Pedro Abelardo – Lógica Para Principiantes COMEÇAM AS GLOSAS DO MESTRE PEDRO ABELARDO SOBRE PORFÍRIO. Para aqueles dentre nós que se iniciam no estudo da lógica digamos algumas palavras sobre as suas propriedades, e comecemos por tratar do gênero a que ela pertence, ou seja, a filosofia. Boécio não denomina qualquer ciência filosofia, mas só aquela que consiste no estudo das coisas mais elevadas. De fato, não damos o nome de filósofos a quaisquer estudiosos, mas apenas aos sábios cuja inteligência se aprofunda na consideração das questões mais sutis. Boécio distingue três espécies de filosofia, isto é, a especulativa, que investiga a natureza das coisas; a moral, que considera a questão da vida honesta; e a racional, denominada lógica pelos gregos e que trata da argumentação. Alguns autores, entretanto, separam a lógica da filosofia com afirmar que ela constitui mais um instrumento, de acordo com Boécio, do que uma parte da ciência filosófica, uma vez que todas as outras disciplinas dela se utilizam de alguma forma, quando usam os seus argumentos para fazerem as próprias demonstrações. Quer se trate de uma investigação sobre o mundo físico, quer de um assunto moral, os argumentos procedem da lógica. O próprio Boécio rebate essa opinião com afirmar que nada impede a lógica de ser, ao mesmo tempo, instrumento e parte da filosofia, tal como a mão é, ao mesmo tempo, instrumento e parte do corpo humano. Às vezes, a própria lógica parece ser instrumento de si mesma, quando demonstra com os seus argumentos uma questão pertencente à sua área, como, por exemplo, a seguinte: o homem é uma espécie do gênero animal. Contudo, nem por isso ela é menos lógica, ao servir de instrumento da lógica. Assim, também, ela não é menos filosófica por ser instrumento da filosofia. O próprio Boécio também a distingue das duas outras espécies de filosofia pelo seu fim próprio que consiste em compor argumentações. Ainda que o filósofo da natureza componha argumentações, não é a filosofia natural que o instrui quanto a isso, mas apenas a lógica. Por essa razão lembra, ainda, Boécio, a respeito da lógica, que ela foi organizada e reduzida a certas regras das argumentações, para que não arrastasse ao erro aqueles que são excessivamente vacilantes devido aos falsos raciocínios, quando pareça construído com os seus argumentos o que não se acha na natureza das coisas, e quando, às vezes, se inferem coisas que são contrárias nas suas condições, como neste caso: Sócrates é corpo; ora, o corpo é branco; logo, Sócrates é branco. Ou de outro modo: Sócrates é corpo; ora, o corpo é preto; logo, Sócrates é preto. Na redação de um tratado de lógica impõe-se necessariamente certa ordem no tratamento dos assuntos, pois, uma vez que as argumentações se compõem de proposições, e já que estas são formadas por termos, quem escreve uma obra completa de lógica precisa primeiramente tratar dos simples termos, depois, das proposições e, por fim, coroar o seu estudo com o exame das argumentações, tal como o fez o nosso príncipe Aristóteles, que escreveu as Categorias sobre a doutrina dos termos, o Peri Hermeneias sobre as proposições, e os Tópicos e os Analíticos sobre as argumentações. Esta obra de Porfírio, conforme o esclarece a indicação do título, constitui uma introdução às Categorias de Aristóteles, mas, como o próprio autor demonstra posteriormente, ela é necessária para toda a arte da lógica. Passaremos a examinar agora, de modo breve e preciso, a intenção do autor, a matéria de que trata, o método seguido, a utilidade do estudo, e a parte da dialética à qual se subordina esta ciência. A intenção é principalmente instruir o leitor nas Categorias de Aristóteles, de tal modo que ele se torne capaz de compreender mais facilmente as coisas que são aí tratadas. Por isso, passa a examinar os cinco temas que constituem a sua matéria, a saber, o gênero, a espécie, a diferença, o próprio e o acidente, pois julgou útil o conhecimento dessas noções para as Categorias, uma vez que a respeito delas se discute em quase todo o curso das Categorias. Essas noções que dissemos ser em número de cinco, e que se denominam gênero, espécie, etc., podem ser referidas, de certo modo, às coisas por elas significadas. Ele explica convenientemente o significado desses cinco nomes de que se serve Aristóteles, para que, ao se chegar às Categorias, não se ignore o que deve ser entendido por esses nomes. Pode-se, também, lidar com todos os significados desses nomes como se fossem cinco porque, embora possam ser tomados individualmente como infinitos — pois existem, com efeito, infinitos gêneros, assim como espécies, etc. —, entretanto, como se disse, todos são considerados como cinco noções, uma vez que todas as coisas são tomadas de acordo com as cinco propriedades: todos os gêneros segundo o que constitui os gêneros, e assim para os outros. É da mesma forma que as oito partes da oração são consideradas segundo oito das suas características, embora sejam infinitas quando tomadas individualmente. O método seguido no tratamento do assunto consiste em examinar em separado, primeiramente, cada uma das noções nos seus diferentes aspectos, passando-se, depois, a um conhecimento maior delas por meio da consideração das suas propriedades e dos seus caracteres comuns. A utilidade da obra, como ensina o próprio Boécio, é principalmente contribuir para o conhecimento das Categorias. Mas ela se exprime de quatro formas, como o demonstraremos mais adiante, com o maior empenho, quando o próprio autor tratar do assunto. Realmente, percebe-se de imediato a razão pela qual o presente estudo pertence à lógica, se, de início, distinguirmos diligentemente as partes dessa ciência. De acordo com Cícero e Boécio, a lógica se compõe de duas partes, a saber, a ciência de descobrir argumentos e a de julgá-los, isto é, de confirmar e comprovar os argumentos descobertos. De fato, duas coisas são necessárias a quem argumenta. Primeiro, que encontre os argumentos por meio dos quais possa convencer e, depois, que saiba confirmá-los, se alguém os atacar, afirmando que são defeituosos ou insuficientemente firmes. Daí ensinar Cícero que a descoberta é, por natureza, a primeira parte. Esta ciência das Categorias interessa às duas partes da lógica mas, principalmente, à descoberta. Ela própria, aliás, é uma parte da ciência da descoberta. Com efeito, como se poderia deduzir um argumento de um gênero, de uma espécie ou de outras categorias, a menos que estas aqui tratadas fossem conhecidas? Donde o próprio Aristóteles introduzir a definição delas na sua obra sobre os Tópicos, quando trata dos seus "lugares", como o faz Cícero na sua obra homônima. Mas por isso que o argumento se confirma com as próprias razões das quais foi tirado, esta ciência está relacionada com o juízo. Assim como se tira um argumento da natureza do gênero ou da espécie, assim a partir dela mesma se confirma o argumento extraído. Ao se considerar, por exemplo, quanto a natureza da espécie no homem pertença ao gênero animal, descobre-se imediatamente nela o argumento para provar que o homem é um animal. Se alguém criticar o argumento, mostro imediatamente que ele é procedente, indicando em ambos a natureza da espécie ou do gênero, a fim de que, a partir das mesmas relações desses termos, se encontre o argumento e se confirme o que foi descoberto. Existem, todavia, alguns que separam completamente da descoberta e do juízo esta ciência das categorias, das divisões e das definições, como também a das proposições e que, de maneira alguma, as admitem entre as partes da lógica, uma vez que as julgam necessárias para toda a lógica. Aos que assim pensam, parecem ser contrárias tanto a autoridade quanto a razão. De fato, Boécio, nos seus Comentários sobre os Tópicos de Cícero, estabelece uma dupla divisão da dialética em que as duas partes se incluem reciprocamente, de tal modo que cada uma delas abrange toda a dialética. A primeira parte equivale à ciência da descoberta e do juízo, enquanto a segunda constitui a ciência da divisão, da definição e da dedução. Ele também as reduz uma a outra de tal modo que na ciência da descoberta, que é um membro da primeira parte da divisão, também inclui a ciência de dividir ou de definir, devido aos argumentos serem deduzidos tanto das divisões quanto das definições. Daí que a ciência do gênero e da espécie ou das outras noções se acomode, por igual razão, à ciência da descoberta. O próprio Boécio afirma, ainda, que o tratado sobre as Categorias apresenta-se em primeiro lugar entre os livros de Aristóteles para os que se iniciam no estudo da lógica. Disso resulta com evidência que as Categorias não se separam da lógica, pois nelas se depara ao leitor uma introdução à lógica, principalmente porque a distinção das categorias proporciona grandes recursos para a argumentação e uma vez que por meio dela se consegue estabelecer de que natureza cada coisa seja ou não seja. A propriedade das proposições também está igualmente relacionada com a dos argumentos, ao se demonstrar que ora esta, ora aquela proposição é contrária ou contraditória ou oposta de qualquer outra maneira. Portanto, desde que todos os tratados da lógica convergem para o seu fim, que é a argumentação, nenhuma dessas ciências ou tratados deve ser separada da lógica. Terminadas estas considerações preliminares, iniciemos o comentário literal. Uma vez que é necessário, para aprender o que é a doutrina de Aristóteles, saber o que é o gênero, o que é a diferença, o que é a espécie, o que é o próprio e o que é o acidente, etc. Primeiramente, o autor apresenta uma introdução ao assunto sobre o qual vai escrever, na qual indica a matéria de que vai tratar, a utilidade da obra e promete escrever de modo introdutório, conforme o que os filósofos julgaram retamente dessas coisas. O termo "necessário" costuma ser tomado em três acepções, pois às vezes ele é usado com o sentido de "inevitável", como nesta frase: "é necessário que a substância não seja qualidade"; às vezes significa "útil", como quando se diz: "é necessário ir ao fórum"; e, às vezes, significa "determinado", como na sentença; "é necessário que o homem morra algum dia". Na verdade, os dois primeiros significados de necessário são de tal sorte que parecem combater-se um ao outro para decidir qual deles possa ser tomado aqui de modo mais conveniente. Pois é de suma necessidade conhecer de antemão essas coisas, para que se possa chegar até às outras questões, uma vez que estas últimas não podem ser conhecidas sem aquelas, donde se colhe a utilidade desse estudo. Se alguém, entretanto, considerar cuidadosamente o texto, julgará ser mais conveniente dizer útil do que inevitável. Quando Porfírio faz a suposição da coisa da qual ele diz que algo é necessário, como que projetando certa relação para alguma outra coisa, ele sugere a significação da utilidade. De fato, o útil sempre diz respeito à outra coisa, enquanto o inevitável se diz por causa de si mesmo. Construa-se, então, a frase de Boécio da seguinte maneira: "é necessário, isto é, útil, conhecer o que é o gênero", etc., isto é, quais as propriedades de cada noção, o que se revela nas suas definições, que não são, de fato, formuladas segundo a sua substância, mas conforme as suas propriedades acidentais, uma vez que o nome de gênero e das outras noções não designa substâncias mas acidentes. Daí tomarmos aquele termo "o que" mais de acordo com a propriedade do que com a substância. Para aprender... O autor apresenta quatro pontos nos quais ele mostra uma quádrupla utilidade, como observamos acima, a saber, as categorias, as definições, as divisões, as demonstrações, isto é, as argumentações que demonstram a questão proposta. O que, isto é, a ciência das categorias, de Aristóteles, ou seja, a que está contida no seu tratado. Pois um livro, às vezes, é designado pelo nome do seu autor como, por exemplo, Lucano. E que esse conhecimento é necessário para dar as definições, isto é, para impor e compor as definições. E, de modo geral, essas cinco noções também são