lugar ou tempo e, por partes, em cada um deles; ou que possa estar inteira, também, em cada um deles. Na verdade, se está por partes em cada um, fica sujeita à composição e à divisão das partes: coisa que já demonstramos ser estranha ã natureza suprema. Por isso, ela não está em todo lugar e tempo de maneira a encontrar-se em cada um deles por partes. Resta examinar a outra alternativa, vale dizer, de que maneira a natureza suprema poderia estar inteira em todos e em cada um dos lugares e tempos. Claro que isto só poderia acontecer ou simultaneamente ou em tempos diferentes. Como, porém, a natureza do lugar e aquela do tempo, que até este momento procederam juntas e foi possível estudá-las com a mesma indagação, aqui parecem, no entanto, quase escapar à discussão por caminhos diferentes, faz-se necessário analisar cada um deles, lugar e tempo, em particular, mediante discussões distintas. Assim, vamos examinar, em primeiro lugar, se a natureza suprema pode estar, inteira, em cada lugar, simultaneamente, ou em tempos diferentes. Depois, procuraremos resolver a mesma questão a respeito do tempo. Se ela, pois, está inteira em cada lugar, simultaneamente, está inteira tantas vezes distintas como são os lugares. Mas, como um lugar distingue-se de outro de maneira que há vários lugares diferentes, igualmente, aquilo que está inteiro num lugar distingue-se daquilo que, ao mesmo tempo, está inteiro em outro, de maneira que se verificam, assim, totalidades individuais separadas. Aquilo que se encontra inteiro num mesmo lugar, na verdade, não tem nenhuma das suas partes fora deste mesmo lugar. Mas aquilo que não tem nenhuma parte fora de um lugar não tem nenhuma que esteja, ao mesmo tempo, em outro lugar. Consequentemente, aquilo que está inteiro num lugar determinado não tem nada, ao mesmo tempo, que se encontre fora deste lugar. Porém, aquilo que não tem nenhuma das suas partes fora de um lugar qualquer não tem nenhuma, ao mesmo tempo, em outro lugar. Por este motivo, aquilo que está inteiro em um lugar qualquer não pode ter, ao mesmo tempo, nenhuma das suas partes em outro lugar. Mas, de que maneira seria possível que aquilo que já está inteiro num lugar se encontre inteiro, ao mesmo tempo, em outro lugar, se nenhuma das suas partes pode encontrar-se em outro lugar? Portanto, como uma só totalidade não pode encontrar-se completamente inteira, ao mesmo tempo, em lugares diferentes, decorre que hajam em cada um dos lugares, uma totalidade completa e distinta, desde que em cada lugar haja algo que esteja nele inteiro, simultaneamente. Por isso, se a natureza suprema está inteira, ao mesmo tempo, em todos os lugares e em cada um deles, haverá tantas naturezas supremas quantos os lugares que há. Mas isto a razão não pode aceitar. Consequentemente, ela não se encontra inteira, ao mesmo tempo, em cada lugar. Doutro lado, se ela estivesse inteira nos diferentes lugares em tempos diferentes, na verdade, quando se encontrasse num deles, nos demais não existiria nenhum bem, nem nenhuma essência, porque sem ela não pode existir de modo algum coisa alguma. Mas que isto seja absurdo é demonstrado pela própria suposição, pois os lugares são alguma coisa e não o nada. Assim, a natureza suprema não está inteira em cada um dos lugares, em tempos diferentes. E se não está inteira, nem ao mesmo tempo, nem em tempos diferentes, em cada um dos lugares, é evidente que não se encontra inteira, de maneira nenhuma, em todos e em cada um dos lugares. Resta agora indagar se a mesma natureza suprema se encontra inteira em todos os tempos, simultaneamente, ou em cada um deles, distintamente. Mas, alguma coisa, por acaso, poderia encontrar-se inteira, simultaneamente, em cada tempo, se os tempos não têm uma existência simultânea? E se estivesse inteira em cada tempo, de maneira separada e distinta, como um homem que pode estar inteiro ontem, hoje e amanhã, então, poderíamos dizer, com maior propriedade, que ela esteve, está e estará. Mas, desta forma, a sua idade, que outra coisa não é senão a sua eternidade, não existiria inteira, simultaneamente, mas estender-se-ia, com suas partes, pelas partes dos tempos. Porém, a sua eternidade outra coisa não é senão ela mesma e, assim, a essência suprema estará dividida em partes, segundo a distinção dos tempos. Com efeito, se a sua idade estende-se pelo curso dos tempos, ela, também, tem um presente, um passado e um futuro junto com o próprio tempo. Mas, que outra coisa, pois, poderia ser a sua idade, ou duração da sua existência, se não a sua eternidade? Portanto, como a eternidade dela se identifica com a sua essência, coisa esta já provada peremptoriamente pelos argumentos expostos acima, decorre que, se a eternidade dela tem passado, presente e futuro, também, a sua essência tem passado, presente e futuro. Entretanto, o que é passado não é nem presente, nem futuro; e o que é presente não é nem passado, nem futuro; e o que é futuro não é nem passado nem presente. Então, como poderá subsistir aquilo que ficou estabelecido acima, com raciocínio claro e perspícua necessidade, isto é, que essa natureza de maneira alguma é composta, mas sumamente simples e sumamente imutável, se ela é diferente em diferentes tempos e tem as partes distribuídas nos tempos? Como são possíveis essas consequências, se são verdadeiros, aliás, verdadeiros e claros, os princípios anteriormente provados? De maneira nenhuma, portanto, a essência criadora, ou a idade ou a eternidade dela, pode admitir o passado ou o futuro. Com efeito, no que diz respeito ao presente, como poderia não tê-lo, se ela verdadeiramente é? Mas foi indica o passado, será indica o futuro. Portanto, ela nunca foi ou será e, por isso, não pode encontrar-se nem separadamente nem simultaneamente inteira, em cada diferente parte do tempo. Se, portanto, como foi discutido, ela não se encontra inteira em todos os lugares e tempos, de maneira que esteja, duma vez só, inteira em todos e, pelas partes, em cada um; e, nem sequer inteira em cada um, é evidente que de forma alguma se encontra inteira em todos os lugares e tempos. E como vimos que, igualmente, não pode estar também em todos os lugares e tempos de maneira que uma parte dela esteja em todos os tempos e, a outra, fora de todos os lugares e tempos, conclui-se ser impossível que ela se encontre por toda parte e sempre. Com efeito, de maneira nenhuma pode conceber-se que se encontre por todo lugar e sempre a não ser inteira ou em parte. E se não está por todo lugar e sempre, ou estará num lugar ou tempo determinados, ou não estará em nenhum. Entretanto, já vimos que ela não pode estar em nenhum lugar determinado; e, consequentemente, ela não se encontra em lugar ou tempo algum, isto é, por nenhuma parte e nunca, pois ela não pode encontrar-se senão ou em todo lugar ou em algum. Mas — novamente — como consta por provas irrefutáveis que não apenas ela existe por si, sem princípio e fim e que, ainda, sem ela não há nada, nem em algum lugar nem no tempo, é necessário concluir que se encontra por toda parte e sempre. CAPÍTULO XXII Que a natureza suprema está em todo lugar e tempo e não está em nenhum lugar e tempo. Como, pois, poderão concordar entre si coisas tão contrárias em sua enunciação e tão necessárias segundo a demonstração? Talvez a natureza suprema se encontre no lugar e no tempo de uma maneira pela qual não lhe seja impedido encontrar-se, simultaneamente, em cada lugar e tempo, por completo, sem por isso formar diferentes totalidades, mas permanecendo uma totalidade, una e inteira, e sem que a idade dela, que não é senão a verdadeira eternidade, se distribua no passado, no presente e no futuro. Com efeito, parece que estão sujeitas à lei do lugar e do tempo apenas aquelas coisas que se encontram no lugar e no tempo de tal maneira que não conseguem transcender o espaço do lugar da duração do tempo. Por isso, ao fazer-se referência a elas, afirma-se com toda verdade que não podem estar, ao mesmo tempo, em lugares e tempos diferentes; mas no que diz respeito àquelas coisas que não têm natureza semelhante a estas, não é possível formular, por nenhuma necessidade, a mesma conclusão. De fato, parece poder afirmar-se, com fundamento, que o lugar de uma coisa é somente a parte de espaço que, circunscrevendo a quantidade dela, a contém e, contendo-a, a circunscreve, e que o tempo da coisa é aquela parte de tempo apenas que, medindo a duração dela, de alguma maneira limita-a e, ao limitá-la, a mede. Por este motivo, se há uma coisa, a cuja amplitude e duração o lugar e o tempo não colocam limites, é correto admitir que ela está fora do lugar e do tempo. Com efeito, como nem o espaço lhe impõe um lugar, nem a duração um tempo, não vai de encontro à razão afirmar que não tem nem lugar nem tempo. Aquilo que, na verdade, não tem nem lugar nem tempo certamente não está sujeito à lei do lugar e do tempo. Consequentemente, nenhuma lei do lugar e do tempo pode coagir uma natureza que nenhum lugar e nenhum tempo a encerra e a contém. Ora, qual consideração racional não deveria concluir, com toda propriedade, que nenhum limite de lugar e de tempo pode sofrer a natureza suprema, criadora de todas as coisas, necessariamente livre e estranha à natureza e à lei das coisas que produziu do nada, quando a sua potência, que não é senão a sua essência, abrangendo todas as coisas que criou, as encerra debaixo dela? E não seria descarada imprudência afirmar que a verdade suprema, que não está limitada, de modo algum, por nenhuma medida espacial ou temporal, grande ou pequena que seja, possa ser circunscrita pela quantidade do lugar ou pela duração do tempo? Por isso, como a condição do lugar e do tempo impõe que tudo aquilo que está limitado por eles seja dividido em partes, quer no sentido da extensão, como no caso do lugar, quer no sentido da duração, como no caso do tempo; e que, de maneira nenhuma, uma totalidade possa ser contida, ao mesmo tempo, por diversos lugares e tempos; e que, doutro lado, aquilo que o lugar e o tempo não podem conter e limitar não fique coagido por nenhuma lei do tempo e do lugar a sofrer a multiplicidade das partes, nem impedido de estar inteiro, ao mesmo tempo, em vários lugares e tempos; por este motivo, repito, sendo esta a condição do lugar e do tempo, não há dúvida de que a substância suprema, que não está cercada pelos limites nem de um nem de outro, não está submetida a nenhuma lei de lugar e de tempo. Assim, como uma necessidade inevitável exige que a essência suprema esteja presente, inteira, em algum lugar ou tempo, e como nenhuma condição de lugar e tempo proíbe que esteja presente inteira e simultaneamente em todo lugar e tempo, é necessário que ela esteja inteira e presente, simultaneamente, em todos os lugares e tempos e em cada lugar e tempo específico. Com efeito, não pelo fato de que está presente neste lugar ou tempo, ela é certamente impedida de estar presente ao mesmo tempo e de maneira semelhante, em outro lugar e outro tempo; e não por que ela ou foi ou é ou será, sumiu algo da sua eternidade passando do presente para o passado, que não existe mais; ou ela transcorre com o presente, que existe há pouco; ou vem a ser com o futuro, que ainda não existe. Portanto, aquilo, cujo ser não pode ser limitado de maneira nenhuma, nem pelo lugar nem pelo tempo, pode ser obrigado ou impedido, pela lei do espaço e do tempo, a existir ou não existir, nalguma parte ou na duração do tempo. Se, às vezes, ao referirmo-nos à essência suprema, dizemos que se encontra no lugar e no tempo, usando, para ela, a mesma expressão que empregamos para as naturezas locais e temporais devido ao uso da linguagem, entretanto, o sentido dessas expressões é diferente por causa da diferença das coisas. Para as coisas locais e temporais, a expressão tem dois sentidos: que elas estão presentes naqueles lugares e tempos em que se indica que estão presentes; e que essas naturezas são contidas por eles. Mas, para a essência suprema, só é válido um destes sentidos, isto é, que está presente e não que, também, está contida. Por este motivo, se o uso da linguagem o permitisse, seria mais exato dizer que ela existe com o espaço e com o tempo, do que no espaço e no tempo, porque se queremos significar que uma coisa está contida na outra, é mais próprio dizer que está em, do que com essa coisa. Portanto, falamos com propriedade quando dizemos que a essência suprema não se encontra em nenhum lugar ou tempo, porque ela não está contida em nenhuma coisa. Contudo, podemos também dizer que ela, à sua maneira, está em todo lugar e todo tempo, porque tudo o que existe, afora ela, precisa da sua presença para ser sustentado, a fim de não cair de novo no nada. Ela encontra-se em todo lugar e tempo, porque não está ausente de nada; e não se encontra em nenhum lugar, porque não possui nem lugar nem tempo e não admite, em si mesma, distinção de lugar e de tempo; nem ela está aqui ou ali, nem em parte alguma; nem no “então", nem no "agora", nem no "uma vez". Nem existe segundo o passageiro presente do qual nós desfrutamos; nem existiu nem existirá, segundo o passado ou o futuro. Isso tudo é próprio das coisas circunscritas e mutáveis, entre as quais ela se inclui. Todavia, é possível atribuir a ela estas condições, porque está presente a todas as coisas circunscritas e mutáveis, até parecer limitada pelo espaço e modificada pelo tempo. Quanto foi dito mostra-se suficiente para dissipar a contradição estridente, pela qual a suprema essência de todas as coisas encontra-se por toda parte e sempre, e, no entanto, não se encontra em nenhuma parte e nunca, isto é, em todo lugar e tempo e em nenhum lugar e tempo, segundo a concorde verdade dos diferentes sentidos. CAPITULO XXIII Como é melhor entender que a natureza suprema está por toda parte do que em todos os lugares. Como é certo que a mesma natureza suprema não está em todos os lugares mais do que em todas as coisas existentes, não, porém, de