Agostinho de Hipona – Contra os Acadêmicos 1. Esquema do conteúdo Do Contra acadêmicos LIVRO PRIMEIRO I - Primeiro prólogo a Romaniano (I,1-4) 1 - Virtude, fortuna e filosofia (I,1-3) 2 - Gênese do Livro I (I,4) II - Primeira discussão (II,5-IV,10) 1 - O problema: podemos viver de modo feliz somente procurando a verdade, sem encontrá-la? (II,5-6) 2 - Discussão entre Licêncio e Trigécio: procura da verdade e perfeição do homem (III,7-9) 3 - Primeira definição do erro (IV,10) III - Segunda discussão (IV,11-V,15) 1 - Continuação da discussão sobre o erro (IV,11-12) 2 - Definição da sabedoria feitas por Trigécio e refutações de Licêncio (V,13-15) IV - Terceira discussão (VI,16-IX,25) 1 - Definição da sabedoria proposta por Agostinho e objeções de Licêncio (VI,16-18) 2 - Réplica de Trigécio: o verdadeiro significado da "ciência" e das "coisas humanas e divinas" (VII, 19- VIII,22) 3 - Contrarréplica de Licêncio: a sabedoria como ciência em Deus e como procura nos homens (VIII,23) 4 - Conclusão de Agostinho (IX,24-25) SEGUNDO LIVRO I - Segundo prólogo a Romaniano (I,1-III,9) 1 - Os obstáculos sobre o caminho para a ciência (I,1-2) 2 - Papel de Romaniano no caminho de Agostinho em direção à filosofia (II,3-6) 3 - Exortação à filosofia (III, 7 -9) II - Quarta discussão (IV,10-VIII,21) 1 - Síntese da doutrina acadêmica (IV,10-V,13) 2 - Gênese da nova Academia e sua relação com a antiga (VI,14-15) 3 - Discussão entre Agostinho e Licêncio: verossimilhança e conhecimento do verdadeiro (VII,16-19) 4 - Intervenção de Trigécio e convite feito a Alípio para que tome a defesa dos Acadêmicos (VIII,20-21) 5 - Importância do problema da possibilidade de encontrar a verdade (IX,22-23) 6 - Caráter substancial e não meramente verbal da controvérsia sobre o "verossímil" (X,24) III - Quinta discussão (XI,25-XIII,30) 1 - O significado autêntico do conceito acadêmico de "verossímil" (XI,25-XII,28) 2 - Elucidação do problema a ser discutido (XIII,29-30) TERCEIRO LIVRO I - Sexta discussão: entre Agostinho e Alípio (I,I-VII,14) 1 - Necessidade da fortuna para tornar-se sábio (I,1-II,4) 2 - O sábio e o conhecimento da sabedoria (III,5-6) 3 - Irrazoabilidade da descrição acadêmica do sábio (IV,7-10) 4 - Balanço da discussão e plano da continuação (V,11-VII,14) II - Sexta discussão: discurso contínuo de Agostinho (VII, 15-XX,43) 1 - Refutação do assentado primado dos Acadêmicos (VII,15-VIII,17) 2 - As implicações da definição de Zenão (IX,18-21) 3 - O problema da certeza em filosofia (X,22-XIII,29) 4 - O problema do assentimento (XIV,30-32) 5 - Crítica do conceito de "provável" (XV,33-XVI,36) 6 - Os motivos históricos do ceticismo acadêmico (XVII,37 -XX,43) III - Sexta discussão: conclusão (XX,44-45) Julgamento do Diálogo nas Retratações (I,1) 1. Tendo já deixado para trás o que adquirira e ainda desejava alcançar, seguindo as ambições deste mundo, recolhido ao repouso da vida cristã, mas ainda não batizado, escrevi primeiro os livros Contra ou Sobre os Acadêmicos. Era meu objetivo afastar do meu espírito, com todas as razões possíveis, os argumentos com os quais eles de muitos tiram a esperança de encontrar a verdade, proíbem dar assentimento ao que quer que seja e não permitem ao sábio aprovar absolutamente nada como certo e evidente porque segundo eles tudo é obscuro e incerto, argumentos que também a mim impressionavam. Graças à misericórdia e à ajuda do Senhor consegui fazê-lo. 2. Mas nesses três livros desagrada-me ter mencionado tantas vezes a fortuna, embora não fosse minha intenção designar por este nome alguma deusa e, sim, apenas os acontecimentos fortuitos das coisas que se manifestam nos bens e nos males tantos do nosso corpo como fora dele. Daqui derivam estas palavras que nenhuma religião proíbe [em latim forte, forsan, forsitan, fortasse, fortuito, todas iniciadas pela raiz fort ou for de fortuna]: por acaso, talvez, quiçá, porventura, casualmente. Mas tudo isso deve ser atribuído à divina providência. Tampouco omiti isso, quando disse: "Talvez o que vulgarmente se chama fortuna é regido por uma ordem secreta e o que chamamos acaso nos acontecimentos se deve ao nosso desconhecimento das suas razões e causas". Apesar de ter escrito isso, arrependo-me de ter ali usado a palavra fortuna, pois vejo que os homens têm o péssimo costume de dizer "a fortuna assim quis", quando deviam dizer "Deus assim quis". Em outra passagem disse: "Mas acontece que, seja por nossa culpa, seja por uma necessidade natural, a alma divina unida ao corpo mortal não alcança o porto da filosofia etc.". Eu devia ter eliminado a alternativa, sem prejudicar o sentido, ou teria sido suficiente dizer "por culpa nossa", pois na verdade herdamos nossa miséria de Adão, sem necessidade de acrescentar "seja por uma necessidade natural", pois a dura necessidade da nossa natureza provém merecidamente da culpa original. Quanto ao que disse "absolutamente nada do que se vê com os olhos mortais ou se alcança por qualquer outro sentido merece ser cultivado, mas totalmente desprezado", devia ter acrescentado "ou se alcança pelos sentidos do corpo humano, pois também há o sentido da mente. Mas então eu seguia o modo de falar dos que por sentidos entendem somente os do corpo e por coisas sensíveis só as corporais. Assim, quando me expressei desta forma, pouco evitei a ambiguidade, a não ser para os que costumam falar assim. Disse também: "Pensas que viver é outra coisa que viver conforme o que há de melhor no homem?" Pouco depois expliquei o que entendia por "o que há de melhor no homem", dizendo: "Quem duvida que haja outra coisa melhor no homem do que aquela parte da alma à qual deve obedecer todo o resto do homem? Para que não peças nova definição, acrescento que esta parte da alma pode ser chamada de mente ou razão". Isso certamente é verdade, pois quanto à natureza do homem, não há nele nada melhor que a mente e a razão. Mas não deve viver segundo ela quem quiser viver feliz, porque nesse caso viveria segundo o homem, quando é necessário "viver segundo Deus" (lPd 4,6) para poder chegar à felicidade. Para consegui-la, a mente não deve contentar-se consigo, mas submeter-se a Deus (cf SI 36,7). Em outra passagem, respondendo ao meu oponente na discussão, disse: "Neste ponto, em todo caso, não erras, e desejo de todo o coração que isso te seja um bom augúrio para o restante da discussão". Ainda que isso não tivesse sido dito como coisa séria, e sim em tom de brincadeira, preferiria não ter usado a palavra augúrio (omen), pois não me lembro de tê-la lido em nossas Sagradas Escrituras nem em algum autor eclesiástico, ainda que dela seja derivada a palavra abominação, muito frequente nos Livros Divinos. 3. No segundo livro é totalmente tola e descabida aquela quase fábula sobre a filosofia e a filocalia, em que digo que são irmãs e nascidas do mesmo pai. Pois, ou o que se chama filocalia não passa de uma fábula e por isso não é irmã da filosofia, ou, se se quiser honrar este nome que, traduzido para o latim, significa amor da beleza, verdadeira e suprema beleza é a da sabedoria, e neste caso, tratando-se de coisas incorpóreas e superiores, filocalia e filosofia são uma e mesma coisa e de modo algum duas irmãs, Em outro momento, ao tratar da alma, disse: "mais segura de voltar ao céu". Teria sido melhor se eu tivesse dito "ir" em vez de "voltar", considerando aqueles que pensam que as almas humanas, por causa dos seus pecados, caíram ou foram lançadas do céu e aprisionadas em corpos. Todavia não hesitei em dizer voltar ao céu, no sentido de voltar a Deus, sendo que Deus é o autor e criador da alma, como não vacilou em escrever São Cipriano: "Pois como temos o corpo da terra e a alma do céu, somos terra e céu". E no livro do Eclesiastes está escrito: "Retorne o espírito a Deus que o deu" (Ecl 12,7). Tudo isso se deve entender em um sentido que não se oponha ao Apóstolo quando diz que os "não nascidos não fizeram nada de bom ou de mal" (Rm 9,ls). Portanto está fora de discussão que de certo modo o lugar original da felicidade da alma é o próprio Deus, que não a gerou a partir de si mesmo, mas criou-a do nada, como criou o corpo da terra. Quanto à questão da sua origem e sua presença no corpo, se procede daquele homem único que foi criado por primeiro, quando foi feito alma vivente" (1Cor 15,45), ou se de modo semelhante cada alma é criada para cada indivíduo, isso eu ignorava então e continuo a ignorá-lo até agora. 4. No terceiro livro escrevi: "Se me perguntas o que acho, julgo que é na mente que reside o sumo bem do homem". Teria sido mais certo dizer: em Deus, pois para ser feliz é nele que ela encontra o seu sumo bem. Também me desagrada ter dito: "Posso jurar... por tudo o que é divino". Igualmente reprovo o que disse sobre os Acadêmicos, que, conhecendo a verdade, chamavam de verossímil o que se assemelhava à verdade. Chamei de falso o verossímil que eles aprovavam. Por duas razões não está certo o que disse: primeiro por que se deveria considerar falso o que de algum modo fosse semelhante à verdade, que a seu modo também é verdade, segundo, que aprovavam estas coisas falsas que chamavam de verossímeis, quando na verdade eles nada aprovavam e afirmavam que o sábio não deve aprovar nada. Mas como também chamavam o verossímil de provável, fiz aquela afirmação a respeito deles. Com razão também lamento os elogios com que exaltei Platão, os Platônicos e os filósofos Acadêmicos de uma maneira que não convém a homens ímpios, sobretudo porque é contra seus grandes erros que devemos defender a doutrina cristã. Também não deveria ter dito que em comparação com os argumentos usados por Cícero em seus livros acadêmicos, os meus eram bagatelas, quando com toda a razão refutei os argumentos de Cícero. Ainda que isso tivesse sido dito em tom de brincadeira e ironia, melhor teria sido omiti-lo. Esta obra começa assim: "O utinam, Romaniane, hominem sibi aptum". TRÊS LIVROS CONTRA OS ACADÊMICOS OU SOBRE OS ACADÊMICOS! LIVRO PRIMEIRO PRIMEIRO PRÓLOGO A ROMANIANO Virtude, fortuna e filosofia I,1. Oxalá, Romaniano, pudesse a virtude, assim como não permite que a fortuna lhe arrebate alguém, por sua vez arrebatar à fortuna resistente o homem feito para ela! Certamente ela já se teria apoderado de ti, proclamando que és seu de direito e dando-te posse dos bens mais seguros, te libertaria até da submissão aos acasos felizes. Mas acontece que, seja por nossa culpa, seja por uma necessidade natural, a alma divina unida ao corpo mortal não alcança o porto da sabedoria, onde não a agitam os ventos prósperos ou adversos da fortuna, sem que para lá seja conduzida pelo favor ou pela desgraça da mesma fortuna. Assim, nada nos resta senão fazer votos para obter daquele Deus de quem isso depende, que te restitua a ti mesmo - assim facilmente te restituirá também a nós - e permite ao teu espírito, que há tanto tempo o deseja, elevar-se finalmente à atmosfera da verdadeira liberdade. Talvez o que vulgarmente se chama fortuna é regido por uma ordem secreta e o que chamamos acaso nos acontecimentos se deve ao nosso desconhecimento das suas razões e causas, e não há nenhum acontecimento particular feliz ou infeliz que não se harmonize e não seja coerente com o conjunto de tudo. Esta verdade proclamada pelos oráculos das mais fecundas doutrinas e inacessível às inteligências profanas, a filosofia, para a qual te convido, promete demonstrá-la aos seus verdadeiros amigos. Por isso não te menosprezes se te ferem muitos males imerecidos. Se a divina providência se estende até nós, do que não se deve duvidar, acredita-me, o que está acontecendo contigo é o que é necessário acontecer. Efetivamente, quando entraste na vida humana repleta de todos os erros, com uma índole que não me canso de admirar, e isso desde o início da adolescência numa idade em que ainda é tão fraco e vacilante o passo da razão, cercou-te a abundância das riquezas, que começaram a arrastar para seu abismo enganador aquela idade e ânimo ávido de tudo quanto parecia belo e honesto. Quando já estavas à beira da queda, salvaram-te os ventos da fortuna que se consideram adversos. 2. Mas, se, oferecendo aos nossos concidadãos espetáculos de ursos e outros antes nunca vistos naquela cidade, sempre fosses acolhidos pelos mais vivos aplausos; se fosses elevado às nuvens pelos gritos unânimes dos estultos, cuja multidão é imensa; se ninguém se atrevesse a ser teu inimigo; se as inscrições públicas de bronze te proclamassem patrono não só dos teus concidadãos, mas até dos municípios vizinhos; se te erigissem estátuas e cobrissem de honras e poderes superiores aos de tuas funções municipais; se preparasses banquetes diários de fartas mesas, onde todos pudessem pedir e receber com certeza o que necessitasse ou desejasse a sua sede de prazer e até o que não pedisse; se o patrimônio, diligente e fielmente administrado pelos teus se mostrasse à altura de tanto luxo; se ao mesmo tempo vivesses em suntuosos palácios, no esplendor dos banhos, em jogos de dados que a honestidade não repele, em caçadas, em banquetes; se pela boca dos clientes, dos cidadãos, enfim de todas as multidões, fosses exaltado como o mais humano, o mais generoso, o mais puro, o mais feliz dos homens, quem, Romaniano, ousaria falar-te de outra vida feliz, a única verdadeiramente feliz? Quem poderia persuadir-te de que não só eras feliz, mas tanto mais infeliz quanto menos conhecesses a tua infelicidade? Agora, porém, quantas advertências te deram em pouco tempo os grandes e numerosos reveses que experimentaste! Não tens necessidade de exemplos alheios para persuadir-te de quão transitório, frágil e cheio de calamidade é tudo o que os mortais consideram como bens, e a tua experiência poderá servir-nos para persuadir a outros. 3. Aquela disposição que te levou a desejar sempre o que é belo e honesto, a preferir a liberalidade à riqueza, a ser antes justo que poderoso, a nunca ceder à adversidade e à injustiça, esse não sei quê de divino que há em ti, digo, e que estava adormecido no sono letárgico desta vida, decidiu despertá-lo a oculta providência com as múltiplas e rudes provas que conheces. Desperta, desperta, peço-te! Crê que hás de congratular-te profundamente, porque quase não te afagaram os bens deste mundo que seduzem os incautos. Esses bens também tentavam prender-me a mim, que todos os dias repetia isso, se uma dor do peito não me tivesse obrigado a deixar a minha vã profissão e refugiar-me no seio da filosofia. Agora, no ócio que ardentemente desejávamos, ela me nutre e acalenta. Libertou-me totalmente daquela superstição na qual te precipitara juntamente comigo. É ela que me ensina, e ensina de verdade, que absolutamente nada do que se vê com os olhos mortais ou se alcança por qualquer outro sentido merece ser cultivado mas totalmente desprezado. É ela que promete mostrar em toda claridade o Deus verdadeiro e secretíssimo e já o faz entrever como que através de nuvens transparentes. Gênese do Livro I 4. Dela compartilha comigo com grande ardor o nosso Licêncio. Renunciando às seduções e aos prazeres da juventude, consagrou-se totalmente à filosofia, de tal modo que não tenho receio de propô-lo como exemplo a seu pai. Esta é, efetivamente, a filosofia de cujo seio nenhuma idade pode queixar-se de ser excluída. Para te incitar a possuí-la e hauri-la mais avidamente, embora conheça bem a sede que dela tens, resolvi enviar-te uma prova. Rogo-te que não frustres minha esperança de que te será muito agradável e, por assim dizer, um aperitivo. Mando-te por escrito a disputa que travaram entre si Trigécio e Licêncio. O serviço militar, que nos levara por algum tempo o adolescente Trigécio, como que para lhe vencer a aversão pelos estudos, no-lo restituiu cheio de ardor e paixão pelas grandes e nobres artes. Poucos dias depois que começamos a viver no campo, vendo-os mais dispostos e mais ansiosos do que eu esperava pelos estudos, aos quais eu os exortava e incitava, quis verificar de que eram capazes na sua idade, tanto mais que o Hortênsio de Cícero já parecia tê-los conquistado grande parte para a filosofia. Tendo chamado um estenógrafo para que o vento não levasse nosso trabalho, não permiti que nada se perdesse. Assim, neste livro, lerás as questões tratadas por eles e as suas opiniões bem como as minhas palavras e as de Alípio. PRIMEIRA DISCUSSÃO O problema: pode-se viver de modo feliz somente procurando a verdade, sem encontrá-la? II,5. A meu convite estávamos todos reunidos num lugar apropriado. Assim que pareceu oportuno, comecei: - Duvidais de que devemos conhecer a verdade? - De maneira alguma, disse Trigécio. Os outros deram sinal de que concordavam com ele. - Mas se, continuei, mesmo sem a posse da verdade podemos ser felizes, ainda julgais necessário conhecer a verdade? Aqui interveio Alípio: - Nesta questão julgo que para mim é mais seguro o papel de juiz. Como tenho de ir à cidade, preciso ser desobrigado de função de tomar um partido. Além disso, posso mais facilmente delegar a outro minha função de juiz que a de advogado de uma das partes. Portanto, não espereis de mim nada em favor de qualquer um dos dois lados. Todos acederam ao seu pedido, e depois que eu repeti minha pergunta, disse Trigécio: - Certamente queremos ser felizes e se pudermos sê-lo sem a verdade, não precisamos procurá-la. - Será mesmo? Disse eu. Julgais que podemos ser felizes mesmo sem ter encontrado a verdade? - Sim, respondeu Licêncio, desde que busquemos a verdade. Por um gesto pedi a opinião dos outros. Interveio Navígio: - Impressionou-me o que disse Licêncio. Talvez viver feliz consiste em viver em busca da verdade. Disse Trigécio: - Define, então, o que é vida feliz, para que eu possa concluir o que responder. Disse eu: - Pensas que viver feliz é outra coisa que viver conforme o que há de melhor no homem? Replicou Trigécio: - Não falarei levianamente. Acho que deves definir o que é esse melhor. - Quem duvida, disse eu, de que haja outra coisa melhor no homem do que aquela parte da alma à qual deve obedecer todo o resto do homem? Para que não peças nova definição, acrescento que esta parte da alma pode ser chamada de mente ou razão. Se discordas, vê como podes tu mesmo definir a vida feliz ou o que é o melhor no homem. - Concordo com tua definição, disse Trigécio. 6. - Bem, tornei eu, voltando à nossa questão, parece-te que se pode viver feliz sem ter encontrado a verdade, mas com a condição de procurá-la? Replicou Trigécio: - Mantenho minha opinião: de maneira alguma. - E vós, o que pensais? Indaguei. Licêncio: - A mim me parece que sim, pois os nossos antepassados, que a tradição apresenta como sábios e felizes, viveram bem e felizes só porque procuravam a verdade. - Agradeço-vos, respondi, por me terdes feito juiz junto com Alípio, a quem, confesso, já começava a invejar. Pois um de vós acha que a vida feliz pode ser alcançada apenas pela procura da verdade, enquanto o outro sustenta que só a posse da verdade conduz à vida feliz. Navígio há pouco deu mostras de inclinar-se para a tua opinião, Licêncio. Estou muito curioso para ver como defendereis vossas opiniões, pois a questão é de grande importância e digna de uma discussão séria. - Se a questão é importante, exige grandes homens, advertiu Licêncio. - Não procures, repliquei eu, especialmente aqui nesta casa de campo, o que é difícil encontrar em qualquer parte do mundo. Explica, antes, o que disseste, não sem reflexão, imagino, e a razão em que te apoias, pois é dedicando-se aos grandes problemas que os pequenos se engrandecem. Discussão entre Licêncio e Trigécio Procura da verdade e perfeição do homem III,7. Licêncio: - Vejo que insistes vivamente, e creio que também utilmente, que discutamos entre nós. Pergunto por que não pode ser feliz quem procura a verdade, embora não a encontre. Trigécio: - Porque, a nosso ver, feliz é só o sábio perfeito em tudo. Ora, quem ainda procura não é perfeito. Portanto não entendo absolutamente como podes dizê-lo feliz. Licêncio: - Aceitas a autoridade dos antepassados? Trigêcio: - Não a de todos. Licêncio: - De quais a admites? Trigêcio: - A dos que foram sábios. Licêncio: - Carnéades não te parece sábio? Trigécio: - Não sou grego; não sei quem foi este Carnéades. Licêncio: - Então, o que achas do nosso Cícero? Depois de silenciar por algum tempo, respondeu Trigécio: - Foi sábio Licêncio: - Portanto a sua opinião sobre o nosso assunto tem algum valor para ti? Trigécio: -Tem Licêncio: - Então escuta a sua opinião, pois parece que a esqueceste. O nosso Cícero pensava que é feliz quem busca a verdade, ainda que não consiga encontrá-la. Trigécio: - Onde Cícero disse isso? Licêncio: - Quem ignora que ele afirmou enfaticamente que o homem não pode saber nada ao certo e que a única coisa que resta ao sábio é buscar diligentemente a verdade, pois se der seu assentimento às coisas incertas, ainda que talvez sejam verdadeiras, não pode estar livre de erro, o que para o sábio é a falta máxima. Portanto, se, por um lado, devemos crer que o sábio é necessariamente feliz e, se por outro, só a procura da verdade constitui na sua perfeição o ofício da sabedoria, por que hesitaríamos em pensar que a felicidade da vida possa resultar da simples busca da verdade? 