Agostinho de Hipona - Solilóquios ÍNDICE PRIMEIRO LIVRO I - PRECE A DEUS II - O QUE HÁ DE SE AMAR? III - CONHECIMENTO DE DEUS IV - A VERDADEIRA CIÊNCIA V - COMO UMA MESMA CIÊNCIA PODE ABARCAR COISAS DIVERSAS VI - OS OLHOS DA ALMA COM OS QUAIS SE PERCEBE A DEUS VII - ATÉ QUANDO SÃO NECESSÁRIAS A FÉ, A ESPERANÇA E A CARIDADE VIII - CONDIÇÕES PARA CONHECER A DEUS IX - O AMOR-PRÓPRIO X - O AMOR PELAS COISAS CORPORAIS E EXTERNAS XI - O USO DOS BENS EXTERIORES XII - COMO TODOS OS DESEJOS E PAIXÕES DEVEM SE DIRIGIR AO SUMO BEM XIII - COMO E POR QUAIS GRAUS SE TEM ACESSO À SABEDORIA E AO AMOR VERDADEIRO XIV - COMO A SABEDORIA CURA OS OLHOS DA ALMA E OS DISPONIBILIZA À VISÃO XV - CONHECIMENTO DA ALMA E CONFIANÇA EM DEUS SEGUNDO LIVRO I - DA IMORTALIDADE DO HOMEM II - A VERDADE É ETERNA III - SE SEMPRE EXISTEM FALSIDADE E PERCEPÇÃO SENSÍVEL, CONCLUI-SE QUE NUNCA DEIXARÁ DE EXISTIR ALGUMA ALMA IV - PODE-SE CONCLUIR PELA PERENIDADE DO FALSO E A VERDADE DA IMORTALIDADE DA ALMA? V - O QUE É A VERDADE VI - DE ONDE VEM E ONDE SE ENCONTRA A FALSIDADE VII - Do VERDADEIRO E DO SEMELHANTE - O NOME SOLILÓQUIOS VIII - A ORIGEM DO FALSO E DO VERDADEIRO IX - O FALSO, O ARDILOSO E O MENTIROSO X - COMO ALGUMAS COISAS SÃO VERDADEIRAS AO MESMO TEMPO EM QUE SÃO FALSAS XI- A VERDADE DAS CIÊNCIAS - A FÁBULA E A GRAMÁTICA XII - DE QUANTOS MODOS ESTÃO UNIDAS AS COISAS XIII - COMO SE DEDUZ A IMORTALIDADE DA ALMA XIV - EXAME DO SILOGISMO ANTERIOR XV - NATUREZA DO VERDADEIRO E DO FALSO XVI - A POSSIBILIDADE DE COISAS MELHORES SEREM DENOMINADAS COM NOMES DE OUTRAS DE MENOR VALOR XVII - EXISTEM COISAS INTEIRAMENTE FALSAS OU VERDADEIRAS? XVIII - SE OS CORPOS SÃO VERDADEIROS XIX - DAS VERDADES ETERNAS SE DEDUZ A IMORTALIDADE DA ALMA XX - COISAS VERDADEIRAS E COISAS DESPERTADAS PERCEPÇÃO SENSÍVEL E INTELIGÍVEL PRIMEIRO LIVRO CAPÍTULO I PRECE A DEUS Durante muitos dias eu dediquei a mim mesmo uma pausada e diligente investigação de vários e diversos problemas, relativos ao meu ser. O bem que devo buscar e os males que devo evitar, quando de repente uma voz interior, não sabendo se de mim mesmo ou de outro, dentro de meu íntimo ou de fora me falava, e é isto que pretendo elucidar aqui. Dizia-me aquela voz: Alter ego - Suponha que tenha encontrado uma verdade! A quem a recomendaria para levá-la à frente? Agostinho - À memória! AE - Acredita ser esta suficientemente segura para reter fielmente os resultados destas investigações? AA - Parece-me difícil, ou melhor, impossível! AE - Assim é necessário escrever. Porém, o que ocorre, que anda renitente para escrever? Estas coisas não podem ser impostas, porque necessitam duma completa solidão. AA - É verdade o que diz. Estou confuso sobre o que devo fazer. AE - Peça força e auxílio para cumprir sua tarefa, e solicitaria que a fizesse por escrito, para que a redação realçasse o voto a Deus. Resuma depois o que for descobrindo em rápidas conclusões. Não te inquiete pelas exigências da numerosa massa de leitores, isto será suficiente para o círculo de teus concidadãos. AA - Farei como diz! 1. Deus, criador de todas as coisas, dê primeiro a graça de saber suplicar-lhe adequadamente, depois me faça digno de ser escutado e, por último, liberta-me. Deus, por quem todas as coisas por si só não poderiam existir, e só passam a ser por vós. Deus, não permita que os seres se aniquilem, e que de si próprios promovam a destruição. Deus que criaste este mundo do nada, o mais belo que os olhos possam contemplar. Deus, que não promove nenhum mal e faz com que este não impere. Deus, que poucos em seu verdadeiro ser buscam o refúgio e lhes mostra que o mal só é uma privação do existir. Deus, para quem o universo das existências é a perfeição, mesmo com as deficiências que possam apresentar. Deus, do qual não provém qualquer dissonância, quando harmonizamos o pior com o melhor. Deus, a quem ama todos os que são capazes de amar, seja consciente ou inconscientemente. Deus, no qual se encontra todas as coisas, mas sem enfeiar-se com a fealdade destas, sem zangar-se com suas malícias ou extraviar-se com seus erros. Deus, que só aos puros deseja que possuam a verdade. Deus, Pai da Verdade, Pai da Sabedoria e da verdadeira e plena vida. Pai da boa ventura. Pai de tudo que é bom e belo. Pai da luz inteligível. Pai de nossas Inspirações, com as quais dissipa nosso sono profundo e nos ilumina. Pai das qualidades que nos avisam a voltar a ti. 2. A ti invoco Deus Verdade, princípio, origem e fonte da verdade de todas as coisas verdadeiras. Deus, Sabedoria, autor e fonte da sabedoria de todos aqueles que sabem. Deus, suprema e verdadeira vida, de quem e por quem vivem todas as coisas que existem verdadeiramente. Deus bem-aventurança, em quem e para quem são bem aventurados quantos assim o for. Deus, Bondade e Perfeição, princípio, causa e fonte de todas as coisas boas e perfeitas. Deus, Luz espiritual, que banha de luz as coisas que iluminam a inteligência. Deus, cujo reino é todo um mundo, o qual nossos sentidos não alcançam. Deus, que governa os impérios com leis das quais se afastam os reinos da terra. Deus separar-se de ti é cair, olhar a ti, levantar-se; permanecer em ti e segurar-lhe com firmeza. Deus afastar-se de ti é morrer, voltar a ti é revi ver, morar em ti é viver. Deus, do qual ninguém se perde se não for enganado, o qual ninguém busca se não avistar um sinal, o qual ninguém descobre se não estiver purificado. Deus, deixá-lo é ir à morte; segui-lo é amar, vê-lo é possuí-lo. Deus que nos desperta para a fé, levanta a esperança, nos une na caridade. Eu o chamo meu Deus, por quem vencemos o inimigo. Deus, teus favores agradecemos. Deus, que nos alerta a ficarmos vigilantes, Deus, de tua luz discernimos os bens e os maus. Deus, por tua graça evita o mal e fazemos o bem. Deus, tu nos torna fortes para que não sucumbamos ante as adversidades. Deus, a quem devemos nossa obediência e uma boa direção. Deus, por quem apreendemos que é alheio àquilo que alguma vez acreditamos ser nosso, e o que é nosso aquilo que alguma vez acreditamos alheios. Deus, por quem superamos os estímulos e adulações do mal. Deus, por quem as coisas menores não nos aviltam e nossa porção superior não se sujeitam à inferior. Deus, por quem a morte será absorvida com a vitória. Deus, que nos converte e nos mostra o que não é, e torna visível o que é. Deus, que nos faz dignos de ser ouvidos. Deus, que nos defende. Deus, que nos guia à verdade. Deus, que nos mostra todo o bem, dando-nos a prudência e livrando-nos da tolice alheia. Deus, que nos faz voltar ao caminho. Deus, que nos mostra a porta, e faz com que esta se abra àquele que chama. Deus, que nos dá o pão da vida. Deus, que nos dá à sede de beber aquilo que tomado nos sacia. Deus, que nos mostra o mundo do pecado, da justiça e do juízo. Deus, por quem não nos arrastam os que não creem, e reprovamos os erros dos que pensam que as almas não têm nenhum mérito diante de ti. Deus, por quem não somos escravos dos tolos e fracos. Deus, que nos purifica e prepara para o prêmio divino, e nos socorre e ajuda. 3. Tudo quanto aqui digo és tu, meu único Deus; venha em meu socorro, única, eterna e verdadeira substância, donde não há nenhuma discordância, nem dúvidas, nem mudanças, nem carências, nem morte, apenas uma grande concórdia, grande evidência, um soberano repouso, uma soberana plenitude e uma sublime vida; donde nada falta nem sobra: donde o Pai e o Unigênito constituem uma mesma substância. Deus, a quem servem todas as criaturas capazes de submissão, a quem obedecem todas as almas boas. Segundo tuas leis giram os céus e os astros realizam seus movimentos, o sol produz o dia, e a lua fornece a noite, e todo o universo segundo permite sua condição material, conserva uma grande constância com a ordem e evolução dos tempos; durante os dias, com a mudança de dias e noites, durante os meses, com as luas crescente e minguante, durante os anos, com a sucessão da primavera, verão, outono e inverno; durante o movimento e a perfeição do curso do sol; durante ciclos, no retorno dos astros aos seus pontos de partida. Deus, por cujas leis eternas não há perturbação no movimento variável dos corpos em movimento e com segurança movimentam-se há séculos demonstrando a sua estabilidade; por cujas leis da liberdade ao arbítrio humano e assim distribui prêmios aos bons e castigos aos maus, seguindo a uma ordem fixa. Deus de ti procede até nós todos os bens. Tu isolas os males. Deus, nada existe sobre ti, nada fora de ti, nada sem ti. Deus, tudo se coloca abaixo de teu império, tudo está em ti, tudo está contigo. Tu criaste o homem a tua imanência, como reconhecerá todo homem que conhece a si próprio. Ouvi-me, escutai-me e atendei-me. Meu Deus, Senhor, Rei e Pai, minha origem e meu criador, minha esperança, herança, honra, casa, pátria, saúde, luz e vida. Escuta-me, escuta-me, escuta-me segundo tua especial feição tão pouco conhecida. 4. Agora amo a ti somente, e só a ti busco e sigo, a ti estou disposto a servir porque somente tu reinas de forma justa, e assim quero pertencer a teu reino. Peça o que quiserdes, mas acura meus ouvidos para ouvir tua voz, acura e abre os meus olhos para entender teus sinais; retira de mim toda ignorância para que eu reconheça a ti. Diga-me aonde devo dirigir minha atenção para te ver, e assim espero fazer tudo o que pedires. Peço-te que recebas a este teu fugitivo Senhor, Pai clemente; basta agora com o que lhe fiz sofrer, basta de trabalhar a teus inimigos, hoje me coloco a teus pés, basta agora de ser um fantoche de falsas aparências. Recebe agora este teu servo, que escapa de teus opositores, que me aliciaram sem que a eles eu pertencesse, porque vivia longe de ti. Agora compreendo a necessidade de voltar, abra a porta, porque estou chamando, ensina-me o caminho para chegar até ti. Só tenho essa vontade; consciente que um decrépito e transitório deve depreciar-se para poder depois buscar o seguro e eterno. O que faço Pai, porque estou só, e não conheço o caminho que leva a ti. Ensina-me, mostra, dá-me a força para esta viagem. Se com a fé chegam a ti os que te buscam, não me negue a fé, se for com a virtude, dá-me virtude, se com a ciência, dá-me a ciência. Aumenta a minha fé, minha esperança, minha caridade... Oh quanto admirável e singular é tua bondade. 5. A ti elevam-se minhas aspirações, e volto a pedir asas para chegar a ti. Se tu me abandonas, logo a morte se antecipa sobre mim; mas sei que tu não me abandonas, porque é o Bem sublime, e nada se busca adequadamente sem encontrá-lo. E devidamente busco o que recebi de ti, o dom de buscá-lo como se deve. Que eu possa te procurar, meu Pai, sem incorrer em nenhum erro; e que ao procurá-lo nenhum outro me venha ao encontro senão ti. Pois meu único desejo é possuí-lo; ponha-se ao meu alcance, meu Pai, e se encontrares em mim algum desejo supérfluo, me limpa para que eu possa vê-lo, Com respeito à saúde corporal, enquanto dela não me aperceber que utilidade pode suplicar para mim e para meus amigos, os quais amo, deixo-a inteiramente em tuas mãos. Pai sapientíssimo e perfeito, eu suplico por esta necessidade, segundo oportunamente me indicar. Agora só imploro tua nobilíssima clemência para que me converta plenamente a ti e retire todas as aversões que se oponham a isto, e ao tempo necessário para o esforço deste corpo, a fim de que se torne puro, magnânimo, justo e prudente, perfeito amante, conhecedor de tua sabedoria e digno desta habitação. E como habitante merecedor de teu bem aventurado reino. Amém! CAPÍTULO II O QUE HÁ DE SE AMAR? AA - Meu Deus! Estou suplicando. AE - O que queres saber exatamente? AA - Tudo o que lhe tenho pedido. AE - Faz então um breve resumo. AA - Quero conhecer a Deus e a alma. AE - Nada mais? AA - Absolutamente mais nada. AE - Começa, pois, tua investigação. Mas diga-me antes a que grau de conhecimento gostaria de chegar, para que a ti fosse suficiente. AA - Não sei como Deus deverá a mim se apresentar para que eu possa dizer que seria suficiente, também, porque não conheço nada com a profundidade pela qual desejo conhecer a ele. AE - Então o que faremos? Não imaginas que primeiro deveria determinar o grau de saber divino a que aspira, para uma vez isto determinado, possa cessar tua investigação? AA - Concordo; mas não vejo o modo de conseguir isto. Acaso conhecerias algo semelhante a Deus para que assim eu pudesse dizer: "Assim como conheço isto, quero conhecer a meu Deus". AE - Se admites não conhecer a Deus, como podes saber que não conhece nada semelhante a ele? AA - Porque se conhecesse algo semelhante, certamente eu o amaria sem dúvidas, e agora só amo Deus e a alma, duas entidades que ignoro. AE - Então não amas teus amigos? AA - Amando a alma, como não vou amá-los? AE - Bem, pelo mesmo raciocínio também amarás os insetos? AA - Eu disse que amo as almas, não os insetos. AE - Os animais não são teus amigos ou tu não os ama? Pois todo homem é animal e tu dizes que não amas os animais. AA - Amo os homens não por sua natureza animal, mas pela humana, isto significa que eles têm almas racionais, e isto eu aprecio até nos ladrões. Posso assim amar a razão de todos, mesmo quando tempestuosos usam o mal, eu os amo. Desta forma, tanto mais amo meus amigos quanto melhor utilizam sua alma racional, ou ainda quando mais desejam dela fazer uso. CAPÍTULO III CONHECIMENTO DE DEUS AE - Está bem, contudo se alguém te propusesse: Far-te-ei conhecer a Deus assim como conheces a Alípio! Ficarias satisfeito, e dirias: Isso me satisfaz? AA - Eu o agradeceria, mas