úteis para tudo o que se refere à divisão e à demonstração, isto é, para a argumentação. E uma vez que é necessário, isto é, útil para tantas coisas conhecer essas noções, resolvi oferecer-te uma breve relação, isto é, um tratado, e tentarei em poucas palavras, como numa espécie de introdução, examinar o que disseram os antigos filósofos a respeito da consideração dessas coisas, isto é, a respeito dessas cinco noções e isso, digo, numa relação resumida, isto é, moderadamente breve. Ele explica isso de imediato com dizer breve relação e numa espécie de introdução. Com efeito, a excessiva brevidade poderia acarretar excessiva obscuridade, conforme o dito de Horácio: "Tento ser breve e torno-me obscuro". E, para que o leitor não fique desesperado devido à brevidade nem confundido pela prolixidade, o autor promete escrever a modo de uma introdução. Mas de que modo esta obra possa ser de valia tanto para as categorias como para os outros três assuntos, o próprio Boécio o estabelece de modo bastante cuidadoso, no que, entretanto, tocaremos apenas de leve. Mostremos, primeiramente, de que maneira cada um dos tratados das cinco noções convém às categorias. O conhecimento do gênero cabe às categorias, porque Aristóteles aí discrimina os dez gêneros supremos de todas as coisas que abrangem os infinitos significados dos nomes de todas as coisas e que não podem ser conhecidos como gêneros de outras coisas, a não ser que se saiba de antemão o que sejam os gêneros. O conhecimento da espécie também não está desligado das categorias, uma vez que sem ela não se pode conhecer o gênero e, desde que uma noção é relativa à outra, segue-se que a sua essência e o seu conhecimento têm mútuas relações. Daí ser necessário definir uma pela outra, conforme o atesta o próprio Porfírio. A diferença, também, que unida ao gênero completa a espécie, é necessária para distinguir a espécie tanto quanto para distinguir o gênero e, estabelecida a divisão deste último, é ela que revela o significado possuído pela espécie. Muitas coisas, ainda, são acrescentadas por Aristóteles na sua obra Categorias, onde trata dessas três noções de gênero, espécie e diferença, de tal forma que, se não forem conhecidas de antemão, as demais não podem ser compreendidas. Tal como no caso da regra: as coisas de gêneros diversos, etc. O conhecimento do próprio também serve de auxílio, uma vez que o mesmo Aristóteles indica as propriedades das categorias, ao dizer que a propriedade da substância é ser uma e a mesma em número, etc. Portanto, para que a natureza do próprio não fosse ignorada, era necessário que ela fosse antes explicada. Todavia, deve observar-se que Porfírio trata apenas dos próprios das espécies mais especiais, enquanto Aristóteles investiga as propriedades dos gêneros. Leve-se em conta, entretanto, que a natureza das propriedades destes (gêneros) manifesta-se pela semelhança com as daquelas (das espécies mais especiais), uma vez que os próprios dos gêneros se exprimem da mesma forma que as propriedades das espécies, isto é, que o próprio convém sempre apenas a uma espécie e só a ela. Mas quem duvida que o conhecimento do acidente pertença às categorias, já que nove entre as dez categorias são acidentes? Além disso, o próprio Aristóteles investiga com frequência e diligentemente as propriedades das coisas que existem no sujeito, isto é, as propriedades dos acidentes e a isso, principalmente, é consagrado o tratado do acidente. O conhecimento do acidente serve, ainda, para se distinguirem as noções de diferença e de próprio, que não seriam perfeitamente discernidas, se não se tivesse claro conhecimento do acidente. Passemos agora a demonstrar como essas cinco categorias servem para o conhecimento das definições. Com efeito, uma definição ou é substancial ou é uma descrição. A substancial é peculiar à espécie e recorre ao gênero e às diferenças; por isso, para o seu estudo concorrem os respectivos tratados do gênero, da diferença e da espécie. A descrição, por sua vez, é frequentemente tirada dos acidentes. Daí servir para ela, principalmente, o conhecimento do acidente. Mas o conhecimento do próprio é útil, em geral, para todas as definições que têm uma semelhança com ele, pelo fato de que elas, também, são convertíveis com o que é definido. Para as divisões, essas cinco categorias também são necessárias, uma vez que sem o conhecimento delas a divisão vem a ser feita mais por acaso do que pela razão. Isso pode ser comprovado quanto a cada tipo de divisão. Existem três espécies de divisão essencial, a saber, a divisão do gênero, a do todo e a da palavra; e existem, igualmente, três espécies de divisão acidental, isto é, quando o acidente é dividido em sujeitos ou os sujeitos em acidentes ou o acidente em acidentes. A divisão, porém, do gênero ora se faz em espécies, ora em diferenças aduzidas em lugar das espécies. Portanto, servem para fazer a divisão às noções de gênero, espécie e diferença, que também contribuem para a divisão do todo e a da palavra, que poderiam ser confundidas com a do gênero, se a. natureza do gênero não fosse conhecida de antemão, como, por exemplo, o gênero todo é predicado univocamente de cada uma das espécies, enquanto o todo não é predicado singularmente das suas partes componentes, e a palavra, que tem várias acepções, não convém univocamente às suas divisões. Por isso, os predicáveis também são muito úteis para a divisão do termo equívoco, justamente por serem úteis para as definições, uma vez que se sabe o que é ou não é equívoco, por meio de definições. Igualmente para a divisão de espécie acidental o conhecimento do acidente, pelo qual ela é constituída, é necessário, e os outros predicáveis também servem para distinguir esse tipo de divisão, pois, de outra sorte, dividiríamos o gênero em espécies ou diferenças, tal como dividimos o acidente em sujeitos. O conhecimento dos cinco predicáveis, como lembramos acima, serve evidentemente para descobrir, também, argumentações ou para confirmá-las, uma vez que tenham sido descobertas, pois descobrimos os argumentos e confirmamos essa descoberta, de acordo com a natureza do gênero, da espécie ou dos outros predicáveis. Boécio, porém, a esta altura, denomina-os cinco sedes dos silogismos, mas contra tal afirmação pode dizer-se que não aceitamos "lugares" no conjunto perfeito dos silogismos mas, certamente, aquele vocábulo especial foi usado abusivamente em vez do gênero, isto é, falando de silogismo em vez de argumentação, pois de outra sorte, Boécio diminuiria a utilidade dos predicáveis, se dirigisse tal conhecimento apenas para os silogismos e não, de modo geral, para todas as argumentações que Porfírio, semelhantemente, chama demonstrações. De certa forma, é possível atribuir, também, "lugares" às combinações perfeitas de silogismos, não porque pertençam aos silogismos por eles mesmos, mas porque também podem ser aduzidos como evidência dos silogismos, pelo fato de confirmarem os sentimentos que deles se deduzem. Agora, porém, uma vez estabelecidos estes pontos quanto à utilidade dos predicáveis, retornemos à explicação literal. Abstendo-me de tratar das questões mais profundas. Esclarece, ainda, Porfírio que conservará o caráter introdutório de sua obra, evitando o exame de questões árduas e envolvidas em obscuridade e considerando as mais simples de maneira comedida. Não é à toa que ele diz "de maneira comedida", porque uma coisa pode ser fácil em si mesma e, contudo, não ser tratada de modo claro. No momento, recusar-me-ei de falar a respeito dos gêneros e das espécies, continua Porfírio, para saber se existem por si mesmos ou se são puras concepções do espírito e, no caso de existirem por si mesmos, se são corpóreos ou incorpóreos ou, também, se existem separados dos objetos sensíveis ou se neles permanecem: esse problema é muito difícil e exigiria investigação muito extensa. No momento... Porfírio indica com precisão quais sejam essas profundas questões, ainda que não as resolva, e aponta as causas dessas duas atitudes, isto é, de deixar de investigá-las e, no entanto, de mencioná-las. Se ele não as examina, é porque o leitor bisonho ainda não é capaz de investigá-las e de lhes perceber o alcance. Mas ele toca nelas de passagem, para que o leitor não se torne negligente. Com efeito, se ele tivesse silenciado completamente a seu respeito, o leitor, imaginando que absolutamente nada mais precisaria ser investigado quanto a essas questões, não se interessaria mais por qualquer outra indagação. De fato, existem três questões, como diz Boécio, secretas e muito úteis que foram sondadas por não poucos filósofos e por uns poucos resolvidas. A primeira é como segue: os gêneros e as espécies existem por si mesmos ou não passam de puras concepções do espírito, etc., como se ele dissesse: será que eles têm verdadeiro ser ou consistem apenas em opinião? A segunda é, no caso de se conceder que são verdadeiros seres, se são essências corpóreas ou incorpóreas, e a terceira é saber se estão separados dos objetos sensíveis ou se deles fazem parte. Com efeito, existem duas espécies de seres incorpóreos, uma vez que alguns, tal como Deus e a alma, podem permanecer na sua incorporeidade fora dos objetos sensíveis, e outros de modo algum podem estar fora dos objetos sensíveis em que existem, tal como a linha não se acha fora do corpo que a sustenta. Boécio toca de leve nessas questões, dizendo: No momento recusar-me-ei de falar a respeito dos gêneros e das espécies, para saber se existem por si mesmos, etc., e, no caso de existirem por si próprios, se são corpóreos ou incorpóreos, ou se, quando se diz que são incorpóreos, se separariam dos objetos sensíveis, etc., e neles permanecendo. Isso pode ser entendido de vários modos. Podemos tomar essas palavras como se ele dissesse: recusar-me-ei de falar a respeito dessas três questões expostas acima e de algumas outras relacionadas com elas, isto é, com essas três questões. Podem formular-se algumas outras, e que são igualmente difíceis, a respeito delas, tal como a da causa comum da imposição de nomes universais, isto é, qual seja a causa pela qual coisas diversas concordem entre si ou, também, a questão do significado dos nomes universais pelos quais nada parece ser concebido ou que parecem não corresponder a coisa alguma e, ainda, muitas outras difíceis questões. Podemos, também, explicar de tal modo as palavras neles permanecendo, de forma a acrescentar uma quarta questão, isto é, se é necessário que os gêneros e as espécies, enquanto gêneros e espécies, tenham alguma coisa que se lhes sujeite pela denominação ou, se essas coisas denominadas fossem destruídas, se poderia, ainda, o universal consistir apenas no significado intelectivo como, por exemplo, esta palavra "rosa", quando nenhuma rosa mais existisse à qual esse termo pudesse ser aplicado. Mais tarde discutiremos a respeito dessas questões com a máxima diligência. Mas, agora, continuemos com a explicação literal da introdução. Observe-se que, quando Porfírio diz no momento, isto é, no presente tratado, ele de certo modo insinua que o leitor aguarda que se resolvam essas questões em outro lugar. Esse problema é muito difícil. Com essas palavras ele aponta a causa pela qual se abstém aqui dessas questões, isto é, porque o seu exame é muito difícil para o leitor que não consegue avaliar o seu alcance, fato que ele imediatamente indica com precisão. E exigiria investigação muito extensa, pois ainda que o autor seja capaz de resolvê-la, o leitor não é capaz de empreender tal exame. É uma investigação, digo, mais extensa do que a tua. Tentarei demonstrar-te aqui aquilo que os Antigos e, entre eles, sobretudo os Peripatéticos conceberam de mais razoável sobre esses últimos pontos e sobre os que eu me propus estudar. Aquilo que. Tendo determinado as coisas sobre as quais silencia, ele ensina as que apresenta, isto é, aquelas coisas que sobre estas questões, a saber, o gênero e a espécie, e sobre aquelas outras três categorias já propostas, os Antigos, não pela idade mas pela compreensão, conceberam