8. Perguntou Trigécio: - É lícito voltar às afirmações admitidas irrefletidamente? Aqui intervim: - Só não costumo conceder isso àqueles que numa disputa são movidos não pelo desejo de encontrar a verdade, mas por uma vaidade pueril. Aqui entre nós, principalmente considerando que ainda estais em fase de formação e educação, não só é permitido, mas quero que tenhais como princípio voltar a discutir o que tiverdes admitido inadvertidamente. Respondeu Licêncio: - Não é um pequeno progresso na filosofia, penso eu, um contendor desprezar a vitória na busca do que é justo e verdadeiro. É, pois, com prazer que aceito o teu princípio e a tua opinião, e permito a Trigécio - pois isso depende de mim - voltar àquilo que pensa ter admitido irrefletidamente. Aqui interveio Alípio: - Haveis de convir comigo que ainda não chegou o momento de cumprir o meu papel. Mas como a minha partida, marcada já há tempo, me obriga a interromper minha função de juiz, aquele que a compartilha comigo não recusará, até minha volta, exercer o seu duplo papel! Pois vejo que a disputa se prolongará bastante. Depois que ele saiu, disse Licêncio: - O que foi que você admitiu imprudentemente? Trigécio: - Concedi irrefletidamente que Cícero foi sábio. Retrucou Licêncio: - Então não foi sábio Cícero, ele que iniciou e aperfeiçoou a filosofia na língua latina? Trigécio: - Mesmo concedendo que foi sábio, não aprovo tudo o que ele disse. Licêncio: - Então terás de rejeitar muitas outras afirmações suas, se não quiseres parecer impertinente ao reprovar justamente a opinião de que se trata aqui. Trigécio: - E se eu afirmar que só neste ponto ele não está certo? Parece que a única coisa que vos importa é o peso das razões que aduzo para provar o que pretendo. Licêncio: - Continua. Como ousarei contrariar quem se declara adversário de Cícero? 9. Trigécio: - Quero que tu, nosso juiz, te lembres como há pouco definiste a vida feliz. Disseste que feliz era aquele que vive conforme aquela parte da alma que deve comandar todas as outras. Quanto a ti, Licêncio, quero que me concedas - pois em nome da liberdade que a filosofia promete dar-nos já sacudi o julgo da autoridade - que não é perfeito quem ainda procura a verdade. Depois de um longo silêncio, retorquiu Licêncio: - Não concedo. Trigécio: - Por quê? Explica-te. Sou todo ouvidos para saber como um homem pode ser perfeito, mas ao mesmo tempo ainda procurar a verdade. Licêncio: - Concedo que quem não chegou ao fim não é perfeito. Mas a verdade acho que só Deus a conhece ou talvez também a alma humana, depois que deixou o corpo, este cárcere tenebroso. 10. Mas o fim do homem é procurar perfeitamente a verdade. Procuramos o homem perfeito, mas sempre homem. Replicou Trigécio: - Portanto o homem não pode ser feliz. Como poderia sê-lo, se não pode conseguir o que tão ardentemente deseja? Mas não, o homem pode viver feliz, se pode viver segundo aquela parte da alma que deve dominar no homem. Portanto, pode encontrar a verdade. Ou então se recolha em si mesmo e renuncie ao desejo da verdade para que, não podendo alcançá-la, não seja necessariamente infeliz. Licêncio: - Mas justamente esta é a felicidade do homem: buscar perfeitamente a verdade. Isso é chegar ao fim, além do que não se pode passar. Portanto, quem busca a verdade com menos esforço do que deve, não alcança o fim do homem, mas quem se aplica à sua busca com todo o esforço possível e necessário, mesmo que não a encontre, é feliz, pois age totalmente segundo o fim para o qual nasceu. Se não o consegue, a falta vem da natureza, que não o permitiu. Finalmente, se todo homem é necessariamente feliz ou infeliz, não será loucura chamar infeliz aquele que dia e noite com todo o afinco procura a verdade? Logo é feliz. Além disso, creio que a nossa definição confirma a minha opinião, pois se é feliz, como de fato é, quem vive segundo aquela parte da alma que deve governar as outras e esta parte se chama razão, pergunto: não vive segundo a razão quem com perfeição busca a verdade? Seria absurdo negá-lo, Por que, então, hesitaremos em afirmar que basta a busca da verdade para tornar o homem feliz? Primeira definição do erro IV,10. Trigécio: - Parece-me que quem está em erro não vive segundo a razão nem é totalmente feliz. Ora, está em erro quem sempre busca, e não encontra. Logo, deves demonstrar-me uma destas duas coisas: ou que quem está em erro pode ser feliz, ou que quem nunca encontrar o que procura não está em erro. Licêncio: - Quem é feliz não pode estar em erro. Depois de um longo silêncio, continuou: - Mas quem procurar não está em erro, pois procura para não errar. Ao que retorquiu Trigécio: - Sem dúvida procura para não errar, mas como não encontra, não deixa de estar em erro. Julgaste favorecer tua posição dizendo que o homem não quer enganar-se, como se ninguém se enganasse sem querer, ou como se só nos enganássemos contra nossa vontade. Vendo que o outro tardava a responder, ponderei: - Precisais definir o que é erro, pois podereis circunscrevê-lo tanto mais facilmente quanto mais profundamente penetrardes em sua natureza. Licêncio: - Não sei dar definições, ainda que seja mais fácil definir o erro que acabar com ele. Trigécio: - Pois eu o definirei. Será muito fácil fazê-lo, não graças a algum talento que eu tenha, mas à excelência da causa. Errar é, na verdade, procurar sempre sem jamais encontrar. Retrucou Licêncio: - Se eu pudesse facilmente refutar esta definição já teria ajudado muito a minha causa. Mas como o assunto em si é árduo, ou assim me parece, peço-vos que a discussão seja adiada para amanhã, se, apesar do meu esforço, não puder encontrar uma resposta hoje. Julguei que devíamos atender o seu pedido, e como os demais não se opusessem, levantamo-nos e fomos passear. Conversamos sobre vários assuntos, enquanto Licêncio permanecia absorto em reflexão. Afinal, vendo que era inútil, preferiu relaxar o espírito e juntar-se à nossa conversa. Depois, já ao cair da tarde, os dois voltaram à mesma discussão. Mas eu os refreei e convenci-os a deixá-la para outro dia. E fomos aos banhos. SEGUNDA DISCUSSÃO Continuação da discussão sobre o erro 11. No dia seguinte, estando todos sentados, tomei a palavra: - Continuai o que tínheis começado ontem! Disse então Licêncio: - Se não me engano, tínhamos interrompido a discussão a meu pedido, porque a definição do erro me apresentava grandes dificuldades. - Neste ponto, em todo caso, não erras, observei eu, e desejo de todo o coração que isso te seja um bom augúrio para o restante da discussão: Licêncio: - Escuta, pois, o que eu teria exposto ontem mesmo, se não tivesses intervindo. O erro, a meu ver, consiste em tomar o falso pelo verdadeiro. Nele não pode cair de nenhum modo quem julga que sempre se deve procurar a verdade, pois não pode aprovar o falso quem não aprova nada. Logo não pode errar, mas pode facilmente ser feliz. Para não ir muito longe, se pudéssemos viver todos os dias como ontem, não vejo razão para não nos considerarmos felizes. Pois vivemos numa grande tranquilidade de espírito, guardando a alma livre de toda mácula corporal, bem longe do fogo das paixões, dedicando-nos, quanto é humanamente possível, à razão, isto é, vivendo segundo aquela parte divina da alma, que, segundo a definição de ontem, concordamos que constitui a vida feliz. Todavia, creio que nada encontramos, mas apenas procuramos a verdade. Logo, o homem pode alcançar a felicidade só pela busca da verdade, ainda que não consiga encontrá-la. Vê como é fácil refutar a tua definição por uma observação comum. Disseste que errar é buscar sempre sem nunca encontrar. Suponhamos um homem que nada procura. Alguém lhe pergunta, por exemplo, se é dia. Sem refletir e precipitadamente, responde que, a seu ver, é noite. Não te parece que ele erra? Esta espécie de erro tão grosseiro não é abrangida pela tua definição. E se incluir também os que não erram, pode haver definição mais viciosa? Um homem quer ir a Alexandria e segue o caminho direto, acho que não podes dizer que ele está errado. Mas, se, impedido por vários obstáculos, levar muito tempo a percorrer o mesmo caminho e for surpreendido pela morte, não é verdade que sempre procurou e nunca encontrou e todavia não errou? Trigécio: - Mas não procurou sempre. Licêncio: - Dizes bem e tua observação é correta, pois daqui se segue que a tua definição é inadequada. Na verdade eu não disse que é feliz quem sempre busca a verdade. Isso é impossível. Primeiro, porque o homem não existe sempre, em segundo lugar, porque nem mesmo depois que começou a existir pode logo procurar a verdade, impedido que ainda se encontra pela idade. Ou, se entendes "sempre" no sentido de que o homem não deve perder nenhum momento desde quando é capaz de procurar, deves voltar ao exemplo de Alexandria. Supõe alguém que, quando a idade e as ocupações lhe permitem viajar, põe-se a caminho daquela cidade. Como disse acima, não se desvia para nenhum lado, mas, antes de alcançar o seu destino, morre. Certamente te enganarias muito se pensasses que ele errou, embora todo o tempo que pôde não tenha deixado de procurar, mas não tenha chegado ao lugar para o qual se dirigia. Por isso, se é correto o meu raciocínio, segundo o qual não erra quem busca perfeitamente a verdade, ainda que não a encontre, é feliz porque vive de acordo com a razão. Portanto, a tua definição é vã, e se não o fosse, não deveria eu preocupar-me com ela pelo simples fato de que a minha tese é bem estabelecida pelas razões que expus. Assim sendo, pergunto, por que não estaria resolvida a questão que discutimos? Definições da sabedoria dadas por Trigécio e refutações de Licêncio V,13. Indagou Trigécio: - Concedes que a sabedoria é o caminho reto da vida? Licêncio: - Concedo, sem dúvida. Mas quero que me definas a sabedoria para saber se a concebemos no mesmo sentido. Trigécio: - Não te parece bem definida na pergunta que te fiz? Até me concedeste o que eu queria. Pois, se não me engano, é com razão que a sabedoria é chamada o caminho reto da vida. Retrucou Licêncio: - Nada me parece tão ridículo como esta definição. Trigécio: - Talvez. Mas vai com cautela, reflete antes de rir, pois nada é mais vergonhoso que o riso digno de irrisão. Propôs Licêncio: - Concordas que a vida é o contrário da morte? Trigécio: - Concordo. Licêncio: - Pois para mim o caminho da vida não é senão aquele que seguimos para evitar a morte. Trigécio concordou. Prosseguiu então Licêncio: - Portanto, se um viajante, que evita um atalho por ter ouvido que está infestado de assaltantes, segue pelo caminho reto e assim evita a morte, não seguiu o caminho da vida e o caminho reto? No entanto ninguém chama a esse caminho de "sabedoria". Como então é sabedoria todo o caminho reto da vida? Trigécio: - Concedi que a sabedoria é isso, mas não só ela. Licêncio: - Uma definição não deve conter nenhum elemento alheio ao definido. Por isso defina novamente que, a teu ver, é sabedoria. 14. Trigécio guardou longo silêncio e por fim disse: - Pois então defino-a novamente, já que decidiste não encerrar este ponto. A sabedoria é o caminho reto que conduz à verdade. Retorquiu Licêncio: - Também esta definição se refuta facilmente. Em Virgilio a mãe de Enéias diz a este: "Continua e dirige os passos para onde te conduz o caminho". Seguindo esse caminho, Enéias chegou ao lugar que lhe fora indicado, isto é, à verdade. Tenta sustentar, por favor, que o lugar onde, avançando, ele pôs os pés se pode chamar sabedoria! Na verdade é total tolice minha tentar rebater esta tua definição, pois nada favorece mais a minha causa que ela. Disseste, com efeito, que a sabedoria não é a própria verdade mas o caminho que a ela conduz. Assim, quem usa este caminho usa a sabedoria e quem usa a sabedoria é necessariamente sábio. Portanto, sábio é aquele que busca perfeitamente a verdade, mesmo que ainda não a tenha alcançado. Pois, a meu ver, a melhor definição do caminho que conduz à verdade é a diligente pesquisa da verdade. Consequentemente, quem usa este caminho já será sábio. E nenhum sábio é infeliz. Ora todo homem é infeliz ou feliz. Logo o que faz feliz não é só a descoberta, mas a própria procura da verdade. 15. Sorrindo, disse Trigécio: - Realmente mereci que me acontecesse isso, por haver feito imprudentemente concessões em coisas desnecessárias ao adversário, como se eu fosse um mestre em definições ou julgasse alguma coisa mais supérflua na discussão. Onde vamos parar se eu te pedir novamente a definição de algo e fingindo nada entender, pedir que definas cada uma das palavras dessa definição e assim sucessivamente de todas as que seguirem? Pois de que termo claríssimo não teria eu o direito de exigir a definição, se me pode ser pedida a definição da sabedoria? Há, porventura, palavra da qual a natureza quis que nossa alma tivesse uma noção mais clara que a da sabedoria? Mas não sei como, apenas esta noção deixa, por assim dizer, o porto da nossa mente e solta as velas das palavras, logo mil cavilações a ameaçam de naufrágio. Por isso, ou não se exija uma definição da sabedoria, ou o nosso juiz se digne vir em seu auxílio. Então, como a noite já impedia escrever e vendo que novamente surgia um grande problema, transferi a discussão para outro dia. Efetivamente, tínhamos começado a disputa quando o sol já estava declinando, depois de termos passado quase o dia inteiro no trato de tarefas do campo e no estudo do primeiro livro de Virgílio. TERCEIRA DISCUSSÃO Definição da sabedoria proposta por Agostinho e objeções de Licêncio VI,16. Assim que clareou o dia - na véspera havíamos arranjado tudo para termos muito tempo de lazer - retomamos a discussão já iniciada. Comecei: - Trigécio, ontem pediste que eu descesse da função de juiz para a de defensor da sabedoria, como se na vossa discussão a sabedoria tivesse um adversário a temer ou, por falta de um defensor, tivesse de implorar um auxílio maior. A única questão que surgiu entre vós foi a da definição da sabedoria e nisso nenhum de vós a ataca, visto que ambos a desejais. Depois, se julgas ter falhado na definição da sabedoria, nem por isso deves abandonar a defesa restante da tua opinião. Assim, terás de mim apenas a definição da sabedoria, que não é nem minha nem nova, mas vem dos antigos. Admiro-me de que não vos lembrais dela, pois não é a primeira vez que ouvis que a "sabedoria é a ciência das coisas humanas e divinas". 17. Licêncio, que, após esta definição, eu esperava passaria longo tempo procurando a resposta, interveio imediatamente: - Por que, então, não chamamos sábio aquele indivíduo devasso que bem conhecemos por toda sorte de desregramentos a que se entregava? Refiro-me a Albicério, que, em Cartago, por muitos anos, dava aos que o consultavam respostas admiravelmente corretas. Poderia lembrar inúmeros casos, se não estivesse falando a pessoas informadas. Poucos exemplos bastam para o meu propósito. E dirigindo-se a mim: - Não é verdade que, tendo-se perdido em casa uma colher, e sendo ele consultado por ordem tua, rapidíssima e certissimamente respondeu não só o que se procurava, mas também nominalmente a quem pertencia e onde estava escondida? Deixo de lado o fato de que não sofria absolutamente nenhum engano naquilo que se lhe perguntava. Outra ocasião, presenciei o seguinte caso: um escravo, que levava certa quantidade de moedas, roubara uma parte delas, enquanto nos dirigíamos a Albicério. Este mandou que fossem contadas as moedas e ante nossos olhos obrigou o escravo a devolver aquelas que roubara, antes que ele mesmo tivesse visto as moedas ou ouvido de nós quanto tinha sido roubado. 18. Não nos falaste também de um fato que deixou pasmado um homem tão douto e ilustre como Flaciano? Estando este negociando a compra de um sítio, consultou aquele adivinho, pedindo que, se possível, lhe dissesse o que havia feito. Este imediatamente não só descreveu o tipo de negócio, mas, para grande espanto de Flaciano, também pronunciou o nome do sítio, tão complicado que nem o próprio Flaciano dele se lembrava. Não é sem espanto que lembro a resposta que Albicério deu a um amigo nosso, discípulo teu, que, para confundi-lo, lhe perguntou insolentemente em que ele, interrogador, em que ele estava pensando naquele momento. Respondeu-lhe o adivinho que estava pensando num verso de Virgílio. Como, estupefato, não pudesse negá-lo, nosso amigo prosseguiu perguntando qual era o verso. E Albicério, que só de passagem vira uma escola gramatical, não hesitou, seguro e gárrulo, em recitá-lo, Não era sobre coisas humanas que o adivinho era consultado, ou respondeu com tanta verdade e certeza às consultas sem uma ciência das coisas divinas? As duas hipóteses são absurdas. Pois as coisas humanas nada mais são que as coisas dos homens, como prata, moedas, sítio e até o próprio pensamento. E quem negará que é pelas coisas divinas que o homem adivinha? Portanto Albicério foi sábio, se, conforme admitimos, a sabedoria é a ciência das coisas humanas e divinas. Réplica de Trigécio: o verdadeiro significado da "ciência" e das "coisas humanas e divinas" VII,19. Respondeu Trigécio: - Em primeiro lugar, não chamo ciência um conhecimento no qual às vezes erra quem a professa. A ciência consiste não só em compreender, mas em compreender de tal modo que quem a possui não possa enganar-se nem deixar-se abalar por qualquer objeção. Por isso, com muita razão afirmaram alguns filósofos que ela só pode encontrar-se no sábio, que não só deve possuí-la perfeitamente, mas também mantê-la inabalavelmente. Ora, sabemos que esse de que falaste disse muitas coisas falsas, o que sei não só de ouvir dizer, mas também por havê-lo testemunhado. Chamaria eu de sábio quem muitas vezes disse coisas falsas? Não o chamaria por esse nome, mesmo que tivesse dito a verdade, mas com hesitação. Aplicai o mesmo aos arúspices, aos áugures e a todos os que consultam as estrelas e aos que interpretam os sonhos. Ou então citai-me alguém dessa espécie de homens, que, consultado, nunca tenha hesitado em suas respostas e nunca tenha dado respostas erradas. Dos adivinhos não me ocuparei, pois falam sob a influência de espíritos estranhos. 