Sêneca – A Vida Retirada CAPÍTULO I A META FINAL DA EXISTÊNCIA: O REPOUSO 1.1 Com muita ênfase, são recomendados os vícios... Ainda que nenhuma outra coisa buscássemos de saudável, o retiro por si mesmo já é aprazível. Ali, nos tomamos melhores por meio de nós mesmos. Que pensar então da oportunidade de retirar-se, de vez, para perto de indivíduos moralmente qualificados e escolher algum exemplo a fim de direcionar a vida? Ora, isso só é exequível no descanso pleno. Então é possível ser alcançado aquilo que, de quando em vez, tínhamos sonhado, num espaço onde ninguém interfere, com ajuda da opinião pública, logrando desviar um projeto pouco consistente. Então pode-se equacionar a vida segundo um mesmo padrão, em vez de fragmentá-la com iniciativas conflitantes. 1.2 Dentre os demais males, o pior de tudo é que sejam introduzidos mudanças em nossos defeitos. Assim não ocorre sequer persistência num mal já familiar. Por isso encontramos prazer, ora numa coisa, ora noutra. Isso é vexatório, já que nossas decisões, além de errôneas, são inconsistentes. 1.3 Flutuamos, sendo atirados de um lado para outro; coisas almejadas, abandonamos; o que foi posto de lado, retomamos. Assim ficamos alternando em fluxo permanente de volúpia e de arrependimento. Estamos condicionados, inteiramente, ao parecer alheio. A nós parece ser melhor o que conta com muitos pretendentes e bajuladores e não o que é desejável e apetecível. Não avaliamos a senda do bem e do mal em si, mas pela quantidade de pistas, sendo que nenhuma delas assinala retorno. 1.4 Poderias questionar-me, dizendo: "Que é que lhe deu na cabeça, Sêneca? Você está desertando de seus pares. Os vossos (amigos) estoicos afirmam, com muita segurança, que, até o último instante da vida, temos que perseverar ativos; que jamais devemos cruzar os braços, desistindo do trabalho pelo bem comum; é dever nosso ajudar cada indivíduo (carente); até mesmo levar auxílio para o inimigo, quando debilitado pela idade. Somos daqueles que não dão férias à ação por motivo de idade tal como fala aquele poeta talentoso: "apertamos nossas cãs com o capacete". Somos da opinião que não se deve dar espaço ao repouso até o dia da morte e, se as circunstâncias permitem, nem sequer para a morte mesma dar-se-á descanso. Por que então estás, a misturar preceitos de Epicuro com os princípios de Zénão? Se ficastes desgostoso com a escola dele, porque não a abandonas, logo, em vez de traí-la?" 1.5 Agora, apenas provo para ti que não me conflitei com a doutrina dos Estoicos nem eles se revoltaram contra o próprio ensinamento em qualquer hipótese. Eu seria de todo escusado de não seguir a doutrina deles, se, ao menos, perfilhasse seus exemplos. 2. O que passo a lhes comunicar, será dividido em duas partes. Primeiramente, cada indivíduo está apto, desde a primeira fase etária, a entregar-se, por completo, à contemplação da verdade e buscar uma norma de vida, praticando-a, de modo reservado, Logo mais, vou demonstrar que, quando chega o tempo da jubilação, em uma idade já avançada, o homem, com pleno direito, pode continuar servindo e orientar os outros tal como as Virgens Vestais que dedicaram anos a vários ofícios, aprendendo funções sacras. Depois, o que assimilaram, ensinavam (aos outros). CAPITULO II NA ATIVIDADE OU NO REPOUSO, A IDEAL É SER ÚTIL AO PRÓXIMO 3.1 Demonstrarei que isso apraz também aos Estoicos. Não é que eu esteja ligado à lei que veta aventar algo contra Zenão ou Crisipo, mas a matéria mesma enseja adotar a opinião deles. Aliás, se alguém sempre adota a opinião da mesma pessoa, seu lugar não é no Senado e, sim, entre as facções partidárias. Prouvera aos céus que tudo fosse bem elucidado, sendo a verdade professada, abertamente. Assim nada teríamos que modificar em nossas decisões. Agora, buscamos a verdade em companhia daqueles mesmos que nos instruem sobre ela. 3.2 As duas seitas mais importantes, a dos Epicuristas e a dos Estoicos, discordam entre elas sobre esse assunto, embora ambas, por via diversa, concordem em afastamento. Epicuro diz: "O sábio não tenha acesso a negócio público a não ser que compelido por alguma circunstância”. Zenão fala: "Assuma responsabilidade pública, a não ser que haja algum empecilho”. Assim, um decreta, por principio, o afastamento para o descanso, o outro postula para tanto uma causa, mas o termo "causa", aqui, tem sentido largo. De fato, se a República estiver tão corrompida a ponto de não ter por onde ser recuperada; se estiver, totalmente, afetada de males, então o indivíduo sábio iria se dedicar ao irrealizável, empenhando-se para nada conseguir. Aliás, se tiver exígua autoridade ou pouca força, a República mesma não iria admiti-lo, no caso de ser portador de saúde precária. 