de mais provável, isto é, com verossimilhança naqueles pontos em que todos concordaram e não houve discrepância alguma de opiniões. De fato, para resolver as citadas questões alguns pensavam de um modo, e outros, de forma diferente. Daí lembrar Boécio que, segundo Aristóteles, os gêneros e as espécies só subsistem nos objetos sensíveis mas são entendidos fora deles, enquanto Platão admite que não só eles são entendidos fora dos objetos sensíveis como existem realmente fora deles. E destes Antigos, digo, principalmente os Peripatéticos, isto é, uma parte desses Antigos. Ele chama os Peripatéticos de dialéticos ou qualquer espécie de argumentadores. Observa, ainda, que nesta introdução se apresentam aquelas coisas que convém a um proêmio. Com efeito, diz Boécio nos seus comentários Sobre os Tópicos de Cícero: "Toda introdução que se destina a bem dispor o leitor, como se diz na Retórica, ou capta a benevolência ou prepara a atenção ou produz a docilidade. É conveniente que um desses três elementos ou vários, ao mesmo tempo, estejam presentes em todo proêmio: ora. dois deles podem observar-se nesta introdução: a docilidade. quando expõe de antemão a matéria que são as cinco categorias ou predicáveis, e a atenção, quando, com base na doutrina que sobre tal assunto os Antigos formularam, recomenda o tratado pela sua quádrupla utilidade, ou quando promete escrever na forma de uma introdução. Mas a benevolência não é necessária aqui, onde não existe conhecimento detestável para quem procura o tratamento do assunto dado por Porfírio". Voltemos, porém, agora às supracitadas questões, como prometemos, para investigá-las com todo o cuidado e para resolvê-las. Uma vez que é certo serem os gêneros e as espécies universais, cabendo-lhes tudo o que em geral se refere à natureza dos universais, distingamos aqui as propriedades comuns de cada um dos universais, e indaguemos se elas se aplicam apenas às palavras ou, também, às coisas. No Peri Hermeneias (Sobre a Interpretação) Aristóteles define o universal como aquilo que pode ser naturalmente apto para ser predicado de muitos seres, enquanto Porfírio define o singular, isto é, o indivíduo, como aquilo que se predica de um único ser. A autoridade parece atribuir o universal tanto às coisas quanto às palavras. Com efeito, o próprio Aristóteles aplica-o às coisas, quando propunha logo acima a seguinte definição do universal: uma vez que algumas coisas são universais e outras são singulares, chamo de universal o que é naturalmente apto para ser predicado de muitos seres e, de singular, o que não o é, etc. O próprio Porfírio, também, ao afirmar que a espécie é constituída de gênero e diferença, situou essas noções na natureza das coisas. Donde se colhe, evidentemente, que as próprias coisas estão contidas no nome universal. Mas os nomes, também, são chamados de universais. Daí a afirmação de Aristóteles: o gênero determina a qualidade quanto à substância, pois ele significa o que certa coisa é. E Boécio declara no livro Sobre as Divisões: É muito útil saber que o gênero é de certa forma uma semelhança única de muitas espécies, e que essa semelhança revela a concordância substancial de todas elas. É próprio das palavras significar ou revelar, e das coisas, o serem significadas. E novamente afirma: O vocábulo de nome predica-se de muitos nomes e é de certo modo uma espécie contendo indivíduos sob si mesma. Contudo, não é chamada propriamente de espécie, uma vez que o vocábulo não é essencial, porém acidental, e constitui indubitavelmente um universal ao qual se aplica a devida definição. Daí procede que existam, também, termos universais que têm por função servir de predicados das proposições. Ora, uma vez que tanto coisas como palavras parecem ser chamadas de universais, deve-se investigar de que maneira a definição de universal pode ser aplicada às coisas. De fato, parece que nenhuma coisa nem coleção alguma de coisas pode ser predicada de muitas coisas tomadas uma a uma, sendo tal predicação a exigência própria do universal. Pois, embora as expressões este povo ou esta casa ou Sócrates possam ser afirmadas de todas as suas partes ao mesmo tempo, contudo ninguém diz absolutamente que são universais, uma vez que a sua atribuição não se aplica a cada uma das partes. Uma só coisa, porém, predica-se com muito menos propriedade de muitas do que uma coleção. Vejamos, portanto, como se pode chamar de universal uma só coisa ou uma coleção, e apresentemos todas as opiniões de todos os estudiosos. Com efeito, alguns tomam a coisa universal da seguinte maneira: eles colocam uma substância essencialmente a mesma em coisas que diferem umas das outras pelas formas; essa é a essência material das coisas singulares nas quais existe, e é uma só em si mesma, sendo diferente apenas pelas formas dos seus inferiores. De fato, se acontecesse de se separarem essas formas, não haveria absolutamente diferença das coisas que se separam umas das outras apenas pela diversidade das formas, uma vez que a essência da matéria é absolutamente a mesma. Por exemplo, nos homens individuais, diferentes em número, existe a mesma substância de homem que aqui se torna Platão através destes acidentes, e ali, Sócrates, através daqueles outros. A esses conceitos Porfírio parece dar seu completo assentimento, ao dizer: Pela participação da espécie muitos homens são um só, mas nos particulares esse único e comum são muitos. E novamente afirma que os indivíduos são caracterizados da seguinte maneira: cada um deles consiste numa coleção de propriedades que não se encontra em nenhum dos outros. De modo semelhante, esses mesmos autores colocam uma só e essencialmente a mesma substância de animal em cada um de vários animais diferentes pela espécie, mas que entram nessas diferentes espécies pela recepção de diversas diferenças, tal como se desta cera eu fizesse primeiro a estátua de um homem e, depois, a estátua de uma vaca, acomodando as formas diferentes à essência que permanece absolutamente a mesma. É preciso, porém, levar em consideração que a mesma cera não constitui as estátuas ao mesmo tempo, como se admite no caso do universal, isto é. que o universal é de tal modo comum que Boécio afirma que o mesmo todo está ao mesmo tempo inteiro nas diferentes coisas das quais constitui a substância materialmente, e embora permaneça em si mesmo universal, este mesmo é singular pelas formas que se lhe acrescentam, sem as quais ele subsiste naturalmente em si mesmo e, sem elas, de maneira alguma permanece em ato (em efetiva existência); sendo universal por natureza, mas singular em ato, é entendido como incorpóreo e não sensível na simplicidade da sua universalidade, mas esse mesmo universal subsiste em ato de modo corpóreo e sensível através dos acidentes e, de acordo com o próprio testemunho de Boécio, subsistem as coisas singulares e entendem-se os conceitos universais. E esta é uma de duas sentenças. Ainda que as autoridades pareçam concordar muito com ela, a física se lhe opõe de todos os modos. Com efeito, se aquilo que é a mesma essência, embora ocupado por diversas formas, consiste em coisas individuais, é necessário que a coisa afetada por essas formas seja aquela ocupada por outras formas, de tal modo que o animal formado pela racionalidade seja o animal formado pela irracionalidade e, assim, o animal racional é o irracional e, desse modo, coisas contrárias coexistiriam ao mesmo tempo no mesmo ser; antes, digamos, já não seriam de modo algum coisas contrárias, quando se unem completamente na mesma essência, tal como nem a brancura nem a negridão seriam contrárias, se ocorressem ao mesmo tempo na mesma coisa, ainda que a própria coisa fosse branca por uma razão e preta por outra, tal como é branca de um lado e dura, de outro, isto é, composta de brancura e de dureza. Determinações contrárias, que também são diversas pela razão, não podem ser inerentes à mesma coisa e ao mesmo tempo, tal como os termos relativos e muitos outros. Daí Aristóteles, no seu capítulo sobre a relação (nas Categorias) — onde ele mostra que o grande e o pequeno estão presentes no mesmo ser, ao mesmo tempo, sob diversos aspectos — demonstrar que grandeza e pequenez não podem ser contrárias só por se acharem na mesma coisa ao mesmo tempo. Mas, dir-se-á talvez, de acordo com aquela opinião que racionalidade e irracionalidade não são menos contrárias por serem descobertas na mesma coisa, isto é, no mesmo gênero e na mesma espécie, a menos que se confundam no mesmo indivíduo. O que, também, assim se demonstra: racionalidade e irracionalidade existem verdadeiramente no mesmo indivíduo, uma vez que se acham em Sócrates. Mas, que estejam ao mesmo tempo em Sócrates prova-se por isso que existem ao mesmo tempo em Sócrates e no asno. Mas Sócrates e o asno são Sócrates, e verdadeiramente Sócrates e o asno são Sócrates, porque Sócrates é Sócrates e o asno, isto é, porque Sócrates é Sócrates e Sócrates é o asno. Que Sócrates seja o asno, assim se demonstra, de acordo com aquela opinião: tudo o que exista em Sócrates diferente das formas de Sócrates é aquilo que existe no asno diferente das formas do asno. Mas, tudo o que exista no asno diferente das formas do asno é asno. Tudo o que exista em Sócrates diferente das formas de Sócrates é asno. Mas se isto é assim, uma vez que o próprio Sócrates é aquilo que é diferente das formas de Sócrates, então o próprio Sócrates é asno. A verdade do que afirmamos acima, isto é, de que tudo o que existe no asno diferente das formas do asno é asno, patenteia-se por isso que nem as formas do asno são asno, uma vez que os acidentes seriam substâncias, nem a matéria juntamente com as formas do asno são o asno, pois então seria necessário admitir que corpo e não corpo são corpo. Existem alguns que, procurando uma escapatória, criticam apenas as palavras desta proposição, o animal racional é o animal irracional, mas não a opinião, dizendo que o animal é ambas as coisas, mas que isso não é demonstrado propriamente por estas palavras o animal racional é o animal irracional, uma vez que certamente a coisa, ainda que seja a mesma, seja chamada racional por uma razão, e irracional, por outra, isto é, por causa de formas opostas. Mas, certamente não haveria oposição entre as formas que aderissem absolutamente àquelas coisas ao mesmo tempo, e nem por isso se criticam estas proposições o animal racional é animal mortal ou o animal branco é animal ambulante, porque ele não é mortal pelo fato de ser racional nem ele anda pelo fato de ser branco, mas tomam-se essas proposições como absolutamente verdadeiras, porque o mesmo animal tem ambas as formas ao mesmo tempo, ainda que sob pontos de vista diferentes. Se assim não fora, eles confessariam que nenhum animal é homem, uma vez que nada é homem naquilo que é animal. Além disso, de acordo com a posição da supracitada opinião, existem apenas dez essências de todas as coisas, isto é, dez que são gêneros supremos, uma vez que em cada uma das categorias se descobre apenas uma essência, a qual, como se disse, se diversifica apenas pelas formas inferiores e, sem elas, a essência não teria variedade alguma. Por conseguinte, assim como todas as substâncias são absolutamente a mesma substância, assim todas as qualidades são a mesma qualidade e todas as quantidades são a mesma quantidade, etc. Por conseguinte, uma vez que Sócrates e Platão têm as coisas de cada uma das categorias em si mesmas, e que elas próprias são absolutamente as mesmas, todas as formas de uma são formas da outra, e elas não são diferentes em si mesmas quanto à essência, tal como as substâncias às quais elas são inerentes não se diferenciam como, por exemplo, a qualidade de uma é a qualidade da outra, pois ambas são qualidades. Portanto, eles (Sócrates e Platão) não são mais diferentes por causa da natureza das qualidades do que por causa da natureza da substância, porque a essência da sua substância é uma só, tal como é, igualmente, a das qualidades. Pela mesma razão, a quantidade, que é a mesma, não as torna diferentes