Agostinho de Hipona – A Grandeza da Alma 1 - Esquema do conteúdo do De quantitate animae I. As seis questões relativas à alma (I,1) II. Primeira questão: a "derivação" da alma (I,2) III. Segunda questão: a qualidade ontológica da alma (II,3) IV. Terceira questão: a grandeza da alma. Premissa: a grandeza pode ser entendida de dois modos, como extensão e como potência (III,4) V. A alma não é "grande" no sentido de extensão (III,4-XXXII,69) 1 - Há realidades importantes desprovidas de extensão: o exemplo da justiça (IV,5) 2 - Todo corpo é extenso em comprimento, largura e profundidade (IV,6) 3 - Se a alma fosse extensa quanto ao corpo em que se encontra, não poderia conter imagens muito maiores que este último (V,7-9) 4 - A capacidade de conter na memória grandes extensões não implica que a alma seja ela mesma também extensa, como demonstra a sua capacidade de distinguir e separar as três dimensões espaciais dos corpos (VI,10-XV,25) 5 - O "crescimento" da alma com a idade (o aprendizado) não é espacial (XV,26-XXII,40) 6 - A sensibilidade em todo o corpo não implica que a alma seja extensa quanto ao corpo e, portanto, que seja dotada de uma grandeza espacial, como resulta da definição correta da sensação (XXIII,41-XXX,61) 7 - A vitalidade de partes seccionadas de um animal como o inseto de muitos pés não implica a divisibilidade da alma, como mostra a analogia com o sono (XXXI,62-XXXII,68) 8 - O problema do número das almas (XXXII,69) VI. A verdadeira grandeza da alma é o seu valor (XXXIII,70-XXXVI,80) 1- Os sete graus de atividade da alma (XXXIII,70-76) 2 - Consequências no plano religioso (XXXIV, 77 -XXXVI, 80) VII. As últimas três questões. Conclusão (XXXVI,81) Julgamento do Diálogo nas Retratações 1. Na mesma cidade (Roma) escrevi um diálogo, no qual se investigam e se discutem muitos assuntos sobre a alma, ou seja, de onde procede, quais são os seus atributos, o quanto é grande, porque foi dada ao corpo, como é criada junto ao corpo, como será quando deixar o corpo. Mas no tocante ao quanto a alma é grande, discutiu-se com diligência e profundidade para demonstrar, se pudéssemos, que ela não é dotada de grandeza corpórea, mas que é algo grande. Dessa investigação o livro recebeu o nome de “A grandeza da alma", como seu designativo. 2. O que afirmei nesse livro: "Sou de opinião que (a alma) traz consigo todas as artes, e o que se chama aprender nada mais é do que recordar" (cap. XX, n. 34), não deve ser entendido como se deduzisse que a alma viveu aqui alguma vez ou em outro lugar, seja no corpo, seja fora do corpo; nem como se tivesse aprendido em outra vida, ao responder o que lhe foi perguntado, o que não aprendeu aqui. Pois pode acontecer, como já o dissemos anteriormente nesta obra, que isso ela o pode, porque é inteligível (Retratações, IV,4) e se une não somente às coisas inteligíveis, mas também às imutáveis, visto ter sido criada de tal modo que, quando se dirige às coisas às quais se uniu ou para si mesma, pode responder certo acerca de tais coisas à medida que as vê. Sem dúvida, não trouxe consigo desse modo todas as artes e nem as possui consigo; pois ela não pode falar, se não aprende aqui e também, a respeito das artes que se relacionam com os sentidos do corpo, como muitos assuntos da medicina, como todos os da astrologia. Mas tendo sido devidamente interrogada por si mesma ou por outra pessoa, responde pela recordação o que somente a inteligência é capaz de compreender pelas razões que aduzi. 3. Disse em outra passagem: "Gostaria de dizer mais coisas a esse respeito e obrigar a mim mesmo a nada mais fazer, enquanto te doutrino, conforme penso, senão a restituir-me a mim a quem me devo entregar principalmente". Nessa passagem parece-me que deveria ter dito: "Restituir-me a Deus, a quem me devo restituir principalmente". Mas porque o homem se deve entregar principalmente a si mesmo para daí, como que dando passos, possa levantar-se e ser levado para Deus, assim como aquele filho mais novo caiu primeiramente em si e então disse: "Vou-me embora, procurar o meu pai" (Lc 15,19); por isso assim falei. Finalmente acrescentei: E assim tornar-me para Deus o que diz Horácio: "Amigo, escravo do senhor". Portanto, o que afirmei: "a quem me devo entregar principalmente", referia-se aos homens, pois devo-me a mim mais que aos demais homens, embora me deva a Deus mais que a mim. Este livro começa assim: "Quoniam video te abundare otio..." LIVRO ÚNICO A GRANDEZA DA ALMA AS SEIS QUESTÕES RELATIVAS À ALMA 1,1. Evódio - Ao ver que tens tempo livre, peço-te que respondas a algumas questões que me preocupam, conforme penso, não inutilmente e sem razão. Pois, quando muitas vezes te fiz perguntas, pensaste em dissuadir-me não sei com que termo grego que nos proíbe averiguar as coisas que estão acima de nós; agora, porém, não julgo que nós estejamos acima de nós. Por esse motivo, ao fazer-te perguntas sobre a alma, não devo ouvir: "O que nos importa o que está acima de nós?". Pelo contrário, talvez seja eu digno de ouvir o que somos nós. Agostinho - Dize-me em poucas palavras o que desejas ouvir sobre a alma. Evódio - Di-lo-ei; pois as perguntas estão preparadas pelo fato de nelas pensar continuamente. Por isso, pergunto-te de onde vem a alma, o que é, qual é sua grandeza, por que foi dada ao corpo e como é quando se une ao corpo e em que se converte, quando o deixa? PRIMEIRA QUESTÃO: A "DERIVAÇÃO" DA ALMA 2. Agostinho - Ao perguntares de onde procede a alma, posso entender duas coisas. Com efeito, falamos de um modo a respeito de onde vem o homem, desejando saber qual é sua pátria; de outro modo, de onde vem o homem, quando perguntas de que consta, ou seja, de que elementos e realidades está composto. Em qual dos dois sentidos queres saber ao me interrogares de onde procede a alma? Ou queres saber qual é sua substância? Evódio - Na verdade eu gostaria de saber nos dois sentidos, mas prefiro deixar a teu critério o que é preciso saber primeiramente. Agostinho - Creio que a morada e a pátria da alma é Deus, por quem ela foi criada. Mas não me é possível dizer qual é sua substância. Com efeito, penso que ela não esteja entre as comuns e conhecidas naturezas que podemos tocar com os sentidos corporais. Pois considero que a alma não consta nem de terra, nem de água, nem do ar, nem do fogo, nem de todos eles, nem de alguns desses elementos. E assim como se me perguntasses de que é composta essa árvore, eu mencionaria esses quatro elementos bem conhecidos, com os quais é de se crer que estão formadas todas as coisas. Mas se continuasses a perguntar de que consta a terra, ou a água, ou o ar, ou o fogo, não encontraria o que dizer. Assim, também, de que é composto o homem, posso responder que é composto de alma e de corpo. Mas se me interrogas acerca do corpo, recorrerei àqueles quatro elementos. Se perguntas, no entanto, a respeito da alma, como parece ser simples e própria, fico na dúvida tal como se me perguntas, como ficou dito, de onde vem a terra. Evódio - Não entendo por que dizes que ela tem uma substância própria, se disseste que foi criada por Deus? Agostinho - Do mesmo modo que não posso negar que a terra foi criada por Deus; contudo, não posso dizer de que elementos é composta. Pois a terra, pelo fato de ser terra, é um corpo simples; por isso se diz que é elemento de todos esses corpos de que constam os quatro elementos. Portanto, não há contradição em dizer que a alma foi criada por Deus e tem natureza própria. Pois o próprio Deus criou essa natureza, singular, assim como também criou a natureza do fogo, do ar, da água, da terra, e assim os demais seres fossem formados com esses elementos. SEGUNDA QUESTÃO: A QUALIDADE ONTOLÓGICA DA ALMA II,3. Evódio - Por enquanto aceito a procedência da alma, ou seja, de Deus sobre a qual refletirei com todo o cuidado; e se algo me ocorrer, perguntar-te-ei depois. Por isso agora te peço que me expliques a natureza da alma. Agostinho - Parece-me que é semelhante a Deus. Pois, se não me engano, perguntas sobre a alma humana. Evódio - É exatamente isso que gostaria que me explicasses: como a alma humana é semelhante a Deus; pois acreditamos que Deus por ninguém foi criado, mas disseste antes que a alma foi criada por Deus. Agostinho - Então? Pensas que foi difícil para Deus fazer algo semelhante a si, quando vês que isso nos foi concedido em tão grande variedade de imagens? Evódio - Mas nós fazemos coisas mortais, ao passo que Deus fez a alma imortal, como julgo, a não ser que tenhas outra opinião. Agostinho - Queres dizer que gostarias que os homens fizessem as coisas tais como Deus as fez? Evódio - Na verdade não disse isso. Mas, assim como o imortal criou algo imortal à sua semelhança, assim também nós imortais, criados por Deus, deveríamos fazer o que fazemos à nossa semelhança, ou seja, deveria ser imortal. Agostinho - Terias razão, se pudéssemos pintar um quadro à semelhança do que acreditas ser em ti imortal; mas neste mundo podes expressar nele somente a semelhança do corpo, o qual, sem dúvida, é mortal. Evódio - Como aceitar então que sou semelhante a Deus, se não posso criar, como ele, nada que seja imortal? Agostinho - Assim como a imagem de teu corpo não pode ter a mesma força de teu corpo, assim também não deve causar-te admiração se a alma não tem tanto poder quanto aquele a cuja semelhança foi criada. TERCEIRA QUESTÃO: A GRANDEZA DA ALMA A GRANDEZA PODE SER COMPREENDIDA DE DOIS MODOS: COMO EXTENSÃO E COMO POTÊNCIA III,4. Evódio - Para o momento, é o bastante; fala agora acerca da grandeza da alma. Agostinho - Em que sentido perguntas a respeito da sua grandeza? Não percebo se interrogas acerca do seu espaço na largura ou no comprimento ou na força ou a respeito de todas elas juntas, ou se queres saber seu poder. Pois costumamos perguntar acerca da grandeza de Hércules, ou seja, qual seja em pés sua estatura, e também quão grande foi como homem, ou seja, seu poder e sua fortaleza. Evódio - Desejo saber as duas coisas concernentes à alma. A ALMA NÃO É "GRANDE" NO SENTIDO DA EXTENSÃO Agostinho - Mas não se pode dizer nem pensar da alma o que acabamos de falar. Pois de modo algum se pode supor a alma comprida ou larga ou como dotada de força; na minha opinião, tudo isso é corpóreo, e queremos investigar no tocante à alma com o mesmo procedimento. Por isso é mandado que, mesmo em se tratando de mistérios, despreze tudo o que é corpóreo e deixe de lado todo este mundo, o qual, como vemos, é corpóreo, todo aquele que deseje tornar-se tal como foi criado por Deus, ou seja, semelhante a Deus; não há salvação para a alma, senão a renovação ou reconciliação com seu autor. Por essa razão, não posso responder-te relativamente à grandeza da alma no sentido de tua pergunta; mas posso garantir-te que não é nem extensa, nem larga, nem forte, nem possui algumas dessas propriedades que se costuma encontrar nas medidas dos corpos. Se te aprouver, apresentar-te-ei as razões por que penso desse modo. Evódio - Quero, sim, e espero com paciência; pois parece-me que a alma nada é, se não é alguma dessas coisas. Agostinho - Antes, porém, se tiveres por bem, mostrar-te-ei que há muitas coisas que não podes dizer que nada são, e, no entanto, não encontras nelas quaisquer espaços semelhantes aos que queres encontrar na alma. Desse modo, não somente não te pareça que a alma nada seja pelo fato de nela não encontrares o comprimento ou coisa semelhante, ao contrário, deve ser considerada mais preciosa do que muitas coisas pelo fato de não possuir essas propriedades. Em seguida veremos se de fato nada disso possui. Evódio - Segue a ordem e o método, que quiseres; estou disposto a ouvir e a aprender. HÁ REALIDADES IMPORTANTES DESPROVIDAS DE EXTENSÃO: O EXEMPLO DA JUSTIÇA IV,5. Agostinho - Procedes bem; mas quero que respondas a esta pergunta, pois talvez já saibas quanto me esforço para ensinar-te: Creio que não duvidas de que esta árvore é algo. Evódio - Quem duvidaria? Agostinho - E o que vou dizer? Duvidas de que a justiça seja mais excelente que esta árvore? Evódio - É uma comparação ridícula; não pode haver comparação. Agostinho - Estás sendo liberal comigo; mas agora presta atenção a isto: como dás por certo que esta árvore é de tal modo inferior à justiça que consideras não poder haver comparação, e tenhas confessado que a árvore é algo, gostarias que acreditássemos que a justiça não é nada? Evódio - Que louco acreditaria nisso? Agostinho - Ótimo! Mas talvez julgues que esta árvore é algo pelo fato de ser alta e longa e robusta, e que, se retirares essas qualidades, reduzir-se-ia a nada. Evódio - É o que penso. Agostinho - E então? A justiça que confessaste ser algo é mais divina e muito mais digna de estima do que esta árvore, és de opinião que tem comprimento? Evódio - De forma alguma pode ocorrer-me que a justiça seja extensa ou larga ou algo semelhante. Agostinho - Portanto, se a justiça não tem essas propriedades e, contudo, é algo, porque pensar que a alma seja nada pelo fato de não ter comprimento? Evódio - Já não me parece que a alma seja nada pelo fato de não ser longa nem robusta; mas sabes que ainda não me disseste o que é realmente a alma. Pois pode acontecer que haja muitas coisas de grande apreço que carecem dessas propriedades; mas julgo que não se deve imediatamente considerar a alma como pertencente a esses gêneros. Todo corpo é extenso em comprimento, largura e profundidade 6. Agostinho - Sei que ainda nos fica por esclarecer isso, e eu prometera que haveria de explicá-la em seguida. Mas como o assunto é deveras delicado e requer olhos da mente mais penetrantes do que a praxe dos homens costuma empregar nos atos da vida cotidiana, aconselho-te a caminhares de boa vontade por meio do que julgo deves ser conduzido, e que, cansado nesse nosso caminho um tanto forçado, toleres com paciência a chegada mais tardia ao que queres chegar. Com efeito, primeiramente, pergunto-te se consideras que haja um corpo que, de acordo com sua natureza, seja dotado de algum comprimento, largura e profundidade. Evódio - Não entendo a que profundidade te referes. Agostinho - Refiro-me àquela que faz com que se possa pensar nas partes interiores de um corpo ou mesmo senti-las, se são transparentes como o vidro, embora, se retirares essas propriedades dos corpos, não podem ser percebidas, conforme minha opinião, e nem sequer se pode considerar que os corpos existam realmente. Por isso quero que me manifestes tua opinião. Evódio - Não duvido de forma alguma de que todos os corpos não possuam essas propriedades. Agostinho - E isto? Podes pensar na existência dessas três propriedades somente nos corpos? Evódio - Não percebo que possam existir a não ser nos corpos. Agostinho - Portanto, não pensas na alma senão como um corpo? Evódio - Se declaramos que o vento é também um corpo, não posso negar que a alma parece-me ser um corpo, pois imagino-a como algo semelhante. Agostinho - Concordo em que o vento seja realmente um corpo, tanto quanto a água, se me perguntares. Pois sentimos que o vento nada mais é que o ar que se move e se agita; isso podemos verificar num lugar muito tranquilo e resguardado de qualquer vento ou com um leque, com o qual, ao espantar as moscas, agitamos o ar e sentimos a brisa. Isto, quando acontece por um movimento mais oculto dos corpos terrestres no vasto espaço do mundo, denomina-se vento, o qual recebe outros nomes diferentes de acordo com as diferentes partes do céu. Acaso pensas de outro modo? Evódio - Eu, certamente, não, e aceito como provável o que estás dizendo; mas eu não disse que a alma é o próprio vento, mas algo semelhante. Agostinho - Dize-me antes se percebes que o vento, que mencionaste, tem alguma extensão, largura e profundidade. Em seguida veremos se a alma é algo semelhante, para assim podermos investigar sua grandeza. Evódio - O que se pode encontrar mais longo, largo e profundo que esse ar, uma vez agitado, que acabas de me persuadir que é o vento? Se a alma fosse extensa quanto ao corpo em que se encontra, não poderia conter imagens muito maiores que este último V, 7. Agostinho - Dizes bem; mas acaso pensas que tua alma está apenas em teu corpo? Evódio - Assim julgo. Agostinho - Está apenas interiormente, como que enchendo um odre, ou apenas exteriormente, como um envoltório; ou julgas que está tanto interior como exteriormente? Evódio - Julgo que está como perguntaste por último. Com efeito, se não estivesse interiormente, não haveria vida em nossas entranhas; se não estivesse exteriormente, não se poderia ter sensação até mesmo do que fere a pele. Agostinho - Por que perguntas mais a respeito da grandeza da alma, se percebes que é tanta quanta lhe permitem os espaços corporais? Evódio - Se a razão ensina isso, nada mais pergunto. Agostinho - Procedes bem ao não investigar nada mais além do que a razão ensina. Mas esta razão, julgas ser deveras sólida? Evódio - Ao não encontrar outra, assim penso. Perguntarei no momento oportuno o que muito me intriga: se essa forma permanece a mesma depois de a alma deixar o corpo. Pois me lembro de ter apresentado esse assunto como último a ser resolvido. Mas como me parece ter referência à grandeza da alma o perguntar acerca do seu número, creio que não devemos passar além deste momento. Agostinho - Não é opinião incoerente; mas antes, se estamos de acordo, vamos explicar algo sobre seu espaço, assunto que agora me preocupa, a fim de que também eu aprenda, a não ser que já estejas satisfeito. Evódio - Indaga, como quiseres; pois essa tua fingida dúvida leva-me a duvidar deveras disso que presumira já estar resolvido. 8. Agostinho - Peço-te que digas se a faculdade, que se denomina memória, não consideras nome sem sentido? Evódio - Quem seria dessa opinião? Agostinho - Tu a consideras uma faculdade da alma ou do corpo? Evódio - É ridículo ter dúvida disso. Por quê? É possível acreditar-se ou entender que um corpo exânime possa lembrar-se de alguma coisa? Agostinho - Estás lembrado da cidade de Milão? Evódio - Estou e muito. Agostinho - Então te lembras de sua extensão e disposição pelo fato de a mencionarmos? Evódio - Lembro-me muito bem, e nada há mais recente e perfeito. Agostinho - Portanto, como agora não a estás vendo com os olhos, tu a vês com a alma. Evódio - De fato. Agostinho - Lembras-te, assim penso, quanto ela está agora distante de nós pelo espaço de terra. Evódio - Sim, lembro-me também disso. Agostinho - Quer dizer que vês com a alma até mesmo a distância desses lugares. Evódio - Enxergo. Agostinho - Como tua alma está aqui onde está teu corpo e não se estende além de seu espaço, como a razão antes o demonstrava, como pode acontecer que ela veja todas as coisas? Evódio - Penso que isso se dá por meio da memória, não porque esteja presente naqueles lugares. Agostinho - Portanto, as imagens daqueles lugares estão retidas na memória. Evódio - Assim julgo, pois agora ignoro o que ali acontece; mas não o ignoraria, se minha alma se estendesse até aqueles lugares; então os perceberia pela minha presença. Agostinho - Pareces dizer-me a verdade; mas essas imagens são certamente de corpos. Evódio - É isso mesmo, pois as cidades do mundo não são outra coisa senão corpos. 