20. Por outro lado, concedendo que as coisas humanas são coisas dos homens, julgas que nos pertence o que o acaso pode dar-nos ou tirar-nos? Ou, quando se fala da ciência das coisas humanas, trata-se daquela pela qual conhecemos a quantidade e a natureza das terras, do ouro e da prata que possuímos ou em que versos de outros poetas estamos pensando? Não. A ciência das coisas humanas é aquela que conhece a luz da prudência, a beleza da temperança, a força da coragem, a santidade da justiça. Estes são os bens que realmente podemos dizer nossos sem nenhum temor do acaso. Se Albicério os tivesse aprendido, acredita-me, nunca teria vivido tão devassa e vergonhosamente. Quanto ao fato de ter dito em que verso estava pensando o homem que o consultou, não julgo que isso deva ser considerado coisa nossa. Não que eu negue que as nobres artes liberais são de certo modo propriedade do nosso espírito. Mas declamar e recitar um verso alheio até os mais ignorantes são capazes de fazê-la. Se tais coisas podem ocorrer à nossa memória, não é de admirar que possam ser percebidas por certos animais desprezíveis espalhados no ar, chamados demônios, que, concedo, podem superar-nos pela agudeza e sutileza dos sentidos, mas não pela razão. Ignoro de que modo misterioso e ocultíssimo aos nossos sentidos isso ocorre. Mas se admiramos a abelha que depois de depositar o mel, voa de cá para lá com uma habilidade pela qual supera o homem, nem por isso devemos antepô-la ao homem nem até apenas compará-la com ele. 21. Assim, eu teria preferido que esse Albicério ensinasse a métrica a quem o interrogasse desejoso de sabê-la, ou que, consultado por alguém, declamasse seus próprios versos sobre um tema proposto. Costumas lembrar que Flaciano repetia isso frequentemente, pois com sua grande elevação de espírito ridicularizava e desprezava esse gênero de adivinhação, atribuindo-o a não sei que vil animalzinho - como dizia - que lhe inspirava ou insuflava as respostas. Esse homem doutíssimo perguntava aos que admiravam tais prodígios se Albicério era capaz de ensinar a gramática, a música ou a geometria. Dos que o conheceram, quem negaria que era totalmente ignorante dessas disciplinas? Por isso exortava com toda a insistência aos que tinham aprendido essas ciências que sem hesitação as preferissem àquelas adivinhações e se esforçassem para instruir-se e enriquecer sua inteligência com essas disciplinas, que lhes permitiriam dominar e superar esses espíritos invisíveis espalhados no ar. VIII,22. Quanto às coisas divinas que, todos concordam, são muito melhores e mais augustas que as humanas, como poderia Albicério alcançá-las se não sabia sequer quem era ele próprio? A não ser que talvez penses que os astros que contemplamos todos os dias, são algo grande em comparação com o Deus verdadeiro e oculto a quem talvez a inteligência raramente alcança e os sentidos nunca. Mas estes estão ao alcance dos nossos olhos; portanto não são aquelas coisas divinas que só a sabedoria professa conhecer. Quanto às outras coisas de que os adivinhos abusam por vanglórias ou por lucro, certamente são muito inferiores aos astros. Portanto, Albicério não teve o conhecimento das coisas divinas e humanas e sob este aspecto foi em vão que atacaste a nossa definição. Finalmente, visto que devemos desprezar como vil o que quer que exista fora das realidades humanas e divinas, pergunto-te onde o teu sábio procurará a verdade? Respondeu Licêncio: - Nas divinas, pois sem dúvida mesmo no homem a virtude é divina. Trigécio: - Então Albicério já conhecia essas coisas divinas que o teu sábio não cessa de buscar? Retorquiu Licêncio: - Conhecia as coisas divinas, mas não aquelas que o sábio deve buscar. Pois não subverteria todo modo comum de falar quem concedesse a adivinhação e negasse as coisas divinas, das quais a adivinhação deriva o seu nome? Portanto, salvo engano meu, a vossa definição incluiu algo que não pertence à sabedoria. Contrarréplica de Licêncio: a sabedoria como ciência em Deus e como procura nos homens 23. Retrucou Trigécio: - A definição será defendida por quem a deu, se quiser. Mas para voltarmos finalmente ao nosso tema, responde-me. Licêncio: - Estou às tuas ordens. Trigécio: - Concedes que Albicério conhecia a verdade? Licêncio: - Concedo. Trigécio: - Então era melhor que o teu sábio? Licêncio: - De maneira alguma, porque o gênero de verdade que o sábio busca é inacessível não só a esse adivinho tresloucado, mas até ao próprio sábio enquanto vive neste corpo. Contudo, este é tão importante que vale muito mais procurá-lo sempre que alguma vez encontrar aquele. Trigécio: - É necessário que aquela definição (de Agostinho) me tire das dificuldades em que me enredei. Ela te pareceu defeituosa por abranger alguém que não podemos chamar sábio. Pergunto-te se concordas se dissermos que a sabedoria é a ciência das coisas humanas e divinas, mas daquelas que pertencem à vida feliz? Licêncio: - Certamente a sabedoria é isso, mas não só. A definição anterior incluiu elementos alheios, enquanto a última excluiu elementos próprios. Portanto, a primeira peca por excesso e a segunda por defeito. Para esclarecer por uma definição o meu pensamento, parece-me que a sabedoria é não só a ciência, mas também a diligente busca das coisas humanas e divinas referentes à vida feliz. Se quiseres dividir esta definição, a primeira parte, que se refere à ciência, convém a Deus, a segunda, que se contenta com a busca, é própria do homem. Por aquela é feliz Deus, por esta o homem. Objetou Trigécio: - Espanta-me a tua afirmação de que o teu sábio trabalha em vão. Replicou Licêncio: - Como trabalha em vão, se é tão bem recompensado pela sua busca? Pois, pelo fato de buscar, é sábio, e, pelo fato de ser sábio, é feliz. Liberta tanto quanto pode o seu espírito dos laços do corpo e se recolhe em si mesmo; não se deixa dilacerar pelas paixões, mas, sempre tranquilo, concentra-se em si mesmo e em Deus, para que já aqui goze pela razão o que acima concordamos ser a felicidade e, no último dia da sua vida, esteja preparado para alcançar o que desejou e merecidamente goze da divina felicidade, depois de ter antes gozado a felicidade humana. Conclusão de Agostinho IX,24. Vendo que Trigécio tardava a responder, intervim: - Não creio, Licêncio, que faltassem argumentos a Trigécio, se lhe déssemos tempo de pensar. O que deixou de responder em qualquer ponto? Ao ser levantada a questão da vida feliz, ele primeiro sustentou que necessariamente só o sábio é feliz, pois até no juízo dos néscios a ignorância é uma infelicidade; que o sábio deve ser perfeito, mas aquele que ainda procura a verdade não é perfeito, e portanto também não pode ser feliz. Neste ponto lhe opuseste o peso da autoridade e ele ficou um tanto perturbado pelo nome de Cícero. Mas logo se refez e com uma generosa altivez retomou o cume da liberdade, apoderando-se novamente do que por força lhe fora arrebatado das mãos. Perguntou-te, se, na tua opinião, quem ainda procura é perfeito. Se respondesses que não, Trigécio voltaria ao ponto de partida e demonstraria, se possível, que, por essa definição, é perfeito o homem que governa a sua vida pela lei da razão e consequentemente só pode ser feliz o homem perfeito. Dessa armadilha te livraste mais habilmente do que eu esperava, dizendo que homem perfeito é aquele que com toda diligência busca a verdade, combatendo um tanto presunçosa e ousadamente a nossa definição segundo a qual disséramos que a vida feliz é, afinal de contas, aquela que se rege pela razão. Trígécio respondeu-te claramente, apoderou-se da tua posição e, expulso de lá terias perdido tudo, não fosse uma trégua que te restituiu as forças. Pois onde os Acadêmicos, cuja opinião defendes, estabeleceram sua cidadela, senão na definição do erro? Se essa definição não tivesse ocorrido por acaso à tua memória em sonho durante a noite, não terias tido o que responder, se bem que expondo a opinião de Cícero tu mesmo já a tivesses lembrado antes. Depois viemos à definição da sabedoria, que com tamanha astúcia tentaste abalar que talvez nem o teu auxiliar Albicério teria percebido as tuas ciladas. Com quanta vigilância, com quanta energia te resistiu Trigécio e quase te teria envolvido e derrubado, se no último momento não tivesses encontrado refúgio em tua nova definição, dizendo que a sabedoria humana é a busca da verdade, da qual nasce, com a tranquilidade da alma, a felicidade da vida. Trigécio não responderá a este argumento, sobretudo se pedir que se lhe prorrogue o dia ou o resto da discussão. 25. Mas, para não nos alongarmos demasiado, se todos concordarem, podemos encerrar aqui a discussão, que julgo inútil continuar. A questão foi tratada suficientemente para o fim que nos propusemos. Poderia ter sido concluída em poucas palavras, se eu não tivesse desejado exercitar-vos e pôr à prova vossos esforços e dedicação ao estudo, que é minha grande preocupação. Pois tendo decidido exortar-vos vivamente à busca da verdade, comecei perguntando-vos sobre a importância que lhe atribuis. Todos mostrastes tanto interesse que eu não poderia desejar mais. Pois desejamos a felicidade. Quer esta consista em encontrar a verdade, quer em buscá-la diligentemente, devemos em todo caso, se quisermos ser felizes, fazer passar antes de tudo a busca da verdade. Por isso, como já disse, terminemos a discussão e, após redigi-la por escrito, enviemo-la em primeiro lugar a teu pai, Licêncio, cuja inclinação para a filosofia conheço bem. Mas ainda procuro a ocasião apropriada para introduzi-lo nela. No entanto, poderá inflamar-se com mais entusiasmo por estes estudos, quando souber não só por ouvir dizer, mas pela leitura destes debates, que tipo de vida levas comigo. Mas, se, como acredito, gostas dos Acadêmicos, prepara-te solidamente para defendê-los, pois decidi citá-los como réus no tribunal. Dito isso, levantamo-nos. LIVRO SEGUNDO SEGUNDO PRÓLOGO A ROMANIANO Os obstáculos sobre o caminho em direção à ciência I,1. Se fosse tão necessário encontrar a sabedoria quando procurada, quanto, para ser sábio, é necessário possuir a sua disciplina e ciência, certamente toda a falsa sutileza, a obstinação, a teimosia dos Acadêmicos, ou, como por vezes penso, as razões válidas pata o seu tempo, teriam sido sepultadas com a época e os corpos de Carnéades e de Cícero. Mas, seja em razão das múltiplas e variadas vicissitudes desta vida, como tu mesmo podes experimentar, Romaniano, seja por certo entorpecimento, apatia e indolência dos espíritos, seja por causa da desesperança de encontrar a verdade, pois a estrela da sabedoria não brilha tão facilmente à mente como esta luz material aos nossos olhos, seja ainda - e este erro é muito comum entre os povos - pelo fato de que os homens erroneamente imaginam ter encontrado a verdade, deixam de buscá-la com diligência, se é que a buscam, e facilmente perdem a vontade de procurá-la, ocorre que a ciência é rara e quinhão de poucos. Por isso homens nada medíocres, mas argutos e bem informados, julgam que as armas dos Acadêmicos, quando se trata de enfrentá-los, são invencíveis e como que forjadas por Vulcano. Considerando tudo isso, contra tais ondas e tempestades da fortuna devemos lutar com os remos de todas as virtudes e sobretudo implorar o auxílio divino com toda a devoção e piedade, a fim de que o firme propósito de nos dedicar ao estudo da sabedoria siga o seu curso, sem que nenhum acaso o impeça de alcançar o seguríssimo e dulcíssimo porto da filosofia. Esta é a tua primeira tarefa. Daqui meu receio por ti, daqui meu desejo de libertar-te. Para isso todos os dias - se é que sou digno de ser atendido - em minhas preces não cesso de implorar ventos favoráveis para ti. Minhas preces se dirigem ao próprio poder e sabedoria de Deus altíssimo. Pois não é esta que os mistérios nos apresentam como filho de Deus? 2. Muito me ajudarás nas minhas orações por ti, se não desesperares de que possamos ser ouvidos e unires teus esforços aos nossos não só pelos desejos, mas também pela vontade e por aquela tua natural elevação de espírito que me atrai a ti, que me encanta singularmente e que não cesso de admirar, mas que, infelizmente, como o raio pelas nuvens, está envolto pelas preocupações domésticas e assim permanece oculto aos olhos de muitos, ou de quase todos. Todavia, não pode passar despercebido de mim e de um ou outro de teus amigos mais íntimos, nós que muitas vezes não só ouvimos atentamente os teus rumores, mas também vimos alguns clarões precursores do raio. Pois, para calar todo o resto e lembrar apenas um fato, quem alguma vez trovejou tanto e tão subitamente e brilhou com tanta claridade de espírito, que um só estrondo da razão e um só clarão de temperança destruiu radicalmente um só dia a impetuosíssima paixão que na véspera ainda te dominava? Tardará ainda esta virtude a resplandecer e a transformar o riso de tantos descrentes em horror e estupefação? Depois de manifestar aqui na terra, por assim dizer, certos presságios futuros, não rejeitará ela todo o peso de todas as coisas corporais, e se lançará ao céu? Serão vãs as esperanças que Agostinho tinha de Romaniano? Não o permitirá aquele a quem me entreguei totalmente e comecei a conhecer um pouco. Papel de Romaniano no caminho de Agostinho em direção à filosofia II,3. Dedica-te, pois, comigo à filosofia. É ela que costuma mover-te admiravelmente quando muitas vezes estás inquieto e hesitante. Pois de ti não receio nem apatia moral nem falta de engenho. Quem era mais atento em nossas conversações, quando podias respirar um pouco? Quem mais penetrante? Não retribuirei os teus favores? Por acaso é pouco o que te devo? Quando, pobre adolescente, fui estudar em outra cidade, acolheste-me em tua casa, às tuas custas, e o que é mais, no teu coração. Quando perdi meu pai, consolaste-me com a tua amizade, animaste-me com teus conselhos, ajudaste-me com teus recursos. Em nosso próprio município, teus favores, tua amizade, a partilha do teu lar tornou-me quase tão ilustre e notável como tu. Quando quis retomar a Cartago em busca de uma situação melhor; ao revelar somente a ti e a nenhum dos meus o meu intento e a minha esperança, hesitaste um tanto por causa do teu inato amor à tua terra natal, onde eu já lecionava. Não pudeste vencer o desejo de um jovem que procurava uma situação que lhe parecia melhor. Então, com a maravilhosa moderação de tua benevolência, de dissuasor passaste a benfeitor. Providenciaste tudo o que me era necessário para a viagem. Tu, o que havias protegido o berço e, se assim posso dizer, o ninho dos meus estudos, sustentaste também meus primeiros esforços, quando quis começar a voar sozinho. Quando embarquei, durante tua ausência e sem avisar-te, não te magoaste por não tê-lo comunicado a ti, como costumava. Não me suspeitaste de orgulho, permaneceste firme na tua amizade e não valeram mais aos teus olhos os filhos abandonados pelo mestre que as intenções íntimas e a retidão do meu coração. 4. Finalmente, se agora desfruto o meu repouso, se rompi as cadeias dos desejos vãos, se tendo descarregado o peso das preocupações já mortas, agora respiro, me reanimo e volto a mim mesmo, se ardentemente busco a verdade, que já começo a encontrar, se confio chegar a essa suma medida, devo-o a ti que me encorajaste, me impeliste e o tornaste realidade. Mas foi mais pela fé que pela razão que compreendi aquele de quem foste instrumento. Efetivamente, quando te expus frente a frente os temores da minha alma e repetidas vezes enfaticamente afirmei que para mim só era boa fortuna aquela que me permitisse lazer para filosofar, que não havia outra vida feliz senão a de viver na filosofia, mas que me retinha o pesado encargo dos meus familiares, cuja vida dependia da minha profissão e ainda por muitas outras necessidades, como também por certa vergonha de minha parte e pelo temor de lançar os meus na miséria, foste tomado de tanta alegria, inflamado de um ardor tão santo por esse modo de vida, que declaraste que se encontrasses um meio de te desvencilhares dos laços daqueles molestos processos, romperia todas as minhas cadeias, ainda que fosse com a partilha do teu patrimônio comigo. 5. Assim, quando partiste, depois de aceso o fogo do nosso ideal, não cessamos mais de suspirar pela filosofia e só pensávamos no gênero de vida que nos seduziu e sobre o qual concordamos entre nós. Perseguíamos constantemente esta ideia, porém menos vivamente. Todavia, pensávamos estar fazendo o bastante. Como ainda não brotara aquela chama que deveria abrasar-nos ao máximo, julgávamos que a que nos aquecia já era a máxima possível. E eis que certos livros bem cheios, como diz Celsino, espalharam sobre nós os bons perfumes da Arábia e destilando sobre a pequena chama algumas poucas gotas de preciosíssimo unguento, provocaram um incêndio incrível, sim Romaniano, realmente incrível, além do que tu podes pensar, e acrescento, mais incrível do que eu mesmo podia suspeitar de mim. Já não me importavam as honras, as pompas humanas, o desejo de vanglória, enfim os incentivos e as amarras desta vida mortal. Rapidamente me concentrei todo em mim mesmo. Confesso que olhei apenas de relance para aquela religião que nos foi ensinada e inculcada até a medula na infância. No entanto era ela que, sem eu saber, me atraía a si. Assim, titubeante, avançando e hesitando, tomo o livro do apóstolo Paulo. Esses homens, dizia a mim mesmo, teriam podido realizar tão grandes coisas, teriam vivido como se sabe viveram, se seus escritos e seus argumentos fossem contrários a tão grande bem? Li-o então todo com a máxima atenção e piedade. 6. Então, já banhado por uma fraca luz, manifestou-se-me tão radiante o semblante da filosofia, que, se eu pudesse mostrá-la não digo a ti, que sempre ardeste de sede desta desconhecida, mas ao teu adversário, de quem não sei se é para ti mais um estímulo que um obstáculo, este rejeitaria e abandonaria seus banhos, seus deliciosos jardins, seus delicados e refinados banquetes, seus histriões, enfim tudo o que poderosamente o impele para toda sorte de prazeres e voaria para a sua beleza, cheio de admiração, ofegante e ardente como um amante carinhoso e puro. Pois é preciso admitir que também ele tem certa beleza de alma ou antes uma semente de beleza, que no seu esforço por florescer com a verdadeira beleza brota tortuosa e disforme entre a sordidez dos vícios e os espinheiros das opiniões falazes, mas não cessa de produzir folhas e, enquanto possível, manifestar-se àqueles poucos cujo olhar penetrante e atento o distingue entre a folhagem. Daqui essa hospitalidade, daqui essa polidez que condimenta seus banquetes, daqui essa elegância, esse esplendor e aparência apuradíssima de todas as coisas e essa urbanidade que sobre tudo derrama sua graça velada. Exortação à filosofia III,7. Isso é o que vulgarmente se chama filocalia. Não desprezes o termo por causa do seu uso comum. Pois filocalia e filosofia são quase sinônimos e querem parecer termos da mesma família e de fato o são. Pois, o que é filosofia? O amor da sabedoria. Que é filocalia? O amor da beleza. Pergunta aos gregos. E o que é a sabedoria? Por acaso não é a verdadeira beleza? Portanto a filosofia e a filocalia são irmãs, filhas do mesmo pai. Mas a filocalia, arrancada do seu céu pelo engodo da volúpia e presa na gaiola do vulgar, conservou todavia a semelhança do nome para advertir o passarinheiro a não desprezá-la. Sua irmã, que voa livremente, muitas vezes a reconhece, ainda que sem asas, suja e miserável, mas raramente a liberta, pois a filocalia não conhece sua origem, a filosofia sim. Licêncio poderá contar-te toda esta fábula - pois de repente virei Esopo - mais agradavelmente num poema. Ele é um poeta quase perfeito. Portanto, se teu adversário, amante da falsa beleza, pudesse com olhos curados e puros pudesse contemplar um pouco a verdadeira beleza, com que prazer se lançaria no seio da filosofia! E ao te encontrar ali, não te abraçaria como a um verdadeiro irmão? Admiras-te e talvez rias. O que aconteceria se eu te explicasse isso como gostaria? Se pudesses pelo menos ouvir a voz da filosofia, uma vez que ainda não podes ver-lhe a face? Certamente te admirarias, mas não haverias de rir e não te desesperarias. Acredita-me, não se deve desesperar de ninguém, menos ainda de homens como esse. Há muitos exemplos. Este gênero de pássaros some facilmente, mas também facilmente volta, para grande surpresa de muitos que permanecem presos. 8. Mas voltemos a nós mesmos, Romaniano, para filosofar. Devo agradecer-te. Teu filho já começa a filosofar. Procuro refreá-lo para que antes se torne mais robusto e mais forte, aplicando-se às disciplinas necessárias, das quais, se bem te conheço, não deve temer ser alheio. Só te desejo um vento de liberdade. Pois o que direi das tuas disposições naturais? Oxalá não fossem tão raras entre os homens quanto são certas em ti! Restam dois vícios e escolhos que impedem encontrar a verdade, mas que não me preocupam em relação a ti. Todavia, receio que te menosprezes ou desesperes de encontrar a verdade ou que imagines tê-la encontrado. O primeiro escolho, se existe, talvez esta discussão te livrará dele. Pois muitas vezes te indignaste contra os Acadêmicos, e isso com tanto mais veemência quanto eras menos instruído nesse assunto, porém com tanto mais espontaneidade quanto mais eras inflamado de amor à verdade. Assim, com o teu apoio, discutirei com Alípio e facilmente te persuadirei do que pretendo, pelo menos com probabilidades, pois só descobrirás a verdade se te entregares totalmente à filosofia. Quanto ao segundo obstáculo, isto é, o de presumires talvez ter encontrado algo, ainda que já te separaste de nós procurando e duvidando, se voltou ao teu espírito alguma superstição, certamente será expulsa, quando eu te enviar alguma discussão nossa sobre religião ou quando conversar contigo de viva voz sobre muitas coisas. 