Agostinho de Hipona – A Cidade de Deus LIVRO PRIMEIRO O autor censura os gentios, que à religião cristã e ao banimento do culto aos deuses atribuem as calamidades do mundo e a recente assolação de Roma pelo ferro gado. Agita o caso dos bens e dos males, comuns, então e sempre, a bons e maus. Rebate as cínicas objeções colhidas nas violências dos soldados às mulheres cristãs. PRÓLOGO Motivo e plano da presente obra A gloriosa Cidade de Deus prossegue em seu peregrinar através da impiedade e dos tempos, vivendo, cá embaixo, pela fé, e com paciência espera a firmeza da mansão eterna, enquanto a Justiça não se converte em juiz, o que há de conseguir por completo, depois, na vitória final e perfeita paz, Nesta obra, que estou escrevendo, conforme promessa minha, e te dedico, caríssimo filho Marcelino, empreendo defendê-la contra esses homens que a seu divino fundador preferem as divindades, Trata-se de trabalho imenso e árduo, mas conto com o auxílio de Deus. Não ignoro o esforço necessário para convencer os soberbos de todo o poderio da humildade, A humildade! Faz a elevação concedida pela divina graça, não usurpada pelo orgulho humano, transcender a todas as culminâncias do mundo, volúveis joguetes do tempo, O rei e fundador de tal Cidade revelou a seu povo esta norma da suprema lei: Deus resiste aos soberbos e concede graça aos humildes, A alma inflada de presunçoso orgulho apropria-se, porém, desse atributo soberano e deleita-se neste elogio: Perdoar os vencidos e reprimir os soberbos, Falarei, pois, da Cidade terrena, senhora dos povos escravos e, por sua vez, dominada pela paixão de dominar, e coisa alguma calarei do que a razão determinante deste escrito pede e minha inteligência permite. CAPÍTULO I Adversários do nome de Cristo, a quem durante a devastação de Roma os bárbaros em reverência a Cristo perdoaram. Não é, com efeito, da Cidade terrestre que saem os inimigos contra quem se torna preciso defender a Cidade divina? Alguns, sem dúvida, abjurando o erro de sua impiedade, nela reentram e voltam a ser cidadãos muito fiéis, mas, por outro lado, quantos ódios acesos, quantos corações fechados pela ingratidão aos benefícios do Redentor, benefícios de tal maneira evidentes, que essas línguas estariam hoje mudas para a blasfêmia, se os ímpios, acossados pelo gládio inimigo, não houvessem encontrado nos santos refúgios a vida que seu orgulho tão mal emprega! Não são esses adversários do nome de Jesus Cristo aqueles mesmos romanos que em nome de Jesus Cristo os bárbaros pouparam? Atestam-no as capelas dos mártires e as basílicas dos apóstolos, que em plena desolação de Roma abriram o seio a quantos, cristãos ou gentios, nele buscavam refúgio. Até o sagrado limiar o furioso inimigo banhava-se em sangue, mas nessa barreira a raiva assassina expirava. Para esses lugares alguns vencedores, tocados de compaixão, levavam aqueles que, mesmo fora de tais recintos, haviam poupado, para subtraí-los a mãos mais ferozes, eles próprios também cruéis e impiedosos pouco mais longe, desarmados quando se aproximavam dos lugares em que lhes era interdito o que o direito da guerra permitira alhures. Detinha-se, nos santuários, a ferocidade que faz vítimas, embotava-se a cupidez que quer cativos. Assim escapou à morte a maioria desses caluniadores de nossa era cristã, que atribuem ao Cristo os males que Roma sofreu; o benefício da vida, por eles devido ao nome do Cristo, não é a nosso Cristo, porém, que atribuem, e sim ao destino, quando, se maduramente refletissem, no que suportaram de infortúnios poderiam reconhecer a Providência, que se vale do flagelo da guerra para corrigir e pulverizar a corrupção humana e, atormentando com semelhantes aflições almas justas e meritórias, faz que, depois da prova, passem a melhor destino ou as retém na Terra para outros desígnios. Quanto, porém, à milagrosa proteção de que o nome do Cristo os cercou em toda parte e nos mais divinos e amplos edifícios, designados à multidão como oferecedores de maior espaço ao refúgio e à clemência, clemência nova, até então desconhecida por vencedores, por bárbaros ferozes, não deveriam atribuí-Ia ao Cristianismo, dar graças a Deus e acorrer-lhe ao nome com sincera fé, para fugirem aos suplícios do fogo eterno? Esse nome vários não o usurparam senão para evitar as angústias da morte presente, porque de todos quantos vês insultarem com cínica desfaçatez os servidores do Cristo muitos não escapariam ao gládio ensanguentado, se não se acobertassem com o falso título de servidores de Jesus Cristo. E agora, com soberba ingratidão, delirantes de impiedade e de coração perverso, correm ao suplício das trevas eternas, insurgindo-se contra esse nome, em que se refugiaram, mentindo, para fruir da luz temporal. CAPÍTULO II Em tempo algum houve guerra em que, em reverência aos deuses dos vencidos, os vencedores os perdoassem. Abri as histórias de todas as guerras, quer anteriores à fundação de Roma, quer posteriores a seu nascimento e à organização de seu império, lede-as e mostrem-nos estrangeiros, inimigos, senhores de cidade conquistada, que tenham poupado aqueles que sabiam estar refugiados nos templos de suas divindades, mostrai-nos algum chefe bárbaro que, em cidade por ele forçada, haja ordenado se poupasse toda pessoa surpreendida neste ou naquele templo. Não vê Enéias Príamo, imolado no altar, extinguir com o próprio sangue o fogo por ele mesmo consagrado? Díomedes e Ulisses degolaram os guardas da cidadela e, apoderando-se da estátua da deusa, ousaram tocar-lhe com as mãos ensanguentadas as fitas virginais! Não é verdade, porém, que, depois, as esperanças dos filhos de Dânao esvaneceram ou lhe escaparam das mãos, porque, depois, triunfam, depois entregam Tróia à espada e às chamas, depois, ao pé dos altares em que se refugia, degolam Príamo. E de modo algum Tr6ia pereceu por haver perdido Minerva. Para que Minerva perecesse, nada perdera? Quem sabe se os guardas? Sim, com certeza, porquanto, mortos os guardas, puderam roubá-la. Não era a estátua que velava pelos homens, mas os homens que velavam pela estátua. E o culto público punha a pátria e os cidadãos sob a guarda dessa deusa, impotente para guardar seus próprios guardas! CAPÍTULO III Imprudência grande a de os romanos crerem que os deuses penates, incapazes de guardar Tróia, haviam de ser-lhes úteis. Eis, por conseguinte, a que deuses os romanos se felicitavam de confiar a tutela de Roma. Erro digno de imensa compaixão. E insurgem-se contra nós, quando assim falamos de suas divindades, e não se insurgem contra seus poetas. Longe disso, pagam para aprendê-los; honras e salário público a seus olhos não passam de justa recompensa de tais professores. Pois bem, o grande poeta Virgílio, entregue às mãos da infância por ser o mais excelente e sábio, a fim de as crianças, imbuídas em sua leitura, não a esquecerem com facilidade, porque, uma vez penetrado pelo primeiro perfume, o vaso conservará por longo tempo o aroma, Virgílio, como íamos dizendo, mostra-nos Juno, inimigo dos troianos, sublevando contra eles Eolo, rei das tempestades: Raça que odeio, exclama, navega no Tirreno; para a Itália conduz Ílion e seus penates vencidos. É, pois, a penates vencidos que a prudência devia recomendar a cidade de Roma, a fim de assegurar-lhe a vitória? Mas Juno fala como mulher irritada, não sabe o que diz. Se é assim, escutai, então, o próprio Enéias, o piedoso Enéias: Panto, filho de Otris, sacerdote da cidadela do templo de Apolo, encarregado das coisas sagradas, de nossos deuses vencidos, arrastando pela mão o neto, chega, desvairado, à porta de minha casa. Esses deuses, que o herói não receia dizer vencidos, não lhe são confiados à tutela mais do que ele próprio à deles, quando lhe dizem: Tróia confia-te seu culto e seus penates. Assim, esses deuses (e que deuses!). Virgílio os declara vencidos e, para escaparem aos vencedores, não importa por que meio, confiados a ser humano! E Roma, sabiamente confiada (que loucura!) a semelhantes protetores? E não poderia, então, ser devastada, se não os perdesse? Honrar como tutores e patronos esses deuses vencidos, que é, senão votar seus destinos a nefastos auspícios e não a divindades benfazejas? Não é, porventura, infinitamente mais sábio acreditar não que Roma, evitando perdê-los, conjurasse a própria ruína, e sim que estariam de há muito perdidos, caso Roma não os tivesse generosamente posto sob a proteção de seu poder? Quem não vê, depois de breve exame, como é fútil a presunção de ser invencível sob a tutela de defensores vencidos e de à perda de suas divindades atribuir a própria, quando, para perecer, basta haver querido protetores perecíveis? Oh! Não! Quando em seus versos assim nos falam dos deuses vencidos, esses poetas já não são caprichosos artesãos de mentira, mas homens dotados de coração, cuja sinceridade tal confissão exprime. Deixemos, todavia, para tempo e lugar mais convenientes o desenvolvimento dessas considerações. Volto, agora, ao assunto de que estava tratando, impaciente de com derradeiro argumento rebater a ingratidão desses blasfemadores que ao Cristo atribuem os males que sua perversidade sofre com tamanha justiça, tão indignos de perdão e perdoados por amor ao Cristo, sem que o advirtam, e cuja arrogante demência aguça, agora, contra o nome divino as línguas sacrílegas que, para salvá-los da morte, falsamente o usurparam, pusilânimes línguas, mudas até há pouco nos lugares santos, seguros refúgios, invioláveis muralhas que os preservaram, os ingratos, do furor inimigo e donde se lançam, inimigos furiosos e repletos de maldição, contra seu libertador. CAPÍTULO IV O templo de Juno em Tróia a ninguém livrou das mãos dos gregos; as basílicas dos apóstolos, entretanto, protegeram do furor dos bárbaros todos quantos nelas se abrigaram. Tróia, como afirmei, Tróia, mãe do povo romano, não pôde, nos templos das divindades, defender seus próprios cidadãos contra as chamas inimigas, contra o gládio dos gregos adoradores dos mesmos deuses. Na casa da própria Juno, o terrível Ulisses e Fênix, sentinelas escolhidas, velam os despojos. Amontoam-se, no lugar, vindos de toda parte, os tesouros de Tróia, roubados aos santuários em chamas, as credencias dos deuses, as taças de ouro maciço e mais presa tomada ao inimigo. Em torno, de pé, crianças e trêmulas mães. Assim, o local consagrado a deusa tão importante não é escolhido para servir de refúgio, mas de prisão aos vencidos. O santuário dedicado não a qualquer obscura divindade, confundida no rebanho da plebe divina, mas à irmã, à mulher de Júpiter, à rainha de todos os deuses, compara-o agora com as basílicas dos apóstolos. Para aqueles lugares eram levados os despojos dos deuses e de seus templos consumidos pelas chamas, não para devolvê-los aos vencidos, e sim para dividi-los entre os vencedores. Para estes santos lugares é reconduzido, com veneração e honras, qualquer objeto que reconheçam pertencer-lhes. De um lado, liberdade perdida, grilhões; doutro, liberdade salva, não mais escravos. Lá, rebanho humano amontoado pelo inimigo; aqui, prisioneiros conduzidos à liberdade pelo inimigo compassivo. Lá, finalmente, o templo de Juno, escolhido de preferência pela soberba cupidez dos civilizados gregos; aqui, as basílicas do Cristo, preferidas pela misericordiosa piedade desses bárbaros ferozes. Mas será que os gregos, vitoriosos, não respeitam os templos das divindades a que rendem culto? Esses templos talvez constituam refúgio em que o gládio, o cativeiro não tenha o atrevimento de atingir os desgraçados troianos... Quem sabe se a narrativa de Virgílio não passa de poética mentira? Não, não. É o fiel retrato da costumeira desolação de cidade em poder do inimigo. CAPÍTULO V Parecer de César sobre o estilo comum dos inimigos destruidores de cidades vencidas. O próprio César, segundo testemunho de Salústio, verídico e famoso historiador, César, em discurso contra os conspiradores proferido no Senado, expõe este selvagem costume: Virgens raptadas, crianças arrancadas aos braços das mães, mulheres entregues aos ultrajes dos vencedores, casas e templos saqueados, armas em toda parte, cadáveres em toda parte, em toda parte sangue e luto! Se não falasse dos templos, acreditaríamos que de ordinário a vitória respeitasse as moradas divinas. Agora não é vencedor estrangeiro que templos romanos devem recear, mas Catilina e seus cúmplices, as pessoas mais nobres de Roma e do Senado. Cidadãos perversos, dirão, e parricidas, porque assassinos da pátria. CAPÍTULO VI Nem os próprios romanos tomaram cidade alguma em que houvessem perdoado os vencidos refugiados nos templos. Mas por que nos perdermos em meio de tantos povos que se guerrearam, sem jamais pouparem os vencidos refugiados nos templos de suas divindades? Fixemos os olhos e a lembrança nos romanos, esses mesmos romanos de quem, conforme dizem, o grande merecimento reside em perdoar os vencidos e reprimir os soberbos e relevar injúrias, de preferência a vingá-las. Depois de tomarem e destruírem tantas cidades florescentes, para o império estender-se ao longe, a que templos, salvos da ruína geral, costumavam conceder a vida e a liberdade dos vencidos? E faziam-no? E os historiadores de suas façanhas calam semelhante clemência! Qual nada! Procuram tanto o que louvar e deixariam no olvido testemunhos de piedade a seus olhos de tal modo recomendáveis! Marco Marcelo, ilustre nome romano, vencedor da cidade de Siracusa, chora, dizem, a extraordinária vítima a quem vai ferir e, antes de derramar-lhe o sangue, derrama lágrimas por ela. Que digo? Até cuida de salvaguardar a honra do inimigo, porquanto, antes de ordenar o vitorioso assalto, proíbe de maneira expressa qualquer violência contra os corpos. No entanto, a cidade foi destruída, como sói acontecer na guerra, e narrativa alguma nos assegura tenha vencedor tão virtuoso e clemente designado este ou aquele templo para inviolável abrigo. Seria semelhante fato esquecido pela História, que não lhe esquece as lágrimas, nem o edito protetor da castidade? Fábio, destruidor de Tarento, é louvado por haver-se abstido de pilhar os deuses. Havendo-lhe seu escriba perguntado o que decidira fazer da rica presa, deu-lhe resposta cujo sal lhe temperou a moderação do procedimento. Perguntou ao escriba como eram as estátuas a que se referia. Quando soube que várias eram colossais e armadas: Deixemos aos tarentinos, disse, seus irritados deuses. Ora, os fastos de Roma conquistadora não omitem as lágrimas e a virtuosa compaixão de Marco Marcelo nem o comedimento espirituoso e irônico de Fábio. Como silenciariam sobre a clemente piedade que houvesse permitido aos templos deste ou daquele deus subtraírem alguns homens à escravidão ou à morte? CAPÍTULO VII O que houve de crueldade na destruição de Roma aconteceu de acordo com os costumes bélicos; o que houve de clemência procedeu do poder do nome de Cristo. Assim, ruínas, homicídios, pilhagem, desolação, incêndio, horrores cometidos no recente desastre de Roma, tudo se deve às usanças guerreiras. Mas o fato estranho, o fato novo, a ferocidade dos bárbaros transformada nesse prodígio de clemência que escolhe, que designa ao povo as mais amplas basílicas como refúgio onde ninguém será ferido, donde pessoa alguma será arrancada, para onde os vencedores mais humanos levarão os cativos a fim de assegurar-lhes a liberdade, donde os mais cruéis não poderão tirá-los a fim de reduzi-los a escravos, devem-no ao nome do Cristo, à era cristã. Quem não vê é cego; quem o vê em silêncio, ingrato; quem se insurge contra as ações de graças, louco. Ninguém de bom senso o atribui aos costumes ferozes dos bárbaros. Quem lhes assombrou, freou, admiravelmente abrandou as mentes assim truculentas e ferozes foi Ele, que por boca do profeta há longo tempo dissera: Castigar-lhes-ei as iniquidades com o cajado e os pecados com os flagelos, mas não os privarei de minha misericórdia. CAPÍTULO VIII Graças e desgraças comuns, na maioria, a bons e maus. 1. Mas alguém perguntará por que, nesse caso, se estendeu aos ímpios, aos ingratos a misericórdia divina. Por quê?! Sem dúvida porque emanou de quem, todo dia, faz o Sol erguer-se sobre os bons e os maus e chover sobre os justos e os injustos. Embora vários deles, pensando nisso, se corrijam da impiedade pelo arrependimento e outros, na dureza impenitente do coração, desprezando as riquezas de sua bondade e paciência, entesourem cólera para o dia da vingança e do juízo, em que a infalível justiça recompensará cada qual segundo suas obras, a paciência de Deus convida os maus à penitência, como os flagelos adestram os bons na paciência. E como a misericórdia de Deus abraça os bons para auxiliá-los, sua severidade apodera-se dos maus para castigá-los. Com efeito, prouve à divina Providência preparar para os justos, no futuro, bens de que os injustos não gozarão e para os ímpios males pelos quais os bons jamais serão atormentados. Quanto aos bens e males temporais, a Providência quis fossem comuns a uns e outros, a fim de o homem não apetecer com demasiada avidez os bens que vê também nas mãos dos maus e não evitar vergonhosamente os males que, de ordinário mesmo, afligem os bons. 2. Há muita diferença, entretanto, no uso do que se chama boa ou má sorte. Quem é virtuoso não se orgulha de uma, nem se deixa abater pela outra. Para o mau a infelicidade temporal não é castigo, senão porque a felicidade o corrompeu. Com frequência, porém, na distribuição dos bens e dos males, mostra Deus de modo evidente seus desígnios. De fato, se agora aplicasse pena visível a todo pecado, nada ficaria reservado, segundo pensamos, para o juízo final; por outro lado, se hoje todo pecado escapasse a castigo manifestamente imposto pela divina justiça, ninguém acreditaria, em absoluto, na Providência. Diga-se o mesmo, quanto à prosperidade temporal. Se, algumas vezes, Deus, por liberalidade visível, não a concedesse a quem, orando, lha pede, diríamos não estar a seu alcance distribuí-Ia; se jamais a negasse, a gente ficaria pensando não dever servi-lo, senão para ser assim recompensado e semelhante culto não seria, de forma alguma, escola de piedade, mas de avareza e interesse. Assim, malgrado partilharem das mesmas angústias, bons e maus não se misturam, por estarem confundidos nas provações. A semelhança dos sofrimentos não elimina a diferença entre os sofredores e a identidade dos tormentos não estabelece identidade alguma do vício e da virtude. Sob a ação da mesma chama, o ouro brilha, fumega a palha; o mesmo debulhador quebra a espiga de trigo e separa o grão; azeite e lia não se misturam de jeito nenhum, embora espremidos no mesmo lagar. Assim como o mesmo cadinho testa, purifica e funde no amor as almas virtuosas, e dana, extermina e devasta as ímpias, assim também, na mesma aflição, os maus protestam e blasfemam contra Deus e os bons rezam e o bendizem. Não interessa tanto o que a gente sofre, mas como sofre. Remexidos de igual maneira, o lodo exala horrível mau cheiro, o unguento, suave perfume. CAPÍTULO IX Causas dos corretivos que flagelam por igual bons e maus. 1. Em semelhante calamidade pública, que sofreram os cristãos que, no tocante à fé, não reverta em seu progresso? Se, antes de mais nada, pensassem humildemente em seus pecados, de que a cólera divina se vinga, enchendo o mundo de espantosas catástrofes, embora muito longe de serem criminosos, dissolutos ou ímpios, julgar-se-iam de tal modo isentos de culpa, que não tivessem necessidade de expiá-la por meio de alguma pena temporal? Dado não haver fiéis, cuja vida, por irrepreensível que seja, às vezes não ceda aos instintos carnais e, sem cair na enormidade do crime, no abismo da libertinagem, não se abandone a certos pecados, raros ou cometidos com frequência inversamente proporcional à gravidade, onde encontrar quem, diante de tais monstros de avareza, orgulho e luxúria, cuja iniquidade, cuja impiedade execrável constrange Deus a flagelar a Terra, conforme antiga ameaça, quem, volto a perguntar, seja perante eles o que deve e com eles conviva como é preciso conviver com semelhantes armas? Quando se trata de esclarecê-los, censurá-los e, mesmo, repreendê-los e corrigi-los, com bastante frequência, funesta dissimulação nos detém, ou preguiçosa indiferença, ou respeito humano incapaz de afrontar alguém já de si perturbado, ou temor a ressentimentos que poderiam causar-nos prejuízo e prejudicar-nos no tocante a esses bens temporais cuja posse nossa cupidez cobiça, cuja perda nossa fraqueza receia. Embora as pessoas de bem odeiem a vida do mau e tal aversão as preserve do abismo que espera os réprobos, à saída deste mundo, essa fraqueza indulgente com as mortais iniquidades, por medo a represálias contra as próprias faltas, faltas leves e veniais, diga-se de passagem, essa fraqueza, salva da eternidade dos suplícios, é de justiça que seja com o crime castigada pelos flagelos temporais, é de justiça que, no envio providencial das aflições, sinta o amargor da vida que, embriagando-a com doçuras, a dissuadiu de oferecer aos maus a taça de salutar amargura. 2. Se, todavia, a reprimenda e correção dos pecadores forem transferidas para época mais favorável, no interesse deles mesmos, de medo a que se tornem piores ou impeçam a iniciação dos fracos nas práticas da piedade e da virtude, oprimindo-os, desviando-os da fé, nesse caso já não se trata de cupidez, e sim de prudência e caridade. O mal reside em que aqueles cuja vida testemunha profundo horror aos exemplos dos maus poupem os pecados dos irmãos, porque lhes receiam a inimizade, porque temem ser lesados em interesses, é verdade que legítimos, mas demasiado caros a homens em viagem neste mundo, guiados pela esperança na pátria celeste. Não é, com efeito, somente dos mais fracos, integrados na vida conjugal, com filhos ou desejosos de tê-los, pais e chefes de família (a quem o Apóstolo se dirige, para ensinar-lhes os deveres cristãos dos maridos para com as mulheres, das mulheres para com os maridos, dos pais para com os filhos, dos filhos para com os pais, dos empregados para com os patrões, dos patrões para com os empregados), não é somente deles que o amor a certos bens temporais ou terrestres, cuja posse ou perda lhes é dolorosa em demasia, tira a coragem de afrontar o ódio dos homens cuja vida criminosa e infame detestam. Os próprios fiéis, elevados a grau superior de vida, livres do vínculo conjugal, sóbrios no comer e no vestir, sacrificam muito frequentemente a reputação, a segurança, quando, para evitarem os ardis ou a violência dos maus, se abstêm de censurá-los e, sem se deixarem intimidar por ameaças, por mais terríveis que sejam, ao extremo de lhes seguirem os sinistros exemplos, não se abalançam, porém, a repreender o que se recusariam a imitar. Talvez salvassem muitos, se cumprissem o dever de censurar, que deixam ceder ao medo de expor a reputação e a vida; já não se trata agora da prudência que ambas mantêm em reserva para instrução do próximo, mas da fraqueza que se compraz em palavras lisonjeiras e, no falso dia dos julgamentos humanos, receia a opinião do mundo, os sofrimentos e a morte da carne, fraqueza agrilhoada pela cupidez e não por dever de caridade. 3. Eis por que (e parece-me razão muito forte), quando apraz a Deus punir a corrupção dos homens com penas mesmo temporais, os bons são castigados de mistura com os maus, castigados como eles, não por viverem como eles, mas por gostarem como eles, embora menos, da vida temporal que deveriam desprezar. Graças a tal desprezo, suas reprimendas possivelmente conseguiriam a vida eterna para os maus. Se não pudessem tê-los como companheiros nos caminhos da salvação, pelo menos saberiam suportá-los e querer-lhes como inimigos, pois, enquanto vivem, a gente sempre ignora se podem ou não mudar para melhor. Mais culpados ainda aqueles a quem pela boca do Profeta se diz: Esse homem morrerá em seu pecado, mas de sua vida pedirei contas a quem deve olhar por ele. Com efeito, as atalaias, os pastores dos povos não são constituídos na Igreja senão para tratar os pecados com inflexível rigor; mas, embora estranho ao santo ministério, não é por completo isento de falta o fiel que vê muito a repreender nos que lhe estão ligados por laços sociais e, não obstante, lhes poupa advertência ou censura, por medo de que seu ressentimento o perturbe nos bens de que faz legítimo emprego, mas com ilegítimo agrado do coração. Outra causa de serem as pessoas de bem submetidas aos flagelos temporais (Jó serve de exemplo) é querer o Senhor revelar ao espírito humano a força de sua piedade e permitir ao homem demonstrar o amor desinteressado que lhe tem. CAPÍTULO X Prejuízo algum causa aos santos a perda das coisas temporais. 1. Reflete nessas considerações e vê se a homens de piedade e fé aconteceu algum mal que não possa tornar-se verdadeiro bem. Em caso afirmativo, não teriam sentido estas palavras apostólicas: Sabemos que tudo concorre para o bem dos que amam a Deus. Mas perderam tudo quanto possuíam. Perderam a fé? Perderam a piedade? Perderam os bens do homem interior, rico aos olhos de Deus? Eis a opulência do cristão, a opulência do Apóstolo, que nos diz: É de grande proveito a piedade que se faz acompanhar de prudência. Nada trouxemos para este mundo; dele nada devemos levar. Se temos com que viver e vestir-nos, fiquemos contentes, porquanto quem quer ficar rico cai nas ciladas do tentador, se perde nos desejos insensatos e funestos que precipitam o homem no abismo da morte. A cupidez é a raiz de todos os males. Escravos de tal paixão, vários desviaram-se da fé e enveredaram por caminhos dolorosos. 2. Ora, quem, na ruína de Roma, perdeu as riquezas terrenas, se as possuía conforme o ensinamento desse pobre por fora, mas rico por dentro, isto é, usando o mundo como se não o fizesse, pôde exclamar com o homem invulnerável às tentações mais rudes: Nu saí do seio de minha mãe e nu voltarei para o da terra. O Senhor deu-me tudo, o Senhor tirou-me tudo. O que me aconteceu, aconteceu porque aprouve a Deus. Bendito seja seu nome. Servo fiel, sua riqueza é a vontade do Senhor. Tal submissão aumenta-lhe a reserva espiritual; não se aflige por ser abandonado, em vida, pelas coisas que logo mais, ao morrer, deve abandonar. Quanto aos mais fracos, que, sem ao Cristo preferirem esses bens, lhes tiram certo apego, a dor de semelhante perda fê-los perceberem o pecado. Sofreram na proporção do percurso por eles feito nos caminhos da dor, conforme as palavras do Apóstolo, que há pouco lembrei. Não convinha que o ensinamento da experiência vingasse o longo desprezo à palavra? Com efeito, dizendo: Os que querem tornar-se ricos caem na tentação, o Apóstolo não censura o emprego das riquezas, mas o desejá-las, tanto assim que noutra passagem recomenda aos ricos do mundo não serem altivos, nem porem as esperanças na instabilidade das riquezas, mas em Deus vivo, que em abundância nos dá todas as coisas, para delas gozarmos, e serem benfeitores, ricos em boas obras, generosos, darem esmolas e erguerem sobre esses tesouros de caridade o sólido fundamento do futuro, a fim de alcançarem a vida eterna. Grandes benefícios consolaram de perda insignificante os fiéis que assim se utilizavam de seus bens. A fácil distribuição de esmolas causou-lhas alegria maior que a tristeza provocada pela perda, ainda mais fácil, das magras poupanças da cupidez. A terra podia consumir o que não quiseram tirar-lhe. Com efeito, os cristãos que ouviram este mandamento do Senhor: Não amontoeis para vós tesouro escondido na terra, onde o verme e a traça o devoram, donde os ladrões o tiram e roubam, mas amontoai para vós tesouros no céu, onde o ladrão, em absoluto, não penetra, onde o verme nada pode corromper, pois onde estiver teu tesouro, aí estará também teu coração, ficaram sabendo, no dia das tribulações, como foram inteligentes, não desprezando o mestre verdadeiro, o mais fiel e invencível guardião de seu tesouro. Se muitos se aplaudiram de haver confiado seu ouro a certos esconderijos que o acaso preservou da visita do inimigo, quais não devem ter sido a segurança e alegria dos crentes que, por depositarem fé na palavra divina, os transportaram para os lugares cujo acesso é impossível? Eis por que nosso caro Paulíno, Bispo de Nola, que pela pobreza voluntária trocou seus bens e pela opulência espiritual a opulência do mundo, do fundo do coração, quando cativo dos bárbaros, durante o saque de Nola, dirigia esta prece a Deus, segundo ele próprio nos disse: Senhor, não deixeis que, por causa de ouro e de prata, me submetam a torturas, pois sabeis onde tudo quanto possuo de meu se encontra. Tudo estava escondido onde o divino Profeta das calamidades do mundo lhe recomendara esconder e entesourar. Assim, portanto, os fiéis, dóceis aos mandamentos do Senhor, que lhes ensina onde e como devem entesourar, souberam desviar das mãos dos próprios bárbaros seus haveres temporais. Quanto àqueles que tiveram de arrepender-se de sua desobediência, aprenderam o emprego a dar aos referidos bens, senão pela sabedoria, capaz de prevenir-lhes a perda, ao menos pela experiência que a seguiu. 3. Mas, dir-se-á, bons cristãos foram torturados, para revelarem o esconderijo de seu tesouro. Não puderam revelar, nem perder o bem que os tornava bons. Se a revelarem onde haviam ocultado as riquezas preferiram sofrer, não eram bons. Tais homens, capazes de tantos sofrimentos pelo ouro, precisavam ser advertidos de quantos mais necessitariam padecer por Jesus Cristo, a fim de aprenderem a amar quem enriquece de felicidade eterna aqueles que sofrem por ele, preferindo-o ao ouro e à prata, deploráveis causas de sofrimento, salvos pela mentira e deitados a perder pela verdade. Nas torturas ninguém perdeu Jesus Cristo, confessando Jesus Cristo, ninguém salvou o ouro, senão negando o ouro. Assim, ensinando-os a amar bens incorruptíveis, as torturas lhes eram, quem sabe, mais úteis que os bens, cujo amor consumia de estéreis angústias seus miseráveis possuidores. Mas vários, embora nada tivessem, foram torturados, isso porque ninguém acreditava neles. Talvez desejassem ter; não escolheram a santa pobreza e necessitariam aprender que tais suplícios não são impostos às riquezas, mas à paixão pelas riquezas. Houve alguém que, fazendo profissão de vida melhor, não tendo ouro, nem prata escondidos, mas passando por ter, haja sido torturado? Ignoro. Pois bem, mesmo que tenha havido, quem, nos tormentos, confessasse a santa pobreza, confessava, sem dúvida alguma, Jesus Cristo. Vítima de bárbara incredulidade, nenhum confessor da santa pobreza poderia sofrer, sem alcançar celeste recompensa. CAPÍTULO XI Fim da vida temporal, prolongada ou breve. Prolongada fome, dizem, consumiu grande número de cristãos. Não é outra provação que a piedosa paciência dos verdadeiros fiéis transforma em vantagem sua? Para aqueles que mata, a fome representa, como a doença, completa libertação dos males desta vida; para os que poupa, lição de abstinência mais rigorosa e jejuns mais prolongados. Quantos outros cristãos porém, trucidados, engolidos pela inexorável morte que se multiplica de maneira espantosa! Sorte cruel, mas comum a todos os destinados a esta vida. O que sei é não haver morrido pessoa alguma que não devesse morrer um belo dia. Ora, o fim da vida reduz a igual medida a mais longa e a mais curta, pois coisa nenhuma é melhor, ou pior, ou mais longa, ou mais curta na igualdade do nada. Que importa, pois, de que espécie de morte morremos, se, depois de mortos, não podemos ser constrangidos a morrer de novo? Como as peripécias diárias da vida suspendem, por assim dizer, sobre cada cabeça mortal a ameaça de número infinito de mortes, não é melhor, pergunto, enquanto perdura a incerteza da que há de vir, sofrer apenas uma e morrer do que continuar vivo e recear todas? Não ignoro que nossa covardia prefere viver longo tempo no temor de tantas mortes a morrer uma vez para não continuar receando nenhuma. Uma coisa, entretanto, é o que causa horror aos sentidos e à imbecilidade da carne, e outra, a convicção esclarecida e profunda do entendimento. A morte não representa nenhum mal, se sucede a vida santa; não pode ser mal, senão pelo acontecimento que a segue. Que importa, por conseguinte, a seres necessariamente votados à morte o acidente de que morrem? Importa, isso sim, o lugar para onde vão, depois da morte. Ora, os cristãos sabem que a morte do pobre bom entre os cães que lhe lambem as feridas é incomparavelmente melhor que a do rico que expira na púrpura e no linho. Pois bem, como poderiam essas mortes horrendas prejudicar os mortos, se viveram bem? CAPÍTULO XII O sepultamento do corpo humano de nada priva o cristão, embora lhe seja negado. 1. Nessa espantosa messe de cadáveres, quantos fiéis ficaram privados de sepultura? Trata-se de infortúnio pouco temido por fé viva, que tem por certo nada poder a sanha dos animais contra a ressurreição dos corpos de suas vítimas, das quais não perecerá um só cabelo da cabeça. Teria afirmado a Verdade: Não temais, em absoluto, quem mata o corpo e não pode matar a alma, se a engenhosa crueldade dos assassinos pudesse sufocar nos cadáveres inimigos o germe da vida futura? Salvo se houver alguém bastante insensato para pretender não deverem os assassinos do corpo ser temidos antes de o matarem, antes da morte, mas depois da morte, depois de o haverem matado, porque podem privá-la de sepultura. Se ainda lhes fosse possível fazer algum mal a cadáveres, seriam falsas estas palavras do Cristo: Quem mata o corpo e nada mais pode. Quê? Falsas as palavras da Verdade?! Longe de nós semelhante blasfêmia! Está escrito disporem os assassinos de certo poder no momento de matarem, por ser o corpo sensível ao golpe que o mata, mas, em seguida, nada mais poderem, por ser o cadáver desprovido de sensibilidade. A terra, é verdade, não recebeu o corpo de grande número de cristãos, mas, em tal caso, quem os tirou do céu e da Terra, cheios por completo da presença daquele que sabe donde chamar à vida tudo aquilo que criou? Diz bem o Salmista: Derramaram-lhes o sangue, como água, em redor de Jerusalém e não havia quem os enterrasse. Mas assim fala mais para exagerar a crueldade dos carrascos do que para deplorar a infelicidade das vítimas. Dura e cruel aos olhos dos homens, essa morte de seus santos é preciosa aos do Senhor. O resto, com efeito, providências relativas aos funerais, escolha da sepultura, pompa do enterro, tudo isso é consolo dos vivos, não dos mortos. Quê?! Honras fúnebres aproveitariam a esse ímpio?! Então, para o justo seria verdadeiro infortúnio a mediocridade ou ausência de sepultura. Numeroso cortejo de escravos fez ao voluptuoso rico exéquias magníficas aos olhos dos homens; muito mais brilhantes, porém, aos olhos de Deus, as que o ministério dos anjos ofereceu ao pobre coberto de úlceras. Não lhe erguem aos restos mortais túmulo de mármore, mas levam-no para o seio de Abraão. 2. Vejo rirem aqueles contra quem defendo a divina Cidade; entretanto, seus próprios filósofos menosprezam a preocupação com o sepultamento e, frequentemente, exércitos inteiros pouco se incomodam, ao morrerem pela pátria terrena, com o lugar em que jazerão seus cadáveres e a que animais servirão de pasto. Assim, puderam dizer os poetas com gerais aplausos: O céu cobre o sem túmulo. Que loucura, portanto, essa, de ultrajar os cristãos por causa de cadáveres deixados insepultos, se aos fiéis foi prometido que a própria carne e todos os membros, acordados do profundo sono no seio da terra, no mais secreto abismo dos elementos, hão de, num abrir e fechar de olhos, tornar à vida e ser restituídos à primitiva integridade? CAPÍTULO XIII Razão do sepultamento do corpo dos santos. Isso, contudo, não é motivo para deixar com desdém ao abandono os despojos dos mortos, em especial os dos justos e dos fiéis, órgãos e instrumentos do Espírito Santo para toda boa obra. Se a roupa do pai, o anelou objeto semelhante é mais precioso para os filhos na medida em que sua piedade filial é mais terna, que cuidados não nos merece nosso corpo, que nos está mais intimamente ligado que a roupa, seja qual for? Com efeito, o corpo não é apenas ornamento do homem, adjutório exterior; faz parte de sua natureza. Essa a causa dos derradeiros deveres de piedade solenemente prestados aos justos dos velhos tempos, a pompa de suas exéquias, os cuidados com sua sepultura e as ordens que eles mesmos, durante a vida, confiavam aos filhos, para sepultamento ou trasladação de seus restos mortais. O cuidado para com os mortos, segundo o testemunho do anjo, atrai sobre Tobias as bênçãos de Deus. E Nosso Senhor mesmo, que vai ressuscitar no terceiro dia, divulga a boa ação da santa mulher que lhe ungiu os membros com precioso perfume, como para sepultá-lo por antecipação. E o Evangelho lembra com louvores aqueles que, à descida da cruz, lhe recebem piedosamente o corpo, o cobrem com sudário e o depositam no sepulcro. Tais exemplos em absoluto não provam que os cadáveres conservam qualquer sensibilidade, e sim que a Providência de Deus vela os despojos dos mortos e esses deveres de piedade lhe são agradáveis, por demonstrarem fé na ressurreição. No caso há, demais, salutar ensinamento para nós, a saber, quão grande pode ser a paga das esmolas feitas a pobre, enquanto dotado de sensibilidade e vida, se aos olhos de Deus nada se perde dos caridosos tributos que lhe prestamos aos restos inanimados. Há outras recomendações relativas ao sepultamento, à trasladação de seus corpos, em que os santos patriarcas quiseram deixar entrever inspiração profética. Mas não é oportuno aprofundar, agora, semelhantes mistérios; basta o que acabamos de dizer. Se, por conseguinte, a falta de coisas necessárias ao sustento da vida, como o alimento e o vestuário, provação cruel, mas impotente contra a inalterável paciência do homem virtuoso, longe de desarraigar-lhe do coração a piedade, a exercita e fecunda, não é bem mais verdadeiro que não poderia a falta das solenidades fúnebres perturbar o repouso da alma na santa e bem-aventurada mansão? Que, na desolação de Roma ou de outras cidades, os últimos deveres tenham pois faltado aos cristãos pouco importa; não foi falta dos vivos, que nada puderam fazer, nem infortúnio para os mortos, que nada puderam sentir. CAPÍTULO XIV Cativeiro dos santos, a quem jamais faltou consolo divino. Mas cristãos foram levados cativos! Foi o cúmulo da infelicidade, se puderam levá-los para alguma parte onde não tenham, em absoluto, encontrado Deus. Apresentam-nos as santas Escrituras consolo também a tal adversidade. As três crianças, Daniel e outros profetas foram cativos, porém Deus jamais deixou de consolá-los. Não abandonou os fiéis sob a opressão dos bárbaros, que também eram homens, quem não abandonou o profeta nas entranhas mesmas do monstro. Aqui nossos adversários preferem rir a crer; entretanto, acreditam, fiando-se em seus autores, que o célebre músico Ario de Metimne, precipitado do navio no mar, foi recebido e levado à margem no dorso de um delfim. É, porventura, menos crível a história de nosso profeta? Sim, por ser mais maravilhosa; e é mais maravilhosa porque nela intervém mais poderosa mão. CAPÍTULO XV Régulo, de quem fica exemplo de cativeiro espontaneamente sofrido por motivos religiosos, que, apesar de tudo, não lhe puderam ser de proveito, porque adorava os deuses. 1. Têm estes, contudo, mesmo entre seus homens ilustres, nobilíssimo exemplo de cativeiro voluntário, por causa de religião; trata-se de Marco Atílio Régulo, comandante dos exércitos do povo romano e cativo em Cartago. Os cartagineses preferem recuperar seus soldados a conservar presos os soldados romanos; enviam-no, pois, a Roma, em companhia de embaixadores, para propor a troca, mas obrigam-no, por juramento, a retomar a Cartago, caso não merecesse acolhida a proposta que ia fazer. Parte; julga, porém, desvantajosa à república a pretendida troca e dissuadiu o Senado de aceitá-la. Depois, sem que a isso o forçassem os concidadãos, fiel à palavra empenhada, regressou a Cartago, onde o esperava a morte em meio a suplícios atrozes, inventados para ele. Encerram-no em estreito caixão de madeira, todo eriçado de agudos pregos, em que, obrigado a manter-se de pé, sem encontrar apoio algum, senão à custa de horríveis dores, morre, extenuado, além de tudo, por não dormir. É, sem dúvida, a justo título que se exalta a virtude desse homem, maior ainda que seu infortúnio. Entretanto, jurara pelos deuses cujo culto, hoje proibido, é, conforme dizem, a causa de todas as calamidades do mundo. Se por conseguinte, os deuses venerados por interesse na felicidade temporal, quiseram ou permitiram sofresse tal suplício o generoso observador da fé jurada, poderia a cólera deles algo pior contra perjuro? Seja-me permitido tirar dupla indução desse raciocínio. Talo respeito de Régulo aos deuses, que a fidelidade que, segundo acredita, deve ao juramento não lhe permite permanecer na pátria, nem retirar-se para qualquer outra parte; não hesita em retomar ao meio de seus mais cruéis inimigos. Parece-lhe resolução vantajosa à presente vida? O horrendo fim que teve prova-lhe o erro. Por seu exemplo mostra de nada servir para a felicidade temporal o culto aos deuses, pois, em recompensa de seu devotamento a ele, é vencido, levado cativo e, como prêmio da fidelidade com que guardou o juramento feito pelo nome deles, encontra a morte, morte horrível, e suplícios até então desconhecidos. Se a piedade para com os deuses não recebe, senão depois desta vida, o correspondente salário de felicidade, por que motivo caluniar o Cristianismo? Por que dizer que Roma não deve a ruína senão à infidelidade, pois, malgrado o mais inviolável apego a seus altares, veio a tornar-se desafortunada como Régulo? Talvez haja insensato que, em face de verdade tão clara, leve o orgulho e a cegueira ao extremo de pretender não possa a cidade inteira, que honra tais deuses, ser infeliz, mas um homem apenas sim, como se o poder deles fosse mais interessado na conservação de vários que na de um só, como se a multidão pudesse alguma vez deixar de ser composta de indivíduos. 2. Dirão que Régulo, cativo, torturado, é feliz por causa da virtude interior? Pois bem, procurem, então, a verdadeira virtude, que possa, também, tornar feliz determinada cidade. Uma coisa não é a ventura da cidade e outra a do homem, pois toda cidade não passa de sociedade de homens que vivem unidos. Ainda não quero, em absoluto, discutir a virtude de Régulo. Basta semelhante exemplo obrigá-los à confissão de que não devem servir os deuses por interesse nos bens corporais, nas vantagens passageiras, exteriores ao homem, porque Régulo prefere renunciar tudo isso a trair-lhes o nome tomado por testemunha. Que esperar, por conseguinte, dos insensatos que se gloriam de um cidadão assim, mas receiam se pareça com ele a cidade? Se não receiam, reconheçam que infelicidade como a de Régulo pode acontecer a cidade fiel como ele ao culto dos deuses e parem de caluniar o Cristianismo. Como, porém, se agitou o caso dos cristãos levados cativos, que os imprudentes e impudentes escarnecedores da religião salvadora reflitam em tal exemplo e se calem. Se para os deuses não é vergonhoso que adorador seu dos mais escrupulosos tenha, para observar o juramento feito pelo nome deles, renunciado a pátria, sem esperar outra, e em mãos dos inimigos esgotado, em prolongada agonia, todos os refinamentos de inaudita crueldade, com que direito criticar a fé cristã pelo cativeiro de vários fiéis, que, à espera infalível da pátria celeste, se sabem estrangeiros no próprio lar? CAPÍTULO XVI Puderam contaminar-lhes a virtude do ânimo os estupros que, sem consentimento da vontade, acaso durante o cativeiro padeceram as santas virgens? Acreditam, sem dúvida, cobrir de opróbrio os cristãos, quando ao sombrio quadro do cativeiro acrescentam o das violências feitas a mulheres, mocinhas e até mesmo religiosas. Ora, no caso não é a piedade, nem a fé, nem a virtude chamada castidade, mas apenas o nosso pensamento que se abandona a inquietações entre o desassossego do pudor e a calma da razão. Assim, ao invés de responder a nossos inimigos, cuidemos de consolar nossas irmãs. Logo de início, fique assentado que a virtude, princípio essencial de vida santa, de sua sede, a alma, comanda os membros do corpo e o corpo é santificado pelo uso de vontade santa. Enquanto essa vontade permanecer constante e firme, advenha o que advier ao corpo ou do corpo, se impossível evitá-lo sem pecado, somos inocentes do que lhe acontece. Das violências, porém, de que o corpo é passível algumas há capazes de nele produzirem outra sensação, diferente da dor. Ora, tal atentado não priva a alma da castidade por ela abraçada, mas aumenta-lhe o pudor. Treme acreditarem em certa adesão do espírito a ato em que talvez tenha sido impossível à carne manter-se indiferente. Assim, pois, que coração se recusaria a perdoar as infortunadas que se mataram para não sofrerem semelhantes ultrajes? Quanto às que não quiseram matar-se, para não se defenderem do crime alheio praticando outro próprio, quem poderia acusá-las, sem incorrer na acusação de estar louco? CAPÍTULO XVII Morte voluntária por medo à desonra ou à pena. Se a ninguém é permitido matar, por sua própria autoridade, nem mesmo criminoso, pois nenhuma lei concede semelhante direito a quem quer que seja, toda pessoa que se mata é homicida, mais culpado, matando-se, quanto menos o é na causa por que se condena a morrer. Com efeito, se o crime de Judas nos é justamente odioso e a Verdade afirma haver-lhe o desespero acrescido e não expiado o parricídio, pois seu abominável arrependimento, incrédulo à misericórdia de Deus, lhe fechou todas as vias de salutar penitência, não deve a pessoa abster-se ainda mais do assassínio de si mesma quando a consciência nada tem que expiar de maneira assim cruel? Judas mata-se; entretanto, não é da morte de Jesus Cristo apenas, mas também da sua que morre culpado; por causa de seu crime, mas do segundo crime, é que se mata. CAPÍTULO XVIII Violência e libido alheia que em seu corpo, forçado, contra a vontade sofre a mente. 1. Por que, pois, alguém que não faz mal absolutamente nenhum a quem quer que seja haveria de fazê-lo a si mesmo? Matando-se, por conseguinte, mataria pessoa inocente, a fim de prevenir crime alheio? Cometeria atentado pessoal contra si mesma, para evitar que pecado alheio se cometesse nela? Talvez receie ser manchada pela impureza alheia. Tal impureza não pode manchá-la; se a mancha, já lhe não é estranha. Como, porém, a pudicícia é virtude da alma e a fortaleza, sua constante companheira, a torna capaz de suportar todos os males, de preferência a consentir no mal, e ninguém, apesar de perseverante e casto, pode responder pelos acidentes de que a carne é passível, mas somente pela adesão ou recusa da vontade, quem seria insensato ao extremo de acreditar-se decaído da castidade porque em sua carne se exerce e farta paixão que lhe é estranha? Se a castidade se perde assim, com certeza já não é virtude da alma, já não se conta no número dos bens constitutivos da vida santa, mas no dos bens temporais, como as forças, a saúde, a beleza e outras vantagens semelhantes, cuja alteração nada tira à sabedoria, nada à inocência dos costumes. Se a castidade é semelhante a esses frágeis bens, por que dar-se a gente ao trabalho de salvá-la, mesmo com perigo da vida? Se é bem da alma, encontra-se à mercê da violência exercida sobre o corpo? Que digo? Resistindo aos assaltos da volúpia, a santa continência santifica o próprio corpo e, com a inquebrantável perseverança da intenção, a santidade do corpo conserva-se íntegra, pois à vontade perseverante de usar de maneira santa o corpo, o corpo, tanto quanto dele dependia, deixa o poder de fazê-lo. 2. A santidade corporal, com efeito, não consiste na integridade dos membros preservados de todo contato, porque em muitas circunstâncias ficam expostos a violências, ferimentos e com frequência sua saúde exige operações horríveis de ver. Por malícia, ignorância ou casualidade, mão de parteira desvirgina determinada moça. Não é insensato julgá-la profanada na santidade do corpo, visto haver perdido o hímen? Enquanto a alma persiste na resolução pela qual o corpo se tornou merecedor de ser santificado, a violência de paixão alheia nada tira ao corpo da santidade a que protegia perseverante continência. Se, todavia, mulher, cuja vontade seduziram, viola a fé que votou a Deus e corre a entregar-se ao sedutor, dir-se-á que, no caminho, conserva ainda a santidade exterior, quando perdeu, quando sufocou a santidade interior que lhe santificava tudo? Longe de nós semelhante erro. Concluamos, ao contrário, que, enquanto a alma permanece pura, o corpo oprimido pela violência nada perde da santidade, o que não acontece, quando, apesar de íntegro, a santidade da alma é violada. Mulher alguma tem o que em sua pessoa punir com morte voluntária, quando o pecado alheio a reduziu à força; tem menos ainda, antes de sucumbir, pois cometeria homicídio certo, embora incerta ainda sobre o crime, sobre o crime alheio. Sustentamos, por conseguinte, que, se a vontade permanece casta, quando o corpo sucumbe, o crime não é da vítima, mas do opressor. É claro o argumento? Ousarão resistir-lhe aqueles contra quem defendemos a santidade interior e a santidade corporal das mulheres cristãs ultrajadas no cativeiro? CAPÍTULO XIX Lucrecia, que se matou por haverem-na estuprado. 1. Exaltam, porém, a castidade de Lucrecia, nobre dama da velha Roma. Profanada, quanto ao corpo, pela nefanda paixão do filho de Tarquínio, revela o crime do infame jovem a Colatino, seu marido, e a Bruto, seu parente, ambos nobres de nascimento e coração, liga-os por juramento de vingança e depois, não resistindo à dor, não podendo suportar semelhante ultraje, se mata. Que diremos de Lucrecia? Adúltera? Casta? Quem suspeitaria dificuldade em tal caso? Eram dois, mas apenas um praticou adultério. Frase sublime de verdade, admirável frase de certo declamador. Do obsceno desejo do filho de Tarquínio distingue, no vergonhoso caso, a casta vontade de Lucrecia. Impressionado não pelo congresso dos corpos, mas pelo divórcio das almas, exclama: Eram dois, mas apenas um praticou adultério. Mas a vingança cai mais terrível sobre a cabeça inocente. O criminoso parte para o exílio, em companhia do pai; Lucrecia padece o último suplício. Se a impudicícia não reside na afronta sofrida, é justo seja a castidade punida? E para vós que apelo, juízes e leis de Roma. Seja qual for o crime, deixais morrer impunemente o culpado, se não o condenam? Seja este crime entregue ao julgamento de vosso tribunal: determinada mulher recebe a morte, mas a mulher não foi condenada e trata-se de mulher casta, inocente; tudo isso está mais do que provado. Que castigo vossa severa justiça não reserva ao assassino? Mas o assassino é Lucrecia, tão elogiada Lucrecia. Foi ela quem derramou o sangue da casta e infortunada Lucrecia. Agora, dai a sentença. Não podeis fazê-lo, Sua ausência subtraiu-a a vosso julgamento. Então, por que os elogios prodigados à matadora da virtuosa mulher? Poderíeis defendê-la perante os juízes do inferno, tais como vossos poetas os representam? Não está Lucrecia no lugar para que descem os infortunados que com as próprias mãos arrancaram de si vida inocente e por desamor à luz atiraram para longe a alma? Não deseja voltar à vida? O destino é inflexível e as águas paradas do pântano sinistro retêm-na para sempre. Talvez não se encontre lá, pois, matando-se, não cedeu ao desespero do pudor, mas à secreta censura da consciência. Com efeito, quem sabe (só Lucrecia pode sabê-lo) se, vítima de violência irresistível, todavia acabou consentindo no prazer e depois, atormentada pelo remorso, quis expiar com o próprio sangue a falta cometida? Contudo, não devia matar-se, se lhe era possível sacrificar a falsos deuses por sincero arrependimento. Mas se não é assim, se não é verdade que de ambos apenas um praticou adultério, se ambos são culpados, um de violência declarada, o outro de consentimento secreto, não foi nenhuma Lucrecia inocente que ela matou e seus argutos defensores podem afirmar que não está nos infernos com os infortunados que pelas próprias mãos arrancaram de si vida inocente. Surge, agora, inevitável dilema: posto de lado o homicídio, prova-se o adultério; absolvida do adultério, é homicida confessa. Não há como escapar a estes extremos: se cometeu adultério, por que os elogios, se casta, por que a morte? 2. Basta-nos, entretanto, o célebre exemplo da referida mulher para refutar os homens que, alheios a todo sentimento de santidade, nos insultam as irmãs ultrajadas no cativeiro, basta-nos haverem sido louvadas assim: Eram dois, mas apenas um praticou adultério. Jamais quiseram acreditar, com efeito, que assentimento criminoso haja manchado a virtude de Lucrecia. Se, por conseguinte, se matou, vítima e não cúmplice do adultério, já não se trata de amor à castidade, mas de fraqueza da vergonha. Pejou-se do crime cometido em si, não consigo. A nobre romana, por demais desejosa de louvor, receia que o fato de sobreviver a exponha à suspeita, e a resignação a incrimine de cúmplice. Apresenta, pois, a morte como testemunha de sua alma, que não pode desvelar aos olhos dos homens. Na cruel provação as mulheres cristãs não lhe imitaram o exemplo; souberam viver. Não vingaram em si mesmas crime alheio, praticando outro crime, nem creram que deviam abandonar-se à vergonha homicida, por haverem sido presa de concupiscência adúltera. A glória da castidade, o testemunho de sua consciência patenteiam-se nelas, patenteiam-se aos olhos de Deus; nada mais as preocupa, pois nada mais podem fazer de legítimo. Fugirem, matando-se, à injúria das suspeitas humanas, não seria declinar da autoridade da lei divina? CAPÍTULO XX Não existe autoridade alguma que, seja qual for o caso, conceda ao cristão o direito de matar-se voluntariamente. Não é sem motivo que em parte alguma, nos livros sagrados e canônicos, se poderia encontrar que, mesmo em relação à imortalidade, para prevenir ou conjurar algum mal, tenha Deus ordenado ou permitido que alguém se matasse. Proibição, isso sim, devemos ler na lei que nos diz: Não matarás, sem acrescentar: o próximo, como acontece com a proibição de falso testemunho: Não levantarás falso testemunho contra o próximo. Entretanto, o falso testemunho contra si mesmo deveremos acreditá-lo isento de crime, se o amor ao próximo está contido na regra do amor a si mesmo? Com efeito, está escrito: Amarás o próximo como a ti mesmo. Se, por conseguinte, ninguém é menos culpado por falso testemunho contra si mesmo do que contra o irmão, embora a lei, por falar apenas do próximo, pareça não estender a proibição ao falso testemunho levantado a si mesmo, razão muito mais forte existe para pensar que ao homem não é permitido matar, pois a injunção absoluta: Não matarás não excetua pessoa alguma, mesmo quem a recebe. Assim, vários procuram compreender no mandamento os próprios animais. E por que não as plantas e tudo quanto, preso à terra, através de raízes recebe alimento? Apesar de privados de sensibilidade, de tais seres não se diz que vivem? Então, é possível dizer-se que morrem e, se morrem por violência, são assassinados? Por isso, diz o Apóstolo, falando de sementes: Nada do que semeais poderia viver, se antes não morresse. E lemos no salmo: Matou-lhes os vinhedos por meio do granizo. Quer dizer que a palavra da lei: Não matarás transforma em crime para nós o arrancarmos qualquer arbusto? E seremos insensatos ao extremo de perfilhar o erro de Mani? Se, por conseguinte, rejeitando semelhantes devaneios, não aplicamos o preceito às plantas desprovidas de sensibilidade, nem aos animais faltos de inteligência, aos quais a carência da razão interdiz qualquer sociedade conosco (donde se segue que justo desígnio da Providência pôs a vida e a morte deles à disposição de nossas necessidades), já não teremos de entender senão do homem a palavra da lei: Não matarás pessoa alguma nem mesmo a ti. Com efeito, quem se mata não é matador de homem? CAPÍTULO XXI Homicídios não considerados criminosos. A mesma autoridade divina estabeleceu, porém, certas exceções à proibição de matar alguém. Algumas vezes, seja como lei geral, seja por ordem temporária e particular, Deus ordena o homicídio. Ora, não é moralmente homicida quem deve à autoridade o encargo de matar, pois não passa de instrumento, como a espada com que fere. Desse modo, não infringiu o preceito quem, por ordem de Deus, fez guerra ou, no exercício do poder público e segundo as leis, quer dizer, segundo a vontade da razão mais justa, puniu de morte criminosos; assim também não acusam Abraão de crueldade, mas gabam-lhe a piedade, quando, assassino por obediência, quer matar o filho. E há razão para perguntar se é de reconhecer-se ordem divina na morte da filha de Jefté, ao correr ao encontro do pai, que fizera voto de imolar a Deus o primeiro ser com que deparasse ao retomar do combate e da vitória. Se perdoam a Sansão o haver-se sepultado com os inimigos sob as ruínas do templo de Dagon, é que obedecia à ordem interior do Espírito que por seu intermédio fazia milagres. Exceto as referidas exceções, em que o homicídio é ordenado por lei geral e justa ou por ordem expressa de Deus, fonte de toda justiça, quem mata o irmão ou a si mesmo é réu do crime de homicídio. CAPÍTULO XXII A morte voluntária jamais pode atribuir-se à grandeza de ânimo. 1. De todos quantos o perpetraram contra si podemos admirar a grandeza de ânimo, não, porém, louvar a sabedoria. Mais diligentemente consultada, a razão mal permite chamar grandeza de ânimo o desespero incapaz de suportar as aflições ou os pecados alheios. E antes fraqueza de alma a incapacidade de sofrer a dura servidão do corpo ou o desvario da opinião. Não é mais nobre suportar que fugir às misérias da vida e desprezar, à luz de consciência pura, as trevas de erro que envolvem de ordinário o julgamento humano e em especial o do vulgo? Se, todavia, é impossível não reconhecer certo heroísmo no suicida, devemos admirar é Cleombroto. Depois de ler o livro em que Platão discute a imortalidade da alma, precipitou-se, dizem, de alto muro, para passar desta vida a outra por ele julgada melhor. Nada, entretanto, o leva ao desespero, nem infelicidade, nem crime real ou imaginário cujo peso o oprima, nada o decide a abraçar a morte, a romper os doces laços desta vida, nada além da grandeza de ânimo. Contudo, no testemunho do próprio Platão, a quem acabava de ler, trata-se de ação maior que boa. Platão haveria sido o primeiro a praticá-la, tê-la-ia prescrito, se a mesma intuição que lhe revelou a imortalidade da alma não o houvesse feito compreender que o suicídio não deve ser evitado apenas, mas também proibido. 2. Muitos, dizem por aí, mataram-se para não caírem em poder de inimigos. Ora, não estamos procurando saber o que se fez, mas o que devia ter sido feito, pois a reta razão é preferível aos exemplos e há exemplos, concordes com ela, mais dignos de imitação quanto de mais sublime piedade vêm. Nem os patriarcas, nem os profetas, nem os apóstolos dispuseram assim de si mesmos. Nosso Senhor Jesus Cristo, que os aconselha a, em caso de perseguição, fugirem de cidade para cidade, não podia também recomendar-lhes que por meio de morte violenta escapassem aos perseguidores? Se saírem assim da vida jamais ordenou, nem aconselhou aos seus, que esperam, no dia em que migrarem, as eternas moradas pelo Senhor prometidas e preparadas, é evidente, sejam quais forem os exemplos opostos pelos gentios, ignorantes de Deus, que nada igual é permitido aos adoradores do único e verdadeiro Deus. CAPÍTULO XXIII Espécie a que pertence o exemplo de Catão, que, não podendo suportar a vitória de César, se matou. Todavia, depois de Lucrecia, de quem já falei suficientemente o que sinto, não lhes é fácil Invocar outra autoridade senão a do famoso Catão, que se mata em Utica. Não que o exemplo dele seja o único, mas acontece que o renome de seus conhecimentos e honestidade parece abonar a opinião de que a gente pôde e ainda pode imitá-lo. Que direi, pois, em particular, da ação de tal homem, senão que os amigos, não menos esclarecidos, porém mais avisados, pensavam, dissuadindo-o de semelhante resolução, que, ao invés de coragem, indica pusilanimidade e nela não se descobre princípio de honra em guarda contra a vergonha, mas fraqueza incapaz de suportar a adversidade? Catão mesmo, em conselhos ao filho, revela igual sentimento. Com efeito, se é vergonhoso viver sob a vitória de César, por que aconselha semelhante vergonha ao filho, ordenando-lhe tudo esperar da clemência do vencedor? Se Torquato é louvado porque enviou ao suplício o filho vencedor, mas vencedor contra as ordens paternas, por que motivo Catão, vencido, poupa o filho, também vencido, e não se poupa? É mais vergonhoso, então, ser vencedor, apesar da proibição, que sofrer o vencedor, apesar da vergonha? De modo algum. Catão não acha vergonhoso viver sob o império de César; caso contrário, de tal infâmia o gládio paterno libertaria o filho. Mas tanto gosta do filho, para quem espera e quer a clemência de César, quanto inveja a César (disse-o César mesmo) a glória de perdoá-lo ou, para falar mais moderadamente, sente vergonha do perdão. CAPÍTULO XXIV Na virtude em que Régulo se avantajou a Catão, os homens de Cristo são muito mais eminentes. Nossos adversários não nos permitem preferir a Catão o santo homem Jó, que prefere sofrer na carne os mais cruéis tormentos a desafiar todos os males, matando-se, nem os demais santos que a Escritura, livro tão sublime de autoridade e tão digno de fé, nos representa mais resignados a suportar os grilhões e o domínio dos inimigos que a livrar-se deles voluntariamente. Pois bem. De livros profanos em punho, a Marco Catão ousemos preferir Marco Régulo. Catão jamais vencera a César e acha indigno submeter-se a César vencedor; para não curvar-se diante dele, resolve matar-se. Régulo, já vencedor dos cartagineses, comandante dos exércitos romanos para glória de Roma, vencedor de inimigos e não de compatriotas. Régulo alcançara vitória dessas que fazem o estrangeiro, não a pátria, derramar lágrimas. Vencido mais tarde, prefere pesada escravidão ao suicídio libertador. Sob o jugo de Cartago não lhe mínguam a resignação, nem o inviolável amor a Roma. Deixa aos inimigos o corpo vencido, reserva para os romanos o invencível ânimo. Se não renuncia à vida, não é de modo algum por ter-lhe apego. Prova-o quando, fiel ao juramento, sai sem hesitar do Senado e retorna para os inimigos, mais mortalmente feridos por sua palavra que por sua espada. Resolvido a esgotar todos os requintes de crueldade engenhosa em suplícios e não a fugir-lhes pela morte, o generoso desprezador da vida sem dúvida considerava grande crime o atentado do homem contra si mesmo. Entre os maiores, entre os mais virtuosos dos concidadãos poderiam os romanos citar alguém melhor? Incorruptível na prosperidade, tal vitória deixa-o pobre; invencível na adversidade, tais suplícios não lhe retardam a intrépida volta. Assim, esses ilustres e magnânimos defensores da pátria terrestre, adoradores, mas adoradores em verdade, de deuses de mentira, cujo nome não juram em vão, apesar das usanças e do direito de guerra permitirem matar o inimigo vencido, não querem, vencidos pelo inimigo, matar-se e preferem as humilhações do cativeiro à morte, que abordariam sem temor. Não é, por conseguinte, grande dever do cristão, servidor do verdadeiro Deus e suspiroso pela celeste pátria, abster-se de tal crime, quando, seja como provação, seja como castigo, a Providência o entrega por algum tempo ao poder dos inimigos? Ignora que nessa humilhação jamais o abandona o Senhor, que veio, tão humilde, de tão alto? Depois, não está isento da disciplina bárbara, do direito selvagem desejoso do sangue do vencido? CAPÍTULO XXV Pecado algum deve ser evitado por outro. Por conseguinte, que erro pernicioso é esse? Para expiar ou prevenir crime alheio, de que é ou deve ser vítima, determinado homem mata-se, quando, por temer ou para vingar semelhante ultraje, não se atreveria a sacrificar o próprio inimigo? Mas é de temer, dizem, que, ganho pela volúpia brutal que o domina, o corpo leve o espírito a consentir no pecado. Não é, portanto, para evitar pecado alheio, mas o próprio, que deve matar-se. Não, é impossível que em vergonhosos movimentos da carne, excitados por brutalidade alheia, jamais consinta um coração escravo de Deus e de sua sabedoria e não dos instintos carnais. Se é odioso e nefando crime o do homem que, matando-se, mata alguém, como a Verdade exclama, quem seria insensato ao extremo de dizer: Pequemos agora, de medo de pecarmos depois. Cometamos homicídio, para não cairmos em adultério. Quê? Se a iniquidade de tal maneira domina que já não ficamos reduzidos a escolher entre a inocência e o crime, mas apenas entre crimes, à certeza de homicídio atual não é preferível a incerteza de adultério vindouro, a pecado que desafia o arrependimento não é preferível o que a penitência pode curar? Dirijo essas palavras aos fiéis que, no receio de sucumbir à própria fraqueza, sucumbindo à brutalidade alheia, julgam que devem entregar-se a violência assassina de si mesmos. Longe, entretanto, de alma cristã, que tem a confiança, a força e a esperança postas em Deus, longe dela a sombra sequer de impuro consentimento à volúpia dos sentidos. Com efeito, se a rebelde concupiscência, que nos habita os membros de morte, como que por lei própria se move contra a lei do espírito, não deixa de ter culpa na recusa da vontade, como não tem culpa no sono? CAPÍTULO XXVI Por que motivo devemos crer hajam os santos feito coisas que sabemos ilícitas? Mas, no tempo da perseguição, dizem, santas mulheres, a fim de escaparem à desonra, no rio em que pereceram procuraram seu raptor e assassino; todavia, a Igreja católica celebra-lhes com devoção a solenidade do martírio. Abstenho-me de todo julgamento. A autoridade divina, por certas comunicações dignas de fé, inspirou à Igreja honrar-lhas a memória assim? Ignoro-o; talvez tenha sido assim. Que dizer, com efeito, se não cederam à sedução humana, mas à ordem de Deus, à obediência, não ao erro, como Sansão, de quem não podemos pensar de modo diferente? Ora, quando Deus ordena e intima claramente sua vontade, quem se atreve a insurgir-se contra a obediência? Quem ousa acusar piedosa submissão? Quer dizer que podemos pensar, sem crime, em sacrificar nosso filho a Deus, porque Abraão o fez santamente? O soldado que mata por obediência à autoridade legítima não é considerado homicida por nenhuma lei civil. Que digo? Se não mata, é culpado de traição e revolta, se age por conta própria, deve responder pelo sangue que derramou; punido pelo mesmo ato, que pratica sem ordem ou não pratica, apesar da ordem. Se assim acontece quando algum chefe ordena, que dizer quando o Criador manda? Mate-se, pois, o fiel que, sabedor da proibição de matar-se, se mata por obediência àquele cuja ordem não é permitido menosprezar. Baste-lhe assegurar-se de que a evidência da vontade divina não lhe permite dúvida alguma. Quando a nós, o ouvido é nosso único guia na direção da consciência; não nos propomos julgar coisas ocultas. Ninguém sabe o que se passa no homem, senão o espírito do homem que há nele. Este, porém, é nosso pensamento, nossa convicção, nossa doutrina: Ninguém deve matar-se, nem para fugir das aflições temporais, para não cair nos abismos eternos, nem por causa dos pecados alheios, porquanto a fuga a crime alheio que nos deixa puros vai arrastar-nos a crime pessoal, nem por causa de pecados antigos, pois a penitência, ao contrário, tem necessidade da vida para curá-las, nem pelo desejo de vida melhor, cuja esperança está depois do falecimento, porque o porto de vida melhor no além-túmulo não se abre para os suicidas. CAPÍTULO XXVII Deve alguém, para esquivar-se de pecado, querer morte voluntária? Finalmente, derradeiro argumento em que já tocamos, há quem julgue útil matar-se, de medo que o atrativo do prazer ou o excesso da dor o precipite no pecado. Se fosse possível admitir semelhante argumento, seríamos sucessivamente levados a aconselhar de preferência o assassinato de si mesmo no momento em que, purificado pela santa água do sacramento regenerador, o homem acaba de receber a remissão de todos os pecados; com efeito, quando o passado é abolido, esse é o momento de conjurar as iniquidades futuras. Se a morte voluntária é recurso permitido, por que adiá-la? Por que se prende à vida o fiel saído do batismo? Por que vai continuar oferecendo a todos os perigos do mundo a fronte novamente limpa? Para ele é fácil fugir-lhes pela morte. Não está escrito: Quem gosta do perigo nele cairá? Por que, pois, gostar tanto de tamanhos perigos? Por que não evitá-las, se a gente não gosta deles? Por que continuar nesta vida, se é permitido abandoná-la? Estaria nossa alma tão cheia das trevas de nossos crimes e, em sua baixeza, de tal modo desviada da face da verdade, que reconheça como obrigação morrer, para que a tirania de alguém não a leve à prática de crime, e como obrigação viver, para suportar o mundo, sempre repleto de tentações que tememos sob um senhor apenas e de infinidade doutras, inevitáveis companheiras de nossa peregrinação? Por que, por conseguinte, perder tempo em exortações aos batizados, em inspirar-lhes amor à pureza virginal, à continência na viuvez ou à fidelidade ao leito conjugal, quando se insinua caminho mais curto, mais seguro, ao abrigo do pecado, a morte, em que toda a nossa eloquência deve interessar o zelo dos recém-nascidos da graça, para enviá-los ao Senhor, mais puros e mais sãos? Mas, não: acreditar possível fazê-lo e aconselhá-lo não é escárnio apenas, mas também loucura. E com que desplante dizer a qualquer homem: “... Morre, porque, escravo de bárbaro impudico e brutal, corres o perigo de acrescentar a faltas veniais ofensa capital...," se é impossível dizer sem abominação: "... Morre, aproveita a recente absolvição, para evitares terríveis recaídas, vivendo neste mundo, que não passa de volúpias impuras, crueldades inauditas, erros, terrores, sedução, furor e ameaça eterna..." . Sim, é crime falar desse modo; portanto, matar-se é crime. Se houve alguma vez razão legítima para a morte voluntária... Mas nem mesmo nesse caso há; logo, não há nunca. Assim, ó santas filhas de Cristo, não vos seja penosa a vida, se os inimigos fizeram de vosso pudor motivo de escárnio. Tendes grande e verdadeira consolação, caso vossa consciência vos dê sincero testemunho de não terdes consentido no pecado que se permitiu contra vós. CAPÍTULO XXVIII Por que juízo de Deus se permitiu que a libido do inimigo se cevasse no corpo dos castos? 1. Mas, perguntareis, por que se permitiu? Abismo da Providência, que criou e governa o mundo! Seus julgamentos são incompreensíveis e seus caminhos, impenetráveis. Entrementes, interrogai com sinceridade vossas almas. Não vos inflaram o orgulho os dons de pureza, continência e castidade? Vossa complacência com os louvores humanos não teria invejado em vossas irmãs iguais virtudes? Não acuso, em absoluto, ignoro, não ouço o que, interrogado, o coração vos responde; se vos diz ser assim, não vos admireis de terdes perdido o que vos tornava tão ciosas de agradar aos homens e conservado o que lhes escapa aos olhos. Se não sois cúmplices no pecado, é que divino socorro se junta à graça divina para guardar-vos de perdê-la; mas o opróbrio humano sucede à glória humana para evitar que gosteis dela. Que ambos vos consolem, almas débeis; de um lado, é provação que justifica; doutro, castigo que ensina. Quanto àquelas cuja consciência assegura jamais haverem cedido ao orgulho da virgindade ou da continência, inclinadas de coração à humildade completa, que gozam com temor o dom de Deus e, indiferentes aos louvores humanos, de ordinário mais vivos quanto menos comum a virtude que os merece, longe de invejar a pessoa alguma a posse de igual tesouro de inocência e castidade, preferiram à proeminência na solidão das santas almas confundir-se com elas, se algumas sofreram a brutalidade bárbara, não acusem Deus, que o permitiu, nem lhe ponham em dúvida a providência, que permite o que ninguém comete impunemente, pois o Senhor com frequência relaxa, nesta vida, as correntes das paixões nocivas, reservando-as para a justiça final. Essas mesmas mulheres, vítimas da violência inimiga, embora a consciência não lhes censure o orgulho da virtude, talvez alimentassem qualquer secreta fraqueza, capaz de degenerar em soberba altivez, se no desastre público semelhante humilhação lhes fosse poupada. Alguns são roubados pela morte, de medo que a corrupção lhes seduza a vontade; algo lhes rouba, violentando-as, de medo que a prosperidade lhes altere a modéstia. Assim, nem as mulheres demasiado orgulhosas da integridade da própria honra, nem as irmãs que o infortúnio preservou de semelhante orgulho perderam a castidade, mas foram persuadidas à humildade. Por um lado, cura; pelo outro, prevenção. 2. Não esqueçamos, afinal, haverem muitas podido considerar a continência como dom corporal desses que duram enquanto o corpo se conserva puro de toda mancha estranha, não como bem dependente da força de vontade apenas, auxiliada pela graça divina, santificadora da carne e do espírito, não como bem cuja perda se torne impossível, sem consentimento interior. Talvez devam ser libertadas de tamanho erro. Quando pensam, com efeito, na sinceridade de coração com que serviram a Deus, inquebrantável fé guarda-as de acreditarem possa Ele abandonar quem o serve e invoca assim; sabem quanto lhe agrada a castidade e concluem, com evidente certeza, que jamais permitiria adviesse às santas semelhante infortúnio, se a santidade que lhes deu e nelas ama pudesse perder-se assim. CAPÍTULO XXIX Que deve responder aos infiéis a família de Cristo, quando lhe lançam em rosto não havê-la Cristo livrado do furor dos inimigos? Toda a família do soberano e verdadeiro Deus tem, pois, consolo, consolo não enganoso, não fundado na esperança de coisas efêmeras. Tem motivo para desgostar-se da própria vida temporal, desta vida, noviciado da eternidade, em que usa os bens terrestres, porém, como estrangeira, sem deixar o coração deter-se neles, em que nos males apenas vê corretivo ou provação. Aos que lhe insultam o sofrimento, gritando-lhe nos dias de provação: "Onde está teu Deus?", perguntem por seu turno: "Onde estão teus deuses?", quando sofrem como a família. Entretanto, para conjurar semelhantes males é que servem ou pretendem que a gente deva servir os deuses. Quanto à família, eis a resposta: "Meu Deus está presente em toda parte, todo inteiro em toda parte. Ele, cuja presença é secreta e cuja ausência independe de movimento, não conhece limite. Quando me aguilhoa com o ferrão da adversidade, é que me põe a virtude à prova ou me castiga as ofensas e, porque sofro piedosamente esses males temporais, me destina recompensa eterna. Mas vós, quem sois para vos falarem mesmo que seja de vossos deuses, para vos falarem de meu Deus, Deus terrível e superior a todos os demais, por serem demônios todos os deuses dos gentios e Senhor quem fez os céus?" CAPÍTULO XXX Inconfessável prosperidade que deseja gozar quem se queixa dos tempos cristãos. Se estivesse vivo o ilustre Cipião Nasica, vosso pontífice outrora, que, em pleno terror da guerra púnica, o Senado, em busca do cidadão mais virtuoso, escolheu por unanimidade para ir receber a deusa frigia, se estivesse vivo esse grande homem, cujo rosto quem sabe não vos atreveria a fitar, se estivesse vivo, seria o primeiro a reprimir-vos a impudência. Então, por que em vossa desgraça vos queixais do advento do Cristo? Não é, com efeito, por desejardes gozar sem incômodo vossos vícios e, livres de toda geena importuna, mergulhar à vontade na corrupção? Paz, abundância, os bens que avidamente desejais, não é para usá-los honestamente, quer dizer, com moderação, piedade, temperança? Qual nada! Variedade inesgotável de prazeres, louca prodigalidade, enfim, prosperidade fecunda em ruína moral, bem mais terrível que o gládio inimigo, eis o que buscais. Previa-o Cipião, Cipião, vosso sumo pontífice e o mais virtuoso dos romanos, de acordo com o julgamento do Senado, quando se opunha à destruição de Cartago, então rival do império, contra o parecer de Catão, impaciente de vê-la destruída. Receava outro inimigo das almas fracas, a segurança, e não queria do necessário tutor, o medo, emancipar a pupila romana. Os acontecimentos justificam-lhe a previsão. Destruída Cartago, sufocado e sepulto em suas ruínas o eterno terror de Roma, então é que o destino engendra lamentável série de calamidades. O jugo da concórdia quebra-se e voa em pedaços; depois, sanguinolentas sedições e, por encadeamento de causas funestas, as guerras civis, desastres espantosos, o sangue corre em torrentes; sede cruel de proscrições e rapinas aviva-se; os romanos, que, quando virtuosos, nada receavam senão dos inimigos, agora, decaídos dos costumes hereditários, tudo têm a sofrer dos concidadãos. E o apetite ao domínio, de todas as paixões do gênero humano a que mais embriaga qualquer alma romana, depois de vencer alguns dos mais poderosos, encontra acabrunhados e abatidos os restantes e oprime-os com o jugo da escravidão. CAPÍTULO XXXI Gradação de vícios com que foi crescendo nos romanos a paixão de reinar. Infalível paixão, acaso podia esta repousar nesses corações soberbos, antes de chegar, através de honrarias contínuas, ao poder real? E teria sido possível a continuidade de honrarias, se deixasse de prevalecer a ambição? Ora, a ambição apenas podia prevalecer em povo corrompido pela avareza e pela libertinagem, filhas da prosperidade de que a prudência de Nasíca pretendia salvar Roma, conservando-lhe a temível e poderosa rival. Queria que o medo reprimisse a libido, o mesmo freio contivesse a luxúria e o freio da luxúria fosse o da avareza, enfim, que a repressão do vício deixasse florir e desenvolver-se a virtude necessária à república e a liberdade necessária à virtude. E ainda o previdente amor à pátria que inspira o soberano pontífice, unanimemente reconhecido pelo Senado do tempo (não é demais repeti-lo) como o homem mais virtuoso, quando dissuade os colegas do corruptor projeto de construir-se anfiteatro em Roma e os persuade, com enérgica eloquência, a impedirem, cúmplices da licenciosidade estrangeira, que a volúpia grega se insinue nos antigos costumes, para desfibrar e corromper a austera virilidade da virtude romana. O predomínio e as palavras de Cipião Nasica despertam a solicitude do Senado, que no mesmo instante proíbe até mesmo o uso de cadeiras de que os cidadãos começavam a utilizar-se para assistir aos jogos cênicos. Com que zelo o grande homem teria abolido tais jogos, se ousasse insurgir-se contra a autoridade daqueles que acreditava serem deuses e não sabia serem demônios. Talvez soubesse, mas a desprezá-los julgasse preferível aplacá-los, pois ainda não fora revelada às nações a celeste doutrina que eleva ao céu, até mesmo acima dos céus, o coração humano purificado pela fé, lhe transforma o amor em humilde piedade e o liberta da soberba tirania dos espíritos de malícia. CAPÍTULO XXXII Instituição dos jogos cênicos. Ficai sabendo, vós que o ignorais, vós que fingis ignorar e, livres de semelhantes tiranos, murmurais de vosso libertador, ficai sabendo que os jogos cênicos, espetáculos de infâmia, libertinagem de vaidades, não foram instituídos em Roma pelos vícios dos homens, mas por ordem de vossos deuses. Não valeria mais decretar honras divinas a Cipião que tributá-las a deuses assim? Tinham o mesmo valor do pontífice? Escutai, se a razão, de há muito embriagada pelas beberagens do erro, ainda vos permite alguns instantes de lucidez, escutai: é para aplacar a peste, assassina dos corpos, que vossos deuses reclamam os jogos cênicos; para conjurar a peste moral é que vosso pontífice se opõe à construção de teatro. Se ainda vos resta algum vislumbre de inteligência para preferir a alma ao corpo, escolhei vossas divindades. Retirou-se dos corpos o contágio, porque o contágio mais sutil das representações teatrais se insinuou nos espíritos guerreiros até então exclusivamente acostumados à rudeza dos jogos do circo? Não, mas a malícia dos espíritos infernais, prevendo que dos dois contágios um devia acabar em breve, aproveitou-se com medonha alegria da ocasião, para dar assalto mais perigoso não à vida, mas aos costumes. Que espessas trevas de cegueira! Que horrenda corrupção! Acreditará a posteridade que, livres do desastre de Roma, essas almas doentes, apenas refugiadas em Cartago, vão todos os dias ao teatro, explodir, cada qual mais, em frenético entusiasmo por histriões? CAPÍTULO XXXIII Vícios dos romanos que a destruição da pátria não emendou. Ó espíritos em delírio, que prodígio de erro é esse? Digo mal. Que prodígio de loucura é esse? Todos os povos orientais choram a perda de Roma. Nas maiores cidades dos mais remotos rincões da Terra, há profunda consternação, luto público. E vós? Correis aos teatros, entrais, enchendo-os por completo, e vossa loucura aumenta-lhas a malignidade da influência. Essa peste, esse labéu das almas, essa total subversão de probidade e honra é que Cipião vos receava, quando se opunha aos teatros, quando previa a facilidade que a boa sorte encontraria para corromper-vos e perder-vos, quando não queria libertar-vos do medo a Cartago, pois não acreditava na ventura de cidade em que as muralhas estão de pé e os costumes em ruínas. Mas os espíritos de perversidade tiveram mais ascendência sobre vós; para seduzir-vos, que os homens previdentes, para salvar-vos. Desse modo, não deixais que vos imputem o mal que fazeis e atribuis ao Cristianismo o mal que padeceis, pois na segurança não vedes a paz da república, mas a impunidade da desordem; a prosperidade depravou-vos e a adversidade encontra-vos incorrigíveis. Queria o grande Cipião que o temor ao inimigo vos preservasse do desfalecimento no vício; entretanto, apesar de oprimidos pelo inimigo, nem mesmo vos insurgistes contra o vício. Tornados os mais miseráveis, sem deixardes de ser os mais perversos dos homens, perdeis o fruto da má sorte. Mas viveis por mercê de Deus, cuja clemência vos convida a vos corrigirdes pela penitência, de Deus, que já permitiu a vossa ingratidão escapar, sob o nome de servidores seus, nos monumentos de seus mártires, à sanha de vossos inimigos. CAPÍTULO XXXIV A clemência de Deus amenizou a destruição da Urbe. Rômulo e Remo, diz-se, instituíram abrigo que garantia impunidade a quem quer que nele procurasse refúgio. Queriam povoar a cidade recém-criada. Maravilhoso precedente da clemência não há muito proclamada em honra do Cristo! Reproduzem os destruidores de Roma o antigo edito de seus fundadores. Mas é de causar assombro tenham estes ordenado, para aumentar o número de cidadãos, o que aqueles ordenaram para salvar a multidão de seus inimigos? Responda assim aos adversários, responda mais eloquente ou mais adequadamente, se possível, a família resgatada de Jesus Cristo, nosso Senhor, nosso Rei, e sua Cidade peregrina cá na Terra. CAPÍTULO XXXV Filhos da Igreja que há encobertos entre os ímpios. Falsos cristãos existentes na Igreja. Lembre-se, todavia, de que seus próprios inimigos em suas fileiras têm latentes vários de seus futuros concidadãos, para não julgar estéril, quanto a eles, a paciência que os suporta como inimigos, à espera da ventura de recebê-los como confessores. Lembre-se, também, de que, enquanto neste mundo peregrina, vários que lhe estão unidos pela comunhão dos sacramentos não estarão associados à sua glória na eterna felicidade dos santos. Conhecidos ou desconhecidos, tais homens, marcados pelo selo divino, não receiam reunir-se aos inimigos de Deus para murmurar contra Ele e ora lotam os teatros em companhia deles, ora as igrejas conosco. Não é, pois, caso de desesperar do retorno de vários deles, se entre nossos mais declarados inimigos se encontram latentes predestinados amigos, embora sejam os primeiros a ignorá-lo. Com efeito, ambas as Cidades enlaçam-se e confundem-se no século até que o juízo final as separe. A respeito da origem, progresso e do fim que as aguarda é que quero desenvolver meus pensamentos, com a divina assistência e para glória da Cidade de Deus, que o cotejo de tantos contrastes há de tornar mais resplandecente. CAPÍTULO XXXVI De que se falará no discurso subsequente? Mas ainda me resta dizer algumas palavras contra aqueles que atribuem à nossa religião os infortúnios de Roma, porque proíbe se ofereçam sacrifícios a suas divindades. Lembremos, por conseguinte, segundo a extensão de nossas lembranças ou a necessidade do tema que nos propusemos, todos os desastres que, antes da proscrição de tais sacrifícios, acabrunharam Roma ou as províncias dependentes de seu império, desastres que sem dúvida nos atribuiriam, se nessas oportunidades nossa religião lhes tivesse feito brilhar aos olhos sua luz e lhes houvesse proibido as sacrílegas cerimônias. Mostremos a que virtude e com que propósito Deus se dignou prestar assistência, para engrandecimento do império, mas o verdadeiro Deus, que tem na mão todos os impérios, e não as pretensas divindades, cuja sedução e prestígio foram, ao contrário, tão funestos. É preciso, enfim, insurgir-nos contra os que, refutados e convencidos pelos mais evidentes testemunhos, se obstinam em sustentar a necessidade de servir os deuses no interesse não da vida presente, mas da vida que sucede à morte. Questão laboriosa, se não me engano, controvérsia das mais elevadas, em que entramos em luta contra os filósofos, os mais célebres filósofos, de posse da glória mais legítima, de acordo conosco sobre a imortalidade da alma, sobre o único e verdadeiro Deus criador do mundo e sobre sua providência que lhe governa a obra. Mas como, por outro lado, professam sentimentos contrários aos nossos, é necessário combatê-los; trata-se de obrigação a que não poderíamos fugir; depois de havermos refutado todas as objeções da impiedade, de acordo com as forças que Deus conceder-nos, poderemos consolidar a Cidade santa, a verdadeira piedade e o culto a Deus, em que apenas a beatitude eterna nos é prometida em verdade. Aqui pomos fim a este livro, para introduzir por novo começo a sequência dessas considerações. LIVRO SEGUNDO Males que desolaram o Império antes do advento de Jesus Cristo e o culto aos falsos deuses não conjuraram. Males da alma, os maiores de todos ou, melhor, os únicos com que os falsos deuses acabrunharam seus adoradores, ao invés de livrá-los deles. CAPÍTULO I Norma que, por necessidade, é preciso seguir neste tratado. Se a razão humana, fraca e enferma cá na Terra, ao invés de atrever-se a resistir ao brilho da verdade, submetesse a sua languidez ao tratamento de salutar doutrina, à espera que pela fé e pelo amor obtivesse da graça divina sua cura, sentido exato e faculdade de exprimir-se bastariam, sem prolongada argumentação, para de sua insignificância convencer todo erro. Mas a moléstia que trabalha os espíritos extraviados é ainda mais perniciosa hoje, quando, depois de todas as razões possíveis e tais como o homem deve esperar do homem, seja por causa da profunda cegueira que já não vê a evidência, seja por indomável obstinação, incapaz de suportá-la, defendem os arroubos de seu delírio como a razão e a própria verdade. Há, pois, frequente necessidade de a gente estender-se em fatos manifestos, não para mostra-los a quem vê, mas para fazê-los tocados com os dedos, para ferir os olhos que não querem vê-las. Quando, porém, terminariam os debates e discussões, se nos julgássemos obrigados a dar sempre resposta às respostas? Com efeito, a falta de inteligência ou a teimosia rebelde respondem, como diz a Escritura, com palavras de iniquidade e sua vaidade não os fatiga, em absoluto. Se, por conseguinte, quiséssemos refutar-lhes as opiniões tantas vezes quantas obstinadamente tomaram o partido de pouco ligar ao que eles mesmos dizem, desde que nos contradigam, que trabalheira interminável, desesperante, estéril! Desse modo, não quererei para juiz de meus escritos nem a ti mesmo, caro Marcelino, nem pessoa alguma daquelas a quem, por amor a Jesus Cristo, consagro este fruto de minhas vigílias, se estiverdes sempre a reclamar resposta a cada contradição que se formule, parecidos com as mulheres de que fala o Apóstolo que não param de aprender e jamais chegam ao conhecimento da verdade. CAPÍTULO II Coisas tratadas no Livro Primeiro. No livro precedente abordei esta obra a respeito da santa Cidade, que me proponho erguer com o auxílio de Deus; pensei que, preliminarmente, devia responder aos ímpios que à religião cristã, porque lhes proíbe o abominável culto aos demônios, atribuem os flagelos da guerra que devastam o mundo, em especial a recente calamidade acontecida a Roma, quando, ao contrário, deveriam dar graças ao Cristo pela inaudita clemência dos bárbaros que, exclusivamente por amor a seu nome, para refúgio da liberdade dos vencidos abre os mais santos, os mais amplos asilos e em vários respeita a profissão do Cristianismo, sincero ou usurpado pelo medo, ao extremo de considerar ilícito exercer-se neles o direito da guerra. Aqui se apresenta a seguinte questão: Por que se estendeu a ímpios e ingratos esse divino privilégio? Por que as calamidades da guerra envolveram no mesmo infortúnio os justos e os ímpios? Misturada com as vicissitudes diárias do mundo, em que os favores divinos e as aflições humanas parecem tocar em partilha, indiferentemente, a bons e maus, essa questão, perturbadora de grande número de espíritos, detive-me algum tempo a resolvê-la de acordo com a finalidade desta obra, mas principalmente para consolar as santas mulheres, feridas no pudor e não na castidade, a fim de a vida não ser-lhes, em absoluto, motivo de remorso, quando sua alma não tem necessidade de conhecer o arrependimento. Depois, em poucas palavras, me dirigi aos covardes cuja cínica impudência insulta as aflições dos fiéis e em especial o ultrajado pudor de nossas santas e castas irmãs, apesar de serem os mais depravados, os mais impudentes dos homens, raça degenerada dos mesmos romanos cuja história tantas nobres lembranças conservou e, por cima, inimigos mortais da glória dos antepassados. Com efeito, Roma, fundada e engrandecida pela coragem dos ancestrais, haviam-na feito, na grandeza, mais horrenda que na queda. Não passa agora de ruína de madeira e pedras, mas na vida deles a beleza moral é que se desmoronou; o coração ardia-lhes de paixões mais funestas que as chamas que lhes devoraram os tetos. Assim terminei o livro primeiro; quero, agora, lembrar todos os males que Roma sofreu, seja no interior, seja nas províncias submetidas a seu império, males que infalivelmente atribuiriam à religião cristã, se na devida ocasião a liberdade da palavra evangélica houvesse erguido poderoso protesto contra seus enganadores e falsos deuses. CAPÍTULO III Emprego a fazer-se da História para demonstrar os males sobrevindos aos romanos, quando prestavam culto aos deuses, antes de propagar-se a fé cristã, Mas lembra-te de que, assim, continuo pelejando contra aqueles cuja ignorância fez nascer este provérbio: Se não chove, a culpa é dos cristãos. Encontram-se, entre eles, vários cujo espírito culto gosta da História, em que sem dificuldade aprenderam os fatos que vou referir. Mas, a fim de levantar contra nós a multidão ignorante, fingem ignorá-los e procuram persuadir o povo de não terem semelhantes desastres, que a certas distâncias de tempo e lugar necessariamente afligem o gênero humano, outra causa senão o Cristianismo, que, para ruína dos falsos deuses, propaga por toda parte seu imenso renome, sua brilhante popularidade. Pois remontem aos tempos anteriores à encarnação do Cristo, à gloriosa propagação de seu nome, de que tão futilmente se mostram invejosos, lembrem-se de quantas calamidades diferentes afligiram a república romana e, se possível, defendam os deuses que é preciso servir para evitar males cujo sofrimento hoje nos atribuem. De fato, por que permitiram tais aflições de seus servidores, antes de a glória do nome de Jesus Cristo ofender-lhes a majestade e interditar-lhes os altares? CAPÍTULO IV Preceito algum de virtude recebeu dos deuses quem lhes tributava culto, representando para eles, em suas festas, verdadeiras desonestidades. Primeiro, por que a indiferença dos deuses à prevenção do desregramento dos costumes? E com justiça que o verdadeiro Deus negligenciou quem não o serve; esses deuses, porém, que homens profundamente ingratos se queixam de não poder servir, por que deixam seus adoradores sem leis, sem a luz necessária para bem viverem? Se os homens velam pelo culto aos deuses, não é justo que os deuses velem pelas ações dos homens? Mas, dir-se-á, ninguém é mau senão porque quer. Quem o nega? Era, contudo, dever de providência para esses deuses não ocultar aos fiéis os preceitos da virtude, mas professá-los em voz alta e, por intermédio dos pontífices, repreender, acusar os pecadores, apresentar ao crime a ameaça dos castigos, à justiça a promessa das recompensas. Ressoou alguma vez em vossos templos o eco de iguais ensinamentos? Também eu, quando adolescente, assistia a esses espetáculos, a essas sacrílegas farsas. Causavam-me prazer esses furores estranhos, esses concertos, esses jogos infames celebrados em honra dos deuses e das deusas. No dia da solene ablução da celeste virgem Berecíntia, mãe de todos os deuses, em público, diante de sua liteira, os histriões mais vis cantavam tais obscenidades que seria vergonhoso ouvi-Ias, já não digo para a mãe dos deuses, mas para a mãe de qualquer senador, para a mãe de cidadão honesto, para a mãe dos próprios bufões, porque nem a última depravação poderia extinguir o sentimento de pudor que no fundo do coração o homem conserva em relação aos parentes. Com efeito, qual desses bufões mesmos não se envergonharia de repetir em casa, diante da mãe, os estribilhos cínicos, as atitudes lascivas com que, em presença da mãe dos deuses e diante de inúmeras testemunhas de ambos os sexos, afligia sem pudor olhos e ouvidos? A imensa e confusa multidão que fora atraída pela curiosidade não devia retirar-se com o desgosto e a confusão da vergonha? Se isso é cerimônia sagrada, que é, então, sacrilégio? Se isso é ablução, que é, então, sujeira? E isso tudo se chamava festim, festim com efeito, em que se ofereciam à fome dos demônios os alimentos de que gostavam. Quem não sabe que espíritos se comprazem em tais infâmias, a menos que ignore a própria existência dos espíritos imundos, que sob o nome de deuses seduzem os homens, a menos que viva tal vida que despreze o verdadeiro Deus e lhes busque as graças ou lhes receie a cólera? CAPÍTULO V Obscenidades com que os devotos da mãe dos deuses a honram. E não são esses insensatos que, ao invés de lutarem contra os excessos do vergonhoso costume, neles se comprazem com delícia, é o ilustre Cipião Nastca, que o Senado enviou, como cidadão mais virtuoso de todos, ao encontro do impuro ídolo, é Cípião que eu agora quereria por juiz. Ficaríamos sabendo se gostaria que a mãe houvesse prestado à república serviços tão eminentes que a tornassem merecedora de honras divinas, honras que romanos, gregos e outros povos concederam, reconhecidos, a vários de seus benfeitores mortais, que, segundo julgavam, se tinham tornado imortais e admitidos no número dos deuses. Não há dúvida que, se fosse possível, desejaria à mãe essa gloriosa felicidade; mas quereria que essas honras divinas fossem celebradas por meio de semelhantes infâmias? A essa pergunta gritaria, sem dúvida, esta resposta: "Não! Que minha mãe continue falta de sensibilidade e vida, mas não viva, deusa, para prestar ouvidos a semelhantes horrores!”. Longe, longe de nosso pensamento que tal senador romano, de entendimento magnânimo ao extremo de proscrever o teatro em cidade de almas viris, deseje à mãe culto em que, como deusa, a invoquem por meio de preces que poderiam ofendê-la, simples mortal, como se fossem palavras obscenas. Não, não acreditaria que a apoteose corrompesse a tal ponto os sentimentos de virtuosa mulher, que acolhesse como piedosas homenagens essas obscenidades infames, a que durante a vida fecharia os ouvidos e se furtaria, fugindo, a menos que quisesse que por causa dela se envergonhassem os parentes, o marido, os filhos. Assim a mãe dos deuses, que o último dos homens não teria reconhecido como mãe, querendo apossar-se das almas romanas, reclama o cidadão mais virtuoso. E para, com efeito, fazê-lo assim por seus conselhos e assistência? Não, quer apenas seduzi-lo, parecida com aquela mulher caçadora das almas preciosas, como diz a Escritura. Quer que esse magnânimo coração, orgulhoso de testemunho tido por divino, considerando-se de virtude eminente, não se ponha em busca da piedade, da verdadeira religião, sem que os mais nobres caracteres caem na insignificância do orgulho. E, pedindo um homem de bem, que pretende, senão induzi-lo em erro, essa deusa que em suas solenidades exige divertimentos que as pessoas de bem repeliriam com horror de seus banquetes? CAPÍTULO VI Os deuses dos pagãos nunca estabeleceram doutrina relativa. Esse o motivo da negligência dos deuses em regular a vida e os costumes dos povos, das cidades devotadas a seu culto, em conjurar por terríveis ameaças os horrendos males que não devoram o campo e a vinha, nem a casa e as riquezas, mas o próprio homem, a carne submissa à alma, a alma e o espírito que rege a carne. Longe disso, permite à malícia humana encher as medidas. Reprimiram-na alguma vez? Demonstrem-no, então; provem-no. Mas não me venham alegar fúteis cochichos, segundo os quais uma espécie de misteriosa tradição sopra aos ouvidos de alguns raros iniciados não sei que princípios de probidade e pudor. Citem, apontem os lugares consagrados a piedosas reuniões, onde não se celebrem jogos, com canções e atitudes cínicas, nem as solenes Fugálias em que se soltam as rédeas a todas as infâmias, verdadeiras Fugálias do pudor e da honestidade, mas o povo receba os ensinamentos dos deuses para conter a avareza, reprimir a ambição, refrear a luxúria e o miserando homem aprenda o que Pérsio quer que aprenda, conforme o poeta exclama com amargura: Aprendei, infeliz, remontai às causas, procurai saber o que somos, para que vida recebemos o ser, qual a ordem imposta, onde e de que ponto deve a roda descrever a curva que dá volta molemente à pista, a miséria das riquezas e a dos desejos, a utilidade desta moeda tão rude ainda, que parte se deve à pátria e a parentes amados, o que Deus quer que sejas e em que condição da humanidade marcou teu lugar. Que nos digam onde professavam tais máximas em nome dos deuses, onde se reunia o povo para ouvir esses divinos preceitos, em que lugares parecidos com nossas igrejas, que mostramos haverem sido instituídas para semelhantes reuniões, onde quer que a religião cristã se tenha difundido. CAPÍTULO VII São inúteis os inventos filosóficos sem a autoridade divina, porque a quem quer que seja propenso ao vício mais incita o que fizeram os deuses que o averiguado pelas lucubrações dos homens. Será que vão citar-nos as escolas e as discussões dos filósofos? Primeiro, não são de origem romana, mas grega; depois, se devem ser considerados romanos, por haver-se a Grécia tornado província do Império romano, não publicam os preceitos dos deuses, mas as invenções dos homens, cujo gênio penetrante e sutil se propôs descobrir racionalmente o que a Natureza encerra de mais secreto, o que é preciso buscar ou evitar na conduta da vida, que indução certa a arte de raciocinar exprime por encadeamento rigoroso, o que não conclui ou repugna às conclusões tiradas. Alguns descobriram grandes verdades, enquanto Deus lhes prestou auxílio, mas, enquanto escravos da fraqueza humana, caíram no erro; a Providência divina resistiu-lhes justamente ao orgulho, para mostrar, com o próprio exemplo desses homens, o caminho da piedade que do fundo da humildade se eleva ao céu, questão que com a graça do verdadeiro Deus e Senhor teremos oportunidade de aprofundar e discutir. Se, todavia, os filósofos descobriram o segredo de por meio de santa vida encaminhar-se à vida bem-aventurada, não seria bem mais justo conceder a tais homens as honras divinas? Não seria melhor e mais conforme à honestidade ler os livros de Platão em seu templo que assistir, no templo dos demônios, a voluntárias mutilações dos sacerdotes galos, a consagrações cínicas, a ferimentos extravagantes, a todas as cruéis torpezas, enfim, a todas as crueldades vergonhosas, mas solenemente praticadas nas festas das infames divindades? À educação moral da juventude não seria bem mais útil a leitura pública de código de leis divinas que os estéreis elogios das leis e instituições de nossos ancestrais? Com efeito, não sentem os adoradores dos deuses fermentar-lhes na alma o veneno de culpável desejo, segundo a expressão de Pérsío, quando pensam no procedimento de Júpiter, ao invés de pensarem nas lições da Academia e na disciplina austera de Catão? Assim, em Terêncio, jovem libertino vê, em pintura na muralha, como Júpiter faz cair certa chuva no regaço de Danae e, protegendo com tamanha autoridade sua torpeza, jacta-se de haver seguido as pegadas de um deus. Que deus? Aquele cujo trovão sacode a profunda abóbada dos céus. Pigmeu que sou, teria vergonha de imitá-lo? Não! Não! Imitei-o e com muito gosto! CAPÍTULO VIII Jogos cênicos, em que a narrativa das sem-vergonhices dos deuses os aplaca, ao invés de ofendê-los. Não é, dir-se-á, às festas dos deuses, mas à ficção dos poetas que devem ser reportados esses ensinamentos. Quem me impede de responder serem mais torpes os mistérios da religião que os desregramentos do teatro? Limito-me, todavia, a dizer (e ninguém pode negá-lo, sem que a História o convença do contrário) não haverem tais jogos, em que reina a ficção dos poetas, sido introduzidos nas cerimônias religiosas pela ignorante superstição dos romanos; pelo contrário, os próprios deuses, imperiosamente e quase com ameaça, ordenaram fossem solenemente representados, como lembrei em poucas palavras no livro primeiro. De fato, durante o fia gelo de desastroso contágio é que os jogos cênicos foram primitivamente instituídos em Roma pela autoridade dos pontífices. Quem, por conseguinte, não se proporia seguir como regra de vida as ações representadas nesses jogos de instituição divina, de preferência aos artigos escritos nos códigos da sabedoria humana? Se o senhor dos deuses jamais foi adúltero, senão na culpável ficção dos poetas, não é a omissão, mas a sacrílega licenciosidade dos referidos jogos que a justa cólera das castas divindades deve vingar. Entretanto, esse divertimento é o mais tolerável, pois essas tragédias, essas comédias, imaginação dos poetas, expostas no palco, sabem pelo menos velar a obscenidade do assunto por certa decência de expressão; assim, fazem parte dos chamados estudos honestos e liberais e os velhos obrigam as crianças a lê-las e aprendê-las. CAPÍTULO IX Opinião dos antigos romanos sobre a repressão das ciências poéticas, que os gregos, seguindo o parecer dos deuses, queriam livres. Entretanto, que pensavam das representações teatrais os antigos romanos? E o que Cícero nos explica em sua obra A República, em que Cipião, discutindo, se exprime assim: Se os costumes privados não o tolerassem, a comédia jamais faria com que no teatro lhe aplaudissem a libertinagem. Quanto aos gregos, mais antigos, talvez tivessem escusa para a licenciosidade dos conceitos, porque a lei permitia à comédia falar nomeada e livremente de tudo e de todos. Assim, na mesma obra, Cipião, o Africano, acrescenta: Quem não foi atingido por ela, ou melhor, contra quem não se encarniçou? A quem perdoou? Que tenha vibrado golpes em aduladores do povo, cidadãos perversos e sediciosos, como Cleon, Cleofon, Hipérbolo, ainda passa; tenhamos paciência, muito embora seja preferível que não o note o poeta, mas o censor. Que Péricles, entretanto, depois de durante tantos anos governar a república com soberana autoridade na paz e na guerra, seja ultrajado em versos e os recitem no palco não é menos indecente que seria, entre nós, Plauto ou Névio, se pretendessem falar mal dos Cipiões, ou Cecílio, de Catão. E pouco depois: Nossas leis das Doze Tábuas, ao contrário, tão avaras da pena capital, decretaram-na para todo cidadão que manchasse a honra alheia por meio de poesias ou representações ultrajantes. E, com efeito, ao julgamento, à censura legítima dos magistrados, não ao capricho dos poetas, que nossa vida deve ser submetida; devemos estar ao abrigo da injúria, se não nos é permitido responder e defender-nos em juízo. Essa a passagem do livro quarto de A República de Cícero, que julguei dever extrair literalmente, salvo algumas omissões ou ligeiras alterações para facilitar-lhe a inteligência, pois importa muito ao objetivo que me propus. Sequem-se outras considerações cuja conclusão mostra que os antigos romanos não suportavam de bom grado fosse alguém, enquanto vivo, elogiado ou censurado em cena. Por admitirem tal desregramento, os gregos, como já declarei, não eram menos cínicos, porém mais consequentes, pois viam os deuses aplaudirem o opróbrio com que a cena cobria não somente os homens, mas os próprios deuses, quer se tratasse de mera ficção dos poetas, quer fossem narrativa ou representação verdadeira dos crimes divinos; prouve ao céu que os homens se contentassem em considerá-los simples divertimento, não modelos. Seria demasiado orgulho, com efeito, poupar a reputação dos maiorais da cidade e dos outros cidadãos, se os deuses não queriam fosse poupada a sua própria reputação. Quanto à escusa habitualmente alegada, a saber, que os crimes atribuídos aos deuses não passam de imaginação e mentira, existe algo mais criminoso, se consultamos a verdadeira piedade, algo mais artificioso, algo mais pérfido, se levamos em conta a malícia dos demônios? De fato, se a difamação de cidadão virtuoso e devotado à pátria é mais indigna ainda porque não lhe calunia apenas os costumes, mas também a verdade, que suplícios poderão bastar, quando injúria tão horrível, tão criminosa, atinge a própria divindade? CAPÍTULO X Finura da malícia com que os demônios querem que deles se contem crimes verdadeiros ou falsos. Que importa, porém, a espíritos malignos, tomados por deuses, lhes atribuam crimes imaginários, se nas redes de opiniões extravagantes envolvem as almas humanas e as arrastam consigo a inevitável suplício? Que esses crimes tenham sido praticados por homens cuja apoteose rejubila tais amigos dos erros humanos, sutis artesãos de malfeitorias e impostura, hábeis em substituírem os próprios objetos do culto idólatra, ou que ninguém seja responsável por eles, que importa? Querem que a ficção os atribua aos deuses, a fim de que tais exemplos autorizem toda atrocidade, toda infâmia, como se houvesse comércio de crimes entre o céu e a Terra! Assim, os gregos, sentindo-se escravos de tais divindades, não achavam que em cena assim reboante de ultrajes os poetas devessem poupá-los; quer por ambição de serem assimilados aos deuses, quer por medo de irritá-los, elevando-se acima deles pela procura de reputação melhor. Por causa desse princípio é que admitiam os atores às mais altas dignidades; com efeito, esse mesmo livro da obra A República refere que Ésquines, eloquente orador de Atenas, depois de haver representado tragédias na juventude, chegou ao governo do Estado e Aristodemo, outro ator trágico, foi com frequência enviado pelos atenienses em missão a Filipe, para tratar dos mais importantes negócios da guerra e da paz. Se a arte e os jogos cênicos eram, com efeito, agradáveis aos deuses, era razoável relegar os atores ao plano dos cidadãos infames? CAPÍTULO XI Autores e atores, que entre os gregos eram admitidos ao governo da república, porque lhes pareceu não haver motivo para desprezar homens por intermédio de quem aplacavam os deuses. Tratava-se de verdadeira vergonha para os gregos, mas acomodavam-se à fantasia dos deuses. Não se atreviam a subtrair a vida dos cidadãos à língua homicida dos poetas e dos histriões que desacreditavam a vida dos deuses, com permissão, com agrado dos próprios deuses; e, longe de desprezarem os atores de ficções tão agradáveis às divindades, julgaram-nos dignos das maiores honras. Com efeito, por que honrar os sacerdotes que tornam os deuses propícios, graças ao sangue das vítimas, e apontar como infames os atores, instrumentos dos prazeres cênicos reclamados pelos deuses como honra cuja omissão, segundo suas próprias ameaças, provocaria a cólera celeste? Igualmente, não quer o célebre Labeão, profundo conhecedor da ciência sagrada, que a diferença de culto estabeleça distinção entre divindades boas e más? Às más, libações sangrentas, preces fúnebres; às boas, homenagens repletas de alegria e prazer como, diz ele, jogos, festins, lectistérnio. Mais tarde discutiremos, com o auxílio de Deus, o fundamento dessas opiniões todas. Quanto à presente questão, quer tais honras sejam tributadas indiferentemente a todos os deuses, todos considerados bons (não fica bem serem maus os deuses ou, melhor ainda, são todos maus, pois não passam de espíritos impuros), quer, segundo o parecer de Labeão, se estabeleça alguma diferença entre as homenagens, é sempre com muita razão que os gregos honram ao mesmo tempo os sacerdotes que oferecem os sacrifícios e os atores que celebram os jogos. Não ficariam, com efeito, convencidos de que injuriavam todos os deuses, se a cena constituísse prazer para todos, ou, coisa ainda mais indigna, os deuses bons, se apenas os bons neles se comprazessem? CAPÍTULO XII Tirando dos poetas a liberdade contra os homens e deixando-lhes a liberdade que contra os deuses lhes haviam outorgado, os romanos pensaram melhor de si que dos deuses. Quanto aos romanos (e Cipião na mesma A República mostra-se orgulhoso disso), não quiseram deixar a vida e a reputação de ninguém entregues à injuriosa malignidade dos poetas e chegaram até mesmo a decretar a pena capital contra todo cidadão responsável por versos difamatórios. Nobre respeito do homem por si mesmo, mas orgulho, mas impiedade para com os deuses! Ignorava que sofriam com paciência, digo mais, com prazer que os dilacerasse o dente envenenado dos poetas; acreditava-se mais digno de respeito que os próprios deuses e a muralha da lei protegia o homem contra os ultrajes, que acabrunhavam os deuses nos jogos celebrados em honra deles! Quê?! Louvas, Cipião, o proibir-se aos poetas de Roma que insultassem cidadão romano e vês como nenhum dos deuses é poupado! Fazes, portanto, mais caso da dignidade do Senado que da glória do Capitólio, de Roma apenas que de todo o céu? E os poetas não poderão vibrar contra os cidadãos os dardos da língua maldizente; proíbe-o a lei. Mas, livres em relação aos deuses, sem receio, nem senador, nem príncipe do Senado, nem censor, nem pontífice, poderão ultrajá-los impunemente! Não é mesmo verdadeira indignidade que Plauto ou Névio maldigam dos Cipiões ou Cecília de Catão? Mas é justo que vosso Terêncio exacerbe a incontinência da juventude com o exemplo de Júpiter Otimo e Máximo? CAPÍTULO XIII Deveriam os romanos haver entendido serem indignos de culto divino deuses que se regozijavam com serem honrados por meio de jogos de tal maneira torpes. Se fosse vivo, Cipião talvez me respondesse: "Como recusar impunidade ao que os próprios deuses consagraram? Não introduziram nos costumes romanos os jogos cênicos, em que se representa, se diz, se faz tudo isso? Não ordenaram que lhos consagrassem e celebrassem em sua honra." Quê?! Tal ordem não os convenceu de que não passavam de deuses de mentira, absolutamente indignos de receberem honras divinas em semelhante república? Não era contrário à decência e à razão adorá-las, se reclamavam representações injuriosas aos romanos? Como, então, em nome do céu, puderam tomá-las por deuses dignos de adoração, em lugar de reconhecê-las como espíritos dignos de ódio, quando, desejosos de enganar os homens, quiseram que seu próprio culto lhes publicasse os crimes? Todavia, embora já dominados por funesta superstição, ao extremo de honrar divindades que pediam à cena a homenagem de semelhantes torpezas, os romanos conservaram dignidade e pudor suficientes para não honrar os atores, a exemplo dos gregos; mas, de acordo com as palavras que Cícero diz proferidas pelo próprio Cipião, tendo por infames a arte e os jogos cênicos, não somente julgaram inadmissíveis nos empregos as pessoas que exerciam tal profissão, como, por cima, queriam fossem, por nota censorial, excluídas da própria tribo. Admirável sabedoria, digna de figurar entre as verdadeiras virtudes de Roma! Mas por que a si mesma não serve de modelo e guia? Algum cidadão romano escolhe a profissão de ator; fecham-se para ele todas as vias de acesso às dignidades, digo mais, a severidade do censor não o tolera nem mesmo na própria tribo; isso é justo. Nobre instinto da glória! Inspiração ingenuamente romana! Mas respondam-me se há motivo de colocar à margem das dignidades a gente de teatro e, ao mesmo tempo, introduzir os jogos cênicos nas homenagens prestadas aos deuses. Desconhecida por longo tempo da virtude dos romanos, a arte teatral apenas é querida para divertimento do homem e somente se insinua no seio da corrupção. Como, pois, é que os deuses lhe reclamam a homenagem? E rejeita-se com desprezo o ator, um dos ministros do culto divino! Ousam detestar quem representa as referidas infâmias, ao mesmo tempo que adoram quem as exige? Entre gregos e romanos há questão a solucionar-se. Os gregos acham razoável honrar os homens de teatro, pois adoram deuses que solicitam jogos cênicos; os romanos, ao contrário, não consentem que a presença deles desonre a assembleia do Senado, digo mais, nem mesmo a tribo, em que a plebe é admitida. Nessa pendência, porém, o seguinte raciocínio resolve qualquer dificuldade. Os gregos erigem em princípio: Se se deve culto a tais deuses, devem-se honras a tais homens. Mas é impossível honrar semelhantes homens, objetam os romanos. E os cristãos concluem: Logo, é impossível adorar deuses assim. CAPÍTULO XIV Melhor foi Platão, não dando em sua cidade bem morigerada lugar aos poetas, que esses deuses que quiseram ser honrados com jogos cênicos. 1. Os poetas, pergunto agora, autores de semelhantes fábulas, a quem a lei das Doze Tábuas proíbe que atentem contra a reputação dos cidadãos, quando cobrem de opróbrio e ultraje os deuses, por que não são considerados infames como os comediantes, censurados como os que representam essas ficções poéticas, essas ignominiosas divindades? E justo exprobrar os atores e honrar os autores? Não é, porventura, ao grego Platão que se deve conceder a palma da equidade, quando, concebendo segundo a razão o Estado ideal, julga necessário dele banir os poetas, como inimigos da verdade, porquanto não poderia tolerar insultos sacrílegos, nem fábulas corruptoras e enganosas? E é Platão, é homem que, proscrevendo os poetas, da cidade bane a mentira, ao passo que os deuses reclamam, como verdadeira honra, os jogos cênicos. Agora, compara o homem com a divindade. O homem não quer nem mesmo que se escrevam tais infâmias e de fazê-la dissuade, sem persuadir, a leviandade e efeminação gregas; a divindade quer até que as representem, e uma ordem sua arranca à modéstia e gravidade dos romanos tais representações e, além disso, exige que esses jogos lhe sejam dedicados, consagrados, solenemente celebrados em sua honra. Quem, afinal, seria mais honroso divinizar: o sábio que proíbe tantos obscenos delírios ou os demônios encantados com o erro dos homens, a quem Platão não pode persuadir da verdade? 2. Labeão julgou dever elevar Platão à categoria dos semideuses, como Hércules, como Rômulo. Aos heróis prefere os semideuses, mas coloca uns eI outros no número das divindades. Quanto a mim, não somente aos heróis, mas aos próprios deuses, acho preferível Platão, a quem Labeão chama semideus. As leis romanas aproximam-se do pensamento de Platão, porque, se condena todas as ficções poéticas, os romanos pelo menos aos poetas recusam licença para maldizer dos homens; se interdiz até mesmo que permaneçam na cidade, banem da sociedade civil os atores e talvez os banissem por completo, se ousassem insurgir-se contra esses deuses que lhes impõem os jogos cênicos. Por conseguinte, os romanos jamais poderiam obter, nem esperar, para regular-lhes ou corrigir-lhes os costumes, lei alguma desses deuses que a lei romana humilha e confunde. Os deuses reclamam jogos cênicos em sua honra, a lei proíbe que gente de teatro ascenda às dignidades; os deuses exigem que as ficções poéticas lhes proclamem as infâmias, a lei proíbe que a impudência dos poetas difame os homens. O semideus Platão insurgiu-se contra a vergonhosa paixão de tais deuses. Que deuses! Mostrou o que a índole romana devia realizar, exilando de toda cidade bem dirigida os poetas, artesãos de mentiras ou sedutores dos fracos mortais a quem convidam a imitar, como ações divinas, os mais odiosos crimes. Quanto a mim, sem ter Platão por deus, nem por semideus, sem compará-lo a nenhum dos santos anjos do soberano Deus, a nenhum dos profetas de verdade, a nenhum apóstolo, a nenhum mártir do Cristo, nem mesmo a simples cristão (com a graça do Senhor desenvolverei, em lugar oportuno, as razões desse modo de pensar), tal semideus, segundo o parecer de Labeão, prefiro-o, contudo, a Hércules, senão a Rômulo, embora nenhuma narrativa, nenhuma ficção de historiador ou de poeta lhe atribuam fratricídio ou qualquer outro crime; mas prefiro-o, sem sombra de dúvida, a Priapo, a Cinocéfalo, à Febre, enfim, divindades que Roma tomou por empréstimo aos altares estrangeiros ou foi a primeira a consagrar. E como semelhantes deuses teriam o cuidado de prevenir ou desarraigar, por meio de preceitos ou leis, tal corrupção do espírito ou dos costumes, se se interessam no desenvolvimento, na propagação dos vícios, pedindo ao teatro a solene publicidade de seus crimes reais ou imaginários, a fim de os vergonhosos instintos do homem se inflamarem espontaneamente, como se autorizados pelos deuses? Cícero exclama em vão, a respeito dos poetas: Quando se sentem amparados pelas aclamações e sufrágios do povo, sábio e maravilhoso preceptor, sem dúvida alguma, que trevas espalham, que terrores inspiram, que paixões inflamam! CAPÍTULO XV Os romanos criaram para si alguns deuses, não por sadio juízo, mas por adulação. E que razão decidiu a escolha dos deuses, desses falsos deuses? Razão ou, antes, lisonja? Com efeito, o sábio que erigem em semideus, o próprio Platão, que, através de valiosos trabalhos, tanto lutou com os males tão funestos da alma e sua desastrosa influência nos costumes humanos, não o julgam digno do mais humilde templo e a vários deuses preferem Rômulo, embora a doutrina secreta não lhe atribua culto de deus, mas de semideus. Para ele não instituíram flâmine, tão eminente dignidade sacerdotal nos antigos ritos, conforme o testemunho da altura da mitra, que não existiam senão três flâmines: o dialis para Júpiter, o martialis para Marte e o quirinalis para Rômulo? De fato, como esse rei foi admitido no céu por benevolência de seus concidadãos, recebeu o nome de Quirinus. Assim, vê-se Rômulo elevado, no que diz respeito a honras, acima de Netuno, acima de Plutão, irmão de Júpiter, acima até de Saturno, pai deles, porquanto aos altares de Rômulo atribuem grão-sacerdote reservado a Júpiter e talvez concedido a Marte, pai de Rômulo, como homenagem ao filho. CAPÍTULO XVI Se os deuses se preocupassem com a justiça, deles os romanos deveriam receber preceitos relativos ao bem viver, ao invés de tomarem de empréstimo leis a outros homens. Se de suas divindades houvessem os romanos podido receber leis morais, não teriam ido, alguns anos depois da fundação de Roma, tomar de empréstimo aos atenienses as leis de Sólon. Não as observam exatamente como as receberam; procuram torná-las melhores e mais perfeitas, deixando à Lacedemônia as leis de Licurgo, embora esse legislador as apresente como instituídas pela autoridade de Apolo. Mas, sabiamente incrédulos, os romanos de modo algum as querem. Numa Pompílio, sucessor de Rômulo, passa por autor de certas leis insuficientes para regulamentar o Estado. Embora os deuses lhe devessem a instituição de várias cerimônias sagradas, não se diz, em absoluto, houvesse em troca recebido essas leis. Assim, males da alma, desregramento da vida, contágios morais, flagelos de tal modo terríveis que, no testemunho das pessoas mais sábias do paganismo, arruínam as cidades cujos muros permanecem de pé, esses deuses pouco se incomodam com deles preservar seus adoradores; longe disso, trabalham, como já dissemos, em agravá-los ainda mais. CAPÍTULO XVII Rapto das sabinas e outras iniquidades que na cidade de Roma reinaram naqueles mesmos dias, classificados elogiosamente de bons. Mas talvez os deuses não tenham dado leis ao povo romano, porque em Roma, segundo Salústio, o honesto e o justo reinavam tanto na consciência como na lei. Deve-se atribuir, sem dúvida, a essa equidade natural o rapto das sabinas? Moças estrangeiras deixam-se prender na armadilha de espetáculo adrede preparado; a violência rouba-as aos parentes; cada romano apodera-se, como pode, de uma sabina. Que há de mais legítimo? Que há de mais justo? Se, todavia, os sabinos foram injustos, recusando, não o foram mais ainda os romanos, raptando? Não teria sido mais justo combater vizinhos que recusavam as filhas a pelejar contra pais que as pediam de volta aos raptores? Quem retinha, pois, o filho do deus Marte, certo da assistência paterna? Por que não procurava pelas armas a vingança, a reparação da injúria das esposas recusadas? A guerra podia oferecer ao vencedor algum direito de apoderar-se do objeto de injusta recusa; a paz, entretanto, não concedia nenhum e a guerra foi injusta com pais justamente indignados. Mas a perfídia teve resultado feliz e, muito embora o espetáculo dos jogos do circo tenha perpetuado a lembrança do rapto, Roma não aprovou semelhante exemplo. O erro dos romanos pôde chegar ao extremo de fazer de Rômulo um deus, porém não ao de autorizar, pelo costume ou pela lei, a imitação de tal crime. Não foi também por esse senso natural de equidade que, depois da expulsão do Rei Tarquínio, cujo filho desonrara Lucrecia, o cônsul Júnio Bruto obrigou o colega Tarquínio Colatino, marido da vítima, homem virtuoso e sem mácula, a abdicar do consulado e não lhe permitiu continuar vivendo em Roma? Estranha injustiça, que tem por fautor ou cúmplice o mesmo povo de que Colatino e o próprio Bruto haviam recebido o poder consular. E quando, depois da guerra de dez anos, em que o exército romano travou tantos combates desastrosos contra os veientinos, quando Roma, aterrorizada, duvidava da própria salvação, não é esse mesmo sentimento que se rebela contra Marco Camilo, o herói da época, rápido vencedor desses terríveis inimigos e de sua poderosa cidade? A inveja, que agride sua virtude, e a insolência dos tribunos do povo acusam-no; tal a ingratidão da cidade por ele recém salva que, certo da condenação, a evita por meio de voluntário exílio; condenam-no, ausente, a pagar dez mil libras de cobre, condenam a ele, predestinado vingador da pátria ingrata que dentro em pouco iria arrancar aos gauleses! Precisarei lembrar tantas cenas de injustiça e violência que agitavam Roma, quando os patrícios punham todo o esforço em sujeitar o povo, quando o povo se rebelava contra a servidão e de parte a parte os chefes não eram inspirados pela razão e equidade, mas possuídos pela paixão de vencer? CAPÍTULO XVIII Que ensina a História de Salústio acerca dos costumes romanos, tanto dos que o medo coarctara como dos que a segurança deixava livres? 1. Dou-me por satisfeito, pois, e quero apenas o testemunho de Salústio. Proferiu em louvor dos romanos as seguintes palavras, que servem de texto ao presente discurso: Entre eles, o honesto e o justo reinavam tanto na consciência como na lei, designando a época em que, livre dos reis, Roma cresceu com rapidez inaudita. Entretanto, no livro primeiro de sua História, no começo do livro, confessa que desde os tempos em que a república passou dos reis aos cônsules, as injustiças dos poderosos provocaram a separação entre Senado e povo e outras lutas intestinas. A seguir, lembra que, entre a segunda e a última guerra púnica, o povo romano viveu na união e na virtude, mas não atribui ao amor à justiça a feliz harmonia, e sim, enquanto Cartago esteve de pé, ao temor à paz infiel, temor salutar, porque reprimia a desordem, preservava os costumes, continha os vícios, o que decidia o sábio Nasíca a rebelar-se contra a destruição de Cartago. E o historiador acrescenta logo depois: Mas a discórdia, a avareza, a ambição, inevitáveis filhas da prosperidade, desenvolveram-se de modo exorbitante após a destruição de Cartago. Di-lo para dar-nos a entender que também antes costumavam nascer e agigantar-se. Explicando logo o porquê do que disse, escreve: Porque injustiça dos poderosos e, por causa dela, separação entre Senado e povo e outras discórdias domésticas houve desde o princípio e não apenas depois de expulsos os reis. Enquanto duraram o medo a Tarquínio e a difícil guerra sustentada contra a Etrúria, viveu-se com equidade e moderação. Adverte como, no breve espaço de tempo que sucedeu à exação, quer dizer, ao banimento dos reis, viveram com certa equidade e moderação, mas acrescenta que a causa disso foi o medo. Causava-lhas receio a guerra que Tarquínio, posto fora do reino e de Roma e aliado aos etruscos, fazia aos romanos. Repare bem no que acrescenta a seguir: Depois os patrícios se empenharam em tratar o povo como escravo, dispor da vida e pessoa do plebeu, à maneira dos reis, removê-lo do campo e governar sozinhos, sem para nada contar com os demais. Oprimindo por semelhantes sevícias e, em especial, pela usura, tolerando, entre guerras contínuas, não apenas tributos escorchantes, mas também o serviço militar, o povo, armado, ocupou os montes Sagrado e Aventino; obteve, assim, o direito de eleger tribunos chamados da plebe, e outras garantias. A segunda guerra púnica pos termo às discórdias e debates entre ambas as partes. Eis como, pouco tempo depois de proscrita a realeza, eram os romanos cujo historiador nos diz: Entre eles, o honesto e o justo reinavam tanto na consciência como na lei. 2. Se, por conseguinte, se averiguou que era assim tal época, celebrada como a da máxima excelência e formosura da república romana, que nos parecerá se deva pensar ou dizer da época seguinte? Então, mudando pouco a pouco, para usar palavras do mesmo historiador, de ótima e formosíssima se transformou em dissolutíssima e péssima. Isso, porém, como o historiador observa, depois da destruição de Cartago. O modo como Salústio refere abreviadamente esses tempos e os descreve a gente pode ver em sua História. Nela põe à mostra os inúmeros males que se originam da prosperidade, até chegar às guerras civis. Diz assim: Desde esse tempo, os costumes dos antepassados não iam despenhando-se lentamente, como antes, mas de modo torrentoso. Tanto assim que o luxo e a cobiça corromperam a mocidade e chegaram a dizer, com razão, haverem nascido pessoas que não podiam ter patrimônio, nem tolerar que os demais tivessem. Conta Salústio, a seguir, muitas coisas dos vícios de Sila e outras vergonheiras da república. Vários escritores concordam com ele, embora não se lhe igualem na eloquência. 3. Você, contudo, vê, segundo penso, e quem quer que repare nisso perceberá com bastante clareza em que lodaçal de péssimos costumes Roma se atolou antes do advento de nosso Rei celeste. E isso aconteceu não apenas antes de Cristo, já presente na carne, haver começado a ensinar, mas antes mesmo de nascer de Maria. Se tantos e tamanhos males desses tempos, toleráveis a princípio, intoleráveis e horrendos após a destruição de Cartago, não se atrevem a imputar a suas divindades, que nas mentes humanas semeavam com infernal astúcia opiniões de que brotavam tais vícios, por que os presentes males atribuem a Cristo, cuja salutaríssima doutrina proíbe, por uma parte, o culto aos deuses falsos e enganadores e, por outra, detestando e condenando com divina autoridade a vergonhosa e nociva cupidez do homem, deste mundo, que corre, com tantos males, a precipitar-se na ruína, vai insensivelmente subtraindo sua família? Com base nessa família constituirá, não por aplauso da vaidade, mas por juízo da verdade, sua própria, eterna e gloriosíssima Cidade. CAPÍTULO XIX Corrupção da república romana antes de Cristo proibir o culto aos deuses. Eis que a república romana (saiba-se não ser eu o primeiro a dizê-lo; seus autores, que por dinheiro no-lo ensinaram, já o disseram muito antes do advento de Cristo), mudando pouco a pouco, de ótima e formosíssima se transformou em dissolutíssima e péssima. Eis que, antes do advento de Cristo e após o desaparecimento de Cartago, os costumes dos antepassados não iam desempenhando-se lentamente, mas de modo torrentoso, ao extremo de o luxo e a cobiça corromperem a mocidade. Leiam-nos os preceitos que em favor do povo romano os deuses promulgaram contra a cobiça e o luxo. Oxalá se houvessem limitado a dar-lhe mandamentos relativos ao pudor e a modéstia, sem exigir-lhe vergonhosas obscenidades, que lhes harmonizassem a falsa divindade e a perniciosa autoridade! Leiam, leiam-nos os preceitos, dados em tamanho número pelos profetas, pelo santo Evangelho, pelos Atos dos Apóstolos e pelas Epístolas, contra a cobiça e a luxúria, tão divina e tão excelentemente comunicados aos povos de todas as partes, reunidos para ouvi-los sem o estrépito dos debates filosóficos, mas com o ribombar de trovão procedente dos oráculos e nuvens de Deus. Entretanto, não atribuem aos deuses o haver-se a república romana, antes do advento de Cristo, tornado dissolutíssima e péssima por culpa do luxo, avareza e demais torpes e licenciosos costumes. Em troca, às costas da religião cristã põem, gritando, as recentes calamidades, justo salário do orgulho e da libertinagem. Se os reis da Terra e os povos todos, os príncipes e todos os juízes da Terra, moços e virgens, velhos e crianças, todos os de idade capaz de ambos os sexos e aqueles, publicanos e soldados, a quem João Batista se dirige lhe ouvissem e ao mesmo tempo pusessem em prática os preceitos relativos aos costumes justos e santos, a república não apenas ornaria de felicidade os páramos da presente vida, mas ascenderia ao próprio cimo da vida eterna, para ali reinar em beatitude imorredoura. Mas, porque este ouve e aquele despreza e a maioria é mais amiga do encanto dos vícios que da útil aspereza das virtudes, aos servos de Deus, quer sejam reis, quer sejam príncipes, ricos ou pobres, livres ou escravos, de qualquer sexo, é mandado que tolerem, se necessário, essa república ainda péssima e dissolutíssima. Manda-se-lhes, além disso, que por essa tolerância conquistem lugar bastante glorioso na muito santa e muito augusta corte dos anjos, na república celeste, em que a lei é a vontade de Deus. CAPÍTULO XX De que felicidade querem gozar e com que moralidade querem viver os que inculpam os tempos da religião cristã. Mas os adoradores e amigos de tais deuses, cuja velhacaria e maldades se gloriam de imitar, de maneira alguma se esforçam para que a república não seja dissolutíssima e péssima. Subsista, dizem, floresça, repleta de riquezas, gloriosa em vitórias ou, felicidade maior, tranquila na paz. Que nos importa? Importa-nos mais é que cada qual acrescente suas riquezas, a fim de bastarem às prodigalidades cotidianas, que deixam o fraco à mercê do poderoso. Que os pobres obedeçam aos ricos, para saciarem a fome e sob sua proteção gozarem de tranquila ociosidade. Que os ricos abusem dos pobres, instrumentos de faustosa clientela. Que os povos não aplaudam quem lhe serve os interesses, mas quem os provê de prazeres. Que não lhes ordenem coisa difícil, nem proíbam coisa impura. Que os reis não se preocupem com a excelência, mas apenas com a servi/idade dos vassalos. Que as províncias sirvam os reis, não como dirigentes dos costumes, e sim como donos de seus bens e provedores de seus deleites, e não os honrem sinceramente, porém os temam com dobrez e servilismo. Que as leis castiguem mais quem prejudica a vinha alheia que o causador de dano à sua própria vida. Que ninguém seja levado ajuízo, salvo aquele que prejudique ou importune os bens alheios, a casa ou a saúde ou, então, alguém que não o queira. Que, no mais, faça quanto lhe agrade, com os seus, dos seus ou de quem quiser. Que haja muitas mulheres públicas, tanto para quem quiser fruí-las, como, de maneira especial, para aqueles que não podem manter concubina. Que se edifiquem amplos e suntuosos palácios, que se realizem com frequência opulentos banquetes e, onde a cada qual pareça melhor ou seja mais conveniente, se jogue, se beba, se coma, se gaste. Que reine em toda parte o estrépito de bailes. Que os teatros desabem com os clamores de luxuriante alegria e de toda espécie de prazeres bestiais e torpes. Seja considerado inimigo público quem não gostar de semelhante felicidade; se alguém tentar modificá-la ou acabar com ela, afaste-o a multidão licenciosa, expulse-o da pátria, tire-o do número dos vivos. Tenham-se por verdadeiros deuses os que puseram ao alcance dos povos a referida felicidade e, uma vez alcançado, a mantiveram. Sejam adorados como quiserem; peçam, como bem lhes pareça, jogos que possam obter com ou de seus adoradores contanto que se esforcem para tamanha prosperidade não ser perturbada pelo inimigo, pela peste ou qualquer outra calamidade. Que homem sensato compara essa república, já não digo ao Império romano, mas ao palácio de Sardanapalo? Esse rei de antigamente de tal maneira se entregou aos prazeres que em sua sepultura mandou escrever que, morto, apenas possuía aquilo que, enquanto vivo, sua libido possuíra. Se tivessem semelhante rei, que contemporizasse com eles nessas coisas, não os contrariando em coisa alguma com nenhuma severidade, consagrar-lhe-iam templo e sacerdote, com maior gosto que o dos antigos romanos, quando os dedicaram a Rômulo. CAPÍTULO XXI Opinião de Cícero sobre a república romana. 1. Mas, se não fazem caso de quem disse que a república romana era péssima e sumamente dissoluta, nem lhes importa que se encontre repleta de máculas e vergonheiras, de péssimos e desbragados costumes, mas apenas que subsista e se mantenha em pé, ouçam. Ouçam não, segundo refere Salústio, como chegou a ser péssima e dissoluta, porém como já então perecera e não se conservava rasto algum de república, conforme Cícero demonstra. Introduz Cipião, o mesmo que arrasou Cartago, no debate sobre a república, quando a corrupção descrita por Salústio já fazia pressentir-se iminente decadência. O debate realizava-se precisamente no tempo em que acabava de ser assassinado um dos Gracos, em quem, segundo Salústio, tiveram início graves sedições, visto como no mesmo livro lhe menciona a morte. Dissera Cipião no fim do livro segundo que, assim como na cítara, nas flautas, no canto e nas próprias vozes se deve guardar certa consonância de sons diferentes, sob pena de a mudança ou a discordância ferirem ouvidos educados, e tal consonância, graças à combinação dos mais dessemelhantes sons, se torna concorde e congruente, assim também igual tonalidade na ordem política admitida entre as classes alta, média e baixa suscitava o congraçamento dos cidadãos. E aquilo que no canto os músicos chamam harmonia era na cidade a concórdia, o mais suave e estreito vínculo de consistência em toda república, que sem justiça não pode, em absoluto, subsistir. A seguir disserta larga e belamente sobre a necessidade que a cidade tem de justiça e sobre os prejuízos que sua ausência lhe acarreta. Depois, Filo, um dos presentes ao debate, começou a falar e pediu que se tratasse mais detidamente a questão e se falasse mais extensamente da justiça, por causa do aforismo já comum entre o vulgo: Sem injustiça é impossível governar a república. Cipião assentiu em que se discutisse e ventilasse tal ponto. E replicou que, segundo lhe parecia, não era nada o que até aquele momento se discutira acerca da república e se tornava impossível passar adiante, sem primeiro deixar bem assentado que não somente era demasiado falso dizer-se impossível governar a república sem injustiça, como, ao contrário, era impossível governá-la sem muitíssima justiça. Aprazada para o dia seguinte a explanação do tema, no livro seguinte discutiu-se com animados debates. Filo em pessoa fez as vezes dos que opinavam ser impossível governar sem injustiça a republica, pedindo, em especial, que não o julgassem de tal parecer. Dissertou com calor em prol da injustiça contra a justiça, esforçando-se por demonstrar, com argumentos e exemplos verossímeis, a utilidade daquela para a república e a inutilidade desta. Então, Lélio, a pedido de todos, assumiu a defesa da justiça e com todas as forças afirmou não existir para a cidade inimigo pior que a injustiça e ser de todo em todo impossível que a república subsista ou seja governada, se não tem por fundamento indiscutível justiça. 