não me daria por satisfeito. AE - Por quê? AA - Porque conhecer a Deus como a Alípio, se não me satisfaz o conhecimento que tenho deste? AE - Reflete bem, então, se não seria uma insolência querer conhecer a Deus o suficiente, quando não conheces a Alípio. AA - Este argumento não é justo, posto que em comparação com os astros, o que existiria de mais indigna do que minha ceia? Contudo, não sei o que cearei amanha, mas sei a fase da lua em que estaremos. AE - Ficarias satisfeito, desta forma, em conhecer a Deus como conheces o sinal do curso da lua pela manhã? AA - Não seria suficiente, porque isso pertence à esfera da percepção sensível, e não sei se Deus ou alguma coisa natural oculta mudará a ordem e o curso da lua; e se isto acontecer, cairá por terra toda a minha previsão. AE - E julgas que isso seria possível? AA - Não, mas agora busco o saber, não a fé. E o que sabemos dizemos crer, mas nem tudo o que cremos, sabemos. AE - Recusas, desta forma, neste ponto o testemunho dos sentidos? AA - Totalmente. AE - Pois aquele teu amigo, embora não conhecido por ti, conforme afirmas como queres conhecê-lo, com os sentidos ou com o conhecimento? AA - Aquilo que conheço dele pelos sentidos, se é que por estes podemos conhecer algo, é de pouco valor e assim me basta; porém quero conhecer aquela parte da qual amo, ou seja, a alma que espero alcançá-la com o entendimento. AE - Poderia conhecê-la de outra forma? AA- Não! AE - E, te atreves dizer que é desconhecido um amigo tão afetuoso e familiar? AA - Por que não? Acredito ser uma lei justa a da amizade que prescreve amar um amigo como a si mesmo. E como eu não conheço a mim próprio, não é nenhuma injustiça dizer que um amigo é desconhecido, sobretudo quando nem ele mesmo se conhece, segundo imagino. AE - Pois bem, o que queres indagar agora é a natureza intelectual. Ao te censurar questionando ser uma presunção o desejar conhecer a Deus sem conhecer a Alípio, não estaria bem a propósito à cena da lua ser um exemplo, por ser esta pertencente ao domínio dos sentidos, segundo dizes. CAPÍTULO IV A VERDADEIRA CIÊNCIA AE - Mas deixando isto de lado, responde a isto: Supondo que seja verdade o que de Deus tenham dito Platão e Plotino, a ti seria suficiente sua ciência divina? AA - O fato de poderem ser verdadeiras as coisas que eles disseram de Deus, não se pode concluir que o fizeram com ciência. Muitos frequentemente falam daquilo que não sabem como eu mesmo expressei em preces, e aqui formulo como um desejo, o qual seria irracional se tivesse conhecimento de tudo. Por acaso não deveria expressá-lo? Trazer à luz tantos conceitos sem compreendê-los, recolhidos aqui e ali, depositá-los na memória e depois harmonizá-los com a fé, segundo me fosse possível. Mas o saber é outra coisa! AE - Dize-me então, se sabes o que é uma linha na geometria? AA - Certamente que sei! AE - Não temes este conceito dos acadêmicos? AA - Não totalmente, porque eles são sábios e não pretendem errar, e eu não pertenço a essa categoria. Não temo, pois, confessar a ciência das coisas que conheço. Mas sim, como desejo, depois que chegar à sabedoria, farei o que ela me aconselhar. AE - Não me oponho ao que dizes, mas para continuar nossa busca, como conheces a linha, saberias o que é a figura que denominam de esfera? AA- Sim. AE - Conhecerias igualmente a linha e a esfera, ou conheces mais uma que outra? AA - Conheço com a mesma profundidade as duas. AE - E tens percebido ambas com os sentidos ou com a inteligência? AA - Até este ponto os sentidos têm me servido como barcos. Pois quando me transportaram até o ponto que almejava, ali os deixei. Assim assentado em terra firme, comecei a analisá-las com o pensamento, o que abalou meus fundamentos por muito tempo. Acredito que por terra se possa navegar e perceber os sentidos geométricos, o que seria ainda, uma ajuda aos alunos principiantes. AE - Desta forma, esta disciplina que parece conhecê-la, acredita poder chamá-la de ciência? AA - Sem dúvidas, se me permitirem os estoicos, segundo os quais só seriam sábios os que possuíssem a ciência, tenho percepção dessas coisas que se liga com a ignorância, sem recear os estoicos, afirmo que tenho ciência das verdades sobre as quais está me interrogando. Mas, vamos seguir em frente e vejamos aonde me levarás. AE - Não te apresses, pois nenhum trabalho nos obriga a fazê-la dessa forma. Procede com cautela em tuas afirmações para que não sejam precipitadas. Gostaria de vê-la gozar da posse de algumas verdades corretas, sem temor e erro e se julgares estar muito lento, me estimularias a acelerar a caminhada? AA - Assim Deus será o que estás pedindo, e segundo tua prudência corrija-me asperamente se incorrer outra vez em faltas semelhantes. AE - Seria evidente para ti que uma linha longitudinal não poderia dividir-se em duas? AA - Sem sombras de dúvidas. AE - E, poder-se-ia cortá-la no sentido transversal? AA - Sim, mil intersecções poderiam ser feitas. AE - Não seria também evidente que do centro da esfera não se pode traçar dois círculos iguais? AA - A mesma evidência tenho dessa verdade. AE - E a linha e a esfera, são coisas idênticas ou diversas? AA - São bem diversas. AE - Sim, pois igualmente conheces ambas, que diferem muito entre si, segundo afirmas, logo existe uma ciência indistinta para coisas diferentes. AA - Há alguém que negue isto? AE - Tu negaste há pouco, quando ao questionar-te como queres conhecer a Deus até que decidisse ser suficiente, respondeste que não poderias explicar por não conhecer nada com que pudesse medir o conhecimento de Deus, pois nada semelhante a ele ofereceria a ciência. Agora, bem: a linha e a esfera são semelhantes? AA - Quem afirma isto? AE - Mas eu não havia te perguntado se conhecias algo parecido a Deus, ou se conhecias algo como uma ciência tão perfeita como aquilo que espera conhecer de Deus. Conheces a linha e a esfera, mesmo sendo coisas diferentes entre si. Dize-me então, se te bastará conhecer a Deus como conheces uma esfera geométrica, ou seja, com um conhecimento sensível certo e seguro? CAPÍTULO V COMO UMA MESMA CIÊNCIA PODE ABARCAR COISAS DIVERSAS AA - Por mais que me apresse, não me atreveria a dizer que desejo conhecer a Deus como as verdades matemáticas. Porque elas não são senão uma mesma ciência, cujo objetivo me parece ser diferente. Primeiro, porque nem a linha nem a esfera diferem tanto entre si que não sejam abrangidas por uma mesma disciplina. Entretanto nenhum geômetra presumiria ensinar a Deus. Além do que, se coisas tão diferentes como elas são de Deus, se a ciência fosse a mesma, o prazer de seu conhecimento seria igual com o prazer de conhecer a Deus. Bem, agora menosprezo tudo ao compara-lo com Deus, e acredito que se chegar a conhecê-lo e vê-lo do modo que for possível, de minha mente debandariam todas as outras informações das coisas, porque agora, minha memória só se ocupa do amor que a ele tenho. AE - Concordo que com o conhecimento divino experimentarás um prazer que não te dão outras coisas, mas isso se deve à natureza destas e não à diferença de conhecimento. Ou, talvez utilizes um olhar diferente à beleza e harmonia da terra, à serenidade do céu, ainda que mais a visão de uma que de outra? E se não estou enganado, já havia te perguntado se seria igual a certeza de tua visão do céu e da terra, e tua resposta deve ter sido afirmativa, porque não sentes o prazer da alma com a terra como esplendor e magnificência que julgas encontrar no céu. AA - Interessa-me esta analogia e me induz a afirmar que assim como está distante a verdade da esfera do céu e da terra, estariam as verdades seguras e certas de disciplinas da inteligência sublime de Deus. CAPÍTULO VI OS OLHOS DA ALMA COM OS QUAIS SE PERCEBE A DEUS AE - É razoável teu interesse. Porque este outro que te fala mostrará Deus como se mostra o sol aos olhos. As energias da alma são como os olhos da mente, e os axiomas e verdades das ciências assemelham-se aos objetos, ilustrados pelo sol para que possam ser vistos como a terra e tudo o que é terreno. Deus é o sol que os ilumina com sua luz. Eu, seu alter ego, estou para a sua mente como o raio da visão para os olhos. Não é a mesma coisa ter olhos e ter uma visão, nem visar e ver. Logo a alma necessita de três coisas. Ter olhos, visar, e ver. Os olhos são pretextos para a mente pura de toda manifestação corporal,isto é, distante e limpa do impulso instintivo das coisas corruptíveis. E isto principalmente é obtido com a fé, porque nada se esforçará para conseguir a sanidade dos olhos, se não imaginarmos indispensável para o ver, àquilo que não pode se mostrar por encontrar-se infectado e débil. E, acreditando que realmente, sanando esta enfermidade alcançar-se-á a visão, a falta de esperança em desfrutar da saúde, não seria uma verdade que todo o remédio será recusado, resistindo-se às recomendações médicas? AA - Assim será certamente, sobretudo porque tais percepções são difíceis para eis fracos. AE - Há, assim, de adjudicar a esperança e a fé. AA - Tenho a mesma opinião. AE - E se admitirmos tudo isto, considerando a esperança de poder-se curar, mas sem desejar a luz prometida e estando satisfeito em suas trevas, que como de costume se dizem agradáveis, não seria verdade que aborreceria ao médico? AA - Certamente. AE -Necessita-se, então, da terceira coisa que é a caridade. AA - Nada é tão necessário. AE - Logo, sem estas três coisas, nenhuma alma poderá curar-se e assim estar habilitada à visão de Deus. AE - Quando tiver os olhos saudáveis, o que te restará? AA - Visar! AE - A razão é a visada da alma, mas como nem tudo que visa, vê, a boa e perfeita visada, seguida da visão, se chama virtude, que é a reta e perfeita razão. Contudo a mesma visada dos olhos não pode voltar-se à luz se não possuir as três virtudes: a fé, crendo que na visão do objeto a visar está a sua felicidade; a esperança, confiando que o que verá se visou muito bem; a caridade, querendo contemplá-la e, dela sentindo prazer. A visada segue a mesma visão de Deus, claridade plena a tudo, não porque não se apresente, mas porque Deus é o único ente a cuja possessão aspira; tal é a verdadeira e perfeita virtude, uma razão que chega a seu fim, premiada com a vida feliz. A visão é um ato intelectual que se verifica na alma como resultado da união do entendimento e do ente conhecido, o mesmo que para a visão ocular concorrem o sentido e o objeto visível e nenhum deles se pode eliminar sob pena de se anular a própria visão. CAPITULO VII ATÉ QUANDO SÃO NECESSÁRIAS A FÉ, A ESPERANÇA E A CARIDADE AE - Indaguemos, ainda, se estas três coisas lhe serão necessárias à alma, uma vez superada a visão ou intelecção de Deus. A fé, como poderia ser-lhe necessária, se estás de posse de sua visão? E a esperança, ao tempo em que já o conhece? No entanto, a caridade, longe de acabar, será fortalecida enormemente. Pois contemplando aquela magnificência, soberana e verdadeira, lhe crescerá a chama do amor, e se não fixar seus olhos com grande força, sem desviar-lhe o olhar, não poderá permanecer nesta virtuosa contemplação. Mas enquanto a alma habitar este corpo mortal, entendendo Deus como tudo, os sentidos se ocupam destas operações, se bem não lhe seduzam, e ainda que invisíveis, poderia chamar-se fé àquilo que resiste aos seus afagos e se liga ao sumo Bem. Assim, nesta vida, ainda sendo a alma bem aventurada com o conhecimento de Deus, não obstante padece de muitas enfermidades e espera que se acabe com a morte. Da mesma forma a esperança acompanha a alma enquanto peregrina por este mundo. Após a vida presente, ambas se recolhem em Deus, ficando somente a caridade que justificou essa ligação. Não pode chamar-se fé a união à verdade, livre de todo risco de erro, tampouco há de se esperar algo, onde tudo se possua. Assim três coisas são necessárias à alma: que esteja saudável, vise e veja. As outras três, fé, esperança e caridade são indispensáveis para do primeiro nível atingir o segundo. Para conhecer a Deus nesta vida, igualmente as três primeiras são necessárias, e na outra vida só subsistirá a caridade. CAPITULO VIII CONDIÇÕES PARA CONHECER A DEUS AE - Agora, segundo nos permite o tempo, receba este ensinamento derivado daquela analogia das coisas sensíveis. Inteligível é Deus, e à mesma ordem de inteligência pertencem as verdades e teoremas do conjunto de regras para bem dizer ou bem fazer qualquer coisa, embora muito difira entre si. É visível a Terra e também a luz, mas a primeira não se poderia ver se não houvesse a segunda. Desta forma, tampouco os axiomas das ciências, que sem nenhuma hesitação aceitamos como verdades evidentes, nestes temos de crer sem a energia de um sol especial. Assim, pois, na visibilidade do sol podemos notar três evidências: que existe, que resplandece e ilumina; de forma análoga, no recôndito sol divino a cujo conhecimento aspira, três coisas há de se considerar: que existe, que ilumina e resplandece no conhecimento, que torna inteligíveis as demais coisas. Atrevo-me, desta forma, a lhe proporcionar noções das coisas: de Deus e da alma, mas antes comente o que lhe coloquei. Consideras esta argumentação como provável ou como correta? AA - Como provável, mas confesso que me vejo levado a uma esperança maior, pois alheio àquelas proposições relativas à linha e à esfera, nada me falou, a que eu possa atrever-me a dar o nome de ciência. AE - Não fiques admirado, porque até agora não te ofereci nada que pudesse exigir tal linha de percepção. CAPÍTULO IX O AMOR-PRÓPRIO AE - Mas por que nos detivemos? Vamos