9. Agostinho - Nunca te contemplaste num espelho pequeno ou nunca viste teu rosto nas pupilas dos olhos de outrem? Evódio - Claro; muitas vezes. Agostinho - Por que aparece menor do que é? Evódio - Quererias que fosse do tamanho do espelho? Agostinho - Portanto, é necessário que as imagens dos corpos apareçam pequenas, se são pequenos corpos nos quais aparecem. Evódio - É absolutamente necessário. Agostinho - Por que, então, estando a alma em tão pequeno espaço, como está em seu corpo, é possível que tão grandes imagens possam ficar nela comprimidas, como são tanto as das cidades, como também a latitude das terras e quaisquer outras grandezas que nela se possam reproduzir? Quero, pois, que penses com um pouco mais de atenção sobre quão grandes coisas e muitas a memória retém, as quais são retidas também pela alma. Portanto, que cavidade, que abismo, que imensidade pode conter essas coisas, se se pensa que razões antes citadas ensinaram que ela é tão grande quanto o corpo! Evódio - Não encontro o que responder, nem explicar satisfatoriamente quanto me preocupam essas coisas; e acho graça de mim mesmo por ter dado tão depressa meu assentimento à razão anteriormente aduzida e ter concluído sobre a grandeza da alma baseado no modo de ser do corpo. Agostinho - Portanto, não te parece agora que a alma é como o vento? Evódio - Por certo, não; pois, embora este ar, cuja agitação se acredita seja provavelmente o vento, pode encher este mundo, a alma é capaz de imaginar em si mesma inumeráveis e tão grandes mundos, e não sou capaz de conjeturar em que espaço retém suas imagens. Agostinho - Examina, portanto, se não é melhor considerá-la como eu dissera antes: nem comprida, nem larga, nem profunda, tal como concordaste comigo a respeito da justiça. Evódio - Concordaria sem dificuldade, se não me preocupasse mais ainda o fato de a alma poder abranger as inumeráveis imagens de tamanhos espaços, sem possuir longitude, latitude e profundidade. A capacidade de conter na memória grandes extensões não implica que a alma seja ela mesma também extensa, como demonstra a sua capacidade de distinguir e separar as três dimensões espaciais dos corpos? VI,10. Agostinho - Talvez encontraremos a solução, enquanto seja permitido, se antes discutirmos sobre essas três propriedades, ou seja, a longitude, a latitude e a profundidade. Assim, procura pensar numa longitude que não assumiu qualquer latitude. Evódio - Não consigo pensar em tal coisa; pois, se me fixar no fio de uma aranha, que é o mais tênue que costumamos ver, percebo também nele tanto a longitude como a latitude, as quais, contudo, seja o que forem, não possa negar que existam. Agostinho - Não é totalmente absurda tua resposta; mas, certamente, ao perceberes essas três propriedades no fio da aranha, tu as diferencias e sabes o que as diferencia entre si. Evódio - E por que não saberia o que as diferencia? Poderia de outra forma perceber que não falta nenhuma delas nesse fio? Agostinho - Portanto, com o mesmo entendimento com que as diferenciaste, podes também, prescindindo delas, pensar apenas na longitude, contanto que não te ocupe o espírito qualquer corpo; pois, seja o que for, não estará privado das três propriedades. O que desejo que agora imagines é incorpóreo, pois não é possível imaginar apenas a longitude, a não ser pelo espírito; não se pode encontrá-la num corpo. Evódio - Agora compreendo. Agostinho - Por isso, percebes que não te é possível como que cortar pelo pensamento essa longitude em seu comprimento; pois, se te fosse possível, imaginarias também a largura. Evódio - É claro. Agostinho - Portanto, se assim quiseres, chamemos a essa longitude pura e simples. Com efeito, muitos entendidos costumam denominá-la com esse nome. Evódio - Podes chamá-la, como quiseres; não pretendo discutir sobre denominações, contanto que o assunto fique claro. 11. Agostinho - Estás certo e não somente estou de acordo, mas também te aconselho a te deixares atrair mais pelas coisas do que pelas palavras. Mas essa linha, da qual, conforme penso, já tens a ideia, se se estender de um ou de ambos os lados, o máximo que pode estender-se, percebes que não tem fim. Ou, porventura, a acuidade de tua mente não consegue percebê-lo? Evódio - Percebo perfeitamente, e nada mais fácil. Agostinho - Observas então que também não se pode traçar qualquer figura, se nada mais se faz senão prolongar a linha. Evódio - Ainda não entendo a que figura te referes. VII. Agostinho - No momento, denomino figura o espaço que se circunscreve por uma linha ou várias linhas, como ao traçares um círculo ou unires quatro linhas por suas extremidades, de modo que o fim de qualquer delas não fique livre da união com a outra. Evódio - O que denominas figura, creio que já estou entendendo. Mas oxalá pudesse ver até onde estas coisas vão chegar, ou o que deduzirás delas, para eu saber o que posso compreender a respeito da alma. 12. Agostinho - No princípio, para alcançares a verdade, te adverti e supliquei que tolerasses com paciência nosso circunlóquio e peço novamente que o toleres. O assunto que se investiga não é pouco importante, não é fácil de chegar ao seu conhecimento; se for possível, queremos conhecê-lo perfeitamente e retê-lo. Pois uma coisa é quando damos fé a uma autoridade, outra quando a damos à razão. É tarefa menos duradoura acreditar na autoridade e não supõe nenhum esforço. Se isto te agrada, poderás ler as muitas coisas que grandes e santos homens disseram, como que por insinuação, atinente a esses assuntos, as quais pareciam necessárias para a salvação dos mais ignorantes; e quiseram que lhes desse crédito aqueles para cujas inteligências mais tardas e ignorantes não poderia haver salvação. Essas pessoas, no entanto, que são muitas, se pretendem compreender a verdade mediante a razão, são muito facilmente enganadas pelas semelhanças das razões, e de tal modo se resvalam para várias e danosas opiniões, das quais, ou nunca ou com muita dificuldade, conseguem emergir e delas se libertar. Para elas, portanto, é de grande utilidade acreditar apoiados numa autoridade de grande peso e levar a vida de acordo com ela. Este procedimento, se pensares melhor, não somente não condeno, mas também aprovo totalmente. Mas, se não és capaz de refrear esse desejo, pelo qual te determinaste chegar à verdade mediante a razão, deverás tolerar muitos e longos rodeios, a fim de que não sejas guiado a não ser pela razão que merece esse nome, ou seja, a verdadeira razão; e não só verdadeira, mas de tal modo certa e livre de toda a aparência de falsidade, que se é que é possível ser encontrada por um ser humano, que nenhum raciocínio falso ou verossimilhante te possa afastar dessa mesma verdade. Evódio - Nada mais desejarei prematuramente; que a razão atue e me leve aonde quero, contanto que me leve ao fim. VIII,13. Agostinho - Deus o fará; a ele se deve suplicar ou somente tais coisas ou principalmente estas. Mas voltemos ao assunto que apresentara. Pois, se já tomaste conhecimento do que seja uma linha e o que seja uma figura, responde o que te vou perguntar: julgas que é possível traçar uma figura prolongando-a até o infinito por uma e outra parte? Evódio - Insisto em que isso não pode acontecer. Agostinho - Como se deve proceder para se traçar uma figura? Evódio - Se a linha não é infinita, como se deve proceder, senão que ela seja conduzida em círculo de modo que uma parte alcance a outra? Não percebo outro modo de uma linha circunscrever um espaço; pois, se não se proceder conforme tua descrição, não haverá figura. Agostinho - Como proceder, se desejas traçar uma figura com linhas retas? Pode-se proceder de modo a fazê-lo com uma só linha ou não é possível? Evódio - De forma alguma. Agostinho - E com duas? Evódio - Nem assim. Agostinho - E com três? Evódio - Percebo que é possível. Agostinho - Portanto, sabes de fato e sustentas que não é possível fazer uma figura com linhas retas, se forem menos de três. Se algum argumento te contrariar, demover-te-á de teu parecer? Evódio - É claro que, se alguém me demonstrar que isso é falso, não terei em que confiar para poder saber algo. Agostinho - Agora, responde-me ao anterior: como farias para traçar uma figura com três linhas? Evódio - Unindo-as pelas pontas. Agostinho - E não te parece que formam um ângulo onde se juntam? Evódio - De fato. Agostinho - De quantos ângulos consta essa figura? Evódio - De tantos ângulos quantas são as linhas. Agostinho - As linhas que traças são iguais ou desiguais? Evódio - Iguais. Agostinho - Pode acontecer que na figura, que foi traçada com três linhas iguais, os ângulos sejam desiguais ou não? Evódio - De modo algum. Agostinho - Se a figura se compõe de três linhas retas, mas desiguais, os ângulos podem ser iguais ou não? Evódio - De modo nenhum. Agostinho - Estás respondendo certo. Mas dize-me, por favor, que figura consideras melhor e mais bela: a que é formada com linhas iguais ou a com linhas desiguais? Evódio - Quem duvida que seja melhor onde prevalece a igualdade. IX,14. Agostinho - Portanto, preferes a igualdade à desigualdade? Evódio - Não sei se alguém não prefere. Agostinho - Observa agora na figura, formada com três ângulos iguais, o que nela é oposto ao ângulo, ou seja, oposto do lado contrário; observa se é linha ou ângulo. Evódio - Vejo uma linha. Agostinho - O que acontece, então, se o ângulo é oposto ao ângulo e a linha oposta à linha; não reconheces que a igualdade é mais perfeita na figura em que isto acontece? Evódio - Reconheço que sim, mas não percebo como isto pode acontecer apenas com três linhas. Agostinho - E pode-se fazer isso com quatro linhas? Evódio - Sem dúvida, é possível. Agostinho - É melhor a figura composta por quatro linhas do que a por três? Evódio - É melhor, claro, visto que nela se destaca melhor a igualdade. Agostinho - E então? Essa figura que é construída por quatro linhas retas iguais, julgas que possa ser traça da de tal forma que nem todos os ângulos sejam iguais, ou não pensas assim? Evódio - Percebo que é possível. Agostinho - De que modo? Evódio - Se dois ângulos forem mais estreitos e dois mais abertos (dois ângulos agudos e dois obtusos). Agostinho - Percebes como também os dois mais estreitos e os dois mais abertos são contrários entre si? Evódio - Deveras e evidentemente. Agostinho - Percebes a igualdade mantida também aqui, enquanto pôde ser mantida; pois percebes, sem dúvida, que não é possível se dar, quando se trata de figura com quatro linhas iguais, ou que todos os ângulos sejam iguais, ou pelo menos dois a dois, e que os iguais se opõem um ao outro. Evódio - Percebo-o e sustento com convicção. 15. Agostinho - Não te chama a atenção também nestas coisas uma como justiça tão grande e firme? Evódio - Em que sentido? Agostinho - Pois, como penso, a nada chamamos justiça senão à igualdade. E parece ser denominada equidade (aequitas) devido a certa igualdade (aequalitate). E o que é igualdade nessa virtude, senão que se dê a cada o que é seu? Pois bem, não se pode dar a cada o que é seu, se não houver certa diferença. Ou pensas de outro modo? Evódio - Está claríssimo e, sem dúvida, concordo. Agostinho - Pensas que pode haver diferença, se todas as coisas são iguais de modo a não haver diferença alguma entre si? Evódio - De modo algum. Agostinho - Por isso não se pode cumprir a justiça, se não houver, por assim dizer, desigualdade e dessemelhança nas coisas, que são objeto da justiça. Evódio - Compreendo. Agostinho - Portanto, admitindo que essas figuras, das quais estamos tratando, são dessemelhantes entre si, ou seja, aquela formada com três ângulos e esta com quatro, e, no entanto, ambas são formadas por linhas iguais, não te parece que se observa certa justiça, de tal modo que aquela não pode apresentar igualdade de ângulos opostos, mantenha a igualdade perfeita de ângulos, mas nesta, porque há tão perfeita harmonia dos opostos, não te parece, repito, que aquela lei dos ângulos admite certa desigualdade? Tive por bem interrogar-te sobre isso, que muito me preocupava, para saber que prazer te causaria com esta verdade, equidade, igualdade. Evódio - Já compreendo o que estás dizendo e admiro-me não pouco. Agostinho - Agora, porque com razão preferes a igualdade à desigualdade e como, assim julgo, não há absolutamente ninguém dotado de bom senso que não pense assim, investiguemos, se te aprouver, a figura em que se pode encontrar a igualdade mais perfeita. Pois, seja qual for, merece, sem dúvida, a preferência sobre as demais. X,16. Agostinho - Responde-me primeiramente se dentre aquelas figuras, das quais se fez menção, o quanto parecia bastante, és de parecer que sobressai a que é formada de quatro linhas iguais e outros tantos ângulos iguais. Pois, conforme observas, nela há tanta igualdade de linhas como de ângulos, o que não encontramos na outra que se fecha com três linhas iguais: existe nesta uma igualdade das partes opostas; pois, como podes observar, uma linha se opõe a uma linha, um ângulo a um ângulo. Evódio - Assim, é como estás dizendo. Agostinho - Ela possui a igualdade mais perfeita, ou pensas de outro modo? Pois, se a possui, estamos querendo investigar outra inutilmente, como determinamos; mas se não a possui, quero que me demonstres. Evódio - Parece-me que a possui, pois onde os ângulos e as linhas são iguais, não percebo como encontrar desigualdade. Agostinho - Eu penso diferente, visto que uma linha reta, até chegar aos ângulos, é dita da mais perfeita igualdade; mas quando, pelo lado contrário, se une com outra para formar um ângulo, não consideras esse ângulo desigual? Ou és de opinião que a parte da figura que se fecha com a linha convém em igualdade e semelhança com aquela parte que é fechada pelo ângulo? Evódio - De modo algum; e envergonho-me de minha temeridade. Pois fui a ela, porque, nessa figura, considerava os ângulos iguais entre si e também os lados; mas quem não percebe a diferença de seus lados com relação aos ângulos? Agostinho - Observa outro sinal claríssimo de desigualdade: percebes certamente que a figura triangular consta de linhas iguais, ou que a quadrada tem um ponto no centro. Evódio - Percebo-o muito bem. Agostinho - O que vai acontecer, se traçamos linhas deste centro em direção a todos os lados da figura? Julgas que as linhas são iguais ou desiguais? Evódio - Desiguais totalmente; pois é necessário que sejam mais longas que as originadas dos ângulos. Agostinho - Quantas são as do quadrado e quantas são as do triângulo? Evódio - Quatro no quadrado e três no triângulo. Agostinho - E quais são as menores de todas e quantas são em ambas as figuras? Evódio - São tantas quantas vão traçadas ao meio dos lados. Agostinho - Parece-me que estás respondendo com exatidão, e, por isso, não é preciso que nos detenhamos mais tempo nesse ponto, pois é o bastante para o que pretendemos. Com efeito, como penso, percebes que aqui se manifesta uma grande igualdade; contudo, não é ainda perfeita totalmente. Evódio - Percebe-o perfeitamente; e estou ansioso por conhecer qual seja essa figura que possui a igualdade mais perfeita. XI,17. Agostinho - Julgas que essa mais perfeita pode ser outra, senão aquela cuja extremidade equidista de todos os lados, ao não haver nenhum ângulo que impeça a igualdade, e de cujo meio podem partir linhas iguais para todos os lados extremos? Evódio - Já estou entendendo; assim penso. Pois parece que me estás descrevendo aquela figura que é limitada por uma linha traçada em círculo. Agostinho - Estás compreendendo bem. Agora, pois, considera o seguinte: quando a razão anterior ensinou-te a perceber uma linha apenas com longitude, sem nenhuma latitude, e, por isso, não é possível ser dividida em sua longitude na qual é traçada, pergunto-te se és de opinião que se possa encontrar alguma figura sem latitude. Evódio - Por certo, não. Agostinho - E a latitude, pode ou não ter longitude, embora seja apenas latitude, do mesmo modo como percebemos anteriormente a existência da longitude sem latitude? Evódio - Considero que não é possível. Agostinho - Percebes também, se não me engano, que a latitude pode ser dividida em qualquer parte, mas a linha não o pode em sua longitude. Evódio - Está claro. Agostinho - De acordo com teu pensamento, o que é mais: o que pode ser dividido ou o que não o pode? Evódio - Sem dúvida o que não o pode. Agostinho - Portanto, preferes a linha à longitude. Pois, se se deve preferir o que não pode ser dividido, é consequente que prefiramos também o que menos pode ser dividido. Mas divide-se a latitude de qualquer modo, mas não a longitude, a não ser transversalmente, visto que não admite divisão no comprimento. Portanto, é superior à latitude. Ou julgas de modo diferente? Evódio - A razão obriga-me a admitir o que estás dizendo. 18. Agostinho - Se te aprouver, investiguemos agora se existe algo neste campo que não possa ser dividido absolutamente, pois isso será mais excelente que a própria linha. Pois percebes que a linha pode ser cortada transversalmente e inúmeras vezes; por isso, deixo-te a tarefa de descobri-lo. Evódio - Penso que não se pode dividir o que colocávamos no meio, de onde as linhas partiam para os extremos. Pois, se for dividido, não pode deixar de ter longitude ou, também, latitude. Mas se tem apenas longitude, não haverá linha de onde possa partir, mas a própria linha. Mas se também tem latitude, requer outro meio do qual partem as linhas aos extremos da latitude. A razão rejeita ambas as hipóteses. Será então o que não pode ser dividido. Agostinho - Estás falando com exatidão. Mas não te parece algo semelhante o que dá origem à linha, embora não seja uma figura, cujo centro imaginamos? Chamemos princípio da linha de onde começa a longitude, a qual linha quero que a imagines sem nenhuma longitude. Pois, se imaginas a longitude, de forma alguma hás de imaginar de onde começa a própria longitude. Evódio - Assim é de fato. Agostinho - Portanto, isso, que vejo tu já apreendes com o intelecto, é o mais fundamental de tudo o que foi demonstrado. Com efeito, é o que não admite qualquer divisão e chama-se ponto (punctum), quando ocupa o centro da figura; mas se é início de uma linha ou de linhas, ou também fim, ou quando indica algo que deve ser entendido como sem ponto, mas não ocupa o centro da figura, denomina-se signo (signum). Portanto, o signo é um sinal (nota) sem partes. Mas é ponto, um sinal que ocupa o centro da figura. Isso faz com que todo ponto seja também um signo nem todo signo é considerado ponto. Quero que estejamos de acordo a respeito desses nomes, a fim de evitar circunlóquios na conversação. Embora muitos denominem ponto não o que é o centro de toda figura, mas somente o do círculo ou esfera, contudo, interessa-nos pouco a questão de vocábulos. XII,19. Agostinho - Certamente percebes a importância do ponto. Pois dele começa a linha e nele termina; observamos que não é possível traçar uma figura qualquer com linhas retas, se não se fecha um ângulo no ponto. Além disso, a linha pode ser cortada em qualquer parte, é cortada por ele, enquanto ele em si não admite de forma alguma um corte, e nenhuma linha se une a outra a não ser por ele. Finalmente, como a razão demonstrou acerca das figuras planas (pois até agora nada dissemos sobre a altura), ou seja, que se deve preferir a que é formada por um círculo, devido à sua igualdade, qual a medida de sua igualdade, senão o ponto colocado no meio? Podem-se dizer muitas coisas sobre sua importância, mas limito-me ao que foi dito e confio-te o pensar muitas coisas sobre ele. Evódio - Está bem, como parece. Mas não me envergonharia de fazer-te perguntas, se algo parecer mais obscuro; porém percebo imperfeitamente, conforme penso, o grande valor desse signo. 