Sêneca – A Constância do Sábio CAPÍTULO I A PRESTÂNCIA DA FILOSOFIA ÉTICO-MORAL DO ESTOICISMO 1.1 A filosofia estoica é mais aprimorada Posso afirmar, com plena segurança, Ó Sereno, que a diferença entre os filósofos estoicos e os adeptos das outras correntes de pensamento é a mesmo que ocorre entre o homem e a mulher. Ambos contribuem, de modo igual, para a socialidade da vida, embora uma categoria nasceu para obedecer e a outra para mandar. Enquanto os outros filósofos usam de métodos brandos e sugestivos, a guisa de médicos caseiros que curam as enfermidades sem aplicar tratamento de maior eficácia e rapidez, limitando-se ao que se lhes depara como admissível, por sua vez, os estoicos, tendo optado pela senda difícil e áspera, não se preocupam se ela aparece ou não amena para quantos pela mesma caminham. Eles querem, sim, que,dentro do mais breve tempo possível, sejam arrebatados e conduzidos àquele altiplano inacessível para os arremessos fortuitos da fortuna, já que então ficam sobranceiros aos seus caprichos. 1.2 Objeção: A doutrina estoica é exigitiva em excesso Os caminhos por onde somos conduzidos são íngremes e ásperos, dizem. 1.3 Réplica de Sêneca E daí? Desde quando a planície galga os cimos? Além do mais, esses caminhos não são lá assim tão ásperos como parecem. Apenas a entrada mostra pedras e ribanceiras com o feitio de intransitável como muitas paisagens, quando avistadas de longe, assemelham-se a blocos escarpados e contínuos, já que a distância confunde a visão. Depois, avistadas, mais de perto, aqueles mesmos pontos que, por erro de perspectiva, configuravam um bloco único, vão, aos poucos, desdobrando-se. Assim o que antes era visto como precipício, agora, é uma encosta mansa. 1.4 Catão insultado pela plebe De recente, quando ocorreu a menção a Marcos Catão, tu, com essa repugnância contra injustiça, ficaste indignado ao saberes quanto aquela época foi inepta para entendê-lo. Bem ele, que se sobrelevava aos Pompeus e aos Césares, foi posto abaixo de Vatínio. A ti também pareceu ser ele um alucinado, quando, em sessão legislativa, arrancaram a toga de seus ombros porque era contra determinado projeto de lei e ainda quando, desde a tribuna até o arco de Fábio, foi arrastado por uma turba desvairada que o vituperava com palavras cruéis e até com escarros além de outros ultrajes. 2.1 Os predicados de Catão como cidadão e como político Então eu te respondo ser mais correto ficares penalizado por causa da República e não de P. Clódio, de um lado e do Vatínio, de outro lado ou de qualquer indivíduo perverso que mercadeja em política. Levados pela volúpia cega, eles não percebem que ao venderem também eles mesmos são vendidos. Quanto a Catão eu ordenei que ficasses tranquilo já que injúria nenhuma nem afronta podem incidir sobre aquele sábio porque nele os deuses imortais deram para nós um modelo mais sólido de homem sábio do que Ulisses e Hércules, heróis da Idade Mítica. A esses os nossos estoicos proclamaram sábios porque invencíveis no trabalho, alheios aos prazeres e superiores a qualquer tipo de terror. Catão não enfrentou as feras eu já captura cabe aos caçadores montanheses e aos campônios. Também não viveu na época em que se acreditava que o céu estava suspenso sobre os ombros de único homem. Ultrapassadas as antigas crendices, tendo já despontado um século de maior acuidade, Catão entrou em conflito com a ambição, esse mal multiforme, com sua imensa volúpia de poder que o retalhamento de todo o orbe entre três homens não conseguiu aplacar. Ele se posicionou isolado contra os vícios de uma cidade em degenerescência que afundava sob o próprio peso. Tanto quanto lhe foi possível, retardou o desmoronamento da República. No final, arrastado por ela, preferiu segui-la na ruína que ele retardara por muito tempo. Em decorrência disso, extinguiu-se junto o que não era justo ficar separado: nem Catão vivendo após a morte da liberdade nem a liberdade após a morte de Catão. 2.2 Ultraje algum melindra o sábio A tal indivíduo pensas tu que o povo conseguiu injuriar, despojando-o do cargo de pretor ou da toga, mesmo que lhe tenham coberto de escarros as cãs veneráveis? Jamais. O sábio está seguro. Nem injúria nem contumélia conseguem atingi-lo. 3.1 Outra objeção que tenta abalar os preceitos da moral estoica Imagino ver teu espírito inflamado e em estado de intensa efervescência, Estás a ponto de exclamar: são essas coisas que tiram o cunho de autoridade de vossas doutrinas. Prometeis algo de grandioso e extraordinário que foge do alcance de nossas aspirações. É por isso que merecem pouco acolhimento. Com efeito, depois de ter proclamado, com muita ênfase, que o sábio não é pobre, assegurais que ele, habitualmente, necessita de escravo, de teto e de alimento. Após negar que o sábio não descai em demência, afirmais que ele pode ficar fora de si e proferir palavras pouco recomendáveis, além de tornar-se ousado por efeito de algum ímpeto doentio. Tendo ainda negado que o sábio seja escravo admites que ele pode ser vendido e executar ordens de seu amo submetendo-se aos afazeres mais servis. Assim, depois da altitude a que subis, desceis ao nível das outras escolas filosóficas. A única diferença é de vocabulário. Eis porque, à primeira vista, ocorre algo de suspeito quando, de modo magnífico e empolgante, declaras que o sábio não pode ser atingido por injúria ou afronta contumeliosa. Importa então saber se o colocas além de qualquer indignação ou injúria. Se disseres que ele suporta, com ânimo forte, tais situações, então nada de especial, já que pratica o que é normal pois a paciência estrutura-se pela assiduidade no enfrentamento de injúrias. Se negares que ele recebe injúria, isto é, se asseguras que ninguém nunca irá sequer tentar injuriá-lo, então abandonando todos os meus afazeres, eu me faço adepto da filosofia estoica. 3.2 Sêneca responde ao objetante Eu não me proponho adornar o sábio com honras fictícias ou puramente verbais. Pretendo, sim, situá-lo num lugar inacessível a qualquer injúria. 3.3 Réplica do objetante "E daí?", dirias. "Ali, não haverá ninguém que assedie ou provoque?" 