maneira a ser contida, mas contendo e penetrando todas as coisas, então, por que não haveria de se dizer que ela se encontra por toda parte, no sentido em que, antes, se possa compreender que está nas coisas existentes tanto como em todos os lugares, visto que a verdade do fato permite esta intelecção e a mesma propriedade da palavra, que indica lugar, não o impede? Com efeito, estamos acostumados a atribuir frequentemente, sem suscitar críticas, palavras, indicando lugar a coisas que não são lugares e que não são circunscritas pelo lugar, como quando digo que a inteligência encontra-se ali, na alma, onde está a racionalidade. Apesar de ali e onde serem advérbios de lugar, nem por isso se deduz que a alma encerra algo como se fosse um lugar circunscrito, ou que a inteligência ou a racionalidade se encontram ali como contidas. Assim, e segundo a verdade do dado, é mais justo dizer que a natureza suprema está por toda parte, no sentido já indicado, isto é, que está em tudo aquilo que existe, do que dizer em todos os lugares. E como, pelas razões expostas agora, não pode ser diversamente, conclui-se que ela está em todas as coisas existentes de maneira, porém, a permanecer una, idêntica e inteira, ao mesmo tempo, em cada coisa. CAPITULO XXIV Que é melhor entender-se que a essência suprema existe sempre do que em todos os tempos. É certo também que essa mesma essência suprema não tem nem princípio nem fim, nem passado ou futuro, nem este passageiro presente de que nós desfrutamos, porque a idade, ou eternidade dela, que não é senão ela mesma, é imutável e sem partes. Então a palavra sempre, que parece designar todo o tempo, se referida a ela, não expressaria com maior verdade a eternidade, que é sempre idêntica a si mesma, do que a variedade do tempo, sempre distinta de si mesma, em alguma coisa? Por isso, se desta natureza suprema se diz que existe sempre, porque, para ela, existir e viver é a mesma coisa, nada mais fácil que compreender que ela existe e vive eternamente, isto é, que possui uma vida infindável, e, ao mesmo tempo, perfeitamente inteira. Com efeito, a eternidade dela apresenta-se como uma vida interminável e que existe perfeita e eternamente completa. Já demonstramos, anteriormente, que essa substância suprema outra coisa não é senão a sua própria vida e eternidade e que não tem nenhum limite, existindo, simultaneamente inteira, em toda a sua perfeição. Então a verdadeira eternidade, que só a ela pertence, poderá ser coisa diferente de uma vida infindável e que existe simultânea e perfeitamente inteira? Com efeito, que a verdadeira eternidade pertença somente àquela substância, a única que vimos não ser criada e, sim, criadora, pode-se compreender claramente também do simples fato de que a verdadeira eternidade não pode não ser compreendida, senão sem os limites do princípio e do fim, e torna-se evidente que não pode ser atribuída a nenhuma outra criatura, porque todas foram feitas do nada. CAPÍTULO XXV Como a essência suprema não é mutável por nenhum acidente. Será que a essência suprema que, como foi demonstrado anteriormente, é substancialmente sempre idêntica a si mesma, alguma vez não possa mudar, ainda que só acidentalmente? Mas seria, então, sumamente imutável, se pudesse, já não digo mudar, mas apenas ser pensada sujeita a mudanças? E, ao contrário, como é possível que não participe dos acidentes se o próprio fato de ela ser maior e diferente das outras naturezas parece coisa que acontece com ela? Mas, em que consistiria, pois, a contradição entre a propriedade de estar sujeito a acidentes e a imutabilidade natural, se desta intervenção dos acidentes não decorre nenhuma mudança na substância? Entre os acidentes, alguns, devido à sua presença ou à sua ausência, determinam variações no objeto que afetam, como fazem as cores; outros, estejam ou não presentes, não produzem absolutamente nenhuma mudança no objeto em que incidem, como é o caso de certas relações. Não se pode duvidar, por exemplo, de que eu seja maior ou menor, igual ou semelhante ao homem, qualquer que seja, que vai nascer no ano vindouro; entretanto, essas relações, depois de ele nascer, eu poderei mantê-las todas com ele, sem que eu mude, ou perdê-las, enquanto ele crescer, ou mudar por qualidades diferentes. Está claro, portanto, que, entre aquelas coisas que se chamam de acidentes, algumas engendram mudança e, outras, ao contrário, não alteram, de maneira alguma, a imutabilidade. Desta forma, assim como a natureza suprema, em sua simplicidade, não está sujeita a acidentes que possam modificá-la, assim também, no que diz respeito à intervenção de acidentes que não sejam contraditórios com a natureza dela, é lícito atribuir-lhe esta ou aquela qualidade sem que, com isso, se possa, necessariamente, deduzir que algo aconteça [mude] em sua essência, e, por conseguinte, possa ser variável. É possível, então, concluir, igualmente, que ela não é suscetível de nenhum acidente. Isto, porque, assim como aqueles acidentes que, por sua presença ou ausência, produzem uma mudança, acontecem verdadeiramente com o mesmo efeito na coisa que mudam, assim aqueles que não produzem esse efeito são chamados impropriamente de acidentes. Como, portanto, a natureza suprema é sempre, substancialmente, idêntica a si mesma em tudo e por tudo, por isso, não pode ser diferente de si, nem sequer acidentalmente. Desta forma, qualquer que seja o significado da palavra acidente, é seguramente certo que, acerca da natureza sumamente imutável nada se pode dizer de maneira que permita pensá-la mutável. CAPÍTULO XXVI Em que sentido se deve dizer que ela é uma substância, e como ela está fora de toda substância; e que somente ela é aquilo que é. Se não paira dúvida sobre aquilo que demonstramos acerca da simplicidade desta natureza, de que maneira ela é uma substância? Se toda substância é suscetível de uma soma de diferenças ou de mudanças de acidentes e, no entanto, a pureza imutável desta natureza é totalmente inacessível a qualquer mescla e mudança, então como conseguiremos dizer que ela é uma substância qualquer, a não ser que, por substância, se entenda essência, ficando, assim, fora, como está acima, de toda substância? Com efeito, entre aquele ser que é, por si, aquilo que é e que cria tudo do nada, e aquele ser que, saído do nada, é aquilo que é em virtude de outro, há uma diferença grandíssima: a mesma, justamente, que intercorre entre a substância suprema e todas as coisas que não são iguais a ela. E como ela é a única, entre todas as naturezas, que procede de si mesma, sem a ajuda de outra natureza, tudo aquilo que ela é, então, como poderia não ser tudo aquilo que é, individualmente, e sem a companhia da criatura? Portanto, se ela alguma vez recebe o mesmo nome que se dá à criatura, não resta dúvida de que este deve ser entendido num sentido diferente. CAPITULO XXVII Como ela não pode ser colocada entre as substâncias comuns, embora seja uma substância e um espírito individual. Consta, portanto, que não está incluída no tratado comum das substâncias aquela substância de cuja essência não participa nenhuma outra natureza. Certamente, como toda substância é ou universal, isto é, essencialmente comum a muitas substâncias (ser homem, por exemplo, é comum a todos os homens), ou individual, isto é, tem uma essência universal em comum com as outras substâncias (cada homem, por exemplo, tem, em comum com os outros, a sua qualidade de homem), então poderíamos admitir que a natureza suprema se inclua na classe das outras substâncias, se ela nem se divide em várias substancias, nem se une às outras por uma comunhão de essência? Entretanto, ela não apenas existe com certeza, mas, ainda, possui a resistência em grau máximo e, desde que a essência de qualquer ser costuma ser chamada de substância, nada certamente impede que, se é possível dizer algo condignamente dela, se chame de substância. E como não se conhece essência mais digna do que o espírito e o corpo, e como entre os dois o espírito é mais digno do que o corpo, deve-se afirmar que ela é espírito e não corpo. E, como o espírito não pode, de maneira nenhuma, ter partes, nem é possível haver vários espíritos da mesma natureza dela, é necessário que este espírito seja absolutamente individual. E, por não ser composto de partes, nem estar sujeito a modificação por causa de diferenças ou acidentes, como já ficou esclarecido acima, é impossível que esse espírito seja, de alguma maneira, divisível. CAPÍTULO XXVIII Que este espírito existe de maneira simples e que não pode ser comparado com as coisas criadas. Pelo que foi dito precedentemente, parece decorrer, como consequência, que este espírito — cujo modo de existir é tão admiravelmente singular e tão singularmente maravilhoso —, por certa razão, exista sozinho, e que as criaturas, se comparadas com ele, não existam, embora nos pareçam existir. De fato, se considerarmos bem, parecerá que somente ele tem uma existência simples, perfeita e absoluta, e, ao contrário, todas as outras coisas parecem realmente quase não existir e ter uma existência apenas emprestada. E, como deste mesmo espírito, devido à sua eternidade imutável, de maneira alguma se pode dizer que existiu ou existirá, segundo alguma mudança, mas simplesmente que existe; e como não é, também, algo que, de maneira variável, não existiu antes ou que não existirá no futuro, mas que é tudo aquilo que tem sido ou será; e que tudo aquilo que é, é-o de uma só vez, de maneira simultânea e indeterminável; como, repito, o seu ser é feito assim, pode-se dizer dele, com razão, que existe de maneira simples, absoluta e perfeita. Entretanto, todas as outras coisas, na verdade, por motivo da mudança em alguma parte do seu ser, foram ou serão aquilo que não são, são aquilo que não foram, ou não serão mais, e aquilo que foram já não existe mais, e aquilo que serão não existe ainda, e aquilo que elas são mal existe no passageiro e brevíssimo e quase não existente presente; em suma, elas existem de maneira tão mutável, que, com muita razão, nega-se que existam simples, absoluta e perfeitamente, e afirma-se que elas quase não existem e que sua existência é aleatória. Ainda. Como todas as coisas que são diferentes deste espírito passaram do nada para a existência não por si mesmas, mas por meio de outro ser; e, se abandonadas a si mesmas, voltariam da existência para o nada se não fossem amparadas por um outro ser, então de que maneira poderia atribuir-se a elas uma existência simples e perfeita, ou seja, absoluta? Antes, elas mal existem ou quase não têm existência. E como, ao contrário, a existência deste único, idêntico a si e inefável espírito não pode ser pensada, de maneira nenhuma, originada do nada, ou que possa estar sujeita a algum defeito por parte daquilo que ainda não existe; e, como tudo aquilo que ele é, é-o não por outro, mas por si, isto é, por aquilo que ele é, então, por que não admitir-se, por justo motivo, que ele é o único que deve ser entendido como simples, perfeito e absoluto? Na verdade, aquele que, tão simplesmente e sob todos os aspectos, é o único perfeito, simples e absoluto, este realmente pode ser indicado, com razão, sob certo aspecto, como o único que existe. E, ao contrário, tudo aquilo que, pelas considerações anteriores, se nos apresenta não tendo uma existência simples, nem perfeita nem absoluta, mas que existe apenas, ou quase não existe, certamente pode ser dito corretamente que, sob certo aspecto, não existe. Segundo este raciocínio, portanto, o espírito criador é o único que existe de verdade, e todas as coisas criadas não existem, apesar de a sua não existência não ser absoluta, porque foram transformadas em algo ao serem criadas do nada por aquele que, único, existe de maneira absoluta. CAPÍTULO XXIX Que a palavra deste espírito é a mesma coisa que ele, e que ambos não constituem dois espíritos, mas um só. Depois de examinar com atenção todas as propriedades dessa natureza que se me apresentaram até este momento, tendo como guia a razão, creio oportuno, agora, passar a considerar a sua palavra, pela qual todas as coisas foram feitas. Realmente, desde que tudo aquilo que consegui afirmar há pouco encontra apoio na força inflexível da razão, por isso, sinto-me obrigado a examinar com maior rigor esta palavra, porque está provado que ela é a mesma coisa que o espírito soberano. Com efeito, se nada ele fez a não ser por si mesmo, e tudo aquilo que foi feito por ele foi feito através dessa palavra, de que maneira ela poderia ser algo diferente daquilo que ele mesmo é? Isto fica ainda melhor demonstrado através daquelas coisas que já foram claramente provadas, isto é, que nada, salvo o criador e a sua criatura, jamais pôde, nem pode existir. Ora, é impossível que a palavra deste espírito possa estar entre as coisas criadas, porque tudo aquilo que foi criado foi feito por ele, e ela não pode ter sido feita por ela mesma. Nada, pois, pode ser feito por si mesmo, porque tudo aquilo que é feito é posterior ao princípio que o faz, e nada pode ser posterior a si mesmo. Deve-se concluir, portanto, que a palavra do espírito supremo, não podendo ser uma criatura, outra coisa não é senão esse mesmo espírito. E, finalmente, essa palavra não pode ser entendida senão como a própria inteligência desse espírito, por meio da qual ele compreende todas as coisas. Que é, de fato, para ele, dizer, desta maneira, alguma coisa senão compreendê-la? Com efeito, ao contrário do que acontece com o homem, ele sempre diz aquilo que compreende. Se, portanto, a natureza soberanamente simples nada mais é do que a sua inteligência, o que vale dizer a sua sabedoria, é necessário, igualmente, que não seja outra coisa que a sua palavra. Mas, como já foi demonstrado que o espírito supremo é somente uno e completamente individual, conclui-se que a sua palavra é consubstanciai a ele, mas de maneira a não serem dois, e sim um único e idêntico espírito. CAPITULO XXX Que esta