20. Agostinho - Como já diferenciaste o que seja signo, o que seja longitude e o que seja latitude, considera agora qual deles te parece que necessita do outro e de qual, de modo a não poder existir sem ele. Evódio - Percebo que a latitude necessita da longitude, sem a qual carece de compreensão. Percebo também que a longitude necessita da latitude para existir, mas não pode existir sem o signo. Mas é manifesto que o signo existe por si mesmo e não necessita das duas. Agostinho - É assim mesmo, como estás dizendo. Mas considera com mais atenção se a latitude é divisível por qualquer parte, ou se por alguma não o é, embora seja mais divisível que a linha. Evódio - Ignoro totalmente por onde possa ser dividida. Agostinho - Creio que não te lembras, porém não é possível que o ignores; por isso, te mostrarei deste modo. Certamente tu imaginas a latitude de modo a não perceberes nada de profundidade com teu pensamento. Evódio - É assim mesmo. Agostinho - Junte-se a profundidade à latitude e responde se surgiu alguma coisa que permita à latitude ser dividida em todas as partes. Evódio - Conseguiste chamar-me à atenção com muita competência. Pois agora percebo que é possível admitir divisão não só por cima ou da parte inferior, e também dos lados, e nada ficou em absoluto de onde não se possa fazer divisão. Com isso fica claro que não se pode dividir a latitude por aquelas partes que darão origem à altura. 21. Agostinho - Portanto, se não me engano, já que sabes o que sejam a longitude, a latitude e a altura, pergunto se podem faltar as duas primeiras, quando se fizer presente a altura. Evódio - Observo que não pode existir altura sem longitude, mas é possível sem latitude. Agostinho - Retoma então ao pensamento sobre a latitude; se a imaginares como que jacente no espírito, ergue-a para qualquer dos lados, como se a quisesses retirar por estreitíssima fenda, onde se juntam portas fechadas. Não entendes ainda o que quero dizer-te? Evódio - Entendo o que estás dizendo, mas talvez não perceba o que pretendes. Agostinho - Pretendo que respondas se a latitude assim erguida se converte em altitude e venha a perder desse modo o nome e a noção de latitude; ou se ainda permanece latitude, mesmo que seja colocada desse modo. Evódio - Sou de parecer que se converteu em altura. Agostinho - Tu te lembras, eu te peço, de como tínhamos definido a altura? Evódio - Lembro-me perfeitamente, e agora me envergonho de ter respondido daquele modo. Pois, desse mesmo modo, como que sendo uma latitude levantada, não admite divisão ao comprido em direção para baixo. Isso porque não podem ser imaginadas realidades interiores, embora se possam imaginar o meio e os extremos. Mas de acordo com a explicação anterior de altura a qual me fizeste recordar, não existe absolutamente altura onde nada se possa imaginar internamente. Agostinho - Estás falando bem, e queria que te lembrasses dela desse modo. Por isso, agora quero que respondas se antepões o verdadeiro ao falso. Evódio - Seria rematada loucura duvidar disso. Agostinho - Dize então, por favor, se é uma linha verdadeira a que se pode dividir ao comprido, ou se é um verdadeiro signo que não admite divisão alguma, ou se é uma verdadeira latitude a que, erguida, como dissemos, admite divisão ao comprido em direção para baixo. Evódio - Nada disso. XIII,22. Agostinho - Viste alguma vez esse ponto, ou essa linha, ou essa latitude com esses olhos corporais? Evódio - Nunca mesmo, pois não são corpóreos. Agostinho - Ora, se o corpóreo pode ser visto pelos olhos corpóreos devido a certo admirável parentesco, consequentemente a alma, com a qual vemos o incorpóreo, não é corpórea ou um corpo. Ou pensas diferente? Evódio - Estás certo, e estou de acordo que a alma não é um corpo ou algo corpóreo; mas dize-me, afinal, o que é a alma? Agostinho - Por enquanto, procura ver se ela foi criada para carecer de toda aquela "grandeza", objeto da questão. Pois, concernente ao que é a alma, admiro-me de que tenhas esquecido de o havermos discutido na questão anterior. Deves estar lembrado de que me perguntaste pela origem da alma. Lembro-me de ter interpretado a pergunta de dois modos: um, se perguntavas pela região de onde procedia; outro, de que elementos era formada, ou de todos ou de alguns deles. Naquela questão concordamos em que não mais haveríamos de investigar se é de terra ou de qualquer dos outros elementos. Pois se deve ter em conta que, embora Deus tenha criado a alma, ela tem substância própria, a qual não é nem de terra nem de fogo nem de ar nem de água, a não ser que se deva pensar que Deus deu à terra outra coisa senão terra, e não outorgou à alma outra coisa senão alma. Mas se queres que te dê uma definição da alma, e por isso perguntas o que seja a alma, não terei dificuldade em responder. Pois parece-me que é substância dotada de razão, destinada a governar o corpo. XIV,23. Evódio - Por isso, presta atenção ao ponto de onde surge agora a dúvida, ou seja, se a alma possui uma grandeza, um espaço local, por assim dizer. Pois como não é certamente corpo, pois de outro modo, como o raciocínio anterior demonstrava, tinha poder para enxergar coisas incorpóreas, está certamente privada do espaço pelo qual se medem os corpos. Por isso, não se pode acreditar ou pensar ou entender essa tal grandeza na alma. Mas se te preocupa a razão pela qual a memória armazena tamanhos espaços do céu e da terra, não tendo ela nenhuma grandeza, deduz-se que é admirável seu poder, o qual, contudo, quanto de luz há em tua inteligência, podes observar pelas realidades que descobrimos. Se, como a razão já o demonstrou, não há corpo quando faltam longitude, latitude e profundidade, e nenhuma dessas propriedades pode existir sem as outras duas, mas é alma, foi-lhe permitido ver até mesmo uma única linha com certo olho interior, ou seja, a inteligência, julgo que podemos conceder que a alma não é corpo e que é melhor que o corpo. Tendo aceito isso, sou de opinião que não deves duvidar de que ela é também melhor que a linha; pois é risível que, como aquelas três propriedades estão ligadas ao corpo para que seja corpo, não seja melhor do que todas elas a que é superior ao corpo. E a própria linha, que é inferior à alma, é superior às outras duas, porque pode ser menos dividida que elas. Além disso, aquelas duas podem ser divididas tanto mais que a linha, quanto mais se estendem pelo espaço; mas a linha não possui espaço algum, a não ser o da longitude; mas retirado este, nada resta de espaço. Consequentemente, tudo o que é melhor que a linha, necessariamente não terá espaço e não pode ser absolutamente dividido ou cortado. Portanto, esforçamo-nos em vão em procurar descobrir a quantidade da alma, a qual não existe, se concordamos que ela é superior à linha. E se a mais perfeita das figuras planas é a representada pelo círculo, no qual, conforme o raciocínio nos ensinou, nada é de mais valor que o ponto, o qual, sem dúvida alguma carece de partes, por que admirar-se de que a alma não seja corpórea, nem alongada pela longitude, nem dilatada pela largura, nem consolidada pela altura, e, contudo, tenha tanto poder no corpo e tenha em suas mãos o governo de todos os membros e que seja como que o eixo no modo de agir de todos os movimentos corporais? 24. Mas, considerando que o centro do olho, denominado pupila, nada mais é que como um ponto no olho, no qual, sem embargo, existe tanta força que, de um lugar alto, se pode observar com ele metade do céu, cujo espaço é inefável, não está longe da verdade que a alma careça de toda grandeza corpórea, a qual se perfaz mediante aquelas três propriedades, embora ela possa imaginar quaisquer grandezas corpóreas. Mas a poucos é dado contemplar a alma com a própria alma, ou seja, que a alma se contemple a si mesma; mas se vê pela inteligência. Somente ela pode ver que nada há mais poderoso e grandioso que aquelas naturezas que, por assim dizer, são imaginadas sem inchaços; pois o inchaço não sem razão é denominado grandeza do corpo, a qual, se fosse estimada em muito, os elefantes seriam sem dúvida mais sábios do que nós. E se algum parente deles disser que os elefantes são mais sábios (pois constatei, embora com admiração, constatei, contudo, que os homens duvidam muitas vezes disso), esse tal, conforme penso, pelo menos concordará que a abelha sabe mais que um asno; comparar seus tamanhos é, sem dúvida, uma atitude mais que asinina. Contudo, a respeito do que dizíamos do olho: a quem não é evidente que o olho da águia é muito menor que o nosso? Contudo, ela, voando tão alto que dificilmente pode ser vista em plena luz, descobre uma lebre debaixo de um arbusto e percebe um peixe debaixo das águas. E se nos sentidos corporais, aos quais não é dado perceber senão o que é corpóreo, a grandeza do corpo para nada aproveita, ou seja, para o poder de perceber, há de se temer, pergunto eu, que a alma humana, cujo mais excelente e quase único olhar é a própria razão, pela qual está aparelhada para ver a si mesma, que a alma humana, repito, nada seja, se a própria razão, ou seja, se ela mesma nos convencesse de que carece de toda grandeza pela qual algo ocupa um lugar? Podes acreditar: grandes coisas, grandes mesmo, podemos pensar sobre a alma, mas sem imaginarmos qualquer massa. Isso pode acontecer com os que, bem instruídos, se entregam a elas, não pela ambição da vanglória, mas inflamados pelo amor divino da verdade, ou com os que se encontram nessa investigação e, embora menos instruídos, se entregaram a investigá-las; contanto que se entreguem pacientemente aos bons e se apartem de toda familiaridade com os corpos, à medida que esta vida o permite. Mas, por especial disposição da divina providência, não é possível que venha a faltar a faculdade de descobrir às almas religiosas que piedosa, casta e diligentemente buscam a si mesmas e a Deus, ou seja, a Verdade. XV,25.Agostinho - Mas deixemos de lado essa questão, a não ser que algo mais te preocupa, e passemos para outras; porém a respeito de tudo o que disputamos sobre aquelas figuras, talvez mais demoradamente do que desejavas, perceberás quanto é útil para as outras questões, se concordas em que essa dissertação serviu para algo. Pois este gênero de estudos prepara também a alma para perceber assuntos mais sutis, evitando que, ofuscada pela sua luz e não conseguindo tolerá-la, preferiria fugir para as mesmas trevas que pretendia evitar. E ela apresenta argumentos, se não me engano, dotados da maior credibilidade, a respeito dos quais a dúvida não teria razão de existir, argumentos, repito, com relação ao que foi descoberto e consolidado, à medida que é permitido ao homem investigar sobre esses assuntos. Pois eu duvido menos dessas coisas que daquelas que vemos com estes olhos sempre em luta com o humor que segregam. Pois o que é menos tolerável e menos digno de ouvir do que nós nos avantajamos aos animais pela razão e que esta superioridade consiste em que podemos sentir pela luz corporal, o que até mesmo alguns animais possuem em maior grau, mas afirmar que o percebido pela razão nada é? Nada mais indigno se poderia afirmar que é a mesma coisa percebida pelos olhos. O "crescimento" da alma com a idade (o aprendizado) não é espacial 26. Evódio - Concordo de bom grado com essas afirmações e as aceito. Mas preocupa-me o seguinte: como para mim é tão evidente que a alma não é dotada de grandeza corpórea, ignoro completamente como poderei resistir a esses argumentos e o que devo aceitar. Primeiramente, como o corpo cresce com a idade, assim também a alma deve crescer ou parecer crescer. Pois, quem é capaz de negar que as crianças não podem ser comparadas a alguns animais quanto à sagacidade? Mas quem duvida de que, conforme vão se desenvolvendo fisicamente, a razão também se desenvolve? Em segundo lugar, se a alma se estende pelo espaço do corpo, como entender que não tenha grandeza? E se não se estende, como sente em qualquer parte que se toca? Agostinho - Perguntas exatamente a respeito do que a mim me preocupa muitas vezes. Por isso, não estou despreparado para te dar respostas, como é costume em se tratando de mim; mas oxalá tua inteligência, que te leva a perguntar, venha a considerá-las certas. Contudo, sejam quais forem, na verdade não tenho capacidade para mais, a não ser que me venha à mente uma inspiração divina. Mas procedamos, se te aprouver, conforme nosso costume, a fim de que, tendo como guia a razão, tu dês a ti mesmo as respostas. Mas, principalmente, investiguemos se está correto o argumento da alma que cresce com o corpo pelo fato de que, avançando em idade, o ser humano se torna mais preparado para a vida humana e demonstra nela maior experiência a cada dia. Evódio - Procede, como te aprouver, pois eu também aprovo esse modo de ensinar e de aprender, pois não sei a que atribuir o fato de que, quando eu mesmo respondo ao que, não sabendo, perguntava, a descoberta se torna mais agradável, não pelo assunto em si mesmo, mas pela admiração que causa. XVI,27. Agostinho - Dize-me: o maior e o melhor são para ti coisas diferentes ou parecem ser uma e a mesma coisa denominada com dois nomes? Evódio - Sei que uma coisa é o maior, e outra, o melhor. Agostinho - A qual das duas corresponde a grandeza? Evódio - Certamente ao que denominamos maior. Agostinho - Por que declaramos que, entre duas figuras, a circular é melhor que a quadrada? É a grandeza que faz melhor a figura ou é outra coisa? Evódio - De forma alguma é a grandeza, mas é a igualdade, da qual tratamos antes, a causa dessa excelência. Agostinho - Agora, presta atenção a isto: és de opinião que a virtude é certa igualdade de vida, em harmonia total com a razão? Pois, se na vida uma coisa dissente da outra, prejudica-nos, se não me engano, mais que se uma parte do círculo fica distante das outras partes com maior ou menor intervalo. Ou pensas de outro modo? Evódio - Pelo contrário, estou de acordo, e admito que seja a virtude isso que acabas de descrever. Pois também a razão, não devemos assim chamá-la ou ter-lhe apreço, se não for verdadeira, e aquele cuja vida se harmoniza em tudo com a verdade é sem dúvida o único ou o que principalmente vive bem e honestamente; e o que assim se torna é o único que pode ser apontado como possuidor da virtude e como vivendo dela. Agostinho - Falas com exatidão; mas certamente também percebes, pois assim penso, que o círculo é a figura mais semelhante à virtude entre todas as figuras planas. Por isso costumamos exaltar com grandes louvores o verso em Horácio, no qual ele diz: Ele é forte e totalmente harmonioso e redondo em si mesmo. E com razão; pois nem relativamente aos bens da alma, nada deparas que se harmonize totalmente com si mesmo que a virtude, e, entre as figuras planas, o círculo. Por isso, se o círculo não se avantaja sobre as outras pela grandeza do espaço, mas por sua forma, quanto mais se deve pensar sobre a virtude, visto que ela sobressai sobre as demais manifestações da alma, não pela ocupação de espaço maior, mas por certa proporção e harmonia divina de suas medidas! 28. Mas quando uma criança progride honradamente, em que aspecto se diz que progride mais, senão no que tange à virtude? Não pensas assim? Evódio - É claro. Agostinho - Portanto, não deves opinar que a alma progride com a idade, como o corpo pelo crescimento. Pois ela chega à virtude progredindo, e nós declaramos que ela é formosa e perfeita sem nenhuma magnitude de espaço, mas pelo grande poder da harmonia. E se, como disseste, uma coisa é o maior e outra o melhor, todo o progresso da alma com a idade e o uso da razão, não me parece que a tornam maior, mas sim melhor. E se isso fosse consequência do tamanho do corpo, qualquer seria tanto mais cordato, quanto mais alto e mais forte. Como julgo, não negarás que isto não seja de outro modo. Evódio - Quem o negaria? Mas se também estás de acordo em que a alma cresce com o tempo, admiro-me de que, totalmente carente de grandeza, seja ajudada não pelo espaço dos membros, mas certamente pelo do tempo. XVII,29.Agostinho - Deixa de admirar-te, pois também neste ponto vou responder com argumento semelhante. Assim como o tamanho dos membros não é nenhuma prova de que ajuda a alma, pois muitos dotados de membros mais débeis e pequenos são mais corda tos que alguns de grande estrutura corporal, assim também, porque vemos algumas pessoas mais jovens serem mais diligentes e ativas da que muitas mais velhas, não percebo por que admitir para as almas o crescimento pela idade, como acontece para os corpos. Ainda mais porque os próprios corpos, a respeito dos quais concordamos que crescem e tomam espaços maiores, muitas vezes são menores quanto mais idosos, não somente no tocante aos corpos senis, os quais se contraem e diminuem com o avançar do tempo, mas também aos das crianças, os quais percebemos serem menores no corpo do que as que elas superam em idade. Portanto, se os anos se prolongam muito, nem assim são causa do tamanho dos corpos, mas é a força do germe e da natureza de certos fatores, sem dúvida ocultos e difíceis de se conhecerem, quanto menos devemos pensar que a alma se torne maior pelo muito tempo, porque a vemos aprender pela experiência e pelo empenho constante! 