3.4 Sêneca responde: Não há nada, na natureza, de tão sacro que não seja atingido por algum desrespeito. As coisas divinas não perdem seu privilégio de respeito máximo porque existe sempre quem intenta contra sua magnitude transcendente. Invulnerável não é o que não está sujeito a ser alvejado e, sim, o que não pode ser lesado. Eis a característica pela qual te farei conhecer quem é sábio. 3.5 É mais forte quem não foi vencido do que quem não sofreu ataque. Não resta dúvida ser mais firme a força nunca derrotada do que aquela que não enfrenta obstáculo. Por isso, dúbias são as forças nunca testadas, ao passo que consistente é a firmeza que repele qualquer investida. Haja então ciência do seguinte: É dotado de melhor consistência de ânimo o sábio a quem injúria alguma danifica do que o indivíduo que jamais foi alvejado. Eu denomino valoroso aquele a quem as contradições não abatem ou não atemoriza a aproximação do inimigo. O mesmo já não digo de quem se acerca da ociosidade pingue em meio a companheiros abúlicos. 3.6 A invulnerabilidade do sábio Asseguro que o sábio não é vulnerável por injúria alguma. Não importa qual o número de setas que desfiram contra ele, já que o mesmo é impenetrável. Tal como a dureza de certas pedras é refratária ao ferro e tal como o diamante não pode ser riscado ou talhado ou esfarelado, mas rechaça, de imediato, todos os elementos que o atacam, assim como outros corpos resistem à combustão, sendo que o fogo não consegue consumi-los porque, em meio às chamas, eles se conservam imunes, sem perda da forma própria, assim ainda como os altos penedos quebram a violência do mar e não mostram sinal algum do tenaz impacto com que são golpeados desde há tantos séculos, assim também é a solidez de espírito do varão sábio que armazena tamanha energia a ponto de estar a salvo de qualquer invectiva injuriosa tal como esses exemplos que acabo de referir. 4.1 Nova objeção: então não existe ninguém para atacar o sábio "E daí?", dirias, "não iria surgir alguém tomado pelo intento de vituperar o sábio?" 4.2 Sêneca responde: o que vem de baixo não atinge o sábio Pode até tentar, mas a injúria não o alcança porque a distância é tão grande que não enseja força suficiente para atingi-lo. Mesmo quando os poderosos, exaltados pelo desempenho de sua autoridade e assessorados pela parceria dos serviçais, intentam injuriá-lo, tais ataques ficam tão enfraquecidos e tão longe de atingir o alvo como projéteis lançados para o alto e que, logo, perdem-se de vista, caindo em terra muito antes de tocarem a abóbada celeste. E então? Pensas tu que aquele rei estulto, com uma chusma de setas chegou a ofuscar o clarão do dia ou com alguma delas ferir o solou que, com as correntes lançadas ao fundo do mar, teria atingido Netuno? Da mesma forma como o céu está inatingível para a mão do homem, e como em nada lesa a divindade aquele que arrasa templos e quebra imagens, assim também o indivíduo que faz uso da maldade, da arrogância e da soberba contra o sábio, não passa de mero frustrado. 5.1 Outra objeção "Então", dirias, "melhor fora que ninguém intentasse causar-lhe mal algum". 5.2 Sêneca responde que não existe ausência absoluta de maldade Eis uma coisa difícil que propões para o gênero humano: a inocuidade. Que tais atos não se efetuem, isso interessa àqueles que os praticam e não, por certo, a quem não pode ser alvejado. Eu estou propenso a pensar que o poder da sabedoria é tão ostensivo de tranquilidade, em meio à turbulência dos ataques, como a superioridade de um comandante que fica manifesta na plenitude da segurança para sua tropa, em território inimigo. CAPÍTULO II A NECESSIDADE DE DISTINGUIR ENTRE INJÚRIA OU OFENSA PESADA E SIMPLES CONTUMÉLIA OU INSULTO DE POUCA MONTA 1. A injúria é mais agravante do que a contumélia Se permitires, ó Sereno, façamos a distinção entre injúria ou ofensa e contumélia ou mero insulto. A primeira, por sua natureza, é de maior gravidade, ao passo que a outra é mais leve, se bem que também pesada para um indivíduo sensível, já que a este ele ofende, embora não lese. Ocorre haver tamanha fraqueza e tanta vaidade na mente de certos indivíduos a ponto de julgarem que nada de pior existe. Assim há escravo que prefere ser açoitado a receber bofetada como existe quem julga mais tolerável a morte ou cruel flagelação do que uma repreensão verbal. A tal grau de inépcia o indivíduo chega que já não o atormenta a dor e, sim, a expectativa dela como sucede com as crianças. A elas causam medo uma sombra, uma máscara feia, um rosto carrancudo. Palavras ríspidas provocam lágrimas enquanto sinalar com os dedos e outros tipos de ameaça já provocam fuga para evitar o pior. 2. Sêneca define a injúria como prática de ato lesivo A injúria busca fazer mal a alguém, mas a sabedoria não dá espaço para o mal porque para ela o único mal que existe é a torpeza que não se instala onde a virtude e o bem residem. Por conseguinte, já que não existe injúria sem mal nem mal sem torpeza, então a maldade não logra atingir a quem está impregnado de coisas honestas. Eis porque a injúria não atinge o sábio. Com efeito, se injúria implica infligência de alguma maldade e dela o sábio está a salvo, então injúria alguma afeta o sábio. 3. Sêneca caracteriza todos os efeitos da injúria e demonstra que nenhum deles chega até o sábio Toda injúria é uma diminuição daquele a quem ela se aplica, sendo que ninguém recebe injúria sem algum detrimento ou da dignidade ou do corpo ou das coisas do lado de fora. Ocorre que o sábio nada pode perder porque todas as coisas ele as tem, solidamente, instaladas nele mesmo e por isso de nenhum modo delas faz concessão à fortuna. Assim todos os seus bens estão em segurança, já que ele se compraz com a virtude que de nada necessita e por isso não fica sujeita ao mais ou menos. De fato, quem alcançou a plenitude da perfeição não está sujeito a acréscimo e a fortuna só retira o que ela mesma acrescentou. Como ela não propicia a virtude, também não a retira. 4. Sêneca descreve os predicados altaneiros da virtude e do sábio A virtude é, portanto, algo de livre, inviolável, inamovível, inabalável e de tai modo refratária aos golpes do azar que não pode ser fragilizada e muito menos vencida. 