4. Como não se lança ao mar uma nave de casco avariado, nem se alistaria no exército quem fosse debilitado, assim também não deve empreender uma caminhada para a qual o indivíduo estaria incapacitado. Consequentemente, aquele cuja força está íntegra, antes de sofrer qualquer infortúnio, pode pôr-se em segurança e, de imediato, consagrar-se a nobres artes, vivendo em descanso ilibado, cultivando as virtudes que são praticáveis mesmo no absoluto repouso. 5. O que se exige do ser humano é que seja útil a seus semelhantes e a muitos, se possível. Caso não, a poucos então. Se nem a esses, então aos mais próximos e, em última hipótese, a si mesmo. Ao fazer-se útil para os outros, finda por ativar um empreendimento comunitário. Assim como quem se deteriora prejudica não só a si mesmo, mas também a todos aqueles aos quais poderia auxiliar caso fosse melhor, quem se aperfeiçoa só por isso já beneficia os outros porquanto prepara quem vai beneficiá-los, no futuro. CAPÍTULO III DE REPENTE, DESCORTINA-SE UM CAMPO IMENSO DE QUESTIONAMENTO 4.1 Vamos supor que haja dois tipos de República: uma grande e verdadeiramente pública, onde cabem os deuses e os homens, na qual nada se vê por um único ângulo, mas medimos sua dimensão pelo percurso solar. A outra é aquela que nos foi consignada pelo nascimento. Esta é a dos Atenienses ou dos Cartagineses ou qualquer outra que não pertence a todo o gênero humano, mas só a alguns determinados. Há indivíduos que se consagram a ambas, ao mesmo tempo; outros só a menor e outros apenas a maior. 4.2 À República maior, mesmo que, em estado de repouso, podemos servir (aliás, a mim parece até melhor em tal condição), então podemos perquirir: que coisa é virtude; se há uma ou muitas; se é a natureza ou a prática que torna o homem bom; se aquilo que abarca os mares e as terras e o que neles está inserido é uma só coisa ou muitos corpos disseminados por Deus; se a matéria da qual tudo nasce é algo contínuo e pleno ou descontínuo e vazio, mas misto de partes sólidas; onde está Deus; se está espalhado extrinsecamente ao derredor dela ou incluso no conjunto; se o mundo é eterno ou deve ser visto como coisa efêmera e nascido no tempo. Quem a tudo isso contempla, que serviço presta a Deus? Oxalá, suas obras tão grandiosas não fiquem sem testemunhas! 4.3 Estamos habituados a proclamar que o sumo bem consiste em viver segundo a natureza. A natureza nos gerou tanto para a contemplação quanto para a ação. Agora, passo a provar o que disse, acima. E por quê? Não ficaria, suficientemente, provado se cada qual perscrutasse, dentro de si mesmo, quanto de impulso possui para descobrir o desconhecido e como fica curioso ante a narração de qualquer fábula? Alguns se lançam ao mar e enfrentam os incômodos de uma peregrinação extensíssima só pela recompensa de conhecer algo de longínquo e oculto. Isso mesmo é o que congrega a multidão nos espetáculos; isso é o que leva a esquadrinhar coisas latentes, a inquirir as secretas, a revolver antiguidades, a ouvir acerca de usos e costumes de povos bárbaros. A natureza nos concedeu um gênero curioso e consciente de sua destreza e formosura; engendrou-nos para a contemplação desses grandes espetáculos, já que tudo isso perderia sua riqueza de coisas tão grandiosas, tão excelsas, tão eminentemente estruturadas, tão brilhantes e belas, se ficasse visível só para a solidão! 