30. Porque, se te preocupa o fato de traduzirmos por "longanimidade" o que os gregos denominam "makrothynian", é conveniente que tenhas em contra que se aplicam à alma muitas palavras referentes ao corpo, assim como se aplicam ao corpo as referentes à alma; pois se Virgílio atribui ao monte o adjetivo cruel e a terra denominou-a justíssima, palavras que percebes terem sido transferidas da alma para o corpo, por que admirar se dizemos longanimidade indiferentemente, quando somente os corpos podem ser longos? Mas aquela entre as virtudes que se denomina magnanimidade, deve-se entender na verdade como relacionada, não a um espaço, e sim a uma força, ou seja, ao poder e à potência da alma; virtude tanto mais merecedora de apreço, quanto mais coisas despreza. Mas falaremos dela depois, ao investigarmos o quanto a alma seja grande, assim como se costuma investigar sobre o quanto foi grande Hércules pela excelência de seus atos, não pela estrutura de seus membros; pois assim estabelecemos anteriormente. Mas agora convém que recordes o que já tratamos sobre o ponto, pois a razão ensinou-nos que é dotado de grande poder e que domina principalmente entre as figuras. Essa potência e essa dominação não revelam certa grandeza? E, no entanto, não encontramos nenhum espaço no ponto. Por isso, não se há de pensar na extensão do lugar que ocupa, mas no que é capaz, quando ouvimos e falamos em grande alma. Por isso, se teu primeiro argumento, segundo o qual eras de parecer que a alma cresce com o corpo conforme a idade, já foi discutido sobejamente.f passemos a outro assunto. XVIII,31. Evódio - Não sei se abordamos todas as questões que, não sem motivo, costumam preocupar-me; pode ter acontecido que algumas se tenham escapado à minha lembrança. Contudo, vejamos agora aquilo que me vem à mente: por que o recém-nascido não tem a faculdade de falar, mas a adquire com o crescimento? Agostinho - É muito fácil resolver, pois creio que és de opinião que cada um fala na língua com a qual falam as pessoas entre as quais nasceu e se educou. Evódio - Isso é sabido por todos. Agostinho - Portanto, imagina alguém nascido e criado onde pessoas que não falassem, mas, por meio de sinais e movimentos dos membros, exprimissem os pensamentos que deveriam manifestar aos outros. Não julgas que aquele que a ninguém ouviu falar, procederia do mesmo modo e não teria a faculdade de falar? Evódio - Não quero que me perguntes a respeito do que não pode acontecer. Como posso imaginar essas pessoas entre as quais alguém tivesse nascido? Agostinho - Não viste em Milão um adolescente, de corpo benfeito e dotado da fina educação, porém mudo e de tal modo surdo que não entendia os outros a não ser por meio de gestos, e manifestava de modo não diferente o que queria? Pois ele é muito conhecido aqui. E eu conheço um homem do campo que fala e que gerou de sua esposa que fala mudos e surdos, todos os seus filhos, homens e mulheres, quatro ou mais (pois não me lembro exatamente quantos). Eram considerados mudos pelo fato de não poderem falar, mas também surdos pelo fato de perceberem os sinais somente pelos olhos. Evódio - Aquele eu conheço muito bem, a respeito dos outros, confio em ti. Mas por que citas esses casos? Agostinho - Porque disseste que não podes imaginar alguém nascido entre tais pessoas. Evódio - Nem ainda vou dizer outra coisa, pois afirmas que eles nasceram entre pessoas que falavam. Agostinho - Não o negarei certamente; mas como já é certo que pode haver algumas pessoas assim, peço-te que penses se um homem ou uma mulher com esse problema se casassem e, levados por qualquer circunstância a um lugar distante, onde pudessem viver, gerassem um filho não surdo, como poderia ele conversar com seus pais? Evódio - Como pensas que o faria senão repetindo os sinais mediante gestos, como seus pais lhe faziam? Mas um filho pequeno nem isso podia fazer; assim meu argumento fica sem resolver. O que importa que consiga falar ou gesticular com o crescimento, se ambas as coisas dizem respeito à alma, cujo crescimento não queremos reconhecer? 32. Agostinho - Parece que também crês que, quando alguém anda por uma corda, tem alma maior que os incapazes de fazê-lo. Evódio - Isso é outra coisa, pois quem não vê que se trata de uma arte? Agostinho - Responde-me: Por que de uma arte? Acaso por que aprendeu? Evódio - Isso mesmo. Agostinho - Por que não és de opinião que se trata de arte quando alguém aprende outra coisa? Evódio - Na verdade, não percebo que tudo o que se aprende seja arte. Agostinho - Logo, ele não aprendeu dos pais a fazer gestos? Evódio - Claro que aprendeu. Agostinho - Então é mister que concordes que isso é resultado de uma alma maior pelo crescimento, mas da arte da mímica. Evódio - Não posso concordar com isso. Agostinho - Então, nem tudo o que se aprende é fruto da arte, como acabas de aceitar. Evódio - É da arte, sem dúvida. Agostinho - Portanto, ele não aprendeu os gestos, o que também aceitaste. Evódio - Aprendeu, mas isso não é fruto da arte. Agostinho - Mas um pouco antes disseste que é fruto da arte tudo o que se aprende. Evódio - Está bem; agora concordo, e diz respeito à arte de falar e gesticular, pelo fato de que o aprendemos. Contudo, umas são as artes que aprendemos observando outras pessoas, e outras as que nos são ensinadas pelos mestres. Agostinho - Qual delas tu crês que a alma adquire pelo fato de se tornar maior, ou são todas? Evódio - Não penso que são todas, mas as primeiras. Agostinho - Não te parece estar nesse grupo a arte de andar na corda? Pois aprendem a praticá-la, como penso, simplesmente observando os que a praticam. Evódio - Penso que sim; mas nem todos os que são espectadores ou observam com muita atenção conseguem praticá-la, mas os que se submetem aos mestres nessa arte. Agostinho - De fato, falas muito bem, e responder-te-ia do mesmo modo, quando se trata da linguagem: pois muitos gregos nos ouvem falar em outra língua com mais frequência do que assistem a um espetáculo de funambulismo. Para aprenderem nosso idioma, assim como quando queremos aprender o deles, muitas vezes eles se confiam aos mestres. Sendo assim, admiro-me de que queiras atribuir ao crescimento da alma o fato de os homens falarem, e não queiras quando se trata de andar na corda. Evódio - Não sei como fazes confusão com essas coisas, pois quem quer aprender nossa língua entrega-se a um mestre. Este conhece a sua, a qual creio que aprendeu com o crescimento de sua alma. Mas quando aprende outra, atribuo-o à arte e não à mais crescida. Agostinho - E se o que nasceu e foi criado entre mudos tivesse aprendido a falar mais tarde, sendo jovem, conversando com outras pessoas, sem conhecer nenhuma outra língua, pensas que a alma tenha crescido pelo fato de ter aprendido a falar? Evódio - Nunca teria a ousadia de falar assim, e já me entrego à razão e não mais penso ser argumento para defender o crescimento da alma o fato de podermos falar, para não ser forçado a reconhecer que a alma consegue praticar todas as artes pelo seu crescimento; pois, se o afirmar, resultaria o seguinte absurdo: a alma decresce, quando se esquece de algo. XIX,33. Agostinho - Compreendeste bem e, para que ouças a verdade, costuma -se dizer que a alma como que cresce aprendendo e, pelo contrário, decresce desaprendendo, mas falando metaforicamente, como mostramos antes. Mas não se deve dizer que ocupa um espaço maior, quando se diz que cresce, mas passa a ter mais capacidade de agir do que quando era menos capacitada. Contudo, é de grande importância a espécie de conhecimentos que adquire, com os quais aparenta crescer. Pois no corpo há três espécies de crescimento: um, que é necessário, pelo qual os membros adquirem sua natural proporção; outro, que é supérfluo, pelo qual, crescendo, um membro passa a diferenciar dos outros em algo, conservando a saúde, como acontece a certas pessoas que nascem com seis dedos, e outras anomalias caracterizadas pelo maior tamanho dos membros com relação ao normal; a terceira, que é prejudicial, que, quando acontece, denomina-se inchaço. Nesta última espécie, costuma-se dizer também que os membros crescem, e de fato passam a ocupar maior espaço, mas privando a pessoa de sua saúde. Do mesmo modo, há na alma alguns como que crescimentos naturais, quando se diz que cresceu com os bons conhecimentos destinados a viver bem e com felicidade. Mas quando aprendemos coisas mais maravilhosas do que úteis, embora sejam oportunas para algumas circunstâncias, contudo, são supérfluas e devem ser enumeradas entre as da segunda espécie. Com efeito, assim como um flautista, no dizer de Varrão, de tal modo agradou o povo que o fez rei, nem por isso devemos pensar em fazer crescer nossa alma mediante essa habilidade. E nem gostaríamos de ter mais dentes que os normais, se ouvíssemos que alguém, que os tinha assim, matou o inimigo com uma mordida. Mas é nocivo aquele gênero de arte que prejudica a saúde da alma, pois é perícia lamentável distinguir os manjares pelo cheiro e sabor, saber dizer em que lago o peixe foi apanhado ou o ano de fabricação do vinho. E quando a alma, que da mente resvalou para os sentidos, parece ter crescido com essas artes, deve-se considerar que apenas se inchou ou mesmo se derreteu. XX,34. Evódio - Aceito tudo isso, e também estou de acordo; contudo, angustia-me o fato de ser incapaz de tudo e ser como que de um bruto a alma que observamos, enquanto é possível, na criança recém-nascida. Por que não traz consigo alguma arte, se ela é eterna? Agostinho - Apresentas uma questão importante, importante mesmo, e não sei se há algo de maior importância, sobre a qual são tão contrárias nossas opiniões. És de parecer que a alma não traz consigo nenhuma arte, e eu, pelo contrário, sou de opinião que traz consigo todas as artes; e o que se chama aprender nada mais é que recordar. Não percebes que não é o momento de perguntar se essas coisas são assim? Pois agora vamos tratar de mostrar, se for possível, que não denominamos a alma pequena ou grande de acordo com os espaços de lugar. Se ela é eterna ou não, investigaremos oportunamente quando começarmos a falar, enquanto for possível, sobre o que apresentaste em quarto lugar: "Por que se uniu ao corpo?". Pelo que tange à sua grandeza, se sempre existiu ou não, ou se continuará a existir, se agora é ignorante ou sábia, o que nos importa, se provamos antes que um tempo longo não apresenta para os corpos a causa de sua grandeza, e que é sobejamente sabido que a ciência pode ser nula nos que estão crescendo e que está ao alcance dos que envelhecem. Além disso, muitas coisas foram ditas, assim julgo, para demonstrar que a alma não se torna maior pelo tamanho do corpo, adquirido pela idade. XXI,35. Por isso vejamos, se te aprouver, aquele outro teu argumento, segundo o qual o tato do corpo é sentido pela alma em todo o espaço do corpo, à qual queremos negar qualquer espaço. Evódio - Permitiria que já passasses a outro assunto, se não julgasse que se deve dizer alguma coisa a respeito das forças. Pois, como explicar que corpos desenvolvidos pela idade deem à alma forças maiores, se com elas a alma não adquire maior tamanho? Ainda que se costume considerar a virtude como algo da alma e as forças como próprias do corpo, nunca deixaria de atribuí-las à alma, ao perceber que não existem nos corpos exânimes. Não se negará que a alma se utiliza das forças mediante os corpos, assim como dos sentidos. Contudo, como isso é próprio do ser vivente, quem duvidará que de preferência o digamos a respeito da alma? Portanto, o fato de observarmos forças maiores nas crianças já crescidas com relação às crianças recém-nascidas, e que depois os adolescentes e jovens crescem com mais forças com o passar do tempo, e que elas venham a diminuir no corpo que vai envelhecendo, é não pequeno indício, assim penso, de que a alma cresce e depois envelhece junto com o corpo. 36. Agostinho - Não é totalmente absurdo o que dizes; mas eu costumo pensar que as forças residem não tanto no tamanho do corpo e no aumento da idade, como no exercício e na disposição dos membros. E para provar-te isso, pergunto-te se consideras ser próprio de forças maiores que uma pessoa caminhe por mais tempo e se canse menos que outra? Evódio - Penso que sim. Agostinho - Por que, então, sendo eu menino, quando me exercitava em caminhar com o propósito de caçar passarinhos, percorreria distâncias maiores sem cansaço, do que, sendo adolescente, quando me havia entregado a outras ocupações que me obrigavam a estar mais tempo sentado, se se há de atribuir forças maiores à idade progressiva e, por meio dela, à alma? Além disso, com relação aos corpos dos lutadores, os mestres de luta examinam com mais cuidado não o tamanho e volume dos corpos, mas os nós da parte carnuda dos braços e os músculos consistentes, assim como a aparência harmoniosa de todo o corpo, e desses pormenores deduzem o índice de forças. No entanto, é de pouco valor tudo isso, se não é acompanhado pela força da arte e dos exercícios. Muitas vezes também vi homens de maior corpulência serem superados por outros de menor estatura, ou no levantar ou transportar pesos ou mesmo na própria luta. Quem não sabe que um vencedor de lutas olímpicas se cansa na estrada mais depressa do que um mascate, o qual pode ser derrubado com um só dedo? Por isso, se não consideramos grandes, não todas as forças igualmente, mas as mais adequadas a determinada finalidade; se os traços e a configuração têm muito mais valor de que o tamanho; e se os exercícios, como se crê por informações de peso, são de tamanha importância que fez com que um homem, levantando diariamente um novilho, foi capaz de levantá-lo e segurá-lo já touro sem sentir um peso maior, o qual foi aumentando pouco a pouco, conclui-se que as forças próprias da idade mais avançada não indicam que a alma cresça junto com o corpo. XXII,37. E se animais mais corpulentos, pelo fato de serem maiores, têm mais forças, a razão é porque, pela lei natural, os pesos menores são substituídos por maiores, não somente quando são atraídos para ser lugar próprio pelo instinto (do mesmo modo como os corpos úmidos e terrenos o são para o centro da terra, que é o lugar mais baixo, enquanto os aéreos e o fogo são levados para cima), mas também quando são coagidos por uma força exterior, por um acicate ou por um tiro ou por um empurrão ou por um choque. Se deixas cair de uma altura, embora ao mesmo tempo, duas pedras de tamanho desigual, não há dúvida de que a maior alcança mais depressa o solo; mas se se coloca a menor debaixo da maior e a siga em desvio, a maior será acompanhada pela menor, a qual é conduzida até o chão. Da mesma forma, se se lança a maior de cima para baixo, e a menor, pelo contrário, de baixo para cima, onde se encontrarem, acontecerá necessariamente o rechaço da menor e seu retrocesso. Não penses que isso acontece porque a menor foi obrigada a ir para o alto contra a natureza, mas a outra dirigia-se a seu lugar pelo maior ímpeto. Faze com que a maior seja lançada para o alto e vá ao encontro à menor arremessada para o solo; verás, não obstante, que a menor é levada para o alto com rechaço menor e, em virtude do mesmo rechaço, cai em direção diferente para chegar ao solo por onde não houver obstáculo. Do mesmo modo, se ambas se chocam não de modo natural, mas lança das por duas pessoas que estivessem como que combatendo uma contra a outra, quem duvidaria de que a menor cederia à maior para o lado de onde aquela tinha procedido e para onde esta se dirigia? Sendo assim, ou seja, que os pesos menores, como ficou dito, cedem aos maiores, contudo, é de grande importância ter em conta se a menor é arremessada com força maior, como, por exemplo, por algum instrumento, em relação à maior arremessada ou com menos força ou com força já enfraquecida; ainda que a menor se dirija para trás, contudo, a retarda ou mesmo fará a maior retroceder, de acordo com o golpe e o peso. 38. Entendida essa introdução, à medida que o requer a questão em pauta, observa agora se está de acordo com essas afirmações as forças que dizemos existir nos animais, pois quem nega que os corpos dos animais são dotados de seu próprio peso? Esse peso, atuado pela vontade da alma, adquire muita força, devido à sua grandeza, para onde quer que se inclinar. Mas a vontade da alma utiliza-se dos nervos como que de instrumentos para movimentar o peso do corpo. Mas a aridez e o calor moderado fortalecem os nervos e os torna mais flexíveis; ao contrário, o frio úmido relaxa-os e os enfraquece. Por isso, durante o sono, os médicos consideram e provam ser úmido e frio, os membros se enfraquecem, e o próprio esforço dos que estão despertando é muito menor, e, por essa razão, nada há mais indolente e enervado que os entregues ao sono letárgico. É claro, entretanto, que alguns frenéticos, aos quais as vigílias, a força do vinho e as febres altas, ou seja, coisas quentes, retesam e enrijecem os nervos mais do que o normal, lutam e fazem muitas coisas devido às suas maiores forças mais do que gozando de perfeita saúde, embora seu corpo esteja mais atenuado e enfraquecido. Portanto, se o que se chamam forças, é resultado do impulso da alma, de certo expediente dos músculos e do peso do corpo, a vontade excita o impulso, o qual se torna mais adequado pela confiança ou ousadia, mas se paralisa pelo medo, porém muito mais pela falta de confiança (pois, quando no medo resta alguma esperança, as forças costumam adquirir maior veemência); a máquina dos nervos adapta-se à configuração do corpo, o estado de saúde regula-o, o recurso dos exercícios robustece-o; o peso desenvolve o tamanho dos membros, que é adquirido com a idade e a nutrição, mas somente a nutrição o restaura. Quem está com tudo isso em equilíbrio causa admiração pelas suas forças, e alguém é tanto mais fraco que outro, quanto mais lhe faltarem esses requisitos. E acontece muitas vezes que uma pessoa, com vontade pertinaz, com melhor estado dos nervos, embora tenha pouco peso corporal, chegue a vencer outra de maior constituição física. E, pelo contrário, às vezes é tamanho o físico que, embora atue com menos esforço, chega a esmagar o pequeno adversário que se empenha com muito mais veemência. Mas quando não é nem o peso do corpo nem a força dos nervos que se entregam, mas é a própria vontade, isto é, a alma, de modo que o mais robusto seja vencido pelo menos robusto, contudo, o mais tímido pelo mais audaz, não se deve atribuí-lo às forças. A não ser que se diga que a alma tem certas forças que lhe gera maior audácia ou confiança. Essas forças, presentes em um e faltando em outro, levam a compreender quanto a alma se avantaja sobre o corpo, mesmo no que é executado por meio dele. 39. Por isso, como numa criança a vontade é íntegra apenas para atrair ou repelir alguma coisa, mas os nervos são incapazes devido à sua constituição tenra e menos perfeita, e débeis pelo humor que é abundante nessa idade, e frouxos pela falta de exercícios, o peso é de tal modo pequeno que, arremessado por outro, não supõe grande esforço e seja mais sujeito a receber que a produzir dano, quem é que, ao ver que são os anos que proporcionaram tudo isso, ao reconhecer que as forças lhe foram fornecidas no decorrer dos anos, pensa com bom senso e prudência que cresceu a alma, a qual aqui se utiliza de forças a cada dia maiores? Pois esse tal, se observar que pequenas e leves flechas lançadas por um arco frouxo, quanto possível, por um jovem que não consegue enxergar devido a um véu entreposto entre os dois, se observar, repito, que não vão longe e caem logo; e um pouco depois observar que flechas com ponta de ferro, guarnecidas de penas, arrojadas por um arco esticado, se dirigem para o alto céu, e se acreditar que ambos os arremessos foram feitos com igual esforço esse tal chega a pensar que esse homem cresceu e teve suas forças aumentadas em tão pouco tempo. O que se pode dizer de maior absurdo? 