e, tampouco, nenhuma das outras categorias. Por isso, nenhuma diferença pode ser proveniente das formas, que não são diferentes uma da outra, assim como as substâncias também não se diferenciam. Ainda mais, como explicaríamos uma pluralidade de coisas nas substâncias, se a única diferença fosse a das formas, enquanto o sujeito substancial permanece absolutamente o mesmo? Com efeito, não podemos dizer que Sócrates seja numericamente múltiplo, em virtude de receber muitas formas. Não se pode sustentar, além disso, que os indivíduos sejam compostos pelos próprios acidentes. De fato, se os indivíduos adquirem o seu ser dos acidentes, evidentemente os acidentes lhes são naturalmente anteriores, assim como as diferenças são anteriores às espécies que elas conduzem ao ser. Sem dúvida, assim como o homem se caracteriza pela formação da diferença específica, assim esses autores referem-se a Sócrates, a partir dos seus acidentes. Donde se conclui que Sócrates não pode existir sem acidentes, tal como o homem não pode existir sem as diferenças. Por conseguinte, Sócrates não é o fundamento dos acidentes, como o homem não o é das diferenças. Todavia, se os acidentes não estão nas substâncias individuais como em sujeitos, certamente não estão nos universais. Com efeito, qualquer coisa que esteja nas substâncias segundas como em sujeitos, ele demonstra que estão da mesma forma universalmente nas substâncias primeiras como em sujeitos. Em consequência disso, é claro que carece totalmente de razão a opinião pela qual se diz que absolutamente a mesma essência se compõe de coisas diversas. Por isso, outros são de parecer diferente quanto ao universal e, aproximando-se mais da realidade, afirmam que as coisas singulares não apenas são diferentes umas das outras pelas formas, como são pessoalmente distintas nas suas essências, e que, de modo algum, aquilo que existe numa coisa, seja matéria ou forma, deverá existir na outra; nem mesmo quando as formas tenham sido removidas, as coisas podem subsistir menos distintas nas suas essências, porque a sua distinção pessoal, isto é, segundo a qual esta coisa não é aquela, não é produzida pelas formas, mas é constituída pela própria diversidade da essência, tal como as próprias formas são diversas umas das outras em si mesmas; de outra sorte, a diversidade das formas multiplicar-se-ia ao infinito, de tal modo que ainda seria necessário supor mais formas para a diversidade de quaisquer outras. Porfírio notou tal diferença entre o gênero mais geral e o mais especial, ao dizer: Ademais, a espécie não se tornaria jamais o gênero supremo ou o gênero especialíssimo, o que equivale a dizer: a diferença entre eles é que a essência de um não é a essência do outro. Assim, a distinção entre as categorias não é determinada por algumas formas que a constituem, mas pela diversificação da própria essência. Mas como admitem serem todas as coisas tão diversas umas das outras, de tal modo que nenhuma delas participa com a outra nem da mesma matéria essencialmente nem da mesma forma essencialmente, conservando todavia, ainda, o conceito universal, dizem que as coisas diferentes são as mesmas, não por certo essencialmente, mas indiferentemente, tal como afirmam que os homens individuais distintos uns dos outros são os mesmos idênticos no seu ser de homens, isto é, não diferem pela natureza da humanidade. Desse modo, eles denominam universais, conforme a indiferença e o acordo da semelhança, aqueles mesmos que chamam de indivíduos, segundo a sua distinção. Mas, aqui também existe divergência, pois alguns supõem que o universal consiste apenas numa coleção de múltiplos elementos. De maneira alguma eles chamam Sócrates e Platão, por si mesmos, de uma espécie, mas dizem que todos os homens tomados em conjunto, ao mesmo tempo, constituem aquela espécie que é o homem, e todos os animais, tomados ao mesmo tempo, formam aquele gênero que é o animal, e assim por diante. Parece concordar com eles a seguinte passagem de Boécio; Não se deve julgar que a espécie seja outra coisa senão o pensamento englobante deduzido da semelhança substancial dos indivíduos, e o gênero, também, como o pensamento englobante deduzido da semelhança das espécies. De fato, quando ele diz "englobante deduzido da semelhança", sugere a ideia de uma coleção de muitos elementos. Se assim não fora, eles não teriam, de modo algum, no universal uma predicação de muitas coisas ou um conteúdo de muitos elementos e o número dos universais seria igual ao dos indivíduos. Além disso, há outros que dizem ser a espécie não apenas um conjunto de homens mas, também, os indivíduos enquanto são homens e, ao afirmarem que a coisa que é Sócrates se predica de muitos, tomam tal afirmação em sentido figurado, como se dissessem: muitos são o mesmo que ele, isto é, com ele combinam ou ele próprio combina com muitos. Quanto ao número de coisas, estabelecem que existem tantas espécies e gêneros quantos indivíduos, mas em relação à semelhança das naturezas acham que o número dos universais é menor do que o dos indivíduos. Decerto, todos os homens considerados em si mesmos são muitos, por força da diferença pessoal, e uma só coisa, devido à semelhança da humanidade e, em relação à diferença e à semelhança, os mesmos são julgados serem diversos de si mesmos, tal como Sócrates, naquilo que é homem, distingue-se de si mesmo naquilo que é Sócrates. De outra forma, a mesma coisa não poderia ser o seu próprio gênero ou espécie, a não ser que tivesse alguma diferença própria quanto a si mesma, uma vez que as coisas relativas devem opor-se pelo menos sob algum aspecto. Agora, porém, refutemos antes de tudo a opinião proposta em primeiro lugar a respeito da coleção, e investiguemos de que modo toda a coleção de homens considerada ao mesmo tempo, e que se diz ser uma única espécie, tenha de ser predicada a respeito de muitas coisas para que seja universal, embora a coleção inteira não seja afirmada de cada indivíduo. Mas, se for concedido que a espécie é predicada de diversos indivíduos por partes, isto é, naquilo em que cada uma das suas partes se adapta aos mesmos indivíduos, então não se poderia mais falar da comunidade (caráter comum) do universal, que deve estar inteiro em cada um dos indivíduos, segundo a afirmação de Boécio, e o universal distingue-se dessa comunidade pelo fato de ser comum pelas suas partes, tal como o campo cujas diversas partes pertencem a várias pessoas. Além disso, Sócrates seria predicado de muitos conforme as suas diferentes partes, de tal modo que ele próprio seria um universal. Ainda mais, seria preciso chamar de universal qualquer grupo de homens tomados ao mesmo tempo, e a definição de universal ou, também, de espécie adaptar-se-ia igualmente a eles, de tal forma que a coleção inteira dos homens incluiria muitas espécies. Do mesmo modo, diríamos que qualquer coleção de corpos e de espíritos formaria uma única substância universal, de maneira que, sendo a coleção inteira das substâncias uma realidade generalíssima, retirada qualquer uma delas enquanto as outras permanecessem, teríamos por resultado a existência de muitas realidades generalíssimas nas substâncias. Mas talvez se dissesse que nenhuma coleção incluída numa realidade generalíssima fosse generalíssima. Todavia, eu ainda rebato esse argumento, pois, separada uma das substâncias, se a coleção restante não constitui uma realidade generalíssima, embora permaneça uma substância universal, então é necessário que esta seja uma espécie da substância e tenha uma espécie que lhe seja equivalente sob o mesmo gênero. Mas qual delas lhe pode ser oposta, uma vez que ou a espécie da substância está contida inteiramente nela ou ela mesma é comum aos seres individuais, como, por exemplo, animal racional, animal mortal? Ademais, todo universal é naturalmente anterior aos seus próprios indivíduos. Mas uma coleção de quaisquer coisas é um todo integral quanto aos indivíduos de que se constitui e é naturalmente posterior às coisas de que é composta. Além disso, nas suas Divisões Boécio estabelece que a diferença entre o todo integral e o todo universal é que a parte não é a mesma coisa que o todo, mas a espécie é sempre a mesma coisa que o gênero. Todavia, de que modo a coleção inteira dos homens poderia ser a multidão dos animais? Agora, resta-nos, ainda, combater aqueles que chamam de universal cada um dos indivíduos naquilo em que combinam uns com os outros e concedem que esses mesmos indivíduos sejam predicados de muitos seres, não enquanto sejam esses muitos essencialmente, mas porque os muitos combinam com eles. Mas, se ser predicado de muitos é o mesmo que combinar com muitos, como dizemos que um indivíduo é predicado apenas de um ser, isto é, uma vez que nada existe que combine apenas com uma só coisa? Como, também, se dá a diferença entre o universal e o singular pelo fato de algo ser predicado de muitos, já que absolutamente da mesma maneira que o homem combina com muitos, Sócrates também combina? Certamente, o homem enquanto é homem, e Sócrates enquanto é homem, combinam com os outros. Mas nem o homem enquanto é Sócrates nem Sócrates enquanto é Sócrates combina com os outros. Por conseguinte, aquilo que o homem tem Sócrates tem do mesmo modo. Além disso, uma vez que se conceda que a coisa é absolutamente a mesma, isto é, o homem que está em Sócrates e o próprio Sócrates, não há diferença alguma deste para aquele. Com efeito, nenhuma coisa é diversa de si própria no mesmo tempo, porque qualquer coisa que ela tenha em si mesma, ela o tem absolutamente do mesmo modo. Donde, sendo Sócrates branco e gramático, ainda que tenha diversas coisas em si mesmo, não é, todavia, por isso, diferente de si próprio, uma vez que ele tem as mesmas duas coisas absolutamente do mesmo modo. De fato, ele não é gramático de um modo diferente de si mesmo nem branco de outro modo, assim como o branco não é outra coisa diferente dele mesmo e tampouco o gramático. Como se pode entender, igualmente, o que dizem quanto ao fato de Sócrates combinar com Platão na sua realidade de homem, uma vez que é certo serem todos os homens diferentes uns dos outros, tanto pela matéria, quanto pela forma? De fato, se Sócrates combina com Platão na mesma realidade humana, mas nenhuma outra coisa é homem a não ser o próprio Sócrates ou outro, é necessário que ele combine com Platão ou em si mesmo ou em outro. Em si mesmo, porém, ele é antes diferente dele; quanto a outro, chega-se também à mesma conclusão de que ele não é outro. Existem, porém, aqueles que tomam negativamente a expressão combinar na sua realidade de homem, como se alguém dissesse: Sócrates não difere de Platão no homem. Mas também poder-se-ia dizer, então, que eles não diferem na pedra, uma vez que nem um nem outro é pedra. Desse modo, não se nota maior combinação entre eles no homem do que na pedra, a não ser, porventura, que certa proposição preceda, como se fosse feita a seguinte afirmação: "Eles são homens porque não diferem no homem". Mas nem essa proposição pode manter-se, uma vez que é absolutamente falso que eles não sejam diferentes no homem. Com efeito, se Sócrates não difere de Platão na coisa que é homem, nem em si mesmo dele se diferencia. Mas se é diferente dele em si mesmo sendo, porém, ele próprio a coisa que é homem, certamente difere de Platão na mesma realidade humana. Entretanto, agora que já se apresentaram as razões pelas quais as coisas tomadas individualmente ou coletivamente não podem ser chamadas de universais pelo fato de serem predicadas de vários seres, resta a solução de atribuir essa universalidade apenas às palavras. Por conseguinte, assim como certos nomes são chamados apelativos pelos gramáticos, e certos outros, próprios, assim certas palavras simples são chamadas de universais pelos dialéticos, e certas outras de singulares, isto é, individuais. Uma palavra universal, entretanto, é aquela que é apta pela sua descoberta para ser predicada singularmente de muitos seres, tal como este nome homem, que se pode ligar com os nomes particulares dos