2. Como lhes parecesse estar a questão suficientemente discutida, Cipião retoma ao interrompido discurso, recorda e encarece uma vez mais a breve definição que dera de república, que se reduzia a dizer que é coisa do povo. E determina o que é povo, dizendo não ser toda concorrência multitudinária, mas associação baseada no consenso do direito e na comunidade de interesses. Fincou-se, depois, na utilidade da definição para os debates. Além disso, infere, das definições que dá, existir república, quer dizer, coisa do povo, quando bem e justamente administrada, por um rei, alguns magnatas ou pela totalidade do povo. Por conseguinte, quando injusto o rei, a quem, à moda dos gregos, chamou tirano, ou injustos os magnatas, cuja conjura disse ser facção, ou injusto o povo, para o qual não encontrou nome apropriado, salvo se também chamá-lo de tirano, a república não era viciosa, como se elucidara no dia anterior. Segundo os ensinamentos que lhe decorriam das definições, era em absoluto nula ou inexistente a república. Isso pelo simples motivo de já não tratar-se de coisa do povo, pois dela o tirano ou a facção se apoderara. Mesmo o povo, se injusto, já não seria povo, porque não seria multidão associada pelo consenso do direito e pela comunidade do bem comum, segundo a definição que se dera de povo. 3. Quando, por conseguinte, a república romana era tal qual a descreveu Salústio, já não era dissolutíssima e péssima, como ele diz, porquanto, na realidade, não existia. O debate sobre a república, travado entre os maiores homens daqueles tempos, o pôs em evidência. O próprio Túlio, falando não por boca de Cipião ou de algum outro, mas por si me§.mo, no começo do livro quinto, depois de citar o verso do poeta Enio, que diz: A república romana subsiste por causa de seus antigos costumes e de seus heróis antigos, escreve: Esse verso, porque verdadeiro e breve, parece-me a expressão de verdadeiro oráculo, porquanto nem os heróis, caso a cidade não fosse morigerada, nem os costumes, se não a houvessem governado semelhantes homens, poderiam fundar, nem conservar por tanto tempo república tão grande, que em tantos lugares e com tanta justiça dominava. Assim, em tempos passados, o costume do país colocava a serviço dele homens insignes, que mantinham os costumes antigos e as instituições dos antepassados. Mas, havendo recebido a república como pintura de mestre, já descolorida, porém, pela antiguidade, nosso século não apenas descuidou de reavivar-lhe as cores que ostentara, como nem mesmo se preocupou, por menos que fosse, em conservar-lhe sequer a forma e os últimos contornos. Que resta, pois, dos velhos costumes, que, segundo Ênio, garantiam a continuidade da república romana? Agora vemos que se encontram em desuso e de tal maneira relegados ao esquecimento, que não apenas ninguém os estima, como até nem os conhece. Que direi dos homens, se por falta de homens os costumes feneceram? De tamanha calamidade não nos incumbe apenas dar a razão, mas também defender-nos, como réus de crime capital, porque por causa de nossos vícios, não por casualidade, da república nos fica o nome apenas, pois na realidade tempo faz que a perdemos. 4. Confessa-o Cícero, embora muito depois da morte do Africano, de quem fez em seus livros interlocutor nos debates sobre a república, mas, sem dúvida alguma, antes do advento de Cristo. Se isso fosse ouvido e divulgado, depois de propagada e florescente a religião cristã, quem deles não julgaria devê-lo atribuir aos cristãos? Assim, por que suas divindades não se esforçaram para não perecer e perder-se a república cuja perda Cícero, tanto tempo antes de Cristo vir em carne mortal, com acentos assim lúgubres deplora? Vejam seus panegiristas como era no tempo desses homens antigos e desses costumes. Vejam se porventura nela floriu a verdadeira justiça ou, talvez, nem mesmo então viveu nos costumes, mas pintada em cores. Isso o próprio Cícero, sem percebê-lo, disse, ao representá-la assim. Mas, se Deus quiser, noutro lugar trataremos esse caso. Esforçar-me-ei, no devido tempo, para mostrar, de acordo com as definições do próprio Cícero, em que resumidamente consignou que era a república e que era o povo, pela boca de Cipião (conformando-se com ele outros muitos pareceres, quer o seu, quer o daqueles a quem fez participar no debate), que a romana jamais foi república, porque jamais conheceu a verdadeira justiça. Segundo as definições mais prováveis e a seu modo, foi república, mais bem administrada pelos antigos romanos que pelos modernos. Verdadeira justiça existe apenas na república cujo fundador e governo é Cristo, se nos agrada chamá-la república, porque não podemos negar que seja também coisa do povo. Se, porém, tal nome, que em outros lugares tem significado diferente, se aparta muito de nossa linguagem corrente, pelo menos na Cidade de que diz a Escritura: Coisas gloriosas disseram-se de ti, Cidade de Deus, se encontra a verdadeira justiça. CAPÍTULO XXII Os deuses dos romanos jamais cuidaram de que o desregramento dos costumes não corrompesse a república. 1. Mas, quanto à presente questão, por mais louvável que digam haja sido ou seja a citada república, segundo seus mais competentes autores, já muito antes do advento de Cristo se tornara dissolutíssima e péssima ou, por melhor dizer, inexistente e de todo em todo perdida, por causa de seus depravadíssimos costumes. Por conseguinte, a fim de evitarem que perecesse, os deuses que a protegiam estavam na obrigação de, primeiro, dar normas de bom procedimento e moralidade ao povo que lhes rendia culto e os festejava com tantos templos, com tantos sacerdotes e tamanha variedade de sacrifícios, com tantas e tão diversas cerimônias, com tantas e tão festivas solenidades e com tantas celebrações de jogos. E nisso tudo os demônios apenas faziam seu negócio, sem preocupar-se de como viviam. Cuidavam só de que levassem vida bem desregrada, contanto que, embora de medo, os súditos fizessem tudo isso em honra deles. Se deram, digam, mostrem, deem-nos a ler que leis, dadas pelos deuses, quebrantaram os Gracos, quando perturbaram a república com sedições. Que leis infringiram Mário, Cína e Carbon, para lançarem-se a guerras civis começadas com as causas mais injustas, prosseguidas com crueldade e mais cruelmente ainda terminadas? Por fim, quais transgrediu Sila, cuja vida, feitos e costumes, conforme os descrevem Salústio e outros historiadores, a todos causam horror? Quem negará que a república já não existia? 2. Ousarão, porventura, como costumam, alegar a corrupção dos costumes e o seguinte pensamento de Virgílio, que de ordinário citam para defesa dos deuses: Foram-se, abandonando templos e altares, todos os deuses que mantinham de pé tal império? Em primeiro lugar, se assim é, não têm motivo de queixa contra a religião cristã, pretendendo que, por causa dela, os deuses, ofendidos, os desampararam. De há muito os depravados costumes de seus ancestrais haviam enxotado dos altares da cidade, como a moscas, deuses tão numerosos e tão plebeus. Mas onde se encontrava o enxame de divindades, quando, muito antes de se corromperem os costumes antigos, os gauleses tomaram e incendiaram Roma? Nessa ocasião, havendo-se os inimigos apoderado da cidade toda, apenas ficou a colina do Capitólio; até essa tomariam, se, enquanto os deuses ressonavam, os gansos não estivessem acordados. Roma esteve, por isso, na iminência de cair na superstição dos egípcios, que cultuavam animais e aves, dedicando ao ganso festividade solene. Agora não estou tratando, porém, dos males adventícios, mais do corpo que da alma, ocasionados por inimigos ou qualquer outra calamidade, e sim da corrupção dos costumes que descolorindo, no começo, pouco a pouco, depois se precipitaram de modo torrentoso, causando tamanho estrago, que seus mais autorizados escritores não hesitaram em dizer que os tetos e os muros sobreviveram à república. E, para que perecesse, os deuses fizeram muito bem de fugir, abandonando templos e altares, se a cidade lhes desprezara os preceitos relativos ao bem viver e à justiça. Agora pergunto: que deuses eram esses, que não quiseram viver com o povo que os adorava e o deixaram viver mal, sem jamais ensiná-lo a bem viver? CAPÍTULO XXIII As mudanças das coisas temporais não dependem da assistência ou da oposição dos demônios, mas do ditame do verdadeiro Deus. 1. Que mais, se parece que os assistiram na satisfação de seus vícios e se demonstra não os haverem auxiliado a refreá-los? Ajudaram Mário, homem novo e plebeu, crudelíssimo promotor e comandante de guerras civis, a ser cônsul sete vezes e a durante o sétimo consulado acabar seus dias, já ancião, a fim de não cair nas mãos de Sila, seu imediato e futuro vencedor. Se para tanto não o ajudaram os deuses, não é ninharia reconhecer que, apesar de os deuses não lhe serem propícios, possa alguém alcançar essa, diga-se de passagem, tão desejada felicidade temporal. Não é ninharia, tampouco, possam homens como Mário ser cumulados de bens e desfrutar saúde, força, riqueza, honras, dignidades e vida longa e possam também, como Régulo, que estava em graça dos deuses, padecer cativeiro, servidão, pobreza, noites em claro, dores, torturas e morte. Se admitem ser assim, em poucas palavras confessam que não lhes aproveitam coisa alguma e lhes rendem culto inutilmente. Com efeito, se insistiram em que o povo aprendesse as coisas mais contrárias às virtudes da alma e à honestidade da vida, cujo prêmio se deve esperar depois da morte, e, quanto a esses bens temporais e transitórios, não podem prejudicar a quem odeiam, nem aproveitar àquele de quem gostam, por que lhes rendem culto? Para que com tamanho afã os importunam? Por que nos tempos laboriosos e tristes murmuram, como se, de ofendidos, se houvessem retirado, e com injúrias imerecidas lastimam a religião cristã? Se, contudo, nessas coisas podem favorecer ou prejudicar, por que beneficiaram Mário, homem tão mau, e não auxiliaram Régulo, homem tão bom? Acaso desse modo não demonstram ser muito injustos e maus? Se por semelhante motivo haja quem considere deverem ser mais temidos e reverenciados, saiba havê-las Régulo reverenciado menos que Mário. Nem, tampouco, lhe pareça que a gente deve escolher a vida pior, porque pensa que os deuses mais favoreceram Mário que Régulo. De fato, Metelo, o mais louvado de todos os romanos, que teve cinco filhos cônsules, foi ditoso até nas coisas temporais, enquanto Catilina, deles o mais detestado, foi desditoso, viveu acabrunhado pela pobreza e se viu batido na guerra que sua maldade acendeu. Muito verdadeira e certa é a felicidade em que superabundam os bons que adoram Deus, o único que pode outorgá-la. 2. Quando a perversão dos costumes ia acabando com a república, suas divindades nada fizeram por endireitá-los ou corrigi-los, a fim de não perder-se; ao contrário, prestaram auxílio para depravá-las e corrompê-las, que, assim, se despenharia de uma vez. Não se finjam bons, como se, ofendidos pela iniquidade dos cidadãos, se houvessem exilado. É certo que permaneceram em Roma; delatam-se, convencem-nos, não puderam auxiliá-las com preceitos, nem esconder-se, calando. Omito dizer haverem os minturnenses, compadecidos, encomendado Mário à deusa Marica, em bosque a ela consagrado, para que tivesse bom êxito em todas as coisas. Regressando incólume do desesperado lance, entrou em Roma à testa de verdadeiro exército de bandidos. Nesse transe, como foi sangrenta a vitória que obteve contra concidadãos, vitória mais implacável que a de qualquer inimigo, leia quem quiser sabê-lo naqueles que a escreveram, Isso, porém, como já declarei, vou passar por alto. Não quero atribuir a não sei que deusa Marica a sangrenta felicidade de Mário, mas especialmente à oculta Providência de Deus, para tapar-lhes a boca e livrar do erro os que tratam esse ponto sem parcialidade, mas com prudência e tino. Com efeito, se algum poder os demônios têm nessas coisas, não é mais do que o permitido pela secreta vontade do Onipotente. Isso para não termos grande estima à felicidade terrena, que fartas vezes, como aconteceu com Mário, se concede a pessoa má, nem a consideremos verdadeiro mal, por vermos gozarem-na, mesmo contra a vontade dos demônios, muitos piedosos e bons adoradores do único Deus verdadeiro. Nem acreditemos que, por causa desses bens ou desses males terrenos, devamos aplacar ou temer esses imundíssimos espíritos, porque assim como os maus não podem fazer na Terra o que desejarem, assim também os demônios, se não o consente a vontade do Senhor, cujos pensamentos ninguém compreende plenamente e ninguém repreende com justiça. CAPÍTULO XXIV Feitos de Sila em que os demônios aparecem como auxiliares seus. 1. Certo é que ao próprio Sila, cujos tempos foram tais, que os passados, de que parecia ser o reformador, em comparação com os seus deixaram muito a desejar, ao impelir suas hostes para a cidade, contra Mário, os augúrios se mostraram muito propícios. Tanto assim, que o arúspice Postúmio se comprometeu a sofrer a pena capital, caso Síla, auxiliado pelos deuses, não levasse a cabo o que intentava. Veja como os deuses não se haviam retirado, quando vaticinavam os acontecimentos futuros e não se preocupavam coisa alguma em corrigir o próprio Sila. Pressagiavam-lhe grande ventura e não lhe quebrantavam com ameaças a sórdida cupidez. Pouco depois, na Ásia, quando guerreava Mitridates, por intermédio de Lúcio Tício, lhe chegou mensagem de Júpiter, anunciando-lhe que venceria a Mitridates. Pois foi o que sucedeu. Mais tarde, enquanto maquinava retomar a Roma e no sangue dos compatriotas vingar-se de injúrias feitas a ele mesmo e a seus amigos, em mãos de obscuro soldado da sexta legião lhe chegou nova mensagem de Júpiter, que, depois de lembrar-lhe que antes já lhe anunciara a vitória sobre Mitridates, prometeu dar-lhe poder para das mãos do inimigo arrebatar a república, não sem muito derramamento de sangue. Então, Síla pergunta ao soldado que visão tivera; em face do que lhe foi respondido, veio-lhe à memória a que antes ouviu de quem lhe trouxera a mensagem referente à vitória contra Mitridates. Que resposta darão à seguinte pergunta: por que cuidaram os deuses de anunciar como faustos semelhantes acontecimentos e nenhum deles tratou de corrigir Sila, fazendo-o sabedor dos inúmeros males que ocasionariam suas furiosas guerras civis, não apenas capazes de desonrar a república, mas até mesmo de acabar com ela? É óbvio, com efeito, como já declarei tantas vezes e as Letras Sagradas nos mostram, que esses deuses não passam de demônios. Os próprios acontecimentos demonstram suficientemente que trabalham por que os considerem e reverenciem como deuses e lhes façam oferendas que, perante o tribunal de Deus, em idêntica e péssima causa os associem com aqueles que os adoram. 2. Depois, em chegando a Tarento, Sila oferece sacrifício aos deuses; vê, na parte superior do fígado do bezerro, à imagem de cintilante coroa de ouro. Então, o arúspice Postúmio lhe explicou que a coroa significava insigne vitória e o mandou comer, sozinho, as entranhas da vítima. Dali a pouco, um dos escravos de certo Lúcio Póncío gritou, em tom de presságio: Sou mensageiro de Belona; a vitória é tua, Sila. Em seguida, acrescentou que o Capitólio pegaria fogo. Disse-o e no mesmo instante saiu do acampamento. No dia seguinte voltou mais espiritado, gritando que o Capitólio ardera. Realmente, o Capitólio fora presa das chamas. Para qualquer demônio isso era fácil de antever e anunciar com a máxima celeridade possível. Interessa-me, acima de tudo, é você observar o que diz mais de perto ao objeto que nos propusemos, isto é, a que deuses querem estar sujeitos aqueles que blasfemam contra o Salvador, que da servidão aos demônios exime a vontade dos fiéis. O homem de quem já falamos gritou em tom de vaticínio: A vitória é tua, Sila! E, para acreditarem que o fazia por inspiração divina, anunciou a iminência de acontecimento que no mesmo instante sucedia, longe dele, por boca de quem o espírito falava. Não exclamou, entretanto: Abstém-te, Sila, de crimes. Cometeu-os, incrivelmente horrendos, o vencedor a quem no fígado do bezerro, como c1aríssimo prenúncio de vitória, apareceu coroa de ouro. Caso semelhantes sinais costumassem dar os deuses bons e não os ímpios demônios, nas entranhas das vítimas apareceriam sem dúvida prognósticos de futuros males abomináveis e nocivos em extremo a Sila. Nem o proveito que a vitória lhe carreou à dignidade foi maior que o prejuízo por ela causado à sua cupidez, pois deu em resultado que, anelando a coisas fora de propósito e ensoberbecido e despenhado pelas prósperas, acabasse por ser mais carrasco da própria alma que do corpo dos inimigos. Isso, triste de verdade e na verdade digno de lástima, não anunciavam os deuses nas entranhas das vítimas, nem por augúrios, nem por sonho algum, nem por espécie alguma de adivinhação. E que a vê-lo corrigido preferiam vê-lo derrotado. Mais ainda, trabalhavam em excesso para o glorioso vencedor dos próprios concidadãos render-se, vencido e cativo, a seus nefandos vícios e, assim, poderem tiranizá-lo bem mais estreitamente. CAPÍTULO XXV Grau em que os espíritos malignos incitam os homens à maldade, interpondo o próprio exemplo, à guisa de autoridade divina, para cometerem velhacarias. 1. Depois disso, quem não entende, quem não vê, se não é dos que a separar-se, com a graça divina, da companhia de tais deuses preferem imitá-los, como se afanam em acreditar com o próprio exemplo, à guisa de autoridade divina, as velhacarias que cometem? Foi o que se evidenciou, quando, em extensa planura da Campânia, onde pouco depois se entrechocaram em nefária peleja as tropas civis, os viram pelejar entre si. Ouviu-se, primeiro, grande tropel; depois, muitas pessoas contaram que durante alguns dias viram dois exércitos em luta. Finda a batalha, encontraram vestígios como que de homens e cavalos, em quantidade a esperar de semelhante encontro. Se, por conseguinte, é verdade haverem os deuses pelejado entre si, merecem desculpa as guerras civis dos homens. Mas considere-se a malícia ou a vileza de tais deuses. Se fingiram haver batalhado, não fizeram apenas que aos romanos, que se debatiam em guerras civis, parecesse não estarem cometendo crime algum, pois seguiam o exemplo dos deuses? Já se haviam iniciado as guerras civis, precedidas pelo execrável estrago de alguns nefandos choques. Já excitara a curiosidade de muitos o caso de certo soldado que com o morto que ia despojar identificou, ao desnudá-lo, irmão seu. Então, abominando as discórdias civis, se uniu ao corpo do irmão; matou-se ali mesmo. Para não pesar-lhes tamanha maldade e inflamar-se mais e mais a paixão abominável pelas armas, os daninhos demônios, a quem, julgando-os deuses, pensavam dever veneração e culto, houveram por bem, pelejando entre si, aparecer aos homens. O objetivo perseguido pelos deuses era que o amor apaixonado à pátria não receasse imitar semelhantes encontros, mas a velhacaria humana encontrasse justificativa no exemplo divino. Com a mesma astúcia mandaram os espíritos malignos que lhes dedicassem e consagrassem os jogos histriônicos, de que já falei bastante. Neles o canto e o drama celebravam tantas infâmias dos deuses, que tanto quem acreditasse haverem-nas praticado como quem não acreditasse haveria de, confiado, imitá-los, vendo que lhes agradava a exibição de tais façanhas. E, para ninguém pensar, quando os poetas contam as lutas de deuses contra deuses, que antes escrevem injúrias contra os deuses que algo digno deles, são os primeiros a confirmar os versos dos poetas. Para isso, aos olhos humanos mostram-se em combate, não apenas em cena, por meio de atores, mas em pessoa, no campo de batalha. 2. Vimo-nos obrigados a dizê-lo, porque, em face da imoralidade dos concidadãos, seus próprios historiadores não duvidaram em dizer que muito antes do advento de Nosso Senhor Jesus Cristo a república romana se perdera e já não existia. Mas não atribuem a suas divindades a perdição de Roma. Fazem nosso Cristo responsável pelos males transitórios, que não podem deitar a perder quem é bom, quer vivo, quer morto. Trata-se de verdadeiro contrassenso, pois ninguém ignora que nosso Cristo é frequente em preceitos em prol dos bons costumes e contra os maus, ao passo que os deuses nenhum preceito assim deram ao povo que os adorava para que a república não perecesse. Ao contrário, iam, com a autoridade do mau exemplo que davam, corrompendo os costumes e fazendo a república perecer. Penso que ninguém se atreverá, daqui por diante, a dizer que sucumbiu porque, abandonando templos e altares, os deuses se foram, como amigos das virtudes, ofendidos pelos vícios dos homens. Tantos sinais de entranhas de vítimas, augúrios e vaticínios, com que tanto se compraziam em jactar-se e ter-se em conta de conhecedores do futuro e auxiliares nas batalhas, convencê-lo-ão da presença deles. Se deveras se houvessem ausentado, o furor dos romanos seria fermento de guerras civis menos terríveis que suas pérfidas instigações. CAPÍTULO XXVI Enquanto conselhos secretos dos deuses se referiam aos bons costumes, publicamente se aprendia, em suas solenidades, todo gênero de torpezas. 1. Desse modo e havendo-se aberta e publicamente manifestado torpezas, de mistura a crueldades, opróbrios e crimes, reais ou imaginários, dos deuses, que pediam, agastando-se, quando não atendidos, lhos consagrassem e dedicassem em solenidades certas e estabelecidas, exibindo-os, nos teatros, aos olhos de todos, como que lhes oferecendo exemplo a ser imitado, pergunto: Como é que esses mesmos demônios, que em meio de semelhantes torpezas se confessam espíritos imundos, cujas velhacarias e maldades, verdadeiras ou simuladas, e cuja celebração, pedida aos dissolutos e arrancada à força aos honestos, os apontam como autores da vida licenciosa e torpe, como é, repito, que em seus templos e secretos retiros ditam, segundo se diz, alguns sadios preceitos de moral a determinadas pessoas a eles consagradas, como se fossem eleitas? Se isso é verdade, há razão suficiente para nos advertirmos e convencermos de ser essa a mais refinada malícia de tais espíritos daninhos. Tamanha é a força da bondade e da castidade, que todo ou quase todo ser humano se mostra sensível a semelhante louvor e jamais a torpeza o embota ao extremo de fazê-lo perder o senso de honestidade. Portanto, se a malignidade dos demônios em parte alguma se transfigurasse em anjos de luz, como está escrito em nossas Escrituras, não realizaria sua obra de sedução. Assim, fora, aos ouvidos de todos, com muito grande estrépito ressoa a impura impiedade; dentro, apenas nos de alguns, soa a simulada castidade. Dá-se publicidade ao vergonhoso e clandestinidade ao louvável. O decoro oculta-se, o desdouro exibe-se. O mal que se faz convoca inúmeros espectadores, mas o bem que se prega encontra poucos ouvintes apenas, como se a honestidade causasse vergonha e a desonestidade, glória. Mas onde procedem desse modo, senão nos templos dos demônios? Onde, senão nos refúgios do engano? Aquilo se faz para enredar os mais honestos, que são poucos, e isto, para os demais, os dissolutos, não se emendarem. 2. Onde e quando os iniciados aprendiam de Celeste os preceitos relativos à castidade? Ignoramo-lo. Víamo-la, porém, diante do mesmo templo em que todos quantos concorríamos ao local contemplávamos também, junto à deusa, aquele famoso simulacro; acomodando-se cada um de nós como podia, assistíamos, superexcitados, aos jogos que se representavam, observando alternadamente a pompa das meretrizes e a virgem deusa. Notávamos, além disso, que a adoravam com humildade, mas ante ela representavam semelhantes vergonheiras. Nesse lugar jamais vimos representações honestas, jamais atriz alguma casta. Todos desempenhavam bem o papel obsceno que lhes competia. Sabia-se o que agradava à deusa virginal e representava-se o que a matrona, mais instruída, levasse do templo para o lar. Não faltavam algumas que, mais recatadas, desviavam o rosto dos impuros meneios dos histriões e, olhando às furtadelas, aprendiam a arte da obscenidade. Coravam dos homens e não se atreviam a demorar os olhos nos impudicos trejeitos. Muito menos, porém, ousavam condenar, com castidade de coração, as cerimônias sacras da deusa que veneravam. Representava-se publicamente no templo o que no lar se reveste de profundo segredo. E com sobrada admiração, por certo, do pudor dos mortais, se é que ali restava algum, de que os homens não cometessem livremente as lubricidades humanas que de maneira religiosa aprendiam perante os deuses, capazes de ficarem zangados se não as representassem. Que outro espírito, de oculto instinto, agitando as mentes mais perversas, não apenas insta ao cometimento de adultérios, mas também se apascenta nos cometidos? Que outro espírito, senão o que se alegra em cerimônias tais, colocando nos templos simulacros dos demônios, amando nos jogos os simulacros dos vícios, sussurrando em segredo palavras de justiça, para sedução dos poucos bons, e frequentando em público as blandícias da maldade, para assenhorear-se dos maus, que não têm conta? CAPÍTULO XXVII Menoscabo da moralidade pública com que os romanos consagraram a suas divindades para aplacá-las as torpezas dos jogos. Túlio, homem grave, pretenso filósofo e futuro edil, exclamava no fórum que um dos deveres de sua magistratura consistia em aplacar mãe Flora por meio da celebração dos jogos que costumavam realizar-se com devoção apenas superada pela torpeza. Alhures, já cônsul, reduzida a cidade a desesperadora situação, diz que se haviam celebrado jogos durante dez dias e tudo se fizera para aplacar os deuses. Como se não fora melhor irritar semelhantes divindades com o comedimento que aplacá-las com a libertinagem e provocar-lhas a inimizade por meio da modéstia que apaziguá-las com tamanha dissolução! Não iria prejudicá-los tanto, por mais atroz que fosse a desumanidade dos homens em favor de quem os aplacavam, como os prejudicavam os próprios deuses, quando os apaziguavam com vícios tão repelentes. A razão é que, para evitar o que se temia pudesse o inimigo fazer no corpo, de tal modo se granjeava a amizade dos deuses, que a virtude se arruinava nas mentes. E semelhantes deuses não se aprestariam à defesa contra quem combatia os muros, sem que antes se fizessem expugnadores dos bons costumes. Esse apaziguamento de tais divindades, por demais desonesto, impuro, impudente, dissoluto e torpe, cujos ministros a louvável índole da virtude romana privou das dignidades, expulsou da própria tribo, reconheceu como torpes e declarou infames; esse apaziguamento, repito, de semelhantes deuses, vergonhosos, repulsivos e abomináveis para a religião verdadeira; essas fábulas repugnantes e passíveis de vitupério, essas ações ignominiosas dos deuses, malvada e torpemente praticadas e mais malvada e torpemente ainda representadas, aprendia-os a cidade toda pelos olhos e pelos ouvidos. Via serem de agrado dos deuses tais coisas; por isso acreditava que não apenas deviam ser-lhas exibidas, mas também deviam ser imitadas. Mas não via aquele não sei que de honesto e bom que a tão poucos e tão em segredo se dizia (se é que se dizia), cujo conhecimento, segundo parece, era mais receado que a própria observância. CAPÍTULO XXVIII Caráter salutar da religião cristã. Queixam-se e murmuram os maus, os ingratos e aqueles que se acham mais profunda e estreitamente possuídos por esse abominável espírito de que pelo nome de Cristo os homens se veem livres do jugo infernal das imundíssimas potências e da parceria com elas nos suplícios. Queixam-se, também, de que da noite da mais perniciosa impiedade são transferidos para a luz da mais salutífera piedade, porque o povo acode às igrejas com diligência casta e honesta separação entre homens e mulheres. Nelas ouvem como cumpre viverem bem no tempo, para que, depois desta vida, mereçam viver bem-aventurada e eternamente; nelas a santa Escritura e a doutrina de justiça ressoam do púlpito, à vista de todos, de maneira que as ouçam como premio os que as praticam e como condenação aqueles que não o fazem. Chegam-se-lhes alguns que zombam de tais preceitos; repentinamente, porém, mudam de pensar e depõem a insolência ou a refreiam por medo ou pudor. Nelas não se lhes propõe coisa torpe ou má, a fim de que a presenciem ou imitem. A eles são ensinados os preceitos do verdadeiro Deus, narradas todas as suas maravilhas, enaltecidos os dons ou pedidas mercês. CAPÍTULO XXIX Conselho aos romanos sobre o dever de renunciar ao culto aos deuses 1. Prefere essas coisas, ó nobre natureza romana, ó progênie dos Régulos, Cévolas, Cipiões e Fabrícios, prefere-as e repara nas diferenças que há entre elas e a torpe vaidade e a engenhosa malícia dos demônios. Se algo em ti naturalmente desponta como digno de louvor, não se purifica, nem se aperfeiçoa, senão com a verdadeira piedade. Somente a impiedade a dissipa e deita a perder. Escolhe desde já teu caminho, a fim de poderes ter glória verdadeira, não em ti, mas em Deus. Houve tempo em que não te faltou a glória mundana, por oculto desígnio da divina Providência faltou-te, porém, a verdadeira religião a escolher. Desperta! É dia! Desperta, como despertaram alguns dos teus, de cuja perfeita virtude e de cujos padecimentos pela fé nos gloriamos. Pelejando contra os irreconciliáveis poderes hostis e vencendo-os com sua morte valorosa e com seu sangue, deram-nos esta pátria. Nós te convidamos, nós te exortamos a vir a esta pátria, para que te contes no número de seus cidadãos, cujo asilo é, de certo modo, a verdadeira remissão dos pecados. Não prestes ouvidos aos que degeneram de ti. Infamam a Cristo, e aos cristãos e acusam de calamitosos os tempos que correm. E que nos tempos não buscam o repouso da vida, mas a segurança do vício. Tempos semelhantes jamais quiseste, mesmo para tua pátria terrena. Volve-te, agora, para a pátria celeste. Por ela trabalharás pouco e nela terás eterno e verdadeiro reino. Não encontrarás o fogo de Vesta, nem a pedra do Capitólio, mas Deus, uno e verdadeiro, que não te porá limites ao poder, nem duração ao império. 2. Não andes à caça de deuses falsos e enganadores! Despreza-os e afasta-os de ti, elevando-te à verdadeira liberdade! Não são deuses, são espíritos malignos, para quem é suplício tua eterna felicidade. Não parece que Juno jamais tenha invejado aos troianos, teus ancestrais terrestres, a glória da cidade romana, como esses demônios, que te obstinas em considerar deuses, invejam ao gênero humano a felicidade das eternas moradas. Tu mesma bem soubeste julgá-los assim, quando os aplacaste com jogos, mas quiseste considerar infames os homens por intermédio de quem os celebraste. Consente em assegurar tua liberdade contra os imundos espíritos que te puseram no pescoço o jugo de sua ignomínia, para consagrá-la a si mesmos e celebrá-la em sua honra. Excluíste do acesso às dignidades os intérpretes dos crimes divinos. Suplica, pois, ao Deus verdadeiro, que afaste de ti esses deuses que se comprazem em suas próprias velhacarias, quer verdadeiras, o que é o cúmulo da ignomínia, quer falsas, o que é o cúmulo da malícia. Está bem que espontaneamente negues o direito de cidadania a histriões e comediantes. Acaba de abrir os olhos! A Majestade divina jamais aplacam as artes que empanam a dignidade humana. Como, pois, no número das santas potestades do céu pensas incluir deuses que se satisfazem com semelhantes agrados, depois de haveres pensado que os homens por quem lhes dedicas esses obséquios não deviam contar-se no número de meros cidadãos romanos? A cidade soberana é incomparavelmente mais luminosa. Nela, a vitória é a verdade, a honra é a santidade, a paz é a felicidade e a vida é a eternidade. Em sua sociedade não tem, com certeza, tais deuses, a partir do momento em que te envergonhaste de ter semelhantes homens na tua. Evita, por conseguinte, comunhão com os demônios, se queres chegar à cidade bem-aventurada. É verdadeira indignidade que pessoas honestas rendam culto a quem pessoas torpes conseguem aplacar. Sejam afastados de tua piedade, por meio da regeneração cristã, para tão longe como aqueles o foram do acesso às dignidades públicas, por meio da nota censória. Está faltando tocar no ponto referente aos bens carnais, que somente os maus querem gozar, e os males carnais, únicos que não querem padecer. Nem mesmo sobre esses têm os demônios o poder que lhes atribuem; embora tivessem, deveríamos desprezá-las, não adorá-las por causa deles e, adorando-os, ficarmos impedidos de poder alcançar os bens que nos invejam. Mais tarde veremos, para encerrar aqui este livro, que mesmo nisso não têm a influência imaginada pelos que sustentam que, por causa deles, é preciso adorá-las. LIVRO TERCEIRO Como o precedente se refere aos males relativos à alma e aos costumes, este livro trata dos que tangem ao corpo e às coisas externas. Agostinho mostra que os romanos, desde a fundação da cidade, têm sido constantemente angustiados por esses males e que os falsos deuses, a quem, antes do advento de Cristo, renderam culto espontâneo, têm sido incapazes de evitá-los. CAPÍTULO I Adversidades de que somente os maus têm medo e o culto aos deuses nunca preservou o mundo. Creio haver falado o suficiente sobre os males dos costumes e das almas, contra os quais o homem deve, em especial, precaver-se, e de como os falsos deuses não cuidaram coisa alguma de prestar auxílio ao povo que lhes rendia culto para não ser sepultado pela avalancha desses males, mas, ao contrário, fizeram o impossível para que fosse oprimido. Agora vou tratar de tais males, únicos que os adoradores dos falsos deuses não querem padecer, como é o caso da fome, da enfermidade, da guerra, da espoliação, do cativeiro, da morte e de alguns outros assim, já enumerados no Livro Primeiro. De males os maus apenas conceituam esses, que não os fazem maus; não se envergonham, igualmente, de ser maus, entre os bens que seus próprios gabadores gabam, incomodando-os mais ter má vila que má vida, como se o supremo bem do homem fosse ter boas todas as suas coisas, menos a si mesmo. Nem mesmo semelhantes males, os únicos que eles temiam, os deuses impediram que sobreviessem, quando livremente lhes tributavam culto. Com efeito, antes do advento de nosso Redentor, quando em diferentes épocas e lugares o gênero humano se viu afligido por várias calamidades, algumas delas incríveis, que outros deuses, senão esses, adorava o mundo, exceto o povo hebreu e algumas outras pessoas a ele estranhas, onde quer que oculto e justo desígnio de Deus as tenha julgado merecedoras de tal graça divina? Mas a fim de não ser prolixo, silenciarei sobre os gravíssimos males doutros povos e apenas falarei dos que se referem mais de perto a Roma e ao Império romano, quer dizer, à própria cidade e àquelas regiões do mundo confederadas com ele ou sujeitas a seu domínio, antes do advento de Cristo, quando de certo modo já participavam do corpo da república. CAPÍTULO II Tiveram os deuses, a quem de igual modo rendiam culto os romanos e os gregos, motivos para permitir a destruição de Tróia? Em primeiro lugar, por que foi vencida, tomada e assolada pelos gregos a famosa Tróia ou Ílion, berço do povo romano (pois não há por que silenciar e dissimular o que já apontamos no Livro Primeiro), que tem e adora os mesmos deuses? Príamo, dizem, pagou os perjúrios do pai, Laomedonte. E verdade, por conseguinte, haverem Apolo e Netuno prestado a Laomedonte serviços a soldo, porque se refere haver-lhes prometido remuneração e jurado falso. Maravilho-me de haver Apolo, adivinho de renome, trabalhado em tamanha empresa, sem saber que Laomedonte lhe negaria o prometido. Surpreende-me, igualmente, que Netuno, tio dele, irmão de Júpiter e rei do mar, ignorasse o porvir. Homero o introduz, vaticinando algo de grande sobre a estirpe de Enéias, cujos descendentes fundaram Roma. Dizem que o mesmo poeta viveu antes da fundação da cidade e a Enéias o arrebatou numa nuvem, para não matá-la Aquiles, desejando, por outra parte, arrancar pela raiz (o que se encontra em Virgílio) a obra de minhas mãos que eram as muralhas de Tróia, a perjura. Não sabendo tão eminentes deuses, como Netuno e Apolo, que Laomedonte lhes negaria o salário prometido, edificaram gratuitamente e para ingratos as muralhas de Tróia. Tomem CUidado, pois receio que em relação a estes deuses a credulidade seja mais perigosa que o perjúrio. Isso nem o próprio Homero julgou fácil, porquanto nos apresenta Netuno lutando com os troianos e, a favor deles, Apolo, embora a fábula mostre ambos ofendidos pelo referido perjúrio. Se, por conseguinte, dão crédito às ficções poéticas, caia-lhes o rosto de vergonha, pois rendem culto a semelhantes deuses; se não creem, não aleguem os perjúrios de Tróia ou admirem-se de haverem os deuses punido os perjúrios troianos e simpatizado com os romanos. Como é que em cidade tão grande e corrupta conseguiu a conjuração de Catilina tão grande número de partidários, cujos atos e palavras se nutriam em perjúrios ou em sangue romano? Que outra coisa faziam os senadores, tantas vezes subornados em seus juízos, que outra coisa fazia o povo nos comícios e nas causas perante ele pleiteadas, senão pecar, perjurando também? Em meio de tal corrupção dos costumes conservava-se o antigo hábito de jurar, não a fim de por causa de temor religioso se absterem da maldade, mas para às demais culpas acrescentarem os perjúrios. CAPÍTULO III Não poderiam os deuses sentir-se ofendidos pelo adultério de Páris, porque se tratava de procedimento muito comum entre eles. Assim, pois, não há motivo algum para que os deuses, que, segundo se diz, mantiveram de pé o Império romano, vendo-se vencidos pelos gregos, que assentaram praça de poderosos, se finjam aborrecidos com os troianos por haverem quebrado o juramento. Muito menos os exasperou, como alguns sustentaram, o adultério de Párís, pretensa causa de haverem abandonado Tróia, porque entre eles não é uso ser vingador, mas autor e conselheiro de crimes. A cidade de Roma, escreve Salústio, segundo entendo, fundaram-na e habitaram a princípio os troianos fugitivos que, sob a direção de Enéias, vagavam de cá para lá. Portanto, se os deuses acreditassem que deviam vingar o adultério de Páris, ser-lhes-ia forçoso castigá-la mais nos romanos ou pelo menos também neles, porque obra da mãe de Enéias. Como, entretanto, detestaria nele semelhante infâmia quem não detesta (para omitir outros) em Vênus o cometido com Anquises, de que nasceu Enéias? Acaso foi porque aquele se perpetrou com indignação de Menelau e este com assentimento de Vulcano? Os deuses, suponho, não têm muito ciúme das esposas, pois chegam ao extremo de partilhá-las com os homens. Talvez pareça que vou ridicularizando as fábulas e não trato a sério de causa de tamanha transcendência. Não creiamos, se vos agrada, ser Enéias filho de Vênus, mas também deixemos de acreditar que Rômulo o seja de Marte. Se um deles é, por que não o outro? Seria porventura permitido aos deuses terem comércio carnal com as mulheres dos homens e proibido que os homens o mantivessem com as deusas? Dura, melhor diríamos, incrível condição esta: o que por direito de Vênus foi lícito a Marte em sua união carnal se tornou, assim, ilícito em seu próprio direito à mesma Vênus. Entretanto, a autoridade romana ratifica ambos os casos, porque com igual fé o moderno César considerou Vênus como avó e o velho Rômulo considerou Marte como pai. CAPÍTULO IV Parecer de Varrão, segundo o qual é útil que os homens se finjam nascidos dos deuses. Alguém perguntará se porventura creio nisso. Na realidade, não creio, porquanto o próprio Varrão, o mais sábio dentre eles, embora hesite em pronunciar-se categoricamente, lhe reconhece alguma falsidade. É vantajoso para as cidades, afirma ele, que seus homens proeminentes se julguem, mesmo falsamente, de sangue de deuses, porque desse modo o coração humano, portador de confiança na linhagem divina, concebe com maior audácia grandes decisões, as realiza com maior energia e as leva com essa segurança a feliz termo. Semelhante parecer de Varrão, expresso, como pude, com palavras minhas, vede que larga porta abre à falsidade. E é fácil compreender que podem ser inventadas muitas falsidades relativas ao ritual e à religião, onde quer que o homem entenda que as mentiras, mesmo as referentes aos próprios deuses, causam grandes vantagens aos cidadãos. CAPÍTULO V Não é crível hajam os deuses punido o adultério de Páris e deixado impune o da mãe de Rômulo. Deixemos de lado a questão de saber se foi possível a Vênus, como resultado da união com Anquises, dar à luz Enéias e se Marte, do comércio carnal com a filha de Numitor, póde gerar Rômulo. Dificuldade parecida surge em nossas Escrituras, quando se pergunta se os anjos prevaricadores se uniram com as filhas dos homens, deles nascendo gigantes, isto é, homens demasiado grandes e fortes, que na época povoaram a Terra. Por enquanto, porém, limitemos a questão a esses dois fatos. Se é verdade o que entre eles com tamanha frequência se lê da mãe de Enéias e do pai de Rômulo, como é possível desagradarem aos deuses os adultérios dos homens, se com tanta conformidade toleram mutuamente os próprios? Se falso, é de igual modo impossível que lhe causem aborrecimento os verdadeiros adultérios dos homens, que se deliciam com os seus, embora falsos. Daí se deduz que, se não se dá crédito ao adultério de Marte, a fim de não dá-lo também ao de Vênus, sob pretexto de nenhum ajuntamento divino pode ser defendida a causa da mãe de Rômulo. Sílvia era sacerdotisa vestal e, por isso, os deuses tinham mais razão para, nos romanos, vingar-se da sacrílega infâmia que, nos troianos, do adultério de Páris. Os antigos romanos enterravam vivas as sacerdotisas de Vesta surpreendidas em estupro, ao passo que às mulheres adúlteras, embora lhes impusessem alguma pena, não era de morte. Vingavam de modo mais inexorável o que supunham sacrários divinos que os leitos humanos! CAPÍTULO VI Parricídio de Rômulo, não vingado pelos deuses. Chego a dizer que, se tanto desgosto causaram aos deuses os crimes dos homens, que, ofendidos pelo delito de Pai is, deixaram Tróia abandonada ao gládio e ao fogo, mais os irritaria com os romanos a morte do irmão de Rômulo que com os troianos a injúria feita ao esposo grego, mais os irritaria o parricídio da cidade nascente que o adultério da já florescente. Não tem a menor importância para o presente caso saber se se executou por mandado de Rômulo ouse Rômulo o executou com as próprias mãos, coisa que muitos imprudentemente negam, outros por pudor põem em dúvida e muitos com mágoa dissimulam. Para não nos determos a investigar mais a fundo a questão, ponderando os testemunhos de muitos escritores, diremos constar claramente haver o irmão de Rômulo sido morto, mas não por inimigos ou estranhos. Executou-o ou mandou executá-lo Rômulo, mais chefe dos romanos que Páris dos troianos. Por que, pois, o raptor da mulher alheia provocou a cólera dos deuses contra os troianos e esse, que matou o irmão, atraiu sobre os romanos as boas graças dos mesmos deuses? Se o referido crime Rômulo não cometeu com as próprias mãos, nem mandou cometer, cometeu-o a cidade toda, porque a cidade toda não lhe deu importância, pois sem dúvida alguma deveu castigá-lo e deu morte não ao irmão, mas ao pai, o que é ainda pior. Ambos foram fundadores, embora a um deles criminosa mão tenha impedido reinar. Não há, creio, por que dizer de que mal Tróia se fez merecedora, para que os deuses a abandonassem, podendo, assim, perecer, e de que bem Roma foi credora, para que nela os deuses fixassem residência, podendo, assim, crescer, senão porque, vencidos, fugiram dali, e se trasladaram para cá, a fim de seduzirem de igual modo os romanos. Mais ainda, ali permaneceram para enganar, segundo usavam, os que tornaram a habitar naquelas terras e aqui se inflaram de orgulho, pondo em prática de maneira mais intensa os ardis de sua própria falácia. CAPÍTULO VII Destruição de Ílion, levada a cabo por Fímbria, general de Mário. Que mísero crime cometera Ílion para que, ao estalarem as guerras civis, a destruísse Fímbria, o homem mais feroz do partido de Mário, muito mais sangrenta e cruelmente que o fizeram noutro tempo os gregos? Nessa ocasião, muitos fugiram dali e muitos, perdendo a liberdade, conservaram a vida. Em troca, Fímbria primeiro tornou público, em edito, que não perdoaria ninguém, e depois mandou reduzir a cinzas a cidade e quantos nela residiam. Esse foi o tratamento que deram a Ílion, não os gregos, indignados por causa de suas iniquidades, mas os romanos, nascidos de suas desgraças, sem que os deuses, comuns a uns e a outros, se aprestassem para repeli-los ou, esta é a verdade, pudessem fazê-lo. Acaso, então se foram, abandonando templos e altares, todos os deuses que mantinham firme a cidade, restaurada após o incêndio e destruição dos gregos? Se se foram, procuro a causa; quanto melhor acho a dos troianos, tanto pior a dos deuses. Para conservarem a cidade íntegra para Sila, os troianos fecharam as portas a Fímbria, que por esse motivo se enfureceu contra eles, lhes pôs fogo ou, melhor dizendo, quase os nivelou com o solo. Então, ainda era Sila o general dos melhores partidos civis; então, ainda se esforçava em recuperar a república pelas armas. Desses bons começos ainda não haviam surgido os maus acontecimentos. Que coisa melhor puderam fazer os cidadãos da referida urbe? Que de mais honesto? Que mais conforme com as relações mantidas com Roma que manter a cidade para o melhor partido romano e fechar as portas ao parricida da república romana? Mas ponderem os defensores dos deuses em quanta destruição se transformou isso. Que os deuses desamparassem os adúlteros e deixassem Ílion ser presa das chamas dos gregos, para que das cinzas Roma surgisse mais casta, está bem. Mas por que depois desampararam a própria cidade mãe dos romanos, não rebelando-se contra Roma, nobre filha, mas guardando a seus mais justos partidos fé constante e inquebrantável, e deixaram que fosse confundida com o pó, não pelos destemidos gregos, mas pelo mais obsceno dos romanos? Se desagradava aos deuses a causa do partido de Sila, para quem, desditosos, reservavam a cidade, quando lhe fecharam as portas, por que prometeram e auguravam a Síla tamanhas prosperidades? Não é prova de que antes se reconhecem aduladores dos felizes que defensores dos infelizes? A destruição de Ílion não é, pois, devida ao desamparo por parte dos deuses, porque os demônios, sempre prontos para enganar, fizeram quanto esteve em suas mãos. Na destruição e incêndio de todos os simulacros, juntamente com a cidade, refere Lívio que apenas o de Minerva ficou de pé e intacto em meio das enormes ruínas do templo, não para que se dissesse em seu louvor: Ó deuses pátrios, sob cujo poder Tróia sempre esteve! Mas para que não se dissesse em sua defesa: Todos os seus deuses se foram, abandonando templos e altares. E permitiu-se-lhes isso precisamente para acusar-lhes a presença e não para poder demonstrar-lhes o poder. CAPÍTULO VIII Devia Roma confiar-se aos deuses de Tróia? Com que prudência se confiou aos deuses de Ílion a proteção de Roma, depois da experiência adquirida em Tróia? Alguém dirá que estavam cansados de viver em Roma, quando às investidas de Fímbria se rendeu Ílion. Por que, pois, ficou em pé a estátua de Mínerva? Mas, se estavam em Roma, quando Fímbria voou para Ílion, sem dúvida também estavam em Tróia, quando os gauleses tomaram Roma e lhe puseram fogo. Como, todavia, têm ouvido muito fino e se deslocam com enorme rapidez, assim que os gansos grasnaram, acudiram pressurosos a defender pelo menos a colina do Capitólio, que ficara em pé. Para defenderem o resto, chegou-lhes tarde o aviso. CAPÍTULO IX Deve ser considerada como dom dos deuses a paz havida no reinado de Numa? A crença generalizada de haverem os deuses favorecido Numa Pompílio, sucessor de Rômulo, dando-lhe ter paz durante todo o seu reinado e fechar as portas de Jano, de costume abertas em tempo de guerra, baseia-se precisamente no fato de que entre os romanos estabeleceu muitas cerimônias sagradas. Tal homem fora digno de felicitação, caso houvesse sabido empregar seus lazeres em coisas salutares e sacrificar sua perniciosa curiosidade à procura do verdadeiro Deus com verdadeira piedade. Mas não foram os deuses que lhe deram o necessário ócio. Talvez o enganassem menos, se não o houvessem encontrado tão ocioso, porque quanto menos ocupado o achassem, tanto mais ocupação lhe dariam. Qual a pretensão de Numa e com que artifícios pôde granjear para si e para a cidade a simpatia de semelhantes deuses, di-lo Varrão. Se prouver a Deus, no devido lugar trataremos mais amplamente do caso. Por enquanto, como a questão versa sobre os benefícios dos deuses, admitamos ser a paz grande benefício, não, porém, benefício do verdadeiro Deus, comum, como o Sol, como a chura e como outros subsidiários à vida, a ingratos e pecadores. Mas, se os deuses proporcionaram a Roma e a Pompílio tão grande bem, por que a seguir jamais o prestaram ao Império romano, nem mesmo nas épocas de fastígio? Será que as cerimônias sagradas eram de maior utilidade ao serem instituídas que quando as celebravam, depois de instituídas? Não existiam, antes de Numa, que as acrescentou ao culto, com vistas a sua existência; depois, já existentes, passaram a observá-las, com vistas à sua utilidade. Qual a causa de haverem, durante o reinado de Numa, passado quarenta e três anos ou, como querem outros, trinta e nove de contínua paz? Qual a causa de, estabelecidos os ritos sagrados e atraídos os deuses pelas cerimônias a serem tutores e chefes, mencionar-se, depois de tantos anos (desde a fundação de Roma à época de Augusto), um ano apenas, esse mesmo como coisa excepcional, o seguinte à primeira guerra púnica, durante o qual os romanos puderam fechar as portas da guerra? CAPÍTULO X Seria desejável o crescimento do Império romano à custa de guerras tão violentas, quando podia ter paz e segurança com à mesma sorte com que acreditais pôde tê-las durante o reinado de Numa? Responderão, porventura, que o Império romano não podia estender ao mundo todo seus domínios e expandir por toda parte sua glória, sem contínuas e sucessivas guerras? Razão idônea, por certo! Devia nadar na agitação o Império, para ser grande? Quanto aos corpos humanos, não é melhor, porventura, ter estatura mediana e saúde que talhe de gigante e perpétuas dores e, havendo-a alcançado, não sossegar mas viver em meio de sofrimentos tanto maiores quanto maiores os membros? Que mal seria ou, melhor, que imenso bem, se perdurassem os tempos que Salústio lembra deste modo: No começo, os reis (esse o primeiro nome usado para designar a autoridade) eram diferentes: uns exercitavam o espírito; outros, o corpo. Os homens ainda viviam sem cobiça, contente cada qual com a própria sorte. Será que, para o Império chegar a semelhante grandeza, se tornou preciso o que, por outra parte, Virgílio deplora nos seguintes versos: Pouco a pouco sobreveio a idade pior e descolorida, a fúria da guerra e o amor ao ouro? Não há dúvida que é escusa justa para os romanos, por causa de tantas guerras empreendidas e guerreadas, dizer que se viram obrigados a resistir aos inimigos e a suas contínuas arremetidas, não por avidez de conseguir louvo rês humanos, mas por necessidade de defender a vida e a liberdade. Vá lá! Muito bem! Depois que sua república, segundo escreve Salústio, graças ao desenvolvimento das leis, dos costumes e dos campos, parecia gozar da prosperidade e poder, de acordo com lei geral das coisas humanas, da opulência nasceu a inveja. Reis e nações limítrofes declararam-lhes guerra e poucos aliados vieram socorrê-la, porque a maioria, acovardada, fugiu ao perigo. Mas os romanos, solícitos na paz e na guerra, apressam-se, preparam-se, animam-se uns aos outros, saem ao encontro do inimigo e defendem, de armas nas mãos, a liberdade, a pátria e a família. Depois de o seu valor haver afastado o perigo, deram de socorrer os aliados e amigos, granjeando amizades mais por fazer benefícios que por obtê-los. É por esses meios decorosos que Roma se desenvolve. Agradar-me-ia saber, entretanto, se no reinado de Numa, quando houve tão prolongada paz, os acometiam os inimigos e os provocavam à guerra ou nada faziam para perturbá-la. Se Roma ainda se deixava seduzir pelas guerras e não resistia às armas com as armas, dos mesmos meios de que se servia para apaziguar os inimigos, sem vencê-los em batalha alguma e sem descarregar neles seu ímpeto guerreiro, se serviria sempre, e sempre reinaria em paz, fechadas as portas de Jano. Se não esteve em suas mãos, Roma não teve paz pelo tempo que os deuses quiseram, mas pelo que os vizinhos quiseram, deixando de provocá-la à guerra, salvo se o atrevimento de tais deuses fosse tal que vendesse a determinado homem o que não depende do querer ou do não querer de outro. É verdade que importa ao vício próprio saber em que grau se permite aos demônios intimidar e instigar os espíritos perversos. Se isso, todavia, sempre lhes fosse possível e poder secreto e superior não agisse frequentemente contra seus planos, sempre teriam em suas mãos a paz e as vitórias, resultado, quase sempre, das paixões humanas. Acontecem, porém, na maioria dos casos, contra a vontade dos deuses, como provam não apenas as fábulas, que mentem com frequência e nos oferecem pequenina dose de verdade, mas também a história de Roma. CAPÍTULO XI A estátua de Apolo de Cumas, cujas lágrimas, segundo a lenda, prognosticavam a destruição dos gregos, a quem não pôde socorrer. Não há outro motivo, senão esse, para explicar as lágrimas que Apolo Cumano derramou durante quatro dias, enquanto guerreavam os aqueus e o rei Aristônico. Aterrados por semelhante prodígio, os arúspices julgaram que a estátua devia ser arrojada ao mar; mas interpuseram súplicas os anciães de Cumas e contaram prodígio semelhante operado na mesma estátua durante a guerra sustentada contra Antíoco e contra Perseu. Asseguraram, outrossim, que, por haver a boa sorte sorrido aos romanos, o Senado decretara o envio de oferendas a Apolo. Fizeram, por isso, vir outros adivinhos mais hábeis; responderam que as lágrimas da estátua de Apolo eram sinal de ventura para os romanos, justamente porque, sendo Cumas colônia grega, Apolo, banhado em lágrimas, exprimia calamidade e pranto para as terras de que o haviam trazido, isto é, para a própria Grécia. Pouco tempo depois chegou a notícia de que o rei Aristônico fora vencido e feito prisioneiro. Essa vitória era evidentemente contrária ao querer de Apolo, que dela se doía. É o que as lágrimas da estátua indicavam. Daí se deduz não serem de todo incongruentes as narrativas dos poetas, que, embora fabulosas, se aproximavam da verdade, a respeito dos costumes dos demônios. Em Virgílio, Diana condói-se de Camila; Hércules chora a iminente morte de Palante. Talvez por isso Numa Pompílio, banhado em paz e não sabendo, nem procurando saber quem lha concedia, quando pensava a que deuses confiaria a defesa da salvação de Roma e do Império e na convicção de que o Deus verdadeiro, supremo e onipotente, não se preocupa com essas coisas terrenas, se lembrou de haverem os deuses troianos, trazidos por Enéias, demonstrado impotência para conservar por longos anos o reino de Tróia e até mesmo o de Lavínio, fundado pelo próprio Enéias. Desse modo, julgou que devia prover-se de outros deuses, para juntá-los aos primeiros (quer aos que com Rômulo já haviam passado a Roma, quer aos que após a destruição de Alba, passariam), pondo-os como guardiães dos fugitivos ou coadjutores dos incapazes. CAPÍTULO XII De nada lhes serviram os inúmeros deuses que os romanos acrescentaram aos instituídos por Numa. Roma, porém, não se dignou contentar-se com essas divindades, em tão grande número instituídas por Pompílio. É que Júpiter ainda não tinha na urbe seu templo principal. Foi o rei Tarquínío quem ergueu o Capitólio. Esculápio transferiu-se de Epidauro para Roma para, como peritíssimo médico, exercer mais gloriosamente medicina em tão nobre cidade. A mãe dos deuses veio não sei de onde, de além de Pessenunte, pois era censurável que, sendo o filho senhor da colina do Capitóllo, continuasse oculta em lugar de tão pouca nomeada. Se é verdade que é mãe de todos os deuses, veio para Roma depois de alguns dos filhos e precedeu os que haviam de ir. Maravilho-me, se é verdade que é mãe do Cinocéfalo, que veio muito mais tarde do Egito. Se dela nasceu também a deusa Febre, verifique-o Esculápio, seu bisneto. Mas, seja qual for sua origem, tenho para mim que não se atreverão essas divindades exóticas a chamar plebeia deusa que é cidadã romana. Ao abrigo de tantos deuses (quem poderá enumerá-los?), naturais, adventícios, celestes, terrestres, infernais, marinhos, fontais, fluviais e, como diz Varrão, certos e incertos, deuses de todo gênero, machos e fêmeas, como entre os animais, posta Roma, torno a dizer, ao abrigo de tais divindades, não deveriam persegui-la tamanhas e tão horripilantes calamidades das quais mencionarei algumas. Com tamanha fumarada, como por meio de sinal, convocava essa grande multidão de deuses a defendê-la, construindo e dedicando-lhe templos, altares, sacrifícios, sacerdotes e ofendendo assim o supremo e verdadeiro Deus, a quem se devem, com exclusividade, semelhantes honras. Sua vida correu mais feliz com menos deuses; mas, quanto mais se ia desenvolvendo, tantos mais julgava dever instituir, como navio requer marinheiros, desconfiando, segundo penso, que aqueles poucos sob os quais vivera melhor, em comparação com a vida pior, não fossem suficientes para manter-lhe a grandeza. Contudo, sob os próprios reis, exceção feita de Numa Pompílio, de quem falei acima, não foi medonha desgraça a discórdia ensanguentada pelo assassínio de Rômulo? CAPÍTULO XIII Aliança e direito usados pelos romanos nos primeiros casamentos. Como nem Juno, que com Júpiter protegia a grei romana, que ostentaria a toga e seria dona do mundo, nem a própria Vênus puderam socorrer os descendentes de Enéias para merecerem casar-se em boa e justa lei? Chegou a tal extremo e escassez, que roubaram com dolo as mulheres, vendo-se logo depois forçados a lutar com os sogros para dotá-las, apesar de o sangue dos pais ainda não havê-las reconciliado com a injúria feita pelos maridos. Nessa pendência a vitória esteve ao lado dos romanos. Mas quantos feridos e quantas vidas, de ambos os lados, de parentes e vizinhos deve ter custado! Por causa de César e Pompeu, apenas um sogro e apenas um genro, já morta a filha de César, esposa de Pompeu, exclama Lucano com muito justo sentimento de dor: Cantamos as batalhas mais do que civis dos campos de Emátia e o direito promulgado em prol da maldade. Os romanos venceram e com as mãos banhadas no sangue dos sogros obrigaram as filhas deles a abraçá-los; elas não se atreveram a chorar os pais mortos, para não ofenderem os maridos vencedores. Durante o combate, não sabiam por quem fazer votos. Tais bodas oferendou ao povo romano não Vênus, mas Belona ou, talvez, Alecto, fúria infernal que, a despeito do favor de Juno, usou contra eles de maior licença que na oportunidade em que fora, com seus rogos, instigada contra Enéias. Mais venturoso foi o cativeiro de Andrómaca que os matrimônios dos romanos, porque Pirro, depois de haver-lhe gozado os abraços, não matou nenhum troiano. Os romanos, todavia, em seus combates davam morte aos sogros, cujas filhas já haviam abraçado em seus leitos conjugais. Aquela, joguete do vencedor, somente pôde condoer-se da morte dos seus, mas não temê-la; estas, casadas com os guerreiros, temiam a morte dos pais, quando os maridos iam ao combate, e, vendo-os de volta, deploravam-na, sem liberdade para o temor, nem para a dor. É que pela morte dos concidadãos, familiares, irmãos e pais se atormentavam ou com alegria infernal se alegravam das vitórias dos maridos. Acrescente-se que, como a sorte das guerras é eventual, umas, por causa da espada dos pais, perdiam os maridos; outras, por causa das espadas de ambos, se viam despojadas dos pais e dos esposos. E não foram de pouca monta, entre os romanos, semelhantes reveses, pois chegaram a pôr cerco à cidade e defendiam-se a portas fechadas. Abertas dolosamente e entrados os inimigos muros adentro, deu-se no próprio foro demasiado sangrenta e medonha refrega entre genros e sogros. Ao verem-se vencidos, os raptores fugiam em bandos para casa, pondo nota de fealdade inda maior nas primeiras vitórias, dignas também de rubor e pranto. Então, Rômulo, desesperando já do valor dos seus, rogou a Júpiter que se detivessem; nessa conjuntura Júpiter ganhou o cognome de Estator. Não sobreviria o fim de tamanha catástrofe, se, de cabelos em desalinho, as raptadas não se houvessem apresentado aos pais e, prostrando-se-lhes aos pés, não lhes aplacassem a justíssima ira, não com armas vitoriosas, mas com suplicantes súplicas. Enfim, Rômulo, que não quisera tolerar a companhia do irmão, se viu obrigado a partilhar a regência com Tito Tácio, rei dos sabinos. Quanto tempo, porém, o toleraria quem não tolerou o irmão, gêmeo por cima? Esse o motivo de, assassinado Tácio também.permanecer sozinho no reino, para ser um dia maior deus. Que direitos matrimoniais são esses, que razões para guerra, que modos de constituir irmandade, afinidade, sociedade, divindade? Que vida essa de cidade constituída sob a tutela de tantos deuses? Podes imaginar a quantidade de coisas que se poderiam dizer a partir desse ponto, não fosse que nossa intenção se dirige ao restante e nossas palavras se encaminham rápido para outras veredas. CAPÍTULO XIV Guerra injusta que os romanos fizeram aos albanos e vitória conseguida pela paixão de dominar. 1. Que aconteceu depois de Numa, sob o mando dos outros reis? Quantas desgraças, não somente aos seus, mas também aos próprios romanos, ocasionou o provocarem os albanos à guerra! E que a prolongada paz de Numa se mudara em vilania. Quão frequentes os estragos dos exércitos rivais e quanto menoscabo de uma e outra cidade! Alba, fundada por Ascánío, filho de Enéias, mãe de Roma, muito mais próxima que a própria Tróia, combateu provocada pelo rei Túlio Hostílío, e, em combate, afligiu e foi afligida, até que, depois de muitas refregas, se cansaram das perdas. Prouve-lhes, nesse transe, tentar o desenlace da guerra por meio de combate de três irmãos gêmeos de cada lado. Saíram a campo, da parte dos romanos, três Horácios; da parte dos albanos, três Curiácios. Os três Curiácios venceram e mataram dois Horácios, mas o Horácio sobrevivente derrotou e deu morte aos três Curiácios. Desse modo, Roma venceu, com tal baixa, porém, na contenda final, que de seis vivos que foram apenas um voltou do combate. A quem se causou o prejuízo em ambos os casos? A quem se deve o luto, senão à estirpe de Enéias, aos descendentes de Ascênío, aos filhos de Vênus, aos netos de Júpiter? Essa guerra foi, sem dúvida, mais do que civil, pois a cidade filha combateu contra a cidade mãe. Acrescente-se-lhe outro mal horrendo e cruel que seguiu à luta dos trigêmeos. Como os dois povos foram, a princípio, amigos, quer dizer, vizinhos e aparentados, uma irmã dos Horácios estava casada com um dos Curiácios. Em vendo em poder do irmão vitorioso os despojos, prorrompeu em lágrimas e foi morta pelo próprio irmão. Tenho para mim haver sido mais humano o sentimento dessa mulher que o de todo o povo romano. Creio que não chorava culpavelmente o esposo, a quem a unia a fidelidade jurada, e talvez chorasse o irmão coberto pelo sangue do homem a quem prometera a irmã. Por que se aplaudem as lágrimas que, segundo Virgílio, o piedoso Enéias derrama sobre o inimigo a quem matara? Por que Marcelo, recordando o esplendor e a glória de Siracusa, por ele mesmo esfumada pouco antes, deixou, pensando na sorte comum, escapar lágrimas de compaixão? Trata-se de pedido meu. Exijamos do sentimento de humanidade possa a esposa, sem nota de culpabilidade, chorar o marido morto pelo irmão, se é verdade haverem os homens podido chorar, louvavelmente, os inimigos por eles vencidos. Enquanto essa mulher chorava a morte que o irmão dera ao esposo, Roma nadava em júbilo por haver combatido ferozmente contra a cidade mãe e vencido com tamanha efusão de sangue irmãos de ambos os lados. 2. Louvor! Glória! Não venham alegar-me esses nomes vazios de sentido. Removidas as sombras de insensata opinião, considerem-se os acontecimentos em sua nudez, em sua nudez ponderem-se, sejam em sua nudez julgados. Citem-nos a causa de Alba, como se referia o adultério de Tróia, e não se encontrará nenhum parecido, nenhuma semelhança. Túlio somente o fez para chamar às armas os homens adormecidos na inação e as tropas, pouco habituadas ao triunfo. Esse vício foi a causa de enorme crime, a saber, a guerra entre parentes e amigos. De vício tão descomunal trata, embora de passagem, Salústio, quando após mencionar em resumo e celebrar os tempos antigos, em que os homens viviam vida sem cobiça e cada qual se contentava com o que lhe pertencia, acrescenta: Depois de começarem eira na Asia e os lacedemônios e atenienses na Grécia a senhorear-se de cidades e nações, a ter, por motivo de guerra, apetite de mando e a pensar que a glória máxima consistia em dilatado império etc. Basta-me haver citado até aqui suas palavras. Tal apetite de mando fatiga e açoita com grandes males o gênero humano. Roma, então vencida por esse apetite, congratulava-se por haver derrotado Alba e dourava a própria velhacaria com o nome de glória, porque, como dizem nossas Escrituras, o pecador se gloria dos desejos de sua alma e quem suporta a iniquidade é bendito. Despojem, pois, as coisas de seus enganosos paliativos, de seu ilusório verniz, para examiná-las com sinceridade. Ninguém me diga: Fulano é grande, porque se bateu com Beltrano e Sicrano e os venceu. Também os gladiadores lutam e vencem; também a crueza deles tem como prêmio o louvor. Mas estimo ser melhor recompensa o aborrecimento de qualquer inação que a busca de glória com semelhantes armas. Se, contudo, descessem à arena dois gladiadores, um deles o pai e o outro o filho, quem suportaria tal espetáculo? Quem não o impediria? Como, pois, pôde ser glorioso o combate havido entre duas cidades, mãe uma e filha a outra? Acaso foi diferente esse combate porque não houve arena ou porque campos mais extensos se abarrotaram de cadáveres, não de dois gladiadores, mas de muitos de ambas as nações? Ou acaso porque tais combates tinham por palco o orbe inteiro, não apenas o anfiteatro, e por espectadores os contemporâneos e os pósteros a quem chegar a fama de tão ímpio espetáculo? 3. Todavia, os deuses tutelares do Império romano, que a esses combates assistiam, como se não passassem de espetáculo teatral, foram vítimas violentadas por sua própria afeição, até a irmã dos Horácios, em respeito aos três Curiácios mortos, somada pela espada irmã aos dois irmãos, completar o número três do outro partido, para não serem menos as mortes de Roma, que vencera. Em seguida, para maior eficácia da vitória, desmantelaram Alba, onde, depois de I1ion, destruída pelos gregos, e depois de Lavínio, onde Enéias constituíra estrangeiro e fugitivo reino, os deuses troianos encontraram asilo pela terceira vez. Mas como é usança deles, talvez houvessem emigrado também dali, sendo essa a causa de haverem-na destruído. Quer dizer, haviam-se ido todos os deuses que mantinham de pé o Império, abandonando templos e altares. Haviam-se ido, sim, e pela terceira vez, a fim de Roma julgar-se providencialmente a quarta. Desagradava-lhes Alba porque reinava Amúlio, expulso o irmão, e agradava-lhes Roma, onde Rômulo, após matar o irmão, reinara outrora. Mas antes da destruição de Alba, dizem, toda a população se trasladara a Roma, para as duas cidades fundirem-se em apenas uma. Suponhamos que fosse verdade; mas a cidade, reino de Ascânio e terceira morada dos deuses troianos, sendo sua mãe, viu-se destruída pela cidade filha. E, para fazer mistura tão desafortunada dos destroços da guerra havida entre os dois povos, houve de derramar-se, primeiro, muito sangue de ambos os lados. Que direi, em particular, das guerras a que pareciam pôr fim as vitórias tantas vezes renovadas sob os outros reis, concluídas vez por outra com tamanhos desastres e mil e uma vezes repetidas depois das alianças e da paz entre os genros e os sogros, entre os descendentes de uns e outros? Não é prova pouco forte dessa calamidade que nenhum deles fechasse as portas à guerra. Em consequência, nenhum deles teve reinado pacífico sob a tutela de tantos deuses. CAPÍTULO XV Vida e morte dos reis romanos. 1. Que fim tiveram os reis? Veja-se o que de Rômulo conta a fabulosa adulação: Foi recebido no céu. Considere-se, ao mesmo tempo, o que disseram alguns de seus escritores: Por causa de ser feroz, fizeram-no em pedaços no Senado e subornaram certo Júlio Próculo para propalar que lhe aparecera e lhe ordenara dizer por si mesmo ao povo romano que o venerasse entre os deuses. Desse modo, o povo, que começara a desgostar-se do Senado, conteve-se e sossegou. Houve também eclipse do Sol e o vulgo ignorante, desconhecendo o movimento predeterminado dos astros, atribuiu-o aos merecimentos de Rômulo, como se o Sol houvesse posto luto. Portanto, não deviam continuar na crença de que fora morto e o eclipse da luz do dia era índice do crime, como deveras sucedeu quando a crueldade e impiedade dos judeus crucificaram o Senhor. Prova evidente de não haver aquele obscurecimento acontecido segundo o curso ordinário dos astros é que transcorria a Páscoa dos judeus, celebrada somente no plenilúnio, quando o eclipse regular do Sol apenas sucede no fim do quarto minguante. O próprio Cícero dá a entender com suficiência que a recepção de Rômulo entre os deuses é mais conjetura que realidade, quando em louvor desse rei diz pela boca de Cipião nos livros que compõem A República: Deixou atrás de si tal ideia, que, havendo subitamente desaparecido durante o eclipse do Sol, o acreditaram recebido entre os deuses. Nenhum mortal jamais pôde conseguir opinião igual, sem relevante grau de virtude. Com isso de afirmar que desapareceu de súbito queria sem dúvida alguma dar a entender a violência da tempestade ou o segredo mantido em torno de seu assassínio, porque alguns outros escritores acrescentam ao eclipse do Sol violenta tempestade, que ensejou ocasião propícia ao crime ou acabou com Rômulo. Na obra citada, o mesmo Cícero diz de Túlio Hostílio, terceiro rei depois de Rômulo, também fulminado a raio, que não o julgaram recebido entre os deuses por causa de semelhante morte precisamente, porque os romanos não queriam vulgarizar, isto é, desvirtuar o sucedido a Rômulo, segundo crença generalizada, atribuindo-o de maneira leviana a outro. Diz também às claras em suas Diatribes: O fundador desta cidade, Rômulo, por benevolência nossa e por causa de sua fama elevamo-lo à categoria dos deuses imortais. Isso prova não haver-se tratado de acontecimento real, mas de alarde e divulgação em reconhecimento a seus virtuosos merecimentos. No diálogo intitulado Hortênsio, falando sobre os eclipses regulares do Sol: Para produzir as mesmas trevas produzidas por ocasião da morte de Rômulo, acontecida em eclipse do Sol. Porque falava mais como filósofo do que como panegirista, nessa passagem não receou dizer que Rômulo morreu como simples homem. 2. Os demais reis do povo romano, exceção feita de Numa Pompílio e Anco Márcio, mortos de enfermidade, tiveram morte horrenda. Túlio Hostílio, como já tive oportunidade de dizer, vencedor e destruidor de Alba, foi abrasado a raio com toda a sua casa. Os filhos do predecessor de Tarquínio Prisco assassinaram-no. Sérvio Túlio foi vítima da nefanda velhacaria de seu genro Tarquínio o Soberbo, que lhe sucedeu no reino. E os deuses não fugiram, abandonando templos e altares, após o cometimento de tão grande parricídio contra o mais excelente rei desse povo. Deuses de quem se diz haver bastado o adultério de Páris para determiná-los a deixar a mísera Tróia em mãos dos gregos, para devastarem-na e incendiarem-na. Mas, além disso, o próprio Tarquínio sucedeu ao sogro, por ele assassinado. E os deuses viram reinar o vil parricida, após haver assassinado o sogro; mais ainda, viram-no tornar-se vaidoso de seus muitos combates e vitórias e construir o Capitólio com os despojos dos vencidos e não se afastaram, mas permaneceram presentes. Toleraram, além disso, que Júpiter, seu rei, presidisse e reinasse do soberbo templo, quer dizer, da obra de parricida. Não era inocente, quando construiu o Capitólio, e depois o expulsaram da cidade como prêmio de seus merecimentos; pelo contrário, graças à prática do mais inumano dos crimes chegou a reinar e nesse reinado ergueu o Capitólio. Se em seguida os romanos o destronaram e fizeram sair da cidade, não foi por haver tomado parte no estupro de Lucrecia, mas por havê-lo cometido o filho não apenas sem ele sabê-lo, como, por cima, em sua ausência. Estava, na ocasião, atacando a cidade de Ardéia, chefe guerreiro que era do povo romano. Ignoramos que atitude tomaria, caso soubesse do infame procedimento do filho. Contudo, o povo, sem inquirir, nem ouvir-lhe o parecer, expulsou-o do Império e, retirando-lhe o comando e ordenando aos soldados que o abandonassem, fechou logo as portas e não deixou entrar o rei, que, depois de com muito árduas guerras afligir os próprios romanos, sublevando contra eles os vizinhos, depois de não poder recobrar o reino, por haverem-no abandonado aqueles em cujo auxílio confiava, viveu durante catorze anos vida tranquila e retirada em Túsculo, cidade próxima de Roma. Ali, como dizem, encaneceu em companhia da esposa, morrendo de morte acaso mais desejável que a do sogro, morto de maneira velhaca pelo genro e, segundo parece, não sem ignorá-lo o filho. Esse Tarquínio os romanos não apelidaram de o Cruel ou o Assassino, mas de o Soberbo, talvez por não lhe suportarem as pompas reais, em razão doutra soberba mais refinada. Com efeito, fizeram tão pouco caso do crime de haver matado o sogro e seu mais excelente rei, que o fizeram rei. Surpreende-me pensar que se tornaram réus de mais grave crime, ao pagarem por preço tão elevado tamanho crime. E os deuses não se foram, abandonando templos e altares, exceto se alguém, para defender tais deuses, disser que permaneceram em Roma a fim de poder castigá-los com tormentos, seduzindo-os com triunfos enganadores e quebrantando-os em guerras sangrentas, mais do que para prestar-lhes auxílio com seus benefícios. Eis a vida dos romanos, vivida sob o império dos reis nos dias de maior fastígio da república, até a expulsão de Tarquínio, o Soberbo, durante quase duzentos e quarenta e três anos. Nesse tempo, apesar de todas as vitórias compradas pelo preço de tanto sangue e tantas calamidades, estenderam o império a vinte milhas apenas em torno de Roma, espaço de tal maneira insignificante que não pode hoje comparar-se com o território de qualquer cidade de Getúlia. CAPÍTULO XVI Primeiros cônsules romanos. Um deles expulsou outro da pátria e logo morreu, ferido pelo inimigo a quem ferira, depois de haverem-se perpetrado em Roma atrocíssimos parricídios. Acrescente-se a esse período aqueloutro até quando, segundo Salústio, se viveu com justiça e probidade, enquanto serviam de dique o medo a Tarquínio e a pesada guerra contra a Etrúria. Enquanto os etruscos favoreceram Tarquínio, que pretendia recobrar o reino, Roma sofreu crua guerra. Esse o motivo por que, diz, a república se governava com probidade e justiça, forçada pelo medo, não guiada pela justiça. Nesse brevíssimo lapso de tempo mostrou-se desastroso o ano em que se criaram os primeiros cônsules, depois de destronada a realeza. Não duraram sequer um ano. Júnio Bruto expulsou da cidade o colega Lúcio Tarquínio Colatino, privando-o da dignidade consular. Mas depois, em guerra contra o inimigo, ambos caíram mortos, havendo, antes, dado morte aos filhos e aos irmãos da esposa, porque lhe chegou ao conhecimento que se haviam conjurado para reivindicar a dignidade consular de Tarquínio. Virgílio, depois de contar semelhante façanha como digna de louvor, logo lhe sente piedoso horror. Após dizer: E caso os filhos queiram fazer arder a guerra, o pai saberá sacrificá-los à liberdade, logo a seguir clama e diz: Desgraçado dele, seja qual for o modo como interpretem esse ato as idades futuras! Seja como for, diz, que as gerações futuras interpretem semelhante acontecimento, isto é, apesar da admiração e dos elogios da posteridade, quem matou os filhos é desditoso. E como que para consolo do desgraçado acrescentou: O amor à pátria e a imensa paixão pela glória triunfaram. Porventura não parece vingada em Bruto, matador dos próprios filhos e assassino do filho de Tarquínio, que também deixou estendido, não podendo sobreviver e vendo sobreviver o próprio Tarquínio, não parece vingada a inocência do colega Colatino, que, embora excelente cidadão, se viu, após o desterro de Tarquínio, tratado, como o tirano, duramente? Conta-se até que o próprio Bruto era parente de Tarquínio. Mas a Colatino custou-lhe a vida a identidade de nome, pois também se chamava Tarquínio. Obrigassem-no a mudar de nome, não de pátria! Suprimisse parte do nome e se chamasse Lúcio Colatino apenas! Não perdeu, porém, o que poderia perder sem detrimento algum, a fim de que o primeiro cônsul carecesse de dignidade e Roma de excelente cidadão. Será possível que carreasse também glória a Júnio Bruto iniquidade tão exasperante e inútil, por outra parte, à república? Para cometer semelhante vilania, acaso lhe triunfaram no peito o amor à pátria e desmesurada paixão pela glória? Desterrado Tarquínio, o Tirano, Bruto foi criado cônsul com Lúcio Tarquínio Colatino, marido de Lucrecia. Com que justiça o povo não olha o nome, mas a vida honesta de semelhante cidadão! E quão injustamente Bruto, em cujas mãos esteve privar o colega apenas do nome, se esse nome o ofendia, na nova forma de governo o privou da pátria e também da dignidade consular! Esses males sucederam, tais infortúnios aconteceram, quando na referida república se vivia com moderação e justiça. Lucrécio, eleito para substituir Bruto, foi arrebatado por enfermidade antes de findar o ano. A mesma coisa aconteceu a Públio Valério, sucessor de Colatino, e a Marco Horácio, substituto do falecido Lucrécio. Ambos terminaram o ano espantoso e triste, que contou cinco Cônsules. Nesse ano a república romana inaugurou nova forma de governo, a saber, o consulado. CAPÍTULO XVII Males que afligiram a república romana depois do começo do governo consular, porque os deuses a quem se rendia culto se mostraram remissos em prestar-lhe auxílio. 1. Então, minorado o medo, não por haverem cessado as guerras, mas por não urgirem com tanta gravidade, quer dizer, encerrado o tempo em que se viveu com moderação e justiça, aconteceram os fatos em resumo explicados por Salústio: Depois os senadores começaram a submeter o povo ao jugo da escravidão, a dispor, à moda dos reis, da pessoa e da vida, a proibir-lhe a entrada no campo e a governar sozinhos o Império, sem para nada contar com os demais. Oprimido por semelhantes sevícias e, de modo especial, pela usura, suportando, entre guerras contínuas, tributos e, ao mesmo tempo, encargos militares, o povo instala-se nos montes Sagrado e Aventio e consegue lhe deem tribunos da plebe e outras garantias legais. A segunda guerra púnica pós fim às discórdias e pendências entre ambas as partes. Mas porque me demoro tanto, escrevendo isso ou citando-o a quem há de lê-lo? Dos sofrimentos da república, durante os longos anos anteriores à segunda guerra púnica, causados, fora, pela inquietude contínua das guerras e, dentro, pelas discórdias e sedições civis, dá-nos conhecimento o próprio Salústio. Esses triunfos não constituíram, assim, sólidas alegrias de gente feliz, mas enganador consolo de miseráveis, de espíritos inquietos para suportar outros mil e um males sem proveito algum. Mas não se indisponham comigo, porque o afirmo, os bons e sensatos romanos, embora não me pareça haver motivo de pedir-lhes semelhante favor, nem sequer de lembrá-lo, pois estou por demais certo de que não se indisporão. Não digo, na realidade, coisas mais fortes que seus próprios escritores, nem as digo com maior dureza que eles, de quem somos inferiores em eloquência e lazer. Todavia, para aprendê-lo, estudaram e obrigaram os filhos a estudar. A quem irritar-se comigo, pergunto: Tolerar-me-iam, se me limitasse a dizer o que diz Salústio? Sobrevieram muitas revoltas, sedições e, por fim, guerras civis, enquanto alguns potentados, que tiveram graça com os demais, mascaravam seu domínio com o especioso título de senadores do povo. Dava-se o nome de cidadão a bons e maus, não por causa do merecimento deles junto à república, pois todos estavam igualmente corrompidos, mas, segundo o poder econômico de cada qual e segundo a capacidade de prejudicar, porque defendia o presente, assim o consideravam bom. Por conseguinte, se esses historiadores opinavam que era dever da liberdade justa não silenciar os males da própria cidade, que em muitos outros lugares se viram constrangidos a enaltecer com encômios, porque não tinham outra, mais verdadeira, que desse acolhida aos cidadãos eternos, que obrigação pesa sobre nós, que, quanto melhor e mais certa nossa esperança em Deus, tanto maior deve ser nossa liberdade, ao vermos imputarem ao Cristo os males presentes, com o propósito de desviarem da única cidade em que se serve alegre e felizmente as inteligências mais fracas e crédulas? Não digo, igualmente, contra suas divindades coisas mais monstruosas que seus próprios escritores a quem elogiam, pois tomo deles quanto digo e de modo algum me julgo capaz de dizer tanto e de tal jaez. 2. Onde estavam esses deuses que julgam se lhes deva culto, por causa da mesquinha e enganadora felicidade deste mundo, quando os romanos, a quem com diabólica astúcia se entregavam para que lhes rendessem culto, se viram atormentados por tantas calamidades? Onde estavam, quando o cônsul Valério, em defesa do Capitólio sitiado, foi morto por foragidos e escravos? Foi mais fácil para Valério a defesa do templo de Júpiter, que para o bando de divindades, sem exceção de seu rei, ótimo e máximo, cujo templo deixara em liberdade, socorrê-lo. Onde estavam, quando a cidade, assoberbada pelos mais pesados trabalhos e sedições, permaneceu tranquila, à espera dos embaixadores que enviara a Atenas para trocar as leis, e se viu presa da fome e de medonha peste? Onde estavam quando o povo faminto criou pela primeira vez o prefeito do abastecimento de trigo e, tornando-se cada vez mais negra a fome, Espúrio Mélio, para prover de trigo a multidão faminta, incorreu no crime de atentar contra o reino e, a instâncias do mesmo prefeito e por ordem do ditador Lúcio Quíncio, muito entrado em anos, foi mor to por Quinto Servílio, general de cavalaria, não sem grande e perigosíssimo tumulto popular? Onde estavam, quando, declarada gravíssima peste, o povo, já cansado da inutilidade dos deuses e sem recurso algum, determinou oferecer-lhes novos lectistérnios, coisa nunca dantes vista? Isso consistia em estender no chão alguns leitos em honra dos deuses; daí o nome dessa cerimônia ou, para melhor dizer, sacrilégio. Onde estavam, quando, combatendo sem resultado algum contra os veientinos pelo espaço de dez anos, o exército romano sofrera graves e frequentes perdas, até, por fim, prestar-lhe auxílio Fúrío Camilo, depois condenado por sua ingrata cidade? Onde estavam, quando os gauleses conquistaram, saquearam, incendiaram e transformaram Roma em verdadeiro cemitério? Onde estavam, quando a famosa peste causou estragos de tal modo notáveis, que nela morreu o próprio Fúrio Camilo, defensor, primeiro, da ingrata república contra os veientinos e depois seu libertador do poder dos gauleses? Introduziram-se durante essa peste os jogos cênicos, nova peste, não para o corpo dos romanos, mas, e essa atinge o cúmulo do nocivo, para os costumes. Onde estavam, quando grassou nova peste, que teve origem, segundo suspeitavam, no veneno das matronas, muitas das quais, e entre essas as nobres, eram, coisa incrível, de costumes mais perniciosos que qualquer peste? E quando o exército com ambos os cônsules, sitiados pelos samnitas, nas forcas caudinas se viram forçados a firmar com eles vergonhoso pacto, ao extremo de, sem uniforme, armas em terra, despojados e privados doutra indumentária, terem de passar sob o jugo inimigo, depois de haverem deixado seiscentos cavaleiros como reféns? E quando, enquanto alguns sucumbiam à grave peste, outros muitos eram, em meio do exército, fulminados a raio? E quando Roma, dizimada por outra epidemia não menos pavorosa, se viu obrigada a trazer Esculápio de Epidauro, como se se tratasse de deus médico, porque ao rei de todos os deuses, a Júpiter, que no Capitólio há muito tempo assistia, os muitos estupros, principal ocupação de sua mocidade, não lhe permitiram, talvez, aprender Medicina? E quando, conjurando-se ao mesmo tempo seus inimigos, lucanos, brúcios, samnitas, etruscos e gauleses senonenses, primeiro lhe mataram os legados e depois puseram exército e pretor em tal aperto, que pereceram com ele sete tribunos e treze mil soldados? E quando em Roma, depois de prolongadas e cruéis sedições, acossado pela pilhagem hostil, afinal o povo se retirou para o monte Janículo? Tamanha a crueza dessa calamidade, que, em consequência dela, fizeram Hortêncio ditador, coisa de costume feita em casos extremos. Havendo submetido o povo, expirou no desempenho de sua magistratura, o que antes não sucedera a ditador algum e constituía para os deuses, já acompanhados por Esculápio, o mais grave delito. 3. Multiplicaram-se, então, de tal maneira as guerras, que por escassez de soldados, os proletários, que receberam tal nome porque se dedicavam à procriação de filhos, pois era tão grande sua pobreza que se tornavam inaptos para o serviço da pátria, se viram alistados no exército. Nessa emergência os tarentinos pediram socorro a Pirro, rei da Grécia, cuja fama corria mundo e que se fez inimigo dos romanos. Consultado por ele sobre o desenlace que teria o caso, deu-lhe Apolo, de modo bastante engenhoso, oráculo tão ambíguo, que, sucedesse o que sucedesse, continuaria sendo considerado divino. Disse-lhe: "Digo-te, Pirro, poder vencer o povo romano." Assim, quer Pirro fosse vencido, quer os romanos o fossem, o adivinho esperaria confiante o desenlace, fosse qual fosse. Quais e quão horrendas foram, então, as baixas de ambos os exércitos! No primeiro recontro Pirro venceu; já poderia, interpretando a seu favor o oráculo, proclamar a infalibilidade de Apolo, se em próxima batalha os romanos não saíssem vencedores. Entre tanto estrondo de guerra declarou-se epidemia entre as mulheres: antes de darem à luz os fetos já viáveis, morriam em plena gravidez. Disso, creio, escusava-se Esculápio, dizendo ser protomédico, não parteira. De igual modo morriam os animais, de tal forma que julgavam chegado o extermínio do gênero animal. Que direi do memorável inverno, intenso e cruel ao extremo de tornar-se incrível, tanto que a neve durou quarenta dias, alcançando prodigiosa altura, e o Tibre chegou a gelar? Se isso acontecesse em nossos dias, que diriam nossos inimigos, que proporções lhe dariam? Quanto não se assanhou, também, a referida peste e quantos não exterminou! Tornou-se mais intensa no ano seguinte, mostrando-se ineficaz a presença de Esculápio. Recorreram aos livros sibilinos, repositório de oráculos, em que, conta Cícero em seu trabalho intitulado Sobre a Adivinhação, se costuma dar mais crédito às duvidosas conjeturas dos intérpretes, feitas como podem ou como querem. Diziam consistir a causa da pestilência em que muitos particulares mantinham ocupados muitíssimos dos templos sagrados. Desse modo livraram Esculápio, em semelhante transe, da pecha de ser muito incompetente ou relaxado. Mas por que muitos ocuparam os templos, sem veto algum, senão porque por muito tempo ergueram preces, inutilmente, a esse numeroso bando de divindades? Assim, pouco a pouco, aqueles que frequentavam os templos os abandonaram, para que, vazios, pudessem, pelo menos, sem ofender ninguém, servir para uso dos mortais. Se esses edifícios, reconstruídos e consertados com todo o carinho naqueles dias, como que para conjurar a peste, depois não caíssem de igual modo no esquecimento, abandonados e usurpados, não haveria motivo algum para atribuir-se aos grandes conhecimentos de Varrão o haver em escritos exumado tantas coisas desconhecidas sobre esses lugares consagrados aos deuses. É que na ocasião procuravam especiosa escusa para os deuses, não remédio eficaz para a peste. CAPÍTULO XVIII Narrativa dos inúmeros infortúnios que atormentaram os romanos no tempo das guerras púnicas, apesar de pedida com insistência, mas inutilmente, a proteção dos deuses. 1. Já durante as guerras púnicas, quando a vitória, incerta e flutuante, oscilava entre um e outro exército e os dois povos, cada qual mais poderoso, moviam entre si e contra si duras e custosas campanhas, quantos vizinhos menos poderosos não foram esmagados! Quantas cidades populosas e ilustres, destruídas! Quantas, aflitas e menoscabadas! Quantas terras e regiões de todo o orbe, arrasadas! Quentes vencidos aqui e quantos vencedores ali! Quantos homens pereceram, quer soldados em combate, quer de povos não dados às armas! Quantos navios avariados em batalhas navais e quantos afundados por diversas e várias tempestades! Se quiséssemos contar ou referir todos esses desastres, viríamos a ser historiadores. Em transes de tal maneira apurados, Roma, espavorida em grande escala, corria, pressurosa, em busca de remédios ineficazes e risíveis. Apoiados na autoridade dos livros sibilinos, renovaram os jogos seculares, cuja celebração, instituída de cem em cem anos e de memória relegada ao esquecimento em dias venturosos, já passara à História. Os pontífices renovaram também os jogos consagrados aos deuses infernais, que os anos prósperos haviam extinguido. De fato, com a renovação e enriquecimento deles, conseguidos à custa de tantos mortos, os espíritos infernais refocilavam-se no jogo, enquanto, é verdade, os míseros mortais, combatendo-se violentamente, com sangrento arrojo e fúnebres vitórias daqui e dali, celebravam grandes jogos dos demônios e opulentos banquetes do inferno. O mais lamentável acontecimento da primeira guerra púnica consistiu em serem vencidos os romanos, sendo preso o próprio Régulo, de que fizemos menção nos dois livros anteriores, homem ilustre de verdade e antigo vencedor e pacificador dos cartagineses. Poria fim à primeira guerra púnica, se por excessiva cupidez de louvor e glória não impusesse aos cartagineses, já cansados, condições que lhes superavam as forças. Se o inesperadíssimo cativeiro desse herói, a indigníssima escravidão, o fidelíssimo juramento e a morte crudelíssima dele não forçaram os deuses a enrubescer de vergonha, é porque na verdade são de bronze e não lhes corre sangue nas veias. 2. Não faltaram tampouco, nesses dias, males gravíssimos dentro das muralhas. Extraordinária enchente do rio Tibre derrubou quase toda a parte baixa da cidade; o furor torrencial das águas causou parte do estrago e a água que, deslizando suavemente, simulava imenso lago, fez o resto. A essa praga seguiu-se outra mais nociva, a do incêndio, que, começando sua ação destruidora pelos mais altos edifícios do Foro, não perdoou nem o templo de Veste, que lhe era tão familiar e onde as virgens, mais réprobas que honradas, costumavam manter sempre vivo o fogo, atiçando-o com extremo carinho. E então o fogo não apenas se mantinha vivo, mas também se enfurecia. As chispas atemorizaram as virgens, que não puderam salvar do incêndio os deuses fatais que já haviam humilhado três cidades, moradas suas, em épocas anteriores. Esquecendo-se, por instantes, da própria vida, o pontífice Metelo irrompeu nas chamas e tirou-os, saindo chamuscado. Nem o fogo o reconheceu, nem havia divindade que, se ali estivesse, não fugisse. Mais útil foi, de fato, o homem aos deuses de Vesta que os deuses ao homem. Se, por conseguinte, se revelaram impotentes para defenderem-se do fogo, como poderiam blindar a cidade, de cuja integridade se julgavam defensores, contra as águas e as chamas? A própria realidade encarregou-se de provar-lhes a nulidade. Nossas objeções não teriam cabimento, caso dissessem não haverem esses deuses sido criados para pôr a salvo os bens temporais, mas para representar os eternos. Assim, quando se perdessem, como se tratava de coisas corpóreas e visíveis, não se desacreditaria coisa alguma o fim para que foram instituídos e poderiam ser reparados de novo para os citados casos. Com surpreendente cegueira, porém, estavam na crença de que o não fenecimento da salvação terrena e felicidade temporal de Roma poderiam obtê-lo de deuses perecíveis. Desse modo, quando se lhes enfia pelos olhos adentro que, mesmo ficando a salvo os deuses, não se conseguiu a salvação ou sobreveio a infelicidade, envergonham-se de abjurar sentimentos que não podem defender. CAPÍTULO XIX Aflição causada pela segunda guerra púnica, em que se esgotaram as forças de ambas as partes. Levaríamos verdadeira eternidade resenhando os desastres causados na segunda guerra púnica por esses dois povos, que tanto e em tantas partes se combateram, ao extremo de, segundo confissão dos que se propuseram não tanto escrever a história das guerras romanas, quanto elogiar-lhe o império, mais parecer vencido o vencedor. Aníbal surge do fundo da Espanha, passa os Pireneus, atravessa a França, transpõe os Alpes e, engrossando-se-lhe as forças à medida que ia dando a longa volta, arrasou e subjugou tudo e irrompeu na Itália como torrente de inundação. Quantas guerras e quão sangrentas se travaram e quão rudes combates! Quantas cidades se renderam ao inimigo e quantas foram tomadas e saqueadas à força! Quão duras batalhas e quão gloriosas tantas vezes para Aníbal, com quebrantamento dos romanos! Que direi da derrota de Canas, maravilhosa de hediondez, em que Aníbal, apesar de sobremaneira cruel, já estando a jorrar o sangue de seus mais encarniçados inimigos, mandou, segundo se diz, perdoá-los? Dali enviou a Cartago três alqueires de anéis de ouro, para dar a entender que fora tamanha a mortandade de romanos dos mais nobres naquela batalha, que era mais fácil medi-la que contá-la e para daí concluir-se, mais por conjetura que por informe, qual a da plebe, que se encontrava sem anel, mais numerosa quanto mais débil. A esse acontecimento seguiu-se tal escassez de soldados, que os romanos abriam mão dos reféns inimigos, oferecendo-lhes o perdão, e deram liberdade aos escravos; com esses infames não preencheram os claros do existente, mas levantaram novo exército. Aos escravos, melhor diríamos, para não injuriá-los, aos libertos, que haviam de lutar pela república romana, faltavam armas. Furtavam-nas dos templos, que era como se os romanos dissessem aos deuses: Deixai o que por tanto tempo conservastes em vão, a fim de nossos escravos poderem fazer algo de útil com o que, apesar de nossos deuses, nada pudestes fazer. Então, faltando dinheiro público para pagar as tropas, a economia dos cidadãos passou a servir a usos públicos; cada um deles deu o que possuía, ao extremo de o próprio Senado não reservar para si nada de ouro, salvo cada senador seu anel e sua bula, míseras insígnias da dignidade consular. Que dizer das demais classes de tribo? Quem suportaria o furor dos hereges, se em nossos dias se vissem reduzidos a tal indigência, quando apenas os tolera agora que, por supérfluo prazer, aos histriões dão mais que deram, na oportunidade devida, às legiões para salvarem a república naquele transe extremo? CAPÍTULO XX Destruição dos saguntinos, a quem, apesar de morrerem por conservar a amizade com os romanos, os deuses destes não auxiliaram. Mas de todos os males da segunda guerra púnica nenhum mais desventurado, nem mais digno de lamento que a destruição dos saguntinos. Destruíram essa cidade espanhola, tão afeiçoada ao povo romano, por haver-se-lhe conservado fiel. Estribado nisso e rompida a aliança com os romanos, Aníbal procurou pretexto para provocá-los à guerra. Sitiou de maneira bárbara Sagunto. A notícia do fato correu em Roma, que enviou embaixadores a Aníbal para que levantasse o cerco. Desatendidos, encaminhamse a Cartago, queixam-se do rompimento da aliança e, sem nada concluírem, voltam para Roma. Enquanto se deram esses passos, a mísera cidade, muito próspera e querida pela república cartaginesa e pela romana, foi destruída pelos cartagineses no oitavo ou nono mês de sítio. Causa horror ler a ruína de Sagunto. Quanto mais escrevê-la! Todavia contá-la-ei em resumo, por tratar-se de dado importante para o fim que nos propusemos. Consumiu-se, a princípio, de fome, pois contam que alguns se alimentaram dos cadáveres dos próprios companheiros. Depois, enfastiados de todas as coisas, para não render-se cativa às mãos de Aníbal, se fez em plena praça enorme fogueira, em cujas chamas arrojaram todos os passados à espada, quer cartagineses, quer romanos. Por que não fizeram algo aqui os deuses embusteiros e glutões, famintos da gordura dos sacrifícios, que seduziam com a tenebrosidade de enganadoras adivinhações? Fizessem algo, acorreriam à cidade amicíssima do povo romano e não permitiriam perecesse quem, fiel à palavra empenhada, se entregava à morte. Haviam servido de intermediários, quando por meio de pacto se uniu à república romana. Fiel ao pactuado em presença dos deuses, pacto que abraçara com fidelidade e firmara com juramento, viu-se cercada, ocupada e destruída por traidor. Se mais tarde os próprios deuses, com tempestades e raios, semearam o terror em Aníbal, próximo das muralhas de Roma, e o fizeram retroceder, esse era o momento propício para fazê-lo pela primeira vez. Atrevo-me a dizer que com maior justiça poderiam aumentar a tempestade em prol dos aliados de Roma, postos em risco de perecer, para não quebrantarem a fidelidade aos romanos, e desprovidos de qualquer socorro, que em prol dos romanos que pelejavam por si e se sentiam poderosos contra Aníbal. Se fossem, na verdade, protetores da felicidade e da glória de Roma, afastariam dela a vergonha indelével da ruína de Sagunto. Mas agora se vê com quanta ignorância julgamos que Roma não tomou o caminho da ruína, porque a defendiam deuses impotentes para socorrer Sagunto, fazendo que não perecesse por causa da amizade que lhe tinham. Se Sagunto fosse cristã e padecesse algo semelhante pela fé evangélica, embora sem prejudicar-se com a espada e o fogo, se suportasse a própria destruição pela fé evangélica, suportá-la-ia com a esperança com que acreditou em Cristo, não fundada no prêmio de brevíssimo tempo, mas de eternidade sem-fim. Em favor desses deuses, a quem, segundo contam, prestam culto e buscam, para isso, apenas garantir a felicidade de bens transitórios e fugazes, que nos alegarão seus defensores para escusá-los da ruína dos saguntinos, se não o mesmo que alegaram para a morte de Régulo? É verdade que com esta única diferença: no segundo caso tratava-se de um homem apenas; no primeiro, de uma cidade inteira; em ambos, porém, a causa da morte foi a observância da fidelidade. Por isso, o homem quis volver aos inimigos e não quis a cidade transigir nessas coisas. Logo, a fidelidade provoca a ira dos deuses? Ou podem, sendo propícios os deuses, perecer não somente alguns homens, mas cidades inteiras? Escolham o que lhes agradar da alternativa. Mas se, tendo-os propícios, podem perecer homens e cidades, atormentados por muitas e duras aflições, é certo que em vão os adoram com vistas à felicidade presente. Cessem, pois, de orgulhar-se os que acreditam havê-los tornado desditosos a perda das solenidades dos deuses, porque podem, mesmo estando presentes e, ainda por cima, com o favor deles, não murmurar, como agora, de tal miséria, mas, como então Régulo e os saguntinos, até morrer atormentados de modo horrível. CAPÍTULO XXI Ingratidão da cidade de Roma para com Cipião, seu libertador, e costumes em que vivia, quando Salústio a descreveu ótima. Entre a segunda e a terceira guerra púnica, ocasião em que, segundo Salústio, os romanos viveram em ótimos costumes e máxima concórdia (passo por alto muitas coisas, em atenção ao plano da presente obra), nesse tempo de ótimos costumes e máxima concórdia, Cípíão, famoso libertador de Roma e da Itália, que rematou gloriosa e milagrosamente a segunda guerra púnica, tão sangrenta e perigosa, vencedor de Aníbal e dominador de Cartago, homem cuja vida se descreve como entregue desde a mocidade aos deuses e educada nos templos, cedeu às acusações dos inimigos. E, carecendo da pátria que salvara e libertara por seu valor, passou os últimos dias em Literno, onde os terminou, depois de triunfo brilhante, indiferente e sem desejo de retomar a Roma. Conta-se haver mandado que nem sequer lhe fizessem os funerais na ingrata cidade, quando morto. Depois disso, por obra do procônsul Cneio Mánlio, que triunfou sobre os gálatas, se insinuou em Roma o fausto asiático, pior que qualquer outro inimigo. Conta-se que se viram, então, pela primeira vez, leitos de bronze e preciosos tapetes; então, nos banquetes se introduziram moças que cantavam e outros licenciosos atrevimentos. Mas agora é intenção minha tratar dos males que os mortais necessariamente padecem, não daqueles que fazem de bom grado. Daí o estar muito de acordo com nossas palavras o que contei de Cípião, que morreu vítima do furor inimigo, longe da pátria por ele libertada, pois os deuses romanos, de cujos templos expulsou Aníbal, não lhe corresponderam, depois de haver prestado culto apenas pela felicidade presente. Mas, como Salústio disse haverem naquele tempo florescido ótimos costumes, julguei dever aludir ao do fausto asiático, para entender-se que Salústio falava, comparando esse com os outros tempos, em que sem dúvida se multiplicaram, em meio de gravíssimas discórdias, costumes piores. Então, quer dizer, entre a segunda e a última guerra cartaginesa, se promulgou a célebre Lei Vocônia, que proibia às mulheres se tornarem herdeiras, embora filha única. Não sei se poderá dizer-se ou imaginar-se lei mais injusta que essa. Contudo, no intervalo das duas guerras púnicas, a desventura tornou-se mais tolerável. O exército sofria derrotas apenas nas guerras externas, mas consolava-se com as vitórias, e em casa não havia discórdia alguma, como antes. Na última guerra púnica, de uma só investida a êmula do Império romano foi cortada pela raiz por Cipião, que por isso recebeu o cognome de "o Africano". Depois, tamanha afluência de males vexou a república romana, que a prosperidade e a segurança, causas da excessiva corrupção de costumes, origem de tão grandes calamidades, puseram de manifesto haver a súbita destruição de Cartago sido mais nociva que a inimizade antiga, por tanto tempo alimentada. Omito nesse período os mil e um desastres bélicos, devidos a várias causas, e a violada aliança numantina, até chegar a César Augusto, que parece haver arrancado ao povo romano toda a liberdade, gloriosa na opinião deles, mas contenciosa e arriscada e, na verdade, abastardada e lânguida, e, avocando tudo ao arbítrio real, instaurou e renovou de certa maneira a república, já encarquilhada pelos achaques da velhice. Voaram da gaiola os frangos e deram, segundo contam, mau agouro ao cônsul Mancino, como se, durante os longos anos em que a cidadezinha sitiada afligira o exército romano (e começava agora a ser o terror da república romana), se houvessem lançado contra ela outros com mau agouro. CAPÍTULO XXII Decreto de Mitridates em que se mandava matar todos os romanos encontrados na Asia. Isso, porém, digo, passo em silêncio, embora não silencie haver Mitridates, rei da Ásia, mandado matar em um dia apenas todos os cidadãos romanos da Ásia, onde quer que se encontrassem, e outra multidão de homens entregues a negócios. Assim se fez. Que espetáculo miserável oferecia a morte inesperada e cruel de quem quer que fosse surpreendido onde quer que fosse: no campo, na estrada, na cidade, em casa, na rua, na praça pública, no templo, na cama, na mesa! Quantos gemidos de moribundos, quantas lágrimas de quem os via, quantas, talvez, de quem os executava! Que dura necessidade a dos hóspedes, não apenas de ver tão criminosas mortes em casa, mas também de executá-las, mudando de súbito o rosto, passando de afável e branda humanidade a executores pacíficos de tão hostil negócio, mudando-se, por assim dizer, os ferimentos: o golpeado é ferido no corpo, o golpeador no espírito! Acaso desdenharam todos os augúrios? Acaso não tinham deuses domésticos e deuses públicos a quem consultar, quando de sua terra partiram para a peregrinação de que não puderam voltar? Se é assim, não têm por que lastimar-se no presente transe de nossos tempos. Outrora, os romanos desdenharam semelhantes futilidades. Se os consultaram, respondam-nos que lhes aproveitaram tais vaidades, quando somente pelas leis humanas, sem proibição contrária, foram lícitas. CAPÍTULO XXIII Males internos que afligiram a república romana e foram precedidos por fenômeno consistente em tornarem-se hidrófobos todos os animais a serviço do homem. Recordemos brevemente, de acordo com nossas possibilidades, males tanto mais lamentáveis quanto mais internos: as discórdias civis ou, para melhor dizer, incivis, não já sedições, mas verdadeiras guerras cívicas, em que se derramava tanto sangue, onde o amor a determinado partido se transformava em ódio assanhado contra o outro, não através de acaloradas disputas e invectivas, mas a sério, com espada e armas. Quanto sangue romano derramaram as guerras sociais, as guerras civis, as guerras servis! Quanta desolação e orfandade semearam na Itália! Antes de os aliados do Lácio moverem suas hostes contra Roma, todos os animais domésticos, cachorros, cavalos, burros, bois e outros que se encontram sob o domínio do homem enfureceram de repente e, esquecidos da mansuetude doméstica, abandonando as casas, vagavam soltos e evitavam a aproximação de quem quer que fosse, estranho ou o próprio dono, isso com prejuízo ou perigo para quem os perseguisse de perto. De quanto mal isso não se revelou presságio, se esse sinal foi tamanha desgraça, embora não fosse sinal? Se tal coisa acontecesse em nossos tempos, teríamos de aguentar a fúria dos hereges de hoje, mais danados que aqueles animais. CAPÍTULO XXIV Discórdia civil provocada pelas sedições dos Gracos. Deram começo às guerras civis as discórdias dos Gracos, provocadas pelas leis agrárias, que queriam repartir ao povo os campos possuídos injustamente pela nobreza. Mas pretender extirpar injustiça tão antiga tornava-se muito arriscado, melhor diria, como a experiência ensinou, muito pernicioso. Quantas mortes seguiram à morte do primeiro Graco e quantas, pouco depois, à do irmão! A nobres e plebeus davam morte, não amparados pelas leis e por ordem da autoridade, mas durante as revoltas e conflitos armados. Conta-se que, após a morte do segundo Graco, o cônsul Lúcio Opímio, que levantara a cidade em armas contra ele, aprisionando-o e matando-o em companhia de aliados, fez enorme matança de cidadãos. Procedendo, a seguir, por via judiciária e perseguindo os demais, condenou à morte três mil homens. Donde se conclui a grande multidão de vítimas que poderia haver sucumbido nesse turbulento choque de armas, quando foram tantas as causadas nos tribunais, a cujo conhecimento chegamos por estimativa. O linchador de Graco vendeu sua cabeça ao cônsul por tanto ouro quanto o peso dela, porque assim fora pactuado antes da morte. Nessa revolta mataram também Marco Fúlvio e os filhos. CAPÍTULO XXV Templo edificado à Concórdia por decreto do Senado, no mesmo lugar das sedições e das mortes. Por decreto, sem dúvida gentil, do Senado, erigiu-se templo à Concórdia no mesmo lugar onde morreram tantos e tantos cidadãos de toda classe social, para que, testemunha do suplício dos Gracos, ferisse os olhos dos oradores e sua lembrança os afligisse. Que significava isso, senão zombar dos deuses, erguendo templo à deusa que, se estivesse na cidade, esta não cairia desgarrada por tamanhas dissensões? Salvo se, porventura, sendo a Concórdia culpada desse crime, por abandonar o coração dos cidadãos, merecesse ser encerrada no templo, como em verdadeira prisão. Por que, se queriam acomodar-se aos acontecimentos, não ergueram, de preferência, templo à Discórdia? Que razões alegam para que a Concórdia seja deusa e não o seja a Discórdia, boa aquela, segundo a distinção de Labeão, e má esta? Nem parece guiado por outra razão que a de haver reparado existir em Roma templo dedicado à deusa Febre e outro à deusa Saúde. Para serem consequentes, deveriam dedicá-lo não apenas à Concórdia, mas também à Discórdia. Constitui risco quererem os romanos viver sob a cólera de deusa tão má. Não se lembraram de que ofensa feita a ela deu origem à destruição de Tróia. Ela, em pessoa, porque não convidada a ter parte entre os deuses, tramou a discórdia entre as deusas, utilizando-se da impostura da maçã de ouro, de que nasceram a contenda entre as divindades, a vitória de Vênus, o rapto de Helena e a destruição de Tróia. Em consequência, se, talvez indignada, armava tanto barulho na cidade, porque os deuses não se dignaram erguer-lhe templo na urbe, com quanto maior crueldade pôde encolerizar-se, vendo no lugar da matança, isto é, no lugar de sua obra, templo levantado à adversária? As risadas que damos dessas vaidades escandalizam doutos e sábios; os adoradores de divindades boas e das más, todavia, não abandonam este dilema da Concórdia e da Discórdia: esqueceram-se do culto a essas deusas e antepuseram-lhes Febre e Belona, para quem construíram os antigos templos, ou renderam-lhes culto, quando, retirando-se a Concórdia, a sanhuda Discórdia os conduziu às guerras civis. CAPÍTULO XXVI Diversas guerras que seguiram à ereção do templo da Concórdia. Insigne barreira contra as sedições parecia-lhes o pôr frente aos oradores o templo da Concórdia, como testemunha da trágica morte dos Gracos. Índice do proveito de tal expediente foram os males piores que se seguiram. Dali por diante os oradores não procuraram evitar o exemplo dos Gracos, mas intentaram ultrapassá-lo. Assim, Lúcio Saturnino, tribuno do povo, e Caio Servílío, pretor, e, muito depois, Marco Druso, deram origem a sedições a que seguiram, primeiro, gravíssima carnificina e as acesas guerras sociais que afligiram terrivelmente a Itália e a reduziram a pasmosa desolação e ruína. Sucederam-lhes a guerra servil e as guerras civis, em que se travaram tantos combates e se derramou tanto sangue, que quase todos os povos da Itália, componentes da principal força do Império romano, se viram subjugados com bárbara barbárie. Tão logo se declarou a guerra dos escravos, de pouquíssimos gladiadores, que não chegavam a setenta, crescendo em número, crueldade e bravura, quantos os capitães do povo romano vencidos por esse reduzido número e quantas as cidades e regiões devastadas! Apenas historiadores podem explicá-la de modo satisfatório. E a guerra servil não constitui exclusividade daqui; os mesmos escravos despovoaram a província da Macedônia, depois a Sicília e a costa marítima. Quem poderá pintar, de acordo com sua grandeza, a quantidade e a hediondez dos latrocínios cometidos no princípio e depois nas acirradas guerras dos piratas? CAPÍTULO XXVII Guerras civis entre Mário e Sila. Quando Mário, já tinto de sangue fraterno, depois de haver matado muitos do partido contrário, fugiu, derrotado, da cidade, esta respirou mais desafogada e, para usar as palavras de Túlio, Cina tornou a vencer com Mário. Então, com a morte de homens tão esclarecidos, se extinguiram os luminares da cidade. Sila vingou depois a crueldade dessa vitória, não se sabe à custa de quantos cidadãos e de quanta inquietude para a república. Dessa vingança, mais prejudicial, por certo, que se houvessem ficado impunes os crimes que foram castigados, diz Lucano: Excedeu-se o remédio e abundou demasiado por onde quer que se propagasse a mão da enfermidade. Pereceram os culpados. Mas, quando apenas podiam sobreviver os culpados, deu-se liberdade aos ódios e a ira correu desenfreada e sem as limitações das leis. Nas guerras entre Mário e Sila, excetuados os que sucumbiram fora nos campos de batalha, dentro da própria cidade encheram-se de cadáveres as vielas, ruas, praças públicas, teatros e os templos, de tal forma a ser difícil julgar quando os vencedores praticaram maior tumulto, se antes, para vencer, ou depois, por haver vencido. Tendo Mário voltado do desterro e durante sua vitória, sem contar os inúmeros assassinatos cometidos por toda parte, colocou-se nas tribunas a cabeça do cônsul Otávio; César e Fímbria foram assassinados em casa; passaram à espada os Crassos, pai e filho, frente a frente; Bébio e Numitório deixaram as entranhas por onde foram arrastados com garfos; Catulo tomou veneno, fugindo assim às mãos dos inimigos, e Mérula, flâmine de Júpiter, cortando as veias, fez a Júpiter libação do próprio sangue. Em presença de Mário dava-se morte, na mesma hora, a quem quer que, ao saudá-la, não conseguisse apertar-lhe a mão. CAPÍTULO XXVIII Vitória de Sila, vingador da crueldade de Mário. A vitória de Sila, que seguiu a essa e, com efeito, lhe vingou a crueldade, depois de tanto sangue cidadão, a cuja custa fora conseguida, recrudesceu durante a paz e, terminada a guerra, avivaram-se as inimizades. Às antigas e recentíssimas mortes de Mário, o Velho, acrescentaram outras mais graves Mário, o Jovem, e Carbon, pertencente ao mesmo partido que Mário. Vendo-se atacados por Sila e desesperando não apenas da vitória, mas também de salvar a vida, cobriram tudo de mortes, próprias e alheias. Além do estrago causado em toda parte, cercaram o Senado, e da cúria os conduziam à espada, como de verdadeira prisão. O pontífice Múcio Cévola foi degolado aos pés da ara do templo de Vesta, lugar dos mais sagrados para os romanos, e quase chegou a apagar com o sangue o fogo que continuamente ardia mercê dos cuidados constantes das virgens. Depois, Sila entrou vitorioso na cidade, onde, na granja pública, encarniçando-se, não a guerra, mas a própria paz, derribou, não com armas, mas com mandado, sete mil que se lhe haviam entregue (inermes, por conseguinte). Como em toda a cidade os partidários de Sila matavam quem lhes dava na veneta, era de todo impossível contar os mortos, até que insinuaram a Sila dever deixar alguns com vida, para que os vencedores tivessem a quem dar ordens. Então, freada a furibunda licença da degola, que acontecia aqui e ali a cada passo, colocaram em lugar público, com aplausos gerais, a lista que continha o nome de duas mil pessoas das duas classes nobres, a saber, da equestre e da senatorial, que deviam ser assassinadas e proscritas. O número contristava, mas o modo consolava: não era tanta a dor por caírem esses, quanta a alegria de os restantes não precisarem temer. Todavia, a segurança, embora cruel, dos demais não deixou de sofrer engenhosos gêneros de suplício impostos aos condenados à morte. A este, sem espada despedaçaram à mão limpa; homens dilaceraram um homem vivo com maior fereza com que feras esquartejariam um cadáver. Viu-se outro na dura necessidade de viver por longo tempo ou, para melhor dizer de morrer em tormentos tais, como, por exemplo, com os olhos arrancados e os membros cortados um a um. Puseram-se em hasta pública algumas nobres cidades como se fossem granjas. Uma, como se se mandasse a um delinquente apenas, recebeu ordem de ser passada a fio de espada. Tudo isso aconteceu em tempo de paz, depois da guerra, não para apressar a obtenção da vitória, mas a fim de não se desprezar a conseguida. A paz contendeu com a guerra sobre a crueldade e esta saiu vencedora. Aquela deu em terra com os armados, esta com os inermes. A guerra fazia com que aquele que fosse ferido, se pudesse, ferisse; a paz, contudo, fazia, não que aquele que escapasse vivesse, e sim que aquele que morresse não oferecesse resistência. CAPÍTULO XXIX Paralelo entre a invasão dos godos e as calamidade que os romanos receberam dos gauleses ou dos autores das guerras civis. Que sadismo de povos estrangeiros, que sevícia dos bárbaros pode comparar-se a essa vitória de cidadãos sobre cidadãos? Viu Roma coisa mais funesta, mais tétrica e mais amarga? Podem medir-se porventura a antiga invasão dos gauleses e, pouco faz, a dos godos com a força de Mário, de Sila e de outros renomados homens de seu partido, que eram como que seus luzeiros? É verdade que os gauleses passaram à espada o Senado e tudo quanto dele puderam encontrar em toda a cidade, fora da colina do Capitólio, que se defendeu sozinha como pôde. Mas aos refugiados nessa colina concederam, pelo menos, a preço de ouro, a vida, que, embora não houvessem podido tirar com a espada, puderam consumir no cerco. Os godos perdoaram a vida a tantíssimos senadores, que nos causa muitíssima estranheza haverem dado morte a algum. Mas Síla, ainda em vida de Mário, entrou vitorioso no mesmo Capitólio, respeitado pelos próprios gauleses, para decretar mortes. E quando Mário se entregou à fuga e voltou mais cruel e desumano ainda, no Capitólio, por decreto do Senado, privou muitíssimos da vida e dos haveres. Que havia de sagrado e digno de perdão para os partidários de Mário, na ausência de Sila, quando não perdoaram nem Múcio, seu concidadão, senador e pontífice, abraçado com mísero abraço ao altar onde se encontravam, como dizem, os destinos de Roma? A última lista de Sila, para omitir outras inúmeras mortes, cortou a cabeça de mais senadores que quantos os godos puderam espoliar. CAPÍTULO XXX Enlace das gravíssimas e inúmeras guerras que precederam o advento de Cristo. Com que cara, com que coração, com que atrevimento, com que ignorância ou, para melhor dizer, com que loucura não atribuem aquelas às suas divindades e estas a nosso Cristo? As cruéis guerras civis, mais amargas, segundo a própria confissão de seus autores, que quaisquer guerras inimigas, por causa das quais a república não se julgou apenas atormentada, mas também perdida em absoluto, nasceram muito antes do advento de Cristo. Em virtude do entrosamento das malvadas causas, da guerra de Mário e de Sila passa-se às guerras de Sertório e Catilina. Daí à guerra de Lépido e Catulo; um deles queria ab-rogar os feitos de Slla, o outro, mantê-los. Dessa à de Pompeu e César; Pompeu fora partidário de Sila, igualara-lhe o poder e até mesmo o superara; em troca, César não tolerava a grandeza de Pompeu, mas era porque não a possuía. Todavia, morto aquele, excedeu-o. Daí chegamos a outro César, depois chamado Augusto, sob cujo império nasceu Cristo. O próprio Augusto empreendeu muitas guerras civis, em que pereceram tão ilustres homens, como Cícero, eloquente artífice do modo de governar a república. A Caio César, vencedor de Pompeu, que usou com tamanha piedade de sua vitória civil e deu aos adversários a vida e a dignidade, conjurando-se contra ele alguns nobres senadores, costuraram a punhaladas, como se aspirasse ao reino, sob o pretexto de manter a liberdade da república. Parecia aspirar-lhe ao poder Antônio, muito diferente dele nos costumes, infetado e corrompido por toda espécie de vícios, a quem Cícero se opôs com vigor, em nome também da liberdade da pátria. Então apareceu outro César, moço de admirável caráter, filho adotivo do já referido Caio César, que, como afirmei, se chamou Augusto. Cícero favorecia o jovem César para que aumentasse seu poder contra Antônio, na esperança de instaurar a liberdade da república, desterrada e destronada a tirania de Antônio. Tão cego e tão pouco previsor do futuro se revelou, que o mesmo jovem cujo poder e dignidade promovia permitiu, assim como que por verdadeira capitulação de concórdia, pudesse Antônio dar morte a Cícero e lhe submeteu ao império a própria liberdade da república, pela qual o famoso tribuno tanto clamara. CAPÍTULO XXXI Significa deslavada sem-vergonhice atribuir a Cristo os atuais desastres porque não se lhes permite o culto aos deuses, quando é certo haverem tamanhas calamidades existido no tempo em que lhes tributavam culto. Acuse os deuses de tamanhos males quem quer que se mostre desagradecido a nosso Cristo por tamanhos bens. É inegável que, quando esses males sucediam, brilhavam os altares dos deuses, exalavam o perfume do incenso sabeu e das frescas grinaldas, sobressaíam os sacerdócios e resplandeciam os lugares santos. Sacrificava-se, jogava-se, faziam-se loucuras nos templos, quando a cada passo os cidadãos derramavam tanto sangue dos próprios cidadãos, não apenas nos demais lugares, mas até junto dos altares dos deuses. Cícero não procurou templo para refugiar-se, porque inutilmente o buscara Múcio. Esses, porém, que com muito maior vileza zombam dos templos cristãos, refugiaram-se nos lugares dedicados a Cristo ou foram levados até lá pelos próprios bárbaros, a fim de continuarem vivendo. Sei disso e isso poderá com extrema facilidade ficar sabendo quem quer que o julgue com imparcialidade e sem paixão. E, para omitir muitas coisas, umas já referidas e outras, muito mais numerosas, que achei demasiado contar, se a humanidade houvesse recebido a doutrina cristã antes das guerras púnicas e acontecesse tamanho estrago como o quebrantamento da Europa e da África, nenhum desses que agora toleramos atribuiria esses males a outra causa, senão à fé cristã. A voz deles seria muito mais intolerável, no tocante aos romanos, se ao recebimento e à expansão da doutrina cristã seguissem a invasão dos gauleses, a desolação de campos e povoados, causada pelo rio Tibre e pelo fogo ou, coisa que ultrapassou todos esses males, as guerras civis. Todos os outros males acontecidos, tão incríveis que foram considerados prodígios, se sobreviessem nos tempos cristãos, a quem os atribuiriam, senão aos cristãos? Silencio acontecimentos mais admiráveis que prejudiciais: bois que falavam, crianças, ainda não nascidas, que pronunciaram algumas palavras no ventre materno, serpentes que voaram, fêmeas de animais, galinhas e homens que mudaram de sexo e outras coisas assim, que em seus livros, não nos fabulosos, mas nos históricos, quer verdadeiros, quer falsos, não causam prejuízo aos homens, mas espanto. Também que choveu terra e choveu greda e pedras, não o que a gente costuma chamar granizo, mas pedras mesmo, coisas que, sem dúvida, podem causar grave dano. Lemos neles que, escorrendo fogo do Etna, do cimo do monte até a costa vizinha, o mar ferveu tanto, que se abrasaram as rochas e se derreteu o pez dos navios. Isso, na realidade, causou leve prejuízo, embora incrivelmente maravilhoso. Outra vez, por causa do ardor do fogo, escrevem que a Sicília se cobriu de tal quantidade de cinza, que as casas da cidade de Catânia caíram por terra, recobertas e sepultadas. Comovidos por semelhante calamidade, os romanos misericordiosamente lhe perdoaram o tributo naquele ano. Consignaram também, por escrito, que na África, quando já era província romana, pousou praga de gafanhotos semelhante a prodígio. Dizem também que, consumidos os frutos e as folhas das árvores, se lançou ao mar, como imensa e incontável nuvem, do que, morta e devolvida à costa e corrompido, em consequência, o ar, se originou tal peste, que, segundo se conta, somente no reino de Masinissa morreram oitenta mil homens e muitos mais nas terras próximas do litoral. Afirmam que, nessa época, de trinta mil soldados recrutas existentes em Útica ficaram dez. Vaidade igual à que suportamos e nos força a responder, que não atribuiria disso tudo à religião cristã, se o houvesse visto em tempos cristãos? Não o atribuem, porém, às suas divindades, cujo culto afanosamente procuram, para não padecerem coisas menores, quando a verdade é que sofreram maiores daqueles a quem antes tributavam culto. LIVRO QUARTO A grandeza e a duração do império romano não devem ser atribuídas a Júpiter, nem a quaisquer outros deuses do paganismo, cujo poder se restringia a objetos particulares e a funções ínfimas, mas ao único Deus verdadeiro, autor da felicidade, árbitro e juiz soberano dos reinos da Terra. CAPÍTULO I Recapitulação do que se disse no Livro Primeiro. Quando comecei a tratar da Cidade de Deus, julguei dever dar resposta a seus inimigos que, andando à caça de prazeres terrenos e apegando-se a coisas transitórias, qualquer coisa que padecem, advertindo-os Deus mais com misericórdia que castigando-os com severidade, a exprobram à religião cristã, única, salutar e verdadeira religião. E porque, como se encontra entre eles o vulgo ignorante, cujo ódio mais se inflama contra nós, visto como se apoia na autoridade de seus sábios, e que se persuade de as coisas insólitas de nossos tempos não encontrarem precedente nos anteriores, e quem sabe ser isso falso, dissimula quanto sabe, a fim de parecerem justas as censuras feitas a nós, tornou-se necessário demonstrar, com base nos livros que seus autores nos legaram para conhecimento da história dos tempos passados, haverem sido, por certo, muito diferentes do que pensam. Foi necessário, ao mesmo tempo, ensinar-lhes que os falsos deuses, a quem rendiam culto público ou ainda rendem, mas às escondidas, são os mesmíssimos espíritos imundos e demônios perversos e enganadores, de tal forma que se regozijam em seus próprios crimes, reais ou imaginários, mas sempre próprios. Por vontade deles é que se celebraram em sua honra e em suas festividades, com o propósito de que não possa a fraqueza humana evitar o cometimento de ações repreensíveis, posto que lhas propõem à imitação como que por autoridade divina. Isso não o provei por conjeturas minhas, mas parte graças a lembranças recentes, porque também eu vi exibir tais coisas a semelhantes deuses, e parte pelos escritos daqueles que os legaram à posteridade, não para servirem de pecha às suas divindades, mas para glória delas. Tanto é assim, que Varrão, homem de grande saber e reconhecida autoridade entre eles, em seus livros Sobre as Coisas Humanas e as Divinas dedicou alguns às humanas e outros às divinas e dispôs as coisas de acordo com seu próprio saber. Neles colocou os jogos cênicos pelo menos entre as coisas humanas, se não entre as divinas, quando na realidade, se na cidade existissem apenas homens virtuosos e bons, nem mesmo entre as coisas humanas cumpria enumerar semelhantes jogos. Isso, sem dúvida alguma, não o fez por iniciativa própria, mas porque, nascido educado em Roma, já os encontrou entre as coisas divinas. E porque no fim do Livro Primeiro adiantei em resumo o que através da obra havia de dizer e dele já disse alguma coisa nos dois seguintes, percebo agora o que me resta para satisfazer a esperança dos leitores. CAPÍTULO 11 Resumo dos livros Segundo e Terceiro. Prometi dizer algo contra aqueles que atribuem à nossa religião as catástrofes da república romana, bem como referir quantos males pudessem ocorrer-me ou quantos parecessem suficientes, tanto dos padecidos pela cidade como pelas províncias pertencentes ao Império, antes de proibidos os sacrifícios oferendados aos deuses. E indubitável que nos responsabilizariam por todos eles, se a religião cristã já lhes fosse claramente conhecida ou se lhes proibisse desse modo as sacrílegas solenidades. Isso, conforme penso, ficou suficientemente provado no Livro Segundo e no Terceiro; no Segundo, ao tratarmos dos males morais, únicos ou que, em especial, devem ser considerados assim, e no Terceiro, quando tratamos daqueles que horrorizam apenas os maus, a saber, os males corporais, e das coisas externas, que muitas vezes também os bons padecem. Mas os males que os tornam maus suportam-nos, não digo com paciência, e sim com agrado. Entretanto, quão pouco disse dos males da cidade e do Império e deles nem tudo até o tempo de César Augusto! Que seria, se quisesse referir e exagerar os males, não os que os homens fazem uns aos outros, como, por exemplo, as devastações e destruições das guerras, mas os causados pelos elementos naturais do mundo? Apuleio resume-os de modo lacônico em passagem da obra que escreveu Sobre o Mundo, dizendo que todas as coisas do mundo estão sujeitas a mutações, conversões e mortes. Abriu-se a Terra, diz, para empregar-lhe as palavras, com descomedidos tremores e tragou povos e cidades; soltas as cataratas, inundaram-se regiões inteiras e mesmo as que antes eram continentes ficaram isoladas pelas ondas do mar, vindas de longe, e outras passaram a oferecer passagem a pé enxuto, porque o mar se retirara. Tormentas e ventos assolaram cidades. Caiu fogo das nuvens e as chamas consumiram regiões do Oriente; nas regiões do Ocidente, algumas enchentes e inundações produziram iguais estragos. Assim, do cimo do Etna, transformadas as crateras em divino incêndio, correram pelas encostas abaixo rios de chamas, como águas torrenciais de inundação. Se quisesse recolher tudo isso e coisas do mesmo naipe, todas confirmadas pela História, como poderia? Quando acabaria de contar as acontecidas naqueles dias, antes que o nome de Cristo, para a verdadeira salvação, reprimisse essas vaidades? Também prometi mostrar os costumes e o porquê do querer do verdadeiro Deus, em cujas mãos se acham todos os reinos, ao reafirmar o Império para engrandecê-lo, e a insignificância do favor prestado por aqueles a quem julgam deuses e quanto os prejudicaram com sedução e engano. Por conseguinte, parece-me que agora se deve tratar, e de modo especial, do incremento do Império romano. Da sedução daninha dos demônios a quem, como se fossem deuses, rendiam culto já disse não pouco principalmente no Livro Segundo. Ao longo dos três livros concluídos, onde julguei oportuno, recordei quantos consolos, em meio dos desastres bélicos, Deus enviou a bons e maus em nome de Cristo, a quem os bárbaros tanto respeito tiveram, contra os costumes de guerra, Deus que faz o Sol nascer para bons e maus e chover sobre justos e pecadores. CAPÍTULO III Deve a grandeza do Império, que não se adquire senão mediante guerras, ser enumerada entre os bens de sábios ou felizes? Vejamos agora o motivo por que ousam atribuir tamanha grandeza e duração do Império romano a semelhantes deuses, a quem supõem haver prestado culto honesto, representando para eles jogos torpes por meio de homens torpes. Embora quisesse, antes, inquirir algo a respeito da razão e da prudência em gloriar-se da grandeza e da extensão do Império, posto não poderes provar a felicidade desses homens. Vemo-los sempre envolvidos em desastres bélicos e em sangue fraterno ou inimigo, mas humano, sempre com tenebroso temor e cruel cobiça, de sorte que o contentamento deles é comparável à esplêndida fragilidade do vidro, cuja quebra por momentos se teme. Para ajuizá-lo com maior facilidade, não nos desvaneçamos, levados pela inanidade da ênfase, nem deslumbremos os olhos de nosso intento com altissonantes vocábulos, como, por exemplo, povos, reinos, províncias. Imaginemos dois homens, porque cada homem é tão constitutivo de cidade ou reino, por mais dilatado e extenso que seja, como a letra o é do discurso; imaginemo-los assim: um deles, pobre, ou melhor, da classe média; o outro, riquíssimo. O rico, angustiado pelos temores, consumido de angústias, abrasado pelo fogo da cobiça, nunca tranquilo e sempre desassossegado, sempre ofegante por causa de contendas e inimizades, aumentando de maneira exorbitante seu patrimônio, graças a essas misérias e alegando ter, com esse aumento, preocupações amaríssimas. O de classe média, bastando a si mesmo com a escassa e apertada economia familiar, mas querido pelos seus e gozando de dulcíssima paz com os parentes, vizinhos e amigos, piedosamente religioso e benévolo de coração, sadio de corpo e de vida regrada, de costumes castos e consciência tranquila. Não sei se haverá alguém de tal modo insensato que se atreva a não saber de pronto a quem preferir. Essa mesma regra de equidade vige, da mesma forma que em dois homens, em duas famílias, em dois povos e em dois reinos. Aplicada com circunspeção, se retificamos nossas falsas opiniões, fácil ser-nos-á verificar onde se acha a vaidade e onde a felicidade. Se, por conseguinte, se rende culto ao Deus verdadeiro, servido com sacrifícios sinceros e bons costumes, é útil que os bons reinem por muito tempo e onde quer que seja. E não o é tanto para os governantes como para os governados. Quanto a eles, a piedade e a bondade, grandes dons de Deus, lhes bastam para felicidade verdadeira, que, se merecida, permite à gente viver bem nesta vida e conseguir depois a eterna. No mundo, o reino dos bons não lhes aproveita tanto como as coisas humanas; o reino dos maus prejudica os reinantes, cujos ânimos se estragam com maior liberdade nos crimes; por outro lado, apenas a própria iniquidade causa prejuízo aos que, servindo-os, se lhes submetem. Pois quaisquer males que os maus senhores infligem aos justos não constituem pena da culpa, mas prova da virtude. Por conseguinte, o bom, embora escravo, é livre; o mau, apesar de rei, é escravo e não de um homem apenas, porém, o que se torna mais grave, de tantos senhores quantos os vícios que tem. A Sagrada Escritura, falando de tais vícios, diz: O vencido reduz-se a escravo do vencedor. CAPÍTULO IV Semelhança entre reino sem justiça e pirataria. Desterrada a justiça, que é todo reino, senão grande pirataria? E a pirataria que é, senão pequeno reino? Também é punhado de homens, rege-se pelo poderio de príncipe, liga-se por meio de pacto de sociedade, reparte a presa de acordo com certas convenções. Se esse mal cresce, porque se lhe acrescentam homens perdidos, que se assenhoreiam de lugares, estabelecem esconderijos, ocupam cidades, subjugam povos, toma o nome mais autêntico de reino. Esse nome dá-lhe abertamente, não a perdida cobiça, mas a impunidade acrescentada. Em tom de brincadeira, porém a sério, certo pirata preso respondeu a Alexandre Magno, que lhe perguntou que lhe parecia o sobressalto em que mantinha o mar. Com arrogante liberdade, respondeu-lhe: "O mesmo que te parece o manteres perturbada a Terra toda, com a diferença apenas de que a mim, por fazê-lo com navio de pequeno porte, me chamam ladrão e a ti, que o fazes com enorme esquadra, imperador”. CAPÍTULO V O poderio dos gladiadores fugitivos chegou quase a igualar a dignidade real. Não vou, por conseguinte, examinar que espécie de gente Rômulo acolhia, porque teve em muito a utilidade deles, com o propósito de que, naquela vida e concedendo-lhes carta de cidadania, desistissem de pensar nas penas merecidas, cujo medo os estimulava a maiores velhacarias, para que dali por diante se tornassem mais acomodados às coisas humanas. Digo apenas haver o Império romano, grande, com tanta gente subjugada e terrível para os demais, sentido amargura e grande temor, quando se viu na necessidade de, para evitar tão enorme catástrofe, resolver problema não fácil. Isso aconteceu quando alguns gladiadores, poucos em número, fugindo da palestra na Campânia reuniram poderoso exército, constituíram três chefes a destruíram com inaudita crueldade quase toda a Itália. Digam-nos que deus lhes prestou auxílio para de exígua e desprezível pilhagem chegarem a reino temido por tantas forças e fortalezas romanas. Acaso porque foi de curta duração havia de ser-lhe negado o socorro divino? Como se a vida de qualquer homem fosse duradoura! Nesse sentido, a ninguém os deuses auxiliam a reinar, posto que à porta de cada um deles se encontra a morte, nem deve considerar-se benefício o que é de breve duração em cada mortal e, por isso, em cada qual e em todos se desvanece a guisa do fumo. Que lhes importa a quem no tempo de