continuar nossa conversa e vejamos se estamos saudáveis. AA - A ti compete examinar-me e ver se há algum empecilho danoso. Quanto a mim, irei respondendo a tuas perguntas dizendo o que sinto. AE - Amas alguma coisa fora do conhecimento de tua alma e Deus? AA - Poderia responder de forma negativa segundo meu íntimo sentimento atual, mas parece-me mais prudente dizer que não sei. Em inúmeras experiências, coisas as quais estava indiferente, quando voltavam a minha memória, impressionaram-me muito mais do que poderia presumir, e outras que representadas pela imaginação não me fizeram falta; na realidade tinham me perturbado mais do que supunha. No meu estado atual, a meu ver somente me perturbaria três coisas: o medo de perder os amigos, a dor e a morte. AE - Então, amas a vida de teus amigos, a boa saúde e a vida temporal do corpo, porque se assim não fosse não temerias perdê-los. AA - Confesso que é bem isso. AE - Nesse momento, não estando entre teus amigos e não estando satisfatória tua saúde, isto causaria desordem em tua alma; não há uma lógica no que te digo? AA - Não há como opor-me a tua assertiva. AE - E se de repente experimentasses uma melhora de saúde e aqui visses todos os teus amigos desfrutando de um livre repouso, não te alegrarias extravasando uma extraordinária alegria? AA - Não há porque negar isso, sobretudo se como diz, tudo fosse acontecendo de improviso. Como poderia dominar e dissimular minha alegria? AE - Estaria desta forma, sendo vítima de todas as paixões e enfermidades da alma. Não seria uma temeridade visar com tais olhos o sol? AA - Interroga-me como se não reconhecesse nenhum progresso no estado de minha saúde, e nem soubesse quanta pestilência foi extirpada de mim. Se me permite fazer esta observação? CAPITULO X O AMOR PELAS COISAS CORPORAIS E EXTERNAS AE - Não notas como alguns olhos de corpos saudáveis se ofuscam e retrocedem com o reflexo do sol, e buscam o alívio na obscuridade? Tu colocas os olhos no que está adiante, mas não pensas no que desejas ver. Mas, examinemos os progressos que pensas ter conquistado. Não desejas possuir algumas riquezas? AA - Não é de agora minha renúncia a estas! Tenho trinta e três anos, e faz uns quatorze que deixei de desejá-las. Caso me oferecesse, só me serviria delas o suficiente para meu necessário sustento. Um livro de Cícero persuadiu-me facilmente de que não se deve pôr o coração em riqueza, e caso a tivesse haveria de administrá-la com grande cautela e prudência. AE - E as honrarias? AA - Também deixei de ambicioná-las nestes dias. AE - E as mulheres? Não te agradaria ter uma esposa bela, casta, virtuosa, instruída ou pelo menos disposta a sê-lo? Ela traria no matrimônio um dote, não para enriquecer-te, pois estas te aborrecem, mas o suficiente para uma vida tranquila, isenta de incômodos e opressões. AA - Por melhor que dela me fale, adornando-a de mil qualidades, ainda estaria muito distante de meu propósito tal vida conjugal, porque nada arruínam um senhorio e a força viril de sua alma quanto os afagos femininos e o vínculo carnal com uma mulher. Se como tarefa do sábio inclui-se a formação de filhos, coisa que não tenho verificado, seria somente com esta finalidade que se procura essa tenra opressão. Isso me parece mais algo a ser admirado do que imitado. Há mais risco em tentar do que felicidade ao desfrutar deste benefício. Por isso, zelando pela liberdade de meu espírito, de forma justa e proveitosa, estou resoluto em não desejar, não buscar e a não ter mulher. AE - Não perguntarei sobre tuas intenções, a não ser se nesta luta julgas ter vencido a paixão sensual. Estou examinando a sanidade na interioridade de teus olhos. AA - Neste ponto nada desejo, nada peço, sentindo desprezo e aversão a estas coisas. E agora, o que mais desejas? Porque vejo em mim um progresso crescente todos os dias, pois quanto mais desejo ardentemente contemplar aquela perfeição incorruptível, tanto mais a ela se volta minha afeição e desejo. AE - E te cativa o gosto pelos manjares? Ou destes guardas alguma reserva? AA - Não me perturba nada entre as coisas das quais tenho intenção de privar-me. Os alimentos de que me sirvo certamente, me proporcionam deleite ao saboreá-los, e depois de vistos e degustados, não há nenhum apego de minha parte após serem retirados da mesa. Quando não os tenho, este desejo não aparece e tampouco a sua falta não perturba meus pensamentos. Não questiones, dessa forma, a respeito de manjares, bebidas, banhos e outras coisas pertencentes ao prazer corporal, porque só os desejos na medida em que contribuem para a saúde do corpo. CAPÍTULO XI O USO DOS BENS EXTERIORES AE - Muito tens progredido, contudo, as afeições que ainda tens te impedem muito de ver aquela luz. Utilizarei um meio fácil de demonstrar isso: quando nada nos resta para reprimir e nada temos para tirar proveito, todavia estando afastada toda a enfermidade possível. Pergunto-te: Se fores persuadido por outros homens de sabedoria de que é impossível consagrar-se ao estudo da sabedoria sem uma boa base econômica, não desejarias as riquezas? AA - Sim! AE - E se igualmente te convencerem que para mostrar aos outros tua sabedoria, é conveniente reforçar tua autoridade mostrando a tua honra, e mesmo teus familiares terão também que ser honrados, evitando o excesso de seus costumes e dedicando-se intensamente à investigação da verdade divina. Se tudo isto só pode ser obtido com honra, não ambicionarias estas vantagens, trabalhando para consegui-las? AA - Sim! AE - Sobre a mulher não discutirei mais, pois talvez não haja necessidade de chegar a um vínculo matrimonial, contudo com um generoso e rico patrimônio de tua mulher, em ela consentindo com essa finalidade da vida comum, poderias sustentar todos os que vivem em tua companhia, e além disso, chegar à classe da nobreza, que segundo vejo, seria tão útil para as honrarias; terias dessa forma força para renunciar a estas vantagens? AA - Mas como eu poderia esperar essas coisas? AE - Respondes-me como se eu incitasse tuas esperanças! E não te pergunto por quê. Sendo-te negado, não te seduz, senão te deleitarias caso te oferecesse, porque uma coisa é uma infecção extirpada, outra seria ela estar adormecida. A isto vale o que um sábio disse: "Todos os estúpidos são insensatos, como todo lodo é fétido, mas não estaremos sensíveis às características destas se não as agitarmos; nelas remexermos de alguma forma", É interessante descobrir se uma enfermidade ou cobiça do espírito está adormecida pela desesperança ou eliminada pela força e pureza da saúde. AA - Ainda que não possa responder, nunca me persuadirá, principalmente agora, com a vocação íntima que tenho de não me deixar levar por minhas vontades. AE - Pensas assim porque poderias desejar essas coisas, mas elas não te interessam por si mesmas, a não ser por outros benefícios anexos a elas. AA - Sim! Foi isso mesmo que eu tentei dizer, porque ao desejar as riquezas, meu coração foi atrás delas para ser rico e obter as honras que agora me deixa indiferente. Por não saber que seus brilhos me seduziam, e no desejo e atrativo da mulher buscava o prazer através da boa reputação. Sentia então verdadeira paixão por aquelas coisas que agora menosprezo. Contudo se me oferecem isto como um caminho necessário para ir aonde quero, então, por melhor que sejam estas intenções terão de contentar-se com a recusa. AE - Muito bem, eu também acredito que não se deve chamar cobiça o desejo das coisas que se buscam como meio para conseguir outras. CAPÍTULO XII COMO TODOS OS DESEJOS E PAIXÕES DEVEM SE DIRIGIR AO SUMO BEM AE - Agora me diz: Por que queres que vivam e permaneçam contigo teus amigos a quem amas? AA - Para buscar através da concórdia pura e desinteressada o conhecimento de Deus e da alma. Deste modo, aqueles que chegassem primeiro à verdade poderiam anunciá-la aos outros. AE - E se não quiserem dedicar-se a esta busca? AA - Eu lhes darei razões para que o façam. AE - E se não puderem realizar teu desejo, primeiro porque eles imaginam possuir a verdade, segundo por imaginarem ser impossível tua proposta ou têm outras preocupações e necessidades? AA - Então, aproveitarei da convivência com eles, e eles da minha, da melhor forma que pudermos. AE - E se com sua presença, eles te desviarem da busca da verdade? Se não conseguires fazer com que não sejam obstáculos para teus estudos, não preferirás estar sem eles que juntos dessa maneira? AA - Certamente! AE - Logo, não estás querendo a vida e companhia deles por si próprias, a não ser como um meio de alcançar com eles a verdade. AA - Penso assim de fato. AE - E se tiveres certeza de que tua vida mesma é um obstáculo ao alcance da sabedoria, quererias prolongá-la? AA - Absolutamente, procuraria me desprender dela! CAPITULO XIII COMO E POR QUAIS GRAUS SE TEM ACESSO À SABEDORIA E AO AMOR VERDADEIRO AE - Vamos procurar agora, qual seria o teu amor à sabedoria, aquela que desejas ver sem nenhum véu e assim a abraçaria como real, tal como ela se mostra aos seus raríssimos e privilegiados amantes. Se amasses uma linda mulher e ela percebesse que tinhas colocado também este amor em outras coisas, além dela, com toda razão te negaria a mão. Da mesma forma, pensas que a beleza pura da sabedoria a ti se mostrará se não for o único objeto de tua afeição? AA - Pobre de mim! Por que me priva dessa forma do objeto de meu amor, prolongando o tormento de meu desejo? Já demonstrei que nenhum outro amor me domina, porque aquilo que não se ama por si mesmo, não se ama. Eu amo a sabedoria por ela mesma, mas a sua falta me faz temer pelas demais coisas que desejo possuir: a vida, a paz, os amigos. Que limite pode haver no amor àquela beleza pela qual não invejo as outras, e ainda desejo multiplicá-la àqueles que como eu pretenda amá-la, a busquem, a possuam, a apreciem; sendo para mim tanto mais amigos quanto mais comum nos for nossa amada? AE - Assim devem ser aqueles que aspiram à Sabedoria. Uma busca que envolve uma honesta e imaculada promessa. Mas não é o único caminho que existe para chegar até ela, pois cada qual, segundo seu estado de sanidade e de força, segue aquele singular e verdadeiro bem. Ela é uma luz indizível e incompreensível às inteligências. Nossa luz vulgar pode nos dar alguma ideia da mesma. Existem olhos tão saudáveis e vigorosos que depois de abrir-se, podem vislumbrar alvo por alvo mesmo sob as dificuldades do brilho da luz do sol. Para eles, a luz é uma qualidade sem que para esse entendimento necessitem de um ensino, mas apenas alguma orientação. A eles basta crer, esperar e amar. Outros, ao contrário, se ofuscam e desvanecem com a luz que vão contemplar, e sem conseguir o que querem, muitas vezes voltam ao prazer da sombra. A estes, mesmo que melhorem até podermos considerá-los saudáveis, é perigoso mostrar-lhes o que não podem ver ainda. Há que exercitá-los antes, extraindo seu amor com uma proveitosa paciência. Primeiro se lhes mostram objetos opacos, mas banhados de luz, como vestidos, casas, etc. Passar depois a fixar a vista em coisas brilhantes não por si mesmas, mas com a reverberação do sol, como o ouro, a prata e outros metais, cujo reflexo não danifique os olhos. Logo poderemos mostrar-lhes o fogo terreno, e sucessivamente os astros, a lua, o alvorecer, e o cândido resplendor celeste. Habituando-se cada qual segundo sua disposição à ordem das coisas em sua integridade ou parcialmente, cedo ou tarde se capacitarão para encarar o mesmo sol sem dificuldades e com grande prazer. Assim procedem alguns bons professores como os muitos amantes da sabedoria, capazes de ver, mas carentes de precisão. À boa disciplina compete chegar a ela por graus, pois chegar sem ordem é de uma inefável felicidade. Mas hoje acredito que temos dado muita ênfase à necessidade de olhar também pela saúde. CAPÍTULO XIV COMO A SABEDORIA CURA OS OLHOS DA ALMA E OS DISPONIBILIZA À VISÃO AA - A cada dia dê-me a seguinte ordem: Vamos! Busque-me por qualquer caminho que escolha, nas coisas que escolher e da forma que quiser. Ordene ações difíceis, árduas, mas realizáveis e que por elas eu possa chegar claramente ao lugar de meus desejos. AE - Somente uma coisa poderá ser ordenada: Uma fuga completa das coisas sensíveis. Trabalha com afinco durante esta vida terrena para não estimular as asas do espírito. É necessário que estejam íntegras e perfeitas para voar das trevas à luz, esta que não se mostra aos encarcerados na prisão do corpo, a não ser quando dele nos libertamos. Desta forma, quando nada terreno o atrair, acredita-me, verás o que deseja. AA - Sim! E quando chegará este momento? Penso que nunca alcançarei completamente tal renúncia sem antes ver aquela maravilha cuja luz tudo ofusca. AE - Falando dessa forma, o mesmo poderia ser dito da visão corporal: Deixou de amar as sombras quando viu o Sol, como se isso não fosse da mesma amplitude do assunto que estamos tratando. Se te satisfazes com as sombras é porque estás debilitado, e o sol só pode ser visto com os olhos saudáveis. E aqui se engana muito a alma, imaginando-se saudável quando não está, e não se propondo à admiração, imagina que tem o direito a lamentar-se. Porém, aquela maravilha sabe quando deve apresentar-se, porque age como um médico que conhece quem está saudável melhor que os próprios que se põem em suas mãos para curar-se. A nós é possível quantificar a nossa evolução, mas passa-nos despercebido o abismo de nossa involução, e dessa forma, mesmo estando em grande enfermidade, nos vangloriamos como se estivéssemos