homens segundo a natureza das coisas sujeitas (substâncias) às quais foi imposto. Já o nome singular é aquele que só é predicável de uma só coisa, como Sócrates, desde que se toma apenas o nome de um único ser. Sem dúvida, se tomares o vocábulo equivocamente, não terás um vocábulo e sim muitos vocábulos de significado diferente, porque, de acordo com Prisciano, muitos nomes coincidem numa só palavra. Portanto, quando se afirma que o universal é aquilo que é predicado de muitos, a expressão aquilo que, usada no início da definição, não apenas indica a simplicidade da palavra para distingui-la das proposições como, também, a unidade do significado para distingui-la dos termos equívocos. Ora, uma vez que foi mostrado o que se passa na definição do universal por força da expressão preliminar aquilo que, consideremos cuidadosamente as duas outras expressões que seguem, isto é, ser predicado e de muitos. Ser predicado é poder ser verdadeiramente ligado a alguma coisa em virtude da enunciação do verbo substantivo no presente, como o termo homem pode ser verdadeiramente unido a coisas diversas por meio de um verbo substantivo. Até mesmo verbos como corre e anda, quando são predicados de muitos seres, têm o poder de exercer a mesma função copulativa do verbo substantivo. Daí afirmar Aristóteles na sua obra Peri Hermeneias: Nos verbos em que não ocorre o termo "é", como correr e andar, produz-se o mesmo efeito, assim postos, que se produziria, se o termo "é" lhes fosse acrescentado. E ainda numa outra vez afirma: "Não há diferença entre as expressões "o homem anda"e "o homem é andante". Quando se diz, porém, de muitos, este termo congrega nomes em relação à diversidade das coisas nomeadas. De outra forma, Sócrates seria predicado de muitos, quando se diz: Este homem é Sócrates, este animal é este branco, este músico. Com efeito, ainda que esses nomes sejam diversos na sua significação, eles têm, todavia, a mesma coisa por sujeito (aplicam-se à mesma substância). Ademais, observa que uma é a ligação de construção, que interessa aos gramáticos, e outra a de predicação, que os dialéticos consideram, pois em virtude da construção podem ligar-se muito bem pelo termo "é" as palavras "homem" e "pedra", e quaisquer casos nominativos como "animal" e "homem" quanto a exprimir um significado, mas não quanto a mostrar o estado da coisa. Assim, a ligação de construção é boa todas as vezes que apresenta uma sentença completa, quer a coisa seja assim ou não. Entretanto, a ligação de predicação, que aqui nos interessa, pertence à natureza das coisas, e serve para demonstrar a verdade do seu estado. Se alguém dissesse: o homem é pedra, não teria feito uma construção conveniente, de homem ou de pedra, ao significado que pretendia demonstrar, mas não teria havido nenhuma falta de gramática; e, ainda que, por força da enunciação, pedra aqui se predique de homem, para o qual é construída como predicado — assim como, também, as falsas categorias têm um termo predicado —, contudo, na natureza das coisas pedra não é predicável de homem. Aqui, enquanto definimos o universal, só damos atenção à força da predicação. Ora, parece que o universal nunca é completamente um apelativo, nem o singular, um nome próprio, mas estão um para o outro como o que excede e o que é excedido. Com efeito, o apelativo e o próprio não contêm apenas casos nominativos mas, também, casos oblíquos, que não têm de ser predicados e, por isso, são excluídos na definição de universal pelo ser predicado; esses casos oblíquos, todavia, porque são menos necessários para a enunciação — a qual constitui, só ela, conforme Aristóteles, o assunto da presente especulação, isto é, da consideração dialética e, certamente, só ela compõe argumentações — não são tomados, de forma alguma, por Aristóteles como nomes, e ele próprio não os chama de nomes, mas de casos de nomes. Ora, assim como não é necessário chamar de universais ou singulares todos os nomes apelativos ou próprios, assim também, no caso contrário. De fato, o universal não contém apenas nomes, como também verbos e nomes indefinidos aos quais, isto é, aos indefinidos, não parece aplicar-se a definição de apelativo dada por Prisciano. Agora, porém, uma vez que já se deixou estabelecida a definição das palavras universal e singular, passemos a investigar com cuidado principalmente a propriedade das palavras universais. Levantaram-se muitas questões a propósito desses universais, porque existem dúvidas muito sérias sobre o seu significado, uma vez que eles parecem não ter qualquer coisa por sujeito nem constituir um significado válido de alguma coisa. Os nomes universais pareciam não se impor a coisa alguma, pois, evidentemente, todas as coisas subsistiriam distintas em si mesmas e, como foi mostrado, não combinariam em coisa alguma, sabendo-se, no entanto, que os nomes universais poderiam ser impostos segundo tal combinação. Por conseguinte, como é certo que os universais não se impõem às coisas, conforme a diferença dessas coisas distintas, pois, decerto, já não seriam então comuns mas singulares e como, de novo, não poderiam designá-las, enquanto elas combinam em alguma coisa, pois não existe coisa na qual combinem, os universais parecem não retirar das coisas significação alguma, particularmente por não virem a constituir compreensão de coisa alguma. Por isso, Boécio afirma nas suas Divisões que esta palavra homem provoca dúvida quanto ao seu significado, isto é, explica, pois, uma vez ouvida essa palavra, a inteligência do ouvinte é arrebatada por muitas flutuações e fica exposta aos erros. Sem dúvida, a não ser que alguém defina o termo, dizendo: "todo homem anda "ou, pelo menos, "algum homem ", e designe esse homem como se, de fato, ele andasse, o intelecto do ouvinte não tem o que entender racionalmente. Com efeito, uma vez que o termo homem é imposto aos indivíduos pela mesma causa, a saber, porque eles são animal racional mortal, a própria comunidade de imposição é para ele um impedimento para que qualquer um possa ser entendido nele como, por exemplo, neste nome Sócrates, ao contrário, a própria pessoa de um só homem é entendida e, daí, ser ele chamado de singular. Realmente, no nome comum que é homem, nem o próprio Sócrates nem outro homem nem a inteira coleção dos homens é racionalmente entendida por forças da palavra, nem, também, enquanto ele é homem, como querem alguns, é o próprio Sócrates o ser identificado por esse nome. Por certo, ainda que apenas Sócrates esteja assentado nesta casa, e só por causa dele esta proposição seja verdadeira: Um homem está sentado nesta casa, todavia, de modo algum pelo nome de homem o sujeito é transposto para Sócrates, nem enquanto ele próprio também é homem, pois, de outra sorte, entender-se-ia racionalmente dessa proposição que o estar sentado é inerente a ele, de tal modo que se poderia inferir certamente do fato de um homem estar sentado nesta cadeira que Sócrates está sentado nela. Da mesma maneira, nenhum outro pode ser entendido neste nome homem, nem sequer a inteira coleção dos homens, já que a proposição só pode ser verdadeira de um só homem. Desse modo, parece que nem homem nem qualquer outro vocábulo universal significam alguma coisa, uma vez que não constituem o significado de coisa alguma. Mas parece que não pode haver um significado, quando o intelecto não tem um sujeito real do qual forme a ideia. Daí a afirmação de Boécio no seu Comentário: Todo significado ou procede da coisa substancial, tal como a coisa é constituída ou como ela não é constituída. Com efeito, o significado não pode proceder de um não ser. Em consequência disso, parece que os universais parecem ser completamente desprovidos de significação. Mas isso não é assim. De fato, eles significam, de certo modo, diferentes coisas por meio da designação, não, porém, constituindo um significado procedente delas, mas apenas pertencente a cada uma. Isso se passa tal como esta palavra homem nomeia coisas individuais por força de uma causa comum, isto é, a de serem homens e, por essa razão, ela é chamada de universal e constitui certo significado comum, não próprio, isto é, pertencente aos seres individuais dos quais concebe a semelhança comum. Mas, agora, investiguemos com toda a diligência aquelas coisas nas quais tocamos brevemente, isto é, qual é aquela causa comum segundo a qual é imposto o nome universal, e qual é a concepção do significado da semelhança comum das coisas, e se o vocábulo é chamado de comum em virtude da causa comum na qual as coisas combinam ou por causa da concepção comum ou pelas duas razões ao mesmo tempo. Primeiramente, consideremos a causa comum. Os homens individuais, distintos uns dos outros, como diferem nas suas propriedades tanto pelas essências quanto pelas formas — como lembramos acima, ao investigarmos a natureza de uma coisa —, combinam, entretanto, naquilo em que são homens. Não digo que combinem no homem, já que nenhuma coisa é homem exceto uma coisa distinta, mas no fato de ser homem. Mas ser homem não é homem ou coisa alguma, se o considerarmos com o máximo cuidado, assim como não estar no sujeito não é coisa alguma, como também não é não receber contrariedade ou não receber mais ou menos, coisas essas, todavia, nas quais diz Aristóteles que todas as substâncias combinam. Com efeito, uma vez que, como demonstramos acima, não pode haver combinação numa coisa, se existir certa combinação em alguma, isso deve ser tomado de tal modo que não seja tido por coisa alguma, tal como Sócrates e Platão são semelhantes no fato de serem homens, e como no não serem homens assemelham-se o cavalo e o asno e, segundo isso, ambos são chamados de não homens. Assim, dizer que coisas diferentes combinam é dizer que coisas singulares são ou não são a mesma coisa, como ser homem ou ser branco ou não ser homem ou não ser branco. Parece, porém, inadmissível que tomemos a combinação das coisas como se ela não fosse alguma coisa, como se uníssemos no nada aquelas coisas que são, isto é, quando dizemos que este e aquele combinam entre si no estado de homem, ou seja, no fato de que são homens. Mas nada mais entendemos senão que eles são homens e, de acordo com isso, não diferem de modo algum; de acordo com isso, explico-me, pelo fato de que são homens, ainda que não apelemos para nenhuma essência. Chamamos de estado de homem o próprio fato de ser homem, que não é uma coisa e que também dizemos ser a causa comum da imposição do nome aos indivíduos, conforme eles próprios combinam entre si uns com os outros. Às vezes, porém, com o nome da coisa designamos também aquelas coisas que não são coisa alguma, como quando se diz: "Ele foi espancado porque não quis ir à praça pública". O fato de que a pessoa não quis ir à praça pública, que se apresenta como causa, não é essência alguma. Assim, também, podemos chamar de estado de homem as próprias coisas estabelecidas na natureza do homem, e aquele que percebeu a sua semelhança comum foi quem lhes impôs o nome. Ora, tendo mostrado a significação dos universais, isto é, quanto às coisas abrangidas pela denominação, e tendo demonstrado a causa da sua comum imposição, revelemos agora o que são os seus significados que os constituem enquanto universais. Primeiramente distingamos, de modo geral, a natureza de todos os intelectos que apreendem os significados. Ora, uma vez que tanto os sentidos quanto o intelecto são próprios da alma, a diferença entre eles é que os sentidos são exercidos apenas através de instrumentos corpóreos, e só percebem os corpos ou as coisas que neles estão, tal como a vista percebe uma torre ou as suas qualidades visíveis. O intelecto, entretanto, assim como não precisa de um instrumento corpóreo, também não tem necessidade de um corpo por sujeito no qual esteja situado, mas está satisfeito com a semelhança da coisa que o espírito elabora para si mesmo, e para a qual dirige a ação da sua inteligência. Donde se colhe que, se a torre for destruída ou removida do campo da visão, o sentido que atuava em função dela perece, enquanto o intelecto