palavra não é múltipla, mas um verbo único. Por que haveria de continuar na dúvida aquilo que anteriormente deixara como dúvida, isto é, se esta palavra consiste em muitas ou é uma só? Com efeito, se ela é consubstanciai à natureza suprema de maneira a não formar dois, mas um único espírito, evidencia-se que, assim como essa natureza é sumamente simples, assim também esta palavra é simples. Portanto, não consta de muitas palavras, mas de uma só, pela qual todas as coisas foram feitas. CAPÍTULO XXXI Que esse mesmo verbo não é uma semelhança das coisas criadas, mas a verdade da essência; e que as coisas criadas são certa imitação da verdade; e quais naturezas são maiores e melhores do que outras. Mas, eis que me parece surgir uma questão que não é fácil e que não deve ser deixada na incerteza. Com efeito, todas aquelas palavras com que falamos mentalmente, isto é, pensamos uma coisa, são semelhanças e imagens das coisas que expressamos por meio delas, e toda semelhança ou imagem e tanto mais ou menos verdadeira quanto mais ou menos imita a coisa de que é semelhança. O que deveremos pensar, então, acerca do verbo por meio do qual todas as coisas foram ditas e feitas? Será ou não será ele também uma semelhança daquelas coisas que foram feitas por ele? Se, pois, efetivamente, ele é uma semelhança das coisas que mudam, não é consubstanciai à suprema imutabilidade, o que é falso. Se, entretanto, ele não é uma semelhança completamente verdadeira, mas uma semelhança qualquer das coisas variáveis, também não pode ser o verbo da verdade suprema, porque esta é absolutamente verdadeira, o que é absurdo. Mas se ele não tem nenhuma semelhança com as coisas variáveis, como então estas foram feitas à sua imagem? Não haverá sombra de incerteza acerca deste assunto se, talvez, se faz notar que, num homem vivo, a verdade do homem está completa nele; mas, num homem pintado, fala-se que há a semelhança e a imagem desta verdade. Igualmente entenda-se a verdade da existência, no verbo, cuja essência é tão suprema, que, sob certo aspecto, só ela existe. Nas outras naturezas que, comparadas com ele, sob certo aspecto não existem e, contudo, são algo porque feitas por ele e segundo ele, pode-se dizer que nelas se encontra uma espécie de imitação da suprema essência. Por isso, o verbo da verdade suprema — e ele também é a verdade suprema — não poderá sofrer aumento ou diminuição pela sua maior ou menor semelhança com as criaturas, enquanto, ao contrário, será necessário que, antes, toda coisa criada tenha uma existência tanto maior e tanto mais valiosa quanto mais é semelhante àquele que existe em sumo grau e existe soberanamente grande. Devido a esta consideração, talvez, ou melhor: com certeza, toda inteligência julga as naturezas que têm, de alguma maneira, a vida superiores às que não vivem; aquelas que sentem, às que não sentem, e aquelas racionais, às irracionais. Por isso, como a natureza suprema, não apenas vive de uma forma a ela toda própria, mas vive, sente e é racional, torna-se claro que, entre todas as coisas que existem de alguma maneira, aquilo que possui a vida é mais semelhante a ela do que aquilo que não possui, absolutamente, a vida; e aquilo que de alguma maneira conhece, ainda que seja pelos sentidos corpóreos, é mais semelhante a ela, do que aquilo que não percebe de forma alguma; e aquilo que é racional é mais parecido com ela do que aquilo que não é racional. E, por semelhante razão, é manifesto que algumas naturezas são maiores ou menores umas que outras. Com efeito, assim como aquele ser que é mais importante por sua natureza porque, devido à sua essência natural, está mais próximo do ser por excelência, assim, sem dúvida, é maior aquela natureza cuja essência mais se assemelha à essência suprema. Isto pode-se demonstrar, também, do modo seguinte: se, de uma substância que vive, sente e pensa, elimina-se, mediante um ato da imaginação, primeiro a razão, depois a sensibilidade, depois a vida e, finalmente, aquilo que resta, que é a pura existência, quem não compreenderia que essa substância, aos poucos assim destruída, se reduz gradativamente a existir sempre menos e, por fim, a não existir mais? Aquelas coisas, entretanto, que, tomadas individualmente, reduzem uma essência a existir sempre menos, ao contrário, tomadas ordenadamente, levam-na a existir cada vez mais. Está claro, portanto, que uma substância vivente é mais que uma não vivente, uma simples mais que uma não simples, uma racional mais que uma não racional. Não resta dúvida, assim, de que qualquer substância é tanto maior e preferível, quanto mais é semelhante a esta essência suprema, que existe supremamente e é a mais excelente. Desta maneira, fica suficientemente demonstrado que o verbo, pelo qual todas as coisas foram feitas, não é uma semelhança destas, mas uma essência verdadeira e simples. No que diz respeito, ao contrário, às coisas criadas, não há nelas uma essência simples e absoluta, mas apenas certa imitação daquela essência verdadeira. Por isso, é necessário concluir que este verbo não é mais ou menos verdadeiro segundo a sua semelhança com as coisas criadas, mas que todas as naturezas criadas alcançam um grau tanto mais elevado de essência e dignidade, quanto mais se aproximam daquela essência. CAPÍTULO XXXII Que o espírito supremo expressa a si mesmo por um verbo que é com ele coeterno. Mas, se é assim, de que maneira então ele, que é verdade simples e pura, pode ser o verbo das coisas com que não guarda semelhança, quando, ao contrário, todo verbo, com que se expressa uma coisa na mente, é semelhança da própria coisa? E se não é o verbo das coisas que foram feitas por ele mesmo, como poderá ser demonstrado que ele é verbo? Não há dúvida de que todo verbo é verbo de alguma coisa e, se não houvesse criatura, não haveria nenhum verbo dela. Então? Será que devemos concluir que se mão existisse nenhuma criatura, não existiria esse verbo, que é a própria essência suprema, a qual não necessita de nada? Ou, quiçá, aquela essência suprema que é verbo seria, sim, essência eterna, mas não seria verbo, porque nunca foi criado nada por ela? Com efeito, não pode existir nenhum verbo daquilo que não existiu, não existe e não existirá. Mas, segundo esse raciocínio, se nunca existisse nenhuma essência, afora o espírito supremo, certamente não existiria, nele, nenhum verbo. Entretanto, se nele não houvesse nenhum verbo, ele não diria nada em si mesmo. E, se não dissesse nada em si mesmo, não compreenderia nada, porque, para ele, dizer e compreender algo é a mesma coisa; porém, se não compreendesse nada, deveríamos concluir que a sabedoria suprema, que outra coisa não é senão esse mesmo espírito, nada compreenderia, o que é extremamente absurdo. Como? Então, se não compreende nada, de que maneira pode ela ser a sabedoria suprema? Ou, se nada mais houvesse, além dela, então o que é que ela compreenderia? Poderia, neste caso, compreender a si mesma? Mas, é possível simplesmente pensar que a sabedoria suprema não se compreenda a si mesma, quando a alma racional não só pode conhecer-se a si mesma, mas também ter a ideia da sabedoria suprema, compreendê-la e compreender a si mesma? Com efeito, se a alma humana não pudesse ter memória ou inteligência alguma de si mesma, ela não poderia distinguir a si própria das criaturas irracionais, nem essa sabedoria suprema das outras criaturas, como faz neste momento a minha mente, disputando sozinha, tacitamente, consigo mesma. Portanto, aquele espírito supremo, assim como é eterno, assim se recorda eternamente de si mesmo e compreende a si mesmo da mesma maneira que o faz uma alma racional. Ou melhor, é ele quem, principalmente, compreende e a alma racional é que compreende, por sua vez, a si mesma, da mesma maneira. Mas se ele se recorda de si mesmo eternamente, expressa a si mesmo eternamente. E se expressa a si mesmo eternamente, o seu verbo está eternamente com ele. Quer, pois, se entenda que ele existe sem nenhuma outra essência, quer se pense existir com outras coisas existentes, é necessário que o verbo dele exista coeterno a ele. CAPITULO XXXIII Como, com um só verbo consubstancial, o espírito supremo expressa a si mesmo e aquilo que cria. Mas eis que, enquanto estou indagando sobre o verbo, com que o Criador expressa tudo aquilo que faz, se me apresenta o verbo com que aquele que fez todas as coisas expressa a si mesmo. Ou será que ele, ao expressar a si mesmo, usa um verbo, e ao expressar o que faz, usa outro? Ou, antes, com o mesmo verbo ele expressa a si mesmo e expressa todas as coisas que cria? Com efeito, este verbo, com que expressa a si mesmo, necessariamente é também aquilo que ele mesmo é, como já demonstramos a respeito do verbo pelo qual ele diz todas as coisas que cria. Ainda que nada mais existisse, a não ser aquele espírito supremo, a razão nos obrigaria a admitir, porém, a existência necessária deste verbo, pelo qual ele expressa a si mesmo. Portanto, o que há de mais verdadeiro do que dizer que este verbo outra coisa não é senão aquilo que ele é? Consequentemente, se expressa a si mesmo e as coisas que cria por um verbo consubstanciai a ele, é evidente que o verbo pelo qual expressa a si mesmo e o verbo com que expressa as criaturas são uma única substância. Mas, se a substância é uma só, como pode haver dois verbos? Talvez, a unidade da substância não nos obrigue a admitir a unidade do verbo. Com efeito, esse mesmo espírito, que fala através desses dois verbos, tem a mesma substância deles, e, no entanto, não é verbo. Em todo caso, porém, o verbo pelo qual a sabedoria expressa a si mesma pode ser dito, com muita razão, verbo dela, porque, pelos motivos expostos acima, reproduz uma imagem perfeita dela. Não podemos, pois, negar, de maneira nenhuma, que, quando a alma racional compreende a si mesma por meio do pensamento, se forme ama imagem dela no pensamento, ou melhor, o próprio pensamento dela seja a sua imagem, formada à semelhança de si como por impressão dela mesma. Com efeito, qualquer coisa que a mente deseja realmente pensar, quer com a imaginação sensível, quer pela razão, sem dúvida ela coloca todos os seus esforços para expressar, ao máximo, em seu pensamento, a semelhança dessa coisa. E isto ela consegue fazer com tanto maior verdade, quanto maior for a verdade com que pensa a coisa, como acontece quando pensa algo diferente dela mesma, e, particularmente, algum corpo. Quando, pois, eu penso um homem ausente, que conheço, a atividade do meu pensamento fixa-se apenas naquela imagem dele que eu guardei na memória por meio da visão dos meus olhos: esta imagem, no pensamento, é o verbo daquele homem, que eu expresso, ao pensá-lo. Portanto, a alma racional, ao compreender a si mesma por meio do pensamento, consegue ter a sua própria imagem — vale dizer o pensamento de si mesma — formada à semelhança de si mesma quase por sua impressão, embora a alma não possa separar-se da sua imagem, que é o verbo dela, senão apenas por meio da razão. Desta maneira, então, quem poderia negar que a sabedoria suprema, ao expressar a si mesma, compreende-se e engendra uma semelhança consubstanciai a ela, isto é, o verbo dela? Embora seja difícil encontrar palavras precisas e convenientes para um ser de uma superioridade tão singular, todavia, ao nos referir a este verbo, assim como dizemos semelhança, não é inconveniente dizer também imagem, figura e caráter daquela sabedoria. O verbo, entretanto, com que a sabedoria suprema expressa a criatura, não é absolutamente o verbo da criatura, porque não é semelhança desta, mas essência principal. Disto decorre que a sabedoria suprema não expressa a criatura com o verbo da criatura. Mas se não a expressa com o verbo da criatura, então, com que verbo a expressa, visto que aquilo que ela expressa, expressa-o pelo verbo, e o verbo é sempre verbo de alguma coisa, isto é, semelhança? Mas se ela não pode expressar nenhuma outra coisa a não ser a si mesma e a criatura, nada pode expressar senão pelo seu verbo ou por aquele da criatura. Porém, se não pode expressar nada pelo verbo da criatura, então tudo aquilo que expressa, expressa-o com o seu próprio verbo. Logo, com um único e mesmo verbo ele expressa a si mesmo e tudo aquilo que ele fez. CAPÍTULO XXXIV De que maneira se pode compreender que o espírito supremo expressa, com seu verbo, a criatura. De que maneira, porém, coisas tão diferentes, isto é, a essência criadora e aquela criada, podem ser expressas com um só verbo, ainda mais que o verbo é coeterno com quem o pronuncia, e a criatura não é coeterna com ele? Talvez isto se explique porque o espírito supremo é sabedoria suprema e razão suprema, no qual existem todas as coisas que foram criadas da mesma maneira que uma obra de arte existe, não apenas quando foi feita, mas, também, antes de ser feita e depois de ser destruída, porque sempre existe nela aquilo que a própria arte é. Por isso, quando o espírito supremo expressa a si mesmo, expressa todas as coisas que foram feitas. Com efeito, antes de serem feitas, e quando foram feitas e, depois, quando se desfizerem, ou de outro modo mudarem, sempre existem nele, não como aquilo que elas são em si mesmas, mas como aquilo que ele mesmo é. Em si mesmas elas são, pois, essência mutável, criadas segundo uma razão imutável; no espírito supremo, são essência primeira e verdade de existência primeira e, quanto mais são semelhantes a ele, tanto mais existem com existência verdadeira e superior. Assim, portanto, podemos afirmar com razão que, quando aquele espírito supremo expressa a si mesmo, expressa também tudo aquilo que foi feito, com um só e mesmo verbo. CAPITULO XXXV Tudo aquilo que foi criado é vida e verdade no verbo e na ciência dele. Mas, como o verbo do espírito supremo consta-nos que é consubstanciai e perfeitamente semelhante a ele, decorre necessariamente que tudo o que existe nele é o mesmo e está da mesma maneira no seu verbo. Portanto, tudo o que foi