5. A injúria não causa dano a quem nada possui O sábio enfrenta, com olhar firme, os aparatos bélicos do terrorismo, sem nada alterar-se no seu rosto, quer sejam eles prenúncios de situação ruim, quer mesmo propícia. Assim nada perde que lhe possa causar desgosto porquanto não possui nada além da virtude da qual não pode ser despojado, sendo que das demais coisas ele só tem posse precária. Aliás, quem iria lamentar a perda do que não é seu? Se a injúria em nada pode danificar aquilo que é própria do sábio, pois salvante a virtude, também fica a salvo tudo quanto é própria dela, então também sobre ele não recai injúria alguma. 6. O exemplo de Estilpão demonstra que não se perde o que o integra a interioridade Demétrio, denominado Poliorceter, tinha se apossado da cidade de Megara. Ao perguntar ao filósofo Estilpão se havia sido espoliada de algum bem, esse lhe respondeu: "Nada perdi; tudo que é meu, está comigo”. Na verdade, seu patrimônio fora saqueado, já que a inimiga lhe raptara as filhas e sua pátria estava dominada pela poder estrangeiro. Quando o questionava, o rei estava dentro do carro de triunfo, rodeado pelas armas do exército vitorioso. 7. O sábio é invencível e ileso Foi assim que o filósofo arrebatou o prestígio daquela vitória das mãos reais porque, no interior de uma cidade derrotada, revelou-se não só invencível, mas ainda incólume. É que permaneciam, sob seu pleno domínio, os bens verdadeiros sobre os quais mão alguma se apossara, enquanto os demais objetos, destruídos ou roubados, não tinham outro preço além de favores ocasionais do beneplácito da fortuna. Bem por isso não os amava como próprios, pois tudo que reside do lado de fora de nossa interioridade configurava-se para ele qual posse frágil e insegura. CAPÍTULO III ESTILPÃO, MODELO DE HOMEM QUE A INJÚRIA NÃO AFETA 1. Agora, averigua se algum indivíduo gatuno ou caluniador ou vizinho insolente ou mesmo algum ricaço no desempenho de uma velhice carente de descendência, poderia injuriar, quando nem a guerra nem um inimigo mesmo perito na arte gloriosa de arrasar cidades pelas bases, nenhum daqueles nada conseguiu arrebatar de suas mãos. 2. Em meio a espadas reluzentes por todos os lados e o tumulto de militares em ação de pilhagem enquanto chamas e sangue assinalam a ruína da cidade cujos templos desabam, com fragor, sobre seus deuses, ali, um único ente humano mantém-se em paz. Não existe, portanto, motivo para julgares atrevida a promessa que te fiz porque, se não me deres crédito eu apresento um fiador. Dado que vacilas em acreditar na existência de tão magnífica firmeza aliada ao esplendor de espírito de um ser humano, então ele mesmo vem ao nosso encontro e declara: 2.1 Não existe fundamento para embasar a dúvida acerca de como um homem, nascido para sobrepor-se à própria condição humana, possa enfrentar, de modo sereno, a dor, o prejuízo, a tribulação e ferimentos a par dos abalos sísmicos de circunstâncias que o cercam trepidantes. Basta que ele, com firmeza, enfrente a tudo enquanto suporta tanto as coisas pesadas, com placidez, como as amenas, com moderação, sem entregar-se àquelas nem confiar nessas, visto manter-se sereno em meio ao vendaval dos infortúnios, já que nada tem de seu senão a própria personalidade e mesmo essa na sua parte mais nobre. 2.2 Aliás, eis que eu mesmo posso comprovar-te tudo isso. Ainda que graças a sua mão de destruidor, tantas cidades e muralhas foram arrasadas por golpes de aríetes, enquanto torres altas foram, rapidamente, desmoronadas por meio de minas e de fósseis subterrâneos tendo ainda aptidão para levantar seus baluartes a ponto de igualaram-se com as mais elevadas cidadelas, nem por isso ele vai dispor de máquinas de guerra que possam abalar uma mente humana bem estruturada. 2.3 Eu acabo de pôr-me a salvo em meio à ruína de minha casa, fugindo do fogo que brota de todos os lados em cima de sangue. Eu ignoro o destino de minhas filhas e também se tudo isso é pior do que se abateu sobre minha pátria. Sozinho e velho, vejo ao meu derredor como tudo ficou hostil. Isso não obstante, asseguro que todo o meu patrimônio espiritual permanece íntegro e incólume. 2.4 Estou em posse de tudo quanto sempre tive como realmente meu. Eis porque não tens por onde julgar a mim como vencido e a ti como vitorioso. Apenas tua fortuna superou a minha. Ignoro onde residem essas coisas caducas que mudam de dono. Pelo que me tange, minhas coisas, estas não me deixaram e vou tê-las sempre. 2.5 Os ricos perderam seus patrimônios, os libidinosos seus amores e suas amigas a preço alto do despudor. Também os ambiciosos, a Cúria, o Foro e os lugares destinados à prática pública de vícios, tudo foi espoliado. Além disso, os usurários ficaram sem os registros onde a avareza, com sua hipócrita cortesia, anotava riquezas imaginárias. Eu, de minha parte, apesar de ter tudo perdido, mantenho-me na posse plena do que me pertence. Por conseguinte, podes questionar a esses outros que choram e lamentam, que para proteger o dinheiro expõem seus peitos às espadas vibrantes como ainda a quantos fogem do inimigo, levando bolsas recheadas. 3. Saiba, ó Sereno, que esse varão íntegro, pleno de virtudes humanas e divinas, nada perde. Seus bens estão cercados de muralhas firmes, inexpugnáveis e nada comparadas com os muros da Babilônia por onde penetrou Alexandre. Nem com os de Cartago ou de Numância capturados pela mesma mão, nem com o Capitólio e sua cidadela, marcados por ataques de inimigos ferozes. Com efeito, as muralhas que defendem o sábio ficam a salvo do fogo e dos assaltos. Não oferecem acesso a ninguém porque altíssimas, inexpugnáveis, enfim, iguais às moradas dos deuses. CAPÍTULO IV SÊNECA APRESENTA OUTRO ARGUMENTO PARA PROVAR QUE A INJÚRIA NÃO FERE O SÁBIO: A VIRTUDE NÃO SE ALIA AO MAL 1. Não venhas dizer, tal como é teu costume, que tal tipo de sábio não existe em lugar algum. Não somos nós que projetamos essa fantasmagoria gloriosa do gênero humano, nem é ela mera idealização grandiosa de uma figura fictícia. Tal como o descrevemos, nós o apresentamos como algo raro e único, no espaço de tantos séculos, já que coisa excepcionalmente grandiosa transcende o comum, o vulgar e o corriqueiro. Além do mais, esse mesmo M. Catão que motivou toda essa nossa explanação, receio que até supere o modelo em pauta. 