9. Atualmente não faço outra coisa que purificar-me de opiniões vãs e perniciosas. Por isso não duvido de que o meu estado atual seja melhor que o teu. Só há um ponto em que invejo a tua sorte: é que só tu desfrutas da presença do meu Luciliano. Ou tens inveja de mim porque eu disse "meu"? Mas ao fazê-lo, o que é que eu disse senão que é teu e de todos nós que somos um. E o que deverei pedir-te para mitigar a minha saudade? Será que o mereço? Sabes, porque é teu dever. Mas agora digo a ambos: evitai imaginar que sabeis alguma coisa a menos que o saibais do mesmo modo como sabeis que a soma de um, dois, três e quatro é dez. Mas guardai-vos também de julgar que não podeis encontrar a verdade na filosofia ou que a verdade não pode ser conhecida desse modo. Acreditai-me, ou melhor, acreditai naquele que disse: Procurai e achareis. Não se deve desesperar de conhecer a verdade nem de chegar a um conhecimento mais evidente que o dos números. Mas voltemos à nossa questão. Já começo a temer um pouco tardiamente que esta introdução está excedendo a medida, o que não é um defeito leve, pois a medida é sem dúvida divina. Mas ela nos passa despercebida quando conduz suavemente. Serei mais cauteloso, quando for sábio. QUARTA DISCUSSÃO Discussão entre Agostinho e Licêncio Síntese da doutrina acadêmica IV, 10. Após a discussão anterior, que apresentamos no primeiro livro, fizemos uma pausa de quase sete dias, repassando os três livros de Virgílio que seguem o primeiro, estudando-os segundo a conveniência do momento. Mas nesse trabalho Licêncio tanto se aperfeiçoou ao estudo da poesia, que me pareceu necessário refreá-lo um pouco. Não se deixava facilmente afastar desta ocupação por nenhuma outra. Mas, finalmente, quando exaltei o quanto pude a luz da filosofia, consentiu em retomar a questão dos Acadêmicos que havíamos adiado. Por acaso o dia amanheceu tão bonito que nada parecia mais propício para dar serenidade aos nossos espíritos. Levantamo-nos mais cedo que de costume e tratamos com os camponeses os trabalhos mais urgentes. Alípio começou: -Antes de ouvir a vossa discussão sobre os Acadêmicos, gostaria que me fosse lido o que foi tratado na minha ausência, pois como a presente disputa é ocasionada pela anterior, de outro modo não posso evitar errar ou em todo caso de ter de fazer grandes esforços ao ouvir-vos. Assim foi feito e nisso passamos quase toda a manhã. Depois resolvemos terminar o passeio no campo e voltar para casa. Interveio Licêncio: - Se não te aborrecer a repetição, pediria que, antes do almoço, me expusesses brevemente toda a doutrina dos Acadêmicos, para que não me escape nada do que favorece a minha posição. - Faça-o, respondi eu, e isso com tanto mais prazer que absorto nisso comerás menos. Licêncio: - Não te fies nisso, pois observei que muitos, e especialmente meu pai, têm tanto mais apetite quanto mais sobrecarregados estiverem de preocupações. Além disso, não observaste que, quando eu estava pensando nessas questões de métrica, a minha concentração não dava segurança à mesa? Costumo perguntar-me: por que comemos com mais apetite quando estamos com a mente absorta em outras coisas? Ou o que é que nos urge tanto quando estamos com as mãos e os dentes ocupados? - Ouve antes, atalhei eu, o que me pediste a respeito dos Acadêmicos, para que, ocupado tu com essas questões de medida, não tenha eu de suportar a tua falta de medida não só na comida, mas também nas tuas questões. Se eu ocultar algo no interesse da minha causa, Alípio o denunciará. - É necessária a tua boa-fé, disse Alípio, pois, se tivéssemos de temer que nos ocultasses algo, creio que seria difícil surpreender o homem de quem aprendi essas coisas, como sabem todos os que me conhecem. Tanto mais que, ao expor a verdade, não atenderás menos à retidão do teu coração que ao desejo da vitória. V,II. Agirei de boa-fé, pois tens direito de exigi-lo. Os Acadêmicos afirmavam que o homem não pode alcançar a ciência das coisas referentes à filosofia - Carnéades recusava ocupar-se de qualquer outra coisa - mas que pode ser sábio e que todo o dever do sábio, como tu mesmo, Licêncio, o expuseste naquela discussão, consiste na busca da verdade. Daqui resulta que o sábio não deve dar seu assentimento a nada, pois necessariamente erraria, o que para o sábio é um crime, se desse seu assentimento a coisas incertas. Não se limitavam a afirmar que tudo é incerto, mas também apoiavam sua tese com numerosos argumentos. Parece que tiraram sua doutrina de que a verdade é inacessível de uma definição do estoico Zenão, segundo a qual só pode ser percebida como verdadeira uma representação que é impressa de tal modo na alma pelo objeto de onde se origina que não pode sê-lo por um objeto donde não se origina. Ou mais breve e claramente: verdadeiro pode ser reconhecido por certos sinais que falso não pode ter. Os Acadêmicos empenharam-se com todas as forças em demonstrar que esses sinais não podem encontrar-se jamais. Os desacordos entre os filósofos, as ilusões dos sentidos, os sonhos e os delírios, os sofismas e os sorites, tudo isso foi usado em defesa da sua tese. E como tinham aprendido do mesmo Zenão que não há nada mais desprezível que a opinião, deduziram com muita habilidade que se nada podia ser percebido e opinar era totalmente desprezível, o sábio nunca devia aprovar nada. 12. Isso desencadeou uma grande hostilidade contra eles, pois parecia implicar que quem nada aprova nada devia fazer. Assim, parecia que os Acadêmicos condenavam o seu sábio, que, segundo eles, nada aprova, ao perpétuo sono e ao abandono de todos os seus deveres. Então, pela introdução de certo sistema de probabilidade, que também chamavam verossimilhança, afirmaram que o sábio de modo algum deixa de cumprir os seus deveres, pois tem seu princípio de conduta. Mas a verdade, segundo eles, permanece oculta ou confusa, seja por causa de certas obscuridades naturais, seja por causa da semelhança enganosa das coisas. E acrescentavam que mesmo a recusa ou a suspensão do assentimento era uma grande atividade do sábio. Creio que em poucas palavras expus todo o sistema, como pediste, e que não me afastei da regra que havias fixado, Alípio, ou seja, agi de boa-fé, como se diz. Se disse alguma coisa inexata ou talvez omiti algum ponto, não o fiz voluntariamente. Portanto, pelo testemunho da minha consciência, houve boa-fé. O homem que se engana deve ser ensinado, o que engana evitado. O primeiro necessita de um bom mestre, o segundo de um discípulo precavido. 13. Tornou Alípio: - Agradeço-te por teres satisfeito o desejo de Lícêncio e dispensado a mim do encargo que me fora imposto. Não tinhas de temer mais a omissão de alguma coisa de tua parte, com a intenção de provar-me - pois que outra razão poderias ter tido? - que eu de ser obrigado a corrigir-te. Assim, menos para preencher uma lacuna da tua exposição que para cumprir a tarefa que incumbe ao que interroga, aborrece-te explicar a diferença entre a velha e a nova Academia? - Confesso que me aborrece, respondi eu. Não posso negar que o ponto que tocaste é da máxima importância para a nossa questão. Assim me farias um favor se distinguisses estes dois nomes e explicasses a origem da nova Academia, enquanto eu descanso um pouco. Respondeu Alípio: - Isso me levaria a crer que também a mim queres afastar do almoço, se não recordasse que há pouco Licêncio te atemorizou e seu pedido não nos tivesse imposto a obrigação de lhe esclarecer antes da refeição todas as dificuldades da questão. E quando ele ia prosseguir, nossa mãe - pois já tínhamos chegado à nossa casa - começou a chamar-nos com tal insistência para o almoço, que não houve mais lugar para nenhum discurso. Gênese da nova Academia e sua relação com a antiga VI,14. Depois que nos alimentamos o suficiente para satisfazer a fome, voltamos ao campo. Retomou Alípio: - Obedecerei ao teu desejo, nem ousaria recusar-me. Se nada omitir, será graças ao teu ensinamento, como também à minha memória, e se talvez cometer algum erro, tu me corrigirás, para que no futuro eu não tema assumir tarefa semelhante. Parece-me que a dissidência que deu origem à nova Academia não se dirigia tanto contra a doutrina antiga como contra os estoicos. Nem se pode considerá-la como uma dissidência, porque se tratava apenas de refutar e discutir uma nova opinião introduzida por Zenão. Pois não foi sem razão que se pensou que a doutrina do não conhecimento da verdade, ainda que não fosse objeto de controvérsias, não era estranha aos antigos Acadêmicos. Isso pode ser facilmente provado pela autoridade do próprio Sócrates, de Platão e dos outros antigos. Estes acreditaram poder guardar-se do erro na medida em que não dessem seu assentimento temerariamente. Todavia não introduziram nas escolas a discussão dessa questão nem pesquisaram especificamente se era ou não possível conhecer a verdade. Este foi o novo problema bruscamente lançado por Zenão, afirmando que só se podia conhecer aquilo que de tal modo é verdadeiro que se distingue do falso por marcas de dessemelhança, e que o sábio não devia opinar. Tendo ouvido isso, Arcesilau negou que o homem pode encontrar algo do gênero, dizendo que a vida do sábio não devia ser exposta ao naufrágio da opinião. Donde concluiu que não se deve dar assentimento a nada. 15. Mas quando a Academia antiga parecia mais favorecida que combatida, surgiu Antíoco, discípulo de Filo, que, na opinião de muitos, mais ávido de glória que da verdade, pôs em conflito as doutrinas das duas Academias. Dizia que os novos Acadêmicos tinham tentado introduzir uma doutrina insólita e muito afastada da dos Acadêmicos antigos. Em favor da sua posição, aduziu o testemunho dos antigos físicos e de outros filósofos. Atacava também os Acadêmicos, que afirmavam seguir o verossímil, quando confessavam ignorar a própria verdade. Também havia reunido grande número de argumentos, que julgo poder omitir aqui. Todavia não defendia nada com mais afinco que a opinião de que o sábio pode conhecer a verdade. Acho que foi esta a controvérsia entre os antigos e os novos Acadêmicos. Se não for assim, rogo-te que informes com toda a exatidão a Licêncio, o que te peço em meu e seu nome. Se, ao contrário, as coisas são como expus, prossegui na discussão que iniciastes. Verossimilhança e conhecimento do verdadeiro VII,16. Tomei então a palavra: - Licêncio, até quando continuarás parado nesta conversa que já se prolonga mais do que eu esperava? Ouviste quem são os teus Acadêmicos? Sorrindo envergonhado e um tanto perturbado pela minha interpelação, disse ele: -Arrependo-me de ter sustentado com tamanha ênfase contra Trigécio que a vida feliz consiste na busca da verdade. Pois esta questão de tal modo me perturba que se não chego a ser infeliz, certamente devo ser considerado digno de pena por vós, se tendes algum sentimento de humanidade. Mas por que me atormento tolamente? Por que me abalar se me apoio numa causa tão boa? Só cederei à verdade. - Agradam-te os novos Acadêmicos? - disse eu. - Muitíssimo - respondeu Licêncio. - Logo te parecem dizer a verdade? - retruquei. Licêncio já estava para concordar, mas, ao ver o sorriso de Alípio, tornou-se mais cauteloso, hesitou um pouco e disse: - Repete a pergunta! Respondi: - Crês que os Acadêmicos dizem a verdade? Depois de novo prolongado silêncio, Licêncio respondeu: - Não sei se é a verdade, mas é provável. Já não vejo mais o que seguir. Disse eu: - Sabes que eles chamam o provável de verossímil? Licêncio: - Assim parece. - Portanto, a opinião dos Acadêmicos é verossímil? Indaguei eu. - Sim, respondeu ele. Continuei eu: - Presta atenção ao seguinte: se alguém, ao ver teu irmão, afirma que ele é semelhante ao teu pai, que não conhece, não te parece que tal pessoa é louca ou tola? Licêncio permaneceu calado certo tempo e por fim respondeu: - Isso não me parece absurdo. 17. Quando ia começar a responder-lhe, ele atalhou: - Espera um pouco. E sorrindo: - Dize-me, já estás certo da tua vitória? - Suponhamos que sim, disse eu. Mas nem por isso deves abandonar a tua causa, tanto menos que a nossa discussão foi travada com a finalidade de exercitar-te e de aperfeiçoar o teu espírito. Licêncio: - Porventura li eu os Acadêmicos, ou fui formado em todas estas disciplinas com as quais me enfrentas? - Nem aqueles que por primeiro defenderam esta opinião tinham lido os Acadêmicos. E se te falta a informação e a riqueza de muitos conhecimentos, nem por isso a tua inteligência há de ser tão impotente que logo sucumba ao ímpeto das minhas poucas palavras e perguntas. Já estou começando a recear que Alípio venha a substituir-te antes que eu queria, adversário contra o qual não avançarei com tanta segurança. Licêncio: - Então, oxalá seja eu vencido logo para que finalmente vos ouça e mais do que isso, vos veja disputando, pois nada me daria mais prazer que esse espetáculo. Preferistes recolher esses discursos a espalhá-los, pois o estilo recolhe o que sai da boca, para que nada caia por terra, como se diz. Com isso também poderei ler-vos. Mas, não sei por que, quando se têm diante dos olhos os adversários que discutem entre si, uma boa disputa penetra o espírito, se não com mais proveito, certamente com mais agrado. 18. -Agradecemos-te, disse eu. Mas a tua súbita alegria fez com que deixasses escapar imprudentemente a opinião de que nenhum espetáculo te poderia ser mais agradável. Que seria, então, se visses indagando a verdade e discutindo conosco teu pai, a quem, depois de tão prolongada sede, ninguém superaria no ardor para abeberar-se nas fontes da filosofia? Se já para mim isso seria o cúmulo da felicidade, o que não sentirias e dirias tu? A estas palavras Licêncio não conteve as lágrimas. Quando pôde falar, ergueu as mãos, olhou para o céu e exclamou: - Quando, meu Deus, verei isso? Mas não há nada que não se possa esperar de ti! Estávamos quase todos com os olhos rasos d'água, a ponto de esquecer a discussão, quando eu, lutando comigo mesmo, mal me contendo, disse: - Coragem, recobre tuas forças! Já muito antes eu te advertira que te preparasses em vista de tua futura defesa da Academia. Não creio, pois, que "antes do som da trombeta o tremor se apodere de teus membros", ou que o desejo de ver os outros combaterem te faça tão rapidamente querer ser prisioneiro. Então Trigécio, ao ver-nos de semblantes já serenados, disse: - Por que este homem tão virtuoso não desejaria que Deus lhe conceda este favor antes de tê-lo pedido? Acredita-me, Licêncio, como não encontras o que responder e ainda desejas ser vencido, parece-me ter pouca confiança. Todos rimos. E Licêncio retrucou: - Fala, então, tu que és feliz sem encontrar a verdade, e certamente sem procurá-la. 19. Divertiu-nos a jovialidade dos rapazes. Prossegui eu: - Volta à minha pergunta e segue com mais firmeza e vigor, se puderes. Licêncio: - Estou pronto em quanto posso. Pois bem, se o homem que viu meu irmão soube por ouvir dizer que ele é parecido com o pai, pode ser considerado louco ou tolo, se acreditar? - Mas pelo menos pode ser considerado insensato? Perguntei Licêncio: - Não, desde que não afirme sabê-lo, Pois se considera provável o que ouviu repetir, não pode ser acusado de temeridade. Continuei: - Examinemos um pouco a questão em si e representemo-la aqui ante nossos olhos. Suponhamos que o tal homem de que falamos está presente aqui. Aparece teu irmão. Nosso homem indaga: - De quem é filho este rapaz? - De certo Romaniano, respondem-lhe. - Como é parecido com o pai! Exclama o homem. Era bem verdade o que me dissera. Então tu ou algum outro pergunta: - Então conheces Romaniano? Responde o homem: - Não o conheço, mas parece-me que seu filho é parecido com ele. Poderá alguém conter o riso diante disso? Licêncio: - Certamente que não. - Logo, já vês a consequência que daqui segue, continuei. Licêncio: - Já faz tempo que a vejo. Todavia gostaria de ouvir de ti a conclusão, pois é necessário que comeces a alimentar a quem aprisionaste. Respondi eu: - Por que não o faria eu? A própria evidência clama que de maneira semelhante devemos rir dos teus Acadêmicos que afirmam seguir na vida o que se assemelha à verdade, quando ignoram a própria verdade. Intervenção de Trigécio e convite a Alípio para que tome as defesas dos Acadêmicos VIII,20. Tomou a palavra Trigécio: - A precaução dos Acadêmicos parece-me muito diferente da tolice do homem de que falaste. Pois é através de raciocínios que eles chegam ao que dizem ser verossímil, enquanto aquele insensato seguiu a fama, cuja autoridade é a coisa mais desprezível. - Como se não fosse mais tolo, intervim eu, se ele dissesse: não conheço o pai dele nem soube por ouvir dizer quão semelhante é o filho ao pai, contudo acho que é parecido. Trigécio: - Sem dúvida seria mais tolo. Mas a que vem isso? - Tais são, respondi, aqueles que dizem: não conhecemos a verdade, mas o que vemos é semelhante ao que não conhecemos. Trigécio: - Provável, dizem eles. Repliquei: - Como dizes isso? Negas que eles falam de verossímil? Trigécio: - Só quis dizer isso para excluir a comparação. Pois me parece que a noção da fama ou ouvir dizer foi indevidamente introduzida em nossa questão, visto que os Acadêmicos não se fiam nem dos olhos humanos, muito menos dos mil fantásticos olhos da fama, no dizer dos poetas. Mas afinal serei eu o defensor da Academia? Ou nesta questão tendes inveja da minha segurança? Aqui está Alípio. Oxalá sua chegada nos dê folga. Já há tempo sabemos que não é sem razão que o temes. 21. Segue-se um silêncio, e os dois fixaram o olhar em Alípio, que disse: - Eu quisera, certamente, na medida das minhas forças, ajudar a vossa causa, se vossa sorte não me fosse motivo de temor. Mas, se não me enganar a esperança, facilmente afugentarei este temor. Consola-me ao mesmo tempo o fato de que o atual adversário dos Acadêmicos quase assumiu o encargo de Trigécio vencido, e agora segundo admitis, é provável a sua vitória. O que mais receio é não poder evitar a acusação, por um lado, de negligência por abandono do meu ofício e, por outro, de presunção por invadir uma função alheia, pois creio que não esquecestes de me terdes confiado o papel de juiz. Trigécio: - São duas coisas diferentes. Por isso te pedimos aceitar ser desonerado por um momento do encargo de juiz. - Não me recusarei, respondeu Alípio, para que não aconteça que, desejando evitar a presunção e a negligência, caia no orgulho, o mais horrível dos vícios, se conservasse mais tempo que o permitis, a honra que me concedestes. Discussão entre Agostinho e Alípio Importância do problema da possibilidade de encontrar a verdade IX,22. Alípio: - Gostaria, pois, que dissesses, bom acusador dos Acadêmicos, qual é o teu papel, ou seja, em favor de quem os atacas. Receio que, ao refutar os Acadêmicos, queiras mostrar-te um Acadêmico. Respondi: - Bem sabes, creio, que há duas espécies de acusadores. Pois se Cícero disse com excessiva modéstia que era acusador de Verres, para ser defensor dos Sícilianos, daqui não se segue que quem acusa alguém necessariamente esteja defendendo um outro. Alípio: - Tens pelo menos algum fundamento onde apoiar a tua opinião? Respondi: - É fácil responder a esta pergunta, sobretudo porque ela não me colhe de surpresa. Já refleti muito e longamente sobre todas essas questões. Por isso, Alípio, ouve o que, segundo creio, já sabes muito bem. Não quero que esta discussão prossiga só pelo prazer de discutir. Basta o que ensaiamos com estes jovens, quando a filosofia, por assim dizer, brincou livremente conosco. Deixemos de lado as fábulas infantis. Trata-se da nossa vida, dos costumes e da alma. Esta espera superar os perigos de todas as falácias e depois de abraçada a verdade, como que voltando à região da sua origem, triunfar sobre as paixões e assim, desposando a temperança, reinar, mais segura de voltar ao céu. Entendes o que quero dizer. Abandonemos tudo isso. "É preciso preparar armas para um valente guerreiro”. Não há nada que eu tenha desejado menos que ver surgir entre os que tanto tempo conviveram e conversaram entre si algo que dê origem a um novo conflito. Mas por causa da memória, que é guarda infiel das coisas que pensamos, quis que fossem recolhidas por escrito as questões que frequentemente tratamos entre nós para que estes jovens aprendam a refletir sobre estes assuntos e, ao mesmo tempo, se exercitem no ataque e na defesa. 