40. Além disso, se a alma cresce, observa quão néscio seja acreditar que seu crescimento provém das forças do corpo e não acreditar que se originam da abundância de conhecimentos, se para as forças ela contribuiu com a vontade e os conhecimentos, apenas os possui. E se pensamos que a alma cresce, quando há aumento de forças, deve-se pensar que ela diminui, quando perde as forças. Perdem-se as forças na velhice, perdem-se na dedicação aos estudos; e nessas ocasiões é quando se costuma aumentar e incrementar os conhecimentos; uma coisa não pode de forma alguma aumentar e diminuir ao mesmo tempo. Não constituem argumento em favor do crescimento da alma forças maiores em maior idade. Podem-se dizer muitas outras coisas; mas, se o que foi dito te satisfaz, usarei de moderação para passarmos a outros assuntos. Evódio - Estou mais que persuadido de que forças maiores não querem significar que a alma cresceu; pois, omitindo o que disseste tão engenhosamente, nem mesmo um louco, o qual ninguém ignora ser possuidor de forças maiores que quando está normal, diria que a alma cresce em virtude da loucura e de doenças, quando o próprio corpo diminui. Daí minha forte opinião de que se localiza nos nervos o que nos causa admiração, quando sem esperança encontramos forças em alguém; por isso, peço-te: empenha-te já nisso que busco com tanto afã: por que a alma, que não dispõe de grandeza espacial com o corpo, sente em qualquer parte do corpo que é tocada? A sensibilidade em todo o corpo não implica que a alma seja extensa quanto ao corpo e, portanto, que seja dotada de uma grandeza espacial, como resulta da definição correta da sensação XXIII,41. Agostinho - Vamos então! Empenhemo-nos no que desejas, mas é preciso que me estejas mais atento do que talvez penses ser preciso ter. Por isso, faze por onde estar deveras atento e responder sobre o que vem a ser sentido, do qual a alma se utiliza; pois ele já é denominado pelo próprio nome de sentido (sensus). Evódio - Ouço com frequência que há cinco sentidos: o da vista, o da audição, o do olfato, o do paladar, o do tato; não sei o que mais responder. Agostinho - Essa divisão é antiquíssima, conhecida em todo o mundo. Mas gostaria que me definisse o que seja sentido, de modo que a definição incluísse tudo isso e nada se incluísse nela que não significasse o sentido. Mas se não és capaz, não vou insistir. Pois é suficiente, no entanto, que aceites ou rejeites minha definição. Evódio - Desse modo talvez possa corresponder, à medida de minha capacidade, pois isso não é sempre fácil. Agostinho - Então presta atenção. Penso que sensação é a percepção pela alma do que sofre o corpo. Evódio - Agrada-me essa definição. Agostinho - Apoia-a, portanto, como se fosse tua e defende-a, enquanto a refuto pouco a pouco. Evódio - Defendê-la-ei certamente, se tu me ajudares; se não me ajudares, já não é do meu agrado, visto que não em vão julgaste que pode ser refutada. Agostinho - Não fiques assim preso à autoridade, principalmente à minha, que nada vale; e porque Horácio disse: Atreve-te a saber, que a razão te subjugue antes que o medo o faça. Evódio - Não tenho medo, absolutamente, de como o assunto vai caminhar; pois não permitirás que eu cometa erros. Mas começa, se tens algo a dizer para não me cansar com a demora mais do que refutando. 42. Agostinho - Dize, então, o que experimenta teu corpo, quando me vês? Evódio - Experimenta alguma coisa, geralmente; pois meus olhos, se não me engano, são partes de meu corpo; se nada experimentassem, como poderia ver-te? Agostinho - Mas não basta que estejas convencido de que teus olhos experimentam algo, se não demonstrares também o que experimentam. Evódio - O que, senão a visão? Pois enxergam. Se me perguntasses o que experimenta o doente, responderia: a doença; o que deseja, o desejo; o que está com medo, o medo; o que está gozando, o gozo. Por isso, ao me perguntares o que experimenta o vidente, não estou respondendo certo ao dizer que é a visão? Agostinho - Mas o que sente gozo goza. Ou vais negar? Evódio - Pelo contrário, estou de acordo. Agostinho - Eu diria o mesmo das demais sensações. Evódio - De acordo. Agostinho - Mas o que os olhos veem, sentem-no. Evódio - Não diria isso de modo algum, pois, quem vê a dor, a qual os olhos sentem muitas vezes? Agostinho - É evidente que estás falando dos olhos; é sinal de que estás atento. Por conseguinte, observa se o que goza sente gozo ao gozar, se o que vê sente a visão ao ver? Evódio - Poderia ser de outro modo? Agostinho - Mas tudo o que o vidente sente ao ver, é necessário que também o veja. Evódio - Não é necessário. Pois, se sente o amor ao ver, acaso vê também o amor? Agostinho - Estás respondendo cautelosa e sagazmente; alegro-me de que dificilmente te enganas. Mas presta atenção agora: como ficou assentado entre nós que não se vê tudo o que os olhos sentem, nem tudo o que se sente ao ver, pensas que pelo menos é verdade que se sente tudo o que se vê? Evódio - Na verdade, se não concordar com isso, como poderá denominar-se sensação o que vemos? Agostinho - Então tudo o que sentimos, não o experimentamos também? Evódio - Creio que sim. Agostinho - Portanto, se tudo o que vemos sentimos, e tudo o que sentimos experimentamos, então experimentamos tudo o que vemos. Evódio - Não me oponho mais. Agostinho - Portanto, tu me sofres e eu te sofro quando nos vemos um ao outro. Evódio - Assim julgo, e a isso a razão me obriga insistentemente. 43. Agostinho - Escuta o restante; pois creio que considerarás um absurdo e uma insensatez o fato de alguém afirmar que um corpo te impressiona ali onde não está o mesmo corpo que te impressiona. Evódio - Parece-me ser um absurdo, e sou de opinião que é assim como estás dizendo. Agostinho - E isto? Não é claro que meu corpo está num lugar e o teu em outro? Evódio - Perfeitamente. Agostinho - Mas teus olhos sentem meu corpo; e se sentem, também reagem; não podem reagir onde não está o que reage; mas eles não estão onde está meu corpo; portanto, reagem onde não estão. Evódio - Eu, realmente, concordei com tudo o que me parecia não ser absurdo concordar; mas esta última afirmação, resultado dos meus assentimentos, é tão absurda que eu me considero ter sido temerário em aceitar alguns pontos, antes de concordar que ela seja verdadeira. Pois, que meus olhos sintam onde não estão, não ousaria dizer isso nem em sonhos. Agostinho - Observa então onde dormiste; pois, por que haverias de deixar passar tão incautamente, se estivesses atento como estiveste um pouco antes? Evódio - Efetivamente; examino e volto a pensar com cuidado somente no que me disse; contudo, não me aparece luz alguma suficiente para pensar em arrepender-me de ter concordado, a não ser, talvez, o fato de que nossos olhos sentem quando envergamos; pois talvez seja a própria visão que sente. Agostinho - De fato, assim é, pois ela se projeta para fora e por meio dos olhos se arremessa para longe, atingindo todos os lados para poder perscrutar o que vemos. O resultado é que enxergo melhor onde está o que enxergo do que de onde saí (unde erumpit) para enxergar. Com efeito, não enxergas quando me enxergas? Evódio - Que insensato o diria? Na verdade enxergo, mas enxergo pela visão emitida pelos olhos. Agostinho - Mas se enxergas, sentes; se sentes, há reação; não pode haver reação alguma onde não estás; mas tu me enxergas onde estou; portanto, reages onde estou. Mas se onde estou, tu não estás, não sei de que maneira ousas dizer que sou visto por ti. Evódio - Pela visão, digo eu, dirigida àquele lugar onde estás, vejo-te onde estás; mas reconheço que não estou nesse lugar. Porém, assim como se eu te tocasse com uma vara, eu certamente te tocaria e o sentiria; contudo, eu não estaria onde te tocasse. Assim, por que digo que vejo com a vista, embora eu não esteja ali, nem por isso sou obrigado a reconhecer que não sou eu que estou vendo. 44. Agostinho - Então em nada concordaste temerariamente, pois também teus olhos podem defender-se desse modo: a visão é como uma vara dos olhos, como dizes, e essa conclusão não é absurda, ou seja, que teus olhos enxergam onde não estão. Ou és de outro parecer? Evódio - De fato, assim é como estás dizendo, pois percebi agora que, se os olhos enxergassem onde estão, ver-se-iam também a si mesmos. Agostinho - Dirias com mais propriedade não “também a si mesmos”, mas “veriam somente a si mesmos”. Pois onde estão, ou seja, no lugar que ocupam, ocupam-no somente eles. Nem o nariz está onde eles estão, nem nada do que lhes está próximo. Do contrário também estarias onde eu estou, porque estamos próximos um do outro. Sendo assim, se os olhos enxergassem somente onde estão, nada mais veriam senão a si mesmos. Mas como não se enxergam, não somente somos obrigados a concordar que eles podem enxergar onde não estão, mas também que não podem absolutamente enxergar a não ser onde não estão. Evódio - Nada há que me possa levar a duvidar a esse respeito. Agostinho - Portanto, não duvidas de que eles reagem onde não estão. Com efeito, onde enxergam, aí sentem; pois enxergar é sentir, mas sentir é sofrer reação; assim, onde sentem, aí sentem reação. Mas eles enxergam em lugares onde não estão; portanto, reagem onde não estão. Evódio - É de admirar como considero verdadeiras essas afirmações. XXIV,45. Agostinho - Talvez estejas julgando bem. Mas responde-me, ou te peço, se vemos tudo o que conhecemos pela visão. Evódio - Creio que sim. Agostinho - Julgas também que conhecemos pela visão tudo o que conhecemos ao enxergar. Evódio - Penso também que sim. Agostinho - Por que muitas vezes, vendo um fogo oculto, conhecemos apenas a fumaça? Evódio - Estás dizendo a verdade. E eu já não penso que vemos tudo o que conhecemos pela visão, pois, como ensinaste, ao ver alguma coisa, podemos conhecer o que a vista não atingiu. Agostinho - Então? Podemos não ver o que sentimos pela vista? Evódio - De modo algum. Agostinho - Quer dizer que uma coisa é sentir e outra, conhecer? Evódio - Totalmente outra, pois sentimos a fumaça que vemos; e por ela conhecemos que há fogo oculto que não vemos. Agostinho - Entendeste bem. Mas certamente vês, quando isso acontece, que nosso corpo, ou seja, nossos olhos, não reagem devido ao fogo, mas à fumaça, a única coisa que vemos. Consequentemente, ver é sentir e sentir é ter reação, como antes ficamos de acordo. Evódio - Mantenho a palavra e concordo com isso. Agostinho - Portanto, quando pela reação do corpo nada se oculta à alma, não segue que atue um dos cinco sentidos, mas quando a reação não está oculta. Isso porque o fogo não visto, nem ouvido, nem cheirado, nem gostado, nem tocado por nós, não se oculta à alma, tendo visto a fumaça. E como este, se não ficar oculto, não se denomina sentido, porque o corpo em nada reagiu pelo fogo, denomina-se, no entanto, conhecimento por um sentido, pelo fato de ter sido conjeturado e averiguado mediante a reação do corpo, embora seja outra, ou seja, a que procedeu da visão de outra coisa. Evódio - Compreendo muito e percebo que isso está de acordo e favorece aquela tua definição que me entregaste para defender, pois lembro-me que definiste assim o sentido, ou seja, não ficar oculto à alma o que impressionou o corpo. Por isso, chamamo-lo sensação por que se vê a fumaça. Com efeito, os olhos, que são partes do corpo e corpos, impressionaram-se ao vê-la. Mas não denominamos sensação ao fogo, o qual em nada impressionou o corpo, embora tenha sido conhecido. 46. Agostinho - Louvo tua memória e penetrante inteligência; mas o fundamento dessa definição não está firme. Evódio - Dize-me, por quê? Agostinho - Porque, conforme penso, não negas que o corpo sofre alguma reação, quando crescemos ou envelhecemos; é claro que não o sentimos por nenhum sentido; mas isto não se oculta à alma. Portanto, nada se oculta à alma do que faz reagir o corpo, mas isto não se pode denominar sensação. Pois vendo como maiores as coisas que víamos como menores, e vendo como velhos os que sabemos terem sido jovens, constatamos que nossos corpos sofrem alguma mudança neste momento em que estamos falando. E não nos enganamos a respeito disso, como penso, pois é mais admissível que me engane o que vejo do que o que entendo, ou seja, que meus cabelos estejam agora crescendo ou que meu corpo esteja se mudando a cada momento. Se esta mudança é reação do corpo, o que ninguém nega, a qual não sentimos no momento, mas não se oculta à alma, porque não nos é oculta, o corpo, como disse, reage ao que não se oculta à alma, mas isto, contudo, não é sensação. Por isso, aquela definição, que nada devia incluir do que não fosse sensação, ao incluir esse conhecimento, é certamente viciosa. Evódio - Percebo que nada me resta senão pedir-te que ou definas de outro modo ou a reformes, se és capaz; pois não podemos negar que ela seja viciosa por essa razão que tem todo o meu apoio. Agostinho - E fácil corrigi-la; quero que te atrevas a fazê-lo; fá-lo-ás se percebeste bem onde está a falha. Evódio - Não está, porventura, em que compreende outras coisas? Agostinho - Porém de que modo? Evódio - Porque o fato de o corpo envelhecer, ainda que seja num jovem, não se pode negar que tenha alguma reação; não se oculta à alma tudo em que o corpo reage, contudo, não é possível percebê-lo. Com efeito, não vejo que estou agora envelhecendo, nem o sinto pelo ouvido, ou olfato, ou paladar, ou pelo tato. Agostinho - Como o sabes? Evódio - Deduzo-o pela razão. Agostinho - Em que argumentos se baseia a razão? Evódio - Porque vejo anciãos que eram jovens, como sou agora. Agostinho - Não os vês com um dos cinco sentidos? Evódio - Quem é capaz de negar? Mas pelo fato de vê-los, conjeturo que estou envelhecendo, ainda que não o veja. Agostinho - Não havendo reação, a não ser que a reação do corpo não se oculte à alma, mas de tal forma que a percebe por outra reação ou por outro qualquer meio, não havendo sensação, repito, que palavras estão faltando àquela definição que se possam acrescentar-lhe para aperfeiçoá-la? Evódio - Dize isto, por favor, um pouco mais claramente. XXV,47.Agostinho - Satisfarei teu desejo, e com muito mais prazer porque mais me retardas do que me apressas; mas procura estar bem atento, pois isto servirá para muitas coisas que vou dizer-te. Uma definição nada mais encerra, senão o que foi assumido para ser explicado; de outro modo é totalmente viciosa. Mas se carece ou não de vícios, verifica-se pela conversão, o que fará com que te seja mais claro por estes exemplos. Se me pedires uma definição de “homem” e eu o definisse assim: "O homem é um animal mortal", não porque seja afirmação verdadeira, deverás aprovar a definição; mas acrescentando-lhe a partícula "todo", faça a conversão e observa se, uma vez convertida, é verdadeira, ou seja, se assim como é verdade: "Todo homem é mortal", seria verdade: Todo animal mortal é homem. Descobrindo que não o é, rejeita a definição devido àquele vício pelo qual inclui coisas diferentes. Pois não somente o homem é animal mortal, mas também qualquer bruto. Por isso, costuma-se aperfeiçoar a definição de homem, acrescentando-lhe "racional" a "mortal", pois um homem é animal mortal racional. E assim como todo homem é animal racional mortal, assim também é: "Todo animal racional mortal é homem". A definição anterior era viciosa pelo fato de abranger mais do que era devido. Esta última é perfeita, pois abrange todo homem e nada mais que o homem. Incluindo a menos, é viciosa, se se acrescentar o termo "gramático". Com efeito, ainda que todo animal racional gramático seja homem, contudo, muitos homens, que não são gramáticos, não estão incluídos nessa definição. Por isso, essa é falsa, estando no lugar da primeira definição; mas, uma vez convertida, torna-se verdadeira. Com efeito, é falso: "Todo animal racional mortal é gramático"; mas é verdade: "Todo animal racional mortal gramático é homem". Mas quando nem pela primeira proposição nem pela conversão a proposição enunciada é verdadeira, então é, sem dúvida, mais viciosa que cada uma destas duas: "O homem é animal branco", ou: "O homem é animal quadrúpede". Pois se também dizes: "Todo homem é branco" ou "Todo homem é animal quadrúpede", dizes uma falsidade mesmo que faças a conversão. Mas diferem entre si, porque a primeira coincide com respeito a algum homem, pois muitos homens são brancos; a segunda não abrange nenhum, pois nenhum homem é quadrúpede. Faço votos que tenhas aprendido, por enquanto, essas regras para examinar as definições, como devem ser julgadas pela proposição e pela conversão. Há muitas outras coisas desse gênero, cheias de palavras e de obscuridade, que se ensinam; quando julgar oportuno, esforçar-me-ei para que as aprendas. 48. Volta agora tua atenção para aquela nossa definição e corrige-a depois de a examinares, estando agora mais instruído. Como a definição se referia à sensação, tinhas descoberto que ela abrangia algo que não era sensação e, por isso, não era verdadeira depois de convertida. Talvez seja verdade que toda sensação seja uma reação no corpo, que não se oculta à alma. E assim como é falso: "Todo animal mortal é homem", pois também o bruto o é, assim também é falso: "Toda reação no corpo, que não se oculta à alma, é sensação". Com efeito, neste momento nossas unhas estão crescendo, e isto não se oculta à alma, pois o sabemos; não o sentimos, mas sabemo-lo por conjectura. Portanto, para aperfeiçoá-la, acrescentou-se a aquela definição de homem o termo racional, ficando assim excluídos os brutos, que também estavam incluídos, e nada mais incluímos em tal definição a não ser o homem e todo homem; não pensas que se deve acrescentar algo a essa definição de sensação de modo a retirar o que inclui de estranho, e nada mais nela se deixe a não ser a sensação e toda sensação? Evódio - Penso do mesmo modo, mas ignoro o que se possa acrescentar. Agostinho - A sensação é certamente toda reação no corpo que não se oculta à alma; mas não se pode converter essa enunciação devido a essa reação no corpo, pela qual, conhecendo nós, ela aumenta ou diminui, ou seja, de modo a não se ocultar à alma. Evódio - É certo. Agostinho - Então! Esta reação não se oculta à alma por si mesma ou por meio de outra coisa? Evódio - Por meio de outra coisa, certamente; pois uma coisa é perceber que as unhas crescem, outra coisa é saber que crescem. Agostinho - Portanto como o próprio crescer é a reação, a qual não percebemos por nenhum sentido, mas o tamanho que percebemos foi o resultado da reação, não a própria reação, fica claro que nós não conhecemos tal reação por ela mesma, mas por meio de outra coisa. Portanto, se não se ocultasse à alma por meio de outra coisa, não diríamos que se sentiria em vez de se conjecturar? Evódio - Compreendo. Agostinho - Por que, então, duvidas sobre o que é preciso acrescentar àquela definição? Evódio - Percebo que deve ser definida de tal modo que a sensação seja uma reação no corpo que por si mesma não se oculta à alma; pois toda sensação é tudo isso, e tudo isso é, a meu ver, sensação. 