2. Advém ainda que o agente de uma lesão deve ser mais prestante que o lesado, porém a maldade não é mais valiosa do que a virtude. Eis a razão pela qual o sábio não é passível de receber ofensa. Injúria contra os bons só pode ser intentada por indivíduos maldosos. Entre os bons reina a paz, ao passo que os maus são perniciosos tanto para os bons como para eles mesmos. Posto que só o mais fraco pode ser ferido e o mau é mais débil do que o bom, então o bom só pode temer injúria de alguém igual a ele. Daí se conclui: não pode a ofensa cair em cima de varão bom. Aliás, não preciso repetir que não existe indivíduo bom que não seja honesto. 3. "Se Sócrates", diria alguém, "foi condenado injustamente, então o sábio pode ser lesado". 4. Sêneca responde, explanando Aqui, devemos entender a possibilidade de alguém fazer-me uma injúria e eu não ser atingido pela mesma. Assim alguém poderia furtar algo de minha casa de campo e repô-la na minha residência urbana. Ele cometeu furto e eu nada perdi. Pode, portanto, alguém se tornar nocivo sem que o outro tenha sido alvejado por sua maldade. Assim, se alguém se recolhesse ao leito com sua esposa, pensando ser ela a mulher de outro indivíduo, ele será adúltero sem que ela seja. Alguém me administra veneno, mas misturado que foi na comida, perdeu o efeito nocivo. Ele, ao me dar veneno, tornou-se réu de delito ainda que não tenha conseguido envenenar-me. Assim não deixará de ser criminoso quem ficou frustrado no seu intento porque a veste do agredido interceptou um golpe fatal. Todos os crimes mesmo antes de levados a termo, desde que culposos, são atos plenamente responsabilizados pela moral. 5. Algumas coisas são de tal tipicidade e de tal modo conexas entra elas que uma não pode existir sem a outra. O que afirmo, cuidarei de esclarecer. Posso mover os pés, sem correr, porém, não posso correr sem o movimento dos mesmos. Posso, embora dentro d'água, não nadar, mas não posso nadar sem estar dentro d'água. 6. Isso vale para o que estou esclarecendo. Se eu recebi uma injúria, então alguém a causou. Se ela aconteceu, nem por isso, necessariamente, atingiu-me. Pois podem ocorrer muitas circunstâncias que as interceptam. Assim um elemento fortuito pode incidir sobre a mão que segura a arma assassina, desviando o golpe. Também algum elemento fortuito pode repelir qualquer tipo de injúria, cerceando-lhe a execução de sorte que, embora acionada, não seja atingido o alvo. CAPÍTULO V A VIRTUDE OPÕE-SE AOS SEUS CONTRÁRIOS. ELA NADA RECEBE DE ACRÉSCIMO NEM DE BOM NEM DE MAU 1. De outro lado, a justiça nada de injusto pode sofrer porque os contrários repelem-se. Por conseguinte, a injúria só pode admitir algo de injusto. Logo o sábio não é passível de ser injuriado. E não há motivo para ficares admirado. Se ninguém pode causar-lhe injúria também não pode ser-lhe de algum proveito. Ao sábio nada falta. Não necessita de algo como prêmio. Por sua vez, o mal nada de digno contém para oferecer ao sábio. Aliás, para dar é necessário, antes, ter, mas o mal nada tem de cujo valor possa o sábio alegrar-se. 2. Ninguém favorece nem desfavorece ao sábio porque as coisas divinas nem desejam ajuda nem temem prejuízo. Por sua vez, o sábio já está bem perto dos deuses. Com exceção da mortalidade, ele é semelhante a um deus. Com seu empenho em alcançar coisas excelsas, ordenadas e intrépidas que evoluem em um ritmo igual e harmonioso, tendo por objetivo coisas seguras, plausíveis, direcionadas para o bem comum, enquanto saudáveis tanto para ele como para os demais, então com nada de desprezível ele se defronta nem de coisa alguma sente carência. 3. Aquele que, com respaldo de sua racionalidade, atravessa pelas vicissitudes humanas, com ânimo divino, não abre espaço para acolher injúria. Pensas tu que só do lado dos homens não possa advir injúria? Garanto que nem sequer da parte da fortuna, já que essa sempre que se encontra com a virtude, nunca se iguala a ela. Se mesmo aquela prova máxima, além da qual não subsiste ameaça alguma, seja da parte de leis severas, seja da parte dos senhorios crudelíssimos, onde a fortuna encontra barreiras para seu império, nós a recebemos, de modo plácido e todo conformado, sabendo ser a morte não um mal e que por isso ela deixa de implicar injúria, então, com muito denodo, suportaremos todas as demais contrariedades, danos, dores, afrontas, lutas familiares e separações. Todas essas coisas, ainda que assediem o sábio, não o afogam porque tais ocorrências não o entristecem, mesmo quando agridem com assaltos sucessivos. Posto que o sábio tolera, com controle, as injúrias oriundas da fortuna, quanto mais então irá suportar as originadas de homens prepotentes que são meros instrumentos dela. CAPÍTULO VI APESAR DOS GOLPES INJURIOSOS, O SÁBIO MANTÉM-SE NA TRANQUILIDADE DA FIRMEZA 1. O sábio suporta muitas coisas tais como o rigor do inverno, as variações de temperatura ou ainda febres e enfermidades além de outros incômodos fortuitos. Também não aprecia, tão positivamente, os indivíduos, a ponto de pensar que eles agem sob a luz da razão. Isso é exclusivo do homem sábio. Nos demais entes humanos, não prevalecem o discernimento judicativo. Há, sim, fraude, ousadia e ímpeto passional. Em suma, coisas que o sábio enumera no molde de ocorrências fortuitas porquanto a fortuna é que assedia de todos os lados e pressiona para o aviltamento. 2. Seja vista, de outro lado, a extensão de oportunidades que existem para a injúria em situações a que estamos expostos tais como um acusador contratado, pechas caluniosas, poderosos irritados e roubalheira de todo naipe praticada por togados. Outro tipo de injúria surge, quanto alguém vê seu lucro ou alguma vantagem, de há muito almejada, contrariar a expectativa ou quando uma herança esperada, com muita ansiedade, é desviada ou o negócio de uma residência lucrativa fica frustrado. Em todo caso, disso tudo o sábio fica longe porque ele não vive nem de expectativa ansiosa nem de temores. 3. Seja acrescentado que ninguém recebe injúria sem alguma perturbação de alma a não ser quando fica apreensivo, mas o indivíduo, isento de erros não sente tais abalos porquanto dono de si ele é cultor de profunda e plácida quietude. Se fosse sua pessoa alvejada, ele se inquietaria, mas o sábio está isento da ira que a mera aparência de injúria provoca. Além do mais, ele não se livraria daquele ímpeto raivoso, se também não estivesse alheio aos motivos que o provocam. Eis porque ele se mantém firme e bem disposto, possuído de constante bom humor. Aliás, a tal ponto ele recusa curvar-se ante as ofensas de fatos e de atitudes que a mesma injúria toma-se útil para testar tanto a ele mesmo como para pôr a virtude à prova. 