23. Não sabes, pois, que ainda não tenho nada como certo e que os argumentos e disputas dos Acadêmicos me impedem de procurá-lo? Pois não sei de que modo me fizeram admitir como provável, para não fugir da sua expressão, que o homem não pode encontrar a verdade. Isso me deixara preguiçoso e indolente e eu não ousava buscar o que homens tão inteligentes e doutos não conseguiram encontrar. Se não conseguir convencer-me da possibilidade de descobrir a verdade tão fortemente quanto os Acadêmicos estavam convencidos do contrário, não ousarei procurar e não tenho nada a defender. Portanto, deixa de lado a tua pergunta, por favor. Discutamos, antes, entre nós, com toda a perspicácia, se é possível encontrar a verdade. De minha parte, creio ter já muitos argumentos contra a doutrina dos Acadêmicos. Por ora a nossa diferença de opinião se reduz a isto: eles acham provável que não se pode encontrar a verdade e eu julgo provável que se pode encontrá-la. Pois ou a ignorância da verdade me é particular, se eles fingiam, ou então é comum a mim e a eles. Caráter substancial e não meramente verbal da controvérsia sobre o "verossímil" X,24. Alípio: - Agora prosseguirei com segurança, pois vejo que serás menos um acusador que um auxiliar. Assim, para não nos afastarmos demasiado do assunto, peço-te que tratemos antes que esta discussão, em que tomo o lugar daqueles que cederam perante ti, não degenere em controvérsia de palavras, o que, por insinuação tua e apoiados na autoridade de Túlio, muitas vezes declaramos ser totalmente ignóbil. Com efeito, se não me engano, tendo Licêncio dito que lhe agradava a opinião dos Acadêmicos sobre a probabilidade, perguntaste-lhe - e ele confirmou que sim - se sabia que eles também a chamavam de verossimilhança. E bem sei, por tê-lo aprendido de ti mesmo, que as opiniões dos Acadêmicos não te são desconhecidas. Se, como eu disse, isso está gravado no teu espírito, não entendo por que te prendes a questões de palavras. Respondi: - Não se trata, acredita-me, de uma simples querela de palavras, mas de uma importante controvérsia sobre a própria realidade das coisas. Não julgo que os Acadêmicos tenham sido homens que não sabiam dar os nomes certos às coisas. Parece-me que escolheram tais palavras para, ao mesmo tempo, ocultar a sua doutrina aos medíocres e revelá-la aos espíritos mais penetrantes. Explicarei o porquê e o como da minha opinião depois de discutir o que se lhes atribui e os faz considerar como inimigos do conhecimento humano. Assim, estou muito feliz que hoje a nossa conversação tenha chegado a um ponto em que aparece claramente qual a questão discutida entre nós. Parece-me que os Acadêmicos foram homens absolutamente sérios e prudentes. E se há algo que agora discutiremos, será contra aqueles que julgaram que os Acadêmicos se opunham à descoberta da verdade. Mas não vás imaginar que eu tenha medo deles. Não terei dúvida em investir também contra eles, se o que lemos nos seus livros o sustentaram por convicção e não para ocultar a sua opinião a fim de evitar que certos aspectos sagrados da verdade fossem expostos a espíritos corrompidos e, por assim dizer, profanos. É o que eu faria hoje, se o ocaso do sol não nos obrigasse a voltar para casa. Aqui terminou a discussão daquele dia. QUINTA DISCUSSÃO O autêntico significado do conceito acadêmico de "verossímil" XI,25. O dia seguinte não amanheceu menos agradável e sereno. Todavia, foi difícil desembaraçar-nos das ocupações domésticas, pois consumimos grande parte do dia escrevendo cartas. Quando já restavam apenas duas horas, fomos ao campo, pois convidava-nos a extrema limpidez do céu e não queríamos perder o pouco tempo que ainda tínhamos. Depois que chegamos à árvore costumeira e todos se tinham acomodado, comecei: - Rapazes, como hoje não podemos tratar de uma grande questão, gostaria que me recordassem como ontem Alípio respondeu à perguntinha que vos perturbou. Respondeu Licêncio: - A resposta foi tão curta, que não há problema em recordá-la. Mas cabe a ti julgar o seu peso. Parece-me que, sendo clara a questão, ele te impediu de levantar uma discussão de palavras. - Percebestes bem, tornei eu, o sentido e o alcance dessa resposta? Licêncio: - Creio ter entendido o que significa, mas peço-te que a expliques um pouco mais. Pois muitas vezes te ouvi dizer que numa discussão é vergonhoso deter-se em questões de palavras, quando já não há dúvida quanto às coisas em si. Mas isso é demasiado sutil para que se me peça uma explicação a mim. 26. - Ouvi, pois, continuei, de que se trata. Os Acadêmicos chamam provável ou verossímil o que nos pode mover a agir sem assentimento. Quando digo sem assentimento, quero dizer de tal modo que sem ter por verdadeiro o que fazemos e julgando ignorar a verdade, não deixamos de agir. Por exemplo, se na noite passada, com o céu tão desanuviado e puro, alguém nos perguntasse se hoje nasceria um sol tão radioso, creio que teríamos respondido: não sabemos, mas parece que sim. Tal me parece ser, diz o Acadêmico, tudo o que julguei dever chamar provável ou verossímil. Se quiseres chamá-lo com outro nome, não me oponho. Basta-me saber que entendeste bem o que digo, isto é, a que coisas dou estes nomes. "Pois o sábio não deve ser um artífice de palavras, mas um investigador da realidade”. Compreendestes como me foram arrancados das mãos os brinquedos com que vos exercitava? Ambos responderam que sim, mas a expressão do rosto deles pedia uma resposta minha. Disse-lhes então: - Por acaso pensais que Cícero, de quem são estas palavras, era tão ignorante da língua latina que desse nomes pouco adequados às coisas que tinha em mente? XII,27. Trigécio: - Agora que a questão real está clara, não queremos levantar nova discussão de palavras. Vê, antes, o que tens a responder àquele que nos libertou, em vez de tentar novamente atacar-nos. Licêncio: - Um momento, por favor, pois me vem à mente uma luz pela qual vejo que não se deveria ter-te arrebatado um argumento tão forte. Depois de refletir um momento em silêncio, continuou: - Nada me parece mais absurdo que alguém dizer que segue o verossímil quando ignora a verdade. E neste ponto nem a tua comparação me perturba. Se me perguntarem se a presente condição do tempo não ameaça chuva para amanhã, respondo que não é verossímil, porque não nego que conheço alguma verdade. Pois sei que esta árvore não pode subitamente tornar-se uma árvore de prata e há muitas outras coisas que sem temeridade afirmo conhecer, às quais vejo serem semelhantes às que chamo verossímeis. Mas tu, Carnéades, ou outra peste grega, para não falar dos nossos - pois por que hesitarei em passar para o partido de quem sou prisioneiro por direito de vitória? - quando dizes não conhecer nenhuma verdade, donde sabes que segues o verossímil? Efetivamente não posso dar-lhe outro nome. O que discutir com um homem que não pode sequer falar? 28. Tomou a palavra Alípio: - Não temo os desertores. E muito menos os teme Carnéades, contra quem, levado por uma leviandade, não sei se juvenil ou pueril, julgaste dever lançar maldições em vez de um argumento. Pois, para confirmar a sua opinião que sempre se apoiou somente no provável, lhe seria fácil e suficiente alegar contra ti que nos encontramos tão longe de encontrar a verdade, que tu mesmo podes ser uma prova decisiva disso, visto que de tal modo foste abalado por uma simples pergunta, que não sabias mais onde pôr o pé. Mas isso, como também a questão da certeza que há pouco afirmavas ter em relação à árvore, deixemo-lo para outra ocasião. Embora já tenhas escolhido outro partido, contudo deves instruir-te diligentemente sobre o que eu disse um pouco antes. Pois parece-me que ainda não penetramos no âmago da questão de saber se é possível encontrar a verdade. Mas achei que no umbral da minha defesa devia ser proposta a questão em relação à qual eu te vira abatido e prostrado. Isto é, se não se deve procurar o verossímil ou o provável - ou outro nome que se lhe queira dar - com que se dão por satisfeitos os Acadêmicos. Pois se tu já te consideras um perfeito conhecedor da verdade, pouco me importa. Se depois não fores ingrato ao meu patrocinador, talvez me ensinarás essas coisas. Elucidação do problema a ser discutido XIII,29. Como Licêncio, ruborizado, temesse o ataque de Alípio,intervim: - Preferiste dizer tudo de uma vez, Alípio, a discutir, como se deve com estes jovens que não sabem falar. Respondeu Alípio: - De há muito tanto eu como os demais sabemos todos, e agora o demonstras com o exercício da tua profissão, que és perito na arte da palavra. Assim, gostaria que primeiro explicasses a utilidade da pergunta de Licêncio. A meu ver, ou é supérflua, e neste caso seria igualmente supérfluo dar-lhe uma resposta mais longa, ou parece oportuna e eu não sei responder a ela, e neste caso te peço que não te moleste exercer o ofício de mestre. - Recordas-te, disse eu, que ontem prometi que trataríamos mais tarde da questão das palavras. Agora o sol manda-me recolher nas cestas o que ofereci como jogos aos rapazes, tanto mais que o exponho mais como ornato que para venda. Mas antes que as trevas, que costumam proteger os Acadêmicos, nos impeçam de escrever, quero que decidamos claramente entre nós a questão de que devemos tratar amanhã. Assim, responde-me se achas que os Acadêmicos tiveram uma doutrina certa sobre a verdade e não quiseram transmiti-la imprudentemente a desconhecidos ou a espíritos não purificados, ou realmente tiveram as opiniões que resultam das suas discussões. 30. Alípio: - Não quero afirmar levianamente o que eles pensavam. Quanto ao que se pode deduzir dos livros, sabes melhor que eu em que termos costumavam propor sua doutrina. Mas se me perguntares pela minha opinião, creio que ainda não se encontrou a verdade. Acrescento ainda, para responder ao que me perguntavas com relação aos Acadêmicos, que julgo que não se pode encontrar a verdade. Esta não é somente a minha opinião arraigada que quase sempre professei como sabes, mas também a de grandes e excelentes filósofos, perante os quais nos obrigam a curvar a cabeça tanto a fraqueza do nosso espírito como a sagacidade deles, impossível, ao que parece, de superar. - É isso o que eu queria, disse eu. Pois temia que fôssemos da mesma opinião e assim nossa discussão resultasse incompleta, por falta de alguém que, tomando o partido contrário, nos obrigasse a discutir e examinar a questão com toda a diligência possível. Se assim fosse, eu já estava pensando em pedir-te que assumisses a defesa dos Acadêmicos, afirmando que não só disputaram, mas também pensaram que não se pode conhecer a verdade. Trata-se, portanto, de saber entre nós se, segundo os argumentos deles, é provável que nada se pode conhecer e a nada se deve dar assentimento. Se conseguires demonstrar isso, sem dificuldade me darei por vencido. Mas se eu demonstrar que é muito mais provável que o sábio pode chegar à verdade e que não se deve sempre suspender o assentimento, creio que não terás como recusar-te a passar para a minha opinião. A proposta agradou a Alípio e aos presentes. Já envolvidos pelas sombras da noite, voltamos para casa. LIVRO TERCEIRO SEXTA DISCUSSÃO Necessidade da fortuna para tornar-se sábio 1,1. No dia seguinte ao daquela discussão contida no segundo livro, reunimo-nos nos banhos, pois o tempo estava muito sombrio para descer ao campo. Comecei assim: - Creio que já entendestes suficientemente bem qual a questão que resolvemos discutir. Mas, antes de abordar a minha tese, peço que de bom grado ouçais algumas palavras, não alheias ao nosso assunto, sobre a esperança, a vida, o propósito que nos anima. Creio que nossa tarefa, não banal ou supérflua, mas necessária e suprema, é procurar a verdade com todo empenho. Nisso estamos de acordo Alípio e eu. Com efeito, os outros filósofos julgaram que o seu sábio encontrara a verdade. Os Acadêmicos afirmaram que o sábio deve fazer todo o esforço para encontrá-la e de fato o faz com toda a dedicação. Mas, como a verdade está oculta ou confusa, para orientar a sua vida, devia seguir o que lhe parecesse provável ou verossímil. Tal foi também o resultado da vossa discussão de ontem. Efetivamente, um afirma que o homem alcança a felicidade pela descoberta da verdade, enquanto para outro basta buscá-la diligentemente. Portanto, está fora de qualquer dúvida para qualquer um de nós que não há nada que devamos antepor a essa tarefa. Assim, pergunto-vos: como foi o dia que tivemos ontem? Quisestes dedicá-lo aos vossos estudos. Tu, Trigécio, deleitaste-te com os poemas de Virgílio, e Licêncio dedicou-se à composição de versos, paixão que o inflama, de tal modo que foi principalmente por causa dele que julguei necessário instituir este discurso, para que a filosofia ocupe e reclame no seu espírito - pois já é tempo - um espaço maior que a poesia e qualquer outra disciplina. II,2. Mas dizei-me, não lamentastes a nossa sorte ontem? Fomos dormir com a ideia de levantar-nos no dia seguinte para nos dedicarmos à questão adiada e a nada mais. Todavia apareceram tantos afazeres domésticos inadiáveis que nos ocuparam de tal modo que mal nos restaram as duas últimas horas do dia para nos recolhermos. Assim, sempre foi minha opinião que o homem que já alcançou a sabedoria não tem necessidade de nada, mas para tornar-se sábio a fortuna lhe é muito necessária. Mas talvez Alípio tenha outra ideia. Alípio: - Ainda não entendi bem qual a importância que atribuis à fortuna. Se para desprezá-la julgas que ela mesma é necessária, acompanho-te nesta opinião. Se, ao contrário, o que concedes à fortuna consiste em dizer que sem sua permissão não se pode prover às necessidades corporais, não concordo. Pois, ou quem ainda não é sábio mas aspira à sabedoria pode, apesar da oposição da fortuna, adquirir o que é necessário para a vida, ou devemos conceder que a fortuna domina também toda a vida do sábio, visto que este não pode renunciar às coisas necessárias ao corpo. 3. - Dizes, portanto, repliquei, que a fortuna é necessária a quem procura a sabedoria, mas não ao sábio. - Não é inoportuno, tornou Alípio, repetir as mesmas coisas. Assim, vou agora perguntar-te se, a teu ver, a fortuna ajuda a desprezá-la a ela mesma. Se pensas assim, digo-te que o aspirante à sabedoria tem grande necessidade da fortuna. - Penso isso, repliquei, pois é por ela que o aspirante à sabedoria será tal que possa desprezar a fortuna. E isso não é absurdo. Quando somos crianças, temos necessidade do seio materno, graças ao qual podemos depois viver e crescer sem ele. - Para mim está claro, disse Alípio, que nossas opiniões concordam, se realmente exprimem nossas concepções, a menos que talvez alguém julgue necessário observar que não é o seio nem a fortuna, mas outra coisa que nos faz desprezar esta e aquele. - Não é difícil encontrar outra comparação, retomei eu. Ninguém atravessa o mar Egeu sem navio ou algum outro meio de transporte ou, se não quiser temer o próprio Dédalo em pessoa, sem instrumentos adequados a essa travessia ou sem a ajuda de algum poder oculto. Todavia, não tem outro desejo que chegar ao término e, uma vez alcançado o seu destino, está pronto a rejeitar e desprezar tudo o que lhe serviu para a travessia. Do mesmo modo, quem quiser chegar ao porto da sabedoria e, por assim dizer, à terra totalmente firme e tranquila da sabedoria - pois, para calar outras coisas, se for cego ou surdo não o poderá, o que depende da fortuna - parece-me necessária a fortuna para alcançar o que deseja. Uma vez conseguido este fim, ainda que julgue necessitar de certas coisas relativas ao bem-estar corporal, é certo que não precisa dessas coisas para ser sábio, mas apenas para viver entre os homens. - Mais que isso, interrompeu Alípio, se for cego e surdo, a meu ver, com razão desprezará tanto a aquisição da sabedoria como a vida para a qual se busca a sabedoria. 4. - Todavia, disse eu, como a nossa vida presente está sob o poder da fortuna e só quem vive pode tornar-se sábio, não devemos admitir que temos necessidade do seu favor para chegar à sabedoria? - Mas como a sabedoria só é necessária aos vivos, replicou Alípio, e eliminada a vida não há nenhuma necessidade de sabedoria, não temo a fortuna ao avançar na vida, pois é porque vivo que quero a sabedoria, e não é porque desejo a sabedoria que quero a vida. Consequentemente, se a fortuna me tirar a vida, me privará do motivo de buscar a sabedoria. Assim, para ser sábio, não tenho por que desejar o favor da fortuna ou temer seus reveses, a não ser que me apresentes outras razões. - Portanto, repliquei, não achas que o aspirante à filosofia pode ser impedido pela fortuna de alcançar a sabedoria, mesmo que não lhe tire a vida? - Julgo que não, respondeu. O sábio e o conhecimento da sabedoria III,5. - Gostaria que me explicasses um pouco qual a diferença que, a teu ver, existe entre o sábio e o filósofo. Alípio: - A única diferença entre o sábio e o aspirante à sabedoria é que as coisas que o sábio possui como certo hábito, o aspirante à sabedoria só as tem em desejo. Insisti: - Mas afinal em que consistem essas coisas? Pois a única diferença que me parece existir é que um conhece a sabedoria (scit sapientiam), enquanto o outro deseja conhecê-la (scire desiderat). Alípio: - Se desses uma breve definição da ciência, explicarias mais claramente a questão. - Qualquer que seja a definição que eu der, respondi, todos concordam que não pode haver ciência de coisas falsas. - Acreditei dever fazer-te esta objeção, temendo que, por um imprudente assentimento de minha parte, teu discurso galopasse sem obstáculo nos campos dessa questão fundamental. - Francamente, retorqui, não me deixaste nenhum espaço para cavalgar. Pois, se não me engano, já chegamos ao termo que há tempo estou perseguindo. Pois, se a única diferença entre o aspirante à sabedoria e o sábio, como disseste com sutileza e verdade, é que o primeiro ama, enquanto o último possui a disciplina da sabedoria - razão pela qual não hesitaste em dar-lhe o nome que lhe convém, isto é, certo hábito - e, por outro lado, ninguém pode possuir em seu ânimo uma disciplina (disciplinam) sem nada ter aprendido (didicit) e nada aprender quem nada sabe e, além disso, ninguém pode conhecer o falso, segue-se que o sábio, o qual admitiste ter disciplina da sabedoria, isto é, o hábito da sabedoria, conhece a verdade. Alípio: - Seria muita audácia minha querer negar que reconheci que o sábio possui o hábito da pesquisa das coisas divinas e humanas. Mas não vejo como poder sustentar que não há hábito das probabilidades encontradas. - Concedes, retorqui, que ninguém sabe o falso? - Sem dificuldade, respondeu. - Atreve-te, pois, a dizer que o sábio ignora a sabedoria, continuei. - Mas por que, disse Alípio, encerras tudo nestes limites, de modo que não possa "parecer" ao sábio que ele conhece a sabedoria? Respondi: - Dá-me a mão direita. Pois, se te recordas, foi isso que prometi ontem que demonstraria e agora me alegro que esta conclusão não seja minha, mas espontaneamente apresentada por ti. Com efeito, dizia eu que a diferença entre mim e os Acadêmicos era que a eles parecia provável que não se pode alcançar a verdade, quanto a mim, se bem que ainda não a encontrei, parece que pelo menos o sábio pode encontrá-la. Agora, pressionado por minha pergunta se o sábio ignora a sabedoria, respondeste que lhe parece que ele a conhece. - E o que se segue daqui? - inquiriu ele. - É que, disse eu, se lhe parece que conhece a sabedoria, não lhe parece que o sábio não pode saber nada. Ou então serás obrigado a dizer que a sabedoria não é nada. Alípio: - Em verdade, eu acreditava que tínhamos chegado à conclusão, mas de repente, ao nos apertarmos as mãos, vejo que há uma grande oposição entre nós e que nos afastamos muito um do outro. Ontem, ao que parece, não havia entre nós outra questão senão que o sábio pode chegar à compreensão do verdadeiro segundo tua opinião, contrária à minha. Mas agora não me parece ter-te concedido mais que isso: que pode parecer ao sábio que conseguiu a sabedoria das coisas prováveis, sendo fora de dúvida para nós ambos que eu fiz consistir a sabedoria na busca das coisas divinas e humanas. - Não é complicando que explicarás as coisas, respondi. Parece-me que estás disputando só para te exercitar. E como sabes muito bem que estes jovens dificilmente podem discernir as sutilezas da discussão, de certa forma estás abusando da ignorância dos teus juízes, e assim podes falar quanto quiseres sem que ninguém proteste. Pouco antes, quando eu te perguntei se o sábio conhece a sabedoria, disseste que lhe parecia, a ele sábio, que a conhecia. Portanto, a quem parece que o sábio conhece a sabedoria não lhe parece que o sábio não conhece nada. Só poderia afirmar isso quem ousasse dizer que a sabedoria não é nada. Donde se segue que a tua opinião é a mesma que a minha, pois eu acho que o sábio sabe algo e creio que também tu pensas assim, pois julgas que ao sábio parece que o sábio conhece a sabedoria. Alípio: - Julgo não ter a intenção de exercitar mais meu engenho que tu, o que me surpreende, pois tu não tens nenhuma necessidade de exercitar-te nisso. A mim, talvez ainda cego, parece-me haver uma diferença entre crer que se sabe e saber, como entre a sabedoria que consiste na busca, e a verdade. Não vejo como concordar estas opiniões diferentes sustentadas por nós. Como já nos chamassem para o almoço, disse eu: - Não me desagrada a tua resistência, pois ou ambos não sabemos o que estamos dizendo, e devemos esforçar-nos para evitar tal vergonha, ou isso se aplica somente a um de nós, e não seria menos vergonhoso tolerá-lo ou negligenciá-lo. Mas a isso voltaremos depois do meio-dia. Quando me parecia que já tínhamos concluído, mostras-me os punhos! Todos riram e retiramo-nos. Irrazoabilidade da descrição acadêmica do sábio IV,7. Em nossa volta, encontramos Licêncio, cuja sede nem Helicon poderia matar, todo ocupado em compor versos. Quase no meio da refeição, que todavia foi tão rápida que mal começou já terminou, saiu despercebidamente sem nada beber. Disse-lhe eu: - Desejo que enfim possuas plenamente a arte poética que tanto desejas, não que esta perfeição me agrade muito, mas vejo que é tamanho o teu ardor que só a saciedade poderá libertar-te dessa paixão, o que costuma acontecer depois de atingida a perfeição. Além disso, como tens uma bela voz, eu preferiria ouvir-te declamar os teus versos a ouvir-te cantar, como aves presas em gaiolas, as palavras das tragédias gregas que não compreendes. Entretanto, aconselho-te que vás beber, se quiseres e depois voltes à nossa escola, se ainda tens alguma estima de Hortênsio e da filosofia, à qual já consagraste agradáveis primícias naquela discussão com Trigécio. Ela efetivamente já te havia inflamado mais ardentemente que a tua arte poética para a ciência das coisas grandes e realmente frutíferas. Mas, ao desejar trazer-vos às disciplinas com as quais se cultiva o espírito, receio introduzir-vos num labirinto e quase me arrependo de ter freado o teu ímpeto poético. Ele corou e retirou-se para beber, pois estava com muita sede e aproveitou a ocasião para evitar que eu lhe dissesse outras coisas mais duras. 