Rômulo lhes deu culto, e já faz tempo que morreram, que depois de mortos crescesse tanto o Império romano, se já estavam defendendo suas causas nos infernos? Boas ou más, não pertencem ao presente estudo. É o que cabe entender de quantos passaram no Império (embora, mortos uns e sucedendo-lhes outros mortais, continuasse a existir por muito tempo) os poucos dias de vida pressurosa e rápida, carregando sobre os ombros o peso das próprias obras. Se, porém, temos de atribuir ao favor dos deuses os benefícios do presente e brevíssimo tempo, não foi pequeno o auxilio prestado àqueles gladiadores que romperam os vínculos da condição servil. Fugiram, escaparam, reuniram grande e temível hoste e, obedientes aos conselhos e ordens dos chefes e invencíveis por causa do grande temor semeado na grandeza romana e em alguns dos imperadores romanos, apoderaram-se de muitas coisas, venceram em numerosos combates e gozaram quantos prazeres quiseram. Praticaram, em suma, o que lhes sugeriu a libido. Afinal, até serem vencidos, coisa conseguida com muita dificuldade, viveram reinando com alteza. Mas passemos a exemplos mais relevantes. CAPÍTULO VI Cobiça do rei Nino, que, para estender ainda mais seus domínios, foi o primeiro a declarar guerra a vizinhos. O historiador latino da Grécia ou, melhor, dos povos estrangeiros, Justino, resumindo os relatos de Trogo Pompeu, começa deste modo seu trabalho: Na origem, o poder sobre os povos e as nações estava em mãos dos reis, que não eram levados às culminâncias da majestade pela ambição popular, mas pela reputação em que os tinham os bons. Os povos governavam-se sem leis; serviam de leis os ditames dos príncipes. Era de uso defender os limites do Império, não estendê-los. As fronteiras dos reinos ficavam dentro das próprias nações. Nino, rei dos assírios, foi quem primeiro alterou o costume arcaico e, como herança dos antepassados, com nova cobiça de império. Foi o primeiro a declarar guerra aos povos limítrofes e dominou, até os confins da Líbia, povos ainda rudes no manejo das armas. Pouco depois acrescenta: Nino consolidou a grandeza de seu poder, conquistado por extensa possessão. Dominados, pois, os povos vizinhos e recrutadas entre eles novas forças, a fim de passar a outras façanhas, e servindo a presente vitória de apoio para a seguinte, sujeitou os povos de todo o Oriente. Seja qual for o crédito merecido pelo escrito por Justino ou por Trogo, pois outros escritos mais fiéis mostram haverem mentido em algumas coisas, consta, porém, noutros escritores que o rei Nino estendeu de modo enorme o reino dos assírios, tão duradouro, que o romano não lhe alcançou a idade. Segundo escritores de história cronológica, esse reino manteve-se de pé durante mil duzentos e quarenta anos, do ano primeiro do reinado de Nino até quando se transferiu aos medos. Declarar, porém, guerra aos povos limítrofes, para lançar-se a novos combates, esmagar e reduzir povos de quem não se recebeu ofensa alguma, apenas por apetite de dominação, que é, senão desmesurada pirataria? CAPÍTULO VII Depende o apogeu ou a decadência dos reinos terrestres de assisti-los ou abandoná-los os deuses? Se esse reino teve grandeza e duração sem o favor dos deuses, por que atribuírem-se aos deuses romanos a extensão e permanência do Império romano? Seja qual for a causa daquelas, também o é destas. Se, todavia, sustentam que isso deve atribuir-se à assistência dos deuses, pergunto: De quais? Os povos dominados e subjugados por Nino não adoravam outros deuses. E, se os assírios tiveram deuses próprios, como obreiros mais hábeis na arte de fundar e conservar império, morreram, porventura, quando perderam o império? Ou, porque não lhe pagaram ou porque lhes prometeram maior recompensa, preferiram passar-se para os medos e deles aos persas, instigados pela promessa, que Ciro lhes fez, de maior comodidade? Tal povo, depois do domínio, vasto em extensão, mas de duração muito curta, de Alexandre da Macedônia, conservou até hoje o império nos estreitos confins do Oriente. Se assim é, os deuses são infiéis, pois abandonam os seus e se passam para o inimigo, coisa que não fez Camilo, apesar de homem, quando, vencedor e expugnador da cidade mais rival, sentiu a ingratidão de Roma, para a qual a conquistara, e depois, esquecido da injúria e lembrando-se da pátria, tornou a livrá-la dos gauleses, ou não são tão fortes como convém sejam os deuses, porque podem ser vencidos por conselhos ou forças humanas. E se, quando guerreiam entre si, não são os homens que vencem os deuses, mas uns deuses é que são, talvez, vencidos por outros, próprios de cada Cidade, segue-se terem também entre si inimizades e cada um deles tomá-las à sua conta. Não devia a cidade prestar culto a suas divindades mais do que a outras que lhe prestaram auxílio. Finalmente, de qualquer modo que se considere essa passagem, quer como fuga, emigração ou deserção dos deuses na batalha, o nome de Cristo ainda não fora pregado naquelas regiões e naqueles dias em que esses reinos se desfizeram, transformados por gigantescas catástrofes bélicas. Se, depois de mil duzentos e tantos anos, quando os assírios se viram privados do reino, a religião cristã já houvesse pregado ali outro reino eterno e proibido os sacrílegos cultos aos falsos deuses, que diria a vaidade humana a respeito de semelhante povo, senão que o desmembramento do reino, por tanto tempo mantido, não podia atribuir-se a outra causa, senão à que se cifrava em haverem abandonado suas religiões e recebido aquela? Esse possível grito da vaidade considerem-no como espelho e enrubesçam de vergonha, se é que ainda a têm, por queixarem-se de coisas assim, embora, na realidade, o Império romano tivesse sido afligido e não mudado, coisa que antes de Cristo aconteceu noutros dias, e depois se reerguesse, acontecimento de que não se deve desesperar em nossos dias. Quem conhece, nesse ponto, o que Deus quer? CAPÍTULO VIII A que deuses atribuem os romanos o erguimento do Império, se acreditam dever-se confiar a cada um deles apenas a defesa de uma coisa só e determinada? Perguntemos, se apraz, a que deus ou a que deuses, do numeroso bando de divindades a que os romanos rendem culto, pensam cometer a grandeza e conservação do Império. Não creio que de obra tão gloriosa e tão digna ousem atribuir algumas partes à deusa Cloacina, a Volúpia, assim chamada de voluptate, prazer, a Lubentina, nome derivado de libido, a Vaticano, que preside os vagidos dos recém-nascidos, ou a Cunina, que lhes cuida dos berços. Quando poderei mencionar em apenas um lugar deste livro todos os nomes dos deuses ou deusas que mal puderam ser encerrados em enormes volumes, atribuindo aos deuses ofícios peculiares a cada coisa? Nem se conformaram em recomendar o ofício dos campos a um deus apenas, tanto assim que os lábrios os confiaram à deusa Rurina, o cume das montanhas ao deus Jugatino, as colinas à deusa Colatína e os vales à deusa Valónia. Não puderam tampouco achar Segécia capaz de controlar todas as messes, tanto que, semeados os grãos, enquanto se encontravam sob a terra, houveram por bem confiá-los à deusa Seia, quando já estavam saindo de sob a terra e formavam messes, à deusa Segécia; a perfeita conservação dos grãos já recolhidos e postos no celeiro entregaram-na à deusa Tutelina. A quem não pareceria suficiente Segécia, desde a messe ainda verde até chegar às secas espigas? Não foi, porém, bastante para homens amantes do bando de deuses, porque a alma miserável se prostituíra à turba de demônios, desdenhando o casto abraço do único Deus verdadeiro. Para esse fim, constituíram Proserpina tutora dos grãos em germe, o deus Nodoto, das gemas e nós dos colmos, Volutina, do envoltório da espiga. Vêm a seguir a deusa Patelana, quando os envoltórios se abrem para a espiga sair, a deusa Hostilina, quando as messes se igualam com as novas espigas, porque os antigos, para dizerem igualar, usaram hostire, a deusa Flora, quando os grãos florescem, o deus Lacturno, quando os frutos ainda se encontram verdes, a deusa Matuta, quando amadurecem, e a deusa Runcina quando os colhem, isto é, os arrancam do solo. Não os enumero todos porque me enfastia o que a eles não lhes causa vergonha. Referi essas pouquíssimas coisas para dar a entender que de modo algum hão de atrever-se a imputar a origem, progresso e conservação do Império romano a semelhantes divindades, a que davam ofícios tão privativos, que nada de universal pode confiar-se a nenhuma delas. Quando do Império cuidará Segécia, se não lhe é permitido cuidar ao mesmo tempo das messes e das árvores? Quando pensará nas armas Cunina, cujo cargo lhe proíbe ir além do berço das crianças? Quando na guerra ajudará Nodoto, que não vela nem mesmo pelo envoltório da espiga, mas somente pelos nós dos colmos? Cada qual põe em casa um só porteiro, porque um homem é, sem dúvida, suficiente; os romanos, entretanto, puseram três deuses: Fórculo, para as portas, Cardéia, para os gonzos, Limentino para os umbrais. Tão impossível era que Fórculo cuidasse ao mesmo tempo dos gonzos e dos umbrais. CAPÍTULO IX Devem a grandeza e duração do Império romano ser atribuídas a Júpiter, a quem seus adoradores consideravam deus supremo? Omitamos ou deixemos em suspenso por breve tempo o que estamos dizendo sobre essa turba de deuses menores e investiguemos o ofício dos deuses maiores, graças a quem Roma tanto se engrandeceu, que por muito tempo senhoreou muitas nações. Para falar verdade, foi por obra de Júpiter. Querem que seja o rei de todos os deuses e deusas. Isso o indica seu cetro, isso o indica o Capitólio na erguida colina. Desse deus espalham a todos os ventos, como frase muito certa, embora de poeta: Tudo está cheio de Júpiter. O próprio Varrão acredita renderem-lhe culto os que o tributam a um só Deus, sem simulacro, mas lhe dão outro nome. Se assim é, por que o trataram tão mal em Roma, como nas demais nações, erguendo-lhe estátua? Isso desagrada de tal modo o próprio Varrão, que, oprimido pelo perverso costume de tão grande cidade, não vacilou coisa alguma em dizer e escrever que os que instituíram para os povos os simulacros lhes tiraram o medo e lhes aumentaram o erro. CAPÍTULO X Opiniões a que se ativeram os que a diversas partes do mundo impuseram deuses diferentes. Por que aquele toma Juno por esposa e a chamam irmã e cônjuge? Porque Júpiter, dizem, ocupa o éter, Juno o ar e esses dois elementos, um superior e outro inferior, se encontram unidos. Em suma, não se trata daquele de quem se disse: Tudo está cheio de Júpiter, se existe alguma parte ocupada por Juno. Enchem ambos, porventura, um e outro e ambos são ao mesmo tempo cônjuges desses dois elementos e em cada um deles? Por que se dá o céu a Júpiter e o ar a Juno? Por último, se esses dois são suficientes, para que atribuir o mar a Netuno e a terra a Plutão? E para que não permanecessem sem esposa, acrescentou-se Salácia a Netuno, e a Plutão, Proserpina. Porque, assim como a parte inferior do céu, isto é, o ar, dizem, a ocupa um, assim a parte inferior do mar a ocupa Salácia, e a parte inferior da terra, Proserpina. Buscam como recomendar suas fábulas e não encontram. Fosse assim e seus antigos admitiriam três elementos no mundo, não quatro, com o fim de entrosar os casamentos dos deuses com os elementos. Sem hesitação, porém, afirmaram ser uma coisa o éter e outra o ar. E a água superior ou inferior é sempre água. Faze de conta que é dessemelhante. Será, porventura, tão dessemelhante que não seja água? E a terra inferior, que outra coisa pode ser senão terra, por mais diferente que seja? Entretanto, eis que com esses três ou quatro elementos já se completa totalmente o mundo corpóreo. E Minerva, onde está, que ocupa, que enche? No Capitólio encontra-se juntamente com esses dois, sem ser filha deles. E, se dizem que Minerva habita a parte superior do céu, e sobre isso fingem os poetas haver nascido da cabeça de Júpiter, por que não a consideram rainha dos deuses, visto ser superior a Júpiter? Acaso era digno antepor a filha ao pai? Por que não se observou a mesma justiça de Júpiter para com Saturno? Será porque foi vencido? Lutaram, então? Nem pensá-lo, dizem; trata-se de palavrório das fábulas. Muito bem! Não se creia em fábulas e tenham-se em melhor conceito os deuses. Por que não se concedeu ao pai de Júpiter algum lugar, senão superior, pelo menos igual em honra? Porque Saturno, respondem, significa a longuidão do tempo. Quem tributa culto a Saturno tributa culto ao tempo e o rei dos deuses, Júpiter, declara-se nascido do tempo. Diz-se, pois, algo digno, quando se diz haverem Júpiter e Juno nascido do tempo, se aquele é o céu e esta a terra, quando é certo que o céu e a terra foram criados no tempo? É o que seus letrados e sábios reconhecem em seus livros e Virgílio inspira-se, não em ficções poéticas, mas nos livros dos filósofos, quando diz: E então que o Eter, Pai onipotente, desce em fecundantes chuvas ao seio da rejubilante esposa, isto é, ao seio de Télus ou da Terra. Porque mesmo aqui querem ver algumas diferenças e, quanto à própria Terra, pensam ser uma coisa a Terra, outra, Télus e outra, Telumão. A cada um desses deuses apelidaram com nomes, distinguiram com ofícios e veneraram com altares e sacrifícios próprios. Chamam a Terra de mãe dos deuses, de forma que se tornam mais toleráveis as ficções dos poetas, se de acordo com os livros, não poéticos, mas sagrados, Juno não é apenas irmã e esposa, mas também mãe de Júpiter. Querem que a Terra seja Ceres e também Vesta, quando na maioria das vezes afirmaram ser Vesta apenas o fogo pertinente aos lares, sem os quais a cidade não pode existir. Esse o motivo de costumarem estar a seu serviço as virgens, porque, como nada nasce de virgem, assim também nada nasce do fogo. Toda essa futilidade teve de ser abolida e extinta por Aquele que nasceu de virgem. Quem há de admitir que, atribuindo tanta honra e quase castidade ao fogo, não se envergonhem de algumas vezes dar o nome de Vênus também a Vesta, com o fito de em suas servas violar a virgindade tão honrada? Se, por conseguinte, Vesta é Vênus, como a serviriam de maneira devida as virgens, abstendo-se de práticas venéreas? Ou haverá duas Vênus, uma virgem e outra esposa? Ou, para melhor dizer, três: uma das virgens, também chamada Vesta, outra das casadas e outra das meretrizes? A esta última os fenícios ofereciam o preço da prostituição das filhas, antes de casá-las com os esposos. Qual delas a esposa de Vulcano? Não é, por certo, a virgem, porque tem marido. Longe de mim pensar que seja a rameira, para não parecer que injurio o filho de Juno e êmulo de Minerva. Logo, infere-se tratar-se da pertencente às casadas, mas não queremos seja imitada no que fez com Marte. De novo, replicam, voltas às fábulas. Que justiça é essa? Irritam-se conosco porque falamos assim de suas divindades e não se envergonham de, nos teatros, assistir com muito gosto ao espetáculo dos crimes de suas divindades? E, o que é mais incrível, salvo se provar-se de modo irrefragável o contrário, essas mesmas velhacarias teatrais de seus deuses foram instituídas em honra de seus próprios deuses. CAPÍTULO XI Opinião dos doutores do paganismo, segundo a qual muitos deuses não passam de um só e mesmo Júpiter. Afirmem, com quantos argumentos físicos e palavras quiserem, que Júpiter é a alma deste mundo corpóreo, move e enche essa vasta máquina construída e composta de quatro ou quantos elementos lhes aprouver. Quer ceda parte deles à irmã e aos irmãos; quer seja o éter, porque domina Juno, vale dizer, o ar inferior; quer seja, com o ar, todo o éter e fecunde com fecundantes chuvas e sementes a terra, como a esposa e mãe, porque entre as divindades isso não é indecoroso; quer, para não percorrer a Natureza toda, seja um só deus, a quem muitos acreditam deva aplicar-se o que disse determinado poeta: Deus encontra-se espalhado em toda parte, nas terras, nos espaços do mar e nas profundidades do céu. Seja, no éter, Júpiter; no ar, Juno; no mar, Netuno; nas partes inferiores do mar, Salácia; na terra, Plutão; na terra inferior, Proserpina. Seja, nos lares domésticos, Vesta; na forja dos ferreiros, Vulcano; nos astros, o Sol, a Lua e as Estrelas; nos adivinhos, Apolo e no comércio, Mercúrio. Seja, em Jano, início, e em Término, termo. Seja Saturno no tempo, e nas guerras, Marte e Belona. Seja Baco nas vinhas, Ceres nas messes, Díana nas selvas e Minerva nas inteligências. Seja, afinal, toda a turba de quase plebeias divindades. Presida, com o nome de Líbero, o sêmen dos homens, e com o nome de Líbera, o das mulheres. Seja Diespiter, que leva o parto a bom termo; seja a deusa Mena, a quem encarregaram do mêstruo das mulheres; seja Lucina, invocada pelas parturientes. Socorra os recém-nascidos, receba-os no regaço da terra e chame-se Opis; abra-lhes a boca aos primeiros vagidos e seja o deus Vaticano. Levante-os do chão e chame-se deusa Levana; proteja os berços e chame-se deusa Cunina. Não sejam outros, senão ele, os deuses que predizem os destinos dos que nascem e chame-se Carmentas. Presida os acontecimentos fortuitos e chame-se Fortuna. Apresente o peito ao lactente, com o nome de deusa Rumina, porque os antigos deram à mama o nome de ruma. Sirva, com o nome de Patina, a bebida, e, com o de Edina, o alimento. Chame-se Pavência, do pavor das crianças, Venília, da esperança que vem, Volúpia, do prazer, e Agenória, da ação. Denomine-se Estímula, dos estímulos que impelem o homem a trabalhar em demasia. Seja Estrênua, excitando o valor; Numéria, ensinando a contar; Camena, ensinando a cantar. Seja, também, o deus Conso, aconselhando, e a deusa Sêncía, inspirando sentenças. Seja a deusa Juventas, que, depois da toga pretexta, dê começo à idade juvenil. Seja a Fortuna Barbada, que cubra de barba os adultos, a quem não quiseram dar a honra de que esse nume, fosse qual fosse, fosse pelo menos deus masculino, ou Barbado, por causa da barba, como Nodoto se origina de nó, ou, então, a de chamá-la, por ter barba, Fortúnio, não Fortuna. Reúna os cônjuges, sob o nome de deus Jugatino, e, quando a donzela recém-casada desata a faixa virginal, invoquem-no com o nome de Virginense. Seja Mutuno ou Tutuno, que corresponde entre os gregos a Priapo. Se tudo quanto disse e quanto deixei de dizer, pois não me pareceu acertado referir tudo, não faz enrubescer de vergonha, sejam um só Júpiter esses deuses e deusas. Não prejulguemos se, como querem alguns, são todas essas divindades partes ou virtudes suas, como parece àqueles a quem agrada afirmar que é a alma do mundo, opinião de grandes e reconhecidos doutores. Se assim é (não quero ainda averiguar se é), que perderam com adorar a um só deus por atalho mais prudente? Que desprezariam dele, adorando a ele apenas? Se fosse de temer que algumas partes dele, omitidas e desatendidas, se aborrecessem, não seria, como pretendem, essa a vida universal como que de um s6 animal que em sua unidade engloba todos os deuses, seus membros ou partes. Pelo contrário, cada parte tem vida própria, independente das demais, se uma pode, sem a outra, aborrecer-se e aplacar-se uma delas, irritando-se outra. E se se diz que todos juntos, isto é, todo o mesmo Júpiter pôde ofender-se, porque suas partes não receberam culto uma a uma e em separado, fala-se nesciamente, visto como não se deixaria nenhuma de lado, adorando o único que as tem todas. Omitindo, agora, outros mil e um pormenores, quando dizem que todos os astros constituem partes de Júpiter e todos têm vida e almas racionais, e, portanto, são indubitavelmente deuses, não reparam na infinidade daqueles a quem não tributam culto, não erguem templos, não elevam altares, e nos pouquíssimos astros que julgam dignos de culto e sacrifícios particulares. Se, por conseguinte, os que não são singularmente adorados se ofendem, não temem viver com todo o céu irado, porquanto são poucos os aplacados? E, se adoram todas as estrelas precisamente porque estão em Júpiter, a quem adoram, por esse modo lhes é possível dirigir, nele, súplicas a todas. Assim, ninguém se ofenderia, não se desdenhando ninguém naquele só. Do contrário, adorados alguns, haveria justo motivo de ficarem ofendidos aqueles, mais numerosos, sem comparação alguma, deixados à margem, em especial os que, brilhando na soberana mansão, se viram pospostos a Priapo, medonho na obscena desnudez. CAPÍTULO XII Opinião dos que pensam ser Deus a alma do mundo e o mundo o corpo de Deus. Que dizer disso? Deve impressionar homens inteligentes ou quaisquer outros homens? Não é, para tanto, preciso eminente engenho, para, abandonado o afã de contendas, advertirem que, se Deus é a alma do mundo e o mundo, para essa alma, verdadeiro corpo, Deus é animal constante de alma e corpo. E esse Deus existe em certo lugar da Natureza e contém todas as coisas, de forma que de sua alma, vivificadora de toda essa imensa mole, tomam os viventes suas vidas e almas, segundo o modo de ser de cada um dos que nascem, e assim nada ficaria, em absoluto, que não fosse parte de Deus. Se é assim, quem não vê quanta impiedade e irreligiosidade se segue, posto que, ao pisar, se pisa parte de Deus e, ao matar qualquer animal, se reduz a pedaços parte de Deus? Não quero dizer quanto pode vir à imaginação e não pode dizer-se, sem que a gente enrubesça de vergonha. CAPÍTULO XIII Referências aos que afirmam que somente os animais racionais constituem partes do Deus uno. E, se sustentam que apenas os animais racionais, como os homens, são partes de Deus, não vejo, na realidade, como podem separar das partes dele as bestas, se todo mundo é Deus. Que necessidade há, porém, de impugná-lo? Pode o animal racional, quer dizer, o homem, crer maior absurdo que, se bate em alguma criança, se bate em parte de Deus? Quem admitirá, se não for louco varrido, que as partes de Deus se tornem lascivas, ímpias e, em absoluto, condenáveis? Finalmente, por que se aborrece com quem não lhe rende culto, se não lhe rendem suas partes? Resta, pois, dizerem que todos os deuses têm vida própria, cada um deles vive para si mesmo, nenhum deles é parte de qualquer outro, porém a todos deve-se culto, a todos que podem ser reconhecidos e reverenciados, porque são tantos que todos não o podem ser. Creio que, segundo o que dizem, Júpiter, como rei de todos, constituiu e expandiu o Império romano. Porque, se não o fez, que outro deus imaginam pôde empreender obra tão grande, quando todos se encontravam ocupados em seus ofícios próprios e em suas obras, sem que ninguém se intrometesse no ofício alheio? Logo, o rei dos deuses pôde propagar e engrandecer o reino dos homens. CAPÍTULO XIV É incongruência tornar Júpiter responsável pelo crescimento dos reinos, posto ser Vitória, como querem, deusa até para esse mister. Pergunta prévia: Por que não é deus o próprio reino? Que necessidade há de Júpiter nesse caso, se Vitória socorre, é propícia e sempre auxilia os que quer sejam vencedores? Graças à proteção e auxílio de tal deusa, mesmo quando Júpiter estivesse folgando ou fazendo outra coisa, que povos não seriam subjugados? Que reinos não se renderiam? Desagrada aos bons, porventura, pelejar com injustíssima perversidade e provocar os povos limítrofes, pacíficos e inofensivos, com guerras caprichosas, que têm por objeto a dilatação do reino? Sinceramente, se assim pensam, aprovo-o e louvo-o. CAPÍTULO XV Convém aos bons desejar engrandecer-se? Considerem se é próprio de gente de bem regozijar-se com a grandeza do reino. A iniquidade daqueles contra quem se travaram guerras justas auxiliou o crescimento do reino. Esse, na realidade, seria pequeno, se a justiça e a paz dos povos vizinhos não o levassem, por causa de alguma ofensa, a declarar-lhes guerra. Desse modo, gozando todos os reinos, em boa vizinhança, da maior felicidade nas coisas humanas, seriam pequenos e, assim, haveria no mundo muitíssimos reinos de nações, como há na cidade muitíssimas casas de cidadãos. Por isso, guerrear e dilatar o reino, senhoreando povos, aos maus parece ventura, e aos bons, necessidade. Mas, porque seria pior que os mais justos se vissem dominados pelos injustos, não sem motivo se chama também a isso felicidade. Sem dúvida alguma, porém, é maior felicidade viver em paz com o bom vizinho que subjugar pelas armas o mau. Maus desejos são desejar ter a quem odiar ou a quem temer, para poder ter a quem vencer. Se travando guerras justas, não ímpias, nem iníquas, os romanos conseguiram adquirir tão grande império, deve-se, por acaso, render culto à injustiça alheia, como se fosse deusa? Vemos haver essa injustiça contribuído grandemente para o crescimento do Império, quando aos estrangeiros inspirava injustas hostilidades, para dar a Roma pretexto de empreender contra eles guerra justa e proveitosa à expansão do Império. Por que não ser deusa a injustiça, ao menos a das nações estrangeiras, se o Pavor, o Palor e a Febre mereceram ser deuses romanos? Logo, graças a essas duas, isto é, à injustiça alheia e à deusa Vitória, porque a injustiça propõe as causas das guerras e a Vitória lhes põe termo feliz, o Império cresceu, mesmo na ausência de Júpiter. Que papel desempenharia Júpiter no caso, se o que se poderia considerar favores seus são tidos na conta de deuses e invocados em lugar de suas partes? Desempenhasse ele, também aqui, algum papel, chamá-lo-iam reino, como àquela se chama Vitória. E, se o reino é dom de Júpiter, por que não se considera também a Vitória como dom dele? Assim seria, sem dúvida, se se conhecesse e tributasse culto, não à pedra no Capitólio, mas ao verdadeiro Rei dos reis e Senhor dos que dominam. CAPÍTULO XVI Por que os romanos, que a cada coisa e a cada movimento deram deus peculiar, quiseram ficasse fora das portas da cidade o templo da Quietude? Causa-me grande surpresa que, a cada coisa e quase a cada movimento atribuindo deus peculiar, chamassem deusa Agenoria a que movia a trabalhar, deusa Estímula, a que estimulava a atividade excessiva, deusa Múrcia, a que, ao contrário, leva a extrema inação e, como diz Pompônío, torna o homem murcho, isto é, desidioso e inativo em demasia. A todos esses deuses e deusas admitiram aos lugares públicos; a que chamavam Quietude, os deixava tranquilos e tinha o templo fora da porta Colina, não quiseram admiti-Ia a semelhantes honras. Isso se revelou indício de seu espírito inquieto ou, melhor, prova de que todo aquele que perseverasse no culto dessa turba, não de deuses, certamente, mas de demônios, não podia ter a quietude a que convida o Médico verdadeiro, dizendo:Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vossas almas. CAPÍTULO XVII Se Júpiter é a autoridade suprema, também Vitória devia ser considerada deusa Dizem, porventura, que Júpiter envia a deusa Vitória, que, como que obediente ao rei dos deuses, vem àqueles a quem foi enviada e se põe ao lado deles? Isso se diz com verdade, não de Júpiter, que fingem ser, segundo sua imaginação, rei dos deuses, mas do Rei dos séculos que não envia a Vitória, que não é substância alguma, e sim anjo seu, e faz vencer a quem quer e cujos juízos podem ser ocultos, porém não iníquos. Pois, se a vitória é deusa, por que não o é deus também o triunfo e não se une à vitória como esposo, irmão ou filho? Tais coisas os romanos imaginaram dos deuses, que, se as fingissem os poetas e eu as desaprovasse, responderiam tratar-se de ficções poéticas, dignas de riso, não de serem atribuídas aos verdadeiros deuses. E, contudo, não riam de si mesmos, não quando nos poetas liam semelhantes desatinos, mas quando lhes rendiam culto nos templos. A Júpiter, por conseguinte, deviam pedir todas as coisas; a ele apenas, dirigir todas as preces. Mas não para que Vitória, que era deusa e submetida ao rei, pudesse atrever-se a desobedecer-lhe e seguir a própria vontade, sendo enviada em socorro. CAPÍTULO XVIII Por que distinguem entre a Felicidade e a Fortuna os que as consideram deusas? Que dizer de também a Felicidade ser deusa? Recebeu templo, mereceu altar e ofereceram-lhe convenientes sacrifícios. Seja, pois, a única adorada. Onde estivesse, que bem faltaria? Mas que significa que também à Fortuna considerem deusa e, como tal, lhe tributem culto? Porventura é a felicidade uma coisa e outra a for tuna? É que a fortuna também pode ser má e a felicidade, se for má, felicidade não é. Não devemos, sem dúvida, considerar bons todos os deuses de ambos os sexos, se também têm sexo? É o que disse Platão, é o que disseram outros filósofos, é o que disseram egrégios dirigentes de repúblicas e povos. Como, pois, algumas vezes é má e outras vezes boa a deusa Fortuna? Ou, acaso, quando é má não é deusa, mas repentinamente se converte em maligno demônio? Quantas são essas deusas? Sem dúvida, quantos são os homens afortunados, isto é, de boa fortuna, porque havendo também, ou seja, ao mesmo tempo, muitos outros de má fortuna, se fosse a mesma, seria boa e má, ao mesmo tempo, para estes uma e para aqueles outra? Ou será que a que é deusa é sempre boa? Essa é a Felicidade. Por que se usam dois nomes? Mas até isso cumpre admitir, porque é costume ter uma coisa dois nomes. Por que tem diversos templos, diversos altares e diversos sacrifícios? Eis a causa, respondem: a felicidade têm-na os bons por seus merecimentos anteriores; por outro lado, a fortuna, chamada boa, sobrevém fortuitamente a bons e maus, sem levar-lhes em conta para nada os merecimentos; chama-se, por isso, Fortuna. Como é boa a que sem discernimento algum acontece a bons e maus? E para que render-lhe culto, se é tão cega e se arrima a cada passo a quem quer que seja, deixando muitas vezes os que a veneram e apegando-se a quem a despreza? E, se seus adoradores conseguem que ela volva os olhos a eles e os beneficie, atende-lhes os méritos, não vem fortuitamente. Onde está, pois, a definição de Fortuna? Onde está o motivo de receber da fortuna seu nome? Se é fortuna, é inútil o culto que lhe tributam. Se faz distinção entre os adoradores, para ser útil, não é fortuna. É verdade que Júpiter a envia para onde quer? Tribute-se culto, nesse caso, somente a ele, porque a Fortuna não pode opor-se a quem a manda e envia para onde lhe aprazo Ou, pelo menos, rendam-se a ele os maus, que não querem ter merecimentos com que possam conciliar os favores da deusa Felicidade. CAPÍTULO XIX A Fortuna feminina. Tantas são, na realidade, as atribuições da deusa chamada Fortuna, que, segundo tradição histórica, sua estátua, dedicada pelas matronas e chamada Fortuna feminina, não falou e disse apenas uma vez, mas duas, que lha haviam legitimamente dedicado as matronas. Dado que o fato seja verdadeiro, não deve causar-nos estranheza, posto que enganar não se mostra assim difícil para os malignos demônios, de cujas artes e artimanhas deveriam precatar-se melhor, precisamente porque falou a deusa que se dá fortuitamente, não a que vem atraída pelos merecimentos. Foi loquaz a Fortuna e muda a Felicidade. Para que outro fim, senão para os homens não cuidarem de bem viver, granjeando a amizade da Fortuna, que sem merecimentos bons os fizesse afortunados? E, se é certo que falou a Fortuna, não foi, pelo menos, a feminina, mas a viril, para acreditarem que tamanho milagre era ficção fingida pela natural loquacidade das mesmas mulheres que dedicaram a estátua. CAPÍTULO XX A Virtude e a Fé, que os pagãos honram com festividades e templos, deixando de lado outros bens a que lhes cumpria render culto, do mesmo modo que a outros corretamente atribuem caráter de divindade. Fizeram deusa também a Virtude; se, na realidade, também fosse deusa, seria caso de preferi-Ia a muitas. Como, porém, deusa não é, mas dom de Deus, pede-se àquele único capaz de concedê-la e todo o bando de deuses falsos desaparece. Por que se acreditou ser deusa também a Fé e recebeu altar e templo? Quem quer que sinceramente a reconheça faz de si mesmo templo para ela. Como sabem tratar-se da fé, cuja primeira e principal obra é crer no verdadeiro Deus? Por que não bastava a virtude? Acaso não se encontra ali também a fé? Eles mesmos verificaram dever a virtude dividir-se em quatro espécies: prudência, justiça, fortaleza e temperança. E, como cada uma delas tem espécies, a fé participa da justiça e ocupa entre nós o lugar mais destacado, porque sabemos o que é, pois o justo vive da fé. Admiro-me é daqueles que, apetecedores da multidão de deuses, se é deusa a fé, por que injuriam muitas outras deusas, deixando-as de lado, quando poderiam dedicar-lhes, de igual modo, templos e altares? Por que não mereceu ser deusa a temperança, se graças a seu nome alcançaram não pequena glória alguns príncipes romanos? Por que não ser deusa a fortaleza que assistiu Múcio, ao estender a destra sobre as chamas, Cúrcio, quando por amor à pátria se precipitou no abismo aberto a seus pés, e assistiu Décio, pai, e Décio, filho, ao entregarem-se com voto por seu exército, se é que havia em todos esses verdadeira fortaleza, assunto de que não estou cuidando agora? Por que a prudência e por que a sabedoria não mereceram lugar entre as divindades? Acaso porque a todas, sob o nome genérico de Virtude, se rende culto? De acordo com isso poder-se-ia também prestar culto ao Deus uno, se os demais deuses são considerados partes suas. Contudo, a virtude única abrange a fé e a castidade, que mereceram ter altares fora em seus próprios templos. CAPÍTULO XXI Quem não conhecia os dons de Deus devia haver-se contentando com a virtude e com a felicidade. Não são criaturas da verdade essas deusas, mas da vaidade. Constituem dons do verdadeiro Deus, não são deusas. Para que, porém, buscar outra coisa onde se encontram felicidade e virtude? Que será suficiente para aquele a quem não lhe bastam felicidade e virtude? A virtude abarca todo o factível; a felicidade, todo o desejável. Se se tributa culto a Júpiter, para dar esta, pois a grandeza e duração do reino é bem pertencente à própria felicidade, por que não se entendeu serem dons de Deus, não deusas? Se, contudo, as consideraram deusas, não busquem, pelo menos, outro bando maior de divindades. Ponderados todos os ofícios dos deuses e das deusas, deveres que fingiram segundo sua opinião e seu capricho, excogitem, se puderem, algo que algum deus possa dar a homem que tenha a virtude e goze de felicidade. Que doutrina cumpre pedir a Mercúrio ou a Minerva, se a virtude encerra todas as coisas? A virtude os antigos definiram como a arte de viver bem e retamente. Daí, porque em grego virtude se diz arete, acreditarem os latinos traduzi-Ia bem com o nome de arte. Se a virtude fosse inseparável das faculdades do espírito, que necessidade haveria do deus Cácio para torná-los hábeis, isto é, inteligentes, se a felicidade é capaz de conferi-lo? Nascer engenhoso é privativo da felicidade. Em consequência, mesmo quando o não nascido não possa tributar culto a Felícidade, para que, granjeando-lhe a amizade, lho conceda, aos pais, que lho tributam, poderá conceder lhes nasçam filhos engenhosos. Que necessidade tinham as parturientes de invocar Lucina, posto que, se as assistisse Felicidade, não apenas dariam bem à luz, mas também bons filhos? Que necessidade havia de à deusa Opis confiar os que nascem, ao deus Vaticano os vagidos, à deusa Cunina os que estavam no berço e à deusa Rumina os que mamavam? Que necessidade havia de confiar ao deus Estatilino os que estavam de pé, à deusa Adeona os que chegam, à deusa Abeona os que se ausentam? Que necessidade tinham da deusa Mente para que a tivessem boa, do deus Volumno e da deusa Volumna para quererem coisas boas, dos deuses nupciais para casarem-se bem, dos deuses agrestes e, em especial, da deusa Frutesca para que colhessem ubérrimos frutos? Que necessidade tinham de Marte e Belona para guerrearem bem, da deusa Vitória para vencerem, do deus Honor para serem honrados, da deusa Pecúnia para serem endinheirados, do deus Esculano e do filho, Argentino, para possuírem dinheiro de prata e cobre? De Esculano fizeram pai de Argentino precisamente porque primeiro começou a estar em uso a moeda de cobre e depois a de prata. Admiro-me, todavia, de não haver Argentino engendrado Aurino, porquanto em seguida surgiu a moeda de ouro. Se tivessem esse deus, como a Saturno antepuseram Júpiter, do mesmo modo anteporiam Aurino ao pai, Argentino, e ao avô, Esculano. Que necessidade havia de, por esses bens da alma, do corpo ou externos, prestar culto a tamanha turba de deuses ou invocá-la? Nem os enumerei todos, nem os próprios pagãos puderam multiplicar-lhes o número e funções necessárias ao atendimento de todas as necessidades da vida humana. Não bastaria, para obtenção de tudo, a deusa Felicidade? Não havia que buscar outro deus, nem para colher bens, nem para afugentar males. Por que haviam os cansados de invocar a deusa Fessônia? E a deusa Pelônia, para expulsar o inimigo? Por que haviam os enfermos de invocar o médico Apolo ou Esculápio ou, em caso de perigo, ambos? Nem invocaram o deus Espiniense, para dos campos arrancar os espinhos, nem rogaram à deusa Rubigo que os afastasse das messes, porque, pela só presença e proteção de Felicidade, não lhes aconteceria nenhum mal ou se dissiparia com extrema facilidade. Finalmente, posto estarmos tratando dessas duas deusas, isto é, Virtude e Felicidade, se a felicidade é prêmio de virtude, deusa não é, mas dom de Deus. E, se é deusa, por que não se diz que também outorga a virtude, porquanto é grande felicidade conseguir-se a virtude? CAPÍTULO XXII Ciência do culto aos deuses, que Varrão se preza de haver ensinado aos romanos. Por que, pois, Varrão alardeia prestar grande serviço aos concidadãos, enumerando não apenas os deuses que convém adorem os romanos, mas também dizendo o que pertence a cada qual? Assim como nada aproveita, diz, conhecer médico de nome e de vista e ignorar que é médico, assim também se torna inútil saber que Esculápio é deus, se ignoras que auxilia a saúde e não sabes por que deves dirigir-lhe súplicas. Serve-se de outra comparação, para desenvolver esse pensamento, dizendo que pessoa alguma não apenas não pode viver bem, mas nem mesmo pode, em absoluto, viver, se ignora quem é o carpinteiro, quem o padeiro, quem o pedreiro, se não sabe a quem pode pedir o necessário, a quem pode tomar por ajudante, a quem por guia, a quem por mestre, assegurando que desse modo ninguém duvida ser útil o conhecimento dos deuses, se se sabe que força, que faculdade e que poder tem cada deus sobre determinada coisa. Por esse meio, prossegue, podemos saber a que deus devemos advocar e invocar, para não fazermos como os bufões costumam e pedirmos água a Líbero e vinho às Linfas. Grande utilidade, por certo. Quem não lhe agradeceria, se o dissesse conforme à verdade, isto é, se ensinasse o homem a adorar o Deus uno e verdadeiro, de quem procedem todos os bens? CAPÍTULO XXIII Os romanos, veneradores de muitos deuses, permaneceram longo tempo sem tributar honras divinas a Felicidade, única bastante para todos. 1. Mas, voltando à questão, se os livros e cerimônias pagãs são verdadeiros, se Felicidade é deusa, por que não prestar culto exclusivamente a ela, que pode dar tudo e fazer feliz o homem o mais depressa possível? Quem deseja algo por outro motivo, senão o de tornar-se feliz? Por que, enfim, tão tarde, depois de tantos príncipes romanos, Lúculo edificou templo a deusa tão excelente? Por que o próprio Rômulo, desejoso de fundar cidade venturosa, não lhe dedicou templo, de preferência a erguê-lo a qualquer outra divindade? Não invocaria por outra causa os demais deuses, se a presença dessa deusa não lhe deixasse faltar coisa alguma. Nem fora feito, primeiro, rei, nem deus mais tarde, como acreditam, se tal deusa não lhe fosse propícia. Para que aos romanos deu por deuses Jano, Júpiter, Marte, Pico, Fauno, Tíberino, Hércules alguns outros? Para que Tito Tácio lhes acrescentou Saturno, Opis, Sol, Lua, Vulcano, Luz e outros ainda, entre os quais se contava a deusa Cloacina, com omissão de Felicidade? Para que Numa introduziu tantos deuses e deusas, sem ela? Ou será que na turba não pôde descobrir-lhe a presença? Certo é que, se o rei Hostílio houvesse conhecido essa deusa, não lhes teria agregado os deuses Pavor e Palor. Em presença de Felicidade, todo pavor e todo palor não se afastariam como divindades aplacadas, mas como deusas vencidas. 2. Que significa, ademais, já estivesse o Império romano alcançando amplas proporções, se ainda ninguém adorava Felicidade? Acaso foi por isso mais vasto o Império que feliz? Porque como haveria felicidade verdadeira onde não havia verdadeira piedade? A piedade é o culto sincero ao verdadeiro Deus, não o culto a tantos deuses falsos quantos são os demônios. Porém, mesmo depois de no número dos deuses admitida Felicidade, sobreveio a grande infelicidade das guerras civis. Acaso se indignou Felicidade porque a convidaram tão tarde e não para honrá-la, mas ofendê-la, com ela adorando Priapo, Cloacína, Pavor, Palor, Febre, além de outros, não divindades, a quem cumpria adorar, mas velhacarias dos adoradores? 3. Enfim, se ao culto de turba tão indigna parecia dever-se associar deusa tão excelente, por que não lhe rendiam, pelo menos, culto distinto? Quem admitirá que nem mesmo entre os deuses Consentes, que, segundo afirmam, compunham o conselho de Júpiter, nem entre os deuses chamados Seletos, se colocasse Felicidade? Faça-se para ela templo que sobressaia pela sublimidade do lugar e pela majestade da obra. Por que não melhor que o do próprio Júpiter? Pois, quem deu o reino a Júpiter, senão Felicidade, se é que, reinando, foi feliz e é melhor a felicidade que o reino? Ninguém duvida que facilmente se topa com homem que tema ser feito rei, mas não se encontra quem não queira ser feliz. Se creem que os deuses podem ser consultados por augúrios ou qualquer outro modo e fossem consultados sobre este ponto: se queriam ceder o posto a Felicidade, caso já não houvesse lugar para templos ou altares, onde construir templo maior e mais elevado para Felicidade, o próprio Júpiter cedê-la-ia, para que Felicidade obtivesse o topo mesmo da colina do Capitólio. Ninguém oporia resistência a Felicidade, salvo, coisa impossível de suceder, quem quisesse ser infeliz. Se o consultassem, de modo algum faria Júpiter o que fizeram três deuses, que terminantemente se negaram a ceder seu lugar a seu antepassado e rei. Porque, como dizem seus escritos, querendo o rei Tarquínio edificar o Capitólio, verificou estar ocupado por outros deuses o local que lhe parecia mais digno e conveniente; não se atrevendo a agir contra o arbítrio deles, crendo que o cederiam a tão grande deus e seu príncipe, porque havia muitos ali onde foi mais tarde o Capitólio, inquiriu, por augúrio, se queriam ceder o lugar a Júpiter. Todos concordaram com a proposta, menos os mencionados Marte, Término e Juventas. Construiu-se, por isso, de tal modo o Capitólio, que dentro ficassem também esses três, sob a forma de tão obscuros símbolos, que apenas os homens mais sábios podiam descobri-Ias. De maneira alguma Júpiter desprezaria Felicidade, como o desprezaram Término, Martee Juventas. Esses mesmos, porém, que não cederam a Júpiter, sem dúvida alguma cederiam a Felicidade, que como rei lhes dera Júpiter. E, caso não cedessem, não o fariam por desprezá-la, e sim porque preferiam ser desconhecidos em casa de Felicidade a brilhar sem ela em seus altares privativos. 4. Constituída, assim, a deusa Felicidade em lugar tão elevado e vasto, todos os cidadãos saberiam onde os votos legítimos deveriam esperar acolhimento. E, assim, por inspiração dela, abandonariam essa multidão supérflua de deuses, tributariam culto a Felicidade apenas, a ela só elevariam rogos, lhe frequentariam o templo unicamente os cidadãos que quisessem ser felizes, entre quem não haveria pessoa que não o quisesse, e desse modo lhe pediriam o que pediam a todos. Quem quer receber algo de determinado deus e não quer a felicidade ou o que julga pertinente à felicidade? Portanto, se a felicidade tem a seu alcance estar com quem queira, e o tem se é deusa, qual a grande precisão de pedir a outro deus a felicidade, que podes obter dela mesma? Deveriam, pois, honrar essa deusa acima dos demais deuses, inclusive com a majestade do lugar. Segundo se lê neles, os antigos romanos renderam mais culto a certo Surnano, a quem atribuíam os raios noturnos, que a Júpiter, a quem pertenciam os raios diurnos. Mas, depois que para Júpiter se construiu soberbo e sublime templo, em tal escala a multidão acorreu a ele, por causa da magnificência do edifício, que apenas se encontra quem recorde haver lido o nome de Sumano, que já não pode ouvir. E, se a felicidade não é deusa, porque, essa a verdade, é dom de Deus, busque-se o Deus que pode dá-Ia e abandone-se o bando de falsos deuses, adorado pela inconsequente grei dos homens insensatos, que transformam em deuses os dons de Deus e com obstinada e soberba vontade ofendem Aquele de quem são esses dons. Desse modo, não pode carecer de infelicidade quem adora a felicidade, como se fosse deusa, e abandona Deus, dispensador da felicidade, como não pode carecer de fome quem lambe pão pintado e não pede ao homem que realmente o tem. CAPÍTULO XXIV Por que razão os gentios sustentam que se devem adorar os dons de Deus, como se deuses fossem. Agrada-me ponderar-lhe as razões. Perguntam: É crível haverem nosso antepassados sido tão néscios que ignorassem tratar-se de dons divinos, não de deuses? Mas, como não ignoravam que tais coisas não se concediam a ninguém, senão por intermédio de algum deus, e não atinavam com o nome desses deuses, impunham aos deuses o nome das coisas que, segundo lhes parecia, lhas davam. Assim inventaram alguns vocábulos, como Belona, tomado de bello, e não bellum; como Cunina, de cunis, e não cuna; como Pomona, de pomis, e não pomum; como Segécia, de segetibus, e não segetem: como Bubona, de bubus, e não bobem. Ou também, sem violentar em nada o vocábulo, com o nome das próprias coisas; assim, à deusa da pecúnia se chamou Pecúnia, mas em absoluto não consideraram deusa a pecúnia; assim, Virtude à que dá a virtude; Honor, ao que dá a honra; Concórdia, à que dá a concórdia; Vitória, à que dá a vitória. De igual maneira, dizem, quando S8 chama deusa a Felicidade; não se leva em conta a coisa dada, mas o nume que dá a felicidade. CAPÍTULO XXV O único Deus a quem se deve culto e que, embora lhe ignorem o nome, sabem, todavia, ser dispensador da felicidade. Dando-nos essa razão, com muito maior facilidade, talvez, àqueles cujo coração não se encontre demasiado endurecido intimaremos o que intentamos. Se a fraqueza humana sentiu que a felicidade não pode dá-Ia senão algum Deus, se esse sentimento animou os homens, que adoravam tantos deuses, entre quem se contava seu próprio rei, Júpiter, e porque ignoravam o nome do que dava a felicidade, por isso quiseram chamá-lo pelo nome da coisa que, segundo criam, lhes dava, conclui-se que estavam convencidos de que nem o próprio Júpiter, a quem já adoravam, podia dar a felicidade, mas apenas podia outorgá-la Aquele que, sob o nome de Felicidade, pensavam dever-se adorar. Não hesito em confirmar-lhes a crença de que a felicidade a dava certo Deus, a quem desconheciam. Busquem esse Deus, adorem-no e basta. Repilam esse tumultuoso bando de demônios; não baste esse Deus a quem não lhe basta seu dom. Não lhe baste, repito, o Deus dispensador da felicidade, para adorá-lo, a quem não basta a felicidade para recebê-la. Mas, a quem lhe basta (e o homem, para recebê-la, precisa apenas desejá-la) sirva a Deus, único dispensador da felicidade. Não é o chamado Júpiter, porque, se o considerassem dispensador da felicidade, sem dúvida não buscariam, com o nome de Felicidade, outro ou outra que a desse, nem opinariam dever-se, com tamanhos ultrajes, adorar Júpiter. A este chamam adúltero e dizem-no impudico, amante e raptor do formoso efebo Ganimedes. CAPÍTULO XXVI Os jogos cênicos e a celebração que os deuses exigiam dos que os adoravam. Ficções de Homero, que humaniza os deuses, diz Cícero; melhor fora que divinizasse os homens. Com razão o ilustre romano censura o poeta inventor de crimes divinos. Por que em seus escritos os mais sábios colocam entre as coisas divinas os jogos cênicos, em que se contam, se cantam, se representam e se exibem, em homenagem aos deuses, semelhantes ruindades? Aqui Cícero erguerá a voz contra os costumes dos antepassados, não contra as ficções dos poetas. Porventura não a ergueram também eles: Que fizemos? Os deuses instaram-nos a fazê-lo em sua honra, e assim nos ordenaram com crueldade, prognosticaram-nos inúmeras calamidades, caso não o fizéssemos; mas, porque nos descuidamos, vingaram-se severamente de nós; e, como depois se levou a efeito o esquecido, mostraram-se aplacados. Entre suas virtudes e feitos maravilhosos menciona-se o seguinte: Tito Latino, rústico pai de família, romano, foi em sonho mandado anunciar ao senado a necessidade de recomeçar os jogos cênicos, porque, no primeiro dia, certo criminoso fora conduzido ao suplício em presença do povo. Triste fato, que desagradou aos deuses, ávidos da hilaridade dos jogos! No dia seguinte, não se atreveu a cumprir o mandato; voz mais imperiosa intima-o a obedecer, na noite subsequente. Perdeu o filho porque não o fez. Na terceira noite, a mesma voz disse ao homem que o esperava castigo ainda maior, caso não executasse a ordem que lhe fora dada. Contudo, por timidez, caiu em perigosa e horrível enfermidade. Então, aconselhado pelos amigos, levou o caso ao conhecimento dos magistrados, que o conduziram, em liteira, ao Senado. Exposto o sonho e recobrada no mesmo instante a saúde, volta a pé para casa. Estupefato com tamanho milagre, o Senado ordenou que começassem de novo os jogos, quadruplicando-se as despesas. Quem quer que esteja em perfeito juízo não percebe que os homens sujeitos aos malignos demônios, de cujo poder não os livra senão a graça de Deus, por Jesus Cristo, Senhor nosso, se viram forçados a exibir a tais deuses coisas que, judiciosamente ponderadas, podem ser consideradas verdadeiras torpezas? É certo que as velhacarias poéticas a respeito dos deuses eram, por ordem do Senado, abundantes nesses jogos. Neles, os mais imundos histriões cantavam, representavam e deleitavam Júpiter, corruptor da pudicícia. Se se tratava de ficção, devia ficar zangado; se se alegrava com suas velhacarias, embora fingidas, como lhe rendiam culto, sem gemerem nas garras do demônio? E possível houvesse fundado, expandido e mantivesse o Império romano esse deus, mais vil que o último dos romanos, a quem desagradavam tais perversidades? Daria a felicidade esse deus, que tão infelizmente era adorado e, se não o adorassem assim, se irava mais infelizmente ainda? CAPÍTULO XXVII Três gêneros de deuses que constituíam objeto das discussões do pontífice Cévola. Contam os livros haver o doutísimo pontífice Cévola discutido sobre três gêneros tradicionais de Deus: um, dos poetas; outro, dos filósofos; o terceiro, dos príncipes da cidade. O primeiro gênero diz que é frívolo, porque nele se fingem muitas coisas indignas dos deuses; o segundo, que não convém às cidades por conter algumas superfluidades e coisas cujo conhecimento prejudicaria os povos. Sobre as superfluidades não se apresenta grande problema, pois costumam dizer os jurisperitos: "O supérfluo não prejudica." E que coisas são essas que, proferidas, prejudicam a multidão? Estas, declara: não serem deuses Hércules, Esculápio, Castor e Pólux, porque, ensinam os sábios, foram homens e correram o risco da condição humana. Que mais? Que não tenham as cidades verdadeiras estátuas dos que são deuses e que o verdadeiro Deus não tem sexo, nem idade, nem membros corporais definidos. Isso não quer o pontífice que o saibam os povos, porque o tem por verdadeiro. Julga, pois, conveniente que as cidades se enganem no tocante à religião. O próprio Varrão não hesita em afirmá-la nos livros Sobre as Coisas Divinas. Bonita religião! Acode a ela o enfermo, para verse livre, e busca verdade que o liberte; julgam, entretanto, conveniente que se engane. É certo que nos mesmos escritos não se passa em silêncio o motivo por que Cévola rejeita os deuses dos poetas, a saber, porque deformam os deuses ao extremo de não serem comparáveis com os homens bons, posto que de um fazem ladrão, de outro, adúltero. Do mesmo modo, fazem-nos dizer e agir, torpe e nesciamente, contra sua própria natureza. Três deuses, dizem, contenderam entre si sobre quem ganharia o prêmio de beleza; dois deles, vencidos por Vênus, destruíram Tróia. Converteram Júpiter em boi ou em cisne, para dormir com determinada mulher; casam as deusas com os homens; Saturno devora os filhos. Em suma, é impossível fingir-se algo admirável e vicioso que não tenha ali cabimento e seja muito alheio à natureza dos deuses. O Cévola, pontífice máximo, proscreve os jogos, se podes! Ordena aos povos que não ofereçam tais honras a deuses imortais nos lugares em que gostem de admirar-lhe as velhacarias, para depois imitá-las quanto lhes for possível. Vós, pontífices, introduzistes esses jogos. Rogai a esses deuses, primeiros a instituí-las, que não mandem exibir em sua honra semelhantes ruindades. Se perversas e, portanto, de nenhum modo críveis na majestade dos deuses, maior a injúria feita aos deuses, pois a ficção lhes assegura impunidade. Não te escutam, porém, são demônios, ensinam maldades, deleitam-se nas torpezas; e, longe de ofenderem-se, por serem julgados capazes da prática de tais atos, considerariam ofensa mortal que em suas festividades se esquecessem de representá-las. Enfim, contra eles invocarás Júpiter, porque os jogos cênicos lhe atribuem maior número de crimes? Mas reconhecendo nele o Deus que administra e rege o mundo todo, não lhe irrogais a maior das injúrias, pelo simples fato de o julgardes digno de culto com as demais divindades e o confessardes seu rei? CAPÍTULO XXVIII Na obtenção e dilatação do Império romano teve alguma influência o culto aos deuses? Tais deuses, que se aplacam ou, para melhor dizer, se incriminam com semelhantes homenagens, que maior culpa é deleitar-se de crimes imaginários que comprazer-se com a representação de verdadeiros, de modo algum poderiam engrandecer e conservar o Império romano. Se pudessem, antes fariam partícipes desse dom de tal maneira soberano os gregos, que lhes renderam culto mais honroso e digno nessas coisas divinas, isto é, nos jogos cênicos, visto como não se furtaram às dentadas dos poetas, que pareciam dilacerar os deuses, dando-lhas licença para difamar os homens que entendessem, e não consideraram torpes os hístriões, mas, ao contrário, julgaram-nos dignos de honras insignes. Assim como os romanos puderam, sem tributar culto ao deus Aurino, ter moeda de ouro, assim também puderam ter a de prata e a de cobre, sem adorarem Argentino, nem Esculano, seu pai. E assim quanto aos demais, que seria fastidioso enumerar. Desse modo, pois, contra a vontade do verdadeiro Deus, de maneira alguma lhes seria possível possuir o reino. E, se permanecessem na ignorância dessa turba de deuses falsos, a desprezassem, conhecessem o Único e o adorassem com fé sincera e bons costumes, aqui gozariam de reino tanto melhor, quanto maior fosse, e depois dele conquistariam o reino eterno, houvessem ou não dominado nesta vida. CAPÍTULO XXIX Falsidade do augúrio que pareceu índice da estabilidade e fortaleza do Império romano. Que significa o augúrio, belíssimo por certo, de que há pouco fiz menção, a saber, que Término, Marte e Juventas não quiseram ceder seu lugar a Júpiter, rei dos deuses? Significou-se dessa maneira, dizem, que a gente marcial, isto é, a romana, a ninguém cederia o lugar por ela ocupado, que, em sinal de respeito ao deus Término, ninguém mudaria as fronteiras romanas e que a juventude romana, em honra à deusa Juventas, não cederia a ninguém. Vejam que conceito faziam do rei dos deuses e protetor do Império, se lhe opunham semelhante augúrio em nome de adversário a quem era decoroso não ceder. Se verdadeiras são todas essas coisas, não têm, absolutamente, por que temer. Não confessarão haverem cedido a Cristo os deuses que não quiseram ceder a Júpiter, porque, salvos os confins do Império, podiam ceder a Cristo os lugares em que moravam e o coração dos crentes. Mas, antes do advento de Cristo na carne, antes, enfim, de nada haver sido escrito do que lhes extraímos dos livros e depois do auspício feito no reinado de Tarquínio, viu-se o Império romano, algumas vezes, na precisão de dissolver-se, isto é, de pôr-se em fuga. Isso provou ser falso o agouro de que Juventas não cederia a Júpiter. A vitoriosa irrupção dos gauleses esmagou, na própria cidade, a gente de Marte e, passando muitas cidades para o bando de Aníbal, viram-se angustiosamente estreitados os limites do Império. Esfumou-se, desse modo, o feliz augúrio e permaneceu contra Júpiter a teimosia dos demônios, não dos deuses. Uma coisa é não abandonar o posto e outra é reocupá-lo. Além disso, nas regiões orientais os limites do Império romano mais tarde sofreram modificação por vontade de Adriano. Concedeu ao império dos persas três nobres províncias: Armênia, Mesopotâmia e Assíria. Isso parece provar que o deus Término, defensor, segundo eles, das fronteiras romanas e que, de acordo com o admirabilíssimo augúrio, não cedera seu lugar a Júpiter, teve mais medo de Adriano, rei dos homens, que de Júpiter, rei dos deuses. Mais tarde, quase em nossos dias, recobradas as referidas províncias, as fronteiras voltaram a ser as anteriores. Isso aconteceu quando Juliano, dado aos oráculos desses deuses, com descomedido atrevimento mandou atear fogo a navios que conduziam víveres, de modo que o exército, falto deles e logo a seguir ferido de morte pelo inimigo, se viu reduzido a tal escassez, que ninguém escaparia aos ataques que os inimigos faziam a soldados que a morte de seu general desorientara, se não se houvessem fixado ali, por tratado de paz, os limites do Império, limites que perduram até hoje, não, por certo, reduzidos como haviam ficado por culpa de Adriano, mas, pelo contrário, estabelecidos por meio de acordo. Augúrio vão! O deus Término, que não cedeu a Júpiter, dobrou-se à vontade de Adriano, rendeu-se à temeridade de Juliano e à necessidade de Joviano. Advertiram-no os mais inteligentes e ponderados romanos. Que podiam, entretanto, contra o costume de cidade que se obrigara a tão demoníacos ritos? Porque também eles, embora percebessem tratar-se de futilidades, pensavam dever exibir-se à natureza das coisas constituídas sob o regime e império do único e verdadeiro Deus, o culto devido a Deus, servindo, como diz o Apóstolo, a criatura e não o Criador, para sempre bendito. Era necessário o auxílio de Deus verdadeiro, que envia homens santos e verdadeiramente piedosos, que, morrendo pela verdadeira religião, fazem no coração dos viventes desaparecer as falsas religiões. CAPÍTULO XXX Coisas que os deuses gentios confessam sentir de quem os adora. Cícero, áugure, caçoa dos augúrios e repreende os homens que vivem de acordo com as vozes de corvo e gralha. Mas esse filósofo da Academia, que sustenta a incerteza de todas as coisas, não merece crédito nessa matéria. No Livro Segundo da Natureza dos Deuses faz intervir na discussão Q. Lucílío Balbo, que, atribuindo determinadas razões naturais e filosóficas às superstições, não deixa de indignar-se contra a instituição dos ídolos e contra as opiniões fabulosas, falando deste modo: Não percebeis que dos bons e úteis descobrimentos das coisas físicas fOi o homem arrastado para a ficção de deuses imaginários? Tal fato é fonte de opiniões falsas, erros funestos e superstições ridículas. E nos são conhecidas a figura dos deuses, idade, ornamento e roupagem e, além disso, o sexo, casamentos, parentescos e tudo o mais. Reduzem-nos ao nível da fraqueza humana. Pintam-nos, também, com perturbações anímicas, posto incidirem em nós os apetites, enfermidades e iracúndias dos deuses, que, igualmente, como referem as fábulas, não careceram de guerras e dissensões. E isso não somente quando, como acontece em Homero, alguns deuses de uma parte, e outros, doutra, defendiam dois exércitos contrários, mas também quando travaram suas próprias batalhas contra os Titãs ou gigantes. Contam-se e creem-se tais coisas com inqualificável ignorância, porque repletas de vaidade e estúpida leviandade. E o que confessam os defensores dos deuses do paganismo. A seguir, dizendo que tudo isso pertence ao domínio da superstição e da religião, que Cícero, segundo parece, ensina de acordo com os estoicos, diz: Não apenas os filósofos, mas também nossos antepassados, separaram da superstição a religião, porque àqueles que erguiam súplicas diárias e sacrificavam para que os filhos sobrevivessem chamaram supersticiosos. Quem não lhe compreende o intento de enaltecer a religião dos antepassados, ao mesmo tempo que receia o costume da cidade? Quem não lhe compreende o desejo de estabelecer linha divisória entre a religião e a superstição, embora não encontre possibilidade? Se os antepassados deram o nome de supersticiosos aos que cotidianamente erguiam súplicas e sacrificavam, são porventura supersticiosos também os instituidores, censurados por ele, dos diversos simulacros dos deuses, diferenciados unicamente pela idade ou pela roupagem, sexo, casamentos e parentescos? Ao tachá-lo de superstição, sem dúvida também inculpa os instituidores e adoradores de tantos simulacros e se inclui a si mesmo, que por maior esforço que fizesse para ver-se livre disso, valendo-se da eloquência, tinha necessidade de venerá-los. E isso, que tão elegante soa no discurso, não ousará dizê-lo em voz baixa em alocução ao povo. Nós, cristãos, demos graças ao Senhor Deus nosso, não à Terra e ao céu, como pretende esse filósofo, mas ao Criador do céu e da Terra, que deu em terra com essas superstições, contra as quais Balbo mal se atreve a balbuciar alguma censura. Reduzem-nas a pó a profunda humildade de Cristo, a pregação dos apóstolos e a fé manifestada pelos mártires, que vivem com a verdade e morrem pela verdade. E arrancou-as não apenas dos corações religiosos, mas também dos templos supersticiosos. CAPÍTULO XXXI Pensamento de Varrão, que, rechaçando a crença popular, embora não chegasse ao conhecimento do Deus verdadeiro, pensou dever-se tributar culto a um Deus apenas. 1. Quê? O próprio Varrão, que lastimamos haja entre as coisas divinas colocado os jogos cênicos, embora não por iniciativa própria, quando em diversas passagens exorta ao culto dos deuses, não confessa não estar de acordo com seu próprio critério o que refere da instituição feita pela cidade romana? E de tal maneira o faz, que não vacila em afirmar que, se constituísse nova cidade, consagraria com maior tino seus deuses e seus nomes de acordo com sua natureza. Mas, porque isso estava em vigência no antigo povo, afirma dever-se conservar a história dos nomes e sobrenomes recebida dos antepassados, tal como fora transmitida, e ser esse objetivo o que persegue, ao escrever e investigar que o vulgo queira mais render-lhes culto que desprezá-los. Com essas palavras dá essa agudíssima inteligência a entender suficientemente que não manifesta tudo quanto apenas ele desprezava, mas também o que, segundo a opinião do vulgo, seria desprezível, se não o calasse. Isso induzirá à crença de tratar-se de apreciações minhas. Assim fora, se não evidenciasse o contrário outro lugar em que ele mesmo diz, falando das religiões, haver muitas coisas verdadeiras que não somente é útil que as não saiba o vulgo, mas que outrossim, embora fossem falsas, convém que as julguem doutro modo. Essa a razão, acrescenta, que levou os gregos a ocultar atrás do silêncio e das paredes suas consagrações e mistérios. Nesse ponto, é certo, descobriu todo o pensamento de sabichões que administram as cidades e os povos. Os malignos demônios, entretanto, deleitam-se de modos maravilhosos, possuem ao mesmo tempo enganadores e enganados e de sua tirania apenas é capaz de livrar-nos a graça de Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo. 2. Esse mesmo autor, de tal maneira profundo e sábio, diz ser de parecer que somente compreenderão que é Deus aqueles que acreditaram ser a alma governadora do mundo, com movimento e razão. Em consequência, mesmo não estando de posse da verdade, porque o Deus verdadeiro não é a alma, mas o Criador da alma, se pudesse desligar-se dos preconceitos do costume, confessaria e aconselharia o culto a um Deus único, que governa o mundo com movimento e razão. Permanece pendente entre ele e nós apenas a questão de dizer ele ser Deus alma e não o Criador da alma. Afirma, além disso, haverem os antigos romanos vivido mais de cento e sessenta anos tributando culto aos deuses, sem simulacro. E acrescenta: Se tal uso perdurasse, o culto aos deuses seria mais puro. Aduz, entre outras provas do que pensa, o exemplo da nação judia e não hesita em rematar a referida passagem com a afirmação de que os primeiros a dar aos povos as estátuas dos deuses tiraram das cidades o medo e lhes aumentaram o erro, na cordata persuasão de ser mais possível e mais fácil desprezar os deuses na estupidez dos simulacros. E, ao dizer aumentaram-no e não ensinaram erro, pretende, sem dúvida, dar a entender que mesmo sem os simulacros havia erro. Por isso, quando afirma que apenas aqueles que acreditam ser deus a alma governadora do mundo compreenderão que é, e julga que, sem imagens, a religião será mais pura, quem não vê quanto se aproxima da verdade? Se pudesse alguma coisa contra erro assim profundamente enraizado, sem dúvida julgaria dever-se adorar sem imagem a um só Deus, por quem, conforme acredita, o mundo é governado. E, por encontrar-se tão próximo, talvez com facilidade percebesse ser a alma mutável e sentisse que o Deus verdadeiro, criador da própria alma, é natureza incomutável. Sendo assim, fossem quais fossem os ludíbrios da pluralidade de Deus, escritos por esses homens, é certo que se viram obrigados a confessá-los por oculta vontade de Deus, mais do que por afã de convencer. Se lhes citamos alguns testemunhos, aduzimo-los precisamente para rebater os que querem permanecer no grande e tirânico domínio dos demônios, de que nos livram o singular sacrifício de tão precioso sangue derramado e o dom do Espírito que nos foi dado. CAPÍTULO XXXII O porquê do interesse dos chefes dos gentios na manutenção das falsas religiões entre os povos a eles sujeitos. Varrão nota, além disso, que no tocante às genealogias dos deuses os povos se inclinaram mais aos poetas que aos filósofos e esse é o motivo por que seus antepassados, isto é, os antigos romanos, admitiram o sexo e o nascimento dos deuses e os uniram em casamento. Isso, na realidade, não parece ter outro móvel senão o interesse dos homens prudentes e sábios em enganar o povo nas religiões e nelas não apenas cultuar, mas também imitar os demônios, cuja máxima apetência é seduzir-nos. Assim como os demônios não podem possuir senão aqueles a quem enganaram com falácia, assim também os chefes, não certamente os justos, mas os semelhantes aos demônios, com o nome de religião verdadeira aconselhavam aos povos o que sabiam tratar-se de vaidade, ligando-os, desse modo, mais estreitamente à sociedade civil e tornando-os joguetes seus. Quem, ignorante e fraco, esquivará como enganadores tanto os governantes da cidade como os demônios? CAPÍTULO XXXIII A ordenação da permanência dos reis pende dos juízos e do poder do verdadeiro Deus. Esse Deus, autor e dispensador da felicidade, porque só Ele é verdadeiro Deus, é o único que distribui a bons e maus os reinos terrestres. E isso não o faz temerária, nem fortuitamente, pois é Deus, não fortuna, mas de acordo com ordem de coisas e de tempo, oculta para nós e conhecidíssima dele. A essa ordem de tempo não obedece como escravo, mas regula-a como senhor e dispõe-na como moderador. Mas a felicidade não a dá senão aos bons. Podem não possuí-la e tê-la os que o servem; podem também carecer dela aqueles que reinam. Mas será completa na vida em que ninguém será escravo. E, por isso, dá os reinos terrestres a bons e maus, porque é de temer que seus servidores, crianças ainda no aproveitamento do espírito, desejem dele, como algo de grande valor, semelhantes dons. Esse o mistério do Antigo Testamento, em que se encontrava latente o Novo. Ali se prometiam e davam bens terrestres, mas os homens espirituais da época entendiam e pregavam, embora não abertamente, serem aqueles bens temporais figura da eternidade e em que dons de Deus se encontrava a felicidade verdadeira. CAPÍTULO XXXIV O reino dos judeus instituiu-o e conservou-o o único e verdadeiro Deus, enquanto permaneceram na verdadeira religião. Além disso, para dar a conhecer que também os bens terrenos, única aspiração de quem não sabe pensar em coisas melhores, se acham sob o poder do único Deus e não sob o de muitos e falsos, a quem, segundo os romanos acreditavam, se devia tributar culto, multiplicou prodigiosamente seu povo no Egito e tirou-o de lá por meios maravilhosos. As judias não invocaram Lucina, quando, para multiplicar e fazer crescer de modo extraordinário o povo, livrou suas criaturas das mãos dos egípcios que as perseguiam e queriam dar morte a todas elas. Deus salvou-as. Mamaram sem a deusa Rumina e sem a deusa Cunina estiveram no berço. Sem Educa e Potina tomaram alimento e bebida. Educaram-se sem tantos deuses pueris, casaram-se sem deuses conjugais e sem o culto a Priapo uniram-se a suas mulheres. Sem invocarem Netuno, deu-lhes passagem franca o mar, dividindo-se, e sepultou os inimigos que os perseguiam, reunindo novamente as águas. Não consagraram nenhuma deusa Mânia, quando receberam maná do céu, nem quando, sedentos, ferida a rocha, brotou água, adoraram Ninfas, nem Linfas. Fizeram guerras, sem as loucas cerimônias de Marte e Belona. E, se é verdade não haverem vencido sem a vitória, não a consideraram deusa, mas dom de seu Deus. Do único e verdadeiro Deus receberam muito mais felizmente messes sem Segécia, bois sem Bubona, mel sem Melona, maçãs sem Pomona, e tudo por quanto os romanos imaginaram conveniente dirigir súplicas a tamanha turba de falsos deuses. E, se não pecassem contra Ele com ímpia curiosidade, cedendo à sedução das artes mágicas, e não adorassem deuses estranhos e ídolos e, ultimamente, não matassem Cristo, permaneceriam no mesmo reino, se não mais espaçoso, pelo menos mais feliz. O fato de estarem agora dispersos por quase todo o orbe e entre todas as gentes é providência do único Deus verdadeiro, a fim de seus livros serem documento certificador de que isso já estava profetizado havia muito, isso de que agora se destruiriam por toda parte as imagens dos falsos deuses, seus altares, bosques sagrados e templos, se proibiriam seus mistérios, para que não acontecesse, talvez, que, por ser lido nos nossos, acreditassem tratar-se de invenção nossa. O restante dessas considerações reservamo-lo para o livro seguinte. Ponhamos, aqui, termo à prolixidade deste. LIVRO QUINTO Trata, no começo, da obrigação de rechaçar o parecer do fatalismo, a fim de no futuro não haver quem queira atribuir à fatalidade as forças e o incremento do Império romano, coisa que, como se provou à saciedade no Livro anterior, não pode correr à conta dos deuses falsos. Daí, declinando a questão à presciência de Deus, demonstra não ficar suprimido por ela o livre-arbítrio de nossa vontade. Fala, em seguida, dos antigos costumes dos romanos e de por que merecimentos deles ou por que juízo de Deus aconteceu que, para aumentar seu império, os secundou o Deus verdadeiro, que não adoravam. E, por fim, ensina em que deve pôr-se a verdadeira felicidade dos imperadores cristãos. PRÓLOGO Consta que o máximo de todas as coisas que se devem desejar é a felicidade, que não é deusa, mas dom de Deus; portanto, deus algum deve ser adorado pelos homens, salvo o que possa fazê-las felizes. Donde se segue que, se a felicidade fosse deusa, somente dela se diria, e com razão, cumprir adorá-la. De acordo com isso, já é hora de vermos por que motivo Deus, capaz de dar os bens que podem possuir até os não bons e, por isso, ainda não felizes, quis fosse tão grande e duradouro o Império romano. Por que a turba de falsos deuses que os homens adoravam não fez isso, já o dissemos e onde parecer-nos oportuno repetiremos. CAPÍTULO I A causa do império romano e a de todos os reinos não é fortuita, nem consiste na posição das estrelas. A causa da grandeza do Império romano não é fortuita, nem fatal, segundo o parecer ou opinião dos que dizem ser fortuito o que não tem causa ou, se a tem, não procede de alguma ordem racional, e fatal o que sucede por necessidade de certa ordem, à margem da vontade de Deus e dos homens. Sem dúvida, a divina Providência constitui os reinos humanos. Se alguém o atribui à fatalidade precisamente, porque dá esse nome à vontade de Deus ou a seu poder, pode conservar essa opinião, mas deve corrigir o vocabulário. Por que não diz primeiro o que depois há de responder a quem lhe perguntar o que entende por fatalidade? Porque os homens, ao ouvir isso, segundo a linguagem corrente, não entendem senão a posição dos astros no momento em que alguém nasce ou é concebido. Alguns consideram-na estranha à vontade de Deus, outros afirmam que dela depende. Mas os que opinam que os astros, sem a vontade de Deus, determinam nossas ações, os bens que teremos ou os males que padeceremos, devem ser rechaçados dos ouvidos de todos, não apenas dos ouvidos daqueles que professam a religião verdadeira, mas também dos daqueles que querem ser adoradores de quaisquer deuses, embora falsos. A que conduz semelhante ponto de vista, senão a não adorar ou a suprimir, em absoluto, o culto a um Deus? Não é contra esses, porém, que agora dirigimos nossos ataques, e sim contra os que, para defender seus pretensos deuses, se opõem à religião cristã. Aqueles, todavia, que fazem depender da vontade de Deus a posição das estrelas, que determinam de certo modo os pensamentos e a sorte dos homens, se acreditam terem as estrelas esse poder, recebido do supremo poder de Deus, de tal sorte que decretem voluntariamente essas coisas, fazem grande injúria ao céu. O motivo é pensarem que em seu ilustríssimo cortejo, por assim dizê-lo, e esplendidíssima corte se decretam os crimes que cumpre cometer, crimes que, se alguma cidade terrestre os decretasse, deveria ser destruída por decisão unânime do gênero humano. Por outra parte, se admitida a necessidade celeste, que faculdade de julgar as ações humanas fica reservada para Deus, se Ele é o Senhor dos astros e dos homens? E, se não dizem que as estrelas, recebido do Deus supremo o necessário poder, decretam a seu talante, e sim que, na execução de tais necessidades, cumprem em tudo os mandatos dele, é possível que se deva pensar de Deus o que pareceu indigníssimo pensar da vontade das estrelas? E, se dizem que as estrelas, longe de fazê-lo, o significam, de modo que sua posição seja como que voz que prediz o futuro e não o realiza (parecer esse de homens competentes), respondo não costumarem falar assim os matemáticos. Não dizem, por exemplo: Marte posto deste modo significa homicida, mas: Faz o homicida. Contudo, para convir em que não falam como deveriam e é necessário tomarem dos filósofos a linguagem de que devem servir-se para prognosticar as coisas que julgam encontrar na posição dos astros, que sucede, coisa que jamais lograram explicar, para que haja tamanha diferença na existência de dois gêmeos, em suas ações, em seu destino, em suas profissões e, antes, em suas dignidades e demais coisas tocantes à vida humana e até na própria morte? Às vezes, no concernente a isso, muitos estranhos são mais parecidos com eles, que entre si os próprios gêmeos, separados, ao nascerem, por brevíssimo espaço de tempo e na concepção engendrados pelo mesmo ato carnal e no mesmo instante. CAPÍTULO II Igual e desigual saúde de gêmeos. Cícero diz que o famoso médico Hipócrates deixou escrito que, havendo-se declarado enfermidades em dois irmãos ao mesmo tempo e agravando-se, e aliviando-se simultaneamente, suspeitou serem gêmeos. E o estoico Possidônio, muito dado à astrologia, costumava afirmar que nasceram e foram concebidos em idêntica posição dos astros, de tal sorte que o que o médico acreditava pertencer a muito semelhante compleição de alma, o filósofo astrólogo o atribuía à força, à constituição dos astros existente no momento de serem concebidos e de nascerem. É muito mais aceitável e mais crível, nesse ponto, a conjetura da Medicina, porque os pais, de acordo com sua constituição corporal, enquanto praticavam o ato carnal puderam de tal forma impressionar os princípios da geração, que, desenvolvidos no ventre materno os primeiros incrementos, nasceram de compleição análoga. Depois, alimentados com os mesmos alimentos, e na mesma casa, onde o ar, o ambiente local e as águas exercem grande influência, segundo o testemunho da Medicina, na boa ou má disposição do corpo, e também acostumados aos mesmos exercícios, tiveram corpos semelhantes, propensos a enfermidade similar, ao mesmo tempo e pelas mesmas causas. Querer aduzir, para explicar essa paridade de propensões, a posição do céu e dos astros no momento de serem concebidos ou de nascerem, sendo possível serem concebidos e nascerem muitos de diferentes espécies, diversos caracteres e destinos, ao mesmo tempo, na mesma terra e na mesma região, sujeita ao mesmo céu, insolência tal não sei como qualificar. Gêmeos conheci que não somente praticaram ações e passaram por peripécias diferentes, mas também sofreram enfermidades díspares. Disso, segundo me parece, Hipocrates daria facilmente o motivo, porque a constituição dessemelhante pode atribuir-se à diversidade de alimentos e de exercícios, procedente da vontade anímica, não da compleição corporal. E, sem dúvida, maravilharia que Possidônio ou qualquer outro defensor da fatalidade sideral pudesse achar, nesse ponto, o que responder, se não quisesse abusar das pessoas pouco versadas nessa matéria. O afã de acudir ao pequeno intervalo de tempo que medeia entre o nascimento de um gêmeo e o de outro, por meio da partícula do céu, onde se põe a notação da hora, que chamam horóscopo, não é de tanto valor quanto a diversidade que existe entre a vontade, as ações, os costumes e os acontecimentos da vida dos gêmeos ou tem mais valor que a baixa condição ou a nobreza da linhagem dos gêmeos, cuja diversidade máxima colocam apenas na hora em que cada indivíduo nasce, Em consequência, se nasce tão imediatamente um depois do outro, que a hora do horóscopo permanece a mesma, busco igualdade perfeita que não se pode encontrar em nenhuns gêmeos. Se, contudo, a demora do seguinte muda o horóscopo, busco diversidade de pais, coisa que gêmeos não podem ter. CAPÍTULO II Argumento da roda do oleiro, que o matemático Nigídio aduz para a questão dos gêmeos. Em vão, por conseguinte, se alega a famosa invenção da roda do oleiro, que, referem, Nigídio respondeu para solucionar esse problema, motivo por que lhe chamaram também Fígulo. Lançou uma roda de oleiro com toda a força que pôde. Enquanto a roda rodava com rapidez, marcou-a duas vezes com tinta bem depressa, de tal modo que acreditariam havê-la Nigídio marcado no mesmo ponto. Depois, quando a roda parou, encontraram, separadas por intervalo muito grande, as duas marcas que fizera na roda. Assim, diz, na rápida rotação do céu, mesmo quando alguém nasça atrás de outro com tanta celeridade quanta a que empreguei ao marcar duas vezes a roda, é sempre vasta a distância no espaço celeste. Daí, acrescenta, procedem todas as grandes dessemelhanças manifestadas nos costumes e incidentes da vida dos gêmeos. Tal ficção é mais frágil que as vasilhas feitas com a rotação da referida roda. Porque, se tanto interessa no céu o que não se pode compreender nas constelações, que a um dos gêmeos lhe sobrevém determinada herança e ao outro não, por que ousam observar as constelações dos que não são gêmeos e predizer-lhes coisas pertencentes ao segredo incompreensível e reservado para o instante do nascimento? E, se dizem tais coisas nas genituras dos outros, precisamente porque se trata de intervalos maiores de tempo e os momentos de partes pequenas que podem mediar entre o nascimento dos gêmeos são considerados como uma de tantas ninharias sobre as quais os matemáticos não costumam ser consultados (alguém os consulta, quando se senta, quando passeia, quando ou sobre que come?), porventura havemos de dizê-la, quando nos costumes, nas ações e nos incidentes da vida dos gêmeos se assinalam muitas e muito diversas coisas? CAPÍTULO IV Os gêmeos Esaú e Jacó, de costumes e ações tão diferentes. Nasceram dois gêmeos nos velhos tempos dos patriarcas (para falar dos célebres), de tal maneira um atrás do outro, que o segundo segurava a planta do pé do primeiro. Foi tamanha a desigualdade na vida e costumes de ambos, tamanha a disparidade do procedimento deles, tamanha a dessemelhança no amor que manifestavam para com os pais, que a própria distância chegou a tomá-los inimigos um do outro. Porventura se diz tal coisa, porque, enquanto um deles andava, o outro estava sentado, quando um dormia, o outro permanecia acordado, se este falava, aquele se conservava calado, pormenores que escapam aos que escrevem sobre a posição dos astros em que cada qual nasce e sobre que se consultam os matemáticos? Um deles foi servo mercenário, o outro não serviu; um era amado pela mãe, o outro, não; um perdeu a honra, tida em grande estima entre eles, o outro obteve-a. Que dizer de suas esposas, seus filhos e suas riquezas? Quanta diversidade! Logo, se isso pertence àquelas insignificâncias de tempo que medeiam entre os gêmeos e não se atribui às constelações, por que, examinando as constelações de outros, se dizem semelhantes coisas? E se dizem, por pertencerem, não aos minutos incompreensíveis, mas aos espaços de tempo que podem ser observados e anotados, que faz no caso a roda do oleiro, senão que os homens de coração de barro se ponham em movimento, para não serem convencidos pelo palavrório oco dos matemáticos? CAPÍTULO V Como da futilidade da ciência que professam convencer os matemáticos? Quê? Aqueles dois, cuja enfermidade, que parecia agravar-se e aliviar-se ao mesmo tempo em ambos, reconhecida medicamente por Hipócrates, o levou a suspeitar que se tratava de gêmeos, acaso não constituem refutação bastante do erro dos que pretendem atribuir aos astros o que procedia de semelhante compleição corporal? Por que enfermavam de igual modo e ao mesmo tempo, não um primeiro e o outro depois, como nasceram, porque ambos sem dúvida não poderiam nascer concomitantemente? E, se para enfermarem em tempos diversos não teve a menor importância o haverem nascido em tempos diferentes, por que se empenham em sustentar que a diversidade de tempo, ao nascer, influi na diferença de outras coisas? Por que puderam viajar em tempos diversos e em tempos diversos tomar mulheres, procriar filhos em tempos diversos e muitas outras coisas mais, precisamente porque nasceram em tempos diversos, e não puderam, pela mesma razão, enfermar em tempos diversos? Se a diferente demora em nascer mudou o horóscopo e introduziu diferença nas demais coisas, por que nas enfermidades se fez sentir a identidade do momento da concepção? E, se a fatalidade da constituição física consiste na concepção e a das outras coisas se diz estar no nascimento, não deveriam, ao examinar as constelações do nascimento, dizer algo sobre a constituição física, visto não se lhes permitir a observação da hora concepcional. E, se predizem as enfermidades, sem observar o horóscopo da concepção, porque o momento do nascimento as indica, como diriam a qualquer dos gêmeos, desde a hora de seu nascimento, quando havia de ficar doente, se também o outro, que não tinha a mesma hora de nascimento, necessariamente havia de enfermar ao mesmo tempo? Ademais, pergunto: Se é tamanha a distância de tempo do nascimento de dois gêmeos, que por causa dela seja preciso que difiram suas constelações pela diversidade do horóscopo e, por conseguinte, todos os gonzos, em que reside a força de que procedem também os diferentes destinos, como é que isso se tornou possível, se a concepção deles foi necessariamente simultânea? E, se pudessem existir diferentes destinos para o nascimento de dois indivíduos concebidos ao mesmo tempo, por que não poderiam existir destinos diferentes para viver e para morrer de dois indivíduos nascidos ao mesmo tempo? Com efeito, se o mesmo instante em que ambos foram concebidos não impediu que um deles nascesse primeiro e depois o outro, por que o nascerem duas pessoas no mesmo instante há de impedir que este morra primeiro, e aquele, depois? Se a concepção simultânea permite aos gêmeos terem acidentes diversos no útero materno, por que a natividade simultânea não permitirá também a esses dois terem incidentes diversos no mundo, fazendo, assim, desaparecerem todas as invenções dessa arte ou, para melhor dizer, dessa vaidade? Que razão há para que os concebidos ao mesmo tempo, no mesmo instante, sob a mesma posição do céu, tenham diferentes destinos, que os conduzam a nascimento em horas diferentes? E que razão há para dois indivíduos, nascidos igualmente de duas mães diferentes, em idêntico momento sob a mesma posição do céu, não poderem ter diferentes destinos, que os conduzam a diversa necessidade de viver ou morrer? Ou será que os concebidos ainda não têm destino e, se não nascerem, não podem tê-lo? Por que, pois, dizem que, se se verifica a hora concepcional, podem dizer muitas coisas tais adivinhos? Isso deu lugar a que alguns apregoem haver certo sábio escolhido a hora para dormir com a mulher, com o fito de engendrar filho admiravelmente dotado. Do que, e essa é também a opinião de Possídônío, grande astrólogo e filósofo, sobre os gêmeos que ficavam doentes ao mesmo tempo, se deduz dever-se a enfermidade ao haverem nascido e sido engendrados ao mesmo tempo. E é certo que acrescentava a concepção, para não dizer-se que não podiam nascer ao mesmo tempo pessoas que constava haverem sido concebidas simultaneamente. Com isso pretendia que o enfermarem de igual modo e ao mesmo tempo não se atribuísse de momento à igualdade da compleição corporal, mas a fizessem depender da compleição dos nexos sidéreos. Se na concepção é tão enorme a força para a igualdade de destinos, não deveriam estes mudar, por ocasião do nascimento. E se os signos dos gêmeos são mudados cabalmente, porque nascem em tempos diversos, por que não entendermos, então, que já se haviam trocado, a fim de nascerem em tempos diferentes? É possível que a vontade dos que vivem não mude os destinos do nascimento, se a ordem dos que nascem muda os da concepção? CAPÍTULO VI Gêmeos de sexo diferente. Ademais, na concepção de gêmeos verificada no mesmo instante, donde procede que sob a mesma constelação fatal se concebam dois indivíduos, um, homem, outro, mulher? Conhecemos gêmeos de sexo diferente. Ambos ainda vivem, ambos estão na flor da idade. Embora de traços corporais semelhantes, quanto é possível entre seres de sexo diferente, no comportamento e no gênero de vida revelam-se de tal maneira dessemelhantes, que, fora das ações femininas, que necessariamente diferem das viris, ele milita no ofício de conde e quase sempre está fora de casa, em viagem, e ela não se separa do solo pátrio, nem de suas terras. Além disso (coisa mais incrível, se dermos crédito à fatalidade dos astros, e não estranha, se considerarmos as vontades dos homens e os dons de Deus), ele é casado, e ela, virgem consagrada a Deus; ele, pai de muitos filhos; ela nem mesmo casou. Então, é grande o poder do horóscopo? Sobre sua enorme vacuidade já dissertei bastante. Mas, seja qual for, dizem que influi no nascimento. Acaso também na concepção, em que é manifesto haver apenas um ajuntamento carnal? E é tal a ordem da Natureza, que, em a mulher concebendo uma vez, depois não pode conceber outro. Donde resulta, necessariamente, serem os gêmeos concebidos no mesmo instante. Porventura, porque nasceram sob horóscopo diferente, aquele, ao nascer, virou homem, e esta, mulher? Possível é, por conseguinte, sustentar-se, não de todo absurdamente, que certos influxos sidéreos valem apenas para as diferenças corpóreas, como vemos variarem também as estações do ano, de acordo com o movimento do Sol, e, conforme as fases da lua, além do admirável fenômeno do fluxo e refluxo do oceano, vemos que os ouriços do mar e as ostras aumentam ou diminuem, e que a vontade dos homens não se subordina à posição dos astros. O fato de agora esses se esforçarem em fazer que dela dependam nossos atos nos previne para investigarmos como essa razão que apresentam impossível é de provar-se até mesmo nos corpos. Que há de tal modo concernente ao corpo como o sexo? E, todavia, sob a mesma posição dos astros, puderam ser concebidos gêmeos de sexo diferente. Portanto, que maior disparate se pode dizer ou imaginar que supor não poder a posição sideral, a mesma para a concepção de ambos, fazer com que, apesar de ser a mesma a constelação, não tivessem sexo diferente, e pensar que a posição sideral que presidia a hora do nascimento pôde fazer interpor-se entre ambos a distância que vai do casamento à santidade virginal? CAPÍTULO VII Escolha de dia para se unir à mulher ou para semear ou plantar algo no campo. Quem admitirá que, ao escolher os dias, se lhe deparem alguns novos destinos para seus atos? Com efeito, o referido sábio não nascera para ter filho excelente, mas, antes, para gerá-lo desprezível, e, por isso, homem douto que era, escolheu hora para se unir à sua mulher. Forjou destino que não tinha e desde esse instante começou a ser fatalidade para ele o que na hora do nascimento não seria. Singular estupidez! Escolhe-se dia para se unir à mulher, segundo penso, precisamente porque pode, se não se escolhe, cair em dia não bom e unir-se a ela sob maus auspícios. Onde está, pois, o que os astros já decretaram a quem nascia? Pode o homem, por escolher o dia, mudar o que já se encontra determinado? Não pode outro poder mudar o que o homem, por sua escolha, houver determinado? Logo, se só os homens, não todas as demais coisas que se encontram sob o manto do céu, estão sujeitos às constelações, por que escolher certos dias para semear, plantar a vinha e árvores, outro dia para a doma de animais ou para cobrir-lhes as fêmeas e, assim, multiplicarem-se as éguas ou os bois, e outras operações do mesmo jaez? Se os dias escolhidos têm poder cabal para essas coisas porque a posição dos astros, de acordo com a diversidade dos momentos temporais, domina sobre todos os corpos terrestres, animados ou inanimados, ponderem quão inumeráveis são os que nascem, brotam ou têm princípio no mesmo instante e, todavia, têm mortes de tal maneira diferentes, que obrigam qualquer criança a julgar risíveis semelhantes observações. Quem há tão insensato que se atreva a dizer que todas as árvores, todas as ervas, todos os animais, serpentes, aves, peixes, vermes, tem cada qual momento diferente para nascer? Os homens costumam, para provar a perícia dos matemáticos, aduzir-lhes as constelações dos animais mudos, cujo nascimento submeteram em casa a cuidadosa observação para semelhante pesquisa, e dão a palma aos matemáticos que, examinadas as constelações, dizem: Não foi homem que nasceu, mas animal. Também ousam dizer a qualidade do animal, se tem lã, se é de tiro, se serve para o arado ou para guardar a casa. Põem-nos à prova até mesmo no que diz respeito ao destino dos cães; e, com grandes aplausos dos admiradores, respondem-lhes. A tal extremo os homens disparatam, que pensam que, quando alguém nasce, inibe o demais nascimento das coisas, de maneira que com ele e sob a mesma zona de vida não nasça sequer uma mosca. Porque, se admitido o nascimento de simples mosca, o raciocínio corre e gradualmente e com passos moderados se eleva das moscas aos elefantes e camelos. Nem querem reparar em que, escolhido o dia para semear o campo, cai infinidade de grãos de semente ao mesmo tempo, ao mesmo tempo germinam e, nascida a messe, despontam ao mesmo tempo, crescem e se alouram. E, contudo, de todas essas espigas do mesmo tempo e, por dize-lo assim, congeminais, umas o carvão consome, outras as aves arrasam e outras os homens arrancam. Como haverão de dizer que tiveram constelações diferentes, se veem que têm fins de tal modo diferentes? Porventura se arrependerão de escolher dias para essas coisas, negarão que concernem ao decreto celeste e submeterão aos astros apenas os homens, únicos a quem Deus deu no mundo vontade livre? Ponderado tudo isso, não sem motivo se acredita que, quando os astrólogos respondem maravilhosamente muitas coisas verdadeiras, o fazem movidos por secreto instinto de espíritos não bons, a cujo cargo está imbuir e propagar nas mentes humanas essas opiniões falsas e nocivas a respeito dos destinos, e não por pretensa ciência de horóscopo, que na realidade não existe. CAPÍTULO VIII Trata dos que dão o nome de fatalidade não à posição dos astros, mas à conexão de causas pendentes da vontade de Deus. Quando àqueles que dão o nome de fatalidade não à constituição dos astros, como se encontram no momento da concepção, do nascimento ou do princípio, mas à conexão e série de todas as causas com que se faz quanto se faz, não cumpre cansar-se e porfiar muito com eles. É questão de palavras, posto atribuírem a ordem e certa concatenação de causas à vontade e ao poder do Deus supremo, que, ótima e reverentissimamente, acreditam saber todas as coisas antes de que sucedam e não deixar nada desordenado. Dele procedem todas as potestades, embora não proceda dele a vontade de todos. E prova-se chamarem fatalidade principalmente à vontade do Deus supremo, cujo poder se entende de modo insuperável a todas as coisas, da maneira seguinte. Se não me engano, são de Enio Sêneca estes versos: Leva-me, Pai supremo e dominador do alto céu, aonde te apraza. Não há demora em minha obediência. Eis-me pronto! Embora não queira, seguir-te-ei em pranto e farei à força, sendo mau, o que com agrado faz o bom. A fatalidade conduz aquele que quer a arrasta com violência quem não quer. Quer dizer, é c1aríssimo que nesse último verso chamou fatalidade aquilo a que entes dera o nome de vontade do Pai supremo, a quem diz estar disposto a obedecer, para ser guiado, querendo, e não ser violentado, não querendo, porque a fatalidade conduz aquele que quere arrasta com violência quem não quer. Apoiam esse parecer os seguintes versos de Homero, que Cícero traduziu para o latim: Tal a vontade dos homens, qual a luz com que o pai Júpiter luxuriava as férteis terras. Nessa questão, ao modo de pensar dos poetas não quero dar grande autoridade. Mas, como diz que os estoicos, que asseveram a força da fatalidade, costumam citar esses versos de Homero, já não se trata da opinião desse poeta, mas da dos referidos filósofos, posto que, por esses versos que citam na discussão a propósito da fatalidade, se declara com luz meridiana o que pensam sobre a essência da fatalidade, porque chamam Júpiter a quem julgam deus supremo e de quem dizem pender a conexão das causas. CAPÍTULO IX A presciência de Deus e a livre vontade do homem, contra a definição de Cícero. 1. Cícero trata de refutar esses filósofos de maneira tal, que acredita não poder consegui-o, se não suprime a adivinhação. Esforça-se por suprimi-Ia, negando haver a ciência do futuro, e sustenta com todas as forças não existir, em absoluto, nem em Deus, nem no homem, e não haver predição de coisas. Por essa via nega também a presciência de Deus e intenta dar por terra com toda profecia mais clara que a luz do Sol, sem outras provas além de seus fúteis argumentos e certos oráculos, que com facilidade podem ser refutados e ele, todavia, nem mesmo é capaz de refutar. Quando trata de refutar as conjeturas dos matemáticos, as palavras de Cícero brilham, porque na verdade por si mesmas se desfazem e confundem. Os que estabelecem os destinos siderais são muito mais toleráveis que esse filósofo, negador da presciência do porvir. Porque confessar a existência de Deus e negar que é presciente do futuro é a extravagância número um. Isso posto, ele próprio esteve tentado a justificar o que está escrito: Disse o néscio em seu coração: Não há Deus. Não fala em seu nome. Percebeu quão odientas e perigosas eram tais palavras e, por isso, fez Cota intervir na disputa sobre esse ponto contra os estoicos nos livros Sobre a natureza dos Deuses. Preferiu inclinar-se ao parecer de Lucílio Balbo, a quem encomendou a defesa dos estoicos, e não ao de Cota, que sustentava não haver nenhuma natureza divina. Mas nos livros Sobre a Adivinhação abertamente impugna, falando na primeira pessoa, a presciência do futuro; e procede assim, parece, para não admitir a existência da fatalidade e perder a vontade livre, porque está convencido de que, admitida a ciência do futuro, tão indefectivelmente se admite a fatalidade, que seria de todo em todo impossível negá-la. Mas, seja qual for o modo de ser dos labirínticos debates e discussões dos filósofos, nós, convencidos da existência de um Deus supremo e verdadeiro, confessamos também que possui potestade, vontade e presciência soberanas. E não tememos, por isso, fazer sem vontade o que voluntariamente fazemos, porque de antemão sabe Ele, cuja presciência não pode enganar-se, o que temos de fazer. Esse temor levou Cícero a impugnar a presciência e os estoicos a não terem que dizer que tudo sucede por necessidade, mesmo quando defendiam ser tudo obra do destino. 2. Que receou, pois, Cícero na presciência do futuro, para tentar desbaratá-la por meio de palavras de tal maneira detestáveis? Isto, sem dúvida, a saber, que, se forem conhecidas todas as coisas futuras, sucederão na mesma ordem em que de antemão se soube que sucederiam. E, se sucedem nessa ordem, é certa a ordem das coisas para Deus, que as sabe antes de acontecerem; se é certa a ordem das coisas, é certa a ordem das causas, porque coisa alguma pode ser feita, se não a houver precedido alguma causa eficiente. E, se é certa a ordem das causas, pela qual se faz tudo quanto se faz, tudo quanto se faz, diz, é obra do destino. Se assim é, nada está em nosso poder e não existe arbítrio da vontade. Se concordamos com isso, acrescenta, cai por terra toda a vida humana. Em vão se fazem leis, em vão se recorre a repreensões, louvores, vitupérios e exortações. Sem justiça alguma os bons recebem prêmios, e os maus, suplícios. Logo para que tais monstruosidades, tais absurdos e tais prejuízos não sobrevenham à humanidade, não quer que exista a presciência do futuro e aprisiona o espírito religioso tão estreitamente, que o faz escolher uma destas duas opiniões: algo depende de nossa vontade ou existe presciência do porvir. E isso porque pensa que ambas as coisas são incompatíveis, que, se se admite uma, se suprime a outra; se optamos pela presciência do futuro, destruímos o arbítrio da vontade, e, se escolhemos o arbítrio da vontade, destruímos a presciência do porvir. Assim, como homem ponderado e dou to, cujas meditações se devotam aos grandes interesses da sociedade civil, escolhe, entre essas duas coisas, o livre-arbítrio da vontade e, para confirmá-lo, nega a presciência do futuro. Desse modo, querendo tornar livre o homem, fê-lo sacrílego. Todavia, o coração religioso escolhe um e outro, um e outro aceita e ambos afirma com piedosa fé. Como é possível? pergunta. Porque, se existe a presciência do futuro, disso decorrem todas as coisas com ela conexas, até chegar a admitir que coisa alguma depende de nossa vontade. E, ao contrário, se nossa vontade pode algo, pelo mesmo caminho se chega a que não há presciência do porvir. Por todos os caminhos voltamos a este ponto: se existe o arbítrio, da vontade, nem todas as coisas são obra do destino; se nem todas as coisas são obra do destino, não é certa a ordem de todas as causas; se não é certa a ordem das causas, não é certa nem para Deus, que sabe de antemão a ordem das coisas, que não podem ser feitas sem causas precedentes e eficientes; se a ordem das coisas não é certa para Deus, que tem presciência de tudo, todas as coisas não sucedem como de antemão soube que haviam de suceder. Por conseguinte, se todas as coisas não sucedem como de antemão soube que haviam de suceder, não há em Deus, declara, presciência de todas as coisas futuras. 3. Contra todos esses sacrílegos e ímpios atrevimentos, afirmamos que Deus sabe todas as coisas antes de sucederem e que fazemos por nossa vontade quanto sentimos e conhecemos não fazer-se sem que o queiramos. Mas não dizemos que o destino faça todas as coisas; vamos além, dizemos que o destino não faz nenhuma, porque o nome de destino, entendido segundo a linguagem usual, isto é, como a posição dos astros no instante da concepção ou do nascimento (ponto que se afirma de maneira vã), demonstramos não ter nenhum valor. A ordem das causas, sobre que a vontade de Deus tem grande poder, não a negamos, nem lhe damos o nome de destino, salvo se, talvez, entendermos que fatum deriva de fando, isto é, de falar, por não podermos ocultar que está escrito nas Sagradas Letras: Uma vez falou Deus e ouvi estas duas coisas: que há potestade em Deus, e em ti, Senhor, misericórdia, porque dás a cada qual segundo suas obras. Quando diz: Falou uma vez, deve-se entender: inamovivelmente isto é, incomutavelmente falou, como conheceu incomutavelmente todas as coisas futuras e as que Ele próprio haveria de fazer. Nesse sentido, de fando poderíamos derivar fatum, se pelo costume esse nome não estivesse consagrado a outra coisa, a que não queremos se incline o coração dos homens. De ser certa para Deus a ordem de todas as coisas não se segue, contudo, não haver coisa alguma no arbítrio da vontade, porque também nossa própria vontade se inclui na ordem das causas, certa para Deus e contida em sua presciência, visto ser causa das ações humanas. E, por conseguinte, quem sabe de antemão todas as causas das coisas não pode, sem dúvida, ignorar, entre as causas, nossa vontade, que soube de antemão ser causa de nossas ações. 4. A própria concessão, feita por Cícero, de que nada sucede, senão precedido por causa eficiente, é bastante para refutá-lo nessa questão. Que apoio lhe presta o que acrescenta, a saber, que nada se faz sem causa, mas que nem toda causa é fatal, posto existirem a causa fortuita, a natural e a voluntária? Basta admitir que tudo quanto se faz não se faz sem causa precedente. Não afirmamos a inexistência das causas a que deram o nome de fortuitas, donde a fortuna tomou o nome, mas serem latentes, e as atribuímos à vontade do Deus verdadeiro ou de certos espíritos; quanto às naturais, não as desligamos, em absoluto, da vontade daquele que é autor e criador da Natureza toda. Por outro lado, as causas voluntárias são próprias de Deus, dos anjos, dos homens ou de alguns animais, se cumpre chamar vontade aos movimentos dos animais privados de razão, com os quais, segundo sua natureza, fazem algo, como quando apetecem ou refugam alguma coisa. Chamo vontade dos anjos, ora à dos bons, que chamamos anjos de Deus, ora à dos maus, a quem damos o nome de anjos do diabo ou, também, demônios, assim como também à dos homens, a saber à dos bons e à dos maus. Por isso, daí se infere não existirem causas eficientes de tudo quanto sucede, senão as voluntárias, quer dizer, procedentes dessa natureza que é espírito de vida. Porque também o ar ou vento é chamado espírito, mas, por ser corpo, não é espírito de vida. Logo, o espírito de vida, que vivifica todas as coisas e é criador de todo corpo e de todo espírito criado, é Deus mesmo, espírito certamente incriado. Em sua vontade está o poder supremo, pelo qual auxilia a vontade boa dos espíritos criados, julga a má, ordena todas e outorga poder a uma e o nega a outra. Do mesmo modo que é criador de todas as naturezas, é dispensador de todo poder, não do querer, porque o mau querer não procede dele, visto ser contrário à natureza dele procedente. Por conseguinte, os corpos estão mais sujeitos à vontade; uns, a saber, os de todos os animais mortais, à nossa, e mais os dos homens que os dos animais; outros, porém, à dos anjos. Mas todas as coisas estão extremamente sujeitas à vontade de Deus, à qual se submetem também todas as vontades, por não terem mais poder que o concedido por Ele. Outras causas fazem e são feitas, como, por exemplo, os espíritos criados, principalmente os racionais. Todavia, as causas corporais, que mais são feitas que fazem, não devem ser enumeradas entre as causas eficientes, porque podem o que por elas faz a vontade dos espíritos. Como é que a ordem das causas, certa para Deus, que a conhece de antemão, faz com que nossa vontade nada possa, se é verdade que na própria ordem das causas ocupa lugar destacado? Contenda Cícero com os que afirmam que essa ordem das causas é fatal ou, por melhor dizer, lhe dão o nome de destino, coisa por nós desmentida principalmente por causa do nome, que o uso desviou do sentido próprio. Porque nega que a ordem de todas as causas é certíssima e conhecidíssima para Deus, presciente, detestamo-lo mais do que aos estoicos. Nega a existência de Deus, coisa que na pessoa de outro quis fazer nos livros Sobre a Natureza dos Deuses, ou, se admite a existência de Deus, negando nele a presciência do porvir, ainda assim não diz outra coisa, senão o que disse o insensato em seu coração: Não há Deus. Pois quem não é presciente de todas as coisas futuras não é Deus. Nossa vontade pode tanto quanto Deus quis e soube de antemão que poderia. Donde se deduz que quanto pode, podendo-o de maneira infalível, e o que há de fazer há de fazê-lo ela mesma, porque soube de antemão que havia de podê-lo e de fazê-lo Aquele cuja presciência não pode enganar-se. Se, portanto, me aprouvesse dar o nome de destino a alguma coisa, diria ser privativo do inferior o destino, e a vontade, do superior, que o tem em seu poder, ao invés de suprimir o arbítrio de nossa vontade, substituindo-o pela ordem das causas, que os estoicos chamam destino, não correntemente, mas segundo costumam. CAPÍTULO X Está sujeita a alguma necessidade a vontade humana? 1. Não devemos, por isso, temer a necessidade, por medo da qual os estoicos de tal maneira se esforçaram em distinguir as causas das coisas, que umas as subtraíram à necessidade e outras as sujeitaram a ela. E entre as coisas que não quiseram sujeitar à necessidade colocaram também nossa vontade, para que não fosse livre, submetendo-a a ela. Se por necessidade nossa entendermos o que não se encontra em nosso poder, mas, embora não queiramos, exercita seu poder, como, por exemplo, a necessidade da morte, é evidente que nossa vontade, com que vivemos bem ou mal, não se encontra sob o domínio de tal necessidade. Porque fazemos muitas coisas que, se não quiséssemos, não faríamos. A esse gênero pertence, em primeira plana, o próprio querer, pois, se queremos, existe, e, se não queremos, não existe, visto como não quereríamos se não quiséssemos. E, se se define a necessidade, como quando dizemos ser forçoso que algo seja assim, se faça assim, não sei por que tememos que nos tire o arbítrio da vontade. Nem pomos, tampouco, sob o domínio dessa necessidade a vida de Deus e sua presciência, se dizemos ser necessário que Deus viva sempre e saiba de antemão todas as coisas, assim como não lhe diminuímos o poder, se dizemos que não pode morrer nem enganar-se. De tal maneira não pode, que, se pudesse, seria, sem dúvida, menor seu poder. Com razão se diz onipotente quem não pode morrer, nem enganar-se. Chama-se onipotente porque faz o que quer, não porque padece o que não quer; se isso acontecesse, não seria onipotente. Donde se segue não poder algumas coisas, justamente por ser onipotente. Assim também, quando dizemos: E necessário que, se queremos, queiramos com livre-arbítrio, indubitavelmente dizemos verdade e não sujeitamos, por isso, o livre-arbítrio à necessidade, que suprime a liberdade. Pertence-nos, pois, a vontade e ela mesma faz tudo quanto, querendo, fazemos, o que não se fada, se não quiséssemos. Contudo, no que contra seu próprio querer cada indivíduo padece por vontade de outros homens, a vontade influi; se não a vontade desse homem, o poder de Deus. Porque, se a vontade se limitasse a existir e não pudesse o que queira, estaria impedida por outra vontade mais poderosa. Mas nem mesmo assim a vontade seria outra coisa senão vontade, nem seria de outro, senão do que queria, embora não pudesse realizar seu desejo. Portanto, tudo quanto o homem padece contra a vontade não deve atribuí-lo à vontade humana, angélica ou de outro espírito criado, e sim à daquele que dá poder a quem o quer. 2. Logo, não porque Deus soube o que havia de depender de nossa vontade, algo deixa de depender dela, pois quem o soube de antemão soube de antemão alguma coisa. Por conseguinte, se Aquele que de antemão soube o que dependeria de nossa vontade não soube de antemão nada, mas soube alguma coisa, mesmo que Ele seja presciente, algo depende de nossa vontade. Por isso, de maneira alguma nos vemos constrangidos, admitida a presciência de Deus, a suprimir o arbítrio da vontade ou, admitido o arbítrio da vontade, a negar em Deus a presciência do futuro, o que é verdadeira impiedade. Abraçamos, isso sim, ambas as verdades, confessamo-las de coração fiel e sincero; uma, para que nossa fé seja reta, a outra, para nossa vida ser santa. Vive-se mal, quando não se crê em Deus como se deve. Longe de nós negar a presciência, por querermos ser livres, visto como com seu auxílio somos ou seremos livres. Em consequência, não existem inutilmente as leis, as repreensões, as exortações, os louvores e os vitupérios, porque também de antemão os soube futuros e importam muito, tanto quanto de antemão soube haviam de importar. E as súplicas convêm para pedir aquilo que de antemão soube havia de dar a quem lho suplicasse e com justiça se determinaram prêmios para as boas obras e penas para os pecados. Nem peca o homem precisamente porque Deus soube de antemão que havia de pecar; diria mais, não se põe em dúvida que o homem peca quando peca, justamente porque Aquele cuja presciência não pode enganar-se soube de antemão que nem o destino, nem a fortuna, nem outra coisa havia de pecar, senão o próprio homem, que, se não quer, com certeza não peca; mas, se não quer pecar, também isso Ele o soube de antemão. CAPÍTULO XI Providência universal de Deus, cujas leis abrangem todas as coisas. Portanto, o verdadeiro e supremo Deus, com seu Verbo e o Espírito Santo, Trindade Una, Deus onipotente e uno, Autor e Criador de toda alma e de todo corpo, fonte de felicidade de quem quer que seja feliz em verdade e não em vaidade, que fez o homem animal racional de corpo e alma, que, em pecando o homem, não permitiu ficasse sem castigo, nem o deixou sem misericórdia, que a bons e maus deu o ser com as pedras, vida seminal com as árvores, vida sensitiva com os animais e vida intelectual com os anjos apenas, de quem procede toda regra, toda beleza, toda ordem, de quem promanam a medida, o número e o peso, de quem procede tudo quanto naturalmente é, seja qual for seu gênero e seja qual for seu valor, de quem procede o germe das plantas, a forma dos germes e o movimento dos germes e das formas, que também deu à carne origem, beleza, compleição, fecundidade de propagação, disposição de membros, saúde e harmonia, que à alma irracional deu memória, sentido e apetite, e à racional, além disso tudo, inteligência e vontade, que não deixou sem conveniência de partes e sem uma espécie de paz o céu e a Terra, o anjo e o homem, e mesmo a estrutura interna do mais vil animalzinho, a asinha da ave, a florzinha da erva, uma folha de árvore, de nenhum modo é crível que Deus quisesse ficassem alheios às leis de sua providência os reinos dos homens, seus senhorios e servidão. CAPÍTULO XII Costumes por que os antigos romanos mereceram que o Deus verdadeiro, mesmo sem adorá-lo, lhes acrescentasse o Império. 1. Vejamos por que costumes dos romanos e por que causa se dignou prestar-lhes auxílio para aumento do Império o Deus verdadeiro, sob cujo poder se encontram também os reinos do mundo. Para poder delinear isso com maior desenvoltura, escrevi no livro anterior, em relação a isso, que nesse assunto não têm poder algum os deuses, que os antigos romanos julgaram deviam ser adorados com jogos ridículos, e nos capítulos anteriores falei da obrigação de dirimir a questão do destino, para que ninguém, já convencido de que o culto aos deuses não propagou, nem conservou o Império romano, o atribuísse a não sei que destino, ao invés de fazê-lo à poderosíssima vontade do Deus supremo. Os velhos e primitivos romanos, segundo nos ensina e lembra a História, mesmo quando, como outros povos, exceto o hebreu, tributaram culto a deuses falsos e imolaram vítimas, não a Deus, mas aos demônios, eram ávidos de louvor, liberais em dinheiro e queriam glória imensa e riquezas honestas. Amaram-na com ardentíssimo amor, por ela quiseram viver e não vacilaram em morrer por ela. A cobiça imensa da glória constituiu o freio de todas as demais cupidezes. Finalmente, porque servir lhes parecia desonroso, e senhorear e mandar, glorioso, quiseram a todo custo primeiro que sua pátria fosse livre, e depois, senhora. Daí se originou que, não tolerando a dominação real, estabeleceram impérios anuais e dois imperadores que se chamaram cônsules, de consulendo, não reis ou senhores, de regnando e dominando, embora também aos reis pareça melhor chamá-los assim, de reger, como reinos deriva de reis, e os reis, como fica dito, de reger. Mas o fausto régio, não se considera disciplina do regente ou benevolência do consulente, mas soberba do dominador. Expulso, pois, o rei Tarquínio e estabelecidos dois cônsules, seguiu-se o que o mesmo autor escreveu em louvor dos romanos, a saber, que a cidade (recordação incrível!), obtida a liberdade e inflamada por apaixonado amor à glória, cresceu com rapidez assombrosa. Essa avidez de louvor e desejo de glória operou neles todas aquelas façanhas louváveis e gloriosas, segundo a opinião dos homens. 2. Salústio elogia dois grandes e esclarecidos homens de seus dias, Marco Catão e Caio César, dizendo que desde muito a república não produzira pessoa de relevante virtude, porém que em seus dias existiram esses dois colossos da virtude, embora de diferentes costumes. Entre os elogios de César colocou seu ardente desejo de grande império, de exército e de guerra nova, em que seu valor pudesse brilhar. Assim se faziam votos pelo valor dos grandes homens, para provocar à guerra as nações miseráveis; excitava-os o sangrento flagelo de Belona, a fim de terem oportunidade para fazer brilhar sua valentia. Isso era, sem dúvida, obra da referida avidez e desejo de glória. Pelo amor à liberdade, primeiro, depois pelo amor ao domínio, e pelo desejo de louvor e glória, levaram a cabo inúmeras façanhas. Testemunho de ambas as coisas dá Virgílio, que diz: Também se via Porsena mandando acolher Tarquínio, expulso de Roma, e pondo à cidade apertado cerco e os romanos combatendo com ardor em defesa da liberdade. Eis, portanto a única ambição deles: morrer valentemente ou viver livres. Uma vez mais, porém, obtida a liberdade, prenderam-se de tal maneira ao desejo de glória, que consideraram pouco a liberdade apenas, sem a dominação, enquanto se considerava grandeza o que, como que pela boca de Júpiter, diz o mesmo poeta: Há mais. A própria Juno, hoje implacável inimiga dos troianos, que contra eles concita céu, terra e mar, mudará de modo de pensar e, como eu, acabará protegendo a grei romana, que ostentará a toga e será dona do mundo. Essa a minha vontade. Depois, no decurso dos tempos, a Casa de Assáraco subjugará Pítias e Micenas e dominará sobre Q vencida Argos. É certo que Virgílio, ao introduzir Júpiter como anunciador das coisas futuras, já as via realizadas. Quisemos referi-lo precisamente para mostrar o domínio que os romanos tiveram depois da liberdade, ao extremo de colocá-la entre seus grandes elogios. Daí o fato de o mesmo poeta preferir às artes das nações estrangeiras as próprias dos romanos, de reinar, mandar, sujeitar e dominar povos: Penso também, diz, que haverá descendentes hábeis em dar ao bronze o sopro da vida e extrair do mármore figuras com alento. Como haverá outros que aplicarão QS leis dos homens ou saberão medir com o compasso o movimento dos céus e o curso dos astros. Lembra-te sempre, ó romano, de impor teu império em todas as coisas dos povos. Serão tuas virtudes ditar leis de paz às nações, dominar os soberbos e perdoar os vencidos. 3. Com tanto maior perícia exerciam os romanos essas artes, quanto menos se entregavam aos prazeres, que enervam o ânimo, e às concupiscências do corpo, ao aumento das riquezas e à corrupção de costume, roubando os cidadãos pobres e sendo pródigos para com os torpes histriões. Por isso, quem já sobrepujava e abundava em semelhantes despenhadeiros morais, quando o escrevia Salústio e cantava Virgílio, não aspirava à glória e a honras com as referidas artes, mas com dolo e enganos. Assim diz o mesmo poeta: mas no princípio a ambição inquietava mais os ânimos dos homens que a própria avareza, vício mais próximo da virtude. Gloria, honra e mando desejam-no igualmente o bom e o remisso; mas aquele, diz, toma sempre o caminho verdadeiro, e este, porque lhe faltam os meios honestos, emprega enganos e dolo. Estes são os meios honestos, a saber, chegar à glória, ao mando e às honras pela virtude, não pela enganadora ambição. Essas coisas de igual modo deseja o bom e o remisso; mas aquele, isto é, o bom, toma pelo verdadeiro caminho. O caminho em que se apoia é a virtude e apoia-se nele para o fim, que é a possessão, ou seja, para a glória, a honra e o mando. Que isso se revelou inato nos romanos indicam-no, entre eles, os templos dos deuses da Virtude e da Honra, que construíram na mais estreita união, tendo por deuses o que não passa de dons de Deus. Daí se pode inferir o fim que queriam para a virtude e a que a referiam os que eram bons, quer dizer, a honra, porque os maus não a possuíam, mesmo quando desejaram ter a honra, que se esforçavam em conseguir por meios infames, isto é, com enganos e dolo. 4. Mais belo é o elogio que faz de Catão, quando diz• Quanto menos buscava glória, tento mais o seguia. Porque a glória cujo desejo os inflamava consistia na boa opinião dos homens e, portanto, melhor é a virtude, que não se contenta com o testemunho dos homens, mas com o de sua própria consciência. Assim diz o Apóstolo: Que nossa glória é a seguinte: o testemunho de nossa consciência. E noutro lugar: Prove cada qual sua obra e terá, então, glória apenas em si mesmo e não em outro. A virtude não deve seguir, mas preceder a glória, a honra e o mando que ardentemente desejavam para si e a que se esforçavam por chegar os bons, utilizando-se de meios honestos. E não é verdadeira virtude senão a que tende ao fim em que reside o bem do homem, superior a qualquer outro. Por conseguinte, as honras que Catão pede não devia pedi-Ias; a república é que não devia, para conceder-lhas, esperar pelo pedido. 5. Mas, como naquele tempo existiam dois romanos que brilhavam por sua virtude, a saber, César e Catão, parece haver-se a virtude de Catão aproximado mais da verdade que a de César. Por isso, vejamos como era, então, a cidade de Roma e como fora antes, no modo de sentir do próprio Catão: Não acrediteis, diz, que pelas armas nossos antepassados fizeram grande a república. Se assim fosse, tê-la-íamos muito mais formosa, porque temos maior quantidade de aliados e cidadãos, além de mais armas e cavalos que eles. Mas houve outras coisas que os fizeram grandes e de que carecemos: em casa, atividade; fora, governo justo e, no conselho, espírito livre, sem inteligência com o crime e as paixões. Em lugar disso, entregamo-nos ao luxo e à avareza, quer dizer, em público, pobreza, e em casa, opulência. Louvamos as riquezas, seguimos a inatividade. Não fazemos diferença alguma entre bons e meus. Todos os prêmios da virtude estão em poder da ambição. E não é maravilha, onde cada um de vós se interessa, como particular, por sua pessoa, onde, em casa, o homem se entrega aos prazeres e aí se torna escravo do dinheiro e do favor. De tudo isso se infere ser a república atacada como vítima indefesa. 6. Quem ouve essas palavras de Catão ou de Salústio imagina que todos ou quase todos os velhos romanos daquele tempo conformavam suas vidas com os favores que lhes eram prestados prodigamente. E não é assim. Do contrário, não seria verdadeiro o que ele mesmo escreve e já citei no Livro Segundo desta obra, quando afirma que as injustiças dos poderosos provocaram, desde o princípio, separação entre o Senado e o povo e outras discórdias domésticas. Mas, depois da expulsão dos reis, enquanto duraram o medo a Tarquínio e a difícil guerra mantida contra a Etrúria, se viveu com moderação e equidade. Mais tarde os patrícios se empenharam em tratar o povo como escravo, em maltratá-lo à maneira dos reis, em removê-lo do campo e em governar sozinhos, sem para nada contar com os demais. A segunda guerra púnica pôs termo a essas dissensões, enquanto uns queriam ser senhores e outros se negavam a ser escravos. Uma vez mais começou a propagar-se grave medo e a coibir os ânimos, que tais distúrbios tornavam inquietos e preocupados, e a convidar à concórdia civil. Mas alguns poucos, bons a seu modo, administravam grandes negócios e, tolerados e suavizados os referidos males, a república ia crescendo, graças à providência desses poucos bons, como testemunha o mesmo historiador, que, lendo e ouvindo as muitas e preclaras façanhas que o povo romano realizou na paz e na guerra, em terra e no mar, se interessou em averiguar que coisa susteve, em especial, façanhas tão grandes. Sabia que com um punhado de soldados, muitas vezes os romanos haviam pelejado contra grandes legiões de inimigos; conhecia as guerras que, com escassas riquezas, travaram contra reis opulentos. E disse constar-lhe, depois de muito pensar, que a insigne virtude de uns poucos cidadãos realizara tudo aquilo e que o mesmo fato era causa de a pobreza vencer as riquezas, e o pequeno número, a multidão. Mas logo que o luxo e a ociosidade, diz, corromperam a cidade, tornou a república, com sua grandeza, a alimentar os vícios dos imperadores e dos magistrados. Catão elogiou também a virtude de uns poucos que aspiravam à glória, à honra e ao mando, mas pelo verdadeiro caminho, isto é, pela própria virtude. Daí se originava a atividade doméstica mencionada por Catão, para que o Erário fosse opulento, e de pouca monta as riquezas particulares. Corrompidos os costumes, o vício fez o contrário: para o Estado, pobreza; para os indivíduos, opulência. CAPÍTULO XIII Amor ao elogio, que, embora vício, é considerado virtude, porque coíbe vícios maiores. Por isso, havendo já brilhado por largo tempo os reinos do Oriente, quis Deus se constituísse também o do Ocidente, que fosse posterior no tempo, porém mais florescente na extensão e grandeza de império. E concedeu-o, para castigar os graves crimes de muitas nações, a homens que, por causa da honra, o louvor e a glória, velavam pela pátria, em cuja glória procuravam encontrar a própria. Não hesitaram em antepor à própria vida a salvação da pátria, fomentando com esse único vício, ou seja, com a paixão pelo louvor, a cobiça do dinheiro e muitos outros vícios. Com maior e mais cordata visão o vê quem sabe que o amor ao elogio é vício, coisa que não se oculta nem mesmo do poeta Horácio, que diz: Embriaga-te o amor ao elogio? Há remédios seguros neste livrinho, que, lido três vezes e com simplicidade, te poderão aliviar grandemente. Ele mesmo, em versos líricos, canta assim, para refrear a libido de domínio: Reinarás, se domares teu espírito insaciável, mais amplamente que se juntasses a Líbia com a longínqua Cádiz e te servissem as duas Cartagos. Todavia, quem não refreia suas mais torpes libidos, rogando com piedosa fé ao Espírito Santo e amando a beleza inteligível, mas, antes, pela cobiça do louvor humano e da glória, não é santo, certamente, porém menos torpe. O próprio Túlio não pôde dissimulá-lo nos livros que escreveu Sobre a República, em que fala da educação do chefe de Estado e diz ser necessário alimentá-lo de glória. Logo a seguir conta haver o amor à glória inspirado muitas maravilhas a seus antepassados. Não apenas deixavam de opor resistência a tal vício, como também julgavam que devia ser alentado e incendido, na convicção de que era útil para a república. Nem nos próprios livros de Filosofia, em que o afirma com maior clareza, Túlio oculta semelhante peste. Falando do que é necessário buscar como bem verdadeiro e final e não por causa da vaidade da glória humana, inserta esta máxima universal e geral: A honra é o alimento da atividade humana e a glória, a lareira que a anima. A quem o desprezo desacreditou, ninguém consegue reerguê-lo. CAPÍTULO XIV Obrigação de cercear o amor ao elogio dos homens, porque toda a glória dos justos está em Deus. É mais fácil resistir a essa concupiscência que extirpá-la. Tanto é cada um de nós mais semelhante a Deus quanto mais limpo se encontra dessa impureza. Ainda quando nesta vida não a arranquem radicalmente do coração, porque não cessa de tentar até mesmo os ânimos bem aproveitados, pelo menos vença-se, por amor à justiça, a avidez de glória. E, se em alguma parte se encontram esquecidos os estudos, que os demais não apreciam se são bons, se justos, enrubesça o amor ao elogio humano e ceda ao amor à verdade. Tão inimigo da fé piedosa se revela esse vício, se no coração a avidez de glória é maior que o temor ou o amor a Deus, que diz o Senhor: Como podeis acreditar, esperando a glória uns dos outros e não buscando a glória procedente de Deus apenas? Ademais, de alguns que acreditavam nele, mas envergonhavam-se de confessá-la em público, diz o Evangelho: mais amaram a glória dos homens que a de Deus. Isso não fizeram os santos Apóstolos, que, pregando o nome de Cristo em lugares em que não apenas não era apreciado (como Cícero disse: e sempre jazem esquecidos os estudos desacreditados entre alguns), como também extremamente detestado, retinham o que haviam ouvido do bom Mestre e do Médico das almas: Se alguém me negar diante dos homens, negá-lo-ei diante de meu Pai, que está nos céus, e diante dos anjos de Deus. Maledicências e opróbrios, gravíssimas perseguições e cruéis suplícios, nada conseguiu impedi-Ias de, em meio das tempestades do orgulho humano, pregar a salvação do homem. E porque, fazendo e dizendo coisas divinas e vivendo de maneira divina, amolecida, de certo modo, a dureza dos corações e introduzida a paz da justiça, na Igreja de Cristo alcançaram grande glória, nem por isso nela descansaram como no fim de sua virtude. Pelo contrário, referindo-a à glória de Deus, a cuja graça deviam o serem assim, com esse fogo acendiam naqueles a quem pregavam o amor Àquele que os fizera assim. E, para que não fossem bons pela glória humana, havia-os ensinado o Mestre, dizendo: Guardai-vos de fazer vossa justiça diante dos homens, para serdes vistos por eles; doutro modo não tereis galardão de vosso Pai, que está nos céus. Em seguida, porém, porque talvez, com interpretação torcida, temeriam agradar os homens e produziriam menos frutos, ocultando serem bons, disse, manifestando-lhes que deviam dá-Ias a conhecer: Brilhem vossas obras diante dos homens para que vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai, que está nos céus. Não para serdes vistos por eles, isto é, para que fixem os olhos em vós, mas para que glorifiquem vosso Pai, que está nos céus, e, convertidos a ele, se tornem o que sais. Aos apóstolos seguiram os mártires, que sobrepujaram os Cévolas, os Cúrcios e os Décios, não por aplicarem penas em si mesmos, mas por suportarem as que lhes eram infligidas, e em virtude verdadeira, porque os excederam em piedade verdadeira, em quantidade e número. Mas, como se arrastavam na cidade terrena e o fim de todas as obrigações que se haviam imposto era sua incolumidade e o reino, não no céu, mas na Terra, não na vida eterna, mas na decessão dos que morrem e na sucessão dos que hão de morrer, que outra coisa amariam senão a glória, com que queriam, mesmo depois de mortos, como que viver na boca de seus admiradores? CAPÍTULO XV Galardão temporal dado por Deus aos bons costumes dos romanos. Aos que Deus não havia de conceder que na cidade celeste vivessem eternamente com seus anjos, a cuja companhia conduz a piedade verdadeira, que não exibe o culto religioso, pelos gregos chamado latreia, senão ao único Deus verdadeiro, se não lhes outorgasse a terrena e presente glória de império prestantíssimo, não lhes premiaria as boas artes, quer dizer, as virtudes, com que aspiravam a conseguir tamanha glória. Desses, que parecem fazer algum bem unicamente para que os glorifiquem os homens, diz também o Senhor: Em verdade vos digo que já receberam seu galardão. Do mesmo modo, os romanos, pela coisa comum, isto é, pela república e por seu Erário, desprezaram seus interesses privados, resistiram à avareza e deram com liberdade a vida pela pátria. Nem sujeitos à culpa, segundo suas leis, nem à libido. Por todas essas artes, como que por verdadeiro caminho, aspiraram às honras, ao mando e à glória. Foram honrados em quase todas as nações e impuseram as leis de seu Império a muitos povos. E hoje em dia gozam de glória nos livros e nas histórias e em quase todo o mundo. Já não têm por que queixar-se da justiça do Deus verdadeiro e supremo: receberam seu galardão. CAPÍTULO XVI Galardão dos santos cidadãos da cidade eterna, a quem são úteis os exemplos de virtudes dos romanos. Mas o galardão dos santos é muito diferente, embora no mundo tolerem afrontas pela cidade de Deus, odiosa para os que amam este mundo. Essa cidade é sempiterna. Ali ninguém nasce, porque ninguém morre. Ali existe verdadeira e completa felicidade, não deusa, mas dom de Deus. Dali recebemos a prenda da fé, enquanto, peregrinos, suspiramos por sua beleza. Ali o Sol não sai sobre bons e maus; pelo contrário, o Sol de justiça alumia apenas os bons. Ali, onde o tesouro da verdade é comum, não haverá grande atividade para enriquecer o erário público, rapando os interesses particulares. Em consequência, não somente com o propósito de dar semelhante galardão a tais homens se dilatou o Império romano, para glória humana, mas também com o de que os cidadãos da eterna cidade, enquanto peregrinos no mundo, observem com sobriedade e diligência os referidos exemplos e vejam quanta dileção se deve à pátria soberana por amor à vida eterna, se pela glória humana seus cidadãos tanto amam a terrena. CAPÍTULO XVII Fruto com que os romanos travaram guerras e utilidade que trouxe para os vencidos. 1. No concernente à presente vida dos mortais, que se vive em um punhado de dias e logo acaba, que importa sob o império de quem viva o homem que há de morrer, se os que imperam não obrigam a impiedades e injustiças? Ou os romanos causaram algum prejuízo às nações a que, subjugadas, impuseram suas leis, além do de haverem-no levado a efeito com estrondoso estrago bélico? Se o houvessem feito em paz, far-se-ia com melhor resultado a mesma coisa, com a seguinte diferença apenas: seria nula a glória dos triunfadores. Também os romanos viviam sujeitos às leis que impunham aos demais. Se isso se fizesse sem Marte e sem Belona, de modo que não houvesse vitória, pois não há vencedor onde ninguém lutou, porventura não seria a mesma a condição dos romanos e das demais nações? Principalmente se, logo no começo, se fizesse o que depois gratíssima e humanissimamente se fez: que todos os pertencentes ao Império romano recebessem carta de cidadania e fossem cidadãos romanos. Desse modo seria de todos o que antes era de alguns poucos. Aconteceria apenas que o povo não possuidor de campos próprios teria de viver do público e os que estivessem em paz receberiam sustento dos bons administradores da república, de boa vontade maior que se pela força o impusessem aos vencidos. 2. Não vejo que importância para a incolumidade e para os bons costumes podem ter as próprias dignidades dos homens, a saber, haverem uns vencido e outros sido vencidos, fora do vaníssimo fausto de glória humana que foi o galardão recebido pelos que arderam em imensa cobiça e travaram ardorosas guerras. Acaso seus campos não pagam tributos? Porventura lhes é lícito aprender o que não é lícito aos demais? Acaso não há senadores em outras terras que nem de vista conhecem Roma? Exclui a jactância e responde-me depois: Que são todos os homens, senão homens? E se a perversidade do século permitisse que os mais honrados fossem os melhores, nem mesmo assim seria o caso de considerar-se grandeza a honra humana, porque fumaça de nenhum peso. Mas também nessas coisas usemos do benefício do Senhor, Deus nosso. Ponderemos quanto desdenharam, que toleraram, que impiedades dominaram, pela glória humana, os que mereceram tê-la como galardão de tais virtudes e sirva-nos também para abatermos nossa soberba. Se a distância que medeia entre esta cidade e a em que nos prometeram reinaríamos é tão grande como a que medeia entre o céu e a Terra, entre a alegria temporal e a vida eterna, entre os inconsistentes louvores e a sólida glória, entre a sociedade dos mortais e a sociedade dos anjos, entre a luz do Sol e da Lua e a luz do Criador do Sol e da Lua, parecerá nada haverem feito de maravilhoso os cidadãos de cidade tão grande, se para consegui-la praticaram alguma boa obra ou sofreram alguns males, visto como fizeram tanto e sofreram muito para conseguir esta cidade terrena. Em especial porque a remissão dos pecados, que recolhe cidadãos para a vida eterna, se parece, embora de longe, com o famoso abrigo de Rômulo, em que a impunidade de certos delitos congregou inúmeros homens para a fundação de Roma. CAPÍTULO XVIII Como devem ser alheios os cristãos à jactância, se fizerem algo por amor à pátria eterna, desde que os romanos tanto fizeram pela glória humana e pela cidade terrena. 1. Significa alguma coisa desdenhar pela pátria eterna e celeste os deleites deste mundo, por encantadores que sejam, se por amor a esta pátria temporal e terrena chegou Bruto a matar os filhos, coisa a que aquela ninguém obriga? É, sem dúvida, mais difícil dar morte aos filhos do que aquilo que ela exige; quero dizer que se dê aos pobres quanto, ao que parece, amontoavam e conservavam para os filhos ou se abandone, se há tentação que force a fazê-lo pela fé e pela justiça. As riquezas terrenas não nos fazem felizes, nem a nossos filhos. Temos de perdê-las em vida ou, depois de morrermos, há de possuí-Ias quem ignoramos ou talvez quem não queiramos. Somente Deus é capaz de nos tornar felizes, porque é a verdadeira opulência dos espíritos. Contudo, da infelicidade de Bruto, que matou os filhos, dá testemunho o mesmo poeta que o elogia. Diz assim: E como os filhos queiram acender a guerra, saberá sacrificá-los à liberdade. Infeliz, seja qual for a interpretação que deem ao fato as idades futuras! Mas no verso seguinte consola o infeliz: Sempre haverão triunfado em seu peito o amor à pátria e imensa paixão por sua glória. Essas duas coisas, a saber, a liberdade e o desejo de louvor humano, são as que compeliram os romanos a operar maravilhas. Se, por conseguinte, pela liberdade dos que hão de morrer e pelo desejo de louvores apetecidos pelos mortais, pôde Bruto dar morte aos filhos, significa alguma coisa que, pela verdadeira liberdade, que nos torna livres do jugo da injustiça, da morte e do diabo, e não pelo desejo de louvores humanos, mas pela caridade de libertar os homens, não do rei Tarquínio, porém dos demônios e de seu príncipe, não se matam os filhos, mas são contados entre os filhos os pobres de Cristo? 