permanece com a semelhança da coisa retida pelo espírito. Todavia, assim como o sentido não é a coisa percebida, assim o intelecto não é a forma da coisa que ele concebe, mas o intelecto é certa ação da alma que é chamada de inteligente, mas a forma para a qual é dirigida é certa coisa imaginária e fictícia, que o espírito elabora para si mesmo quando quer e como quer, tal como aquelas cidades imaginárias vistas em sonhos ou como aquela forma de um edifício a ser construído que o artesão concebe à semelhança e sob o modelo da coisa a ser formada e que não podemos chamar nem de substância nem de acidente. Alguns, entretanto, chamam aquela forma de o mesmo que o intelecto, tal como o edifício da torre que eu concebo; enquanto ela não se acha à minha vista e eu a contemplo mentalmente num campo espaçoso como alta e quadrada, eles denominam de intelecto da torre. Aristóteles parece concordar com eles, pois chama no Peri Hermeneias aquelas "paixões" da alma, que eles denominam intelectos, de semelhança das coisas. Nós, porém, chamamos a imagem de uma semelhança da coisa. Mas, nada impede que o intelecto, de certo modo, seja também chamado de semelhança, uma vez que evidentemente ele conceba aquilo que propriamente se denomina uma semelhança da coisa. Mas nós dissemos, e com razão, que ele é diferente dessa semelhança. Com efeito, eu pergunto se aquela quadratura e aquela altura é a verdadeira forma do intelecto que se plasmaria à semelhança da quantidade e da composição da torre. Mas, certamente, a verdadeira quadratura e a verdadeira altura são inerentes apenas aos corpos, e nem um intelecto como nem alguma verdadeira essência podem ser formados de uma qualidade fictícia. Resta, por conseguinte, que, assim como a qualidade é fictícia, seja fictícia a substância que lhe serve de sujeito. Ademais, talvez a imagem de um espelho, que parece surgir à visão como um sujeito, possa dizer-se nada ser verdadeiramente, visto que, sem dúvida, a qualidade de uma cor contrária aparece, às vezes, na branca superfície do espelho. Contudo, pode investigar-se, ainda, outra questão, a saber, se, quando a alma percebe sensorialmente e entende a mesma coisa ao mesmo tempo, como ao ver uma pedra, o intelecto lida com a imagem da pedra ou o intelecto e o sentido atuam, ao mesmo tempo, sobre a própria pedra. Mas parece mais racional que, então, o intelecto não precise da imagem, quando a verdade da substância está presente para ele. Se alguém, porém, disser que onde está o sentido aí não está o intelecto, nós não admitimos a asserção. De fato, às vezes acontece que a alma vê uma coisa mas considera intelectualmente uma outra, como ocorre com os que estudam bem, os quais, enquanto discernem as coisas presentes com os olhos abertos pensam, contudo, em outras coisas a respeito das quais escrevem. Ora, tendo examinado de modo geral a natureza dos intelectos, distingamos agora entre a compreensão dos universais e a dos indivíduos, o significado dos universais e o dos seres individuais. Elas separam-se certamente pelo fato de que o intelecto na compreensão de um nome universal concebe uma imagem comum e confusa de muitas coisas, enquanto a compreensão do indivíduo, que a palavra singular engendra, conserva uma forma própria e como que singular de uma só coisa, isto é, referente apenas a uma única pessoa. Donde, quando eu escuto a palavra homem, certa figura surge em meu espírito, a qual de tal modo se relaciona com os homens individuais que é comum a todos mas não é própria de nenhum. Quando, porém, escuto a palavra Sócrates, surge certa forma no espírito que exprime a semelhança de uma determinada pessoa. Donde se colhe que, por meio desse vocábulo Sócrates, que introduz no espírito a forma própria de uma única pessoa, certa coisa é certificada e determinada, enquanto pela palavra homem, cuja compreensão se baseia na forma comum de todos os homens, a própria comunidade leva à confusão, de modo que entre todos os homens não entendemos o termo de nenhum em particular. Por conseguinte, diz-se que o termo homem não significa devidamente nem Sócrates nem qualquer outro homem, de vez que nenhum é indicado com certeza pelo significado da palavra, ainda que ela, todavia, denomine seres individuais. O termo Sócrates, ao contrário, serve não apenas para designar qualquer indivíduo como, também, para determinar a coisa que ele tem por sujeito. Mas indaga-se — pois dissemos acima que, segundo Boécio, todo significado se refere a um sujeito real — como isso se aplicaria aos universais. Mas deve-se observar certamente que Boécio apresenta essa afirmação numa argumentação sofistica por meio da qual ele mostra que o conceito dos universais é vazio. Daí nada impedir que a afirmação seja provada em verdade e, por conseguinte, evitando a falsidade, ele comprova as razões dos outros autores. Além disso, podemos chamar a realidade que o intelecto tem por sujeito ou de verdadeira substância da coisa, como quando ela existe ao mesmo tempo em que o sentido, ou de forma concebida de uma coisa qualquer, isto é, enquanto esta se acha ausente, quer a forma seja comum, como dissemos, quer própria; comum, digo, quanto à semelhança de muitos que ela retém, embora ela ainda seja considerada como uma só coisa. Assim, para mostrar a natureza de todos os leões, pode fazer-se uma pintura representando o que não é próprio de nenhum deles e, ao contrário, outra pode ser feita convenientemente para distinguir qualquer um deles que revele alguma particularidade individual, como se ele fosse pintado a coxear ou mutilado ou ferido pela lança de Hércules. Por conseguinte, assim como se pinta uma figura comum de coisas e outra individual, assim também uma é concebida como comum e outra como própria. Entretanto, quanto a esta forma para a qual se dirige o intelecto, não é absurdo duvidar se o nome também a significa, o que parece ser confirmado tanto pela autoridade quanto pela razão. Ora, no primeiro livro das Construções, Prisciano, depois de haver mostrado a imposição comum dos universais aos indivíduos, parecia ter acrescentado outra significação dos mesmos universais, isto é, a respeito da forma comum, dizendo: Quanto às formas gerais e especiais das coisas, que são constituídas inteligivelmente na mente divina antes de serem produzidas nos corpos, podem ser também apropriadas para que se demonstrem os gêneros ou as espécies da natureza das coisas. Trata-se neste passo de Deus como de um artesão a ponto de compor alguma coisa, que concebe de antemão em sua mente a forma exemplar da coisa a ser composta. Ele executaria o trabalho à semelhança dessa forma que então se diz que vai para o corpo, quando a verdadeira coisa é composta à sua semelhança. Esta concepção comum, todavia, é bem atribuída a Deus mas não ao homem, porque aquelas obras são estados gerais ou especiais da natureza próprios de Deus e não do artífice, tal como o homem, a alma ou a pedra são obras de Deus, enquanto uma casa ou uma espada são obras do homem. Donde essas coisas, casa e espada, não serem obras da natureza como aquelas primeiras nem os seus vocábulos serem nomes de substância mas de acidente e, por isso, não são gêneros nem coisas mais especiais. Portanto, concepções dessa espécie, obtidas por abstração, são bem atribuídas à mente divina mas não à humana, porque os homens, que conhecem as coisas apenas através dos sentidos, raramente ou nunca se elevam a uma simples compreensão dessa espécie, e a apreensão sensível dos acidentes impede-os de conceber puramente as naturezas das coisas. Deus, porém, a quem todas as coisas que criou são conhecidas claramente por si mesmas, e que as conheceu antes que existissem, distingue os estados individuais na sua própria realidade, e a sensibilidade não serve de empecilho para Ele, que é o único ser a possuir verdadeira inteligência. Donde provém que os homens, naquelas coisas que eles não apreenderam pelos sentidos, têm mais opinião do que compreensão, o que nós aprendemos pela própria experiência. Assim, quando pensamos a respeito de uma cidade que nunca vimos, descobrimos, ao chegarmos a ela, que é completamente diferente do que havíamos imaginado. Assim, também, creio que temos mais opinião que compreensão a respeito das formas intrínsecas que não chegam até os sentidos, tais como a racionalidade e a mortalidade, a paternidade e a qualidade de estar sentado. Todavia, quaisquer nomes de quaisquer coisas existentes, quanto neles está, engendram mais compreensão intelectual do que opinião, porque o seu descobridor teve a intenção de impô-los de acordo com algumas naturezas ou propriedades das coisas, ainda que nem ele próprio soubesse avaliar devidamente a natureza ou a propriedade da coisa. Ora, daí chamar Prisciano essas concepções de gerais ou especiais, uma vez que, de algum modo, os nomes gerais ou especiais no-las insinuam. Diz ele que os próprios universais são por certo como nomes próprios para essas concepções, as quais, embora sejam de significado confuso quanto às essências denominadas, dirigem imediatamente o espírito do ouvinte para aquela concepção comum, assim como os nomes próprios dirigem a atenção para a coisa única que eles significam. Ademais, o próprio Porfírio, quando diz que certas coisas são compostas de matéria e forma, enquanto outras são constituídas à semelhança da matéria e da forma, parece ter entendido essa concepção quando se refere à semelhança da matéria e da forma, ponto a respeito do qual se falará mais completamente no seu devido lugar. Boécio, igualmente, quando diz que o pensamento, formado segundo a semelhança de muitas coisas é um gênero ou uma espécie, parece ter entendido essa mesma concepção comum. Alguns pensam que Platão também fosse do mesmo parecer, naturalmente por chamar de gêneros ou espécies aquelas ideias comuns que ele coloca no Nus. Nisso, talvez, lembra Boécio que ele discordou de Aristóteles, quando afirma que Platão quis que os gêneros e as espécies e outras noções não apenas fossem entendidos como universais mas, também, que existissem e subsistissem fora dos corpos, como se dissesse que ele entendia como universais aquelas concepções comuns que ele colocou separadas dos corpos no Nus, não, por certo, tomando o universal conforme a predicação comum, tal como o faz Aristóteles, mas antes segundo a semelhança comum de muitas coisas. Com efeito, parece que aquela concepção de modo algum pode ser predicada de muitos seres, como um nome que se adapta a muitos seres tomados um a um. Pode-se resolver de outra maneira o que ele diz quanto a Platão pensar que os universais subsistem fora dos seres sensíveis, de tal modo que não haja discordância alguma nas opiniões dos filósofos. De fato, o que Aristóteles diz quanto ao fato de os universais sempre subsistirem nas coisas sensíveis, ele o disse quanto ao ato porque, evidentemente, aquela natureza que é o animal, designada pelo nome universal e de acordo com isso chamada de universal por certa transferência, nunca é encontrada em ato a não ser na coisa sensível, mas Platão pensa que ela subsiste naturalmente em si mesma de tal modo que conservaria o seu ser quando não estivesse sujeita ao sentido e, de acordo com isso, o ser natural é chamado pelo nome universal. Por conseguinte, o que Aristóteles nega quanto ao ato, Platão, o investigador da física, atribui à aptidão natural e, desse modo, não existe discordância entre eles. Ora, uma vez aduzidas as autoridades que parecem admitir que pelos nomes universais são designadas as formas concebidas como comuns, a razão também parece ser do mesmo parecer. Com efeito, que vem a ser conceber as formas pelos nomes senão admitir que elas são significadas por eles? Mas, certamente, uma vez que nós fazemos as formas diferentes dos significados, já reponta, além da coisa e do intelecto, uma terceira significação dos nomes. Embora esse ponto de vista não se ampare em autoridade alguma, não é contrário, contudo, à razão. Entretanto, indiquemos o que acima prometemos definir, isto é, se a comunidade dos nomes universais é julgada