8. Depois que ele voltou, todos atentos, recomecei com estas palavras: - Não é verdade, Alípio, que discordamos a respeito de algo que me parece totalmente evidente? - Não é nada estranho, disse ele, que o que dizes ser claro para ti seja obscuro para mim, pois o que é evidente para alguns pode sê-lo mais ainda para outros, do mesmo modo como o que é obscuro para alguns pode sê-lo mais ainda para outros. Se a coisa é clara para ti, acredita-me que há alguém para o qual ela é ainda mais clara e alguém para o qual é ainda mais obscuro o que é obscuro para mim. Mas como não quero passar mais tempo por obstinado aos teus olhos, peço-te que expliques mais claramente o que é evidente. - Escuta com atenção, respondi, deixando por um momento de lado a preocupação da resposta. Se conheço bem a mim e a ti, o que vou dizer, se houver esforço, será claro e um logo convencerá o outro. Afinal disseste, ou talvez eu estava surdo, que o sábio acreditava conhecer a sabedoria? Ele fez sinal que sim. - Deixemos por um momento de lado esse sábio, disse eu. Tu mesmo és sábio ou não? - De modo algum, respondeu. - Todavia, retornei, gostaria que me dissesses o que pensas do sábio Acadêmico, parece-te que conhece a sabedoria? Retrucou Alípio: - Perguntas se ele crê conhecê-la ou se a conhece, ou outra coisa? Pois temo que esta ambiguidade sirva de subterfúgio para algum de nós. 9. - Isso, respondi, é o que se costuma chamar de querela toscana: a uma questão colocada não se dá uma solução, mas se responde com outra objeção. Para agradar um pouco os ouvidos de Licêncio, é o que também o nosso poeta nas Bucólicas julga comum entre os camponeses e pastores: um deles pergunta ao outro onde o céu não tem mais que três côvados. O outro responde: "dize-me em que terra nascem flores em que estão inscritos os nomes dos reis?". Peço-te, Alípio, não penses que isso nos seja permitido no campo, pois estes banhos, por modestos que sejam, nos lembram um pouco a beleza dos ginásios. Responde ao que te pergunto: a teu ver, o sábio dos Acadêmicos conhece a sabedoria? Alípio: - Para não ir demasiado longe, comentando palavras com palavras, parece-me que ele acredita que conhece. - Portanto, disse eu, parece-te que ele não a conhece? Não estou perguntando o que te parece que o sábio acha, mas se tu achas que o sábio conhece a sabedoria. Creio que podes simplesmente afirmar ou negar. - Oxalá, retorquiu Alípio, isso fosse tão fácil para mim como é para ti ou tão difícil para ti quanto o é para mim. Assim não serias tão importuno e não alimentarias nenhuma esperança de resposta. Pois, quando me perguntaste o que eu achava do sábio Acadêmico, respondi que me parecia que ele achava que conhecia a sabedoria, para não afirmar temerariamente que eu o sabia ou sustentar não menos temerariamente que o sábio sabia. - Peço-te o grande favor, retruquei, de responder ao que eu perguntei e não à pergunta que tu mesmo te fazes e, além disso, de deixar um pouco de lado a minha esperança que, segundo sei, não te preocupa menos que a tua - certamente se me deixar enganar por esta interrogação, passarei para o teu lado e logo terminaríamos a discussão - finalmente, peço-te expulsar não sei que inquietação que vejo dominar-te e prestar mais atenção para entender facilmente o que desejo que me respondas. Disseste que não afirmavas nem negavas - como devias fazer para responder à minha pergunta - com receio de afirmar temerariamente saber o que não sabes. Como se eu te perguntasse o que sabes e não o que te parece! Assim, agora volto a perguntar-te mais claramente - se for possível ser mais claro: achas que o sábio conhece a sabedoria, ou achas que não? - Se há um sábio como o apresenta a razão, respondeu Alípio, posso crer que ele conhece a sabedoria. - Portanto, respondi, a razão te apresenta um sábio que não ignora a sabedoria. Até aqui respondeste perfeitamente, pois nem poderias ter outra opinião. 10. Agora te pergunto se é possível encontrar um sábio. Em caso afirmativo, ele também pode conhecer a sabedoria, e toda a questão entre nós está resolvida. Se, ao contrário, disseres que não se pode encontrar um sábio, já não perguntaremos se o sábio sabe alguma coisa, mas se alguém pode ser sábio. Assentado isso, deixemos de lado os Acadêmicos e discutamos esta questão entre nós com todo o afinco e cautela possíveis. Pois os Acadêmicos julgavam, ou antes, opinavam que o homem pode ser sábio, mas que não é dado ao homem o conhecimento. Por isso afirmaram que o sábio nada conhece. Tu, porém, achas que o sábio conhece a sabedoria, o que evidentemente não é não saber nada. Ao mesmo tempo concordamos, como todos os antigos e os próprios Acadêmicos, que ninguém pode ter conhecimento de coisas falsas. Donde se segue que deves afirmar que a sabedoria nada é ou admitir que o sábio descrito pelos Acadêmicos não é o sábio apresentado pela razão. Omitindo essas questões, vejamos se o homem pode alcançar a sabedoria tal como a descreve a razão. Pois não há outra sabedoria que devamos ou possamos corretamente chamar com este nome. Balanço da discussão e plano subsequente V,11. - Ainda que te conceda, disse Alípio, o que, segundo vejo, tanto te esforças por conseguir, isto é, que o sábio conhece a sabedoria e que ambos descobrimos uma coisa que o sábio pode perceber, não creio que esteja totalmente vencida a posição dos Acadêmicos. Efetivamente, vejo que lhes resta uma linha de defesa não desprezível, nem lhes foi tirada a razão da suspensão do assentimento, pois não podem abandonar sua causa só pelo argumento com o qual os julgas vencidos. Dirão que é tão certo que não se pode conhecer nada e que a nada se deve dar o assentimento, que até o princípio da impossibilidade do conhecimento, princípio de que estavam convencidos por quase toda a vida até aqui como de uma coisa provável, agora acaba de lhes ser tirado pela tua conclusão. Assim, então como agora, a força deste argumento continua invicta, seja por causa da lerdeza da minha inteligência, seja realmente pela força do próprio argumento, e não é possível desalojá-los da sua posição, pois podem continuar a afirmar audazmente que nem agora se deve assentir a nada. Talvez algum dia contra a tua posição poderão eles ou outros encontrar algum argumento que sustentarão com razões sutis e prováveis. Devemos ver sua imagem, como que num espelho, naquele Proteu, do qual se conta que costumava ser capturado onde menos se podia esperar e que os que o procuravam só conseguiam apoderar-se dele pelas indicações de alguma divindade. Que ela nos assista e se digne mostrar-nos aquela verdade que nos é tão cara. E então também eu confessarei que os Acadêmicos, ainda que contra a sua vontade, o que não creio, foram vencidos. 12. Muito bem, disse eu. Não desejava nada mais que isso. Vede quantas vantagens obtive! Em primeiro lugar, afirma-se que os Acadêmicos foram de tal modo vencidos, que para a sua defesa só lhes resta o argumento de que toda defesa é impossível. Ora, quem poderá de qualquer modo entender ou crer que alguém que foi vencido, pelo fato de ter sido vencido, se glorie de ser vencedor? Em segundo lugar, se ainda há alguma razão de conflito com eles, esta não está em que dizem que nada podemos saber, mas na sua pretensão de que não se deve dar assentimento a nada. Portanto agora estamos de acordo. Pois, tanto a eles como a mim parece que o sábio conhece a sabedoria. Todavia lhe recomendam moderar o assentimento. Dizem que apenas lhes parece, mas que de nenhum modo sabem. Como se eu afirmasse que sei! Digo que também a mim parece que é assim, pois somos insensatos, tanto eles como eu, se ignoramos a sabedoria. Mas julgo que há algo que devemos aprovar, isto é, a verdade. Pergunto-lhes, pois se negam isso, isto é, se julgam que não se deve dar assentimento à verdade. Jamais dirão isso, mas afirmarão que não se pode encontrar a verdade. Portanto, por certo lado me têm como aliado, enquanto não discordamos, e portanto necessariamente concordamos, que se deve dar assentimento à verdade. Mas quem a demonstrará? - perguntarão. Sobre este ponto não me preocupo em discutir com eles. Basta-me que já não seja provável que o sábio não conhece nada para não serem forçados ao absurdo de dizer que a sabedoria não é nada ou que o sábio ignora a sabedoria. VI,13. Quem pode mostrar-nos a verdade? Explicaste-o tu, Alípio, e preciso esforçar-me muito para não discordar do que disseste. Com efeito, disseste de modo não somente conciso, mas também e sobretudo religiosamente que só uma divindade pode mostrar ao homem a verdade. Ao longo desta nossa discussão não ouvi nada mais agradável, mais profundo e mais provável e, se esta divindade, como espero, nos assiste, nada mais verdadeiro. Com que elevação de espírito e atenção ao que há de melhor em filosofia evocaste o célebre Proteu. Proteu - e aqui notai, jovens, que os poetas não devem ser totalmente desprezados pela filosofia - Proteu, digo, é a imagem da verdade. Nos poemas, Proteu assume e representa o papel da verdade, que ninguém pode alcançar, se enganado pelas falsas aparências, afrouxar ou abandonar os nós da compreensão. Pois são essas aparências que, pelo nosso hábito de ocupar-nos de coisas corporais, por meio dos sentidos, que usamos para as necessidades desta vida, procuram enganar-nos e iludir-nos, mesmo quando estamos de posse da verdade e, por assim dizer, a temos nas mãos. E este é o terceiro êxito que obtive, que não sei como apreciar devidamente. Pois meu mais íntimo amigo concorda comigo não só no que há de provável na vida humana, mas também na própria religião, o que é o sinal mais evidente da verdadeira amizade. Com efeito, a amizade foi definida com muito acerto e santidade como "um consenso benévolo e caritativo sobre as coisas divinas e humanas”. VII,14. Todavia, para que os argumentos dos Acadêmicos não pareçam obnubilar nossa questão nem se julgue que orgulhosamente resistimos à autoridade de homens doutíssimos, entre os quais não pode deixar-nos indiferentes Túlio, começarei, se o permitir, dissertando um pouco contra aqueles que acreditam que essas discussões são dirigidas contra a verdade. A seguir, explicarei qual foi, a meu ver, a razão pela qual os Acadêmicos ocultaram seu verdadeiro pensamento. Assim, Alípio, embora te veja completamente passado para o meu lado, assume por um momento a causa dos Acadêmicos e responde-me. Alípio: - Como hoje avançaste, segundo se costuma dizer, sob bons auspícios, não impedirei a tua vitória completa e tratarei de assumir a defesa dos Acadêmicos com tanto mais segurança que és tu que me impões a tarefa. Mas isso desde que, se o achares cômodo, transformes em discurso contínuo a argumentação que, segundo indicas, pretendes desenvolver em forma de perguntas, para que eu, como adversário pertinaz, prisioneiro teu, não seja crivado com teus dardos, coisa muito contrária a teus sentimentos de humanidade. Discurso contínuo de Agostinho Refutação do assentado primado dos Acadêmicos 15. Ao perceber que era isso o que também eles esperavam, comecei como uma espécie de novo exórdio, dizendo: - Cederei aos vossos desejos. Depois das grandes fadigas da escola de retórica, eu esperava poder descansar um pouco sob uma armadura leve, tratando este assunto mais sob forma de interrogações que de discurso. Todavia, como somos poucos e não preciso de forçar minha voz em detrimento da saúde e, de outra parte, por causa disso resolvi que o estilo seja uma espécie de condutor e moderador do meu discurso, para não me deixar levar a falar com mais entusiasmo do que permite o cuidado do meu estado físico, ouvi em discurso contínuo, como desejais, o que penso. Primeiramente, vejamos o que dá aos seguidores dos Acadêmicos motivo para tanto gloriar-se. Há, efetivamente, nas obras que Cícero escreveu em defesa deles, uma passagem que, a meu ver, é de admirável elegância e, segundo outros, também de rara solidez. É difícil não impressionar-se com o que diz: "Os seguidores de todas as outras seitas que julgam ser sábios concedem o segundo lugar ao sábio Acadêmico, pois cada um deles reserva necessariamente para si o primeiro. Daqui se pode concluir com probabilidade que com direito se julga primeiro aquele que é o segundo no juízo de todos os outros”. 16. Suponhamos, por exemplo, aqui presente um sábio estoico, pois foi principalmente contra eles que se exerceu a engenhosidade dos Acadêmicos. Se perguntarmos a Zenão ou a Crisípo quem é sábio, responderá que é aquele que ele próprio descreveu. De seu lado, Epícuro, ou algum outro adversário, negará tal afirmação e sustentará que para ele sábio é o mais hábil caçador de prazeres. Começa a discussão. Clama Zenão e todo o Pórtico, em alvoroço, grita que o homem não nasceu senão para a virtude, que esta atrai a si as almas com o seu esplendor, sem oferecer absolutamente nenhuma vantagem exterior, sem nenhum atrativo de recompensa, que o prazer de Epicuro é próprio somente dos animais e que é ímpio lançar o homem e o sábio à companhia destes. Epicuro, por sua vez, qual outro Liber de seus jardins, convoca em seu auxílio a turba dos discípulos embriagados, mas que, no seu furor de bacantes, procuram a quem dilacerar com suas unhas sujas e seus dentes ásperos. Com o testemunho da turba, acumula as palavras prazer, suavidade e repouso, insistindo enfaticamente que ninguém pode ser feliz sem o prazer. Se no meio da disputa se apresentar um Acadêmico, ouvirá as duas partes, cada qual tentando atraí-l o para o seu lado. Se se inclinar para um dos partidos, será chamado de insensato, ignorante e temerário pelos sequazes do partido contrário. Assim, depois de ter ouvido os dois partidos, interrogado sobre o que pensa, dirá que está em dúvida. Pergunta agora ao estoico quem é melhor, se Epicuro, o qual diz que o estoico delira, ou o Acadêmico, que declara que ainda precisa refletir sobre questão tão grave. Ninguém duvida que o preferido será o Acadêmico. Dirige-te então a Epicuro e pergunta-lhe quem prefere, Zenão, por quem é chamado animal, ou Arcesilau, que lhe diz: talvez tens razão, mas preciso examinar isso melhor. Não é evidente que Epicuro julgará que todo o Pórtico é louco e que em comparação com este os Acadêmicos são homens modestos e cautelosos? Assim Cícero, com grande eloquência faz desfilar diante de seus leitores, como que num agradabilíssimo espetáculo, quase todas as seitas, mostrando que se nenhum representante delas deixa de atribuir-se o primeiro lugar, o que é inevitável, todos concordam em dar o segundo a quem não lhes é contrário, mas duvida. Não me oporei a eles neste ponto, nem pretendo diminuir-lhes a glória. VIII,17. Alguns, é certo, acham que aqui Cícero não quis brincar, mas, por detestar a frivolidade dos gregos, colher e reunir alguns argumentos vãos e ocos. Mas o que me impede a mim, se quiser resistir a esta impostura acadêmica, mostrar, o que farei facilmente, que é um mal menor ser ignorante (indoctum) que ser incapaz de instruir-se (indocilem)? Assim, quando esse presunçoso Acadêmico se apresenta como discípulo a cada um dos filósofos e ninguém consegue convencê-lo do que crê saber, todos acabam concordando em rir-se dele. Cada qual pensará que, se nenhum dos seus adversários aprendeu alguma coisa, o Acadêmico, este é incapaz de aprender. Consequentemente, será expulso de todas as escolas, não a golpes de férula, o que seria mais vergonhoso que modesto, mas com as clavas e bastões daqueles homens vestidos de manto. Na verdade não será grande trabalho reclamar contra um flagelo comum o socorro, por assim dizer, hercúleo, dos Cínicos. Mas se eu quiser disputar com os Acadêmicos uma glória tão miserável, o que mais facilmente se concederá ao filosofante que sou, ainda não sábio, o que poderão alegar? Suponhamos que eu e um Acadêmico entremos numa dessas disputas dos filósofos, que todos estejam presentes e todos exponham brevemente sua doutrina, segundo convém. Pergunta-se a Carnéades o que pensa. Dirá que duvida. E cada qual o preferirá aos demais. Portanto, todos o preferirão a todos. Uma grande e altíssima glória! Quem não quererá imitá-lo? E se me perguntarem responderei a mesma coisa. O louvor será igual. Logo o sábio goza de uma glória pela qual o estulto se torna seu igual. E que dizer se o último até facilmente o superar? Nada fará a vergonha? Deterei o Acadêmico no momento em que estiver para deixar o tribunal, pois afinal a estultícia é ávida desse tipo de vitória. Retendo-o, mostrarei aos juízes o que ignoram e direi: Excelentíssimos senhores, tenho em comum com este homem a dúvida sobre quem de nós segue a verdade. Mas também temos opiniões pessoais e peço-vos que as julgueis. Ainda que vos tenha ouvido, ignoro onde está a verdade, mas isso vem do fato de eu não saber quem de vós é sábio. Este, porém, nega que o próprio sábio conhece alguma coisa ao certo, nem mesmo a sabedoria, donde o sábio deriva o seu nome. Quem não vê a quem caberá a palma? Se meu adversário disser isso, vencerei em glória; se, envergonhado, confessar que o sábio conhece a sabedoria, terei vencido pela minha opinião. As implicações da definição de Zenão IX,18. Mas deixemos este tribunal litigioso por um lugar onde não nos moleste a multidão. Oxalá fosse a escola de Platão, que segundo se diz, recebeu seu nome do fato de ser separada do povo. Aqui discutamos, segundo nossas forças, não sobre a glória, que é coisa vã e pueril, mas sobre a própria vida e a esperança da alma feliz. Os Acadêmicos negam que se pode saber algo. Em que vos baseais para dizer isso, homens diligentíssimos e doutíssimos? Na definição de Zenão, respondem. Mas por quê? Se ela é verdadeira, aquele que a conhece sabe alguma coisa, se é falsa, não deveria abalar homens tão fortes. Mas vejamos o que diz Zenão. Segundo ele, só se pode compreender e perceber o que é de tal natureza que não tenha característica comuns com o falso. Foi isso, discípulo de Platão, que te levou a envidar todos os esforços para desviar os desejosos de saber de toda esperança de aprender, de modo que, ajudados ainda por uma lamentável preguiça espiritual, abandonem todo estudo filosófico? 19. Mas como não seria ele abalado, se, de uma parte, não se pode encontrar nada que seja tal [isto é, conforme o que exige Zenão] e, de outra, só se pode conhecer com certeza o que é tal? Se assim fosse, seria melhor dizer que o homem não pode alcançar a sabedoria que dizer que o sábio não sabe por que vive, como vive, nem se vive, enfim, o que ultrapassa tudo o que se pode dizer de absurdo, de extravagante e de insensato, que se pode ao mesmo tempo ser sábio e ignorar a sabedoria. Pois, o que é mais chocante: dizer que o homem não pode ser sábio ou dizer que o sábio ignora a sabedoria? Portanto, não há nada a discutir, se a questão assim colocada não é suficiente para resolvê-la. Mas talvez este modo de falar afastaria totalmente os homens da filosofia. Entretanto, é necessário atraí-los pelo dulcíssimo e augustíssimo nome da sabedoria, para que, chegados à idade avançada sem nada terem aprendido, te persigam com as piores imprecações, a ti que terão seguido após terem renunciado aos prazeres corporais para tormento do espírito. 20. Mas vejamos quem os afasta mais da filosofia. Será quem diz: Escuta, amigo, a filosofia não é a sabedoria, mas o estudo da sabedoria. Se a ela te aplicares, não serás sábio enquanto viveres aqui - pois a sabedoria pertence a Deus e não pode chegar ao homem - mas depois que te tiveres executado e purificado bastante por este tipo de estudo, depois desta vida, isto é, quando tiveres deixado de ser homem, tua alma facilmente desfrutará desta sabedoria. Ou será aquele que diz: Vinde, mortais, para a filosofia, porque nela há grande proveito. Pois o que há de mais caro ao homem que a sabedoria? Vinde, portanto, para que sejais sábios e ignoreis a sabedoria! Eu não falaria assim, diz o Acadêmico. Isso é enganar, pois não encontrarão outra coisa em ti. Se dissesses isso, fugiriam de ti como de um louco. Se os levasses à tua opinião por outros meios, tu os tornarias loucos. Mas admitamos que ambas as opiniões afastam igualmente os homens do filosofar. Se a definição de Zenão obrigava a dizer algo de prejudicial à filosofia, havia necessidade, meu amigo, de dizer o que é objeto de tristeza para o homem ou o que para ti é motivo de escárnio? 