4.4 A fim de que saibas que ela quis que tudo isso fosse contemplado e não só avistado, vê então o local onde ela nos situou, a saber, nos colocou em meio dela mesma e nos concedeu a perspectiva de todos os seres ao nosso derredor. Não só fez o homem ereto, mas também o fez hábil para a contemplação. Para que desde o nascer até o acaso, pudesse seguir o curso dos astros e para que seu rosto girasse em volta, deu-lhe uma cabeça levantada, colocando-a sobre ombros flexíveis. Ao direcionar o curso de seis constelações durante o dia e de seis outras durante a noite, nada a natureza oculta de si mesmo, pondo diante dos olhos do homem essas maravilhas que incitam a curiosidade para outras mais. 5. Nem por isso já vimos tudo de quanto existe, mas nossa visão abre o caminho da investigação e vai deparar com os fundamentos da verdade de sorte que a inquirição transita do claro para o escuro, descobrindo algo de mais remoto no mesmo universo, a saber, de onde brotam esses astros que se instalam como elementos distintos entre eles, qual o princípio que separou elementos conexos e confusos; quem designou lugar para cada um dele; se os elementos pesados caíram por si, sendo que os leves alcançaram voo ou, se independentes da tendência e do peso dos corpos, alguma outra força mais forte determinou a lei de cada um; se é verdade que, segundo se prova, egregiamente, o homem consta de espírito divino; se partículas e centelhas dos astros caíram sobre a terra e, aí, aderiram, ocultando-se em lugar inacessível. CAPÍTULO IV A VIDA HUMANA É CURTA DEMAIS PARA CONHECER TODA A REALIDADE CÓSMICA 6. Nosso pensamento rompe as barreiras do céu e não se contenta em saber apenas o que está ao alcance dos olhos. Alguém poderia questionar, dizendo: "Perscruto o que está situado além de nosso mundo, a fim de saber se é uma profunda imensidade ou está coartada por seus limites; qual o formato das coisas estranhas; se disformes ou confusas ou com igual volume em cada parte; se conexas com nosso mundo ou dele separadas, vagueiam pelo espaço; se é com elementos indivisíveis que se compõe tudo que nasceu ou há de nascer ou ainda se a matéria disso tudo é compacta e móvel ao mesmo tempo; se os elementos são contrários entre eles ou se não conflitam, já que cooperam para um mesmo fim, por caminhos diferentes". 7. Nascido que és para investigar tais problemas, vê como é curto o tempo de que o homem dispõe, embora o empate, nisso, por inteiro. Ainda que não lhe franqueie acesso fácil até ele, nem permita que parte alguma dele se perca por descuido; ainda que controle seu horário com suma avareza e prolongue as horas até o término da vida, posto que a Fortuna nada tire do que lhe concedeu a natureza; isso não obstante, para conhecer as coisas imortais o homem não deixa de ser demasiadamente mortal. 8. Por conseguinte, eu vivo segundo a natureza, se me entreguei todo a ela, se eu sou admirador dela e servidor. Todavia, a natureza quer que eu faça uma coisa e outra: agir e entregar-me à contemplação. Eu faço uma coisa e outra porque a contemplação não é exequível sem alguma ação. CAPÍTULO V A VIDA RETIRADA PODE SER UMA SEARA FÉRTIL Poderias questionar-me, dizendo: "Há nisso uma diferença a ressaltar. Ao dedicar-te ao estudo da Natureza só motivado pelo prazer, nada dela pedindo senão a mera contemplação, sem colimar outro objetivo, então ela já é o deleite com seus atrativos". Eis que a isto te respondo: Igualmente importa saber com qual intenção te dedicas à vida pública, se é para estar sempre inquieto e sem sobra de tempo para volver os olhos das coisas humanas para as divinas. Assim como cobiças as coisas sem o mínimo amor pelas virtudes, sem o cultivo do espírito e fazes obras desnudas de boa intencionalidade, tudo isso não é digno de aprovação - já que todos esses elementos devem ser conectados - tal como é um bem imperfeito e enfermiço uma virtude engolfada no ócio, inativa, sem demonstrar o que aprendeu. Quem iria negar que a virtude deve testar sua eficiência em obras e não ficar apenas refletindo acerca do que faz, mas, de quando em quando, arregaçar as mangas e produzir coisas reais pela sua prática. Se o atraso na execução não provém do sábio mesmo, então não é o agente que falha e, sim, as coisas a serem feitas. Por que então condená-lo à reclusão em si? Com que intenção o sábio se retira para a solidão do descanso? É para saber que, também ali, tem que praticar aquelas ações que são de proveito para toda a posterioridade. Somos nós, por certo, que dizemos que tanto Zenão como Crisipo realizaram coisas mais