existir devido a uma causa comum de imposição ou a uma concepção comum ou às duas coisas ao mesmo tempo. Nada, porém, impede que isso ocorra devido às duas coisas, mas a causa comum, que é tomada segundo a natureza das coisas, parece possuir uma força maior. Da mesma forma, deve-se definir aquilo que lembramos acima, isto é, que o significado dos universais se obtém por meio da abstração, e mostrar como podemos chamá-los de isolados, nus e puros mas não vazios. E, em primeiro lugar, tratemos da abstração. Assim, deve-se saber que a matéria e a forma sempre existem misturadas ao mesmo tempo, mas a razão, pertencente à alma, tem o poder que é ora considerar a matéria por si mesma, ora dirigir a atenção só para a forma, ora conceber as duas misturadas. Por certo, os dois primeiros casos são processos de abstração, através dos quais se abstrai algo de coisas reunidas para que se considere a sua própria natureza. Mas o terceiro processo é. por conjunção. Por exemplo, a substância deste homem é corpo, é animal, é homem, é revestida de formas infinitas; quando eu dirijo a atenção para isso que existe na essência material da substância, depois de haver circunscrito todas as formas, tenho um significado obtido por meio da abstração. Ao contrário, quando considero nela apenas a corporeidade que eu ligo à substância, este significado, do mesmo modo — embora exista por conjunção em relação ao primeiro, que considerava apenas a natureza da substância —, é formado também por abstração quanto às outras formas além da corporeidade, nenhuma das quais eu considero, tal como a animação, a sensibilidade, a racionalidade, a brancura. Ora, significados dessa espécie obtidos por abstração pareciam, talvez, falsos ou vãos porque percebiam a coisa de modo diferente da sua subsistência. Com efeito, uma vez que consideram a matéria por si mesma ou a forma separadamente, enquanto nenhuma delas subsiste em separado, parecem naturalmente conceber a coisa de modo diferente daquela que existe e serem, por isso, vazios. Mas assim não é. De fato, se alguém entende de modo diferente daquele segundo o qual a coisa existe, de tal maneira que a considere evidentemente naquela natureza ou propriedade que ela não possui, esse significado certamente é vazio. Mas isso não se dá na abstração. Com efeito, quando eu considero este homem apenas na natureza de substância ou corpo e não, também, na de animal, de homem ou de gramático, evidentemente eu nada entendo senão o que existe nela, mas eu não considero todos os aspectos que ela possui. E quando eu digo que a considero apenas enquanto ela possui este algo, aquele apenas refere-se à atenção, não ao modo de subsistir, pois, de outra sorte, o significado seria vazio. De fato, a coisa não tem apenas isso, mas é considerada apenas como tendo isso. Entretanto, diz-se que, de certa maneira, a coisa é entendida de modo diferente daquele como existe, não evidentemente num outro estado diverso do que existe, como foi dito acima, mas nesse estado de modo diferente, no qual o modo de entender é outro diferente do modo de subsistir. Sem dúvida, esta coisa é entendida separadamente da outra e não como coisa separada dela, embora ela não exista, contudo, em separado; a matéria é percebida puramente e a forma simplesmente, uma vez que nem uma existe puramente nem a outra simplesmente, de modo que esta pureza ou simplicidade se reduzem à compreensão da coisa e não à sua subsistência, de tal maneira que, por certo, são modos de entender e não de subsistir. Às vezes, os sentidos também agem diversamente quanto às coisas compostas como, por exemplo, se existe uma estátua metade de ouro e metade de prata, eu posso discernir separadamente o ouro e a prata que estão unidos na realidade, isto é, examinando ora o ouro, ora a prata por si mesma, olhando separadamente as coisas que existem unidas, mas não vendo separadas as coisas que não existem divididas. Assim, o intelecto as considera separadamente por abstração mas não as toma como divididas, pois, de outra sorte, ele seria vazio. Todavia, talvez possa ser correto o intelecto que considera as coisas que estão unidas como separadas de um modo e unidas de outro, e inversamente. De fato, tanto a união quanto a divisão das coisas podem ser tomadas em dois sentidos. Na verdade, dizemos que certas coisas estão unidas uma com a outra por alguma semelhança, como estes dois homens nisso que são homens e gramáticos, enquanto certas coisas estão unidas por certa aposição e agregação, tal como a forma e a matéria ou o vinho e a água. Neste último caso, o intelecto concebe as coisas unidas uma com a outra e, no outro, como divididas de um modo e unidas de outro. Por isso, Boécio atribui essa capacidade ao espírito de poder pela sua razão compor o que está separado e desunir o que está composto, sem se apartar, contudo, em nenhum dos dois casos, da natureza da coisa considerada, mas percebendo apenas aquilo que existe na natureza dessa coisa. Se assim não fora, não se trataria de razão mas de opinião, isto é, se a inteligência se afastasse do estado da coisa. Mas a esta altura surge uma questão relativa à previsão do artífice. Trata-se de saber se ela é vazia, enquanto ele conserva no espírito a forma da obra ainda futura, uma vez que a coisa ainda não existe assim. Se admitimos isso, seremos forçados a dizer que também é vazia a previsão que Deus teve antes da criação das suas obras. Mas se alguém diz isso quanto ao efeito, isto é, que não realizasse a obra que havia previsto, então é falso que a previsão fosse vazia. Se alguém, todavia, diz que ela é vazia pelo fato de ainda não concordar com o futuro estado da coisa, nós detestamos certamente essas péssimas palavras, mas não anulamos a sentença. De fato, é verdade que o estado futuro do mundo ainda não existiria materialmente, enquanto ele o dispunha inteligivelmente como ainda futuro. Todavia, não costumamos dizer que é vazio o pensamento ou a previsão de alguém, a não ser que careça de efeito, nem dizemos que pensamos em vão a não ser aquelas coisas que não realizamos de fato. Por conseguinte, modificando as palavras, digamos que não é vazia a previsão que não pensa em vão, mas a que concebe coisas que ainda não existem materialmente como se já subsistissem, o que certamente é natural a todas as previsões. Na verdade, o pensamento quanto às coisas futuras é chamado de previsão, quanto às coisas passadas é chamado de memória, e quanto às coisas presentes denomina-se apropriadamente inteligência. Entretanto, se alguém diz que se engana aquele que pensa ao prever quanto a um estado futuro como para o já existente, ele próprio mais se engana do que aquele que julga dever ser dito que se engana. Com efeito, não se engana aquele que prevê o futuro, a não ser que ele creia que este já existe assim como ele prevê. De fato, a concepção de uma coisa não existente não torna uma pessoa vítima de engano, mas sim a fé acrescentada a essa concepção. Na verdade, embora eu imagine um corvo racional, se eu não acreditar nisso, eu não me engano. Assim, também não se engana a pessoa que prevê o futuro, porque aquilo que pensa como já existente, não julga que exista assim, mas tal como ele pensa a coisa agora, ele a coloca como presente no futuro. Certamente, toda concepção do espírito é, a bem dizer, do presente. Assim, se eu considerasse Sócrates naquilo em que ele foi uma criança ou naquilo em que será um velho, eu junto a ele, de modo à bem dizer presente, a meninice ou a velhice, porque eu o considero no presente conforme uma propriedade passada ou futura. Todavia, ninguém diz que esta memória é vazia, porque, o que ela concebe como presente, ela o considera no passado. Mas discutir-se-á mais completamente a respeito disso no comentário sobre o Peri Hermeneias. No que diz respeito a Deus, com mais razão se reconhece que a sua substância, que é a única imutável e simples, não varia pelas concepções das coisas ou por outras formas. Sem dúvida, ainda que o costume da linguagem humana presuma falar do Criador como das criaturas, como, por exemplo, ao dizer que Ele é presciente ou inteligente, nada, porém, deve ser entendido ou poder existir nele diverso de si mesmo, isto é, nem o intelecto nem outra forma. E, por isso, toda a questão a respeito do intelecto em relação a Deus é supérflua. Mas se falarmos a verdade mais expressamente, reconheceremos que, para Ele, prever as coisas futuras nada mais é do que para Ele, que é a verdadeira razão em si mesma, não estar oculto o futuro. Agora, porém, que muitas coisas foram mostradas a respeito da natureza da abstração, voltemos a tratar do significado dos universais, o qual necessariamente é sempre formado por meio da abstração. Quando eu ouço dizer homem ou brancura ou branco, eu não me lembro pela força do nome de todas as naturezas ou propriedades que existem nas realidades substanciais, mas pela palavra homem eu tenho apenas a concepção, embora confusa, não distinta, de animal e de racional mortal, mas não dos demais acidentes. Com efeito, os significados das coisas individuais formam-se por meio da abstração quando, por exemplo, se diz: esta substância, este corpo, este animal, este homem, esta brancura, este branco. Na verdade, pelas palavras este homem eu considero apenas a natureza do homem, mas relacionada com certo sujeito, enquanto pela palavra homem eu considero aquela mesma natureza simplesmente em si mesma, não relacionada com qualquer um dos homens. Portanto, pode afirmar-se com plena razão que o significado dos universais é isolado, nu e puro: isolado, sem dúvida, dos sentidos, porque ele não percebe a coisa como sensível; nu, quanto à abstração de todas ou de algumas formas, e completamente puro, quanto à distinção, porque nenhuma coisa, quer seja matéria, quer seja forma, é designada nele, razão pela qual dissemos acima que uma concepção desta espécie é confusa. Em consequência disso, após havermos examinado essas questões passemos à resolução das questões propostas por Porfírio a respeito dos gêneros e das espécies, o que podemos fazer agora facilmente, já que foi revelada a natureza de todos os universais. Assim, a primeira dessas questões é a seguinte: se os gêneros e as espécies subsistem, isto é, significam algumas coisas verdadeiramente existentes ou se estão postos apenas no intelecto, isto é, se estão colocados numa opinião vazia, sem a coisa correspondente, como estes nomes de quimera, hircocervo, que não engendram uma sadia compreensão. A isso é preciso responder que, em verdade, eles significam por meio da denominação coisas verdadeiramente existentes, isto é, as mesmas coisas que os nomes singulares, e que de modo algum estão colocados numa opinião vazia; contudo, de certa maneira eles consistem, como ficou estabelecido, num significado isolado, nu e puro. Nada impede, porém, a quem propõe uma questão, tomar, ao investigar, algumas palavras de um modo, ao passo que outro as toma de modo diferente na resolução, como se aquele que resolve a questão dissesse: "Queres saber se estão colocados só no intelecto, etc. Podes tomar as coisas dessa maneira, o que é a verdade, tal como já o deixamos estabelecido anteriormente". Podem as palavras ser tomadas de modo absolutamente igual em toda a parte, tanto por quem responde quanto por quem pergunta, e então faz-se uma só questão, não pela oposição de dois membros anteriores de duas questões dialéticas, como no caso destas duas: se existem ou não existem e, de novo, se estão colocadas ou não nos significados isolados, nus e puros. O mesmo pode dizer-se quanto à segunda questão, que é a seguinte: se as coisas subsistentes são corporais ou incorporais, isto é, uma vez que se admita que os gêneros e as espécies significam as coisas subsistentes, se eles significam coisas subsistentes que são corpóreas ou incorpóreas. Certamente, como diz Boécio, tudo o que existe ou é corpóreo ou incorpóreo, isto é, tomamos estes nomes de corpóreo e incorpóreo por corpo substancial e não corpo ou por aquilo que pode ser percebido por um sentido corpóreo, tal