muito bem. Lembras a segurança com que falávamos que nenhuma moléstia nos contagiava e que somente amávamos a sabedoria, sujeitando todo o resto a essa ideia? Que impuro, execrável e horrível é o abraço conjugal quando discutíamos sobre a servidão da carne! Mas na vigia da noite passada, analisando os temas de exames anteriores, imaginou sem que se apercebesse, o quanto lhe aguçava o apetite de carícias femininas com sua cruel suavidade, com as quais certamente não estava acostumado, e que poderiam ser muito mais do que estaria imaginando. E assim, aquele médico oculto teria lhe feito ver duas coisas: a enfermidade de que tinha se livrado e o que restaria para sua cura. AA - Pare, por favor, pare! Por que me atormentas, por que me angustias dessa forma, revolvendo meus males? Não suporto mais o pranto de meus olhos. Chega de promessas, tampouco presunção, nem reflexão sobre tais fatos. Disse muito bem que o médico, do qual aspiro ao conhecimento, saberá quando estou saneado, então se cumpra sua vontade e se manifeste quando necessário, pois quanto a mim entrego-me inteiramente a sua clemência e cuidado. Ao aqui dessa forma exposto, não cessará a devida exaltação. Agora, chega de alardear dúvidas sobre minha sanidade até que consiga avistar-me com aquela maravilha. AE - Procede como estás pensando, enxuga tuas lágrimas e anima-te. O pranto que derramas acabará por agravar a enfermidade de teu peito. AA - Como poderia cessar meu pranto se ele contém o meu infortúnio? Aconselhou-me a olhar pela saúde do corpo, quando sou vítima desta moléstia? Mas lhe rogo, se tem algum poder sobre mim, procure guiar-me por algum caminho aproximando-me um pouco daquela luz, já conhecida e que me fez crescer, não deixando que meus olhos voltassem às trevas desamparadas, se é que assim possam ser chamadas, já que afagaram minha cegueira. CAPÍTULO XV CONHECIMENTO DA ALMA E CONFIANÇA EM DEUS AE - Terminaremos este primeiro livro, se concordares, para empreender no segundo um caminho direcionado ao nosso fim. Não seria esta indisponibilidade que faria cessar este exercício de prudência. AA - Não concordarei em finalizar este livro se antes não encontrar algo que me aproxime da luz a que aspiro. AE - Teu Médico acede à tua vontade, mas não sei o que pretendes me convidando e pressionando para guiar-te ao objeto de teu desejo. Escuta-me com atenção. AA - Leve-me, lhe suplico, arrebate-me para onde for sua intenção. AE - Afirmas querer conhecer a Deus e a Alma? AA - Este é meu único desejo! AE - Não desejas mais nada? AA - Nada mais! AE - E não gostarias de saber o que é a verdade? AA - Como poderia conhecer outras coisas sem conhecer a verdade! AE - Então, é importante conhecer primeiro aquela que nos guia ao conhecimento das demais. AA - Não me oponho a isto! AE - Vejamos, pois primeiramente se estas duas palavras verdadeiro e verdade significam uma mesma coisa ou têm sentido diferentes. AA - Parecem ser duas coisas diferentes. Porque uma coisa é a castidade e outra o casto, e neste sentido podem-se multiplicar os exemplos. Assim também seria a verdade e o verdadeiro. AE - E qual sentido te parece ser mais magnífico? AA - Sem dúvida, a verdade, porque o casto não faz a castidade, mas a castidade faz o casto. Da mesma forma, tudo que é verdadeiro só o é pela existência da verdade. AE - Então me diz: quando acaba a vida casta de um homem, pensas que acaba a castidade? AA - De modo algum! AE - Da mesma forma quando morre algo verdadeiro, não fenece a verdade. AA - Mas como poderia morrer o verdadeiro? Não consigo entender! AE - Muito me admira tua pergunta já que vemos perecer mil coisas ante nossos olhos. Ou talvez imaginas que uma árvore seria uma árvore, mas não verdadeira, e assim não poderia morrer? Mas poderias ainda dar crédito aos sentidos e responder-me que não sabe se é uma árvore, e em não me negando a existência da árvore, ela seria verdadeira porque não julgou com os sentidos, mas com a inteligência. Se for uma árvore falsa, não é árvore, e se é árvore necessariamente tem que ser verdadeira. AA - Não discordo do que diz! AE - E o que respondes a isto? As árvores pertencem ao gênero das coisas que nascem e morrem? AA - Também não posso negar isto! AE - Então poderemos deduzir que coisas verdadeiras podem morrer! AA - Concordo com isso! AE - E não acreditas que ao fenecer coisas verdadeiras, não feneceria a verdade, assim como a morte do casto não implicaria na morte da castidade? AA - Concordo com tudo que dizes, mas gostaria de saber aonde queres chegar! AE - Continua me escutando! AA - Sim! Estou atento. AE - Aceitarias por verdade aquele dizer: Tudo o que existe, em alguma parte deve estar? AA - Não tenho nada a opor! AE - Então confessas a existência de uma verdade? AA - Sim! AE - Logo vamos buscá-la onde ela se encontra, mas não está em nenhum lugar, pois não ocupa espaço e assim não é uma matéria, a não ser que a verdade seja um corpo físico. AA - Rebato estas duas hipóteses! AE - Dessa forma, onde pensas poder estar esta verdade? Em alguma parte está aquilo que sabemos existir. AA - Ah! Se soubesse onde se encontra, não procuraria outra coisa. AE - Saberias ao menos, onde ela está? AA - Ajudando-me com suas perguntas, talvez eu descubra. AE - Não está certamente nas coisas mortais porque o que está em um sujeito não pode existir se não subsistir ao próprio sujeito. Assim concluímos que a verdade subsistiu, mesmo fenecendo as coisas verdadeiras. Não está, pois nas coisas temporais. Existe, então, primeiro uma verdade que não se encontra em nenhum lugar, e segundo, existem coisas imortais. Mas nada é verdadeiro se não for pela verdade, e assim concluímos que só são verdadeiras as coisas imortais. Toda árvore falsa não é árvore, e toda lenha falsa não é lenha, e toda moeda falsa não é moeda, e tudo que é falso não existe. Mas se tudo aquilo que não é verdadeiro for falso, logo nada poderemos afirmar seguramente que existe, exceção às coisas imortais. Considere bem este argumento, que por si contém talvez alguma assertiva insustentável! Se isto fosse concludente, teríamos quase conseguido o nosso intento, segundo veremos com maior profundidade no próximo volume. AA - Isso me agrada, e na proteção do silêncio, argumentarei com você e consequentemente comigo, estes argumentos, mesmo temendo nesse entremeio a interposição de algumas trevas que venham a me afagar com seus prazeres. AE - Acredita firmemente em Deus e atira-te em seus braços com todo teu ser, e expropria a ti mesmo, salva-te de teu domínio e assume ser servo de teu clemente e generoso Senhor, e ele o levará a sua presença e não cessará de cobrir-te com seus favores, mesmo sem os pedir. AA - Ouço, acredito e obedecerei como puder, e só te suplico com todo meu coração que aumentes minha capacidade e força, a não ser que queiras algo mais de mim. AE - Por ora estou feliz com isto, depois farás o que eu mesmo pedir conforme for te mostrando. SEGUNDO LIVRO CAPITULO I DA IMORTALIDADE DO HOMEM M - Temos interrompido constantemente nossa obra e o desejo e pranto intenso não cessarão enquanto não atender ao amor que lhe peço, portanto empreendamos logo o segundo livro. AE - Pois então, mãos à obra. AA - E vamos acreditar que Deus nos atenderá. AE - Sim! Acreditemos se é que temos capacidade para isto. AA - Deus próprio é a nossa força. AE - Nessa condição, vamos com a máxima brevidade e perfeição possível. AA - Oh Deus, que é sempre o mesmo, conheça-me, e deixe-me conhecê-lo. Eis aqui minha prece. AE - Tu que desejas te conhecer, tens consciência de tua existência? AA - Sim, tenho! AE - E de onde vem este conhecimento? AA - Não sei! AE - Conhece-te como um ser simples ou composto? AA - Não sei! AE - Saberias o que te move? AA - Não sei! AE - Tens consciência de que pensa? AA- Sim! AE - Então o teu pensar é uma verdade! AA - Certamente! AE - Tens consciência de que és imortal? AA - Bem, isso eu já não sei. AE - De todas estas coisas das quais confessa desconhecer, qual gostaria de saber agora? AA - Gostaria de ser persuadido de minha imortalidade! AE - Então, amas a vida? AA - Tenho que confessar que sim. AE - E quando te disse que eras imortal, sentiste-te muito satisfeito? AA - Sim, isso foi uma grande alegria, mas insuficiente para meu propósito. AE - E este conhecimento mesmo sendo insuficiente, quanto te dá de contentamento? AA - Sem dúvidas, é uma satisfação muito grande. AE - Bem, nesta situação não há lugar para pranto? AA - Acredito que não. AE - E se o resultado de tua investigação revelar que nesta vida teu conhecimento não evoluirá além do que já possuis. Conseguirias segurar teu pranto? AA - A vida não terá valor para mim, face à profunda angústia de que serei acometido. AE - Então amas a vida, não por ela mesma, mas pela sabedoria. AA - Tem toda a razão! AE - E se este caminho acabar por te levar a sentir-te mais infeliz ainda? AA - Não poderia aceitar isto porque se assim fosse, a felicidade seria uma quimera, porque a ignorância é nesse momento o que mais me deixa infeliz. Se o conhecimento promove idêntica infelicidade, eterno seria o infortúnio. AE - Vê bem para onde estás indo! Pensando que nada é desdito pela sabedoria, provavelmente concluirás que o entendimento se constitui na bem-aventurança. Mas somente é bem-aventurado aquilo que vive, e nada vive se não existir. Estás querendo ser, viver, entender e existir para viver, e viver para entender. Logo terás consciência que existes, sabe que vives, sabes que entendes. Talvez queiras alargar teu conhecimento e comprovar se estas coisas vão sobreviver para sempre, se vão fenecer, ou se alguma delas permanecerá para sempre e outras não, ou ainda se podem evoluir e involuir, supondo que sejam eternas. AA - Isto reflete bem meu pensamento. AE - Assim, provando que sempre temos de viver, concluiremos pela nossa imortalidade. AA - É muito lógica tua conclusão. AE - Restaria apenas investigar o problema do entender. CAPÍTULO II A VERDADE É ETERNA AA - Parece-me uma colocação muito clara e justa. AE - Concentra, dessa forma, tua atenção e responde com cautela e firmeza a minhas questões. AA - Sou todo ouvidos! AE - Se este mundo é eterno, será verdade que subsistirá para sempre? AA - Quem poderia duvidar disto? AE - E se não permanecer sempre em sua existência, será ainda verdade que então não duraria para sempre? AA - Não tenho nada a opor a esta tua conclusão! AE - E se o mundo tiver que perecer depois de sua ruína, não seria verdade que teria perecido? Enquanto for verdadeira esta proposição: O mundo não perecerá; ele realmente continua existindo, mas existe uma contradição entre estas duas visões: um mundo finito e um mundo que não finda. AA - Concordo! AE - E isto O que te parece: Poderia existir algo verdadeiro sem que exista a verdade? AA - De modo algum. AE - Dessa forma a verdade subsistirá mesmo que o mundo se finde! AA - Não posso negar isto! AE - E se a verdade perecer, não seria verdade que ela teria sucumbido? AA - A mim parece uma dedução lógica. AE - Então não pode haver coisa verdadeira sem verdade. AA - Eu concluí isso ainda há pouco! AE - Assim de nenhum modo pode a verdade morrer. AA - Bem, vamos continuar porque tudo são consequências evidentes e verdadeiras. CAPÍTULO III SE SEMPRE EXISTEM FALSIDADE E PERCEPÇÃO SENSÍVEL, CONCLUI-SE QUE NUNCA DEIXARÁ DE EXISTIR ALGUMA ALMA AE - Agora te proponho uma questão: Quem sente; o corpo ou a alma? AA - Acredito ser a alma! AE - E o entendimento não pertenceria à alma? AA - Sem nenhuma sombra de dúvida! AE - Somente pertenceria à alma ou talvez também a alguma outra substância? AA - Não vejo nenhuma entidade inteligente fora da alma, a não ser Deus. AE - Vamos examinar a seguinte questão: Se alguém dissesse que esta parede não é uma parede, mas uma árvore, o que pensarias? AA - Que foi enganado por seus sentidos ou eu pelos meus, ou que chamam de árvore aquilo que é uma parede. AE - E se mostraram para esse mesmo alguém uma parede com aparência de árvore e a ti a parede com a aparência de parede? Não poderia ser verdadeiras ambas as afirmações? AA - De modo algum, porque não poderia ser árvore e parede a um só tempo. Ainda que a cada um de nós esta parede se apresente em sua forma singular, um dos dois estaria cometendo um erro de imaginação. AE - E se não fosse nem árvore nem parede, e os dois houvessem se enganado? AA - Também poderia acontecer isto. AE - Não tinha te ocorrido isto antes? AA - Sim, é verdade! AE - Reconhecendo que é algo diferente do que parecia ser, ainda assim serias vítima de um erro? AA - Neste caso não! AE - Logo poderia haver uma aparência enganosa, sem que houvesse necessariamente um erro. AA - Tenho que admitir que isto seja possível. AE - Confesso que não é bem assim! Não é ele quem se engana com a aparência, mas sim ele a consente. AA - Estou de acordo com isso! AE - Então me diz o que seria o falso? Por que existe a falsidade? AA - Não tenho dúvidas que se trata do caso em que uma coisa seja diferente daquilo como se apresenta. AE - Não havendo a quem aparecer, não haveria falsidade. AA - Sim isso tem lógica! AE - Então a falsidade não está nas coisas, mas nos sentidos, e não se enganaria aquele que não deixasse se levar por coisas aparentes. Uma coisa somos nós mesmos e outra seriam os sentidos, e se não confiarmos neles podemos nos precaver de cometer erros. AA - Aqui também não tenho nada a opor. AE - E por acaso se enganasse, será que a alma se atreveria a dizer que não houve falsidade ou engano? AA - Como posso eu afirmar tal coisa? AE - Bem! Não