2. Se outro príncipe também romano, de sobrenome Torquato, deu morte ao filho vitorioso, porque, provocado por inimigo, lutou com brio juvenil, não contra a pátria, mas em favor dela, porém contra ordem sua, isto é, contra o que ordenara o general, seu pai, que o fez, não há dúvida, porque acreditou seria maior mal o exemplo de ordem desobedecida que o bem consequente à vitória obtida sobre o inimigo, por que, pois, hão de jactar-se os que pelas leis da pátria imortal desdenham todos os bens terrenos, muito menos amados que os filhos? Se Fúrio Camilo, depois de haver levantado da cerviz da ingrata pátria o jugo dos veienses, seus mortais inimigos, e sido condenado por seus êmulos, tornou a dos gauleses livrar a pátria, porque não tinha outra mais poderosa onde passar com maior glória os dias, por que há de ensoberbecer-se, como se praticasse alguma façanha, quem, havendo porventura padecido na Igreja alguma gravíssima e desonrosa injúria por parte dos inimigos carnais, não se bandeou para os heréticos inimigos ou levantou contra ela alguma heresia, mas antes a defendeu quanto pôde da perniciosíssima perfídia dos hereges, por não haver outra, não onde se viva com glória, mas onde se conquiste a vida eterna? Se Múcio, para fazer a paz com o rei Porsena, que apertava os romanos em dificílima guerra, porque não pôde dar morte a Porsena por suas próprias mãos e por engano matou outro em seu lugar, em presença dele estendeu a mão sobre o braseiro em chamas, dizendo que muitos outros, qual o viam a ele, se haviam conjurado para matá-lo, e ele, aterrado pela fortaleza e pela conjuração dos romanos, fez sem demora a paz e se retirou da guerra, quem se julga merecedor do reino dos céus, se por ele, não fazendo-o espontaneamente, mas padecendo-o de algum perseguidor, entregar, não apenas uma das mãos, mas o corpo todo às chamas? Se Cúrcio, armado e com o cavalo a todo o galope, se precipitou em abismo aberto no chão, respondendo aos oráculos dos deuses, que lhe haviam mandado arrojar nele o que de melhor possuíam os romanos, e não puderam entender outra coisa senão que eram os mais insignes em homens e em armas, pelo que se impunha, para cumprimento do mandado dos deuses, que se precipitasse no despenhadeiro algum homem armado, dirá que fez alguma façanha pela pátria eterna quem, suportando algum inimigo da fé, morre, não indo voluntariamente para essa morte, mas arrojado pelo inimigo, porque recebeu também oráculo mais certo do Senhor, isto é, do próprio Rei de sua pátria: Não temais quem mata o corpo, porém não pode matar a alma? Se os Décios, consagrando-se de certo modo, com palavras certas e voto solene se ofereceram à morte, para que, morrendo e aplacando com o próprio sangue a ira dos deuses, se salvasse o exército romano, de maneira alguma se orgulharão os santos mártires, como se houvessem feito algo de grande para participar da cidade onde é verdadeira e eterna a felicidade, se pela fé da caridade e pela caridade da fé combateram até a efusão do próprio sangue, amando não apenas seus irmãos, por quem o derramavam, mas também os próprios inimigos que os obrigavam a derramá-lo. Se Marco Pulvilo, quando estava dedicando o templo de Júpiter, Juno e Minerva e falsamente os invejosos lhe anunciaram a morte do filho, a fim de que, perturbado pela notícia, se retirasse e assim a glória da dedicação recaísse no colega, a desprezou ao extremo de mandar que lançassem fora o corpo ainda insepulto, e deste modo em seu peito o desejo de glória venceu a dor de ver-se privado do filho, que façanha se há de dizer que fez pela pregação do santo Evangelho, pela qual os cidadãos da pátria soberana são libertados e recolhidos de diversos erros, aquele a quem, solícito pelo sepultamento do pai, disse o Senhor: Segueme e deixa que os mortos enterrem seus mortos? Se M. Régulo, para não faltar ao juramento feito a crudelíssimos inimigos, de Roma voltou até eles, porque, como se refere, aos romanos que queriam retê-lo, respondeu que, depois de haver sido escravo dos africanos, não podia viver em Roma com a dignidade própria de cidadão honesto, e os cartagineses, porque atuou contra eles no Senado romano, lhe deram morte em meio de horríveis tormentos, que martírios não se devem desprezar pela fé da pátria a cuja felicidade conduz a própria fé? Ou que se retribuirá ao Senhor por todas as suas retribuições, se pela fé a Ele devida o homem sofresse tormentos iguais aos que padeceu Réguio pela fé que devia a desapiedados inimigos? Como ousará orgulhar-se o cristão que voluntariamente abraça a pobreza para viajar mais escoteiro no caminho que conduz à pátria, em que Deus é a verdadeira riqueza, quando ouve ou lê que L. Valério, morto em seu consulado, foi pobre ao extremo de lhe haverem feito os funerais a expensas do dinheiro dado pelo povo? Ouça ou leia que Q. Cincinato, que possuía quatro jeiras e as cultivava com suas próprias mãos, foi afastado do arado para ser feito ditador, dignidade, sem dúvida, maior que a de cônsul, e, depois de vencer os inimigos e conseguir imorredoura glória, continuou na mesma pobreza. Ou apregoará que fez algo de grande porque não se deixou arrastar pelos bens deste mundo, longe da sociedade da pátria eterna, quando vê Fabrício resistir a todos os presentes de Pirro, que lhe prometera até mesmo a quarta parte do reino, e preferir continuar pobre e cidadão romano? E o fato de os romanos reservarem para a república, isto é, para a coisa do povo, para a coisa da pátria, para a coisa comum, todo o tesouro, toda a opulência e viverem tão pobremente em casa, que a um deles, que já fora cônsul duas vezes, por ordem do censor, expulsaram daquele senado de homens pobres, por haverem achado que sua baixela valia dez libras de prata? Vejam o extremo a que levavam a pobreza aqueles cujos triunfos enriqueciam o Erário! Porventura todos os cristãos, que por objetivo mais excelente tornam comuns suas riquezas, conforme está escrito nos Atos dos Apóstolos, que se distribua a cada qual segundo sua necessidade e ninguém tenha coisa própria, mas todas as coisas sejam comuns, não devem entender que não lhes é lícito pavonear-se por isso, fazendo-o para conseguir a companhia dos anjos, se aqueles quase fizeram outro tanto para conservar a glória dos romanos? 3. Essas e outras coisas assim se encontram em seus escritos, quando se manifestariam desse modo, quando seriam tão celebradas pela fama, se não se houvesse acrescido com magníficas prosperidades o Império romano, espalhado por toda parte? Por conseguinte, por esse tão dilatado e duradouro Império, afamado e glorioso pelas virtudes de homens tão insignes, se deu a seu intento o galardão que buscavam e a nós nos propuseram exemplos de advertência necessária. Isso com o propósito de que, se não tivermos pela gloriosíssima Cidade de Deus as virtudes de que são imagem, embora apagada, as que os romanos tiveram pela glória da cidade terrena, nos acicate o pudor, e, se as tivermos, não nos ensoberbeçamos. Porque, como diz o Apóstolo, os padecimentos dos tempos presentes não guardam proporção alguma com a glória futura que há de revelar-se em nós. Quanto à glória humana do tempo presente, julgava-se suficientemente digna a vida dos romanos. Do que se infere que os judeus que mataram Cristo, revelando o Novo Testamento o que permaneceu velado no Velho, a saber, que se adore o Deus uno e verdadeiro, não pelos benefícios terrenos e temporais, que a divina Providência concede indiferentemente a bons e maus, mas pela vida eterna, os dons perpétuos e pela sociedade da cidade soberana, justíssimamente foram entregues à glória deles, para que eles, que por quaisquer virtudes buscaram e adquiriram a glória terrena, vencessem os que com grandes vícios deram morte e rechaçaram o Dispensador da glória verdadeira e da cidade eterna. CAPÍTULO XIX Em que diferem o desejo de glória e o desejo de domínio. Na realidade, existe diferença entre a cupidez de glória humana e a cupidez de domínio. Embora seja fácil que aquele que se deleita em demasia com a glória humana seja também ardentemente afeiçoado a dominar, os que anseiam pela glória verdadeira, embora de louvores humanos, fazem empenho em não desagradar os que retamente apreciam. Há grande número de bens morais de que muitos julgam bem, embora poucos os possuam. Por esses bens morais tendem à glória e ao mando ou domínio aqueles de quem diz Salústio: Mas esse tende ao verdadeiro caminho. Aquele que, sem amor à glória, que leva o homem a temer desagradar quem julga retamente, deseja senhorear e mandar, com frequência busca conseguir o que ama, embora por meio de crimes manifestos. E quem deseja a glória a ela tende pelo verdadeiro caminho ou sem dúvida contende com enganos e dolo, querendo, sem que o seja, parecer bom. Por isso, para quem possui virtudes é grande virtude desprezar a glória, porque seu desprezo está na presença de Deus e não se abre a juízo humano. Tudo quanto alguém faça em presença dos homens, a fim de parecer que menospreza a glória, se acreditarem que o faz para maior louvor, isto é, para maior glória, não tem meio para mostrar aos sentidos dos suspeitosos que as coisas não são o que suspeitam. Mas quem menospreza o julgamento dos que elogiam também menospreza a temeridade dos suspeitosos, cuja salvação, se verdadeiramente bom, não despreza, por ser de tamanha virtude, quem possui as virtudes do Espírito de Deus, que ama até nos próprios inimigos. E ama-os de tal maneira, que quer ter por companheiros os que aborrece ou o detraem, não na pátria terrena, mas na soberana. E nos que o elogiam, embora tenha em pouco seus louvores, não diminui seu amor para com eles, nem quer enganar os que o louvam, para não enganar aqueles a quem ama. Por esse motivo insta ardentemente para que, de preferência, se louve Aquele de quem o homem recebe tudo quanto nele com direito se gaba. Quem menospreza a glória e se mostra ávido de domínio se avantaja aos animais pelos vícios da crueldade ou da luxúria. Assim foram alguns romanos. Perdida a preocupação com a glória, não se viram privados do desejo de dominar. De que muitos foram assim dá testemunho a História. Mas o cúmulo desse vício, verdadeira cidadela sua, empolgou primeiro a César Nero, cuja luxúria foi tal, que se efeminara, e tal sua crueldade, que não o acreditariam efeminado, se não o conhecessem. Mas mesmo a esses a Providência do Deus supremo dá o poder de senhorear, quando julga dignas de semelhantes homens as coisas humanas. A voz divina fala claro sobre esse assunto. Fala a Sabedoria de Deus: Por mim reinam os reis e ocupam os tiranos por mim a Terra. Mas, para não acreditar-se que se chamavam tiranos os reis, não péssimos ou ímprobos, mas, de acordo com a terminologia antiga, os fortes, diz Virgílio: Será para mim prenda de paz estreitar a destra do tirano. E expressamente se diz de Deus noutro lugar: Ele é quem, por causa da perversidade do povo, jaz reinar o homem hipócrita. Por conseguinte, mesmo quando, de acordo com minhas forças, haja suficientemente exposto o porquê de haver o único Deus verdadeiro e justo auxiliado os romanos a conseguir a glória de tão dilatado Império, segundo a forma da cidade terrena, pode existir outra causa mais oculta, mais conhecida de Deus que de nós, pelos diversos méritos do gênero humano. Sempre há de constar que, entre todos os verdadeiramente piedosos, ninguém desprovido de verdadeira piedade, isto é, sem o culto sincero do verdadeiro Deus, pode ter verdadeira virtude, que não é verdadeira quando se escraviza à glória humana. Contudo, quem não é cidadão da cidade eterna, que em nossas Sagradas Letras se chama Cidade de Deus, é mais útil à cidade terrena quando tem, pelo menos, essa virtude que se carecesse dela. Os verdadeiramente piedosos, que à vida moral unem a ciência de reger os povos, constituem verdadeira bênção para as coisas humanas, se, por misericórdia de Deus, gozam de poder. Tais homens, sejam quantas forem as virtudes que podem ter nesta vida, atribuem-nas à graça de Deus, porque as deu aos que queriam, criam e pediam. E ao mesmo tempo percebem quanto lhes falta para a perfeição da santidade, qual a que se encontra na sociedade dos santos anjos, a que aspiram conformar-se. Sejam quais forem os louvores e elogios tributados à virtude que, sem piedade verdadeira, serve à glória dos homens, de maneira alguma podem comparar-se aos inícios humildes dos santos, cuja esperança se funda na graça e na misericórdia de Deus. CAPÍTULO XX Tão torpe é sujeitar as virtudes à glória humana como ao deleite do corpo. Desejosos de envergonhar a certos filósofos que, embora não deixem de estimar a virtude, pretendem que a volúpia do corpo lhes sirva de medida, e apenas a volúpia deva ser procurada por si mesma, e a virtude, pela volúpia, aqueles filósofos que, ao contrário, colocam na própria virtude o soberano bem do homem costumam pintar, em palavras, quadro alegórico em que representam a Volúpia sentada em trono, como delicada rainha. Servem-na as Virtudes como criadas, prevenindo-lhe os desejos e atentas a suas ordens. A Volúpia ordena à Prudência que lhe assegure, através de vigilante polícia, a tranquilidade e a paz do reino, à Justiça que distribua todas as graças possíveis, a fim de conciliar amizades necessárias à manutenção de seu bem-estar corporal e nenhum direito ferido, armando-se contra as leis, lhe ponha em perigo a segurança dos prazeres. Se a dor se apodera do corpo, sem todavia precipitá-lo na morte, é dever da Fortaleza manter firme o pensamento do espírito em sua soberana, isto é, na Volúpia, com o propósito de, pela recordação das delícias passadas, mitigar os espinhos da presente dor. A Temperança deve regular a quantidade dos alimentos e evitar todo excesso que, alterando a saúde, perturbaria, de acordo com os epicuristas, a maior volúpia do homem. Desse modo, as virtudes, com toda a dignidade de sua glória, servem ao prazer como a mulherzinha mandona e desonesta. Dizem nada haver de mais vergonhoso, de mais disforme e de menos suportável aos olhos dos bons que semelhante quadro. Mas tenho para mim que não será pintura do devido decoro, se se finge outra, em que as virtudes sirvam à glória humana. Mesmo quando essa glória não seja delicada mulher, é doente de orgulho e tem muito de vaidade. Por isso, não a servem dignamente a solidez e a simplicidade das virtudes, querendo que nada proveja a Prudência, nada distribua a Justiça, nada tolere a Fortaleza e nada modere a Temperança, senão aquilo com que agrade aos homens e sirva à glória oca. Nem se defendam dessa fealdade os que, desdenhando os juízos alheios como menosprezadores da glória, se julgam sábios e se comprazem em si mesmos, porque sua virtude, se é que o é, se submete doutro modo ao louvor humano. Quem com verdadeira piedade ama a Deus e crê e espera nele, vive mais solícito pelo que desagrada a Ele do que por aquilo, se é que nele existe, que agrada não tanto a ele como à verdade. E o que pode dar-lhe complacência não o atribui senão à misericórdia daquele a quem teme desagradar, dando-lhe graças por essas coisas de que o curou e erguendo súplicas pelas que lhe resta curar. CAPÍTULO XXI O império romano foi disposto pelo verdadeiro Deus, de quem procede todo poder e cuja providência rege todas as coisas. Assim sendo, o poder de dar o império e o reino não o atribuamos senão ao verdadeiro Deus, que dá a felicidade no reino dos céus somente aos piedosos, e o reino terrestre a piedosos e a ímpios, como lhe apraz a Ele, a quem nada apraz injustamente. Mesmo quando tenhamos dito algo, na medida em que se nos descobriu, é muito para nós e supera-nos de muito as forças o esquadrinhar os segredos dos homens e formar juízo, depois de superficial exame, sobre os merecimentos dos reinos. O único Deus verdadeiro que nem em seu juízo, nem em seu auxílio abandona o gênero humano, quando quis e quanto quis, deu o reino aos romanos. Deu-o aos assírios e também aos persas, que, segundo seus escritos referem, adoram dois deuses apenas, um, bom, e outro, mau, para silenciar o povo hebreu, do qual já disse, quanto me pareceu suficiente, não haver prestado culto senão a um Deus, mesmo quando teve em sua mão o reino. O mesmo que, sem o culto à deusa Segécia, deu messes aos persas e, sem o culto a tantos deuses, deu outros muitos dons da terra, porque à frente de cada uma das coisas colocaram um deus ou vários à frente de cada coisa, esse mesmo deu o reino, sem o culto daqueles por quem acreditavam reinar. De igual modo também o deu aos homens. Deu-o a Mário e a Caio César. Deu-o a Augusto e ao próprio Nero. Deu-o aos Vespasianos, pai e filho, delícias do gênero humano, e ao crudelíssimo Domiciano. E, para não nos vermos na necessidade de citar um por um, Ele deu-o a Constantino, príncipe cristão, e a Juliano, o Apóstata, cuja índole o amor ao mando e a sacrílega e detestável curiosidade estragaram. Era dado aos vãos oráculos e atreveu-se, confiado na vitória, a incendiar os navios que transportavam o necessário sustento. Depois, arrostando com ímpeto empresas loucas e morto, logo a seguir, como prêmio de sua temeridade, deixou em lugares hostis o exército indefeso, para que doutro modo não pudesse escapar dali senão contra o augúrio do deus Término, do qual já falamos no Livro anterior e que mudava as fronteiras do Império romano. O deus Término, que não cedera a Júpiter, cedeu à necessidade. Isso, sem dúvida, o único Deus verdadeiro rege e governa como lhe apraz e, embora suas causas sejam ocultas, nem por isso são injustas. CAPÍTULO XXII A duração e o desenlace das guerras dependem do juízo de Deus. Como depende de seu arbítrio, de seu justo juízo e de sua misericórdia o atribular ou consolar os mortais, assim também dele dependem os tempos das guerras, que encurta ou prolonga a seu talante. Com incrível celeridade e brevidade concluiu Pompeu a guerra dos piratas, e Cipião, a terceira guerra púnica. Também a guerra dos gladiadores fugitivos, embora vencidos muitos generais romanos e dois cônsules e devastada horrivelmente e destruída a Itália, se resolveu no terceiro ano, depois de muitos estragos. Os picênios, marsos e pelignos, gente não estrangeira, mas italiana, depois de prolongada e fidelíssima servidão sob o jugo romano, intentaram erguer a cabeça para libertar-se, já sujeitas ao Império romano muitas nações e destruída Cartago. Nessa guerra itálica, os romanos foram muitas vezes vencidos e nela pereceram dois cônsules e outros nobilíssimos senadores; mas, apesar de tudo, não durou muito tempo esse mal, que terminou no ano quinto. A segunda guerra púnica, com grande menoscabo e catástrofe da república, debilitou e esteve a ponto de desfazer as forças romanas durante dezoito anos. Em duas batalhas pereceram cerca de setenta mil romanos. A primeira guerra púnica durou vinte e três anos, e a mitridática, quarenta. E, para ninguém imaginar que a aprendizagem dos romanos foi mais poderosa para concluir mais depressa as guerras, nos tempos antigos, tão celebrados em todo gênero de virtudes, a guerra samnítica durou cerca de cinquenta anos. Nela os romanos sofreram tamanha derrota, que os obrigaram a passar sob o jugo. Mas, porque não amavam a glória pela justiça, mas pareciam amar a justiça pela glória, romperam o tratado de paz e a aliança. Refiro essas coisas porque muitos ignorantes das coisas passadas e também alguns que dissimulam o que conhecem, se virem que nos tempos cristãos dura um pouco mais qualquer guerra, hão de atribuí-lo descaradamente à nossa religião, com vozes ininteligíveis, dizendo que, se não existisse, se renderia culto às divindades com o antigo rito e a virtude humana, que com o auxílio de Marte e de Belona concluiu depressa tantas guerras, se encarregaria de pôr fim com extrema presteza também a essa. Recordem os que leram a duração, os variados desenlaces e as lutuosas catástrofes das guerras sustentadas pelos antigos romanos e considerem que o orbe costuma ser agitado por semelhantes males, como o mar proceloso por causa das tempestades, e confessem, pelo menos uma vez, o que não querem. Não inflijam a si mesmos a morte, dando rédea solta a suas línguas contra Deus, e não enganem os ignorantes. CAPÍTULO XXIII Guerra em que Radagásio, rei dos godos e adorador dos demônios, em um só dia foi vencido com suas imensas hostes. O que em nosso tempo e há pouco Deus fez maravilhosa e misericordiosamente eles não o referem com o devido reconhecimento. Antes, quanto deles depende, intentariam, se possível fora; sepultá-lo no esquecimento de todos os mortais. Se o passássemos em silêncio, seríamos de igual modo ingratos. Quando Radagásio, rei dos godos, à frente de imensa e inumana hoste, já nas cercanias da Urbe, ameaçava lanças-se sobre Roma, em um só dia foi vencido com tamanha celeridade, que sem um só dos romanos, não direi morto mas nem mesmo ferido, ficaram estendidos por terra mais de cem mil do exército contrário e o general com os filhos foram presos e logo mortos com a pena devida. Se, ímpio como era, houvesse entrado em Roma com suas tão ímpias hostes, a quem perdoaria? A que lugares dos mártires tributaria honra? Em que pessoas temeria a Deus? De quem quereria não fosse derramado o sangue? De quem quisera deixar intacta a castidade? Que clamores não ergueriam esses pagãos em favor dos deuses, com que descaramento não nos lançariam em rosto que Radagásio vencera e fora tamanho seu poder precisamente porque aplacava e invocava todo dia os deuses com sacrifícios, coisa que a religião cristã não permitia que os romanos fizessem! Quando já se aproximava dos lugares em que por vontade da soberana Majestade foi avassalado e quando sua fama já voava sobre o cavalo do espaço, diziam-nos em Cartago que os pagãos acreditavam, propalavam e alardeavam que aquele, com a proteção e auxílio de seus deuses favoritos, a quem, segundo corria, sacrificava diariamente, não podia, em absoluto, ser vencido pelos que não faziam tais sacrifícios aos deuses romanos, nem permitiam que alguém os fizesse. E esses miseráveis não dão graças a tão grande misericórdia de Deus, que havendo determinado castigar com a invasão dos bárbaros os costumes dos homens, merecedores de suplícios mais graves, conteve com tamanha mansuetude a própria indignação, que primeiro fez com que fosse maravilhosamente vencido, para que, a fim de intimidar os ânimos dos débeis, não se desse a glória aos demônios, a quem, segundo era voz corrente, Radagásio implorava auxílio. E depois fez que Roma fosse tomada por esses bárbaros, que, contra toda usança das guerras anteriormente travadas, em reverência à religião cristã perdoaram os que se refugiavam nos lugares santos; e eram tão contrários, pelo nome cristão, aos próprios demônios e aos ritos dos sacrílegos sacrifícios nos quais fundava Radagásio sua presunção, que parecia sustentarem guerra muito mais cruel contra eles que contra os homens. Dessa forma, o Senhor verdadeiro e Governador das coisas flagelou com misericórdia os romanos e mostrou aos que rogavam aos demônios, vencidos de maneira tão incrível, não serem semelhantes sacrifícios necessários nem mesmo para salvamento das coisas presentes. O objetivo era que aqueles que não se aferram à sua pertinácia, mas prudentemente o ponderam, não abandonem pelas necessidades presentes a religião verdadeira, mas a conservem com fidelíssima esperança da vida eterna. CAPÍTULO XXIV Qual e quão verdadeira é a, felicidade dos imperadores cristãos. A certos imperadores cristãos não chamamos felizes precisamente porque imperaram por longo tempo, com morte plácida deixaram o império aos filhos, dominaram os inimigos da república ou puderam guardar-se e oprimir os cidadãos hostis que se erguiam contra eles. Esses e outros consolos ou prosperidades da presente e trabalhosa vida também mereceram recebê-los alguns adoradores dos demônios, não pertencentes ao reino de Deus, a que esses pertencem. E isso fez sua misericórdia para que os que nele creem não desejassem esses bens, considerando-os supremos. Pelo contrário, chamamo-los felizes, se imperam com justiça, se não se pavoneiam entre as línguas pródigas em sublimes louvores e entre os obséquios dos que humildemente os saúdam, mas se lembram de serem homens, se colocam seu poder aos pés da Majestade divina para, principalmente, estender-lhe o culto, se temem, amam e adoram Deus, se preferem o reino onde não temem ter príncipes, se se mostram tardos em vingar e prontos a perdoar, se tiram vingança por necessidade da administração e defesa da república e não para saciar o ódio aos inimigos, se concedem perdão, não para deixar impune a justiça, mas pela esperança da emenda, se, quando muitas vezes se veem obrigados a ordenar com aspereza, o compensam com suavidade misericordiosa e com largueza de benefícios, se a luxúria está neles tanto mais sujeita quanto mais livre poderia estar, se a senhorear quaisquer nações preferem dominar seus maus apetites, se não fazem tudo isso pela ânsia de vanglória, mas por dileção pela felicidade eterna, se não descuidam de, por seus pecados, imolar ao Deus verdadeiro o sacrifício da humildade, da comiseração e da prece. Dizemos que tais imperadores cristãos são felizes nesta peregrinação e depois o serão na realidade, quando se cumprir o que esperamos. CAPÍTULO XXV Prosperidades que Deus concedeu a Constantino, imperador cristão. O bom Deus, para os homens, que estavam na crença de que cumpria adorá-lo pela vida eterna, não pensarem que pessoa alguma podia alcançar as grandezas temporais e os reinos terrestres, sem suplicá-los aos demônios, porque esses espíritos têm muito poder em tais assuntos, cumulou o imperador Constantino, que, longe de recorrer aos demônios, adorava o verdadeiro Deus, de tantos bens terrenos quantos ninguém se atreveria sequer a desejar. E concedeu-lhe, ademais, fundar cidade aliada do Império romano, como que filha da própria Roma, mas sem templo algum, nem um ídolo que fosse. Reinou longo tempo e, só ele, augusto, susteve e defendeu todo o orbe romano. Foi muito vitorioso na administração e gerência das guerras; a fortuna acompanhou-o sempre no oprimir os tiranos. Entrado em anos, morreu de enfermidade e velhice e deixou os filhos à testa do Império. Mas de novo, para nenhum imperador fazer-se cristão justamente para merecer a felicidade de Constantino, visto como cada qual deve ser cristão pela vida eterna, levou Joviano com muito maior celeridade que Juliano e permitiu fosse Graciano assassinado por espada tirânica, muito mais docemente que o famoso Pompeu, o Grande, que rendia culto aos deuses romanos. Este não pôde ser vingado por Catão, de quem fizera, em determinado sentido, herdeiro da guerra civil. Aquele, porém, mesmo quando as almas piedosas não buscam tais consolos, foi vingado por Teodósio, a quem fizera partícipe do reino, dando-lhe preferência sobre o irmão ainda criança, mostrando-se mais desejoso de sociedade fiel que de excessivo poder. CAPÍTULO XXVI Fé e piedade de Teodósio Augusto. 1. Por essa razão, não apenas em vida, mas também depois de morto, lhe guardou a fidelidade que lhe devia. Expulso Valentiniano, seu irmão ainda criança, por Máximo, seu assassino, como cristão acolheu o órfão dentro de seu império e velou por ele com afeto paternal, por ele que, destituído de todas as forças, sem dificuldade podia tirar de diante de si, caso em seu peito o desejo de reinar fosse mais ardente que a caridade de fazer bem. Por isso, tomando-o sem menoscabo de sua autoridade imperial, o consolou com humanidade e graça. Depois, quando as empresas de Máximo o tornaram temível, entre as angústias de suas preocupações não se entregou a sacrílegas e ilícitas curiosidades, mas, pelo contrário, se dirigiu a João solitário do deserto do Egito, de quem sabia, segundo voz corrente, que esse servo de Deus estava dotado do espírito de profecia, e dele recebeu mensagem com a plena certeza de sua vitória. Logo o exterminador do tirano Máximo restabeleceu, com misericordiosíssima veneração, o infante Valentiniano em seu Império, de que fora arrebatado. E, morto este dentro em pouco, quer por traição, quer por outro acidente, quer por acaso, cheio de fé em mensagem profética recebida, derrotou outro tirano, de nome Eugênio, que de maneira ilegítima suplantara aquele imperador, contra cujo poderoso exército combatia mais com a oração que com a espada. Soldados que presenciaram a batalha contaram-nos que sentiam arrancarem-lhes das mãos as armas de arremesso e isso o fazia impetuoso vento pela parte de Teodósio, que não apenas lhes arrancava com violência quanto arrojavam contra os inimigos, mas que também os próprios dardos se voltavam contra eles. Esse fato inspirou o poeta Claudiano, embora contrário ao nome de Cristo, a escrever o seguinte elogio do imperador: O tu, muito amado por Deus! Éolo arma em teu favor suas impetuosas hostes. Por ti combate o éter e os ventos acodem, conjurados, ao som das trombetas. Todavia, vencedor como crera e predissera, derribou, ao regressar, as estátuas de Júpiter, que haviam sido como que consagradas contra ele com não sei que ritos. E como seus corredores, na jovial familiaridade permitida pela vitória, lhe dissessem, rindo, que gostariam muito de ser fulminados pelos raios de ouro do deus, com amável liberalidade os presenteia com eles. Quis que nessa oportunidade se fizessem cristãos e amou com caridade cristã os filhos dos inimigos, que não haviam sido mortos por suas ordens, mas pelo ímpeto da guerra, e se refugiaram na Igreja, embora ainda não fossem cristãos. Não os privou de seus haveres e aumentou-lhes as honras. Não permitiu que ninguém, depois da vitória, tirasse vingança de inimizades particulares. Nas guerras civis não se conduziu como Cína, Mário e Sila e outros assim, que, nem acabadas, quiseram que acabassem; pelo contrário, tamanha foi a dor que sentiu quando principiaram, que não quis que, uma vez acabadas, causassem prejuízo a quem quer que fosse. Em meio de todas essas coisas, desde o princípio de seu império não deixou de dar leis mais justas e santas em prol da Igreja, que lutava com os ímpios, se afanava e era perseguida com violência pelo herege Valente, favorável aos arianos. E ficava mais satisfeito de ser membro da Igreja que de reinar sobre o mundo. Mandou derribar em toda a parte os ídolos dos gentios, entendendo à maravilha que os bens terrenos não se encontram em poder dos demônios, mas no do verdadeiro Deus. Que houve mais admirável que sua religiosa humildade, quando, depois de já haver prometido, a rogo dos bispos, o perdão dos tessalonicenses e de ver-se obrigado a vingar o gravíssimo crime de alguns de sua corte, o castigou a autoridade eclesiástica e fez tamanha penitência, que o povo, orando por ele, chorava mais a celsitude imperial prostrada que a temera, irada, em seu pecado? Essas boas obras e outras assim, que seria prolixo enumerar, levou-as o imperador consigo; de toda essa glória, de toda essa grandeza humana desaparecida como tênue vapor restam apenas suas obras; sua recompensa é a eterna felicidade que Deus apenas concede às almas verdadeiramente piedosas. O resto, fastígios ou subsídios desta vida, como o mundo, a luz, as auras, as terras, as águas, os frutos e a alma, corpo, sentidos, mente e vida do homem, concede-os a bons e maus. Entre essas enumera-se também certa grandeza de império, que a Providência dispensa para governo dos tempos. 2. Por isso, vejo que agora me cumpre responder àqueles que, refutados e convencidos com as razões mais claras, que provam nada servir a multidão dos deuses falsos, com mira a obter esses bens temporais, desejados pelos homens de pouco discernimento, se esforçam em afirmar que aos deuses se deve culto, não pela utilidade da presente vida, mas por aquela que há de seguir à morte. Aos que querem, pelos bens deste mundo, adorar vaidades e se queixam de não se lhes serem permitidos esses pensamentos pueris, creio haver-lhes respondido nestes cinco livros. Depois de haver dado a lume os três primeiros e quando começavam a andar de mão em mão, ouvi que alguns preparavam por escrito não sei que réplica contra eles. Depois me chegou aos ouvidos que já haviam escrito, mas procuram oportunidade para, sem perigo, entregá-los ao público. A esses tais aconselho a não desejar o que não lhes convém, porque é fácil acreditar que se respondeu, quando não se quer calar. Com efeito, que há de mais loquaz que a vaidade? É, porventura, mais poderosa que a verdade, porque, se quiser, pode gritar mais alto que a verdade? Todavia, ponderem seriamente todas as coisas. E se, talvez, julgando sem parcialidade, reconhecerem ser menos fácil destruir nossas palavras por meio de sólidos argumentos que atacá-las através de charlatanices satíricas, prefiram aos elogios dos insensatos as reprimendas dos sábios. Porque, se não existe, em absoluto, a liberdade de dizer a verdade, mas a licença de maldizer que eles esperam, o céu os preserve da prosperidade daquele homem que a liberdade de prejudicar faria passar por feliz: Infeliz, exclama Cícero, quem é livre para pecar! Se, por conseguinte, existe alguém cuja felicidade consiste em maldizer, desengane-se; melhor fora se visse privado dessa liberdade, visto que, deposta a vaidade de sua jactância, poderia agora, como se se tratasse de consulta, discutir conosco quanto quisesse e, quanto pudesse, ouvir resposta honesta, ponderada e livre, daqueles a quem, como se estivesse discutindo, consulta. LIVRO SEXTO Até este momento escreveu o autor contra os que julgam que cumpre tributar culto aos deuses, com os olhos postos na presente vida temporal. Agora escreve contra aqueles que acreditam que pela vida eterna é que se lhes deve tributar culto. Há de Agostinho refutar esses tais nos cinco livros seguintes. Expõe neste, em primeiro lugar, a opinião a respeito dos deuses, considerada muito abjeta por Varrão, escritor de grande autoridade entre os teólogos dos gentios. Aduz os três gêneros dessa teologia, chamada, segundo ele, fabulosa, natural e civil, e logo demonstra não servirem de nada para a felicidade da vida futura a fabulosa e a civil. PRÒLOGO Creio haver refutado o suficiente, nos cinco livros anteriores, quem pensa que, com o rito e servidão que os gregos chamam de Jatreia e é devida ao Deus uno e verdadeiro, cumpre venerar e adorar muitos e falsos deuses, convencidos, pela verdade cristã, de serem apenas vãos ídolos ou imundos espíritos e malignos demônios, criaturas, em suma, não o criador. E quem ignora não lhe bastarem à excessiva estultícia e pertinácia nem esses cinco livros, nem outros, seja qual for o número? E que se considera glória da vaidade não ceder às forças da verdade, coisa causadora de prejuízo àquele a quem vício tão inumano domina. Também existem enfermidades consideradas incuráveis pela arte médica, o que não acontece em prejuízo do médico, mas do enfermo. Quanto aos que o leem sem nenhuma obstinação de antigo erro ou, pelo menos, com minguada e não excessiva, julgam, considerando e ponderando tudo, havermos, com esses cinco livros já prontos, resolvido a questão proposta e pecado mais por excesso que por falta. E não podem pôr em dúvida que esse ódio, que à religião cristã atribui as calamidades, os f1agelos e as revoluções do mundo, esse ódio que os ignorantes se afanam em propagar e os sábios dissimulam, mas, contra suas próprias luzes e cedendo à louca impiedade que os possui, admitem existir, esse ódio não pode, a olhos desinteressados, continuar sendo senão absoluta falta de tino, absoluta falta de entendimento dos fatos e simples consequência de temerária leviandade e de perniciosa animosidade. CAPÍTULO I Dos que dizem adorar os deuses, não pela vida presente, mas pela eterna. 1. Agora, posto que a seguir, como o exige a ordem prescrita, temos de refutar e ensinar os que sustentam que os deuses dos gentios, desvirtuados pela religião cristã, não devem ser adorados pela presente vida, mas por amor à vida que há de seguir à morte, apraz-me dar princípio a minhas palavras pelo verídico oráculo do Salmo sagrado: Bem-aventurado aquele cuja esperança é o Senhor e não deteve os olhos em vaidades e loucuras mentirosas. Entre todas as vaidades e loucuras mendazes, contudo, com muito maior tolerância se há de prestar ouvidos aos filósofos, a quem desagradaram essas opiniões e erros dos povos. Esses povos forjaram estátuas dos deuses, fingiram ou consideraram feitas muitas falsidades e perversidades daqueles que batizaram com o nome de deuses imortais e, dando-lhes fé, misturaram-nas com seu culto e ritos sagrados. Com esses homens, que confessaram detestar semelhantes desatinos, embora não o pregassem com liberdade, mas, pelo menos, proferindo-o entre dentes nas discussões que mantinham, não é de todo fora de propósito tratar esta questão: Se, por amor à vida que virá depois da morte, cumpre adorar não o Deus uno, autor de toda criatura espiritual e corporal, mas a muitos deuses, reconhecidos pelos mais excelentes e ilustres filósofos, deuses feitos e colocados em lugar sublime por aquele que é Uno. 2. Quanto ao mais, quem admitirá dizer-se e sustentar-se que esses deuses, alguns já citados no Livro Quarto (a cada qual se comissionavam ofícios singulares das coisas pequenas), sejam capazes de conceder a vida eterna? Ou será que homens tão hábeis e agudos, que se gloriam de haver com grande proveito ensinado por escrito, para que se soubesse por que cumpre dirigir súplicas a qualquer deus e que se deve pedir a cada um deles, com o fim de que não sucedesse o torpíssimo absurdo, como é de uso no palco, de pedir água a Líbero ou vinho às Linfas, aconselharão a homem devoto dos deuses imortais que, quando peça vinho às Linfas e essas lhe respondam: "Temos água, isso peça-o a Baco", possa com razão dizer: "Se não tendes vinho, dai-me pelo menos a vida eterna"? Existe algo mais monstruoso que esse absurdo? Porventura, em meio a grandes gargalhadas (pois costumam ser propensas ao riso), se não procuram enganar, como os demônios, não responderão ao suplicante: "Pensas, ó homem, que temos em nossas mãos a vida, se, como acabas de ouvir, não temos a vide"? É necessidade muito desavergonhada pedir ou esperar que nos deem a vida eterna, semelhantes divindades, cujas funções afirmam ser totalmente particulares a esta vida, trabalhosa e muito breve, e a alguma outra coisa referente ao sustento e apoio, de tal sorte que pedir a uma delas o que se encontra sob a tutela ou poder de outra é de tal maneira fora de razão e absurdo, que parece em tudo imagem da histrionice teatral. Isso, quando os atores o fazem com pleno conhecimento de causa, riem com dignidade no teatro; mas, quando o fazem inconscientemente os insensatos, com razão maior caçoam deles no mundo. Os sábios engenhosamente descobriram e consignaram por escrito a que deus ou deusa e por que motivo se lhes dirige súplica, no tocante aos deuses estabelecidos pelas cidades. A saber, o que se pede a Baco, o que às Linfas, o que a Vulcano e, assim, aos demais. Já mencionei no Livro Quarto parte disso e parte julguei prudente silenciar. Por conseguinte, se é erro pedir vinho a Ceres, pão a Baco, água a Vulcano e fogo às Linfas, não se deve entender que disparate maior é a qualquer deles pedir a vida eterna? 3. Com efeito, se, ao tratarmos do reino terrestre, procuramos saber a que deuses ou deusas se devia atribuir o poder de conferi-lo aos homens, e, bem pesados todos os argumentos, chegamos à conclusão de ser muito alheio à verdade pensar que mesmo a fundação dos reinos terrestres fosse obra de alguns dos muitos e falsos deuses, não é, porventura, impiedade e disparate dos maiores acreditar possa qualquer deles dar a vida eterna, que sem vacilação e sem cotejo algum se deve preferir a todos os reinos do mundo? E não nos pareceu não pudessem tais deuses dar o reino terrestre justamente porque são excelsos e grandes, e este algo pequeno e desprezível, de que não se dignariam preocupar em tamanha sublimidade, e sim porque, por mais que alguém com justo motivo despreze, pela consideração da fragilidade humana, as caducas culminâncias do reino terrestre, esses deuses se revelaram incapazes e indignos de administrá-los, dá-los ou conservá-los. E por isso, se (como no-lo prova o tratado nos dois livros precedentes) nenhum deus dessa turba, quer dos quase plebeus, quer dos deuses próceres, é idôneo para dar a mortais reinos mortais, muito menos poderá de mortais fazer imortais? 4. Acrescenta que, se já discutimos com os que pensam dever-se culto aos deuses, não por amor a esta vida, mas pelo daquela que há de seguir à morte, já não se lhes deve render culto nem por aqueles bens que, como distribuídos e próprios, atribui ao poder dos deuses não a razão da verdade, mas a opinião da vaidade. Como creem seus defensores, o culto a esses deuses é necessário para as utilidades desta vida mortal; contra eles já lutei bastante, quanto pude, nos cinco livros precedentes. Sendo assim, embora fosse mais egrégia e florida a idade dos que deram culto à deusa Juventas e a de quem a despreza declinasse nos anos da juventude ou nela enfriasse como em corpo carregado de anos; se a Fortuna Barbada vestisse com maior donaire e vistosidade as bochechas dos que a servem e a seus menosprezadores víssemos imberbes ou com barba falha, ainda assim diríamos, com toda a razão, que o poder desses deuses singulares se estendia a esse ponto, limitados como eram, de certo modo, a seus ofícios. E por isso nem seria conveniente pedir a Juventas a vida eterna, posto que não dá nem mesmo barba, nem da Fortuna Barbada se devia esperar algo depois desta vida, dado não ter influência alguma nesta vida, nem sobre a idade que ela cobre de barba. Agora, seu culto não é necessário sequer para as mesmas coisas que se julgam submetidas a ela. Muitos que adoravam a deusa Juventas não se mostraram elegantes nessa idade e muitos que não a adoravam gozaram do vigor da juventude. Do mesmo modo, muitos devotos da Fortuna Barbada não puderam chegar a ter barba ou a tiveram feia e, se alguns lhe tributam culto para pedir barba, deles caçoam os desprezadores que a têm. A tal extremo anda desatinado o coração humano que, conhecendo a inanidade e o ludíbrio do culto a esses deuses, por amor a tais dons temporais e fugidios, de que, dizem, cada um deles tem particular presidência, acredite ser frutuoso para a vida eterna? Que podem dá-la não se atreveram a dizer nem mesmo os que, para o néscio populacho prestar-lhes culto, fizeram partilha de tal maneira pormenorizada, por pensarem que eram muitos e para nenhum ficar ocioso. CAPÍTULO II Que cumpre pensar do parecer de Varrão acerca dos deuses dos gentios, de quem descobriu tais gêneros e cerimônias, que os teria tratado com reverência maior, se os houvesse em absoluto silenciado. Quem o investigou com maior curiosidade que Marco Varrão? Quem o disse com maior erudição? Quem o ponderou com maior atenção e quem o distinguiu com maior agudeza? Quem o escreveu mais solícita e cabalmente? Embora de menor suavidade de expressão, é de tal maneira doutrinário e sentencioso, que em todo gênero de erudição, por nós chamada secular, e por eles, liberal, ensina o afeiçoado às coisas tanto como Cícero deleita o afeiçoado ao estilo. Afinal, dele tal testemunho dá o próprio Túlio, que nos Livros Acadêmicos diz que a discussão neles referida a teve com Marco Varrão, de todos os homens o mais agudo e, sem dúvida alguma, o mais sábio. Não diz o mais eloquente ou diserto, porque na realidade nesse ponto não pode emparelhar com ele, mas diz de todos o mais agudo. E nesses livros, isto é, nos Acadêmicos, em que sustenta dever-se duvidar de tudo, acrescentou: e, sem dúvida alguma, o mais sábio. Achava-se, sem dúvida, tão certo, que desterrava toda dúvida, de hábito apresentada em tudo, como se, havendo de discuti-lo segundo a dúvida dos acadêmicos, se esquecesse de que era acadêmico. Fazendo no Livro Primeiro o elogio das obras literárias de Varrão, declara: Peregrinando e vagando em nossa cidade como hóspedes, teus livros encaminharam-nos como que para casa, para que por fim pudéssemos saber quem éramos e onde estávamos. Declaraste-nos a idade de nossa pátria, descreveste-nos os tempos, descreveste-nos os direitos da religião e dos sacerdotes, declaraste-nos a disciplina doméstica e a pública, ensinaste-nos onde ficam as regiões e os lugares, deste-nos notícia dos nomes, gêneros, deveres e causas de todas as coisas divinas e humanas. Personagem de tão vasta e exímia erudição, de quem resumidamente diz Terêncio neste versinho: Varrão, homem muito sábio em todos os conceitos, leu tanto, que nos maravilha dispusesse de tempo para escrever algo, e escreveu tanto, que mal acreditamos possa alguém lê-la. Tal homem, repito, de tão grande engenho e tamanha erudição, se fosse impugnador e destruidor das coisas divinas, de que escreve, e dissesse pertencerem não à religião, mas à superstição, não sei se neles escreveria coisas tão dignas de riso, tão detestáveis e desprezíveis. Prestou culto de tal forma aos deuses e julgou que se lhes devia render de tal sorte, que em seus próprios escritos diz recear que pereçam, não por incursão hostil, mas por negligência dos cidadãos. Disso, como da ruína, quer livrá-los e em memória dos bons deposita-os e guarda em seus livros, com cuidado mais cuidadoso que, segundo se apregoa, o de Metelo para do incêndio livrar as sagradas vestais, e Enéias, para da destruição de Tróia livrar os penates. E, todavia, deu a ler aos séculos o que sábios e ignorantes com razão julgaram digno de repulsa e muito hostil à verdade da religião. Que devemos pensar, senão haver esse homem muito agudo e capaz, não, porém, livre pelo Espírito Santo, sofrido a opressão dos usos e leis de sua cidade e não querido, sob pretexto de recomendar a religião, calar as coisas que o inquietavam? CAPÍTULO III Qual a divisão dada por Varrão aos livros que compôs sobre as "Antiguidades das Coisas Humanas e Divinas". Escreveu quarenta e um livros de Antiguidades e dividiu-os em coisas humanas e divinas. Às coisas humanas dedica vinte e cinco; às divinas, dezesseis. Na divisão segue esta ordem: Divide em quatro partes o tratado das coisas humanas e cada parte em seis livros. Leva em linha de conta o autor, o lugar, a época e a natureza dos acontecimentos. Assim, nos seis primeiros escreveu sobre os homens; nos seis segundos, sobre os lugares; nos seis terceiros trata dos tempos; nos seis últimos, das coisas. Quatro vezes seis, vinte e quatro. Mas à frente colocou um, especial, que, de modo geral e introdutório, falasse de todos. Nas coisas divinas conservou a mesma divisão, no tocante ao que se deve dedicar aos deuses. Os homens prestam-lhes culto em lugares e tempos. Os quatro pontos a que me referi, estuda-os cada qual em três livros, porque escreveu os três primeiros sobre os homens, os três seguintes, sobre os lugares, os três terceiros, sobre os tempos, e os três últimos, sobre o culto divino. Aqui também põe em relevo, com sutilíssima distinção, quem o oferece e que oferece. Mas, como era necessário falar, e é o que mais se esperava, de a quem o oferecem, escreveu sobre os deuses também os três últimos, para cinco vezes três completarem o número quinze. Todos, como dissemos, são dezesseis, porque também no princípio desses pós um, especial, que falasse introdutoriamente de todos. Terminado esse, depois de fazer a referida divisão quinquepartida, de tal modo subdividiu os três primeiros, relativos aos homens, que o primeiro trata dos pontífices, o segundo, dos áugures, e o terceiro, dos quindecênviros das coisas sagradas. Os três segundos, pertinentes aos lugares, subdividiu-os por sua vez de tal maneira que em um deles fala das capelas, em outro, dos templos sagrados, e em outro, dos lugares religiosos. Os três seguintes concernem aos tempos e versam um sobre as festas, outro sobre os jogos circenses e o terceiro sobre o cênicos. Dos três subsequentes, que correspondem às coisas sagradas, um dedica-o às consagrações, outro, aos sacrifícios privados, o último, aos públicos. A essa espécie de pompa religiosa, em que por último desfilam os deuses, fechando o cortejo, dedica os três livros restantes, em que trata, no primeiro, dos deuses certos, no segundo, dos incertos, e no terceiro e último de todos, dos deuses principais e escolhidos. CAPÍTULO IV Da dissertação de Varrão decorre serem mais antigas que as divinas as coisas humanas. 1. Em toda essa série da mais bela e sutil divisão e distinção, qualquer homem que não seja, de coração obstinado, inimigo de si mesmo do que se disse e do que se há de dizer com suma facilidade extrai esta consequência: em vão se busca e é grande atrevimento esperar e desejar a vida eterna. Isso é desígnio dos homens ou dos demônios, e não dos demônios por eles chamados bons, mas, para falar com clareza, dos espíritos imundos e malignos sem restrições, que na imaginação dos ímpios com admirável inveja e sutileza semeiam opiniões nocivas, com as quais a alma humana se desvanece e não pode acomodar-se e abraçar-se à verdade incomutável e eterna. E às vezes as entremetem abertamente nos sentidos e as confirmam com o mais enganador artifício que podem. O próprio Varrão testifica haver escrito primeiro sobre as coisas humanas e depois sobre as divinas precisamente porque primeiro existiram as cidades que depois instituíram as coisas religiosas. A verdadeira religião, contudo, não a instituiu nenhuma cidade terrena; pelo contrário, ela é que funda cidade verdadeiramente celeste, a que inspira e doutrina o verdadeiro Deus, que a seus verdadeiros adoradores dá a vida eterna. 2. O motivo que Varrão oferece, quando confessa haver escrito primeiro sobre as coisas humanas e depois sobre as divinas justamente porque as divinas foram instituídas pelos homens, é este: Assim como o pintor precede o quadro, e o arquiteto, o edifício, assim também as cidades precedem o instituído por elas. Mas acrescenta que primeiro escreveria sobre os deuses e depois sobre os homens, se tratasse de toda a natureza divina, como se aqui houvesse tratado de parte, não de toda. Ou será que parte alguma da natureza divina, embora não toda, deva preceder a dos homens? Que significa que nos três últimos livros, ao explicar com diligência os deuses certos, incertos e escolhidos, parece não passar em silêncio nenhuma natureza divina? Que significa o que diz: Se escrevêssemos de toda natureza divina e humana, explicaríamos a divina antes de tratar da humana? Ou escreve de toda natureza divina, de alguma ou, em absoluto, de nenhuma. Se de toda, deve sem dúvida antepor-se às coisas humanas. E se de alguma, por que não há também de preceder as coisas humanas? É, porventura, indigna de preferir-se à natureza total dos homens alguma parte dos deuses? E se a todas as coisas humanas é muito que alguma parte divina se anteponha, é, pelo menos, digna de antepor-se às romanas, porque escreveu os livros das coisas humanas não no concernente ao orbe da Terra, mas no tocante a Roma apenas. Contudo, disse que com razão antepunha, de acordo com o plano de sua obra, os livros das coisas humanas aos livros das coisas divinas, como o pintor precede o quadro pintado, e o arquiteto, o edifício, confessando às claras haverem também essas coisas divinas, como a pintura e a construção, sido criadas pelos homens. Resta entender-se não haver escrito sobre nenhuma natureza divina, e isso não quis dizê-lo abertamente, mas disse-o aos inteligentes. Onde diz não toda, comumente se entende alguma, mas também é possível entender-se nenhuma, porque a que é nenhuma não é toda, nem alguma. Como Varrão diz: Se houvesse de escrever sobre toda natureza divina, a ordem seria antepô-la às coisas humanas. Mas como, embora o cale, a verdade grita que se deve antepor, sem dúvida, às coisas romanas, se não toda natureza divina, pelo menos parte, com razão se pospõe. Logo, não é nenhuma. Não quis às coisas divinas antepor as humanas; o que não quis foi às coisas verdadeiras preferir as falsas. No que escreveu das coisas humanas seguiu a história dos acontecimentos; nas coisas que chama divinas, que seguiu, senão as opiniões da vaidade? Essa, realmente, a verdade, a sutil significação que quis evidenciar, não somente ao escrever primeiro das coisas humanas e depois das coisas divinas, mas também ao dar o porquê do que fazia. Se silenciasse o motivo, talvez outros dessem interpretação diferente ao caso. Na razão que aduziu não deixou lugar para caprichosas suspeitas e provou à saciedade antepor os homens às instituições dos homens, não a natureza dos homens à natureza dos deuses. Desse modo, confessou haver escrito os livros das coisas divinas, não sobre a verdade, tocante à natureza, mas sobre a falsidade, concernente ao erro. É o que prova com maior clareza em outra parte, como referi no livro Quarto, quando diz que, se fundasse nova cidade, escreveria segundo a fórmula da natureza, mas, como já a encontrara velha, não podia desligar-se de seus usos. CAPÍTULO V Três gêneros de teologia, segundo Varrão: um, fabuloso, outro, natural, e o terceiro, civil. 1. Que significa o que diz sobre os três gêneros de teologia, quer dizer, da ciência dos deuses, cujos nomes são: um mítico, outro, físico, e outro, civil? Em latim, se o uso permitisse, ao primeiro gênero chamaríamos fabular, mas chamemo-lo fabuloso. Chamou-se mítico, de fábula, porque em grego mythos significa fábula. A linguagem costumeira já permite dar-se ao segundo o nome de natural. O terceiro foi ele mesmo que o expressou em latim, chamando-lhe civil. Logo a seguir declara: Chamam-no mítico porque usado principalmente pelos poetas, físico, porque o manuseiam os filósofos, e civil, porque o empregam os povos. No primeiro que mencionei, diz, há muitas ficções contra a dignidade e natureza imortal. Nele se fala de haver este deus procedido da cabeça, aquele, da coxa, outro, de gotas de sangue. Nele se lê que os deuses roubaram, cometeram adultério e serviram o homem. Finalmente, nele se atribuem aos deuses todas as desordens em que pode cair não somente o homem, mas o homem mais desprezível. Aqui, sem dúvida quando pôde, quando se atreveu, quando se julgou impune, expressou sem sombra alguma de ambiguidade quanta injúria as fábulas mentirosas fazem à natureza dos deuses. Não falava da teologia natural, nem da civil, mas da fabulosa, que considerou digna de censurada livremente por ele. 2. Vejamos o que diz da outra: O segundo gênero é o que demonstrei; sobre ele os filósofos legaram-nos muitos livros. Neles se fala sobre a essência, lugar, espécie e qualidade dos deuses, sobre se são eternos, se constam de fogo, como acreditou Heráclito, se de números, como Pitágoras, ou de átomos, como diz Epicuro. E assim outras coisas que os ouvidos podem suportar melhor entre paredes, na escola, que fora, no foro. Nada censura no gênero que chamam físico e é próprio dos filósofos. Apenas fez menção das controvérsias que houve entre eles e deram lugar à variedade de seitas dissidentes. Removeu-o, todavia, da ágora, ou seja, dos povos. E condenou-o à reclusão das escolas e suas paredes. Aquele, porém, o primeiro, o mais mentiroso e o mais torpe, não o removeu das cidades. Oh! Religiosos ouvidos populares! Oh! religiosos ouvidos romanos! Não podem suportar as discussões dos filósofos a propósito dos deuses imortais e, por outro lado, os cantos dos poetas e as representações dos histriões, fingidos contra a dignidade e a natureza dos deuses imortais e suscetíveis de ser aplicados não a homem apenas, porém ao mais vil dos homens, não só os suportam, mas até os ouvem com agrado. E não fica assim. Imaginam agradar aos referidos deuses, que, segundo julgam, devem ser aplacados por intermédio seu. 3. Alguém dirá: Do civil, de que agora se trata, distingamos dois gêneros, mítico e físico, isto é, fabuloso e natural, visto como ele também os distinguiu. Vejamos, pois, o civil e a explicação que dele faz. Compreendo com facilidade por que se deve distingui-lo do fabuloso; porque é falso, porque é torpe, porque é indigno. E querer do civil discernir o natural, que significa, senão confessar que o próprio civil é mentiroso? Porque, se natural, que repreensão merece para excluí-lo? E, se o chamado civil não é natural, que merecimento possui para admiti-lo? Esta a causa de haver escrito primeiro das coisas humanas e depois das divinas: nas coisas divinas seguiu as instituições dos homens, não a natureza dos deuses. Examinemos também a teologia civil. O terceiro gênero, diz, é o que os cidadãos e de modo especial os sacerdotes devem conhecer e pôr em prática nas urbes. Nele se acha a que deuses se há de render culto público e a que ritos e sacrifícios está cada qual obrigado. Fixemos mais a atenção no seguinte: A primeira teologia, diz, é principalmente própria ao teatro, a segunda, ao mundo, a terceira, às cidades. Quem não vê a qual entrega a palma? Certamente que à segunda, de que acima declarou ser dos filósofos. Di-la pertencente ao mundo e, segundo os filósofos, nada é melhor que o mundo. As outras duas teologias, a primeira e a terceira, a saber, a do teatro e a da Cidade, distingue-as ou confunde-as? Vemos que de algo ser da cidade logicamente não se segue possa pertencer também ao mundo, embora vejamos estarem no mundo as cidades. Pode suceder que na cidade, de acordo com falsas opiniões, se acreditem e se adorem seres cuja natureza não está no mundo, nem fora do mundo. E o teatro, onde está, senão na cidade? Quem instituiu o teatro, senão a cidade? Por que o estabeleceu, senão por causa dos jogos cênicos? Onde se colocam os jogos cênicos, senão entre as coisas divinas, sobre que nesses livros se escrevem tamanhas agudezas? CAPÍTULO VI Da teologia mítica, ou seja, da fabulosa, e da teologia civil, contra Varrão. 1. És, ó Marco Varrão, o mais engenhoso de todos os homens e, sem dúvida, o mais sábio, mas és homem, não deus, nem mesmo homem que o Espírito de Deus haja elevado em liberdade e luzes, para ver e anunciar as coisas divinas. Vês claramente quanta distinção devia mediar entre as coisas divinas e as humanas frioleiras e mentiras. Mas temes as viciosíssimas opiniões dos povos e costumes sobre as superstições públicas, costumes que desdizem da natureza dos deuses, e de deuses tais como a fraqueza humana os imagina nos elementos do mundo. E tu o sentes, quando o consideras por todas as partes e toda a vossa literatura o proclama. Que papel desempenha aqui o engenho do homem, por mais excelente que seja? De que te serve nessa passagem crítica a doutrina humana, embora tão profunda e vasta? Desejas render culto aos deuses naturais e vês-te obrigado a rendê-lo aos civis. Achaste, é verdade, outros deuses, os fabulosos, em quem desafogas com maior liberdade a indignação que te oprime e, queiras ou não, salpica também os civis. Dizes convirem ao teatro os fabulosos, os naturais, ao mundo, e os civis, à cidade, por ser o mundo obra divina, e as cidades e os teatros, obra dos homens. Nem zombam de outros deuses nos teatros, senão dos adorados nos templos, nem dedicais a outros os jogos, senão àqueles a quem sacrificais vítimas. Com que maior liberdade e com que maior sutileza os dividirias, se dissesses deuses naturais, uns, e outros, de instituição humana, mas pensarem destes últimos uma coisa os poetas, e outra, os sacerdotes, e se encontrarem de tal modo intimamente ligadas uma e outra pelo vínculo da falsidade, que ambas agradam aos demônios, de quem é inimiga a doutrina da verdade! 2. Omitida por breve momento a teologia chamada natural, sobre que depois dissertaremos, agrada-te solicitar ou esperar dos deuses poéticos, teatrais, histriônicos e cênicos a vida eterna? Livre-nos o verdadeiro Deus de tão monstruosa e sacrílega demência! Quê? Deve-se pedir a vida eterna a deuses a quem agradam essas coisas e que com elas se aplacam, frequentando-se nelas seus crimes? Ninguém, suponho, se encontra mal da cabeça ao extremo de chegar a esse despenhadeiro da mais louca impiedade. Ninguém, por conseguinte, alcança a vida eterna pela teologia fabulosa, nem pela civil. Aquela semeia as torpezas dos deuses com ficções, esta colhe-as com aplauso. Aquela espalha mentiras, esta recolhe-as. Aquela afronta as coisas divinas com falsos crimes, esta abrange nas coisas divinas as representações de tais crimes. Aquela celebra em versos as nefandas ficções dos homens sobre os deuses, esta consagra-as em suas festividades. Aquela canta os delitos e as calamidades dos deuses, esta ama-os. Aquela publica-os ou finge-os, esta, porém, afirma-os como verdadeiros ou deleita-se até mesmo nos falsos. Ambas impuras e ambas condenáveis; mas aquela, teatral, confessa de público a própria torpeza, e esta, civil, cobre-se com a torpeza daquela. Deve-se, porventura, de teologia que mancha a temporal e breve esperar a vida eterna? Ou será que o consórcio dos homens perversos macula a vida, se se imiscuem em nossas afirmações e afetos, e não a empana a companhia dos demônios, adorados por seus crimes? Se adorados pelos verdadeiros, são maus. Se, pelos falsos, que mal adorados são! 3. Ao dizê-lo, talvez alguém, desconhecedor dessas matérias, possa imaginar serem detestáveis apenas as composições dos poetas e as representações cênicas, por serem limpas e alheias a toda indecência as coisas sagradas feitas, não pelos histriões, mas pelos sacerdotes. Fosse assim, ninguém jamais pensaria cumprir celebrar torpezas teatrais em honra dos deuses, jamais os deuses mandariam exibi-las em sua honra. Mas, precisamente, não se envergonham de nos teatros representar em honra dos deuses semelhantes torpezas, porque se representam iguais torpezas nos templos. Afinal, intentando o citado autor distinguir da fabulosa e da natural a teologia civil, discerne outra sui generis, que a separar preferiu considerar composta das outras duas. Diz que quanto os poetas escrevem é menos que o que devem crer os povos e que tudo que os filósofos escrevem é mais do que convém ao vulgo investigar. É tamanha a diferença que existe entre elas, acrescenta, que de uma e outra se extraíram vários argumentos para a teologia civil. Em consequência, o que tem de comum com os poetas será por nós tratado ao mesmo tempo com os civis. Entre esses temos de arrimar-nos mais aos filósofos que aos poetas. Logo, também algo aos poetas. E, todavia, das gerações dos deuses diz noutro lugar serem os povos mais propensos aos poetas que aos físicos. Aqui disse o que se deve fazer, ali, o que se fez. Disse que os filósofos escreveram para ser úteis, e os poetas, para agradar. E, por isso, os escritos dos poetas, que os povos não devem seguir, são os crimes dos deuses, que, contudo, deleitam o povo e os deuses, porque os poetas, segundo afirma, escrevem para deleitar, não para ser úteis. E escrevem apenas as coisas que os deuses pedem e os povos exibem. CAPÍTULO VII Semelhança e concordância entre a teologia fabulosa e a civil. 1. A teologia fabulosa, teatral, cênica, pejada de indignidades e torpezas, reduz-se à teologia civil. E esta, que se julga, e com razão, merecedora de censura e desprezo, é parte da outra, considerada merecedora de culto e prática. Quando digo parte, não entendo, por certo, parte incongruente e alheia ao corpo total, unida e dependente dele, mas como que fora de seu lugar, e sim parte que guarde com ele absoluta harmonia e a mais proporcionada união, como membro do corpo. Que outra coisa põem em relevo as estátuas, as figuras, as idades, os sexos e os ornamentos dos deuses? Acaso os poetas têm Júpiter barbado, e Mercúrio, imberbe, e não os têm os pontífices? Porventura causaram enorme vergonha a priapo as representações mímicas e não também os sacerdotes? E um, por acaso, o que se ergue nos lugares sagrados, para adoração, e outro o que sobe ao palco, para irrisão? Acaso não encarnam os histriões a pessoa do velho Saturno ou do púbere Apoio, tal como os representam as estátuas dos templos? Por que Fórculo, que preside as portas, e Limentino, que preside os limiares, são deuses masculinos, e entre eles Cárdia, que custodia os gonzos, é mulher? Não se acham nos livros das coisas divinas esses pormenores, que a sisudez dos poetas julgou indignos de suas composições? Porventura a Diana do teatro anda armada, e a civil é simples donzela? Porventura o Apoio da cena é citarista, e o de Delfos não? Porém, comparadas com as mais torpes, essas coisas revelam-se muito honestas. Que pensaram de Júpiter os que no Capitólio lhe puseram a nutriz? Não é verdade que todos deram aprovação a Evêmero, que escreveu, não com charlatanice mítica, mas de História em punho, haverem todos esses deuses sido homens e mortais? Os que acomodaram à mesa de Júpiter os parasitas deuses glutões, que pretenderam, senão encenar o religioso? Se dissesse o bufão haverem ao banquete de Júpiter assistido seus parasitas, sem dúvida pareceria que se procurava também causar riso. Mas disse-o Varrão, não quando tratava de ridicularizar os deuses, mas quando tratava de fazer que os respeitassem. E disse isso. Testemunham-no seus livros das coisas divinas, não das humanas. E disse-o, não quando expunha os jogos cênicos, mas quando revelava os direitos do capitólio. Enfim, deixa-se vencer por essas coisas e persuade-se de que, como houvessem dado forma humana aos deuses, os julgara sensíveis aos prazeres do homem. 2. Não faltaram tampouco os espíritos malignos, com seu mercado negro, para confirmar essas nocivas opiniões, confundindo as mentes humanas. Daí surgiu a história seguinte: achando-se de folga e ocioso, o guardião do templo de Hércules inventou de jogar dados consigo mesmo, alternando uma e outra mão; uma jogava por Hércules, a outra, por si mesmo, sob esta condição: se ganhasse, jantaria com uma amiga as oferendas depositadas no templo; se a vitória tocasse a Hércules, proveria do próprio bolso os prazeres do deus. Depois, havendo vencido a si mesmo, como se Hércules o tivesse feito, proporcionou ao deus Hércules e a Larência, nobilíssima cortesã, o jantar prometido. Enquanto dormia no templo, em sonhos Larência viu Hércules unir-se a ela e dizer-lhe que, dali saindo, o primeiro moço que encontrasse lhe entregaria o galardão que devia acreditar pago por Hércules. Assim despedida, o primeiro que encontrou foi Tarúcio, moço muito rico; havendo-a tido em sua companhia durante muito tempo, deixou-a, quando morreu, herdeira de tudo quanto possuía. Obtida soma de dinheiro assim enorme, para não parecer ingrata à mercê divina, fez do povo romano seu herdeiro, coisa que julgou muito aceitável aos deuses. E, deixando de aparecer, encontraram-lhe o testamento. Devido a esses merecimentos, dizem haver merecido honras divinas. 3. Se tudo não passasse de ficção poética, se se tratasse apenas de representação de atores cênicos, dir-se-ia, sem dúvida, pertencerem à teologia fabulosa e pensar-se-ia deverem ser separadas da dignidade da teologia civil. Todavia, como semelhantes baixezas, não dos poetas, mas dos povos, não dos historiadores, mas dos sacerdotes, não dos teatros, mas dos templos, ou seja, não da teologia fabulosa, mas da civil, são apresentadas por autor de tanto renome, não é à toa que os histriões fingem, nas artes mímicas, tão grande desonestidade dos deuses, mas em vão e com certeza é que os sacerdotes se esforçam por fingir, em ritos sagrados, a honestidade dos deuses, que é zero. Há festividades de Juno, celebradas em sua querida ilha de Samos, onde se entregou em matrimônio a Júpiter. Há festividades de Ceres, em que se procura Proserpina, raptada por Plutão. Há festividades de Vênus, em que é chorado seu querido Adônis, moço belíssimo, morto a dentadas de javali. Há festividades da Mãe dos deuses, em que Atis, formoso adolescente, amado por ela e castrado por seu ciúme feminino, chora-o outra miserável casta de homens também castrados e chamados galos. Sendo isso mais disforme que qualquer fealdade cênica, que significa o afã de estabelecer como que verdadeira separação entre as ficções fabulosas dos poetas a respeito dos deuses pertinentes ao teatro e a teologia civil, que querem pertencente à cidade, como entre o honesto e digno e o indigno e desonesto? Devem-se, pois, dar graças aos histriões, que respeitam os olhos dos homens e não deixaram todas as coisas a nu nos espetáculos, coisas que se escondem atrás das paredes dos templos sagrados. Que se deve pensar de bom sobre os mistérios que cobrem de trevas, quando assim detestáveis são os que exibem à luz? Na realidade, o que em segredo fazem por meio de castrados e efeminados, vejam-no eles próprios. Mas não puderam, em absoluto, ocultar homens infeliz e torpemente enervados e corrompidos. Intimem a quem possam que fazem algo santo por ministério de tais homens, que, e isso não podem negá-lo, são enumerados e andam entre as coisas santas. Não sabemos o que fazem, mas sabemos por que ministros o fazem. Conhecemos o que se representa no palco, onde, mesmo em companhia de rameiras, jamais entrou homem castrado ou efeminado. E, contudo, também os torpes e infames fazem a mesma coisa e sua profissão não é compatível com a honestidade. Que mistérios serão esses que, para representá-los, a santidade escolheu pessoas que em seu seio nem a própria obscenidade teatral admite? CAPÍTULO VIII Interpretações das razões naturais que os sábios pagãos se esforçam por fazer vistas em prol de seus deuses. 1. Mas tudo isso tem certas interpretações fisiológicas, como dizem, ou seja, razões naturais, como se na presente discussão estivéssemos tratando da fisiologia e não da teologia, isto é, da ciência, não da natureza, mas de Deus. Embora aquele que é verdadeiro Deus seja Deus, não por opinião, mas por natureza, nem toda natureza é Deus, porque indubitável é que a natureza do homem, a do animal, a da árvore ou a da pedra é natureza, mas nenhuma delas é Deus. Se, quando se trata dos mistérios da Mãe dos deuses, o cúmulo de tal interpretação é ser a mãe dos deuses a Terra, para que avançarmos na busca, para que esquadrinharmos o restante? Existe algo que com maior evidência apoie os que dizem haverem sido homens esses deuses? Porque são terrígenas, a mãe deles é a Terra. Na verdadeira teologia, a Terra é obra de Deus, não mãe. Contudo, seja qual for a interpretação que se dê aos mistérios, e embora se refiram à natureza das coisas, não é conforme à natureza, mas contra a natureza o homem sofrer a condição de mulher. Essa enfermidade, esse crime, essa ignomínia é profissão dos referidos mistérios, coisa que nos corrompidos costumes dos homens apenas se confessa entre tormentos. Logo, se tais mistérios, que se manifestam mais torpes que as torpezas cênicas, aqui se escusam e se purgam, porque têm suas interpretações que põem de manifesto significarem a natureza das coisas, por que não se escusam e se purgam também de igual modo as poéticas? Muitos interpretaram-nas também dessa maneira, ao extremo de acreditarem por demais inumano e muito infame haver Saturno comido os filhos; alguns dão a seguinte interpretação: a longevidade do tempo, significada pelo nome de Saturno, devora tudo quanto engendra. Ou, essa a opinião de Varrão, Saturno pertence às sementes, que voltam à terra, donde brotam. Assim, outros de outro modo, e de igual modo os demais. 2. E, todavia, dá-se a essa teologia o nome de fabulosa e, com interpretações assim, é repreendida, reprovada e desaprovada. E com razão a diferenciam com repúdio, não apenas da natural, própria de filósofos, mas também da civil, objeto de que tratamos, que se afirma pertencer a cidades e povos. Isso é feito precisamente com o fim de os homens mais agudos e mais sábios, que o escreveram, compreenderem a obrigação de condenar uma e outra, quer dizer, a fabulosa e a civil. Atrevem-se, entretanto, a condenar aquela; não se atrevem a condenar esta. Acreditavam censurável aquela; a esta, sua semelhante, expuseram-na para cotejá-la, não para que se escolhesse guardar esta em lugar daquela, e sim para entender-se que devia ser repelida com aquela. Desse modo, sem perigo para os que temiam repreender a teologia civil, uma e outra desdenhadas, poderia apoderar-se dos espíritos mais sensatos a que chamam natural. Posto serem fabulosas e civis a civil e a fabulosa, uma e outra achará fabulosas quem considerar com cordura as vaidades e obscenidades de ambas e ambas achará civis quem nas festividades dos deuses civis e nas coisas divinas das cidades advertir os jogos cênicos pertinentes à fabulosa. Como, por conseguinte, atribuir-se o poder de dar a vida eterna a qualquer desses deuses, a quem seus próprios ídolos e ritos persuadem serem a imagem mais perfeita das formas, das idades, do sexo, do ornato, dos matrimônios, das genealogias e dos ritos reprovados abertamente pelos deuses fabulosos? Em tudo isso deixa-se entrever que foram homens e, de acordo com a vida ou morte de cada qual, se constituíram ritos e solenidades para eles, ou imundíssimos espíritos que, aproveitando-se de qualquer ocasião, se acaçaparam nas mentes humanas, para seduzi-las. CAPÍTULO IX Ofícios de cada um dos deuses. 1. Que dizer dos ofícios dos deuses, tão vil e tão pormenorizadamente repartidos, razão por que dizem convir dirigir-lhes súplicas de acordo com o dever próprio de cada um deles? Disso não dissemos tudo, porém muitas coisas. Porventura não tem maior consonância com a arte mímica do que com a dignidade divina? Se alguém provesse de duas amas determinada criança, para uma dar-lhe apenas comida, e a outra, bebida, como os pagãos a esses misteres atribuíam duas, Educa e Potina, sem dúvida pareceria que perdera o juízo e no caso representava algo parecido a farsa. Querem que Líbero derive de livramento, porque, no comércio carnal, com seu auxílio, os homens expelem sêmen e ficam livres. E isso mesmo dizem nas mulheres fazer Libera, também chamada Vênus, porque também dizem que elas expelem sêmen. Por essa razão, no templo oferecem a Líbero a parte viril do corpo, e a Líbera, a da mulher. A isso acrescentam que a Líbero se destinem mulheres e vinho para excitar a libido. Desse modo celebram-se as bacanais com extrema libertinagem e o próprio Varrão confessa-o, dizendo que seria impossível às bacantes praticar semelhantes excessos, caso não fossem alienadas. Essas orgias, porém, mais tarde desagradaram ao Senado, mais sábio, que mandou aboli-las. Pelo menos aqui, talvez, começaram a ver o poderio dos espíritos imundos sobre as mentes dos homens, enquanto os consideram deuses. É certo que nada igual se passaria no teatro, porque ali jogam, não enlouquecem, mesmo quando seja semelhante a loucura ter deuses que se deleitem em tais jogos. 2. Que significação merece o parecer que do homem supersticioso distingue o religioso, dizendo que o supersticioso teme os deuses e o religioso somente os respeita como a pais, não os teme como inimigos? Diz, ademais, serem todos de tal maneira bons, que lhes é mais fácil perdoar os culpados que causar dano a qualquer inculpável. Menciona, entretanto, três deuses custódios de que, depois do parto, proveem a mulher que deu à luz, a fim de o deus Silvano não entrar durante a noite e perturbá-la. E, para figurar esses guardas, três homens rondam de noite os dintéis da casa e golpeiam o dintel, primeiro com machado, depois com mão de pilão, e, por último, o varrem com vassouras, para, graças a tais emblemas da lavoura, proibir-se a entrada do deus Silvano. Porque as árvores não se cortam, nem se podam sem machado, nem a farinha se faz sem pilão, nem os grãos de cereal se amontoam sem vassouras. Das três coisas tomaram nome três deuses: Intercidona, do corte do machado, Pilumno, do pilão (pilo), e Deverra, das escovas. Graças aos três deuses guardiães ficava a puérpera a salvo da violência do deus Silva no. Assim, a proteção dos deuses bons não pode prevalecer contra a crueldade de um deus daninho, se muitos não se juntam contra um só e não lhe opõem os da lavoura, como signos contrários a esse deus áspero, horrendo e inculto, como silvestre que é. Essa a inocência dos deuses? Essa a concórdia? Esses os deuses protetores das cidades, mais dignos de riso que todos os escárnios do teatro? 3. O ajuntamento carnal entre homem e mulher é presenciado pelo deus Jugatino. Vá lá! Para a recém-casada ser conduzida ao novo domicílio, chama-se, porém, o deus Domiduco. Para instalá-la em casa emprega-se o deus Domício. E para mantê-la junto ao marido vem a deusa Manturna. Para que continuar a busca? Respeite-se o pudor humano. Faça o restante a concupiscência do sangue e da carne, no segredo da vergonha. A que vem encher o leito nupcial com essa turba de deuses, quando de perto dele se retiram até mesmo os padrinhos? Precisamente não para que com o pensamento de se encontrarem presentes se conserve com maior cuidado a pudicícia, mas para as mulheres, débeis em sexo e temerosas, por inexperientes, com sua cooperação consumarem o casamento. Presenciam o ato a deusa Virginense, o deus pai Subigo, a deusa mãe Prema, a deusa Pertunda, Vênus e Priapo. Que significa isso? Se fosse mister ao homem empenhado em tal empresa o auxílio dos deuses, não bastara algum ou alguma deles? Acaso seria pouco Vênus apenas, assim chamada precisamente porque, sem seu poder, nenhuma mulher deixava de ser virgem? Se nos homens há vergonha inexistente nos deuses, porventura os casados, quando percebessem que o ato é presenciado por tantos deuses de um e outro sexo, que os instigam ao ato, não se envergonhariam de tal maneira que ele ficasse inibido e ela opusesse mais resistência? Na realidade, se se encontra presente a deusa Virginense, para desatar a faixa da virgem, se se encontra o deus Subigo, para que se sujeite ao homem, se se encontra a deusa Prema, para que, submetida, a estreite e não a deixe mover-se, que papel desempenha no caso a deusa Pertunda? Enrubesça de vergonha e saia. Que o marido, pelo menos, faça alguma coisa. E muito indecoroso que o significado pelo nome dela o faça outro que não o marido. Mas talvez se lhe permita ficar porque é deusa, não deus; se a julgassem homem e se chamasse Pertundo, mais auxílio pediria contra ele o marido, para salvar a honra da esposa, que contra Silvano a puérpera. Mas, para que o digo, que está presente Priapo, másculo a conta toda, sobre cujo bestialíssimo e monstruoso falo as matronas mandavam sentar-se a recém-casada, segundo usança muito religiosa e honesta entre elas? 4. Mas continuem e esforcem-se por distinguir, quanto lhes permita a sutileza, entre a teologia civil e a teologia fabulosa, entre as cidades e os teatros, entre os templos e o palco, entre os mistérios dos pontífices e os carmes dos poetas, como distinguem, das coisas torpes as honestas, das falsas as verdadeiras, das levianas as graves, das mentiras as verdades, das que cumpre evitar as que cumpre apetecer. Compreendemos-lhes muito bem o intento. Souberam que a teologia religiosa e teatral depende da civil e esta se reflete nos carmes dos poetas como em verdadeiro espelho. E, por esse motivo, exposta a teologia civil, que não se atrevem a condenar, arguem-lhe e censuram com maior liberdade a imagem, com o fim de os conhecedores de seus intentos detestarem o original também. Mas os deuses, vendo-se nela como em verdadeiro espelho, amam-na tanto que se veem melhor em ambas. Essa a razão de, com terríveis ameaças, haverem forçado quem os adorava a dedicar-lhes a imundícia da teologia fabulosa, tê-los incluído nas solenidades sagradas e colocado entre as coisas divinas. E, assim, de modo mais claro nos declararam tratar-se de espíritos muito imundos e fizeram da teologia teatral, abjeta e reprovada, membro e parte da teologia civil, escolhida e aprovada, para que, sendo por completo enganadora e torpe, além de reduto dos deuses hipócritas, se contenha parte nos escritos dos sacerdotes e parte nas composições dos poetas. Se tem outras partes, é outro caso. No momento, conforme a divisão de Varrão, creio haver deixado claro serem a mesma coisa a teologia civil e a teologia urbana e teatral. Precisamente por isso, a saber, por encontrarem-se uma e outra repleta de semelhantes torpezas, absurdos, indignidades e falsidades, as pessoas religiosas devem abster-se de esperar de uma ou de outra a vida eterna. 5. O próprio Varrão começa, finalmente, a enumerar e referir os deuses a partir da concepção do homem; começa por Jano. Estira a série até a morte do homem decrépito e fecha o céu com os deuses próprios do homem, com a deusa Nênía, quer dizer, com o hino cantado nos funerais dos velhos. Enumera em seguida outros deuses, concernentes, não ao homem, mas às coisas do homem, como o alimento, o vestuário e quaisquer outras coisas necessárias à vida presente, mostrando em cada caso o ofício próprio de cada um deles e o porquê de a gente dever dirigir súplicas a cada qual. Em todo o ensaio não indicou nem nomeou deus algum a quem se deva pedir a vida eterna, único motivo de sermos cristãos. Quem será estúpido ao extremo de não perceber que Varrão, ao investigar e expor com tanto esmero a teologia civil, ao provar-lhe a semelhança com a fabulosa, indigna e vergonhosa, e ao ensinar com farta evidência constituir parte daquela a fabulosa, pretende apenas insinuar no coração dos homens a natural, que diz própria dos filósofos? E com tamanha sutileza assim procede, que censura a fabulosa e não se atreve a reprovar francamente a civil, mas, pelo contrário, ao desmascará-la, mostra ser repreensível e, desse modo, reprovadas ambas pelo juízo dos homens de bem inteligentes, a escolha fatalmente recai na teologia natural. Dela, auxiliados pelo verdadeiro Deus, trataremos em tempo e lugar convenientes. CAPÍTULO X Liberdade de Sêneca, que repreende mais acremente a teologia civil que Varrão a fabulosa. 1. É certo não haver faltado de todo, mas apenas em parte, a Ênio Sêneca, que floresceu em tempo de nossos apóstolos, segundo consta em alguns documentos, a liberdade que faltou a Varrão para abertamente censurar a teologia civil, a mais parecida com a do teatro. Teve liberdade na pena; não a teve na vida. Com efeito, no livro que compôs Contra as Superstições critica com muito maior profusão e com muito maior veemência a teologia civil e urbana que Varrão a fabulosa e teatral. Quando trata dos ídolos, diz: Consagram como veneráveis, imortais e invioláveis a deuses feitos de matéria insensível e abjeta, sob a forma de homens, feras e peixes. Emprestam-lhes, às vezes, corpos em que os sexos se confundem. Chamam deuses a objetos que o sopro de vida transformaria em monstros. Pouco mais adiante, depois de resumir as opiniões de alguns filósofos, passa ao elogio da teologia natural e faz a si mesmo esta pergunta: A isso alguém objetará: Acreditarei serem deuses o céu e a terra e haver outros sobre e sob a lua? Prestarei ouvidos a Platão ou ao peripatético Estratão, dos quais um fez deus sem corpo e outro o fez sem alma? E, em resposta à objeção, escreve: Quê? Parecem-te mais verdadeiros os sonhos de T. Tácio, Rômulo ou Túlio Hostílio? Tácio dedicou à deusa Cloacina, Rômulo a Pico e Tiberino, e Hostílio ao Pavor e ao Palor as mais sombrias afeições do homem, dos quais um é movimento da alma espavorida e o outro, não enfermidade, mas cor do corpo. Darás maior crédito a esses deuses e recebê-lo-ás no céu? Com que liberdade escreveu sobre os ritos cruelmente depravados! Este, diz, amputa as partes viris, aquele corta os próprios bíceps. Quando temerão a cólera dos deuses os que de tal maneira os tornam propícios? Não se deve prestar culto de espécie alguma a deuses que o querem. Tamanho o desvario da mente excêntrica e perturbada, que pretendem agradar aos deuses de tal maneira que nem mesmo os homens mais bárbaros e de mais fabulosa crueldade se mostram mais desumanos que eles. Os tiranos dilaceraram os membros de alguns, mas a ninguém mandaram dilacerar os próprios. Alguns castraram-se para deleite dos apetites reais, mas ninguém pôs as mãos em si mesmo, por ordem do senhor, para não ser homem. Despedaçam-se a si mesmos nos templos e erguem súplicas por meio dos ferimentos e do sangue. Se alguém tiver oportunidade de ver o que fazem e padecem, assistirá a coisas tão indecorosas para os honestos, tão indignas dos livres e tão desconformes com a razão, que ninguém há de pôr-lhes em dúvida a loucura, se fossem menos numerosas. Agora o apoio da sensatez é a multidão dos loucos. 2. Quanto às cenas a que o próprio Capitólio serve de palco, cenas censuradas em absoluto e com intrepidez por Sêneca, que homens podem nelas aparecer, senão doidos varridos e bufões? Com efeito, nos mistérios egípcios chora-se a perda de Os íris e, uma vez encontrado, a dor transforma-se em grande alegria; apesar de serem ficção a perda e o encontro, os que nada perderam nem encontraram exprimem com grande animação a dor e a alegria. Semelhante loucura, diz Sêneca, tem duração limitada. E tolerável enlouquecer uma vez por ano. Cheguei ao Capitólio. Vergonha causará a loucura descoberta, que a demência pública transformou em dever. Este diz ao deus o nome das divindades que o saúdam, aquele anuncia as horas a Júpiter. Este é lictor; aquele, perfumador, com o inútil movimento dos braços imita quem perfuma. Há mulheres que, de pé e longe não apenas dos ídolos, mas também do templo, penteiam Juno e Minerva; movem os dedos à maneira das penteadeiras. Outras seguram o espelho; outras convidam os deuses a presenciar-lhes os pleitos; outros oferecem os libelos e informam-nos do andamento da causa. Famoso arquimimo, velho e decrépito, representava todo dia no Capitólio, como se os deuses gostassem de ator de que o público já não gostava. Ali vereis, roídos pela desídia, toda a espécie de artesãos a serviço dos deuses imortais. E, pouco depois: Contudo, a deus prometem serviço que, embora supérfluo, nem por isso é infame e torpe. Algumas sentam-se no Capitólio, persuadidas de que Júpiter as ama; não receiam a cólera de Juno, que, se queres dar crédito aos poetas, é a mais colérica. 3. Faltou a Varrão semelhante liberdade. Atreveu-se apenas a criticar a teologia poética. Não se atreveu com a civil, que Sêneca lançou por terra. Se, todavia, atendemos à verdade, são piores os templos, onde se fazem tais coisas, que os teatros, onde as fingem. Assim, a conduta que Sêneca prescreve ao sábio nos mistérios da teologia civil não é adesão de consciência, mas profissão puramente exterior. O sábio, diz, observará todas essas práticas para obedecer à lei, sem acreditá-las agradáveis aos deuses. E acrescenta: Quê? Unimos em matrimônio os deuses, assim mesmo sem piedade alguma, pois unimos irmãos a irmãs? Casamos Belona com Marte, Vênus com Vulcano, Salácia com Netuno. E votamos alguns ao celibato, como se lhes faltasse partido, apesar de haver algumas deusas viúvas, como Populônia, Fulgora ou a deusa Rumina. Maravilha-me haver faltado quem lhes pedisse a mão. Toda essa plebeia turba de divindades, durante longo tempo amontoada pela superstição, adoraremos, diz, como recordação do culto a um costume, não à realidade. Conclusão: Nem as leis, nem o costume instituíram na teologia civil coisa grata aos deuses ou conforme com a realidade. Mas Sêneca, tornado quase livre pela filosofia, como era ilustre senador do povo romano, venerava o que repreendia, praticava o que impugnava e adorava o que inculpava. Na realidade, a filosofia ensinara-lhe algo importante, isto é, a não ser supersticioso no mundo; mas as leis dos cidadãos e os costumes humanos, sem arrastá-lo ao palco, transformam-no, dentro do templo, em Imitador dos histriões, imitador mais criminoso ainda porque a personagem por ele representada, aos olhos da multidão podia passar por sincera. CAPÍTULO XI Pensamento de Sêneca acerca dos judeus. Entre outras superstições da teologia civil, Sêneca censura as cerimônias judaicas, em especial os sábados, afirmando guardarem-nos inutilmente, pois o sétimo dia observado representa quase um sétimo da vida gasto em repouso prejudicial a muitas necessidades urgentes. Não se atreveu a mencionar os cristãos, já inimigos declarados dos judeus, nem para falar bem, nem para falar mal, porque não os louvaria, contra a velha usança romana, nem os censuraria, talvez contra a própria vontade. Falando dos judeus, declara: Tomou, todavia, tamanho impulso a maneira de viver dessa péssima raça, que quase todo o mundo a perfilhou. Os vencidos ditaram leis aos vencedores. Maravilha-se, ao dizê-lo, porque ignorava os segredos da conduta divina. Exprime, a seguir, o que pensa da própria religião dos judeus: Alguns conhecem as causas de seus ritos. Mas a maioria do povo pratica-os, ignorando-lhes o porquê. Mas sobre os sacramentos dos judeus, por que e como foram instituídos por autoridade divina e como, depois, quando a mesma autoridade divina julgou oportuno, os retirou do povo escolhido, a quem se revelou o mistério da vida eterna, já falamos noutra parte, em especial quando disputamos contra os maniqueus. E disso trataremos em lugar mais conveniente desta obra. CAPÍTULO XII Descoberta a vaidade dos deuses gentios, torna-se impossível pôr em dúvida que a ninguém podem dar a vida eterna deuses incapazes de auxiliar a temporal. Agora, se alguém achar insuficiente o que neste volume se disse a respeito das três teologias, que os gregos chamam de mítica, física e política e em latim podem receber o nome de fabulosa, natural e civil, posto que a vida eterna não podem dá-la a fabulosa, criticada com extrema liberdade pelos mesmos adoradores de muitos e falsos deuses, nem a civil, de que provadamente aquela é parte, além de a segunda ser muito parecida com a primeira ou pior que ela, junte-lhe o tratado nos livros anteriores e, em especial, o muito escrito no Quarto sobre o Deus dador da felicidade. A quem, por amor à vida eterna, deviam consagrar-se os homens, senão apenas à felicidade, se fora deusa? Como, porém, deusa não é, mas graça de Deus, a quem, senão a Deus, dador da felicidade, devemos consagrar-nos, os que com piedosa caridade amamos a vida eterna, onde se acha a verdadeira e plena felicidade? Creio que, diante do que se disse, a ninguém ocorrerá duvidar de não darem a felicidade os deuses a quem se rende culto com tamanhas torpezas e que se zangam mais torpemente ainda, se não lhos tributam, revelando-se, desse modo, imundíssimos espíritos. Por último, como pode dar a vida eterna quem não dá a felicidade? Damos o nome de vida eterna àquela em que a felicidade não tem fim. Se a alma vive em penas eternas, atormentadoras também dos espíritos imundos, então é morte eterna, não vida, porque não há maior nem pior morte que onde a morte não morre. Como, entretanto, a natureza da alma foi criada imortal, não pode existir sem alguma vida e sua morte suprema consiste no apartar-se da vida de Deus na eternidade das penas. A vida eterna, ou seja, feliz e sem fim, apenas a dá Quem dá a felicidade verdadeira. Como se encontram convencidos de não poderem dá-la os que a teologia civil adora, não somente não se lhes deve culto pelas coisas temporais e terrenas, coisa por nós provada nos cinco livros anteriores, como também, e muito menos, pela vida eterna, que seguirá à morte. Disso é que tratamos neste livro, servindo-nos também dos outros. Mas, como a força do inveterado costume deitou raízes demasiado profundas, se alguém julga pouco o que neste livro se disse sobre a obrigação de rechaçar e fugir a teologia civil, preste atenção ao que, auxiliados por Deus, acrescentaremos no seguinte. LIVRO SÉTIMO Trata dos deuses seletos da teologia civil, Jano, Júpiter, Saturno e outros, e demonstra não conduzir à felicidade da vida eterna o culto que lhes tributam. PRÒLOGO Se redobro de zelo e esforços para arrancar e extirpar as perversas e inveteradas opiniões, inimigas da verdade e da piedade, que o erro fez deitarem tenazes e profundas raízes no coração do homem, se, conforme posso, coopero com a graça daquele que, como Deus verdadeiro, pode garantir a realização de semelhante empresa, devem tolerar-me com paciência e equanimidade os engenhos mais vivos e precoces, a quem, no tocante a tal ponto, bastam e sobram os livros anteriores e não parecerá supérfluo para outros o que a si mesmos creem desnecessário. Ventila-se importante problema, quando se trata de, não pelo transitório vapor da vida mortal, mas pela vida bem-aventurada, que não é outra senão a vida eterna, quando se trata, dizíamos, de buscar e adorar a verdadeira e verdadeiramente santa Divindade, mesmo que nos preste os meios necessários à fragilidade que agora carregamos. CAPÍTULO I Provado não haver divindade na teologia civil, é crível poder encontrá-la nos deuses seletos? A quem o Livro Sexto, há pouco terminado, não convencer de que a divindade ou, por assim dizê-lo, deidade, pois os nossos já não receiam usar a palavra, que mais fielmente traduz o que os gregos chamam theóteta, de que a divindade, ou deidade, repito, não se encontra na teologia a que chamam civil, explanada por Marco Varrão em dezesseis livros, quer dizer, que não conduz à vida eterna o culto a deuses como os instituídos pelas cidades, em lendo este, talvez já não possa desejar mais nada para continuar examinando a presente questão. Pode suceder que alguém opine que, pelo menos aos deuses seletos e principais, abordados por Varrão no último livro e a respeito de quem insinuamos algo, se lhes deve culto pela vida bem-aventurada, que outra não é senão a eterna. Nesse ponto não me atrevo a dizer o que disse Tertuliano, mais, talvez, por brincadeira que a sério: Se se escolhem deuses como se escolhem cebolas, o que sobra é refugo. Não o digo, porque observo ser possível, mesmo entre os escolhidos, escolher-se alguns para algo maior e mais prestante, como acontece na milícia, quando, entre soldados bisonhos, já escolhidos, se escolhem alguns para mais importante feito de armas. E, quando a Igreja escolhe os que devem conduzi-la, a escolha não significa a reprovação dos demais, porquanto os fiéis são todos a justo título chamados escolhidos. Escolhem-se no edifício as pedras angulares, sem rejeitar as outras, destinadas a ocupar outras partes na construção. Escolhem-se as uvas para comer e não se rejeitam as outras, deixadas para fazer vinho. Não há necessidade de discorrer muito, pois se trata de coisa muito clara. Portanto, não se deve censurar que de muitos deuses se escolham alguns, nem a quem o escreveu, nem aos adoradores dos deuses, nem aos próprios deuses; pelo contrário, deve-se examinar quem são e o motivo por que os escolheram. CAPÍTULO II Quais são os deuses escolhidos e se devem ser excluídos dos ofícios dos deuses plebeus. Em um de seus livros Varrão enumera e encarece os seguintes deuses escolhidos: Jano, Júpiter, Saturno, Gênio, Mercúrio, Apolo, Marte, Vulcano, Netuno, o Sol, Orco, o pai Líbero, a Terra, Ceres, Juno, a Lua, Diana, Minerva, Vênus e Vesta. Entre todos, pouco mais ou menos, vinte, doze masculinos e doze femininos. Chamam-se escolhidos por causa da importância das funções por eles desempenhadas no mundo ou por serem mais populares e lhes renderem, por isso, maior culto? Se é, precisamente, por serem de ordem superior as obras que administram, não devíamos havê-los encontrado na turba de deuses quase plebeus, destinados a trabalhinhos insignificantes. Comecemos por Jano. Quando se concebe a prole, donde se originam todas as obras distribuídas pormenorizadamente a muitos deuses, Jano abre a porta para receber o sêmen. Ali também se encontra Saturno, por causa do próprio sêmen. Ali também trabalha Líbero, que, fazendo-o derramar o sêmen, livra o homem. Ali também, Líbera, que outros querem seja ao mesmo tempo Vênus, para prestar à mulher o mesmo serviço, a fim de que, emitido o sêmen, fique livre. Todos esses deuses pertencem ao número dos chamados escolhidos. Mas ali também se encontra a deusa Mena, que preside a menstruação. Embora filha de Júpiter, não passa de plebeia. A província dos mênstruos o mesmo autor, no livro dos deuses seletos, atribui a Juno, rainha dos escolhidos. Lucina, na qualidade de Juno, e a supra referida Mena, sua enteada, presidem a menstruação. Ali fazem ato de presença também duas obscuríssimas divindades, Viturnno e Sentino; o primeiro dá a vida à criatura, o segundo, os sentidos. Dão, na realidade, apesar de assim vulgares, muito mais que os outros deuses, próceres e seletos. Pois que é, sem vida e sem sentido, o que a mulher traz no ventre, senão algo abjetíssimo e comparável à mísera mistura de lama e terra? CAPÍTULO III Nulidade da razão aduzida para mostrar a escolha de alguns deuses, se é mais excelente o encargo a muitos inferiores. 1. Que causa compeliu tantos deuses escolhidos a entregar-se às obras mais insignificantes, quando, na partilha de tal munificência, os superam Vitumno e Sentino, que dormem à sombra de obscura fama? Dá Jano, deus seleto, entrada ao sêmen e, por assim dizer, abre-lhe a porta. Saturno, também seleto, fornece o próprio sêmen; aos homens Líbero confere, por sua vez, a emissão do sêmen. As mulheres confere-o Líbera, que é Ceres ou Vênus. Juno, deusa escolhida, não só, mas em companhia de Mena, filha de Júpiter, concede o mênstruo necessário para o crescimento do feto. O obscuro e plebeu Vitumno confere a vida, o obscuro e plebeu Sentino, o sentido, funções ambas que sobrepujam as dos outros deuses na mesma proporção em que o entendimento e a razão sobrepujam a vida e o sentido. Como os seres racionais e dotados de entendimento são mais poderosos, sem dúvida, que os que vivem e sentem sem entendimento e sem razão, como as bestas, assim também os seres dotados de vida e sentido gozam de merecida preferência sobre os que não vivem, nem sentem. Vitumno, vivificador, e Sentino, autor do sentido, deviam, portanto, ser colocados entre os deuses seletos, em lugar de Jano, que admite o sêmen, de Saturno, dador ou criador do sêmen, e de Líbero e Líbera, que o movimentam ou emitem. É monstruoso sequer imaginar-se sêmen falto de vida e de sentido. Esse dom escolhido não o concedem os deuses seletos, mas certos deuses desconhecidos e à margem da dignidade deles. Se encontram resposta adequada para, não sem motivo, atribuir-se a Jano o poder de todos os princípios, precisamente porque abre a porta à concepção, e atribuir a Saturno o de todo sêmen, por não se poder separar de sua própria atividade a seminação do homem, e, do mesmo modo, para imputar a Líbero e a Líbera o poder de emitir todos os sêmens, por presidirem também o tocante à substituição dos homens, e dizer que a faculdade de purgar e dar à luz é privativa de Juno, precisamente por não faltar à purgação e ao parto das mulheres, busquem resposta para Vitumno e Sentino, se querem vê-los presidir tudo quanto vive e sente. Se concordam, considerem a sublimidade do lugar em que devem colocá-los, porque nascer de sêmen se dá na terra e sobre a terra, mas, por outro lado, segundo eles mesmos afirmam, viver e sentir se dá também nos deuses do céu. Se dizem serem apenas estas as atribuições de Víturnno e Sentino, isto é, viver na carne e ajudar os sentidos, por que, estendendo, com sua operação universal, esse dom aos partos, não dará também vida e sentido à carne o Deus que faz todas as coisas viver e sentir? Se Aquele cuja regência universal preside a vida e os sentidos lhes confiou, como a servos seus, essas coisas carnais, considerando-as baixas e humildes, encontram-se os deuses seletos assim desprovidos de domésticos, que não encontrem a quem confiá-las, mas, pelo contrário, com toda a sua nobreza, causa aparente de sua altivez, se veem obrigados ao desempenho de funções idênticas às dos plebeus? Juno, escolhida e rainha, esposa e irmã de Júpiter, é para as crianças Iterduca e exerce seu ofício com Abeona e Adeona, duas deusas das mais vulgares. Ali colocaram também a deusa Mente, encarregada de dar boa mente às crianças, mas não a elevaram à categoria dos deuses seletos, como se ao homem se pudesse proporcionar melhor presente. Todavia, elevaram Juno, por ser Iterduca e Domiduca, como se fora de algum proveito passear e ser levado para casa, se a mente não é boa. Os escolhedores não houveram por bem enumerar, entre os deuses seletos, a deusa dispensadora de semelhante bem. Dever-se-ia, sem dúvida, antepô-la à própria Minerva, a quem atribuíram, entre tantos outros pequenos encargos, a memória das crianças. Quem porá em dúvida ser muito melhor ter boa mente que memória das mais prodigiosas? Ninguém de boa mente é mau, enquanto alguns, péssimos, têm memória assombrosa. Revelam-se tanto piores quanto menos podem esquecer o mal que imaginam. Contudo, Minerva encontra-se entre os deuses seletos e a deusa Mente está perdida entre a canalha. Que direi da Virtude? Que, da Felicidade? Delas já falei muito no Livro Quarto. Tendo-as entre as deusas, não quiseram honrá-las com lugar entre os deuses seletos; mas honraram Marte e arco, o primeiro, fazedor, o segundo, receptor de mortes. 2. Vendo, pois, como vemos, nos próprios encargos divididos entre as divindades subalternas, os deuses escolhidos competir com elas, como o Senado com o povo, e achando, como achamos, terem alguns dos deuses, não julgados dignos de escolha, ocupações muito mais importantes e nobres que as dos chamados seletos, não podemos fugir de pensar que não os chamam seletos e principais por governarem de maneira mais prestante o mundo, e sim por haverem tido a sorte de ser mais conhecidos pelos povos. Por isso diz Varrão haver, como aos homens, sobrevindo a plebeidade a alguns deuses pais e a algumas deusas mães. Se, por conseguinte, aconteceu de a Felicidade não ser incluída entre os deuses seletos justamente, quem sabe, por não haverem alcançado tal nobreza por merecimento, mas de modo fortuito, coloque-se entre eles, ou melhor, antes deles, a Fortuna que, segundo creem, não confere de acordo com a razão a cada qual seus bens, mas às loucas, às tontas, de acordo com os caprichos da sorte. Deveria ocupar o primeiro posto entre os deuses seletos, pois entre eles fez a principal ostentação de seu poder. O motivo é vermo-los escolhidos, não por destacada virtude, nem por felicidade racional, mas pelo temerário poder da Fortuna, segundo o sentir de seus adoradores. Talvez o eloquente Salústio esteja de atenção presa a tais deuses, quando escreve: Na realidade, a Fortuna senhoreia todas as coisas. Enaltece ou encobre tudo, mais por capricho que por verdade. Por que motivo é célebre Vênus e desconhecida a Virtude, se a uma e a outra consagraram deusas e não há cotejo possível entre os merecimentos de ambas? E, se mereceu total enobrecimento por ser mais apetecida, pois é indubitável que muitos gostam mais de Vênus que da Virtude, por que haver-se escolhido a deusa Minerva e deixado na penumbra a deusa Pecúnia, se aos mortais a cupidez causa mais agrado que a ciência? Mesmo entre os cultivadores de qualquer arte com dificuldade encontrarás alguém cuja arte não seja venal. O fim determinante de toda obra é sempre mais estimado que a obra feita. Se, portanto, a seleção resultou do julgamento de insensata chusma, por que a Minerva não se preferiu a deusa Pecúnia, se tantos homens trabalham por dinheiro? Se dependeu de pequeno grupo de sábios, por que a Vênus não preferiram a Virtude, quando, sem hesitar, a razão lhe assegura a preferência? Como já declarei, pelo menos a Fortuna, que, segundo o parecer de quem lhe dá crédito às muitas atribuições, senhoreia todas as coisas e, mais por capricho que por verdade, as enaltece ou encobre, deveria ocupar o primeiro posto entre os deuses escolhidos, visto gozar de tamanho poder sobre os deuses, que ao sabor de suas temerárias fantasias os torna célebres ou obscuros. Ou será que não lhe foi possível ocupá-lo, senão por haver a própria Fortuna acreditado ter fortuna adversa? Logo, opôs-se a si mesma, pois, tornando nobres os outros, não se enobreceu a si própria. CAPÍTULO IV Procederam melhor com os deuses inferiores, infamados com invectivas, que com os seletos, cujas torpezas celebram. Um espírito amante da nobreza e da reputação felicitaria os deuses escolhidos e chamá-los-ia afortunados, caso não fossem escolhidos mais para afronta que para honra. A própria plebeidade protegeu a canalha infame, para não ser coberta de opróbrios. Sorrimos, é verdade, quando vemos a divina turba atarefada nos diferentes encargos que a fantasia humana lhes repartiu. Parecem pequenos arrendatários de impostos ou cinzeladores de prata, cuja oficina não deixa sair vaso algum, sem passar por inúmeras mãos e, desse modo, atingir a perfeição que uma só poderia dar-lhe. Mas a divisão da mão de obra tem apenas a finalidade de abreviar e tornar fácil para cada artífice o aprendizado de parte do ofício. A perfeita prática do conjunto de qualquer arte seria fruto de aprendizagem por demais difícil e por demais lenta. Entretanto, não é fácil encontrar deus não seleto a quem não se haja atribuído alguma notável infâmia. Os grandes deuses rebaixaram-se aos vis encargos dos pequenos, mas os pequenos não caíram nas sublimes maldades dos grandes. A respeito de Jano nada me ocorre que se julgue ignomínia. Talvez levasse vida mais pura, mais afastada dos vícios e dos crimes. Acolheu com benignidade o fugitivo Saturno, com quem partilhou o reino, para fundarem duas cidades: Janículo e Satúrnla. Mas os pagãos, empenhados em usar do maior atrevimento no culto aos deuses, de Juno, cuja vida acharam menos torpe, forjaram estátua monstruosamente disforme, fazendo-o ora bifronte, ora também com quatro rostos, como que duplicado. Quiseram, porventura, que, posto muitos deuses seletos, por causa da perpetração de crimes vergonhosos, haverem perdido a vergonha, Jano, quanto mais inocente era, mais caras tivesse? CAPÍTULO V Doutrina mais secreta dos pagãos. As razões físicas. Ouçamos, porém, as interpretações físicas com que se esforçam em dourar com aparências de doutrina mais profunda a torpeza do mais mísero erro. Varrão, em primeiro lugar, encarece as interpretações ao extremo de dizer haverem os antigos fingido os ídolos, as insígnias e os ornamentos dos deuses, para, vendo-o com os olhos, poderem os iniciados nos mistérios da doutrina ver com o espírito a alma do mundo e suas partes, ou seja, os deuses verdadeiros. Parece que os construtores dos simulacros dos deuses se deixaram guiar pela ideia de ser muito semelhante ao espírito imortal o espírito que os mortais trazem no corpo. Se, por exemplo, nos templos se colocassem vasos próprios para distinguir os deuses e, assim, no templo de Líbero ou Baco se colocasse um enóforo, representativo do vinho, segundo a figura do continente pelo conteúdo, assim também a estátua sob forma humana representaria a alma racional, substância idêntica à substância divina, cujo corpo é como o vaso. Eis os mistérios da doutrina em que se iniciara o sábio Varrão e da qual quis revelar certas coisas. Mas, ó engenhoso homem, perdeste, porventura, nos mistérios da doutrina, a prudência que te levou sobriamente a crer que os primeiros a impor ídolos aos povos não tiraram o medo dos cidadãos, mas aumentaram-lhes o erro, e que, sem ídolos, os velhos romanos honraram mais castamente os deuses? A autoridade dos pagãos deu-te arrojo para contra os romanos posteriores defender semelhante prática. Se os antigos romanos também rendessem culto aos ídolos, talvez tudo quanto pensas a respeito do dever de não constituir ídolos, verdadeiro nesse entretempo, o sepultarias, por temor, no silêncio e pregarias com maior loquacidade e orgulho os mistérios de tal doutrina, encoberta por ficções nocivas e vazias de sentido. Contudo, os mistérios de semelhante ciência não puderam elevar-te a alma, de tal maneira engenhosa e sábia (motivo por que te lastimamos), a seu Deus, isto é, ao Deus de que és criatura, não com o qual foi feita, não daquele de que é parte, mas daquele de quem é criatura, não o que é alma de tudo, mas o que fez toda alma, e é a única luz que torna bem-aventurada a alma, quando não se mostra ingrata à sua graça. Quais sejam e qual a estima que nos devam merecer os mistérios de tal doutrina, evidencia-o o seguinte. Afirma o sábio Varrão serem verdadeiros deuses a alma do mundo e suas partes. Daí se depreende que toda a sua teologia, mesmo a natural, a que dá tamanha importância, não pôde elevar-se acima da alma racional. Da natural diz muito pouco no prólogo desse livro. Veremos se com suas interpretações fisiológicas lhe foi possível à teologia natural referir a civil, que trata dos deuses seletos. Se puder, toda a teologia será natural. Então, que necessidade tinha de com tanto esmero distinguir entre a natural e a civil? Se a diferença é legítima, a teologia natural, que lhe parece tão importante, não é verdadeira, posto chegar à alma apenas e não até ao verdadeiro Deus, criador da alma. Quão mais falsa e desprezível é a civil, que se refere à natureza corporal, evidenciam-no as interpretações com tanto cuidado examinadas e expostas por eles. Vejo-me na precisão de citar algumas. CAPÍTULO VI Opinião de Varrão, segundo a qual Deus é a alma do mundo que em suas partes tem outras muitas almas; a natureza delas é divina. No prólogo da teologia natural o próprio Varrão diz pensar que Deus é a alma do mundo, chamado cosmos pelos gregos, e que esse mundo é Deus. Mas, como o homem, embora conste de alma e de corpo, por causa da alma é que se chama sábio, assim também o mundo se chama deus por causa da alma, pois também consta de alma e de corpo. Nota-se, nesse ponto, que de certo modo admite um Deus único. Mas, para introduzir muitos, acrescenta dividir-se o mundo em duas partes, céu e terra, o céu, em outras duas, éter e ar, e a terra, em água e continente. De todas, o éter ocupa a primeira região, o ar, a segunda, a água, a terceira, e a terra, a última. Todas as quatro partes encontram-se repletas de almas. O éter e o ar, de almas imortais; a água e a terra, de almas mortais. Da suprema esfera do céu ao círculo da Lua residem as almas etéreas, isto é, os astros e as estrelas, deuses celestes não apenas inteligíveis, mas também visíveis. Entre a esfera lunar e os derradeiros cimos da região das nuvens e dos ventos encontram-se as almas aéreas, vistas com a alma, não com os olhos, e chamadas heróis, lares e gênios. Eis a teologia natural proposta no prólogo. Não é o único que o faz; há muitos outros filósofos. Dela falaremos mais detidamente depois, uma vez que tenhamos dado fim, com o auxílio de Deus, ao que resta da teologia civil, no concernente aos deuses seletos. CAPÍTULO VII É razoável fazer de Jano e de Término dois deuses? Pergunto: Quem é Jano, por ele colocado no começo? Respondem: O mundo. Breve, na realidade, e clara a resposta. Por que dizem pertencer-lhe os princípios das coisas, e a outro, chamado Término, os fins? Porque, respondem, pelos princípios e pelos fins aos dois deuses consagraram dois meses, além dos outros dez, cujo princípio, até dezembro, é março: janeiro a Jano e fevereiro a Término. Por isso, dizem, celebram-se no mês de fevereiro as festas terminais, em que realizam a cerimônia da purificação, chamada Fébruo, que deu nome ao mês. Dizei-rne: Pertencem ao mundo, que é Jano, os princípios das coisas e não lhe pertencem os fins, a cuja frente precisa estar outro deus? Porventura, as coisas feitas neste mundo não admitem também que nele terminem? Que significa a inconsequência de dar, de fato, meio poder a Jano e dois rostos a sua imagem? Não seria interpretação muito mais brilhante da estátua do deus dizer-se que Jano e Término são a mesma divindade e que um rosto corresponde aos princípios e outro aos fins? O motivo é dever quem age intentar um e outro, porque em toda ação pessoal quem não põe os olhos no princípio não pode prever o fim. E necessário, precisamente, que a intenção, projetada sobre o futuro, se una à memória, porque quem se esquece do que começou não encontrará meio de terminá-la. Se pensassem que a vida bem-aventurada começa neste mundo e se aperfeiçoa fora dele e, por isso, atribuíssem a Jano, isto é, ao mundo, apenas o poder sobre os princípios, anteporiam, sem dúvida, Término e não o excluiriam do número dos deuses seletos. Embora, no momento, se considerem nos dois deuses os princípios e os fins das coisas temporais, dever-se-ia dar preferência a Término. Há maior alegria quando se conclui alguma coisa que quando se começa. Todo começo é repleto de inquietude, que cessa apenas quando se consegue o fim, apetecido, intentado, esperado e desejado, que leva a começá-la. O coração não canta vitória pelo que começa, mas pelo que termina. CAPÍTULO VIII Por que motivo os adoradores de Jano lhe fingiram bifronte a imagem, se também a quiseram de quatro rostos? Mas passemos à explicação da estátua bifronte. Dizem ter dois rostos, um adiante, atrás o outro, porque a comissura dos lábios, quando abrimos a boca, semelha de certa maneira o mundo. Por isso ao paladar os gregos chamam ouranós, e alguns poetas, céu. A boca humana, aberta, apresenta duas saídas, uma para fora, para os dentes, e outra para dentro, para a garganta. Eis o ponto a que chegou o mundo, graças à palavra, grega ou poética, que significa paladar! Que tem isso a ver com a alma? Com a vida eterna? Renda-se culto a Jano apenas pela saliva, posto abrirem-se sob o céu do paladar ambas as portas, uma para degluti-la e outra para expeli-la. Existe absurdo semelhante ao de não encontrar no mundo duas portas colocadas frente a frente, uma para introduzir algo dentro e outra para deitá-lo fora? Existe absurdo maior que querer com a boca e a garganta humanas, que em nada semelham o mundo, figurar o mundo com o simulacro de Jano, por causa apenas do paladar, semelhança de que carece também Jano? Quando o forjam de quatro rostos e o chamam Jano duplo, interpretam-no das quatro partes do mundo, como se o mundo esperasse algo de fora, como Jano por todos os quatro rostos. Além disso, se Jano é o mundo e o mundo tem quatro partes, é falsa a efígie de Jano bifronte. E, se totalmente verdadeiro, porque sob o nome de Oriente e de Ocidente é costume entender-se o mundo todo, quando nomeamos as outras duas partes, a saber, Austro e Setentrião, alguém ousará, porventura, chamar duplo ao mundo, como chamam Jano duplo ao de quatro rostos? Não tem, na realidade, razão suficiente para nas quatro portas, abertas a quem entra e a quem sai, ver semelhança com o mundo, embora a encontrem no que dizem de Jano bifronte. Tal semelhança não se encontra pelo menos, na boca do homem, salvo se Netuno sobreviver e oferecer-nos um peixe, em que, além da boca e da garganta, aparecem duas guelras, uma à direita e outra à esquerda. E, contudo, por tantas portas não se subtrai a semelhante vaidade, senão a alma que ouve a voz da Verdade: Sou a porta. CAPÍTULO IX Paralelo entre o poder de Júpiter e o de Jano. 1. Digam-nos quem querem que entendamos por Jove, também conhecido pelo nome de Júpiter. E, dizem, o deus de que dependem as causas de tudo quanto se faz no mundo. Imenso poder! Expressa-o Virgílio neste célebre verso: Feliz de quem pôde conhecer as causas das coisas! Mas por que lhe antepõem Jano? Responda-nos o penetrante e douto Varrão. Porque sob o poder de Jano, diz, se encontram os princípios e, sob o poder de Júpiter, os fins. Com razão, por conseguinte, Júpiter é considerado rei de todos. Os fins avantajam-se aos princípios, porque, embora os princípios precedam em tempo, os fins são, em dignidade, superiores. Di-le-la com razão, se se tratasse de, nas coisas, distinguir a origem e o ponto culminante de seu desenvolvimento. Assim, partir é a origem de qualquer ato; chegar, o termo. Começar a aprender é o princípio; a captação da doutrina, o fim. E assim, quanto ao mais. Assim, em todas as coisas, o começo precede e o fim coroa. Mas trata-se de ponto já ventilado entre Jano e Término. São, porém, eficientes, não efeitos, as causas atribuídas a Júpiter e torna-se de todo em todo impossível, na ordem do tempo, que as precedam os fatos ou os princípios dos fatos. A causa sempre antecede o efeito. Portanto, se pertencentes a Jano, os princípios dos fatos não são anteriores às causas eficientes, atribuídas a Júpiter. Como nada se faz sem causa, assim também nada se começa a fazer, sem causa eficiente que o preceda. Na realidade, se ao deus, sob cujo poder se encontram as causas de todas as naturezas criadas e das coisas naturais, os povos chamam Júpiter e lhe rendem culto por meio de tamanhas injúrias e tão cruéis acusações, atam-se com sacrilégio mais negro que se não o considerassem deus. Donde se deduz ser preferível chamar Júpiter a qualquer objeto digno de tão nefandas e criminosas honras a chamar deus a quem troveja e adultera, a quem dirige o mundo e resvala em semelhantes estupros, a quem tem as causas supremas de todas as naturezas e das coisas naturais e não tem as causas das ações que pratica. A razão é blasfemarem com essa suposta e vã ficção (Assim se apresentou uma pedra a Saturno, que a devorou em lugar do filho). 2. Agora pergunto: Que lugar se atribui a Júpiter entre os deuses, se Jano é o mundo? Varrão definiu os deuses verdadeiros, dizendo-os alma do mundo e suas partes. Donde se segue que tudo quanto não o é, aos olhos dos pagãos, não é verdadeiro deus. A Júpiter chamariam, porventura, alma do mundo, de maneira que Jano seja seu corpo, isto é, o mundo visível. Se o dizem, não há motivo para Jano continuar sendo deus, porque o corpo do mundo não é deus, nem mesmo na opinião deles; a alma do mundo e suas partes é que são. Assim, Varrão diz de modo muito claro que, segundo ele, Deus é a alma do mundo e o próprio mundo é Deus. E, como o homem sábio, composto de alma e corpo, à alma deve o chamar-se sábio, assim também ao mundo se chama deus por causa da alma, embora também conste de alma e corpo. Em consequência, isolado, o corpo do mundo não é deus, mas o é a alma apenas ou o corpo e a alma juntos, contanto que se diga não ser deus por causa do corpo, mas por causa da alma. Se Jano é o mundo e é deus, hão de, porventura, afirmar que, para que possa ser deus, Júpiter é parte de Jano? Costumam, antes, atribuir a Júpiter o universo inteiro. Assim se lê: Tudo está repleto de Júpiter. Por conseguinte, para Júpiter ser deus e, principalmente para poder ser rei dos deuses, torna-se-lhe necessário, em absoluto, ser o mundo, para reinar sobre os outros deuses, partes suas, segundo os pagãos. Em favor de semelhante parecer, Varrão cita alguns versos de Valério Sorano, extraídos do livro escrito Sobre o Culto aos Deuses. Ei-los: Júpiter, onipotente, progenitor dos reis, das coisas e dos deuses, progenitora dos deuses, deus único e todos os deuses. Varrão explica-os assim: Júpiter é homem, quando emite o sêmen; mulher, quando o recebe. Assim, Júpiter é o mundo e todos os sêmens saem dele e nele reentram. Por isso, diz, a Júpiter Sorano chamou progenitor e progenitora e, não com menor razão, disse ser, ao mesmo tempo, único e tudo, porque o mundo é uno e no uno se encontram todas as coisas. CAPÍTULO X É razoável a distinção entre Jano e Júpiter? Se Jano é o mundo, se o mundo é Júpiter, se ambos são o mundo, por que Jano e Júpiter são dois deuses? Por que têm templos distintos, diferentes altares, distintos ritos e dessemelhantes estátuas? Se é precisamente porque uma é a virtude dos princípios e outra a das causas, recebendo aquela o nome de Jano e esta o de Júpiter, pergunto: Se alguém tivesse sobre coisas diferentes dois poderes ou duas artes, por ser distinta a virtude de cada uma delas, por isso se diriam dois juízes ou dois artífices? De igual modo, para o Deus uno ter poder sobre os princípios e sobre as causas, temos, por isso, de pensar, necessariamente, tratar-se de dois deuses, por serem duas coisas os princípios e as causas? Se o consideram razoável e justo, digam também ser Júpiter tantos deuses quantos os sobrenomes que lhe deram por causa de seus muitos poderes. Ninguém pode duvidar serem muitas e diferentes as coisas por que lhe deram nomes. Vou citar alguns exemplos. CAPÍTULO XI Sobrenomes de Júpiter. Não fazem referência a muitos deuses, mas a um mesmo. Chamaram-no Vencedor, Invicto, Socorredor, Impulsor, Estator, Centípeda, Supinal, Tigilo, A1mo, Rumino e outras muitas coisas que seria prolixo enumerar. Todos esses nomes impuseram-nos a um só deus por causas e poderes diversos. Contudo, por tantas coisas não o forçaram a ser também tantos deuses. Porque vencia tudo e porque ninguém o vencia; porque socorria os necessitados e porque tinha o poder de impelir, estar de pé, manter e derribar; porque, como verdadeira viga, sustinha e continha o mundo; porque alimentava todas as coisas e porque com as tetas, isto é, com as mamas, criava os animais, deram-lhe todos esses nomes. Entre tantas funções, como fizemos notar, há coisas grandes e coisas pequenas; todavia, um só, dizem, faz umas e outras. Tenho para mim que as causas e os princípios das coisas, por que quiseram que um só mundo fosse dois deuses, Júpiter e Jano, estão mais próximos uns dos outros que conter o mundo e dar de mamar aos animais. Contudo, por causa de duas funções tão infinitamente distantes uma da outra em virtude e em dignidade, não se viu constrangido a ser dois deuses, mas um só Júpiter, chamado por aquela Tigilo, e por esta, Rumino. Não quero acrescentar que dar de mamar aos animais mamíferos poderia ser mais conforme com a decência de Juno que com a de Júpiter, máxime sabendo que existe, ademais, a deusa Rumina, que lhe prestaria auxílio e serviço em semelhante emprego. Imagino resposta possível por parte deles. A própria Juno, replicarão, outra coisa não é senão Júpiter, segundo os seguintes versos de Valério Sorano: Júpiter, onipotente, progenitor dos reis, das coisas e dos deuses e progenitora dos deuses. Por que lhe deram o nome de Rumino, se observação mais atenta descobrirá a existência da deusa Rumina? Se, com efeito, era indigno da majestade dos deuses que, em uma só espiga de trigo, um cuidasse dos nozinhos do colmo e outro dos folículos, quão mais o será que dois deuses, dos quais um é Júpiter, rei de todos eles, exerçam poder sobre coisa tão ínfima como a amamentação dos animais! Nem sequer o faz com a esposa, mas com não sei que plebeia Rumina, porque ele próprio é Rumina e, talvez, Rumino para os animais machos e Rumina para as fêmeas. Diríamos não quererem dar a Júpiter nome. feminino, não fora ler-se nos citados versos: Progenitor e progenitora. Entre seus muitos sobrenomes li também chamar-se Pecúnia, deusa por nós encontrada entre os pequenos arrendadores de impostos a que fizemos menção no Livro Quarto. Se, todavia, homens e mulheres têm dinheiro, por que não se lhe chama Pecúnia e Pecúnio, como Rumina e Rumino; por que não? CAPÍTULO XII A Júpiter dá-se também o nome de Pecúnia. Com que brilhantismo não justificaram tal nome! Chama-se também Pecúnia, dizem, porque todas as coisas lhe pertencem. Bonita razão de nome divino! Diríamos: Aquele de quem são todas as coisas se chama vil e afrontosamente Pecúnia. Em relação a tudo quanto se contém no céu e na terra, que é o dinheiro entre as coisas que, com o nome de dinheiro, os homens possuem? Na realidade, foi a avareza que impôs semelhante nome a Júpiter, com o propósito de que a todo aquele que ama o dinheiro lhe parecesse não amar qualquer deus, mas o rei de todos os deuses. Não seria assim, caso se chamasse Riqueza. Uma coisa são as riquezas; outra, o dinheiro. Chamamos ricos, sábios, justos e bons a quem carece de dinheiro ou tem pouco. São ricos em virtudes, que lhes ensinam a contentar-se com o que têm, quando se veem faltos de bens temporais. E damos o nome de pobres aos avaros, sempre anelantes e sempre em necessidade, porque é possível que tenham as maiores riquezas do mundo, mas, por muito grande que seja seu patrimônio, não podem não estar necessitados. Ao verdadeiro Deus com razão chamamos rico, não por causa do dinheiro, mas da onipotência. Chamam-se, de igual modo, ricos os endinheirados, mas no íntimo são pobres, se cobiçosos. Chamam-se também pobres os carentes de dinheiro, mas no íntimo são ricos, se sábios. Em que estima deve o sábio ter semelhante teologia, em que o rei dos deuses tomou o nome da coisa que jamais sábio algum desejou? Com que facilidade, se salutarmente aprendessem algo da ciência da vida eterna, chamariam Deus ao Regedor deste mundo, não por causa do dinheiro, mas por causa da sabedoria, cujo amor purifica da imunda cobiça, ou seja, do amor ao dinheiro! CAPÍTULO XIII Ao explicar-se que é Saturno ou que é Gênio, ensina-se que são um e outro o mesmo Júpiter. Para que continuarmos falando de Júpiter, a quem, talvez, virão a reduzir-se todas as demais divindades? Assim, a opinião que admite muitos deuses se desvanecerá, pois Júpiter compreenderá todos. E isso, quer os considerem partes ou poderes dele, quer virtude da alma, que julgam difundida por todas as partes deste mundo e sobre as quais se levanta o universo visível. Seu multíplice governo da natureza tornou-o digno de receber como que o nome de muitos deuses. Que é Saturno? É deus, diz, dos principais, sobre cujo poder e domínio se encontram todas as sementes. Porventura, quando comenta os versos de Sorano, não nos ensina Varrão que Júpiter é o mundo e que recebe em si e emite todas as sementes? Logo, trata-se do mesmo sob cujo poder e domínio se encontram todas as sementes. Que é Gênio? Deus preposto; tem a virtude de gerar todas as coisas. Que outro acreditam ter igual virtude, senão o mundo, do qual se disse: Júpiter, progenitor e progenitora? E, como noutro lugar diz ser Gênio a alma racional de cada homem e, por isso, ter cada qual a sua, assegurando ser deus a alma do mundo, parece dar a entender que a alma do mundo é assim como que Gênio universal. É o chamado Júpiter, porque, se todo Gênio é deus e a alma de cada homem é Gênio, segue-se ser deus a alma de cada homem. Se a absurda consequência de tal afirmativa os próprios pagãos se veem obrigados a rechaça-la, resta chamarem própria e excelentemente Gênio ao deus a que chamam alma do mundo e, portanto, a Júpiter. CAPÍTULO XIV Ofícios de Mercúrio e Marte. Não encontraram meio de referir Mercúrio e Marte a algumas partes do mundo e às operações de Deus sobre os elementos. Eis o motivo que os moveu a pô-los à frente pelo menos das obras dos homens, fazendo-os presidir a palavra e a guerra. Se o poder de Mercúrio se estende à palavra dos deuses, senhoreia também o rei dos deuses, se é que Júpiter fala segundo seu arbítrio ou recebeu dele a faculdade de falar. Trata-se, é claro, de absurdo. Se, porém, se diz que apenas lhe atribuem poder sobre a palavra humana, não é crível que Júpiter voluntariamente se rebaixasse a dar de mamar, não só às crianças, mas também aos animais, pelo que recebeu o nome de Rumino, e não quisesse encarregar-se da palavra, pela qual nos avantajamos às bestas. Portanto, Mercúrio é o mesmíssimo Júpiter. Se com a palavra se quer identificar Mercúrio, se Mercúrio, repito, é a própria palavra, não é deus, segundo sua própria confissão. Tal identidade funda-se nas interpretações que dele se fazem. (Diz-se chamado Mercúrio porque corre no meio, assim como a palavra corre entre os homens. Por esse motivo chama-se em grego Hermes, porque palavra, ou a interpretação que se lhe dá, se diz hermenéia. Daí lhe vem também o presidir o comércio, porque entre vendedores e compradores a palavra serve de intermediária. As asas na cabeça e nos pés significam que a palavra voa como a ave no ar. Também lhe chamam núncio, porque por intermédio da palavra se expressam os pensamentos.) Mas, por transformarem em deuses os que não são nem demônios, dirigindo súplicas a espíritos imundos, possuem-nos os que não são deuses, mas demônios. De igual modo, porque a Marte não puderam atribuir algum elemento ou parte do mundo, onde exercesse suas funções, fossem de que natureza fossem, disseram ser o deus da guerra. E a guerra é obra dos homens e não desejável para eles. Se a Felicidade desse perpétua paz, Marte não teria o que fazer. Oxalá fosse Marte a guerra, como é Mercúrio a palavra! Porque seria tão claro não ser deus, como não o é a guerra, que nem falsamente se chama deus. CAPÍTULO XV Algumas estrelas a que os pagãos deram os nomes dos deuses. Talvez esses deuses sejam as estrelas a que deram seus nomes, porque a uma estrela chamam Mercúrio, e a outra, Marte. Mas também existe uma, chamada Júpiter, e todavia, para eles, Júpiter é o mundo. Ali também se encontra a mais resplandecente de todas, por eles chamada Vênus, e, contudo, querem que seja, além disso, a Lua. Contendem entre si a respeito de fulgentíssima estrela, como Juno e Vênus sobre a maçã de ouro. Alguns sustentam que o Luzeiro é de Vênus; outros, que é de Juno. Mas, como de costume, Vênus vence, por serem mais numerosos os que o atribuem a Vênus. Com dificuldade se encontra quem diga o contrário. Quem não rirá às gargalhadas ao ouvir que Júpiter é o rei dos deuses e ver que sua estrela fica deste tamanhinho ante o resplendor da de Vênus? Deveria aquela superar em fulgor as demais tanto quanto em poder Júpiter supera todos. Respondem que parece assim precisamente porque o que parece mais obscuro se encontra mais acima e muito mais separado da terra. Se a dignidade maior corresponde lugar mais elevado, por que Saturno está mais elevado que Júpiter? Acaso porque a vanídade da fábula, que de Júpiter faz rei, não pôde chegar aos astros e o que Saturno não conseguiu em seu reino, nem no Capitólio, se lhe permitiu obter no céu? Ademais, por que não atribuíram nenhuma estrela a Jano? Se é por ser o mundo e se encontrarem nele todas as estrelas, também Júpiter é o mundo e, contudo, a tem. Porventura Jano as arranjou como pôde e, por uma estrela que não tem entre os astros, obteve tantos rostos no mundo? E, se fazem de Mercúrio e de Marte partes do mundo e, por conseguinte, deuses, só por causa de suas estrelas, pois, com certeza, a palavra e a guerra não constituem partes do mundo, mas atos humanos, por que todos os signos celestes, compostos não de apenas uma estrela, mas cada qual de várias, e colocados no mais alto do éter, onde a constância do movimente assegura curso invariável às constelações, por que Aries, Touro, Câncer e Escorpião ficam privados de altares, de sacrifícios e de templos, por que não admiti-los, se não entre os deuses seletos, pelo menos entre os quase plebeus? CAPÍTULO XVI Apoio, Diana e demais deuses seletos que quiseram fossem partes do mundo. De Apolo, embora o quisessem adivinho e médico, disseram ser o Sol, para colocá-lo em alguma pane do mundo; de Diana, sua irmã, disseram, de igual sorte, ser a Lua e presidenta dos caminhos. Eis por que a fazem também virgem. Dão, além disso, flechas a ambos, porque os dois astros lançam raios do céu à terra. Desejam seja Vulcano o fogo do mundo, Netuno, o das águas do universo, e Dítis pai, ou seja, Orco, a parte terrena e mais inferior do mundo. Põem Líbero e Ceres à frente das sementes, aquele à das masculinas, esta à das femininas, ou aquele à das úmidas e esta à das secas. Tudo isso faz referência, sem dúvida, a Júpiter, ou seja, ao mundo, que se chamou progenitor e progenitora porque emite de si todas as sementes e em si as recebe todas. Tal acontece, embora queiram também que Ceres seja a grande Mãe, que outra não é, conforme dizem, senão a terra e, ao mesmo tempo, também Juno. Eis por que lhe atribuem as causas segundas, embora a Júpiter se chamasse progenitor e progenitora dos deuses porque, segundo os pagãos, Júpiter é o mundo inteiro. Minerva disseram ser a parte superior do céu ou a Lua, pois a puseram à frente das artes humanas, e não encontraram nem uma estrela onde colocá-la. Vesta passa por ser a maior das deusas porque é a terra, embora acreditassem dever-se-lhe atribuir o fogo mais brando do mundo, empregado nos usos ordinários dos homens, não o mais violento, como o de Vulcano. Por isso pretendem que todos esses deuses seletos sejam o mundo: uns, o mundo inteiro; outros, partes dele. O mundo todo é, por exemplo, Júpiter; partes dele, Gênio, a grande Mãe, o Sol e a Lua ou, por melhor dizer, Apolo e Diana. Algumas vezes, um só deus é muitas coisas; outras, uma só coisa muitos deuses. Exemplo de um só deus ser muitas coisas temo-lo em Júpiter. Júpiter é tido e anunciado, primeiro como o mundo inteiro, depois como o céu apenas e, por último, é também estrela. De igual modo, Juno é senhora das causas segundas, Juno é o ar, Juno é a terra e, se vencer a Vênus, Juno é estrela. Assim também, Minerva é o éter superior e Minerva é a Lua, que acreditam achar-se no limite mais inferior do éter. Exemplos de uma só coisa ser muitos deuses temo-los primeiro em Jano, que é o mundo, quando o mundo é, ao mesmo tempo, Júpiter. Dá-se a mesma coisa com Juno, que é a terra, quando a terra é também a grande Mãe e o é Ceres. CAPÍTULO XVII O próprio Varrão considera ambíguas suas opiniões a respeito dos deuses. As coisas que mencionei a título de exemplo não explicam as demais; ao contrário, servem para complicá-las. Segundo a parte de que soprar o vento da erradia opinião dos gentios, saltam de cá para lá, de modo que o próprio Varrão prefere duvidar de tudo a afirmar algo. Ao finalizar o Livro Primeiro dos três últimos sobre os deuses certos, quando no livro seguinte começou a falar sobre os deuses incertos, escreveu: Não devem censurar-me por neste livrinho considerar duvidosas as opiniões sobre os deuses. Que outro, se julgar necessário e possível, enuncie julgamento positivo. Quanto a mim, tomarei o caminho mais curto, que é pôr em dúvida tudo que afirmei no Livro Primeiro e não encaminhar por veredas de certeza o que escrever neste. Dessa maneira deixou na dúvida não apenas esse dos deuses incertos, mas também o dos certos. No Livro Terceiro, sobre os deuses seletos, depois de haver prolongado quanto julgou conveniente a teologia natural, agredindo as futilezas e mentirosas loucuras da teologia civil, em que não apenas não o guiava a verdade das coisas, mas pesava sobre ele a autoridade dos antepassados, diz: Neste livro escreverei sobre os deuses públicos do povo romano, a que dedicaram templos e deram notoriedade, ornando-os com muitos signos. Mas, como observa Xenófanes Colofônio, exporei o que penso do assunto e não o que afirmo, porque opinar é de homens, saber, de Deus. Quando vai tratar de instituições humanas, promete, cauteloso, falar de coisas não compreendidas nem arraigadas por firme crença, mas de coisas opinativas e duvidosas. Sabia que existe o mundo, que existem o céu e a terra; sabia que o céu se encontra ornado de astros esplendentes e que a terra é fértil de sementes e assim por diante. Acreditava com certa firmeza de ânimo que certa força invisível e prepotente governa e rege o maravilhoso conjunto do universo. Não podia, porém, afirmar de igual modo que Jano é o mundo ou falar de Saturno, que, sendo pai de Júpiter, veio a ser súdito do filho, e outras coisas que tais. CAPÍTULO XVIII Causa mais crivelmente inspiradora do erro do paganismo. A razão mais verossímil que se possa dar é haverem os deuses sido homens e deverem à lisonja que os fez deuses as solenidades e os ritos que soube compor segundo o espírito, o caráter, os atos e o destino de cada um deles. Insinuando-se pouco a pouco nas almas humanas, semelhantes às dos demônios e apaixonadas pelo erro, essas tradições sacrílegas espalharam-se por toda parte, abonadas pelas engenhosas mentiras dos poetas e pelas seduções dos espíritos de malícia. E mais factível e fácil que o ímpio jovem, temeroso de ser morto pelo desnaturado pai e desejoso de reinar, o expulsasse do reino, que a interpretação dada por Varrão, a saber, que Júpiter, filho, venceu a Saturno, pai, precisamente porque a causa, pertencente a Júpiter, vem antes da semente, que pertence a Saturno. Se assim fosse, nunca Saturno fora anterior a Júpiter, nem seria seu pai, porque a causa da semente precede sempre a própria semente, que jamais a engendra. Mas, quando se esforçam em honrar com interpretações naturais as fabulosas vaidades ou as façanhas dos homens, até as inteligências mais agudas se veem em tamanhos apertos, que nos obrigam a lastimar-lhes também a vaidade. CAPÍTULO XIX Interpretações em que se apoia a razão de tributar-se culto a Saturno. Contam que Saturno costumava devorar o que dele nascia, porque as sementes voltam ao lugar de que procederam: O haverem-lhe dado, em lugar de Júpiter, um torrão, para que o tragasse, significa que no começo, quer dizer, antes de descobrir-se a lavoura, os homens cobriam as sementes com as mãos. Saturno deveria chamar-se a terra, não a semente. A terra, de certo modo, devora o que engendra, quando, brotadas, as sementes tornam a ser recebidas nela. O haver-se-lhe oferecido um torrão em lugar de Júpiter, que tem a ver com que os homens cubram de terra a semente? Não é devorado como o resto o grão de semente posto no seio da terra? Disseram-no como se quem semeia a gleba lhe tirasse, depois, a semente, como aconteceu quando, oferecendo o torrão a Saturno, lhe tiraram Júpiter. Cobrindo-se de terra a semente, é mais depressa devorada. Logo, nesse sentido, Júpiter é a semente, não causa da semente, que é o que antes se dizia. Que farão, entretanto, os homens que, ao interpretarem coisas bobas, não encontram o que dizer sabiamente? Saturno traz foice, acrescenta Varrão, por causa da agricultura. É verdade que, quando reinava, a agricultura ainda não existia. Por isso dizem que seus tempos foram os primitivos, porque, segundo a explicação das fábulas inventadas pelo mesmo autor, os primeiros homens viviam das sementes espontaneamente produzidas pela terra. Acaso, perdido o cetro, empunhou a foice, a fim de no reinado do filho tornar-se laborioso obreiro quem nos primeiros tempos foi ocioso rei? Diz, a seguir, costumarem alguns imolar-lhe crianças. Assim, os cartagineses e outros imolavam-lhe também adultos, como os gauleses, pois a melhor das sementes é o gênero humano. Que necessidade temos de estender-nos nessa crudelíssima vaidade? Baste-nos recordar e ter por averiguado que semelhantes explicações não se referem ao verdadeiro Deus, natureza viva, incorpórea e imutável, a quem deve ser eternamente pedida a vida bem-aventurada; mas seus fins se encontram nas coisas corporais, temporais, mutáveis e mortais. Quanto ao caso de Saturno haver castrado o Céu, seu pai, como vem contado nas fábulas, significa estar sob o poder de Saturno, não sob o poder do céu, a semente divina. É o que de maneira precisa se deixa entrever, dado que no céu nenhuma semente nasce. Mas eis que, se Saturno é filho do céu, é também filho de Júpiter, porque afirmam de mil e um modos ser Júpiter o céu. O que não procede da verdade, muitas vezes, sem coação alguma, se destrói a si mesmo. Diz que se chamou Khronos, porque essa palavra grega significa espaço de tempo, sem o qual a semente não pode ser fecunda. Essas e outras muitas coisas dizem-se de Saturno e todas elas referem-se à semente. Se, porém, tamanho poder de Saturno fosse bastante para as sementes, para que buscar a intervenção de outros deuses, especialmente de Líbero e Líbera, isto é, Ceres? De tais divindades torna logo a dizer muitas coisas relativas à semente, como se nada houvesse dito, ao tratar de Saturno. CAPÍTULO XX Os mistérios de Ceres Eleusina. Celebram-se, entre os mistérios de Ceres, eis mistérios eleusinos, que tamanha aceitação tiveram entre os atenienses. Não lhes dá interpretação alguma, salvo no concernente ao grão de trigo, inventado por Ceres, e a Proserpina, raptada pelo deus arco. Diz que Ceres significa a fecundidade das sementes. Havendo faltado por algum tempo e entristecendo-se a terra por causa da esterilidade, surgiu a opinião de que a filha de Ceres, ou seja, a fecundidade, que recebeu o nome de Proserpina, de proserpendo (brotar), fora raptada pelo deus arco, que a encerrou nos infernos. Tal acontecimento foi celebrado com luto público. Logo Proserpina voltou a ver o renascimento da alegria, quando a fecundidade retornou. Eis a causa da instituição de tais solenidades. Varrão acrescenta que os mistérios eleusinos encerram muitas outras tradições, todas relativas à invenção das messes. CAPÍTULO XXI Torpeza dos sacrifícios celebrados em honra de Libero. Envergonha-me dizer a que torpeza chegaram os mistérios de Líbero, a quem fizeram presidir as sementes líquidas e, portanto, não apenas o sumo dos frutos, entre os quais o vinho, de certo modo, ocupa o primeiro lugar, mas também o sêmen dos animais, mas não me envergonho por causa de sua arrogante estupidez, e sim porque devo continuar falando sobre eles. Eis uma das coisas que me vejo forçado a silenciar, por serem muitas: Nas encruzilhadas da Itália celebravam-se os mistérios de Líbero, diz Varrão, com tamanha libertinagem e torpeza, que em sua honra se reverenciavam as partes viris do homem. Não o faziam em segredo, caso em que seria mais verecundo, mas em público, triunfando, assim, a carnal torpeza. Durante as festividades de Líbero, o vergonhoso membro era, com grande honra, posto em cima de carros e passeado, primeiro do campo às encruzilhadas, depois pelas cercanias de Roma, onde acabava entrando. Na cidade chamada Lavínio dedicava-se um mês inteiro às festividades de Líbero. Durante trinta dias todos usavam as palavras mais indecorosas, até que o referido membro, depois de conduzido em procissão pelas ruas, fosse repousar, enfim, em seu lugar. Ao desonesto membro era preciso que honestíssima mãe de família lhe impusesse publicamente a coroa. Desse modo se devia tornar propício o deus Líbero, para maior rendimento das colheitas. Assim devia repelir-se dos campos o feitiço, a fim de a matrona ver-se obrigada a fazer em público o que até a meretriz se deveria proibir fazer em cena, se espectadoras as matronas. Apenas uma razão fundou a crença de não ser suficiente Saturno para as sementes. E era que a alma imunda encontrasse oportunidade para multiplicar seus deuses e, desprovida, como castigo de sua imundície, do único e verdadeiro Deus e prostituída por muitos e falsos deuses, ávida de maior imundície, a semelhantes sacrilégios chamasse sacramentos e se entregasse à canalha de sujos demônios, para ser violentada e maculada. CAPÍTULO XXII Netuno, Salácia e Venília. De Netuno já era esposa a deusa Salácia, a água inferior do mar, segundo os pagãos. Para que se lhe acrescenta Venília, senão a fim de que, sem necessidade dos cultos, mas graças apenas à libido da alma prostituída, se multiplicassem as solicitações dos demônios? Dessa nobre teologia deem-nos interpretação que nos refreie a censura: que a interpretação, todavia, seja racional. Venília, dizem, é a onda que vem à praia; Salácia, a onda que volta ao mar. Por gue se fazem duas deusas, se é a mesma a onda que vem e vai? E imagem do louco apetite, que se inquieta por ter muitos deuses. Embora seja a mesma água que vai e vem, sob miserável pretexto invocam dois demônios e mais ainda se macula a alma, que vai e não torna. Conjuro-te, Varrão, conjuro-vos, leitores dos escritos de homens tão sábios, que presumis haver aprendido algo de grande, a dar-nos explicação, se não conforme com a natureza imutável e eterna que é Deus, pelo menos de acordo com a alma do mundo e suas partes, que julgais deuses verdadeiros. É erro quase tolerável que da parte da alma do mundo que penetra o mar tenhais feito um deus, Netuno. Mas, dizei-me, a água, que vem à praia e reflui para o mar, forma duas partes do mundo ou duas partes da alma do mundo? Quem de vós estará de tal maneira fora do juízo que seja capaz de afirmá-lo? Então, por que criastes duas deusas? Não é porque a sabedoria de vossos antepassados não cuidou de confiar-vos à guarda de várias divindades, e sim de entregar-vos à horda de demônios, amiga das vaidades e da mentira? Por que semelhante explicação fez Salácia perder a parte inferior do mar, que a sujeitava ao marido? Torna-se evidente que, quando dizeis que é a onda que vai e vem, a pondes na superfície. Acaso porque se amancebou com Venília, a deusa Salácia, de zangada, expulsou o esposo das partes superiores do mar? CAPÍTULO XXIII Da Terra afirma Varrão que é deusa, pois a alma do mundo, que se considera Deus, corre também por essa parte mais inferior de seu corpo e lhe comunica sua virtude divina. 