4. Eu te peço. Saibamos acatar, com respeitoso silêncio, o presente ensinamento. Seja prestada atenção benevolente, com ouvidos abertos às razões pelas quais o sábio está distante de qualquer injúria. Não é por isso que se tolhe algo de vossa arrogância nem da rapacidade de vossos apetites ou mesmo da cegueira temerária de vossa soberba. Ao deixar de lado vossos vícios, medrando à bruta, o sábio conquista a própria liberdade. Não estamos a insistir que não vos seja lícito molestá-lo, mas para que ele lance no abismo todas as injúrias, defendendo-se de modo paciente e com grandeza de alma. 5. Também nos jogos sacros, a maioria das vitórias é obtida mediante a estratégia que consiste na perícia de saber como cansar as mãos do atacante. Pode então ficar certo que o sábio pertence àquela categoria que, com exercitação perseverante e rija, conseguiu fortaleza para resistir a toda violência inimiga. CAPÍTULO VII O SÁBIO NÃO SE DEIXA MELINDRAR, QUANDO É TAMBÉM ALVEJADO POR CONTUMÉLIA 1. Depois de ter explanado a primeira parte, passemos para a segunda, onde iremos demonstrar, com argumentos vários, sendo uns específicos e outros gerais, a inanidade da contumélia. Esta implica ofensa menor do que a injúria porquanto dela advém mais queixume do que vingança. Aliás, a lei não a considera motivo de reivindicação. 2. A pusilanimidade reage, emocionalmente, perante palavras e fatos como estes: hoje, ele não me recebeu, mas deu acolhida a outros; repeliu, de modo ríspido, minha justificativa ou riu na minha cara; não me colocou no centro da mesa e, sim, no canto; e outros mais do mesmo naipe que eu chamaria de quinquilharias de um temperamento melindroso. Em geral, displicências como essas molestam indivíduos sensíveis e bem agraciados pelo destino, pois quem anda ocupado com atividades empenhativas não tem sequer tempo para notá-las. 3. Os temperamentos, por estrutura própria, fracos e efeminados, em excesso afeitos à ociosidade, já que carentes de autênticas injúrias, deixam-se influenciar por coisas como essas cuja gravidade advém mais da maneira de interpretá-las. Eis porque quem se altera ante uma contumélia demonstra pouco tino prudencial e exígua autoconfiança, já que, com facilidade, julga-se menosprezado. Evidente que tal atitude resulta de um espírito pusilânime que se abate e rebaixa. O sábio, na verdade, por ninguém se deixa menosprezar porque conhece sua dignidade e está convicto de que nada exerce domínio sobre ele. Aliás, a tudo isso que se denomina pequenez de ânimo melhor seria chamar de enfermidade porque são coisas que não o vencem nem sequer logram produzir abalo nele. 4. Outras coisas há que machucam o sábio, embora não o derrotem. Assim a dor física, a debilidade, a perda de amigos e de filhos, a desgraça da pátria infestada pela guerra. Não nego que o sábio sinta tais incômodos, posto não ter a dureza da pedra ou do ferro. Não existe virtude que não sinta o impacto da adversidade. E daí? Recebe, sim, golpes, mas supera-os, curando e amenizando. As demais frivolidades, além de não o afetarem, ele não necessita valer-se de vigor máximo para enfrentá-las porque as tem na conta de fúteis e mesmo de motivo para escárnio. CAPÍTULO VIII O MENOSPREZO DE INSULTOS REQUER ELEVADO SENSO DE AUTOESTIMA 1. Como a maioria das contumélias são causadas por indivíduos soberbos, pelos insolentes e pelos que se dão mal com a felicidade, então o sábio tem com que rechaçar aquele ímpeto passional. Ele conta com a magnanimidade que é a mais bela das virtudes. Além de olhar por cima de tudo aquilo como sendo mera fantasia e fantasmas noturnos e por isso falhos de consistência, ele, ao mesmo tempo, considera como mera pervuíce sem condição para afrontar e molestar quem está situado nas alturas. 2. A palavra "contumélia" deriva do vocábulo "desprezo". Ora, ninguém, a não ser quem for atingido por tal gesto fica alvejado. De outro lado, ninguém consegue atingir indivíduo mais distinto e melhor, ainda que pratique atos típicos dos escarnecedores. Também as crianças batem no rosto dos pais e o neném desarruma e arranca os cabelos da mãe; cospe nela e desnuda-a diante de outras pessoas, além de não omitirem palavras obscenas. Isso não obstante, não é tido como contumélia. É que no proceder de tal modo a criança é incapaz de intentar qualquer desprezo. 3. É por isso que a procacidade da língua de nossos escravos contra os patrões diverte-nos. A audácia deles principia nos patrões e projeta-se nos hóspedes. Aliás, quanto mais desprezível e ridículo for o escravo, tanto mais descontrolado de língua. Para tais efeitos há quem adquira escravos jovens e destemperados de fala. Até são adestrados na arte da insolência por mestres que os ensinam a proferir ofensas pré-articuladas. Ora, a isso não chamamos de ofensa e, sim, de mero artifício verbal. Eis aí que doidice: divertir-se enquanto é insultado com tais chocarrices, recebendo como agressão se fosse dito por um amigo, mas acolhida como mera bufonaria porque preferido por um pequeno escravo. CAPÍTULO IX O SÁBIO NÃO FICA OFENDIDO PORQUE DESACATADO POR ADULTO CRIANÇOLA 1. A mesma atitude que tomamos em relação às crianças, o sábio assume em face de todos que, após a juventude e já de cabelos brancos, persistem no infantilismo. Por acaso estão amadurecidos esses indivíduos que ostentam todos os defeitos da idade pueril, acrescidos ainda de outros peculiares a seus erros pessoais? São indivíduos que se diferenciam das crianças apenas pela estatura e pelo formato do corpo, sendo que no resto são também divagantes e inseguros, meros apreciadores do prazer, sem critério para escolha. Em suma, indivíduos inquietos que se acomodam não pelo juízo e, sim, pela ameaça. 2. Não diria haver entre eles e as crianças diferença alguma, salvo o fato que essas são ávidas de dados, nozes e moedinhas enquanto aqueles cobiçam ouro, prata e cidades. Os meninos brincam entre eles de magistrados, trajam uniformes e imitam os lictores e tribunas enquanto os adultos no campo de Marte, no Foro e no Senado, brincam, seriamente, com as mesmas coisas. As crianças, nas praias, levantam montes de areia para simular casas; os adultos, à guisa de ocupados em tarefa importante, dedicam-se em erguer pedras, paredes e tetos que, destinados para a proteção do corpo, convertem-se em perigo, quando a finalidade era a salvaguarda. 