existem sentidos sem alma, nem falsidade sem sentidos. A alma é a causa ou cúmplice da falsidade. AA - As premissas anteriores me obrigam a aceitar esta consequência. AE - Responde-me agora: Seria possível que em alguma circunstância não existisse falsidade? AA - Conforme tenho percebido tão difícil quanto encontrar a verdade, seria afirmar a impossibilidade da existência do falso que a do verdadeiro. AE - Admitirias que quem não viva pudesse sentir? AA - De modo algum! AE - Em assim sendo, a alma é imortal! AA - Agora sim me proporcionou um enorme prazer; e assim peço que caminhemos lentamente. AE - Se teu raciocínio está bem encadeado, não vejo motivo para dúvida. AA - Repito que para chegar a tão importante conclusão, me parece que foi muito rápido. Por isso estou receoso em fazer afirmações com certeza a respeito da imortalidade da alma. Por isso peço que desenvolvas esta conclusão e mostra-me a união destas proposições. AE - Bem, reconheceu que não pode haver falsidade sem os sentidos e que sempre haverá falsidade; logo sempre haverá sentidos. É desta forma que não pode haver sentidos sem uma alma sensível; portanto a alma é imortal, pois não pode sentir sem viver, e isto determina a sua eternidade. CAPITULO IV PODE-SE CONCLUIR PELA PERENIDADE DO FALSO E A VERDADE DA IMORTALIDADE DA ALMA? AA - Zombas com este argumento fraco! Poderias concluir que seria imortal o homem se admitisses que este fosse uma parte inseparável do mundo e que o mundo é eterno. AE - Percebo que está atento, contudo não é pouco o que avançamos: que a alma não poderia coexistir com a natureza das coisas, se dela não faltasse a falsidade em alguma oportunidade. AA - Nesta conclusão vejo uma consequência coerente. Mas me parece que há que voltar um pouco mais atrás para assegurar nossas posições, sem negar que temos dado alguns passos para o conhecimento da imortalidade da alma. AE - Aquilo que visa bem, por si possibilitaria tirar uma conclusão rápida? AA - Creio que sim, e não pontuo esta afirmação como temerária. AE - Bem, desta forma está demonstrado que o universo não pode subsistir sem almas vivas. AA - Sim, mas de tal forma que possam umas morrerem e outras nascerem. AE - E se suprimimos da natureza toda a falsidade? Não seriam desta maneira todas as coisas verdadeiras? AA - Também acho conclusiva esta ilação! AE - Responde-me, pois: por que essa parede te parece verdadeira? AA - Porque não me engano quando a vejo. AE - Assim seria porque ela é tal como se lhe parece. AA - Assim é! AE - Sim, uma coisa é falsa porque é diversa do que parece, a verdade de uma coisa consistirá em ser aquilo que parece. Suprimindo o sujeito que a percebe, não haveria verdade nem falsidade. Mas se não há falsidade na natureza das coisas, todas seriam verdadeiras, tampouco poderia aparecer algo mais aos olhos de uma alma viva. Logo a alma é inseparável da natureza das coisas, e se a esta a falsidade estiver anexa, necessariamente, só permanecerá assim se for consentida. AA - Vejo que fortaleceste tua hipótese, mas andamos pouco nesta linha, porque apesar dela, ainda me inquieta uma objeção; é que as almas nascem e morrem, de sorte que sua sobrevivência no mundo não provém de sua imortalidade, mas da sucessão de umas as outras. AE - Acreditas que as coisas sensíveis ou corporais podem ser compreendidas com o entendimento? AA - Por certo que não! AE - E acreditas que Deus usa dos sentidos para conhecer as coisas? AA - Não quero afirmar nada temerariamente acerca deste ponto; mas, segundo conjeturo, de forma alguma, Deus necessitaria dos sentidos para ter conhecimento das coisas. AE - Sim, somente as almas podem sentir. AA - Conclui-se dessa proposição como provável. AE - E O que me dizes disto? Esta parede, se não é verdadeira não é parede? AA - Isto é fácil de aceitar. AE - Aceitarias igualmente que nada é corpo, se não for um corpo verdadeiro? AA - Também aceito! AE - Dessa forma, sendo verdadeiro aquilo que realmente parece ser, o corpóreo só pode manifestar-se aos sentidos, e os sentidos são próprios da alma, não havendo, por outra parte, corpos que não sejam verdadeiros, logo não pode haver corpo se não existir alma. AA - Caminhas de forma rápida e não tenho como questionar. CAPITULO V O QUE É A VERDADE AE - Fica atento para o que vem agora! AA - Estou a tua disposição. AE - Aqui está uma pedra; e é verdadeira, porque é exatamente como parece, e não seria pedra se não fosse verdadeira. Somente a percebes com os sentidos. AA - Sim! É verdade. AE - Assim não haverá pedras nas profundezas da terra, tampouco, em outro lugar no qual não possas vê-las. Seria uma pedra somente quando pudesse vê-la, e deixaria de ser quando nos retiramos e mais ninguém a percebe. Imagine nossos móveis com as portas fechadas, por mais coisas que neles tenhamos guardado ao não ver estas coisas, elas não existiriam. Se pensarmos nas entranhas das árvores, ocultadas por debaixo da casca, se ali não conseguimos ver, então não seria madeira. O mesmo acontece com o íntimo de todos os corpos, nos quais nossa percepção sensível não conseguir adentrar, e assim concluiremos de forma lógica que todas estas coisas não têm existência e não são verdades. Tua definição de verdadeiro afirmava que o verdadeiro seria aquilo que é como parece. Pergunto, então, se terias alguma objeção a fazer a esta minha conclusão? AA - Esta conclusão é uma consequência de minhas afirmações, a qual agora se apresenta tão absurda que estou mais disposto a negar qualquer de minhas premissas que sustentar a verdade de minhas conclusões. AE - Não recusarei o que dizes. Em resumo, tentas exprimir que os corpos só podem ser percebidos com os sentidos, que não sentes com a alma a existência de pedras e outras coisas semelhantes que seriam dessa forma, não verdadeiras, e ainda, que não sabes se a verdade deveria definir-se de outra forma. AA - Gostaria que nos aprofundássemos na discussão deste último ponto. AE - Pois então, define novamente o teu conceito de Verdade. AA - Chamo de verdadeiro aquilo que é em si tal como parece a um sujeito conhecedor, se este puder e quiser conhecê-lo. AE - Bem, dessa forma não seria verdadeiro aquilo do qual nada possa conhecer-se? Ainda, pensando que o falso seja aquilo que não tem aparência, poderíamos supor que a uma pessoa algo se apresentasse como uma pedra e a outra como uma madeira. Poderia uma coisa ser falsa e verdadeira ao mesmo tempo? AA - A primeira ideia me persuade bem mais, pois se uma coisa não pode ser conhecida, haveria uma indicação clara de sua não existência e assim resultaria que ela não é verdadeira. Mas não me convenço que algo seja verdadeiro e falso ao mesmo tempo, porque percebo que uma mesma grandeza, comparada com outra tão oposta, resultaria em percepções diferentes ao mesmo tempo. Isto me leva a concluir pela forma como coloca a questão de diferenças que na tua conclusão estas não servem como padrão de comparação. AE - Mas ao afirmar que uma coisa não é verdadeira por si mesma, não entenderíamos, também, que nada existe por si mesmo? Ao assumirmos que algo seja uma madeira, o que a tomaria uma verdade face a nossa percepção dela; não poderia acontecer dela ser por si mesma, sem relação a um sujeito conhecedor, e assim ela seria uma madeira e não seria uma verdade. S. Agostinho• Solilóquios AA - Receio que sim, sem medo de errar em minha definição, de que a verdade é o que é. AE - Assim nada seria falso, porque tudo o que existe seria verdadeiro. AA - Coloca-me em grande dificuldade e não vejo saída a esta proposição. E, me sucede que, não querendo ser ensinado sem fazer perguntas, começo a temer por estas. CAPÍTULO VI DE ONDE VEM E ONDE SE ENCONTRA A FALSIDADE AE - Deus, em cujas mãos nos colocamos sem dúvidas nos assistirá e libertará das armadilhas, conquanto que nele acreditemos e o invoquemos com devoção. AE - Nada mais agradável para mim do que esta aproximação, porque nunca houve em meu caminho tanta névoa. Deus, nosso Pai, que nos exorta a oração e concede o que pedimos, porque te buscando vivemos e somos melhores, escuta-me, porque estou vivendo nas trevas, estenda tua mão direita socorrendo-me com tua luz e livrando-me dos erros, mostra o caminho para chegar a ti. Assim seja. AE - Concentra-te e presta atenção. AA - Me dê alguma sugestão e a certeza de que não pereceremos em erro. AE - Presta atenção! AA - Não tenho feito outra coisa! AE - Discutamos primeiro com seriedade o que seria o falso. AA - Ficaria maravilhado se possível fosse definir-se que o falso seria aquilo que não é como se parece. AE - Escuta com atenção, antes vamos perguntar aos sentidos. Pois, o que os olhos veem não se chama falso, mesmo se não tiverem uma aparência de verdade. Por exemplo: o homem a quem vemos em sonhos não é verdadeiro, mas falso, porque tem apenas uma semelhança com o verdadeiro. Pergunto agora: E quem vendo em sonhos um cão, afirmar ter visto um homem? Logo aquele também é um cão falso. AA - Sim, tens razão! AE - E se a alguém que esteja acordado, um cavalo parecer um homem? Não estaria ele enganado ao perceber no cavalo a aparência de um homem? Mas leve em consideração o fato de ele só conseguir perceber a forma de um cavalo, e assim jamais veria ali um homem! AA - Vamos em frente, estou gostando de teu raciocínio! AE - Chamaríamos também, de falsa, uma árvore pintada em um quadro, falsa a imagem refletida em um espelho, falso o movimento dos edifícios quando se navega, falsa a ruptura de um remo quando parte dele está dentro da água; todas estas coisas chamamos de falsas não obstante serem semelhantes às verdadeiras. AA - Isto é um fato! AE - Da mesma forma nos enganamos com os gêmeos, com os ovos, e com os brasões impressos por um mesmo anel e várias outras coisas semelhantes. AA - Estou atento a tua explicação. AE - A semelhança das coisas como ilusão de ótica é a origem da falsidade. AA - Não há como negar tua conclusão. AE - Toda essa variedade de objetos, se eu não estiver enganado, poderíamos juntar em dois grupos: o primeiro formado por coisas iguais, e o segundo pelas desiguais. Por iguais entendo duas possibilidades, quando os objetos se parecem entre si, como os gêmeos ou as marcas de um anel. Mas em coisas desiguais, um objeto menos valioso se diz semelhante a um de maior valor. Pergunto; aquele que olha no espelho dirá que se parece com a imagem, e não ao contrário, que a imagem se parece com ele? Esta forma de ver compreende ora as impressões que recebe a alma, ora as semelhanças que vêm da natureza. E o que a alma experimenta, ou recebe dos sentidos quando estamos navegando, como o movimento ilusório dos edifícios que estão fixos, ou dentro de si mesmo por meio de imagens sensoriais, como ocorre naqueles que sonham e talvez até nos alienados. Respeito às semelhanças que vêm de uma mesma realidade, umas são formadas da natureza, outras são expressões obtidas a partir dos seres animados. A natureza produz seres semelhantes por geração ou por reflexão. O primeiro caso tem lugar nos pais, que geram filhos semelhantes e o segundo em todo tipo de espelho. Pois embora os homens fabriquem espelhos, não são eles que produzem as imagens que nestes resultam. As obras dos seres animados estão nas pinturas e outras ficções do mesmo gênero; e assim também pode incluir-se o que fazem os demônios, se é que realmente o fazem. E, ainda as sombras dos corpos, que podem assemelhar-se a eles, mas seriam imagens falsas, pertencendo ao juízo dos sentidos, deve-se colocar no gênero de semelhança que tem lugar na natureza, porque resulta de opor à luz um corpo que projeta uma sombra na parte oposta. Tens algo a opor a isto? AA - Nada, mas espero ansiosamente ver aonde me levará com este caminho. AE - Tem paciência até que os demais sentidos nos informem e digam que a falsidade está na verossimilhança. No tocante ao ouvido, vale quase as mesmas semelhanças, como quando ouvimos a alguém que nos fala, mas sem vê-lo, e atribuímos à voz a outro por julgá-la parecida com a voz deste. E em coisas inferiores, temos o exemplo do eco, o do zumbido dos ouvidos, e na imitação do canto melodioso do pássaro melro ou do grito do corvo, cujos sons alertam como alguns relógios àqueles que sonham e deliram. Também podemos considerar aquilo que os músicos chamam de vozes em falsete, como uma confirmação de nossa proposição, como veremos depois, e bastaria observar que aquelas inflexões imitam as vozes verdadeiras. Está conseguindo acompanhar o raciocínio de meu discurso? AA - Com grande prazer porque não está sendo necessário nenhum esforço mental para entender este dedução. AE - Para analisar melhor este ponto, dizer-me se admitirias a possibilidade de distinguir um lírio de outro por seu aroma, ou diferenciar pelo sabor o mel da flor de tomilho de um enxame em relação ao mel da mesma flor produzido por outro enxame. E ainda, conseguirias pelo tato perceber a suavidade das plumas de um cisne em relação às de um ganso? AA - Não acredito que possa! AE - E quando estamos usando nossos sentidos, como os ouvidos, o paladar e o tato em determinados objetos. Não nos enganamos quanto a sua semelhança de sua imagem, quando admitimos que tanto quanto mais imperfeita for a percepção mais irreal seria este objeto? AA - Isso é uma verdade! AE - Torna-se agora, claro que em todas as coisas sejam elas iguais ou desiguais, os sentidos podem se enganar pelo atrativo das semelhanças; e se não nos enganamos por suspender o juízo de nosso entendimento ou por não reconhecer as diferenças, contudo, as coisas seriam falsas