49. Agostinho - Se é assim, confesso que a definição é perfeita. Mas, se te aprouver, examinemo-la para ver se não peca pelo segundo vício, como aquela do homem, à qual se acrescentou o termo "gramático". Com efeito, é mister que te lembres de teres dito que o homem é animal racional mortal gramático; e que esta definição pecava por isto: era verdadeira uma vez convertida e falsa em seu enunciado primitivo. Pois é falso: "Todo homem animal racional mortal é gramático", embora seja verdade que: "Todo animal racional mortal, gramático é homem". Portanto, é viciosa esta definição, porque, por um lado, inclui apenas o homem, mas, por outro lado, não inclui todo homem. E talvez seja também assim a definição de sensação, da qual nos gloriamos como sendo verdadeira. Pois, ainda que toda reação no corpo, que não é desconhecida pela alma, seja sensação, no entanto, toda sensação não é isso. O qual deves entender assim, a saber: os brutos sentem e quase todos são dotados dos cinco sentidos, de acordo com a natureza de cada um. Porventura, hás de negá-lo? Evódio - De maneira nenhuma. XXVI. Agostinho - Então? Não estás de acordo comigo que não há ciência, a não ser quando se percebeu e conheceu alguma coisa com a razão firme? Evódio - Estou de acordo. Agostinho - Mas o bruto não possui razão. Evódio - Também estou de acordo. Agostinho - Portanto, o bruto não é susceptível de razão. Mas como não se lhe oculta alguma coisa, é sinal de que sabe. Por isso, os animais não têm sensação, se toda sensação se dá quando a reação no corpo por si mesma não se oculta à alma. Mas o bruto tem sensação, como ficamos de acordo antes. Por que, então, duvidamos em rejeitar aquela definição que não pode de forma alguma abranger toda sensação, se se excluiu a sensação nos brutos? 50. Evódio - Confesso que me enganei, quando concordei contigo que existe sensação, se algo se percebe com a razão firme. Eu me referia aos homens, quando me perguntavas; pois nem posso dizer que os animais possuem razão, nem lhes posso negar a ciência. Com efeito, como penso, reconhecia seu dono aquele cachorro do qual se conta tê-lo reconhecido depois de vinte anos; isso, para não mencionar outros inumeráveis casos. Agostinho - Dize-me, por favor, se te são apresentadas duas coisas, uma, à qual se há de chegar, outra, pela qual possas chegar; qual delas mais estimarias e qual preferirias? Evódio - Quem duvida que tem mais importância senão aquela à qual se há de chegar? Agostinho - Portanto, sendo duas coisas: a ciência e a razão, chegamos à razão pela ciência ou à ciência pela razão? Evódio - As duas coisas, conforme minha opinião, estão ligadas de sorte que por uma delas se pode chegar à outra. Com efeito, não chegaremos à razão, se não soubermos que é preciso chegar a ela. Portanto, a ciência veio na frente para chegarmos à razão por seu intermédio. Agostinho - Então? Chega-se sem a razão à ciência, a qual dizes que vem em primeiro lugar? Evódio - Jamais diria isso, pois seria uma temeridade. Agostinho - Portanto, pela razão? Evódio - Não é assim. Agostinho - Por irreflexão? Evódio - E quem disse isso? Agostinho - Por meio de quê? Evódio - Por meio de nada, visto que a ciência nos é inata. 51. Agostinho - Parece que te esqueceste do que nos pusemos de acordo antes, quando te perguntava se a ciência existia quando se percebe alguma coisa pela razão firme. Respondeste, assim creio, que esta te parecia ser a ciência humana; agora, porém, dizes que o homem possui alguma ciência quando percebe alguma coisa sem nenhum uso da razão. Mas quem não percebe que nada pode ser mais contrário entre si do que essas duas coisas; e que não existe ciência a não ser quando se percebe alguma coisa com razão firme, e que existe ciência de alguma coisa sem ser percebida pela razão. Por isso, desejo saber qual das duas coisas escolhes, pois ambas não podem ser de forma alguma verdadeiras. Evódio - Escolho o que disse um pouco antes, pois confesso ter dito o anterior sem pensar. Com efeito, procurando entre nós a verdade pela razão, e isso é possível perguntando e respondendo, como poderia a razão chegar à última razão, com a qual a razão é atuada ao máximo, se antes não se concede algo? Mas quem se poderia conceder o que ignorasse? Assim, essa razão, se não encontrar algo conhecido, no qual apoiada poderia conduzir-me ao desconhecido, nada absolutamente aprenderia por meio dela, e não a denominaria razão. Por isso, inutilmente não concordas comigo que necessariamente existe em nós alguma ciência, de onde a própria razão comece a atuar. Agostinho - Dar-te-ei uma regra e, como determinei, permitir-te-ei que te corrijas todas as vezes que te arrependes de alguma coisa que aceitaste. Mas peço-te que não abuses desta autorização e não estejas desatento, quando lhe faço uma pergunta, evitando assim que, tendo aceitado indevidamente e frequentemente, não sejas obrigado a duvidar mesmo das coisas que aceitas devidamente. Evódio - É melhor que abordes os demais assuntos, pois, embora vá acrescentar à minha atenção o que puder (pois envergonho-me de desistir tantas vezes de minha opinião), contudo, nunca desistirei de resistir a essa vergonha e corrigir-me de meus erros. Com efeito, não se deve adotar a teimosia pelo fato de se desejar a constância. XXVII, 52. Agostinho - Cresça em ti cada vez mais essa constância, o mais depressa possível: proferiste uma sentença de meu agrado. Mas agora esteja atento o mais possível ao que eu quero. Pergunto-te, pois, qual é teu parecer sobre a diferença entre a razão e o raciocínio. Evódio - Não consigo distinguir bem essas coisas. Agostinho - Por isso, observa-se que uma pessoa já adolescente ou adulta, ou sábia (para falar sem circunlóquios) goza de razão continuamente, enquanto é sã de juízo, do mesmo modo como pode ficar privada da saúde corporal devido a uma epidemia ou ferimentos; ou se às vezes a possui e em outras lhe falta, como acontece com o andar, sentar-se, falar. Evódio - Creio que à mente sadia sempre a assiste a razão. Agostinho - O que pensas sobre isto: quando chegamos ao conhecimento de alguma coisa mediante o que é admitido ou manifesto, ou interrogando alguém ou associando ideias, és de parecer que ou nós ou qualquer sábio procede sempre assim? Evódio - Não sempre. Com efeito, nem sempre qualquer pessoa ou um sábio, assim penso eu, procura alguma coisa discutindo consigo mesmo ou com outro, pois o que procura, ainda não encontrou; e se procura sempre, nunca encontra. Mas o sábio já encontrou, para não dizer outra coisa, a sabedoria, a qual, quando era ignorante, procurava talvez discutindo ou de outro modo que lhe estava ao alcance. Agostinho - Falas bem; quero que entendas que não se refere a essa razão, quando somos levados a algo desconhecido por meio do que é aceito e conhecido; pois, conforme ficamos de acordo, essa razão nem sempre existe na mente sadia, ao passo que a razão sempre existe. 53. Evódio - Entendo; mas aonde se dirigem essas observações? Agostinho - Porque um pouco antes disseste que devia concordar contigo que possuímos a ciência antes da razão, porque esta se apoia em algo conhecido, quando a razão nos leva ao desconhecido. Mas agora deparamos que não deve ser denominada razão, quando se trata disso, pois a mente sadia não age sempre assim, embora sempre possua a razão. Talvez neste caso denomina-se raciocínio; assim a razão seria como que um olhar da mente (mentis aspectus), mas o raciocínio é a investigação da mente (rationis inquisitio), ou seja, um movimento do olhar da mente para o que é preciso olhar. Por isso, esta se destina a investigar, aquela, a ver. Assim, quando o olhar da mente, que denominamos razão, projetado sobre alguma coisa, a vê, denomina-se ciência; mas quando não a vê, embora lhe dirija o olhar, chama-se falta de ciência ou ignorância. Com efeito, quem olha com estes olhos corporais, nem sempre vê, o que percebemos facilmente quando estamos cercados pela escuridão. Por isso é, claro, conforme penso, que uma coisa é o olhar (aspectum), e outra, a visão (visionem); ambas as quais denominamos razão e ciência. A não ser que algo te leve a te opores a essas informações ou julgues que não está muito clara essa distinção. Evódio - Quanto a mim, essa distinção me agrada e prazerosamente concordo com ela. Agostinho - Por isso, observa agora se pensas que nós olhamos para ver, ou se nós vemos para olhar. Evódio - Na verdade, nem mesmo um cego duvidaria de que o olhar é para a visão, não a visão para o olhar. Agostinho - Portanto, é preciso confessar que merece mais estima a visão do que o olhar. Evódio - Perfeitamente. Agostinho - Portanto, a ciência de que a razão. Evódio - Percebo que é consequência. Agostinho - És de parecer que os animais sejam melhores e mais felizes que os homens? Evódio - Que Deus não permita tamanha loucura! Agostinho - Tens razão, certamente, para horrorizar-te; mas tua sentença força-nos a isso; pois disseste que os animais possuem ciência, mas não possuem razão. Mas o homem é dotado de razão, pela qual mal e mal consegue a ciência. Concedendo-te, porém, que se chega com facilidade à ciência, que nos aproveita para nos considerarmos superiores aos animais, se eles possuem a ciência e chegamos à conclusão de que a ciência é digna de maior apreço do que a razão? XXVIII,54. Evódio - Vejo-me deveras obrigado a não atribuir a ciência aos animais, ou a nada negar-lhes, ainda que com razão sejam superiores a mim. Mas peço-te que expliques como pode acontecer o que mencionei a respeito do cão de Ulisses, pois, levado pela admiração por ele, ladrou tão inutilmente. Agostinho - Mas o que julgas ser isso senão a faculdade de sentir, não de saber; pois muitos animais são superiores a nós quanto aos sentidos, cuja causa não é este o lugar de investigarmos, mas Deus nos colocou acima deles pela mente, pela razão, pela ciência. Mas o sentido, reforçado pela força do costume, pode discernir o que dá prazer à alma dos animais, e isso com tanto mais facilidade, porque a alma dos animais está mais ligada ao corpo, do qual são os sentidos de que se utiliza para a alimentação e o prazer, o qual ele toma desse mesmo corpo. Porém a alma humana, por meio da razão e da ciência, das quais estamos tratando, pelo fato de elas serem superiores aos sentidos, independe do corpo, na medida do possível, e goza mais com o prazer interior; e quanto mais se inclina para os sentidos, tanto mais o homem se assemelha aos animais. Isso explica por que até as crianças de peito, quanto mais sejam ainda irresponsáveis, tanto mais facilmente distinguem pelo sentido até mesmo o contato e a aproximação das amas, e não suportam sequer o cheiro de outras pessoas com as quais não estão acostumadas. 55. Por isso, embora tenha passado de uma coisa a outra, detenho-me prazerosamente neste assunto que serve de admoestação à alma no sentido de não se deixar cair para os sentidos mais do que é necessário, mas recolha-se de preferência em si mesma e volte a ser criança diante de Deus (repuerescat Deo). Isto é o que significa tornar-se homem novo, desprezando-se o velho. É necessidade começar por aí, por ter ele desprezado a lei de Deus; as divinas Escrituras nada encerram de mais verdadeiro e misterioso do que isso. Gostaria de dizer mais coisas a esse respeito e obrigar a mim mesmo, enquanto te doutrino, a nada mais fazer do que entregar-me a quem me devo, entregar-me a mim mesmo principalmente, e assim tornar-me para Deus o que diz Horácio: Amigo, escravo do senhor. Isso não pode acontecer de modo absoluto, se não nos transformarmos à sua imagem, que ele nos entregou, como algo de mais precioso e de maior valor, para guardarmos, quando nos entregou a nós mesmos com a finalidade de nada preferirmos além dele. Mas parece-me que nada há de mais difícil do que essa obra e nada há de mais propenso à interrupção. E a alma não a pode assumir e levar a cabo, se não a ajudar aquele a quem se entrega. Daí segue que o homem deve se restaurar pela clemência daquele por cuja bondade e poder foi criado. 56. Mas somos forçados a voltar ao que nos propusemos. Por isso, examina se já te provei que os animais não têm ciência e que toda essa como que imagem da ciência, que nos causa admiração, é a faculdade sentir. Evódio - Ficou provado certamente, e se preciso for investigar algo mais com mais diligência, ficarei na espera da ocasião; agora desejo saber o que deduzes de tudo isso. XXIX, Agostinho - Em que outra coisa pensas, senão em que aquela definição de sensação, a qual, do mesmo modo como antes incluía não sei o que mais além de sensação, agora também peca pelo vício contrário, porque não chegou a abranger toda sensação. Pois os animais são dotados de sensação, não de ciência. Mas tudo o que se sabe não fica oculto e tudo o que se sabe diz respeito, sem dúvida, à ciência. A respeito de tudo isso já acordamos. Portanto, ou não é verdade que a sensação seja reação do corpo que não se oculta à alma, ou os animais não a possuem, pelo fato de serem privados da ciência; mas atribuímos aos animais a sensação; portanto, a definição é falsa. Evódio - Confesso que nada tenho a me opor. 57. Agostinho - Escuta outra coisa que nos pode deixar envergonhados dessa definição. Com efeito, creio que lembras que te foi mostrado o terceiro vício da definição, o mais vergonhoso de todos, ou seja, não é verdadeira numa forma nem na outra, como aquela de homem: "o homem é animal quadrúpede", pois, ou "todo homem é animal quadrúpede" ou “todo animal quadrúpede é homem"; quem o diz e afirma sem dúvida perdeu o juízo, a não ser que esteja gracejando. Evódio - Dizes a verdade. Agostinho - Então? Se essa nossa definição peca pelo mesmo vício, consideras que haja algo que deva ser mais combatido e exterminado da alma? Evódio - Quem o pode negar? Mas não gostaria, se for possível, de nos determos mais nesse assunto e nos preocuparmos com questiúnculas. Agostinho - Nada há que possas temer, pois está resolvido; ou ainda não te convenceste de que, ao se tratar da diferença entre os animais e os homens, uma coisa é sentir, outra coisa, saber? Evódio - Pelo contrário, estou totalmente convicto. Agostinho - Portanto, uma coisa é sensação, outra coisa é ciência. Evódio - De fato. Agostinho - Mas não sentimos pela razão, ou pela visão, ou pela audição, ou pelo olfato, ou pelo paladar, ou pelo tato. Evódio - Estou de acordo. Agostinho - E tudo o que sabemos, sabemo-lo pela razão; portanto, nenhuma sensação é ciência. Mas tudo o que não está oculto, diz respeito à ciência; por isso, não diz respeito a nenhum sentido não ignorar que nenhum homem pode ser chamado quadrúpede. Consequentemente, a respeito dessa nossa definição, aceite como sendo tua, não somente ficou provado que invadiu os limites alheios e nada deixou do que lhes era de direito, mas também nada teve de próprio e se apoderou de todo o alheio. Evódio - O que faremos, então? Deixarás que ela se retire assim do julgamento? Pois, embora eu lhe tenha oferecido a defesa, que esteve a meu alcance, contudo, tu a apresentaste na forma de litígio que nos enganou. E eu, se bem que não consegui ser vencedor, compareci de boa-fé ao julgamento, o que para mim é o bastante; mas tu, por quem a definição foi apresentada para ser discutida com ardor, e vieste a sucumbir vergonhosamente, uma vez combatida, tu o que farás, se és acusado de prevaricação? Agostinho - Há, porventura, algum juiz aqui do qual se deve temer algo pelo que me diz respeito ou à causa? Eu, tendo me apresentado por minha conta como advogado, quis refutá-la para tua instrução, a fim de que, quando chegar ao julgamento, tu compareças preparado. 58. Evódio - Portanto, há alguma coisa que podes proferir em favor dessa definição, a qual a mim, totalmente sem capacidade, entregas temerariamente para defender e proteger. Agostinho - Há algo, certamente. XXX. Evódio - Qual é esse algo? Dize-me. Agostinho - Embora a sensação seja uma coisa e a ciência, outra, é comum as duas não deixarem de se manifestar (non latere); do mesmo modo como é comum ao homem e ao bruto ser animal, embora se diferenciem tanto. Pois não deixa de ser manifesto tudo o que a alma conhece, seja pela constituição do corpo, seja pela acuidade da inteligência. A primeira reclama para si o nome de sensação, mas a segunda, o de ciência. Evódio - Portanto, aquela definição fica provada e exata. Agostinho - Sem dúvida. Evódio - Onde, então, me enganei? Agostinho - Onde te perguntei se se sabe (sciatur) tudo o que se manifesta (non latet); pois concordaste temerariamente com essa pergunta. Evódio - O que querias que dissesse? Agostinho - Não afirmar imediatamente ser ciência o que se manifesta (non latet), mas dizer: se se manifesta (non latet) pela razão. Mas quando se manifesta pelo corpo, se a reação do corpo se manifesta por si mesma, denomina-se sensação. Porventura, ignoras que alguns filósofos muito profundos foram de opinião que o que é apreendido pela mente não devia aspirar ao nome de ciência, a não ser que seja uma compreensão tão firme que a mente não consiga desviar-se dela por razão alguma? 59. Evódio - Aceito de muito bom grado essa observação, mas peço-te que, como foi explicado com muita sutileza, assim penso eu, o que seja sensação, voltemos àquela questão que nos levou a nos derivarmos para essa explicação. Pois eu aduzia um argumento, com o qual provava que a alma é tão grande quanto seu corpo, porque tem sensação em qualquer parte que tocares o corpo, da cabeça até a extremidade do dedo polegar do pé. E, em seguida, fomos levados, talvez necessariamente, à definição de sensação muito cheia de rodeios. Assim, mostra já o fruto de tanto trabalho, se te aprouver. Agostinho - Há fruto, sim, e muito abundante, pois conseguimos tudo o que procurávamos. Pois, se a sensação é a reação do corpo manifesta por si mesma à alma, sobre o qual discorremos mais tempo do que querias para termos certeza absoluta, lembras-te de que finalmente descobrimos que os olhos têm sensação onde não estão, melhor onde não sofrem reação? Evódio - Lembro-me. Agostinho - E também concordaste, se não me engano, e não duvidas agora de que concordaste, que a alma é muito melhor e mais poderosa que todo o corpo. Evódio - Seria abominável duvidar disso. Agostinho - Pois bem, se o corpo pode sofrer alguma reação onde não está, devido a certa união com a alma, como se viu suceder aos olhos no ato de olhar, consideraremos a alma, pela qual os olhos têm tanto poder, a alma tão crassa e indolente que lhe fique oculta a reação do corpo, se não estiver onde acontece a reação? 