3. Portanto, iguais são meninos e adultos, mas o erro destes incide em coisa de maior monta. Eis que, não sem motivo, o sábio recebe as injúrias desses como meras brincadeiras, embora, algumas vezes, admoeste-os com algum mal ou castigo não porque recebeu deles injúria ou ofensa, e sim, para que desistam de fazer o que estão praticando. De igual modo o gado é dominado pelo relho e não ficamos irados contra ele, quando desobedece, mas aplicamos castigo a fim de vencer pela dor a obstinação. Assim entendes que fica solucionada a objeção: "Por que o sábio, se não recebeu injúria nem ultraje, castiga a quantos procedem daquele modo?" É que o sábio não se vinga. Apenas corrige. CAPÍTULO X O MODO DE AGIR DO SÁBIO PERANTE OS AGRESSORES REFLETE AS ATITUDES COMPLACENTES DE MÉDICO 1. Por qual razão não irias admitir que o sábio seja capaz de tamanha solidez de caráter, quando é fácil observar igual atitude em outros indivíduos, ainda que por motivo diverso? Qual o médico que se irrita com um frenético? Quem leva a mal os insultos do indivíduo febriculoso a quem se nega água fria? 2. A mesma disposição tem o sábio em relação a todos tal como o médico com seu cliente. Ele não sente nojo em tocar as partes pudendas do corpo do enfermo, desde que necessitem de tratamento. Também não deixa de analisar vômito e fezes como não se enfada ao ouvir as afrontas que o furioso desabafa. O sábio está ciente de que todos esses indivíduos que caminham, trajando a toga e vestes de púrpura, apresentando serem saudáveis, na verdade, são enfermos envernizados de saúde. Ele os vê como carentes de temperança. Eis porque não se irrita, quando alguém, levado pela própria fraqueza, manifesta-se insolente contra quem o medica. Com a mesma disposição com que não dá importância a elogios assim também não dá valor a vitupério. CAPÍTULO XI O SÁBIO DIANTE DE ATITUDES AGRESSIVAS ADVINDAS DE INDIVÍDUOS VÁRIOS 1. Assim como não se compraz com as homenagens que lhe presta um mendigo nem recebe qual injúria o fato que um indivíduo de classe baixa por ele saudado não lhe retribui O cumprimento, assim tão pouco ter-se-ia em maior consideração porque os ricos estimam-no, porquanto já sabe que em nada aqueles poderosos diferenciam-se dos pedintes de rua. Até são mais infelizes porque o pobre necessita de pouco e o rico de muito. Também não se perturba se o rei dos Medos ou um Átalo da Ásia responde a sua saudação com desdenhoso silêncio ou com gesto displicente e altivo. Ele sabe que a posição de tal indivíduo não é mais invejável que a do escravo, dentro de uma família numerosa, ao qual incumbe manter, sob cuidados, enfermos e dementes. 2. Por acaso ficaria eu molestado com a grosseria de alguns desses indivíduos que trabalham perto do templo de Castor, no comércio de escravos, sendo que suas barracas recogitam de serviçais da pior laia? Não por certo. Que tem de bom o indivíduo sob cujo poder só existe coisa ruim? Da mesma maneira como o sábio menospreza cortesia ou descortesia, assim ele encara o rei e questiona-o: "Tu, ó majestade, tens sob teu poderio os Partos, os Medos e os. Bacterianos, mas tu os manténs submissos pelo terror. Por causa deles não podes depor as armas porque são inimigos perigosos, venais e ávidos pela troca de patrão". 3. O sábio não se altera com contumélia alguma. Por mais que todos eles sejam diferentes, o sábio vê a todos como meros mentecaptos. Se uma única vez ocorresse deixar-se abater por causa de injúria ou de contumélia, então nunca mais sentir-se-ia seguro. A segurança é uma qualidade específica do sábio. Ele jamais cometerá o erro de, ao ser alvejado por contumélia, prestar homenagem ao agressor. Pois o agente do incômodo sentir-se-ia feliz pelo cumprimento. CAPÍTULO XII OUTRAS FONTES DE CONTUMÉLIA 1. Indivíduos há de estultice tão acendrada que pensam receber ultraje até de mulher. Não importa o montante dos bens que ela possui nem quantos carregadores para sua liteira nem a quantidade de brincos ou tamanho de seu meio de transporte. Não é por isso que deixa de ser um animal. Se ela não se ornou de copiosos conhecimentos e diversos tipos de estudos, permanece sendo uma fera sem controle sobre seus caprichos. Há quem se molesta com ímpetos grosseiros dos cabeleireiros e tomam como ofensa a rudeza dos porteiros, a petulância do nomenclador e do camareiro de cara fechada. Que gargalhada isso tudo prova! Como deve regurgitar de alegria o coração de quem contempla, com tranquilidade, esse aluvião de erros alheios! 2. "E daí?", perguntas. "O sábio não se aproxima de porta vigiada por porteiro deseducado?" Sim, quando há necessidade, ele tenta. Então, seja lá qual for o porteiro, ele vai amansá-lo como a um cão bravo, com um pedaço de carne e resigna-se a dispensar algum gasto para atravessar os umbrais, lembrando-se de que também a passagem por algumas portas tem taxa a ser paga, Assim como um donativo acalma aquele indivíduo, seja lá quem for que cobra o imposto do visitante, do mesmo modo ele sabe comprar o que está exposto na vitrine. Fraco mental é quem gaba de ter conversado, à vontade, com o porteiro; de haver quebrado a resistência dele, conseguindo acesso ao dono da casa e ter pedido chicotadas para o mesmo. Quem polemiza com o porteiro cria um rival e para vencê-lo é necessário igualar-se ao mesmo. CAPÍTULO XIII O SÁBIO DESCONHECE VALORES VULGARES 1. "Que faria o sábio se for atingido por uma bofetada?" O que fez Catão, quando golpeado no rosto? Não se enraiveceu. Não revidou a injúria nem sequer a perdoou, mas, simplesmente, ignorou o fato. Maior grandeza foi não tomar conhecimento da ocorrência do que perdoá-la. Não vamos nos deter muito, aqui. Com efeito, quem ignora que coisas como essas, tidas ora por boas, ora por más, são todas elas vistas pelo sábio diversamente? Ele não atende ao que, em geral, é tido por vergonhoso ou ruim. Não vai por onde caminha a multidão. Qual estrela no céu, segue seu percurso próprio. Assim ele tem um modo de proceder diferente do comum agir dos homens. CAPÍTULO XIV O CONSENSO UNIVERSAL MOSTRA QUE A CONTUMÉLIA É DESPREZÍVEL 1. Desista então de dizer: "Não recebe o sábio ofensa se o açoitam, se lhe arrancam um olho? Não fica ele ultrajado, quando acusado no Fórum, pela gritaria maldosa dos libertinos? Quando, nem banquete, na corte, for posto no fundo da mesa e comer entre os escravos encarregados dos serviços mais ignominiosos? Quando é obrigado a suportar alguma outra afronta dentre aquelas que apenas imaginadas já ferem o pudor de qualquer indivíduo honesto?" 