criado, tenha ou não vida, e qualquer que seja a sua existência, é, nele, vida e verdade. E, como para o espírito supremo conhecer e compreender são a mesma coisa, é necessário que, da mesma maneira com que conhece todas as coisas que conhece, assim também as expresse e as compreenda. Portanto, assim como todas as coisas, no verbo, são vida e verdade dele, assim são vida e verdade, também, na ciência dele. CAPITULO XXXVI Que a maneira com que ele expressa e conhece as coisas que criou é incompreensível para nós. Pelo que acabamos de dizer, pode-se claramente compreender que a ciência humana não consegue entender de que maneira esse espírito expressa e conhece as coisas. Ninguém, pois, duvida que as substâncias criadas sejam em si mesmas bem distintas daquilo que elas são no nosso conhecimento. Com efeito, elas em si mesmas existem pela sua própria essência, enquanto em nosso conhecimento existem não pelas suas essências, mas pelas suas semelhanças. Está claro, portanto, que elas são tanto mais reais em si mesmas do que em nosso conhecimento, quanto mais realmente estão em algum lugar por sua essência do que por sua semelhança. Como também resulta que toda substância criada está mais realmente no verbo, isto é, na inteligência do criador, do que em si mesma, tanto mais verdadeiramente quanto a essência criadora tem uma existência mais real do que a essência criada, então, como a mente humana poderá compreender esta maneira de falar as coisas e essa ciência, que é tão superior e mais real que as substâncias criadas, se a nossa ciência é tão amplamente superada por elas como é a distância que há entre a semelhança e a essência delas? CAPITULO XXXVII Tudo aquilo que o espírito supremo é em relação à criatura, o seu verbo também é, e, no entanto, não podem ser considerados pluralmente dois, mas um só. Como as razoes expostas acima nos ensinam claramente que o espírito supremo criou todas as coisas com seu verbo, não se deveria deduzir, então, que o verbo também fez todas essas coisas? Se, pois, o verbo é consubstancial a ele, é necessário que a essência suprema seja a essência do verbo. Mas a essência é una, única criadora e único princípio de tudo aquilo que foi criado, pois ela, tudo o que fez, criou-o do nada, por si mesma, sem a ajuda de ninguém. Por isso, tudo aquilo que o espírito supremo cria, igualmente o seu verbo o faz da mesma maneira e, consequentemente, tudo aquilo que o espírito supremo é em relação à criatura, o seu verbo também é. Mas, nem por isso, ambos podem ser considerados pluralmente, porque não constituem uma pluralidade de supremas essências criadoras. Como, portanto, o espírito supremo é criador e princípio das coisas, o mesmo há de se dizer do seu verbo, mas nem por isso são dois, mas um único criador e um único princípio. CAPITULO XXXVIII Que não é possível dizer por que são dois, apesar de serem, necessariamente, dois. É preciso, portanto, refletir com muita atenção sobre um fato que, completamente estranho aos outros seres, parece, entretanto, verificar-se em relação ao espírito supremo e ao seu verbo. Com efeito, é certo que em cada um deles, individualmente, e nos dois, conjuntamente, encontra-se tudo o que eles são, como essência, em relação à criatura, de maneira que tudo isso é perfeito individualmente em ambos, mas sem constituir a pluralidade dos dois. Se bem que o espírito seja individualmente a verdade suprema e o criador, e o seu verbo também seja a verdade suprema e o criador, nem por isso os dois, juntos, formam duas verdades ou dois criadores. Apesar de as coisas serem assim, entretanto fica maravilhosamente claro que nem o espírito supremo, donde procede o verbo, é verbo de si mesmo nem o verbo é o espírito do qual é verbo. Desta forma eles guardam sempre a unidade individual naquilo que significam substancialmente ou naquilo que são em relação à criatura, e admitem uma pluralidade inefável naquilo que o espírito supremo não procede do verbo, mas este, daquele. Sem dúvida inefável, porque, embora a necessidade exija que sejam dois, torna-se impossível, todavia, dizer em que coisa sejam dois. Se disséssemos que os dois são iguais ou que guardam semelhança recíproca devido a esta ou àquela relação e quiséssemos saber o que é aquilo que os relaciona, não poderíamos expressá-lo no plural, como dizemos de duas linhas iguais ou de dois homens semelhantes. Certamente não são dois espíritos iguais, nem dois criadores iguais; nem os dois são algo que expresse, deles, a essência ou uma relação com a criatura. Mas nem também os dois são algo que denote a recíproca relação, de uma para com o outro, porque não podem existir nem dois verbos, nem duas imagens. Com efeito, o verbo, pelo fato mesmo de ser verbo e imagem, relaciona-se com algo distinto, porque só pode ser verbo e imagem de algo diferente. Esta condição é tão própria de um que, de maneira nenhuma, pode ser aplicada ao outro, porque aquele, do qual é verbo e imagem, não é nem imagem nem verbo. Fica claro, portanto, que é impossível expressar em que coisa sejam dois, o espírito supremo e o seu verbo, se bem que, devido a algumas propriedades de cada um, se apresentem, necessariamente, como dois. Entretanto é próprio de um proceder do outro e é próprio deste que aquele proceda dele. CAPITULO XXXIX Que o verbo procede do espírito supremo por nascimento. Este conceito parece mais acessível se o expressarmos dizendo que é próprio de um nascer do outro e que é o próprio do outro que dele nasça o verbo. Com efeito, já ficou bem claro que o verbo do espírito supremo não procede deste como as coisas criadas, mas como criador de criador e como ser supremo de ser supremo. Para exprimir esta semelhança em poucas palavras, diremos que o verbo procede totalmente do espírito supremo e, de tal maneira, que não pode proceder senão dele. Portanto, pelo fato de proceder somente dele, guarda uma semelhança perfeita com ele, como um filho com o pai e, ao mesmo tempo, pelo fato de não proceder como as coisas criadas, decorre que, de maneira nenhuma, certamente, pode-se pensar com maior propriedade que não proceda dele senão por nascimento. Dizemos, pois, com razão, a respeito de um sem-número de coisas, que nascem daquelas que lhes dão a vida, embora não guardem nenhuma semelhança com elas, como é aquela que o filho recebe do pai. Assim dizemos que os cabelos nascem da cabeça, os frutos da árvore, se bem que os cabelos não tenham nenhuma semelhança com a cabeça e os frutos com a árvore. Por isso, repito, se podemos dizer dessas coisas, sem cair no absurdo, que elas nascem, com propriedade maior pode-se afirmar que o verbo procede do espírito supremo por nascimento, e com quanto maior perfeição — quase filho do pai — deriva a sua semelhança dele, ao receber a existência. CAPITULO XL Esse espírito é verdadeiramente pai, e o verbo, verdadeiramente filho. Se é com absoluta conveniência que se diz que o verbo nasce e que é tão semelhante àquele do qual nasce, por que, então, não afirmar, antes — desde que ele é tão semelhante ao espírito como um filho ao pai —, que o espírito é tão mais verdadeiro pai e o verbo mais verdadeiro filho, ainda mais que o primeiro basta a si mesmo para a perfeição deste nascimento, e o segundo expressa completamente a semelhança com o primeiro? Com efeito, no que diz respeito às outras coisas, entre as quais sabemos com certeza existir uma relação de pai para filho, nenhuma há que seja suficiente para engendrar a prole sozinha, sem o concurso de nada, nenhuma nasce de maneira a apresentar perfeita semelhança com o pai, sem nenhuma incidência de diferenças. Consequentemente, se o verbo do espírito supremo procede de maneira tão absoluta apenas da essência deste, e é por completo tão semelhante a ele, como filho nenhum procede tão completamente da essência do pai, então nada com certeza tem direito maior à relação de pai e filho do que o espírito supremo e o verbo dele. Por este motivo, é próprio do primeiro ser verdadeiramente pai e, do segundo, ser verdadeiro filho. CAPÍTULO XLI Que o espírito verdadeiramente gera e o verbo é verdadeiramente gerado. Entretanto, isso não poderia estar certo, se, ao mesmo tempo, o espírito supremo verdadeiramente não gerasse e o verbo não fosse verdadeiramente gerado. Desde que a verdade daquilo que demonstramos é evidente, é necessário, pois, que a consequência esteja certa. Por isto, decorre que é próprio do espírito supremo engendrar verdadeiramente, e do verbo, ser verdadeiramente engendrado. CAPÍTULO XLII Que é próprio do espírito supremo ser genitor e pai e, do verbo, ser gerado e filho. Gostaria e, talvez, poderia concluir que aquele é verdadeiramente pai, e este, verdadeiramente filho, mas, como não há neles distinção de sexo, penso que não se deva deixar de examinar se é mais congruente para eles a denominação de pai e filho ou a de mãe e filha. Com efeito, se é conveniente chamar ao primeiro de pai e ao segundo de filho, porque ambos são espírito, por que, pela mesma razão, não poderia ser dito o primeiro mãe e o segundo filha, ainda mais que ambos são a verdade e a sabedoria? Será, talvez, porque, naqueles seres que têm diferença de sexo, a denominação de pai e filho convém mais ao sexo superior, e aquela de mãe e filha, ao inferior? Isto, na verdade, observa-se dentro da natureza em muitos casos. Entretanto acontece também o contrário, como em certas espécies de aves, onde o sexo feminino é mais importante e forte, e o masculino é menos importante e mais fraco. Ou será que convém, com maior razão, que se chame de pai ao espírito supremo porque a primeira e principal causa da prole encontra-se no pai? Se a causa materna, de qualquer maneira, é sempre precedida por aquela paterna, é, pois, completamente inconveniente aplicar o nome de mãe àquele ao qual, para engendrar a prole, não se associa ou precede nenhuma causa. É, portanto, certíssimo que o espírito supremo é pai da sua prole. Se, ainda, um filho sempre é mais parecido com o pai do que uma filha, e se nenhuma coisa é mais parecida com a outra do que, com o pai supremo, a sua prole, é incontestável que esta prole não é uma filha, mas um filho. Como, portanto, é próprio daquele verdadeiramente gerar, e deste, ser gerado, assim é próprio daquele ser verdadeiramente genitor, e deste, verdadeiramente gerado. E, como o primeiro é verdadeiro genitor e o outro verdadeira prole, assim um é verdadeiro pai e o outro verdadeiro filho. CAPÍTULO XLIII Volta-se a tratar da comunhão entre os dois e das propriedades de cada um. Depois de encontrar tantas e tão grandes propriedades do espírito supremo e do verbo dele, com as quais está demonstrado existir, na suprema unidade, certa maravilhosa quanto inefável e inevitável pluralidade, se me apresenta como extremamente agradável voltar a tratar com frequência de um mistério tão insondável. Com efeito, se é totalmente impossível que o genitor seja o mesmo que a prole, aquele que gera o mesmo que aquele que é gerado, e o pai o mesmo que o filho, de maneira que seja necessariamente distinto o genitor do gerado, o pai do filho, entretanto, não é menos necessário que aquele que gera seja o mesmo que o gerado, o pai o mesmo que a prole e, assim, se torne impossível que o genitor seja distinto do gerado, e o pai do filho. E, apesar de ambos serem tão distintos um do outro de maneira que parece manifesto tratar-se de dois, todavia, aquilo que eles são, tanto um como o outro, apresenta-se tão uno e idêntico que fica profundamente oculto em que sejam dois. Com efeito, o pai e o filho diferem sob este aspecto de tal modo que, depois de pronunciar o nome de ambos, compreendo ter pronunciado os dois separadamente, e, no entanto, aquilo que constitui o pai e o filho é tão igual que eu não consigo entender por que os tenha dito dois separadamente. Se bem que o filho individualmente seja do mesmo modo esse espírito, contudo, o espírito pai e o espírito filho são uma coisa tão assim una e idêntica que o pai e o filho não formam dois espíritos, mas um só espírito. E, assim como as propriedades individuais de cada um não admitem pluralidade, porque não são as propriedades dos dois, igualmente aquilo que é comum aos dois conserva a unidade individual, ainda que — como totalidade — pertença inteiramente a cada um deles. Com efeito, assim como não são dois os pais e dois os filhos, mas um só o pai e um só o filho, porque cada uma destas propriedades é específica de um só, assim não são dois os espíritos, mas um só, apesar de ser próprio do pai e do filho ser espírito perfeito individualmente. Assim, eles são de tal maneira opostos em suas relações, que nunca um assume o que é próprio do outro, e, no entanto, tão de acordo, por sua natureza, que um sempre tem a essência do outro. São, pois, tão distintos — por ser, um, o pai, e outro, o filho — que se torna impossível chamar de filho o pai e o pai de filho e, todavia, são tão idênticos pela substância que sempre a essência do filho está no pai, e a essência do pai está no filho, e nunca ela é diferente, porque a essência de ambos não é diferente, mas a mesma; não múltipla, mas única. CAPITULO XLIV Como o pai é a essência do filho. Por conseguinte, não é afastar-se da verdade se afirmarmos que um é a essência do outro, mas significa expressar muito melhor a suprema unidade e simplicidade da natureza comum. Não é no sentido em que entendemos a sabedoria do homem pela qual o homem se toma sábio, quando por si mesmo não poderia sê-lo, que se pode entender a afirmação de que o pai é essência do filho e o filho essência do pai, como se um não pudesse existir senão pelo outro, como acontece com o homem que não pode ser sábio senão pela sabedoria. Assim como a sabedoria suprema é sempre, pois, sábia por si, assim a essência suprema sempre existe por si. Desta forma, tanto o pai como o filho são perfeitamente essência suprema. O pai, portanto, é perfeito por si e o filho, igualmente, é perfeito por si, do mesmo modo que tanto um