como um homem, a madeira, a brancura, ou não pode, como, por exemplo, a alma, a justiça. O corpóreo também pode ser tomado por coisa separada, como se alguém perguntasse: "Uma vez que os gêneros e as espécies significam coisas subsistentes, será que significam coisas separadas ou não separadas?" Com efeito, quem investiga bem a verdade das coisas não considera apenas o que pode ser dito verdadeiramente, mas todas as coisas que podem ser postas numa opinião. Donde, ainda que seja certo para alguém que nada subsiste exceto as realidades separadas, todavia uma vez que poderia haver a opinião de que outras coisas existissem, não separadas, não sem razão se investiga a respeito delas. E esta última significação do corpóreo parece corresponder mais à questão, isto é, enquanto se investiga a respeito das realidades separadas ou não separadas. Mas, talvez, como diz Boécio, tudo o que existe ou é corpóreo ou é incorpóreo: o incorpóreo, então, parece ser supérfluo, já que nenhum ser existente é incorpóreo, isto é, não separado. Nem coisa alguma que seja trazida para a ordem das questões parece ter valor a não ser, porventura, naquilo que, tal como o corpóreo e o incorpóreo, divida as coisas subsistentes num outro sentido, como se vê nesta pergunta em que aquele que investiga dissesse: "Vejo que das coisas existentes umas se dizem corporais e outras incorporais; ora, quais destas diremos que são as significadas pelos universais?" A ele se responderia: "Num certo sentido são as coisas corporais, isto é, separadas na sua essência; mas as incorporais, quanto à designação do nome universal, porque os universais não denominam separada e determinadamente, mas confusamente, como o demonstramos acima suficientemente. Daí os próprios nomes universais serem chamados corpóreos quanto à natureza das coisas, e incorpóreos quanto ao modo da significação, porque embora denominem coisas que existem separadas, não as denominam, todavia, separada e determinadamente". A terceira questão, a saber, se os gêneros e as espécies estão colocados nas coisas sensíveis, etc., procede do fato de se conceder que são realidades incorpóreas porque, evidentemente, o ser incorpóreo, tomado de um certo modo, é dividido por existir e não existir no sensível, como também o lembramos acima. Diz-se que os universais subsistem nas coisas sensíveis, isto é, que significam uma substância intrínseca existente numa coisa que é sensível em virtude das suas formas exteriores; e quando significam essa substância que subsiste em ato na coisa sensível, demonstram, contudo, que a mesma é naturalmente separada da coisa sensível, como nós o demonstramos acima quanto a Platão. Por isso, Boécio afirma que os gêneros e as espécies são entendidos nas coisas sensíveis mas não existem fora delas, a saber, por isso que as coisas dos gêneros e das espécies são consideradas em relação à sua natureza racionalmente, em si mesmas, fora de toda a sensibilidade, porque elas poderiam verdadeiramente subsistir em si mesmas, mesmo quando as formas exteriores, pelas quais elas chegam aos sentidos, também tenham sido removidas. De fato, admitimos que todos os gêneros ou espécies existem nas coisas sensíveis. Mas, porque o seu significado sempre se dizia isolado dos sentidos, eles não pareciam de modo algum existir nas coisas sensíveis. Por isso, indagava-se com razão se eles poderiam existir alguma vez nos sensíveis, e responde-se, quanto a certos deles, que existem, mas de tal maneira que, como foi dito, continuam a existir naturalmente fora da sensibilidade. Podemos, entretanto, na segunda questão tomar corpóreo e incorpóreo por sensível e não sensível a fim de que a ordem das questões fique mais conveniente, e uma vez que se dizia ser o significado dos universais isolado dos sentidos, como se afirmou, indagou-se corretamente se os universais seriam sensíveis ou não sensíveis; e como se respondesse que alguns deles são sensíveis quanto à natureza das coisas, mas que eles próprios são não sensíveis quanto ao modo de significar — isto é, porque não designam as coisas sensíveis que denominam do mesmo modo pelo qual são percebidas, quer dizer, enquanto separadas, e não é pela demonstração deles que o sentido as descobre — restava a questão de saber se os universais denominam apenas os próprios sensíveis ou se eles também significam alguma outra coisa; ao que se responde que eles significam, ao mesmo tempo, as próprias coisas sensíveis e aquela concepção comum que Prisciano atribui de modo principal à mente divina. E neles permanecendo. Com relação ao que nós entendemos aqui como a quarta questão, como lembramos acima, a solução é esta: que nós, de modo algum, queremos que os nomes universais existam, quando, tendo sido destruídas as suas coisas, eles já não sejam predicáveis a respeito de muitos, porquanto eles não são comuns a quaisquer coisas, como ocorre com o nome da rosa, quando já não existem mais rosas, o que, entretanto, ainda é significativo em virtude do intelecto, embora careça de denominação, pois de outra sorte não haveria a seguinte proposição: nenhuma rosa existe. Além disso, surgiram questões naturalmente a respeito dos termos universais mas não dos singulares, porque não havia tal dúvida quanto ao significado das palavras, porquanto o seu modo de significar estava bem de acordo com o estado das coisas. Assim como as coisas existem separadas em si mesmas, assim elas são significadas pelas palavras separadamente e o significado delas refere-se a uma coisa determinada, referência essa que os nomes universais não apresentam. De mais a mais, uma vez que os universais não significariam as coisas enquanto separadas, não pareciam significá-las quando se achavam unidas, já que nenhuma coisa existe na qual eles se encontrem, como também ensinamos acima. Em suma, uma vez que havia tanta dúvida quanto aos universais, Porfírio resolveu tratar apenas desses universais, excluindo os singulares da sua intenção por serem bastante claros em si mesmos, ainda que deles trate, contudo, incidentalmente, por causa de outras coisas. Deve-se notar, porém, que, embora a definição do universal ou do gênero ou da espécie inclua apenas palavras, estes nomes, todavia, são às vezes transferidos para as suas coisas, como quando se diz que a espécie consta do gênero e da diferença, isto é, a coisa da espécie provém da coisa do gênero. De fato, quando se desvenda a natureza das palavras quanto à significação, ora se trata das palavras, ora das coisas, e frequentemente os nomes destas são transferidos reciprocamente para aquelas. Por esta razão, principalmente, o tratamento ambíguo tanto da lógica quanto da gramática induziu em erro pelas transposições dos nomes muitos que não distinguiram bem a propriedade da imposição dos nomes ou o abuso da transferência. Ademais, é principalmente Boécio nos seus Comentários quem faz essa confusão pelas transferências, e particularmente quanto à investigação dessas questões, de tal forma que certamente ele parece abandonar o caminho certo ao tentar exprimir o que são os gêneros ou as espécies. Percorramos, pois, essas questões brevemente e apliquemo-nos, como convém, à referida sentença- Na investigação das questões aqui, a fim de resolver melhor o problema, primeiramente ele o perturba por meio de algumas questões e de argumentos sofísticos para nos ensinar, pouco depois, a nos desembaraçarmos delas. E ele faz uma proposta inadmissível ao dizer que se deve negligenciar todo cuidado e a investigação a respeito dos gêneros e das espécies, como se dissesse que evidentemente aquelas coisas que parecem ser gêneros e espécies não podem ser ditas vocábulos, seja quanto à significação das coisas, seja quanto ao intelecto. Ele o demonstra quanto à significação das coisas, por isso que nunca se descobriu uma coisa universal, única ou múltipla, isto é, que fosse predicável de muitos, como ele próprio explica cuidadosamente e como nós demonstramos acima. Ademais, que uma única coisa não seja universal e que, por isso, não exista nem o gênero nem a espécie, ele o confirma ao dizer: "Tudo o que é único é único em número, isto é, separado na sua própria essência; mas os gêneros e as espécies que devem ser comuns a muitas coisas não podem ser uma coisa só em número e, portanto, não podem ser únicos". Mas uma vez que alguém pode dizer contra tal asserção que os gêneros e as espécies são tal coisa única em número pelo fato de ser comum, ele impede a fuga a esse alguém, ao dizer: "Tudo o que é único em número ou é comum pelas partes ou porque é um todo comum pela sucessão dos tempos ou é um todo no mesmo tempo, mas de tal maneira que ele não constitua as substâncias daquelas coisas às quais ele é comum". Ele remove imediatamente todos esses modos de comunidade tanto do gênero como da espécie, dizendo que eles antes são comuns de tal maneira que estão todos ao mesmo tempo em cada uma das partes e constituem a sua substância. Sem dúvida, os nomes universais não são participados por partes pelas diferentes coisas que eles denominam, mas eles são os nomes inteiros e completos de cada uma dessas coisas ao mesmo tempo. Pode-se dizer, também, que eles constituem as substâncias das coisas às quais são comuns ou por significarem por meio da transferência coisas que constituem outras coisas — como, por exemplo, animal denomina algo no cavalo e no homem que é a matéria deles ou mesmo dos homens que lhe são subordinados — ou porque se diz que constituem a substância, pois que, de certa maneira, levam ao conhecimento das coisas por causa das quais eles se dizem substanciais a elas, e observando-se, naturalmente, que homem denota tudo o que é animal, racional e mortal. Ora, depois que Boécio demonstra a respeito de uma coisa única que não existe o universal, ele prova o mesmo quanto às coisas múltiplas, demonstrando claramente que a espécie ou o gênero não são uma multidão de coisas separadas, e destrói aquela opinião pela qual alguém poderia dizer que todas as substâncias tomadas ao mesmo tempo constituem o gênero substância, e todos os homens, a espécie que é homem, como se se dissesse: "Se nós afirmarmos que todo gênero é uma multidão de coisas que concordam substancialmente, por certo toda essa multidão terá naturalmente alguma outra coisa acima de si mesma e essa, de novo, terá por sua vez outra superior, e assim se irá ao infinito, o que é absurdo". Por conseguinte, ficou demonstrado que os nomes universais não parecem ser universais quanto à significação das coisas, quer de uma só, quer de múltiplas, porquanto, evidentemente, não significam nenhuma coisa universal, isto é, que seja predicável de muitos. Em consequência disso, ele patenteia igualmente que eles não podem ser chamados de universais quanto à significação do intelecto ou significado, uma vez que ele demonstra sofisticamente que esse intelecto é vazio porque, evidentemente, sendo obtido por meio da abstração, ele é constituído de modo diferente daquele em que a coisa subsiste. Sem dúvida, ele próprio resolveu satisfatoriamente, e nós resolvemos cuidadosamente acima o nó desse sofisma. Ele, porém, não julgou que a outra parte da argumentação, pela qual ele demonstra que nenhuma coisa é universal, precisasse de demonstração, porque ela não era sofistica. Com efeito, ele toma a coisa como coisa, não como palavra porque, evidentemente, a palavra comum, embora seja em si mesma como se fosse uma única coisa em essência, é comum pela denominação na apelação de muitos; ora, é de acordo com esta apelação, é claro, e não de acordo com a sua essência, que ela é predicável de muitos. Todavia, a multidão das próprias coisas é a causa da universalidade do nome porque, como lembramos acima, não é universal senão aquilo que contém muitas coisas; entretanto, a universalidade que a coisa confere à palavra, a própria coisa não a tem em si mesma e, por certo, a palavra não tem significação por causa da coisa e um nome é julgado ser apelativo de acordo com a multidão das coisas, embora não digamos que as coisas signifiquem ou que elas sejam apelativas.