2. Por mais que as coisas como essas cresçam em número e em tamanho, serão sempre da mesma espécie. Se não o afetam coisas pequenas, então muito menos as grandes logram melindrá-lo. Se não o atinge o que é miúdo, também não o que for múltiplo. De acordo com vossa imbecilidade é que estais a mensurar a grandeza de alma e, tendo por base o pouco que podeis tolerar, acrescentais um pouco mais como medida da capacidade de paciência do sábio. Na verdade, a ele, a virtude situa-o em outro nível do universo de modo que nada tem ele de comum ou em parceria com os demais mortais como vós. CAPÍTULO XV O SÁBIO ENFRENTA, SEM MEDO, OS CAPRICHOS DA FORTUNA 1. Procura por esse mundo a fora tudo que é áspero, todos os pesadelos intoleráveis dos quais os olhos e os ouvidos fogem. Tal multidão não intimida o sábio. Assim como ele resiste a cada coisa do mesmo modo ele age diante do conjunto delas todas. Aquele que diz ser tal coisa tolerável para o sábio e tal outra intolerável está limitando a grandeza do espírito dele e por isso erra redondamente. 2. A fortuna só nos domina, quando não a superamos por completo. Não deveis pensar que isso seja intransigência da filosofia estoica. Epicuro, a quem vós tomais por mestre de vossa apatia e pensais que vos ensina uma doutrina flácida e frouxa, enquanto condicionamento ao prazer, ele declara: "Raramente a fortuna colhe, de surpresa, o sábio". Que castigo sofreu ele por ter proferido sentença tão viril? Quererias tu falar com mais coragem e excluir a fortuna com mais cogência? 3. Eis a casa do sábio: pequena, sem adorno, sem ruído, sem aparato, sem guarda e porteiro que cobra de cada visitante uma taxa de ingresso. Por seus umbrais franqueados e livres de porteiro não entra a fortuna. Ela sabe que, ali, nada existe para ela, já que nada há que lhe pertence. CAPÍTULO XVI RESPOSTA DE SÊNECA PARA EPICURO 1. Se mesmo Epicuro, todo complacente com o corpo, alvora-se contra a injúria, então a quem dentre nós igual atitude deixará de parecer pouco ou nada aceitável ou fora da capacidade humana? Ele assegura que a injúria é tolerável para o sábio. Nós afirmamos que ela simplesmente não existe para ele. 2. Não há fundamento para dizeres que isso repugna à natureza. Não negamos ser desagradável receber chicotada, empurrão ou perder algum membro do corpo. O que negamos é que isso seja molesto. Não negamos o senso de dor daí proveniente. Apenas retiramos dela o nome de injúria. Esta não tem acolhimento enquanto a virtude reina ilesa. Vejamos então quem de nós dois diz a verdade, já que para nós ambos cabe desdém à injúria. Perguntas pela diferença entre um e outro? É a mesma entre dois valentíssimos gladiadores. Um deles comprime o ferimento com a mão e mantém-se a posto; o outro volta-se para a plateia em aclamação e dá a entender que não foi ferido e por isso não permite que intercedam a seu favor. 3. Não há porque julgues ser grande a nossa divergência. Aquilo que é visado como único objetivo recebe das duas correntes filosóficas o mesmo parecer, isto é, o desdém pelas injúrias e para os insultos, coisas que eu denomino sombras e sugestões de ofensas. Aliás, para o menosprezo delas não é necessário ser sábio. Basta o bom senso para dizer a si mesmo: Isto me acontece merecido ou imerecidamente? Se merecido, não é agravo e sim justiça. Se imerecido, o vexame da injustiça recai sobre quem praticou. CAPÍTULO XVII SÊNECA DEFINE O QUE É CONTUMÉLIA 1. - Afinal, o que é a tal de contumélia? Então apenas o fato de alguém debochar de minha calvície, de minha miopia, da finura de minhas pernas ou de minha estatura? Ora, que ofensa há em ouvir dizer o que está à vista de todos? Achamos engraçado o que se diz perante um só, mas ficamos indignados quando dito perante muitos. Não concordamos que seja comentado o que costumamos mencionar de nós mesmos. Assim a moderada jocosidade nos diverte, mas a grande já nos irrita. CAPÍTULO XVIII A CRÍTICA DOS PRÓPRIOS DEFEITOS PRIVA O DEBOCHADOR DE INICIATIVA l. Crisipo narra que certo indivíduo ficava irritado contra quem o chamava de "carneiro marinho". No Senado, vimos Fido Cornélio, genro de Ovídio Nasão, chorar porque Carbúleo o apelidava de avestruz depenada. Em presença de desonestos que lhe denegriam a vida, ele se mantinha firme, mas, ante aquele absurdo, vertia lágrimas. Eis a fraqueza de alma, quando distante da razão. 2. Porque ficar ofendido quando imitam nosso modo de falar ou de andar ou escarnecem algum defeito de nosso corpo ou modo de linguagem? Até parece que tais defeitos ficam mais ostensivos na imitação pelos outros do que quando praticados por nós mesmos. Indivíduos há que se alteram ao ouvir comentários acerca de sua velhice ou dos cabelos brancos e de outras coisas mais que todos sonham alcançar. A outros enrubesce qualquer alusão a sua pobreza que salta aos olhos de todos por mais que seja ocultada. Eis que tiras dos gozadores e dos chocarreiros todo pretexto para zombaria e escárnio se primeiro tu mesmo ridicularizas teus próprios defeitos. Nunca dá chance para ser ridicularizado quem se antecipa em rir de si mesmo. 3. É sabido que Vatínio, indivíduo nascido para ser alvo de riso e de ódio, era engraçado e engenhoso motejador. Ele mesmo debochava de seus pés e de sua face marcada por cicatrizes. Assim ele se livrava das acutiladas de seus inimigos, principalmente, da mordacidade de Cícero. Se isso ele conseguiu graças a sua cara de pau, já que fora instruído para não se envergonhar daqueles assédios despudorados, porque então não iria também conseguir o mesmo quem, mediante nobres empenhos e cultivo da sabedoria, ingressou na senda do crescimento moral? 