como outro é sábio por si. Nem certamente o filho é uma essência e uma sabedoria menos perfeita por ser essência nascida da essência do pai e sabedoria nascida da sabedoria deste; mas, a sua essência e a sua sabedoria seriam menores, se ele não existisse por si ou não fosse sábio por si. E não é contraditório que o filho subsista por si e receba o ser do pai. Com efeito, assim como o pai tem essência, sabedoria e vida em si mesmo, de maneira, porém, a existir só pela sua essência, ser sábio só pela sua própria sabedoria e viver só pela sua própria vida e não pela essência, a sabedoria e a vida do outro, assim, ao engendrar o filho, concede-lhe ter em si mesmo essência, sabedoria e vida de maneira a existir pela sua essência só, a ser sábio pela sua sabedoria só, a viver pela sua vida só e não pelas de outro. Do contrário, o ser do pai e o ser do filho não seriam mais o mesmo, nem o filho seria mais igual ao pai. Mas quanto isso seja falso, já foi demonstrado muito claramente acima. Por isto, não é contraditório que o filho subsista por si mesmo e tenha nascido do pai, porque é necessário que receba isto justamente do pai, vale dizer, o poder de subsistir por si. Se, pois, um sábio me ensinasse a sua sabedoria, poder-se-ia dizer, sem contradição, que é a sua sabedoria que faz isto. Mas, embora a minha sabedoria tivesse o ser e os conhecimentos da sabedoria dele, no momento em que ela estivesse formada em mim, só existiria pela sua essência e seria sabedoria por si mesma. Com razão muito maior o filho, coeterno com o pai eterno, o qual recebe do pai o ser de maneira a não constituir duas essências, subsiste, conhece e vive por si mesmo. Portanto não se pode entender que o pai é essência do filho ou o filho essência do pai como se um não pudesse subsistir por si mesmo senão unicamente pelo outro, mas para indicar aquela comunhão de essência, sumamente simples e sumamente una que eles têm. Assim pode-se dizer e compreender com razão que um é o mesmo que o outro, para entender que um tem a essência do outro. Por esse motivo, dado que para ambos ter a essência é a mesma coisa que ser a essência, assim como um tem a essência do outro, assim um é a essência do outro; vale dizer, o mesmo ser pertence a ambos. CAPÍTULO XLV Que é mais exato dizer que o filho é a essência do pai do que o pai a essência do filho; e, igualmente, que o filho é a virtude, a sabedoria do pai e, assim, para qualidades semelhantes. Ainda que a demonstração feita acima esteja racionalmente correta, todavia, é mais exato dizer que o filho é a essência do pai do que o pai a essência do filho. Com efeito, como o pai não recebe a essência de ninguém, mas de si mesmo, é muito mais conveniente dizer que tem a sua própria essência do que aquela de outro; e, como o filho recebe a sua essência do pai, e é a mesma daquela que o pai tem, é muito mais próprio dizer que tem a essência do pai. Por isto, como nenhum dos dois tem a essência senão cada um existindo como essência, e como é mais fácil compreender que o filho tem a essência do pai do que o pai aquela do filho, assim é mais conveniente dizer que o filho é a essência do pai do que o pai a essência do filho. Esta expressão, com sua percuciente brevidade, deixa entender imediatamente que o filho não apenas compartilha com o pai esta essência, mas que recebe esta mesma essência do pai. Desta maneira, afirmar que o filho é a essência do pai equivale a dizer que o filho é uma essência não diferente da essência do pai, antes, da essência-pai. De maneira semelhante, portanto, o filho é a virtude, a sabedoria ou a verdade e a justiça do pai; e tudo mais que esteja de acordo com a essência do espírito supremo. CAPITULO XLVI Como alguns destes atributos que proferimos desta maneira podem ser entendidos também de outra. Parece, entretanto, que alguns desses atributos que podem ser proferidos e compreendidos desta maneira podem assumir também outro sentido, não inconveniente, sob esta mesma expressão. Com efeito, é certo que o filho é o verdadeiro verbo, isto é, inteligência perfeita, ou perfeito conhecimento, ciência e sabedoria de toda a substância do pai, vale dizer, ele conhece a essência mesma do pai e tem ciência, conhecimento e intelecção dela. Portanto, neste sentido, se chamarmos ao filho de inteligência, de sabedoria, de ciência, de conhecimento, ou intelecção do pai, porque compreende, sabe e conhece o pai e a sua sabedoria, de forma alguma estaremos nos afastando da verdade. Pode-se dizer, com toda propriedade, que o filho é também a verdade do pai, não apenas no sentido em que a verdade do pai é a mesma que aquela do filho, como já demonstramos, mas também no sentido em que se encontra nele não uma certa imitação imperfeita, mas a verdade completa da substância do pai, porque ele outra coisa não é que aquilo que é o pai. CAPITULO XLVII Que o filho é a inteligência da inteligência e a verdade da verdade e, de maneira semelhante, para as outras qualidades. Mas se a mesma substância do pai é inteligência, ciência, sabedoria e verdade, consequentemente conclui-se que, assim como o filho é a inteligência, a ciência, a sabedoria, a verdade da substância do pai, assim ele é a inteligência da inteligência, a ciência da ciência, a sabedoria da sabedoria, a verdade da verdade. CAPITULO XLVIII Como, na memória, é compreendido o pai e, na inteligência, o filho; e como o filho é, ainda, inteligência e sabedoria da memória; memória do pai e memória da memória. Mas que conceito devemos ter da memória? Haveremos de considerar, talvez, o filho como a inteligência da memória, ou a memória do pai, ou a memória da memória? Sem dúvida, como não é possível negar que a sabedoria suprema se recorda de si mesma, nada há de mais exato do que compreender que o pai está na memória, e o filho no verbo, porque parece que o verbo nasce da memória. Coisa esta que se vê claramente acontecer em nossa mente, porque a mente humana nem sempre reflete sobre si mesma, mas sempre se recorda de si mesma e é claro que, quando pensa a si mesma, o seu verbo nasce da memória. Donde resulta que, se ela pensasse sempre a si mesma, o seu verbo nasceria sempre da memória. De fato, pensar uma coisa da qual temos memória é o mesmo que expressá-la com a mente: o verbo, pois, da coisa é o próprio pensamento formado pela memória à semelhança dela. Isto pode ser observado claramente a respeito da sabedoria suprema, que sempre expressa a si mesma segundo a memória que tem de si mesma, porque da sua eterna memória nasce um verbo coeterno com ela. Portanto, da mesma maneira que o verbo é entendido convenientemente como prole, é muito próprio também que a memória se denomine pai. Então, se a prole que nasceu exclusivamente do espírito supremo é prole da memória dele, nada mais coerente do que concluir que a memória dele é ele mesmo. Sem dúvida, ele, ao recordar-se de si mesmo, não está na sua memória como uma coisa está na outra, como acontece com aquelas coisas que estão na memória da mente humana que não constituem a nossa memória; mas, ao contrário, recorda-se de si mesmo de uma maneira que ele seja a sua própria memória. Decorre, pois, que, assim como o filho é a inteligência ou a sabedoria do pai, assim também o é da memória do pai. O filho, porém, tem memória de tudo aquilo que conhece e compreende. Portanto, o filho é a memória do pai e memória da memória, isto é, a memória que se recorda do pai que por sua vez é memória, do mesmo modo que é sabedoria do pai e sabedoria da sabedoria, isto é, sabedoria que conhece o pai que por sua vez é a sabedoria. E, certamente, ele é também memória nascida da memória, assim como é sabedoria nascida da sabedoria, quando o pai é a memória ou a sabedoria nascidas do nada. CAPITULO XLIX Como o espírito supremo ama a si mesmo. Mas, enquanto contemplo, com grande deleite, as propriedades e a comunhão deste pai e deste filho, nada encontro de mais agradável para ser contemplado do que o sentimento do amor recíproco entre eles. Não seria um terrível absurdo negar que o espírito supremo ama a si mesmo assim como tem memória de si mesmo e que compreende a si mesmo, quando é fácil demonstrar que a mente racional pode amar a si mesma e a ele, justamente, porque ela pode ter memória de si mesma e dele e compreender a si mesma e a ele? A memória ou a inteligência de qualquer coisa seria, pois, dispensável e totalmente inútil se, como a razão o exige, a própria coisa não fosse amada ou reprovada. Portanto, assim como o espírito supremo recorda a si mesmo e compreende a si mesmo, assim, igualmente, ama a si mesmo. CAPÍTULO L Como esse amor procede igualmente do pai e do filho. Para todo ser que possui a razão, fica certamente claro que aquele não tem memória de si e não compreende a si mesmo porque ama a si mesmo, mas, ao contrário, ama a si mesmo porque tem memória de si, e compreende a si mesmo porque não poderia amar a si mesmo se não tivesse a memória e a inteligência de si mesmo. Nenhuma coisa, na verdade, pode ser amada se não se tem memória e inteligência dela, embora seja possível ter na memória e compreender muitas coisas que não se amam. É, pois, evidente que o amor do espírito supremo procede do fato de que ele se recorda de si mesmo e compreende a si mesmo. Por isso, se aqui por memória entendemos o pai e por inteligência o filho, é evidente que o amor do espírito supremo procede igualmente do pai e do filho. CAPÍTULO LI Como cada um ama igualmente ao outro com o mesmo amor. Se, porém, o espírito supremo ama a si mesmo, não há dúvida de que também o pai ama a si mesmo, o filho ama a si mesmo e cada um deles ama ao outro, porque o pai, individualmente, é o espírito supremo, e o filho, individualmente, é o espírito supremo, e ambos são um só espírito. E, como cada um deles recorda-se, simultaneamente, de si mesmo e do outro, compreende a si mesmo e ao outro; e porque, tanto o pai como o filho, aquele que ama é também aquele que é amado, decorre necessariamente que cada um ama a si mesmo e ama ao outro com amor igual. CAPÍTULO LII Esse amor é tão grande como o próprio espírito supremo. Qual é, pois, a grandeza desse amor do espírito supremo, comum ao pai e ao filho? Mas se ele ama a si mesmo tanto como se recorda de si mesmo e se compreende a si mesmo, e se tem memória de si mesmo e compreende a si mesmo na proporção da sua essência — e não pode ser de outra maneira —, o amor dele, certamente, é tão grande como ele mesmo. CAPITULO LIII Que este amor é a mesma coisa que o espírito supremo; e que, entretanto, é um espírito só com o pai e o filho. Mas o que pode ser igual ao espírito supremo senão o próprio espírito supremo? Assim, este amor é o próprio espírito supremo. Por fim, se não houvesse nenhuma criatura, isto é, se não houvesse nada mais do que o espírito supremo, o pai e o filho não se amariam menos a si mesmos e reciprocamente. Segue, portanto, que esse amor não é outra coisa senão aquilo que é o pai e o filho, isto é, a essência suprema. E, como não é possível haver muitas essências supremas, que dedução mais necessária há que aquela de que o pai, o filho e o amor de ambos sejam uma essência única e suprema? Este mesmo amor é, pois, a essência suprema, a sabedoria suprema, a verdade suprema, o bem supremo e tudo aquilo que é possível afirmar-se a respeito da substância do espírito supremo. CAPITULO LIV Como este amor procede inteiramente do pai, inteiramente do filho e, todavia, não é senão um único amor. Devemos diligentemente indagar se há dois amores: um que procede do pai e outro do filho; ou somente um, que não procede inteiro de um dos dois, mas parcialmente do pai e parcialmente do filho; ou se não há nem muitos amores nem um só procedente em parte do pai e em parte do filho, mas, ao contrário, há um amor só que procede inteiro de cada um e, igualmente, inteiro, dos dois, ao mesmo tempo. A certeza contra esta dúvida aparece com facilidade se se considera que o amor não procede do pai e do filho enquanto são dois, mas daquilo pelo qual eles são uma coisa só. Com efeito, o pai e o filho produzem este tão grande bem, não das suas relações, que são múltiplas — diferente é, pois, a relação do pai daquela do filho e vice-versa —, mas da sua mesma essência, que não admite pluralidade. Por conseguinte, assim como o pai, individualmente, é o espírito supremo, e o filho, individualmente, é o espírito supremo, e o pai e o filho, conjuntamente, não são dois espíritos, mas um só, assim o amor do espírito supremo emana inteiro do pai, individualmente, e inteiro do filho, individualmente, não como dois amores inteiros e diferentes, mas como um único e mesmo amor, completamente inteiro. CAPITULO LV Que o amor não é filho deles. Então, qual a conclusão? Será que, se este amor procede igualmente do pai e do filho e é tão semelhante a ambos que em nada se diferencia deles, mas é perfeitamente idêntico a eles, deverá ser julgado como filho ou prole deles? Mas assim como o verbo, logo ao ser examinado, mostra com toda evidência ser prole daquele donde procede, porque apresenta uma imagem imediata e clara do seu genitor, assim o amor nega abertamente ser prole, porque, embora se compreenda que procede do pai e do filho, entretanto, não apresenta imediatamente, a quem o contempla, outra tão evidente semelhança com aquele do qual deriva, ainda que a relação que os une, bem considerada, informe que é completamente aquilo que são o pai e o filho. Igualmente, se é prole deles, um deles será seu pai e o outro a mãe, ou ambos serão o pai ou a mãe; coisas estas que repugnam por completo à verdade. Como, entretanto, ele procede do pai da mesma maneira que procede do filho, a verdade não permite que o pai e o filho sejam relacionados com ele com palavra diferente. Portanto, nem um pode ser o pai dele, nem o outro, a mãe. De fato, nenhuma natureza permite indicar o exemplo de duas coisas que tenham, igualmente, cada uma, no mesmo grau e sem a menor diferença, a qualidade do pai e da mãe em