21. Todavia, na medida em que no-lo permite nossa ignorância, discutamos o que Zenão definiu. Segundo ele, só pode ser compreendida aquela representação que apareça de tal modo que o falso não possa mostrar-se. É evidente que fora disso nada se pode perceber. - Também eu penso assim, diz Arcesilau, e é por isso que ensino que não se percebe nada, pois não se pode encontrar nada que reúna tais condições. - Talvez tu e outros tolos. Mas por que não o poderia o sábio? Acho que ao próprio tolo não poderias responder nada, se te pedisse refutar, com tua famosa sutileza, a definição de Zenão e mostrar que também ela pode ser falsa. Se não o puderes, já tens uma proposição que percebes como certa. Mas se a refutares, então é que não há nada que te impede de conhecer a verdade. Por mim, não sei como se possa refutá-la e julgo-a totalmente verdadeira. Assim, ao conhecê-la, ainda que seja estulto, sei alguma coisa. Vê se consegues que a definição ceda às tuas argúcias! Usarei de um dilema seguríssimo: ou a definição é verdadeira ou é falsa. Se é verdadeira, mantenho minha posição, se é falsa, é possível perceber algo, ainda que tenha características comuns com o falso. - Como pode ser isso? - pergunta ele. - Zenão definiu, portanto, com muito acerto e não errou quem lhe deu assentimento neste ponto. Consideraremos de pouco valor e vigor uma definição que contra aqueles que haveriam de aduzir muitos argumentos contra a percepção, ao designar as características do que pode ser percebido, se apresenta a si mesma com tais características? Assim, ela é, ao mesmo tempo, definição e exemplo de coisas compreensíveis. - Não sei, diz Arcesilau, se ela é verdadeira, mas como é provável, demonstro, apoiando-me nela, que não existe nada do que ela declarou ser possível de ser conhecido. - Talvez o demonstres para tudo, menos para ela. Acho que vês a consequência. Mesmo que não tenhamos certeza da definição, nem por isso ficamos privados do conhecimento, pois sabemos que ou ela é verdadeira, ou é falsa. Logo, não ficamos sem nada saber. Ainda que isso nunca consiga tornar-me ingrato, julgo que esta definição é totalmente verdadeira. Pois ou é possível perceber mesmo as coisas falsas, hipótese da qual os Acadêmicos têm verdadeiro pavor e realmente é absurda, ou tampouco podem perceber-se as coisas que são muito semelhantes às falsas. Logo aquela definição é verdadeira. Mas vejamos o restante. O problema da certeza em filosofia X,22. O que acabamos de dizer, salvo engano, é suficiente para a vitória, mas talvez não o seja para uma vitória completa. Os Acadêmicos sustentam duas coisas, contra as quais decidimos lutar: nada se pode conhecer e não se deve dar assentimento a nada. Do assentimento trataremos adiante. Agora falemos um pouco mais sobre o conhecimento. Dizeis que não se pode conhecer absolutamente nada? Aqui desperta Carnéades, afinal ninguém de todos eles dormiu menos profundamente que ele, e observa a evidência das coisas. Imagino que fale assim consigo mesmo, como sói acontecer: Então, Carnéades, dirás que não sabes se és homem ou formiga? Ou Crisipo triunfará sobre ti? Digamos que ignoramos o que se indaga entre os filósofos. O resto não nos diz respeito. Se eu tropeçar na luz cotidiana e ordinária, apelarei para as trevas dos ignorantes, onde só veem certos olhos divinos, os quais ainda que uma vejam vacilando e caindo, não podem entregar-me à zombaria dos cegos, sobretudo dos arrogantes e dos que têm vergonha de ser ensinados. Na verdade avanças, ó habilidade grega, elegantemente vestida e bem preparada. Mas não reparas que aquela definição é obra de um filósofo, fixada e estabelecida no próprio vestíbulo da filosofia. Se tentares cortá-la, o machado de dois gumes recairá em tuas pernas. Porque, uma vez que a abalaste, se não ousares destruí-la completamente, segue-se que não só se pode perceber algo, mas que também se pode perceber o que é muito semelhante ao falso. É na verdade o teu esconderijo, donde saltas e atacas veementemente os incautos que querem passar adiante. Mas virá algum Hércules que te sufocará na tua caverna como ao semi-homem, esmagando-te sob as suas ruínas, e ensinando-te que há em filosofia algo que não pode ser reduzido à incerteza por ser semelhante ao falso. Na verdade eu me apressava em busca de outras coisas. Quem nisso insiste, Carnéades, afronta-te, tomando-te por morto que pode ser por mim vencido em qualquer lugar e de qualquer maneira. Se não pensa assim, é cruel obrigando-me a deixar a fortaleza e lutar contigo em campo raso. Quando comecei a descer a campo, aterrado só pelo teu nome, arredei o pé e de um lugar mais alto lancei alguma coisa. Vejam os que presenciam nossa luta se te atingiu ou que outro efeito produziu. Mas por que temo, inepto? Se bem me lembro, estás morto e nem Alípio tem o direito de lutar pela tua sepultura. Deus me ajudará facilmente contra tua sombra. 23. Afirmas que nada se pode saber ao certo em filosofia. E para difundir amplamente o teu discurso apelas para as rixas e dissensões entre os filósofos, acreditando que te fornecem armas contra eles. Como julgaremos a contenda entre Demócrito e os físicos antigos sobre se o mundo é uno ou se há muitos mundos, quando não houve acordo entre ele e seu herdeiro Epicuro? Pois este voluptuoso, ao permitir que os átomos, como seus servos, isto é, os corpúsculos, que alegremente abraça nas trevas, não sigam o seu caminho, e se desviem espontaneamente para além de limites, dissipou todo o patrimônio em contendas. Mas nada disso me interessa. Pois se é próprio da sabedoria saber algo dessas coisas, este conhecimento não pode faltar ao sábio. Se é outra coisa, o sábio conhece a sabedoria e despreza esta. Eu, todavia, que ainda estou longe até da proximidade do sábio, sei alguma coisa dessas questões físicas. Efetivamente tenho por certo que o mundo é uno ou não é uno. Se não é uno, é de número finito ou infinito. Venha Carnéades dizer que esta proposição é semelhante a uma proposição falsa! Sei igualmente que este nosso mundo está assim disposto ou pela natureza dos corpos ou por alguma providência, e que sempre existiu e sempre existirá, ou que, tendo começado, nunca terminará, ou, não tendo começado, terá um fim, ou que começou a existir e não permanecerá para sempre. Tenho ainda inúmeros outros conhecimentos físicos deste gênero referentes ao mundo. Estas proposições disjuntivas são verdadeiras e ninguém pode confundi-las com alguma semelhança com o falso. - Mas toma isoladamente uma delas, diz o Acadêmico. - Não aceito, pois o teu pedido equivale a dizer: deixa o que sabes e afirma o que ignoras. - Então a tua opinião está em suspenso. - É melhor que esteja em suspenso do que caia, porque está completa e pode chamar-se falsa ou verdadeira. Digo que sei estas proposições. Tu que não negas que elas pertencem à filosofia e afirmas que nada delas se pode saber, mostra-me que não as sei. Dize que estas proposições disjuntivas são falsas ou têm algo em comum com o falso, que torna absolutamente impossível discerni-las. XI,24. - Se os sentidos enganam, diz o Acadêmico, como sabes que este mundo existe? - Nunca os vossos raciocínios puderam enfraquecer a força do testemunho dos sentidos a ponto de convencer-nos que nada nos aparece e jamais ousastes tentar fazê-lo. Mas empenhastes-vos em persuadir-nos que uma coisa pode ser diferente do que parece. Eu, porém, chamo mundo a tudo isso, o que quer que seja, que nos contém e sustenta, a tudo isso, digo, que aparece a meus olhos e é por mim percebido como comportando terra e céu, ou o que parece terra e céu. Se disseres que o que me aparece não é nada, nunca poderei errar. Pois erra quem temerariamente aprova o que lhe parece. Dizeis, efetivamente, que o falso pode parecer aos sentidos como verdadeiro, mas não negais o fato de parecer. Não restaria absolutamente nenhuma razão para toda essa discussão em que vos aprazeis em triunfar, se não só nada sabemos como também nada nos aparece. Mas se negas que o que me parece é o mundo, trata-se de uma questão de palavras, pois eu disse que chamo mundo o que me parece. 25. Perguntarás: também quando dormes o mundo é este que vês? Já disse que chamo mundo o que me aparece, seja o que for. Mas, se quiseres chamar mundo só o que é visto pelos que estão acordados ou pelos sãos de espírito, afirma, se podes, que os que dormem ou deliram não dormem ou deliram no mundo! Portanto, digo que toda esta massa de corpos e esta máquina na qual nos encontramos, seja dormindo ou delirando, despertos ou sãos de espírito, é una ou não é una. Explica como pode ser falsa esta proposição. Da mesma forma, se durmo é possível que eu não tenha dito nada, ou que, se no sono me escaparam palavras da boca, como sói acontecer, pode ser que não as tenha dito aqui, sentado como estou, nem diante destes ouvintes. Mas é impossível que isso seja falso [isto é, que falei ou não falei durante o sono]. E não digo que percebi isso por estar desperto, pois poderias objetar que isso poderia parecer-me também no sono e consequentemente pode ser muito semelhante ao falso. Mas se há um mundo e seis mundos, é evidente que há sete mundos, qualquer que seja o meu estado, e eu afirmo sem temeridade saber isso. Demonstra -me que o sono ou a loucura ou as ilusões dos sentidos podem tornar falsa esta conclusão ou as suposições disjuntivas. Então, se, depois de desperto me lembrar delas, me darei por vencido. Pois creio que já é suficientemente claro que as falsas aparências produzidas pelo sono ou pela demência pertencem ao domínio dos sentidos corporais. Mas que três vezes três é nove ou o quadrado destes números é necessariamente verdadeiro, mesmo que ronque todo o gênero humano. Entretanto, também vejo que se podem dizer em favor dos sentidos muitas coisas que, quanto sabemos, não foram censuradas pelos próprios Acadêmicos. Creio que não se deve acusar os sentidos nem das imaginações falsas experimentadas pelos dementes, nem das coisas falsas que vemos nos sonhos. Pois se informam coisas verdadeiras aos despertos e aos sãos de espírito, não se pode pedir-lhes conta do que forja o ânimo de quem dorme ou está demente. 26. Resta averiguar se o que os sentidos informam é verdadeiro. Suponhamos que diga algum Epicurista: - Não tenho do que me queixar contra os sentidos, pois é injusto exigir deles mais do que podem dar. O que os olhos podem ver, se o veem, é verdadeiro. - Logo é verdade o que veem do remo imerso na água? - Absolutamente verdadeiro, pois havendo uma nova causa pela qual as coisas aparecem como se vê, se o remo imerso na água aparecesse reto, eu acusaria meus olhos de testemunho falso: de fato não veriam o que deveriam ver, havendo tais causas. Para que multiplicar os exemplos? A mesma coisa se pode dizer do movimento das torres, das asas das aves, de inúmeros outros casos. - Todavia, engano-me se der meu assentimento, dirá alguém. - Não dês um assentimento que vá além do que dita a tua persuasão de quem assim aparece, e não haverá engano. Pois não vejo como o Acadêmico possa refutar alguém que diz: sei que isso me parece branco, sei que isso deleita meus ouvidos, sei que este odor me agrada, sei que aquilo tem gosto doce, sei que aquilo é frio para mim. - Mas, dize-me antes se são amargas em si mesmas as folhas do oleastro que tanto apetecem à cabra! - Ó homem petulante! Não é mais modesta a cabra? Não sei o que as folhas são para o animal. Para mim são amargas. O que mais queres? - Mas talvez também haja algum homem para quem não são amargas. - Queres cansar-me? Por acaso eu disse que são amargas para todos? Disse que são amargas para mim, e não afirmo que isso é sempre assim. Não acontece que por uma causa ou outra, a mesma coisa uma vez tem gosto doce, outra vez amargo? Afirmo o seguinte: quando um homem saboreia alguma coisa, pode jurar de boa-fé que sabe que tal coisa é suave ou não ao seu paladar e não há sofisma grego que possa retirar-lhe esse conhecimento. Quem teria o descaramento de dizer-me, quando estou saboreando alguma iguaria: talvez não estás saboreando, mas é apenas um sonho? Por acaso estou dizendo o contrário? Pois mesmo em sonho isso me deleitaria. Assim nenhuma semelhança com o falso pode anular o fato que declarei conhecer. Os Epicuristas e os Cirenaícos talvez digam a favor dos sentidos muitas outras coisas que não me consta terem sido rebatidas pelos Acadêmicos. Mas o que me importa? Se quiserem e puderem, que os Acadêmicos refutem esses argumentos, até com a minha ajuda. Pois o que alegam contra os sentidos não vale contra todos os filósofos. Há os que julgam que todas as impressões que a alma recebe pelos sentidos podem produzir opinião, mas não a ciência a qual querem que seja contida na inteligência e vive na mente, longe dos sentidos. Talvez entre eles se encontre o sábio que procuramos. Mas este tema será tratado em outra ocasião. Passemos agora aos outros pontos, de que, à luz do que já foi dito, salvo engano, trataremos em poucas palavras. XII,27. Em que os sentidos são uma ajuda ou um obstáculo para quem trata de moral? Se nem o pescoço da pomba, nem a voz incerta, nem um fardo que é pesado para o homem e ao mesmo tempo leve para os camelos e mil outras coisas do gênero impedem aqueles que colocaram o sumo bem do homem no prazer de dizer que se sabem deliciados por aquilo que os delicia ou molestados por aquilo que os molesta - e não vejo como se poderia refutá-los neste ponto. Será então que tais argumentos impressionarão aquele que encerra na mente o bem do homem? O que escolhes? Se me perguntas o que acho, julgo que é na mente que reside o sumo bem do homem. Mas agora a nossa indagação diz respeito ao conhecimento. Interroga, portanto, o sábio, que não pode ignorar a sabedoria. Entretanto, é-me lícito, a mim por mais limitado e ignorante que seja, saber que o fim do bem humano, em que consiste a felicidade, ou não existe, ou existe e neste caso ou na alma, ou no corpo, ou em ambos. Convence-me, se fores capaz, de que não sei isso. Vossos famosos argumentos não o conseguem. Se não o podes, pois não encontrarás falsidade à qual se assemelhe, hesitaria eu em concluir que é com razão que o sábio me parece saber tudo o que há de verdadeiro na filosofia, uma vez que eu mesmo dela hauri tantos conhecimentos verdadeiros? 28. Mas talvez o sábio receie escolher o sumo bem dormindo. Não há nenhum perigo. Quando acordar, se não lhe agradar, o rejeitará, se lhe agradar, o aceitará. Pois quem terá o direito de repreendê-lo por ter visto em sonho algo de falso? Talvez tema perder a sabedoria enquanto dorme, se tomar o falso por verdadeiro? Mas nem quem está dormindo ousará sonhar que deve chamar sábio um homem acordado e negar-lhe este título quando dorme. O mesmo se pode dizer da demência. Mas urge passar a outras considerações. Entretanto não deixarei esta questão sem uma conclusão certíssima: ou a sabedoria se perde pela demência e aquele de quem dizeis que ignora a verdade não será mais sábio, ou seu conhecimento permanece na inteligência, ainda que a outra parte da alma se represente como em sonho o que recebeu pelos sentidos. XIII,29. Resta a dialética, que o sábio certamente conhece bem. Ora, ninguém pode saber o falso [portanto a dialética é verdadeira]. Se o sábio não a conhece, o conhecimento da dialética não pertence à sabedoria, pois pôde sem ela tornar-se sábio. Neste caso será supérfluo indagar se é verdadeira e se pode ser conhecida. Aqui talvez alguém me diga: Estulto, costumas ostentar o que sabes. Não conseguiste aprender nada de dialética? Ao contrário, muito mais que de qualquer outra parte da filosofia. Em primeiro lugar, a dialética me ensinou que são verdadeiras todas as proposições acima. Além disso, através dela aprendi muitas outras verdades. Enumerai-as, se fordes capazes: se há quatro elementos no mundo, não são cinco, se há um sol, não há dois, uma mesma alma não pode ao mesmo morrer e ser imortal, um homem não pode ser ao mesmo tempo feliz e infeliz; aqui não é ao mesmo tempo dia e noite. No mesmo momento ou estamos acordados ou dormindo; o que creio ver ou é um corpo ou não é um corpo. Estas e outras coisas, que seria demasiadamente longo lembrar, foi pela dialética que aprendi serem verdadeiras, qualquer que seja o estado dos nossos sentidos, verdadeiras em si mesmas. Ela me ensinou que, se for admitida a antecedente nas proposições que citei, segue-se necessariamente a consequente. Quanto às que enunciei em forma de oposição ou disjunção, elas são de tal natureza que, quando se nega uma ou várias delas, a que resta é estabeleci da pela negação das outras. Ensinou-me ainda que, quando há acordo sobre algo em questão, não se deve discutir sobre as palavras e se o que o faz é por ignorância, que o faz, deve-se instruí-lo; se por maldade, deve-se abandoná-lo; se for incapaz de ser instruído, deve-se adverti-lo que faça qualquer outra coisa em vez de perder tempo e trabalho em coisas supérfluas; se não obedecer, deixá-lo de lado. Quanto aos raciocínios capciosos e falaciosos, há uma regra breve: se forem baseados numa concessão imprudente, deve-se voltar a examinar o que foi concedido. Se o verdadeiro e o falso conflitam numa mesma conclusão, deve-se tomar o que se pode compreender e deixar o que não se pode explicar. Se, ao contrário, em algumas questões escapa inteiramente ao homem o "modo (modus)", deve-se renunciar ao seu conhecimento. Todas estas e outras coisas, que é desnecessário lembrar devo-as à dialética, pois não deve ser ingrato a ela. Mas o sábio de que falamos ou despreza essas coisas, ou, se a dialética é realmente a ciência da verdade, conhece-a o suficiente para desprezar e acabar sem piedade com esta mentirosa calúnia: se é verdadeiro, é falso, se é falso é verdadeiro. Julgo que isso é suficiente sobre o conhecimento, pois quando tratar do assentimento, retomarei a questão. O problema do assentimento XIV,30. Voltemos, pois, àquela parte onde Alípio parece ainda ter dúvidas. E em primeiro lugar vejamos o que te perturba de maneira tão aguda e te inspira tanta cautela. Pois se a tua descoberta que nos obriga a confessar que é muito mais provável que o sábio conhece a sabedoria, abala a opinião dos Acadêmicos, fortalecida por tantos e tão fortes razões (tu mesmo disseste isto), de que o sábio nada sabe, devemos suspender ainda mais o assentimento. Pois exatamente isso mostra que não há nenhuma proposição, por mais numerosos e sutis que sejam os argumentos aduzidos, a que não se possa resistir com argumentos não menos fortes ou até mais fortes da parte contrária. Daqui resulta que, quando é vencido, o Acadêmico é vencedor. Oxalá seja vencido! Nenhum artifício dos gregos fará com que ele se aparte de mim ao mesmo tempo vencido e vencedor. Certamente, se não houver outra coisa a dizer contra esses raciocínios, espontaneamente me darei por vencido. Pois aqui não tratamos de buscar a glória, senão de encontrar a verdade. A mim me basta transpor de qualquer modo este obstáculo que se opõe aos que querem ingressar na filosofia, retendo-os em não sei que tenebrosos esconderijos; ameaça fazer crer que toda filosofia é tal e não permite esperar que nela se possa encontrar a luz. Se é provável que o sábio sabe alguma coisa, nada mais tenho a desejar. Pois nenhuma razão me fazia julgar verossímil que o sábio devia suspender o seu assentimento, senão a de que era verossímil que nada se pode conhecer. Eliminada esta dificuldade, pois como se concede, conhece pelo menos a sabedoria, já não resta nenhuma razão para o sábio não dar o seu assentimento pelo menos à sabedoria. Com efeito é sem dúvida mais absurdo para o sábio não aprovar a sabedoria que não conhecê-la. 31. Imaginemos, por um instante, se podemos, o seguinte espetáculo: uma disputa entre o sábio e a sabedoria. O que diz a sabedoria senão que ela é a sabedoria? Mas o sábio diz: não creio. Quem diz à sabedoria: não creio na existência da sabedoria? Quem, senão aquele com o qual ela pode falar e em quem se dignou habitar, isto é, o sábio? Vinde, portanto, pedir-me que lute com os Acadêmicos. Já tendes um novo gênero de luta: o sábio e a sabedoria disputam entre si. O sábio não quer dar assentimento à sabedoria. Convosco espero tranquilamente o resultado. Pois quem não acredita que a sabedoria é invencível? Todavia, vamos munir-nos de algum dilema. Neste certame, ou o Acadêmico vencerá a sabedoria e será vencido por mim, pois não será sábio, ou será derrotado por ela e afirmaremos que o sábio dá seu assentimento à sabedoria. Portanto, ou o Acadêmico não é sábio, ou o sábio dará seu assentimento a alguma coisa. A menos que quem teve vergonha de dizer que o sábio ignora a sabedoria não tenha vergonha de dizer que o sábio não dá assentimento à sabedoria. Mas, se já é verossímil que pelo menos o conhecimento da sabedoria compete ao sábio, e ele não tem nenhuma razão de não dar seu assentimento ao que se pode perceber, concluo que o que eu queria é verossímil, ou seja, que o sábio dará seu assentimento à sabedoria. Se perguntares onde ele encontra a sabedoria, responderei: em si mesmo. Se disseres que o sábio não sabe o que possui, voltas ao absurdo de que o sábio não conhece a sabedoria. Se negares que é possível encontrar um sábio, já não é com os Acadêmicos, mas contigo, quem quer que pensas assim, que será necessário instituir outra discussão. Pois os Acadêmicos, quando discutem essas questões, é evidentemente do sábio que tratam. Cícero declara que ele mesmo tem muitas opiniões, mas que sua busca se refere ao sábio. Se ainda não o sabeis, caros jovens, certamente lestes no Hortênsio: "Se nada há de certo e não convém ao sábio opinar sobre nada, o sábio nunca aprovará nada". É, portanto, evidente que é do sábio que os Acadêmicos tratam nas suas discussões, contra as quais dirigimos nossos esforços. 