4. Seja lembrado, a propósito, que faz parte de certo tipo de vingança privar a quem fez a injúria do sutil deleite de tê-la produzido. Então diga: "Pobre de mim! Confesso: não entendi mesmo". - É certo que o fruto da injúria consiste no sentimento e na indignação de quem a recebe. De outro lado, o agressor, hoje ou amanhã, encontrará um rival. Assim não faltará quem te vinga. CAPÍTULO XIX O IMPERADOR CALÍGULA ERA CONTUMAZ EM DESFERIR CONTUMÉLIA 1. César Calígula, dentre os vícios de que estava pleno, propenso como era para contumélias, vivia acicatado pelo apetite de ferir os outros com palavra picante, bem ele que era alvo reluzente de ridicularização. A feiura da palidez de seu rosto refletia demência enquanto a expressão ameaçadora de seus olhos ficava oculta sob as sobrancelhas de bruxo. Por sua vez, a deformidade da cabeça calva ostentava só alguns poucos fios de cabelo. A tudo isso seja somado o pescoço coberto de pelos eriçados, sem falar da finura das pernas e do tamanho dos pés. Seria um sem fim referir as afrontas que causou a seus pais, avós e para muita gente mais. CAPÍTULO XX CALÍGULA PAGOU CARO PELA SUA MANIA DE DISTRIBUIR CONTUMÉLIAS 1. Agora, passo apenas a referir aquelas peripécias que lhe causaram a ruína. Asiástico Valério foi um de seus amigos prediletos. Indivíduo violentíssimo, era incapaz de suportar qualquer contumélia. Bem a ele, num banquete que equivale a uma assembleia, Gaio escarneceu as atitudes da esposa, no ato de realizar o coito. Ó deuses justos! Que isso ouça um ser humano; que disso tenha conhecimento um príncipe; que tal libertinagem chegue já não digo a um cônsul ou a um amigo, mas ao marido, sendo o próprio César a falar de seu adultério e do nojo pela parceira! 2. Quérea, tribuno militar, tinha um tom de voz pouco adequado ao seu cargo. Era um timbre lânguido e, se não fossem conhecidas as atitudes viris dele, seria de suspeitar algo de pior. Sempre que o identificava, Calígula ora o chamava de Vênus, ora de Príapo, designando como efeminado um militar armado. Ora, quem assim se expressava era bem ele que se trajava de vestes transparentes, calçando sapatos macios e portando braceletes de ouro. Isso forçou Quérea a impugnar a espada a fim de obstacular de vez que persistisse em chamá-lo daquela maneira. Ele foi o primeiro entre os conjurados a levantar a arma, ferindo-o no meio da nuca. Logo a seguir, uma infinidade de punhais aparecem para vingar as injúrias públicas e privadas, mas o que se mostrou másculo mesmo foi quem menos aparentava sê-lo. CAPÍTULO XXI CALÍGULA NÃO SABIA COMO SUPORTAR CONTUMÉLIA 1. Calígula interpretava qualquer atitude como ofensa. Assim, sendo arredio no enfrentamento, era também menos apto para suportar. De certa feita, ele se irou contra Erênio Macro que o saudava com o nome de Gaio. Também não deixou de castigar o chefe dos centuriões que o chamava de Calígula. Aliás, esse e não outro o nome com que era designado dentro do exército, já que ele nascera no acampamento e educou-se em meio às legiões. Isso não obstante, depois que passou a usar o coturno, julgava opróbrio afrontoso o apelido dos tempos de caserna: Calígula! CAPÍTULO XXII INDIVÍDUOS EXEMPLARES QUE ENSINAM COMO TOLERAR CONTUMÉLIAS 1. Ser-nos-á de conforto saber que, embora nossa mansidão seja alheia à vingança, não vai faltar quem castiga o insolente, o soberbo e o injurioso. Esses indivíduos não esgotam sua virulência numa pessoa só ou em uma única ofensa. Saibamos olhar para o exemplo daqueles cuja paciência engrandecemos com louvores tais como Sócrates que não levou a mal e até ria das sátiras mordazes que lhe eram assacadas, publicamente, pelas comédias. O mesmo ocorreu, quando sua esposa, Zântipa, jogou contra ele água suja. A Antístenes, que era criticado por ter como mãe uma mulher estrangeira da Trácia, respondia: "A mãe dos deuses era o monte Ida". CAPÍTULO XXIII LIVRE MESMO É QUEM SE SOBREPÕE A QUALQUER INJÚRIA 1. Não é O caso de fomentar rixa ou desavença. O certo é ficar longe disso ainda que os insolentes provoquem. Aliás, só eles mesmos procedem assim. Sejam eles escarnecidos, já que devemos ter, no mesmo nível, tanto as honrarias quanto as injúrias do zé-povinho. Nem iremos ficar magoados por causa dessas nem engrandecidos com aquelas. 2. Caso contrário, deixaremos de fazer muitas coisas necessárias, seja por receio de ofensas, seja por desgosto de tê-las recebido. Assim deixaremos de atender aos serviços indispensáveis, quer os públicos, quer os particulares. Vez por outra ainda, faltaremos a deveres relevantes se nos deprime certa apreensão feminil por ouvir dizer algo que nos desalenta. De outro lado, enraivecidos contra os poderosos, expressaremos esses sentimentos com desenfreada liberdade. Aliás, não consiste a liberdade em nada sofrer. Isso é errado. A liberdade consiste em saber sobrepor o espírito acima das injúrias; em fazer de si mesmo a fonte de onde provém tudo quanto causa satisfação; em desapegar-se das coisas exteriores de sorte a não viver preocupado, seja pelo medo de riscos desdenhosos, seja de línguas destemperadas. CONCLUSÃO 1. Quem há que não seja apto para desferir contumélia, dado que o insulto está ao alcance de qualquer indivíduo? Isso não obstante, o sábio e o aspirante à sabedoria farão recurso a diversos expedientes. Aos imperfeitos e a quantos se deixarem levar pela opinião do vulgo, sejam advertidos para o fato de viverem em meio às injúrias e afrontas. Aliás, as contrariedades são mais toleráveis para quem as espera. Quanto mais distinto for alguém pelo nascimento, reputação e riqueza tanto mais valoroso deve manifestar-se, lembrado de que os militares mais aprimorados lutam na linha de frente. De fato, as contumélias, as palavras maldosas e as demais agressividades equivalem aos gritos de inimigos. As injúrias mais pesadas o sábio aguenta quais golpes, sendo uns contra a couraça e outros contra o peito, sem no entanto levá-lo a morder a terra nem a abandonar seu posto. Ainda que o inimigo pressione, duramente, é vergonhoso capitular. Cuida então de defender o lugar que a natureza te outorgou. 2. Perguntaria alguém: que posto é esse? É o de homem. Para o sábio, no entanto, há outra instância bem diversa. Isso porque, enquanto uns estão empenhados na luta, ele já desfruta da vitória. Por conseguinte, não lutes contra teu próprio bem. Enquanto chegas ao cume da verdade, mantém viva esta esperança em teu coração, acolhendo, de boa mente, os melhores ensinamentos e reforçando-os com tua adesão e desejos porque o ideal da grande República do gênero humano edita que haja alguém que seja invencível e sobranceiro aos caprichos da fortuna.