1. A terra, que vemos povoada de animais, é única; todavia, não passa de corpo imenso e é a última parte do mundo. Então, por que a querem deusa? Porque é fecunda? E por que, de preferência, não seriam deuses os homens, pois a tornam fecunda, mas pelo amanho, não pelo culto? A parte da alma do mundo, afirmam, que a penetra é que a transforma em deusa. Como se não fora mais evidente a existência da alma nos homens! Sobre isso não há dúvida. Entretanto, de maneira alguma, os homens passam por deuses. E, o que é mais de lamentar, os pagãos, com admirável e lastimoso erro, submetem-se a seres que não são deuses, mas piores do que os homens, e tributam-lhes culto e adoram-nos. É certo que, no livro citado sobre os deuses seletos, o próprio Varrão declara haver três graus de alma em toda natureza e na natureza universal. O primeiro, que circula por todas as partes do corpo que vive e não tem sentido, mas apenas força para viver. Tal força, diz o referido autor, infiltra-se em nosso corpo, nos ossos, nas unhas e nos cabelos, do mesmo modo que no mundo as árvores se alimentam e crescem sem sentido e de certa maneira vivem. No segundo grau a alma é sensitiva e comunica a sensibilidade aos olhos, aos ouvidos, ao nariz, à boca e ao tacto. O terceiro grau, ou seja, o grau supremo, é o espírito, em que domina a inteligência, nobre privilégio de que, exceto o homem, todos os animais carecem. E, como assemelha o homem a Deus, no mundo a referida parte da alma universal chama-se Deus, e no homem, Gênio. Assim, no mundo, as pedras e a terra que vemos e em que o sentido não penetra são como que os ossos, como que as unhas de Deus. São seus sentidos o Sol, a Lua e as estrelas, que sentimos e Ele também sente. O éter é seu espírito, cuja influência, ao chegar aos astros, os transforma em deuses. Tal influência, que corre pela terra, é a deusa Télus; a que se transmite ao oceano e ao mar é o deus Netuno. 2. Volte da que julga teologia natural, para aquela em que, cansado de tantos rodeios e digressões, veio descansar. Volte, repito, volte à civil. Quero nela retê-lo mais um pouco. Ainda tenho algo que dizer-lhe. Bem que poderíamos perguntar: A terra e as pedras, comparadas a nossos ossos e a nossas unhas, são, como eles, desprovidas de sentido e de inteligência? Ou será caso de conceder-lhes a inteligência porque pertencem ao homem dotado de inteligência? É, pois, menos extravagante chamar deuses, no mundo, à terra e às pedras que chamar homens aos nossos ossos e às nossas unhas? Isso talvez se deva tratar com os filósofos; no momento não me dirijo senão ao político. Pode suceder que, embora pareça haver querido erguer um pouquinho a cabeça e respirar como que o ar livre na teologia natural, certas reflexões sobre seu livro e sobre ele próprio lhe hajam sugerido as palavras precedentes, para desviar a suspeita de haverem os antigos romanos e os outros povos tributado culto inane a Télus e a Netuno. Mas pergunto: Se a terra é una, por que a parte da alma do mundo que a penetra não constituiu, sob o nome de Télus, uma só divindade? Se constituiu, onde estará Orco, irmão de Júpiter e de Netuno, a quem dá o nome de Dítis pai? Onde está sua esposa Proserpina, que, de acordo com outra opinião, encaixada nos mesmos livros, não é a fecundidade da terra, mas a parte inferior? Se dizem que, ao difundir-se pela parte superior da terra, a parte da alma do mundo transforma Dítis pai em deus, e, ao difundir-se pela inferior, transforma Proserpina em deusa, que será Télus? Tudo quanto ela era se dividiu de tal forma em duas partes e em dois deuses, que se torna impossível encontrar nem ser nem lugar para essa como que terceira, salvo se houver quem diga serem os dois deuses, Orco e Proserpina, juntos, uma só deusa, Télus, e já não serem três deuses, mas um ou dois. Contudo, designam três, reconhecem três, a três rendem culto, com seus altares, com seus templos, com seus mistérios, com seus ídolos e seus sacerdotes e, por meio disso, com seus enganadores demônios, violadores da alma prostituída. Dizei-me, ainda, a que parte da terra desce a alma do mundo para fazer o deus Telumão? Não, responde Varrão, é uma só e mesma terra que tem duas potencialidades, a masculina, que produz a semente, a feminina, que as recebe e nutre. À potencialidade feminina dá o nome de Télus; à masculina, o de Telumão. Por que os pontífices, como o próprio autor observa, acrescentam outros dois, sacrificando, assim, a quatro divindades: Télus, Telumão, Altor e Rusor? Sobre Télus e Telumão já falamos. Mas por que a Altor? Porque da terra se alimenta tudo quanto nasce, diz Varrão. Por que a Rusor? Porque tudo voltará a ele. CAPÍTULO XXIV Sobrenomes de Télus e suas significações. Embora signos de muitas coisas, não deveriam confirmar as opiniões do politeísmo. 1. Por causa da quádrupla potencialidade a terra deveria ter quatro nomes; não deveria, porém, fazer quatro deuses, do mesmo modo que há um Júpiter com tantos nomes e uma Juno com outros tantos. Em todos eles diz-se existir potencialidade múltipla, pertencente a um só deus ou a uma só deusa; mas a multidão de nomes não faz a multidão dos deuses. Assim como é verdade que, algumas vezes, as cortesãs mais vis se cansam e se envergonham da canalha que buscaram para saciar a libido, assim também a alma, envilecida e prostituída por espíritos imundos, tanto quanto se rejubila antes, depois se arrepende de multiplicar os deuses que a macularam e profanaram. O próprio Varrão parece envergonhado de semelhante canalha e quer que Télus seja uma deusa apenas. Chama-se também, diz, a grande Mãe. O tambor que carrega significa o orbe terrestre e as torres que lhe coroam a cabeça representam as cidades fortificadas. Os assentos que a rodeiam indicam que a deusa não se move, em se movendo todas as coisas. Os galos postos a seu serviço indicam que aqueles que carecem de semente precisam cultivar a terra, porque nela se encontram todas. Se se movem diante dela, é, diz ainda, para mostrar que os que cultivam a terra não podem sentar-se, pois sempre há qualquer coisa que fazer. O som dos címbalos, o retinir de ferramentas, o bater das mãos e outras coisas assim é símbolo do que se faz no campo. Esses apetrechos são de bronze, porque os antigos, antes de descobrirem o ferro, a terra lavraram com bronze. Acrescentam, continua, além disso, um leão solto e manso, para dar a entender não existir pedaço algum de terra que, por mais estéril e silvestre, não convenha domar e lavrar. Depois acrescenta que o haver dado à mãe Télus muitos nomes e sobrenomes deu motivo a pensar em muitos deuses. Creem que Télus é Ópis, porque o trabalho a melhora, Mãe, por ser fecunda, Magna, porque engendra a comida, Proserpina, pois dela brotam os frutos, e Vesta, por vestir-se de ervas. Assim, reduzem, não de maneira absurda, outras deusas a essa. Se é uma deusa apenas, na realidade, se consultada a verdade, nem ela mesma é, pergunto agora: Para que buscar muitas? Sejam de uma só tantos nomes e não haja tantas deusas quantos nomes. Mas a autoridade dos antepassados, que erraram, é deprimente e obriga o próprio Varrão a titubear, depois de havê-lo expressado. Acrescenta: A última opinião não contradiz, em absoluto, a de nossos ancestrais, que admitiam, no caso, várias deusas. Como é que não contradiz? E, pois, indiferente dizer que uma só deusa tem vários nomes ou que há várias deusas? Pode suceder, diz, que uma coisa seja una e nela existam muitas coisas. Admito haver muitas coisas em um homem. Mas será, por isso, também muitos homens? Admito haver muitas coisas em uma deusa apenas, mas será por isso muitas deusas? Contudo, ajuntem como queiram, multipliquem, repliquem ou impliquem. 2. Eis aí todos os mistérios de Télus e da grande Mãe, de que se originam todas as referências às sementes mortais e à prática da agricultura. Eis aí a finalidade e o termo das torres, do tambor, dos galos, da convulsiva agitação de membros, dos címbalos sonoros e dos leões simbólicos. Encontra-se em qualquer dessas coisas alguma promessa de vida eterna? Porventura os galos castrados servem de modo cabal a esta deusa Magna, para dar a entender que aqueles que carecem de semente precisam cultivar a terra, como se a mesma servidão não os tornasse carentes de sêmen? Será que, tributando culto à deusa, se carecem de sêmen, o adquirem, ou melhor, será que, tributando, se o têm, o perdem? Que é isso? Interpretar ou detestar? Não se atende a quanto subiu a malignidade dos demônios, que não se atreveram a prometer algo de grande a semelhantes mistérios e puderam exigir coisas tão cruéis. Se a terra não fosse deusa, os homens, trabalhando, poriam as mãos nela, para conseguir as sementes, e não as poriam em si mesmos para, por amor a ela, perder o sêmen. Se não fosse deusa, de tal forma se tornaria fecunda por meio de mãos alheias, que não obrigaria o homem a tornar-se estéril pelas próprias. Que, nos mistérios de Líbero, honesta matrona coroasse as partes pudendas do homem, à vista da multidão, entre a qual, ruborizado e suarento, se é que resta uma pontinha de vergonha aos homens, talvez se encontrasse o marido, e que, na celebração das núpcias, mandassem a recém-casada sentar-se sobre o joelho de Priapo são coisas infinitamente mais insignificantes e mais leves que a crudelíssima torpeza ou a torpe crueldade, em que por artes demoníacas de tal modo se zomba de um e de outro sexo, que nenhum deles morre do ferimento. Ali se teme a fascinação dos campos, aqui não se teme a amputação dos membros. Ali de tal maneira se profana o pudor da recém-casada, que nem se lhe tira a fecundidade, nem a virgindade; aqui, de tal forma se lhe amputa a virilidade, que não é convertido em mulher, nem permanece homem. CAPÍTULO XXV Interpretação que a ciência dos sábios, gregos encontrou para o castramento de Atis. Não menciona Átis, nem procura explicá-lo. Em memória de seu amor castrava-se o galo. Mas os dou tos e sábios gregos não puderam silenciar causa tão esclarecida e santa. Diz o célebre filósofo Porfírio que Átis simboliza as flores, por causa do aspecto primaveril da terra, mais belo que nas demais estações, e que está castrado, porque a flor cai antes do fruto. Logo, não compararam a flor com o próprio homem ou com aquela semelhança de homem chamada Átis, mas com as partes viris, que em vida caíram, melhor diria, não caíram, nem as colheram, mas arrancaram. E, perdida a flor, não sobreveio fruto algum, e sim a esterilidade. Que significa esse resto de homem? Que significa o que ficou no emasculado? A que faz referência? Que interpretação dar ao caso? Seus esforços impotentes e inúteis porventura não demonstram ser preciso acreditar no que a fama tornou público a respeito do homem transformado em eunuco? Com razão evitou Varrão este ponte e não quis abordá-lo: a um homem tão sábio a questão parecia bem clara. CAPÍTULO XXVI Torpeza dos mistérios da grande Mãe. Varrão não quis falar coisa alguma, tampouco, nem me recordo de havê-lo lido em qualquer lugar, sobre os efeminados consagrados à grande Mãe, injuriosos para o pudor de um e outro sexo. Ainda hoje em dia, de cabelos perfumados, rosto pintado de branco, membros lânguidos e passo efeminado, andam pedindo ao povo pelas ruas e praças de Cartago e, assim, passam a vida torpemente. Faltou explicação, envergonhou-se a razão e a língua guardou silêncio. A grandeza, não da divindade, mas da velhacaria da grande Mãe superou a de todos os deuses seus filhos. Trata-se de monstruosidade que faz empalidecer a de Jano. Aquele tinha deformidade apenas em efígie; está, em seus mistérios, exibe deforme crueldade. Aquele tinha membros supérfluos, mas acrescentados à pedra; esta realmente mutila os membros humanos. Os numerosos e tamanhos estupros do próprio Júpiter não superam semelhante descaramento. Sedutor de tantas mulheres, Júpiter não desonra o céu, senão por causa de Ganimedes; a grande Mãe, entretanto, com esses efeminados de profissão, manchou a terra e ultrajou os céus. Nesse gênero de crueldade obscena talvez possamos compará-la a Saturno ou mesmo dar-lhe a preferência, apesar de Saturno, segundo afirmam, haver castrado o próprio pai. Mas, nos mistérios de Saturno, aos homens lhes foi factível morrer por mãos alheias, não ser castrados pelas próprias. Saturno devorou os filhos, conforme cantam os poetas. Deem-lhe os filósofos a interpretação que quiserem. A História diz simplesmente que os matou. E, se os cartagineses lhe sacrificavam os filhos, trata-se de usança que os romanos não admitiram. A grande Mãe dos deuses, porém, introduziu eunucos nos templos romanos e conservou esse cruel costume na crença de que, extirpando a virilidade dos homens, auxiliava as forças dos romanos. Que representam, comparados com semelhante mal, os roubos de Mercúrio, a lascívia de Vênus e os estupros e as torpezas dos demais? Invocaríamos o testemunho dos próprios livros, se não os cantassem e representassem diariamente nos teatros. Que representam, com efeito, comparados com a enormidade de tamanha velhacaria, que não pertencia senão à grande Mãe? Ficção de poetas, dizem. É ficção os prazeres que os deuses encontram em tais espetáculos? Admitamos ser audácia ou petulância o que os poetas escrevem ou cantam. Mas que, por mandado e extorsão dos deuses, se acrescentem às coisas divinas e às honras que lhes prestam, que é, senão culpa dos deuses, mais ainda, confissão de demônios e decepção de miseráveis? Em todo caso o haver a Mãe dos deuses merecido culto, pela consagração dos eunucos, não é ficção de poetas, que a versificá-lo preferiram horrorizar-se. Quem há de consagrar-se aos deuses seletos, para depois da morte viver felizmente, se, consagrado a eles antes de morrer, não pode viver honestamente, submetido a superstições de tal modo feias e entregue a tão imundos demônios? Tudo isso, diz, é referente ao mundo. Veja bem. Não se referirá ao imundo? Ou há no mundo alguma coisa que não se possa referir ao mundo? Quanto a nós, porém, buscamos espírito que, firme na verdadeira religião, não adore o mundo como seu Deus, mas gabe o mundo como obra de Deus, por Deus, e, limpo da sordidez humana, chegue limpo a Deus, criador do mundo. CAPÍTULO XXVII Quimeras dos fisiólogos, que não rendem culto à verdadeira Divindade, nem rendem o culto devido à Divindade verdadeira. 1. É fato haverem os deuses seletos gozado de maior celebridade que os demais, não, porém, para esclarecer-lhes os merecimentos, mas para não ocultar-lhas os opróbrios. Em consequência, é mais crível hajam sido homens, como dizem não apenas os escritos poéticos, mas também os históricos. Assim, Virgílio: Chegou, primeiro, Soturno, procedente do etéreo Olimpo, fugindo às armas de Júpiter e desterrado dos perdidos reinos. Assim, os versos seguintes que fazem ao caso. Todas as circunstâncias de tal acontecimento vêm desenvolvidas na história de Evêmero, que Ênio pós em latim. Mas, como os escritores gregos e latinos que combateram o erro discutiram suficientemente o ponto, não quero deter-me por mais tempo nele. 2. Quando me detenho a considerar as razões naturais que homens, de penetração igual à ciência, aduziram para transformar coisas humanas em coisas divinas, quanto mais as considero, menos entendo não ser possível atribuí-las senão às obras temporais e terrenas e à natureza corpórea, que, embora visível, é mutável e não é, em absoluto, o Deus verdadeiro. Se se tratasse de símbolos de caráter religioso, seria de lamentar que não anunciassem e pregassem o verdadeiro Deus. Cumpriria, entretanto, de certo modo, admitir que não se fizessem nem ordenassem tais fealdades e torpezas. Se, porém, é crime render culto ao corpo ou à alma, ao invés de ao Deus verdadeiro, único que pode fazer a felicidade da alma em que habita, quão mais criminoso não é tributar-lhes culto de tal forma que o corpo ou a alma de quem o tributa não obtenha a salvação, nem a glória humana! Por conseguinte, com templos, com sacerdotes e com sacrifícios devidos ao Deus verdadeiro, render culto a qualquer elemento do mundo ou a qualquer espírito criado, embora não imundo, nem perverso, não é mau por serem más as coisas com que se lhes rende culto, mas por serem tais esses meios que com eles cumpre render culto somente Àquele a quem se deve semelhante culto e servidão. E, se alguém sustentar que rende culto ao verdadeiro Deus, isto é, ao Criador de toda alma e de todo corpo, com a insensatez e monstruosidade dos ídolos, com os sacrifícios de homicídios, com a coroação das partes pudendas do homem, com o lucro dos estupros, com a amputação dos membros, com a abscisão dos genitais, com a consagração dos eunucos e com as festas de jogos obscenos e impuros, não peca precisamente por tributar culto a quem não se deve, e sim porque, rendendo culto a quem se deve, não o rende como se deve. Quem, todavia, rende culto por semelhantes meios, isto é, torpes e abomináveis, e não o rende ao verdadeiro Deus, ou seja, ao Criador da alma e do corpo, mas à criatura, embora não viciosa, quer seja a alma, quer seja o corpo, quer a alma e o corpo ao mesmo tempo, peca duas vezes contra Deus. Uma porque, em lugar de render culto a Ele, o rende a quem não é Ele; outra porque o rende por esses meios, com que não deve rendê-lo a Ele, nem a outro que não seja Ele. De que modo, quer dizer, quão torpe e nefariamente o tributaram os pagãos, é óbvio. A que e a quem o tributaram não seria evidente, se não no-lo testemunhasse a história das fealdades e torpezas que, segundo confessam, ofereciam aos deuses, porque lhas exigiam por meio de ameaças. E, por conseguinte, evidente, sem rodeio de espécie alguma, que toda a teologia civil se reduz a convidar nefandos demônios e imundíssimos espíritos, com néscios e vistosos simulacros, a possuir, por meio deles, o insensato coração dos mortais. CAPÍTULO XXVIII A doutrina de Varrão sobre a teologia contradiz-se a si mesma. Que importa se esforce o doutíssimo e agudíssimo Varrão em reduzir e resumir, fazendo uso de sutil sutileza, ao céu e à terra todos os deuses? Vãos esforços! Ao tratar das femininas, isto é, das deusas, diz: Porque, como afirmei no Livro Primeiro, quando tratei dos lugares, são dois os princípios dos deuses considerados, a saber: o céu e a terra. Eis por que alguns deuses se chamam celestes, e outros, terrestres. Como nos livros anteriores comecei pelo céu, ao falarmos de Jano, de quem uns disseram ser o céu, e outros, o mundo, assim, ao tratar das femininas, começarei por Télus. Aqui percebo a enorme angústia em que se debate o grande filósofo. Guia-o razão verossímil, a saber: o céu age, a terra padece. Por isso, atribui àquele a virtude masculina, e a esta, a feminina. Não observa que aquele, graças a quem tantos, fenômenos se produzem, é o mesmo que fez o céu e a terra. E assim que também interpreta no livro precedente os mistérios dos samotrácios e promete, com uma espécie de religiosidade, explicar coisas desconhecidas aos seus e enviar-lhes seus escritos. Acrescenta haver ali, por muitos indícios, coligido ser uma coisa símbolo do céu, outra, da terra, e outra, dos tipos das coisas que Platão chama ideias. Quer que por terra se entenda Juno, por céu, Júpiter e por ideias, Minerva. O céu é o princípio; a terra, a matéria; as ideias, os tipos de todas as coisas. Platão, diga-se de passagem, atribui tamanho poder às ideias, que, segundo pensa, além de nada haver o céu criado conforme a seu modelo, criaram o próprio céu. Contento-me de observar que, no livro dos deuses escolhidos, Varrão perde de vista a noção das três divindades, em que, por assim dizer, tudo abrangera. Ao céu atribui os deuses; à terra, as deusas. Entre estas coloca Minerva, que antes elevara acima do próprio céu. E, para cúmulo, Netuno, divindade masculina, está no mar pertencente mais à terra que ao céu. Por fim, Díspater, em grego chamado Plutão, embora divindade masculina e irmão de ambos, é deus terrestre, segundo os gentios, senhoreia a terra superior e na terra inferior tem Proserpina por esposa. Por que, pois, se esforçam em referir os deuses ao céu e à terra, as deusas? Que solidez, que consistência, que sobriedade, que resolução tem semelhante teoria? Com efeito, o princípio das deusas é Télus, a mesma grande Mãe, em torno de quem se arrasta a desvairada torpeza dos efeminados e dos castrados, dos eunucos e dos bailarinos. Que significa chamarem chefe dos deuses a Jano e chefe das deusas a Télus? Que dizer? O erro multiplica a primeira, o furor possui a segunda. Por que se empenham em referi-lo inutilmente ao mundo? Embora pudessem fazê-lo, nenhum homem piedoso renderia culto ao mundo, ao invés de tributá-lo ao verdadeiro Deus. Que não o podem, prova-o abertamente a verdade. Atribuam aos mortos e aos espíritos perversos semelhantes fábulas e toda a dificuldade cessará por completo. CAPÍTULO XXIX Os fisiólogos deveriam referir ao Deus uno e verdadeiro tudo quanto referiram ao mundo e a suas partes. Demo-nos, assim, conta de que tudo quanto os pagãos, baseados na teologia dos deuses, referem, através de razões físicas, ao mundo, pode-se atribuir, sem temor de opinião sacrílega, ao Deus verdadeiro, que fez o mundo, ao Criador de toda alma e de todo corpo. Quanto a nós, rendemos culto a Deus, não à terra e ao céu, duas partes de que consta o mundo, nem à alma ou às almas difundidas em quaisquer viventes; mas ao Deus que fez o céu, a terra e tudo quanto existe neles, que fez toda alma, quer a vivente, falta de sentido e de razão, quer também a senciente, quer a inteligente. CAPÍTULO XXX Distinção entre o criador e as criaturas, com que se evita a tributação de culto a tantos deuses quantas as obras do Autor. Percorramos, pois, as obras do único e verdadeiro Deus, obras com que os pagãos fizeram para si inúmeras e falsas divindades, procurando conferir algum sentido especioso à torpeza abominável de seus mistérios. Tributamos culto ao Deus que às naturezas por Ele criadas atribuiu os princípios e os fins da subsistência e do movimento, Àquele que tem nas mãos as causas das coisas, as conhece e as dispõe. Aquele que criou a virtude das sementes e deu alma racional, por outro nome espírito, aos viventes que quis, Aquele que concedeu o uso da palavra, comunicou, aos espíritos que lhe aprouve, o dom de predizer o futuro, prediz Ele mesmo os futuros mediante aqueles que quer e, por meio dos que lhe apraz, conjura as enfermidades, Àquele que modera, quando assim cumpre corrigir e castigar o gênero humano, os princípios, a evolução e o desenlace das guerras, Àquele que criou e rege o fogo, elemento com que tempera a devoradora atividade, subordinando-a à necessidade da imensa natureza, é o Criador universal e governo das águas, fez do Sol a mais resplandecente das luzes corporais e deu-lhe virtude côngrua e movimento, Àquele a cujo domínio e poder não subtrai os próprios infernos, Àquele que substitui as sementes e os alimentos dos mortais, tanto secos como líquidos, conforme as respectivas naturezas, reparte os frutos entre os animais e os homens, conhece e ordena as causas, não apenas as primeiras, mas também as seguintes, Àquele que determinou o movimento da Lua e abre caminhos celestes e terrenos às mutações locais, Àquele que inspira ao espírito humano, por Ele criado, o conhecimento das artes necessárias ao sustento da natureza e da vida, Àquele que, para fomentar a propagação da prole, instituiu a conjunção dos sexos e concedeu aos clãs humanos o benefício do fogo terrestre, de que se servissem para luz e calor. Eis as coisas que o engenhoso e sábio Varrão procurou distribuir aos deuses seletos, usando de não sei que interpretações físicas, devidas às tradições ou a suas próprias conjeturas. Ora, tal atividade pertence apenas ao Deus verdadeiro e não pertence senão a Ele, onipresente, independente de todo lugar, livre de todo laço, indivisível, imutável e enchendo o céu e a terra, não com a imensidade de seu ser, mas com a presença de sua onipotência. De tal forma governa tudo quanto criou, que às próprias criaturas abandona certa espontaneidade de movimento e de ação, porque, embora não possam existir sem Ele, não são o que Ele é. Pratica também muitas coisas por intermédio dos anjos, mas não beatifica os anjos senão por Si mesmo. Assim, apesar de, por alguma razão particular, com frequência enviar anjos aos homens, não beatifica os homens pelos anjos, mas por Si mesmo, como acontece com os anjos. Desse Deus, uno e verdadeiro, esperamos a vida eterna. CAPÍTULO XXXI Benefícios que, além da abundância geral e comum a todos os seres, Deus concede aos seguidores da verdade. Temos, além dos benefícios que do governo da natureza, do qual já dissemos alguma coisa, derivam para os bons e para os maus, indício magnífico e privativo de seu grande amor para com os bons. Embora não possamos dar-lhe as devidas graças, porque somos, porque vivemos, porque vemos o céu e a terra, porque temos inteligência e razão, que nos permite conhecer Aquele que criou todas as coisas, que corações, quantas línguas pretenderiam ser bastante para render-lhe graças, porque não nos abandonou, carregados de pecados e oprimidos por eles, de costas voltadas para a contemplação e cegados pelo amor às trevas, ou seja, à iniquidade? Quantas, porque, encontrando-nos em tal estado, nos enviou o Verbo, seu Unigênito, para que, encarnando-se por nós, nascendo e padecendo, conhecêssemos o alto grau da estima em que Deus tem o homem e, graças ao singular sacrifício, nos limpássemos de todos os pecados, e para que, difundida pelo Espírito Santo a caridade em nosso coração e superadas todas as dificuldades, alcançássemos o descanso eterno e a inefável delícia da bem-aventurada visão? CAPÍTULO XXXII Não faltou nos tempos passados o sacramento da redenção de Cristo e sempre o anunciaram diversas significações. Por ministério dos anjos e mediante certos signos e sacramentos congruentes com os tempos, desde o princípio do gênero humano já se pregava a quem convinha o mistério da vida eterna. Depois o povo hebreu se congregou em uma espécie de república, figura de tal sacramento. No seio do povo escolhido, certos homens, iniciados alguns, outros alheios à inteligência do que prediziam, anunciaram tudo quanto havia de suceder do advento de Cristo aos nossos dias e até aos tempos futuros. Mais tarde a nação judia se dispersou entre as gentes, para cumprimento do testemunho das Escrituras, em que se prediz a salvação eterna que há de vir em Cristo. Não apenas todas as profecias expressas em palavras, nem somente todos os preceitos contidos nas Letras Sagradas e reguladores dos costumes e da piedade, mas também os sacramentos, os sacerdócios, o tabernáculo ou o templo, os altares, os sacrifícios e qualquer outra coisa tocante à servidão devida a Deus e chamada em grego propriamente latréia, foram símbolo e prenúncio do que, pela vida eterna dos fiéis, acreditamos haver-se cumprido em Cristo, vemos cumprir-se e confiamos haja de cumprir-se CAPÍTULO XXXIII Apenas a religião cristã pôde revelar a falácia dos espíritos malignos que gozam do erro dos homens. Em consequência, somente a única religião verdadeira tornou possível revelar serem os deuses dos gentios imundíssimos demônios, ardentemente desejosos de ser considerados deuses. Para tanto, aproveitavam-se de almas defuntas ou de criaturas mundanas, gozavam, com soberba impureza, de honras divinas e de honrarias nefandas e torpes e invejavam aos espíritos humanos o converterem-se ao verdadeiro Deus. Desse cruel e tirânico jugo livra-se o homem, quando crê naquele que, para exaltar-se, lhe deu exemplo de humildade igual ao orgulho que causou a queda dos demônios. Do grêmio demoníaco fazem parte não somente os de quem já falamos bastante e outros mil e um de tal jaez dos demais povos e nações, mas também os de que estamos tratando agora, a saber, os escolhidos para o senado dos deuses, mas escolhidos, essa a verdade, pela nobreza das ruindades, não pela dignidade das virtudes. No afã de, por meio de explicações naturais, explicar os mistérios e procurar honestar as coisas torpes, Varrão não encontra jeito de enquadrá-los e pô-los em concordância, porque as causas dos referidos mistérios não são as que imagina, ou melhor, as que quer imaginar. Se fossem, não somente essas, mas também algumas de outro gênero, embora não tivessem nada a ver com o verdadeiro Deus e com a vida eterna, que se deve buscar na religião, fosse qual fosse a razão dada sobre a natureza das coisas, mitigaria de certo modo a ofensa causada por alguma torpeza ou disparate incompreendido nos mistérios. Foi o que intentou fazer nas fábulas teatrais e nos mistérios dos templos idolátricos, quando não considerou bons os teatros por semelharem os templos, mas, por serem parecidos com os teatros, condenou os templos dos ídolos. Todo o empenho de Varrão, todavia, encaminhava-se a diminuir, com a pretensa razão das causas naturais, a repugnância causada à alma humana por tantas infâmias. CAPÍTULO XXXIV Aparecimento dos livros de Numa Pompílio que continham as causas dos mistérios. Mandou queimá-los o Senado, para não se tornarem conhecidas. Contudo, segundo testemunha o próprio Varrão, as causas dos mistérios, colhidas nos livros de Numa Pompílio, não puderam ser toleradas. Julgaram-nas indignas não apenas de chegar através da leitura ao conhecimento dos religiosos, como também de ser conservadas, por escrito, na profundeza das trevas. Chegou a hora de dizer o que prometi no Livro Terceiro desta obra. Segundo se lê no livro Sobre o Culto aos Deuses, escrito por Varrão, certo homem, de nome Terêncio, possuía pequena herdade ao pé do Janículo. Um vaqueiro seu, passando a charrua junto ao sepulcro de Numa Pompílio, arrancou do chão os livros em que esse rei escrevera as causas dos mistérios instituídos. Levou-os à cidade e entregou-os ao pretor. Em lhe vendo o índice, o magistrado julgou de bom alvitre confiar ao Senado coisa de tanta monta. Depois de haverem lido algumas das causas da instituição dos mistérios, os senadores concordaram com o falecido rei, mas, como religiosos, decidiram que o pretor queimasse os livros. Creia cada qual o que pensa, mais ainda, diga qualquer insigne defensor de tamanha impiedade o que lhe sugerir o louco afã de discutir. A mim me basta observar que as causas dos mistérios romanos, escritas pelo rei Pompílio, que os instituiu, cumpriu não chegassem ao conhecimento do povo, nem do Senado, nem mesmo dos sacerdotes. Ilícita curiosidade iniciara Numa Pompílio nos mistérios dos demônios, que escreveu para ter, em os lendo, aonde ir buscar conselho. Mas, apesar de rei, que a ninguém temia, não se atreveu a ensiná-los, nem a fazê-los desaparecer, apagando-os ou destruindo-os por qualquer outro meio. Desse modo, o que quis que pessoa alguma soubesse, para não ensinar aos mortais coisas nefandas, e o que temeu violar, para não irritar os demônios, foi por ele sepultado em lugar, segundo lhe parecia, seguro, sem pensar que um arado pudesse aproximar-se de seu sepulcro. Por sua vez, receando condenar as religiões dos antepassados e vendo-se, por isso, obrigado a concordar com Numa, o Senado julgou de tal maneira perniciosos os referidos livros, que não mandou enterrá-los de novo, não fora a curiosidade humana buscar com muito maior empenho coisa já divulgada, mas ordenou que documentos de tal modo escandalosos desaparecessem entre as chamas. Já se considerava necessária a celebração dos mistérios; seria, pois, mais tolerável o erro da cidade, ignorando-lhes as causas, que a perturbação em que, sabendo-as, se veria mergulhada. CAPÍTULO XXXV A hidromancia era o encanto de Numa, porque via algumas imagens de demônios. O mesmo Numa, a quem Deus não enviava profeta algum nem qualquer santo anjo, viu-se obrigado a praticar a hídromancia para ver na água as imagens dos deuses, ou melhor, as ilusões dos demônios, de quem ouvia o que lhe era necessário estabelecer e observar nos mistérios sagrados. Tal gênero de adivinhação, segundo Varrão, é de origem persa; usaram-no o rei Numa e, mais tarde, o filósofo Pitágoras. Acrescenta que, quando se emprega sangue e se interrogam os infernos, se chama em grego nekrmantéia. Quer se chame hidromancia, quer necromancia, vem a dar no mesmo, porque em uma e outra aparece a adivinhação pelos mortos. Com que artes se fazem tais coisas? Que o digam os pagãos. Não quero dizer que semelhantes artes não era costume, antes do advento de nosso Salvador, serem proibidas pelas leis das cidades gentias nem castigadas com rigorosa pena. Não quero, torno a dizer, sustentá-lo, porque na época talvez as permitissem. Por meio delas, todavia, Pompílio aprendeu os mistérios cujas causas sepultou. Assim, receou o que aprendeu e o Senado queimou os livros que continham as referidas causas. A que vem, agora, Varrão interpretando, por não sei que outras causas físicas, semelhantes mistérios? Se estivessem contidos nesses livros, com certeza não os queimariam, ou os senadores romanos de igual modo queimariam os escritos e publicações de Varrão dedicados ao pontífice César? Por haver Numa Pompílio extraído água, quer dizer, por havê-la tirado para práticas de hidromancia, por isso se diz que teve por esposa a ninfa Egéria, como explica Varrão no livro citado. Assim costumam, com aspersões de mentiras, transformar em fábulas as façanhas. A hidromancia, pois, iniciou a curiosidade do rei Pompílio nos mistérios, que registrou nos livros dos pontífices, e nas respectivas causas, cujo conhecimento reservou só para si. Assim fez que, escritas em separado, morressem de certo modo com ele, por haver-se preocupado tanto com subtraí-las ao conhecimento dos homens e sepultá-las. Logo, estavam consignadas ali as mais sórdidas e nocivas ambições dos demônios, suficientes para mostrar a execrabilidade de toda a teologia civil a homens que haviam recebido tamanha quantidade de coisas vergonhosas nos mistérios, ou todos não revelavam ser outra coisa senão homens mortos, de quem haviam crido quase todos os povos, desde a mais remota antiguidade, tratar-se de deuses imortais. Isso porque em tais mistérios se compraziam também os demônios, que imaginavam dever-se-lhes render culto, ao invés de aos próprios mortos, que certos testemunhos de enganosos milagres faziam passar por deuses. Mas, por oculta providência de Deus, sucedeu que, reconciliados com o amigo Pompílio por intermédio das artes com que pôde praticar a hidromancia, permitiram se revelassem todas as obscuridades. Não se permitiram, contudo, aconselhar que, em morrendo, as queimasse, em lugar de enterrá-las, para não chegarem ao conhecimento de quem as pudesse desenterrar com o arado nem da pena de Varrão, graças à qual nos chegou a lembrança do acontecido, pois não podem nada além do que lhes é permitido. E a justiça de Deus, equânime e profunda, não lhes deixa poder senão sobre os que merecem ser-lhes entregues aos ultrajes ou inteiramente postos sob seu pérfido domínio. Quão nocivos e estranhos ao culto da verdadeira piedade se julgaram os referidos escritos é possível inferir de haver o Senado preferido queimar o que Pompílio ocultou a temer o que temeu quem não se atreveu a fazê-lo. Aquele que nem assim quer levar vida piedosa busque por semelhantes mistérios a eterna. E quem não quer sociedade com os malignos demônios não se amedronte por causa da nociva superstição com que se lhes rende culto, mas reconheça a verdadeira religião, que os desmascara e os derrota. LIVRO OITAVO Começa a tratar do terceiro gênero de teologia, chamado natural. Aborda-se, neste livro, questão relativa aos deuses da teologia natural, a saber: Serve à consecução da vida feliz o culto a semelhantes deuses? Discute com os filósofos platônicos, que na filosofia levam a palma e são os mais próximos da verdade da fé cristã. Refuta Apuleio e alguns outros, que querem tributar culto aos demônios como a internúncios e intermediários entre os deuses e os homens. Consegue-o, pondo em relevo que também os demônios se encontram sujeitos aos vícios. Rechaça-o, ademais, porque os homens probos e prudentes repudiam e condenam as sacrílegas ficções dos poetas, os ludíbrios teatrais, os malefícios das artes mágicas e as velhacarias que produzem, coisas que, segundo se deixa entrever, são de seu agrado e prazer. Prova, em seguida, que por nenhuma razão podem os homens reconciliar-se com os deuses. CAPÍTULO I Questão sobre a teologia natural a discutir com os filósofos mais excelentes. Torna-se necessária, agora, atenção muito mais acendrada que a precisa para solução das questões precedentes e explicação dos livros. Não cumpre discutir com quaisquer homens a chamada teologia natural. É questão a tratar com os filósofos. (Não cumpre, porque não é fabulosa ou civil, ou seja, urbana ou teatral, das quais uma alardeia as velhacarias dos deuses e outra dá acolhida aos mais velhacos desejos das divindades e, portanto, não dos deuses, mas dos malignos demônios.) O nome "filósofo", traduzido ao português, significaria "amor à sabedoria" . Pois bem, se a sabedoria é Deus, por quem foram feitas todas as coisas, como demonstraram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro filósofo é aquele que ama Deus. Mas, como a realidade encerrada em tal nome não constitui patrimônio de todos quantos o trazem (não amam a verdadeira sabedoria todos quantos se chamam filósofos), torna-se preciso escolher, entre aqueles cujas sentenças e escritos pudemos conhecer, com quem tratar dignamente a referida questão. Não assumi o encargo de, nesta obra, refutar as inconsequentes opiniões de todos os filósofos, mas apenas as relativas à teologia. "Teologia" é a palavra grega e significa razão ou discurso sobre a divindade. E, mesmo entre essas opiniões, não as de todos, mas as do que, concordando em que a divindade existe e cuida das coisas humanas, pensam não ser suficiente para conseguir a vida feliz, o culto a um só Deus incomutável. Por isso, dizem, é preciso render culto a muitos deuses, criados e instituídos por Aquele uno. Tais filósofos, porque próximos da verdade, já transcendem o pensamento de Varrão. Varrão não pôde senão estender a teologia natural ao mundo ou à alma do mundo; estes, ao contrário, acima de toda natureza da alma, admitem Deus, que não apenas fez o mundo visível, com frequência denominado terra e céu, mas também, em absoluto, toda alma. Fez também a alma racional e intelectual, como a alma humana, bem-aventurada por participar-lhe da sua luz incomutável e incorpórea. Quem quer que o leia, por mais distraidamente que o faça, não ignora que tais filósofos se chamam platônicos, nome derivado de Platão, seu mestre. De Platão, pois, aduzirei, de modo resumido, o que me parecer necessário à presente questão, não sem antes lembrar os que o precederam no tempo e no mesmo gênero de letras. CAPÍTULO II Duas escolas filosóficas, a itálica e a jônica. Seus autores. A literatura grega, cuja língua é célebre entre todos os idiomas pagãos, apresenta duas escolas filosóficas; a itálica, cujo nome se deve à parte da Itália chamada outrora Magna Grécia, e a jônica, nascida nas regiões ainda hoje chamadas Grécia. A escola itálica tem por autor Pitágoras de Samos, que, segundo dizem, criou a palavra "filosofia". Antes eram chamados sábios os que de certo modo pareciam avantajar-se aos demais em superioridade de vida. Perguntaram-lhe, certa vez, que profissão tinha. Respondeu ser filósofo, isto é, afeiçoado à sabedoria ou seu amigo, visto parecer-lhe muito arrogante proclamar-se sábio. O chefe da escola jônica foi Tales de Mileto, um dos sete chamados sábios. Os outros seis distinguiam-se no modo de vida e em certas práticas acomodadas ao bem viver. Tales salientou-se como esquadrinhador da natureza das coisas e autor de escritos que lhe perpetuaram a doutrina. Tanto assim, que deixou sucessores. Tornou-se admirável em especial porque, compreendidos os números da astrologia, pôde predizer eclipses do Sol e da Lua. Pensou ser a água o princípio das coisas; dela deduziu a existência de todos os elementos do mundo, do próprio mundo e de quanto dele se origina. Contudo, à obra que, considerando o mundo, vemos de tal maneira maravilhosa, não antepôs qualquer mente divina. Sucedeu-lhe Anaximandro, seu discípulo, que mudou de opinião a respeito da natureza das coisas. Foi de parecer que as coisas não nascem de uma coisa apenas, como Tales dizia da água, mas de seus próprios princípios. Acreditou serem infinitos os princípios das coisas singulares e darem origem a inumeráveis mundos. Julgou, ademais, que tudo quanto deles se origina e os próprios mundos, ora se dissolvem, ora tornam a nascer, conforme o tempo de permanência de cada um deles. Enfim, nas revoluções do universo, não atribui parte alguma à inteligência divina. Deixou por discípulo e sucessor Anaxímenes, que ao ar infinito assinou todas as causas das coisas. Não negou os deuses, nem os silenciou, mas acreditou não serem criadores do ar, e sim procedentes do ar. Anaxágoras, seu discípulo, sentiu ser a mente divina a criadora de tudo quanto vemos. Disse, ademais, que da matéria infinita, constante de partículas semelhantes umas às outras, se fazem todos os gêneros singulares de coisas, segundo módulos e espécies próprias, mas sempre por obra da mente divina. Diógenes, outro discípulo de Anaxímenes, afirmou ser o ar a matéria das coisas, de que se formam todas, mas partícipe da razão divina, sem a qual nada se pode fazer dele. A Anaxágoras sucedeu o discípulo Arquelau; professou idêntica opinião sobre as partículas elementares das coisas, tanto que chegou a dizê-las dotadas de inteligência. Esta, unindo e separando os corpos eternos, isto é, as referidas partículas, produz todos os fenômenos sensíveis. Teve por discípulo Sócrates, mestre de Platão, por causa de quem me referi aos demais. CAPÍTULO III A doutrina de Sócrates. Repara em haver sido Sócrates o primeiro a dar novo rumo à filosofia toda, fazendo-a voltar-se para os costumes, pois antes dele todos puseram o máximo empenho em esquadrinhar de preferência as coisas físicas, quer dizer, as naturais. Não me parece possível, entretanto, resolver de uma penada se Sócrates, para fazê-la, aplicou o espírito na busca de algo claro e certo, já enfastiado da obscuridade e incerteza das coisas. Isso fora necessário para a vida feliz, motivo único a que parecem dirigir-se as vigílias, o trabalho e a investigação de todos os filósofos. Trata-se, segundo penso, de problema impossível de resolver. Ou será que, de acordo com certas benévolas conjeturas, não queria, em absoluto, permitir que almas profanadas por todas às paixões da terra aspirassem às coisas divinas, ao conhecimento das causas primeiras, dependentes, segundo cria, da soberana vontade do único e verdadeiro Deus? Por isso pensava que apenas a mente purificada poderia compreendê-las. Eis a razão que o levava a julgar ser necessário instar-se na purificação da vida, mediante os bons costumes, para que a alma, aliviada das deprimentes libidos, ascendesse com força natural às coisas eternas e, com pureza de inteligência, contemplasse a natureza da luz incorpórea e incomutável, em que vivem estavelmente as causas de todas as naturezas criadas. Consta, porém, que com admirável agilidade dialética e cortesia sutil ridicularizou e confundiu a estultícia dos ignorantes que opinavam saber algo mesmo das questões morais, fito em que parecia pôr o intento, ora confessando-se ignorante, ora dissimulando a própria ciência. Daí se originou que, concitadas vivas inimizades e condenado por causa de caluniosa acusação, deram-lhe a beber a própria morte. Mas depois a mesma cidade dos atenienses que o condenara publicamente o chorou publicamente e a indignação do povo se desencadeou contra os dois acusadores. Um deles pereceu às mãos do populacho; furtou-se o outro a pena semelhante, desterrando-se voluntariamente e para sempre. Com vida e morte de tal maneira insignes e famosas, Sócrates deixou atrás de si muitos seguidores de sua filosofia, cujo afã se dirigiu, à porfia, ao debate das questões morais, em que se trata do soberano bem capaz de tornar feliz o homem. Do que Sócrates, ao ventilar tudo, afirma e nega em discussões, sem jamais exprimir a própria opinião, cada um deles tomou o que lhe aprouve e colocou o bem final onde quis. Bem final é o termo em que se encontra a felicidade. Quanto a essa questão, porém, os socráticos dividiram-se. Coisa inaudita e difícil de crer, em se tratando de discípulos de um só mestre, alguns disseram, como Aristipo, consistir na volúpia o supremo bem, outros, como Antístenes, na virtude. Assim, uns e outros opinaram de uma e outra maneira. Enumerá-los todos seria prolixo. CAPÍTULO IV Platão, principal discípulo de Sócrates, dividiu toda a filosofia em três partes. Dos discípulos de Sócrates, não, por certo, sem merecê-lo, Platão destacou-se pelas vivas claridades da glória mais legítima e ofuscou os demais. Ateniense e de família ilustre, graças ao maravilhoso engenho, avantajava-se muito aos condiscípulos e pensava que nem sua inteligência, nem a filosofia socrática bastavam para o aperfeiçoamento da filosofia. Por isso viajou por quantas partes pôde, aonde o levassem a nobreza e a fama de aprender alguma ciência. Assim, aprendeu no Egito quanto ali sabiam e ensinavam. Em seguida, passou às regiões da Itália, onde se celebrava a fama dos pitagóricos, e compreendeu com extrema facilidade quanto florescia então na filosofia itálica, depois de ouvidos os mais eminentes mestres. E porque amava com simpatia o mestre Sócrates, fazendo-o interlocutor em quase todos os seus Diálogos, temperou com sua destreza dialética e suas discussões a propósito de moral o que aprendera de outros ou com o poderoso intelecto captara. Como o estudo da sabedoria consiste na ação e na contemplação, uma parte pode chamar-se ativa e outra, contemplativa. A ativa tem em mira organizar a vida, isto é, estabelecer costumes; a contemplativa pretende considerar as causas da natureza e a verdade pura. Conta-se que Sócrates se salientou na ativa e Pitágoras se deu mais à contemplativa, mas deu-se com todas as forças da própria inteligência. Gaba-se, por isso, o aperfeiçoamento da filosofia feito por Platão, ao reunir as duas partes e dividi-la em três. Uma é a moral e diz respeito principalmente à ação; outra, a natural, compete à contemplação; a terceira, a racional, distingue o verdadeiro do falso. Embora necessária a ambas, ou seja, à ação e à contemplação, esta de modo primordial postula o conhecimento da verdade. Portanto, a divisão tripartida não se opõe à outra distinção, que se reduz a declarar consistir na ação e na contemplação todo o estudo da sabedoria. Que pensa Platão das três partes e de cada uma delas, quer dizer, onde coloca, de ciência ou crença, o fim de todas as ações, a causa de todos os seres, a luz de todas as razões? Seria, penso, demasiado longo explicá-lo em palavras e creio não dever afirmar-se com temeridade. Como procura seguir o célebre método de Sócrates, seu mestre e principal interlocutor dos Diálogos, de dissimular o conhecimento ou a opinião e lhe agrada semelhante costume, sucede ser difícil conhecer o parecer de Platão a respeito de problemas tão graves. Todavia, do que se lê nele, quer do que disse como próprio, quer do que escreve e narra como dito por outros, mas parece refletir-lhe o pensamento, convém referirmos algumas coisas e inseri-las nesta obra. E isso, quer se trate de passagens favoráveis à verdadeira religião, abraçada e defendida por nossa fé, quer de trechos que a contrariem no tocante à questão da pluralidade dos deuses ou da unidade divina, em relação à vida feliz de verdade em que a morte deverá introduzir-nos. E, com efeito, os que têm a glória de haver compreendido com maior profundidade e professado com maior brilho a doutrina de Platão, verdadeiro príncipe da filosofia pagã, talvez pensem que em Deus se encontram a causa da existência, a razão da inteligência e a ordem das ações. Das três coisas entende-se que a primeira pertence à parte natural, outra, à racional, a terceira, à moral. Se, por conseguinte, o homem foi criado para atingir, pela excelência do ser, o Ser por excelência, quer dizer, o único Deus verdadeiro, soberanamente bom, sem o qual natureza alguma subsiste, nenhuma ciência instrui e nenhum costume convém, busquem-no onde tudo é segurança, contemplem-no onde tudo é certeza, amem-no onde tudo é justiça. CAPÍTULO V Sobre teologia a gente deve discutir principalmente com os platônicos, cujo pensamento deve antepor-se aos dogmas de todos os filósofos. Se Platão disse ser sábio quem imita, conhece e ama tal Deus, de cuja participação depende ser feliz, que necessidade há de discutir, as outras doutrinas? Nenhuma se aproxima da nossa mais do que a doutrina de Platão. Cedam-lhe o passo não apenas a teologia fabulosa, que com as perversidades dos deuses recreia a alma dos ímpios, mas também a teologia civil, em que os impuros demônios seduzem, sob o nome de deuses, os povos entregues aos gozos terrenos. Nela quiseram considerar os erros humanos como honras divinas que lhes fossem devidas, instigando o imundo zelo de seus adoradores ao culto de seus crimes, espetáculo em que a multidão dos espetáculos é para eles espetáculo mais agradável ainda. O que os templos podem ter de honesto desaparece ante a afinidade com as infâmias do teatro, e a infâmia do teatro se torna legítima, comparada com as abominações dos templos. Ceda-lho também tudo quanto Varrão, interpretando os mistérios, disse pertinente ao céu e à terra, às sementes e às ações dos seres mortais, porque semelhantes ritos não as simbolizam, como o intérprete se esforça por insinuar. Eis a razão de a verdade não seguir quem se afana em encontrá-la. E, caso existissem, a alma racional não deveria render-lhes culto em lugar de tributá-lo a Deus, porque, de acordo com a ordem natural, se encontra acima dessas coisas, nem deveria preferir a si, como divindades, as criaturas a quem o verdadeiro Deus a prefere. Ceda-lho tudo quanto concerne a tais mistérios e Numa Pompílio cuidou de esconder, sepultando-o consigo, e, exumado pela charrua, o Senado mandou queimar. Para não fixar em Numa o rigor de nossas suspeitas, não esqueçamos a carta em que Alexandre da Macedônia transmitia à mãe os segredos que lhe revelara certo Leão, grão-sacerdote dos mistérios egípcios, a saber, não haverem sido homens apenas os deuses inferiores, como Pico e Fauno, Enéias e Rômulo, Hércules e Esculápio, Baco, filho de Semeie, os irmãos Tindáridas e alguns outros mortais considerados deuses, mas também os deuses dos antepassados, que Cícero, calando-lhas o nome, parece insinuar nas Tusculanas: Júpiter, Juno, Saturno, Vulcano, Vesta, e muitos outros que Varrão se empenha em transferir às partes ou elementos do mundo. Temeroso dos mistérios revelados, adverte Alexandre que, depois de mostrá-la à mãe, mande queimar a carta. Não cedam apenas aos filósofos platônicos, que disseram ser o Deus verdadeiro o autor dos seres, o senhor da verdade e o dispensador da felicidade, todas as coisas contidas nas duas teologias, isto é, na fabulosa e na civil, mas também cedam a homens tão grandes e tão exímios conhecedores do grande Deus os outros filósofos que, de inteligência entregue ao corpo, pensaram serem corporais os princípios da natureza. Assim, Tales os recolocou na água; Anaxímenes, no ar; os estoicos, no fogo; os epicuristas, nos átomos, isto é, em certos corpúsculos infinitamente pequenos que não podem dividir-se nem sentir-se, e outros inúmeros filósofos cuja enumeração seria inútil e longa. Uns e outros disseram que a causa e o princípio dos seres são os corpos, quer simples, quer compostos, quer careçam de vida, quer a tenham, mas sempre corpos. Alguns deles, por exemplo, os epicuristas, acreditaram poderem as coisas vivas originar-se das não vivas. Outros atribuem exclusivamente a seres vivos, mas corpóreos, corpos geradores de corpos, o poder de produzir coisa vivas ou sem vida. Os estoicos pensaram que o fogo, ou seja, um corpo dos quatro elementos de que se compõe o mundo visível, tem vida, é sábio, criador do próprio mundo e de tudo quanto nele existe e, ademais, que o fogo é deus. Esses e os demais filósofos que se parecem com eles, puderam pensar apenas o que seus corações, sujeitos aos sentidos da carne, lhes pintaram. Em si mesmos tinham o que não viam e em si imaginavam o que haviam visto fora, embora não vissem, mas somente imaginassem. Isso, em presença de tal imaginação, já não é corpo, mas semelhança de corpo, e o que interiormente percebe a semelhança de corpo não é corpo nem imagem de corpo. O que interiormente julga da beleza ou da feiura da imagem, é, sem dúvida, superior ao objeto julgado. E a inteligência humana, essência da alma racional, com certeza incorpórea. Não é, pois, nem terra, nem água, nem ar, nem fogo, quatro corpos, por outro nome, quatro elementos, de que vemos constar o mundo corpóreo. Pois bem, se nosso espírito não é corpo, como é que Deus, criador do espírito, pode ser corpo? Cedam-no, por conseguinte, também esses aos platônicos. Cedam também aqueles que se envergonharam de dizer que Deus é corpo, embora pensassem serem da mesma natureza que Ele nossos espíritos. Não os impressionou a estranha mutabilidade da alma, que é impiedade atribuí-la à natureza de Deus. Mas dizem: A natureza da alma é de si mesma imutável; o corpo é que a torna mutável. Também poderiam haver dito: A carne é de si mesma invulnerável; o corpo que a fere é que a torna vulnerável. A verdade é que coisa alguma pode mudar o imutável. Portanto, o que algum corpo é capaz de mudar pode mudá-la alguma coisa e, por conseguinte, não pode chamar-se com propriedade incomutável. CAPÍTULO VI Parecer dos platônicos na parte da filosofia denominada física. Compreenderam os platônicos, a quem vemos, não imerecidamente, antepostos aos demais em glória e fama, que nenhum corpo é Deus. Por isso, transcenderam todos os corpos em busca de Deus. Compreenderam, além disso, que o mutável não é supremo Deus. Entenderam também que toda espécie, de qualquer modo mutável, graças à qual todo ser é o que é, seja qual for o modo e seja qual for a natureza, não pode proceder senão de Quem verdadeiramente é porque é incomutavelmente. De tal princípio deduziram que o corpo do universo inteiro, suas formas, suas qualidades, seu ordenado movimento e a disposição de seus elementos, do céu à terra e quantos corpos há neles, toda vida, quer a que sustenta e nutre, como a das árvores, quer a que, além disso, sente, como a das bestas, quer a que, por cima, entende, como a dos homens, quer a que não necessita do subsídio nutritivo, mas apenas é, sente e entende, como a dos anjos, não pode proceder senão de Quem simplesmente é. E isso porque para Ele não é uma coisa ser e outra viver, como se pudesse ser sem viver, nem uma viver e outra entender, como se pudesse viver sem entender, nem uma entender e outra ser feliz, como se pudesse entender e não ser feliz, e sim porque o que para Ele é viver, entender e ser feliz é para Ele ser. Por causa da imutabilidade e simplicidade entenderam que Ele fez todas as coisas e não pôde ser feito por ninguém. Consideraram que tudo quanto existe é corpo ou é vida, que é melhor ser vida que corpo e que a espécie do corpo é sensível e a da vida, inteligível. Por isso antepuseram a espécie inteligível à sensível. Chamamos sensíveis as coisas que podem ser sentidas pela vista e pelo tacto do corpo; inteligíveis, as que podem ser entendidas pela vista da inteligência. Não há beleza corporal, quer resida no estado exterior do corpo, como a figura, quer no movimento do corpo, como o canto, de que não julgue o espírito, que seria incapaz de fazê-la, se tal espécie nele não existisse mais perfeita, sem matéria, sem ruído, sem espaço de lugar ou de tempo. Contudo, se mesmo essa forma não fosse mutável, nenhum espírito, engenhoso ou tardo, culto ou inculto, treinado ou inábil, julgaria melhor que outro a espécie sensível. É, sem dúvida, mutável o que recebe mais e menos. Donde os homens sábios, engenhosos e treinados em semelhantes lides haverem coligido que em tais coisas não se encontra a espécie primeira, visto como lhe testemunham a mutabilidade. Vendo que os corpos e os espíritos existem com mais ou menos forma e, destituídos de toda forma, careceriam, em absoluto, de ser, perceberam dever existir algo em que se encontrasse a espécie primeira e incomutável e, portanto, incomparável. Acreditaram, com muitíssimo fundamento, encontrar-se ali o princípio dos seres, que não fora feito e pelo qual foram feitos todos os seres. Assim, o que é possível conhecer de Deus, naturalmente, os platônicos conheceram; Deus revelou-o, pois, desde a criação do mundo, os olhos da inteligência veem, no espelho das realidades visíveis, as perfeições invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua divindade. Quanto à parte que chamam física, quer dizer, natural, é o bastante. CAPÍTULO VII A quanto ascende a excelência dos platônicos na lógica, ou seja, na filosofia racional. No tocante à ciência sobre que versa a outra parte, por eles chamada lógica, quer dizer, racional, longe de nós o pensamento de aos platônicos comparar os que aos sentidos atribuem a percepção da verdade e pensam devam medir-se, por essa regra enganadora e falsa, todas as coisas que aprendemos. Assim os epicuristas. Não se lhes comparam tampouco os estoicos, que, apaixonados pela arte de discutir, que chamam dialética, a fazem provir dos sentidos do corpo. Daí deduziam a asserção de que o espírito concebe noções, chamadas ennóias, a saber, noções das coisas que explicam por definições. Assim se propaga e se torna conexa a razão total do aprender e do ensinar. Estranha concepção? Como podem conciliá-la com seu adágio: Somente o sábio é formoso? Com que sentidos veem tal beleza de corpo e com que olhos da carne contemplam os encantos e o brilho da sabedoria? Mas esses filósofos, tão verdadeiramente dignos de preferência aos demais, souberam distinguir entre o que o espírito descobre e o que o sentido apreende, sem que aos sentidos nada tirassem do que podem, nem lhes atribuíssem poder que não têm. Disseram existir certa luz das inteligências que ensina todas as coisas e é o próprio Deus, por quem todas foram feitas. CAPÍTULO VIII Também na filosofia moral os platônicos levam a palma. A última parte, a moral, chamada em grego ethiké, trata do bem supremo. Se lhe atribuímos tudo quanto fazemos, se o apetecemos por ele mesmo e não por outro e se o conseguimos, não necessitamos buscar outra coisa que nos faça felizes. Dá-se-lhe, ainda, o nome de fim precisamente porque o resto apetecemos por ele e a ele não apetecemos senão por ele mesmo. Esse beatífico bem uns disseram que ao homem lhe vem do corpo; outros, da alma; outros ainda, de ambos. Viam que o homem constava de corpo e de alma e, por isso, acreditavam poder um ou outro ou um e outro dar-lhe o bem final que deve ser objetivo de todas as suas ações e o cúmulo de todos os seus desejos. Donde se segue que aqueles que dizem dever-se acrescentar terceiro gênero de bens, chamados extrínsecos, como a honra, a glória, o dinheiro, etc., não o acrescentaram como final, quer dizer, como apetecível por ele mesmo, mas por outro. Tal gênero é bom para os bons e mau para os maus. Os que buscaram o bem do homem, quer na alma, quer no corpo, quer em ambos, acreditaram simplesmente cumprir exigi-lo do homem. Mas pedi-lo ao corpo é pedi-lo à pior parte do homem; pedi-lo ao espírito é pedi-lo à parte melhor; pedi-lo a ambos é pedi-lo ao homem todo. Mas, onde quer que o procurem, não o procuram fora do homem. Três ordens de pesquisa que deram origem, não apenas a três escolas filosóficas, mas a inúmeras correntes e opiniões. Tanto sobre o bem do corpo, como sobre o da alma, como sobre o de ambos, cada filósofo se permitiu a opinião que quis. Cedam todos aos filósofos que disseram não ser feliz o homem que goza do corpo nem o que goza da alma, mas o que goza de Deus. E dele goza não como a alma goza do corpo ou de si mesma ou como o amigo goza do amigo, mas como os olhos gozam da luz. Se houver necessidade de aduzir algumas semelhanças em apoio da comparação, mais tarde, se Deus quiser, tentarei fazê-lo. Basta, no momento, dizer que Platão estabeleceu que o fim do bem é viver de acordo com a virtude, o que pode conseguir apenas quem conhece e imita Deus, e que tal é a única fonte de sua felicidade. Eis por que não teme dizer que filosofar é amar a Deus, cuja natureza é incorpórea. Donde se depreende que o estudioso da sabedoria (o filósofo) será feliz precisamente quando começar a gozar de Deus, embora no momento não seja feliz o que goza do que ama. Muitos, amando o que não se deve amar, são miseráveis; e mais miseráveis ainda, quando dele gozam. Contudo, ninguém é feliz, se não goza do que ama. Isso, porque os mesmos que amam as coisas que se não deve amar, não se julgam felizes, amando-as, mas gozando-as. Não é feliz, por conseguinte, quem goza do que ama e ama o verdadeiro e soberano bem? Não é o cúmulo da miséria negá-lo? Ora, o verdadeiro e soberano bem é Deus mesmo, di-lo Platão. Por isso quer que o filósofo tenha amor a Deus, pois se a felicidade é o fim da filosofia, gozar de Deus, amar a Deus é ser feliz. CAPÍTULO IX A filosofia que mais se aproxima da verdade da fé cristã. Todos os filósofos, pois, que a respeito do verdadeiro e supremo Deus pensaram ser o autor da Criação, a Luz das inteligências, o fim das ações, que dele nos vêm o princípio da natureza, a verdade da doutrina e a felicidade da vida, quer sejam justamente chamados platônicos, quer de outras escolas recebam outro nome, quer tais opiniões tenham sido professadas apenas pelos chefes da escola jônica, como Platão e os que o compreenderam bem, quer Pitágoras, seus discípulos e talvez outros as tenham difundido nas escolas italianas, quer essas verdades tenham sido conhecidas e ensinadas pelos sábios ou filósofos das nações estrangeiras, além do Atlas, na Líbia, no Egito, na Índia, na Pérsia, na Caldeia, na Cítia, nas Gálias e na Espanha, todos esses filósofos, repetimos, preferimo-los a todos os outros e confessamos que nos tocam de perto. CAPÍTULO X Excelência do cristão piedoso sobre a ciência filosófica. 1. Embora o cristão, apenas versado nas letras eclesiásticas, talvez desconheça o nome dos platônicos e não saiba se na língua grega existiram duas escolas filosóficas, a jônica e a itálica, não é de tal modo leigo nas coisas humanas que não saiba professarem os filósofos o estudo da sabedoria ou a sabedoria mesma. Guarda-se, contudo, daqueles que filosofam segundo os elementos do mundo, não segundo Deus, por quem o mundo foi feito. Já o preceito apostólico o lembra ao cristão, que ouve com fidelidade o que diz: Guardai-vos de que ninguém vos engane com filosofia e vã sedução, segundo os elementos do mundo. Para ninguém pensar serem todos iguais, ouvi o mesmo Apóstolo, que diz de alguns deles: Visto como o que é possível conhecer de Deus naturalmente lhes é manifesto, porque Deus lho manifestou. Porque, desde a criação do mundo, os olhos da inteligência veem, no espelho das realidades visíveis, as perfeições invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua divindade. E à passagem em que, depois de falar aos atenienses e dizer-lhes sobre Deus coisas maravilhosas, que apenas uns poucos podem entender, a saber, que nele vivemos, nos movemos e somos, acrescentou: Como disseram também alguns dos vossos. Na mesma passagem em que se diz que pelas coisas criadas Deus lhes manifestou as coisas invisíveis dele, para que as vissem com o entendimento, nela também se diz não haverem tributado culto a Deus justamente porque as honras divinas, devidas apenas ao Uno, as renderam também a outras coisas inconvenientes: Pois, conhecendo a Deus, não o glorificaram nem lhe deram graças como a Deus, antes se desvaneceram em seus pensamentos e se lhes obscureceu o coração. Tendo-se por sábios, tornaram-se néscios e trocaram a glória do Deus incorruptível por semelhança de figura de homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de serpentes. Dá margem, em tudo isso, a que se entendam tanto os romanos como os gregos e os egípcios, que se gloriaram do nome da sabedoria. Mais tarde o discutiremos com eles. Em tudo quanto concordam conosco a respeito do Deus uno, autor do universo, em que não apenas é incorpóreo sobre todos os corpos, mas também incorruptível sobre todas as almas, que é nosso princípio, nossa luz e nosso bem, nisso os antepomos aos demais. 2. E, embora o cristão leigo nas letras profanas não empregue, discutindo, terminologia que não aprendeu e não chame natural, como os latinos, ou física, como os gregos, à parte em que se estuda a observação da natureza, racional ou lógica àquela em que se busca o modo de conhecer a verdade e moral ou ética à que trata dos costumes e dos fins dos bens que devem ser apetecidos e dos males que devem ser evitados, nem por isso desconhece que desse Deus uno, verdadeiro e ótimo, procedem tanto a natureza, graças à qual somos imagem sua, como a ciência, pela qual o conhecemos e nos conhecemos, como a graça, mediante a qual, unindo-nos a Ele, somos felizes. Eis a causa que nos leva a preferi-los aos demais. Precisamente porque os demais filósofos consumiram a inteligência e o afã em buscar as causas dos seres e inquirir as regras da ciência e da vida, enquanto esses encontraram o Deus conhecido, em quem se encontra a causa do universo criado, a luz da verdade, que cumpre perceber, e a fonte da felicidade, de que nos toca aproximar os lábios. Sejam os platônicos, sejam quaisquer outros filósofos de outra nação qualquer, os que assim pensam de Deus sentem como nós. Mas agrada-nos mais dilucidar com os platônicos semelhante questão justamente porque suas letras são mais conhecidas. Com efeito, os gregos, cuja língua leva a palma entre os gentios, encarregam-se de incensá-los e torná-los populares. Levados por sua excelência ou por sua glória, os latinos preferiram-na a qualquer outra e, traduzindo-lhes as obras para nosso idioma, enobreceram-nas e aumentaram-lhes ainda mais a popularidade. CAPÍTULO XI De que meios pôde servir-se Pia tão para adquirir visão próxima da ciência cristã? Alguns que conosco se encontram em comunhão da graça de Cristo se maravilham, quando ouvem ou leem haver Platão sentido de Deus coisas que veem concordarem em muito com a verdade de nossa religião. Baseados nisso, alguns pensaram que, em viagem pelo Egito, ouviu o profeta Jeremias ou em suas viagens leu as Escrituras proféticas. Para falar verdade, também inseri semelhante opinião em algumas de minhas obras. Mas, controlada com cuidado a cronologia contida na História Crônica, cheguei à conclusão de haverem mediado cem anos, mais ou menos, entre o tempo em que Jeremias profetizou e o nascimento de Platão. Este viveu oitenta e um anos e desde sua morte até o tempo em que Ptolomeu, rei do Egito, pediu à Judéia as Escrituras proféticas dos hebreus e, por intermédio de setenta hebreus, versados também na língua grega, cuidou de traduzi-las e conservá-las, passaram quase outros sessenta. Naquela viagem, portanto, Platão nem poderia ter visto Jeremias, morto havia muito, nem ler as Escrituras que ainda não haviam sido traduzidas ao grego, língua por ele sabida. Não excluímos a possibilidade de que, como homem muito dado ao estudo, assim como aprendeu as letras egípcias por meio de intérprete, aprendera essas, não para traduzi-las por escrito, coisa que, segundo contam, Ptolomeu conseguiu à custa de enorme paga, susceptível de assustar até mesmo o poder real, mas para aprender quanto lhe fora possível entender, conversando com intérpretes judeus a respeito de seu conteúdo. Para confirmá-la, é possível citar alguns dados. Assim, o livro do Genesis começa: No princípio Deus fez o céu e a terra. A terra era invisível e informe, as trevas cobriam a superfície do abismo e o Espírito de Deus era levado sobre as águas. No Timeu, livro escrito por Platão sobre a constituição do mundo, lê-se que Deus, na obra da Criação, juntou primeiro a terra e o fogo. E coisa evidente que ao fogo atribui o lugar do céu. Quer dizer que tal assertiva tem certa semelhança com aquela em que se disse: No princípio Deus fez o céu e a terra. A seguir diz que os dois meios que, interpostos, dão margem a que se unam os dois extremos, são a água e o ar. Daí o acreditar-se haver entendido assim o que está escrito: O Espírito de Deus era levado sobre a água, dando pouca atenção ao sentido que a Escritura costuma dar a "Espírito de Deus", porque também o ar se chama por outro nome espírito. É possível parecer que opino estavam mencionados na referida passagem os quatro elementos. Ademais, nada existe mais claro nas Sagradas Letras que o que Platão diz, a saber, que o que ama Deus é o filósofo. E máxime aquilo que a mim quase me induz a dar assentimento a que Platão não fosse alheio a esses livros. Eis a que me refiro: Quando se anunciou ao santo Moisés, por meio de anjo, as palavras de Deus, perguntou ao mensageiro divino qual o nome de quem o mandava libertar do Egito o povo hebreu e obteve a seguinte resposta: Eu sou o que sou; e dirás aos filhos de Israel: O que é me enviou a vós. Como se, em comparação com Aquele que verdadeiramente é, por ser incomutável, os seres criados mutáveis não fossem. Platão reteve-o com firmeza e encareceu-o com grande esmero. E não sei se em alguma obra anterior a Platão seja possível ler algo semelhante, senão no livro em que está escrito: Eu sou o que sou; e dirás aos filhos de Israel: O que é me enviou a vós. CAPÍTULO XII Apesar de pensarem com acerto sobre o Deus uno e verdadeiro, os platônicos supuseram que se deviam sacrifícios a muitos deuses. Seja qual for o lugar onde o aprendeu, quer nos livros anteriores a ele, quer, melhor ainda, como diz o Apóstolo, porque o que é possível conhecer de Deus, naturalmente, lhes é manifesto, porque Deus lho manifestou, porque, desde a criação do mundo, os olhos da inteligência veem, no espelho das realidades visíveis, as perfeições invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua divindade, acho haver exposto suficientemente que não sem razão escolhi os filósofos platônicos para ventilar esse ponto de que me encarreguei. Trata-se da teologia natural e pergunta-se se convém oferecer sacrifícios, pela felicidade que seguirá à morte, a um só Deus ou a muitos. E escolhi-os precisamente porque quanto melhor pensaram do Deus urio, Criador do céu e da terra, tanto mais gloriosos e ilustres são considerados que os restantes. O julgamento dos pósteros os antepôs aos outros. Prova-o o fato de, apesar de Aristóteles, homem de excelente engenho e inferior em estilo a Platão, de quem foi discípulo, mas superior a muitos, haver fundado a escola ou seita peripatética, assim chamada por costumarem discutir enquanto passeavam e, mesmo em vida do mestre, reunir em torno de si muitos discípulos, atraídos por sua luminosa fama, e apesar de, após a morte de Platão, seu sobrinho Espeusipo e Xenócrates, seu discípulo amado, que lhe sucederam na escola chamada acadêmica, motivo por que os sucessores se chamaram acadêmicos, os mais modernos e afamados filósofos, a quem aprouve seguir a doutrina de Platão, não quiseram chamar-se peripatéticos ou acadêmicos, mas platônicos, Entre estes gozam de grande renome os gregos Plotino, Jâmblico e Porfírio e, em uma e outra língua, ou seja, na grega e na latina, insigne platônico foi Apuleio, o Africano. Mas todos esses outros consectários e o próprio Platão foram de parecer que se deviam sacrifícios a muitos deuses. CAPÍTULO XIII Pensamento de Platão acerca dos deuses. Define-os como bons amigos das virtudes. Embora divirjam de nós em muitas questões, questões de transcendência, porque não é coisa de pouca monta e agora se questiona esse ponto, pergunto-lhes: A que deuses pensam se deva tributar culto? Aos bons? Aos maus? A uns e outros? Pensamos como Platão, que diz serem bons todos os deuses e não haver, em absoluto, nenhum deus mau. E, pois, lógico, entender que se deve render culto aos deuses bons, porque só então se presta aos deuses, porquanto, se não são bons, não são deuses. Se é assim (pois que outra coisa convém crer a respeito dos deuses?), desvanecese a opinião que leva alguns a pensarem cumprir aplacar com sacrifícios os deuses maus, para que não nos prejudiquem, e invocar os bons para que nos ajudem. Não há deuses maus. Por conseguinte, a honra que se deve pelos sacrifícios cumpre tributá-la somente aos bons. De que espécie são os deuses que ordenam os jogos cênicos e exigem que sejam mesclados com as coisas divinas e os exibam em sua honra? Sua violência não é indício de sua nulidade, mas essa afeição o é de sua maldade. Conhecido é o pensamento de Platão acerca dos jogos cênicos. Pensa que devem ser expulsos de sua cidade os poetas que compõem versos tão indignos da majestade e da bondade dos deuses. Que deuses serão esses que sobre os jogos cênicos contendem com o próprio Platão? Ele não tolera a infamação dos deuses com falsas velhacarias, mas os deuses mandam celebrar tais perversidades em sua honra. Na realidade, ao ordenarem a instauração dos jogos, ao pedirem coisas torpes, praticaram coisas más, pois privaram Tito Latínio do filho, lhe enviaram enfermidade, porque se recusou a cumprir-lhes a ordem, e lhe retiraram a enfermidade, depois de havê-la cumprido. E Platão pensa que, apesar de tão perversos, não devem ser temidos; mantendo, porém, inquebrantável o vigor da decisão que tomara, de Estado sabiamente constituído proscreve as sacrílegas futilezas dos poetas, em que se comprazem os deuses, cúmplices de tanta infâmia. Labeão, como já escrevi no Livro Segundo, coloca Platão entre os semideuses. Labeão pretende que, para aplacar as divindades más, se tornam necessários sacrifícios sangrentos, solenidades terríveis, e que as boas querem jogos e ritos próprios a despertar alegria. Por que o semideus Platão se atreve com tanta insistência a privar de tais deleites não apenas os semideuses mas também os deuses e, por cima, os bons? Porque os considera infames! Os próprios deuses encarregam-se de refutar o pensamento de Labeão, porque no que aconteceu com Latínio se mostraram não apenas lascivos e brincalhões, mas também terríveis e cruéis. Que os platônicos nos expliquem o caso, pois, segundo a opinião do chefe da escola, pensam que todos os deuses são honestos, bons, companheiros dos sábios nas virtudes e consideram impiedade sentir de outro modo a respeito de qualquer deles. Nós temos explicação, dizem. Por conseguinte, prestemos ouvidos ao que vão dizer. CAPÍTULO XIV As almas racionais são de três gêneros: celestes nos deuses, aéreas nos demônios e terrestres nos homens. Opinião dos platônicos. 1. Os animais, nos quais existe alma racional, dizem, dividem-se em três classes: deuses, homens e demônios, Os deuses ocupam a região mais elevada; os homens, a mais humilde; os demônios, a do meio. Com efeito, a mansão dos deuses é o céu; a dos homens, a terra; a dos demônios, o ar. Como é diferente a dignidade dos lugares, assim o é a das naturezas. Por isso, os deuses são melhores que os homens e os demônios; os homens são inferiores aos deuses e aos demônios. Segundo a ordem de elementos, assim a diferença de méritos. Estando na região intermediária, os demônios devem pospor-se aos deuses, a quem são inferiores em lugar, e antepor-se aos homens, acima dos quais moram. Tem de comum com os deuses a imortalidade dos corpos e com os homens as paixões da alma. Não é, pois, maravilha alguma, acrescentam os platônicos, se comprazam nas obscenidades dos jogos e nas ficções dos poetas, posto serem presa dos afetos humanos, inteiramente desconhecidos e estranhos aos deuses. Torna-se evidente que, censurando, proscrevendo as fábulas poéticas, não é aos deuses, todos bons e sublimes, mas aos demônios que Platão proíbe a voluptuosidade dos jogos cênicos. 2. Tal a opinião dos platônicos, desenvolvida, em particular, por Apuleio de Madaura, que a respeito do assunto deixou a obra intitulada Do Deus de Sócrates, em que discute e explica a ordem de divindades a que pertencia o espírito familiar do filósofo, amigo benévolo que, segundo corre a fama, o afastava habitualmente de toda ação que não devesse ter bom êxito. Diz bem claro e afirma com grande profusão que não se tratava de deus, mas de demônio, analisando com cuidado a opinião de Platão sobre a sublimidade dos deuses, a humildade dos homens e a medianidade dos demônios. Se é assim, como se atreveu Platão a privar, senão os deuses, a quem eximiu de todo contágio humano, pelo menos os demônios, dos prazeres da cena, desterrando da cidade os poetas, não fora por haver percebido que o espírito humano, embora agrilhoado a membros de morte, repudia as ordens dos impuros demônios, para seguir o resplendor da honestidade, e lhes detesta a imundícia? Se Platão reprovou e proibiu, por sentimento de honra, tais obscenidades, poderiam os demônios, sem infâmia, pedi-las e prescrevê-las? Logo, ou engana-se Apuleio e o deus que Sócrates teve por amigo não pertencia a tal classe de espíritos, ou contradiz-se Platão, quer honrando os demônios, quer de Estado em que reinam os bons costumes banindo-lhes os prazeres, ou Sócrates não deve ser felicitado por causa da familiaridade com o referido demônio. O próprio Apuleio envergonhou-se tanto de semelhante amizade, que dá o título de Do Deus de Sócrates à laboriosa e longa dissertação a respeito da diferença entre deuses e demônios, a que devia dar o nome de Do Demônio de Sócrates, não o de Do Deus de Sócrates. A utilizá-la n9 título preferiu empregar no corpo da obra a referida expressão. E que, a partir do momento em que a salutar doutrina iluminou as coisas humanas, têm todos ou quase todos tanto horror ao nome dos demônios, que quem quer que, antes de haver lido a obra de Apuleio, em que se enaltece a dignidade dos demônios, lesse em qualquer livro o título Do Demônio de Sócrates não julgaria em perfeito juízo o autor. Que encontrou Apuleio de louvável nos demônios, senão a sutileza e vigor do corpo e a sublimidade do lugar em que moram? Ao falar dos costumes de todos os demônios em geral, longe de dizer bem, disse muito mal. Finalmente, depois da leitura do livro, ninguém se espanta de haverem exigido a consagração das infâmias do teatro, de, querendo passar por deuses, se comprazerem nos crimes dos deuses e de, na obscena solenidade, que excita, e na torpe crueldade, que assombra, estarem em perfeita harmonia com as próprias paixões. CAPÍTULO XV Os demônios não são superiores aos homens, quer por terem corpo aéreo, quer por habitarem regiões mais elevadas. 1. Longe, pois, do espírito verdadeiramente religioso e submisso ao verdadeiro Deus imaginar-se inferior aos demônios, por terem corpo melhor. Fora assim e teria de pospor-se a muitos outros animais que se nos avantajam na viveza dos sentidos, em movimento mais leve e fácil, em força muscular e na robusta firmeza do corpo. Que homem igualará, na vista, às águias e aos abutres? Quem, no olfato, aos cães? Quem, na velocidade, às lebres, aos cervos e a todas as aves? Quem, na força, aos leões e aos elefantes? Quem, na longevidade, às serpentes, que, ao mudarem o couro, dizem que depõem a velhice e tornam à juventude? Mas, assim como, pelo entendimento e pela razão, somos superiores a todos os animais, assim também, vivendo honestamente e bem, temos de ser melhores que os demônios. Por isso a Providência divina deu aos animais, a que somos, sem dúvida, superiores, certas vantagens corporais ensinando-nos, assim, a cultivar, de preferência ao corpo, a parte de nós mesmos que nos torna superiores aos animais e a desprezar, pela perfeição moral que nos torna superiores aos demônios, a perfeição corporal que os demônios possuem. Não devem também nossos corpos receber a imortalidade, não a imortalidade acompanhada da eternidade dos suplícios, mas a imortalidade precedida pela pureza da alma? 2. É ridículo, todavia, a gente inquietar-se tanto pela sublimidade do lugar, porque os demônios habitam no ar e o homem na terra, que pensemos serem superiores a nós. Nesse sentido, todos os pássaros se anteporiam a nós. Mas os pássaros, quando se cansam de voar, voltam à terra, quer para alimentar-se, quer para descansar, necessidades de que os demônios se encontram isentos. Acaso lhes agrada que os pássaros se nos avantajem a nós e os demônios aos pássaros? Se é disparate imaginá-lo, não temos razão para pensar que, porque habitam elemento superior, os demônios sejam dignos e lhes devamos submeter o afeto da religião. Como pôde suceder que as aves aéreas não apenas não fossem preferidas a nós, terrestres, mas também nos ficassem sujeitas por causa da dignidade da alma racional existente em nós, assim se tornou possível que os demônios, embora mais aéreos, não sejam melhores que nós, terrestres, justamente por ser o ar superior à terra, mas porque os homens devem ser preferidos aos demônios exatamente por sua desesperação jamais poder comparar-se com a esperança dos homens piedosos. A própria ordem e harmonia que Platão estabelece nos quatro elementos, inserindo entre os dois extremos (a atividade do fogo e a inércia da terra) os dois meios (o ar e a água), para que, quanto o ar fica acima da água e o fogo acima do ar, tanto fique a água acima da terra, ensina-nos, na apreciação moral dos seres vivos, a não seguir a hierarquia dos elementos. O próprio Apuleio, como os demais platônicos, antepõe o homem, animal terrestre, aos animais aquáticos, apesar de Platão preferir a água à terra. Evidentemente, quando se trata de julgar o valor dos seres animados, convém a gente não apoiar-se na escala graduada dos corpos, pois alma superior pode habitar corpo inferior e corpo superior pode ser habitado por alma inferior. CAPÍTULO XVI Pensamento do platônico Apuleio sobre os costumes e atividades dos demônios. Ao falar dos costumes dos demônios, o citado platônico diz que eles são agitados por todas as tempestades das paixões humanas, irritados pelas mesmas injúrias e aplacados pelas mesmas homenagens e oferendas. Diz, ademais, que as mesmas honras os deliciam, a variedade de ritos religiosos os deleita e a menor omissão nas cerimônias do culto lhes excita o furor. Acrescenta, entre outras coisas, pertencerem-lhes as adivinhações dos áugures, dos arúspices, dos poetas e dos sonhos; atribui-lhes, ainda, os prodígios dos magos. Define-os brevemente nos seguintes termos: Os demônios são, em gênero, animais; em ânimo, passivos; em mente, racionais; em corpo, aéreos; em tempo, eternos. Das cinco coisas, as três primeiras são comuns a eles e a nós; a quarta é própria deles; a quinta, comum a eles e aos deuses. Noto, porém, que das três primeiras, comuns a eles e a nós, têm duas em comum também com os deuses. Os deuses são animais, segundo Apuleio, que, ao distribuir a cada um deles os respectivos elementos, nos colocou entre os animais terrestres, com os outros que vivem e sentem na terra; entre os aquáticos, os peixes e outros que nadam; entre os aéreos, os demônios; entre os etéreos, os deuses. Portanto, o pertencerem os demônios ao gênero dos animais não é comum apenas entre eles e os homens, mas também com os deuses e os brutos. Ter alma racional é comum aos demônios, aos deuses e aos homens. Mas a eternidade não a partilham senão com os deuses; as paixões, senão com os homens; é-lhas peculiar o corpo sutil. Por conseguinte, para eles não é grande vantagem pertencer ao gênero animal, a que também os brutos pertencem. A razão não os eleva acima de nós, pois também somos racionais. Quanto à eternidade, é porventura algum bem, desprovida de felicidade? Mais vale felicidade no tempo que eternidade infeliz. Quanto às paixões da alma, é título de superioridade? Também somos apaixonados, o que prova nossa miséria. Quanto ao corpo sutil, em que estima a gente deve tê-lo, se a alma, seja de que natureza for, se antepõe a todo corpo e, portanto, o culto divino, homenagem da alma, não é, em absoluto, devido ao que lhe é inferior? Se, entre as qualidades por ele atribuídas aos demônios, Apuleio enumerasse a virtude, a sabedoria, a felicidade e dissesse tratar-se de coisas eternas e comuns a eles e aos deuses, teria, sem dúvida, dito algo digno de ser desejado e tido por admirável. Nem por isso, entretanto, deveríamos adorá-los como a deuses, mas dar graças a Deus, de quem sabemos teriam recebido semelhantes dons. Quão menos dignos de honras divinas se mostram os animais aéreos, racionais para poderem ser miseráveis, passivos para serem miseráveis, eternos precisamente para serem eternamente miseráveis! CAPÍTULO XVII É digno tribute o homem culto ao espírito de cujos vícios convêm se liberte? 1. Portanto, para omitir o demais e tratar apenas daquilo que, segundo Apuleio, os demônios têm de comum conosco, isto é, as paixões da alma, se todos os quatro elementos estão repletos de animais próprios: o fogo e o ar, de animais imortais, a água e a terra, de animais mortais, pergunto: Por que as almas dos demônios são agitadas pelas turbações e tempestades das paixões? Perturbação diz-se em grego páthos. Por isso, quanto ao ânimo, quis chamá-los passivos, porque a palavra paixão, derivada da grega páthos, significa movimento do ânimo contra a razão. Por que, pois, a alma dos demônios experimenta semelhantes agitações, desconhecidas dos brutos? Se algo similar aparece no bruto, não é perturbação, por não ser contra a razão, visto carecer dela. Nas almas humanas é loucura, é miséria, porquanto ainda não nos encontramos na bem-aventurada posse da perfeita sabedoria que nos é prometida para o fim dos tempos, uma vez livres dos grilhões de nossa mortalidade. Os deuses, dizem, encontram-se isentos de tais agitações precisamente porque são eternos e, ao mesmo tempo, felizes. Têm, afirmam os filósofos, almas racionais como nós, virgens, porém, de toda impureza. Por conseguinte, se os deuses não sofrem tais perturbações exatamente por serem animais felizes e não miseráveis e os brutos não a sofrem precisamente por não poderem ser felizes nem miseráveis, resta que os demônios, como os homens, as sofrem justamente por serem animais felizes, mas miseráveis. 2. Que ignorância, ou antes, que desatino nos faz sujeitar-nos aos demônios, pelos laços de alguma religião, se a verdadeira religião nos liberta da perversidade que nos torna semelhantes aos demônios? Porque Apuleio, que os poupa e os julga dignos de honras divinas, Apuleio mesmo os reconhece susceptíveis de cólera e a verdadeira religião nos proíbe a cólera e até mesmo nos ordena lhe ofereçamos resistência. Os demônios deixam-se seduzir por presentes e a verdadeira religião não quer que o interesse nos presida os favores. As honras lisonjeiam os demônios e a verdadeira religião prescreve-nos permaneçamos insensíveis a elas. Os demônios odeiam alguns homens e querem bem a outros, ódio e bem-querer que lhes sugere, não julgamento tranquilo e sábio, mas emoção apaixonada; a verdadeira religião manda que amemos até nossos próprios inimigos. Enfim, a verdadeira religião manda que deponhamos todo movimento do coração, todos os tormentos do espírito e todas as turbações e tempestades da alma que inquietam e desesperam os demônios, Qual, pois, a causa, senão a demência e o erro, de te rebaixares, adorando ser que não desejas semelhar, e de tributares culto religioso a quem não queres imitar, se o fim da religião é a gente imitar o deus a quem presta culto? CAPÍTULO XVIII Qual a religião que ensina deverem os homens, para granjear os deuses bons, usar os demônios como advogados? Apuleio e quaisquer outros filósofos que pensem de igual modo inutilmente lhes outorgaram a honra de colocá-los nas regiões do ar, entre o céu e a terra. Assim, porque nenhum deus se mistura com o homem, coisa, segundo eles, afirmada por Platão, os demônios levam aos deuses as petições dos homens e de lá trazem aos homens as súplicas despachadas. Assim, de um lado parece inconveniente que os homens se misturem com os deuses e os deuses com os homens, mas de outro é conveniente que os demônios, mensageiros de preces e graças, se misturem aos homens e aos deuses. Assim, o homem justo, alheio às criminosas práticas da magia, emprega como intercessores junto aos deuses aqueles que se comprazem em semelhantes crimes, quando a aversão que lhe inspiram deveria torná-lo mais digno do interesse dos deuses. Estranhos mediadores! Gostam das infâmias da cana, odiosas ao pudor, e dos sinistros segredos da magia, odiosos à inocência. Se alguém quer obter dos deuses inocência ou pudor, merecimento de nada vale, sem a intercessão de seus próprios inimigos. Em vão procuraria Apuleio justificar as fábulas dos poetas e o cinismo do teatro. Opomos a tais horrores a autoridade do mestre, a autoridade de Platão, se o pudor humano derroga a si mesmo, ao extremo de gostar de semelhantes infâmias e até mesmo de julgá-las agradáveis à divindade. CAPÍTULO XIX Impiedade da arte mágica, que se estriba no patrocínio dos espíritos malignos. Mas, para confundir os prestígios da magia, de que, em nome dos demônios, alguns homens têm a impiedade e a desgraça de gloriar-se, não quero outras testemunhas além de publicidade e da luz. E, com efeito, por que a severidade das leis os castiga com tamanho rigor, se se trata de obra dos deuses, a quem se deve culto? Ou será necessário atribuir aos cristãos as leis contra as artes mágicas? Não é testemunho prestado contra a perniciosa influência desses malefícios sobre o gênero humano os versos do grande poeta? Ei-los: Invoco o testemunho dos deuses, querida irmã, o teu e o de tua preciosa vida, para dizer que a contragosto recorro às artes mágicas. E aquilo que sobre as mesmas artes diz noutro lugar: Vi-o transportar messes de um campo para outro? Alusão manifesta à transferência das riquezas de um solo para solo estrangeiro, sob a influência de tais perniciosas e detestáveis doutrinas. E as Doze Tábuas, a mais antiga lei de Roma, não fulminam, segundo Cícero, rigorosa pena contra o autor de semelhante delito? Enfim, perante magistrados cristãos, acusaram o próprio Apuleio de magia? Se acreditasse inocentes, santas e conformes às obras do poder divino as práticas de que o acusavam, deveria não apenas confessá-las, mas também professá-las, deveria insurgir-se contra qualquer lei capaz de proibir e considerar condenável o que merece o respeito e admiração dos homens. Assim, convenceria os juízes ou, adstritos à letra de lei injusta, afogar-lhe-iam no sangue as apologias; os demônios, desejosos de retribuir tamanha magnanimidade, recompensariam dignamente o generoso abandono da vida, sacrificada à glória de suas obras. Vede nossos mártires. Quando lhes imputam como crime a religião cristã, que lhes assegura salvação e glória na eternidade, longe de repudiá-la para evitar suplício temporal, ousam confessar, professar, anunciar de maneira altiva a própria fé; por ela sabem generosamente sofrer, por ela morrem com santa segurança; quanto às leis que lhes proibiam o nome, fazem-nas enrubescer de vergonha, fazem-nas mudar. De Platão resta-nos eloquente e longa oração, em que se justifica da imputação de magia e não quer ver-se inocente de outro modo, senão negando o que nenhum inocente pode cometer. Todas as maravilhas dos magos, que sente, com razão, devem ser condenadas, são fruto das doutrinas e obras dos demônios, Por que, pois, quer que os honrem? Por que admite como necessária para levar nossas preces aos deuses e mediação daqueles cujas obras devemos evitar, se desejamos que nossas preces cheguem ao verdadeiro Deus? Agora pergunto: Que súplicas humanas julga que os demônios levam aos deuses bons? As mágicas ou as lícitas? Se as mágicas, não querem tais; se as lícitas, não as querem por mediação de tais. Se algum pecador penitente faz oração por haver admitido algo mágico, é possível que receba o perdão por intermédio daqueles sob cujo impulso ou favor chora haver caído em culpa? Ou será que os próprios demônios, para poderem alcançar o perdão dos penitentes, primeiro fazem penitência por havê-los enganado? Até agora ninguém o disse dos demônios, porque, se assim fora, de modo algum ousariam exigir que lhes prestassem honras divinas, visto como desejariam, fazendo penitência, conseguir a graça do perdão. De um lado, soberba detestável; doutro, humildade digna de compaixão. CAPÍTULO XX Cumpre acreditar que os deuses bons se comunicam com melhor disposição com os demônios que com os homens? Mas, dizem, causa imperiosa e urgente obriga os demônios a servirem de intermediários entre os deuses e os homens: é apresentar aos deuses as petições dos homens e trazer aos homens as concessões dos deuses. Em poucas palavras, que causa será? Que necessidade? A razão é que nenhum deus se comunica com o homem, dizem. Divina e casta santidade! Não se comunica com o homem suplicante e comunica-se com o demônio arrogante; não se comunica com o homem penitente e comunica-se com o demônio que o seduziu; não se comunica com o homem que implora a divindade e comunica-se com o demônio que a usurpa; não se comunica com o homem que pede perdão e comunica-se com o demônio que o persuade à nequicia; não se comunica com o homem que, esclarecido pelos livros dos filósofos, de Estado bem organizado expulsa os poetas, mas comunica-se com o demônio que reclama do Senado e dos pontífices a representação das infâmias teatrais; não se comunica com o homem que proíbe fingir as velhacarias dos deuses, porém comunica-se com o demônio que se compraz nas falsas perversidades dos deuses; não se comunica com o homem que castiga com leis justas os delitos dos magos, mas comunica-se com o demônio que ensina e pratica a magia; não se comunica com o homem que foge às obras do demônio e comunica-se com o demônio que fica à espreita da decepção do homem! CAPÍTULO XXI Os deuses usam os demônios como mensageiros e intérpretes e ignoram que são enganados ou querem enganá-los? 1. Na realidade, eis o absurdo e a indignidade que tamanha necessidade implica, a saber, que dos deuses etéreos, que cuidam das coisas humanas, se ocultariam as que os homens terrestres fazem, se não lhas anunciassem os demônios aéreos, porque o éter está longe da terra e suspenso no alto e o ar é contíguo ao éter e à terra. Admirável sabedoria! É outro o pensamento deles a respeito dos deuses, que desejam ótimos, senão o de que cuidam das coisas humanas a fim de não parecerem indignos de culto, mas, por causa da distância dos elementos, as desconhecem? O fim de tudo isso é julgar necessários os demônios e abonar o culto a tais mediadores, que das ações e das necessidades dos homens informam os deuses. Se é assim, pela proximidade do corpo o demônio é mais conhecido dos deuses bons que o homem pela bondade da alma. Deplorável necessidade, ou melhor, ridículo e detestável erro, vão protetor de vãs divindades! Se, espíritos livres dos obstáculos do corpo, os deuses podem ver-nos o espírito, necessitam, porventura, da mediação dos demônios? E, se os deuses etéreos por meio de seu próprio corpo sentem as manifestações corporais, como o rosto, a fala, os gestos e daí inferem o que lhes anunciarão os demônios, podem, acaso, ser enganados pelas mentiras dos demônios? Portanto, se a divindade dos deuses não pode ser enganada pelos demônios, não pode ignorar o que fazemos. 2. Mas, pergunto: Os demônios anunciaram aos deuses que Platão proscrevia as ficções em que os poetas punham em cena os crimes dos deuses e deles ocultaram o prazer que encontravam em tais jogos? Ou esconderam as coisas e deixaram os deuses na mais completa ignorância de todo esse assunto? Ou será que, ao mesmo tempo, lhes revelaram a religiosa sabedoria de Platão e a sacrílega alegria deles, demônios? Ou, enfim, ocultaram dos deuses o conhecimento do juízo proferido por Platão contra a ímpia licença dos poetas e, ao mesmo tempo, confessaram a cínica paixão que têm por semelhantes jogos, que tornam públicas as infâmias divinas, e não ficaram envergonhados ou temerosos? Escolham qualquer das perguntas propostas e verifiquem em qualquer delas como pensam mal dos deuses bons. Se escolhem a primeira, têm de confessar não haver sido lícito aos deuses bons comunicar-se com Platão, quando os protegia dos ultrajes, ao passo que viviam com os demônios, quando se regozijavam com as injúrias que lhes eram dirigidas. A razão é que os deuses bons não conheciam o homem bom, afastado deles, senão por intermédio dos demônios maus, a quem, embora vizinhos, não podiam conhecer. Se escolherem a segunda e disserem que uma coisa e outra as ocultaram os demônios, para que os deuses desconhecessem, em absoluto, tanto a religiosíssima lei de Platão como as sacrílegas alegrias dos demônios, que podem saber os deuses, utilmente, dos costumes humanos, por intermédio dos demônios, se desconhecem os decretos dados em honra dos deuses bons pelos homens bons, contra a leviandade dos demônios maus? Se escolherem a terceira e responderem que os demônios mensageiros manifestaram aos deuses não apenas o parecer de Platão, que veda se lhes dirijam injúrias, mas também a nequicia dos demônios, que se gozam das invectivas endereçadas aos deuses, que é isso, anunciar ou insultar? Os deuses escutam ambas as coisas e conhecem-nas, de maneira que não somente não afastam de si os malignos demônios, que nada desejam e nada fazem que não seja contrário à dignidade dos deuses e à religião de Platão, mas, por cima, valendo-se da mediação desses maus vizinhos, transmitem seus favores ao virtuoso Platão. De tal modo juntou e concatenou a série dos elementos, que podem ser unidos àqueles que os culpam e a este, que os defende, não. Sabem uma coisa e outra, mas nada podem contra os pesos do ar e da terra. Se escolherem a quarta e última, é pior que o resto. Quem tolerará que os demônios tenham anunciado aos deuses as criminosas ficções dos poetas a respeito dos deuses, os indignos ludíbrios dos teatros, seu próprio e ardentíssimo desejo disso tudo, seu próprio e delirante prazer, mas tenham calado que Platão, com gravidade filosófica, pensou que tudo isso devia ser afastado de república bem organizada? Desse modo, veem-se os deuses bons forçados a conhecer, por intermédio de tais núncios, os males dos mais depravados, males não alheios, mas dos próprios núncios e não se lhes permite conhecer seus contrários, os bens dos filósofos, cifrando-se aqueles em injúria e estes, em honra aos deuses. CAPÍTULO XXII Obrigação de renunciar ao culto dos demônios. Contra Apuleio. Ora, como é impossível a gente deter-se em qualquer das quatro suposições, sem conceber indigna opinião a respeito dos deuses, torna-se necessário recusar todo crédito às alegações de Apuleio e dos filósofos que com ele compartiram os mesmos sentimentos acerca da intercessão dos demônios, acerca da troca de súplicas e graças a que servem de mediadores. Longe disso, trata-se de espíritos perversos, possuídos da necessidade de prejudicar, para sempre desviados da justiça, inflados de orgulho, devorados pelo ciúme, sutis forjadores de enganos. Habitam o ar, é certo, mas em castigo de inexpiável prevaricação é que, precipitados das altas regiões do céu, permanecem confinados nesse elemento, como em prisão análoga à sua própria natureza. Quer dizer que, porque o espaço do ar se estende acima da terra e das águas, têm superioridade moral sobre os homens? Não. Os homens se avantajam a eles infinitamente; e não é o corpo terrestre que lhes faz a excelência, mas a assistência do verdadeiro Deus, propícia à piedade de seu coração. Há, sem dúvida, homens indignos de participar da verdadeira religião, homens que, reduzidos a vergonhosa escravidão, estendem os punhos aos grilhões dos demônios; a maioria, dando crédito a milagres enganadores e a mentirosas predições, acreditam-lhes a divindade. Não podendo, contudo, triunfar da refletida incredulidade de alguns, vivamente impressionados com a depravação dos demônios, estes quiseram passar, ao menos, por mediadores entre os desejos da terra e os favores do céu. Tais incrédulos, porém, convencidos da bondade dos deuses e da malignidade dos demônios, julgaram não dever deferir a estes as honras divinas, nem se atreveram, todavia, a declará-las indignos delas, por medo, principalmente, de irritar os povos que inveterada superstição sujeitara ao culto a esses espíritos malignos. CAPÍTULO XXIII Pensamento de Hermes Trismegisto sobre a idolatria e como pôde conhecer que se deviam suprimir as superstições egípcias. 1. Hermes Egípcio, por alcunha Trismegisto, pensou e escreveu diversas coisas sobre os demônios. Apulcío nega, é verdade, serem deuses, mas, ao dizê-las medianeiros entre os homens e os deuses ao extremo de parecerem necessários aos homens, quando precisam de aproximar-se dos deuses, da religião dos deuses soberanos não separa seu culto. O Egípcio, contudo, afirma serem alguns deuses criaturas do Deus supremo e outros, dos homens. Quem ouve tal coisa imagina, como já dissemos, tratar-se dos ídolos, por serem obras humanas; mas Trismegisto assegura que os ídolos visíveis e tangíveis são como que o corpo dos deuses; afirma, ademais, haver neles certos espíritos, convidados, que têm poder, quer para prejudicar, quer para realizar os desejos de quem lhes tributa honras divinas e o obséquio do culto. Juntar, por meio de arte misteriosa, espíritos invisíveis a coisas visíveis da matéria corporal, para serem uma espécie de corpos animados, ídolos dedicados e sujeitos a tais espíritos, é, segundo Trismegisto, fazer deuses. Os homens, acrescenta, receberam o admirável e nobre poder de criar deuses. Citar-lhe-ei as próprias palavras, tais quaís foram traduzidas a nosso idioma. Ei-las: Porque tratamos dos laços de sociedade e aliança formados entre os homens e os deuses, aprende a conhecer, ó Asclépio, os privilégios e o poder do homem. Assim como o Senhor, ou o Pai, ou o que é supremo, Deus, em suma, é o autor dos deuses celestes, assim o homem é o autor dos deuses que se encontram nos templos, contentes da proximidade dos homens. E pouco depois: Desse modo, a humanidade, fiel à lembrança de sua natureza e origem, persevera na imitação da divindade. O Pai e Senhor fez à sua semelhança os deuses eternos; a humanidade fez seus deuses à semelhança do homem. À réplica de Asclépio, seu principal interlocutor, que lhe perguntou com dúvida: Dizes estátuas, Trismegisto?, respondeu: Estátuas, sim, Asclépio! Vês como tu mesmo desconfias? Estátuas, sim, animadas e cheias de vida e sentido, que fazem tantas e tais coisas. Estátuas que conhecem o futuro, predizem as coisas por sortilégios, pelos poetas, pelos sonhos e por mil e uma outras artes, produzem as enfermidades nos homens e as curam e os deixam tristes ou alegres, segundo seus merecimentos. Ignoras, porventura, Asclépio, ser o Egito imagem do céu, ou, o que é mais verdadeiro, translação ou baixamento de tudo quanto se governa e faz no céu, ou, se cumpre dizer maior verdade, ser nossa terra o templo do mundo todo? Como, entretanto, é próprio do sábio prever todas as coisas, esta não nos é permitido ignorar: Tempo virá em que hão de reconhecer haverem os egípcios inutilmente honrado a divindade com fiel culto; as cerimônias mais santas cairão no esquecimento e na vileza. 2. Hermes detém-se longo tempo no assunto; parece predizer o tempo em que a religião cristã, em sua verdade e santidade haurindo a poderosa liberdade que destrói as mentiras da idolatria, pela graça do verdadeiro Salvador, do domínio de tais deuses, obra do homem, arrancaria o homem para devolvê-la a Deus, de quem o homem é obra. Mas, predizendo-o, Hermes fala como homem seduzido pelos prestígios dos demônios, não pronuncia claramente o nome de cristãos. Diz, simplesmente, que desaparecerão e cairão no olvido as coisas cuja observância se conservou no Egito a semelhança do céu e, ao deplorar semelhante futuro, confere acento de profunda tristeza às palavras. Era do número daqueles de quem diz o Apóstolo que, conhecendo Deus, não o glorificaram como Deus nem lhe deram graças, mas, ao contrário, desvaneceram-se em seus pensamentos e obscureceu-se-lhes o coração insensato. Dizendo-se sábios, tornaram-se néscios e a glória, devida ao Deus incorruptível, prostituíram-na à imagem do homem corruptível, etc. Sobre o único Deus verdadeiro, autor do mundo, diz muitas coisas, todas conformes com os ensinamentos da verdade. Não sei como pelo obscurecimento do coração se deixa arrastar a coisas como estas, a querer que os homens se submetam sempre aos deuses que ele próprio confessa tratar-se de feituras dos homens e a deplorar que semelhante prática seja suprimida no futuro. Como se houvesse algo mais infeliz que homem escravo das próprias ficções, sendo mais fácil que, rendendo culto, como a deuses, àqueles de que é autor, deixe de ser homem do que se tornarem deuses os ídolos saídos das mãos do homem. Sim, o homem, decaído da inteligência e da glória, descerá ao nível dos brutos antes que a obra do homem se eleve acima da obra de Deus, feita à semelhança de Deus, acima do homem. E é com muita justiça que o homem é abandonado por seu autor, quando é o primeiro a abandonar-se à própria obra. 3. Assim, quando Hermes, o Egípcio, deplorava a futura ruína de tantas vaidades, imposturas e sacrilégios, não o lamentava com tanta impudência quanta a imprudência com que o sabia. Não lho revelara o Espírito Santo, como acontecera com os santos profetas, que, prevendo-o, diziam com júbilo: Se o homem fizer deuses, estes não serão deuses. E noutro lugar: Sucederá naquele dia, diz o Senhor: Exterminarei os nomes dos simulacros e a própria memória deles perecerá. Quanto ao Egito em particular, eis a predição do santo profeta Isaías: E serão apartadas de sua vista as obras feitas por mãos do Egito e seu coração vencerá neles, etc. Da mesma estirpe eram aqueles que, certos do que se devia cumprir, se rejubilaram quando se cumpriu: Ana e Simeão, que conheceram Jesus Cristo desde quando nasceu; Isabel, que desde a concepção o conheceu em espírito; Pedro, que, iluminado pelo Pai, exclamava: Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo. Mas os espíritos que revelavam ao Egípcio a época da perdição deles eram os mesmos que, trêmulos, diziam a Nosso Senhor, durante sua vida mortal: Por que vieste perder-nos antes do tempo?, quer porque lhes parecesse já estar acontecendo o que esperavam para mais tarde, quer por chamarem perdição ao fato de, uma vez conhecidos, serem desdenhados pelos homens. Isso acontecia antes do tempo, ou seja, antes do dia do juízo, quando serão castigados com eterna condenação e com todos os homens que se lhes associam. E de conformidade com o que a religião diz, religião que não engana nem se engana, não de acordo com a religião que o Egípcio, como que agitado de cá para lá pelo vento de sua doutrina e misturando o verdadeiro com o falso, lamenta seja perecedoura, religião que mais tarde ele próprio confessa constituir profundo erro. CAPÍTULO XXIV Hermes confessa o erro dos antepassados e, contudo, deplora tenha de ser abolido. 1. Depois de muitas digressões, Hermes volta ao que disse dos deuses feitos pelos homens. Eis como se exprime: Tornemos ao homem e à razão, divino dom que jaz o homem merecer o nome de animal racional. Causam menos maravilha, embora maravilhosas, as coisas ditas sobre o homem. Supera a admiração de todas as maravilhas o haver o homem podido inventar a divindade e jazê-la. O motivo é que nossos antepassados, sumidos na incredulidade e cegos por grandes erros acerca do conhecimento dos deuses, erros que os desviavam do culto e da religião divina, inventaram a arte de jazer deuses. A semelhante invenção acrescentaram misteriosa virtude, tomada da natureza dos deuses, e misturaram-nas. Vendo-se impotentes para jazer almas, evocaram a alma dos demônios ou dos anjos e ligaram-nas às imagens sagradas, aos mistérios divinos, dando, assim, aos ídolos o poder de obrar o bem e o mal. Não sei se os demônios, chamados em pessoa, o confessaram como o confessou Hermes. Porque, diz Hermes, nossos antepassados, sumidos na incredulidade e cegos por grandes erros acerca da natureza dos deuses, erros que os desviavam do culto e da religião divina, inventaram a arte de jazer deuses. Julgou pouco dizer erravam ao encontrarem a arte de fazer deuses; e não se contentou com erravam, tanto que aduziu: Erravam muito. Logo, o grande erro e a incredulidade dos que se esqueceram do culto e da religião divina deram origem à arte de fazer deuses. De tal arte funesta, que deve a origem ao erro, à incredulidade e ao esquecimento do culto e da religião divina, é que o sábio Hermes deplora a perda no tempo marcado, como se se tratasse de religião divina. Na verdade, não é a poderosa vontade de Deus que o constrange a desvelar o inveterado erro dos antepassados? Não é a violência do inferno que o leva a gemer os futuros suplícios dos demônios? Porque, enfim, se o erro, a incredulidade, a indiferença da alma humana para com o culto e a santa religião inventaram a arte de fazer deuses, deve causar-nos assombro que todas as obras dessa arte detestável, realizadas por ódio à religião divina, sejam abolidas pela religião divina, se é a verdade que repreende o erro, é a fé que confunde a incredulidade, é o amor que cura o ódio? 2. Se Hermes, sem expressar-lhe as causas, houvesse dado publicidade à invenção dos ancestrais, caber-nos-ia, por menos que a piedade nos iluminasse, ver e compreender que o homem jamais teria imaginado fazer deuses, se não estivesse extraviado da verdade, se acreditasse em coisas dignas de Deus e voltasse a alma ao culto e à verdadeira religião. Contudo, se a grande erro, à incredulidade e ao esquecimento da religião divina por parte do homem infiel e errante atribuíssemos a origem da arte de fazer deuses, seria absolutamente tolerável a desvergonha dos que resistem à verdade. Como, porém, quem admira no homem, sobre todos os demais poderes, o poder de fazer deuses, concedido pela referida arte, e lamenta a chegada do tempo em que todas essas figulinas dos demônios, instituídas pelos homens, serão derribadas por mandado das leis é o mesmo que confessa e declara as causas que levaram o homem a tal descobrimento, dizendo que os antepassados, por seus grandes erros, por sua incredulidade e por não voltarem o ânimo ao culto e à religião verdadeira, inventaram a arte de fazer deuses, que diremos, ou melhor, que faremos, senão dar ao Senhor Deus nosso quantas graças possamos, por haver desterrado semelhante culto, utilizando-se de causas contrárias às por que foi instituído? A verdade arruinou o que o erro estabeleceu; a fé destruiu as obras da incredulidade; o retorno ao Deus santo, ao Deus de verdade, aniquilou o estabelecido pela aversão ao culto e à religião divina. E isso aconteceu não apenas no Egito, único objeto das lamentações que o espírito dos demônios inspirava a Hermes, mas em toda a terra, que canta um cântico novo, conforme as Escrituras, verdadeiramente santas e verdadeiramente proféticas, onde está escrito: Cantai novo cântico ao Senhor, cantai ao Senhor toda a terra. Eis o título do salmo: Quando se edificava a casa depois do cativeiro. Com efeito, a casa do Senhor, a Cidade de Deus, a saber, a Igreja, edifica-se em toda a terra depois do cativeiro, em que, escravos dos demônios, gemiam os homens libertados pela fé e transformados hoje em pedras vivas do divino edifício. Porque, embora autor de deuses, o homem não era menos escravo da própria obra. Adorando-os, entrava na sociedade, não de estúpidos ídolos, mas de pérfidos demônios. Que são, com efeito, os ídolos, senão objetos que, de acordo com a palavra das Escrituras, têm olhos e não veem, e não passam de inúteis obras-primas, desprovidas de sentimento e vida? Mas os espíritos imundos, por arte nefasta ligados a semelhantes estátuas, admitindo em sua sociedade as almas de seus adoradores, haviam-nas reduzido a miserável servidão. Por isso, diz o Apóstolo: Sabemos que o ídolo nada é, mas o que os gentios imolam, imolam aos demônios, não a Deus. Não quero que vos torneis sócios dos demônios. Depois do cativeiro em que os espíritos malignos retinham os homens, edifica-se em toda a terra a casa de Deus. Daí tomou o título o salmo que diz: Cantai novo cântico ao senhor, cantai ao Senhor toda a terra. Cantei ao Senhor e bendizei-lhe o nome. Anunciai dia a dia a salvação que nos manda. Anunciai aos gentios sua glória e a todos os povos suas maravilhas. Porque grande é o Senhor e muito digno de louvores e terrível acima de todos os deuses. Porque todos os deuses dos gentios não passam de demônios, mas o Senhor fez os céus. 3. Conclusão: Quem previa, aflito, o advento dos tempos em que o culto aos ídolos seria abolido e que os demônios decairiam do império sobre quem os adorava, queria, por conseguinte, sob a inspiração do espírito maligno, a duração eterna do cativeiro, que deveu cessar, diz o Salmista, para edificar-se a casa em toda a terra. Eis o que, gemendo, Hermes anunciava; eis o que o profeta anunciava com alegria. E, como o Espírito, que pela boca dos profetas cantava tais acontecimentos futuros, sempre triunfa, o próprio Hermes viu-se milagrosamente obrigado a confessar que as instituições, cuja ruína vindoura lhe aflige a alma, não têm por autores a razão, nem a fé, nem a piedade, mas o erro, a incredulidade, a aversão e o ódio à verdadeira religião. E, quando a homens com quem não devemos parecer o Egípcio atribui os ídolos, a que chama deuses, confessa, queira ou não, que a gente não deve adorar-lhes os ídolos, se não se parece com os mal-aventurados que os fizeram. Por conseguinte, às almas prudentes, fiéis e religiosas proíbe semelhante culto; demonstra, ainda, que tais artesãos de divindades se prestaram a adorar, como a deuses, os que não eram deuses. É, pois, verdade o que disse o Profeta: Se o homem fizer deuses, estes não serão deuses. Todavia, embora chame deuses às impuras imagens, obra de mãos impuras, Hermes não adota, como o platônico Apuleio, a inconveniente e absurda opinião de dizer que os demônios, que arte misteriosa por meio dos laços de suas paixões encadeia à sua efígie material, servem de intérpretes e mediadores entre os deuses e os homens, criaturas de um só Deus, levando aos deuses as súplicas dos homens, trazendo aos homens os favores dos deuses, por ser demasiado insensato acreditar que os deuses feitos pelo homem tenham, junto aos deuses que Deus fez, mais crédito que o próprio homem feito por Deus. O demônio, que a arte de homem ímpio uniu a estátua, torna-se Deus para esse homem, não para todo homem. Qual, por conseguinte, o deus que o homem não faria, se não fosse incrédulo, cego e não estivesse afastado do verdadeiro Deus? Ora, se os demônios, adorados nos templos, ligados a estátuas por homens que o poder de fabricar deuses devem somente à própria impiedade, ao afastamento em que se encontram da verdadeira religião, se os demônios não intervêm, em absoluto, como mediadores entre os deuses e os homens, pois a depravação os torna indignos de tal ministério, porque os homens, seja qual for a degradação a que tenham chegado, valem incomparavelmente mais que semelhantes deuses, obra sua, segue-se que todo o seu poder não passa de poder de demônios, inimigos temíveis, amigos mais funestos ainda, porquanto sua amizade se chama perfídia. Esse poder, malfazejo ou favorável, jamais o exercitam sem permissão da justiça de Deus, impenetrável e profunda, não como mediadores entre os homens e os deuses, não por dar-lhes a amizade com os deuses semelhante poder sobre os homens. Com efeito, podem ser amigos dos deuses bons, por nós chamados santos anjos, criaturas racionais, habitantes das celestes moradas, a saber, tronos, dominações, principados, potestades, de que tão afastados se encontram pela afeição da alma quanto os vícios se encontram longe da virtude e a malignidade, da inocência? CAPÍTULO XXV Coisas comuns aos santos anjos e aos homens. Em consequência, de nenhum modo se deve aspirar, por mediação dos demônios, à benevolência e à beneficência dos deuses, ou, por melhor dizer, dos anjos bons. Isso todos devemos buscar, imitando-lhes a boa vontade, com que estamos com eles, com eles vivemos e com eles rendemos culto ao Deus a que tributam, embora não possamos vê-los com os olhos da carne. Assim, pois, não é a distância do lugar que nos separa deles, mas o merecimento da vida, fundado na dessemelhança da vontade e na mísera fragilidade de nossa natureza. Se não estamos unidos com eles, não é por habitarmos na terra em nossa condição carnal, mas por gostarmos da imundícia terrena do coração. Em recobrando saúde interior, de modo a sermos como eles, no mesmo instante nossa fé nos aproximará deles, se também acreditarmos, sob seus auspícios, que nos fará felizes Aquele que os fez felizes também. CAPÍTULO XXVI A religião dos pagãos reduziu-se a adorar homens mortos. 1. É de notar-se que o Egípcio, quando se lamenta de que há de vir o tempo em que o referido culto será abolido no Egito, culto que confessa instituído pelos que erram muito, pelos incrédulos e pelos que se encontram apartados do culto da religião divina, diz entre outras coisas: Esta terra, morada santíssima de delubros e templos, estará, então, coberta de sepulcros e mortos. Como se os homens não houvessem de morrer, caso os ídolos permanecessem de pé, ou se fosse possível dar aos mortos outro lugar senão a terra. E verdade que quanto mais corram os tempos e os dias, tanto maior número haverá de sepulcros, porque haverá maior número de mortos. Mas parece lamentar-se, isso sim, porque as memórias de nossos mártires sucederiam a seus delubros e templos. Isso quer dizer que os que lerem estas páginas com espírito perverso e contrário a nós pensarão que os gentios renderam culto aos deuses nos templos e nós o tributamos aos mortos nos sepulcros. Tamanha a cegueira dos homens ímpios, que tropeçam nas montanhas. Não querem ver as coisas que lhes ferem os olhos e não advertem que em todos os escritos gentios não se encontram ou com dificuldade se encontram deuses que não hajam sido homens e não tenham, uma vez mortos, recebido honras divinas. Omito o que diz Varrão, a saber, que consideram deuses manes todos os mortos. Justifica a observação com as cerimônias e, principalmente, com os jogos fúnebres, evidente prova de divindade; jamais celebram jogos senão em honra dos deuses. 2. O próprio Hermes, de que agora tratamos, diz no mesmo livro em que, como prenúncio do futuro, chora: Esta terra, morada santíssima de delubros e templos, estará então coberta de sepulcros e mortos. Com essas palavras atesta não passarem de homens mortos os deuses do Egito. Depois de haver dito que seus antepassados, cegos por grandes erros acerca da natureza dos deuses incrédulos e não atendendo, em absoluto, ao culto e à religião divina, inventaram a arte de fazer deuses, acrescenta: A semelhante invenção acrescentaram misteriosa virtude, tomada da natureza dos deuses, e misturaram-nas. Vendo-se impotentes para jazer almas, evocaram a alma dos demônios ou dos anjos e ligaram-se às imagens sagradas, aos divinos mistérios, dando, assim, aos ídolos o poder de jazer o bem e o mal. Logo a seguir, como que para prová-lo com exemplos, acrescenta: Teu avô, ó Asclépio, primeiro inventor da medicina, a quem se consagrou templo no monte da Líbia, nas proximidades do litoral dos Crocodilos, em que dele jaz o homem terrestre, quer dizer, o corpo. O resto da pessoa, ou melhor, a pessoa toda, se o homem consiste no sentido da vida, voltou ao céu melhorado. Sua divindade é que hoje presta auxílio aos enfermos, coisa que antes costumava prestar pela arte da medicina. Não diz Hermes, de modo por demais claro, que certo morto é adorado como deus no próprio lugar em que se encontra sepultado? Ao afirmar o retorno de Esculápio ao céu, engana-se e engana os demais. Depois acrescenta: Hermes, de cujo avô trago o nome, não fixou residência em cidade que tem seu nome e onde alenta e conserva todos os mortais procedentes de qualquer parte? Hermes maior, ou seja, Mercúrio, de quem se diz neto, reside em Hermópolis, quer dizer, na cidade de seu nome. Eis, por conseguinte, dois deuses que foram homens: Esculápio e Mercúrio. Acerca de Esculápio estão acordes gregos e latinos. Muitos pensam não haver Mercúrio sido mortal; todavia, Hermes atesta ser Mercúrio seu avô. Mas este não se confunde com o outro, embora tenham o mesmo nome. A mim pouco me importa se trate de dois deuses ou de um apenas. Basta-me que este, como Esculápio, sendo homem, foi feito deus segundo o testemunho de homem de tão grande renome em sua terra, isto é, de Trismegisto, seu neto. 3. Trismegisto diz ainda que Ísis, mulher de Osíris, faz tantos benefícios, quando propícia, quantos malefícios, quando irritada. Depois, para mostrar serem do mesmo gênero todos os deuses de fabricação humana, ou antes, que os deuses não diferem, em absoluto, de tais demônios, almas dos mortos que julga unidas aos ídolos por artes de ciência mentirosa, incrédula, sacrílega, criando deuses por não poder criar almas, fala da cólera dos deuses como acaba de falar das vinganças de Ísis e acrescenta: As divindades da terra e do mundo entregam-se com facilidade à cólera, porque o homem as dotou de duas naturezas, as compôs de alma e de corpo. A alma é o demônio; o corpo, a estátua. Daí vem que os egípcios os chamem santos animais e cada cidade renda culto divino às almas dos que, durante a vida, se lhe consagram, lhe obedecem às leis e lhe trazem o nome. A que vem, pois, a lastimosa queixa de Hermes quando exclama: Esta terra, morada santíssima de delubros e templos, estará coberta de sepulcros e mortos? Com efeito, o espírito impostor, sob cuja inspiração Hermes falava, viu-se obrigado a confessar, por sua boca, que a mesma terra do Egito já se encontrava povoada de sepulcros e mortos, a quem adorava como deuses. Hermes é órgão dos demônios, temerosos dos suplícios futuros que os esperam nas memórias dos santos mártires. Ao pé desses piedosos monumentos sofrem tortura, confessam-se e veem-se expulsos dos corpos dos possessos. CAPÍTULO XXVII De que modo honram os cristãos os seus mártires? 1. E, contudo, em honra dos mártires não temos templos, nem sacerdotes, nem solenidades, nem sacrifícios, porque não eles, mas seu Deus, é nosso Deus. Honramos-lhes, é verdade, a memória, por tratar-se de homens santos de Deus que até a morte lutaram pela verdade, para que brilhasse a verdadeira religião e se convencessem de erro as fingidas e falsas coisa que alguns, se antes sentiam, reprimiam com temor. Que fiel alguma vez ouviu o sacerdote que está no altar, construído sobre o corpo santo de algum mártir, para honra e culto a Deus, dizer em suas orações: Ofereço-te sacrifício, Pedro, Paulo ou Cipriano? Somente a Deus se oferece sacrifício no túmulo dos mártires, a Deus, que os fez homens e mártires e os associou à honra celestial dos santos anjos; é oferecido a fim de que por causa de suas vitórias rendamos graças ao Deus de verdade e, invocando-lhe a assistência, a comemoração de sua memória nos encorage a rivalizar com eles nas palmas e nas coroas do martírio. Assim, todo ato piedoso realizado nos túmulos dos mártires é homenagem que se lhes presta à memória e não sacrifício oferecido a mortos, como se se tratasse de deuses. Todos quantos levam alimentos aos túmulos dos mártires, costume não praticado pelos melhores cristãos e inexistente em muitas regiões, quantos o fazem, depois de orarem, os levam embora, para alimentar-se ou distribuí-los aos pobres, consideram-nos santificados pelos merecimentos dos mártires, em nome do Senhor dos mártires. Nenhum sacrifício é oferecido aos mártires onde o único sacrifício dos cristãos é imolado. Quem o ignora? 2. Não, não é, em absoluto, por meio de honras divinas, não é, em absoluto, por intermédio de crimes humanos que glorificamos nossos mártires, como os pagãos glorificam seus deuses; não temos, em absoluto, sacrifícios para eles, não se lhes votou culto de infâmia. Falarei de Isis, mulher de Osíris, deusa egípcia, e de seus ancestrais, todos reis, conforme dizem? Certo dia, ao oferecer-lhes sacrifício, encontrou algumas espigas de cevada; mostrou-as ao real esposo e a Mercúrio, conselheiro dele. Por isso, querem identificá-la com Ceres. Que males não praticou? Interroguem, não os poetas, mas as tradições dos livros sagrados conformes às revelações do sacerdote Leão, por Alexandre comunicadas a Olímpias, sua mãe, interroguem os monumentos, se têm vontade e tempo; vejam de que homens mortos fizeram deuses e por que façanhas de sua vida lhes compuseram o culto. Guardem-se de comparar tais deuses com nossos mártires, que para nós não são deuses. Em honra deles não instituímos sacerdotes nem sacrifícios, porque é inconveniente, ilícito e ímpio e devido somente ao Deus uno; em seus crimes e em jogos infames não procuramos divertimento em que se comprazam, como os deuses que o paganismo honra por meio da representação dos crimes que os mancharam quando homens ou lhes obnubilou a divindade, para alegria dos demônios. Não, não seria de tal gênero o deus de Sócrates, se teve algum deus. Mas talvez algum hábil fabricador de deuses houvesse provido de um o sábio, inocente de semelhante superstição, alheio à arte culpável. Que direi ainda? Não, não é necessário, em absoluto, honrar tais espíritos para obter a vida eterna que se segue à morte. Será que alguém, por menos sensato que seja, vai continuar duvidando? Mas, responderão, todos os deuses são bons e nem todos os demônios são maus; aos bons é que, para alcançar a vida bem-aventurada, devemos render homenagem. E o que vamos elucidar no Livro seguinte. LIVRO NONO Depois de no livro precedente estabelecer a obrigação de rechaçar o culto aos demônios, baseado em que eles próprios de mil e um modos se manifestam como espíritos maus, neste Agostinho sai a campo contra quem admite distinção entre demônios bons e demônios maus. Depois de refutar a diferença, prova que o papel de mediador dos homens, para consecução da felicidade, não pode competir a demônio algum, mas somente a Cristo. CAPÍTULO I Ponto a que chegou o debate e que resta dizer sobre a questão. Alguns adiantaram haver deuses bons e deuses maus; outros, porém, pensando melhor deles, prodigalizaram-lhes tantas honras e tantos elogios, que não se atreveram a crer existisse algum mau. Os que disseram serem bons alguns deuses e maus outros deram o nome de deuses também aos demônios, embora, mais raramente, é certo, chamassem aos deuses também demônios. Assim, afirmam haver Homero chamado demônio a Júpiter, que querem seja rei e príncipe dos demais. Os que reconhecem serem bons todos os deuses e muito mais excelentes que os homens merecidamente considerados bons, baseiam-se nas ações inegáveis dos demônios. Pensam que iguais de maneira alguma podem realizá-las os deuses, porque, segundo afirmam, são todos bons; veem-se, por isso, forçados a distinguir entre deuses e demônios. Desse modo, qualquer coisa que com razão os desagrade em suas obras ou afetos desordenados, manifestações claras da força dos espíritos ocultos, creem ser obra dos demônios, não dos deuses. Mas opinam que, posto nenhum deus comunicar-se com os homens, se torna necessário que os demônios sejam mediadores entre os homens e os deuses, encarregando-se de levar nossos desejos e trazê-los atendidos. Tal a opinião dos platônicos, os mais excelentes e destacados filósofos, com quem, por mais ilustres, me aprouve elucidar a seguinte questão: Serve o culto a muitos deuses para conseguir a vida bem-aventurada que há de seguir-se à morte? Eis o motivo que me levou a examinar no livro anterior como podem os demônios, que gozam de coisas evitadas e repelidas pelos homens prudentes e bons, a saber, das ficções sacrílegas, perversas e criminosas dos poetas, não sobre um homem qualquer, mas sobre os deuses, e da violência ignominiosa e punível das artes mágicas, como podem tais demônios, dizíamos, por estarem mais próximos e serem mais amigos dos deuses, conciliar os homens e os deuses bons. Já demonstrei a absoluta impossibilidade de tal mediação. CAPÍTULO II Entre os demônios, a quem os deuses são superiores, existem alguns bons, sob cuja proteção possa a alma humana chegar à verdadeira felicidade? Este livro, como prometi no fim do precedente, deve resolver o debate sobre a diferença (se querem que exista), não dos deuses entre si, porquanto são bons, segundo os referidos filósofos, nem entre os deuses e os demônios (os deuses separados grandemente dos homens, e os demônios colocados entre os deuses e os homens), mas sobre a distinção entre os demônios. Será esse o tema da presente questão. Entre muitos platônicos é corrente chamar bons a determinados dem6nios e a outros, maus. Semelhante parecer, quer dos seguidores de Platão, quer de quaisquer outros filósofos, cumpre não passá-la por alto, não vá alguém imaginar que deve seguir os demônios bons e - enquanto deseja e procura por meio deles, como que por medianeiros, granjear a amizade dos deuses, todos bons, segundo acredita, para poder reunir-se a eles depois da morte, enredado e iludido pelos ardis dos espíritos malignos - acabe se desviando do verdadeiro Deus, único com quem, único por quem e único em quem é feliz a alma humana, isto é, a racional e intelectual. CAPÍTULO III Atribuições que Apuleio confere aos demônios, a quem, sem subtrair-lhes o entendimento, não lhes reconhece virtude alguma. Entre demônios bons e demônios maus que diferença existe? Brilha o platônico Apuleio em dissertação geral a respeito deles, mas, estendendo-se tanto em falar de seus corpos, silenciou as virtudes anímicas de que estariam dotados, se fossem bons. Calou a causa da felicidade deles, porém não p6de silenciar a prova da miséria deles. Confessa que a mente dos demônios, a qual os torna racionais, não apenas não se encontra imbuída nem armada de virtude contra as paixões irracionais do espírito, como, pelo contrário, como é comum às mentes néscias, também sofre a agitação das procelosas perturbações. Eis as palavras de Apuleio: Dessa espécie de demônios costumam os poetas, não sem aspectos de verdade, fingir deuses que odeiam alguns homens e querem bem a outros. A uns prosperam e elevam; a outros, pelo contrário, contrariam e afligem. Assim, compadecem-se, indignam-se, angustiam-se, alegram-se. Padecem todas as afeições do espírito humano, impelidos pelas vagas tumultuosas da imaginação através de todos os tormentos do coração, de todas as tempestades da inteligência. Ora, todas essas turbações e borrascas são muito estranhas à tranquilidade dos deuses celestes. Ocorre alguma dúvida, em semelhantes palavras, de que disse que, não algumas partes inferiores dos espíritos, mas as mentes dos demônios, que os fazem animais racionais, se turbam, como proceloso mar, agitadas pelas borrascas das paixões? Assim, não devem ser comparados com os homens sábios, que, segundo a condição desta vida, quando se veem vítimas das perturbações dos espíritos, tara inevitável da fraqueza humana, lhes oferecem resistência com imperturbabilidade da mente, não cedendo a elas, para aprovar ou cometer algo que os desvie do caminho da sabedoria e da lei da justiça. Mas os demônios, semelhantes (para não dizer piores do que os homens, precisamente por serem mais antigos e com pena justa insanáveis), semelhantes, dizíamos, aos mortais, se veem agitados pela borrasca da mente, de conformidade com a expressão de Apuleio. E não têm em parte alguma do ânimo consistência na verdade e na virtude às quais repugnam as afeições turbulentas e desregradas. CAPÍTULO IV Perturbações que ocorrem ao ânimo. Pensamento dos peripatéticos e dos estoicos. 