grandiosas do que comandar exército, desempenhar cargos públicos, promulgar lei. Até que promulgaram, porém não para uma cidade apenas, senão para todo o gênero humano. Por que então não conviria ao varão honesto e digno semelhante pousada, graças a qual se ordenam futuros séculos, já que nela se apregoa uma mensagem não perante um auditório pequeno e, sim, diante de homens de todas as nações, sejam os que já estão ali, sejam os que hão de vir. Em suma, pergunto, se Cleante, Crisipo e Zenão viveram segundo seus preceitos. Não duvido que responderás que viveram como ensinavam, porém nenhum deles administrou República nenhuma. Dirias: "Não tiveram nem aquela fortuna nem aquela dignidade que soem ter os admitidos na gestão dos negócios públicos". Sim, nem por isso levaram vida indolente e tediosa. Agiram de modo que seu descanso fosse mais útil aos seres humanos do que o atarefamento e o suor de muitos. Assim são vistos como grandes realizadores, apesar de não terem trabalhado em atividades públicas. CAPITULO VI Os TRÊS GÊNEROS DE VIDA 1. Além disso, há três gêneros de vida, dos quais se questiona pelo melhor: um que se consagra ao prazer; outro à contemplação e o terceiro à ação. Em primeiro lugar, deixando de lado toda discussão e o implacável ódio que declaramos aos que seguem caminhos divergentes de nós, vejamos se todas essas doutrinas, sob denominações diversificadas, não estariam tendendo para a mesma meta, sob um ou outro aspecto. Mesmo aquela que professa a doutrina do prazer não está fora de qualquer contemplação, já que a outra, que só se dedica à contemplação, também não se alheia de todo do prazer tal como a 'terceira que, embora destinando sua vida para atividades, não está isenta de contemplação. 2. Dirias: "Há grande diferença entre algo ser proposital ou apenas anexo a algum intento". Diferença há, sim, porém uma coisa não ocorre sem a outra. Nem contemplação sem ação, nem ação sem contemplação nem o terceiro, que apreciamos de modo negativo, prova ter uma volúpia inerte porquanto capta aquilo que a razão indica como consistente para ela. Por isso também a ala dos prazeirosos é ativa. E porque não? É ativa porque o mesmo Epicuro declara, em algum lugar, que ele se afastaria do prazer e até apeteceria a dor, se o deleite for amenizado pelo arrependimento ou uma dor menor substituísse outra mais grave. Até onde vai meu pensamento? Até deixar claro que a contemplação agrada a todos. Uns a desejam como fim último. Nós a temos como um porto de trânsito, não como porto de chegada. CONCLUSÃO Seja, agora, acrescido a tudo isto que, segundo a lei de Crisipo, é lícita a vida em estado de repouso. Não quero dizer resignação e, sim, escolha voluntária. Dizem os nossos que o sábio não deve acercar-se de nenhum tipo de negócio público. Não interessa qual o caminho que o sábio trilha para o descanso final. Pode ser que a coisa pública não o acolha; pode ser que ele não a acolha, pode, enfim, ocorrer que sequer exista a tal de coisa pública. Fato é que ela faltará para quem a busca com empenho destrutivo. Eis então que pergunto: De qual República deve aproximar-se o sábio? A de Atenas, na qual Sócrates foi condenado e da qual Aristóteles teve que fugir para não ter o mesmo destino? Ali, onde a inveja persegue a virtude? Então dirás que o sábio não deve aproximar-se de tal tipo de República. Se o sábio se acerca da República de Cartago, onde a sedição é permanente e a liberdade hostiliza os melhores, sendo que a justiça e a honestidade sofrem igual vilipêndio, enquanto a crueldade contra inimigos é extrema com reflexos sobre os próprios cidadãos, então dela também fugirá. Se eu decidisse percorrer uma por uma das Repúblicas atuais, não encontraria nenhuma apta para tolerar o sábio ou uma que o sábio poderia tolerar. Já que não encontramos aquela República de nossos sonhos, então irrompe a necessidade de repouso porque, já não existe lugar nenhum que suplanta a vida retirada. Se alguém dizer que nada melhor como navegar, mas, logo adverte que não se deve navegar por águas, onde são frequentes os naufrágios e onde a tempestade desorienta o piloto, eu concluo que tal indivíduo aconselha-me a não levantar âncoras, por mais que louve a navegação.