simplesmente por apresentar semelhança, mas não serem verdadeiras. AA - Neste ponto não há lugar para dúvidas. CAPÍTULO VII DO VERDADEIRO E DO SEMELHANTE O NOME SOLILÓQUIOS AE - Segue-me com atenção, porque vou voltar às mesmas afirmações para elucidar o que pretendemos. AA - Eis aqui, diga-me o que precisa. Estou resoluto a segui-lo por esta dedução sem sentir fadiga, com a esperança de chegar à meta esperada. AE - No que faz muito bem, mas dize-me primeiro: Não te parece que quando vemos ovos semelhantes, a nenhum deles poderíamos chamar de falso? AA - Sim, porque todos são verdadeiros se forem ovos. AE - E com relação à semelhança do espelho, por quais razões dizemos que é falsa? AA - Porque na imagem projetada não podemos pegar, ela não sonha, não se move per si, não vive, e por tantas outras coisas que seriam vastas ao enumerá-las. AE - Percebo que não queres te deter, e ao mesmo tempo em que tens atender aos teus desejos. Então para abreviar, se as figuras de homens que vemos em nossos sonhos, vivessem, falassem, tivessem um corpo físico real, sem nenhuma diferença com aqueles que conhecemos e tratamos no cotidiano, quando estamos acordados e lúcidos. Os consideraria também como falsos? AA - Como afirmar isto com certeza? AE - Seriam tão mais verdadeiros quanto mais semelhantes aos homens reais, e ao contrário seriam falsos se houvesse uma diferença, uma não similaridade. Conforme temos apontado, deduz-se que a semelhança é a mãe da verdade, e não semelhança uma fonte de ilusões. AA - Não sei o que responder, e me envergonho por afirmações que fiz anteriormente. AE - Não se justifica tua vergonha, até parece que esta conversa tenha outro propósito! Ao que estamos fazendo, chamo de Solilóquios, e com este nome quero designar esta conversa que temos a sós. Essa palavra é nova e talvez incisiva, mas muito apropriada para definir o que aqui estamos fazendo. Não obstante, considero este como o melhor método de procura da verdade, no qual se procede por perguntas e respostas de si para consigo. Quando há mais de um interlocutor, é raro encontrar um destes que não fique mortificado ao sentir-se vencido em uma discussão. Isto acontece invariavelmente, quando num debate acalorado, a intransigência sobrepuja a fraternidade e assim coloca por terra com suas argumentações de interesse pessoal, o consenso, causando danos ao amor-próprio que, por vezes se consegue dissimular, mas nem sempre. Por estas razões coloco-me a investigar a verdade com a ajuda de Deus, perguntando-me e respondendo-me; não há lugar para vergonha se em alguma parte, por uma concessão temerária, te veres forçado a voltar atrás, em busca de melhores soluções, porque não há outro meio melhor para encontrar tua resposta. CAPÍTULO VIII A ORIGEM DO FALSO E DO VERDADEIRO AA - Discorre muito bem, mas temerariamente não vejo o que poderia fazer para colaborar a não ser aquela ideia de que falso é o que tem alguma verossimilhança, pois nada mais me ocorre que seja digno do nome falso; por outro lado, tenho que confessar que o falso é assim por sua não semelhança ou diferença com o verdadeiro. Do que resulta que a não semelhança engendra a falsidade. E por esta razão fico em dúvida, pois nada mais encontro que me sugira outras razões. AE - Seria esta uma forma única e singular da natureza das coisas? Creio que não sabes, que na variedade de animais existentes, somente o crocodilo move a mandíbula superior para comer, e ainda assim, não consegues perceber que nenhuma coisa pode ser exatamente semelhante à outra sem que desta possua alguma indiferença? AA - Concordo com o que estás dizendo, contudo quando considero que falso também tem algo de semelhante e ao mesmo tempo de diferente com verdadeiro, não consigo discernir através de quais dessas propriedades recebeu esse nome de falso. Pois se digo que é pela não semelhança, todas as outras poderiam ser consideradas falsas, pois não haveria nenhuma que fosse diferente de outra considerada como verdadeira. E, se digo que é falsa, receberia seu nome pela semelhança. Não só chamaríamos de ovos, porque são verdadeiros, em sendo muito semelhantes entre si, mas assim eu não poderia rebater aquele que me obrigasse a confessar que tudo é falso porque todas as coisas estão vinculadas entre si com algum traço de semelhança. No entanto não me amedronta dizer que a similitude e não semelhança dá juntamente origem ao falso. Será que terei então uma saída? Se me antecipo em afirmar serem falsas todas as coisas, por serem semelhantes e ao mesmo tempo não semelhantes entre si, poderia chamar falso ao que é diverso do que parece, e aí voltaríamos àquela definição, recusada por suas disparatadas consequências, ideia da qual já me acreditava livre. Por aqui, volto àquele inesperado redemoinho que me obriga a afirmar que a verdade é o que parece de onde resulta que sem um sujeito conhecedor, nada pode ser verdade, e neste caminho temo um naufrágio em obstáculos insondáveis, não menos verdadeiros por estarem ocultos. Ou se digo que a verdade é o que é, concluir-se-á, diferente de tudo, que o falso não está em nenhuma parte. Confesso voltar à fadiga anterior porque vejo que nada avançamos com tantos rodeios e caminhadas pausadas do pensamento. CAPÍTULO IX O FALSO, O ARDILOSO E O MENTIROSO. AE - Redobra tua atenção, porque não me induzirás a crer que temos invocado em vão o auxílio de Deus. Ao examinar tudo muito bem, vejo que não há mais argumento que possa definir o falso desta forma: o falso finge o que não é ou tende absolutamente a ser e não ser. Mas o primeiro gênero de falso se aplicaria melhor ao ardiloso ou mentiroso. Este tem intenção de enganar, e isto supõe uma vontade, que se verifica em parte com a razão, e em parte com a natureza. O falso se utiliza da razão, nos animais racionais, como o homem, e com a natureza, nos irracionais, como a raposa. Mentirosos são aqueles que mentem e assim diferem dos ardilosos, porque tudo o que a astúcia quer enganar, mas nem todos os que mentem pretendem enganar, pois as sátiras, comédias e muitos poemas contem mentiras ou ficções imaginadas para deleite, não para engano, e assim também são as troças entrelaçadas de mentiras. Ao contrário, o ardiloso dispõe de tudo para seu fim em lograr, que é produzir engano. Mas os que fazem isto sem intenção de enganar, fingindo alguma coisa, são simplesmente mentirosos ou nem sequer merecem este nome, embora também não digam a verdade. Terias algo a opor a este raciocínio? AA - Vamos adiante, porque acredito que agora está começando a elucidar a ideia a respeito do falso. Espero a explicação do segundo gênero acerca daquilo que tende a ser e não ser. AE - O que mais estás esperando? São as mesmas coisas mencionadas acima e que te serviram de luz. Não percebe que a imagem do espelho quer ser como aquilo que tu és, e assim é falsa, porque não consegue? AA - Me agrada esta tua observação! AE - Será que todas as pinturas, esculturas e outros gêneros de arte não aspiram à semelhança daquilo que imitam? AA - Me parece justo! AE - Concedo também, segundo minha opinião que ao mesmo gênero pertenceria às imagens enganosas desenhadas na fantasia dos sonhadores e delirantes. AA - Mais que qualquer outra, porque são as que mais imitam o que veem dos saudáveis e lúcidos. São falsas precisamente porque não podem ser o que imitam. AE - Falemos agora daquele movimento dos edifícios que sentimos ao navegarmos, do remo submergido na água e das sombras dos corpos. Parece-me que com a mesma regra podermos aferi-las. AA - Isto me parece evidente. AE - Atenta para o endurecimento dos sentidos, pois tudo aquilo que reflita sobre este ponto, convencerá que as coisas que sentimos seriam falsas, porque nos faz sentir uma verdade que não é. CAPÍTULO X COMO ALGUMAS COISAS SÃO VERDADEIRAS AO MESMO TEMPO EM QUE SÃO FALSAS AA - Definiu muito bem o falso, mas me surpreende que tenhas excluído deste gênero os poemas, jogos e demais falácias. AE - Sim, há que entender que uma coisa é ser falsa e outra é não poder ser verdadeiro. As obras dos homens, tais como comédias e tragédias ou farsas e ficções deste gênero, são passíveis de serem acrescentadas às obras de pintores e outros tipos de arte. É tanto impossível que um homem pintado seja verdadeiro quanto à propensão de se imitar o ser humano através de obras literárias de ficção e comédia. Estas não têm o caráter intencional de serem falsas, mas por alguma instância própria, assim são, até por certa necessidade de seguir a ideia do artista. Dessa forma, Roscius, sendo realmente por natureza um verdadeiro homem na cena, representa voluntariamente uma falsa Hécuba. Por executar muito bem seu papel e por sua vontade resultou em um verdadeiro ator trágico, mas era um falso Príamus, por assemelhar-se a ele, sem sê-I o de verdade. Do aqui exposto resulta uma coisa maravilhosa, admitida por todos. AA - Sim, e o que é? AE - Todas estas coisas em alguns momentos são verdadeiras e noutros são falsas, mas por que só realçamos o fato delas serem falsas? Por isso deixam de ser falsas ou de fingir, não conseguindo o que querem e devem ser? Como o ator mencionado poderia ser verdadeiramente trágico se não consentir em ser um falso Héctor, uma falsa Andrômaca, um falso Hércules, etc.? Imagine como seria um verdadeiro cavalo pintado se não fosse um cavalo falso? Pense no espelho; seria possível existir uma verdadeira imagem de homem se não fosse um homem falso? Por isso, se em alguns casos há um favorecimento da falsidade, ao dar-se realce a verdade de, por que será que a tememos tanto e procuramos a verdade como um grande bem? AA - Não sei, e me admira muito, talvez porque nos exemplos citados não vejo coisa digna de imitação. Como não somos charlatães, não somos as figuras que refletem nos espelhos, tampouco somos as vacas de bronze de Myronis, não devemos para ser verdadeiros em nosso ser imitar ou assimilar o comportamento alheio, o que nos faria falsos. Devemos nos orientar àquela verdade, que não tem duas caras tampouco um aspecto contraditório, mostrando-se a um só tempo como verdadeira e falsa. AE - Pede algo grande e divino. Mas se tentarmos encontrá-lo como poderíamos assegurar que neste esforço seria possível conseguir e formar um conceito de verdade, o qual poderia ser aplicado a tudo o que é verdadeiro? AA - Concordo plenamente! CAPITULO XI A VERDADE DAS CIÊNCIAS - A FÁBULA E A GRAMÁTICA AE - Agora o que dirias sobre a dialética; é verdadeira ou falsa? AA - Quem poderia duvidar de sua verdade? No entanto a gramática é verdadeira. AE - Acreditas que seja na mesma intensidade da primeira? AA - Não vejo nada que possa ser mais verdadeiro que a própria verdade. AE - Não vejo nada de falso, vendo pelo modo em que a pouco estranhavas as coisas que não podiam ser verdadeiras sob a condição de serem falsas. Ou não sabes que todas as fábulas e outras ficções tidas como falsas pertencem ao domínio da gramática? AA - Não ignoro o que diz, mas a mim me parece que não seriam falsas pela gramática, porquanto esta somente se limita a ensiná-las a ser como são. A fábula é uma ficção ou mentira composta com fins recreativos e educativos. A gramática é a arte de conservar e ordenar as palavras articuladamente, visando recolher todas as ficções da linguagem humana que se tenha conservado por tradição ou escrita, não as falsificando, mas retirando delas proveitos para o ensino. AE - Muito bem! Não importa agora se estas definições e divisões estão bem formadas, apenas responde-me: Qual das duas educações, a gramática ou a arte da discussão te ensina tudo isto? AA - A arte e a precisão de definir aquilo que se quer, as quais pertencem à dialética. AE - E a gramática, não seria verdadeira talvez, por conter uma educação? Educação significa aprender, e não se pode ignorar aquilo apreendido e conservado na memória, tampouco o conhecimento de coisas sabidamente falsas. Toda educação dessa forma é verdadeira. AA - Não vejo o que neste breve raciocínio possa confirmar-se de forma tão rápida. Mas me força a considerar que pelo exposto seja possível acreditar que as fábulas são verdadeiras, porque as aprendemos e guardamos na memória. AE - Talvez os gramáticos ao ensiná-las não tivessem a intenção de que pudéssemos aprendê-las sem nelas acreditar? AA - Certamente nos compeliram a aprendê-las. AE - Mas, por acaso insistiram em que acreditássemos no voo de Dédalo? AA - Isso nunca. E se não a dominássemos, não nos permitiam ter outra coisa nas mãos. AE - Negarias, então, que esta seja uma fábula e que tenha divulgado Dédalo? AA - Não nego esta verdade. AE - Então não negas que tenhas aprendido uma coisa verdadeira ao aprender esta fábula. E, se fosse verdade que Dédalo tivesse se arremessado aos céus e voado, e este feito fosse ensinado às crianças como uma fábula, e assim aprendido como uma falsidade; estaríamos mostrando a elas um feito real como falso. E daqui resulta o que nos parece extraordinário e que convém saber, que a fábula do voo de Dédalo não pode ser verdadeira senão na condição de ser um voo falso. AA - Começo a concordar com isso, mas espero um final para esta conclusão. AE - Qual seria este final, a não ser rebater aquela tua afirmação que a educação se não ensinar verdades, não pode ser educação? AA - Qual a finalidade do que estás afirmando? AE - Para afirmar que a gramática é uma educação e por assim ser, é verdadeira. AA - Não sei o que responder. AE - Não percebes que sem ela não haveria definições, distinções e divisões em gêneros e partes, e se assim fosse dirias então, que