1. Duas opiniões dividem os filósofos no que diz respeito aos movimentos da alma que os gregos chamam páthe, os romanos, alguns pelo menos, como Cícero, perturbações, outros, afeições, ou, mais conformemente à expressão grega, paixões. Tais perturbações, afeições ou paixões não deixam, segundo alguns filósofos, de atingir a alma do sábio, que as doma e submete à razão, porque reconhece a soberania do espírito, que lhes impõe justos limites. Esse o pensamento dos sectários de Platão e Aristóteles, discípulo de Platão e fundador da escola peripatética. Outros filósofos, como, por exemplo, os estoicos, proíbem às paixões todo acesso na alma do sábio. Mas, no tratado Dos fins dos bens e dos males, Cícero prova que entre os filósofos do Pórtico e os discípulos de Platão e Aristóteles a diferença é mais de palavras que de realidades. O reparo de Cícero desata o nó da dificuldade. Segundo ele, os estoicos recusam o nome de bens às vantagens exteriores e corpóreas. Dizem que o único bem do homem reside na virtude, verdadeira arte de bem viver, absolutamente interior. Os platônicos, sem saírem da simplicidade da linguagem comum, não recusam a semelhantes vantagens o nome de bens, embora, comparando-as com a virtude, prática habitual da justiça, não lhes tenham senão medíocre estima. Donde se segue que, de parte a parte, sobre as expressões de bens ou de vantagens, o julgamento é o mesmo; nesse ponto, os estoicos não se deleitam senão com a novidade das palavras. Tenho para mim que se discute mais com palavras que com realidades a questão assim formulada: E o sábio sujeito ou inacessível às paixões da alma? Com efeito, penso que os estoicos não sentem nada diverso dos platônicos ou dos peripatéticos no tocante à virtude das coisas, não ao som das palavras. 2. Para não prosseguir na longa série de provas, contentar-me-ei de citar decisivo fato. Nos livros intitulados Noites Aticas, escreve Aulo Gélio, escritor elegante e dotado de vasta e profunda erudição, que certa vez navegava em companhia de célebre filósofo estoico. A embarcação, sob encolerizado céu, era batida pela violência das vagas. Diante do perigo, o filósofo treme e empalidece; não pode mesmo ocultar dos companheiros de travessia a emoção que o empolgara. Embora vivamente impressionados com a vizinhança da morte, tiveram a curiosidade de observar se a alma de filósofo era inacessível à perturbação. Finda a tempestade, retomada a segurança e com ela a palavra e a vivacidade da conversa, certo passageiro, rico asiático dado ao luxo, aproxima-se do filósofo e, em tom de brincadeira, censura-lhe a palidez e o medo, pois a ele, viajante, a morte iminente não conseguira perturbar. O estoico deu-lhe a mesma resposta dada por Aristipo, discípulo de Sócrates, a um homem dessa espécie, que, em idênticas circunstâncias, dele fazia a mesma troça: Que se deve temer pela alma de injustíssimo hipócrita? Mas o caso não é o mesmo, quando se trata da alma de Aristipo. Com essa resposta tapou a boca do rico. Depois Aulo Gélio, brincadeira à parte e movido apenas pelo desejo de instruir-se, perguntou ao filósofo qual o motivo de haver sentido medo. Para satisfazer a curiosidade de homem abrasado de paixão pelo saber, tomou de um livro do estoico Epicteto, que continha os ensinamentos segundo as doutrinas de Zenão e de Crisipo, que sabemos haverem sido os príncipes dos estoicos. Segundo eles, como as imaginações da alma, chamadas fantasias, independem de nossa vontade e a colhem de surpresa, quando nascidas de circunstâncias terríveis, torna-se impossível que a alma do próprio sábio não se perturbe e permaneça inacessível às primeiras emoções do terror ou da tristeza, que inibem a função da inteligência e da razão. A suspeita do mal não entra em alma que não o aprova nem consente nele. Aprovar e consentir querem que lhe dependa da vontade e consideram diferirem entre si a alma do sábio e a do ignorante. Uma abandona-se às paixões e dá-lhes assentimento; a outra, submissa à necessidade de suportá-las, firma-se, contudo, por determinação estável e verdadeira, no discernimento racional daquilo que deve procurar ou evitar. Eis a exposição, menos elegante, porém mais breve e talvez mais clara que a de Aulo Gélio, das decisões estoicas que deve ter lido na obra de Epicteto. 3. Se é assim, não existe ou é mínima a diferença entre a opinião dos estoicos e a dos demais filósofos acerca das paixões e das perturbações da alma. Uns e outros do domínio das paixões eximem a razão e a mente do sábio. E talvez os estoicos digam que o sábio não está sujeito a elas precisamente porque não ocultam com erro algum a sabedoria, que o torna com efeito sábio, ou não a maculam. Sobrevêm ao sábio, sem que lhe perturbem a serenidade interior, nas circunstâncias chamadas vantagens ou inconvenientes, para não lhes darem o nome de males ou bens. Se, na realidade, o referido filósofo estoico estimasse em nada as coisas que o naufrágio lhe tiraria, a saber, a vida e a integridade do corpo, não teria tido tanto medo do perigo, como deixou transparecer, empalidecendo. Não poderia sentir-se emocionado e, contudo, manter a mente fixa no pensamento de que a vida e a integridade do corpo, cuja perda a fúria da tempestade fazia temer, não eram bens susceptíveis de tornar bons os que os possuíssem, como acontece com a justiça? Dizer-se que se não devem chamar bens, mas vantagens, cumpre atribuí-lo a contenda de palavras e não a exame de realidades. Que importa se é mais exato chamá-los bens ou vantagens? Basta que o temor de ver-se privado deles intimide e faça empalidecer não menos o estoico que o peripatético, que, sob nomes diferentes, sentem coisa semelhante? Se, com risco desses bens ou vantagens, um e outro se vissem forçados a praticar algum crime ou velhacaria, de modo que não pudessem conservá-los de outro modo, assegurariam preferir perder isto, que conserva incólume e salva a natureza do corpo, a cometer aquilo, que violenta a justiça. Assim, a mente, sede de tal parecer, não permite que perturbação alguma, embora se faça sentir nas partes inferiores, prevaleça contra a razão. Ao contrário, domina-as e, não consentindo nelas, mas oferecendo-lhes resistência, faz que reine a virtude. Assim Virgílio nos pinta Enéias, quando diz: Seu espírito permanece inabalável, as lágrimas inutilmente correm. CAPÍTULO V As paixões que afetam o ânimo dos cristãos não conduzem ao vício, mas exercitam a virtude. Não há necessidade de apresentar com profusão e esmero o que as divinas Escrituras, manancial da religião cristã, ensinam sobre as paixões. A Deus submetem o espírito, para que o auxilie e dirija, e as paixões ao espírito, para que as modere e refreie, de modo que se convertam aos usos da justiça. Nossa doutrina não procura saber se a alma religiosa entra em cólera, mas pergunta-lhe o porquê da cólera; não procura saber por que está triste, mas pergunta-lhe a causa da tristeza; não procura saber se anda temerosa, mas pergunta-lhe o objeto do temor. Insurgir-se contra o pecador, para corrigi-lo, afligir-se com o aflito, para consolá-lo, e temer pelo que se encontra em perigo, para que não pereça, quem, considerando-o bem, o repreenderá? Também é costume dos estoicos culpar a misericórdia. Com quanto mais razão, porém, se turbaria o referido filósofo estoico pela misericórdia de livrar o homem do que por medo ao naufrágio! Muito melhor, mais humanamente e de modo mais conforme com os sentimentos piedosos falou Cícero em louvor de César: Entre todas as tuas virtudes nenhuma existe mais admirável e mais grata que tua misericórdia. Que é a misericórdia senão certa compaixão da miséria alheia nascida em nosso coração, que, se podemos, nos força a socorrê-la? Esse movimento interior serve à razão, quando se faz a misericórdia de tal maneira que se conserva a justiça, quer quando se dá ao necessitado, quer quando se perdoa o penitente. Cícero, mestre da arte de falar, não vacilou um instante sequer em chamá-la virtude e os estoicos não se envergonham de enumerá-la entre os vícios. Contudo, de acordo com os ensinamentos do livro de Epicteto, tão eminente estoico, segundo a doutrina de Zenão e de Crisipo, principais cabeças da escola do Pórtico, admitem semelhantes paixões na alma do sábio, que querem, por outro lado, livre de todos os vícios. Donde se segue que não as consideram vícios, quando sobrevêm ao sábio, porque nada podem contra a virtude da alma e da razão. Não há, por conseguinte, nenhuma diferença real entre os discípulos de Platão e Aristóteles e os de Zenão. Mas, como diz Cícero, é coisa velha o disputarem os gregos acerca de nomes, mais desejosos de contenda que da verdade. Não é questão interessante saber se pertence à fraqueza de nossa atual condição a susceptibilidade emocional, mesmo na prática do bem? E, por outro lado, se os santos anjos punem sem cólera os que a eterna lei de Deus lhes entrega à justiça, se assistem os miseráveis, sem compadecer-se da miséria, se do perigo livram, sem temor, aqueles a quem querem bem, embora a linguagem comum lhes atribua as afeições humanas, para exprimir certa conformidade de ação e não a fraqueza da paixão? Assim Deus, segundo as Escrituras, se irrita; contudo, paixão alguma poderá irritá-lo. É que se exprime o efeito da vingança, não a turbulência apaixonada da alma. CAPÍTULO VI Paixões de que são objeto os demônios, segundo confissão de Apuleio, que afirma que seu auxílio favorece os homens junto aos deuses. Adiemos a questão dos santos anjos e vejamos como, de acordo com os plat6nicos, os demônios mediadores entre os deuses e os homens se veem vítimas das borrascas passionais. Se, de espírito livre e, por cima, dom indo-as, padecessem as referidas agitações, Apuleio não nos representaria os demônios impelidos pelas vagas tumultuosas da imaginação através de todos os tormentos do coração, de todas as tempestades da alma. Esse espírito, isto é, a parte superior de sua alma, pela qual são racionais, e de onde a virtude e a sabedoria, se neles existissem, deveriam reinar, a fim de moderar as turbulentas paixões das partes inferiores; esse espírito, digo, como o confessa esse platônico, está sujeito às tormentas das paixões. Daí resulta que o espírito dos demônios é escravo da cobiça, dos temores, da cólera e de todos os outros afetos dessa natureza. Que parte, pois, lhes fica livre, e que seja capaz de sabedoria, para poderem agradar aos deuses e excitar nos homens e emulação do bem, quando seu espírito, sujeito e oprimido pelas paixões, serve-se com tanto maior ardor de toda sua inteligência natural para seduzir e enganar, quanto mais está possuído pelo desejo violento de fazer o mal? CAPÍTULO VII Segundo os platônicos, os poetas atribuíram aos deuses afetos que não convêm senão aos demônios. Dir-se-á talvez que, quando os poetas imaginam, sem se afastarem muito da verdade, que os deuses amam ou odeiam deter minados homens, isso não se deve entender de todos os demônios, mas somente daqueles que, segundo Apuleio, estão sujeitos às tormentas das paixões. Mas como poderemos admitir isso, quando, ao dizê-lo, descrevia a mediação entre os deuses e os homens, não a de alguns demônios, isto é, dos maus, mas de todos, graças a seus corpos aéreos? Eis, segundo Apuleio, a ficção dos poetas: De vários demônios fazem deuses, impõem-lhes os nomes dos deuses e a impune licença de sua imaginação reparte-os a seu talante entre os homens como protetores ou como inimigos, ao passo que os deuses se encontram infinitamente afastados de semelhantes desvarios dos demônios, quer pela sublimidade da mansão em que moram, quer pela plenitude da felicidade que gozam. Trata-se, por conseguinte, de ficção poética o chamar deuses os que não são deuses e representá-los sob nomes divinos, combatendo-se por interesses humanos que defendem, por homens de que se declaram adversários ou amigos. E acrescenta que tais ficções não se afastam muito da verdade, porque, suprimidos os nomes pertencentes aos deuses, resta fiel retrato dos demônios. Assim foi a Minerva de Homero que, em meio das discórdias dos gregos, acudiu para deter o furor de Aquiles. Essa Minerva não passa de episódio poético. A verdadeira deusa reside entre os deuses bons e felizes, nas altas regiões do éter, longe do convívio com os mortais. Mas existia certo demônio favorável aos gregos e contrário aos troianos e outro que auxiliava os troianos contra os gregos. O mesmo poeta chama-os Vênus ou Marte, deuses que não faziam tais coisas e Apuleio coloca nas celestiais moradas. Que tais demônios se combateram contra os que odiavam e em prol daqueles a quem queriam bem, segundo sua própria confissão, disseram-no os poetas, não sem alguma verdade. Disseram-no dos que o filósofo atesta flutuarem no oceano tempestuoso das paixões, sujeitos a tomar-se de amor ou de ódio, não segundo a justiça, mas com o cego furor que divide o povo em caçadores e aurigas. Qual, pois, a intenção do filósofo platônico? Não será evitar desprezo que atribuiria, não aos demônios, mas aos próprios deuses, as obras dos demônios representados sob o nome dos deuses? CAPÍTULO VIII Apuleio define os deuses celestes, os demônios aéreos e os homens terrenos. Que digo? Recusaremos séria atenção àquela definição dos demônios? Apuleio não os abrangeu a todos, sem exceção, quando os define como animais apaixonados, dotados de razão, de corpo aéreo e duração eterna? Das cinco qualidades existe, porventura, pelo menos uma que os demônios partilhem com os homens, com exclusão dos maus? Com efeito, quando, depois de haver falado dos deuses do céu, põe-se a definir os homens, para desses dois extremos, a sublimidade infinita e a infinita baixeza, elevar o discurso à região intermediária e aos demônios que a habitam, diz o seguinte: Os homens, que habitam a terra, gozam da razão, possuem o poder da palavra, têm alma imortal e corpo perecível, espírito leviano e inquieto, órgãos grosseiros e corruptíveis, costumes diferentes, erros semelhantes, obstinada audácia, invencível esperança, atividade estéril, fortuna fugitiva, são mortais, individualmente considerados, e perpétuos em seu gênero, mutáveis nas gerações que se sucedem, de efêmera duração e tarda sabedoria, de pronta morte e lamentosa vida. Em dizendo tantas coisas, que convêm à maioria dos homens, silenciou porventura o que sabia privativo de poucos, ao dizer de tarda sabedoria? Se o tivesse silenciado, de modo algum estaria completa a esmerada e diligente descrição do gênero humano. Ao encarecer a excelência dos deuses, afirmou que neles sobressai a felicidade, meta à qual pela sabedoria os homens aspiram. Portanto, se quisesse persuadir-nos da existência de demônios bons, à descrição acrescentaria algo que nos levasse a pensar terem de comum, quer com os deuses alguma parte da felicidade, quer com os homens algo de sabedoria. Não faz, entretanto, menção de nenhum bem que dos maus distinga os bons; abstém-se, contudo, de revelar-lhes com inteira liberdade a malícia, menos por medo a ofendê-los que para não desgostar aqueles a quem se dirigia. Insinua, claramente, entretanto, às pessoas inteligentes o que é preciso pensar dos demônios, quando da bondade e beatitude dos deuses relega as paixões e suas tempestades, não admitindo de comum entre os deuses e tais espíritos senão a eternidade corporal. Inculca, de maneira manifesta, que a alma dos demônios se assemelha não aos deuses mas aos homens, não pela posse da sabedoria que o homem pode alcançar, mas pela miséria das paixões que dominam o insensato e o mau e de que o justo e o sábio triunfam, embora de tal modo, que preferem não tê-las a vencê-las. Com efeito, se, por eternidade, que diz comum aos deuses e aos demônios, quisesse dar a entender a do espírito e não a do corpo, não excluiria os homens; filósofo platônico, acreditou, sem dúvida, na eternidade da alma humana. Não definiu assim o homem: Ser dotado de alma imortal e órgãos perecíveis? Se, por conseguinte, a mortalidade corporal exclui os homens da partilha da eternidade com os deuses, é à imortalidade corporal que tais demônios devem semelhante privilégio. CAPÍTULO IX Podem os homens, por intercessão dos demônios, granjeara amizade dos deuses celestes? De que índole são os mediadores entre os homens e os deuses, mediadores por intermédio de quem os homens granjeiam a simpatia dos deuses? E possível inferi-la de terem de comum com os homens o pior, que é o melhor no animal, ou seja, a alma, e com os deuses o melhor, que é no animal o pior, ou seja, o corpo. O animante, isto é, o animal, consta de alma e de corpo. De ambos os elementos, a alma é por certo melhor que o corpo e, embora viciosa e fraca, é melhor que o corpo mais robusto e sadio, por ser de natureza mais excelente e não pospor-se ao corpo por causa da mácula dos vícios, assim como o ouro, apesar de impuro, é mais caro que a prata e preferível ao chumbo, embora puríssimo. Tais mediadores entre os deuses e os homens, graças a cuja intervenção o humano se une ao divino, têm de comum com os deuses o corpo eterno e com os homens os vícios do espírito. Como se a religião, pela qual querem que os homens se unam aos deuses, através dos demônios, estivesse assentada no corpo e não no espírito. Que malignidade ou, antes, que castigo fez com que os enganadores e falsos mediadores ficassem suspensos como que de cabeça para baixo, de modo a terem de comum com os superiores a parte inferior do animal, isto é, o corpo, e de comum com os inferiores a parte superior, ou seja, o espírito? E qual, para que estejam unidos com os deuses celestes na parte que obedece e sejam miseráveis com os homens terrestres na parte que ordena? O corpo, com efeito, é escravo, como diz também Salústio: Usamos do império do espírito e mais do serviço do corpo. E acrescentou: O primeiro temos de comum com os deuses; o segundo, com as bestas. Falava dos homens, que têm, como as bestas, corpo mortal. Os mediadores entre nós e os deuses, de que nos proveram os filósofos, é certo poderem dizer do espírito e do corpo: O primeiro temos de comum com os deuses; o segundo, com os homens. Mas, segundo afirmei, como que acorrentados e suspensos de cabeça para baixo, tendo de comum com os deuses bem-aventurados o corpo, escravo, e de comum com os homens miseráveis o espírito, senhor. Exalta-os a parte inferior e abate-os a superior. Donde se infere que, se alguém pensar terem de comum com os deuses a eternidade precisamente porque, à semelhança dos espíritos terrestres do corpo, morte alguma lhes separa o espírito, nem por isso se deve considerar-lhas o corpo como eterno veículo de homens de bem, mas como vínculo eterno de condenados. CAPÍTULO X Segundo o modo de pensar de Plotino, os homens são menos miseráveis no corpo mortal que os demônios no Eterno. Platina, de recente memória, avantaja-se a todos os intérpretes de Platão. Ao falar da alma humana, diz: O Pai, por sua misericórdia, deu-lhe vínculos mortais. A mortalidade corporal é, pois, testemunho da misericórdia do Pai para com os homens; não quis encadeá-las para sempre às misérias desta vida. Julgou indigna de semelhante clemência a iniquidade dos demônios; com todas as mal-aventuradas paixões do homem, não recebeu, como ele, corpo sujeito a morrer, mas corpo imortal. O homem, com efeito, deveria invejar a felicidade dos demônios, se partilhassem com ele a mortalidade do corpo e com os deuses a beatitude da alma. Os demônios nada teriam a invejar ao homem, se, de alma miserável, merecessem obter corpo mortal, logrando, assim, que derradeiro sentimento de piedade lhes desse aos sofrimentos ao menos o repouso da morte. Longe, porém, de serem mais felizes que os homens, de que têm todas as misérias morais, são ainda mais infelizes, pois a eternidade do corpo lhes eterniza o cativeiro. Porque não permite supor que transformação interior, progresso na ciência da sabedoria, os eleve à categoria de deuses. Não disse Apuleio de maneira muito clara ser eterna a condição dos demônios? CAPÍTULO XI Opinião dos platônicos, segundo a qual as almas dos homens depois da morte são demônios. Diz ainda, é verdade, serem demônios as almas humanas; os homens, se foram virtuosos, transformam-se em Lares; maus, tornam-se Lêmures ou Larvas; quando não se sabe se foram bons ou maus, recebem o nome de deuses Manes. Que abismo de depravação abre semelhante crença! Quem não o vê, por menos que o considere? Por mais perversos que os homens sejam, ao pensarem que se transformam em Larvas ou em deuses Manes ficam tanto piores quanto maior o desejo que têm de praticar o mal. Acreditam, desse modo, que, depois de mortos, lhes oferecerão alguns sacrifícios e honras divinas, para convidá-los à nocividade. As Larvas, diz Apuleio, são homens transformados em demônios malfazejos. Mas aqui surge outra questão. Pretende que em grego os bem-aventurados se chamam eudáimones, por serem de bom espírito, ou seja, bons demônios, confirmando serem demônios as próprias almas dos homens. CAPÍTULO XII Ternos contrários, que, segundo os platônicos, distinguem entre a natureza dos demônios e a dos homens. Mas agora estamos falando é dos demônios cuja natureza particular Apuleio definiu, intermediários entre os deuses e os homens, animais racionais, sujeitos a paixões, aéreos, eternos. Porque, depois de colocar entre os deuses e os homens a distância infinita que lhes separa a natureza e o lugar em que se encontram, a saber, o alto céu e a humildade da terra, assim conclui: Tendes, por conseguinte, duas espécies de seres animados: os homens e os deuses, tão diferentes dos homens pela sublimidade do lugar, pela perpetuidade da vida e pela perfeição da natureza. Não há entre eles nenhuma comunicação próxima, por ser muito grande o intervalo do abismo que das ínfimas separa as moradas supremas. Aqui, a vida é indefectível e eterna; ali, caduca e perecível. Os espíritos dos deuses elevam-se ao ápice da beatitude; os dos homens rastejam em profunda miséria. Eis, portanto, as três qualidades contrárias das duas naturezas extremas, a suprema e a ínfima. Reproduz os três caracteres de excelência que atribui aos deuses e opõe-lhes os três caracteres de inferioridade que assinala nos homens. Aos deuses pertencem a sublimidade do lugar, a eternidade da existência e a perfeição da natureza. Eis as oposições que o destino humano apresenta. Com a sublimidade do lugar dos deuses contrasta nossa mísera morada; com a eterna e inesgotável vitalidade, nossa vida fugitiva e frágil; com a elevação dos divinos espíritos ao cume da beatitude, a humilhação do espírito humano nas profundezas da miséria. Assim, às três perfeições divinas, a exaltação, a eternidade, a beatitude, correspondem os três termos da condição humana, a saber, a morada terrestre, o mal e a morte. CAPÍTULO XIII Como os demônios, sem serem felizes com os deuses nem miseráveis com os homens, ficam entre ambas as partes, sem comunicar-se com estes nem com aqueles. 1. Entre as duas ordens de atributos opostos que separam os homens dos deuses, como classificar os demônios? Não há, de início, dificuldade alguma, quanto ao lugar, pois Apuleio lhes atribui posição intermediária. Pois, entre os dois extremos, a saber, entre o lugar supremo e o lugar ínfimo, se subentende necessariamente o intermédio. Mas restam duas circunstâncias que requerem cuidadoso exame. São estranhas aos demônios? Ou podem ser-lhes atribuídas, como parece exigir o papel de mediadores? Ora, não poderiam ser-lhes estranhas. Se, com efeito, definimos o lugar médio dizendo que não é nem o mais alto nem o mais baixo, contudo não nos é possível dizer que os demônios, animais racionais, nem são felizes, nem infelizes, como as plantas ou os brutos desprovidos de sentimento ou de razão. Porque é necessário que a alma racional seja feliz ou infeliz. E, ainda, impossível dizer que os demônios nem são mortais, nem imortais, porque todo ser vivo vive eternamente ou acaba por morrer. E, segundo Apuleio, os demônios são eternos. Que resta, senão que, situados entre as duas naturezas extremas, tenham uma coisa das duas supremas e outra das duas ínfimas? Porque, se os dois outros atributos, quer na ordem superior, quer na ordem inferior, lhes são conferidos, perdem a posição intermediária e retombam em um ou em outro extremo. Ora, é impossível, já o demonstramos, que um e outro dos atributos lhes faltem ao mesmo tempo; torna-se necessário, pois, que tenham uma das duas partes para conservar o meio. Mas o extremo inferior não poderia dar-lhas a eternidade que não tem; tomam-na, por isso, de empréstimo ao extremo superior e, para tornar-se completa a mediação, resta-lhes apenas ter do extremo inferior a miséria. 2. É privativa dos deuses sublimes, segundo os platônicos, ou eternidade feliz ou felicidade eterna; dos homens ínfimos, ou miséria mortal, ou mortalidade miserável; dos demônios mediadores, ou mísera eternidade, ou eterna miséria. Ora, as cinco qualidades que, definindo-os, Apuleio lhes atribui não provam, segundo o filósofo promete, a mediação dos demônios entre os deuses e os homens. Porque lhes atribui três qualidades de comum conosco: natureza animal, espírito racional e alma sujeita a paixões, uma só de comum com os deuses, a eternidade, e uma só que lhes é própria, a sutil idade aérea do corpo. Como poderão pois conservar-se no meio, se têm uma coisa em comum com os seres superiores e três com os inferiores? Quem não vê quanto se afastam do meio, como se inclinam e pendem para baixo? A mediação, contudo, poderia ser possível, estabelecendo-se que dos diversos atributos um apenas lhes é próprio, o corpo aéreo, como, quanto aos dois extremos contrários, o corpo celeste pertence aos deuses, o corpo terrestre aos homens, a todos a posse de alma e razão. Não nos diz Apuleio, falando dos deuses e dos homens: Tendes duas espécies de seres animados? E os platônicos jamais apresentam os deuses, senão como espíritos racionais. Restam, por conseguinte, dois atributos: a paixão e a eternidade, o primeiro em comum com os seres de ordem inferior, o segundo com os de ordem superior. Assim, a condição dos demônios permanece intermediária e em justo equilíbrio entre a extrema exaltação e o extremo rebaixamento. Eis, portanto, o destino dos demônios: eternidade infeliz ou miséria eterna. Com efeito, o filósofo que os declara de natureza sujeita a paixões ter-lhes-ia também atribuído participação na miséria, se não se envergonhasse pelos que os adoravam. Ora, como, segundo confissão dos próprios platônicos, é a providência de Deus e não a temerária fortuna que governa o universo, a miséria dos demônios não seria, em absoluto, eterna, caso não fossem dotados de profunda malícia. 3. Se aos bem-aventurados é justo chamar eudáimones, não são, por conseguinte, eudáimones os demônios intermediários entre os deuses e os homens. Que lugar seria, com efeito, o dos bons demônios que, acima dos homens, lhes prestariam assistência e, abaixo dos deuses, os serviriam? De fato, se eternos e bons, sem dúvida são felizes. Ora, a eterna beatitude afasta-os do meio, aproximando-os dos deuses à medida que os separa dos homens. Assim, inutilmente se procura conciliar a beatitude e a imortalidade dos demônios com a situação intermediária em que se encontram entre os deuses imortais e felizes e os homens miseráveis e mortais. Com efeito, se têm com os deuses a beatitude e a imortalidade, atributos recusados ao homem, destinado às misérias e à morte, afastá-los do homem e associá-los aos deuses não é mais exato que atribuir-lhes posição intermediária entre os deuses e o homem? Pertencer-lhes-ia o meio, se correspondessem a dois atributos, não de uma parte ou de outra, mas de uma e de outra parte. Assim, o homem é como que meio termo entre os brutos e os anjos: os brutos, seres animados, irracionais, mortais; os anjos, seres animados, racionais, imortais; o homem, intermediário, inferior aos anjos, superior aos brutos, partilha a mortalidade com os brutos e a razão com os anjos. Em suma, é animal racional e mortal. Por conseguinte, procurando encontrar o meio termo entre os bem-aventurados imortais e os miseráveis mortais, devemos encontrar bem-aventurado mortal ou miserável imortal. CAPÍTULO XIV Podem os homens, sendo mortais, ser felizes de felicidade verdadeira? Os homens discutem grande problema: Pode o homem ser feliz e mortal? Alguns, considerando-lhe com humildade a condição, negam ao homem a possibilidade de ser feliz, enquanto viver para morrer. Outros, exaltando-se a si mesmos, atreveram-se a dizer que o sábio, embora mortal, pode alcançar a felicidade. Se é assim, por que não elevá-lo, antes, à categoria de mediador entre os mortais infelizes e os bem-aventurados imortais, se com estes partilham a felicidade e com aqueles a mortalidade? É fora de dúvida que, se felizes, não invejam ninguém, porque nada existe mais miserável que a inveja. E, portanto, velam quanto podem pelos miseráveis mortais, para que consigam a felicidade e possam também, depois da morte, ser imortais em companhia dos anjos e dos bem-aventurados imortais. CAPÍTULO XV Jesus Cristo, homem, mediador entre Deus e os homens. 1. Se, de acordo com a opinião mais provável e mais digna de confiança, os homens são todos necessariamente infelizes, enquanto permanecem sujeitos à morte, torna-se preciso procurar mediador que não seja apenas homem, mas também Deus, e por intervenção de bem-aventurada mortalidade conduza os homens da miséria mortal à imortalidade feliz. Ora, semelhante mediador não devia ser isento da morte nem permanecer para sempre seu escravo. Fez-se mortal, sem enfraquecer a dignidade do Verbo, mas desposando a fraqueza da carne. E não permaneceu mortal na carne, porque ressurgiu dos mortos. Fruto de tal mediação é não permanecerem eternamente na morte da carne aqueles cuja libertação teve de operar. Era necessário, pois, que o mediador entre nós e Deus reunisse mortalidade passageira e beatitude permanente, a fim de ser conforme aos mortais no que passa e chamá-los do fundo da morte ao que permanece. Os anjos bons não podem, portanto, ser medianeiros entre os infelizes mortais e os bem-aventurados imortais, por serem eles próprios bem-aventurados imortais; mas os anjos maus podem, porque partilham a imortalidade com estes e a infelicidade com aqueles. Adversário deles é o bom mediador que, à imortalidade e miséria, quis opor-lhes a própria felicidade eterna. Imortais soberbos, infelizes culpados, reduz-lhas a faustosa imortalidade à impotência de seduzir e, pela humildade de sua morte e larguezas de sua beatitude, arruína-lhes o império nos corações que purifica pela fé e livra da imunda tirania dos demônios. 2. Que mediador escolherá o homem mortal e miserável, infinitamente afastado dos bem-aventurados e imortais, para alcançar a imortalidade e a bem-aventurança? Não passa de miséria o que na imortalidade dos demônios possa agradar. Já não existe o que na mortalidade de Cristo possa causar desagrado. É preciso, ali, conjurar miséria eterna; aqui, não se deve temer a morte, porque não pôde ser eterna, e deve-se amar a felicidade sempiterna. O imortal infeliz não intervém, por conseguinte, senão para fechar-nos a passagem à bem-aventurada imortalidade; o obstáculo que nos opõe é eterno, é sua própria miséria. O bem-aventurado mortal fez-se mediador e sofreu a prova mortal para dar imortalidade aos mortos (prova-o sua ressurreição) e aos infelizes a bem-aventurança que jamais se retirou dele. Há, por conseguinte, mediador maligno que separa os amigos e bom mediador que reconcilia os inimigos. E são numerosos os mediadores que separam, porque a multidão bem-aventurada não esgota a felicidade senão em sua união com o Deus único; despojada da união, a mal-aventurada multidão de anjos maus, enxame malfazejo que, por assim dizer, zumbe em torno de nós, para desviar-nos do caminho da soberana beatitude a que nos chama, não vários mediadores, mas um só, o mesmo cuja união nos torna felizes, o Verbo de Deus, o Verbo incriado, criador de todas as coisas, a mal-aventurada multidão de anjos maus, dizíamos, constitui oposição e impedimento, não interposição e auxílio, para a felicidade, obstando-nos de certo modo a possibilidade de chegar ao único bem beatífico. Não é mediador por ser o Verbo, porque o Verbo, sumamente imortal e sumamente bem-aventurado, está longe dos míseros mortais. É mediador por ser homem, mostrando, assim, que para alcançar o bem, não apenas feliz, mas também beatífico, não é necessário buscar outros mediadores, que nos preparem os degraus, porquanto Deus, de quem emana toda beatitude, dignando-se associar-se à nossa humanidade, nos associa pelo caminho mais curto à sua divindade. E, libertando-nos da mortalidade e da miséria, não é aos anjos que nos une para tornar-nos imortais de sua imortalidade, bem-aventurados de sua beatitude; eleva-nos à própria Trindade cuja comunhão faz a felicidade dos anjos. Assim, enquanto, para ser mediador, quer, sob o aspecto de escravo, situar-se abaixo dos anjos, permanece sempre acima dos anjos por sua natureza de Deus; Ele, que no céu é a própria vida, é na terra o caminho da vida. CAPÍTULO XVI É racional a definição dada pelos platônicos sobre os deuses celestes, ao dizer que, furtando-se aos contágios da terra, não se misturam com os homens, a quem os demônios sufragam, para granjear a amizade dos deuses? 1. A verdade repele a opinião que o platônico Apuleio atribui a Platão: Nenhum Deus se mistura com a humanidade, acrescentando que o principal caráter da grandeza dos deuses é jamais serem manchados pelo contacto do homem. Os demônios, segundo confessa, mancham-se; é-lhes, pois, impossível purificar quem os mancha; tornam-se todos igualmente impuros, os demônios pelo contacto dos homens, os homens pelo culto aos demônios. Se os demônios podem misturar-se com a humanidade, sem ficarem manchados, são, portanto, superiores aos próprios deuses, que não poderiam fazê-la. Com efeito, não é soberano privilégio deles habitar, em alturas infinitas, esfera inacessível ao contacto do homem? E o Deus supremo, criador de todas as coisas, por nós chamado verdadeiro Deus, é, segundo o testemunho de Platão, citado por Apuleio, o único de quem a indigência da palavra humana não pode dar ideia, mesmo insuficiente; apenas se revela ao olhar dos sábios, quando o vigor da alma já os desprendeu, tanto quanto possível, do corpo; mas passa rápido como relâmpago que atravessa as trevas mais espessas. Se, por conseguinte, Deus, verdadeiramente Senhor e Mestre, às vezes se revela, rápido como relâmpago que atravessa luz pura e presente, com presença inteligível, à alma do sábio, em que não recebe mancha alguma, por que colocar os deuses tão longe, tão alto, para subtraí-las ao contacto com o homem? Quê? Não basta ver os corpos celestes esparzindo pela terra luz suficiente para essas necessidades? Ora, se nosso olhar não mancha os astros, que passam, sem exceção, por deuses visíveis, manchará os demônios, embora vistos de mais perto? Mas talvez a voz, senão o olhar do homem, atente contra a pureza dos deuses e, por isso, é que os demônios, intermediários, lhes transmitem a palavra humana, sem que a sublimidade de seu lugar se abaixe ou sua pureza se contamine? Falarei dos outros sentidos? Os deuses, se presentes, não poderiam ser manchados pelo olfato, porquanto os demônios, vizinhos do homem, não sofrem, em absoluto, as emanações da vida humana, pois a infecção dos cadáveres imolados nos altares não poderia atingi-las. O sentido do gosto não interessou os deuses pela necessidade de reparar a natureza mortal, porque jamais a fome os reduziu a pedir alimentos aos homens. O tacto depende deles. É de certa ação de tal sentido, do contacto, que se trata. Não poderiam, se quisessem, misturar-se com os homens, vê-las e serem vistos por eles, ouvi-las e serem ouvidos por eles? Qual a necessidade de tocá-las? O homem não se atreveria, sem dúvida, a alimentar semelhante desejo, satisfeito de gozar da vista, da conversação dos deuses ou dos bons demônios. E, se a curiosidade do homem alcançasse os limites de tal desejo, com que habilidade poderia tocar qualquer deus, contra a vontade dele, ou qualquer demônio quem não pode tocar sequer um pardal, se não o tem engaiolado? 2. Logo, os deuses poderiam comunicar-se corporalmente com os homens pela vista, pelas palavras e pelo ouvido. Se os demônios se comunicam assim e não se contaminam e se os deuses se contaminam, se se comunicam, digam que os demônios são incontamináveis e os deuses, contamináveis. E, se também os demônios se contaminam, que conferem eles para a futura vida feliz aos homens, a quem não podem desprender da própria contaminação, para torná-las capazes, uma vez purificados, de unir-se aos deuses incontaminados, visto como foram constituídos medianeiros entre os deuses e os homens? Se não lhes conferem tal benefício, que aproveita aos homens a benévola mediação dos demônios? Será, porventura, para que depois da morte os homens não passem aos deuses por intermédio dos demônios, mas vivam, homens e demônios, contaminados e, por isso, nem uns, nem outros felizes? Dir-se-á que, semelhantes à esponja, retêm toda a imundícia de que purificam os amigos? Se assim é, não evitaram os deuses a vizinhança e o contacto do homem, para se misturarem com a impureza dos demônios? Ou será que os deuses, sem deixar de ser puros, podem do contacto humano purificar os demônios, poder que em relação ao homem lhes falta? Quem poderia conceber tais pensamentos, senão o enganado pelos enganadores demônios? Quê? O olhar mancha e, entretanto, não embaça os deuses visíveis, luzeiros do mundo, e todos os outros corpos celestes? De acordo com isso, os demônios não se encontram mais seguros da contaminação dos homens, pois, se não quiserem, não podem ser vistos. E, se mancha não o serem vistos, mas o verem, neguem que os claríssimos luzeiros do mundo, que acreditam serem deuses, veem os homens, quando projetam seus raios sobre a terra. Não se maculam seus raios difundidos por quaisquer imundícies e macular-se-iam os deuses, se se misturassem com os homens, embora o contacto fosse necessário para socorrê-las? Os raios do sol e da lua tocam a terra. Têm, por isso, luz menos pura? CAPÍTULO XVII Para a consecução da vida feliz, que consiste na participação do sumo bem, o homem não necessita de mediador tal qual é o demônio, mas tal qual é Cristo. Maravilha-me muito que homens de tal maneira sábios, que pensaram que todas as coisas corporais e sensíveis devem pospor-se às incorpóreas e inteligíveis, façam, quando tratam da vida feliz, menção dos contactos corporais. Onde está, por conseguinte, o que disse Plotino: Deve-se fugir para a caríssima pátria; lá se encontra o Pai e lá se encontram todas as coisas. Em que batel ou como se há de fugir? Tornando-se semelhante a Deus. Se, portanto, quanto mais alguém é semelhante a Deus, tanto mais se aproxima dele, entre Ele e nós apenas se interpõe a dessemelhança. A alma do homem é tanto mais dessemelhante do ser incorpóreo, incomutável e eterno, quanto mais ávida se revela das coisas temporais e mutáveis. A alma é necessário curá-la. E, como não existe relação alguma entre a pureza imortal reinante no céu e a baixeza rastejante na terra, torna-se necessário o mediador. Mas não há de ser tal que tenha corpo imortal semelhante ao dos seres supremos e alma enfermiça igual à dos ínfimos, porque semelhante fraqueza o levaria a invejar-nos a cura, de preferência a concorrer para ela. Torna-se necessário mediador que, unindo-se à nossa baixeza pela mortalidade do corpo, pela imortal justiça do espírito permaneça na glória da divindade, na altura infinita que não é distância, mas inalterável conformidade com o pai, mediador, enfim, que possa prestar socorro verdadeiramente divino à obra de nossa purificação e libertação. Longe de Deus, soberana pureza, o temor de receber qualquer mancha do homem cuja forma revestiu ou dos homens entre quem, sendo homem, viveu. Não são de pouco valor as duas coisas que salutarmente nos mostrou em sua encarnação, a saber, que nem a carne pode contaminar a verdadeira divindade, nem os demônios devem ser considerados melhores que nós, por não serem de carne. Eis, segundo os termos das Santas Escrituras, o Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, Homem, cuja divindade, pela qual é sempre igual ao Pai, e cuja humanidade, pela qual se fez semelhante a nós, este lugar não é adequado para desenvolvê-las segundo merecem e de acordo com nossa possibilidade. CAPÍTULO XVIII A falácia dos demônios, ao prometerem com sua intercessão o caminho até Deus, tem o único objetivo de desviar os homens do caminho da verdade. Os demônios, falsos e pérfidos mediadores que em suas obras se manifestam míseros e malignos, por causa da imundície do espírito, aproveitam-se das vantagens dos lugares corporais em que moram e da ágil sutileza dos corpos, para suspender, para impedir o progresso de nossas almas e, longe de abrir-nos o caminho que leva a Deus, semeiam-no de armadilhas. E caminho falso e cheio de erros a que nos encaminham, caminho corporal em que não caminha a justiça, porque não é, em absoluto, por elevação mensurável, mas espiritual, é por semelhança incorpórea que devemos elevar-nos a Deus. E é nesse caminho corporal, disposto de acordo com a hierarquia dos elementos, que os filósofos, amigos dos demônios, colocam, entre o homem terrestre e os deuses do céu, os mediadores aéreos, persuadidos de ser atributo essencial da divindade o imenso intervalo que a preserva de todo contacto humano. Assim, segundo os referidos filósofos, ao invés de os demônios purificarem os homens, os homens mancham os demônios; os próprios deuses não poderiam escapar à contaminação, se não se refugiassem nas alturas. Quem será tão infeliz que pense ser purificado neste caminho em que se afirma que os homens contaminam, que os demônios são contaminados e que os deuses podem sê-lo? Não dará sua preferência ao caminho em que se evitam os demônios que contaminam e no qual são purificados de sua contaminação pelo Deus incontaminável, para iniciar a companhia dos anjos incontaminados? CAPÍTULO XIX Mesmo entre os que os adoram a denominação de demônios tem sentido pejorativo. Mas, para não parecer que também disputamos sobre palavras, visto como alguns dos, por assim dizer, demonólatras, entre os quais Labeão, referem que outros chamam anjos aos que deles recebem o nome de demônios, parece-me boa a ocasião para dizer algo a respeito dos anjos bons, cuja existência os platônicos não negam, preferindo, porém, chamá-los demônios bons. Quanto a nós, o testemunho das Santas Escrituras, uma das bases de nossa fé, ensina-nos a ver anjos bons e anjos maus, porém, jamais fala de demônios bons. Em qualquer passagem das Sagradas Letras jamais se emprega tal nome; quer diga daemones ou daemonia, não designa senão os espíritos malignos. Semelhante sentido é tão geralmente adotado que, entre os próprios pagãos, apaixonados pelo culto a essa multidão de deuses e demônios, não há, em absoluto, sábio ou letrado que ouse, em elogio a seu próprio escravo, dizer: "Tens o demônio". Não cabe a menor dúvida de que todo aquele a quem o diga não entenderá senão que a pessoa que lho disse teve intenção de ofendê-lo. Existe, porventura, algo que nos force, depois de ofendermos a delicadeza de tantos ouvidos, que são todos, quase, acostumados a dar sinistra acepção a tal nome, a ver-nos constrangidos a expor o que dissemos, podendo evitar, com o simples emprego do nome de anjos, a ofensa que o nome de demônios poderia suscitar? CAPÍTULO XX Qualidade da ciência que torna soberbos os demônios. Se consultarmos os Livros Sagrados, a própria origem do nome de demônio apresenta particularidade digna de ser conhecida. Chamam-se daimones (demônios), por causa da ciência, pois a palavra é grega. Mas o Apóstolo, inspirado pelo Espírito Santo, disse: A ciência infla e a caridade edifica. Quer dizer que a ciência não é útil senão quando acompanhada pela caridade e, sem a caridade, a ciência infla o coração e o enche do vento da vanglória. Assim, os demônios têm a ciência sem a caridade; daí a ímpia soberba que os impele a usurpar ainda, quanto possível, junto de quem lhes é possível, as honras divinas e a homenagem de dependência devidas ao verdadeiro Deus. Para triunfar de semelhante soberba, que oprime o gênero humano justamente escravizado, qual o infinito poder da humildade de Deus, manifestado sob a forma de escravo, é segredo para as almas humanas infladas de fastuosa impureza, semelhantes aos demônios pelo orgulho e não pela ciência. CAPÍTULO XXI A que ponto o Senhor quis descobrir-se aos demônios. E os próprios demônios tampouco o ignoram, pois diziam ao Senhor, revestido da fraqueza da carne: Que hé entre nós e ti, Jesus de Nazaré? Vieste perder-nos antes do tempo? Está claro em tais palavras haver neles a ciência do grande mistério e faltar-lhes a caridade. Dele temiam o castigo e não amavam nele a justiça. Ora, deu-lhes a conhecer tanto quanto Ele quis e quis tanto quanto conveio. Mas, deu-se a conhecer, não como aos santos anjos, partícipes de sua bem-aventurada eternidade, como Verbo de Deus, mas como teve de revelar-se-lhes para infundir-lhes terror. De seu tirânico domínio devia livrar de certo modo os predestinados para seu reino, para a glória eternamente verdadeira e verdadeiramente eterna. Revela-se, pois, aos demônios, não na qualidade de vida eterna e luz incontaminável que ilumina os santos, luz que brilha aos olhos da fé e purifica o coração, mas, por certos efeitos passageiros de seu poder, por certos sinais de sua presença oculta, mais sensíveis à natureza espiritual, mesmo dos espíritos malignos, que à fraqueza do homem. E, quando, julgando apropositado suprimir esses brilhantes sinais, reentra por algum tempo em segredo mais profundo, o príncipe dos demônios põe-no em dúvida e tenta-o para verificar se é o Cristo. Tenta-o, porém, quanto o Cristo lho permite, para reduzir sua humanidade às condições de modelo proposto à nossa. Mas, depois da tentação, quando os anjos o servem, como está escrito, os bons e santos anjos, diante dos quais tremem os espíritos impuros, os demônios reconhecem cada vez mais quanto é grande, vendo que à sua ordem, por desprezível que parecesse na fraqueza da carne, ninguém se atreveria a resistir. CAPÍTULO XXII Diferenças entre a ciência dos santos anjos e a dos demônios. Para os anjos bons, toda ciência de coisas temporais e corpóreas, que ensoberbece os demônios, não passa de miserável ciência, não porque a desconheçam, mas por ser-lhes cara a caridade de Deus, que os santifica. Fora de tal beleza, não somente incorpórea, mas também incomutável e inefável, em cujo santo amor ardem, todas as coisas inferiores e diferentes dela são desprezadas pelos anjos bons, que entre elas se desprezam a si mesmos, para gozarem de todo o bem neles existente, bem que é a fonte de sua bondade. E conheceram com maior certeza as coisas temporais e mutáveis precisamente porque no Verbo de Deus, por quem foi feito o mundo, contemplavam as causas primeiras das coisas, causas que às vezes aprovam, às vezes reprovam, mas sempre ordenam. Os demônios, ao contrário, na Sabedoria de Deus, não contemplam as causas eternas e de certo modo cardiais dos tempos, mas simplesmente, com experiência maior de alguns sinais ocultos a nós, alcançam ver muito mais coisas futuras que os homens. Finalmente, estes muitas vezes se enganam; os anjos, nunca. Uma coisa é conjeturar as coisas temporais pelas temporais e as mutáveis pelas mutáveis e aplicar-lhes o módulo temporal e mutável de seu querer e seu poder, coisa dentro de certos limites permitida aos demônios; outra, prever, nas leis eternas e incomutáveis de Deus, que vivem em sua Sabedoria, as mutações dos tempos e conhecer pela participação de seu Espírito o querer certíssimo e potentíssimo de Deus sobre todos os seres. Tal privilégio é concedido aos santos anjos com profundo discernimento. Gozam, pois, ao mesmo tempo, da eternidade e da beatitude; o bem que os extasia é Deus, seu criador. A vista, a eterna posse de sua divindade, mergulha-os em inesgotáveis delícias. CAPÍTULO XXIII O nome de deuses, comum, por autoridade das Divinas Escrituras, aos santos anjos e aos homens justos, aplica-se falsamente aos deuses dos gentios. 1. Se os platônicos a chamá-los demônios preferem chamá-los deuses e colocá-los entre os deuses, que, segundo Platão, seu autor e seu mestre, foram feitos pelo supremo Deus, digam o que quiserem. Não vou discutir com eles a terminologia. Se dizem serem imortais mas criados pelo supremo Deus e felizes, não por si mesmos, mas por união com o Criador, dizem o mesmo que nós, embora os chamem de maneira diferente. Que tal é o pensamento de todos os platônicos ou dos mais célebres é possível verificar em seus livros. Mas, quanto ao mesmo nome, quer dizer, quanto ao chamarem deuses a criaturas imortais e bem-aventuradas, apenas há ligeira discordância entre nós e eles. Em nossas Sagradas Letras está escrito: O Deus dos deuses, o Senhor falou, e, noutra parte: Louvai o Deus dos deuses. O porquê de dizer nesta outra passagem: Terrível é sobre todos os deuses está evidenciado logo a seguir: Porque todos os deuses dos gentios são demônios; mas o Senhor fez os céus. Disse, portanto: Sobre todos os deuses, mas dos gentios, isto é, sobre os que os gentios consideram deuses e são demônios. Por isso é terrível. Intimidados por esse terror, diziam a Jesus: Vieste destruir-nos? A passagem em que se lê: o Deus dos deuses não pode ser entendida assim: o Deus dos demônios. E o Rei grande sobre todos os deuses livre-nos Deus de interpretá-lo como Rei grande sobre todos os demônios. Aos homens, no povo de Deus, a própria Escritura dá o nome de deuses. Assim, por exemplo: Eu disse: Deuses sais e todos filhos do Altíssimo. Pode assim entender-se o Deus desses deuses, quando se diz o Deus dos deuses, e, sobre esses deuses, o Rei grande, quando se diz Rei grande sobre todos os deuses. 2. Se, contudo, nos perguntam: Se os homens se chamam deuses por estarem no povo de Deus, a que Deus fala por intermédio dos anjos ou dos homens, não são mais dignos de tal nome os imortais, que gozam da felicidade a que, adorando a Deus, os homens desejam chegar? Que responderemos? Que não inutilmente as Santas Escrituras mais expressamente chamam deuses aos homens que aos imortais e bem-aventurados, a quem nos é prometido ser iguais na ressurreição. Quer dizer, fazem-no para que a infiel fraqueza não se atreva, impressionada pela excelência de semelhantes criaturas, a procurar algum deus entre elas. E fácil evitá-lo no homem. Deveram, portanto, chamar-se mais claramente de deuses os homens no povo de Deus, para que fosse maior sua certeza, maior sua confiança em que era seu Deus aquele de quem se disse o Deus dos deuses. Porque, embora se chamem deuses os imortais e bem-aventurados, que se encontram nos céus, não foram denominados deuses dos deuses, isto é, dos homens constituídos no povo de Deus, a quem se disse: Eu disse Deuses sais e todos filhos do Altíssimo. É no que se funda o que disse o Apóstolo: Embora haja alguns que se chamam deuses, quer no céu, quer na terra, pois há muitos deuses e senhores, para nós há um Deus apenas, o Pai, de quem são todas as coisas e em quem somos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem são todas as coisas e por quem somos. 3. Não se tornam, pois, necessárias muitas averiguações sobre o nome, por tratar-se de coisa tão clara, que exclui toda e qualquer dúvida. Mas, quando entre os bem-aventurados imortais colocamos os anjos por quem Deus anuncia aos homens sua vontade, os platônicos não concordam conosco, pois atribuem tal ministério, não aos bem-aventurados imortais a que chamam deuses, mas aos demônios de que afirmam a imortalidade, não a beatitude, duplo privilégio que talvez lhes concedam, algumas vezes, como bons demônios, não como deuses. Infinita distância não protege os deuses do contacto do homem? Questão de palavras, vá, lá. Mas o nome de demônios é de tal maneira odioso que devemos, em absoluto, poupá-lo aos santos anjos. Concluamos, por conseguinte, para encerrar este livro, que os bem-aventurados imortais, mas criaturas, seja qual for o nome, não podem servir de mediadores, nem podem conduzir à felicidade eterna os infelizes mortais de quem os separa dupla diferença. Quanto aos pretensos mediadores, que da ordem superior participam pela imortalidade e da ordem inferior pela miséria, como seu infortúnio é justo castigo, não se encontram antes desejosos de roubar-nos que de conseguir-nos a felicidade que lhes falta? Os amigos dos demônios não estabelecem, por conseguinte, nenhuma razão séria que nos imponha o dever de adorar como protetores aqueles cuja perfídia devemos, pelo contrário, evitar. Quanto aos espíritos de bondade e, por isso, imortais e bem-aventurados, espíritos que os pagãos acreditavam dever honrar sob o nome de deuses e por meio de cerimônias e de sacrifícios, para obtenção da felicidade depois desta vida, sejam quais forem, seja qual for o nome que mereçam, não querem que semelhante culto se tribute a outro senão ao único Deus, princípio de seu ser, fonte de sua felicidade. Questão que, com a divina assistência, espero aprofundar no livro seguinte. LIVRO DÉCIMO Agostinho estabeleceu quererem os anjos bons que se tributem apenas a Deus, objeto de sua adoração, as honras divinas e os sacrifícios que constituem o culto de latria. Depois discute contra Porfírio o princípio e o caminho da purificação e libertação da alma. CAPÍTULO I Os platônicos definiram também que somente Deus dá a verdadeira felicidade, tanto aos anjos como aos homens. Mas pergunta-se se os anjos, que acreditam dever-se-lhes culto por causa da felicidade, querem se sacrifique a Deus apenas ou também a si mesmos. 1. É pensamento unânime de todos quantos podem fazer uso da razão que todos os mortais querem ser felizes. Mas quem é feliz, como tornar-se feliz, eis o problema que a fraqueza humana propõe e provoca numerosas e intermináveis discussões, em que os filósofos gastaram tempo e esforços, discussões que não quero, em absoluto, relembrar e em que não quero deter-me agora. Evito as digressões inúteis. Com efeito, se o leitor se lembra do que no Livro Oitavo afirmei a respeito da escolha dos filósofos com quem se poderia discutir a questão da felicidade da vida futura, a saber, se o culto ao único verdadeiro Deus, criador dos próprios deuses, deve conduzir-nos a ela ou se é preciso ainda, para pretendê-la, adorar e servir vários deuses, não espere que o repitamos agora, pois nova leitura pode remediar esquecimento ou vir em auxílio da memória. Escolhemos os platônicos, sem dúvida os mais eminentes dos filósofos, em especial, porque, havendo reconhecido que a alma do homem, embora imortal e racional ou intelectual, não poderia, sem a participação da luz de Deus, seu autor e autor do mundo, ser feliz, negam que à felicidade a que todos os homens aspiram ninguém pode chegar, caso amor casto e puro não o una ao Deus sumamente bom, que é o Deus imutável. Mas, como esses próprios filósofos, cedendo à vaidade dos erros populares ou, segundo a expressão do Apóstolo, desvanecendo-se em seus pensamentos, se persuadiram ou pelo menos quiseram persuadir os outros da necessidade de altares para a pluralidade de deuses (alguns deles não chegam ao extremo de acreditar que honras divinas e sacrifícios são devidos aos próprios demônios?), erro que refutamos longamente, resta-nos agora examinar, discutir, na medida das forças que Deus nos der, o que é preciso acreditar a respeito dos espíritos que os platônicos chamam deuses ou bons demônios ou, conosco, anjos. Imortais e bem-aventurados espíritos, residentes nas celestes moradas, dominações, principados, potestades, que homenagens, que piedade nos pedem? Em termos mais claros, querem partilhá-las com Deus ou querem que reservemos para Deus apenas os oferendas solenes, o religioso sacrifício de nós mesmos? 2. Com efeito, tal é o culto que se deve à Divindade, ou mais expressamente, à Deidade. Para designar semelhante culto com uma palavra apenas, visto não ocorrer-me nenhuma palavra latina adequada, onde for necessário usarei palavra grega para dizer o que quero: latréia. Os nossos, nas passagens em que as Santas Escrituras a empregam, traduziram-na por servidão. A servidão devida aos homens, segundo a qual manda o Apóstolo estejam os servos submetidos a seus senhores, tem outro nome em grego. Latréia, segundo o costume com que falaram os que nos legaram a divina palavra, sempre ou quase sempre expressa a servidão pertencente ao culto a Deus. Se se diz, por conseguinte, simplesmente culto, não parece ser o exclusivo de Deus, posto também dizermos dar culto aos homens, quando lhes prestamos a homenagem de nossa presença ou de nossa lembrança. E não apenas se refere o nome de culto aos seres a que nos submetemos com religiosa humildade, mas também às coisas que nos estão sujeitas. De tal palavra derivam, por exemplo, as seguintes: agrícola, colonos e íncolas. Aos próprios deuses não chamam celícolas por outro motivo que não o de cultivarem o céu, não por venerarem-no, mas por morarem nele. São como que colonos do céu, não à semelhança dos colonos presos ao solo nativo para cultivá-lo sob o domínio dos senhores, mas, como diz grande mestre da língua latina: Foi cidade antiga. Ocuparam-na os colonos tírios. Chamo colonos de incolere, habitar, não de agricultura. Nesse sentido é que as cidades fundadas pelas cidades maiores, como enxames de povos, se chamam colônias. Por isso, embora muito verdadeiro que tal palavra, em sentido próprio e íntimo, significa o culto devido a Deus, como recebe ainda outras acepções, segue-se não poder a língua latina exprimir em uma só palavra o culto devido-exclusivamente a Deus. 3. Embora a palavra religião pareça significar mais particularmente o culto de Deus, com ela traduzem os nossos a grega threskéia; contudo, a linguagem corrente, não dos ignorantes, mas dos mais sábios, admitiu a necessidade de observar-se também a religião das alianças, das afinidades humanas e de quaisquer outros parentescos. Tal palavra não evita a ambiguidade, quando a questão versa sobre o culto à Deidade. Não podemos dizer, com propriedade, ser a religião apenas o culto a Deus. O motivo é parecer atrevimento dar à referida palavra sentido diferente da observância do parentesco humano. Por piedade é costume entender-se,propriamente, o culto a Deus. Os gregos chamam-na eusébeia. Diz-se também cortês a piedade para com os pais. O estilo vulgar estende tal nome às obras de misericórdia. Mas acredito que o motivo de tal acepção reside no fato de Deus recomendá-las de modo especial e testemunhar que lhe agradam tanto ou mais que todos os sacrifícios. A locução fez atribuir-se ao próprio Deus o nome de piedoso. Os gregos, todavia, nesse sentido não se servem da palavra eusebêin, embora eusébeia receba o significado popular de misericórdia. Donde resulta que em algumas passagens das Escrituras, para a distinção ficar mais clara, preferem dizer theosébeia, que soa como culto a Deus, a dizer eusébeia, que tem o significado de bom culto. Não podemos expressar com uma palavra apenas nem uma coisa, nem outra. A latréia grega, traduzida em latim por servidão, mas pela qual rendemos culto a Deus, ou a threskéia grega, que se diz em latim religião, mas a que temos para com Deus, ou a por eles chamada theosébeia não podemos expressá-las com uma só palavra; temos de usar de rodeio para dizer culto a Deus. Todos os cultos que essas diferentes expressões compreendem não se devem, decididamente, senão a Deus, ao verdadeiro Deus que diviniza seus servidores. Sejam quais forem, por conseguinte, os bem-aventurados imortais, habitantes das mansões celestes, se não têm amor por nós, se não desejam nossa felicidade, não merecem nossas homenagens. Se nos amam, se querem nossa felicidade, querem sem dúvida que a recebamos da mesma fonte que eles. CAPÍTULO II Pensamento do platônico Plotino sobre a iluminação soberana. Trata-se de questão em que não há, em absoluto, diferença entre nós e os célebres platônicos. Viram e deixaram consignado de mil e um modos em seus livros que os anjos se tornam felizes pela mesma razão que nós. A causa de sua felicidade é a intuição de certa luz inteligível, que para eles é Deus, é distinta deles e os ilumina para que brilhem e por sua participação sejam perfeitos e felizes. Fartas e repetidas vezes afirma Plotino, explanando o pensamento de Platão, que nem mesmo aquela que julgam alma do universo tem outro princípio de felicidade diferente da nossa. Tal princípio é luz que não é aquela a que deve seu ser e que, iluminando-a inteligivelmente, inteligivelmente brilha. Aplica às realidades incorpóreas imagem que pede de empréstimo aos resplendentes corpos da abóbada celeste. Deus é o Sol e a alma a Lua, porque, segundo eles, a presença do Sol ilumina a Lua. O grande platônico pretende que a alma racional, ou antes, a alma intelectual (porque sob tal nome compreende também as almas dos bem-aventurados imortais, que não vacila em afirmar residentes no céu) não reconhece como natureza superior à sua senão a de Deus, autor do mundo e seu autor, e que os espíritos celestes não recebem a vida feliz e a luz de inteligência e verdade senão da mesma fonte de que nos vêm. Semelhante doutrina está conforme com as seguintes palavras do Evangelho: Houve certo homem enviado de Deus; chamava-se João. Veio como testemunha, para dar testemunho da Luz, a fim de que todos por meio dele cressem. Ele mesmo não era a Luz, mas vinha dar testemunho da Luz. Era a Luz verdadeira, que ilumina todo homem que vem a este mundo. Tal distinção mostra claramente que a alma racional ou intelectual, como era a de João, não podia ser a Luz para si mesma, mas luzia pela participação de outra Luz verdadeira. E o que o próprio João confessa, quando, dando testemunho da Luz, declara: De sua plenitude todos recebemos. CAPÍTULO III O verdadeiro culto a Deus. Embora entendessem o Criador do universo, os platônicos desviaram-se desse culto, tributando-o com honras divinas aos anjos bons e aos anjos maus. 1. Se, por conseguinte, os platônicos e quaisquer outros filósofos que, professando os mesmos sentimentos, glorificassem Deus, que conhecem, e lhe rendessem graças, longe de se desvanecerem em seus pensamentos, culpáveis autores ou tímidos cúmplices dos erros populares, confessariam, sem sombra de dúvida, que pelos espíritos bem-aventurados e imortais e por nós, infelizes e mortais, para podermos ser bem-aventurados e imortais, deve ser adorado o único Deus dos deuses, que é seu Deus e o nosso. 2. A Ele devemos a servidão chamada em grego latréia, quer em atos exteriores, quer em nós mesmos. Todos conjuntamente e cada um de nós em particular somos seu templo. Digna-se habitar na união dos fiéis e em cada um deles. E não é maior em todos que em cada fiel, porque sua natureza ignora as modificações da extensão ou da divisão. Quando elevamos nossas almas ao céu, o coração é seu altar; seu Filho único, o sacerdote por intermédio de quem o aplacamos; imolamos-lhe vítimas sangrentas, quando combatemos até o derramamento de nosso sangue por sua verdade; queimamos perante ele o mais suave incenso, quando, em sua presença, piedosa e santa flama nos consome; oferecemos-lhe os benefícios que nos fez e nós mesmos e voltamo-nos para Ele; certas festas solenes, em dias marcados, consagram a memória de seus benefícios, para que o decurso do tempo não cause ingrato esquecimento. Imolamos-lhe a hóstia da humildade e do louvor na ara do coração e com o fogo da fervente caridade. Para vê-la, como pode ser visto, e para unir-nos a Ele, purificamo-nos de toda mancha de pecados e impiedades e consagramo-nos em seu nome. E a fonte de nossa felicidade, o fim de nossos desejos. Elegendo-o, ou melhor, reelegendo-o, pois o havíamos perdido por nossa negligência, reelegendo-o (daí vem o nome de religião), tendemos a Ele pelo amor, para, em chegando, descansar. Seremos felizes precisamente por sermos perfeitos com o fim. Nosso bem, sobre cujo fim os filósofos tanto disputam, não é outra coisa senão unir-nos a Ele. A alma intelectual, em abraço incorpóreo, se nos é permitido falar assim, dado a Ele, repleta-se e fecunda-se de virtudes verdadeiras. Esse bem é que nos é prescrito amar de todo o coração, de toda a alma, com todas as forças. A esse bem devemos ser conduzidos por aqueles que nos amam e conduzir os que amamos, para que, assim, se cumpram os dois preceitos a que se reduzem a Lei e os Profetas: Amarás o Senhor teu Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o espírito; e Amarás o próximo como a ti mesmo. Para que o homem aprenda a amar a si mesmo, propõe-se-lhe um fim a que refira tudo quanto faz para ser feliz. Quem ama a si mesmo outra coisa não quer senão ser feliz. Esse fim é a união com Deus. A quem sabe amar a si mesmo, quando se lhe manda amar o próximo como a si mesmo, que outra coisa se lhe manda senão, quanto esteja a seu alcance, encarecer a outrem o amor a Deus? Esse o culto a Deus, essa a verdadeira religião, essa a reta piedade, essa a servidão devida apenas a Deus. Seja qual for a excelência e virtude do poder imortal, se nos ama como a si mesmo, quer-nos submetidos, para sermos felizes, Àquele a quem está submetida, razão por que é feliz. Se não rende culto a Deus, é miserável, porque se priva de Deus. Se rende culto a Deus, não quer que o rendam a ela, mas a Deus. Antes aprova e com a potencialidade de seu amor favorece o divino oráculo que diz: Quem sacrificar a outros deuses e não apenas ao Senhor será destruído. CAPÍTULO IV O sacrifício é devido ao Deus uno e verdadeiro. Com efeito, sem falar agora dos outros deveres religiosos que compõem o culto divino, que homem ousaria pretender que o sacrifício seja devido a outro que não Deus? Enfim, quer por causa de profunda baixeza, quer por causa de perniciosa lisonja, o homem, para honrar o homem, usurpou muitas coisas do culto a Deus; e não deixam, contudo, de passar por homens aqueles a quem se defere honra, respeito religioso e algumas vezes até mesmo adoração. Que homem, entretanto, jamais sacrifica senão àquele que ele sabe, acredita ou faz Deus? Ora, o exemplo dos dois irmãos, Abel e Caim, torna evidente a antiguidade do sacrifício. Deus rejeita o do mais velho e aceita com prazer o do outro. CAPÍTULO V Sacrifícios não solicitados por Deus, que, entretanto, quis fossem observados, para significar os solicitados. Todavia, quem será insensato ao extremo de acreditar que Deus tem qualquer necessidade de nossas oferendas? O testemunho das Escrituras repele semelhante erro. Baste-me lembrar o seguinte versículo do salmo: Eu disse ao senhor: Es meu Deus, porque não necessitas de meus bens. Não apenas devemos crer que Deus não necessita de animal ou de qualquer outra coisa corruptível e terrena, mas nem mesmo da própria justiça do homem. Todo culto legítimo a Deus aproveita ao homem, não a Deus. Ninguém dirá que foi útil à fonte o haver bebido nela ou à luz o haver visto por seu intermédio. E, se os antigos patriarcas ofereceram a Deus sacrifícios de vítimas cruentas, sacrifícios que agora o povo de Deus lê e não faz, não devemos entender senão que por aquelas coisas se significaram estas que se operam em nós, precisamente com o propósito de que nos unamos a Deus e encaminhemos o próximo a unir-se com Ele. O sacrifício visível é sacramento do sacrifício invisível, ou seja, é sinal sagrado. Eis por que a alma penitente a que se refere o profeta, ou o próprio profeta, invocando a clemência divina, exclama: Se houvesses querido sacrifício, eu tê-lo-ia, sem dúvida, oferecido; mas não te deleitarás com holocaustos. Sacrifício para Deus é o espírito atribulado; Deus não despreza o coração contrito e humilhado. Observe-se que onde disse que Deus não quer sacrifício, ali mesmo mostra que Deus quer sacrifício. Não quer sacrifício de animal sacrificado, mas o sacrifício de coração contrito. O sacrifício que Deus não quer, segundo o profeta, é figura do sacrifício que quer. Assim, pois, disse que Deus não quer sacrifícios no sentido imaginado pelos ignorantes, a saber, que os quer como que para seu deleite. Se os sacrifícios que quer, dos quais um é o coração contrito e humilhado pela dor da penitência, não quisesse fossem significados pelos sacrifícios que, segundo parece, deseja como deleitáveis, não os mandaria, com certeza, oferecer na Lei velha. Por isso deviam ser mudados em tempo oportuno e determinado, para que não os julgassem agradáveis ou aceitáveis a Deus por eles mesmos e não, antes, por serem figura desses outros. Assim diz outro salmo: Se eu tiver fome, não te direi nada, porque meu é o mundo e tudo quanto contém. Comerei, porventura, a carne dos touros ou beberei sangue de bodes? Quer dizer, quando eu tiver necessidade de tudo isso, não pedirei o que tenho ao alcance da mão. Depois explica o sentido de tais palavras e acrescenta: Imola a Deus sacrifício de louvores e paga teus votos ao Altíssimo. E invoca-me no dia da tribulação; eu te livrarei e tu me glorificarás. E noutro profeta: Com que coisa encontrarei o Senhor e me inclinarei ao Deus altíssimo? Encontrá-lo-ei com holocaustos? Com bezerros de um ano? Agradar-se-á o Senhor de milhares de carneiros, de dez mil bodes gordos? Darei meu primogênito por minha transgressão? O fruto de meu ventre pelo pecado de minha alma? Ele te declarou, ó homem, o que é bom. E que é que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, ames a misericórdia e estejas preparado para caminhar com o Senhor teu Deus? Nas palavras do profeta distinguem-se os dois sacrifícios e declara-se claramente que Deus não pede por eles mesmos os sacrifícios, figura dos sacrifícios que Deus pede. Na Epístola dirigida aos hebreus, lemos: E não vos esqueçais da beneficência e comunicação, porque de tais sacrifícios Deus se agrada. Por isso, onde está escrito: Quero misericórdia e não sacrifício, não convém entender outra coisa senão o sacrifício antecipado pelo sacrifício, porque o que todos chamam sacrifício é sinal do verdadeiro sacrifício. Pois bem, a misericórdia é verdadeiro sacrifício. Eis por que se disse o que pouco antes citei: De tais sacrifícios Deus se agrada. Todos os preceitos divinos, lidos de muitos modos, no ministério do tabernáculo ou do templo, a respeito dos sacrifícios, tendem a significar o amor a Deus e ao próximo, Desses dois preceitos, como está escrito, depende toda a Lei e os Profetas. CAPÍTULO VI O sacrifício verdadeiro e perfeito. Por conseguinte, verdadeiro sacrifício é toda obra que praticamos para nos unirmos a Deus em santa união, quer dizer, toda obra relacionada com o supremo bem, princípio único de nossa verdadeira felicidade. Eis por que a própria misericórdia que alivia o próximo não é, em absoluto, sacrifício, se não feita por amor a Deus. Com efeito, o sacrifício, embora oferecido pelo homem, é coisa divina; os antigos latinos chamavam-no assim. E o homem consagrado pelo nome de Deus, devotado a Deus, é sacrifício, porquanto para viver para Deus morre para o mundo. Trata-se de misericórdia que cada qual pratica para consigo mesmo. Por isso; está escrito: Tem misericórdia de tua alma, agradando a Deus. Nosso próprio corpo, quando, por amor a Deus, o mortificamos pela temperança, quando ao pecado não entregamos os membros como armas de iniquidade, mas a Deus, como armas de justiça, nosso corpo é sacrifício, a que o Apóstolo nos exorta assim: Conjuro-vos, pois, irmãos, pela misericórdia de Deus, a transformardes vosso corpo em hóstia viva, santa, agradável ao Senhor, a que vosso culto seja racional. Portanto, escravo ou instrumento da alma, o corpo, se legítimo e bom uso o relaciona com Deus, é sacrifício. Quanto mais a própria alma, quando se oferece a Ele, abrasada no fogo de seu amor, e, despojando-se da concupiscência do século, para reformar-se de acordo com o modelo imutável, lhe oferece a infinita beleza de seus próprios dons. Não vos conformeis, em absoluto, com o século, acrescenta o Apóstolo, mas transformai-vos pela renovação do Espírito, procurando saber qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito. Assim, como as obras de misericórdia, quer para conosco mesmos, quer para com o próximo, constituem verdadeiros sacrifícios, se referidas a Deus, e como tais obras não têm outro fim senão o de livrar-nos da miséria e tornar-nos felizes da felicidade que nos assegura a posse do bem de que está escrito: Meu bem é permanecer unido ao Senhor, segue-se que toda a cidade do Redentor, a sociedade dos santos, é como que sacrifício universal oferecido a Deus pelo soberano pontífice, que em sua paixão se ofereceu também a si mesmo par nós, para transformar-nos em membros do chefe augusto que desceu sob a forma de escravo, forma que oferece a Deus e na qual se ofereceu. Com efeito, segundo essa forma, é mediador, sacerdote e sacrifício. Assim o Apóstolo nos exorta a fazer de nosso corpo hóstia viva, santa, agradável ao Senhor, a tributar-lhe culto racional, e de modo algum nos conformar ao século, mas a transformar-nos pelo renovamento do espírito, procurando saber qual a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito, sacrifício que, em suma, somos nós mesmos, e acrescenta: Pois, pela graça de Deus que me foi dada, digo a todos que se encontram entre vós que não saibam mais do que convém saber, mas saibam com temperança, conforme a medida da fé que Deus repartiu a cada qual. Porque da mesma maneira que no corpo temos muitos membros, mas nem todos os membros têm a mesma operação, assim nós, que somos muitos, somos o mesmo corpo em Cristo, mas membros uns dos outros, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos foi dada. Eis o sacrifício dos cristãos: muitos um só corpo em Cristo. Tal mistério a Igreja também o celebra assiduamente no sacramento do altar, conhecido dos fiéis, em que mostra que se oferece a si mesma na oblação que faz. CAPÍTULO VII O amor dos santos anjos reduz-se a quererem sejamos adoradores, não deles, mas do Deus uno e verdadeiro. Legítimos habitantes das moradas celestes, os espíritos imortais, felizes pela posse do Criador, eternos por sua eternidade, fortes de sua verdade e santos por sua graça, tocados de compassivo amor por nós, infelizes e mortais, e desejosos de partilhar conosco sua imortalidade e beatitude, não, não querem que sacrifiquemos a eles, mas Àquele que sabem ser, como nós, o sacrifício. Porque somos com eles uma só Cidade de Deus, a que diz o Salmista: Coisas gloriosas disseram-se de ti, Cidade de Deus. Parte da Cidade peregrina em nós e outra neles dá-nos alento. Da soberana Cidade, onde a vontade inteligível e incomutável de Deus é a lei, da soberana cúria, em certo sentido, pois nela curam de nós, desceu a nós, por meio dos anjos, a Santa Escritura, em que lemos: Quem sacrifica a deuses e não apenas ao Senhor será destruído. Essa Escritura, essa lei, esses preceitos foram confirmados por tamanha quantidade de milagres, que se torna por demais claro a quem os imortais e os bem-aventurados, desejosos de que sejamos felizes como eles, querem que sacrifiquemos. CAPÍTULO VIII Milagres que Deus se dignou dar a suas promessas para alentar a fé dos piedosos, ainda por ministério dos anjos. Talvez fosse necessário remontar demasiado longe nos séculos passados, se eu quisesse lembrar quantos milagres atestam a veracidade das promessas que, tantos milhares de anos antes de se cumprirem, Deus faz a Abraão, quando lhe anuncia que em sua raça todas as nações serão abençoadas. Quem não admiraria que, em idade em que a fecundidade é recusada à natureza, uma mulher estéril dê um filho ao pai dos crentes; que, no sacrifício do patriarca, uma chama descida do céu corra entre as vítimas imoladas; que anjos, por ele recebidos como hóspedes mortais, lhe revelem a promessa de Deus e o celeste incêndio de Sodoma; que, no momento em que o fogo do céu vai devorar a cidade culpada, a milagrosa assistência dos anjos preserve Lot, seu sobrinho, cuja mulher, olhando para trás, no caminho que ia pô-la a salvo do perigo, é no mesmo instante transformada em estátua de sal, nos ensina por misterioso exemplo que no caminho da salvação ninguém deve lastimar o que abandona? Mas quantos prodígios, mais maravilhosos ainda, operados por Moisés para da servidão do Egito libertar o povo eleito! Os milagres que Deus permite aos magos do faraó ou rei, tirano de Israel, apenas servem para tornar-lhes mais maravilhosa a derrota. Não operavam senão pelos encantamentos e pelos sortilégios da magia, obras favoritas dos maus anjos ou demônios; Moisés, armado de poder tanto mais temível quanto mais legítimo, em nome de Deus, Criador do céu e da terra, e por ministério dos anjos, confunde-lhes sem dificuldade as imposturas. O poder dos magos desfalece na terceira praga; dez pragas, figuras de profundos mistérios, fulminadas pela mão de Moisés, abrandam a dureza de coração do faraó e dos egípcios e arrancam-lhes a libertação do povo de Deus. Arrependem-se logo, vão-lhas no encalço, mas o mar, aberto para entregar à fuga dos hebreus passagem a pé enxuto, fecha-se de novo e engole os opressores. Que direi dos milagres que, quando o povo caminhava pelo deserto, se repetiram com estupenda divindade? Águas, que não podiam ser bebidas, perdem o amargor ao contado do lenho nelas atirado e matam a sede da multidão; para alimentá-la, cai maná do céu, com a circunstância de que todos tinham medida fixa para o recolher e o que colhiam para mais os vermes nele nascidos corrompiam, mas a quantidade recolhida em dobro no dia anterior ao sábado, pois no sábado era ilícito recolher mana, não era violada pela podridão. Quando Israel desejava carne no deserto e parecia não haver o necessário para o abastecimento de tamanha multidão, o campo cobriu-se de aves e bem depressa o ardor do desejo se viu apagado pelo fastio da saciedade. Os inimigos acorrem e de armas na mão disputam-lhes a passagem. Moisés ora, os braços estendidos em cruz, e os inimigos são vencidos. Nenhum hebreu sucumbiu. Alguns sediciosos rebelam-se, querem separar-se da sociedade instituída por Deus mesmo, mas a terra entreabre-se e devora-os vivos, exemplo visível de suplício invisível. A rocha ferida pela vara soltou jorro de água que saciou tamanha multidão. As mortíferas picadas das serpentes, pena justíssima dos pecados, eram curadas à simples vista da serpente de bronze erguida sobre um tronco de árvore, a fim de que o povo abatido se reerguesse e a morte destruída pela morte se tornasse como que a figura da morte crucificada. E quando, mais tarde, o povo, em delírio, quer transformar em ídolo a serpente conservada, sem dúvida em memória de semelhante milagre, Ezequias, rei que servia com seu religioso poder a Deus, despedaça-a, demonstrando, assim, gloriosa piedade. CAPÍTULO IX Artes ilícitas usadas no culto aos deuses. Indecisões do platônico Porfírio sobre elas. 1. Tais milagres e tantos outros que seria demasiado longo relembrar não tiveram outro objetivo senão estabelecer o culto ao verdadeiro Deus e proibir o tributado às falsas Divindades. Mas operavam-se pela simplicidade da fé, pela confiança da piedade, não por sortilégios, por encantamentos de arte sacrílega, de criminosa curiosidade, chamada, ora magia, ora, por nome mais detestável, goecia, ou por nome menos odioso, teurgia. Porque querem estabelecer diferença entre semelhantes práticas e pretendem que, entre os praticantes das ciências ilícitas, uns, como, por exemplo, os que o vulgo chama de mágicos, dados à goecia, chamam a vingança das leis, enquanto os outros, exercendo a teurgia, não merecem senão elogios. Uns e outros, contudo, encontram-se igualmente agrilhoados aos pérfidos altares dos demônios usurpadores do nome de anjos. 2. Porfírio promete, como que vacilante e em discurso de certo modo vergonhoso, uma espécie de purificação da alma por meio da teurgia. Mas nega de maneira formal que tal arte apresente caminho de retorno a Deus. Vemo-lo, assim, flutuar, ao sabor de seus próprios pensamentos, entre os princípios da filosofia e os escolhos de curiosidade sacrílega. Ora afasta-nos de tal arte, dizendo-a pérfida, perigosa na prática, proibida pela leis, ora parece ceder à opinião contrária e logo a teurgia se torna útil para purificar a alma, senão na parte intelectual em que percebe as verdades inteligíveis, puras de todas as formas corporais, pelo menos na parte espiritual em que capta as imagens dos corpos. Pretende que esta última é, por meio de certas consagrações teúrgicas, chamadas teletas, apta para receber a inspiração dos espíritos e dos anjos, que à sua vista revela os deuses. As teletas, segundo Porfírio confessa, não contribuem, todavia, em coisa alguma, para a purificação da alma intelectual; não poderiam prepará-la para a visão de Deus, nem para a contemplação de verdade alguma. Donde podemos concluir que deuses se revelam, que visão se obtém por intermédio das consagrações teúrgicas, visão em que não se veem as coisas que verdadeiramente são. Por fim, Porfírio acrescenta que a alma racional, ou, como prefere dizer, intelectual, pode subir às regiões celestes, sem que a parte espiritual tenha sofrido qualquer purificação teúrgica, purificação que, aduz, não poderia conferir a imortalidade à alma espiritual. Assim, embora distinga entre os anjos e os demônios, dizendo que a residência dos demônios é o ar e a dos anjos o éter ou o empíreo, embora nos aconselhe a granjear a amizade de algum demônio, que depois da morte nos eleve um pouco acima da terra, porque, segundo ele, é por outro caminho que a gente chega à celeste companhia dos anjos, dissuade-nos da sociedade dos demônios, declarando seu pensamento por meio de confissão demasiado formal, quando diz que, depois da morte, a alma atormentada tem horror ao culto aos espíritos desejosos de seduzi-la. A própria teurgia, arte conciliadora dos anjos e dos deuses, a teurgia que Porfírio recomenda, não pode negar que não trata com as potências que à alma invejam a purificação ou favorecem a malícia dos invejosos. Sobre esse ponto refere queixa de não sei que caldeu: Certo homem virtuoso da Coldéia, diz, queixa-se de que o bom êxito de seus esforços para chegar à purificação da alma tenha sido enganado pela inveja de outro iniciado que ligou as potências solenemente conjuradas e lhes agrilhoou a boa vontade. Assim, um aperta os laços que o outro não pode romper. Donde se segue, acrescenta, ser a teurgia igual instrumento de bem e de mal, quer para os homens, quer para os deuses, e serem os deuses passíveis das perturbações anímicas que Apuleio atribui apenas aos homens e aos demônios. Contudo, Porfírio distingue entre os deuses e os demônios pela elevação de sua morada, reproduzindo o pensamento de Platão. CAPÍTULO X A teurgia promete às almas falsa purificação por invocação dos demônios. Assim, eis outro platônico, Porfírio, mais sábio, dizem, que Apuleio, concedendo a não sei que ciência teúrgica o poder de comover e perturbar os deuses. Preces e ameaças desviaram-nos da purificação de certa alma. E foram de tal modo amedrontados pelo que pedia o mal, que quem pedia o bem não pôde, pela mesma arte teúrgica, desligá-los do temor e liberta-los para que lhe concedessem tal benefício. Quem não percebe que tudo isso não passa de invenções dos enganadores demônios, senão o misérrimo escravo deles, alheio à graça do verdadeiro Libertador? Se tal coisa se levasse a efeito entre os deuses bons, o valimento do benefício purificador da alma seria maior que o do malévolo opositor. Ou, se o homem em favor de quem se fazia parecesse indigno de purificação aos deuses justos, deveriam negá-lo, não amedrontados pelo invejoso nem, como diz Porfírio, impedidos pelo medo a mais poderoso nume, mas por livre julgamento. É de maravilhar que o sábio caldeu, desejoso de purificar a alma por meio dos mistérios teúrgicos, não encontrasse deus superior que, infundindo-lhes terror mais forte, obrigasse os deuses, aterrorizados, a prestar-lhe o benefício pedido ou, livrando-os de todo temor, lhes permitisse fazê-lo com liberdade. Na falta de operação teúrgica que primeiro livre de funesto espanto os deuses libertadores da alma, não pode o sábio teurgo encontrar poderoso deus? Sabe a teurgia invocar um que os assombre e não conhece um que os tranquilize? Sim, encontra-se um deus que ouve o invejoso e pelo temor agrilhoa a benevolência das outras Divindades, mas não se encontra algum que ouça o justo e devolva às Divindades tranquilizadas o poder de fazer o bem? Admirável teurgia! Precioso segredo da purificação das almas, que à impura inveja concede mais poder para impedir o bem que crédito à vontade pura para obtê-lo! Evitemo-los e prestemos ouvidos à doutrina da salvação. Porque as imagens de anjos ou deuses, algumas, dizem, maravilhosamente belas, que os sacrílegos autores das ímpias purificações revelam (se é verdade, porém) à alma pretensamente purificada, não é Satã que, de acordo com a palavra do Apóstolo, se transforma em anjo de luz? E ele que, desejoso de envolver as almas nos enganadores mistérios das falsas Divindades, para desviá-las do verdadeiro Deus, único capaz de purificar e curar, é ele que multiplica as ilusões e, como Proteu, assume todas as formas, perseguidor encarniçado, pérfido auxiliar, sempre capaz de prejudicar. CAPÍTULO XI Epístola de Porfírio ao egípcio Anebonte, em que lhe pede ser instruído na diversidade de demônios. 1. Porfírio mostra mais sensatez na carta ao egípcio Anebonte, em que, à guisa de consulente e pesquisador, não somente desvela as artes sacrílegas, mas também as destrói. Insurge-se contra todos os demônios, que diz loucamente atraídos pelo espesso vapor dos sacrifícios, razão por que habitam, não o éter, mas a atmosfera sublunar e o próprio globo da Lua. Não se atreve, contudo, a imputar a todos os demônios todas as imposturas, todas as malignidades, todos os absurdos que com razão o revoltam. Com efeito, a exemplo dos outros filósofos, reconhece haver demônios bons, embora, segundo confessa, o caráter geral de todos eles seja a demência. Admira-se de que, na oferenda das vítimas, haja para os deuses não apenas atrativo, mas, ainda, irresistível força que os constranja a fazer a vontade dos homens. Se o corpo e a incorporalidade estabelecem distinção entre os demônios e os deuses, como é possível, pergunta Porfírio, considerar deuses o sol e os outros astros que brilham no céu e, sem dúvida, são corpos? Se deuses, como admitir a benevolência de alguns e a malevolência de outros? Enfim, que sociedade, sendo corpóreos, os une aos incorpóreos. Pergunta ainda, com expressão de dúvida, se os adivinhos e os teurgos são dotados de alma mais poderosa ou se tal poder lhes vem de algum espírito estranho. Julga que lhes vem de fora, porquanto os magos se servem de pedras e de ervas para abrir as portas, operar ligações e outros bruxedos que tais. Donde, na opinião de Porfírio, muita gente concluiu que existem espíritos de certa ordem, que prestam ouvidos aos votos dos homens; trata-se de naturezas pérfidas, sutis, capazes de todas as metamorfoses, alternadamente deuses, demônios, almas de defuntos. Autores de tudo quanto se produz de bem ou mal, jamais concorrem, todavia, para o bem real, que, aliás, ignoram; conselheiros malignos, inquietam, atrasam os mais zelosos seguidores da virtude; temerários e vãos, aspiram, contentes, os perfumes dos sacrifícios e da lisonja. Todos os vícios de tais espíritos, que se insinuam na alma e com mil e uma ilusões perturbam o sono ou a vigília do homem, Porfírio não os assinala com acento de convicção, mas sob a forma de dúvidas e suspeitas sugeridas por opinião alheia. Foi difícil para filósofo de tal maneira grande revelar e acusar com confiança a sociedade de demônios que qualquer velhinha cristã descobre sem dificuldade e detesta sem temor. Talvez tenha querido evitar ofender Anebonte, a quem escreve, pontífice de semelhantes mistérios, e os outros admiradores de tais obras pretensamente divinas e pertinentes ao culto aos deuses. 2. Prossegue, todavia, e expõe com as mesmas precauções certos fatos que sério exame não pode atribuir senão a poderes enganadores e malignos. Por que, depois de havê-los invocado como bons, lhes ordenam, como aos mais detestáveis, cumprir as injustas vontades do homem? Por que não são ouvidas as preces de vítima de Vênus, se favorecem com açodamento incestuosos amores? Por que impõem a seus pontífices a abstinência de carne, querendo, sem dúvida, preservá-los de toda e qualquer mancha, quando são os primeiros a embriagar-se com o odor dos sacrifícios? Por que o contacto com cadáver é interdito ao iniciado, quando os mistérios não se celebram senão com cadáveres? Como, enfim, homem entregue ao vício pode ameaçar demônio, alma de morto? Que digo? Ameaçar o Sol, a Lua e, por intermédio de falsos temores, arrancar-lhes a verdade? Porque os ameaça de reduzir os céus a pedaços e coisas semelhantes, impossíveis para o homem, para que os deuses, como crianças imbecis, aterrorizados por essas ridículas bravatas, levem a efeito o que lhes ordenam. Certo Queremão, profundamente versado na misteriosa ciência, ou antes, em tais sacrilégios, escreveu, de acordo com o testemunho de Porfírio, que os mistérios de Isis e Osíris, seu marido, fundados em célebres tradições, têm invencível influência sobre a vontade dos deuses, quando o mago os ameaça de destruir-lhes o culto, divulgando-lhes os segredos, e exclama com voz terrível que, se desobedecerem, dilacerará os membros de Osíris. Porfírio admira-se com razão de que o homem ameace com tais vaidades e insensatezes os deuses, mas não a quaisquer, e sim aos celestes, que brilham com sidérea luz, e não forçando-os sem efeito, porém com violento poder, fazendo com que, por meio desses terrores, executem o que quer. Mais ainda, sob pretexto de admirar e inquirir as causas de tais mistérios, dá a entender serem tais coisas obra dos espíritos cujo gênero descreveu mais acima, como se se tratasse de opinião alheia. Não são, como acredita, enganadores por natureza, mas por vício, que simulam ser deuses e almas dos defuntos e não simulam, como diz, ser demônios, porque realmente são. Quanto às combinações formadas de ervas, pedras, animais, certas emissões de voz, certas figuras imaginárias ou resultantes da observação dos movimentos celestes, combinações que na terra, nas mãos do homem, se transformam em poderes produtores de diversos efeitos, tudo isso não passa de obra de tais demônios, mistificadores das almas sujeitas a seu poder, que fazem do erro dos homens suas malignas delícias. Ou Porfírio duvida e procura a sério, assinalando, contudo, para confusão da ímpia ciência, fatos de que resulta a prova de que semelhantes bruxarias não vêm, em absoluto, de poderes que nos ajudem a conquistar a felicidade, mas de enganadores demônios, ou, para melhor julgar do filósofo, não quer opor ao egípcio, presunçoso escravo de tais erros, autoridade doutoral que o ofenda, hostilidade de contradição que o perturbe, mas, com humildade de homem desejoso de instruir-se, quer, consultando-o, levá-lo a novas reflexões e sugerir-lhe o desprezo e o horror a tantas imposturas. Enfim, já próximo do fim da carta, pede a Anebonte que lhe ensine por que caminho a sabedoria egípcia conduz à beatitude. Quanto àqueles cujo trato com os deuses se reduz a miseráveis instâncias para o encontro de escravo fugitivo, para aquisição de terra, casamento, negócio, fúteis preocupações com que importunam a divina Providência, parece-lhe que inutilmente cultivam a sabedoria. E acrescenta: Apesar de verdadeiras suas predições sobre as demais realidades, tais deuses, de complacente familiaridade, se não têm conselho algum, nenhum preceito a dar que interesse a beatitude, não são deuses nem bons demônios; não passam de espíritos enganadores ou de invenção humana. CAPÍTULO XII Milagres que por ministério dos santos anjos o verdadeiro Deus pratica. Mas, como se operam, assim, tantos prodígios que ultrapassam todo poder humano, que se deve razoavelmente concluir, senão que semelhantes predições ou operações maravilhosas, sinal distintivo de força superior, se não se relacionam com o culto ao verdadeiro Deus, cujo amor, segundo a confissão e os numerosos testemunhos dos próprios plat6nicos, é o único bem e a única beatitude, não passam de ilusões dos espíritos malignos, armadilhas e seduções que a verdadeira piedade deve conjurar? Quanto aos milagres, sejam quais forem, operados pelos anjos ou por qualquer outro modo, se se destinam a glorificar o culto da religião do verdadeiro Deus, princípio único da vida bem-aventurada, devem ser atribuídos aos espíritos que nos amam com verdadeira caridade, é preciso acreditar ser o próprio Deus quem neles e por eles opera. Não demos atenção, por conseguinte, a homens que ao Deus invisível recusam a faculdade de operar milagres visíveis, pois, segundo eles mesmos, é o autor do mundo, cuja visibilidade não poderiam negar. Nada de maravilhoso acontece neste mundo que não esteja abaixo da maravilha do mundo, obra de Deus; mas, como o próprio artífice, o segredo de sua operação é incompreensível ao homem. Embora o permanente milagre da natureza visível tenha, a nossos olhos acostumados a vê-lo, perdido algo do valor, a inteligência que seriamente o considera acha-o superior aos milagres mais extraordinários e mais raros. Com efeito, de todos os milagres de que o homem é instrumento, o maior milagre é o próprio homem. Por isso, Deus, que fez o céu e a terra visíveis, não se digna operar maravilhas visíveis, no céu e na terra, para ao culto a seu ser invisível elevar a alma ainda entregue ao visível; mas o lugar, mas o tempo em que opera, eis o segredo de sua eterna sabedoria, que ordena o futuro como se já fosse presente. Imutável no tempo, move as coisas do tempo; não conhece o que se deve fazer, porque para Ele já está feito; não apenas ouve, mas prevê a prece. E quando seus próprios anjos escutam o homem, é Ele quem o escuta neles como em seu verdadeiro templo, em seu templo espiritual; e os santos são também esse templo. Enfim, dita no tempo as ordens emanadas de sua lei eterna. CAPÍTULO XIII Deus, invisível, às vezes se mostrou visível, não tal qual é, mas de acordo com a capacidade de quem o vê. Não nos admiremos de que Deus, embora invisível, segundo as Escrituras, tenha com frequência aparecido visivelmente aos patriarcas. O som que o pensamento concebido no segredo da inteligência produz fora não é o próprio pensamento; assim também a forma sob a qual se manifestou Deus, invisível por natureza, é qualquer outra coisa, menos Deus. Contudo, é Ele que, sob tal forma, se deixa ver, como é o pensamento que no som da voz se faz ouvir. Os patriarcas não ignoram que, sob a aparência corporal que não é Ele, Deus, invisível, se lhes revela aos olhos. Fala a Moisés, Moisés fala-lhe; diz-lhe Moisés, todavia: Se achei graça a teus olhos, mostra-me a ti mesmo, para eu ter certeza de ver-te. Como a lei de Deus deve ser dada não a um homem apenas, não a reduzido número de sábios, mas a toda uma nação, a povo imenso, a voz terrível dos anjos publica-a e espantosos prodígios realizam-se na montanha em que um homem apenas a recebe em presença da trêmula multidão. Israel não crê em Moisés, como Lacedemônia acredita em Licurgo, porque recebeu de Júpiter ou de Apoio as leis de que é autor. Torna-se necessário que o estabelecimento da lei, que impõe ao povo eleito a adoração de um só Deus, seja assinalado por tantos sinais miraculosos e terríveis quantos apraza à divina Providência produzir aos olhos do povo hebreu, para ensinar-lhe que aqui mesmo a criatura é instrumento do Criador. CAPÍTULO XIV Ao Deus único se deve culto não apenas pelos benefícios eternos, mas também pelos temporais, porque todas as coisas subsistem e pendem de sua Providência. Como a educação individual, a educação legítima do gênero humano, representado pelo povo de Deus, passou por certos períodos ou épocas sucessivas, para elevar-se do tempo à eternidade e do visível ao invisível; e, mesmo quando as divinas promessas anunciavam apenas recompensas sensíveis, a adoração de um só Deus lhe era ordenada, a fim de ensinar à alma humana que por esses bens mesmos, frágeis como a vida, não deve dirigir-se senão a seu Criador e Senhor. Com efeito, todo bem que o homem ou o anjo pode fazer ao homem depende do único Onipotente; quem não estiver de acordo é insensato. Em discussão a respeito da Providência, Platina prova, pela beleza das flores e das folhas, que, das alturas da Divindade, beleza inteligível e imutável, a Providência se estende a esses ínfimos objetos da Criação terrestre, frágeis e passageiras criaturas que, segundo ele, não poderiam oferecer tal harmoniosa proporção de formas, se não as pedissem de empréstimo à forma inteligível e imutável, princípio de toda perfeição. Nosso Senhor Jesus Cristo ministra o mesmo ensino quando diz: Olhai os lírios dos campos; não trabalham nem fiam. Declaro-vos, contudo, que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como qualquer deles. Se Deus assim enfeita a erva do campo, que hoje é e amanhã será lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de mesquinha fé? É, por conseguinte, justo que, presa por sua debilidade às coisas da terra e do tempo, aos bens que deseja como necessários às necessidades desta vicia fugidia, bens desprezíveis, se comparados com os tesouros da vida eterna, a alma humana se acostume a esperá-las apenas do verdadeiro Deus, a fim de que o desejo de possuí-las não a desvie daquele a quem não pode possuir, senão evitando-os com desprezo. CAPÍTULO XV Ministério dos anjos, instrumentos da Providência de Deus. Prouve, assim, à divina Providência impor ao curso dos tempos ordem tal que a lei, como jé declarei e está escrito nos Atos dos Apóstolos, lei que ordenava o culto ao único e verdadeiro Deus, fosse publicada por intermédio dos anjos. Admirável acontecimento em que a pessoa do próprio Deus aparece visivelmente, se não em sua própria substância, sempre invisível aos olhos mortais, pelo menos por certos sinais sensíveis, que as criaturas fiéis ao Criador transmitem, em que se ouve exprimir-se, na linguagem humana e pela intermitência sucessiva das sílabas, Aquele cuja palavra é espírito, inteligência, eternidade, palavra sem começo e sem fim, palavra ouvida em toda a pureza, não pelos ouvidos do corpo, mas do espírito, por intermédio de seus ministros, enviados que gozam de sua verdade imutável, no seio de eterna beatitude, palavra que lhes comunica de maneira inefável as ordens que devem transmitir à ordem aparente e sensível, ordens que executam sem demora e facilmente. Ora, a lei foi dada segundo a disposição dos tempos. Não enuncia, a princípio, senão promessas de bens temporais, figuras dos eternos mistérios encerrados em solenidades visíveis, que todo o povo celebra, mas reduzido número de homens compreende. Mas todas as palavras, todas as cerimônias estão acordes em pregar claramente o culto a um só Deus. Esse Deus, quem é? E Aquele que criou o céu, a terra, toda alma e todo espírito distinto dele próprio. E o Criador e todos os seres saíram de suas mãos; e para serem, para subsistirem, têm necessidade de quem os fez. CAPÍTULO XVI Para alcançarmos a vida feliz, devemos acreditar nos anjos que exigem se lhes renda culto com honras divinas ou nos que mandam servir com santa religião não a si mesmos, mas ao Deus uno? 1. Em que anjos, por conseguinte, devemos acreditar, a fim de alcançarmos a vida eterna e bem-aventurada? Naqueles que para si mesmos reclamam culto religioso e pedem aos mortais honras divinas e sacrifícios? Ou naqueles que referem tais honras ao Criador do universo e querem que a verdadeira piedade as tribute ao único Deus verdadeiro, cuja visão lhes faz a beatitude, prometendo-nos que fará também a nossa? Com efeito, a visão de Deus é de beleza tão sublime e digna de tanto amor, que sem ela o homem, apesar de cumulado de todos os bens, não passa de ser muito infeliz. Declara-o Plotino sem hesitar. Assim, como os anjos nos convidam, por meio de sinais extraordinários, uns a honrar o Deus único, outros a honrá-los pelo culto de latria, com a diferença, porém, de que os primeiros proíbem o culto a estes e estes não se atrevem a proibir o culto ao Deus dos primeiros, em quem devemos acreditar? Respondei, platônicos; respondei, filósofos; respondei, teurgos, ou melhor, periurgos, porque tal nome quadra melhor a todos os artesãos de malefícios, respondei, enfim, ó homens, se ainda vos resta algum sentimento de vossa natureza racional, respondei-me se se deve sacrificar aos deuses ou anjos que pedem o sacrifício em seu próprio nome ou ao único Deus que vos mostram aqueles que ao mesmo tempo proíbem honrar os outros e honrar a si mesmos. E, quando de parte a parte não se fizesse, em absoluto, outro milagre, quando tudo se reduzisse à ordem dada por uns, à proibição feita por outros, isso bastaria à piedade para distinguir entre o que procede do fasto da soberba e o que procede da verdadeira religião. Direi mais: mesmo que os usurpadores dos direitos divinos operassem, sozinhos, prodígios para surpreender as almas humanas e os espíritos fiéis não se dignassem por algum milagre visível abonar sua autoridade, deveria sua autoridade ser anteposta, não pelo sentido do corpo, mas pela razão da mente; mas, quando Deus permite que os espíritos imortais, indiferentes à sua própria glória e desejosos da dele, autorizem, por milagres maiores, mais certos, mais brilhantes, os oráculos de sua verdade, para poupar aos corações débeis o perigo da apostasia, a que os arrastariam, graças a certas ilusões sensíveis, os demônios sedutores que rivalizam com a glória divina, quem será tão insensato que com alegria de coração recuse abraçar a verdade, que lhe propõe à admiração as mais espantosas maravilhas? 2. Vou dizer algumas palavras a respeito dos prodígios dos deuses do paganismo registrados pela História. Não falo dos estranhos efeitos de causas naturais desconhecidas que a divina Providência contudo tem estabelecidas e determinadas, fenômenos estranhos que de tempos em tempos aparecem: partos monstruosos de animais, acidentes inusitados no céu e na terra, flagelos ou simples ameaças, que o culto aos demônios, a dar-se crédito às imposturas, tem o poder de conjurar e de expiar. Falo dos prodígios em que se lhes reconhece evidentemente o poder: as imagens dos deuses Penates, que o fugitivo Enéias trouxe de Tróia e passam por si mesmas de um lugar para outro; a pedra que Tarquínio corta com sua navalha; a serpente de Epidauro, fiel companheira de viagem de Esculápio, quando se dirigiu a Roma; o navio que transportava o ídolo da grande deusa frígia, cuja imobilidade resiste aos esforços conjugados dos homens e dos bois, mas cede à frágil mão de uma mulher, à simples tração de sua cinta, para dar testemunho de sua castidade; a vestal, acusada de impureza, que se justifica pela prova do crivo em que permanece a água por ela tirada do Tibre. Tais prodígios e tantos outros podem ser comparados, em virtude e grandeza, àqueles de que o povo de Deus foi testemunha? Ousaria alguém identificá-los com as obras de magia ou teurgia proibidas e punidas pela lei dos próprios povos que adoraram infames deuses, obra, na maioria, de ilusão e mentira, em que se trata, por exemplo, de fazer a Lua descer, para que, diz o poeta Lucano, de mais perto derrame sua espuma sobre as ervas? E, embora vários de tais prodígios pareçam igualar alguns dos milagres legítimos, o objetivo que os distingue estabelece a incomparável excelência dos nossos. Alguns são operados no interesse da pluralidade de deuses, tão menos dignos de nossos sacrifícios quanto com maiores instâncias os reclamam; os outros não têm por fim senão a glória do único Deus verdadeiro, que nos mostra, pelo testemunho de suas Escrituras e mais tarde pela abolição dos ritos cruentos, não ter necessidade de tais oferendas. Se, por conseguinte, existem anjos que reivindicam para si mesmos o sacrifício, deve-se a eles preferir os que o pedem para o único Deus verdadeiro, o Deus criador de todas as coisas a quem servem. Assim, mostram-nos os anjos fiéis com que sincero amor nos amam; com efeito, não é à sua própria dominação que querem submeter-nos, mas ao poderio daquele que são felizes de contemplar, soberana beatitude a que desejam cheguemos também e de que não se apartam. Se existem anjos que querem que se sacrifique, não a um Deus apenas, mas a vários, não a eles mesmos, mas aos deuses de que são os anjos, deve-se ainda preferir a eles os anjos do Deus dos deuses, que ordenam sacrificar a Ele apenas e proíbem sacrificar a qualquer outro, quando doutra parte ninguém proíbe sacrificar ao Deus uno, que nos recomendam. Ora, se os espíritos que para eles mesmos exigem o sacrifício não são anjos bons nem anjos de deuses bons, que proteção mais poderosa é possível invocar contra eles que a do Deus uno que os bons anjos servem, anjos que nos ordenam não sacrificarmos senão Aquele de quem nós mesmos devemos ser o sacrifício? CAPÍTULO XVII A arca do Testamento. Milagres divinamente realizados para encarecer a autoridade da lei e de suas promessas. Por isso é que a lei de Deus, promulgada por ministério dos anjos, lei que ordena o culto ao único Deus dos deuses, com exclusão de qualquer outro, ficava depositada na Arca do testemunho. Tal expressão dá a entender de modo bem claro que Deus, a quem se rendia culto exterior, embora do fundo da arca desse suas respostas e manifestasse seu poder, por meio de certos sinais sensíveis, não conhece limites nem clausura; procediam do interior da arca, mas davam testemunho de sua vontade. A própria lei estava escrita em tábuas de pedra e encerrada na arca. No tempo em que o povo errava no deserto, os sacerdotes carregavam-na respeitosamente com o Tabernáculo, também chamado Tabernáculo do testemunho. O sinal que lhe servia de guia era, durante o dia, coluna de nuvem e, durante a noite, coluna de fogo. Quando a nuvem caminhava, os hebreus seguiam-na; quando se detinha, acampavam. Mas, além dos prodígios, além das vozes saídas do interior da Arca, outros grandes milagres deram testemunho da lei. À entrada da terra prometida, quando a Arca atravessa o Jordão, o rio detém as águas a montante, enquanto as águas a jusante continuam correndo para abrir-lhe passagem e ao povo que a segue. A primeira cidade que encontram, inimiga e idólatra, vê diante da Arca, passeada sete vezes em torno de seu recinto, suas muralhas tombarem, sem assalto, sem aríete. Mais tarde, depois do estabelecimento dos hebreus na terra prometida, quando a Arca, em castigo dos pecados do povo, permanece em poder dos inimigos, é colocada com veneração no templo do Deus honrado acima de todos os outros e encerrada com o ídolo; no dia seguinte, abrem o templo e encontram o ídolo por terra e vergonhosamente despedaçado. Assombrados por diversos prodígios e impressionados por praga ainda mais vergonhosa, devolvem ao povo de Israel a Arca do divino testemunho. Ora, como se operou a devolução? Colocaram a Arca em cima de um carro a que atrelaram duas novilhas, de que haviam separado os bezerros, e, para verificarem se o poder de Deus estava com eles, deixaram-nas ir em liberdade. Sem guia, sem carreiro, vão em direção dos hebreus; surdas aos mugidos dos esfomeados bezerros, conduzem aos adoradores dos divinos mistérios a Arca misteriosa. Fatos sem dúvida insignificantes para Deus, mas, para os homens, repletos de ensinamentos e salutares assombros. Os filósofos, em especial os platônicos, mais sábios que os outros, veem na múltipla beleza, que reveste os corpos animados e até a erva dos campos, a prova de providência atenta aos objetos ínfimos da natureza. Mais divinos, entretanto, se revelam os testemunhos dados em favor de religião que proíbe sacrificar a qualquer criatura do céu, da terra ou dos infernos, a nenhum outro poder senão a Deus mesmo, cujo amor é, com exclusividade, a beatitude de quem o ama, religião que, anunciando o fim dos sacrifícios prescritos e sua reforma por meio de sacerdote melhor, mostra, contudo, que Deus não tem necessidade de tais sacrifícios, sombras e figuras de sacrifícios mais perfeitos, que semelhantes honras, inúteis a sua glória, não têm outro objetivo senão o de ligar-nos a Ele por meio dos ardentes laços do amor, pela homenagem de culto fiel, homenagem indiferente à sua felicidade, princípio único da nossa. CAPÍTULO XVIII Contra os que negam fé aos livros eclesiásticos com que Deus instruiu seu povo. Milagres falsos! dir-se-á. A tradição mentiu! Quem quer que fale assim, quem quer que pretenda que, quanto a tal ordem de acontecimentos, nenhuma tradição é digna de fé, pode igualmente pretender que não existe, em absoluto, Deus que se interesse pela ordem temporal. Com efeito, os deuses do paganismo também não fundaram seu culto, atesta-o a História profana, senão sobre fatos miraculosos, mais próprios a excitar o espanto dos homens que a merecer-lhes o reconhecimento. Não tomei a peito, nesta obra, cujo Livro Décimo temos em mãos, refutar quem quer que negue qualquer poder divino ou qualquer Providência, e sim confutar todo aquele que a nosso Deus, fundador da santa e gloriosa Cidade, preferem seus próprios deuses, ignorantes de que nosso é também o invisível e imutável fundador do mundo visível e mutável e o verdadeiro dispensador da eterna felicidade, que não é de modo algum o gozo de suas criaturas, mas o dom de si mesmo. Não disse o veracíssimo profeta: Meu bem é permanecer unido a Deus? É, sabemo-lo, questão discutida pelos filósofos a do bem final a que se devem referir todos os deveres. E não diz o Profeta: Meu bem é possuir imensas riquezas, meu bem é revestir a púrpura, brilhar pelo resplendor do cetro e do diadema, ou, como certos filósofos não se envergonharam de dizer, meu bem é a volúpia corporal, ou, segundo a opinião mais nobre de filósofos pouco mais sábios, meu bem é a virtude de minha alma. Meu bem, diz o Salmista, é permanecer unido a Deus. Eis o que aprendeu daquele cujo culto, com exclusão de qualquer outro, os santos anjos lhe ordenaram, ordem confirmada por milagres. Ele mesmo tornara-se o sacrifício de Deus, por quem ardia em flama espiritual e de quem cobiçava, em transportes de santo desejo, o casto e inefável abraço. Ora, se os pagãos, seja qual for seu pensamento a respeito dos deuses por eles adorados, confiados na História, acreditam nos milagres atribuídos a semelhantes deuses, nos testemunhos da magia ou de ciência a seus olhos mais legítima, a teurgia, por que se recusam a crer em nossos milagres, atestados pelas Santas Letras, cuja autoridade é tanto maior quanto maior sobre todos os outros é Deus, a quem, com exclusividade, mandam sacrificar? CAPÍTULO XIX Fundamento do sacrifício visível que, segundo a verdadeira religião, se deve oferecer a Deus, único, verdadeiro e invisível. Pretender que os sacrifícios visíveis são devidos aos outros deuses e que a Deus, invisível, pertencem os sacrifícios invisíveis (ao maior os maiores, ao mais excelente os mais excelentes, como, por exemplo, as homenagens de alma pura e de vontade boa), é ignorar que os sacrifícios visíveis são para os invisíveis o que a palavra é para a realidade que ela exprime. A prece e os louvores constituem expressão da oferenda interior; saibamos, pois, quando sacrificamos, que apenas a Ele pertence o sacrifício visível, de que devemos ser, no segredo de nossos corações, o sacrifício invisível. Então é que obtemos o favor dos anjos, contentes de nosso piedoso contentamento, a assistência das Virtudes superiores de que a santidade faz o poder. Mas, quando queremos oferecer nossas homenagens aos espíritos fiéis, estamos certos de desagradá-los; se junto ao homem desempenham missão sensível, proíbem-nos abertamente adorá-los. As Santas Letras oferecem-nos exemplos disso. Alguns acreditaram dever tributar aos anjos, pela adoração ou pelo sacrifício, as honras devidas a Deus; mas os próprios anjos repelem-no e mandam adorar o único Deus que sabem legitimamente adorável. Os santos imitam os anjos. Paulo e Barnabé, por haverem operado maravilhosa cura em Licaônia, são considerados deuses e os habitantes querem imolar-lhes vítimas. Porém, sua profunda humildade repele tal homenagem e ambos anunciam a esses povos o Deus em quem devem crer. E, em sua soberba, os espíritos de mentira não reclamam para si mesmos semelhante culto, senão porque o sabem devido, em caráter exclusivo, ao verdadeiro Deus. De fato, não é, como Porfírio e outros acreditaram, o odor das vítimas, mas as honras divinas, qua tais demônios amam. Os perfumes dos sacrifícios não lhes faltam onde queiram; se quisessem mais, não poderiam dá-los a si mesmos? Os espíritos que se arrogam a Divindade não se comprazem no vapor de carne queimada, mas no perfume de alma suplicante, que se deixa seduzir e dominar. Aspiram a fechar-lhe, assim, o caminho do céu, pois o homem não pode ser o sacrifício do verdadeiro Deus, enquanto a qualquer outro oferece sacrifício ímpio. CAPÍTULO XX Supremo e verdadeiro sacrifício efetuado pelo Mediador entre Deus e os homens. Daí procede o verdadeiro mediador, o homem Jesus Cristo, feito mediador entre Deus e os homens ao tomar a forma de escravo. Na forma de Deus recebe o sacrifício com o Pai, com quem é Deus uno; na forma de escravo preferiu ser sacrifício a recebê-lo, a fim de ninguém pensar que se deve oferecer sacrifícios a qualquer criatura. Por isso, é Ele o sacerdote, Ele o ofertante e Ele a oblação. Ele quis que de semelhante realidade fosse sacramento cotidiano o sacrifício da Igreja, de quem Ele é a Cabeça e que se oferece a si mesma por intermédio dele. Os antigos sacrifícios dos santos eram sinais múltiplos e variados do verdadeiro sacrifício, figurado por muitos, do mesmo modo que a mesma realidade se expressa com muitas palavras, para encarecê-la mais e sem fastio. Todos os falsos sacrifícios desapareceram ante o verdadeiro e supremo sacrifício. CAPÍTULO XXI Modo do poder dado aos demônios para glorificar os santos pela tolerância para com as paixões. Os santos venceram os espíritos aéreos, não aplacando-os, mas permanecendo fiéis a Deus. Mas, em certos tempos previstos e determinados, os demônios receberam, por permissão divina, o poder de excitar o ódio de seus escravos contra a Cidade de Deus e de afligi-la com crueldade, de receber os sacrifícios, de exigi-los e até mesmo de arrancá-los pela violência das perseguições. Trata-se, todavia, de provação que, longe de ser funesta à Igreja, lhe é, pelo contrário, de proveito para completar o número dos mártires, cidadãos da cidade divina, onde cingem coroa tão mais resplandecente quanto mais generosamente lutaram contra a impiedade, luta levada à efusão de seu sangue! Se a linguagem da Igreja permitisse, poderíamos chamá-los, empregando nome mais glorioso, nossos heróis, nome que parece derivar do de Juno, em grego Hera; donde vem que um de seus filhos, não sei qual, é nas fábulas helênicas chamado Heros. A fábula tem certo sentido místico; Juno representa o céu, morada, segundo quer, dos heróis. Com esse nome, de certa dignidade, chamam as almas dos defuntos. Mas nossos mártires chamar-se-iam heróis, se o uso da linguagem eclesiástica o permitisse. Não porque têm no ar sociedade com os demônios, mas porque venceram os demônios, quer dizer, as potestades aéreas. Vencendo-os, seja qual for o significado que se dê à fábula, venceram a própria Juno, que os poetas, não sem razão, representam inimiga da virtude e invejosa das almas valorosas que aspiram ao céu. Virgílio, entretanto, torna infelizmente a cair sob o triste poder dos demônios, quando, depois de pôr na boca de Juno esta confissão: Enéias é meu vencedor!, faz Heleno dar ao chefe troiano este pretenso conselho de piedade: Eleva a Juno, de todo o teu coração, as fórmulas sagradas e triunfa dessa dominadora rainha, à força de dádivas e súplicas. Segundo tal opinião, diz Porfírio, embora não de acordo com seu pensamento, mas com o de outros, que o deus bom, ou gênio, nunca vem em socorro do homem, se o mau não foi, antes, conjurado. Assim, segundo seu modo de pensar, as Divindades más são mais poderosas que as boas, pois as boas só podem prestar assistência ao homem, se as más, aplacadas, consentirem. Os maus podem prejudicar, porque para eles nada representa a resistência dós bons. Não é esse o caminho da religião verdadeira e santa. Não é assim que nossos mártires triunfam de Juno e das potestades do ar, invejosas das santas almas. Não é, em absoluto, por meio de oferendas suplicantes, mas por virtudes divinas, que nossos heróis sobrepujam Hera. Cipião teria merecido mais a alcunha de Africano, se, ao invés de reduzir a África pelas armas, a houvesse pacificado por meio de presentes? CAPÍTULO XXII Donde lhes vem aos santos o poder contra os demônios e donde a verdadeira purificação do coração? É pela virtude da verdadeira piedade que os homens de Deus combatem a potestade do ar, inimiga da piedade; não a expulsam, aplacando-a, mas exorcizando-a; repelem-lhe os encarniçados assaltos, não implorando-lhe, mas implorando contra ela a intercessão de Deus. Com efeito, a potestade do ar não pode vencer, não pode dominar senão graças à cumplicidade. É, por conseguinte, vencida em nome daquele que se revestiu da natureza humana e venceu sem pecado, a fim de que nele, sacerdote e sacrifício, todo pecado fosse remetido. É o mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem e nosso Redentor, que nos reconcilia com Deus. De fato, apenas o pecado nos separa de Deus; nesta vida, não é nossa virtude, mas sua divina misericórdia que nos purifica, não é nosso poder, mas sua clemência infinita. E, com efeito, o pouco de força de que nos apropriamos é apenas dom de sua bondade. Qual não seria nossa presunção, apesar da miséria de nossos farrapos carnais, se até o momento de depô-los não vivêssemos sob o perdão? É, pois, pelo mediador que a graça nos veio, a fim de que, manchados na carne de pecado, a semelhança da carne de pecado nos apagasse as manchas. E a graça de Deus, testemunho de sua imensa misericórdia, que nesta vida nos conduz pela fé e depois da morte nos eleva, pela clara visão da verdade imutável, à plenitude da perfeição perfeita. CAPÍTULO XXIII Princípios em que, segundo os platônicos, se baseia a purificação da alma. Diz Porfírio haverem os oráculos divinos respondido não sermos purificados pelas teletas do Sol e da Lua. Com isso pretende dar a entender que o homem não pode ser purificado pelas teletas de deus algum. Que teletas purificarão, se não purificam as do Sol e as da Lua, considerados como os principais deuses celestes? Acrescentou, por fim, haver o mesmo oráculo declarado que os princípios podem purificar. Ao dizer que as teletas do Sol e da Lua não purificam, pretendeu não acreditassem que as de qualquer outra obscura Divindade da plebe dos deuses servisse para purificar. Ora, como platônico, que entende por Princípios? Sabemo-lo. Fala em Deus Pai e em Deus Filho, que em grego se chama intelecto ou entendimento do Pai. Do Espírito Santo, nada fala ou fala vagamente. Qual, com efeito, entre o Pai e o Filho, o intermediário que Porfírio parece indicar? Não o compreendo. De fato, se quisesse falar, como Plotino, da terceira substância principal da alma intelectual, não a designaria como intermediária entre o Pai e o Filho. Plotino coloca a alma intelectual depois do entendimento do Pai; ora, o intermediário não pode figurar depois, mas entre. Porfírio exprime-se, por conseguinte, como pode, ou antes, como quer, para dizer o que dizemos, a saber, que o Espírito Santo não é apenas o Espírito do Pai ou do Filho, mas do Pai e do Filho. A linguagem dos filósofos é muito livre; tratando das mais difíceis questões, pouco se importam com a justa susceptibilidade dos ouvidos religiosos. Quanto a nós, devemos falar de conformidade com certas regras, pois a licença da linguagem bem depressa ocasionaria a temeridade das opiniões. CAPÍTULO XXIV Princípio uno e verdadeiro, único que purifica e renova a natureza humana. Assim, quando falamos de Deus, não falamos de dois ou três princípios, como não nos é permitido dizer dois ou três deuses, embora reconheçamos que cada uma das três pessoas divinas é Deus, sem dizer, todavia, como os hereges sabelianos, ser o Pai o mesmo que o Filho e o Espírito santo o mesmo que o Pai e o Filho; dizemos, ao contrário, que o Pai é o Pai do Filho, o Filho é o Filho do Pai e o Espírito Santo é o Espírito do Pai e do Filho, mas não é nem o Pai, nem o Filho. Por conseguinte, o princípio único, não os princípios, como dizem os platônicos, purifica o homem. Mas, sujeito a invejosas potestades, de que se envergonha, mas não se atreve a atacar com inteira liberdade, Porfírio não quer reconhecer em Nosso Senhor Jesus Cristo o princípio cuja encarnação nos purifica. Despreza-o na carne de que se reveste para o sacrifício expiatório, mistério profundo, inacessível à soberba que a humildade do verdadeiro e bom mediador arruína, mediador que, sujeito, como eles, à mortalidade, se mostra aos mortais, enquanto, orgulhosos da própria imortalidade, os mediadores de insolência e mentira prometem assistência derrisória aos infelizes mortais. O mediador de verdade mostra-nos que só o pecado é mal, não a natureza ou a substância da carne. A alma do homem pode assumir essa carne sem pecado, revesti-la, depô-la na morte e melhorá-la na ressurreição. Mostrou que a própria morte, embora castigo do pecado, que Ele sem pecado pagou por nós, não deve ser evitada, pecando, mas, se possível, deve ser suportada por amor à justiça. Pode livrar-nos dos pecados, morrendo, porque não morreu por seu pecado. O referido platônico nele não reconhece de modo algum o princípio; caso contrário, nele reconheceria a purificação. Com efeito, não é a carne o princípio, nem o é a alma do homem, mas o Verbo criador de todas as coisas. Logo, a carne não purifica por si mesma, mas pelo Verbo, que a tomou quando o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Falando da obrigação de comer-lhe misticamente a carne, quando, ofendidos, os que não entenderam se retiravam, dizendo: Duras palavras! Quem poderá ouvi-las?, respondeu aos que permaneceram junto dele: É o Espírito que vivifica; a carne para nada serve. Em consequência, o princípio, uma vez que tomou a alma e a carne, purifica a alma dos crentes. Por isso, aos judeus, que lhe perguntavam quem era, respondeu ser o princípio. Carnais, fracos, sujeitos ao pecado e envoltos nas trevas da ignorância, não poderíamos compreendê-lo, se Cristo não nos limpasse e curasse, pelo que éramos e pelo que não éramos. Éramos homens, porém não éramos justos. Em sua encarnação estava a natureza humana, mas justa e sem pecado. Eis o mediador que nos estendeu a mão, para retirar-nos do abismo de nossa queda, eis a raça preparada pelo ministério dos anjos promulgadores da Lei antiga, que ordenava o culto a um só Deus e prometia o advento do divino mediador. CAPÍTULO XXV Todos os santos, quer no tempo da Lei, quer nos primeiros séculos, foram justificados no sacramento e na fé em Cristo. Pela fé no mistério do advento de Cristo puderam os antigos justos, vivendo piedosamente, ser purificados. E isso não apenas nos tempos anteriores à lei dada ao povo hebreu (porque lho revelou Deus mesmo ou seus anjos), mas também nos tempos da Lei, embora o véu das promessas carnais ocultasse a promessa dos bens espirituais. Eis por que se chama Velho Testamento. É o tempo dos profetas, cuja voz, como a dos anjos, anuncia a salvação vindoura. Do número de tais profetas é aquele que, no tocante ao soberano bem do homem, proferiu este oráculo divino: Meu bem é permanecer unido a Deus. O salmo de que foi tirado distingue de modo bem claro entre um e outro Testamento, entre o Velho e o Novo. As promessas terrestres e carnais, em que abundavam os ímpios, fazem o Profeta dizer que seus pés vacilaram, que seus joelhos fraquejaram, como se houvesse abraçado em vão o serviço do Senhor, ao ver a felicidade, que esperava dele, passar aos ímpios que o desprezam. Acrescenta que tal problema o preocupou muito, mas em vão, até o momento em que, entrado no santuário de Deus, viu o próprio erro e o fim daqueles cuja felicidade invejava. Viu-os cair do alto de sua glória, desaparecer e perecer por causa de suas iniquidades. Toda aquela felicidade temporal desapareceu como sonho que deixa o homem, quando desperta, no mesmo instante privado das enganadoras alegrias que sonhava. E como, cá embaixo, na cidade terrestre, estavam inflados da própria grandeza, diz: Senhor, em tua cidade reduzirás a nada sua imagem. Mostrando, todavia, que para ele fora bom não esperar semelhantes prosperidades senão da liberalidade do único e verdadeiro Deus, soberano Senhor de todas as coisas, afirma: Tornei-me verdadeiro animal diante de ti; contudo, não deixei de estar contigo. Como animal, desprovido, pois, de inteligência, pois de vós eu não deveria esperar senão o que não posso ter de comum com os ímpios e não a estéril abundância que, prodigada aos que se recusavam a servir-vos, me levaram a crer que eu vos tinha inutilmente servido. Todavia, não deixei de estar contigo, porque o desejo de semelhantes bens não desviou, em absoluto, para os outros deuses minha homenagem. Por isso, prossegue: Tomaste-me pela mão direita, conduziste-me segundo a tua vontade e recebeste-me com glória. Como se não pertencessem à mão esquerda os bens cujo gozo, concedido aos ímpios, lhe causaram tamanho esmorecimento. Exclama: Que há para mim no céu? E, fora de ti, que desejei na terra? Repreende a si mesmo e com justiça se desagradou, porque, tendo tão grande bem no céu (coisa que entendeu mais tarde), de Deus esperou na terra bem transitório, frágil e felicidade de certo modo de barro. Desfaleceu minha carne, diz, e meu coração, Deus de meu coração. Certo que com desfalecimento bom, do inferior para o superior. Assim se diz noutro salmo: Deseja e desfalece minha alma pelos átrios do Senhor. E noutro: Desfalece minha alma pela tua salvação. Contudo, havendo recordado o desfalecimento do coração e da carne, não acrescentou: Deus de meu coração e de minha carne, mas apenas: Deus de meu coração. O coração é que purifica a alma. Por isso diz o Senhor: Limpai o de dentro e o que está fora será limpo. Chama a Deus sua parte, não a algo dele, mas a Ele mesmo. Deus de meu coração, diz, e minha parte, Deus, para sempre. O motivo é que, entre as muitas coisas que os homens escolhem, lhe agradou o que deve ser escolhido. Porque eis que todos quantos se afastam de ti pereceram. Acabaste com todo aquele que fornica, deixando-te, quer dizer, com todo aquele que quer ser lupanar de muitos deuses. Agora vem o que motivou a exposição dos outros versículos do salmo: Meu bem é permanecer unido a Deus, não afastar-me, não ser violado por muitos. A união será perfeita, quando em nós nada mais houver que deva ser livrado. Logo tem realização o que segue: Pôr em Deus minha esperança. Pois a esperança que se vê não é esperança. Quem espera o que já vê? pergunta o Apóstolo. E se esperamos o que não vemos, por paciência o esperamos. Fundados em tal esperança, façamos o que prescrevem os preceitos seguintes do salmo e sejamos, segundo nosso módulo, anjos de Deus, quer dizer, seus núncios, anunciando-lhe a vontade e louvando-lhe a glória e a graça. Por isso é que depois de dizer: Pôr em Deus minha esperança, acrescenta: Para anunciar teus louvores às portas da filha de Sião. Trata-se da gloriosíssima Cidade de Deus, cidade que conhece o Deus uno e lhe rende culto, cidade anunciada pelos santos anjos, que nos convidam à sua sociedade e quiseram ser cidadãos dela. Aos anjos não agrada que lhes rendamos culto como se fossem nossos deuses; agrada-lhes, isso sim, que com eles o rendamos a seu Deus e nosso. Agrada-lhes, ademais, que não lhes sacrifiquemos, porém que com eles sejamos sacrifício de Deus. A ninguém que, deposta a maligna obstinação, o considere, lhe ocorre duvidar de que todos os imortais bem-aventurados, que não nos invejam (se nos invejassem, não seriam bem-aventurados), mas, pelo contrário, nos amam, para que sejamos felizes com eles, nos favorecem mais e nos auxiliam mais, quando com eles rendemos culto ao Deus uno, Pai, Filho e Espírito Santo, do que se com sacrifícios o tributássemos a eles próprios. CAPÍTULO XXVI Inconstância de Porfírio, indeciso entre confessar o verdadeiro Deus e o culto aos demônios. Não sei, mas parece-me que Porfírio se envergonhava de seus amigos, os teurgos. No caso não lhe faltavam, em absoluto, luzes, porém não tinha a liberdade de defender suas convicções íntimas. Dizia, com efeito, haver anjos que desceram até nós para iniciar os teurgos na ciência divina e haver outros que vieram revelar-nos a vontade do Pai e as sublimes profundezas de sua providência. É de acreditar-se, por conseguinte, que os anjos encarregados de tão sublime ministério queiram submeter-nos a outros que não Aquele cuja vontade nos revelam? Dá-nos, assim, o filósofo platônico o excelente conselho de imitá-las, ao invés de invocá-las. Portanto, não devemos recear, não sacrificando a eles, ofender os imortais e bem-aventurados servidores de Deus. O que sabem devido apenas a Deus, uno e verdadeiro, cuja união é a fonte de sua felicidade, não querem, por certo, que o tributem a eles, nem por figura alguma que o represente, nem pela realidade significada pelos mistérios; deixam tal demência à soberba desventura dos demônios. E quanto não se afasta deles a piedosa fidelidade, que não é feliz senão pela divina união! Sinceros amigos, longe de se arrogarem o domínio sobre nós, é à partilha de sua felicidade que nos convidam, ao amor daquele sob cujo pacífico domínio devemos associar-nos a essa felicidade. Tremes ainda, ó filósofo, e não ousas, contra as potestades inimigas das verdadeiras virtudes e dos benefícios do verdadeiro Deus, dar rédea solta à tua língua; já não conseguiste distinguir entre os anjos que anunciam a vontade do Pai e os que, atraídos por não sei que arte, descem até os teurgos. Por que, pois, honras semelhantes anjos, ao extremo de dizeres que revelam a ciência divina? Que coisas divinas anunciam os que não anunciam a vontade do Pai? Quer dizer, são aqueles que o invejoso ligou com preces sagradas para que não realizassem a purificação da alma. E não puderam, como tu mesmo dizes, ser desamarrados pelo bom, que desejava purificá-las e devolvê-los a seu poder. Ainda duvidas de que se trata de malignos demônios? Ou será que finges ignorá-la, porque não queres ofender os teurgos, de quem, enganado por tua curiosidade, aprendeste, com grande benefício, essas artes ocas e nocivas? Tal potestade, ou melhor, invejosa demência, escrava e não senhora das almas invejosas, ousas elevá-la, acima da atmosfera, até o céu, dar-lhe lugar entre vossos deuses celestes e imprimir na fronte dos próprios astros semelhante marca de infâmia? CAPÍTULO XXVII A impiedade de Porfírio transcende até mesmo o erro de Apuleio. Quão mais humano e mais tolerável não é o erro de Apuleio, sectário, como tu, de Platão. Afirmou serem os demônios, que habitam sob a esfera lunar, agitados pelas violentas e tempestuosas paixões da alma, honrando-os, é certo, mas como quem quer sem querer. Mas os deuses superiores do céu, residentes nos espaços etéreos, quer os visíveis, cuja luminosa claridade via, como o Sol, a Lua e demais estrelas, quer os invisíveis, imaginados, separou-os quanto pôde da mácula de semelhantes perturbações. Aprendeste, não de Platão, mas dos mestres caldeus, a exaltar os vícios humanos até às culminâncias etéreas ou empíreas do mundo e até ao firmamento celeste, a fim de que vossos deuses pudessem anunciar coisas divinas aos teurgos. Contudo, colocas-te, por tua vida inteiramente intelectual, acima de tal ciência; como filósofo, acreditas não ter necessidade alguma de semelhantes purificações teúrgicas, que, entretanto, impões aos outros, para pagares essa espécie de salário a teus mestres, porque os que não podem ser filósofos os atrais a purificações que confessas inúteis para ti, como capaz de coisas superiores. Noutros termos, intentas que os que não conseguem alcançar o valor da filosofia, árdua em demasia e reservada para reduzido número, busquem por meio de ti os teurgos, que os purificarão, não na alma intelectual, mas, pelo menos, na espiritual. Abres, assim, à multidão essas escolas secretas e ilícitas, enquanto a escola de Platão lhe permanece fechada. Porque os demônios que querem passar por deuses do éter, demônios impuros de que te fazes pregador e núncio, te fizeram magníficas promessas; asseguram-te que as almas purificadas pela arte teúrgica em seu ser espiritual, não podendo, é certo, retomar ao Pai, residirão, pelo menos, nas regiões etéreas, em companhia dos deuses celestes. Extravagâncias odiosas aos numerosos discípulos do Cristo, cujo advento liberta da dominação dos demônios. Nele os fiéis encontram a misericordiosa purificação da alma, do espírito e do corpo. Eis por que se revestiu de todo o homem, menos do pecado, para do pecado curar todo homem. Oxalá o hajas conhecido também e te hajas entregue a Ele, para seres curado com maior segurança, antes que à tua virtude humana, frágil e enfermiça ou à tua nociva curiosidade! Oxalá não te enganasse a ti, a quem vossos oráculos, como tu mesmo escreves, confessaram o Santo e o Imortal! A Ele se referia o célebre poeta, poeticamente, é verdade, porque era uma alusão velada a outro, mas pura verdade se o referires a Ele: Sob teus auspícios, se restam ainda alguns vestígios de nosso crime, apagados para sempre, libertarão a terra de perpétuo terror. Com efeito, seja qual for o progresso da humanidade nos caminhos da justiça, se o crime desaparece, nossa fragilidade mortal conserva vestígios que apenas podem ser apagados pela mão do Salvador, designado por esses versos. Porque, no começo de sua égloga, Virgílio nos dá a entender que não fala de si mesmo: Chegou a última idade, anunciada pela sibila de Cumas. É, por conseguinte, às profecias da Sibila que empresta seus cantos. Mas os teurgos, ou antes, os demônios, sob a figura dos deuses, longe de purificar a alma humana, maculam-na, ao contrário, pelas mentiras de seus fantasmas, pela impostura de suas evocações. Como poderiam, sendo espíritos impuros, purificar o espírito do homem? Não é sua própria impureza que os sujeita aos sortilégios de invejoso e os obriga, ou por temor, ou também por inveja, a recusar o benefício ilusório que pareciam desejosos de conceder? Mas basta-nos tua confissão; basta que a purificação teúrgica seja incapaz de purificar a alma intelectual e, purificando a alma espiritual, seja incapaz de conferir-lhe a imortalidade. Ora, Jesus cristo promete a vida eterna. Eis por que, para vossa grande indignação, por certo, ó filósofos, mas também para vosso profundo assombro, o mundo acorre a Ele. Não podes negar, Porfírio, que a ciência teúrgica não passa de ilusão e que os que a seguem exploram a ignorância e a cegueira. Não ignoras que é erro indubitável dirigir sacrifícios e preces aos anjos e às potestades demoníacas. Entretanto, desejoso de não haver dispensado trabalho inútil a semelhantes estudos, tu nos envias aos teurgos, para que purifiquem a alma espiritual dos que não vivem segundo a vida intelectual! CAPÍTULO XXVIII Que convencimentos cegaram Porfírio, cegueira que não lhe permitiu conhecer a verdadeira sabedoria, Cristo? Assim, precipitas os homens em erro evidente. Não te envergonhas de tal crime e fazes profissão de amar a sabedoria e a virtude! Se lhe tivesses amor sincero e fiel, conhecerias Jesus Cristo, virtude e sabedoria de Deus, e ciência vã não teria provocado contra sua humildade salutar a revolta de teu orgulho. Confessas, entretanto, que, mesmo sem os mistérios teúrgicos, sem as teletas, laboriosos objetos de teus vãos estudos, a parte espiritual da alma só pode ser puriflcada pela virtude da continência. Algumas vezes dizes, ainda, que as teletas não poderiam elevar a alma depois da morte. Ei-las, por conseguinte, inúteis, depois desta vida, mesmo para a parte espiritual da alma! Dizes e redizes tudo isso, todavia, com complacência. Qual é teu intento, senão o de parecer sábio em tais matérias, agradar os espíritos curiosos dessas ciências ilícitas ou inspirar-lhas a curiosidade por elas? Mas tens razão de declará-las perigosas, quer na prática, quer por causa da proibição das leis. Praza a Deus que seus miseráveis partidários te ouçam e se retirem, ou antes, que não se aproximem de modo algum de semelhantes abismos! Asseguras, pelo menos, não haver teletas para libertar .da ignorância e dos vícios a que a ignorância conduz, e que o único libertador é o entendimento do Pai, patrikón noun, iniciado no segredo de sua vontade. E não crês que Jesus Cristo seja tal entendimento! Tu o desprezas por causa do corpo recebido de mulher, pelo opróbrio de sua cruz e, desdenhando essa profunda abjeção, és capaz de ferir a sabedoria excelsa das coisas superiores! Mas Ele cumpre o que os santos profetas predisseram dele: Aniquilarei a sabedoria dos sábios, rejeitarei a prudência dos prudentes. Ora, a sabedoria que neles aniquila não é a ciência, a sabedoria que lhes deu, mas a que se arrogam e não vem dele. Por isso, citado esse testemunho profético, o Apóstolo acrescenta: Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o esquadrinhador deste mundo? Deus não convenceu de loucura o saber deste século? E assim, porque na sabedoria de Deus o mundo não conheceu Deus, pela sabedoria prouve a Deus salvar os que nele cressem, pela loucura da pregação. Os judeus pedem milagres e os gregos buscam sabedoria, mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios; mas aos que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos Cristo, virtude de Deus e sabedoria de Deus; pois o que parece louco em Deus é mais sábio que os homens. E o fraco em Deus é mais forte que os homens. Eis a loucura, eis a fraqueza que os sábios e os fortes como por própria virtude desprezam. Eis a graça que cura os enfermos, não os que alardeiam com soberba sua falsa felicidade, mas os que confessam com humildade sua verdadeira miséria. CAPÍTULO XXIX A impiedade dos platônicos envergonha-se de confessar a encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo. 1. Reconheces, é certo, o Pai e seu Filho, a quem chamas intelecto paterno ou mente, e, no meio de ambos, aquele a quem, pensamos, chamas Espírito Santo, três deuses, portanto, segundo vosso modo de falar. Aqui, embora useis palavras pouco exatas, vedes de algum modo e como por certas sombras de tênue imaginação aonde vossos passos devem encaminhar-se. Não quereis, porém, conhecer a encarnação do Filho imutável de Deus, pela qual somos salvos, para podermos chegar ao que cremos ou de algum modo entendemos. Entrevedes, em certo sentido, embora de longe, embora com visão entenebrecida, a pátria em que se deve morar, não caminhais, porém, pelo caminho que a ela conduz. Admites a graça, posto dizeres que a poucos se concedeu chegar a Deus pela virtude da inteligência. Não dizes: "Agradou a poucos" ou "Quiseram poucos", mas, ao contrário, ao dizeres que se concedeu a poucos, sem dúvida confessas a graça de Deus, não a suficiência do homem. Usas mais abertamente essa palavra onde, comentando o pensamento de Platão, afirmas que nesta vida é impossível que o homem alcance a perfeição da sabedoria, porém que àquele que vive segundo o entendimento tudo quanto lhe falta pode ser completado, depois da vida corporal, pela providência de Deus e sua graça. Oh! se houvesses conhecido a graça de Deus por Jesus Cristo, Senhor nosso, e podido ver que em sua encarnação, pela qual tomou a alma e o corpo do homem, é o supremo exemplo da graça! Que farei, entretanto? Sei que inutilmente falo a defunto, isso, porém, no que se refere a ti; no tocante àqueles que te superestimam e te amam, quer por certo amor à sabedoria, quer por curiosidade pelas artes que não deverias ter ensinado, ou melhor, aos que me dirijo, apostrofando-te, talvez não falemos em vão. A graça de Deus não poderia ser mais gratuitamente encarecida que inspirando a seu Filho único o revestir-se do homem, permanecendo imutavelmente em si, e o dar aos homens a esperança de seu amor por meio do homem pelo qual os homens chegassem a Ele. Tão longe dos mortais estava o imortal, dos mutáveis o imutável, dos pecadores o justo, dos infelizes o feliz! E, naturalmente, fixou a meta de nossos desejos, ser imortais e felizes, permanecendo Ele bem-aventurado e assumindo o mortal, e, para dar-nos o que amamos, ensinou-nos, padecendo, a desprezar o que tememos. 