relação a um mesmo ser. Portanto, nenhum dos dois, isto é, o pai e o filho, é o pai ou a mãe do amor que emana deles. Por conseguinte, sob nenhum aspecto parece concordar com a verdade que o mesmo amor possa ser filho ou prole deles. CAPITULO LVI Que somente o pai gera e é ingênito; que somente o filho é gerado e que somente o amor não é nem gerado nem ingênito. Ao falar nesse amor, usando expressões comuns, parece não ser possível, todavia, dizer que ele é ingênito ou gerado à maneira do verbo. Costumamos, pois, dizer frequentemente que uma coisa é gerada por aquela da qual recebe a existência, como no caso em que afirmamos que o calor e o esplendor são engendrados pelo fogo, ou por um efeito qualquer que se produza por sua causa. Segundo esta maneira de se expressar, o amor não pode ser considerado completamente ingênito e, no entanto, também não se pode sustentar que é gerado, como o verbo, porque o verbo é manifestamente verdadeira prole e filho, quando o amor, ao contrário, de forma alguma é prole e filho. É possível dizer-se, aliás, deve-se dizer, que genitor e ingênito é somente aquele ao qual pertence o verbo, porque ele, unicamente, é pai e genitor por não derivar, de maneira nenhuma, de ninguém; e que somente o verbo pode ser considerado como gerado, porque somente ele é prole e filho. Mas o amor de um e de outro não admite ser definido nem como gerado nem, todavia, como ingênito, porque, enquanto não é filho nem prole, de outro lado, não é possível afirmar que não recebe a existência, de alguma maneira, de outro. CAPITULO LVII Assim como o pai e o filho, esse amor também não é criado e é criador; e, no entanto, não forma com eles três seres, mas um único ser não criado e um único criador; e pode ser dito o espírito do pai e do filho. Portanto, como esse amor, individualmente, é a essência suprema como o pai e o filho e, contudo, o pai e o filho com o amor de ambos não formam muitas essências supremas, mas uma só, que não foi feita por ninguém, mas, ao contrário, foi ela que fez todas as coisas por si mesma, é necessário que, assim como o pai, individualmente, e o filho, individualmente, que não são criados e, sim, criadores, o amor também seja, individualmente, não criado e criador. Porém, nem por isso os três são também vários espíritos, mas um só, não criado e criador. Desta maneira, ninguém faz, cria ou engendra o pai; mas o pai é o único que gera, e não faz, o filho; e, igualmente, o pai e o filho "espiram", se é possível dizer assim, de certo modo, o seu amor. Embora seja necessário observar que a essência suprema não "espira" da mesma maneira como nós, todavia, nenhuma expressão parece-nos indicar, melhor do que "espirar", a forma inefável pela qual esse amor procede da essência suprema, sem separar-se dela, mas continuando a existir nela. Se esta expressão é permitida, então, assim como o verbo da essência suprema é chamado de filho, o amor da mesma também pode ser denominado, com toda conveniência, de espírito dela. Mas, como ele é essencialmente espírito quanto o pai e o filho, entretanto, estes não podem ser considerados espírito de alguém, porque nem o pai procede de alguém, nem o filho nasce do pai como se o soprasse. O amor, ao contrário, pode ser considerado o espírito de um e o espírito do outro, porque procede admiravelmente dos dois mediante uma inefável maneira de "aspiração" deles. Mas, pelo fato também de que ele é comum ao pai e ao filho, justifica-se, com razão, que possa assumir como próprio aquele nome que é comum ao pai e ao filho, desde que o exija a falta de um nome próprio para ele. Se isto acontecer, vale dizer que o amor se denomine, como se fosse seu nome próprio, Espírito, que indica igualmente a substância do pai e do filho, será vantajoso também porque ele será designado pelo mesmo nome da substância do pai e do filho, embora receba a existência de um e do outro. CAPITULO LVIII Assim como o filho é a essência e a sabedoria do pai, no sentido em que possui a mesma essência e sabedoria do pai, assim o espírito é a essência e a sabedoria e os demais atributos do pai e do filho. Assim como o filho é a substância, a sabedoria e a virtude do pai, no sentido em que possui a mesma essência, sabedoria e virtude do pai, assim o espírito, que procede de um e de outro, pode ser considerado igualmente a essência, a sabedoria ou a virtude do pai e do filho, porque possui completamente a mesma essência deles. CAPITULO LIX Como o pai, o filho e o espírito de ambos se encontram uns nos outros, mutuamente. É com alegria que contemplo como o pai, o filho e o espírito de ambos estão mutuamente, entre si, unidos e iguais, sem que nenhum deles exceda ao outro. Com efeito, além de cada um ser essência perfeita e suprema e, contudo, os três não constituírem senão uma essência suprema única, que não pode existir sem si mesma, nem fora de si mesma, nem ser maior ou menor de si mesma, todavia, não é menos possível demonstrar tudo isso a respeito de cada um, em particular. O pai encontra-se, pois, completo no filho e no espírito que é comum a ambos; o filho, no pai e no mesmo espírito; e o espírito, no pai e no filho porque a memória da essência suprema está completa na inteligência e no amor dela e a inteligência, na memória e no amor, e o amor, na memória e na inteligência. Efetivamente, o espírito supremo compreende e ama toda a sua memória, recorda-se de toda a sua inteligência e a ama totalmente, tem memória de todo o seu amor e o compreende totalmente. Entende-se, pois, que o pai está na memória, o filho, na inteligência e o espírito, no amor recíproco dos dois. Portanto, o pai, o filho e o espírito de ambos abraçam-se com tão grande igualdade e vivem em si tão mutuamente, que fica demonstrado que nenhum deles está acima do outro ou existe sem o outro. CAPITULO LX Que nenhum deles precisa do outro para recordar, compreender e amar porque cada um é memória, inteligência e amor e tudo aquilo que é necessário que seja a essência suprema. Entretanto, julgo que devo recordar, com toda diligência, aquilo que me ocorre ao meditar sobre assuntos desta espécie. Sem dúvida é necessário que se entenda o pai como memória, o filho como inteligência e o espírito como amor; porém, duma maneira que o pai não precise do filho, ou do espírito, comum aos dois; nem o filho, do pai ou do espírito; nem o espírito, do pai ou do filho, como se o pai só pudesse recordar por si, mas compreender só pelo filho e amar só pelo espírito, que tem em comum com o filho; e o filho só pudesse compreender por si, mas recordar só pelo pai e amar só pelo espírito: e, finalmente, o espírito só pudesse, por si, amar apenas, mas recordar somente pela memória do pai e compreender pela inteligência do filho. Como, portanto, cada um dos três, individualmente, é essência suprema e sabedoria suprema em grau tão perfeito que pode recordar, compreender e amar por si mesmo, decorre necessariamente que nenhum dos três precisa um do outro para recordar, compreender e amar. Com efeito, cada um por si, em particular, é essencialmente memória, inteligência e amor, e tudo aquilo que se faz necessário que se encontre presente na essência suprema. CAPÍTULO LXI Como, contudo, não são três, mas um único pai, um único filho e um único espírito de um e de outro. Entretanto, vejo-me deparar com uma questão. Com efeito, se o pai é tanto inteligência e amor como é memória; e o filho é tanto memória e amor como é inteligência; e o espírito de um e de outro não é menos memória e inteligência do que amor, então, por que o pai não é o filho e o espírito do outro; e por que o filho não é o pai e o espírito do outro; e por que esse mesmo espírito não é o pai e o filho do outro? Ficara, pois, estabelecido que a memória era o pai; a inteligência, o filho, e o amor, o espírito de ambos. Essa questão, porém, resolve-se facilmente se prestarmos atenção às verdades que já foram esclarecidas pela razão. Efetivamente o pai não é filho e espírito do outro, apesar de ser inteligência e amor, porque ele não é inteligência engendrada ou amor procedente de alguém, mas tudo aquilo que ele é condiciona-se à sua qualidade de somente engendrar e de ser o princípio donde as coisas procedem. O filho, igualmente, não é o pai ou o espírito do outro, não obstante tenha memória e ame por si mesmo, porque não é memória que engendra ou amor que emana de outro, à semelhança do espírito; mas tudo aquilo que ele é está ligado somente à condição de ser engendrado e ser aquele donde procede o espírito. O fato de o espírito estar contido na memória e na inteligência deles não o obriga a ser o pai ou o filho, porque ele não é memória que engendra ou inteligência engendrada, mas toda a sua essência consiste apenas em proceder de. O que impede, então, que se conclua que, na essência suprema, não há senão um só pai, um só filho e um só espírito, e não três pais, ou três filhos, ou três espíritos? CAPITULO LXII Como parece que deveriam nascer muitos filhos desses três. Mas, talvez, aquilo que agora estou pensando não esteja bem de acordo com o que foi afirmado anteriormente. Com efeito, não pode haver mais dúvidas de que o pai, o filho e o espírito deles, assim como expressam cada um a si mesmo e aos outros dois, assim se compreendem cada um a si mesmo e aos outros dois. Se, pois, as coisas estão assim, por que não existem, então, na essência suprema, tantos verbos como as pessoas que falam e as pessoas faladas? Na verdade, se vários homens expressam com o pensamento alguma coisa, parece lógico que se verifiquem tantas expressões dela como são as pessoas que a pensam, porque, nos pensamentos de cada uma, forma-se uma expressão dela. E, igualmente, se um homem só pensa muitas coisas, formam-se na mente do pensante tantas palavras quantas são as coisas pensadas. Mas, na mente do homem, quando ele pensa algo que está fora de seu pensamento, a palavra da coisa pensada não nasce da própria coisa, porque esta se acha ausente da vista do pensante; ao contrário, nasce de alguma semelhança ou imagem, que se encontra na memória da pessoa que pensa, ou, no momento em que pensa, é como que retirada da coisa presente e introduzida no pensamento pelos sentidos corpóreos. Entretanto, na essência suprema, o pai, o filho e o espírito deles estão de tal maneira presentes um ao outro, como já foi demonstrado — pois cada um não está menos no outro que em si mesmo —, que, quando se expressam reciprocamente, aquele que é falado [pelo outro] parece gerar o ser verbo, o mesmo com que expressa a si mesmo. Por que, então, o filho não engendra nada, e o espírito dele e do pai não gera nada, se cada um deles engendra o seu próprio verbo quer quando expressa a si mesmo, quer quando é expressado pelo outro? Ora, se é possível demonstrar que da substância suprema nascem vários verbos, é necessário, pelas considerações anteriores, que ela, igualmente, gere outros tantos filhos, e que dela emanem outros tantos espíritos. Por essa razão, portanto, parecem existir, nela, não somente muitos pais, filhos, e espíritos procedendo deles, mas, também, outras relações necessárias. CAPITULO LXIII Como não há, na substância suprema, senão um único verbo procedente de um único pai. Certamente o pai, o filho e o espírito deles, de cuja existência já não é mais possível duvidar, não são três que falam separadamente, apesar de cada um falar os demais; nem são várias as coisas faladas por eles quando cada qual expressa a si mesmo e aos outros dois. Com efeito, assim como na sabedoria suprema existe o saber e o compreender, assim também, para a ciência e inteligência, eterna e incomunicável, é natural ter sempre presente aquilo que sabe e compreende. Mas, para o espírito supremo falar outra coisa não é senão intuir com o pensamento, como o falar da nossa mente nada mais é do que uma consideração de quem pensa. As conclusões, já deduzidas, deram-nos a certeza de que tudo aquilo que se encontra essencialmente na natureza suprema convém, de maneira perfeita, tanto ao pai como ao filho e ao espírito deles, individualmente; e, no entanto, tudo isso, se referido simultaneamente aos três, não admite pluralidade. Portanto, é certo que, assim como a ciência e a inteligência pertencem à sua essência, assim o saber e o compreender não são para ela senão falar, isto é, ter sempre presente aquilo que sabe e compreende. Por isso, assim como o pai, o filho e o espírito deles, individualmente, sabem e compreendem e, todavia, os três unidos não são vários que sabem e compreendem, mas um único que sabe e compreende, assim é necessário que cada um deles, individualmente, fale, não, porém, como se fossem três juntos que falam, mas um só. Disto pode-se conhecer claramente que, quando estes três são falados ou por si mesmo, ou um pelo outro, não são várias as coisas que são ditas. O que será aquilo que, neste caso, é falado senão a essência deles? Mas, se a essência é uma só, um só será o ser que, portanto, é expressado. E se é um só o ser que é falado e um só aquele que fala, porque neles é uma só a sabedoria que fala e é falada, se deduz que não há vários verbos, mas um só verbo. Por conseguinte, ainda que cada um expresse a si mesmo e todos se expressem mutuamente, todavia, é impossível que, na essência suprema, se encontre outro verbo além daquele que, como já foi demonstrado, é o verbo da sabedoria, da qual ele procede de tal maneira que pode ser dito imagem verdadeira e filho verdadeiro. E nisto eu vejo algo de admirável e de inefável porque, enquanto é manifesto que cada um deles, isto é, o pai, o filho e o espírito deles, expressa a si mesmo e aos outros dois, entretanto, não há certamente senão um verbo só, que, por sua vez, não pode ser dito, de maneira nenhuma, o verbo de todos os três, mas o verbo apenas de um deles. É certo, pois, que ele é a imagem e o filho daquele do qual é verbo, e é manifesto que ele não pode ser dito convenientemente nem imagem nem filho de si mesmo, nem do espírito que procede