60. Evódio - Essa conclusão preocupa-me muito, e de tal forma muito que me deixa totalmente atônito a ponto de não encontrar o que responder; mas também não sei onde me encontro. Por isso o que posso dizer? Que não há sensação quando a reação do corpo por si mesma não se manifesta à alma? O que será, se não é isto? Que os olhos não sofrem reação quando enxergamos? É o maior absurdo possível. Que eles reagem onde estão, mas não enxergam a si mesmos, e, onde estão, nada mais há além deles? Que a alma não é mais poderosa que os olhos, sendo ela própria a potência deles? Nada mais insensato. Ou se deve dizer que significa mais poder sofrer reação onde está alguma coisa de que onde não está? Mas se isto é verdade, a visão não seria superior aos demais sentidos. Agostinho - O que dizer perante o fato de um golpe sofrido por alguém, ou uma incisão ou um descontrole dos humores, se os olhos não estão onde sofre a reação, a qual não se manifesta à alma e essa reação não se denomina visão, mas tato? Contudo, o olho poderia sofrer essa reação num corpo exânime, e, embora falte a alma, a reação se lhe manifestaria. Mas o que o olho não pode sofrer, se não estiver presente a alma, ou seja, o que sofre ao enxergar, é isso apenas que sofre onde não está a alma. Perante esse fato, quem não é de parecer que a alma não é circunscrita por um lugar? Todavia, o olho, que é um corpo, somente sofre reação em outro lugar o que nunca sofreria sem a alma. 61. Evódio - Portanto, o que devo fazer? Eu te pergunto. Essas razões não podem levar a pensar que nossas almas não estão nos corpos? Por que, se é assim, poderia saber onde estou? Pois, quem me pode impedir de pensar que eu mesmo sou a alma? Agostinho - Não te perturbes; pelo contrário, procura ficar tranquilo. Pois esse pensamento e essa consideração convidam-nos a entrar em nós mesmos e, quanto possível, desviam-nos do corpo. Mas o que te pareceu, ou seja, que não há alma no corpo de um animal vivo, embora pareça absurdo, não faltaram homens doutíssimos a quem essa ideia agradou, e creio que não faltam agora. Mas, como compreendes, é assunto deveras sutil e, para compreendê-lo, é preciso purificar muito a acuidade da mente. Agora, empenha-te antes em aduzir algo com o que possas convencer que a alma é dotada ou de longitude ou de latitude ou de outra coisa semelhante. Pois aquele argumento sobre a sensação pelo tato percebes que não atinge a verdade, nem tem força para convencer que a alma se difunda pelo corpo, como acontece com o sangue. Ou, se nada tens a aduzir, vejamos o que nos falta. A vitalidade de partes seccionadas de um animal como o inseto de muitos pés não implica a divisibilidade da alma, como mostra a analogia com o sono XXXI,62. Evódio - Talvez nada teria, se não recordasse quanto costumávamos observar as caudas das lagartixas em movimento, amputadas do restante do corpo; não posso de forma alguma convencer-me de que o movimento se fizesse sem a alma; nem entendo como pode ser que a alma não tenha espaço, se pode ser dividida com o corpo. Agostinho - Poderia responder que o ar e o fogo, os quais se conservam num corpo terreno e úmido pela presença da alma para ser possível a coexistência dos quatro elementos, enquanto evadem a regiões superiores depois da ausência da alma e dela se desembaraçam, que o ar e o fogo, repito, movimente aqueles corpúsculos tanto mais rapidamente, quanto mais repentinamente irrompem pela ferida recém-aberto. Em seguida, o movimento enfraquece; finalmente cessa, enquanto se torna cada vez menor o que escapa e, logo depois, esvaece totalmente. Mas faz-me voltar atrás dessa explicação o que percebi com estes olhos mais tarde do que se pensa crer, mas certamente não mais tarde do que eu devia. Estando nós há pouco no campo na Ligúria, aqueles nossos jovens, que estavam então comigo por motivo de estudos, perceberam no solo, estendido num lugar sombreado, um inseto de muitos pés que se arrastava, ou seja, um animalzinho comprido; é muito conhecido, mas o que vou contar nunca o havia comprovado. Um dos jovens, tendo-o arrastado com uma vara, que por acaso tinha na mão, dividiu o animal pelo meio. Então as duas partes do corpo, a partir da ferida, foram em direção contrária com tanta rapidez nos pés e com um esforço nada pequeno, como se fossem dois animais iguais. Espantados perante tal prodígio e curiosos em saber a explicação, trouxeram até nós alegremente aqueles restos, que aparentavam vida, até o lugar em que eu e Alípio estávamos sentados juntos. Nós, não pouco admirados, observávamos que corriam por uma tábua em qualquer direção; e um deles, tocado pela vara, contorcia-se em direção ao local da dor, enquanto o outro nada sentia e dirigia seus movimentos a outra direção. O que mais? Fizemos experiências para ver até onde ia a força deles; e cortamos o animalzinho, melhor, agora animaizinhos, em muitas partes. De tal modo todas se moviam que, se aquilo não tivesse sido feito por nós e os cortes não se mostrassem recentes, julgaríamos que todos eles haviam nascido separadamente e que cada um estava vivendo sua vida. 63. Mas o que disse então àqueles adolescentes quando passaram a me olhar cheios de atenção, tenho dúvidas em dizer-te agora. Pois já progredimos tanto que, se não te responder de outro modo, o qual provavelmente tem valor em favor de minha causa, nosso tamanho empenho sustentado por tão longa dissertação, pode parecer sucumbir corroído por um animalzinho. Mas ordenei-lhes que prosseguissem seus cursos de estudos, como tinham começado; assim, havendo ocasião, chegariam um dia a perguntar e aprender essas coisas, se houvesse interesse. Mas se eu quisesse expor o que conversei com Alípio, depois que eles se retiraram, quando ambos recordávamos o fato e conjecturávamos e investigávamos, cada um a seu modo, diríamos muito mais coisas do que dissemos desde o princípio com rodeios e circunlóquios. Contudo, não me calarei com respeito a ti sobre o que sinto. Se então não tivesse conhecimento de muitas coisas acerca do corpo, a respeito da beleza inerente ao corpo, concernente ao lugar, ao tempo, ao movimento, relativamente aos quais se discute com perícia e profundidade devido à natureza da questão, não recusaria dar a palma aos que dizem que a alma é corpo. Por isso aconselho-te, como posso, uma e outra vez que não corras temerariamente atrás de livros ou de disputas de homens demasiadamente falantes, e que não dês demasiado crédito a estes sentidos do corpo, até que progridas e firmes os passos que conduzem a alma ao próprio Deus, a fim de que não te afastes daquela secretíssima e tranquilíssima morada da mente (habitaculo mentis), da qual a alma, enquanto vive essa realidade, está mais distanciada pelos trabalhos e estudos do que por negligência e dissídia. 64. Mas, contra o que muito te preocupa, conforme percebo, escuta o que consegui solucionar para ti, não o que, entre muitas coisas, seja a mais sólida, e sim o que é mais breve, não o que julgo mais provável, senão o que é para ti mais adequado. Evódio - Peço-te que mo digas o mais rápido possível. Agostinho - Em primeiro lugar, se não conhecemos a causa por que acontecem aquelas coisas, ao se dividirem alguns corpos, digo que é mister não nos perturbarmos no momento com apenas esse fato de tal modo que consideremos ser falso aquilo que antes te pareceu mais claro que a luz. Pois pode acontecer que a causa daqueles fenômenos nos seja desconhecida porque ou é desconhecida à natureza humana, ou seja conhecida por alguma pessoa, a qual não temos condição de interrogar; ou também porque somos dotados de tal inteligência que o interrogado não consiga satisfazer-nos. Porventura, é-nos lícito pensar que nos engana e nos subtrai tudo o que aprendemos da parte contrária com fundamento e confessamos ser verdade? E se permanece com valor o que, ao seres interrogado, respondeste certo e indubitável, não há por que tenhamos medo pueril desse animalzinho, ainda que não consigamos descobrir a causa de sua vida prolongada e de sua multiplicação. Pois, se a respeito de alguma pessoa, te constasse ser ela equilibrada e firme, pelo fato de ser boa pessoa, e a surpreendesses na companhia de ladrões que tu estivesses perseguindo, e ela morresse repentinamente antes de a interrogares, imaginarias qualquer motivo que justificasse sua permanência com os criminosos, mesmo que te fosse sempre desconhecida, antes que pensar em crime e intimidade com eles. Assim, por que, ao tornar-se claro para ti que a alma não é circunscrita por um lugar e que, por isso, não é dotada de quantidade, como acontece com os corpos, tendo sido aduzidos tantos argumentos, comprovados por ti com convicção, por que, repito, não descobres alguma coisa que explique o fato de um animal dividido em todas as suas partes poder viver, não, porém aquela segundo a qual a alma poderia ser dividida com o corpo? Se não conseguimos descobri-la, não é preferível buscar a verdadeira a acreditar na falsa? XXXII,65. Em seguida, pergunto-te se pensas que em nossas palavras uma coisa seja o próprio som, e outra, o significado pelo som. Evódio - Penso que um e outro são os mesmos. Agostinho - Portanto, ao falares, dize-me: de onde procede o som? Evódio - Quem duvida que procede de mim? Agostinho - Portanto, quando pronuncias "sol", o sol procede de ti? Evódio - Perguntaste-me a respeito do som, não do astro em si. Agostinho - Portanto, uma coisa é o som, outra, o som que significa, e outra, a coisa significada por ele. Evódio - Pois bem; concordo em que uma coisa seja o som que significa, e outra, a coisa significada por ele. Agostinho - Então dize-me se tu, conhecedor da língua latina, poderias pronunciar a palavra "sol", se a ideia de sol não antecedesse ao som. Evódio - De forma alguma poderia. Agostinho - E se, querendo pronunciá-lo, antes que a palavra saia de tua boca, ficas por algum tempo em silêncio, não permanece em teu pensamento o que outro há de ouvir, pronunciada a palavra? Evódio - É claro. Agostinho - Pois bem; possuindo o sol tamanha grandeza, acaso a noção do mesmo, que conservas pelo pensamento antes do som, pode ser considerada ou longa ou larga ou algo semelhante? Evódio - De modo algum. Agostinho - Muito bem; dize-me agora: ao brotar a palavra (nomen) de tua boca, e eu, ouvindo-a, penso (cogito) no sol no qual pensaste antes de emitir o som (vocem) e antes de pronunciá-lo, e agora talvez os dois nele pensemos, não é de parecer que a palavra recebeu de ti um significado, o qual me transferiste por meio dos ouvidos? Evódio - Parece-me. Agostinho - Portanto, como a palavra consta de som e de significação, mas o som diz respeito aos ouvidos, a significação, à mente, não julgas que no nome, como em qualquer ser animado, o som seja o corpo e o significado seja como que a alma? Evódio - Nada me parece mais semelhante. Agostinho - Observa agora se o som da palavra pode ser dividido em letras, enquanto sua alma, ou seja, seu significado, não o pode. Na verdade, ela é a que, conforme respondeste um pouco antes, como tua opinião, não é longa nem larga em nosso pensamento. Evódio - Totalmente de acordo. Agostinho - E quando esse som é dividido em cada uma de suas letras, és de opinião que conserva o mesmo significado? Evódio - Como é possível que cada uma das letras signifique o mesmo que a palavra da qual fazem parte? Agostinho - E quando, perdendo seu significado, o som é dividido em letras, acaso pensas que aconteceu coisa diferente do que aconteceu à alma que se afastou, depois que o corpo foi feito em pedaços? Evódio - Não somente afirmo positivamente, mas o faço de boa mente, que nada me agradou mais nesta nossa conversa. 67. Agostinho - Portanto, se percebeste nem nesta comparação como a alma não pode se dividir, dividido o corpo, observa agora como podem viver pedaços do corpo, não tendo sido dividida a alma. Já concordaste, e com razão, conforme penso, que o significado, o qual é como que a alma do som, quando se pronuncia a palavra, não pode ser dividido de forma alguma, enquanto o som, o qual é como seu corpo, pode ser dividido. Mas na palavra "sol" de tal modo se faz a divisão que não conserva nada de seu significado. Assim feita em pedaços o corpo da palavra, nós o considerávamos como membros exânimes, ou seja, carente de significado. Por isso, se descobrirmos alguma palavra que, dividida, possa ter algum significado mesmo para cada uma das partes, deverás admitir que não ocorreu a morte total com essa divisão, pois os membros considerados separadamente parecer-te-ão possuir algum significado, o que vem a indicar que tem como que uma vida. Evódio - Estou totalmente de acordo, e suplico que já pronuncies essa palavra. Agostinho - Ei-la: pois quando penso na proximidade do sol, de cuja palavra tratamos antes, vem-me à mente a palavra "Lúcifer". Esta palavra dividida entre a segunda e a terceira sílaba, significa algo em sua primeira parte, quando dizemos "luci", e, por isso, fica viva neste corpo que é pouco mais da metade. A última parte possui também alma, pois a ouves quando te ordenam levar alguma coisa. Com efeito, como poderias obedecer, se alguém te dissesse fer codicem, "leva o volume", se "fer" nada significasse. Essa palavra acrescentada a "luci" soa “lúcifer” e significa "estrela". Mas quando lhe é eliminada a sílaba "fer", significa algo e por isso como que conserva a vida. 68. Mas como o lugar é o tempo são os acidentes pelos quais tudo o que se sente está ocupado, ou antes, que ocupam todas as coisas, o que sentimos pelos olhos é dividido pelo lugar, o que sentimos pelo ouvido é dividido pelo tempo. Pois, como aquele animalzinho, todo ele, ocupava maior espaço que uma parte de si mesmo, assim, demora-se mais tempo quando se pronuncia "lúcifer", de que quando se pronuncia apenas "luci". Por isso, se essa palavra vive com esse significado nessa diminuição de tempo, a qual divisão se fez ao se dividir o som, com o significado não foi dividido (pois ele não se prolongava pelo tempo, mas sim o som), assim há de se pensar que, seccionado o corpo do animalzinho, embora uma parte vivesse em lugar menor, por sua parte, a alma não foi seccionada, nem se tornou menor pelo menor espaço, embora a alma ocupasse ao mesmo tempo todos os membros de todo o animal espalhados por um lugar maior. Pois ela não ocupava lugar, mas sim o corpo, que era governado por ela, do mesmo modo como aquela significação, não estendia pelo tempo, como que animava e enchia todas as letras da palavra, que possuíam sua duração e tempo. Peço-te que te satisfaças com essa comparação, a qual percebo que te agradou. Não esperes no momento o que se pode discutir com profundidade a respeito disso, de tal modo que te seja suficiente a própria realidade, não as comparações que muitas vezes enganam. Pois é preciso pôr fim a esta longa dissertação e, para muitas coisas que ainda falam, o espírito deve estar preparado para observá-las e examiná-las, a fim de poderes compreender, se o afirmado por alguns varões muito doutos é assim, ou seja, se a alma não pode ser fragmentada de forma alguma em si mesma, mas o pode ser pelo corpo. O problema do número das almas 69. Agora, se quiseres, recebe de mim, ou melhor, reconhece por mim, quão grande é a alma, não pelo espaço de lugar e de tempo, mas pela sua força e poder; se te lembras, há muito tempo assim deliberamos e o dividimos. Mas com relação ao número de almas, não sei o que responder-te quando pensas que isso diz respeito a essa questão. Eu, porém, dir-te-ei que não se deve investigar esse assunto (o qual agora deveria ser adiado), antes de demonstrar que ou o número e a multidão não dizem respeito à grandeza ou que eu possa explicar-te agora essa questão tão cheia de dificuldades. Com efeito, se disser que há uma só alma, perturbar-te-ás, porque numa pessoa ela é feliz e em outra, infeliz; e uma coisa não pode ser feliz ou infeliz ao mesmo tempo. Se disser que são uma e muitas ao mesmo tempo, rir-te-ias, e nada me ocorre para conseguir reprimir teu riso. Mas se eu disser que são muitas, eu mesmo me encheria de riso e suportaria desagradar menos a mim que a ti. Portanto, escuta o que te prometo que poderás ouvir de mim com proveito. Mas o que é oneroso ou para ambos ou para um dos dois de tal modo que nos poderá esmagar, não queiras suportar ou impô-lo. Evódio - Concordo totalmente e espero que me exponhas o que te pareça poder tratar comigo de modo conveniente, ou seja, quanto vale a alma. A VERDADEIRA GRANDEZA DA ALMA É O SEU VALOR Os sete graus de atividade da alma XXXIII,70. Agostinho - Oxalá nós dois pudéssemos perguntar a respeito disso a alguém muito instruído, e não somente instruído, mas também eloquente e homem perfeito! De que modo ele nos explicaria, falando e discutindo, acerca do valor da alma no corpo, o valor em si mesmo, o valor diante de Deus, do qual, sendo muito pura, está próxima e no qual tem o sumo bem e todo o bem! Mas como agora não disponho de outro para esta questão, atrevo-me, contudo, a não deixar-te na mão; mas isto significará para mim uma recompensa, porque, como não sou douto, explicando o poder da alma, experimentarei com segurança o que eu posso. Contudo, permite-me que te cerceie a grandíssima e infinita esperança, para não pensares que falarei de todas as almas, mas falarei apenas da humana, a única de que devemos cuidar, se cuidarmos de nós mesmos. Por isso, primeiramente, o que qualquer pessoa pode compreender: a alma humana dá vida a este corpo terreno e mortal com sua presença, dá-lhe unidade e o conserva na unidade, não lhe permite desagregar-se e diluir-se, faz com que o alimento se distribua de modo uniforme a todos os membros, fornece a cada o que é seu, preserva sua harmonia e proporção, não somente quanto à beleza, mas também quanto ao crescimento e à procriação. Mas todas estas funções podem ser consideradas comuns ao homem e às plantas; pois dizíamos que elas também vivem, visto que vemos e reconhecemos que cada uma na sua espécie se preserva, se alimenta, cresce e se reproduz. 