2. Mas, para prestar aquiescência a semelhante verdade, era preciso humildade, que muito dificilmente pode pelo livre convencimento dobrar-vos a cerviz. Que há de incrível, sobretudo para vós, que pensais essas coisas, que há de incrível, quando se diz haver Deus tomado alma humana e corpo? Atribuís, é certo, tanta virtude à alma intelectual, que é alma humana, que a dizeis capaz de fazer-se consubstancial com a mente paterna, que chamais Filho de Deus. É, pois, incrível que uma alma intelectual qualquer haja sido tomada, de modo inefável e singular, para a salvação de muitos? Que o corpo se une à alma para formar e constituir o homem total e completo, conhecemo-lo todos. Testemunha-o nossa própria natureza. Sem tal convicção da experiência, parecer-nos-ia bem mais difícil acreditar. Seria mais fácil admitir a união do humano com o divino, do mutável com o imutável (seria a união de espírito com espírito, ou, para usar as palavras que costumais usar, do incorpóreo com o incorpóreo), do que a união do corpo com o incorpóreo. Causa-vos estranheza, porventura, o inusitado parto de virgem? Nem mesmo isso deve ofender-vos; digo mais, deve conduzir-vos a aceitar a piedade, porque o admirável nasce admiravelmente. Ou será que o corpo deposto pela morte e mudado para melhor graças à ressurreição, já incorruptível, não arrastou o mortal ao soberano? Talvez vos recuseis a crê-lo, ao verdes que Porfírio, nos mesmos livros de que já citei algumas coisas e versam Sobre o Retorno da Alma, manda com tanta insistência evitar todo corpo, para que a alma possa permanecer feliz com Deus. Quem assim pensava deveria, antes, ser corrigido, sobretudo pensando com ele coisas tão incríveis sobre a alma deste mundo visível e desta mole corpórea tão imensa. Dizeis que o mundo é animal felicíssimo e ao mesmo tempo o quereis eterno. Di-lo Platão. Como, pois, se a alma, para ser feliz, há de evitar todo corpo, a alma do mundo não será desligada de seu corpo nem jamais carecerá de felicidade? Que o Sol e todos os demais astros são corpos, não apenas o admitis em todos os vossos livros, coisa que todos os homens não duvidam em ver e dizer, mas também, por ciência, segundo vós, mais elevada, dizeis serem animais felicíssimos e de corpos eternos. Por que, quando vos pregam a fé cristã, vos esqueceis ou fingis ignorar o que costumais discutir ou ensinar? Que outra razão há para não quererdes ser cristãos, pelas opiniões que vós mesmos combateis, senão haver Cristo vindo em humildade e serdes soberbos? Quais serão os corpos futuros dos santos na ressurreição, é questão que pode ser debatida, com maior escrúpulo, entre os mais versados nas Escrituras cristãs. Todavia, que serão eternos, não o pomos em dúvida, nem que serão tais qual foi o de Cristo em sua ressurreição. Contudo, sejam como forem, apregoamo-los incorruptíveis e imortais e dizemos que não impedirão de maneira alguma a contemplação, pela qual a alma se fixa em Deus. Dizeis, por vosso turno, que nas moradas celestes há corpos imortais de imortalmente bem-aventurados. Por que, para sermos felizes, opinais se deva evitar todo corpo, com o fim exclusivo de parecer-vos razoável fugir à fé cristã? Por que, pergunto mais uma vez, senão porque Cristo é humilde e vós, soberbos? Será por vos envergonhardes de ser corrigidos? Tal vício é privativo dos soberbos. Quer dizer que os homens doutos se envergonham de se transformarem de discípulos de Platão em discípulos de Cristo, que por seu Espírito ensinou o pescador João a sentir e a dizer: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada, do que foi feito, se fez. Tudo quanto foi feito era vida nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz nas trevas resplandece, mas as trevas não a compreenderam. O princípio desse Evangelho, intitulado segundo João, certo platônico, como costumávamos ouvir da boca do santo ancião Simpliciano, mais tarde bispo da Igreja de Milão, dizia dever ser escrito com letras de ouro e pregado por todas as igrejas nos lugares mais destacados. Mas Deus, verdadeiro Mestre, foi considerado vil pelos soberbos precisamente porque o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Desse modo, sendo pouco para os infelizes o enfermar, orgulhavam-se da própria enfermidade e envergonhavam-se do médico que poderia curá-los. Funesta vergonha que, longe de mantê-los de pé, os arrasta à queda mais terrível. CAPÍTULO XXX Que refuta e em que dissente Porfírio do pensamento platônico? Se se julga indigno emendar algo depois de Platão, por que Porfírio corrigiu alguns pontos, não de pouca monta? É certíssimo haver Platão escrito que depois da morte as almas humanas baixavam até mesmo aos corpos dos animais. Plotino, mestre de Porfírio, também sustentou semelhante modo de pensar. Contudo, com razão desagradou a Porfírio. Acreditou que as almas dos homens tornavam, não aos corpos que haviam deixado, mas aos corpos de outros homens. Envergonhou-se de acreditar que certa mãe, transformada em mula, servisse de montaria ao filho. E não se envergonhou de crer que, remoçada, pudesse casar-se com ele. Quão mais decoroso é acreditar que as almas retomam uma vez aos próprios, corpos que acreditar que retomam muitas e a diversos corpos! E o que ensinaram os santos anjos, é o que disseram os profetas, inspirados pelo Espírito de Deus, é o que predisseram daquele a quem os núncios precursores anunciaram ser o Salvador que havia de vir, foi o que, enfim, os Apóstolos pregaram ao orbe da terra com o Evangelho. Contudo, como já declarei, Porfírio corrigiu em grande parte tal opinião. E chegou a pensar que as almas humanas somente podem tornar aos homens, não hesitando coisa alguma em derrocar os cárceres dos animais. Acrescenta haver Deus dado a alma ao mundo precisamente para que, conhecendo os males da matéria, recorresse ao Pai e não fosse, algumas vezes, retida pela mancha do contágio de tais seres. Nisso, embora pense algo censurável (porque a alma é, antes, dada ao corpo para praticar o bem; se não praticasse o mal, o mal ser-lhe-ia desconhecido), corrigiu a opinião de outros platônicos e não em coisa de pouca transcendência. Confessou que a alma, limpa de todos os males e unida com Deus, já não haveria de padecer os males deste mundo. Porfírio destruiu, assim, o dogma platônico da perpétua passagem das almas da morte à vida e da vida à morte. E demonstrou a falsidade do que parece haver afirmado o platônico Virgílio, a saber, que as almas purificadas, enviadas aos campos elísios (nome que a fábula dá às delícias dos bem-aventurados), são convidadas às margens do rio Letes, isto é, ao esquecimento do passado: Diz-lhes o deus que, posto já haverem perdido toda recordação, podem ver outra vez a abóbada celeste e dispor-se a entrar em cárceres humanos. Semelhante doutrina desagradou com razão a Porfírio. Na realidade, é loucura acreditar que da vida, que não pode ser feliz se não lhe é certíssima a eternidade, as almas desejem cair nos corpos corruptíveis e de lá voltar a eles, como se a suprema purificação lhes inspirasse o desejo de manchar-se de novo. Se a purificação perfeita faz com que se esqueçam de todos os males e o esquecimento dos males opera o desejo do corpo, onde hão de tornar a implicar-se em males, é fora de dúvida que a suprema felicidade é a causa da infelicidade, a perfeição da sabedoria é a causa da ignorância e a purificação suprema é a causa da imundície. Não será feliz a alma pela verdade todo o tempo que permaneça ali, onde convém ser enganada para ser feliz. Não será feliz, se insegura. E, para estar segura, pensará, erradamente, que sempre será feliz. Como gozará da verdade aquele para quem a causa do gozo é a falsidade? Viu-o Porfírio e disse que a alma, assim purificada, retorna ao Pai, para não ser retida alguma vez, manchada pelo contágio dos males. Falsamente, pois, alguns platônicos julgaram necessário o círculo vicioso em que as almas se afastam dos males e regressam a eles. Embora isso fosse verdadeiro, de que serviria sabê-lo? Talvez por isto os platônicos se atreveram a antepor-se a nós, porque não sabemos nesta vida o que não haverão de saber, purificados e muito sábios, na outra, melhor, crendo assim falsamente que hão de ser felizes. Se é absurdo e tolice dizê-lo, é indubitável que se deve preferir o pensamento de Porfírio ao deles, inventores dos circuitos das almas em eterna alternativa de felicidade e de infelicidade. Se é assim, então o platônico dissente de Platão para coisa melhor, eis que viu o que Platão não viu, nem se furta à correção depois de tal mestre, mas ao homem prefere a verdade. CAPÍTULO XXXI Contra o argumento com que os platônicos afirmam ser a alma humana coeterna com Deus. Por que não havemos de crer na Divindade, quanto a essas coisas que escapam à investigação minuciosa do engenho humano, que diz não ser a alma coeterna com Deus, mas criada, porque não existia? Aos platônicos parecia causa suficiente, para não crê-lo, aduzir que não pode ser eterno depois senão o que antes sempre existiu. E isso apesar de que, na obra escrita por Platão, intitulada Do Mundo, em que fala do mundo e dos deuses feitos no mundo por Deus, se afirma que estes começaram a ser e a ter princípio, porém não hão de ter fim, pois, graças à potentíssima vontade do Criador, hão de permanecer para sempre. Contudo, acharam maneira de entendê-lo, dizendo não aludir a princípio de tempo, mas de substituição. Assim como se o pé, dizem, estivesse sempre, desde a eternidade, no pó, debaixo dele estaria sempre a pegada que ninguém duvidaria haver sido feita pelo que pisou nem seria anterior a ele, embora feita por ele, assim também o mundo e os deuses nele criados sempre existiram, existindo sempre quem os fez e sendo, contudo, feitos. Se a alma sempre existiu, havemos de dizer que também sua miséria sempre existiu? Portanto, se nela existe algo que não é eterno e começou a existir no tempo, por que não poderia suceder que a alma antes inexistente começasse a existir no tempo? Ademais, sua felicidade sem medida e sem fim, depois de experimentar os males desta vida, começou, como ele próprio confessa, no tempo e, todavia, sempre existirá, sem antes haver existido. Toda a argumentação, destinada a estabelecer que nada pode existir sem fim, salvo o que não tem princípio de tempo, cai por terra, uma vez encontrada a felicidade da alma, que, tendo origem de tempo, não terá fim. Por conseguinte, ceda a fraqueza humana à autoridade divina e acreditemos, quanto à verdadeira religião, nos felizes e imortais que não pedem para si as honras que sabem devidas a seu Deus, que é também nosso. Não nos mandam sacrificar senão Àquele de quem com eles, como fartas vezes declarei e deve ser fartamente repetido, devemos ser o sacrifício. Tal sacrifício há de oferecê-lo o Sacerdote que, por nós, se dignou fazer-se sacrifício, até à morte, no homem de que se vestiu e segundo o qual quis ser também sacerdote. CAPÍTULO XXXII O caminho universal para a libertação da alma. Por não saber buscá-lo, Porfírio não deu com ele. Somente a graça cristã o descobriu. 1. Essa é a religião cristã, que contém o caminho universal para a libertação da alma, porque por nenhum, senão por ele, pode ver-se livre. Esse o caminho, até certo ponto real, que conduz ao reino cuja grandeza não vacila ao capricho dos tempos, mas repousa nas sólidas bases da eternidade. Quando, no Livro Primeiro Sobre o Retorno da Alma, já quase no fim, Porfírio diz que ainda não encontrou seita alguma que contenha a senda universal para a libertação da alma, que não achou semelhante senda nem na filosofia mais verdadeira, nem nos costumes e doutrina dos indianos, nem na indução dos caldeus, nem em qualquer outro caminho, e nem teve notícia de tal caminho por meio do conhecimento histórico, está sem dúvida confessando existir algum, embora ainda não lhe tenha chegado ao conhecimento. Assim, não o satisfazia o que com tanto esmero aprendera a respeito da libertação da alma e lhe parecia, ou melhor, parecia a outros, que o conheciam e professavam. Quando afirma que nem mesmo da filosofia mais verdadeira teve conhecimento de seita que contenha o caminho universal para a libertação da alma, parece-me demonstrar, à evidência, que a filosofia em que filosofou não era a mais verdadeira ou não continha a referida senda. Como pode, é claro, ser a mais verdadeira, se não contém semelhante senda? Pois que outra senda universal existe para a libertação da alma, senão a que livra todas as almas e, sem ela, nenhuma se livra? Quando acrescenta: Nem nos costumes e doutrina dos indianos, nem na indução dos caldeus, nem em qualquer outro caminho, atesta com voz inconfundível que nem o que aprendera dos indianos, nem o que aprendera dos caldeus continha a senda universal para a libertação da alma. É certo não haver podido silenciar que dos caldeus tomou os oráculos divinos, de que continuamente faz menção. Que senda universal para a libertação da alma quis dar a entender, senda que a ciência histórica ainda não lhe levara ao conhecimento e não recebera ainda nem da filosofia mais verdadeira, nem da doutrina dos povos que se tinham na conta de profundos conhecedores das coisas divinas? Tal estimação provinha de haver prevalecido neles a curiosidade de conhecer e tributar culto a quaisquer anjos. Que senda universal será essa, senão a concedida por Deus, não a seu povo em particular, mas a todos os povos do universo? Porfírio, grande espírito, não duvida da existência de tal caminho. Não acredita que a divina Providência tenha podido deixar o gênero humano sem esse caminho universal para a libertação da alma. Não lhe nega a existência; diz apenas que tamanho bem e tão estimável auxílio não o recebera ainda, ainda não lhe chegara ao conhecimento. Não é de maravilhar. Porfírio vivia enredado nas coisas humanas, quando a senda universal, que não é outra senão a religião cristã, permitia que a combatessem os adoradores de ídolos e demônios e os reis da terra. Essa permissão tinha por finalidade reafirmar e consagrar o número dos mártires, isto é, das testemunhas da verdade, que haviam de pôr em evidência que todos os males corporais devem ser tolerados pela fé da piedade e por encarecimento da verdade. Via-o Porfírio e pensava que, por causa de tais perseguições, o caminho havia de bem depressa desaparecer e, portanto, não se tratava da senda universal para a libertação da alma. Não entendia que o que o abalava e temia padecer em sua escolha pertencia, antes, à sua confirmação e a mais vigoroso encarecimento. 2. Essa a senda universal para a libertação da alma, ou seja, a pela misericórdia divina concedida a todos os povos. Porque seu conhecimento já tenha chegado a uns e ainda não tenha chegado a outros, ninguém pôde nem poderá perguntar: Por que tão cedo? Por que tão tarde? Porque o espírito humano não pode penetrar no pensamento daquele que envia. Percebeu-o Porfírio, ao dizer que não recebera ainda essa graça de Deus, que tal caminho ainda não lhe chegara ao conhecimento. E não pensou não fosse verdadeiro, porque ainda não o recebera ou porque não lhe chegara ao conhecimento. Essa, repito, a senda universal para a libertação dos crentes. Sobre ela, o fiel Abraão recebeu o oráculo divino: Em tua descendência serão abençoadas todas as gentes. Caldeu de nascimento, para que possa colher os frutos de tais promessas e dele se propague a descendência pelos anjos disposta em mãos do mediador, em que se revela a senda universal da libertação da alma, universal porque concedida a todas as gentes, Abraão recebe ordem de sair de sua terra, de sua parentela, da casa de seu pai. Então, livre, primeiro, das superstições caldéias, adora Deus, verdadeiro e único. e acredita santamente na promessa. Sim, é a senda universal de que o santo profeta diz: Deus tenha misericórdia de nós e nos abençoe; faça resplandecer seu rosto sobre nós. Para que conheçamos na terra teu caminho e em todas as gentes tua salvação. Por isso, tanto tempo mais tarde, tomando carne da linhagem de Abraão, disse de si o Salvador: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Essa a senda universal de que tanto tempo antes se profetizou: Nos últimos dias será manifesto o monte da casa do Senhor, preparado no cimo dos montes, e será elevado por cima dos outeiros. E virão a ele todas as gentes e entrarão nele muitos povos, que dirão: Vinde, subamos ao monte do senhor, à casa de Jacó, e nos anunciarão seu caminho e entraremos nele, porque de Sião sairá a lei e a palavra do Senhor de Jerusalém. Essa a senda, que não é de uma nação apenas, mas de todas as nações. E a lei e a palavra do Senhor não permanecerão em Sião e em Jerusalém, mas dali sairão para expandir-se por todo o orbe. Por isso o Mediador disse a seus discípulos, hesitantes depois da ressurreição: Convinha se cumprisse o que de mim está escrito na Lei e nos Profetas e nos Salmos. Abriu-lhes, então, o entendimento, para que compreendessem as Escrituras, e disse-lhes: Porque era mister que Cristo padecesse, ressuscitasse e em seu nome se pregasse a remissão de pecados em todas as nações, a começar de Jerusalém. Essa, em poucas palavras, a senda universal para a libertação da alma, significada pelos santos anjos e pelos santos profetas, primeiro nos poucos homens que encontraram onde puderam a graça de Deus, principalmente no povo hebreu. Esta, de certo modo sua república consagrada, era em profecia e prelúdio a Cidade de Deus, que havia de congregar todos os povos. Significaram-na pelo tabernáculo e pelo templo, pelo sacerdócio e pelos sacrifícios, e predisseram-na com palavras, algumas manifestas e na maioria místicas. O Mediador, já presente em carne, e seus bem-aventurados apóstolos, revelando a graça do Novo Testamento, indicaram mais abertamente o que em tempos passados se figurou algo mais ocultamente, de acordo com a distribuição de idades na humanidade. Esta, como prouve à sabedoria de Deus ordená-la, confirmou-a por meio de sinais e obras maravilhosas. Mais acima já fiz menção de algumas. Não apareceram apenas visões angélicas nem apenas se ouviram palavras de ministros celestiais; pelo contrário, além disso, os homens de Deus, que operavam em nome de singela piedade, dos corpos e dos sentidos dos homens expulsavam os espíritos imundos e sanavam as deformidades e enfermidades corporais. Os ferozes animais da terra e da água, as aves do céu, as árvores, os elementos e os astros cumpriram as determinações divinas, renderam-se os infernos e os mortos ressuscitaram. Não falo dos milagres próprios e singulares do Salvador, em especial o de seu nascimento e o da ressurreição. No primeiro revelou-nos o mistério da virgindade materna; no segundo, deu-nos exemplo dos que, enfim, ressuscitarão. Essa senda purifica o homem e prepara o mortal para a imortalidade de todas as suas partes constitutivas. E para que ninguém buscasse uma purificação para a parte a que Porfírio chama intelectual, outra para a que chama espiritual e outra para o corpo, precisamente para isso o veracíssimo e poderosíssimo Purificador e Salvador assumiu o homem todo. Fora de tal senda, que nunca faltou à humanidade, tanto quando se prenunciava vindoura como quando se anunciava realizada, ninguém se livrou, ninguém se livra e ninguém se livrará. 3. Diz-nos Porfírio ainda não haver-lhe chegado notícia, pelo conhecimento histórico, da senda universal para a libertação da alma. Mas pergunto: Pode haver história mais ilustre que essa, que obteve o zênite da autoridade em todo o mundo, ou mais fiel, que narre de tal maneira o passado, que também conta o futuro? De tais coisas, muitas já as vemos cumpridas; quanto às restantes, esperamos, sem duvidar, que se cumprirão. Não pode Porfírio ou quaisquer platônicos desprezar a adivinhação e predição das coisas terrenas, mesmo na referida senda e pertinentes a esta vida mortal. Fazem-no, merecidamente e com razão, em outros vaticínios e adivinhações de quaisquer modos e artes. Negam que tais coisas exijam grandeza humana ou que delas se deva fazer grande cabedal. E fazem bem. Porque ou se fazem por pressentimento de causas inferiores, como pela medicina se prognosticam com sintomas anteriores muitas coisas que hão de suceder na enfermidade, ou os imundos demônios prenunciam a disposição dos acontecimentos, direito que de certo modo se arrogam, a fim de a certas ações congruentes dirigir a mente e a cupidez dos pecadores e a matéria ínfima da fragilidade humana. Não cuidavam os homens santos, que caminhavam pela senda universal para a libertação da alma, de profetizar como grandes semelhantes coisas. Isso não lhes escapava e muitas vezes o predisseram para fundar a fé que não haviam podido infundir aos sentidos dos mortais nem conduzi-los com pressurosa facilidade a experimentá-la. Havia outras coisas verdadeiramente grandes e divinas, que, quanto se lhes permitia, conhecia a vontade de Deus, as anunciavam futuras. O advento de Cristo em carne, o que nele tão claramente se aperfeiçoou e o que se cumpriu em seu nome, a penitência dos homens e a conversão das vontades a Deus, a remissão dos pecados, a graça da justificação, a fé dos piedosos e a multidão dos que em todo o orbe creem na verdadeira Divindade, a supressão do culto aos ídolos e aos demônios, a provação da tentação, a purificação dos fiéis e sua libertação definitiva do mal, o dia do juízo, a ressurreição dos mortos, a condenação eterna da sociedade dos ímpios e o reino eterno da gloriosíssima Cidade de Deus, que imortalmente goza de sua presença, estão preditas e prometidas nas Escrituras. São tantas as coisas que já vemos cumpridas, que confiamos com piedosa confiança que há de chegar a hora de se cumprirem as demais. Quantos não acreditam na infalível retidão da senda universal para a libertação da alma, senda que culmina na visão de Deus e na união eterna com Ele, apesar dos claros testemunhos das Escrituras, em que se pregam e se afirmam, e, portanto, não as entendem, podem combatê-las, mas devem renunciar à esperança de destruí-las. 4. Por esse motivo, nestes dez livros, embora menos do que a intenção de alguns esperava de mim, satisfiz o desejo de outros, com o auxílio do verdadeiro Deus e Senhor, refutando as contradições dos ímpios, que ao Fundador da Cidade Santa, sobre a qual nos propusemos dissertar, preferem seus deuses. Dos dez livros, os cinco primeiros escrevi-os contra aqueles que pensam que, pelos bens desta vida, se deve prestar culto aos deuses; os cinco últimos, contra os que acham que se deve culto a eles pela vida que seguirá à morte. A seguir, como prometi no Livro Primeiro, direi, com auxílio de Deus, o que julgar conveniente dizer sobre a origem, o desenvolvimento e os fins das duas cidades, que, como também já declarei, o século nos apresenta misturadas e confundidas. LIVRO DÉCIMO PRIMEIRO Principia a segunda parte desta obra. Trata da origem, desenvolvimento e fins devidos das duas cidades, a saber, da terrena e da celestial. Neste livro Agostinho prova, em primeiro lugar, que as origens das duas cidades remontam à distinção entre anjos bons e anjos maus. Depois, valendo-se da oportunidade, discorre sobre a criação do mundo, segundo a descrição das Sagradas Letras no princípio do Gênesis. CAPÍTULO I Esclarecimento a respeito da segunda parte da obra Damos o nome de Cidade de Deus, de que dá testemunho a Escritura, àquela que rendeu à sua obediência, não por movimentos anímicos fortuitos, mas por disposição da soberana Providência, todos os engenhos humanos, com a garantia de autoridade divina superior aos espíritos de todas as nações. Lê-se na Escritura: Coisas gloriosas se disseram de ti, Cidade de Deus. Lê-se noutro salmo: Grande é o Senhor e muito digno de louvor na Cidade de nosso Deus, em seu santo monte, que dilata os contentamentos e alegrias de toda a terra. E pouco depois: Tal como o ouvimos, assim o vimos na Cidade do Senhor das virtudes, na Cidade de nosso Deus. Deus fundou-a para sempre. Outro salmo canta, por sua vez: A impetuosidade do rio alegra a Cidade de Deus. O Altíssimo santificou seu tabernáculo; estando Deus em meio deles, não se abalará. Por esses e outros testemunhos que seria prolixo enumerar, damo-nos conta da existência da Cidade de Deus, de que, pelo amor que nos inspirou seu Fundador, aspiramos a ser cidadãos. Os cidadãos da cidade terrena a seus deuses deram primazia sobre o Fundador da Cidade Santa, sem advertirem ser Ele o Deus dos deuses, mas não dos deuses falsos, ou seja, dos ímpios e soberbos, que, privados da luz imutável e comum a todos e reduzidos, por isso, a miserável poder, pretendem senhorios de certo modo privados e de seus enganados súditos buscam honras divinas. E Ele o Deus dos deuses piedosos e santos, que a submeter vários a si mesmos preferem submeter-se com amor a Ele apenas e adoram Deus, longe de se fazerem adorar em lugar de Deus. Nos dez livros precedentes, respondi aos inimigos da Cidade Santa, tanto quanto pude, com a assistência de nosso Senhor e Rei. Agora, consciente do que de mim se espera e lembrando-me de minha dívida, empreenderei, confiado no favor do mesmo Rei e Senhor nosso e em meu escasso valor, falar da origem, desenvolvimento e fins devidos das duas cidades. Como já dissemos, neste mundo andam ambas misturadas e confundidas uma com a outra. Primeiro direi como a origem das duas cidades remonta à distinção entre os anjos. CAPÍTULO II Conhecimento de Deus e único meio de consegui-lo. É grande e bem raro esforço transcender com o poder da razão todas as criaturas corpóreas e incorpóreas, que se apresentam mutáveis, e chegar à substância imutável de Deus, e dele próprio aprender que toda natureza que não é Ele não tem outro autor senão Ele. O motivo é que Deus não fala de tal maneira com o homem por meio de alguma criatura corpórea, sussurrando aos ouvidos corporais de modo que entre quem fala e quem ouve vibrem ondas aéreas. Não fala tampouco por criatura espiritual com semelhança de corpos, como sucede em sonhos ou de outro modo assim. Mesmo nesse caso fala aos ouvidos corporais, visto falar como que pelo corpo e como que por interposição de lugares corpóreos. Tais visões parecem-se muito com as dos corpos. Fala pela própria verdade, se alguém há idôneo para ouvir com a mente, não com o corpo. Fala desse modo à parte do homem que no homem é mais perfeita que as demais de que consta e à qual apenas deus é superior. Porque é muito razoável pensar ou, se não for possível, pelo menos crer, que o homem, feito à imagem de Deus, está precisamente mais próximo de Deus pela parte que supera as demais partes inferiores, que tem em comum com os animais. Como a mente, porém, a que se encontram unidas, por natureza, a razão e a inteligência, está impossibilitada, por causa de alguns vícios tenebrosos e inveterados, não somente de unir-se à luz incomutável, gozando-a, mas também de suportá-la, até que, renovando-se dia a dia e sarando, se torne capaz de tamanha felicidade, devia, primeiro, ser instruída e purificada pela fé. E, com o fim de que nela caminhasse com maior confiança até à verdade, a própria Verdade, Deus, o Filho de Deus, assumindo o homem, não consumindo a Deus, estabeleceu e fundou a fé, para que o homem tivesse no Homem-Deus caminho até o Deus do homem. Este o Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus. É Mediador, na qualidade de homem, e por essa mesma razão é também caminho. Porque, se entre quem caminha e o lugar a que se dirige existe caminho, há esperança de chegar. Se, porém, falta ou se ignora por que caminho se há de ir, que aproveita conhecer o ponto de chegada da viagem? Só existe um caminho muito guarnecido contra todos os erros, que seja alguém ao mesmo tempo Deus e homem: a meta, Deus; o caminho, homem. CAPÍTULO III Autoridade da escritura canônica, criação do Espírito divino. Este falou, primeiro, por meio dos profetas; a seguir, por si mesmo; em fim, quanto julgou suficiente, pelos apóstolos. Escreveu também a Escritura denominada canônica, da mais autorizada autoridade. A ela damos fé sobre as coisas que não convém ignorar e não somos capazes de conhecer por nós mesmos. Pois, como é possível saber, sendo nós testemunhas, coisas que não se encontram fora do alcance de nossos sentidos, daí procede o nome de presentes, porque de tal forma dizemos que se acham ante os sentidos como estão ante os olhos as coisas que estão à vista dos olhos; por isso, para as coisas fora do alcance dos sentidos, visto não podermos conhecê-las por nossa própria conta, buscamos outras testemunhas e damos crédito àquelas fora de cujo alcance sensorial não cremos estejam ou tenham estado semelhantes coisas. Assim, quanto às coisas visíveis que não vimos, acreditamos nos que as viram; assim, também, quanto às demais coisas que dizem respeito a cada um dos sentidos do corpo. A mesma coisa sucede com o que se sente com a mente e o espírito (porque com toda a propriedade se chama também sentido e daí tomou seu nome a sentença), quer dizer, com as coisas invisíveis que não se encontram ao alcance de nosso sentido interior. Quanto a estas, convém acreditar naqueles que na luz incorpórea lhes aprenderam a ordenação ou em sua subsistência atual as contemplam. CAPÍTULO IV A criação do mundo. Não é intemporal nem ordenada por novo conselho de Deus, como se houvesse mudança em sua vontade. 1. O maior de todos os seres visíveis é o mundo; o maior dos invisíveis, Deus. Mas o mundo vemos que existe e na existência de Deus cremos. Quanto a ter Deus feito o mundo, a ninguém podemos dar maior crédito que ao próprio Deus. Onde o ouvimos? Até agora, em nenhuma parte de modo mais claro que nas Santas Escrituras, em que seu profeta disse: No princípio fez Deus o céu e a terra. Porventura, estava presente o profeta, quando Deus fez o céu e a terra? Não, mas ali estava a Sabedoria de Deus, pela qual foram feitas todas as coisas, que também penetra nas almas santas, as torna amigas de Deus e dos profetas e, sem estrépito, lhes conta no íntimo as suas obras. Falam-lhas também os anjos de Deus, que sempre veem o rosto do Pai, cuja vontade anunciam aos que convém. Um deles era o profeta que escreveu: No princípio fez Deus o céu e a terra. Trata-se de testemunho tão idôneo, que nele se deve crer como em Deus, que predisse também muito antes nossa futura fé, pelo mesmo Espírito, mercê de quem conheceu as coisas que lhe foram reveladas. 2. Mas por que prouve a Deus eterno fazer então o céu e a terra, coisa que antes não fizera? Os que o perguntam, se pretendem ser eterno e sem princípio o mundo e, portanto, pensam não haver sido feito por Deus, estão muito longe da verdade e desvariam com a doença fatal da impiedade. Além dos testemunhos proféticos, que deixo de lado, o próprio mundo, de ordenadíssima mutabilidade e mobilidade e de formosíssima espécie das coisas visíveis, de certo modo proclama, tacitamente é verdade, haver sido feito e não haver podido ser feito senão por Deus, inefável e invisivelmente grande e invisível e inefavelmente formoso. Quem admite haver sido feito por Deus, porém, não quer reconhecer-lhe princípio de tempo, mas de criação, imaginando de modo dificilmente inteligível haver existido desde a eternidade, dizem, é certo, algo verdadeiro. Com isso acreditam defender Deus como que de temeridade fortuita, por temor a que se pense que de súbito lhe veio à mente a ideia de fazer o mundo e a que lhe sobreviesse novo querer, quando é certo não ser mutável em nada absolutamente. Não consigo, porém, compreender como semelhante razão possa ter para eles consistência nas coisas, sobretudo na alma, que, se contenderem ser coeterna com Deus, de modo algum podem explicar donde lhe veio a nova miséria, que antes nunca teve eternamente. Se disserem que sua miséria e sua beatitude se encontram em alternativa constante, ver-se-ão obrigados a dizer que essa alternativa durará sempre. Daí se seguirá o absurdo de que, mesmo quando se declara feliz, a alma não é, por certo, feliz, se prevê sua futura miséria e torpeza; se não prevê nem julga que será sempre miserável e torpe, mas sempre feliz, será sempre feliz, mas com falsa opinião. Essa é a maior asneira que se pode dizer. Se pensam que sempre, nos infinitos séculos passados, houve semelhante alternativa entre a felicidade e a miséria da alma e, já agora, daí por diante, uma vez livre, não há de voltar à miséria, persuadam-se de jamais haver sido verdadeiramente feliz; começa a ser, daí para diante, com nova e não enganadora bem-aventurança. Confessarão, assim, sobrevir-lhe algo novo, grandioso e nobre, coisa que antes eternamente jamais lhe sobreviera. Se negarem que a causa de tal novidade esteve no eterno conselho de Deus, ao mesmo tempo negarão Deus, autor dessa felicidade, o que constitui horrenda impiedade. E se disserem que Ele excogitou, por novo conselho, que dali por diante a alma fosse eternamente feliz, como demonstrarão ser Ele alheio à mutabilidade que lhes desagrada também a eles? Portanto, se admitem haver sido criada no tempo, mas que em tempo algum ulterior há de perecer, como o número, que tem princípio, mas não terá fim, e, por conseguinte, que, uma vez experimentadas semelhantes misérias, se ficar livre delas, nunca mais será miserável daí por diante, não duvidarão que assim acontecerá, permanecendo imutável o conselho de Deus. Assim, pois, creiam também na possibilidade de criação temporal do mundo e em que Deus, portanto, ao fazê-lo, não mudou seu eterno conselho e vontade. CAPÍTULO V Não devem ser imaginados infinitos espaços de tempo nem de lugares antes do mundo. Depois, é preciso ver que respondemos aos que admitem ser Deus o criador do mundo, porém perguntam por seu princípio, e que nos respondem sobre o lugar do mundo. Pergunta-se por que se fez então e não antes, do mesmo modo que se pode perguntar por que está onde está e não em outra parte. Se imaginam infinitos espaços de tempo anteriores ao mundo, durante os quais Deus, segundo afirmam, não podia estar inativo, imaginem também, fora do mundo, infinitos espaços locais. Se alguém disser que neles o Onipotente não podia estar ocioso, não será lógico, porventura, ver-se constrangido, com Epicuro, a sonhar com inumeráveis mundos? Com apenas a diferença de que ele afirma que os mundos se engendram e se resolvem por movimentos fortuitos dos átomos e estes hão de dizer serem obra de Deus, se não querem que Ele estivesse ocioso pela imensidade interminável de lugares patentes por todas as partes fora do mundo e que nem os próprios mundos podem por causa alguma dissolver-se. Tratamos com quem sente conosco ser Deus incorpóreo e criador de todas as naturezas distintas dele. Admitir outros a esta disputa sobre religião é por demais indigno, sobretudo porque, entre aqueles que pensam devido a muitos deuses semelhante culto, estes sobrepujaram os demais filósofos em nobreza e autoridade, não por outro motivo senão pelo de estarem mais próximos, embora ao mesmo tempo longe, da verdade. Ou será que hão de dizer que a substância de Deus, que não circunscrevem, nem determinam, nem distendem em lugar algum, mas, como é digno pensar a respeito de Deus, confessam estar em todas as partes, com presença incorpórea, está ausente dos espaços locais externos ao mundo e ocupa um só lugar, que, comparado com essa infinidade, é tão pequeno como aquele em que se encontra o mundo? Não acredito que cheguem a semelhante disparate. Admitindo eles, por conseguinte, apenas um mundo, que, com ser de ingente grandeza corpórea, é finito, está circunscrito por seu lugar e é feitura de Deus, a resposta que deem à pergunta: "Por que Deus deixa de agir nos infinitos lugares existentes fora do mundo?" devem dá-la também à sua pergunta: "Por que Deus deixou de agir nos infinitos tempos anteriores ao mundo?" Não é razoável pensar que Deus fortuitamente e não por sua razão divina haja constituído o mundo não em outro lugar, mas neste em que está, já que, havendo outros mil e um lugares possíveis, pôde escolher este sem nenhum merecimento mais excelente, embora a razão humana não compreenda o porquê divino desta obra. Assim, não é tampouco razoável pensar que sucedeu com Deus algo fortuito, porque criou o mundo nesse tempo e não no anterior, sendo que transcorreram tempos igualmente anteriores por espaço infinito, nem existiu diferença alguma para antepor, em sua decisão, um tempo a outro. Se insistem, dizendo serem vãs as imaginações dos homens, ao forjarem lugares infinitos, posto não haver lugar algum fora do mundo, responde-se-lhes que de igual modo os homens imaginam os tempos passados do ócio divino, já que não há tempo algum anterior ao mundo. CAPÍTULO VI É único e simultâneo o princípio da criação do mundo e dos tempos. Se é correta a distinção entre eternidade e tempo, baseada em que o tempo não existe sem alguma modalidade mutável e na eternidade não há mutação alguma, quem não vê que não existiriam os tempos, se não existisse a criatura, susceptível de movimento e mutação? Desse movimento e mutação, cedendo e sucedendo uma coisa a outra, por não poderem coexistir, de intervalos mais curtos ou mais longos, resultaria o tempo. Por conseguinte, sendo Deus o ser em cuja eternidade não existe mutação alguma, o criador e ordenador dos tempos, não compreendo a afirmação de que, depois de alguns espaços temporais, criasse o mundo, a não ser que se diga que antes do mundo já existia alguma criatura, cujos movimentos deram começo aos tempos. Por isso, como as Sagradas Letras, que gozam de máxima veracidade, dizem que no princípio fez Deus o céu e a terra, dando a entender que antes nada fez, pois, se houvesse feito algo antes do que fez, diriam que no princípio o houvera feito, o mundo não foi feito no tempo, mas com o tempo. O que se faz no tempo faz-se depois de algum tempo e antes de algum, depois do passado e antes do futuro. Mas não podia haver passado algum, porque não existia criatura alguma, cujos mutáveis movimentos o fizessem. O mundo foi feito com o tempo, se em sua criação foi feito o movimento mutável. E o que parece indicar também a ordem dos seis ou sete primeiros dias. Nomeiam-se, neles, a manhã e a tarde, até à criação de todas as coisas feitas por Deus em seis dias. Aperfeiçoaram-se no sexto dia e no sétimo dia, com grande mistério, se encarece o repouso de Deus. Qual a natureza desses dias é coisa inexplicável, talvez mesmo incompreensível. CAPÍTULO VII Como eram os primeiros dias, que tiveram, segundo a narração, manhã e tarde, antes da criação do Sol. Vemos que os dias conhecidos não têm tarde, senão em relação com o pôr do Sol, nem manhã, senão em relação com seu nascimento. Pois bem, os três primeiros dias transcorreram sem Sol, pois sua criação, segundo o Gênese, se deu no quarto dia. É verdade que primeiro se narra que foi feita a luz pela palavra de Deus, entre ela e as trevas Deus fez separação e à luz chamou dia e às trevas, noite. Mas de que luz se trata e de que movimento alternativo? Sejam quais forem a tarde e a manhã feitas, é certo que nos escapam aos sentidos e, não podendo entendê-lo tal qual é, deve, sem a menor vacilação, ser crido. Trata-se de luz corpórea, colocada longe de nossos olhos, nas partes superiores do mundo, luz que mais tarde acendeu o Sol, ou pelo nome de luz está significada a Cidade Santa nos santos anjos e nos espíritos bem-aventurados, da qual diz o Apóstolo: Aquela Jerusalém de cima, nossa mãe eterna nos céus, e noutro lugar: Todos vós sois filhos da luz e filhos do dia; não o somos da noite nem das trevas? Se é assim, podemos entender também convenientemente de algum modo a tarde e a manhã desse dia. A interpretação seria que a ciência da criatura, em comparação com a do Criador, de certo modo entardece e de igual maneira amanhece e se faz manhã, quando se endereça ao louvor e amor ao Criador. E não declina de noite, quando por causa da criatura não abandona o Criador. Ademais, ao enumerar os dias, a Escritura não interpôs nenhuma só vez a palavra noite. Em nenhuma passagem diz: Foi feita a noite, mas: Fez-se tarde e manhã, dia primeiro. A mesma coisa no segundo dia e nos demais. O conhecimento da criatura em si mesma é, por assim dizer, mais descolorido que seu conhecimento na Sabedoria de Deus, como na arte por que foi feita. Justamente por isso é possível dizer-se, com maior propriedade, tarde, em lugar de noite, tarde que, como já dissemos, quando se refere ao louvor e amor ao Criador, passa a ser manhã. E isso, quando se faz no conhecimento de si mesma, dá origem ao primeiro dia. Quando no conhecimento do firmamento, chamado céu, feito entre as águas superiores e as inferiores, dá origem ao segundo dia. Quando se faz no conhecimento da terra, do mar e de todas as plantas que por suas raízes se fincam na terra, dá origem ao terceiro dia; quando no conhecimento dos luzeiros maior e menor, de todas as estrelas, dá origem ao quarto dia. Quando se faz no conhecimento de todos os animais das águas, peixes e aves, dá origem ao quinto dia; quando no conhecimento de todos os animais terrestres e do próprio homem, ao sexto dia. CAPÍTULO VIII Interpretação que se deve dar ao descanso de Deus depois da criação, efetuada em seis dias. Que no sétimo dia Deus tenha descansado de todas as suas obras e o tenha santificado, não deve de modo algum ser entendido puerilmente, como se Deus se houvesse fatigado, trabalhando, Ele, que disse e foram feitas, com palavra inteligível e eterna, não sonora e temporal. O descanso de Deus significa o descanso dos que descansam em Deus, como a alegria da casa significa a alegria dos que se alegram em casa, embora os faça estar alegres não a casa, mas outra coisa qualquer. Quanto mais se a beleza da própria casa alegra os moradores! E mais se não apenas se chama alegre pela figura retórica que pelo continente significa o conteúdo, como quando se diz: os teatros aplaudem, os prados mugem, quando naqueles os homens é que aplaudem e nestes os bois é que mugem, mas também pela figura que significa o efeito pela causa, como se diz rosto alegre aquele que significa alegria de quem, ao vê-lo, se alegrará. Está muito conforme com a autoridade profética, que narra o descanso de Deus, dizer que por ele se significa o descanso daqueles que descansam nele e Ele faz descansar. A profecia também promete aos homens a quem se dirige e a seus autores que, depois das boas ações que Deus opera neles e por eles, nele terão descanso eterno, se nesta vida se aproximam dele pela fé. No antigo povo de Deus foi o que se figurou, segundo o preceito da Lei, pelo repouso do sábado. De acordo com isso, a mim me parece melhor tratar com maior esmero desse ponto no lugar devido. CAPÍTULO IX Que se deve pensar da criação dos anjos, segundo os testemunhos divinos? Agora, já que me propus falar da origem da Cidade Santa e me pareceu bem tratar primeiro do pertinente aos santos anjos, parte não pequena de tal cidade e tanto mais feliz quanto jamais foi peregrina, procurarei explicar aqui, com o auxílio de Deus e quanto parecer suficiente, os testemunhos divinos que a realidade dos anjos apoiam. Na passagem em que as Sagradas Letras falam da criação do mundo, não se diz com clareza se os anjos foram criados e em que ordem. Mas, se não foram silenciados, estão significados pelo nome de céu, onde se disse: No princípio fez Deus o céu e a terra ou, antes, pelo nome da luz de que falo. E penso não haverem sido silenciados, uma vez que está escrito haver Deus no sétimo dia descansado de todas as obras que fez, havendo assim começado o livro: No princípio fez Deus o céu e a terra, como se antes do céu e da terra, como parece, não houvera feito outra coisa. Começando pelo céu e pela terra, sendo a terra, no princípio, invisível e informe, segundo a consequente expressão da Escritura, e não havendo ainda sido feita a luz, é fora de dúvida que as trevas se encontravam sobre o abismo, isto é, sobre certa confusão indistinta de terra e água, porque onde não há luz necessariamente há trevas. Depois foram dispostas e ordenadas todas as coisas, criadas, segundo o Genesis, em seis dias. Sendo assim, não havia de fazer menção dos anjos, como se não se incluíssem nas obras de Deus, das quais descansou no sétimo dia? Que os anjos são obra de Deus, embora não o tenha silenciado aqui, não o expressou com clareza, mas noutra parte a Santa Escritura o atesta com luz inconfundível. Assim, no hino dos três jovens no forno, depois de dizer: Bendizei, todas as obras do Senhor, ao Senhor, entre as obras são nomeados também os anjos. E canta-se no salmo: Louvai ao Senhor desde os céus, louvai-o nas alturas. Louvai-o todos os seus anjos; louvai-o todas as suas virtudes. Louvai-o o Sol e a Lua; louvai-o as estrelas e a luz. Louvai-o os céus dos céus e todas as águas que se acham sobre os céus louvem o nome do senhor. Porque Ele disse e foram feitas as coisas. Ele mandou e foram criadas. Também nessa passagem se disse divinamente e com muita clareza haverem os anjos sido feitos por Deus, quando, ao enumerá-los entre os demais seres celestes, assim declara: Ele disse e foram feitos. Quem se atreverá a dizer que os anjos foram feitos depois de todas as coisas enumeradas nos seis dias? Mas, se existe alguém cujo desatino chegue a tal extremo, opõe-se-lhe à insensatez a passagem igualmente autorizada da Escritura, em que Deus diz: Quando foram feitos os astros, meus anjos louvaram-me em altas vozes. Logo, quando foram feitos os astros, os anjos já existiam. E foram feitos no quarto dia. Diremos, acaso, haverem sido feitos no terceiro dia? Nem pensá-lo. Está claro o que foi feito nesse dia: a terra foi separada das águas, ambos os elementos tomaram as distintas espécies de seu gênero e produziu a terra quanto nela se firma pela raiz. No segundo, porventura? Tampouco. Nele foi feito o firmamento, entre as águas superiores e as inferiores, e às superiores chamou céu. Nesse firmamento foram feitos os astros no quarto dia. Logo, se os anjos fazem parte das obras de Deus realizadas nesses dias, são a luz que recebeu o nome de dia, que para encarecer-lhe a unidade não se chamou dia primeiro, mas dia uno. Não é outro o segundo dia, nem o terceiro, nem os demais, mas é uno e o mesmo, que se repete para completar o número senário ou setenário pelo conhecimento senário ou setenário, a saber, o senário das obras feitas por Deus e o setenário do descanso de Deus. Com efeito, se no que Deus disse: Faça-se a luz e a luz foi feita, é razoável entender-se por essa luz a criação dos anjos, foram, sem dúvida, feitos partícipes da luz eterna, que é a própria Sabedoria imutável de Deus, conhecida pelo nome de Unigênito de Deus e pela qual foram feitas todas as coisas. Desse modo, iluminados pela luz que os criou, se tornaram luz e se chamaram dia pela participação dessa luz e desse dia incomutável que é o Verbo de Deus, pelo qual eles e os demais seres foram feitos. A luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo ilumina também o anjo puro, a fim de que seja luz não em si mesmo, mas em Deus. Se o anjo se afasta dele, torna-se impuro, como todos os espíritos chamados imundos, que já não são luz no Senhor, mas trevas em si mesmos, privados da participação da luz eterna. O mal não tem natureza alguma; a perda do ser é que tomou o nome de mal. CAPÍTULO X A Trindade, simples e Imutável, Pai, Filho e Espírito Santo, é um só Deus. Nela não há distinção entre a qualidade e a substância 1. Existe somente um bem simples e, por isso, único e imutável, Deus. Por esse bem foram criados todos os bens, porém, não simples e, portanto, mutáveis. Digo criados (insisto), que é o mesmo que dizer feitos, não engendrados, pois o que é engendrado do bem simples é igualmente simples e se identifica com o de que é engendrado. Chamamos-lhes Pai e Filho. E ambos, com o Espírito Santo, são um só Deus. O Espírito do Pai e do Filho denomina-se nas Sagradas Letras com a significação mais própria de tal nome: Espírito Santo. Contudo, é outro distinto do Pai e do Filho, porque não é o Pai nem o Filho. Dissemos outro, não outra coisa, porque também Ele é bem simples e igualmente imutável e coeterno. E a Trindade é um só Deus e não deixa de ser simples por ser Trindade. A essa natureza do bem não chamamos simples precisamente porque nela está só o Pai, só o Filho, só o Espírito Santo ou só a Trindade, de nome, sem subsistência de pessoas, como os sabelianos pensaram; chamamo-la simples, isso sim, justamente por ser o que tem, exceção feita das relações das pessoas. O Pai tem Filho, mas não é o Filho; o Filho tem Pai, mas não é o Pai. Ora, no que se afirma dele, sem relação a outro, é o que tem, como em relação a si mesmo se diz vivente, tendo a vida e sendo Ele a própria vida. 2. A razão de dizer-se que determinada natureza é simples é não ter ela o que possa perder, ou seja, ser uma coisa o continente e outra o conteúdo. O vaso não é o líquido que encerra, o corpo não é a cor que tem, o ar não é a luz ou o calor que transmite, a alma não é a sabedoria que possui. Nada disso é o que tem. Tudo isso, por conseguinte, pode ser privado do que tem; tudo isso pode mudar, receber novos hábitos, novas qualidades. Assim, o vaso perderá o líquido de que está cheio; o corpo, a cor; as trevas e o frio podem invadir o ar; a demência pode empolgar a alma. E verdade que o corpo incorruptível, prometido aos santos na ressurreição, será revestido de qualidade inamissível, mas a substância corporal permanente é distinta da própria incorruptibilidade. Está todo inteira em cada uma das partes do corpo; não é maior em uma e menor em outra, nem esta parte é mais incorrupta que aquela. Por outro lado, o corpo é maior no todo que na parte e, sendo uma parte dele mais extensa e outra menos, nem por isso a mais extensa é mais incorrupta que a menos. Assim, pois, uma coisa é o corpo que não está todo inteiro em todas as suas partes e outra a incorrupção que está todo inteira em todas as partes do corpo, porque toda parte do corpo incorruptível, mesmo a desigual, é igualmente incorrupta. Por ser o dedo, por exemplo, menor que a mão toda, nem por isso a mão é mais incorruptível que o dedo. Assim, embora desiguais a mão e o dedo, é igual a incorruptibilidade do dedo e da mão. E por isso, embora a incorruptibilidade seja inseparável do corpo incorruptível, uma coisa é a substância pela qual se chama corpo e outra a qualidade pela qual se chama incorruptível. Não é, desse modo, o que tem. A alma, por sua vez, embora sempre sábia, como será quando for eternamente libertada, será, porém, sábia pela participação da sabedoria incomutável, que não é ela. E, se o ar jamais se priva da luz que o banha, nem por isso não é ele uma coisa e outra a luz que o ilumina. Não o dissemos como se fôssemos de opinião que a alma é ar, como pensaram alguns, incapazes de imaginar natureza incorpórea. Isto, porém, tem certa semelhança com aquilo, embora se trate de coisas diferentes, de modo que não é incongruente dizer que a alma incorpórea é iluminada pela luz incorpórea da sabedoria simples de Deus, como o corpo do ar é iluminado pela luz corporal. E assim como o ar entenebrece, se despojado dessa luz (porque aquilo que chamamos trevas, nos lugares corporais, não é outra coisa senão o ar carecente de luz), assim também a alma obscurece, se despojada da luz da sabedoria. 3. De acordo com isso, são chamadas simples as coisas que verdadeira e principalmente são divinas, porque nelas não é uma coisa a qualidade e outra a substância, nem são divinas ou sábias ou bem-aventuradas por participação de outras. Quanto ao mais, nas Santas Escrituras denomina-se múltiplo o Espírito da Sabedoria, porque tem em si muitas coisas; mas o que tem isso é e tudo nele é uno. Não são muitas, mas uma a sabedoria, em que são imensos e infinitos os tesouros das coisas inteligíveis, nas quais se encontram todas as razões invisíveis e imutáveis dos seres, mesmo dos visíveis e mutáveis por ela feitos. Deus nada fez sem conhecimento, o que não se pode com justiça dizer de qualquer obreiro humano. Portanto, se Ele tudo fez, sabendo, fez as coisas que conhecera. Daí nos aflora à mente algo admirável, mas verdadeiro, a saber: este mundo não poderia ser conhecido por nós, se não existisse; mas, se Deus o não houvesse conhecido, não poderia existir. CAPÍTULO XI Gozaram os anjos após ta tas da felicidade de que sempre gozaram os anjos bons? Assim, pois, de maneira alguma e em tempo algum, os espíritos que chamamos anjos começaram por ser trevas. No mesmo instante em que Deus os criou foram luz; criados, não para serem ou viverem simplesmente, mas ainda iluminados para viverem vida feliz e sábia. Alguns anjos, afastados da luz, não lograram a perfeição da vida sábia e feliz, que não é tal se não eterna, certa e segura da própria eternidade. Possuem, todavia, vida racional, embora desprovida da sabedoria, e não podem perdê-la, embora queiram. Quem poderá determinar quanto tempo antes de pecar foram partícipes da sabedoria? Como havemos de dizer, portanto, que na participação estes foram iguais àqueles, verdadeira e plenamente felizes, por estarem certos da eternidade de sua bem-aventurança? Se nela houvessem sido iguais, teriam permanecido igualmente felizes em sua eternidade, por estarem igualmente certos dela. Com efeito, seja qual for a duração da vida, não poderá ser chamada eterna, se deve ter fim. Ora, é à vida que não tem, em absoluto, fim que pertence o nome de vida eterna. Assim, embora a felicidade não seja consequência necessária da eternidade (não deve ser eterno o fogo vingador?), se a verdadeira e perfeita felicidade necessita de ser eterna, tal não era a felicidade dos anjos decaídos, porque, soubessem-no ou não, não devia ser eterna. O temor, se o soubessem, ou o erro, se o ignorassem, não lhes permitiria ser felizes. Se sua ignorância, repartida entre a incerteza e o erro, permanecesse em perfeito equilíbrio de dúvida a respeito da duração eterna ou passageira de sua felicidade, essa própria dúvida seria incompatível com a plena e soberana beatitude que atribuímos aos santos anjos. Não restringimos a vida feliz a significações tão estreitas, que digamos que somente Deus é feliz. Não. E certo que Ele é verdadeiramente feliz e não pode existir felicidade maior e mais perfeita. Em comparação com a dele, que ou quanta é a felicidade dos anjos, por maior que seja a que possam gozar? CAPÍTULO XII A felicidade dos justos e a dos primeiros pais no paraíso. Penso que entre as criaturas racionais ou intelectuais não apenas os anjos devam ser chamados felizes. Quem ousaria negar a felicidade dos primeiros pais no paraíso, antes do pecado, embora a duração de sua felicidade eterna ou passageira lhes fosse desconhecida? Seria eterna, se não houvessem pecado. Hoje mesmo podemos, sem temeridade, dizer felizes os fiéis que vemos viver na justiça e na piedade, com a esperança da imortalidade futura, a consciência livre das devastações do crime, facilmente perdoados das fraquezas humanas pela divina misericórdia. Verdade é que estão certos do prêmio que se dará à perseverança, mas se encontram em dúvida a respeito da própria perseverança. Que homem, com efeito, pode responder por sua perseverança final no caminho e no exercício da justiça, se não obtém a necessária certeza por alguma revelação daquele que, na profundeza secreta de seus juízos, não revela sempre, mas jamais engana? Ora, no tocante aos prazeres presentes, o primeiro homem no paraíso era mais feliz que qualquer justo na presente vida mortal. Quanto, porém, à esperança do bem futuro, qualquer justo é mais feliz nos tormentos corporais que o homem, incerto de sua queda, na primitiva felicidade do paraíso. Porque, para o justo, não em conjetura, mas em verdade, é certo que gozará eternamente na sociedade dos anjos, carecente de toda moléstia, participando de Deus soberano. CAPÍTULO XIII Como ou com que conhecimento foram criados os anjos todos? Por isso, a qualquer pessoa ocorre que a felicidade, objeto legítimo dos desejos de toda natureza intelectual, é integrada pelos dois elementos seguintes: gozar sem dor do bem imutável, Deus, e permanecer eternamente nesse gozo, sem temor à dúvida e sem engano algum. Cremos com fé piedosa que os anjos de luz gozam de tal felicidade; deduzimos, em virtude da lógica, que dela não gozaram, antes da queda, os anjos pecadores, que por sua maldade se viram privados da luz. Deve-se, contudo, acreditar com certeza que, se viveram antes do pecado, gozaram de alguma felicidade, embora não fossem prescientes. E, se é duro acreditar que, no instante mesmo da criação dos anjos, uns não receberam a presciência de sua perseverança ou de sua queda e outros conheceram com certeza absoluta a eternidade de sua bem-aventurança, havendo sido todos criados no princípio igualmente felizes e mantendo-se nela até que os maus de agora livremente declinaram da luz da bondade, é, sem dúvida, muito mais duro pensar, atualmente, que os santos anjos estejam incertos de sua felicidade e ignorem o que pelas Santas Escrituras pudemos conhecer a respeito deles. Que católico ignora que já nenhum anjo bom se transformará em novo diabo e os diabos jamais volverão à companhia dos anjos bons? No Evangelho a Verdade promete aos santos e fiéis que serão iguais aos anjos de Deus. Ademais, promete-lhes também a vida eterna. Pois bem, se estamos certos de que nunca haveremos de declinar da imortal felicidade e eles não estão, já não há igualdade, pois a superioridade nos pertence. Mas, como a Verdade não engana e, por conseguinte, seremos iguais a eles, sem dúvida alguma também estão certos de sua felicidade. E, como os outros não tiveram certeza de sua felicidade, porque não era eterna para poderem estar, resta que a felicidade que havia de ter fim seria desigual ou, se igual, depois da queda de alguns, os outros receberam o conhecimento de sua própria felicidade. Mas, dir-se-á, talvez, a palavra do senhor no Evangelho: O diabo era homicida desde o princípio e não se manteve na verdade não deve limitar-lhe o crime ao começo do gênero humano, ao instante em que o homem criado se tornou vítima de seu engano; não, é ele que, desde seu princípio, infiel à verdade, expulso da bem-aventurada sociedade dos santos anjos, obstinado em sua revolta contra seu Criador, se mostra soberbo, orgulhoso do poder particular e próprio que o engana, sedutor desabusado, porque não poderia fugir à mão do Onipotente. E, como não quis permanecer, por piedosa submissão, o que na verdade é, aspira, na cegueira de seu orgulho, a passar pelo que não é. Assim se entenderiam também as palavras do apóstolo São João: O diabo peca desde o princípio, quer dizer, desde que foi criado rejeitou a justiça, que não pode possuir sem vontade piedosa e submissa a Deus. Quem presta aquiescência a tal modo de pensar não está com os hereges, ou seja, com os maniqueus nem com outras seitas que pensam ter o demônio, como uma espécie de princípio contrário, a natureza própria do mal. Insensatos! Admitem conosco a autoridade dessas palavras evangélicas, sem perceberem que o Senhor não diz, em absoluto: "O diabo foi estranho à verdade", e sim: Não se manteve na verdade, como o que quis dar a entender que o diabo decaiu da verdade. Todavia, é certo que, se se houvesse mantido na verdade, se teria feito partícipe dela e permaneceria nas eternas alegrias dos santos anjos. CAPÍTULO XIV Que figura literária se emprega na referida passagem? E o Senhor, como que respondendo a suposta pergunta a respeito da prova de que não se manteve na verdade, acrescentou: Porque a verdade não está nele. Estaria nele, se se houvesse mantido nela. Empregou, porém, figura literária pouco corrente. Parece soar assim: Não se manteve na verdade, porque a verdade não está nele, como se a causa de que não se mantivesse na verdade fosse a verdade não estar nele, quando, pelo contrário, a causa de não estar nele a verdade é não haver-se mantido nela. A mesma locução é usada também no salmo que diz: Clamei, porque me escutaste, Deus, quando, ao que parece, deveria ter dito: Escutaste-me, Deus, porque clamei. Mas, ao dizer: Clamei, como se lhe perguntassem de que modo mostrava seu clamor, revela o afeto de seu grito por seu efeito, a saber, o havê-lo Deus escutado. Como se dissesse: Provo que clamei, justamente porque me escutaste. CAPÍTULO XV Como se deve entender isto: "O diabo peca desde o princípio"? Não entendem que, se as palavras de São João a respeito do diabo: O diabo peca desde o principio indicam algo natural no demônio, não é pecado. Que responder aos testemunhos proféticos, quer ao que Isaías diz, figurando o diabo na pessoa do príncipe de Babilônia: Como caiu Lúcifer, que nascia de manhã?, quer às palavras de Ezequiel: Estiveste nas delícias do paraíso de Deus, estás adornado com toda a classe de pedras preciosas? Dá-se a entender em tudo isso que algum tempo esteve sem pecado. Mais expressamente o diz pouco depois: Em teus dias caminhaste sem vício. Se não se dá interpretação mais apropriada para isso, temos de, necessariamente, entender aquelas palavras: Não se manteve na verdade, assim: Esteve na verdade, porém não se manteve nela. E estas: O diabo peca desde o princípio, devemos entendê-las assim: Não peca desde o princípio de sua criação, mas desde o princípio do pecado, que começou a ser pecado com sua soberba. E o que está escrito no Livro de Jó, quando fala do demônio: Este é o princípio da obra de Deus, feito para escárnio de seus anjos, com o que parece concordar o salmo que diz: Este dragão que formaste para que o escarneçam, não deve ser entendido de maneira que pensemos haver sido criado desde o princípio para que os anjos o escarnecessem e sim que, depois do pecado, se lhe cominou semelhante pena. Seu princípio é ser criatura do Senhor. Não existe natureza alguma, mesmo a do mais vil inseto, que não haja sido criada por Aquele de quem procede toda medida, toda beleza, toda ordem, bases indispensáveis de toda concepção, de todo pensamento. Como não seria o autor da criatura angélica, que a excelência de sua natureza eleva acima das outras obras de Deus? CAPÍTULO XVI A gradação nas criaturas. Seus critérios, Entre os seres que têm algo de ser e não são o que é Deus, seu autor, os viventes são superiores aos não viventes, como os que têm força generativa ou apetitiva aos que carecem de tal faculdade. E, entre os viventes, os sencientes são superiores aos não sencientes, como às árvores os animais. Entre os sencientes, os que têm inteligência são superiores aos que não a têm, como aos animais os homens. E, ainda, entre os que têm inteligência, os imortais são superiores aos mortais, como aos homens os anjos. Tal gradação parte da ordem de natureza. Existe outro modo de hierarquizar; parte do uso ou estimação de cada ser. Segundo tal modo, a alguns sencientes antepomos alguns seres carecentes de sentido, de tal maneira que, se pudéssemos, os apartaríamos da natureza das coisas, quer ignorando o lugar que têm entre elas, quer, embora o saibamos, pospondo-os a nossas comodidades. Quem a ter ratos em casa não prefere ter pão e a ter pulgas não prefere ter dinheiro? Que tem isso, porém, de particular, se na estimação dos homens, apesar de serem de natureza tão nobre, com frequência se compra mais caro um cavalo que um escravo, mais caro uma pedra preciosa que uma escrava? Assim, há grande diferença, devida à liberdade de juízo, entre a razão que considera, a necessidade do indigente e o prazer do que deseja. A razão atém-se ao que o ser vale por si mesmo na gradação cósmica; a necessidade, ao que vale para o fim pretendido. A razão busca o que parece verdadeiro à luz da mente; o prazer, o que é agradável e deleitoso para os sentidos do corpo. Mas o peso da vontade e do amor é de tal maneira poderoso nas naturezas racionais, que, embora, de acordo com a ordem natural, os anjos sejam preferidos aos homens, os homens bons são preferidos, segundo a lei da justiça, aos anjos maus. CAPÍTULO XVII O vício não é natureza, mas contrário à natureza. E a causa do pecado não é o Criador, mas a vontade. É, por conseguinte, a natureza e não a malícia do demônio que a Escritura considera, quando diz: "Este é o princípio da obra do Senhor", porque é fora de dúvida que toda natureza sem vício é anterior ao vício que a corrompe. Ora, o vício é contra a natureza e não pode senão prejudicar a natureza. Portanto, não seria vício apartar-se de Deus, se não fosse mais conforme à natureza estar com Deus. A própria malícia da vontade é, pois, poderoso testemunho da bondade da natureza. Mas, como Deus é o criador soberanamente bom das naturezas boas, é o ordenador soberanamente justo das vontades más, de tal forma que, quando usam mal das naturezas boas, Ele faz bom uso até mesmo das vontades más. Assim, fez com que o demônio, bom por criação e mau por sua própria vontade, ordenado entre as coisas inferiores, fosse escarnecido por seus anjos, quer dizer, que suas tentações fossem de proveito para os santos, a quem pretende prejudicar por meio delas. E, como Deus, ao criá-lo, não lhe desconhecia a malignidade futura e previa todos os bens que havia de obter de seus males, por isso diz o salmo: Este dragão que formaste para que o escarneçam. Evidentemente, quando sua bondade o criava bom, já sabia, em sua presciência, que uso faria do ser decaído. CAPÍTULO XVIII A beleza do universo na oposição de contrários. Deus não criaria já não digo anjos, mas nem mesmo homem algum, se lhes previsse a depravação futura, caso não soubesse, ao mesmo tempo, como os faria servir os interesses dos justos, encarecendo, assim, pela antítese, o sublime poema dos séculos. As chamadas, em retórica, antíteses constituem adorno dos mais brilhantes do discurso. Chamá-las-íamos, em latim, oposições ou, falando com maior propriedade, contrastes. Tal palavra não é corrente entre nós, embora também o latim use semelhante ornamento na locução; mais ainda, é usado em todas as línguas. O apóstolo São Paulo recorre às seguintes antíteses na Segunda Epístola aos Coríntios e explica muito bem a passagem que diz: Com as armas da justiça para combater à direita e à esquerda, por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama. Como enganadores, sendo sinceros; como desconhecidos, mas sendo bem conhecidos; quase moribundos, e eis que vivemos; como castigados, não mortos; como tristes, mas estando sempre alegres; como pobres, mas enriquecendo a muitos; como não tendo coisa alguma, mas possuindo tudo. Assim como a oposição desses contrários dá tom de beleza à linguagem, assim também a beleza do universo resulta de eloquente oposição, não de palavras, mas de coisas. O Livro do Eclesiástico expressou-o com meridiana clareza na passagem que diz: O bem é contrário ao mal, a vida, contrária à morte; assim o pecador é contrário ao justo. E observa que todas as obras do Altíssimo vão de duas em duas, uma contrária à outra. CAPÍTULO XIX A que devemos ater-nos com respeito à seguinte passagem: "Deus dividiu entre a luz e as trevas"? Uma das vantagens da própria obscuridade do texto Sagrado é sugerir vários sentidos conformes com a verdade e reproduzi-los à luz do conhecimento. As interpretações diferem; a inteligência das obscuridades apoia-se no testemunho das passagens claras, que não admitem dúvida alguma. E, quer, na diversidade de opiniões, se descubra o verdadeiro sentido do autor inspirado, quer permaneça escondido, sempre se retira alguma verdade desses profundos abismos. Ora, segundo penso, de modo algum repugna à obra de Deus que, por luz primitiva, se entenda a criação dos anjos e pelas seguintes palavras a separação dos bons e dos impuros: E Deus dividiu entre a luz e as trevas; à luz chamou dia e às trevas, noite. Somente pôde distingui-los quem pôde, antes de caírem, saber que haviam de cair e, privados da luz da verdade, haviam de permanecer em sua tenebrosa soberba. E que entre o dia, tão familiar para nós, e a noite, quer dizer, entre a luz e as trevas, manda que a separação se faça pelos luzeiros do céu, mais vulgares ainda para nossos sentidos: Façam-se, diz, luzeiros no firmamento do céu para que luzam sobre a terra e dividam entre o dia e a noite. E pouco depois: E fez Deus dois grandes luzeiros; o luzeiro maior, para presidir o dia, o luzeiro menor, para presidir a noite, e as estrelas. E colocou-os Deus no firmamento do céu para que luzissem sobre a terra, presidissem o dia e a noite e dividissem entre a luz e as trevas. Entre a luz, que é a santa sociedade dos anjos e resplandece inteligivelmente pelos esplendores da verdade, e as trevas, contrárias a ela, isto é, as espantosas mentes dos anjos maus, que se apartaram da luz da justiça, apenas pôde fazer distinção Aquele para quem não pôde ser oculto e incerto o mal futuro, não da natureza, mas da vontade. CAPÍTULO XX Exegese da seguinte passagem: "E viu Deus que a luz era boa". Não se deve passar em silêncio que, ao dizer Deus: Faça-se a luz e a luz foi feita, se acrescentou em seguida: E viu Deus que a luz era boa. E viu-o não depois de haver feito separação entre a luz e as trevas e à luz haver dado o nome de dia e às trevas o nome de noite, a fim de não parecer que juntamente com a luz também deu testemunho de seu agrado pelas trevas. Porque, quanto às trevas, entre as quais e a luz conspícua a nossos olhos servem de divisão os luzeiros do céu, são inculpáveis, não antes, mas depois, acrescenta: E viu Deus que era bom. E os pós no firmamento do céu para que luzissem sobre a terra, presidissem o dia e a noite e dividissem entre a luz e as trevas. E viu Deus que era bom. Uma e outra coisa agradaram-lhe, porque ambas estavam sem pecado. Quando Deus disse: Faça-se a luz e a luz foi feita. E viu Deus que a luz era boa e depois acrescenta o texto: E separou Deus entre a luz e as trevas e Deus deu à luz o nome de dia e às trevas o nome de noite, não se acrescentou: E viu Deus que era bom, receando chamar boas a arribas as coisas, sendo uma delas má por vício próprio, não por natureza. Apenas a luz, por conseguinte, agradou ao Criador; quanto às trevas angélicas, embora houvesse de ordená-las, não haveria de aprová-las. CAPÍTULO XXI Ciência e vontade eternas e imutáveis de Deus. Que outra interpretação se deve dar às palavras repetidas a cada nova criação: Viu Deus que era bom, senão a aprovação das obras realizadas em conformidade com a arte que é a Sabedoria de Deus? Não é certo não haver Deus conhecido que era bom, enquanto não o fez, pois nada teria sido feito, se lhe fora desconhecido. Ao dizer que viu ser bom (e, se não o visse antes de fazê-lo, é certo que não o faria), ensina que é bom, não o aprende. Também Platão se atreveu a dizer que Deus transbordou de alegria, ao ver concluída a totalidade do mundo. Não pensava, ao dizê-lo, que Deus se tornou mais feliz pela novidade da Criação, mas quis manifestar, assim, haver agradado a seu Artífice, uma vez feito, o que lhe agradara na arte conforme a qual haveria de fazê-lo. Isso não quer dizer que haja alguma variação na ciência de Deus, de maneira que nela operem de um modo as coisas que ainda não são, de outro as que já são e de outro as que foram. Ele não prevê, a nosso modo, o futuro, ou vê o presente e revê o passado, mas de maneira muito diferente da usada por nossos pensamentos. Ele vê, não passando de uma coisa a outra, mudando de pensamento, mas imutavelmente, de sorte que o que se realiza temporalmente, tanto o futuro, que ainda não é, como o presente, que já é, como o passado, que já não é, nada lhe escapa à presença estável e eterna. E não o faz desta maneira com os olhos e daquela com a mente, pois não consta de alma e corpo, não de um modo agora, de outro antes e de outro depois, porque sua ciência dos tempos, passado, presente e futuro, não varia, como a nossa, com a sucessão dos tempos. Nele não há mudança nem sombra temporal, nem passa de um pensamento a outro. A seu incorpóreo olhar estão ao mesmo tempo presentes todas as coisas que conhece porque conhece os tempos com conhecimento independente do tempo, como move as coisas temporais, imprimindo-lhes movimento estranho aos movimentos temporais. Viu, pois, que era bom o que fez onde viu que era bom fazê-lo. Não porque o viu, depois de feito, duplicou sua ciência ou acrescentou-lhe algo, como se sua ciência fosse menor antes de fazer o que viu, posto que não faria tão perfeitamente, senão com ciência tão perfeita, Aquele a quem suas obras nada acrescentariam. Portanto, se fora suficiente insinuar quem fez a luz, bastaria dizer: Deus fez a luz. E, se não bastasse dizer quem a fez, mas também fosse necessário dizer por que meio, seriam sobejas as seguintes palavras: E disse Deus: Faça-se a luz e a luz foi feita. Assim, ficaríamos sabendo não apenas que Deus fez a luz, mas também que a fez pelo Verbo. Mas, porque era necessário, quanto à criatura, informar-nos a respeito de três questões dignas de ser conhecidas, a saber, quem a fez, por que meio e por que, escreveu: Disse Deus: Faça-se a luz e a luz foi feita. E viu Deus que a luz era boa. Se perguntamos quem a fez, a resposta é: Deus. Se perguntamos por que meio, a resposta é: Disse: Faça-se e foi feita. Se perguntamos por que, a resposta é: Porque é boa. Não existe Autor mais excelente que Deus, nem arte mais eficaz que seu Verbo, nem motivo melhor que a criação de algo bom pela bondade de Deus. Essa mesma causa da criação expressa-a também Platão, dizendo que a bondade de Deus fez obras boas, quer a tenha lido nas Escrituras, quer a tenha conhecido, talvez, dos que a tinham lido, quer a penetração de seu gênio tenha visto intelectualmente, pelo espelho das realidades visíveis, as perfeições invisíveis de Deus, quer o tenham nela instruído sábios chegados a essa altura de contemplação. CAPÍTULO XXII Alguns erros sobre a existência de princípio mau. Todavia, a razão da criação de todos os bens, a saber, a bondade de Deus, razão de tal maneira justa e conveniente, que, atentamente considerada e piedosamente meditada, põe fim a toda discussão sobre a origem do mundo, essa razão escapa a certos hereges. E por quê? Porque nossa frágil e mísera mortalidade, justo suplício do pecado, sofre a ofensiva de muitas coisas que não lhe convêm. Entre elas enumeram o fogo, o frio, a ferocidade dos animais e coisas assim. O que não veem é a excelência de cada coisa em seu meio natural, a admirável ordem de todas, o contingente de beleza com que enriquecem, cada uma delas em particular, a república universal e a utilidade que nos trazem, se sabemos dar-lhes emprego legítimo e esclarecido, de modo que os próprios venenos, perniciosos, se mal usados, se transformam, aplicados como se deve, em salutares remédios. E, pelo contrário, mesmo as coisas que nos causam prazer, como, por exemplo, o alimento, a bebida, a luz, nos são prejudiciais, se as usamos sem moderação e oportunidade. É assim que a divina Providência nos adverte que não censuremos nesciamente as coisas, mas procuremos com afinco conhecer-lhes a utilidade. Se foge à fraqueza de nosso espírito ou do espírito humano, torna-se necessário acreditar que se encontra escondida, como se encontravam tantas outras verdades cujo mistério com dificuldade penetramos, pois a própria obscuridade é exercício da humildade ou mortificação da soberba. Nenhuma natureza, absolutamente falando, é um mal. Esse nome não se dá senão à privação de bem. Mas, dos bens terrenos aos celestiais e dos visíveis aos invisíveis, existem alguns bens superiores a outros. E são desiguais justamente para que todos possam existir. Deus é de tal modo grande artífice no grande, que não é menor no pequeno. A pequenez de tais coisas não deve ser medida por sua grandeza (porque não a têm), mas pela sabedoria do Artífice. Um exemplo: Se à beleza do homem se tirasse uma sobrancelha, quão pouco se tiraria do corpo e quão muito da beleza, porque esta não se compõe de massa, mas da conveniência e proporção dos membros. Não é, realmente, de maravilhar que os que pensam existir natureza má, originada e propagada de princípio contrário, não queiram, como causa da criação das coisas, admitir a bondade de Deus. Creem, antes, que necessidade extrema o impeliu a projetar os seres do mundo, com o propósito de opor resistência ao mal que se rebelava contra Ele. E viu, segundo eles, sua natureza boa misturada com o mal, ao intentar reprimi-lo e vencê-lo, e, torpemente manchada e cruelmente oprimida e cativa, com dificuldade pôde purificá-la e livrá-la, isso com grande trabalho e não por completo. A parte que não pôde purificar da mancha é máscara e vínculo do inimigo vencido e preso. Os maniqueus não desatinariam, ou melhor, não delirariam de tal maneira, se acreditassem que a natureza de Deus não pode ser prejudicada por coisa alguma, por ser imutável e absolutamente incorruptível. E, por sua vez, acreditariam que a alma pode, por sua vontade, tornar-se pior e corromper-se pelo pecado e, assim, ver-se despojada da luz da verdade imutável e não é parte de Deus nem da mesma natureza que Ele. Assim, com a sensatez cristã, dela pensariam haver sido criada por Deus e ser muito inferior ao Criador. CAPÍTULO XXIII Erro de Orígenes. 1. É, porém, muito mais de maravilhar que alguns, que têm a mesma fé que nós, quanto à origem dos seres e à impossibilidade de existir natureza alguma, além de Deus, que não proceda do Criador, não queiram admitir, reta e chãmente, como causa da criação do mundo, a bondade de Deus. E não creem na existência de coisas boas, que, não sendo o que é Deus, não foram feitas senão pela bondade de Deus. Dizem que as almas, sem serem certamente partes de Deus, mas criaturas suas, pecaram, afastando-se de seu Criador, e mereceram, passando por diversos estádios, do céu à terra, diferentes corpos, como prisões em conformidade com o peso de seus pecados. Tal é, segundo afirmam, o mundo e tal a causa de sua criação: não criar coisas boas, mas coibir as más. Essa doutrina é com razão atribuída a Orígenes. Pensou-o e escreveu-o nos livros a que dá o título de peri Arkhõn, quer dizer, Sobre os Princípios. Assim pensou, assim escreveu. Não compreendo como homem tão sábio e versado nas letras eclesiásticas não tenha reparado, primeiro, como tal pensamento é contrário à intenção de Escritura tão autorizada, que, ao acrescentar a todas as obras de Deus: E viu Deus que era bom e ao comentar, depois de completadas: E viu Deus tudo o que fez, e era muito bom, não intentou dar a entender como causa da criação do mundo senão a bondade de Deus. Se nela ninguém pecasse, o mundo estaria aformoseado e povoado unicamente por naturezas boas. E não porque exista o pecado, todas as coisas se encontram repletas de pecados, posto que o número dos bons, muito maior nos seres celestiais, conserva a ordem de sua própria natureza. E a vontade má, por haver-se recusado a guardar a ordem da natureza, não pôde esquivar-se às leis da justiça de Deus, que ordena todas as coisas. O universo, com os pecadores, é como quadro com suas sombras; perspectiva conveniente ressalta-lhe as belezas, embora não haja senão feiura nas tintas escuras, consideradas de per si. 2. Ademais, se tal opinião fosse verdadeira, Orígenes e os que a perfilhavam deveriam ver que, se o mundo foi feito para que as almas, de acordo com os respectivos merecimentos, fossem incluídas em corpos que lhes servissem de cárceres para seu castigo, os das menos pecadoras deveriam ser superiores e mais leves e os das restantes, inferiores e mais pesados. Portanto, os demônios, que são o pior de semelhante casta, deveriam ter corpos terrenos, inferiores e mais pesados, e não os homens, embora perversos. Contudo, para que compreendêssemos não deverem os merecimentos da alma ser medidos pela qualidade dos corpos, o pior de todos os seres, a saber, o demônio, recebeu corpo aéreo, enquanto o homem, embora perverso, mas de malícia muito menor e mais leve, agora e até mesmo antes do pecado, recebeu corpo de barro. Pode alguém dizer maior asneira que a de afirmar que Deus, Artífice do universo, ao criar o único sol do único mundo, não o destinou a ornamento e utilidade da criação corporal, mas a prisão merecida por alma pecadora? E, por conseguinte, se, não uma apenas, mas duas, dez, cem almas houvessem cometido igual pecado, cem sóis resplandeceriam no mundo. Assim, não foi de modo algum a inefável sabedoria que, para ornamento e utilidade da criação, decidiu o contrário, mas a imensa prevaricação de certa alma, que lhe valeu o privilégio de semelhante corpo. O desvario não das almas, sobre as quais não sabem o que dizem, mas dos que assim pensam, está muito longe da verdade e precisa de bom dique para conter-lhe o ímpeto. Se nas três perguntas que mencionei acima e costumam ser propostas em cada criatura: Quem fez a luz, por que meio e por quê? e nas consequentes respostas: Deus, pelo Verbo, porque são boas se nos indica com profundidade mística a Trindade, quer dizer, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, ou se algo existe que nos proíba dar semelhante interpretação à referida passagem da Escritura é questão que deve ser bem discutida e não devemos ser instados a expor em um só volume. CAPÍTULO XXIV A Trindade divina deixou em suas obras sinais de sua presença. Cremos, sustentamos e ensinamos com fidelidade que o Pai gerou o Verbo, quer dizer, a Sabedoria, criadora de todas as coisas, seu Filho único, uno como Ele, eterno como Ele, soberanamente bom como Ele, e que o Espírito Santo é ao mesmo tempo o Espírito do Pai e do Filho, consubstancial e coeterno com ambos. Cremos, além disso, serem os três a Trindade, em virtude das propriedades das pessoas, um só Deus, em virtude da divindade inseparável, e um só Onipotente, em virtude de sua onipotência inseparável. E de tal forma é assim, que, se nos perguntam a respeito de cada um deles em particular, respondemos ser cada um deles Deus e Onipotente, e se a respeito de todos juntos, respondemos não serem três deuses ou três onipotentes, mas um só Deus onipotente. Tão inseparável é a unidade das três pessoas, que quis dar de si mesma esse testemunho. Não me atrevo, contudo, a arriscar a temerária opinião de que o Espírito Santo do Pai bom e do Filho bom, visto ser comum a ambos, pode ser retamente chamado bondade dos dois. Atrever-me-ia com maior facilidade a chamar-lhe santidade de ambos, não como qualidade dos dois, mas sendo Ele também substancial e a terceira pessoa da Trindade. O que me leva a julgá-lo mais provável é que, sendo espírito o Pai, e espírito o Filho, santo o Pai, e santo o Filho, se diz, contudo, propriamente Espírito Santo, como santidade substancial e consubstancial de ambos. Se, porém, a bondade divina outra coisa não é senão a santidade, é fora de dúvida ser direito da razão, não presunçosa audácia, descobrir, sob o véu de obscura expressão, que nos solicita vivamente a inteligência, o secreto sinal da Trindade nas perguntas que cada criatura nos sugere: Por quem, como e por que foi feita? O Pai do Verbo está expresso, de acordo com isso, na palavra: faça-se. O que se fez pela palavra foi, sem dúvida, feito por intermédio do Verbo. E, nestas palavras: Viu Deus que é bom, deixa-se entrever de maneira suficiente que Deus fez o que fez, não por necessidade nem por indigência, mas apenas por bondade, porque é bom. Tal cláusula é colocada, uma vez feitas as coisas, para indicar precisamente que o que foi feito está de acordo com a bondade do Criador. Se por bondade entendemos o Espírito Santo, toda a Trindade é que se nos revela em suas obras. Dela toma origem, forma e felicidade a Cidade Santa, a sublime cidade dos santos anjos. Se nos perguntam donde procede, respondemos que Deus a criou; se nos perguntam por que é sábia, respondemos que porque Deus a ilumina; se nos perguntam por que é feliz, respondemos que porque goza de Deus. Subsistindo, modifica-se; contemplando, ilumina-se; unindo-se, goza. Existe, vê, ama. Vive na eternidade de Deus, brilha na verdade de Deus e goza na bondade de Deus. CAPÍTULO XXV Divisão da filosofia. Tanto é assim, que, segundo meu humilde modo de entender, os filósofos quiseram, por isso, que o estudo da sabedoria fosse tripartido, melhor diríamos, perceberam ser tripartido (porque não estabeleceram que fosse assim, mas descobriram-no assim). A uma parte chamam física; a outra, lógica; à terceira, ética. Os correspondentes nomes latinos já são frequentes nos escritos de muitos autores, que as chamam natural, racional e moral. Delas já fizemos breves sínteses no Livro Oitavo. Isso não quer dizer que, ao fazerem tal divisão, pensaram na Trindade divina, embora se diga haver sido Pia tão o primeiro descobridor e panegirista dessa divisão, pois, segundo parece, considerou que Deus é Autor de todas as naturezas, Dispensador da inteligência, Inspirador do amor e conduz à vida feliz e boa. Mas é certo que, mesmo quando, sobre a natureza dos seres, sobre o indagar a verdade e sobre o fim do bem a que devemos referir todas as nossas ações, pensem de modo diferente, a atenção de todos os filósofos se concentra nesses três problemas gerais e transcendentais. De igual modo, embora a respeito de cada um desses pontos haja muitíssima variedade de opiniões, ninguém duvida existir uma causa da natureza, uma forma de ciência e um código de vida. Em todo artífice humano, quando põe mãos a qualquer obra, três coisas devem ser levadas em conta: a natureza, a arte, o uso. A natureza reconhece-se pelo engenho; a arte pela instrução; o uso, pelo fruto. Não ignoro que, propriamente falando, o fruto é privativo de quem goza, o uso, de quem usa e que, segundo parece, entre ambos existe a seguinte diferença: dizemos gozar, quando o objeto nos deleita por si mesmo, sem necessidade de referi-la a outra coisa, e usar, quando buscamos um objeto por outro. Donde se segue que das coisas temporais devemos usar, não gozar, para merecermos gozar das eternas. Não como os perversos, que querem gozar do dinheiro e usar de Deus, porque não gastam o dinheiro por amor a Deus, mas prestam culto a Deus por causa do dinheiro. Segundo a linguagem costumeira, usamos dos frutos e gozamos do uso. Já está admitido também o costume de chamar frutos aos do campo, dos quais todos usamos temporalmente. De acordo com tal acepção, empreguei a palavra uso nas três coisas que adverti devem ser levadas em conta no homem, a saber, a natureza, a doutrina e o uso. Com esses três elementos os filósofos, para consecução da vida feliz, inventaram ciência tripartida: a natural, para a natureza; a racional, para a doutrina; a moral, para o uso. Logo, se nossa natureza procedesse de nós, é fora de dúvida que teríamos sido também a origem de nossa sabedoria e não procuraríamos percebê-la pela doutrina, quer dizer, aprendendo de algum mestre. E nosso amor, originado de nós, por nós e referido a nós, bastaria para vivermos felizmente e não necessitaríamos de gozar outro bem. Como, porém, nossa natureza, para existir, tem Deus por Autor, para sentirmos devemos tê-la por Doutrinador e, para sermos felizes, tê-la por Dispensador da suavidade íntima. CAPÍTULO XXVI Imagem da Trindade na natureza humana. Em nós, fora de qualquer dúvida, encontramos imagem de Deus, da Trindade, que, embora não seja igual, mas, pelo contrário, muito distante dela, não coeterna com ela e, para dizê-la em poucas palavras, não da mesma substância que Ele, é, por natureza, de todas as criaturas a mais próxima de Deus. É, ademais, aperfeiçoável, para ser próxima também por semelhança. Somos, conhecemos que somos e amamos esse ser e esse conhecer. Nas três verdades apontadas não nos perturba falsidade nem verossimilhança alguma. Não o tocamos, como as coisas externas, com os sentidos do corpo, como sentimos as cores, vendo, os sons, ouvindo, os odores, cheirando, os sabores, degustando, a dureza ou a moleza dos corpos, apalpando, nem como na imaginação damos voltas às imagens de coisas sensíveis, tão semelhantes a elas, porém, não corpóreas, as retemos na memória e, graças a elas, nascem em nós os desejos, mas, pelo contrário, sem nenhuma imagem enganosa de fantasias ou fantasmas, estamos certíssimos de sermos, de conhecermos e de amarmos nosso ser. Tais verdades desafiam todos os argumentos dos acadêmicos, que dizem: Quê? E se te enganas? Pois, se me engano, existo. Quem não existe não pode enganar-se; por isso, se me engano, existo. Logo, se existo, se me engano, como me engano, crendo que existo, quando é certo que existo, se me engano? Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto, no que conheço que existo, não me engano. Segue-se também que, no que conheço que me conheço, não me engano. Como conheço que existo, assim conheço que conheço. E quando amo essas duas coisas, acrescento-lhes o próprio amor, algo que não é de menor valia. Porque não me engano quanto ao fato de amar, não me enganando no que amo, pois, embora o objeto fosse falso, seria verdadeiro que eu amava coisas falsas. Que razão haveria para repreender-me e proibir-me amar coisas falsas, se fosse falso que amo tais coisas? Sendo certas e verdadeiras, quem duvida que, quando são amadas, tal amor é verdadeiro e certo? Tanto é verdade, que não há ninguém que não queira existir, como não há ninguém que não queira ser feliz. E como pode ser feliz, se não existe? CAPÍTULO XXVII Essência, ciência e amor. 1. O ser é, por natureza, de tal maneira atrativo, que não é outra a causa de não quererem morrer até mesmo os infelizes, que, embora penetrados do sentimento da própria infelicidade, anseiam por que seja arrancada de entre as coisas, não eles, mas sua infelicidade. Se a quem se julga infeliz e na realidade é, infeliz na opinião dos sábios, por ser néscio, e também na dos que se creem felizes, por ser pobre e mendigo, alguém lhe oferecesse imortalidade em que nem a infelicidade morresse, fazendo-lhe a seguinte proposta, a saber, que, se não quisesse viver sempre na infelicidade, não mais existiria dali por diante, mas desapareceria, saltaria de contentamento e preferiria existir sempre assim a não ser em absoluto. Prova de tal verdade é o sentir comum. Por que receia morrer e• a terminá-la com a morte prefere viver na infelicidade, senão porque é claro que a natureza repele com grande força o não ser? Por isso, ao conhecerem que hão de morrer, consideram grande benefício os misericordiosos socorros que buscam prolongar-lhes a infelicidade com a vida e a retardar-lhes a morte. Estão indicando, assim, de modo muito claro o agrado com que aceitam imortalidade em que não tenha fim a mendicidade. E que dizer dos animais todos, mesmo dos irracionais, carecentes de tal modo de pensar, desde os dragões gigantescos até os diminutos vermes? Não apetecem ser? Não provam com todos os movimentos possíveis que fogem e refogem à morte? Que dizer, também, dos arbustos e arvorezinhas, carecentes de sentido? Para evitarem a destruição, com movimentos visíveis não fincam as raízes mais profundamente na terra, por onde recolhem o alimento, para erguerem depois no ar a copa e seus renovos e conservar assim seu próprio ser? Enfim, todos os corpos carecentes não apenas de sentido, mas também de vida vegetal, de tal maneira se elevam, descem ou se nivelam, que assim protegem o próprio ser, assentando-se onde podem existir segundo sua natureza peculiar. 2. Quanto a natureza humana ama o conhecimento e quanto se recusa a ser enganada, é possível, pelo menos, inferir-se de que qualquer pessoa prefere lamentar-se com mente sã a alegrar-se na loucura. Grande e admirável sentimento de que, entre todos os animais mortais, o homem é o único capaz. Vários são dotados de vista mais aguda que a nossa, para ver a luz sensível, mas não podem atingir a luz incorpórea, cujos raios nos iluminam a alma, para assegurar-nos a retidão de nossos juízos. E a medida de nossa participação nessa luz é a medida de nossa inteligência. Descobre-se, todavia, na sensibilidade dos animais, senão o conhecimento, pelo menos certa imagem do conhecimento. Os outros seres corporais são chamados sensíveis, não porque sintam, mas porque os sentimos. Nas plantas, a faculdade de alimentar-se e gerar apresenta alguma analogia com os fenômenos da sensibilidade. Ora, todos esses seres corporais têm suas causas latentes na natureza e, quanto a suas formas variadas, cuja reunião aformoseia o mundo visível, expõem-nas à atividade de nossos sentidos e, à falta do conhecimento que não têm, parecem solicitar o nosso. Mas o sentido externo é instrumento e não juiz de nossas percepções. Temos outro sentido, o do homem interior, sentido infinita mente superior, pelo qual sentimos o justo e o injusto, o justo por uma espécie inteligível, o injusto pela privação de tal espécie. A atividade desse sentido dispensa auxiliar. Menina do olho, conduto auditivo, fossas nasais, céu da boca, tacto corporal, que lhe importam? Por ele e nele estou certo de existir, de conhecer isto, de amar isso e igualmente certo de amar. CAPÍTULO XXVIII Como aproximar-nos mais de imagem da Trindade divina. Sobre a quantidade do amor com que em nós são amados a essência e o conhecimento, de que encontramos semelhança, embora apagada, nas coisas inferiores, já falamos bastante, segundo parecia exigir o plano da presente obra. Todavia, sobre o amor com que são amados e sobre se o amor é também amado, ainda não dissemos coisa alguma. Respondemos que também o amor é amado. E provamo-lo, porque nos homens que se amam com maior retidão é mais amado o amor. Na realidade não se chama, com razão, "homem bom" a quem sabe o que é bom, mas a quem ama o bom. E por que em nós não sentimos que amamos o amor, graças ao qual amamos quanto amamos de bom? Existe um amor graças ao qual se ama o que não se deve amar; tal amor odeia-o em si mesmo quem ama aquele com que se ama o que se deve amar. Ambos podem coexistir no mesmo sujeito. E é bom para o homem que, a expensas do amor que nos faz viver mal, o amor que nos faz viver bem se desenvolva até à perfeita cura e feliz transformação de tudo quanto somos de vida. Se fôssemos animais desprovidos de razão, amaríamos a vida da carne e dos sentidos, bastar-nos-ia o bem carnal e não teríamos outros desejos. Do mesmo modo, se fôssemos árvores, não poderíamos amar coisa alguma com conhecimento sensitivo, mas apeteceríamos tudo quanto nos aumentasse a fecundidade e a abundância dos frutos. E, se fôssemos pedras, água, vento, fogo, chama, faltar-nos-iam o sentimento e a vida, não, por assim dizer, a necessidade de nossa ordem natural e de nosso lugar próprio. As tendências dos pesos são como que os amores dos corpos, quer busquem, por seu peso, descer, quer busquem, por sua leveza, subir, pois, como o ânimo é levado pelo amor aonde quer que vá, assim também o corpo o é por seu peso. Sendo, como somos, homens, criados à imagem de nosso Criador, cuja eternidade é verdadeira, cuja verdade é eterna, cujo amor é eterno e verdadeiro, Criador que é a Trindade eterna, verdadeira e amada, sem confusão nem divisão, se percorremos os objetos inferiores a nós, objetos incapazes de todo ser, de toda forma distintiva e de toda tendência à sua ordem natural, neles descobrimos certos vestígios de sua beleza. Tais seres não seriam nem estariam revestidos de beleza, nem apeteceriam e conservariam a própria ordem, se não houvessem sido feitos por Aquele que é em sumo grau, e é sumamente sábio e sumamente bom. E, vendo-lhe em nós mesmos a imagem, como o filho pródigo do Evangelho, tornados a nosso interior, levantemo-nos para voltar Aquele de quem nos afastáramos, pecando. Nele nosso ser já não estará sujeito à morte, nosso conhecimento, ao erro, nosso amor, ao desregramento. Hoje, embora tenhamos por certas essas três coisas e não necessitemos de nenhum testemunho sobre elas, mas, pelo contrário, lhes sintamos em nós mesmos a presença e as vejamos com os veracíssimos olhos interiores, porque somos incapazes de conhecer-lhes a duração ou a possível defecção e termo, quer se se portam bem, quer se se portam mal, por isso buscamos ou já temos outros testemunhos. Por que não devemos hesitar em dar-lhes crédito, este lugar não é próprio para dizer. Fá-lo-emos depois e com maior diligência. No princípio, como já dissemos, Deus estabeleceu uma divisão entre a Cidade de Deus, que não peregrina nesta mortalidade, mas é eternamente imortal, quer dizer, entre os santos anjos, que se encontram unidos com Deus e não desertaram nem desertarão, e os que, ao abandonarem a luz eterna, se tornaram trevas. Neste livro toca-nos, portanto, expor, com o auxílio de Deus e segundo nossas forças, o que havíamos começado a dizer. CAPÍTULO XXIX A ciência dos anjos e seus efeitos na criação. Os santos anjos não compreendem Deus por meio de palavras sonoras, mas pela presença mesma da verdade imutável, quer dizer, pelo Verbo unigênito. E compreendem também o Verbo, o Pai e o Espírito Santo por eles mesmos e entendem que são a Trindade inseparável, e que cada uma das pessoas é em si mesma uma só substância e todas não são três deuses, mas um só Deus. Todas essas verdades lhes são mais conhecidas que nós o somos para nós mesmos. Ademais, ali, na sabedoria de Deus, como na arte por que foram feitas, conhecem as criaturas melhor do que nelas mesmas e, por isso, os anjos a si próprios também ali se conhecem melhor que em si mesmos, embora também em si mesmos se conheçam. Mas foram criados e não se confundem com seu criador. Ali se conhecem como à luz do dia e, em si mesmos, como à da tarde. É muito diferente conhecer uma coisa na razão segundo a qual foi feita e conhecê-la em si mesma, como é diferente conhecer a retidão das linhas ou a verdade das figuras, quando se contemplam à luz do intelecto e quando se escrevem no pó. Assim, de um modo se conhece a justiça na verdade imutável e, doutro, na alma do justo. Desse modo conhecem todo o resto. Assim, o firmamento, entre as águas superiores e as inferiores, que se chamou céu; a reunião das águas abissais, a emersão da terra e a germinação das ervas e das plantas. Assim, a criação do Sol, da Lua e das estrelas e a criação das águas, animais, aves, peixes e cetáceos; assim, a dos animais que se arrastam e rastejam na terra e a do homem, que supera todos os seres da terra. Todas essas coisas são conhecidas pelos anjos de um modo no Verbo de Deus, onde têm suas causas e suas razões, quer dizer, os tipos segundo os quais foram feitas, razões que permanecem imutavelmente, e doutro modo em si mesmos. Conhecem-nas, ali, com conhecimento mais claro e, aqui, com conhecimento mais obscuro, como o conhecimento da arte e das obras. Quando tais obras são referidas ao louvor e à veneração do Criador, parece amanhecer na mente que as contempla. CAPÍTULO XXX Perfeição do número seis. Toda essa narrativa tem determinada finalidade: a perfeição do número seis, repetido seis vezes (repete-se o mesmo dia), completando-se, assim, a criação em seis dias. Não porque Deus tivesse necessidade de tempo, como se não pudesse criar ao mesmo tempo todas as coisas, Ele que depois havia de formar com movimentos congruentes os tempos, mas porque o número seis significa a perfeição das obras. O número seis é o primeiro completo em suas partes, a saber, do sexto, do terço e da metade, que são os três primeiros algarismos significativos, isto é, um, dois e três, cuja soma dá seis. Quando se consideram os números por suas partes, é necessário levar em conta aqueles dos quais é possível dizer-se quantas partes têm, por exemplo, a metade, uma terça, uma quarta parte, mais as que recebem outros nomes. Por exemplo: embora o quatro seja uma parte do nove, nem por isso se pode dizer quanta ou que parte é. Todavia, do um é possível dizer, porque é a nona parte, e do três também, porque é a terça parte. Mas, somadas as duas partes, a nona e a terça, ou seja, um e três, não dão, nem muito menos, nove. Também o quatro é parte do dez e, contudo, não se pode dizer qual; do um, por outro lado, pode-se dizer, porque é a décima parte. Tem, além disso, uma quinta parte, que são dois, e uma metade, que são cinco. Mas as três partes, a décima, a quinta e a metade, um, dois e cinco, somados, não dão dez, mas oito. Todavia, as partes do doze ultrapassam-no, pois tem uma duodécima, que é um, uma sexta, que são dois, uma quarta, que são três, uma terça, que são quatro, e uma metade, que são seis. E, somados, um, dois, três, quatro e seis não dão doze, mas dezesseis. Julguei oportuno fazer essa breve resenha para encarecer mais a perfeição do número seis, o primeiro, como dissemos, completo em todas as suas partes. Em seis dias rematou Deus a obra da criação. Donde se segue que não se deve desprezar a razão do número e que, em muitos lugares das Santas Escrituras, seu grande valor se torna encontradiço a todos que as consideram com atenção. Em louvor de Deus não se disse em vão: Dispuseste todas as coisas com medida, número e peso. CAPÍTULO XXXI O sétimo dia, como plenitude e descanso. No sétimo dia, quer dizer, no mesmo dia repetido sete vezes (número também perfeito por outra razão), encarece-se o descanso de Deus. Significa-se nele, em primeiro lugar, a santificação. Deus não quis santifica-lo em suas obras, mas em seu descanso, que não tem tarde, pois não existe criatura alguma, como a angélica, que divida o conhecimento em dia e tarde, conhecendo de um modo no Verbo de Deus e doutro em si mesma. Acerca da perfeição do número sete seria possível dizer muitas coisas, mas este livro já está ficando muito extenso e receio pensarem que, apresentando-se-me ocasião, quero fazer alarde, com maior leviandade que proveito, do pouco que sei. Devo, portanto, ser moderado e grave, para ninguém pensar que talvez, falando demasiado sobre número, me descuide da medida e do peso. Vou simplesmente dizer que o primeiro número ímpar completo é o três e o primeiro par o quatro, que, somados, dão sete. Por esse motivo, o sete é com frequência usado pela universalidade das coisas, como na seguinte passagem: Sete vezes cai o justo e outras tantas se levanta, que é o mesmo que dizer: Caia quantas vezes cair, não perecerá. Devemos entendê-lo não dos pecados, mas das atribulações que levam à humildade. E: Sete vezes por dia te louvarei. É o que noutra parte se diz de maneira diferente: Sempre estará teu louvor em minha boca. Nas divinas Letras encontram-se muitos casos em que, como já notei, é costume empregar-se o número sete pela universalidade de alguma coisa. Por isso, o número sete muitas vezes significa o Espírito Santo, de quem diz o Senhor: Ensinar-vos-á toda a verdade. O descanso de Deus existe onde se descansa em Deus. No todo, quer dizer, na perfeição perfeita, o descanso; na parte, o trabalho. Em consequência, trabalhemos, enquanto sabemos em parte, que, em chegando o que é perfeito,• desaparecerá o que é em parte. Daí procede também o esquadrinharmos com trabalho tais passagens das Escrituras. Os santos anjos, contudo, pela companhia de quem suspiramos nesta peregrinação tão árdua, como têm a eternidade de permanência, assim têm a facilidade de conhecimento e felicidade do descanso. Os santos anjos auxiliam-nos sem dificuldade, porque seus movimentos espirituais, puros e livres, não lhes causam incômodo. CAPÍTULO XXXII Segundo alguns, os anjos são, em criação, anteriores ao mundo. Não faltará quem diga que nas seguintes palavras: Faça-se a luz e a luz foi feita não se acham incluídos os anjos, mas que nelas se ensina a criação primeira de luz corpórea. Para esse tal, a criação dos anjos não apenas é anterior ao firmamento, que, feito entre umas águas e outras, foi chamado céu, mas também ao que se disse neste versículo: No princípio fez Deus o céu e a terra. Segundo eles, no princípio não quer dizer que fosse o primeiro a ser feito, visto como os anjos foram criados antes, e sim que todas as coisas foram feitas em sua Sabedoria, que é seu Verbo, a quem a mesma Escritura chamou princípio. Aos judeus, que no Evangelho lhe perguntaram quem era, respondeu ser o princípio. Não sou, contudo, o chamado a dirimir tal contenda, sobretudo sentindo grande prazer ao verificar que também no mesmíssimo exórdio do Gênesis se encarece a Trindade. Ao dizer: No princípio fez Deus o céu e a terra, dando a entender que o Pai o fez no Verbo, como o confirma o salmo que diz: Quão grandiosas são tuas obras, Senhor! Tudo criaste em tua Sabedoria, pouco depois se menciona claramente o Espírito Santo. Depois de haver dito como fez Deus a terra no princípio ou a que matéria para a formação do mundo deu o nome de céu e terra, acrescenta: E a terra era invisível e informe e as trevas estavam sobre o abismo. E, para completar a menção da Trindade, prossegue: E o Espírito de Deus era levado sobre as águas. Cada qual interprete como queira proposição de tal maneira profunda, que para exercitar a inteligência dos leitores é susceptível de muitos entendimentos conformes com a regra de fé. Uma coisa é indubitável e certa: os santos anjos, apesar da sublimidade de sua condição, não são coeternos com Deus, mas, isso sim, estão certos e seguros de sua felicidade eterna e verdadeira. Quando o Senhor anunciou que os pequeninos participarão de sua companhia, não apenas disse: Serão iguais aos anjos, mas também deu a conhecer de que contemplação gozam os anjos, ao acrescentar: Cuidado, não desprezeis nenhum destes pequeninos, porque vos digo que seus anjos nos céus sempre veem o rosto de meu Pai celeste. CAPÍTULO XXXIII As duas sociedades dos anjos são chamadas luz e trevas. Alguns anjos pecaram e foram recluídos nos abismos deste mundo, cárceres para eles, até à condenação final e futura no dia do juízo. Expressa-o com clareza meridiana o apóstolo São Padre, ao dizer que Deus não perdoou os anjos prevaricadores, mas, precipitando-os nas tenebrosas prisões do inferno, reservou para o dia do juízo seu castigo. Quem duvida haver Deus, por presciência ou de fato, feito separação entre uns anjos e outros? Quem se oporá ao que afirme haverem aqueles sido com razão chamados luz? Mesmo nós, que vivemos da fé e na esperança da igualdade celeste, já somos chamados luz pelo Apóstolo: Fostes, diz, algum tempo trevas, mas agora sois luz no Senhor. Que os anjos desertores são chamados trevas é verdadeiro para quem quer que os conheça ou os acredite piores que os infiéis. Portanto, embora se deva entender outra luz na passagem que discutimos: Disse Deus: Faça-se a luz e a luz foi feita e estejam significadas outras trevas na seguinte: Dividiu Deus entre a luz e as trevas, pensamos que em tudo isso se significam estas duas sociedades de anjos, uma que goza de Deus e outra que se infla de soberba; uma, a que se diz: Adorai ao Senhor todos os seus anjos, outra aquela cujo príncipe promete: Dar-te-ei tudo isto, se, prostrado, me adorares; uma, ardendo no santo amor a Deus, outra, consumindo-se no impuro amor da própria soberba. E, porque está escrito que Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes, uma habita nos céus dos céus e a outra, expulsa de lá, luta no Ínfimo céu aéreo; uma é tranquila e está animada por luminosa piedade, a outra é perturbada por tenebrosas paixões. Uma auxilia com clemência, segundo o querer de Deus, castigando com justiça; a outra está entregue pelo orgulho à turbulenta paixão de dominar e de prejudicar. Uma é ministro da bondade divina, fazendo o bem que quer; a outra é contida pelo poder de Deus a fim de não prejudicar quanto queira. A primeira zomba da segunda e de seus inúteis esforços para crescer por intermédio de perseguições; a segunda tem inveja da primeira, quando a vê recolher peregrinos nos caminhos da vida. Cremos, repito, que as duas sociedades de anjos, tão díspares e contrárias entre si, uma boa por natureza e reta por vontade, a outra, boa também por natureza e perversa por vontade, expressas de modo mais claro noutros lugares das Divinas Escrituras, estão, por sua vez, insinuadas com os nomes de luz e de trevas no livro intitulado Genesis. Creio, além disso, que, embora fosse outro o pensamento do autor, não foi inútil ventilarmos o sentido dessa obscura passagem, porque, mesmo que não haja topado com a intenção do autor, não me afastei da regra de fé, bastante conhecida dos fiéis por outros lugares das Escrituras de idêntica autoridade. Embora aqui estejam enumeradas as obras corporais de Deus, têm, fora de qualquer dúvida, alguma semelhança com as espirituais, segundo a qual diz o Apóstolo: Todos sois filhos da luz e filhos do dia; não somos filhos da noite nem das trevas. Se tal é também o pensamento do autor, o desenvolvimento da presente questão terá, ainda, o feliz resultado de não permitir crer que o homem de Deus, de sabedoria tão sublime e divina, falando por ele, como falava o Espírito de Deus, omitisse, na enumeração da obra dos seis dias, a criação dos anjos. E é assim, quer por no princípio se entenda havê-lo feito em primeiro lugar, quer se entenda, com maior propriedade, que o fez em seu Verbo, quando se diz: No princípio fez Deus o céu e a terra. Significou-se, com essas palavras, a universalidade das criaturas, as espirituais e as corporais (é o mais crível), ou as duas grandes partes de que consta o mundo, nas quais se contêm todas as coisas criadas, de maneira que primeiro as propôs todas e depois as executou por partes, em conformidade com o número místico dos seis dias. CAPÍTULO XXXIV Outra opinião a respeito da criação dos anjos. E uma sobre a não criação das águas. E isso apesar de haverem alguns opinado que no contexto o nome de águas significa, em certo sentido, as legiões angélicas: Faça-se o firmamento entre água e água. Assim, as águas superiores ao firmamento significariam os anjos; as inferiores representariam as águas visíveis, os anjos maus ou todas as nações humanas. Se assim é, nesse lugar não se diz quando foram feitos os anjos, mas quando foram separados uns dos outros. Tampouco falta quem negue (opinião vã, perversíssima e ímpia) haverem as águas sido feitas por Deus, porque não está escrito em parte alguma: "Disse Deus: Façam-se as águas." Por que, com o mesmo absurdo, não o dizem também da terra? Não está escrito em parte alguma: "Disse Deus: Faça-se a terra." A isso replicam estar escrito: No princípio fez Deus o céu e a terra. Logo, na referida passagem, deve-se subentender a água, pois um e outro elemento ficaram compreendidos no mesmo termo. Diz o Salmista: Seu é o mar, e Ele o fez, e as suas mãos formaram a terra seca. Os que pretendem que por águas superiores aos céus se devem entender os anjos cedem às exigências dos pesos dos elementos. Por isso pensam que a natureza fluida e pesada das águas não pôde ser constituída nos lugares superiores do mundo. Se por si mesmos pudessem fazer o homem, segundo seus argumentos, não lhe colocariam na cabeça a pituíta, chamada em grego phleghma, que nos elementos de nosso corpo faz as vezes da água. Na cabeça encontra-se a fleuma e, por certo, muito convenientemente e de conformidade com as obras de Deus. Mas, de acordo com a conjetura deles, essa posição é de tal modo absurda, que, se não o soubéssemos e no Genesis estivesse escrito haver Deus colocado humor fluído e frio e, portanto, pesado, na parte superior do corpo humano, tais críticos dos elementos não o acreditariam de maneira alguma. E, mesmo que se submetessem à autoridade das Escrituras, refugiar-se-iam em explicação alegórica. Se quiséssemos, porém, discutir a fundo cada ponto em particular da narrativa divina da origem do mundo, seriam precisas longas exposições e desviar-nos-íamos muito do plano desta obra. Como já falei bastante, segundo penso, sobre estas duas sociedades de anjos, tão diversas e contrárias entre si, em que se encontra, no humano, o princípio das duas cidades, das quais, de acordo com o plano, devemos ocupar-nos mais tarde, fechemos este livro. LIVRO DÉCIMO SEGUNDO Nele Agostinho pergunta a si mesmo, primeiramente, pela origem da boa vontade em alguns anjos e da má em outros e pela causa da felicidade dos bons e da miséria dos maus. Passa, depois, a falar da criação do homem, que prova não haver sido criado "ab aeterno" , mas no tempo, e não ter outro autor senão Deus . CAPÍTULO I Natureza dos anjos bons e dos maus. 1. Antes de falar da criação do homem, época em que as duas cidades, consideradas nos seres racionais mortais, começam a surgir (o livro precedente já assinalou essa origem nos anjos), resta-me dizer ainda algumas palavras a respeito dos próprios anjos, a fim de estabelecer, tanto quanto me for possível, que não há inconveniência nem incompatibilidade entre a sociedade dos homens e a dos anjos e, assim, que não existem realmente quatro cidades ou sociedades, duas humanas e duas angélicas, mas apenas duas cidades ou sociedades de bons ou de maus, homens ou anjos. 2. Ora, não se permite pôr em dúvida que as inclinações contrárias entre si dos anjos bons e dos maus não dependem da diferença de natureza e princípio, posto uns e outros serem obra de Deus, Autor e Criador excelente de todas as substâncias, mas da contrariedade de suas vontades e desejos. A razão é que, enquanto uns se mantiveram no bem, comum a todos, que é para eles o próprio Deus, e em sua eternidade, verdade e caridade, os outros, embriagados por seu próprio poder, como se fossem seu próprio bem, declinaram do bem beatifico, superior e comum a todos, aos seus particulares e, tendo por muito sublime eternidade o fausto de sua altivez, por verdade certíssima os artifícios da vaidade e por caridade mútua suas rivalidades repletas de ódio, se tornaram soberbos, enganadores e invejosos. A causa, pois, da felicidade daqueles é estarem unidos a Deus. Por isso, a causa da miséria destes devemos entender, ao contrário, que será o não estarem unidos com Deus. Se, por conseguinte, quando se pergunta por que são miseráveis estes, se responde: Por não estarem unidos a Deus e, quando se pergunta por que são felizes aqueles, se responde: Por estarem unidos a Deus, somente Deus é o bem que torna feliz a criatura racional ou intelectual. Assim, embora nem toda criatura possa ser feliz (pois não alcançam nem são capazes de tal graça as feras, as plantas, as pedras e coisas assim), a que pode sê-lo não o pode por si mesma, mas por Aquele que a criou. Torna-a feliz a posse daquele cuja perda a torna miserável, porque Aquele que é feliz por si mesmo não pode ser miserável precisamente porque não pode perder-se. 3. Dizemos existir apenas um bem imutável, Deus, uno, verdadeiro e feliz. E acrescentamos serem bens as coisas criadas por procederem dele, mas bens mutáveis, por haverem sido feitas, não dele, mas do nada. Embora não sejam supremos esses bens que podem unir-se ao bem imutável (o bem maior que eles é Deus), são grandes. Até tal ponto é Deus seu bem, que sem Ele são necessariamente miseráveis. Nem os demais seres, neste universo criatural, são melhores que eles, porque não podem ser miseráveis, pois não é justo dizer serem melhores os olhos que os demais membros de nosso corpo justamente porque não podem ficar cegos. Como a natureza senciente, embora com dores, é superior à pedra, incapaz, em absoluto, de dor, assim a natureza racional, embora sendo miserável, é superior à que carece de razão ou de sentido, motivo por que se torna incapaz de miséria. Sendo assim, para essa natureza, criada com superioridade tão clara que, mesmo sendo mutável, com unir-se ao bem incomutável, a Deus, supremo, logra a felicidade e não se vê livre de sua indigência, se não é feliz, e para sê-lo não lhe basta senão Deus, é vício não unir-se a Deus. Todo vício prejudica a natureza e por isso lhe é contrário. A viciada difere da que se une a Deus, não por natureza, mas por vício. Apesar de viciada, a natureza dá provas de grandeza e dignidade. Ao censurarmos, com razão, o vício de alguém, louvamos-lhe ao mesmo tempo a natureza, porque a censura do vício tem por justificativa o fato de ele desonrar a louvável natureza. Assim como, ao dizermos ser a cegueira vício dos olhos, testemunhamos que a visão pertence à sua natureza e, ao dizermos que a surdez é vício dos ouvidos, afirmamos ser-lhes natural a audição, assim também, ao dizermos que o não unir-se a Deus é o vício da criatura angélica, se declara de maneira evidente convir-lhe à natureza o unir-se com Deus. Quem poderá pensar ou de modo digno expressar em palavras a grandeza e glória do estar unido a Deus de tal sorte que se viva dele, se tenha a sabedoria dele, dele se goze e se desfrute de tamanho bem sem morte, sem erro e sem incômodo? Donde se conclui que, pois todo vício é nocivo à natureza, o vício dos anjos maus, que os tem separados de Deus, é testemunho eloquente da bondade de sua natureza, criada por Deus, à qual prejudica não estar com Ele. CAPÍTULO II Não há essência alguma contrária a Deus, porque ao ser somente se opõe o não ser. O objetivo de tudo quanto se disse é ninguém pensar, quando falemos dos anjos apóstatas, que puderam ter outra natureza, procedente de outro princípio e, portanto, Deus não é o autor de sua natureza. Cada qual se verá tanto mais expedita e facilmente livre da impiedade de semelhante erro quanto possa entender com visão mais clara o que, por intermédio de anjo, disse Deus, ao enviar Moisés aos filhos de Israel: Eu sou o que sou. Sendo, pois, Deus suma essência, isto é, sendo em sumo grau e, portanto, imutável, pôde dar o ser às coisas que criou do nada, não, porém, o ser em grau sumo, como é Ele. A umas deu ser superior, a outras, inferior, ordenando assim gradualmente as naturezas das essências. Do mesmo modo que de sapere (saber) se formou sapientia (sabedoria), desse mesmo modo de esse (ser) se formou essentia (essência). É certo tratar-se de palavra nova, não usada pelos autores clássicos da língua latina, mas já corrente em nossos dias, para que em nosso idioma não faltasse o que os gregos chamam ousia, palavra que, traduzida à letra, vem a dar essência. Por conseguinte, à natureza que é em grau sumo, pela qual é tudo quanto tem ser, somente se opõe a natureza que não é, porque somente o não ser se opõe ao ser. Não existe, por isso, essência alguma contrária a Deus, ou seja, à suma essência autora de todas e quaisquer essências. CAPÍTULO III Os inimigos de Deus não o são por natureza, mas por vontade. Nas Escrituras chamam-se inimigos de Deus os que, não por natureza, mas por seus vícios, se lhe opõem aos mandados. Não podendo prejudicá-lo em coisa alguma, mas apenas a si mesmos, são inimigos por sua vontade de resistência, não por seu poder lesivo, por ser Deus imutável e absolutamente incomutável. Esse o motivo de o vício com que resistem a Deus os chamados seus inimigos não ser mal para Deus, mas para eles próprios. E isso por corromper-lhes o bem de sua natureza. Não é contrária a Deus a natureza, mas o vício, por ser o mal contrário ao bem e ninguém poder negar ser Deus o sumo bem. O vício, portanto, opõe-se a Deus, como o mal ao bem. Contudo, a natureza, embora sendo viciada, é bem. Donde se infere ser o vício contrário também a tal bem. Mas somente a Deus se opõe como o mal ao bem à natureza que vicia, não somente como a algo mau, mas, além disso, como a algo nocivo. Porque não existe mal algum nocivo a Deus, mas às naturezas mutáveis e corruptíveis, contudo boas, segundo os próprios vícios demonstram. E demonstram-no porque, se não fossem boas, não poderiam prejudicá-las. Que fazem, com efeito, ao prejudicá-las, senão que percam a integridade, a beleza, a saúde, a perfeição e quantos bens o vício costuma subtrair ou roubar à natureza? Se falta em absoluto, não prejudica, porque não priva de bem algum e, portanto, não é vício, posto que ser vício e não prejudicar é contraditório. Donde se segue que, embora incapaz de prejudicar o bem imutável, o vício não pode prejudicar senão o bem, visto como toda a sua razão de ser consiste em prejudicar. Isso pode ser dito também do seguinte modo: o vício não pode existir nem no sumo bem nem em algo que não seja bem. Logo, os bens podem existir sós em alguma parte, mas os males em si sós, nunca. Com efeito, as naturezas corrompidas pelo vício de má vontade são más, é certo, como viciosas, mas, como naturezas, são boas. E, quando a natureza viciosa é castigada, além da natureza, é bom também não ficar impune. A razão é ser justo o castigo e ser bom tudo quanto é justo. Ninguém sofre castigos por causa dos defeitos naturais, mas pelos voluntários, visto como o próprio vício que, robustecido pelo costume e, por assim dizer, entranhado na natureza, chegou a ser natural, também teve origem na vontade. Estamos tratando agora dos vícios da natureza racional, capaz da luz inteligível, que lhe possibilita discernir o justo do injusto. CAPÍTULO IV As naturezas desprovidas de razão e vida não desdizem, consideradas em seu gênero e ordem, da beleza do universo. Quanto ao mais, é ridículo pensar serem condenáveis os defeitos dos animais irracionais, árvores e outros seres mutáveis e mortais privados de entendimento, sentido ou vida, defeitos que fazem com que sua natureza dissolúvel esteja sujeita à corrupção. E é ridículo, porque tais criaturas receberam da vontade do Criador seu modo de existência, destinado unicamente a operar, por sua vicissitude e sucessão, a beleza ínfima dos tempos, que em seu gênero harmoniza com as demais partes deste universo. Não seria justo que os seres terrenos se equiparassem aos celestiais, nem a superioridade destes constituía razão suficiente para no mundo faltarem aqueles. Quando, perecendo alguns seres, nascem outros, para ocupar os lugares que correspondiam àqueles, e os inferiores sucumbem ante os superiores e os vencidos se transformam em qualidades dos vencedores, então se dá a ordem dos seres transitórios. A formosura de tal ordem não nos deleita precisamente porque, incorporados, por motivo de nossa natureza mortal, à referida parte do conjunto, não podemos perceber que relações de conveniência e proporção ligam ao conjunto as partes que nos desagradam. Eis por que, quanto menos idôneos somos para contemplá-la, mais se nos impõe a obrigação de crer na providência do Criador, a fim de não nos atrevermos, com a temerária vaidade humana, a censurar a obra de tão grande Artífice. Examinados a sério, tais defeitos nas coisas terrestres, defeitos nem voluntários, nem expiatórios, dão igual testemunho da excelência das naturezas, das quais nenhuma existe que não tenha Deus por autor e criador. E é que nos desagrada que o vício prive a natureza do que nela nos agrada. Mas, com frequência, as naturezas também desagradam aos homens quando se lhes tornam nocivas, porque não as consideram em si, mas em sua utilidade, como os animais cuja abundância castigou a soberba dos egípcios. De acordo com isso, poderiam censurar também o Sol, porque alguns malfeitores ou quem não pagava as dívidas eram condenados pelos juízes a ser expostos aos raios solares. Portanto, considerada em si mesma, não em relação com nosso conforto ou desconforto, a natureza dá glória a seu Artífice. Assim, a natureza do fogo eterno é por certo louvável, embora deva servir de suplício aos ímpios condenados. Com efeito, que há mais formoso do que fogo em chamas, vivo e resplandecente? Que há mais útil, quando aquece, purifica e coze? E, todavia, nada existe mais molesto, quando queima. E, pois, o mesmo o fogo que, mal aplicado, é nocivo e, convenientemente aplicado, útil. Quem achará palavras suficientes para explicar as utilidades que tem no mundo? Não devemos, por conseguinte, prestar ouvidos a quem lhe louva a luz e vitupera o ardor, porque não considera sua natureza, mas seu próprio conforto ou desconforto. Esses tais querem ver e não querem queimar-se. Mas não reparam em que a mesma luz que lhes causa agrado prejudica, por inconveniência, os olhos fracos e em que, por conveniência, o ardor que lhes desagrada confere vida e saúde a alguns animais. CAPÍTULO V A natureza de toda espécie e modo é canto de louvação ao Criador. Todas as naturezas têm, como ser, seu modo, espécie e certa paz própria e, por isso, são boas. E, quando estão colocadas onde a ordem da natureza exige, conservam o ser que receberam. As que não receberam ser permanente melhoram ou pioram, segundo a usança e movimento das coisas a que se encontram sujeitas por lei de criação, tendendo sempre por providência divina ao fim que leva em si a razão do governo do universo. E de tal modo, que o último grau de corrupção, que leva as naturezas mutáveis e mortais à sua desaparição, não reduz ao não ser o que era, ao extremo de que dali não resulte logicamente o que devia ser. Sendo assim, Deus, que é em sumo grau e, por conseguinte, Autor de toda essência, que não é soberanamente (pois não é justo fosse igual a Ele e por Ele feita do nada) e de modo algum poderia existir, se não fosse feita por Ele, não deve ser censurado pelos defeitos das naturezas, e sim louvado, considerando-se todas elas. CAPÍTULO VI Causa da felicidade dos anjos bons e da miséria dos maus. Assim, a verdadeira causa da felicidade dos anjos bons reside em estarem unidos ao que é soberanamente. Por outro lado, quando se pergunta pela causa da miséria dos anjos maus, verifica-se que se deve ao haverem-se afastado do ser supremo e voltado para si mesmos, que não são em grau supremo. Que outro nome recebe semelhante vício senão o de soberba? Pois o princípio de todo pecado é a soberba. Não quiseram lhes protegesse Deus a fortaleza. A união deles com Deus, que é em grau supremo, ter-lhes-ia acrescido o ser, mas preferiram menos ser, antepondo-se a Ele. Talo primeiro defeito, a primeira indigência e o primeiro vício de sua natureza, criada de tal modo, que, não sendo em sumo grau, pudera, entretanto, para ser feliz, gozar de quem é em grau sumo. Apartando-se dele não seria reduzida ao nada, mas, pelo contrário, se faria menos e, em consequência, miserável. Se se busca a causa eficiente de semelhante má vontade, não se encontra. Porque, com efeito, que produz a má vontade, sendo ela mesma a autora da obra má? A má vontade é, por conseguinte, a causa eficiente de toda obra má, porém, nada é a causa eficiente da má vontade. Porque, se é algum ser, tem vontade ou não tem. Se tem, é boa ou má. Se boa, quem desatinará ao extremo de dizer que a boa vontade é causa da má vontade? Não é possível imaginar absurdo maior. E, se tem vontade má o ser que é julgado o autor da má vontade, é lógico perguntar qual é a causa. Mas, para que na busca se proceda com método, perguntemos pela causa da primeira vontade má. Porém, a primeira vontade má, causa da má vontade, não existe, pois a primeira é a não feita por nenhuma outra, porque, se a esta precedeu sua autora, lhe é anterior por ser sua causa. E, se se objeta não havê-la feito nenhum ser e, portanto, haver existido sempre, pergunto: Em alguma natureza? Se não existiu em alguma natureza, não existiu. Se existiu em alguma, viciava-a, corrompia-a, era-lhe nociva e, por conseguinte, privava-a de bem. Por esse motivo a má vontade não podia existir na natureza má e sim na boa, porém, mutável, susceptível de ser prejudicada pelo vício. Se o vício não prejudicou, não foi vício e, portanto, a vontade não deve ser chamada má. Se prejudicou, é fora de dúvida que prejudicou, privando de bem ou diminuindo-o, pois não é possível que existisse eterna vontade má em ser em que houvesse precedente bem natural, que a má vontade é capaz de eliminar, prejudicando. Logo, se não era eterna, pergunto: Quem a fez? Há uma resposta apenas: A má vontade é obra de ser que não teve vontade alguma. Mas pergunto de novo: É-lhe superior, inferior ou igual esse ser? Se superior, é realmente melhor que ela. Por que, pois, não há de ter vontade e não há de ter vontade boa? Poder-se-ia dizer a mesma coisa, se fosse igual, porque dois seres, enquanto simultaneamente são de boa vontade, não causam um ao outro a vontade má. Resta que ser inferior, carecente de vontade, seja a causa da má vontade da natureza angélica, que pecou primeiro. Mas, seja qual for esse ser inferior, mesmo a ínfima terra, por ser natureza e essência, é bom e tem modo e espécie em seu gênero e ordem. Como, pois, ser bom é causa eficiente da vontade má? Como, em suma, pode o bem ser causa do mal? Quando a vontade, abandonando o superior, se converte às coisas inferiores, torna-se má, não por ser mau o objeto a que se converte, mas por ser má a própria conversão. Portanto, não é causa da vontade má o ser inferior; ela é que é sua própria causa, por haver apetecido mal e desordenadamente o ser inferior. Se duas pessoas de iguais disposições corporais e anímicas veem a beleza de determinado corpo e, uma vez vista, uma delas se decide a desfrutá-la ilicitamente e a outra persevera em vontade casta, qual a causa, de acordo com nosso modo de pensar, de que naquela se produza a má vontade e, nesta não? Que coisa a causou naquela em que foi causada? E certo que a beleza do corpo, não, posto não havê-la causado em ambas, apesar de não haver-se apresentado de modo diferente aos olhos de uma e de outra. É, porventura, causa a carne de quem olha? Será por acaso o espírito? E por que não o de ambas, se, por hipótese, as disposições corporais e anímicas eram idênticas nas duas pessoas? Ou será que se deve dizer que uma delas foi tentada por oculta sugestão de espírito maligno? Como se não fora a própria vontade a que dá consentimento a tal sugestão e a qualquer outra insinuação. Buscamos precisamente a causa de semelhante consentimento, da má vontade que se abandona ao pérfido conselheiro. Para evitar a dificuldade, suponhamos que ambas as pessoas são tentadas pela mesma tentação e uma cede e consente, enquanto a outra, a mesma de antes, lhe resiste. Que é possível dizer, senão que uma quer e a outra não quer renunciar à castidade? E qual a causa, senão a própria vontade, pois em ambas as pessoas reinava a mesma disposição de espírito e corpo? Seus olhos contemplaram simultaneamente a mesma beleza e, simultaneamente, a mesma tentação as aguilhoou. Bem consideradas as coisas, em nenhuma delas ocorreu nada que aos investigadores desse a conhecer a causa de sua má vontade. Se dissermos que ela mesma a produziu, que era, antes de ter má vontade, senão natureza boa, cujo autor é Deus, bem imutável? E a quem disser que a que deu assentimento ao tentador e conselheiro, fazendo uso ilícito do corpo formoso, presente à vista de arribas, que antes da visão e da tentação eram semelhantes de espírito e corpo, fez sua má vontade, admitindo que antes de ter má vontade era boa, pergunto: Por que a fez, porque é natureza ou porque foi feita do nada? Verificar-se-á não haver a má vontade começado a existir por ser natureza, mas por haver sido feita do nada. Porque, se a natureza é causa da má vontade, vemo-nos obrigados a dizer que o mal é efeito do bem e o bem, portanto, é causa do mal, visto como, por hipótese, a má vontade é produzida pela natureza boa. E como é possível que a natureza boa, embora mutável, cause algo mau, a saber, a má vontade, antes de ter vontade má? CAPÍTULO VII Não se deve buscar a causa eficiente da má vontade. Ninguém busque, pois, a causa eficiente da má vontade. Tal causa não é eficiente, mas deficiente, porque a má vontade não é "efecção", mas "defecção". Declinar do que é em sumo grau ao que é menos é começar a ter má vontade. Empenhar-se, portanto, em buscar as causas de tais defeitos, não sendo eficientes, mas, como já dissemos, deficientes, é igual a pretender ver as trevas ou ouvir o silêncio. E, contudo, arribas essas coisas nos são conhecidas, uma pelos olhos e outra pelos ouvidos, não, porém, em sua espécie, mas na privação da espécie. Ninguém, por conseguinte, procure aprender de mim o que sei que não sei, mas espere aprender a não saber o que se deve saber ser impossível saber. Com efeito, as coisas que não se conhecem em sua espécie, mas na privação da espécie, se podemos falar assim, se conhecem, de certo modo, não conhecendo-as e não se conhecem, conhecendo-as. Quando a penetração do olho corporal se projeta sobre as espécies corporais, só vê as trevas quando começa a não ver. De igual modo, o sentir o silêncio pertence aos ouvidos, não a outro sentido, e somente se sente, não ouvindo. Assim, nossa mente contempla com o entendimento as espécies inteligíveis. Quando faltam, porém, concebe-as, ignorando-as. Com efeito, quem conhece os delitos? CAPÍTULO VIII O amor perverso inclina a vontade do bem imutável ao bem mutável. O que sei é que a natureza de Deus jamais pode desfalecer, mas os seres feitos do nada podem. Tais seres, quanto mais ser têm e mais bem fazem (então fazem algo positivo), têm causas eficientes; se, porém, desfalecem e, em consequência, obram mal (que outra coisa fazem, então, além de vaidades?), têm causas deficientes. Sei também que a má vontade consiste em fazer o que sem seu querer não se faria e, por isso, a pena justa não se segue aos defeitos necessários, mas aos voluntários. O desfalecimento não se encaminha a coisas más, mas de modo errado, ou seja, não a naturezas más, e sim desordenadamente, porque se faz contra a ordem da natureza, do que é em sumo grau ao que é menos. Assim, a avareza não é vício do ouro, mas do homem, que ama desordenadamente o ouro, por ele abandonando a justiça, que deve ser infinitamente preferida a esse metal. E a luxúria não é vício da beleza e graça do corpo, mas da alma, que ama perversamente os prazeres corporais, desprezando a temperança, que nos une a coisas espiritualmente mais belas e incorruptivelmente mais cheias de graça. E a jactância não é vício do louvor humano, mas da alma que ama desordenadamente ser louvada pelos homens, desdenhando o testemunho da própria consciência. E a soberba não é vício de quem dá o poder ou do poder mesmo, mas da alma que ama desordenadamente seu próprio poder, desprezando o poder mais justo e poderoso. Por isso, quem ama desordenadamente o bem, seja de que natureza for, mesmo conseguindo-o, se torna miserável e mau no bem, ao privar-se do melhor. CAPÍTULO IX É o mesmo o Criador da natureza e o Autor da boa vontade nos anjos bons? 1. Não existe, pois, causa eficiente natural ou, se nos permitem a expressão, essencial da vontade má, por ser ela a fonte do mal dos espíritos mutáveis, mal que diminui e deprava o bem da natureza, e tal vontade outra coisa não é senão efeito de "defecção" , consistente em abandonar a Deus. Falta-nos também a causa dessa "defecção". Por isso, se dizemos não existir tampouco causa eficiente da boa vontade, devemos guardar-nos de crer não haver sido feita a boa vontade dos anjos, mas ser coeterna com Deus. Pois, se foram criados, como é possível que sua vontade não o fosse? Suposto haver sido criada, pergunto: Foi concriada com eles ou são anteriores a ela? Se concriada com eles, não há dúvida havê-lo sido por Aquele por quem também eles foram. E desde o primeiro instante de sua criação se uniram a seu Criador pelo amor com que foram criados. Encontram-se separados da companhia dos outros anjos precisamente porque se mantiveram na boa vontade, enquanto os outros, afastando-se dela, se tornaram de má vontade, consistente em declinar da boa, coisa que não fariam, se realmente não quisessem. E, se os anjos bons são anteriores à boa vontade e em si mesmos autores dela, sem o concurso de Deus, tornaram-se por si mesmos melhores que os fizera Deus. Absolutamente impossível, dizemos, porque, de fato, que eram, sem boa vontade, senão maus? E, se não eram maus precisamente porque não tinham nem má vontade (pois não haveriam declinado de vontade que ainda não tinham), ao menos é certo que não haviam começado a ser bons como são com a vontade boa. E, se não puderam tornar-se melhores que os fizera Deus, porque ninguém faz algo melhor que Ele, é fora de dúvida que a boa vontade, causa de sua melhoria, não poderiam tê-la senão com o concurso operante do Criador. E, quando tal boa vontade os volta, não para a indigência de seu próprio ser, mas para a plenitude do ser infinito, quando nessa união haurem nas próprias fontes do ser, da sabedoria e da beatitude, não é isso evidente prova de que sua vontade, por boa que fosse, não transporia os limites de estéril desejo, se Aquele que do nada fez a natureza capaz de contê-lo não a tivesse tornado melhor, enchendo-a de si mesmo, depois de haver excitado a impaciência de seu amor por Ele? 2. Deve-se, ademais, ter em conta o seguinte ponto: Se os anjos são autores de sua boa vontade, fizeram-na com vontade ou sem ela? Se sem ela, é certo que não a fizeram. Se com vontade, era boa ou má? Se má, como é possível que a vontade má fosse causa da vontade boa? Se boa, lógico é dizer que já a tinham. E quem era seu autor senão Aquele que os criara com vontade boa, ou seja, com o amor casto que os une a Ele, criando-lhes a natureza e conferindo-lhes ao mesmo tempo a graça? Donde se segue a necessidade de crer que os santos anjos não existiram nunca sem a boa vontade, quer dizer, sem o amor a Deus. E os outros, concriados com os bons, tornados maus por sua má vontade, obra não da natureza boa, mas de sua livre "defecção" do bem, pois a causa do mal não é o bem, mas a "defecção" do bem, ou receberam menor grau de amor divino que os que perseveraram ou, se uns e outros foram criados igualmente bons, estes caíram por sua má vontade e aqueles, mais agraciados, chegaram ao ápice da bem-aventurança, com a plena certeza de que jamais haveriam de perdê-la, como já expusemos no livro anterior. Deve-se, pois, admitir, em justo louvor ao Criador, não ser privativo dos homens santos apenas o estar-lhes a caridade de Deus difundida nos corações pelo Espírito Santo que lhes foi dado, mas poder estender-se também aos santos anjos. Deve-se, igualmente, admitir não ser próprio somente dos homens, mas primeira e primordialmente dos anjos, o bem de que está escrito: Meu bem é permanecer unido a Deus. Os participantes desse bem formam sociedade santa com Aquele a quem se unem e entre si e constituem a Cidade de Deus, e sacrifício vivo e templo vivo dele. Já é hora, segundo penso, de falarmos da origem criacional dos membros, recrutados entre os homens mortais para se unirem aos anjos imortais, da Cidade que agora peregrina mortalmente na terra ou descansa nas secretas moradas das almas daqueles que já renderam tributo à morte, como se fez, quando se tratou dos anjos. O gênero humano origina-se de um só homem, o primeiro que Deus criou, segundo o testemunho da Santa Escritura, que goza de maravilhosa autoridade, não imerecida, no orbe da terra e em todas as nações, e predisse com inspiração divina, entre outras verdades, que haveriam de crer nela. CAPÍTULO X É falsa a História que fixa muitos milhares de anos aos tempos passados. 