ela não seria realmente uma educação? AA - Bem agora percebo onde estás querendo chegar, porque eu tampouco concebo uma educação na qual não existam estes elementos e estudos para declarar a natureza das coisas, fornecendo a cada qual o que se deve sem omitir nada daquilo que lhe pertença, tampouco acrescentarem-lhe nada que seja estranho, porque esse é o ofício de qualquer educação. AE - Exatamente aqui há o fundamento da verdade de uma educação. AA - Sim, mas tudo é uma consequência do que já havíamos esclarecido anteriormente. AE - Responde-me agora, a que arte corresponderia definir, dividir e distribuir? AA - Já afirmei que a meu ver seria à dialética. AE - Logo, a gramática recebeu seu estatuto de educação verdadeira da dialética, a qual tem censurado como falsa. E isto não se limita tão somente à gramática, mas também às outras artes liberais, porque havia afirmado com toda razão que a nenhuma educação se poderia dispensar esta função de definir e distribuir, e seria isso que lhe daria a dignidade de existir como tal. Se, dessa forma, elas são verdadeiras por serem educações, poderá alguém negar que é esta mesma verdade que faz com que todas elas possam ser verdadeiras? AA - Estou por concordar com tua afirmação, mas me ponho a pensar que esta mesma dialética já se encontra entremeio às outras educações. Por isso acredito que essa verdade é uma razão existente em outras educações que as fazem igualmente verdadeiras. AE - É muito profunda tua resposta, mas com isso não negas segundo penso, ela, a dialética, seria verdadeira em si por ser também isoladamente uma educação. AA - É precisamente a razão que aqui coloco, pois já tinha advertido anteriormente que seria verdadeira exatamente por ser uma educação. AE - Acreditarias que ela poderia ser uma educação por outro motivo além das definições e divisões nela introduzidas? AA - A isso nada tenho a opor. AE - Sim, porque a dialética pertence a um ofício, e em si mesma seria uma educação verdadeira. Quem não admirará uma ciência que faz com que outras sejam verdadeiras, e ainda ela por si é em si mesma a verdade? AA - Não vejo dificuldade em admitir isso. CAPÍTULO XII DE QUANTOS MODOS ESTÃO UNIDAS AS COISAS AE - Fica atento agora ao pouco que resta. AA - Diga o que pretende de forma tal que eu entenda e obedeça com gratidão. AE - Há duas formas de entender que uma coisa pode encontrar-se em outra; uma forma seria pela separação, como uma madeira aqui e o sol no Oriente. Outra forma seria na inseparabilidade, como encontraríamos nesta madeira a forma e a sua própria natureza como no sol, na luz, no fogo, no calor; e na alma, com as artes e outras coisas semelhantes. Concordas? AA - Essa distinção me é muito conhecida e a compreendo desde meus primeiros anos de adolescência, assim, digo que para ela tens minha inteira aprovação. AE - Não me concederias igualmente que aquilo que está inseparavelmente unido a um sujeito, ao morrer este, não poderia subsistir? AA - Também me parece uma consequência necessária, porque na existência de um sujeito ocorrem mudanças de fato e assim poderemos considerar também esta que coloca. A cor de um corpo humano pode mudar por enfermidades ou pelo passar dos anos, sem que ele pereça. Mas não ocorre o mesmo com as propriedades inerentes a um sujeito, senão naqueles cujas existências não passem por uma reflexão. Para a existência desta parede não é necessária a cor que tem, e por isso, ainda que a pintemos de branco, preto ou outra cor, continuará sendo uma parede. Mas o fogo, se perder seu calor, deixará de ser fogo, e tão pouco a neve poderíamos assim chamá-la se não fosse fria e alva. CAPÍTULO XIII COMO SE DEDUZ A IMORTALIDADE DA ALMA AA - Com respeito a sua pergunta: Como é possível que aquilo que está unido a um sujeito permaneça se este deixar de existir? Quero afirmar que é um absurdo e seria falso sustentar que possa subsistir uma coisa faltando-lhe o seu suporte, aquilo a que está ligada indefectivelmente sua existência. AE - Logo chegaremos aonde queríamos. AA - Bem e o que me respondes? AE - Gostaria que me ouvisse! AA - Sim, mas como se deduz a imortalidade da alma? AE - De forma muito clara, se o que me afirmou for verdade, a não ser que sustente que a ideia de morte da alma ao morrer o corpo. AA - Estou longe de aceitar tal proposição, porque ao morrer deixaria de ser alma. E, também não me separa desta máxima, o que disseram grandes filósofos, como: que todo princípio vivificante que se pense, não pode ser objeto de morte. A luz entrando por tudo, ilumina um lugar e por uma maravilhosa força de contrários não admite por si as trevas, que sem dúvidas poderia apagar e fazer cair às escuras este lugar. Assim, aquilo que resiste à obscuridade, sem admiti-la de algum modo em si, ao extinguir-se, dá lugar a esta sua oposição, como poderia acontecer da mesma forma ao retirar-se. Por isso temo que a morte sobrevenha ao corpo, como uma obscuridade que advém a um lugar, e dele retiram a alma de forma semelhante à retirada de uma luz ou a extinguindo ali mesmo. Não existe, pois, segurança alguma contra a morte corporal, e há de desejar-se certo gênero de morte com que se separe a alma viva do corpo para que possa ir a um lugar onde não morra se é que isto seja possível. Porém se isto não puder ocorrer, porque a alma está inserida em um corpo, formando um todo único, como uma luz que não pode subsistir só em outro lugar, toda morte consistirá na extinção da alma ou da vida em um corpo. Então haverá de se escolher segundo permitir a condição humana, um gênero de vida tranquilo e seguro, o qual não imagina como poderia isto ser conseguido em sendo a alma imortal. Disseram mil vezes os que conseguiram a certeza por convicção própria ou utilizando uma autoridade alheia de que não se deve temer a morte, mesmo quando a alma seja mortal. Mas eu sou um desafortunado, que não pôde conquistar esta certeza com minha razão, tampouco com a autoridade de outrem. AE - Para com este lamento! A alma humana é imortal! AA - Mas, como podes demonstrar isto? AE - Com as premissas que me concedeste de forma muito cautelosa. AA - Não me recordo de haver dito uma afirmação tão imprudente; contudo, faz-me um resumo, te suplico; e vejamos aonde teremos chegado por tantas voltas, enquanto isso gostaria que não me interrogasse mais! Para sintetizar este resumo de minhas concessões não me faltam perguntas. Ou estás querendo retardar meu prazer pelo êxito de nosso discurso? AE - Farei este teu gosto, mas atende-me com muita atenção. AA - Fale já, eu estou atento, não sei por que me atormenta dessa forma. AE - Se o que pertence a um sujeito permanece sempre, necessariamente há de permanecer também o sujeito onde se encontra. É assim que toda disciplina está na alma como em um sujeito. Logo é necessário que subsista a alma sempre, se subsistir a educação. Mas a educação é a verdade, e a verdade, segundo se demonstrou ao princípio deste livro, é imortal. Logo sempre há de permanecer a alma, e assim não poderíamos creditá-la como mortal. Portanto, só poderá com fundamento rechaçar a imortalidade da alma quem não admitir a verdade das proposições acima assentadas. CAPITULO XIV EXAME DO SILOGISMO ANTERIOR AA - Gostaria de soltar as rédeas a meu bel-prazer, mas dois motivos me detêm. O primeiro é o surpreendente rodeio que fizemos com um encadeamento de raciocínios que às vezes não entendia bem, quando tudo poderia ter-se apresentado de forma mais concisa como foi feito agora. Por isso me angustiei ao pensar que talvez tais circunlóquios discursivos só servissem para ocultarmos alguma armadilha. Em segundo lugar, não vejo como a educação poderia subsistir sempre na alma, sobretudo a dialética, quando tantos não a conhecem e aqueles que se habilitam ao seu conhecimento não a sabem desde a infância. Não poderíamos dizer que não existem almas nos ignorantes ou que nelas exista um conhecimento desconhecido. Se concluirmos que isto é um absurdo, seguirá que a verdade não está sempre na alma ou que aquela educação não corresponde à verdade. AE - Logo verás que não foi em vão este nosso recurso de ter dado tantos rodeios. Procuramos nos indagar sobre o que seria a verdade, e a isto acredito que tampouco agora, neste emaranhado de informações, possamos descobrir. Então o que podemos fazer? Deixaremos tudo a meio caminho, esperando que venha até nossas mãos algum livro que satisfaça nosso desejo? Sei que há muitos escritos anteriores que não conhecemos, mas temos notícia de que se continua a escrever em prosa e verso sobre este tema; e isto é feito por homens cujos livros e talento não podem nos passar despercebidos, e isso alenta nossa esperança de falar com eles sobre o que estamos buscando, sobretudo sabendo que ante nossos próprios olhos brilha aquele talento no qual revive a eloquência que imaginava morta. Será que estes pensadores permitiriam que após nos ensinasse o modo de viver, que continuássemos a ignorar a natureza da própria vida? AA - Não acredito! E espero muito deles, se bem me entristeça ver que não seria possível uma adesão a estes pensadores e tampouco conseguiríamos desta forma satisfazer o nosso desejo de sabedoria. Com certeza ele ficaria compadecido de minha alma, atormentada e sedenta, e tentaria enchê-la com a água viva de sua fonte. Ele vive tranquilo com a convicção da imortalidade da alma, e não sabe que existem aqueles que suportam a miséria desse desconhecimento, e que seria uma crueldade não satisfazer a sua necessidade e demanda. Existe aquele outro que talvez conhecesse nossos desejos, mas se encontra tão distante que apenas teríamos facilidade de uma comunicação através de cartas. Neste, com o ócio que desfruta para além dos Alpes, creem tenha terminado seu poema para dissipar o temor pela morte e o pavor e congelamento da sua alma inteiriçada por uma antiga amargura. Neste ínterim enquanto não chegam estes socorros, tão distantes de nós, não seria uma grande lentidão não aproveitar nosso ócio para retirar a alma dependente e prisioneira dessa penosa incerteza? CAPÍTULO XV NATUREZA DO VERDADEIRO E DO FALSO AA - Onde está o fruto de nossas súplicas a Deus para que não nos desse riquezas, deleites carnais, honras e estimas populares, mas apenas o conhecimento de Deus e de nossa alma? Será que Ele nos dará suas mãos e nos abandonará? AE - Seria muito estranho Ele abandonar àqueles que clamam pela verdade, e longe de nós, abandonarmos um guia tão seguro. Por isso repitamos, se concordar, as duas partes de nossa argumentação que é interessante conhecer bem: a verdade sempre permanece e a dialética é a verdade. Havia dito que duvidava delas, impedindo-me de completar com segurança as nossas conclusões. Perguntou como é possível encontrar uma arte na alma de um homem inculto, por que não podemos negar que sua alma é verdadeira? Estacionou neste ponto e acabou por não enxergar o valor de nossos discursos anteriores. AA - Bem! Vamos discutir agora a primeira parte, deixando para depois a busca de solução para essa minha dificuldade, e assim acredito que tudo ficará bem exposto. AE - Façamos como preferir, mas presta muita atenção, pois sei o que acontece quando escutas e estás fortemente indeciso com a conclusão, e por ansiar rapidamente por uma dedução, não tens examinado bem o que perguntas. AA - Talvez tenhas razão, procurarei lutar contra esta minha ansiedade da forma que puder; comece, pois a investigação e não percamos tempo com coisas supérfluas. AE - Se bem me recordo, tínhamos chegado à seguinte conclusão: a verdade não pode morrer, mesmo morrendo o mundo, pois se assim fosse esta não seria uma proposição verdadeira. Concluímos que não existe nada verdadeiro sem a verdade, então esta não pode perecer. AA - Admito essa conclusão e ficaria surpreso se fosse falsa. AE - Vamos investigar outro ponto. AA - Permita-me antes uma pausa para reflexão sobre o que foi dito, para que não tenhamos que voltar atrás depois. AE - Então, não seria verdade que esta possa perecer? Se for assim, a verdade subsistirá. Mas em caso afirmativo, desaparecida a verdade, como poderia haver algo verdadeiro sem a existência daquela? AA - Nada tenho a opor ou acrescentar a isto, portanto vamos em frente. Faremos o possível para que os homens doutos e prudentes leiam este escrito e ante nossa temeridade corrijam se julgarem necessário, embora não veja nem agora nem nunca quem possa colocar-se contra o que está dito. AE - Poderias chamar de verdade aquilo que não é fundamento de tudo o que for verdadeiro? AA - De forma alguma! AE - E não chamamos de verdadeiro aquilo que não é falso? AA - Seria loucura duvidar disto. AE - Acaso o falso não seria aquilo que nos arremessa a outro, sem ser àquele ao qual se assemelha? AA - Nenhuma outra coisa é mais digna desse nome. Mas também se chama falso o que está muito distante de assemelhar-se ao verdadeiro. AE - Isso ninguém nega, mas alguma semelhança com a verdade há que ter? AA - Como? Pois quando se diz que Medeam voou em um dragão, de nenhum modo esta ficção imita a verdade por tratar-se de uma coisa inteiramente irreal. AE - Tua observação é exata, mas não tinhas advertido que àquilo que nada é tampouco poderia se dar o nome de falso? Isto é, o falso existe, porque se não existisse não seria um falso. AA - Assim, não chamaríamos de falso ao imaginarmos o prodígio atribuído a Medeam? AE - De modo algum, porque se for falso, como poderíamos chamar o mostro de prodígio? AA - Estou assombrado. E pensar que quando ouço: atrelei a minha carruagem grandes dragões