32. Julgo, portanto, que o sábio tem certeza da sabedoria, isto é, que o sábio conhece a sabedoria e que por isso ele não opina quando dá seu assentimento à sabedoria. Pois ele dá seu assentimento a uma coisa tal que se não a conhecesse com certeza, não seria sábio. Os próprios Acadêmicos negam que se deva recusar o assentimento senão a coisas que não se podem perceber. Ora a sabedoria não é algo que não é nada. Portanto, ao conhecer a sabedoria e dar-lhe seu assentimento, não se pode dizer que ele não conhece nada nem que ele dá seu assentimento a nada. O que mais quereis? Ou falaremos daquele erro que, segundo eles, se evita completamente quando o assentimento não faz pender o espírito para nenhum lado. Erra, com efeito, dizem eles, quem aprova não só uma coisa falsa, mas também uma coisa dúbia, ainda que esta seja verdadeira. Ora não há nada que não seja duvidoso. Mas o sábio, como dizíamos, encontra a sabedoria. Crítica do conceito de "provável" XV,33. Mas talvez quereis que eu abandone este terreno. Não se deve facilmente abandonar argumentos tão seguros pois tratamos com homens muito astutos. Contudo cederei ao vosso desejo. Mas aqui, o que direi? O quê? É preciso retomar o velho argumento em relação ao qual também eles têm algo a dizer. O que farei, expulso por vós do meu acampamento? Implorarei o auxílio dos doutos, com os quais, se não conseguir vencer, a derrota talvez me envergonhará menos? Lançarei, pois, com todas as minhas forças aquele dardo já enegrecido de fumaça e todo enferrujado, é certo, mas, se não me engano, extremamente eficaz: quem nada aprova, nada faz. Que candura! E onde fica o provável? Onde o verossímil? É isso o que queríeis. Ouvis ressoar os escudos gregos? O dardo extremamente forte, sem dúvida, atingiu o seu alvo. Mas também com que mão o arremessamos! Os que estão comigo não me sugerem nada mais potente. Todavia, como vejo, não causamos o menor ferimento. Considerarei, pois, os argumentos que a fazenda e o campo me fornecem. O que está acima disso é mais um fardo que uma ajuda para mim. 34. No lazer deste campo durante longo tempo eu me interrogava como esse provável ou verossímil pode garantir nossas ações contra o erro. Inicialmente quando eu vendia estas ideias, pareceu-me, como é natural, que era um refúgio admiravelmente coberto e defendido. Mas, depois que examinei tudo com mais cautela, pareceu-me ver uma abertura por onde o erro pode investir contra os que se sentem seguros. Pois acho que não erra somente aquele que segue o caminho errado, mas também aquele que não segue a via verdadeira. Suponhamos dois viajantes que se dirigem a um mesmo lugar. Um deles decidiu não acreditar em ninguém e o outro é excessivamente crédulo. Chegam a uma bifurcação. O crédulo pergunta a um pastor que ali se encontra ou a um camponês qualquer: - Bom dia, meu caro senhor, qual é o caminho que leva a tal lugar? Ele responde: - Vá por este caminho que não errará. O primeiro diz então ao companheiro: - Ele diz a verdade, vamos por aqui. O viajante, desconfiado, põe-se a rir, zomba desse assentimento tão apressado e, enquanto o outro parte, permanece plantado na bifurcação. Depois de algum tempo lhe pareceu absurdo ficar parado, quando de repente pelo outro caminho surge um homem garbosamente montado em seu cavalo, vindo em sua direção. Feliz, saúda o cavaleiro, fala-lhe do seu destino e pergunta-lhe sobre o caminho. Explica-lhe também por que está ali parado a fim de torná-lo mais benevolente por ser preferido ao pastor. Por acaso o cavaleiro era um daqueles vagabundos que vulgarmente se chamam "samardacos". Sendo homem mau, o cavaleiro agiu segundo o seu costume, mesmo sem ter nenhum interesse na questão e disse-lhe: - Segue por ali, é dali que eu venho. Com estas palavras enganou-o e foi embora. Mas quando teria sido ele enganado? Falando consigo mesmo, diz: "Não aprovo esta informação como verdadeira, mas como é verossímil e não é honesto nem útil ficar ocioso, tomarei este caminho". Entrementes, aquele que errou por ter dado tão prontamente o seu assentimento às palavras do pastor, já estava descansando no lugar do seu destino. O outro que não erra, pois que segue o provável, anda vagando pelas florestas e não encontra sequer uma pessoa que conheça o lugar ao qual se dirige. Confesso-vos que não pude conter o riso ao refletir que, não sei como, segundo as palavras dos Acadêmicos, acontece que aquele que segue o caminho verdadeiro, ainda que por acaso, erra, enquanto não parece errar o que seguindo a probabilidade vagueia por montanhas intransitáveis, sem encontrar a região procurada. Se for preciso condenar o assentimento temerário, direi que mais facilmente erram ambos, que dizer que não erra o último. A partir daí comecei a ser mais cauteloso com essas afirmações dos Acadêmicos e considerar mais atentamente os fatos e costumes dos homens. Então me ocorreram tantos e tão graves argumentos contra os Acadêmicos que já não tinha vontade de rir, mas ora me indignava, ora me afligia que homens tão doutos e sutis fossem levados a opiniões tão criminosas e depravadas. XVI,35. Certamente nem todo homem que erra peca, mas de todo o que peca se diz que erra ou algo pior. Suponhamos que um adolescente ouve os Acadêmicos dizerem: "É vergonhoso errar e por isso não se deve dar assentimento a nada. Mas quando alguém faz o que parece provável, não peca e não erra; lembre-se apenas de não aprovar como verdadeiro tudo o que se apresenta ao espírito ou aos sentidos". Ouvindo isso, o nosso jovem atenta contra o pudor da mulher alheia. É a ti que apelo, Marco Túlio. Estamos tratando da vida e dos costumes dos jovens, a cuja educação e formação foram endereçados todos os teus livros. O que dirás, senão que para ti não há nenhuma probabilidade que justifique a conduta do jovem? Mas para ele esta probabilidade existe. Pois se devemos viver segundo o que parece provável a outros, não deverias ter governado o Estado, porque Epicuro achava que não se devia fazê-lo. Seduzirá, pois, aquele jovem a esposa do seu próximo. Se for pego em flagrante, onde te encontrará para defendê-lo? E mesmo que te encontre, o que dirás? Claro que negarás o fato. Mas se o caso for tão claro que seria inútil negá-lo? Sem dúvida te empenharás em persuadir, como no ginásio de Cumas ou de Nápoles, que ele não cometeu nenhuma falta, mais que isso, que nem sequer errou. Pois ele não se convenceu como de coisa certa que devia cometer o adultério. Apresentou-se a ele uma probabilidade e ele a seguiu, a executou. Ou talvez não a executou. Apenas pareceu-lhe que a executava. Mas o tolo do marido arma um escarcéu com processos em defesa da castidade da esposa, com a qual talvez durma sem saber da realidade. Se os juízes se ocuparem do caso, ou desprezarão os Acadêmicos e o punirão como crime perfeitamente real, ou, seguindo os Acadêmicos, condenarão o jovem por verossimilhança e probabilidade, de modo que o advogado já não sabe o que fazer. Pois não terá quem atacar, visto que todos dirão que não erraram, tendo feito, sem dar o seu assentimento, aquilo que lhes pareceu provável. Abandonará então o papel de advogado e assumirá o de filósofo consolador. Assim persuadirá facilmente o jovem, que já fez tantos progressos na Academia, que se considere condenado em sonho! Pensais que estou gracejando? Posso jurar com toda certeza por tudo o que é divino que não sei como este jovem pecou, se quem faz o que lhe parece provável não peca. A menos que digam que pecar é completamente diferente de errar e que com seus preceitos se esforçaram para que não erremos, dizendo ainda que o pecado não é coisa grave. 36. Nada direi dos homicídios, dos parricídios, dos sacrilégios e de todas as ignomínias e crimes que se podem cometer ou pensar, e que se justificam com poucas palavras, e o que é mais grave, perante juízes sapientíssimos: não dei meu assentimento e portanto não errei. Como não fazer o que me pareceu provável? Os que pensam que não se pode persuadir tais crimes em nome da probabilidade, leiam o discurso de Catilina no qual aconselham o parricídio da pátria, crime que resume todos os crimes. Quem poderá conter o riso diante de tal sistema? Os Acadêmicos dizem que, na prática, só seguem o provável e com todo o afinco procuram a verdade, quando é provável que não poderão encontrá-la. Que maravilhoso absurdo! Mas deixemos de lado este ponto, que nos toca menos, interessa menos à ordem da nossa vida, representa menos perigo para a nossa sorte. O que é vital, o que é espantoso, o que é de assustar todas as pessoas honestas é que, se o raciocínio dos Acadêmicos é provável, se poderá cometer qualquer abominação, sem ser acusado de crime e nem sequer de erro, uma vez que se julgue dever seguir o provável, desde que não se dê o assentimento a nada como verdadeiro. O que diremos? Será que esses filósofos não viram isso? Claro que sim e isso com uma sagacidade e penetração extraordinária. Não tenho absolutamente a pretensão de comparar-me a Marco Túlio em habilidade, prudência, talento e doutrina. Todavia, quando ele afirma que o homem não pode saber nada, se lhe fosse replicado apenas isso: "Sei que isso me parece assim", ele não teria o que responder. Os motivos históricos do ceticismo acadêmico XVII,37. O que terá levado tão eminentes homens a afirmar, nas suas perpétuas e obstinadas discussões, que ninguém pode chegar ao conhecimento da verdade? Ouvi agora com um pouco mais de atenção não o que sei, mas o que penso. Reservei para o fim este ponto, onde, se puder, explicarei qual me parece ser todo o pensamento dos Acadêmicos. Platão foi o homem mais sábio e mais erudito do seu tempo, falou de tal modo que tudo o que dizia se tornava grande, e disse coisas que de qualquer modo que as dissesse, nunca se tornavam pequenas. Após a morte do seu mestre Sócrates, por quem tinha especial predileção, aprendeu ainda muitas coisas dos Pitagóricos. Ora, Pitágoras insatisfeito com a filosofia grega, que na época era quase inexistente ou, em todo caso, muito secreta, depois que pelos argumentos de certo Ferécides foi levado a crer na imortalidade da alma, ouvira ainda muitos sábios, no curso de longas e longínquas peregrinações. Platão, pois, acrescentando à graça e à sutileza socrática nas questões morais a ciência das coisas divinas e humanas que adquirira diligentemente daqueles que acabo de lembrar e coroando depois esses elementos com uma disciplina capaz de organizá-los e julgá-los, isto é, a dialética, que ou é a própria sabedoria ou sem a qual não pode haver sabedoria, elaborou, segundo se diz a filosofia como ciência perfeita. Mas não é o momento de tratar dela. Para o meu propósito basta dizer que Platão pensou que há dois mundos, um inteligível no qual habita a própria verdade, e este outro sensível, que se nos manifesta pela vista e pelo tato. Dizia que consequentemente aquele é verdadeiro, este é semelhante àquele e feito à sua imagem, que o primeiro é o princípio da verdade, na qual se aperfeiçoa e purifica a alma que se conhece a si mesma, enquanto o outro pode gerar na alma dos insensatos não a ciência, mas a opinião. Todavia, tudo o que se faz neste mundo pelas virtudes que ele chamava civis, semelhante às virtudes verdadeiras, conhecidas apenas de um pequeno número de sábios, só pode ser chamado de verossímil. 38. Parece-me que estas e outras coisas da mesma espécie foram conservadas, enquanto possível, entre os sucessores de Platão e guardadas sob a forma de ensinamento secreto. Pois, ou estas coisas não podem ser facilmente percebidas senão pelos que, purificando-se de todos os vícios, se consagraram a um gênero de vida mais que humano, ou aquele que as conhece não comete falta grave ao querer ensiná-las a qualquer outro. E assim quando Zenão, líder dos estoicos, que já havia ouvido e admitido certas teses, veio à escola deixada por Platão e então dirigida por Pólemon, creio que o tomaram por suspeito e considerado tal que não se lhe devia entregar e confiar facilmente os ensinamentos por assim dizer sacrossantos de Platão, antes que tivesse esquecido as teorias que tinha aprendido de outros e trazido para aquela escola. Morre Pólemon e sucede Arcesilau, condiscípulo de Zenão, mas formado sob o magistério de Pólemon. Por isso, como Zenão se lisonjeava de uma doutrina sua sobre o mundo e principalmente sobre a alma, tema que mantém sempre vigilante a verdadeira filosofia, dizendo que a alma é mortal e que não há nada fora deste mundo sensível e que tudo nele é obra do corpo (pois achava que o próprio deus era fogo), Arcesilau, a meu ver, com muita prudência e utilidade, ao ver aquele mal espalhar-se largamente, ocultou completamente a doutrina da Academia, enterrando-a como ouro para que alguma vez a descobrissem os pósteros. Por isso, como a multidão é propensa a cair em opiniões falsas e o hábito das coisas corporais leva facilmente, mas não sem perigo, a crer que tudo é corporal, aquele homem tão penetrante e culto decidiu antes desinstruir aqueles que via estarem mal instruídos que instruir os que não julgava capazes de aprender. Daqui provêm todas essas teorias que se atribuem à Nova Academia e das quais os antigos não tinham necessidade. 39. Se Zenão, despertado de suas ilusões, tivesse visto que não se pode perceber nada senão o que é conforme à sua definição e que nada de tal se pode encontrar nas realidades corpóreas às quais reduzia tudo, já há muito tempo se teria extinto este gênero das disputas deflagrado por uma grande necessidade. Mas Zenão, enganado por uma falsa ideia de constância, segundo parecia aos próprios Acadêmicos e também a mim, foi obstinado e sua perniciosa convicção a respeito dos corpos sobreviveu como pôde até Crisipo, que, com sua enorme influência, lhe deu tal força que se teria difundido mais largamente, não fosse Carnéades, o qual, mais penetrante e vigilante que todos os seus predecessores, lhe resistiu de tal modo que me surpreende que aquela opinião ainda gozasse de algum prestígio posteriormente. Carnéades foi o primeiro a abandonar essa espécie de imprudente calúnia, pela qual via Arcesilau gravemente difamado, para não parecer que contradizia a tudo por uma espécie de jactância. Mas foi propriamente os estoicos e Crisipo que ele se propôs abater e destruir. XVIII,40. Depois Carnéades foi atacado de todos os lados, porque se o sábio não deve dar assentimento a nada, não deve fazer nada. Ó homem admirável ou antes não admirável, pois derivou sua doutrina das fontes do próprio Platão! Observa então sabiamente que ações os homens aprovam e vendo que eram semelhantes a não sei que ações verdadeiras, chamou de verossímil o que neste mundo se deve seguir como regra da prática. Pois ele sabia perfeitamente a que era semelhante o verossímil e prudentemente o ocultava, chamando-o também de provável. Reconhece bem uma imagem quem conhece o modelo. Pois como o sábio aprova ou como pode seguir o verossímil se ignora a própria verdade? Portanto esses homens conheciam e aprovavam coisas falsas, nas quais observavam louvável semelhança com as coisas verdadeiras. Mas como não era lícito nem fácil revelar isso aos profanos, deixaram à posteridade e aos que podiam em seu tempo certo sinal da sua doutrina. E com insultos e zombarias proibiam os bons dialéticos promover questões de terminologia. Por isso, diz-se (dicitur) que Carnéades tinha sido também o principal expoente e, antes, o fundador, de uma "terceira" Academia. 41. Depois esse conflito continuou até o nosso Túlio, mas já muito debilitado, para inflar com seu último sopro a literatura latina. Pois nada me parece mais inflado que dizer tantas coisas com tal abundância e tantos ornamentos sem estar convencido. Todavia parece-me que foi por esse sopro que aquele célebre platônico Antíoco foi dissipado e disperso qual espantalho de palha. Pois os rebanhos dos epicuristas instalaram seus ensolarados estábulos entre os povos efeminados. Assim Antíoco, discípulo de Filo, que, a meu ver, foi homem extremamente circunspecto e havia começado, por assim dizer, a abrir as portas aos inimigos vencidos e a restaurar a autoridade de Platão e suas leis na Academia, embora Metrodoro já tivesse tentado fazê-lo antes, tendo sido o primeiro, segundo se diz, a confessar que não foi expressamente o pensamento dos Acadêmicos que nada se pode perceber, mas que por necessidade usaram armas dessa espécie contra os estoicos. Antíoco, pois, como eu começara a dizer, depois de ter ouvido o acadêmico Filo e o estoico Mnesarco; introduziu-se sorrateiramente, a título de auxiliar e membro na antiga Academia, então quase vazia de defensores e que, por falta de inimigos, se sentia segura, e nela introduziu não sei que funesta doutrina tomada das cinzas dos estoicos para violar o santuário de Platão. Mas Filo, tendo-lhe arrancado essas armas, resistiu-lhe até morrer. E o nosso Túlio destruiu tudo o que restara, não podendo suportar que em sua vida fosse abalado ou contaminado nada do que ele amava. Não muito tempo depois daquela época, cessada toda obstinação e contumácia, a doutrina de Platão, a mais pura e luminosa da filosofia, expulsou as nuvens do erro e voltou a brilhar, principalmente em Plotino, filósofo platônico, que foi julgado tão semelhante ao seu mestre que se diria terem vivido juntos, se o longo tempo que os separa não obrigasse a crer que Platão reviveu em Plotino. XIX,42. Assim, agora quase não vemos mais filósofos a não ser cínicos, peripatéticos e platônicos, e só há cínicos porque gostam de certa liberdade e licenciosidade de vida. Mas no que tange à erudição e à doutrina e à moral, que cuida da alma, não faltaram homens de grande penetração e habilidade para mostrar por suas disputas que Aristóteles e Platão estavam tão perfeitamente de acordo entre si que só aos ignorantes e desatentos podiam parecer discordar entre si. Mas foi necessário que passassem muitos séculos e discussões para que se elaborasse, segundo julgo, um só sistema de filosofia perfeitamente verdadeira. Esta filosofia não é a deste mundo, que nossos mistérios com toda a razão abominam, mas a de outro mundo inteligível, ao qual a sutileza da razão jamais teria levado as almas cegadas pelas multiformes trevas do erro e soterradas sob a enorme massa das impurezas corporais, se o sumo Deus, movido de misericórdia pelo seu povo, não tivesse inclinado e abaixado até o corpo humano a autoridade do Intelecto divino, de tal sorte que, excitadas não só pelos preceitos mas também pelas obras pudessem, mesmo sem as disputas, entrar em si mesmas e olhar para a pátria. XX,43. Tal é o juízo que por ora e na medida das minhas forças, formei a respeito dos Acadêmicos. Se for falso, pouco importa. Agora me basta não crer que o homem é incapaz de encontrar a verdade. Quem achar que os Acadêmicos tiveram essa opinião, ouça Cícero. Diz ele que era costume deles ocultar sua doutrina e só revelá-la àqueles que tivessem vivido com eles até a velhice. Qual foi esta doutrina, Deus sabe. Eu acho que era de Platão. Mas para que em poucas palavras saibais qual é o meu ponto de vista, seja qual for a sabedoria humana, vejo que ainda não a conheço. Todavia, embora eu já esteja no meu trigésimo terceiro ano de vida, creio que não devo desesperar de alcançá-la algum dia. Decidi desprezar tudo o que os mortais julgam bens para dedicar-me à sua busca. Como os argumentos dos Acadêmicos me afastavam consideravelmente deste propósito, julgo ter-me armado suficientemente contra eles com a presente disputa. Todos sabem que somos levados à aprendizagem pelo duplo impulso de autoridade e da razão. Tenho a certeza de absolutamente nunca separar-me da autoridade de Cristo, pois não encontro outra mais poderosa. Quanto às coisas cujo estudo exige grande penetração da razão - pois estou em tal condição que desejo impacientemente compreender a verdade não só pela fé, mas também pela inteligência -, confio encontrar por ora entre os platônicos elementos que não contradigam a nossa sagrada doutrina. Conclusão 44. Nesse momento, ao ver que eu tinha terminado meu discurso, e embora já fosse noite e já tivesse sido necessário trazer uma lanterna para acabar de escrever, os jovens aguardavam com toda a atenção que Alípio prometesse responder, ainda que fosse em outro dia. Disse então Alípio: - Devo declarar que jamais nada correspondeu melhor ao meu desejo que de sair vencido da discussão de hoje. E penso que esta alegria não deve ser só minha. Desejo compartilhá-la convosco, meus companheiros de luta ou juízes nossos, pois talvez até os Acadêmicos desejaram ser vencidos desta maneira pela posteridade. O que poderia ser-nos oferecido de mais agradável que este discurso, o que de mais ponderado pela gravidade das sentenças, mais aberto pela benevolência e mais hábil na argumentação? Nunca posso admirar o bastante a amenidade com que trataste questões tão espinhosas, tanta coragem em situações desesperadas, tanta moderação na exposição de tuas convicções, tanta clareza nos pontos obscuros. Assim, pois, companheiros meus, convertei vossa expectativa com a qual me convidastes a responder, numa esperança mais segura de instruir-vos juntamente comigo. Temos um guia capaz de conduzir-nos ao santuário mais secreto da verdade, que Deus já nos faz entrever. 45. Ao ver, pela sua fisionomia, que os jovens estavam um tanto decepcionados porque, ao que parecia, Alípio não ia responder, eu lhes disse sorrindo: - Acaso tendes inveja dos elogios que recebi? Mas por não ter mais que temer Alípio, por estar seguro da sua firme resolução, para que também vós me agradeçais, vou preparar-vos contra ele, que frustrou vossa esperança. Lede os livros dos Acadêmicos e quando ali virdes como Cícero triunfa sobre minhas bagatelas - e o que há de mais fácil - obrigai Alípio a defender este nosso discurso contra os argumentos de Túlio. Esta é, Alípio, a onerosa recompensa que te dou pelos teus falsos elogios! Todos riram e assim encerramos este grande debate. Não sei se com muita solidez, mas em todo caso mais moderada e rapidamente do que eu esperava.