71. Sobe mais um grau e observa o poder da alma nos sentidos, nos quais a vida se mostra mais patente e manifesta. Com efeito, não se deve dar ouvidos a não sei que impiedade totalmente grosseira, mais lígnea que as próprias árvores, que pretende favorecer as plantas, impiedade que acredita que a videira sofre quando se vindima a uva; e não somente que elas sentem quando são cortadas, mas também que enxergam e ouvem. Haverá outra ocasião para se discutir sobre esse erro sacrílego. Agora, conforme determinara, fica atento ao que seja o poder da alma nos sentidos e no próprio movimento de um ser animado mais perfeito nesse sentido; não pode haver nada em comum entre nós e os seres que são fixados por raízes. A alma se aplica ao tato e por ele sente e distingue o que é frio, áspero, liso, duro, leve, pesado. Além disso, discerne pelo paladar, pelo olfato, pela audição e pela visão as inúmeras diferenças de sabores, de odores, de sons, de formas. Em todas essas operações aceita e apetece o que for adequado à natureza de seu corpo; rejeita e evita o que é contrário. Retira-se dos sentidos por certo intervalo de tempo e, refazendo a atuação deles, como que tirando férias, revolve consigo atropelada e repetidamente as imagens das coisas que observou por meio deles; isso é o que constitui o sono e os sonhos. Às vezes, também, pela facilidade do movimento, deleita-se saltando e vagueando e, sem esforço, ordem e harmonia dos membros; faz o que pode para a cópula dos sexos e, da natureza de dois, constrói um só ser pela comunhão e pelo amor. Concorre não somente para a geração dos fetos, mas também para incubá-los, protegê-los e alimentá-los. Liga-se por hábito às coisas entre as quais o corpo vive e com as quais se mantém, e dificilmente se separa delas, como se fossem membros. A força desse hábito, que não se interrompe pela desunião das coisas e pelo decurso do tempo, denomina-se memória. Mas ninguém nega que tudo isso possa acontecer também nos animais. 72. Ergue-te, agora, ao terceiro grau, o qual é próprio do ser humano, e pensa na memória das inumeráveis coisas, das inveteradas pelo hábito, mas gravadas e retidas pela reflexão e pelos sinais, em tantas obras de artistas, no cultivo dos campos, na construção de cidades, nas variadas maravilhas de inúmeros edifícios e monumentos, na descoberta de tantos sinais nas letras, nas palavras, nos gestos, no som de qualquer espécie, nas pinturas e esculturas, nas línguas de tantos povos, em tantas instituições, em tantas coisas novas, em tantas restauradas; pensa também no número elevado de livros, de monumentos para a guarda da memória, na tão grande preocupação pela posteridade; nas categorias de ofícios, poderes, honras e dignidades, seja nas famílias, seja na república doméstica e da milícia, seja nas cerimônias sagradas ou profanas, no poder do raciocínio e da investigação, nos rios de eloquência, nas variedades de poesia, nos milhares de recursos para o divertimento e os jogos, na perícia da arte musical, na precisão das medidas, na ciência dos cálculos, na interpretação do passado e do futuro pelo presente. São grandes essas realidades e exclusivamente humanas. Mas ainda são comuns a doutos e rudes, a bons e maus. 73. Portanto, passa e salta para o quarto grau, no qual começam a bondade e todo louvor verdadeiro. Eis por que a alma se atreve a se antepor não somente a seu corpo, se ele se considera uma parte do universo, mas também ao próprio universo, a não considerar os bens do universo como seus, a discernir e desprezá-los ao compará-los ao seu poder e à sua beleza. Daí que, quanto mais se compraz em seus bens, mais se distancia das imundícies e se purifica toda e se torna cada vez mais pura e ataviada; fortifica-se contra todas as adversidades que intentam demovê-la de seu alvo e de seus projetos; mostra grande apreço pela sociedade humana e nada quer que aconteça ao outro do que não quer para si; obedece à autoridade e aos preceitos dos sábios e acredita que Deus lhe fala por meio deles. Nesta tão brilhante atuação da alma, é preciso considerar o trabalho e o grande conflito contra as adversidades e as seduções deste mundo. Nesse mesmo afã de purificação resta ainda o temor da morte muitas vezes não grande, mas frequentemente intensíssimo. Não é grande quando se acredita firmemente (pois não é lícito à alma purificada ver se isso é verdade) que tudo é governado pela inefável providência e justiça de Deus, e que a ninguém a morte pode acontecer injustamente, ainda que a possa provocar um criminoso. Mas teme-se a morte fortemente neste grau, quando se acredita naquelas verdades tanto mais debilmente, quanto mais solicitamente se procuram, ou tanto menos se veem, quanto é menor a tranquilidade deveras necessária para investigar assuntos demasiado obscuros. Além disso, tanto mais e mais a alma conhece, pelo fato de progredir, a diferença entre uma alma pura e a maculada, quanto mais teme que, abandonado o corpo, Deus a possa suportar manchada menos do que ela mesma possa suportar. Mas nada mais difícil que temer a morte e abster-se das ciladas deste mundo, como o pedem os próprios perigos. Contudo a alma é tão grande que pode levar avante essas medidas com a ajuda da justiça do sumo e verdadeiro Deus, com a qual ele conserva e governa este mundo. Com a mesma justiça faz também com que não somente existam as coisas, mas existam de tal modo que não pode haver nada melhor. A ele a alma se entrega com piedade e confiança para ser ajudada e aperfeiçoada nessa tão difícil tarefa de sua purificação. 74. Depois de isto realizar, ou seja, quando a alma se libertar de toda imperfeição e estiver limpa de todas as manchas, então, finalmente, se mantém alegremente em si mesma e nada teme absolutamente para si e não se angustia por nenhum motivo. Portanto, este é o quinto grau. Uma coisa, porém, é realizar a purificação, e outra, manter-se na pureza; e uma é a ação com a qual se renova, estando manchada, e outra, a ação pela qual não consente em se manchar novamente. Neste grau ela percebe sob todos os aspectos o quanto é grande. Quando a percebe, então se dirige para Deus com confiança de certo modo imensa e incrível, ou seja, para a contemplação da verdade e para aquele altíssimo e deveras misterioso prêmio pelo qual tanto se esforçou. 75. Mas esta ação, ou seja, o desejo de entender o que é verdadeiro e sumo, é o mais sublime olhar da alma; não há outro mais perfeito, melhor e mais virtuoso. Portanto, este será o sexto grau, pois uma coisa é purificar o próprio olhar da alma para que não olhe inútil e temerariamente e enxergue o mal, outra coisa é preservar e fortalecer sua saúde, e outra coisa ainda é dirigir o olhar sereno e firme ao que pode ser visto. Com efeito, os que querem fazê-lo antes de serem purificados e se tornarem limpos, são de tal modo repelidos por essa luz da verdade, que não somente pensem que nela não existe nenhum bem, mas que envolve muito mal e lhe neguem o nome de verdade, e se refugiem com certa paixão e lascivo prazer em suas trevas, as quais sua enfermidade pode tolerar, maldizendo o remédio. Por isso, o profeta diz por divina inspiração e muito bem: Ó Deus, cria em mim um coração puro e renova um espírito firme no meu peito (SI 51,12). Com efeito, conforme creio, é reto o Espírito que possibilita à alma não se deixar desviar nem errar na procura da verdade. Ele, sem dúvida, não se renova na verdade, se antes não purificar o coração, ou seja, se antes o pensamento não se reprimir de toda paixão e sordidez e delas se purificar. 76. Na visão e contemplação da verdade, que é o sétimo e último grau da alma, o qual não é certamente grau, mas certa mansão aonde se chega pelos outros graus, como dizer qual seja a alegria, o gozo do sumo e verdadeiro bem, de cuja serenidade e eternidade é o sopro? Algumas almas grandes e incomparáveis falaram dessas coisas o quanto julgaram que deviam falar; e nós cremos que as viram e as veem. Agora, atrevo-me a dizer isso claramente. Se nós nos mantivermos com perseverança no caminho que Deus nos indica, o qual recebemos para nele nos mantermos, chegaremos pela Virtude e Sabedoria de Deus àquela suprema Causa, ou supremo Autor, ou supremo Princípio de todas as coisas, ou denomine-se de outro modo com mais propriedade, a essa realidade tão grande. Tendo compreendido isto, veremos em verdade como é vaidade tudo o que há debaixo do sol. Com efeito, a vaidade é ilusão, e por vaidosos se entendem os que são falsos ou enganadores, ou ambas as coisas. Contudo, é necessário discernir a diferença entre estas coisas e as que são de verdade; e como, não obstante, todas estas coisas foram criadas por Deus autor, e em nada sejam comparadas às outras; em si mesmas são consideradas maravilhosas e belas. Então reconheceremos quanto envolvem de verdade as que devemos crer, quão ótima e salutarmente fomos nutridos dentro da mãe Igreja, qual seja a vantagem daquele leite que o apóstolo Paulo afirmou ter dado aos pequenos. É da maior utilidade o alimento recebido, quando se é nutrido pela mãe; quando se é crescido, é vergonhoso sugá-lo; rejeitá-lo, sendo necessário, é lamentável; criticá-lo às vezes ou odiá-lo indica crime e impiedade; mas administrá-lo e reparti-lo de modo conveniente é ação louvável e caridosa. Veremos também tantas mudanças e vicissitudes na natureza corpórea, enquanto obedece às leis divinas, que de tal modo aceitamos como certa a ressurreição da carne, na qual alguns creem com fé fraca, e outros não creem de modo algum, que a ressurreição é mais certa para nós do que o fato de o sol nascer outra vez após o ocaso. Os que zombam do Filho de Deus potentíssimo, eterno e imutável que assumiu a natureza humana e que nasceu de uma virgem para exemplo e como primícias de nossa salvação, assim como dos outros milagres desta história, esses nós os desprezamos como se fossem os meninos que viram um pintor que pintava nas telas diante si e que via; não pensassem que se pode pintar um ser humano, se, o que pinta, não contemplar outro quadro. Mas é tão grande o prazer na contemplação da verdade, seja qual for o aspecto sobre o qual cada um pode contemplar; é tanta a pureza, tanta a sinceridade, tamanha fé inquebrantável nas coisas, que ninguém pense ter conhecido algo depois disto, se lhe parecia saber. E para que a alma toda não seja impedida de aderir a toda verdade, desejaria como a maior recompensa a morte que antes temia, ou seja, a fuga e a evasão deste corpo. Consequências no plano religioso XXXIV, 77. Acabas de ouvir quão grandes são a força e o poder da alma. Resumindo brevemente o que ficou dito: assim como é preciso confessar que a alma humana não é o que Deus é, assim se deve presumir que, entre as coisas que ele criou, nada está mais próximo de Deus. Por isso, por inspiração divina e singularmente, ensina-se na Igreja católica "que a alma não deve adorar criatura alguma" (pois de bom grado falo com estas palavras que me foram ensinadas), mas somente o Criador de todas as coisas, de que, por quem, em quem tudo existe, ou seja, o Princípio incomutável, a Sabedoria incomutável, a Caridade inalterável, o único Deus verdadeiro e perfeito que sempre existiu, sempre existirá; sempre existiu do mesmo modo, nunca existirá de outro modo; nada mais oculto que ele, nada mais presente; dificilmente se encontra onde está, mais difícil onde não está; com ele nem todos podem entrar e sem o qual ninguém pode ficar; e se há algo mais incrível a respeito dele, nós os homens podemos, entretanto, dizê-lo com o maior proveito e idoneidade. Portanto, somente este Deus deve ser adorado pela alma, não o dividindo nem o confundindo. Pois tudo o que a alma adora como Deus, é necessário que pense ser melhor do que ela mesma. Nem a terra, nem os mares, nem os astros, nem a lua, nem o sol, nada do que pode ser tocado ou visto por estes olhos, nem mesmo o próprio céu, finalmente, o que não pode ser visto por nós, podem ser considerados melhores que a natureza da alma. Ainda mais: a reta razão convence que tudo isso é muito mais inferior que qualquer alma, se é que agora os verdadeiros amantes se atrevem a segui-la com constância e fidelidade por caminhos insólitos e, por isso, árduos. 78. Mas há algo mais na natureza das coisas além do que conhecemos pelos sentidos e que, por isso, conservam alguma extensão espacial, com respeito das quais dissemos que era de maior valor a alma; portanto, se há alguma coisa mais das que Deus criou, alguma é inferior, alguma é igual à alma humana: inferior, como a alma do animal, igual, como a do anjo; porém, melhor, nada. E se alguma vez alguma delas é melhor, isso acontece pelo pecado do homem, não por natureza. Contudo, não se torna tão inferior a ponto de a alma do animal ser-lhe preferida ou comparada. Consequentemente, a alma deve adorar somente a Deus, o qual é seu autor. Mas qualquer outro ser humano de muita sabedoria e perfeição e, de modo absoluto, qualquer alma dotada de razão e da maior nobreza deve ser somente amada e imitada; e se lhe deve dar a honra que convém de acordo com seu merecimento e categoria. Pois: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto. Saibamos, no entanto, na medida do que seja lícito e ordenado, ajudar as almas do próximo que sofrem de tal modo que, quando isto se faz bem, acreditemos que Deus age por meio de nós. Nada reclamemos para nós enganados pela avidez da vanglória; devido a apenas este pecado, mergulhamo-nos do mais alto até as profundezas. Não odiemos os oprimidos pelos vícios, mas os próprios vícios; nem os pecadores, mas os próprios pecados. Pois devemos querer prestar socorro a todos, mesmo aos que nos fizeram mal ou pretendem lesar-nos ou desejam que outros nos lesem. Esta é a verdadeira, a perfeita e a única religião, mediante a qual deve reconciliar-se com Deus aquela grandeza da alma, pela qual se torna digna da liberdade, pois liberta a todos aqueles a quem servir é útil para todos, e em cujo serviço agradar-lhe constitui a perfeita e única liberdade. Mas observa que ultrapassei quase excessivamente as metas de meu propósito e que, sem nenhuma pergunta, falei sobre muitas coisas; mas não me arrependo. Pois, estando esses assuntos disseminados em tão numerosos escritos da Igreja, embora nos pareça tê-los reunido não fora de propósito, não podem, contudo, ser entendidos cabalmente, se, agindo com firmeza no quarto grau dentre os sete e mantendo-se piedoso e adquirindo saúde e força para percebê-los, cada um não pesquisar um por um com diligência e perspicácia. Pois em todos os graus está inerente uma diferente e própria beleza; a esses graus melhor seria denominá-los atos da alma. XXXV, 79. Com efeito, estamos investigando a potência da alma e pode acontecer que ela leve à prática simultaneamente todos estes atos, mas parece que somente pratica o que pratica com dificuldade ou, certamente, com temor; pois ela age com muito mais atenção que nos restantes. Assim, indo de baixo para cima, o primeiro grau, por uma técnica pedagógica, é a animação; o segundo, a sensação; o terceiro, a arte; o quarto, a virtude; o quinto, a tranquilidade; o sexto, o ingresso; o sétimo, a contemplação. Podem ser denominados também assim: sobre o corpo, pelo corpo, acerca do corpo, para si mesma, para Deus, junto de Deus. Podem-no também deste modo: inteiramente de outro, inteiramente por outro, inteiramente acerca de outro, inteiramente para o belo, inteiramente no belo, inteiramente para a beleza, inteiramente junto à beleza. Depois perguntarás a respeito de todos, se te parecer necessário algum esclarecimento; por agora, quis designar esses atos com tantos vocábulos, para não te preocupares quando outros os denominarem com outros nomes ou os dividirem de outro modo, e, por isso, venhas a reprovar estes ou aqueles. Com efeito, as mesmas coisas podem ser denominadas e divididas adequadamente de inumeráveis maneiras; em tão grande abundância de maneiras, cada um utiliza aquilo que julga poder usar de modo conveniente. XXXVI,80. Portanto, o Deus supremo e verdadeiro, por uma lei inviolável e intocável pela qual governa tudo o que criou, submeteu o corpo à alma, a alma a si mesmo e tudo a si mesmo; não a abandona em momento algum, seja no castigo, seja na recompensa. Pois ele julgou que é deveras formoso para existir tudo o que existe e como existe; e o que o existente se ordenasse por graus da natureza, que nenhuma deformidade ofendesse em parte alguma o olhar daqueles que tomam em consideração a totalidade das coisas. E todo o castigo e todo o prêmio da alma contribuíssem sempre com algo, proporcionalmente, para a perfeita beleza e disposição de todas as coisas. Pois foi outorgado à alma o livre-arbítrio; os que se empenham em destruí-lo com raciocínios frívolos, são de tal modo cegos que não percebem que todas essas coisas vãs e sacrílegas as dizem por sua conta. Contudo, o livre-arbítrio foi outorgado à alma de modo a não perturbar em nada a ordem e a lei divina, qualquer que seja a coisa que maquine. Pois foi outorgado pelo sapientíssimo e poderosíssimo Senhor de toda criatura. Mas está ao alcance de poucos ver essas coisas, como devem ser vistas; e ninguém tem idoneidade para isso, senão mediante a verdadeira religião. Com efeito, a verdadeira religião (religio vera) é aquela pela qual a alma se une pela reconciliação ao único Deus, do qual se afastara pelo pecado. Ele liga a alma naquele terceiro grau e começa a conduzi-la; purifica-a no quarto grau, restaura-a no quinto, fá-la ingressar no sexto e alimenta-a no sétimo. E isto acontece a algumas almas mais cedo, a outras, mais tarde, de acordo com o valor que cada uma apresente por seu amor e seus merecimentos. Contudo, Deus o faz com toda justiça, com sabedoria e magnificamente, qualquer que seja o modo que quiserem responder as almas nas quais atua. Além disso. É questão deveras obscura a referente ao aproveitamento das consagrações por parte das crianças; deve-se crer, no entanto, que haja algum proveito. A razão descobri-lo-á quando for oportuno investigar, ainda que há muito tempo te venho propondo outras muitas questões que deves investigar antes de conhecê-las. Isto será de grandíssima utilidade, contanto que sejam investigadas tendo a piedade como guia. AS ÚLTIMAS TRÊS QUESTÕES. CONCLUSÃO. 81. Sendo assim, quem se indignará com razão pelo fato de a alma ter sido outorgada ao corpo para seu agir e governo, vendo que a ordem tão perfeita e divina das coisas não poderia ter melhor harmonia? Ou quem averiguará como é a alma neste corpo mortal e frágil, ao ter em conta que foi empurrada para a morte pelo pecado e que é capaz de sobressair aqui também pela virtude? Ou o que ela será depois de deixar este corpo, se se considerar que a pena de morte deve continuar a vigorar necessariamente, permanecendo o pecado, e que o próprio Deus, ou seja, a própria Verdade, é a recompensa devida à virtude e à piedade? Portanto, se te aprouver, terminemos finalmente tão longa conversação e empenhemo-nos com vigilância e espírito religioso no cumprimento dos preceitos de Deus, pois não há outro modo de fugir de tantos males. Mas se disse algo com menor clareza do que desejavas, faze com que o confies à memória e interroga-me a esse respeito em outra ocasião oportuna. Pois não nos faltará, quando o procuramos, aquele que lá em cima é o Mestre de todos. Evódio - Eu, na verdade, sou de tal modo tocado por essa dissertação que considerei crime interrompê-la. E se te aprouver que seja aqui o fim do discurso e se aquelas três questões, que ficaram, pareceu-te referir-te a elas brevemente, concordo com teu parecer, e doravante farei o propósito de não somente ter em conta o tempo, considerando tuas obrigações, mas também eu mesmo procurar estar mais preparado para a investigação de tão importantes assuntos.