dele, porque não nasce nem de si mesmo, nem daquele que procede dele, nem imita a imagem de si mesmo, nem daquele que procede da sua existência. Não imita certamente a si mesmo e não pode dar-se uma existência semelhante a si mesmo, porque a imitação e a semelhança não dizem respeito a uma só coisa, mas implicam várias. Também não imita o espírito, nem existe à semelhança deste, porque não recebe a existência do espírito que, ao contrário, procede dele. Resta, portanto, concluir que este único verbo é verbo somente daquele do qual recebe, por nascimento, a existência e que existe como sua perfeita imagem. Logo, na essência suprema há um único pai e não muitos pais, um único filho e não muitos filhos, um único espírito e não muitos espíritos. E eles são três de tal maneira distintos entre si que nunca o pai pode ser o filho ou o espírito; nem o espírito do pai e do filho pode ser o pai ou o filho. E, apesar de cada um deles, individualmente, ser tão perfeito que não lhe falta nada, entretanto, aquilo que eles são é de tal forma uno, que, assim como não pode ser referido no plural para cada um deles, assim também não pode sê-lo para os três em conjunto. Embora cada qual, individualmente, expresse a si mesmo e rodos expressem, reciprocamente, a si mesmos, nem por isto há na substância suprema três verbos, mas um só, que não é o verbo individual de cada um, ou dos três unidos, mas de um só. CAPITULO LXIV Ainda que inexplicável, deve-se acreditar nesta conclusão. A mim parece que o mistério desta coisa tão sublime transcenda todo o alcance da inteligência humana e por isso julgo dever renunciar a qualquer esforço para explicar como possa acontecer. Com efeito, creio que, para quem investiga uma coisa incompreensível, deva ser suficiente alcançar, mediante a razão, o conhecimento da existência certíssima dela, ainda que não consiga penetrar com a inteligência como ela existe. Nem por isso, entretanto, deve-se acreditar menos firmemente naquelas coisas que são demonstradas com provas necessárias e sem nenhuma razão contrária, embora não permitam serem explicadas, pela impossibilidade de compreendê-las, devido à sua elevação natural. De fato, o que poderia haver de mais incompreensível e de mais inefável que aquilo que está acima de todas as coisas? Por conseguinte, se tudo o que discutimos até aqui a respeito da essência suprema foi afirmado com argumentos válidos, ainda que não seja possível penetrar além com a inteligência, de maneira que se possa explicar, também, com palavras, nem por isto, todavia, afrouxa-se a solidez da certeza deles. Com efeito, se uma consideração, anteriormente feita, deixou-nos compreender, com apoio na razão, que é incompreensível como a sabedoria suprema conheça todas as coisas que faz — das quais é necessário que conheçamos muitas —, então, quem poderia explicar como ela tem conhecimento de si mesma e expressa a si mesma, se o homem nada ou quase nada pode saber sobre ela? Se, portanto, naquilo que ela expressa a si mesma, o pai engendra e o pai é engendrado, quem poderá descrever a sua geração? CAPITULO LXV Como conseguimos alcançar, pela discussão, a verdade sobre uma coisa inefável. Se, doutro lado, essa é a razão daquela inefabilidade, aliás, por ser justamente essa, então, de que maneira poderá estar certo tudo aquilo que foi disputado sobre a substância suprema, segundo as várias relações entre o pai, o filho e o espírito que procede deles? Com efeito, se tudo isto foi esclarecido com argumentos válidos, como será possível afirmar que ela é inefável? Ou, se é inefável, então, de que modo ela poderá ser como a descrevemos? Ou, quiçá, porque só foi possível explicá-la até certo ponto, e por esta razão nada impede que seja verdadeiro o que foi disputado, porque não se conseguiu explicá-la completamente, será ela por isso inefável? Porém, o que podemos responder àquilo que ficou estabelecido anteriormente nesta discussão, isto é, que a essência suprema está de tal maneira acima e fora de todas as coisas, que quando se afirma algo a seu respeito com palavras que expressam comumente as outras naturezas, o significado delas não pode ser, de maneira nenhuma, o mesmo? E que outro significado teria dado eu a estas palavras que pensei, senão aquele comum e costumeiro? Consequentemente, se o significado usual das palavras é-lhe estranho, tudo aquilo que a razão nos permitiu discutir sobre ela não lhe diz respeito. Mas, então, como poderíamos ter encontrado algo de verdadeiro acerca da essência suprema, se aquilo que averiguamos é tão diferente dela? Como? Será que, de uma coisa incompreensível, sob certo aspecto descobrimos algo e, sob outro, não conseguimos conhecer nada? Na verdade, frequentemente dizemos muitas coisas sem expressá-las da maneira como elas são, mas sim debaixo de um véu, como quando falamos por enigmas. E muitas outras vezes vemos as coisas não propriamente como elas são, mas por meio de semelhança e imagem, como quando olhamos o rosto de alguém num espelho. Desta forma dizemos e não dizemos, vemos e não vemos a mesma coisa, porque a expressamos e vemos per aliud, isto é, através de algo que não é exatamente ela, e não através da sua mesma propriedade. Desse raciocínio podemos deduzir que aquilo que dissemos está certo e que, ao mesmo tempo, a natureza suprema permanece inefável, desde que não se pense, todavia, que expressamos o caráter próprio da sua essência, e sim que foi significada per aliud, por meio de outra coisa. Por conseguinte, quaisquer que sejam os nomes com que se designe esta natureza, nenhum a mostra a mim pela sua propriedade, mas, ao contrário, indica-a por meio de uma semelhança. Na verdade, quando reflito sobre o significado das palavras, sou levado a pensar mais naquilo que vejo nas coisas criadas do que naquilo que sei que transcende o alcance da inteligência humana. As palavras, pois, através do seu significado, colocam na minha mente algo que é muito menor e bastante diferente daquilo que a minha mente se esforça para compreender debaixo do significado delas, tênue e imperfeito. Assim, nem o nome sabedoria é suficiente para expressar aquele ser pelo qual todas as coisas foram feitas do nada e pelo qual se conservam, nem o nome essência é suficiente para expressar a mim aquilo que, por sua extraordinária elevação, está acima de todas as coisas e, por sua propriedade natural, está imensamente fora de todas as coisas. Assim, portanto, aquela natureza é inefável porque, de maneira nenhuma, vale tentar significá-la como ela verdadeiramente é, com as palavras. Doutro lado, entretanto, não é falso aquilo que pudemos descobrir com os dados da razão, apesar de estar escondido como num enigma. CAPITULO LXVI Que é possível chegar ao conhecimento da essência suprema máxime pelo conhecimento racional. Sendo, portanto, evidente que nada, dessa natureza, pode ser conhecido através daquilo que lhe é próprio, mas per aliud, por outro meio, é certo que é mais fácil chegar ao conhecimento dela através daquilo que lhe é mais próximo por semelhança. Com efeito, tudo aquilo que entre as coisas criadas consta ser mais parecido com ela, é necessário que seja, por sua natureza, superior. Consequentemente, por sua semelhança maior, a mente pode aproximar-se mais da verdade suprema e, pela sua essência, criada superior, ela julga melhor o que deve pensar acerca da essência criadora. Sem dúvida, a essência criadora é tanto mais profundamente conhecida quando se indaga através de uma criatura que lhe é mais próxima. Pelas conclusões que deduzimos acima a razão não permite duvidar sobre o fato de que toda essência, enquanto existe, é semelhante à essência suprema. Evidencia-se assim que, como entre todas as criaturas a mente racional é a única que pode elevar-se até a investigação da essência suprema, assim também ela é a única que pode dirigir-se, com grande eficiência, ao conhecimento da mesma. Já averiguamos, pois, que a mente se aproxima muito dela pela semelhança de sua essência natural. Haverá, então, consequência mais clara que aquela de que a mente racional, quanto mais diligentemente se esforçar em conhecer a si mesma, com tanto maior eficiência se elevará ao conhecimento da essência suprema? E que quanto mais deixar de conhecer a si mesma, tanto mais se afastará do conhecimento dela? CAPITULO LXVII Que a mente humana é o espelho e a imagem da essência suprema. Pode-se, portanto, afirmar com bastante propriedade que a mente humana é como o espelho em que se reflete, por assim dizer, a imagem da essência suprema, que a mente não pode ver cara a cara. Com efeito, se entre todas as coisas que foram criadas só a mente pode recordar-se de si mesma, ser inteligente e amar, não vejo como se possa negar que existe verdadeiramente nela a imagem daquela essência suprema que — mediante a memória de si, a inteligência e o amor — constitui uma trindade inefável. Mas ainda mais se mostra como imagem dela porque pode ter memória da essência suprema, compreendê-la e amá-la. Com efeito, reconhecemos que ela é a mais verdadeira imagem da essência suprema justamente por aquilo que possui de maior e de mais semelhante com esta. E não resta dúvida que não é possível pensar que tenha sido dado pela natureza à criatura racional algo mais excelente e mais semelhante à essência suprema do que a faculdade de poder recordar, compreender e amar aquilo que é o ser melhor e maior entre todas as coisas. Por conseguinte, nenhuma outra coisa que apresente, em tão alto grau, a imagem do criador foi concedida à criatura. CAPITULO LXVIII Que a criatura racional foi feita para amar a essência suprema. Disto parece decorrer que a criatura racional não deve ter outro desejo maior do que o de expressar, por um efeito voluntário, essa imagem que foi impressa nela pelo poder natural. Na verdade, independentemente do fato que deve a quem a criou tudo aquilo que ela é, compreende-se também que a sua finalidade precípua é a de recordar, entender e amar o bem supremo e, sem dúvida, pode-se demonstrar que nada além disto ela deve querer com maior desejo. Quem, pois, negará que devemos sobretudo querer aquilo que podemos de melhor? Igualmente, para uma natureza racional, a propriedade da racionalidade outra coisa não é senão poder discernir o justo do não justo, o verdadeiro do não verdadeiro, o bom do não bom, o melhor do pior. Mas este poder seria para ela completamente inútil e supérfluo se não amasse ou rechaçasse aquilo que distingue, segundo um juízo de verdadeiro discernimento. Disto parece decorrer, com suficiente evidência, que todo ser racional foi criado com a finalidade de amar mais ou de amar menos ou de repelir as coisas, segundo as julgue, pelo discernimento racional, melhores ou piores ou completamente más. Nada, portanto, fica mais evidenciado do que a criatura racional tenha sido feita para amar acima de todas as coisas a essência suprema, que é o bem supremo; aliás, para que nada ame a não ser a ela, ou por causa dela, porque ela é boa por si, e nada há que seja bom a não ser por ela. Porém, não poderá amá-la se não se esforça para recordar-se dela e para compreendê-la. Fica claro, então, que a criatura racional deve colocar todo o seu poder e querer para recordar, compreender e amar o bem supremo, finalidade para a qual ela reconhece ter recebido a sua existência. CAPITULO LXIX Que a alma humana ao amar a essência suprema vive verdadeira e felizmente. Não há dúvida que a alma humana é uma criatura racional e, portanto, foi feita para amar a essência suprema. Assim a alternativa é esta: ou deve amar sem fim, ou perder, um dia, esse amor voluntariamente ou por força. Mas seria uma perversidade pensar que a sabedoria suprema tenha feito a alma para que um dia despreze um tão grande bem ou, embora queira conservá-lo, esteja obrigada a perdê-lo por alguma violência. Resta, portanto, acreditar que foi feita para amar, sem fim, a essência suprema. Mas a alma não pode alcançar esse objetivo, a não ser que viva sempre. Assim, pois, foi criada para viver sempre, desde que queira cumprir sempre aquilo para que foi criada. Igualmente, é demasiadamente contrário à natureza do criador onipotente, sumamente bom e sumamente sábio, não permitir a uma criatura que ele criou para que o amasse que não viva, enquanto for verdadeiramente amado por ela; ou, depois de conceder-lhe espontaneamente que o ame sempre, abandoná-la se ela o ama; ou, finalmente, deixar que desapareça dela o amor, de maneira que não possa mais necessariamente amá-lo: é impossível, pois, duvidar que a essência suprema ame a todo ser pelo qual é amada. Disto se deduz, manifestamente, que nunca a alma humana será privada de sua vida se se esforçar em amar a vida suprema. Mas, de que tipo será essa vida? O que haveria de grande numa vida longa senão que ela esteja verdadeiramente livre de toda espécie de moléstias? Com efeito, aquele que, enquanto vive, subjace a moléstias, quer porque as sofre, quer porque as receia ou é enganado por uma falsa segurança, acaso não vive miseramente? Entretanto aquele que está livre de tudo isso vive feliz. Mas é completamente absurdo que, amando sempre àquele que é sumamente bom e onipotente, se possa viver sempre miseramente. É evidente, portanto, que a alma humana é de tal natureza que, se perseverar nos objetivos para os quais foi feita, um dia ela haverá de viver felizmente, de verdade: livre da própria morte e de toda outra moléstia. CAPITULO LXX Que a essência suprema dá-se a si mesma àquele que a ama. Finalmente, de forma alguma pode parecer verdadeiro que aquele que é justíssimo e potentíssimo não deva conceder nenhuma recompensa a quem o ama com perseverança, visto que concedeu a ele, que não podia amar a existência, para que pudesse amá-lo. Se, realmente, não recompensasse com nada a quem o ama, ele, que é justíssimo, não faria distinção entre quem o ama e quem despreza aquilo que, ao contrário, deve amar acima de tudo; nem amaria a quem o ama; nem valeria