unidos por uma canga... Não estariam dizendo uma falsidade? AE - Sem dúvidas, pois neste enunciado há algo de falso. AA - Sim, e o que seria? AE - A proposição enunciada anteriormente. AA - Então diga em que ela imita a verdade? AE - No fato de que não expressaria de outra forma se Medeam realmente tivesse voado. Uma falsa proposição assemelha-se em sua forma a uma proposição verdadeira. Se a ela não damos crédito, só há uma imitação de uma expressão verdadeira, e assim seria falsa sem produzir um engano. Se a ela der crédito, então imitaria também as sentenças verdadeiras. AA - Bem agora mostrarei a grande diferença entre os atributos e os sujeitos a quem os aplicamos, pelo qual fundamento o que estou dizendo, e porque me detive a acreditar que tudo o que é falso apresenta certa imitação do verdadeiro. Quem não sorriria daquele que afirmasse que uma pedra é uma moeda de prata? Sem sobra de dúvida se alguém assegurar que uma pedra é uma moeda, a ele responderemos que está fazendo uma falsa proposição. Em troca, com alguma razão, poderíamos chamar de moeda de prata falsa a um pedaço de estanho ou de chumbo, porque de algum modo a imitam, e assim não seria falsa nossa proposição, mas apenas o próprio objeto. CAPITULO XVI A POSSIBILIDADE DE COISAS MELHORES SEREM DENOMINADAS COM NOMES DE OUTRAS DE MENOR VALOR AE - Vejo que estás me compreendendo. Mas pensas agora se poderíamos chamar a prata com o nome falso de chumbo? AA - Não, isto está contra o que penso. AE - Por quê? AA - Não sei exatamente, apenas posso dizer que tenho uma aversão por esta suposição. AE - Será que talvez não seja porque a prata tem uma qualidade maior e se a ela damos o nome de chumbo, estaríamos rebaixando o seu estatuto, e ao contrário, o chumbo provavelmente se sentiria em vantagem e honrado ao ser identificado como uma prata, mesmo sendo falsa? AA - Acredito que com esta explicação alcanças exatamente o que eu buscava. Esta é a razão pela qual se considera como abomináveis alguns homens, e por isso são execrados ante a incapacidade de considerar estes homens que se vestem de mulheres, a quem não sei se denomino de falsas mulheres, ou melhor, de falsos homens. Mas poderíamos chamá-los de verdadeiros histriões e verdadeiros infames, se forem ocultos, pois todo infame se relaciona com a fama, melhor seria chamá-los de verdadeiros depravados ou pervertidos. AE - Deixemos para outra ocasião o estudo destes pontos polêmicos, porque muitas coisas que acontecem e que se mostram indecorosas, muitas vezes são feitas pelo povo com um fim honesto e louvável que até poderia justificá-las. Por exemplo: imagine que com a finalidade de livrar sua pátria um homem poderia se disfarçar de mulher para enganar um inimigo, exibindo-se como mulher falsa para agir posteriormente como um grande e valoroso varão. Ou, se um sábio compreendendo que seu exemplo de vida é absolutamente necessário para o bem comum, por falta de agasalhos masculinos, tomasse a decisão de morrer de frio a usar agasalhos femininos. Destas questões trataremos em outra oportunidade. No momento temos inúmeras investigações a serem feitas para que nosso trabalho siga adiante sem incorrer em certas e inevitáveis lentidões. Tudo que corresponda a presente questão me leva a concluir ser indubitável e evidente que o falso se apresenta por imitação do verdadeiro. CAPÍTULO XVII EXISTEM COISAS INTEIRAMENTE FALSAS OU VERDADEIRAS? AA - Vamos continuar porque estou convencido desta verdade. AE - Agora te pergunto se fora das ciências nas quais nos instruímos, e entre elas deveríamos incluir o mesmo desejo e esforço pela sabedoria? Poderíamos encontrar alguma coisa tão verdadeira que não seja como o Aquiles do teatro, o qual seria falso para que o entendêssemos como verdadeiro. AA - Acredito que existem muitas coisas nesse gênero. Esta pedra, por exemplo, não é um objeto de estudo de algumas disciplinas, mas sem dúvidas é verdadeira sem imitar a nenhuma outra coisa em que se o fizesse a consideraríamos como falsa. E assim como ela podem existir várias outras coisas. AE - Admito esta observação, mas não te parece que todas elas estão compreendidas na categoria de corpos? AA - Opinaria da mesma forma se pudesse ter certeza de que o vazio não é absolutamente nada, ou acreditasse que a alma está entre as coisas corpóreas, ou que Deus é um corpo. Se existem todas estas coisas, não são falsas ou verdadeiras por nenhum tipo de imitação. AE - Estás querendo ir muito longe, mas utilizas um atalho. Uma coisa é o vazio e outra é a verdade. AA - Certamente é muito grande esta diferença Qual coisa mais vazia que eu mesmo, que quando acredito que a verdade é irreal, acabo me perdendo penosamente buscando o vazio? Pois, o que desejaria encontrar além da verdade? AE - Do jeito que procedes, vais acabar me convencendo que não existem coisas verdadeiras senão pela verdade. AA - Tenho este argumento pronto! AE - Duvidas que o vazio não seja mais que vazio ou de que seja um corpo certamente? AA - De modo algum! AE - Ou talvez pensas que a verdade seja uma realidade corporal? AA - Isso também não! AE - Talvez alguma coisa inerente a algum corpo? AA - Não sei, nada me ocorre sobre isto, mas sei que sabes que se existe o vazio, ele só acontece onde não existe nenhum corpo. AE - É evidente! AA - E por que nos detivemos nisto? AE - Acaso acreditas que a verdade ocupa o vazio ou que possa haver algo verdadeiro onde falta a verdade? AA- Não! AE - Não seria a verdade, desta forma, uma futilidade, tampouco o vazio pode existir a não ser que não tenha entidade; e de outra parte, é manifesto que aquilo que carece de verdade não é verdadeiro; e absolutamente falando, o vazio se chama assim por caracterizar a falta de uma existência. Como pode então, ser verdadeiro o que não é como deveria ser, o nada? AA - Vamos em frente, e deixemos o vazio como uma futilidade. CAPÍTULO XVIII SE OS CORPOS SÃO VERDADEIROS AE - Bem, o que poderias falar de outras coisas? AA - A que exatamente está se referindo? AE - Àquilo que favoreça à minha proposta, pois restando Deus e a alma, e se os dois são verdadeiros, já que neles reside a verdade, não podemos ter dúvida com relação à imortalidade de Deus. Da mesma forma deveremos ver a alma como imortal quando se prova que é depositária de uma verdade que não morre. Assim, vamos a ultima questão que nos interessa, saber se um corpo é na verdade verdadeiro, ou seja, se nele se encontra a verdade, ou melhor, talvez uma imagem desta verdade. Porque se os corpos estão submetidos à morte e possuem a verdade da mesma forma que as ciências, é possível que tenhamos que privar a dialética de seu privilégio de reguladora das demais artes. E ainda, porque os corpos parecem possuir sua verdade independente desta arte de disputa pela dialética. Mesmo que eles sejam verdadeiros por algum gênero de imitação, por isso distanciado da verdade pura, nada impedirá que comparados à dialética seja considerados dentro do mesmo âmbito da verdade. AA - Bem, é interessante que indaguemos sobre a natureza dos corpos, onde vejo que mesmo chegando aqui a alguma conclusão, esta discussão ainda não estaria esgotada. AE - Como poderias saber qual exatamente o desejo de Deus? Por isso presta atenção: Acredito que todo corpo está limitado e contido por uma forma e espécie, sem a qual não seria corpo. Se tiver uma alma, esta só pode ser verdadeira? Terias uma opinião diferente? AA - Concordo com parte dessa conclusão. Entendendo que para ser um corpo há que haver uma forma exterior. Mas não percebo a parte onde escreveste que a alma seria verdadeira porque existe... AE - Não te lembras do que dissemos no princípio do primeiro livro sobre as figuras geométricas? AA - Poderias me ajudar a recordar? AE - Trata das figuras dos corpos na forma como concebe aquela disciplina, lembras-te? AA - Não exatamente, lembro-me apenas de forma material e grosseira. AE - E quais parecem serem mais verdadeiras? AA- Não me venha com estas perguntas. Pois quem seria tão cego que não pudesse ver que as figuras concebidas pela ciência da matemática estão numa mesma verdade e a verdade assim, estaria nelas, enquanto as figuras dos corpos aspiram a ser como as da matemática, porém, com certa imitação grosseira da verdade, e por este aspecto seriam falsas. Acho que é isto que queria demonstrar. CAPÍTULO XIX DAS VERDADES ETERNAS SE DEDUZ A IMORTALIDADE DA ALMA AE - Quais necessidades haveria agora de ser investigadas profundamente sobre a arte da dialética? Porque ora as figuras geométricas estão na verdade, ora a verdade está nelas, portanto, não há dúvida de que estão em nossa alma ou em nossa inteligência, e portanto, se conclui necessariamente que elas contêm a verdade. E, se por um lado toda disciplina está em nosso espírito aderida inseparavelmente a ele, por outro a verdade não pode morrer. Duvidamos da imortalidade da alma, sem dúvidas, influenciados pela não intimidade com a morte. Acaso aquelas linhas, ou um quadrado ou esfera, imitam algo estranho para ser verdadeiros? AA - De nenhum modo posso acreditar nisso, pois haveria que supor que uma linha não é uma longitude sem latitude, tampouco uma circunferência seria uma curva fechada cujos pontos estão equidistantes do centro. AE - Então, por que duvidamos? Onde estão estas coisas, não estaria também a verdade? AA - Deus me livre de negar tal absurdo. AE - Estaria a disciplina na alma? AA - Quem afirmou isto? AE - E por acaso poderia perecendo um sujeito, nele permanecer o que se acha inseparavelmente unido a ele? AA - E quando vai me convencer desta afirmação? AE - Logo a verdade deve morrer? AA - Isso não é possível! AE - Então a alma é imortal, como afirmaram tuas razões ainda há pouco, ao acreditar que a verdade que habita um corpo é imortal, e não há como retirá-la de seu lugar com a morte do corpo. Procure se afastar agora de tua própria sombra, entrando em ti mesmo e não temas nenhuma morte em ti, a não ser a dúvida de que é imortal. AA - Ouvindo isto me reanimo e começo a retomar a mim mesmo. Mas antes, te rogo resolver a dificuldade proposta anteriormente: Como poderá estar também na alma dos ignorantes, a verdade das disciplinas que nos ensinam, já que eles também devem gozar do mesmo privilégio de imortalidade? AE - Para essa dificuldade acredito que será necessário redigir outro volume, e se discutir profundamente. Agora é interessante fazer uma revisão à conclusão que chegamos, pois se não tens dúvidas com as conclusões a que chegamos, acredito ter conquistado importantes frutos que nos permitem com grande segurança seguir adiante. CAPÍTULO XX COISAS VERDADEIRAS E COISAS DESPERTADAS PERCEPÇÃO SENSÍVEL E INTELIGÍVEL AA - Estou atento às nossas discussões, e farei o que me pedir. Mas diga-me rapidamente antes de terminarmos esta conversa, qual seria a diferença existente entre a verdadeira figura, tal como concebida pelo intelecto e aquela que se produz apenas pela imaginação, chamada de fantasia ou fantasma pelos antigos gregos. AE - Bem, solicitas algo para o qual há a necessidade de uma grande pureza intelectual, e acredito que não estejas ainda, suficientemente habilitado, embora tenhamos, ao longo de nossa conversa, o propósito de com nossos rodeios prepará-lo a fim de que se habilitasse para contemplar a verdade. Sem dúvida, brevemente te exporei como é possível demonstrar-se essa diferença. Percebes que duvidas de uma coisa que outros preferem buscá-la na memória e assim te dizem: É isto ou aquilo? Referindo-se a coisas diversas como se fossem semelhantes, e te apresentam isto como uma coisa ideal? Aqueles que tenham visto ou podem ver coisas semelhantes, poderiam representá-las com a mesma imaginação? Será que estas mesmas dificuldades não experimentam aqueles que pretendem pintar na imaginação um círculo inconcebivelmente pequeno e nele traçar raios ao centro? Se pela nossa visão, traçarmos dois raios, separados por uma distância mínima como o pungir de um fio de uma agulha, a nossa imaginação declarar-se-ia incapaz de representar outros raios entre estes dois primeiros, pois não chegariam ao centro sem tocar nas linhas laterais. Mas a razão ensina que é possível traçar-se outros inumeráveis raios, passando por esta incrível estreiteza de espaço e sem se tocar a não ser no centro, de modo que o intervalo de cada raio poderia inscrever-se neste mesmo círculo. Isto não é nenhum fantasma, o intelecto fala mais que os olhos por utilizar para tanto, o espírito. Isto demonstra que as imagens da fantasia divergem grandemente da verdade e que a primeira é objeto de visão sensível e esta da inteligível. Tudo isto será tratado de forma mais cuidadosa e sutil quando discorrermos sobre a inteligência, no que temos nos empenhado e acontecerá quando terminarmos essas discussões e concluirmos os temas que nos suscitam o estudo da vida da alma. Pois tenho para mim que te causaria grande tristeza imaginar que a morte humana acabaria com a da alma, e assim reduzisse ao esquecimento todas as coisas incluindo essa verdade que temos investigado. AA - Não se tem ideia do quanto seria terrível este mal. Por que o que seria a vida eterna se a morte acabasse com a alma. Imagine o exemplo de morte de um recém-nascido ou até mesmo da vida intrauterina, pois ali também há uma vida? AE - Não desvies teu espírito, porque Deus nos assistirá e já ensina com a experiência àqueles que investigam a verdade, e que concluem que após a morte corporal haverá um beatíssimo repouso e sem dúvida a posse absoluta da verdade. AA - Que se cumpra nossa esperança!