a pena ser amado por ele. Suposições estas, porém, que estão em desacordo com ele, e, portanto, deve-se concluir que recompensa quem persevera em amá-lo. Mas em que consiste essa recompensa? Se a quem não era nada ele deu uma existência racional para que se tornasse capaz de amar, qual outra recompensa concederá a quem o ama, senão a de não cessar de amar? Se o dom que tornou possível amar já é tão grande, como não haverá de ser grande aquilo que é dado como recompensa pelo amor? E se essa é a base em que se apoia o amor, qual não haverá de ser o salário do amor? Se, pois, a criatura racional, que é um ser perfeitamente inútil para si mesmo sem este amor, está tão acima de todas as criaturas, o prêmio deste seu amor não poderá ser senão algo que está acima de toda criatura. Com efeito, este mesmo bem, que exige ser amado assim, obriga aquele que o ama a desejá-lo com ardor não menor. Por acaso alguém ama a justiça, a verdade, a felicidade, a incorruptibilidade, sem desejar a sua posse? E que outra coisa a bondade suprema poderá dar a quem a ama e a deseja, se não si mesma? Se ela, pois, desse qualquer outra coisa, na verdade não recompensaria convenientemente, porque não retribuiria o amor, nem consolaria quem a ama, nem saciaria aquele que a deseja. Se ela quisesse ser amada e desejada para, depois, recompensar com uma coisa diferente dela mesma, então deixaria de querer ser amada e desejada por si mesma, mas por outra coisa, e quereria que se amasse não a ela, mas a outra coisa, o que não se pode nem pensar. Consequentemente nada há mais certo do que isto: toda alma racional que se esforça, como e quanto deve, para desejar a bem-aventurança suprema, com seu amor, um dia chegará a fruir dela e a contemplará não como a vê agora, como que através de um espelho e debaixo de um véu, mas cara a cara. E seria uma grande tolice recear que essa fruição tenha fim, quando, ao fruir dela a alma não poderá sofrer inquietude por temores, nem ser decepcionada por uma segurança falaz; e, por ter já experimentado a sua falta, não poderá não amá-la, nem ela poderá abandonar a alma que a ama, nem haverá nada bastante poderoso que separe uma da outra, contra a sua vontade. Por isso, toda alma que tenha começado a fruir, uma só vez, desta bem-aventurança, viverá feliz eternamente. CAPITULO LXXI Que a alma, desprezando o bem supremo, vive eternamente infeliz. De tudo o que foi dito se deduz que a alma que despreza o amor do bem supremo incorre na infelicidade eterna. Com efeito, se alguém diz que, por este desprezo, seria muito justo que ela fosse castigada com a perda do ser e da vida porque não os usou para alcançar o fim a que estava destinada, [dever-se-ia responder que] a razão não admite que, depois de tão grande falta, ela simplesmente recebesse, como castigo, voltar a ser aquilo que era antes de qualquer culpa. Antes que ela existisse, certamente não podia nem cometer faltas nem sofrer castigo. Se, portanto, a alma, por desprezar aquilo para que foi criada, morresse de modo a não sentir mais nada ou a ser reduzida completamente a nada, encontrar-se-ia em condições idênticas depois e antes de cometer uma culpa, e a justiça sumamente sábia não colocaria nenhuma diferença entre aquilo que não pode nenhum bem e não quer nenhum mal, e aquilo que pode o máximo bem e quer o máximo mal. Mas, quanto isto seja impróprio, já o temos demonstrado suficientemente. Por conseguinte, nada parece ser mais consequente, e nada se deve acreditar com maior firmeza do que o seguinte: a alma humana está feita de tal maneira que, se despreza amar a essência suprema, sofrerá a infelicidade eterna. E, assim como a alma que ama gozará de um prêmio eterno, igualmente, a alma que despreza esse amor padecerá uma pena eterna; e assim como aquela sentirá uma satisfação inalterada, assim esta experimentará uma privação inconsolável. CAPITULO LXXII Que toda alma humana é imortal. Entretanto, nenhuma alma que ama seria necessariamente feliz e nenhuma alma que despreza este amor seria eternamente infeliz, se a alma fosse mortal. Quer ela ame, quer despreze a finalidade para a qual foi criada, que é a de amar a essência suprema, é necessário que ela seja imortal. Mas, então, que haveremos de pensar a respeito das almas que podemos julgar incapazes de amar ou de desprezar, como é o caso daquelas das crianças? São mortais ou imortais? Não resta dúvida que todas as almas humanas são da mesma natureza: e, como temos certeza que algumas são imortais, deve-se concluir que todas as almas humanas são imortais. Mas, como todo ser vivo algum dia, ou nunca, estará verdadeiramente livre de toda moléstia, é necessário admitir que toda alma humana será ou infeliz para sempre, ou, algum dia, realmente feliz para sempre. CAPITULO LXXIII Que nenhuma alma é privada, injustamente, do bem supremo; e como há de ser feito todo esforço, continuamente, para chegar a ele. Julgo realmente muito difícil, para não dizer impossível, que algum mortal possa chegar a compreender, através de uma simples discussão, quais almas devam ser consideradas que amaram em tal grau o ser para o qual foram criadas, até merecerem, algum dia, a felicidade de fruí-lo; quais outras, ao contrário, desprezaram-no até merecer ficar afastadas dele para sempre; e como, ou por que mérito, almas que não parecem suscetíveis nem deste amor nem deste afastamento ficarão divididas entre a felicidade eterna e a eterna miséria. Entretanto, devemos acreditar, com a máxima certeza, que o criador de todas as coisas, sumamente justo e bom, não privará injustamente nenhuma criatura daquele bem para o qual foi feita; e é dever de todo homem esforçar-se, de todo o coração, toda a alma e toda a mente, para alcançar, através do amor e do desejo, esse bem supremo. CAPITULO LXXIV Que devemos esperar alcançar a essência suprema. A alma humana, porém, não poderá esforçar-se em alcançar este fim se não tiver a esperança de poder conseguir aquilo que busca. Por isso, se é útil todo esforço para que ela possa atingir esse fim, não menos necessária se lhe faz a esperança de alcançá-lo. CAPÍTULO LXXV Que se deve crer nela. Mas a alma humana não pode amar ou esperar aquilo em que não crê. Torna-se, pois, conveniente para ela crer na essência suprema e naquelas coisas sem as quais esta não pode ser amada, para que, crendo, possa tender para ela. Penso que isto possa ser expressado convenientemente e com maior brevidade se, ao invés de dizer "crendo, possa tender para a essência suprema", dissesse simplesmente "crer na essência suprema". Pois, aquele que diz que crê em ela parece mostrar bastante bem e simultaneamente que tende para a essência suprema pela fé que professa, e que crê, também, em tudo aquilo que guarda certa intenção com o fim que persegue. Com efeito, não podem ser considerados como crentes nela nem quem crê naquilo que não diz respeito ao tender para ela nem quem não tende para ela, devido àquilo em que crê. E talvez se possa dizer indiferentemente crer em ela e crer a ela, assim como usar as duas expressões tender em ela e para ela, num mesmo sentido, porque quem chegou a ela, após tender para ela, não ficará fora dela, mas permanecerá nela. Fato este que se indica com expressividade e compreensão maiores se se disser que deve tender em ela, antes que para ela. Pelo mesmo motivo, julgo mais conveniente dizer que se deve crer nela do que se deve crer a ela. CAPITULO LXXVI Que se deve crer no pai, no filho e no espírito: em cada um deles em particular e nos três conjuntamente. Devemos, portanto, crer de igual modo no pai e no filho e em seu espírito, quer em cada um deles em particular, quer nos três conjuntamente, porque cada um deles em particular: pai, filho e espírito, é a essência suprema e, ao mesmo tempo, os três: pai, filho e espírito, conjuntamente, são uma única e mesma essência suprema na qual todo homem deve crer por ser o único fim que o nosso amor há de propor-se em todos os seus atos e pensamentos. Donde, evidentemente, se deduz que, assim como ninguém pode tender a permanecer nela, se não crê, assim de nada serve crer nela, se não tendermos a permanecer nela. CAPITULO LXXVII O que é fé viva e o que é fé morta. Por este motivo, qualquer que seja a certeza com que se crê numa coisa tão grande, a fé será inútil e como morta, se o amor não lhe imprime força e vida. De fato, a fé que está acompanhada adequadamente pelo amor, ao oferecer-se a oportunidade de agir, não fica inoperante; ao contrário, exercita-se com maior frequência em obras que não poderia fazer sem o amor, e a prova disto se encontra já no fato de que quem ama a justiça suprema não consegue desprezar o que é justo nem admitir algo que seja injusto. Portanto, como tudo o que opera alguma coisa mostra que tem vida, pois sem vida não é possível operar, não é absurdo afirmar que a fé operosa vive porque tem a vida do amor, sem a qual não operaria, e que a fé inoperante não vive porque carece da vida do amor, que a tiraria da ociosidade. Se, com justa razão, chamamos de cego não apenas a quem perdeu a visão, mas também a quem nunca a teve, embora a devesse ter, então por que não poderíamos chamar, igualmente de morta a fé que carece do amor? Isto não porque ela perdeu a sua vida, vale dizer o amor, mas porque não tem aquilo que sempre deve ter. Por isso, portanto, assim como a que opera pelo amor revela-se viva, assim aquela que, por falta de interesse, permanece inativa, revela-se morta. Consequentemente, pode-se afirmar, com bastante conveniência, que a fé viva consiste em crer naquilo em que se deve crer; e que, ao contrário, a fé morta é crer somente aquilo que se deve crer. CAPÍTULO LXXVIII Como a essência suprema, de certo modo, pode ser chamada de trina. Depreende-se com bastante clareza como seja conveniente para todo homem crer numa inefável unidade trina e numa trindade una: una e unidade, por causa da essência única; trina e trindade, por causa dos três elementos aos quais não sei como chamar. Embora eu pudesse dizer trindade por causa do pai, do filho e do espírito que procede de ambos, pois são três, entretanto não consigo encontrar uma palavra única que expresse por que eles são três, assim como se dissesse trindade por causa de serem três pessoas, ou unidade por causa da sua substância única. Na verdade, não devem ser considerados três pessoas, porque muitas e diferentes pessoas subsistem tão separadamente uma da outra, que se torna necessário corresponder-lhes um número de substâncias igual ao das pessoas, como se vê entre os homens, onde constatamos haver correspondência entre substâncias individuais e pessoas. Por isso, não havendo, na essência suprema, várias substâncias, também não pode existir pluralidade de pessoas. Se alguém, portanto, desejar explicar a outro o que são esses três, os indicará dizendo: pai, filho e espírito que procede de ambos, a menos que, pela falta de um nome justo e adequado, não se veja na obrigação de escolher outro termo, entre aqueles que não podem adaptar-se, no plural, à essência divina para expressar, embora de maneira imperfeita, o que não pode ser significado por um nome totalmente próprio. Assim, dessa admirável trindade, dir-se-á que é uma única essência ou natureza e três pessoas ou substâncias. Estes dois últimos nomes são mais adequados para designar a pluralidade na essência suprema, pois a palavra pessoa indica a natureza individual racional, e substância diz-se dos indivíduos que subsistem principalmente na pluralidade. Com efeito, os indivíduos estão sujeitos, ou submetidos, aos acidentes e, por isso, lhes convém, com maior propriedade, o nome de substância. Mas, como já vimos acima, ficou demonstrado que a essência suprema, não estando sujeita a nenhum acidente, não pode ser chamada de substância, a não ser que por substância se entenda essência. Devido a esta necessidade, pode-se dizer sem temor que a essência suprema é a trindade una e suprema, ou a essência única e três pessoas ou três substâncias. CAPÍTULO LXXIX Que a essência suprema domina e governa todas as coisas e que somente ela é Deus. Portanto, parece, ou melhor, é incontestável que aquilo que chamamos de deus é um ser real e que, com o nome de deus, indica-se com toda a propriedade essa única essência suprema. Na verdade, quem fala o nome deus, quer o suponha único ou vários, não entende senão uma substância que ele julga, por sua grande dignidade, acima de toda natureza que não seja a de Deus mesmo. Substância que os homens devem venerar, e para a qual devem dirigir suas orações em todas as suas necessidades prementes. Mas, haverá outra coisa que mereça maior veneração pela sua dignidade e deva receber, em qualquer necessidade, as nossas orações do que um espírito sumamente bom e poderoso que domina e governa todas as coisas? Desde que, como já vimos, ele fez todas as coisas e as conserva pela sua onipotência sumamente boa e sábia, seria absurdo pensar que não exerça o seu domínio sobre aquilo que criou, ou que as coisas, depois de terem sido criadas por ele, fossem abandonadas ao governo de um ser menos poderoso, menos sábio e pior do que ele; ou que, na ausência de toda inteligência, fossem dirigidas unicamente pela caótica volubilidade do acaso, quando, ao contrário, ele é o único por quem veio toda espécie de bem para todas as coisas e sem ele o bem não existiria; e, finalmente, dele, por ele e nele todas as coisas existem. Como, portanto, ele não apenas é o único criador cheio de bondade, mas, também, o senhor onipotente e o governador sapientíssimo de todas as coisas, resulta com certeza que ele é, igualmente, o único a quem todas as outras naturezas devem venerar, amando-o com todas as suas forças, e que devem amar com veneração. Somente dele é que devemos esperar todo o bem; a ele somente dirigir-nos nas adversidades e a ele somente elevar as nossas orações, qualquer que seja a necessidade. Na verdade, ele não somente é Deus, mas o único deus, inefavelmente trino e uno.