1. Omitamos as conjeturas dos homens que não têm noção da natureza e origem do gênero humano. Uns, seguindo sua opinião sobre o mundo, sustentam que os homens sempre existiram. Foi o que motivou as palavras com que Apuleio descreve tal espécie de animais: "Um a um são mortais, mas em seu conjunto, perpétuos." A isso é possível arguir: Se o gênero humano sempre existiu, como é verdadeira a História que narra quem foram os inventores das coisas, quem os iniciadores das artes liberais e das outras artes ou quem foram os primeiros habitantes desta ou daquela região, de tal ou qual ilha? Respondem que de quando em quando houve dilúvios e incêndios que despovoaram não toda a terra, porém, muitas regiões, de tal forma que os homens ficavam reduzidos a um punhado e sua descendência refazia a multidão anterior. Assim, segundo eles, se refaz e constitui a humanidade, quando na realidade nada mais se faz senão renovar o que semelhantes devastações haviam interrompido e feito desaparecer. Quanto ao mais, o homem não pode proceder senão de outro homem. Dizem o que pensam, não o que sabem. 2. Induzem-nos a erro também certos escritos repletos de mentiras, que na História da humanidade mencionam muitos milhares de anos, quando, de acordo com nossas Sagradas Letras, da criação do homem não se passaram até agora seis mil anos completos. Por isso, para tentar em poucas palavras a refutação de tal classe de escritos, que admitem muitos mais milhares de anos, escritos destituídos, por outra parte, de qualquer autoridade sobre esse ponto, baste citar a carta de Alexandre, o Grande, a sua mãe Olímpia. Nela dá a relação de certo sacerdote egípcio, que foi por ele extraída de seus escritos sagrados e fala das monarquias mencionadas também pela história grega. O reinado dos assírios, segundo a carta de Alexandre, durou mais de cinco mil anos e, segundo a história grega, dura pouco mais ou menos mil e trezentos desde o reinado de Belo, rei nomeado também pelo egípcio no princípio dessa monarquia. Fixa mais de oito mil anos ao império dos persas e dos macedônios até Alexandre, a quem se dirigia, enquanto os gregos calculam em quatrocentos e oitenta e cinco anos a duração do império dos macedônios até a morte de Alexandre e em duzentos e trinta e três a do império dos persas até a vitória de Alexandre. Tais números são, como se vê, muito inferiores aos egípcios e não os igualaria, embora se multiplicassem por três, pois os egípcios contam que houve tempo em que seus anos eram tão curtos, que duravam apenas quatro meses. Portanto, o ano verdadeiro e pleno, agora comum a nós e a eles, consta de três dos antigos anos egípcios. Nem mesmo assim, porém, como já dissemos, a cronologia egípcia concorda com a história grega. Deve-se, por conseguinte, acreditar nesta última, por não exceder o número de anos anotados por nossas Letras, verdadeiramente sagradas. Em consequência, se na celebrada carta de Alexandre se vê frustrada nossa esperança provável sobre os tempos, quão menos crédito se deve dar àqueles escritos que, saturados de antigalhas e fábulas, pretendem opor-se à autoridade dos livros, mais celebrados e divinos, que predisseram que todo mundo haveria de crê-los, predição que na realidade se realizou! E o testemunho vivo de que as coisas narradas, preludiadas como futuras, são verdadeiras, pois se cumprem com tamanha exatidão. CAPÍTULO XI Opinião dos que, sem admitirem a eternidade do mundo, sustentam haver um sem-número de mundos, ou que, sendo único, nasce e acaba incessantemente, de acordo com o rodar dos séculos. Outros, contudo, não crendo na eternidade deste mundo, opinam não ser ele único, mas haver inumeráveis mundos, ou ser único e nascer e terminar infinidade de vezes, de acordo com o incessante rodar dos séculos. Esses tais hão de necessariamente admitir que, em determinado princípio, o gênero humano existiu sem homens que gerassem. Porque, como não pretendem que os dilúvios e incêndios assolaram todo o orbe e, por isso, sustentam que sempre sobrevivem alguns homens para refazer a multidão antiga, assim estão em seu direito, ao pensar que, perecendo o mundo, ficarão nele alguns homens. Mas, como pensam que o mundo renasce de sua própria matéria, veem-se obrigados a sustentar que o gênero humano surge de seus elementos e depois os pais suscitam, por via de geração, os mortais, como os outros animais. CAPÍTULO XII Que responder aos que pretextam haver tardado a criação do homem? O que respondi àqueles que, persuadidos de que o mundo sempre foi, se recusam a crer tenha começado a ser, incredulidade que o próprio Platão expressamente professa, embora alguns lhe atribuam opiniões diferentes de sua linguagem, o que respondi a respeito da questão da ordem do mundo responderei sobre a da criação primitiva do homem, se igualmente me perguntam por que o homem não foi criado durante os tempos infinitos que lhe precederam a criação. Por que foi criado tão tarde, que as Santas Escrituras contam menos de seis mil anos desde que começou a ser? Se os ofende a brevidade do tempo e lhes parecem poucos os anos transcorridos desde a criação do homem, conforme se lê em nossas Escrituras, considerem que o que tem fim não é duradouro e todos os séculos termináveis, em comparação com a eternidade interminável, são, não direi pequenos, mas nada. Se, por isso, se dissessem, não cinco ou seis mil anos, mas sessenta ou seiscentos mil, ou se se multiplicassem seis mil, sessenta ou seiscentas mil vezes mais e a soma se tornasse a multiplicar outras tantas vezes por esse número e já não tivéssemos nome para tal quantidade, ano em que Deus fez o homem, poder-se-ia formular a mesma pergunta: Por que não o fez antes? É tanta a inatividade eterna de Deus, sem princípio anterior à criação do homem, que seja qual for o número de anos que se lhe reconheça, por grande e inefável que seja, se tem limite em certo espaço, não deve parecer sequer tanta quanta resulta de comparar pequenina gota de água e todo o mar, toda a água do oceano. O motivo é que essas duas coisas, embora uma seja muito pequena e outra incomparavelmente grande, são finitas, mas o espaço de tempo, que parte de começo e tem termo, seja qual for a extensão de seu curso, não sei se, comparado com o que carece de princípio, é infinitamente pequeno, ou antes, nada. Com efeito, se do termo obtido se vão subtraindo os momentos um a um, por brevíssimos que sejam, o número irá decrescendo ao retroceder na conta, embora tão incontável, que não se encontre vocábulo para nomeá-lo, e a subtração acabará chegando ao princípio, como, se se vão subtraindo dias à vida atual do homem, se chegará ao dia em que nasceu. E se isso se translada ao espaço que não teve princípio e se vão subtraindo, não digo momentos pequenos, um a um, ou horas, dias, meses, anos, mas espaços tão enormes como os compreendidos na soma de anos já impossível de contar pelos calculistas e que, todavia, se esgota minuto a minuto pela subtração de momentos, e se estejam subtraindo, não uma, duas e muitas vezes, mas sempre, qual é seu efeito, que operação será essa, que nunca chega ao princípio, pois não existe? Por isso, o que agora perguntamos depois de cinco mil anos ou mais, poderão perguntar também nossos descendentes, com idêntica curiosidade, após seiscentos mil, se é que esta mortalidade humana e esta debilidade ignorante se manterão por tanto tempo em sucessão contínua. A mesma questão poderiam também havê-la suscitado nossos predecessores, os que existiram nos tempos da criação do homem. Enfim, o primeiro homem, no dia seguinte ao de sua criação ou no mesmo dia, poderia perguntar por que não fora criado antes. E, por mais que fosse criado antes, a dificuldade a respeito do princípio dos seres temporais teria então o mesmo valor que tem agora e terá depois. CAPÍTULO XIII Alguns filósofos acreditaram no ciclo dos séculos, quer dizer, acreditaram que, terminados por fim certo, todos tornam sem cessar à mesma ordem e à mesma espécie. 1. Alguns filósofos deste mundo, para resolver semelhante dificuldade, que, segundo eles, não pode ou não se deve resolver doutra maneira, pensaram em admitir circuitos de tempos, em que na natureza se renovariam e repetiriam sempre as mesmas coisas e, assim, conforme afirmam, se formaria a textura íntima das evoluções dos séculos que vêm e passam. E isso, quer os circuitos se produzam em mundo estável, quer na alternativa entre nascer e morrer o mundo apresente como novas sempre as mesmas coisas, tanto as passadas como as futuras. Desse ludíbrio não podem livrar a alma imortal, que, quando se apossou da sabedoria, se eleva sem cessar a uma enganadora felicidade e torna sem cessar a uma verdadeira miséria. Como há de ser verdadeira felicidade aquela em cuja eternidade não confiamos, quando a alma é demasiado ignorante no seio da verdade ou demasiado infeliz no seio da felicidade, para ignorar ou recear sua futura miséria? E, se jamais há de tornar às misérias, destas caminha para a felicidade e, portanto, causa no tempo algo novo, que não terá fim no tempo. Por que, pois, não se há de dizer o mesmo do mundo e do homem nele criado? Por que não seguir o caminho reto da sã doutrina, que nos desvia de não sei que falsos circuitos, inventados por falsos e enganadores sábios? 2. Alguns há que pretendem deva certa passagem do Livro de Salomão, intitulado Eclesiastes, ser entendida a favor de tais circuitos, que trazem e levam todas as coisas ao mesmo. É a seguinte a passagem: Que é o que foi? O mesmo que será. E que é o que foi feito? O mesmo que se há de fazer. Não há nada novo debaixo do sol. Quem falará e dirá: Eis coisa nova? Já existiu nos séculos anteriores a nós. Disse-o das coisas que antes mencionava, a saber, da sucessão das gerações, do curso do Sol, do deslizar das torrentes ou, então, de todo gênero de coisas, que nascem e morrem. Com efeito, existiram homens antes de nós, coexistem conosco atualmente e existirão depois de nós. Diga-se o mesmo dos animais e das plantas. Os monstros, abortos pouco comuns, embora diferentes entre si, tanto que de alguns deles não existe senão um exemplar, no que têm de milagroso e monstruoso existiram e sempre existirão; assim, não é acidente inaudito e novo nascer algum monstro debaixo do Sol. Outros explicaram de maneira diferente as referidas palavras e entendem que todas as coisas já foram feitas na predestinação de Deus (tal era a intenção do Sábio) e, por isso, não há nada novo debaixo do Sol. Muito longe está de nossa reta fé acreditar que tais palavras de Salomão significam os citados circuitos imaginários, de modo que a volubilidade do tempo e dos seres temporais torne sempre ao mesmo. Por exemplo, como o filósofo Platão teve neste século discípulos na cidade de Atenas e na Academia, durante infinitos séculos atrás, com grandes intervalos, é verdade, porém, certos, existiram o mesmo Platão, a mesma cidade, a mesma escola e os mesmos discípulos e hão de repetir-se durante infinitos séculos depois. Longe de nós, repito, acreditar em semelhante insensatez. Cristo morreu uma vez apenas por nossos pecados e, ressuscitado dentre os mortos, já não morre e a morte já não terá domínio sobre ele. Depois da ressurreição estaremos eternamente com o Senhor, a quem dizemos com o salmo: Tu, Senhor, nos conservarás e nos guardarás desta geração para sempre. Tenho para mim que também as seguintes palavras se aplicam aos falsos sábios: Em seu derredor andam os ímpios. Não porque sua vida haja de seguir o curso de tais imaginários circuitos, mas porque, na realidade, tal é o labirinto de seu erro, ou seja, de sua falsa doutrina. CAPÍTULO XIV Deus não operou com nova resolução nem com vontade mutável a criação do gênero humano no tempo. Que tem de particular que, errantes nesse labirinto, não encontrem nem entrada, nem saída? Ignoram a origem do gênero humano e desconhecem o destino final de nossa mortalidade, por serem incapazes de penetrar as profundezas de Deus e como, sendo Ele eterno e sem princípio, deu começo aos tempos e no tempo criou o homem, sem que outro precedesse a este. Não o criou, porém, com nova e repentina resolução, mas com resolução imutável e eterna. Quem poderá sondar esse abismo insondável e penetrar esse mistério impenetrável, baseados em que, sem mudar de vontade, Deus criou no tempo o primeiro homem temporal, anterior a quem não existiu nenhum, e desse primeiro homem multiplicou o gênero humano? Depois destas palavras: Tu, Senhor, nos conservarás e nos guardarás desta geração para sempre, o Salmista volta-se contra a néscia e ímpia doutrina que sustenta não serem eternas a libertação e a felicidade da alma, ao acrescentar: Em seu derredor andam os ímpios, como se lhe houvessem perguntado: Que crês, que sentes, que pensas? Será, porventura, preciso acreditar haver Deus concebido de súbito o plano de criar o homem, depois de passar infinita eternidade sem criá-lo, Deus, a quem nada de novo pode sobrevir e cujo ser não admite mutabilidade alguma? A essa hipotética pergunta respondeu a seguir, falando assim a Deus: Segundo teus profundos juízos, multiplicaste os filhos dos homens. Pensem, diz o Salmista, os homens o que pensem, opinem e discutam o que lhes apraza: Segundo teus profundos juízos, impenetráveis ao homem, multiplicaste os filhos dos homens. E, com efeito, profundo mistério que, havendo existido sempre, quisesse criar no tempo o primeiro homem, a quem antes não criara, e, apesar disso, seu juízo e vontade hajam permanecido imutáveis. CAPÍTULO XV O ser Deus sempre Senhor supõe hajam existido sempre criaturas sob seu domínio. Como se há de entender hajam sempre existido as criaturas, sem serem coeternas com o Criador? 1. Como não me atrevo a dizer haja havido tempo em que o Senhor Deus não haja sido melhor, assim devo dizer, sem vacilar, não haver o homem existido antes do tempo e haver o primeiro homem sido criado no tempo. Quando, todavia, penso no objeto desse senhorio eterno, se é certo não haverem as criaturas existido sempre, temo afirmar algo, porque vejo e recordo o que está escrito: Quem dos homens pode saber o desígnio de Deus? Ou quem poderá imaginar o que o Senhor quer? Os pensamentos dos homens são tímidos e nossas previsões incertas. O corpo corruptível agrava a alma e a morada terrena deprime o sentido que imagina muitas coisas. Talvez por isso imagino muitas coisas nesta prisão de argila (precisamente muitas, porque nesse número ou fora dele uma existe, verdadeira, que possivelmente me escapa). Se digo que existiram sempre as criaturas para dominá-las quem é sempre senhor e nunca deixou de sê-la, mas umas agora e depois outras, a intervalos, com o propósito de não admitir criatura alguma coeterna com o Criador - sentir condenado pela fé e pela sã razão - devem ser evitados estes dois escolhos: primeiro, o absurdo, estranho à luz da verdade, de as criaturas, em sucessão contínua, haverem existido sempre, segundo as vicissitudes dos tempos, e, segundo, haverem as imortais começado a existir ao chegar nosso século, em que foram criados também os anjos. Foram-no, se é certo que a primeira luz criada os significa, ou antes, o céu, de que se disse: No princípio fez Deus o céu e a terra. Mas é certo que não existiam antes de serem criados, a fim de ninguém pensar que, por dizer-se haverem sido sempre imortais, são coeternos com Deus. E, se digo que os anjos não foram criados no tempo, mas antes de todos os tempos, e assim Deus, que sempre foi Senhor, seria senhor deles, objetar-me-ão: Se foram criados antes de todos os tempos, como é possível hajam existido sempre os que foram criados? A resposta poderia ser a seguinte: Por que não existiram sempre, se o que existe desde iodo o tempo se diz, não impropriamente, que existe sempre? E inegável haverem existido desde todo o tempo, se foram criados antes de todos os tempos. E, se os tempos começaram pelo céu, já existiam antes do céu. Mas, se o tempo é anterior ao céu, não no sentido de horas, dias, meses e anos (medidas chamadas corrente e propriamente tempos); mas no sentido da mutabilidade cósmica, de seu antes e seu depois, porque não podiam existir ao mesmo tempo, é evidente que começaram a existir com o movimento dos astros, motivo por que, ao cria-los, Deus disse: E sejam em sinais, e em tempos, e em dias, e em anos. Se se admite, repito, que antes do céu existiu algo semelhante nos movimentos dos anjos e, portanto, o tempo, e desde o primeiro instante de sua criação os anjos têm estado sujeitos ao movimento temporal, mesmo em tal caso existiram em todo o tempo, posto haverem sido concriados com os tempos. Quem dirá não haver existido sempre o que existiu em todo o tempo? 2. Mas, se eu responder assim, replicar-me-ão: Como não são coeternos com Deus, se Ele sempre existiu e eles sempre existiram? E, se se diz haverem sempre existido, como dizer que foram criados? Que responder? Deve-se, acaso, aduzir que sempre existiram, porque existiram em todo o tempo, pois foram criados com o tempo (ou o tempo com eles), mas, em qualquer caso, foram criados? E fora de dúvida que, embora ninguém ponha em dúvida que em todo o tempo houve tempo, os tempos foram criados. O motivo é que, se em todo o tempo não existiu o tempo, existia o tempo quando não existia o tempo. Quem será néscio ao extremo de dizê-lo? Podemos dizer muito bem: Houve tempo em que Roma não existia, houve tempo em que não existia Jerusalém, houve tempo em que não existia Abraão, houve tempo em que não existia homem algum e assim por diante. Enfim, se o mundo não foi criado no princípio do tempo, mas depois de algum tempo, podemos dizer: Houve tempo em que não existia o mundo. Mas dizer: Houve tempo em que não existia o tempo, é tão impróprio como dizer: Existia homem quando não existia homem algum, ou: Existia este mundo quando não existia este mundo. Se se entende disjuntivamente, pode-se de algum modo falar assim: Quando não existia este homem, existiu outro homem, e também: Houve outro tempo em que não existia este tempo. Mas quem dirá, por mais néscio que seja: Houve tempo em que não existia tempo algum? Se for verdade dizer que o tempo foi criado, apesar de haver existido sempre, porque houve tempo em todo o tempo, não é lógico dizer que, se os anjos sempre existiram, não foram criados. Diz-se que sempre existiram porque existiram em todo o tempo e existiram em todo o tempo porque os tempos não poderiam existir sem eles. Com efeito; não pode haver tempo onde não existe criatura alguma, cujos movimentos originem os tempos e, em consequência, pelo fato de sempre existir não deixa de haver sido criada e não ser coeterna com o Criador. Deus existiu sempre com eternidade imutável; estes, porém, foram criados; mas deles se diz haverem existido sempre porque existiram em todo o tempo e sem eles os tempos não poderiam existir. Mas, como o tempo passa, porque mutável, não pode ser coeterno com a eternidade imutável. Por isso, embora a imortalidade dos anjos não passe no tempo e não seja passada, como se já não existisse, nem futura, como se ainda não existisse, seus movimentos, originadores dos tempos, cruzam do futuro ao passado. Em conclusão, não podem ser coeternos com o criador, em cujo movimento não se pode dizer que foi o que já não é ou será o que ainda não é. 3. Em consequência, se Deus sempre foi Senhor, sempre teve criaturas sujeitas a seu senhorio, não, porém, geradas dele, mas por Ele tiradas do nada e não coeternas com Ele. Ele existia antes delas, embora jamais tenha estado sem elas, e precede-as não em espaço temporal, mas em eternidade estável. Mas, se eu der semelhante resposta aos que perguntam como Ele, sempre Criador, foi sempre Senhor, se as criaturas a Ele sujeitas não existiram sempre, ou como, se existiram sempre, foram criadas e não são coeternas com o Criador, receio pensem mais facilmente que afirmo o que não sei que imaginem que ensino o que sei. Retorno ao que nosso Criador quis que soubéssemos e, quanto às coisas cujo conhecimento permitiu aos mais sábios nesta vida ou reservou para os perfeitos na outra, confesso serem superiores a minhas faculdades. Julguei-me, porém, na obrigação de apontá-las, com o fim preciso de que os leitores destas páginas reparem nas questões difíceis que é necessário evitar e não se julguem capacitados para tudo, mas, pelo contrário, prestem a obediência devida a este salutar preceito do Apóstolo: Pelo que vos exorto a todos vós, em virtude do ministério que me foi dado, a que em vosso saber não vos levanteis mais alto do que deveis, mas vos contenhais dentro dos limites da moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada qual. Quando à criança se dá alimento de acordo com suas possibilidades, à medida que cresce se torna mais capaz; quando, porém, se lhe dá mais do que pode receber, em lugar de crescer, míngua. CAPÍTULO XVI Como se deve entender a promessa de vida eterna, feita por Deus ao homem antes dos tempos eternos? Confesso minha ignorância a respeito do número de séculos transcorridos antes da criação do gênero humano; não me cabe, porém, a menor dúvida de que não há criatura alguma coeterna com o Criador. O próprio Apóstolo fala de tempos eternos, não de futuros, porém, o que é mais de maravilhar, de passados. Diz assim: Em esperança da vida eterna, que prometeu antes de tempos eternos. Deus, que não mente, manifestando a seu tempo seu Verbo. Eis que disse que houve no passado tempos eternos, que, entretanto, não foram coeternos com Deus. Se é certo que antes desses tempos eternos Deus não apenas existia, mas, além disso, prometeu a vida eterna, manifestada no devido tempo, que prometeu senão seu Verbo? E Ele a vida eterna. E como tal promessa foi feita a homens que antes dos tempos eternos não existiam? E que o que havia de suceder no tempo estava prefixado na eternidade de Deus e no Verbo, coeterno com Ele. CAPÍTULO XVII Sentir da reta fé sobre o juízo ou vontade imutável de Deus. Contra os que sustentam o eterno retorno das obras divinas. l. Tampouco duvido que antes da criação do primeiro homem não existiu jamais homem algum e nem ele mesmo nem outro semelhante se reproduziu não sei quantas vezes em virtude de tais circuitos. Nem me dissuadem dessa crença os argumentos dos filósofos. O mais sutil de todos eles, ao que parece, consiste em dizer que a ciência não pode compreender coisas infinitas. Por isso, segundo afirmam, Deus tem em si as razões finitas de todos os seres finitos que criou. É preciso, pois, acreditar, dizem, que sua bondade nunca esteve ociosa, a não ser que venha a ser temporal a atividade daquele cuja inação antes foi eterna, como se se houvesse arrependido do tempo de sua ociosidade primeira sem princípio e então começasse a obrar. É necessário, por conseguinte, prosseguem, que se repitam sempre as mesmas coisas e passem para repetir-se sempre, quer permanecendo mutável o mundo, que foi criado, embora haja sempre existido sem princípio de tempo, quer repetindo-se e devendo repetir-se nesses circuitos seu nascimento e seu ocaso. Porque receio que, se dissermos haverem as obras de Deus começado em algum tempo, pensem que de certo modo lhe condeno a ociosidade primeira sem princípio, por inativa, sem sentido e desagradável a Ele, e que por isso mudou de opinião. Contudo, se se pretende que sempre esteve realizando coisas temporais, mas umas depois de outras, e chegou assim, em determinado tempo, à criação do homem, que não fizera antes, parecerá não haver agido com ciência, que, segundo eles, não pode compreender coisas infinitas, mas como que de súbito, ao acaso, com certa indecisão fortuita. Portanto, se se admitem os circuitos, acrescentam, em que sempre se repitam as mesmas coisas temporais, quer permanecendo o mundo, quer enredando em tais circuitos seus nascimentos revolúveis e seus ocasos, não se atribui a Deus nem apoucado ócio, sobretudo de tão grande duração, sem princípio, nem imprevista temeridade em suas obras. Porque, se não se repetem sempre as mesmas coisas, por sua ciência ou presciência não podem ser compreendidas essas coisas infinitas de diversidade vária. 2. Se a razão é incapaz de refutar semelhantes argumentos, com que os ímpios se esforçam em desviar do caminho reto a singela piedade, para andarmos de lá para cá em companhia deles, pelo menos a fé deve desdenhá-los. Uma prova manifesta que vem como que reforçar a fé em Deus, Senhor nosso, rompe o referido círculo de revoluções imaginárias. Seu erro consiste em preferirem andar em falsos circuitos a seguir o caminho reto, porque medem a mente divina, absolutamente imutável, infinita e capaz de numerar todas as coisas inumeráveis, sem mudar de pensamento, medem-na, dizíamos, pela sua, humana, mutável e limitada. E, claro está, sucede-lhes o que diz o Apóstolo: Comparando-se a si mesmos consigo mesmos, não entendem. Porque qualquer coisa que lhes vem à mente a executam com nova resolução (são portadores de mentes mutáveis); sem dúvida, pensando não em Deus, em quem não podem pensar, mas em si mesmos; se comparam não a Ele, porém, a si mesmos, e não com Ele, e sim consigo mesmos. Quanto a nós, todavia, nossa fé não nos permite acreditar seja Deus afetado de um modo quando não age e doutro quando age, pois dele não se deve dizer seja afetado, no sentido de em sua natureza se produzir algo que antes não existia. Com efeito, ser afetado é padecer, padecer é ser mutável. Por conseguinte, no repouso de Deus não se imagine haver preguiça, desídia ou inércia, nem trabalho, esforço ou aplicação em suas obras. Sabe atuar em repouso e repousar em obras. Pode fazer nova obra sem nova resolução, somente com a eterna, e, quando põe mãos à obra, não é porque se arrependa do primeiro repouso. Se, contudo, primeiro esteve em repouso e depois agiu (não sei como o homem poderá entendê-lo), dito assim, primeiro e depois, é fora de dúvida que se refere às coisas primeiro inexistentes e depois existentes. Em Deus, porém, a vontade subsequente não modifica ou destrói a vontade precedente; pelo contrário, em virtude de uma só e mesma vontade, eterna e imutável, fez com que as coisas criadas primeiro, enquanto não eram, não fossem e depois, quando começaram a ser, fossem. Talvez com isso estivesse mostrando, de maneira admirável, aos capacitados para entender tais lições não ter necessidade das criaturas e havê-las criado por pura bondade, visto como sem elas, desde eternidade sem princípio, gozou de felicidade sem míngua. CAPÍTULO XVIII Contra os que sustentam que nem a ciência de Deus é capaz de compreender coisas infinitas. Dizer que nem a ciência de Deus é capaz de compreender as coisas infinitas é o que lhes falta ao atrevimento, para precipitar-se na voragem de profunda impiedade, que afirma não conhecer Deus todos os números. É muito certo que são infinitos. Com efeito, seja qual for o número que pretendas formar, não apenas pode aumentar pela adição de uma unidade, mas também, por maior que seja e por mais prodigiosa que seja a quantidade que encerra em si a razão e ciência dos números, não somente pode ser duplicada, mas também multiplicada ao infinito. O número é limitado por suas propriedades, de sorte que nenhum deles pode ser idêntico a outro. Logo, entre si são díspares e diversos; em particular, finitos; todos juntos, infinitos. Tal infinidade conjunta de todos os números é que escapa à ciência de Deus, que compreende certa quantidade de números e ignora os demais? Quem o dirá, por mais louco que esteja? Não creio que se atrevam a desprezar os números e a dizer não serem objeto da ciência divina, porquanto Platão, que é dos seus, lhes mostra Deus fabricando o mundo com os números. Lemos que se disse a Deus: Tudo dispuseste com medida, número e peso. Dele diz também o profeta: Forma o mundo com número. E o Salvador no Evangelho: Todos os vossos cabelos estão contados. Assim, pois, longe de nós duvidar que não conheça todo número Aquele cuja inteligência, como canta o Salmo, não tem número. Assim, embora não haja número possível para os números infinitos, a infinidade do número não poderia ser incompreensível Aquele cuja inteligência não tem número. Se, por conseguinte, o compreensível é finito na inteligência que compreende, é certo que toda infinidade é de maneira inefável finita em Deus, pois não há, em absoluto, infinidade incompreensível à sua sabedoria. Se a infinidade dos números não pode ser infinita para a ciência de Deus, que os compreende, que somos nós, pobres homens, para atrever-nos a limitar-lhe a ciência, dizendo que, se as mesmas coisas temporais não se repetem pelos mesmos circuitos, Deus não pode ter presciência das coisas, para fazê-las, nem conhecê-las, depois de feitas? Sua sabedoria, simples na multiplicidade e uniforme na variedade, de todos os incompreensíveis tem compreensão de tal maneira incompreensível, que, se sempre quisesse produzir coisas novas e seres diferentes, não poderia produzi-los sem ordem e sem previsão, nem haveria nele subitaneidade de previsão, mas eternidade de presciência. CAPÍTULO XIX Os séculos dos séculos. Não me atrevo a decidir se os chamados séculos dos séculos são os que se sucedem em sucessão contínua e correm em ordenada desordem, permanecendo sem fim as almas, já livres da miséria, em bem-aventurada imortalidade, ou se por séculos dos séculos devemos entender os séculos que se mantêm estáveis e fixos na sabedoria de Deus e são como que causas eficientes dos séculos que o dente do tempo rói. Quem sabe se dizer século equivale a dizer séculos, caso em que século do século significaria o mesmo que séculos dos séculos, como céu do céu equivale a céus dos céus na linguagem das Escrituras. Com efeito, Deus chamou céu ao firmamento que se estende acima das águas; entretanto, exclama o Salmista: Louvem o nome do Senhor as águas que se encontram acima dos céus. É questão muito intrincada determinar qual a verdadeira interpretação ou se, além dessas duas e à margem delas, cabe alguma outra. Mas pouco importa à presente questão diferirmos a discussão da outra, quer porque nos falte a força necessária para resolvê-la, quer porque, na obscuridade desses terríveis problemas, o receio de emitir decisão temerária nos redobre ainda mais a prudência. Agora estamos tratando da hipótese das revoluções eternamente periódicas. Ora, seja qual for o verdadeiro sentido da expressão "séculos dos séculos" , dele nada se infere a favor da referida hipótese ou contra. E nada se infere porque, quer por séculos dos séculos não se entenda a repetição deles, mas sua sucessão na mais ordenada série, sem que nenhum retorno ameace a imutável beatitude das almas liberadas, quer "séculos dos séculos" signifique a Eternidade motora do Tempo, tais circuitos, que repetem sempre a mesma coisa, não passam de puras quimeras, que em especial a vida eterna dos santos refuta. CAPÍTULO XX Impiedade dos que pretendem que as almas participes da beatitude autêntica e suprema hão de retornar em eterno circuito às misérias e aos trabalhos. 1. Que ouvidos piedosos poderão ouvir, sem ofender-se, que depois de vida tão repleta de misérias (se é que na realidade merece o nome de vida esta, que antes é morte, tão profunda, que o amor a semelhante morte nos faz recear a morte, que nos livra dela), depois, repito, de tantos males, tão enormes e horrendos, expiados e finalizados algum dia, graças à verdadeira religião e à sabedoria, chegarão à presença de Deus e se tornarão felizes pela contemplação de sua luz incorpórea, participando de sua imutável imortalidade, que desejamos ardentemente conseguir, de tal modo que hão de abandoná-la algum dia? E, o que é mais, arrojados dessa eternidade, dessa verdade e dessa felicidade, serão implicados em mortalidade infernal, em torpe estultícia, em execráveis misérias, em estado, em suma, em que se perdeu a Deus, em que se possui com ódio a verdade e em que se busca a felicidade por meio de impuras maldades. E isso, uma e outra vez, sem antes nem depois, sem passado nem futuro, de quando em quando. E tais circuitos estarão em constante ida e vinda através de nossa falsa felicidade e de nossa verdadeira miséria, para que Deus possa conhecer suas obras, porque não poderá cessar de agir nem de tentar conhecer as coisas infinitas. Quem prestará ouvidos a isso? Quem o acreditará? Quem o tolerará? Embora fosse verdade, haveria não somente mais prudência em silenciá-la, como também, se me atrevo a exprimir assim meu pensamento, mais ciência em ignorá-la. Porque, se no lado de lá não nos lembraremos disso e por isso seremos felizes, por que neste, por causa de conhecê-lo, mais se agrava nossa miséria? E, se na outra vida haveremos de sabê-lo necessariamente, desconheçamo-lo, pelo menos, nesta, a fim de que seja mais feliz aqui a expectação que ali a consecução do bem supremo, porque aqui se espera a consecução de vida eterna e ali se sabe que algum dia havemos de perder essa vida feliz que não é eterna. 2. E, se insistem em que ninguém pode alcançar à felicidade, sem nesta vida haver sido iniciado no conhecimento de tais circuitos, em que alternam a felicidade e a miséria, como reconhecem que quanto maior for o amor de Deus, tanto mais facilmente se chegará à felicidade, quando ensinam coisas capazes de esfriar o amor? Com efeito, quem não amará mais frouxa e friamente Aquele que sabe há de necessariamente perder, Aquele cuja verdade e sabedoria deverá contradizer, depois de haver possuído, com a perfeição da beatitude, seu pleno conhecimento, se pessoa alguma pode amar fielmente determinado amigo, sabendo que algum dia há de ser seu inimigo? Longe de nós acreditar ser verdade que nos ameaça miséria real e sem fim, que, mesclada com falsa felicidade, há de ir alternando frequentemente e sempre! Que mais enganoso e falso que uma felicidade em que, no seio das mais vivas luzes, desconheceremos nossa miséria ou, já no gozo de inexcedível ventura, temeremos ser no futuro miseráveis? Se devemos ignorar a miséria que nos ameaça, nossa miséria é mais sábia aqui, onde conhecemos a felicidade vindoura. E, se ali não se ocultará de nós a miséria que nos ameaça, a alma miserável será mais feliz no tempo, porque, passado, se alçará à felicidade, que a alma feliz, pois, passado o tempo, voltará à miséria. Assim, a esperança de nossa infelicidade é feliz e a esperança de nossa felicidade, infeliz; donde resulta que, se sofremos aqui os males presentes e ali tememos os futuros, dizer que podemos ser sempre miseráveis é mais verdade que acreditar que algum dia seremos felizes. 3. Mas o clamor da piedade e a voz da verdade intimam-nos que isso é falso (pois se nos promete a verdadeira felicidade, de cuja estabilidade certa jamais devemos duvidar e a que nenhuma infelicidade inquina). Seguindo, pois, o caminho reto, que para nós é Cristo, e sendo Ele nosso Guia e Salvador, viremos a senda da fé e da mente em direção contrária ao néscio e vão circuito dos ímpios. Se o platônico Porfírio não quis admitir semelhante opinião dos seus a respeito dos circuitos e das incessantes idas e vindas das almas, quer movido pela vaidade do tema, quer porque mau grado seu já respire o ar do cristianismo, e, como mencionei no Livro Décimo, preferiu pensar haja a alma sido enviada ao mundo para conhecer o mal e, de retorno ao seio do Pai, para sempre livre e pura, planar sobre seus ataques, quanto mais devemos nós cristãos detestar e evitar semelhante falsidade, contrária à fé cristã! Desvanecido e frustrado o efeito de tais circuitos, nada nos obriga a crer que o gênero humano não tenha tido princípio de tempo, a partir do qual começou a existir, sob pretexto de conhecer por não sei que círculos nada haver nos seres que não houvesse existido antes e depois se haja realizado. Se, por conseguinte, a alma que não há de voltar às misérias se vê livre, como nunca antes se vira, produz-se nela algo novo e grandioso, a saber, que sua felicidade eterna não terá fim. E, se a natureza imortal é sujeito de tão estupenda novidade, não repetida nem repetível em circuito algum, por que sustentar que não possam também sê-lo as coisas mortais? Se replicam não ser nova a felicidade na alma, visto retomar ao que sempre fora, é certo ao menos que a libertação é nova, ao ver-se livre da miséria em que nunca esteve, e é nova também a miséria, porque jamais a teve. Se, porém, tal novidade não entra na ordem das coisas, regidas pela divina Providência, mas se deve à pura casualidade, pergunto: Onde se acham tais circuitos determinados e medidos que excluem toda novidade, porque sempre repetem coisas que já existiram? E, se essa novidade não está fora da ordem da Providência, quer a alma haja sido enviada, quer haja caído por si mesma podem suceder coisas novas que nem antes existiram nem são estranhas à ordem do universo. Se à alma pode, por sua imprevisão, sobrevir nova miséria, não imprevista pela divina Providência, pois também estaria incluída na ordem das coisas, Providência que dela não improvidamente a livrasse, por que vã temeridade humana ousaremos negar possa Deus fazer coisas novas, não para si, mas para o mundo, coisas que nem antes fizera, nem jamais deixou de prever? Mas, reconhecendo que as almas libertadas não retomarão à miséria, porém, que isso não é nada novo nos seres, porque sempre uns e outros foram, são e serão libertados, admitam sempre que, se é assim, se fazem novas almas e para elas há nova miséria e nova libertação. Se afirmam que as almas, de que diariamente surgem novos homens, são as antigas que sempre existiram, susceptíveis de ver-se livres dos corpos, se houvessem vivido sabiamente, de modo que não tornariam às misérias, hão de admitir serem infinitas. O motivo é que, por maior que seja o número, seria insuficiente para fazer sempre homens em infinitos séculos atrás, sobretudo porque suas almas deviam ser sempre libertadas desta mortalidade e nunca haviam daí por diante de tornar a ela. Tampouco explicarão como é possível número infinito de almas, se, para Deus poder conhecê-los, os seres, segundo eles, são finitos. 4. Por isso, depois de estudados os circuitos que levam a alma a tornar necessariamente às mesmas misérias, que há mais conforme com a piedade que acreditar não ser impossível a Deus fazer coisas novas, nunca antes feitas, e a sua inefável presciência pôr sua vontade a salvo de toda mudança? Quanto a saber se pode aumentar cada vez mais o número das almas libertadas, que jamais hão de tornar a suas misérias, decidam aqueles que, para fixar limites às coisas, com tamanha sutileza discorrem. Quanto a mim, concluo por este dilema: Se pode, por que negar haja podido ser criado o que antes nunca fora, se o número de almas libertadas, que antes nunca existiu, não apenas é feito uma vez, mas nunca deixa de fazer-se? Ou, então, se é necessário haver certo número determinado de almas libertadas, que nunca mais tornarão à miséria, e esse número não aumentar, tampouco este, seja qual for, nunca existiu antes. E indubitável, ademais, não poder crescer nem chegar ao termo de sua quantidade, sem ter princípio. E tal princípio, como ele, antes jamais existiu. Para que existisse, foi criado o homem, antes de quem não existiu nenhum. CAPÍTULO XXI Criação do primeiro homem e, nele, do gênero humano. Após resolver, quanto me foi possível, esse terrível problema, em que se trata de conciliar a eternidade de Deus com a novidade dos seres por Ele criados sem novidade de vontade, não é custoso compreender haver sido muito melhor o que se fez, quer dizer, multiplicar, a partir de um homem apenas, o gênero humano, que havê-lo iniciado por muitos. Ao criar os animais, solitários e solívagos uns, em certo sentido, isto é, amigos da solidão, como as águias, os milhanos, os leões, os lobos, etc., gregários outros, que preferem viver em clãs e em rebanhos, como as pombas, os estorninhos, os cervos, os gamos e assim por diante, não os fez propagar-se de um só de cada espécie, mas ordenou existissem muitos ao mesmo tempo. Quanto ao homem, chamado, por criação, natural, a ocupar lugar entre os anjos e os irracionais, Deus criou apenas um. Criou-o, porém, de tal forma, que, se sujeito a seu Criador, como a verdadeiro Senhor, lhe cumprisse piedosa e obedientemente os preceitos, passaria sem morrer, em companhia dos anjos, a gozar de imortalidade feliz e eterna, mas se, pelo contrário, usando soberba e desobedientemente do livre-arbítrio, ofendesse o Senhor seu Deus, seria sujeito à morte e viveria bestialmente, escravizado pela libido e destinado depois a suplício eterno. Deus fê-lo um e só, não para privá-lo da sociedade humana, e sim para encarecer-lhe sempre mais a unidade social e o vínculo da concórdia, que aumentaria, se os homens não se unissem apenas pela semelhança da natureza, mas também pelos laços de parentesco. Tanto é verdade, que não quis, como fez com o homem, criar a mulher que lhe serviria de companheira, mas formou-a dele, para todo o gênero humano propagar-se a partir de um homem apenas. CAPÍTULO XXII Deus previu o futuro pecado do homem e ao mesmo tempo o número de homens que sua graça haveria de salvar. Deus não ignorava que o homem haveria de pecar e, sujeito à morte, a propagaria aos mortais, cuja desvergonha pecadora iria tão longe, que os brutos privados de vontade racional, procedentes das águas e das terras, viveriam entre si mais tranquila e pacificamente que os homens, oriundos de um só, para encarecimento da concórdia. Nunca entre si os leões ou entre si os dragões pelejaram como entre si os homens. Mas previa também a multidão de fiéis que por sua graça haviam de ser chamados à adoção e, depois de justificados pela remissão dos pecados, operada pelo Espírito Santo, seriam, uma vez destruída a morte, seu derradeiro inimigo, associados aos santos anjos. A essa piedosa multidão havia de ser útil considerar esse ponto, ou seja, haver Deus feito procederem de um só todos os homens para testemunhar quão agradável lhe era a união entre muitos. CAPÍTULO XXIII Natureza da alma humana, criada à imagem de Deus. Deus fez o homem à sua imagem e deu-lhe alma, dotada de razão e de inteligência, que o tornava superior a todos os restantes animais terrestres, nadadores e voadores, destituídos de mente. E, depois de haver do pó da terra formado o homem e, soprando, haver-lhe insuflado alma, quer a houvesse feito antes, quer ao soprar, como dissemos, e quisesse que o sopro que, soprando, produziu (que é soprar senão produzir sopro?) fosse a alma do homem, deu-lhe companheira como auxiliar para a geração, formando-a, como Deus, de uma costela de Adão. Isso não deve ser imaginado segundo a usança carnal, como costumamos ver nos artistas, que com as próprias mãos fabricam de matéria terrena tudo quanto seu engenho e arte lhes apresentam. A mão de Deus é seu poder, artista invisível das coisas visíveis. Mas os que tomam como rasoura do poder e Sabedoria de Deus, pela qual conhece e é capaz de sem germes produzir os próprios germes, essas obras cotidianas e correntes, consideram tudo fabuloso e não verdadeiro. Todavia, imaginam infielmente as naturezas primeiro criadas, porque não as conheceram, como se as que conheceram, como, por exemplo, a concepção e o nascimento dos homens, se narrassem aos que não têm experiência delas, não lhes pareceriam mais incríveis, embora a maioria deles as atribuam antes a causas naturais que à operação da mente divina. CAPÍTULO XXIV Podem os anjos ser criadores de alguma natureza, por mínima que seja? Nestes livros nada temos a discutir com os que não creem seja este mundo obra da Inteligência divina e objeto de sua providência. Quanto àqueles que, à sombra de Platão, sustentam que todos os animais mortais, entre os quais o homem tem lugar preeminente e próximo dos deuses, não são obra de Deus supremo, autor do mundo, mas dos deuses inferiores, por Ele criados, que os fazem com sua permissão e mandato, se carecem dessa superstição que os leva a buscar justificação aparente do culto e dos sacrifícios que lhes oferecem como a criadores seus, livrar-se-ão também do erro de semelhante opinião. É sacrilégio crer ou dizer, mesmo antes de entendê-lo, haver, além de Deus, outro criador de algum ser, por mínimo e mortal que seja. Os anjos, nome que preferem dar aos deuses, embora concorram para o desenvolvimento dos seres no mundo, de acordo com a ordem ou permissão que hajam recebido, chamamo-los criadores dos animais, mas no mesmo sentido em que os lavradores são criadores dos frutos e das árvores. CAPÍTULO XXV Toda natureza e toda espécie criatural é obra de Deus. Uma é a espécie exterior, comunicada à matéria corporal, como a que produzem os oleiros, artesões e outros artistas, que forjam e imitam formas semelhantes aos corpos dos animais; outra a interior, encerrada nas causas eficientes da fonte misteriosa e oculta da inteligência e da vida, que não apenas constitui as espécies corporais das naturezas, mas também forma as almas dos seres animados. A espécie exterior, enquanto não realizada, pode ser atribuída a qualquer artista; por outro lado, a interior somente pode ser atribuída a um só artista, a Deus, Criador e Autor, que fez o mundo e os anjos sem necessidade do mundo nem dos anjos. A virtude divina e, por assim dizê-lo, efetiva, que não sabe ser feita, mas fazer, que, ao criar o mundo, deu aparência redonda ao céu e ao Sol, essa mesma deu aparência redonda ao olho, à maçã e às outras formas naturais, configuradas não externamente, e sim pelo poderio íntimo do Criador, que disse: Encho o céu e a terra e cuja sabedoria alcança de uma extremidade à outra com força e tudo dispõe com suavidade. Ignoro, na verdade, qual o serviço que os anjos prestam ao Criador dos demais seres e, como não me atrevo a atribuir-lhes poder que talvez não tenham, tampouco devo privá-los do que têm. Contudo, a criação e a constituição das naturezas que as fazem serem tais, seja qual for seu concurso, atribuo-as a Deus, a quem também os anjos reconheceram, com ação de graças, dever o ser. Com efeito, não dizemos que os lavradores são criadores de quaisquer frutos, porque lemos: Nem o que planta é algo, nem o que rega, mas Deus, que dá o desenvolvimento, nem damos tal nome à terra, mãe fecunda, segundo parece, de todas as coisas, que vigoriza as que brotam de seus germens e as mantém fixas pelas raízes, porque de igual modo lemos: Deus dá-lhe o corpo segundo quer e a cada uma das sementes o corpo que lhe é próprio. Não devemos, do mesmo modo, dizer que a mãe é criadora dos filhos, e sim Aquele que disse a um de seus servos: Conheci-te antes de formar-te no ventre materno. E, embora a imaginação da mãe possa produzir no feto certas impressões particulares, como Jacó fez com as varas de várias cores, para gerarem animais de cores diferentes, a alma não fez a natureza gerada como não fez a si mesma. Sejam quais forem as causas corporais ou seminais na geração, mediatizadas pelos anjos, pelos homens, por quaisquer outros animais ou pela união carnal do homem e da mulher, e seja qual for o poder dos desejos e dos movimentos da alma da mãe, para no feto imprimir determinados traços ou cores, as naturezas, impressionadas desta ou daquela maneira, não as faz senão o soberano Deus. Seu oculto poder, presente em todos os seres com presença incontaminável, dá o ser a quanto de algum modo é e em quanto é, pois, se não lho desse, não apenas não seria tal ou qual ser, mas também careceria, em absoluto, de ser. Por isso, se na ordem da espécie exterior que os artistas comunicam aos corpos, não dizemos haverem Roma e Alexandria tido por fundadores seus operários e arquitetos, e sim os reis que conceberam, decidiram e ordenaram fossem edificadas, Rômulo aquela e esta Alexandre, quanto mais devemos dizer que unicamente Deus é o Criador das naturezas, por não fazer algo de matéria não feita por Ele nem ter outros obreiros senão os criados por Ele, que, se das coisas retira seu poder, por assim dizer, de fabricar, se fundirão no não ser em que jaziam antes de ser-lhes dado! Digo antes, note-se bem, em eternidade, não em tempo. Pois é outro o criador dos tempos e não o mesmo que fez as coisas, cujos movimentos formam os tempos? CAPÍTULO XXVI Opinião dos platônicos. Deus, segundo eles, é o criador dos anjos, que por sua vez são criadores dos corpos humanos. Platão foi de parecer que os deuses inferiores, criados pelo soberano Deus, são autores dos animais, no sentido de haverem recebido deles o aperfeiçoamento da parte mortal e do Deus supremo a parte imortal. Assim, quis fossem criadores, não das almas, mas dos corpos. Donde se segue que, posto Porfírio afirmar que para a purificação da alma todo corpo deve ser evitado e, ao mesmo tempo, pensar, com Platão e outros platônicos, que aqueles que viveram sem controle moral e sem freios tornarão, como castigo de suas faltas, a corpos mortais, de irracionais, segundo Platão, ou de homem, segundo Porfírio, os pretensos deuses, a quem querem rendamos culto como a criadores e autores de nosso ser, não passam de autores de nossas grilhetas e de nossas prisões, não criadores, mas carcereiros e gente que nos prende em cárceres penosos e a grilhões muito duros. Logo, deixem os platônicos de apresentar o corpo à alma como verdadeiro suplício ou não venham pregar-nos como dignos de culto deuses cujas obras em nós nos exortam a fugirmos e esquivarmos com todas as nossas forças. No fundo, ambas as opiniões são falsíssimas, pois nem as almas expiam suas penas, retomando a esta vida, nem é outro o Criador dos viventes do céu e da terra senão o Autor do céu e da terra. Se, por conseguinte, não há outro motivo para vivermos neste corpo senão o de os suplícios cobrirem-nos de vergonha, como diz Platão que o mundo, se não fosse povoado de toda sorte de animais, mortais e imortais, não haveria jeito de fazê-lo mais belo e mais perfeito? Se nossa criação, mesmo na ordem dos seres mortais, é dom de Deus, como há de ser castigo regressar a tais corpos, quer dizer, a tais dons de Deus? E se Deus, tema muito trilhado por Platão, continha em sua inteligência eterna as espécies todas, tanto do mundo como dos animais, por que não haveria Ele de criar todas as coisas? Ou será que não queria ser autor de algumas delas, tendo sua mente inefável e inefavelmente digna de louvor a arte necessária para criá-las? CAPÍTULO XXVII No primeiro homem esteve encarnada toda a plenitude do gênero humano. Nele Deus previu os escolhidos e os condenados. 1. Com razão, pois, é que a verdadeira religião o reconhece e o proclama Criador de todo o mundo e de todos os animais, quer dizer, das almas e dos corpos. Entre os animais terrenos ocupa o primeiro lugar o homem, feito por Deus à sua imagem, e feito um só, mas não deixado só, pela razão que assinalei e talvez por outra melhor ainda, mas oculta. Nenhum animal existe mais feroz por vício, nem mais social por natureza. A natureza humana não falaria com maior expressividade contra o vício da discórdia, quer para precaver a inexistente, quer para sanar a existente, que trazendo à lembrança o primeiro pai, de quem Deus, tendo-o criado único; fez procederem os demais homens. Tal recordação conservaria concorde entre muitos a unidade. O próprio nascimento da mulher, feita de costela do homem, também nos adverte da grande estima em que deve ser tida a união entre o marido e a mulher. Essas obras de Deus são estranhas, por serem as primeiras. Quem não acredita nelas não deve crer em prodígio algum, porque, se ocorressem de acordo com o curso ordinário da natureza, não se chamariam prodígios. Produz-se porventura algo inútil sob a providencial administração de Deus, embora sua causa se oculte de nós? Diz um dos salmos sagrados: Vinde e observai as obras do Senhor e os prodígios que fez na terra. Noutro lugar direi por que a mulher foi feita da costela do homem e de que era figura esse primeiro prodígio. 2. Agora, como devemos encerrar este livro, que já está pedindo fim, consideremos que no primeiro homem, o primeiro criado, tiveram origem, não à luz da evidência, é certo, mas, pelo menos, segundo a presciência de Deus, duas sociedades de homens ou duas espécies de cidades. Dele haviam de proceder os homens; uns seriam, por oculto, mas justo juízo de Deus, companheiros de suplícios dos anjos maus; outros, companheiros dos bons na glória, porque, como está escrito que todos os caminhos do Senhor são misericórdia e justiça, nem sua graça pode ser injusta nem sua justiça cruel. LIVRO DÉCIMO TERCEIRO Prova-se nele que a morte dos homens é castigo e se originou do pecado de Adão. CAPÍTULO I A queda do primeiro homem é a causa da morte. Já desembaraçados dessas difíceis questões sobre a origem do mundo e sobre o princípio do gênero humano, o plano da obra exige-nos abordar o problema da queda do primeiro homem, ou melhor, dos primeiros homens e da origem e propagação da morte. Deus, com efeito, não criara os homens nas mesmas condições que os anjos, quer dizer, de forma que, se pecassem, não pudessem morrer. Criou-os de tal sorte que os cumpridores fiéis de sua obediência passariam, sem mediar a morte, à imortalidade angélica e eternidade feliz; quanto aos desobedientes, a morte ser-lhes-ia justo castigo e justa condenação. E o que já observamos no livro anterior. CAPÍTULO II A morte da alma e a do corpo. Mas trata-se de meditar mais profundamente sobre a própria natureza da morte. Embora tenha, na realidade, a certeza de ser imortal, tem a alma humana também certa morte, que lhe é própria. Chama-se imortal justamente porque, de certa maneira, jamais deixa de viver e de sentir, ao passo que o corpo se diz mortal porque pode ser privado de toda vida e por si mesmo carece dela. Dá-se a morte da alma quando Deus a abandona, como a do corpo acontece quando a alma se afasta. Logo, a morte de ambos, quer dizer, do homem todo, sucede quando a alma, abandonada por Deus, abandona o corpo. Então, nem ela vive de Deus nem o corpo vive dela. A morte do homem total segue-se aquela que a autoridade da Palavra divina chama segunda morte. Desta fala o Salvador, quando diz: Temei Aquele que tem poder para arrojar o corpo e a alma no Inferno. Como tal ameaça não surte efeito antes de a alma unir-se ao corpo, sem que rompimento algum possa separá-los, parecerá estranho dizer que o corpo perece por morte que não consiste em ser abandonado pela alma, mas em ser atormentado, estando animado e sendo senciente. Porque é razoável dizer que a alma morre nesse último e eterno suplício, de que mais acuradamente falaremos no devido lugar, pois não vive de Deus. Como, porém, dizer que morre o corpo, vivendo a alma? É certo não poder sentir doutro modo as dores corporais que seguirão à ressurreição. Ou será que, sendo a vida, seja qual for, inegável bem e verdadeiro mal a dor, não se deve dizer que vive o corpo, por não ser a alma a causa de sua vida, mas de sua dor? A alma, por conseguinte, vive de Deus, quando vive bem, e não pode viver bem, se Deus nela não opera o que é bom. O corpo todo vive da alma, quando a alma vive no corpo, quer ela viva de Deus, quer não. A vida dos ímpios nos corpos é vida, não das almas, mas dos corpos, vida que lhes comunicam mesmo as almas mortas, quer dizer, abandonadas por Deus, sem perder sua vida própria, seja qual for, pela qual são imortais. Contudo, na derradeira condenação, embora seja verdade que o homem não deixará de sentir, como tal sensação não será o encanto da volúpia nem o bem-estar do repouso, mas o aguilhão das dores vingadoras, não carece de razão dar-lhe o nome de morte e não de vida. E o de morte, ademais, segunda, porque acontece depois da primeira, que consiste em rompimento da união existente entre duas naturezas, a de Deus e a alma ou a da alma e a do corpo. Sobre a primeira morte do corpo pode-se dizer que para os bons é boa e má para os maus. Mas a segunda, como não é para os bons, está fora de dúvida não ser boa para ninguém. CAPÍTULO III É pena também para os justos a morte, transmitida a toda a humanidade pelo pecado dos primeiros homens? Aqui se apresenta nova questão, que não se deve desprezar: É realmente boa para os bons a morte, que consiste na separação do corpo e da alma? E, se assim é, como é possível chegar à conclusão de que constitui pena do pecado? Porque é certo que os primeiros homens, se não houvessem pecado, não a teriam sofrido, Como pode ser boa para os bons, se apenas pode suceder aos bons? Por outro lado, caso não pudesse sobrevir senão aos maus, não deveria ser boa para os bons, mas, ao contrário, não deveria existir para eles. Por que deveria haver pena onde não havia males que castigar? Por Isso é preciso admitir haverem os primeiros homens sido criados em tal estado, que, se não pecassem, não sofreriam gênero algum de morte, porque, em havendo pecado, foram punidos com morte que por Isso mesmo se tornaria extensiva a todos os seus descendentes. A razão é que deles não nasceria outra coisa senão o que fossem. A enormidade da culpa e a consequente condenação corromperam a natureza e veio a ser natural nos descendentes o que nos primeiros homens pecadores precedeu como castigo. Com efeito, o homem não procede do homem, como o homem procedeu do pó. Na criação do homem do pó foi a matéria e na geração do homem o pai é o homem. Por isso a carne não é da mesma natureza da terra, embora haja sido feita da terra; por outro lado, o filho é homem tal qual o pai. Todo o gênero humano, que havia de passar à posteridade por meio da mulher, estava no primeiro homem, quando a união dos cônjuges recebeu de Deus a sentença que os condenou. E tal foi, não no momento de sua criação, mas no momento de seu crime e de seu castigo, tal se reproduz nas mesmas condições originais de morte e de pecado. Não que a falta ou o castigo tenha reduzido o primeiro pecador à estupidez, à fraqueza de espírito e de corpo que notamos nas crianças, semelhantes aos filhotes dos animais quando nascem, pois Deus precipitou seus pais na vida e na morte dos brutos. Assim está escrito: O homem, constituído em honra, não teve discernimento. Igualou-se aos brutos, destituídos de entendimento, e fez-se como um deles. Observemos, ademais, serem as crianças, no uso e movimento de seus membros e em seu sentido de apetecer e evitar, mais delicadas que os animaizinhos mais tenros, como se a virtualidade do homem se lançasse ao alto sobre os restantes animais tanto mais quanto mais se retraíra seu impulso, como a flecha quando se retesa o arco. Não foi, portanto, despenhado ou impelido o primeiro homem, por sua injusta pretensão e por justa condenação, a essa rudeza infantil; acontece que nele a natureza humana ficou de tal maneira viciada e mudada, que em seus membros sentia lutar a desobediência concupiscencial e se viu constrangida a morrer necessariamente. E assim, por haver-se feito assim por vício e por castigo, gerou seres sujeitos ao pecado e à morte. Se do vínculo do pecado a graça do Mediador desliga as crianças, estas apenas podem sofrer a morte que o corpo separa da alma e, livres da obrigação do pecado, não passam à morte penal, sem fim. CAPÍTULO IV Por que estão sujeitos à morte, quer dizer, à pena do pecado, os que do pecado foram absolvidos pela graça da regeneração? Se há pessoa a quem inquiete o problema de saber por que padecem a morte, pena do pecado, aqueles cujo pecado foi perdoado pela graça, remeto-o à obra minha, intitulada Do Batismo das Crianças, em que se trata e se resolve tal ponto. Diz-se nela que se deixava a alma experimentar a separação do corpo, já perdoado o pecado, precisamente porque, se ao sacramento da regeneração seguisse de imediato a imortalidade do corpo, se enervaria a fé, que é cabalmente fé quando se espera em esperança o que ainda não se vê em realidade. Com o robustecimento e a luta pela fé, na idade madura havia, além disso, de ser superado o temor à morte, coisa que grandemente apareceu nos santos mártires. É inegável que não seria vitória nem glória do combate, pois nem mesmo poderia haver combate, se, depois do banho da regeneração, já santos, não pudessem sofrer a morte corporal. Quem não se daria pressa em levar os filhinhos a batizar justamente para que não fossem desligados do corpo? Desse modo não se provaria a fé com o prêmio invisível, mas, pelo contrário, já nem mesmo seria fé, porque se buscaria e se cobraria no mesmo instante a recompensa da obra. Na nova economia, contudo, por graça maior e mais admirável do Salvador, o castigo do pecado transformou-se em instrumento de justiça. Então se disse ao homem: Se pecas, morrerás. Agora se diz ao mártir: Morre para não pecar. Então se lhes disse: Se transgredis o mandamento, morrereis de morte. Agora se lhes diz: Se recusardes a morte, transgredireis o mandamento. O que então se devia temer, para não pecar, agora se deve aceitar, por medo de pecar. Assim, pela misericórdia inefável de Deus, a pena dos vícios vem a ser instrumento de virtude e o suplício do pecado se torna merecimento do justo. Então se adquiriu a morte, pecando; agora se aperfeiçoa a justiça, morrendo. Isso, todavia, aplica-se aos santos mártires, a quem se impunha a disjuntiva: desertar da fé ou sofrer a morte, porque os justos preferem padecer, crendo, o que os primeiros prevaricadores padeceram por não crer. Aqueles, se não houvessem pecado, não haveriam morrido; estes, se não morrem, pecarão. Aqueles morreram, porque pecaram; estes não pecam, porque morrem. A culpa daqueles acarretou a pena, a pena destes previne a culpa. E isso, não porque a morte, que antes foi mal, se haja transformado em bem, e sim porque Deus concedeu à fé a graça de que a morte, contrária à vida, haja passado a ser a ponte que conduz à vida. CAPÍTULO V Como os pecadores usam mal da lei, que é boa, assim os justos usam bem da morte, que é má. Querendo pôr em relevo o grande poder nocivo do pecado, na ausência da graça, o Apóstolo não duvidou em chamar força do pecado à lei que o proíbe. O aguilhão da morte, diz, é o pecado e a força do pecado é a lei. E com muitíssima verdade, porque a proibição aumenta o desejo de proceder mal, quando o amor à justiça não é tanto que seu gosto supere a cobiça de pecar. Mas somente a graça de Deus pode dar o amor e o gosto da verdadeira justiça. Entretanto, a fim de que o apelativo força do pecado dado à lei não faça pensar que a lei é má, diz noutro lugar, tratando do mesmo assunto: A lei é santa e o mandamento, santo, justo e bom. Então, o que é bom se transformou em morte para mim? De modo algum. O pecado é que, havendo-me causado a morte por meio de coisa boa, manifestou o que é, de maneira que, por motivo do mesmo mandamento, se fez o pecador ou o pecado sobremaneira maligno. Disse sobremaneira porque, quando aumenta a libido de pecar e a lei é desprezada, se acrescenta, além disso, a prevaricação. Por que o julgamos digno de ser citado? Porque, como a lei não é mal, quando acresce a concupiscência do pecado, assim a morte não é bem, quando aumenta a glória dos que a sofrem, quer se despreze aquela pela iniquidade e haja prevaricadores, quer se aceite esta pela verdade e haja mártires. A lei é boa justamente por ser proibição do pecado e a morte é má por ser o salário do pecado. Mas assim como os pecadores fazem mau uso não apenas dos males, mas também dos bens, assim os justos fazem bom uso não apenas dos bens, mas também dos males. Eis o porquê de os maus fazerem mau uso da lei, embora a lei seja um bem, e de os bons fazerem bom uso da morte, apesar de a morte ser um mal. CAPÍTULO VI O mal da morte consiste na ruptura da união existente entre a alma e o corpo. A morte do corpo e o que a constitui em tal, quer dizer, a separação da alma e do corpo, quando a sofrem os chamados moribundos, não é bem para pessoa alguma, porque o rompimento do unido e entrelaçado no vivente é duro para a sensibilidade e contrário à natureza, enquanto a alma habita o corpo, até perder-se todo o sentido procedente do enlace da alma com a carne. Às vezes, um só ferimento do corpo ou o rápido voo da alma atalha toda essa agonia e não permite senti-la, antecipando-se a hora. Seja qual for, por conseguinte, a crise em que dolorosa sensação acompanha a sensibilidade que se retira, o sofrimento piedoso e resignado aumenta o merecimento da paciência, porém não exclui a palavra pena. Assim, sendo a morte pena do que nasce, como ramo do primeiro tronco, se se mede pela piedade e pela justiça, se transforma em glória do que renasce e, sendo retribuição do pecado, às vezes consegue que nada se retribua ao pecado. CAPÍTULO VII A morte aceita pelos não batizados por confessarem Cristo. Com efeito, quantos morrem por confessarem Cristo, mesmo sem haverem recebido o banho da regeneração, têm morte que neles produz tantos efeitos, quanto à remissão dos pecados, quantos produziria o banho na fonte sagrada do batismo. Aquele que disse: Quem não renascer da água e do Espírito Santo não pode entrar no reino dos céus, abriu noutro lugar honrosa exceção, falando de modo não menos geral: Quem confessar-me diante dos homens também o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus. E noutra passagem: Quem perder a vida por amor de mim encontrá-la-á. Eis o porquê daquelas palavras: De grande preço é, aos olhos do Senhor, a morte de seus santos. Pois que há de mais valor que morte que causa a remissão de todos os pecados e inexcedível aumento de merecimentos? Não cabe comparar os merecimentos daqueles que, não podendo diferir a morte, são batizados e saem desta vida após haverem sido apagados todos os seus pecados com os dos que, podendo, não diferiram a morte, porque a chegar ao batismo, negando-o, preferiram terminar a vida, confessando Cristo. É certo que, se o houvessem feito, também se lhes perdoaria no banho lustral o haverem negado Cristo por medo da morte, pois é verdade que àqueles que deram morte a Cristo se lhes perdoou crime tão horrendo. Como, porém, sem graça torrencial do Espírito que sopra onde quer, poderiam amar Cristo ao extremo de não poderem negá-lo em tal risco de vida e com esperança tão grande de perdão? A valiosa morte dos santos, a quem precedeu e antecipadamente pagou com tanta graça a morte de Cristo, para não vacilarem em entregar a sua para consegui-lo a Ele, provou que o constituído antes como pena do pecador se reduziu agora a tais usos, com o fim de que dali dimanasse fruto mais abundante de justiça. A morte, portanto, não deve ser considerada como bem em si mesma por haver sido destinada a tamanha utilidade, não por virtude própria, mas pela graça de Deus. Antes se propôs como objeto de temor, para que não se cometesse o pecado; deve agora ser aceita para não cometer pecado, para apagar o cometido ou para dar a palma da justiça devida a uma vitória tão gloriosa. CAPÍTULO VIII Aceitando pela verdade a morte primeira, veem-se os justos livres da segunda. Pensemos bem. Quem quer que morra gloriosamente pela verdade e pela fé conjura a morte. Aceita parte da morte por temor a que lhe sobrevenha toda e se lhe acrescente a segunda, que não terá fim. Aceita a separação da alma e do corpo por medo de que, afastado Deus da alma, a alma se afaste do corpo e, assim, finalizada a morte primeira do homem todo, se veja nas garras da segunda, que é eterna. Assim, a morte, como já dissemos, quando a sofrem os moribundos e neles opera o morrer, não é bem para pessoa alguma, mas o tolerá-la é louvável por conservar ou conseguir o bem. Quando, porém, são os mortos que já se encontram sob seu domínio, diz-se, não absurdamente, ser má para os maus e boa para os bons, porque as almas dos bons, separadas dos corpos, estão no descanso e as dos ímpios nos tormentos. E estarão assim até os corpos de uns ressuscitarem para a vida eterna e os dos outros para a morte eterna, chamada segunda. CAPÍTULO IX O momento exato da morte. Ora, o tempo durante o qual as almas separadas do corpo são felizes ou infelizes, é tempo da morte ou de depois da morte? Se é tempo depois da morte, não é mais a morte, que já passou, mas a vida da alma que pode ser boa ou má. Porque a morte só é um mal quando está presente, quando se morre, porque nesse momento as dores são grandes, mal de que os bons sabem tirar proveito. Mas, passada a morte, como pode ser esta boa ou má, se já deixou de ser? Há mais ainda: se bem observamos, as próprias dores dos moribundos não são a morte, porque enquanto eles sentem, ainda estão vivos, e por isso ainda não estão na morte, que tira qualquer sentimento, mas nas proximidades da morte, que ocasiona tantas angústias. Como, portanto, chamamos de moribundos os que ainda não estão mortos, e que ainda agonizam? Contudo chamamo-los assim com razão, porque, vindo a morte, já não os chamamos de moribundos, mas de mortos. Ninguém, contudo, é moribundo se não está vivo, porque nesse último instante da vida a que são chegados os que, como dizemos, vão render sua alma, se esta ainda não o deixou, ele ainda está vivo. O que morre, portanto, é ao mesmo tempo moribundo e vivo, isto é, aproxima-se da morte e se afasta da vida; está ainda em vida, porque sua alma está presente no corpo, e ainda não está na morte, porque a alma ainda não se retirou do corpo. E, depois que a alma partir, se nem então ele está na morte, que já passou, quando se dirá que ele está na morte? Porque ninguém é moribundo se não pode ser ao mesmo tempo moribundo e vivo. De fato, enquanto a alma está no corpo, não se pode negar a vida. Ou, se devemos chamar de moribundo aquele que já sente em seu corpo a ação da morte, e se ninguém pode ser ao mesmo tempo vivo e moribundo, não sei quando é que se está vivo. CAPÍTULO X À vida dos mortais o nome de morte quadra melhor que o de vida. Desde o instante em que começamos a existir neste corpo mortal, jamais deixamos de tender para a morte. Tal é a obra da mutabilidade durante todo o tempo da vida (se é que deve chamar-se vida): tender para a morte. Não existe ninguém que não esteja mais próximo da morte depois de um ano que antes dele, amanhã mais do que hoje, hoje mais do que ontem, pouco depois mais do que agora e agora pouco mais do que antes. Porque tempo vivido é retirado do que se deve viver e dia a dia diminui que resta, de tal modo que esta vida não passa de corrida para a morte. Não permite que ninguém se detenha ou caminhe mais devagar; pelo contrário, todos seguem o mesmo compasso e se movem com igual presteza. Com efeito, quem teve existência mais curta não cruzou o tempo com maior celeridade que aquele que a teve mais longa; acontece que, arrancados seus momentos de igual modo a ambos, um teve a meta mais próxima e o outro mais afastada, meta a que um e outro corriam com idêntica velocidade. Uma coisa é haver andado mais caminho; outra haver caminhado mais devagar. Em consequência, quem até chegar à morte apura espaços mais longos de tempo não corre mais devagar, mas anda mais caminho. Portanto, se cada indivíduo começa a morrer, ou seja, a estar na morte, desde o instante em que nele começa a operar-se a morte, quer dizer, a subtração da vida, pois, terminada a subtração, já estará depois da morte, não na morte, é fora de dúvida que, desde o instante em que começamos a existir neste corpo, estamos na morte. Que outra coisa se faz em cada dia, em cada hora e em cada momento até que, apurada a derradeira gota da vida, se completa a morte que se ia operando e já começa a existir o tempo posterior à morte que no fieri da subtração da vida estava na morte? Se, por conseguinte, o homem não pode estar ao mesmo tempo em vida e em morte, nunca está em vida, desde que mora neste corpo mais moribundo que vivente. Ou diremos estar ao mesmo tempo em vida e em morte, quer dizer, na vida, em que vive até ser-lhe subtraída toda, e na morte, com que já morre quando lhe é subtraída a vida? Porque, se não está em vida, que é que se subtrai, enquanto não se realiza sua perfeita consumpção? E se não está em morte, que é a subtração da vida? Não inutilmente se diz que, subtraída ao corpo toda a vida, já está depois da morte, senão porque existia a morte quando se lhe subtraía a vida. E se, subtraída a vida, o homem não está na morte, mas depois da morte, quando estará na morte, senão quando lhe é subtraída? CAPÍTULO XI Pode alguém ser ao mesmo tempo vivente e morto? 1. Se é absurdo dizer que antes de encarar a morte o homem já está na morte (de que meta o aproxima o caminhar de sua vida, se já está nela?) e como, por outro lado, é demasiado atrevimento afirmar que é ao mesmo tempo vivente e moribundo, pois não se pode estar ao mesmo tempo acordado e dormindo, é preciso perguntar quando será moribundo. Antes de a morte chegar, não é moribundo, mas vivente; chegada a morte, já será morto, não moribundo. Aquele ainda está antes da morte, este já lhe transpôs a fronteira. Quando está na morte, pois então é realmente moribundo? Estas três coisas distintas, a saber, antes da morte, na morte e depois da morte, tem cada qual nome próprio: vivente, moribundo e morto. E, pois, muito difícil determinar quando alguém é moribundo, quer dizer, quando está na morte, quando não é vivente, que é antes da morte, nem morto, que é depois da morte, mas moribundo, ou seja, na morte. Enquanto a alma está no corpo, sobretudo se ainda sente, o homem, constante de alma e de corpo, vive e, portanto, não deve dizer-se na morte, mas antes da morte. Contudo, quando a alma se separa e priva o corpo de toda sensação, já aparece depois da morte e Se chama morto. Logo, fina-se entre esses dois momentos em que é moribundo ou está na morte, porque, se ainda vive, está antes da morte e, se deixou de viver, já está depois da morte. Em conclusão, é impossível compreender quando é moribundo ou quando está na morte. O mesmo ocorre com o tempo. Busca-se o presente e não se dá com ele, porque o cruzar do futuro ao passado é espaço inapreciável. Não será lógico concluir daí que a morte do corpo não existe? Pois, se existe, quando existe, se não pode estar em ninguém e ninguém pode estar nela? Com efeito, se se vive, ainda não existe a morte, porque isso é antes da morte, não na morte, e, se se deixou de viver, já não existe, porque isso é depois da morte, não na morte. Se a morte não existe antes ou depois dela mesma, que significa dizer antes da morte ou depois da morte? A verdade é que dizê-lo carece de sentido, se não existe a morte. Oxalá houvéssemos conseguido, bem vivendo no passado, não existisse morte alguma! Contudo, agora é tão esquiva, que não pode explicar-se com palavras nem evitar-se com argumentos. 2. Falemos, pois, segundo o uso corrente, pois assim o exigem nossas maneiras, e digamos: Antes da morte como antes de a morte suceder, como está escrito: Antes da morte não louves homem algum. Digamos também, desde que haja sobrevindo: Depois da morte deste ou daquele sucedeu tal ou qual coisa. Digamos ainda, como nos seja possível, do tempo presente: Aquele moribundo fez testamento e ao morrer deixou isto ou aquilo a este ou àquele, embora na realidade, se não vivesse, não teria podido fazê-lo e o haja feito antes da morte e não na morte. Falemos também como fala a Divina Escritura, que não duvida em chamar mortos não aos que já morreram, mas aos que estão na morte. Assim naquela passagem: Porque não há na morte quem se lembre de ti. Diz e com razão que estão na morte, enquanto não ressuscitam, como se diz que alguém está dormindo, enquanto não desperta, embora chamemos dormentes os que estão no sono e não possamos, todavia, chamar moribundos os que morreram. Porque não morre, quanto à morte corporal de que agora tratamos, aquele que já está separado do corpo. E precisamente a isso que me referia, ao dizer que não se pode explicar com palavras como chamamos moribundos aos que ainda vivem ou dos já mortos, mesmo depois da morte, dizemos estarem na morte. Como depois da morte, se ainda estão na morte, sabendo-se, ademais, que não os chamamos moribundos, como chamamos dormentes aos que estão no sono, enfermos aos que estão em enfermidade, dolentes aos que estão em dor e viventes aos que estão em vida? Contudo, antes de ressuscitarem, diz-se que os mortos estão na morte, mas não podemos chamá-los moribundos. Daqui deduzo não carecer de oportunidade e de sentido minha opinião de que, talvez não por causa da lógica humana, mas por intenção divina, o verbo moritur (morre) em latim não hajam os gramáticos podido conjugá-lo pela mesma regra com que se conjugam os demais. De oritur (nasce), por exemplo, forma-se o pretérito ortus est (nasceu) e assim os demais tempos que se conjugam com os particípios passados. Mas, se perguntamos pelo pretérito do verbo moritur , responder-nos-ão, como de costume, mortuus est (morreu), duplicada a letra u. Diz-se mortuus (morto), como fatuus (fátuo), arduus (difícil), conspicuus (conspícuo), etc., que não são particípios, mas nomes, e por isso se declinam sem tempo. Naquele, entretanto, simulando declinar o indeclinável, põe-se o nome em lugar do particípio passado. Isso tem determinado sentido e é que, assim como o significado pelo Verbo não pode ser declinado, assim também o verbo que o significa não se pode declinar, falando. Mas pelo menos podemos, com o auxílio da graça de nosso Redentor, declinar a morte segunda. É o mais grave e o pior de todos os males, por não consistir na separação da alma e do corpo, mas do eterno abraço de ambos nos tormentos eternos. Aí é que os homens estarão sempre na morte, não antes nem depois da morte, e por isso nunca mais serão viventes e nunca mais serão mortos, mas eternamente moribundos. A suprema desgraça para o homem na morte será, com efeito, que a morte seja imortal. CAPÍTULO XII Que morte havia Deus cominado aos primeiros homens, se lhe violassem o mandamento? Quando se pergunta que morte cominaria Deus aos primeiros homens, no caso de violarem o mandamento recebido e de não lhe prestarem obediência, se era a morte da alma, a do corpo, a do homem todo ou a chamada segunda, deve-se responder que todas. A primeira compreende duas delas; a segunda, todas. Como a terra universal consta de muitas regiões e a Igreja universal de muitas igrejas, assim a morte total consta de todas as mortes. Porque a primeira compreende duas, uma da alma e outra do corpo, de modo que a primeira morte de todo o homem se dá quando a alma sem Deus e sem corpo sofre temporalmente o castigo e a segunda, quando a alma sem Deus e com o corpo sofre as penas eternas. Quando Deus disse ao primeiro homem que colocou no paraíso, falando do fruto proibido: No dia em que o comerdes morrereis de morte, não tornou tal cominação extensiva apenas à primeira parte da morte primeira, em que a alma se vê sem Deus, nem apenas à segunda parte, em que o corpo se vê privado da alma, nem apenas à primeira morte total, em que a alma, separada de Deus e do corpo, é castigada, mas a quantas mortes há até à última, que se chama segunda e não tem seguinte. CAPÍTULO XIII Qual o primeiro castigo da prevaricação dos primeiros pais? Tão logo se levou a efeito a transgressão do preceito, desamparados da graça de Deus, se envergonharam da nudez de seus corpos. Por isso cobriram suas vergonhas com folhas de figueira, as primeiras, talvez, que se lhes depararam em meio de sua perturbação. Tais membros já os tinham antes, mas não eram vergonhosos. Sentiram, pois, novo movimento em sua carne desobediente, como castigo devido à sua desobediência. Comprazida no uso desordenado da própria liberdade e desdenhando servir a Deus, a alma viu-se despojada da primeira sujeição de seu corpo e, por haver livremente abandonado o Senhor superior, não mantinha submisso o servo inferior nem mantinha submissa a si mesma a carne, como teria podido manter sempre, se houvesse permanecido submissa a Deus. A carne começou, então, a desejar contra o espírito. Nesse combate nascemos, arrastando gérmen de morte e trazendo em nossos membros e em nossa viciada natureza a alternativa de luta e de vitória da primeira prevaricação. CAPÍTULO XIV O homem, criado por Deus, e como caiu por arbítrio de sua vontade. Deus, Autor das naturezas, não dos vícios, criou o homem reto; mas, depravado por sua própria vontade e justamente condenado, gerou seres desordenados e condenados. Estivemos todos naquele um quando fomos todos aquele um, que caiu em pecado pela mulher, dele feita antes do pecado. Ainda não fora criada e difundida nossa forma individual, forma que cada qual havíamos de ter, mas já existia a natureza germinal, de que havíamos de descender todos. Desta, viciada pelo pecado, ligada pelo vínculo da morte e justamente condenada, o homem, nascendo do homem, não nasceria doutra condição. Por isso, do mau emprego do livre-arbítrio originou-se verdadeira série de desventuras, que de princípio viciado, como se corrompido na raiz o gênero humano, arrastaria todos, em concatenação de misérias, ao abismo da morte segunda, que não tem fim, se a graça de Deus não livrasse alguns. CAPÍTULO XV Pecando, Adão abandonou a Deus antes de Deus abandoná-lo. A primeira morte da alma consistiu em apartar-se de Deus. Por esse motivo, como nas seguintes palavras: Morrereis de morte não se disse "de mortes", deve-se entender somente aquela que sucede quando a alma é abandonada por sua vida, que é Deus. (Porque não foi abandonado para que abandonasse, mas abandonou para ser abandonado, visto como, para seu mal, é primeiro a própria vontade e, para seu bem, é primeiro a vontade do Criador, quer para fazê-la quando ainda não existia, quer para refazê-la quando pereceu na queda.) Contudo, embora entendamos haver Deus querido significar essa morte nas seguintes palavras: No dia em que o comerdes morrereis de morte, como se dissesse: No dia em que me abandonardes pela desobediência abandonar-vos-ei por justiça, indubitável é que em tal morte se anunciaram também as demais que haviam de suceder. Ao originar-se na carne da alma desobediente um movimento desobediente, pelo qual cobriram suas vergonhas,sentiu-se a morte, em que Deus abandonou a alma. Esta ficou significada naquelas palavras que Deus dirigiu ao homem, quando em seu louco temor se escondia: Adão, onde estás? E disse-o, não perguntando, como se o ignorasse, mas advertindo-o, com censura, de que cuidasse de saber onde estava, porque Deus já não estava com ele. Mais tarde, ao abandonar a alma o corpo, enrugado pela idade e encolhido pela velhice, chegou a experimentar a outra morte, da qual Deus dissera, quando impunha seus castigos ao homem: És terra e à terra irás. Assim, essas duas mortes completariam a primeira, de todo o homem, e lhe seguiria, por fim, a segunda, se o homem não fosse libertado pela graça. O corpo, procedente da terra, a ela não tornaria senão pela morte, que lhe sobrevém quando se vê privado de sua vida, ou seja, da alma. É por isso que os cristãos, fiéis e verazes custódios da fé católica, afirmam que a morte do corpo não é infligida por lei da natureza, porquanto Deus não deu morte alguma ao homem, mas como legítimo castigo do pecado. Ao vingar o pecado, disse Deus ao homem, em quem todos estávamos então: És terra e à terra irás. CAPÍTULO XVI Há filósofos que pensam não ser castigo a separação do corpo e da alma e se baseiam em que Platão introduz o Deus supremo, prometendo aos deuses inferiores não serem nunca destituídos dos respectivos corpos. 1. Mas há filósofos, contra cujas calúnias defendemos a Cidade de Deus, quer dizer, a Igreja, que zombam, segundo eles, sabiamente do que acabamos de dizer, ou seja, de a separação da alma e do corpo dever ser contada entre as penas. E fundam-se em que, na sua opinião, a alma alcança a perfeita felicidade quando, desligada em absoluto de todo corpo, torna a Deus, simples, sozinha e de certo modo nua. Se em seus próprios escritos não encontrássemos nada com que refutar semelhante opinião, teríamos de estender-nos em demonstrar que o corpo não é oneroso para a alma senão por ser corruptível. Aqui vem a pelo aquela passagem de nossas Escrituras citada no livro anterior: O corpo corruptível oprime a alma. Ao acrescentar corruptível, dá a entender que não é qualquer corpo que oprime a alma, e sim o feito pelo castigo consequente ao pecado. E, embora não o houvesse acrescentado, não deveríamos entender outra coisa. Contudo, apregoando Platão a todos os ventos que os deuses feitos pelo soberano Deus têm corpos imortais e introduzindo a Deus, Autor deles, prometendo-lhes, como singular benefício, eterna permanência em seus corpos e não serem desligados deles por morte alguma, a que vem que tais sofistas, para perseguirem a fé cristã, finjam desconhecer o que conhecem? Por que, em luta consigo mesmos, preferem dizê-lo, contanto que não recuem do empenho de contradizer-nos? Vou citar as próprias palavras de Platão, traduzidas ao latim por Cícero, nas quais introduz o soberano Deus perorando e dizendo aos deuses que fez: Considerai, filhos dos deuses, de que obras sou autor e pai. Sois indissolúveis contra minha vontade, embora todo composto possa dissolver-se, mas não é próprio do bem-querer separar o que a razão uniu. Mas, por haverdes nascido, não podeis ser imortais, indissolúveis. Entretanto, não vos dissolvereis nem destino algum de morte vos tirará a vida, porque não será mais poderoso que minha vontade, que é vínculo mais forte para vossa perpetuidade que o destino a que ficastes ligados ao começardes vossa existência. Eis que Platão diz que os deuses, por causa da ligação do corpo e da alma, são mortais e, todavia, são imortais, por vontade e decisão do Deus que os fez. Se, por conseguinte, para a alma é castigo estar ligada a corpo, que significa que, falando-lhes Deus como a temerosos de que a morte lhes assome às portas, ou seja, de se separarem dos respectivos corpos, lhes assegura a imortalidade? E isso não pela natureza de tais deuses, composta, não simples, mas pela insuperável vontade de Deus, que pode fazer com que o nascido não morra nem o ligado se desligue, mas persevere incorruptivelmente. 2. É outra questão saber se na realidade, aplicado aos astros, é verdadeiro tal pensamento de Platão. Não se deve levianamente admitir tenham ânimos próprios inteligentes e ditosos que os vivifiquem esses globos de luz ou pequenos círculos que com luz corpórea de dia ou de noite iluminam a terra. Afirma-o com insistência do mundo universo, como de grande animal que contém todos os restantes animais. Porém, como fica dito, trata-se de outra questão e não me comprometi no momento a discuti-la. Com franqueza, julguei dever citar esse texto contra aqueles que se gloriam de chamar-se ou ser platônicos, orgulhoso título que os envergonha de ser cristãos, porque tal nome lhes seria comum e ao vulgo e o seu de portadores de mantos, cujo número é tanto mais fastuoso quanto mais exíguo, se tornaria desprezível. Buscando pontos em que repreender a doutrina cristã, apelam para a eternidade dos corpos, como se fossem contrários entre si buscar a felicidade da alma e querer que, como que ligada a penoso vínculo, viva sempre no corpo. E fazem-no apesar de Platão, seu autor e mestre, dizer que o soberano Deus concedeu aos deuses feitos por Ele o dom de não morrerem nunca, quer dizer, de não serem separados dos corpos a que os ligara. CAPÍTULO XVII Contra os que afirmam não poderem os corpos terrenos tornar-se incorruptíveis e eternos. l. Sustentam, além disso, tais filósofos não poderem ser eternos os corpos terrenos, embora não ponham em dúvida ser a própria terra membro de um deus, não por certo do supremo, mas sim de um grande, do mundo, intermediário e eterno. Com efeito, o Deus supremo criou outro pretenso deus, isto é, o mundo, superior aos demais deuses inferiores e considerado como animal, ou seja, como ser dotado de alma, racional ou intelectual, segundo eles, em massa corporal tão enorme. Dotou-o, ademais, de uma espécie de membros, colocados em seus lugares e dispostos no corpo, de quatro elementos, cuja união querem seja indissolúvel e eterna para que tal deus não morra. Se assim é, que razão há para a terra, como membro central no corpo desse grande animal, ser eterna e não poderem ser eternos os corpos dos restantes animais, terrestres, se Deus o quer, como quis o outro? Mas a terra, replicam, há de tornar à terra, donde foram tirados os corpos dos animais terrestres. Donde se deduz, acrescentam, que hão de necessariamente dissolver-se e morrer e desse modo ser reintegrados na terra estável e eterna de que foram tirados. Se alguém afirma outro tanto do fogo e diz haverem de tornar ao fogo universal os corpos dele tirados para feitura dos animais celestes, não virá a deitar por terra, como furacão dessa contenda, a imortalidade, que Platão prometeu a tais deuses no discursinho que pôs na boca do supremo Deus? Ou será que isso ali não sucede justamente por não querê-lo Deus, cuja vontade, como diz Platão, não é vencida por força alguma? Que impede o poder de Deus de fazê-lo com os corpos terrenos, se Platão admite que Deus pode fazer com que não morra o que nasceu, nem se desligue o ligado, nem torne aos elementos o deles tomado e que as almas ligadas aos corpos nunca os abandonem e com eles gozem de imortalidade e de eterna bem-aventurança? Por que, pois, não pode fazer com que não morram tampouco os corpos terrenos? Ou será que o poder de Deus não se estende até aonde os cristãos pensam, mas apenas até aonde os platônicos querem? É verdade haverem os filósofos platônicos podido conhecer o pensamento de Deus e não haverem podido conhecê-lo os profetas? Ao contrário, o Espírito de Deus ensinou os profetas a anunciar a vontade de Deus, quando Ele se dignou mostrá-la a eles e, por outro lado, ao conheceram-na, os filósofos sofreram o engano das conjeturas humanas. 2. Não deviam, contudo, ter levado seu erro, não por ignorância, mas por teimosia, ao extremo de manifestamente se contradizerem, afirmando, de um lado, com todas as suas forças dialéticas, que, para poder ser feliz, a alma não apenas deve evitar o corpo terreno, mas todo corpo, e insistindo, por outro, em terem os deuses almas muito felizes, ligadas, entretanto, a corpos eternos e as celestes a corpos ígneos. Insistem, igualmente, em que a alma de Júpiter, que pretendem seja deste mundo, se acha repartida em todos os elementos corpóreos de que se compõe toda a mole que se eleva da terra ao céu. Platão opina que essa alma, do meio íntimo da terra, pelos geômetras chamado centro, à mais excelsa sumidade do céu, está difundida e estendida por todas as suas partes, segundo os números musicais. Desse modo, o mundo é, para ele, o animal maior e mais feliz e eterno e sua alma goza da perfeita felicidade da sabedoria e não abandona o corpo que lhe é próprio. Por ela seu corpo vive eternamente e, embora não seja simples, mas composto de tantos e tão enormes corpos, não podem embotá-la nem retardar-lhe a ascensão. Dando semelhante liberdade a suas suspeitas, por que não querem acreditar que podem chegar a ser imortais, por vontade e pelo poder de Deus, os corpos terrenos, em que vivam eterna e felizmente as almas não separadas deles por morte alguma nem oprimidas por seus pesos, coisa que, segundo eles, seus deuses podem nos corpos ígneos e Júpiter, rei deles, em todos os elementos corpóreos? Se, para ser feliz, a alma deve evitar todo corpo, fujam dos globos siderais os deuses, fuja do céu e da terra Júpiter. Se não são capazes de fazê-lo, sejam considerados miseráveis. Mas os filósofos recuam diante dessa alternativa. Não se atrevem a atribuir a seus deuses a separação dos corpos, por temor de parecer que dão culto a seres mortais, nem a atribuir-lhes a privação da bem-aventurança, para não terem de confessar que são infelizes. Em conclusão, para conseguir-se a felicidade, não devem ser evitados todos os corpos, mas os corruptíveis, os pesados, os mortais, os molestos, não tais quais foram os que a bondade de Deus deu aos primeiros homens, mas como os obrigou a ser a pena do pecado. CAPÍTULO XVIII Afirmam os filósofos não poderem os corpos terrenos convir a seres celestiais, porque seu peso natural os inclina à terra. Mas necessariamente, dizem, o peso natural retém na terra os corpos terrenos ou pelo menos, a ela os inclina com violência e por isso não podem estar no céu. E verdade que os primeiros homens habitavam terra cheia de árvores e frutífera, que recebeu o nome de paraíso. Como, porém, tal objeção não deve ficar sem resposta, quer por amor do corpo com que Cristo ascendeu ao céu, quer pelo que hão de ter os santos na ressurreição, considerem em primeiro lugar, com um pouquinho mais de atenção, a natureza dos pesos terrenos. Se a arte humana é capaz de fazer com que flutuem sobre a água vasos fabricados de metais, que, postos sobre ela, vão ao fundo no mesmo instante, quão mais crível e poderoso é Deus, cuja onipotentíssima vontade, segundo Platão, não permite possa perecer o nascido nem ser desligado o ligado, para, por modos ocultos, dar aos corpos terrenos que peso algum os atraia para baixo, sendo a união entre o corpóreo e o incorpóreo muito mais admirável que entre o corpóreo e o corporal! E, ademais, concede aos ânimos perfeitamente bem-aventurados que situem seus corpos, terrenos, é verdade, mas incorruptíveis, onde queiram e com posição e movimentos facílimos operem onde lhes apraza. Ou será que se deve acreditar que, se os anjos realizam obras como estas, arrebatar certos animais terrestres donde se encontram e colocá-los onde lhes apraza, não possam fazê-lo sem trabalho ou sem sentir as cargas? Por que havemos de crer que os espíritos dos santos, perfeitos e felizes por graça divina, podem sem dificuldade alguma levar seus corpos aonde lhes agrade e não havemos de crer possam colocá-los onde bem lhes pareça? Embora certo que, como costumamos apreciar quando puxamos algo, quanto maior a massa dos corpos terrenos, tanto maior também o peso, de maneira que mais oprime o que mais pesa, a alma leva os membros de sua carne com maior leveza, quando gozam de robustez e de saúde que quando se encontram debilitados pela enfermidade. E embora, quando outro o puxa, é mais pesado o robusto e sadio que o enfermiço e fraco, alguém é mais ágil para mover e levar o próprio corpo quando com boa saúde tem mais massa que quando, enfermo ou com fome, tem o mínimo de robustez. Tanto vale nos corpos terrenos, ainda corruptíveis e mortais, não o peso da quantidade, mas o modo do temperamento! Quem explicará com palavras a distância que medeia entre a chamada saúde presente e a imortalidade futura? Não nos redarguam, pois, os filósofos a fé, baseados nos pesos dos corpos. Não quero, ademais, perguntar por que não creem possa o corpo terreno estar no céu, se a terra toda se apoia sobre o nada. Talvez seja argumento de não menor probabilidade o tomado do centro do mundo, no sentido de nele se encontrarem as coisas mais pesadas. Limito-me unicamente a perguntar: Se os deuses inferiores, a quem Platão encarregou de fazer o homem, entre os restantes animais terrestres, puderam, como ele diz, remover do fogo a qualidade de queimar e deixar-lhe a de luzir, que se percebe pelos olhos, duvidaremos conceder ao soberano Deus, a cuja vontade e poder concedeu não morresse o nascido, que coisas tão diversas e dessemelhantes, como as corpóreas e as incorpóreas, unidas entre si, não pudessem ser separadas? Desse modo tira à carne do homem a corrupção, dá-lhe a imortalidade, deixa-lhe a natureza, conserva-lhe a congruência da figura e dos membros e suprime-lhe o retardamento do peso. Mas sobre a fé na ressurreição dos mortos e sobre seus corpos imortais tratar-se-á com maior apuro no final desta obra, se Deus quiser. CAPÍTULO XIX Contra aqueles que não acreditam que, se não pecassem, os primeiros homens haviam de ser imortais. Expliquemos agora o ponto proposto a respeito dos corpos dos primeiros homens. A estes, nem a morte, boa para os bons, conhecida não apenas por alguns poucos que a entendem ou nela creem, mas por todos, a qual consiste na separação do corpo e da alma, pela qual o corpo do animal, que evidentemente vivia, morre, houvera podido sobrevir-lhes, se não a houvessem merecido pelo pecado. Muito embora não seja permitido duvidar que depois da morte as almas dos piedosos e justos não vivam no descanso, melhor lhes fora viver com seus corpos sãos, ao extremo de, contra seu próprio modo de pensar, aprovarem tal opinião até mesmo aqueles que pensam consista em estar sem corpo o suprassumo da bem-aventurança. Nenhum deles se atreve a antepor os homens, por mais sábios que sejam, ou os que hão de morrer, ou os já mortos, quer dizer, os que já carecem de corpos, ou os que hão de abandoná-las, nenhum deles se atreve, dizíamos, a antepô-las aos deuses imortais, a quem o supremo Deus, em Platão, promete dom singular, a saber, vida indissolúvel, ou seja, eterno consórcio com os respectivos corpos. O próprio Platão pensa condizer muito bem com os homens, se viveram piedosa e justamente, serem recebidos no seio dos deuses, que nunca abandonaram seus corpos: Perdida já toda lembrança, podem ver outra vez a abóbada celeste e dispor-se a entrar em cárceres humanos. Celebram também havê-la dito Vergílio, em conformidade com a doutrina platônica. Desse modo, afirma não poderem as almas dos mortais viver sempre em seus próprios corpos, pois a morte há de necessariamente dissolvê-las, nem permanecer perpetuamente sem corpos, porquanto, segundo ele, em contínua alternativa, dos mortos constantemente se fazem vivos e dos vivos, mortos. De tal modo assim é, que acreditam que os sábios diferem dos demais homens em que, depois da morte, serão levados aos astros, com o fim de gozarem de mais prolongado descanso em seu astro próprio, e ali, de novo esquecidos da primitiva miséria e dominados pelo desejo de ter corpo, tornam aos trabalhos e às aflições dos mortais. Por outro lado, aqueles que houverem levado vida sem controle, voltam logo aos corpos devidos a seus merecimentos, corpos de homens ou de animais irracionais. A tão dura condição submeteu as almas boas e sábias, a que não se deram tais corpos, com que vivessem imortalmente e sempre, de forma que não pudessem continuar nos corpos nem subsistir sem eles em eterna pureza. Nos livros anteriores já mencionamos que Porfírio, contemporâneo da era cristã, repudia com vergonha esse dogma de Platão e dissemos que não apenas removeu dos corpos dos animais irracionais as almas humanas, mas além disso, quis que as almas dos sábios se vissem livres dos laços corporais, de modo que, evitando todo corpo, se mantenham eternamente felizes junto ao Pai. Assim, para não se ver vencido por Cristo, que aos santos promete vida eterna, também determinou felicidade eterna para as almas purificadas, sem terem de retornar às primitivas misérias. E para opor-se a Cristo, negando a ressurreição dos corpos incorruptíveis, afirmou que haviam de viver eternamente, não apenas sem corpos terrenos, mas sem corpo algum em absoluto. Tal opinião, entretanto, não o decidiu a ordenar não prestassem culto religioso aos deuses corporais. Por que, senão por acreditar que as almas, embora não estivessem unidas a corpo algum, não eram melhores que os deuses? Por isso, se não se atreverão, como penso que não hão de atrever-se, a antepor as almas humanas aos deuses felicíssimos e, contudo, ligados a corpos eternos, por que lhes parece absurdo o que a fé cristã ensina, a saber, que os primeiros homens foram criados em tal condição que, se não pecassem, não seriam pela morte desligados dos respectivos corpos, mas, dotados de imortalidade, de acordo com os merecimentos de sua obediência, com eles viveriam eternamente, e que na ressurreição os santos hão de ter os mesmos corpos em que na terra se santificaram, de tal maneira que à sua carne não possa sobrevir corrupção ou óbice algum, nem dor ou infelicidade à sua bem-aventurança? CAPÍTULO XX A carne dos santos ressuscitados será mais perfeita que a dos primeiros homens antes do pecado. Por isso, a morte agora carece de dureza para as almas dos fiéis defuntos, morte que os separou dos corpos, porque sua carne repousa em esperança, sejam quais forem os ultrajes recebidos depois de perdida a sensibilidade. Porque não suspiram, como pensou Platão, pelos corpos por haverem-nos esquecido, mas, antes, porque recordavam a promessa daquele que não engana ninguém e lhes garantiu a integridade de seus próprios cabelos. Essa a razão de esperarem com ânsia a com paciência a ressurreição dos corpos, em que sofreram tantas durezas e não sentirão para o futuro nada similar. Se, por conseguinte, não odiavam sua carne, ao reprimi-la por direito espiritual, quando por sua fraqueza se revolvia contra a mente, quanto mais haverão de amá-la ao tornar-se espiritual? Como o espírito, escravo da carne, se chama, não impropriamente, carnal, assim a carne, sujeita ao espírito, receberá o nome de espiritual. E não porque se converta em espírito, como alguns imaginam, impressionados por estas palavras: É posto na terra corpo animal e ressuscitará corpo espiritual, mas porque se submeterá ao espírito, com admirável e suma facilidade de obediência, até a própria vontade seguríssima de sua imortalidade indissolúvel e já livre de toda sensação de mal-estar, de toda corruptibilidade e de todo peso. Não somente não será tal qual é agora no mais robusto e são, mas não será tampouco qual foi nos primeiros homens antes do pecado. Estes, embora não houvessem de morrer, se não pecassem, como homens, portadores, portanto, de corpos, não espirituais, mas materiais, usavam de alimentos. E, embora a velhice não os atacasse, de modo que necessariamente caminhassem para a morte (era a árvore da vida, colocada em meio do paraíso com a árvore proibida, que, por maravilhosa graça de Deus, os brindava com semelhante estado), tomavam os alimentos à margem da árvore interdita, não porque era má, mas para encarecer o bem da obediência sincera e pura, virtude culminante da criatura racional sujeita a Deus, seu Criador. A razão é que, onde não andava de permeio nenhum mal, é fora de dúvida que, se se aproximavam do proibido, pecavam, exclusivamente por desobediência. Alimentavam-se doutras coisas e tomavam-nas para que seus corpos animais não sentissem o tormento da fome e da sede. Mas gostavam da árvore da vida com o fim de que a morte não se lhes enroscasse na vida ou morressem consumidos pela velhice, correndo depressa os espaços da vida, como se o demais fosse alimento e isso encerrasse algum sacramento. Assim se dava a entender que a árvore da vida foi no paraíso corporal como a Sabedoria de Deus no paraíso espiritual, quer dizer, no paraíso inteligível, Sabedoria de que está escrito: É árvore da vida para quem a abraça. CAPÍTULO XXI Pode-se muito bem entender como algo espiritual o paraíso em que estavam os primeiros homens, deixando sempre a salvo a verdade da narrativa histórica sobre o lugar corporal. Fundados nisso, alguns referem o paraíso, onde, segundo a verídica narrativa da Santa Escritura, estiveram os primeiros homens, pais do gênero humano, a coisas espirituais e convertem as árvores e plantas frutíferas em virtudes e costumes de vida, como se não houvessem existido essas coisas corporais e visíveis, mas se tratasse de modo de falar para significar as coisas inteligíveis. Como se não pudesse existir o paraíso corporal, porque também se pode entender o espiritual, como se não houvessem existido duas mulheres, Agar e Sara, e delas os filhos de Abraão, um da escrava, outro da livre, por que diz o Apóstolo estarem figurados neles os dois Testamentos, ou como se não houvesse brotado água da pedra ferida pela vara de Moisés, pois também ali é possível entender-se Cristo em significação figurada, segundo as palavras do Apóstolo: A pedra era Cristo. Assim, pois, ninguém proíbe entender-se por paraíso a vida dos bem-aventurados; por seus quatro rios, as quatro virtudes cardeais, prudência, fortaleza, temperança e justiça; por suas árvores, todas as ciências úteis; pelos frutos de tais árvores, os costumes dos piedosos; pela árvore da vida, a sabedoria, mãe de todos os bens, e pela árvore da ciência do bem e do mal, a experiência do mandamento transgredido. Deus decretou pena para os pecados; está bem, porque o fez justamente, mas o homem não a experimentou por seu bem. Tudo isso, todavia, melhor se poderia entender da Igreja; interpretá-lo-íamos como sinais proféticos que precedem o futuro. O paraíso seria a própria Igreja, como dela se lê no Cântico dos Cânticos; os quatro rios do paraíso seriam os quatro Evangelhos; as árvores frutíferas, os santos; seus frutos, suas obras; a árvore da vida, o Santo dos Santos; a árvore da ciência do bem e do mal, o livre-arbítrio da vontade humana. Desprezando a vontade de Deus, o homem não pode fazer da sua senão pernicioso uso e assim aprende a aderir ao bem comum a todos ou a deleitar-se no próprio. Amando-se a si mesmo, entrega-se a si mesmo e, por isso, acabrunhado de temores e de tristezas, canta com o salmista, se é que sente seus males: Turbada interiormente está minha alma e, reconhecendo seu crime: Em ti depositei minha fortaleza. Se se permite dizer essas e outras coisas a respeito de interpretação espiritualista do paraíso, digam-se sem proibição alguma, contanto que se creia na fidelíssima verdade da história apresentada na narrativa dos acontecimentos ali realizados. CAPÍTULO XXII Depois da ressurreição os corpos dos santos serão espirituais, sem que por isso a carne se torne espírito. Depois da ressurreição, os corpos dos justos não necessitarão de árvore alguma que lhes dê o não morrer por enfermidade ou por extrema velhice, nem doutros alimentos corporais com que se evita todo o tormento procedente da fome e da sede. O motivo é que serão revestidos do dom inviolável, certo e onímodo da imortalidade, de maneira que, se lhes agrada, comerão por possibilidade, não por necessidade. Fizeram-no também os anjos, quando apareceram visível e tangivelmente, não porque necessitassem, mas porque queriam e podiam, para não se diferençarem dos homens nessa humanidade ministerial sua. E não se deve acreditar que os anjos comeram apenas em aparência, quando os homens lhes ofereceram hospitalidade, embora lhes parecesse que comiam, como nós, por necessidade, porque ignoravam tratar-se de anjos. Daí as palavras do anjo no Livro de Tobias: Víeis-me comer, mas víeis-me com vossa vista, quer dizer, pensáveis que eu comia por necessidade, para reparar as forças, como acontece convosco. Mas, embora seja possível sustentar outra opinião mais viável a respeito dos anjos, a fé cristã não duvida que, depois da ressurreição, já em carne espiritual, é verdade, mas real, o Salvador comeu e bebeu com seus discípulos. É que a tais corpos não se despoja da possibilidade, mas da necessidade de comer e beber. Precisamente por isto serão espirituais, não porque deixarão de ser corpos, mas porque. graças ao espírito que os vivifica, subsistirão. CAPÍTULO XXIII Que se deve entender por corpo animal e por corpo espiritual ou que é morrer em Adão e ser vivificado em Cristo? 1. Assim como chamamos corpos animais aos que têm alma vivente, embora não espírito vivificante, sem serem almas, mas corpos, assim também àqueles damos o nome de corpos espirituais. Mas Deus nos livre de acreditar que serão espíritos! Serão corpos, conservarão a substância da carne, que, graças ao espírito vivificante, não sofrerá o peso nem a corrupção da carne. Já não existirá, então, o homem terreno, mas o celestial, não porque o corpo, feito de terra, deixe de ser corpo, mas porque por dom celeste será susceptível de morar no céu, não perdendo a natureza, mas mudando de qualidade. O primeiro homem, formado de terra e terreno, foi criado com alma vivente, não com espírito vivificante, reservado para prêmio de sua obediência. Por isso, seu corpo, que necessitava de comer e de beber, para não ver-se presa da sede e da fome, e não era alheio à morte por imortalidade absoluta e indissolúvel, mas graças à árvore da vida, que o conservava na flor da juventude, não há dúvida haver sido animal, não espiritual. Contudo, jamais haveria morrido, se, pecando, não houvesse incorrido na sentença com que Deus o prevenira e ameaçara. Sem ver-se privado, fora do paraíso, dos alimentos, ficava-lhe proibido a árvore da vida e foi entregue à velhice e ao tempo, para findar seus dias naquela vida, que poderia haver sido perpétua para ele no paraíso e em seu corpo animal, caso não houvesse pecado, até que, como prêmio de sua obediência, se tornasse espiritual. Daí que, se essa morte sensível, que realiza a separação do corpo e da alma, entendemo-la significada nas palavras de Deus: No dia em que o comerdes morrereis de morte, não deve parecer absurdo não fossem desligados do corpo no mesmo dia em que comeram do fruto proibido e mortífero. Nesse mesmo dia a natureza piorou e viciou-se e, por justíssima separação da árvore da vida, apoderou-se deles a necessidade da morte corporal. Com tal necessidade nascemos todos. Por isso o Apóstolo não diz: O corpo há de morrer pelo pecado, mas: O corpo está morto em razão do pecado e o espírito é vida em virtude da justificação. E logo a seguir acrescenta: Se o Espírito daquele que da morte ressuscitou a Cristo habita em nós, o mesmo que da morte ressuscitou a Cristo, dá vida também a vossos corpos mortais, em virtude do Espírito que habita em vós. O corpo, que agora tem alma vivente, terá então espírito vivificante; contudo, diz o Apóstolo já estar morto, por estar sujeito à necessidade da morte. Tinha, então, alma vivente, não espírito vivificante, mas de tal forma, que não podia com razão chamar-se morto, porque sem o cometimento do pecado não haveria podido estar sujeito à necessidade da morte. Contudo, quando Deus nas seguintes palavras: Adão, onde estás? significou a morte da alma, que consiste em ser abandonada por Ele, e quando nestas: És terra e à terra irás figurou a morte do corpo, que consiste em dele apartar-se a alma, deve-se crer não haver dito nada a respeito da morte segunda justamente porque era sua intenção ficasse oculta por amor do Novo Testamento, onde com toda clareza se declara. O fim de tudo isso era manifestar que a morte primeira, comum a todos, se origina do pecado em que todos fomos solidários em Adão. Por outro lado, a morte segunda não é comum a todos, por amor àqueles que segundo o decreto de Deus foram chamados, aos que antes previra e predestinara, como diz o Apóstolo, para que se fizessem conformes com a imagem de seu Filho, de modo que seja o primogênito entre muitos irmãos, livres da morte segunda mercê da graça de Deus pelo Mediador. 2. Segundo a expressão do Apóstolo, o primeiro homem foi criado em corpo animal. Sua intenção era distinguir do que será espiritual na ressurreição este que agora é animal. É posto na terra, como semente, em estado de corrupção, e ressuscitará incorruptível. É posto na terra disforme e ressuscitará glorioso. É posto na terra sem movimento e ressuscitará cheio de vigor. É posto na terra como corpo animal e ressuscitará como corpo espiritual. Depois, para prová-lo, acrescenta: Porque assim como há corpo animal, também há corpo espiritual. Quis, desse modo, manifestar o que é o corpo animal, embora a Escritura não haja dito do primeiro homem, chamado Adão, quando pelo sopro de Deus lhe foi criada a alma: E foi feito o homem em corpo animal, e sim: Foi formado o homem em alma vivente. A intenção do Apóstolo foi dar a entender nesta perícope: Foi formado o homem em alma vivente, o corpo animal do homem. Como se devia entender o espiritual, mostra-o ao acrescentar: Mas o segundo Adão, em espírito vivificante, significando sem dúvida alguma a Cristo, que já ressuscitou da morte, de maneira que não pode morrer nunca mais. Por fim, remata, dizendo: Mas não é corpo espiritual o que foi formado primeiro, mas o animal e, em seguida, o espiritual. Essa passagem lança mais luz sobre a anterior referência ao homem animal no que está escrito haver sido o primeiro homem formado em alma vivente e o espiritual no que se lê: Mas o segundo Adão, em espírito vivificante. O corpo animal é o primeiro, qual o teve o primeiro Adão, que não haveria de morrer, se não pecasse, qual o temos agora, procedente de sua natureza, transformada e viciada pelo pecado, que o submeteu à necessidade da morte, qual se dignou ter Cristo por nós, não por necessidade, mas por possibilidade. Depois a este seguirá o corpo espiritual, qual já precedeu em Cristo, como em nossa cabeça, e seus membros terão na ressurreição dos mortos. 3. A seguir, o Apóstolo assinala manifesta diferença entre esses dois homens, dizendo: O primeiro homem é o terreno, formado da terra, e o segundo é o celeste, que vem do céu. Assim como o primeiro homem foi terreno, seus filhos também foram terrenos, e assim como é celeste o segundo, também seus filhos são celestes. De acordo com isso, assim como vestimos a imagem do homem terreno, vistamos também a imagem do homem celeste. Com semelhantes palavras o Apóstolo pretende que isso agora se realize em nós por sacramento, de acordo com esta passagem: Todos os que fostes batizados em Cristo estais revestidos de Cristo. Mas a realidade culminará, quando o que em nós há de animal por nascimento se haja transformado em espiritual pela ressurreição ou, para usar sua própria expressão: Fomos salvos em sua esperança. Vestimos a imagem do homem terreno pelo pecado e pela morte, que a geração nos infundiu, mas vestimos a imagem do homem celeste pela graça do perdão e da vida eterna, que nos dá a regeneração somente pelo Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus. Na intenção do Apóstolo, esse é o homem celeste que se deve entender aqui, porque do céu veio para vestir o corpo da mortalidade terrena e revesti-lo da imortalidade celeste. Dá também o nome de celestes a outros justamente porque pela graça se tornam membros seus, com Ele formando um só Cristo, a cabeça e o corpo. É o que com luz meridiana essa carta expressa nos seguintes termos: Porque assim como por um homem veio a morte, por um homem deve vir a ressurreição. Que assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos são vivificados. Se isso sucederá no corpo espiritual, que será em espírito vivificante? Está escrito todos, duas vezes, não porque todos os que morrem em Adão hajam de ser membros de Cristo (pois muitos deles serão eternamente castigados com a morte segunda), mas porque assim como ninguém morre em corpo animal, mas em Adão, assim ninguém é vivificado em corpo espiritual, mas em Cristo. Em conclusão, não se deve imaginar que na ressurreição teremos corpo igual ao que o primeiro homem teve antes do pecado. E estas palavras: Assim como o primeiro foi terreno, seus filhos também foram terrenos não devem ser entendidas segundo o corpo que seguiu à admissão do pecado. A razão é que não se deve pensar que antes do pecado seu corpo era espiritual e haja sido transformado em animal por merecimento do pecado. Os que assim pensam reparam muito pouco nas palavras do grande Doutor, que escreve: Se há corpo animal, há também o espiritual, como está escrito: O primeiro homem, Adão, foi formado em alma vivente. Será que isso aconteceu depois do pecado, se tal foi a primeira criação do homem, de que o mesmo Apóstolo tomou esse texto da Lei, para fazer ver o que é o corpo animal? CAPÍTULO XXIV Como se deve entender o sopro com que o primeiro homem foi feito em alma vivente ou o outro, que o Senhor espirou, ao dizer: "Recebei o Espírito Santo"? 1. Daí haverem alguns, com pouca precaução, pensado que neste versículo: Em seu rosto Deus inspirou espírito de vida e o homem foi feito em alma vivente não se pretende dizer que então se comunicou a alma ao primeiro homem, e sim que a alma que já tinha foi então vivificada pelo Espírito Santo. A semelhante interpretação os induz o lerem que Jesus, depois da ressurreição, soprou sobre os discípulos, dizendo: Recebei o Espírito Santo. Logo, deduzem que ali se fez algo semelhante, como se o evangelista, prosseguindo, acrescentasse: E foram feitos em alma vivente. Se o houvesse dito, deveríamos entender que o Espírito de Deus é uma espécie de vida das almas. Sem Ele as almas racionais devem ser consideradas mortas, embora os corpos pareçam viver por sua presença. Que, todavia, na criação do homem não sucedeu assim, testemunham-no suficientemente as palavras do Gênesis: E criou (formavit) Deus o homem do pó da terra. Alguns, buscando interpretação mais clara, disseram: E formou (finxit) Deus o homem do barro da terra. Porque mais acima dissera: Uma fonte subia da terra e regava toda a face da terra e, segundo eles, aqui barro devia ser entendido como composto de água e de terra. Logo a seguir acrescenta: E criou Deus o homem do pó da terra, como trazem os códices gregos, dos quais foi traduzida ao latim a Escritura. Que alguém prefira dizer criou (formavit) ou formou (fínxit), traduzindo a palavra grega éplasen, não tem importância; contudo, segundo parece, fica melhor formou (finxit). Mas aos que preferiram dizer criou (formavit) pareceu evitar desse modo a ambiguidade, porque em latim é mais corrente usar a palavra fingere para denominar aquele que com larvada mentira compõe algo. Esse homem, feito do pó da terra ou do barro (pois era pó umedecido), esse, repito, para expressá-la com maior viveza, usando a expressão da Escritura, pó da terra, ensina o Apóstolo haver sido feito corpo animal quando recebeu a alma. E foi criado esse homem em alma vivente, quer dizer, uma vez formado esse pó, foi feito em alma vivente. 2. E replicam: Já tinha alma, porque doutro modo não se chamaria homem, porquanto o homem não é apenas alma nem apenas corpo, mas composto de alma e de corpo. É grande verdade não ser todo o homem a alma do homem, mas sua parte superior, nem seu corpo todo o homem, mas sua parte inferior. E também o é que à união simultânea de ambos os elementos se dá o nome de homem, termo que não perde cada um dos elementos, quando deles falamos em separado. Não se diz a cada passo, sem que o proíba lei linguística alguma: Aquele homem morreu e agora está gozando ou penando, se tal coisa só se pode dizer da alma? A quem se proíbe dizer: Aquele homem está enterrado em tal ou qual lugar, se tal coisa só se pode dizer do corpo? Dirão, acaso, que a Divina Escritura não costuma expressar-se assim? Ao contrário, dá-nos testemunho disso, ao extremo de, mesmo estando unidos os dois elementos e em vida do homem, chamar homem a cada um deles, a saber, homem interior à alma e exterior ao corpo, como se fossem dois homens, quando, na realidade, ambos são ao mesmo tempo um homem apenas. Mas é preciso entender em que sentido se diz que o homem (ai feito à imagem de Deus e que o homem é terra e há de tornar à terra. O primeiro refere-se à alma racional, qual Deus a infundiu, soprando, ou se é mais adequada a expressão, inspirando no homem, quer dizer, no corpo do homem. E o segundo, ao corpo, tal qual foi por Deus formado do pó, corpo a que deu alma para fazê-la corpo animal, quer dizer, homem em alma vivente. , 3. Por isso, ao soprar sobre seus discípulos, dizendo: Recebei o Espírito Santo, o Senhor quis dar-nos a entender que o Espírito Santo não é somente Espírito do Pai, mas também Espírito do Unigênito. Um mesmo é o Espírito do Pai e do Filho e com Ele formam a Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, que não é criatura, mas Criador. O sopro corpóreo, procedente da boca carnal, não era a substância e a natureza do Espírito Santo, mas simples figura, que nos manifestava, como indiquei, ser o Espírito Santo comum ao Pai e ao Filho e não ter cada um deles o seu, mas ser um mesmo o de ambos. Nas sagradas Escrituras tal Espírito é sempre expresso com a palavra grega pneuma, como nesse lugar o Senhor o denomina, ao dá-la a seus discípulos, significando-o com o sopro de sua boca corporal. Não me lembro de passagem alguma da divina Palavra em que seja nomeado doutro modo. Neste versículo: E formou Deus o homem do pó da terra e em seu rosto soprou ou inspirou espírito de vida, não diz o grego pneuma, que de costume se traduz por Espírito Santo, mas pnoé, nome aplicado mais correntemente à criatura que ao Criador. Baseados nisso, alguns tradutores, para diferençá-los, preferiram traduzir essa palavra por sopro e não por espírito. Emprega-se essa mesma expressão na passagem de Isaías que diz: Eu fiz todo sopro, significando, sem dúvida, toda alma. A palavra grega pnoé, os latinos às vezes interpretaram por sopro, às vezes por espírito, às vezes por inspiração ou aspiração, quando se aplica também a Deus. Mas pneuma, sempre a traduziram por espírito, quer do homem, de que diz o Apóstolo: Que homem sabe o que é do homem, senão o espírito do homem que nele há?, quer do irracional, como está escrito no livro de Salomão: Quem sabe se o espírito do homem remontará ao céu e o espírito da besta se abaterá até à terra?, quer corpóreo, por outro nome chamado vento, termo usado no Salmo, que canta: O granizo, o fogo, o gelo, a neve e o tempestuoso vento, quer não já o espírito criado, mas o Criador, como o de que diz o Senhor no Evangelho: Recebei o Espírito Santo, figurando-o pelo sopro de sua boca carnal. E também onde diz: Ide, batizai todas as gentes em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Aqui de modo muito expressivo e muito claro se encarece a Trindade. E onde se lê: Deus é espírito e noutras muitíssimas passagens das Sagradas Letras se dá a entender o mesmo. Em todos esses lugares das Escrituras, os códices gregos não escrevem pnoé, mas pneuma e os latinos espírito, não sopro. Se, por conseguinte, no versículo: Em seu rosto inspirou ou, se é mais adequada a expressão, soprou espírito de vida, o grego houvera escrito pneuma em lugar de pnoé, mesmo em tal caso não nos veríamos precisados de entender o Espírito Criador, na Trindade propriamente chamado Espírito Santo, posto que pneuma, como fica dito, costuma aplicar-se não apenas ao Criador, mas também à criatura. 4. Mas, replicarão, ao dizer espírito, não haveria acrescentado de vida, se não quisesse dar a entender o Espírito Santo, e ao dizer: Foi criado o homem em alma, não teria acrescentado vivente, se não significasse a vida da alma, que como dom o Espírito de Deus lhe comunicou. Vivendo a alma, prosseguem, essa vida que lhe é própria, que necessidade havia de acrescentar vivente, senão apenas a de dar a entender a vida que o Espírito Santo lhe infunde? E isso que é senão apegar-se com interesse a hipóteses humanas e atender com desinteresse às Santas Escrituras? Porque era grande coisa não ir longe, mas ler pouco mais acima no mesmo livro: Produza a terra alma vivente, quando foram criados todos os animais terrestres? E depois, passados alguns capítulos, significava grande coisa dar tento de estar escrito: E foi destruído tudo o que tem espírito de vida e tudo o que estava no seco, quando, ao tratar do dilúvio, dizia haver perecido tudo quanto vivia na terra? Por conseguinte, se também nos irracionais encontramos alma vivente e espírito de vida, segundo o estilo da Divina Escritura, e dizendo o grego nessa passagem, que soa assim: Tudo quanto tem espírito de vida, não pneu ma, mas pnoé, por que não havemos de perguntar: Que necessidade havia de acrescentar vivente, se a alma que não vive não pode existir? Ou que necessidade havia de acrescentar de vida, havendo antes dito espírito? Mas compreendemos que, quando a Escritura dizia espírito de vida e alma vivente, segundo seu estilo, queria dar a entender os animais, quer dizer, os corpos animados, que têm, graças à alma, o sentido corporal. Contudo, na criação do homem esquecemos o estilo da Escritura, pois aí fala também segundo esse estilo. Em tal sentido insinua que o homem, uma vez recebida a alma racional, que intentou apresentar criada não como efeito da água ou da terra, mas do sopro de Deus, foi formado para viver em corpo animal, obra da alma vivente, como os animais, de que disse: Produza a terra alma vivente. Deles diz também terem espírito de vida. Aqui o grego não disse pneuma, mas pnoé, não expressando com esse termo o Espírito Santo, mas a alma dos animais. 5. Mas acrescentam: Assim se põe em evidência que o sopro de Deus lhe saiu da boca e, se acreditamos ser a alma, será lógico concluir ser da mesma substância que Deus e igual à sua Sabedoria, que diz: Eu saí da boca do Altíssimo. Deve-se fazer notar não haver a Sabedoria dito ser sopro da boca de Deus, mas proceder-lhe da boca. Assim como podemos emitir sopro, não da natureza que nos constitui em homens, mas do ar que nos rodeia, que trazemos e levamos, respirando e aspirando, assim Deus, onipotente, pôde formar não de sua natureza, nem de criatura alguma sujeita a seu domínio, mas do nada, um sopro, que com muita propriedade está escrito haver inspirado ou soprado para infundi-lo no corpo do homem. Ele é incorpóreo e o sopro, incorpóreo, mas Ele é imutável e o sopro, mutável, porque Deus, incriado, infundiu algo criado. Entretanto, para que esses que se prezam de falar das Escrituras e não lhes estudam o estilo literário saibam que não apenas se diz sair da boca de Deus o que é igualou da mesma natureza que Ele, ouçam ou leiam o que Deus ditou e foi escrito: Porquanto és morno e não frio nem quente, estou para vomitar-te de minha boca. 6. Não há, pois, motivo algum para resistirmos ao Apóstolo, que fala com tamanha clareza, distinguindo o corpo animal do corpo espiritual, quer dizer, esse em que havemos de estar, deste em que atualmente estamos. É posto em terra corpo animal e ressuscitará corpo espiritual. Porque assim como há corpo animal, há também o espiritual, segundo está escrito: O primeiro homem, Adão, foi formado em alma vivente; o segundo Adão, em espírito vivificante. Mas primeiro não foi formado o corpo espiritual, e sim o animal e, em seguida, o espiritual. O primeiro homem é o terreno, formado da terra, e o segundo é o celeste, que vem do céu. Assim como o primeiro homem foi terreno, seus filhos também foram terrenos, e assim como é celeste o segundo, também seus filhos são celestes. De acordo com isso, assim como vestimos a imagem do homem terreno, vistamos também a imagem do homem celeste. Tais palavras do Apóstolo já as mencionamos mais acima. O corpo animal, em que, segundo ele, foi formado o primeiro homem, Adão, foi criado de tal modo que podia morrer, é verdade, mas não morreria, se não houvesse pecado. E é que não pode morrer o que há de ser espiritual e imortal pelo espírito vivificante. Assim, a alma, criada imortal, embora aparentemente morta por causa do pecado, pois carece dessa vida sua que é o Espírito de Deus, mercê de quem podia viver feliz e sabiamente, não deixa de viver com uma espécie de vida que também lhe é própria, embora miserável, e não deixa de viver por haver sido criada imortal. É o que sucede com os anjos desertores, que, ainda quando de algum modo hajam morrido, pecando, porque abandonaram a fonte da vida, que é Deus, com quem podiam viver feliz e sabiamente, não puderam morrer, deixando em absoluto de viver e de sentir, por haverem sido criados imortais. E desse modo, serão, depois do juízo, precipitados na segunda morte, de maneira que nem mesmo ali carecerão da vida, pois não se verão privados de sensibilidade, quando vivam em dores. Porém, os homens que se acolhem à graça de Deus e serão concidadãos dos santos anjos, estáveis em sua bem-aventurança, serão revestidos de corpos espirituais tais, que nem pecarão, nem morrerão nunca mais. Sua imortalidade será como a dos anjos, que dela nem o pecado poderá privá-los, com a diferença de que conservarão a natureza da carne e não perdurará corruptibilidade alguma carnal nem peso. 7. Tal questão traz como que pela mão outras que necessariamente devem ser tratadas e resolvidas com o auxílio de Deus e Senhor da verdade. A primeira é esta: Nos membros desobedientes dos primeiros homens, do pecado de desobediência é que se originou a libido, ao abandoná-los a graça de Deus? Assim se explicaria que em sua nudez abrissem os olhos, isto é, reparassem com maior curiosidade nela e, porque o movimento impudente resistia ao arbítrio da vontade, cobrissem suas vergonhas. E a segunda: Como haviam de propagar-se os filhos, se, como haviam sido criados, permanecessem sem prevaricação? Como, porém, este livro já está exigindo ponto final e essa questão não é para limitar-se a exíguas páginas, parece-me determinação mais acertada deixá-la para o livro seguinte. LIVRO DÉCIMO QUARTO Volta a falar do pecado original como fonte da vida carnal e das paixões viciosas. Detém-se em especial em mostrar que a libido vergonhosa é justo castigo da desobediência e investiga o modo de a espécie humana propagar-se sem libido, se o primeiro homem não houvesse pecado. CAPÍTULO I A desobediência do primeiro homem submeteria todos a perpétua morte segunda, se a graça de Deus não livrasse muitos. Já nos livros anteriores apontamos que Deus, para unificar o gênero humano, não apenas pela semelhança de natureza, mas também por laços de consanguinidade, para ligá-los, digo, com o vínculo da paz em unidade concorde, quis procedessem de um só todos os homens. Ademais, foi também vontade sua não estivesse o gênero humano sujeito à morte individual, caso os dois primeiros homens, dos quais um foi criado do nada e do primeiro o outro, por causa da desobediência, não se tornassem credores dela. Foi tão enorme o pecado em que consentiram, que, em virtude dele, a natureza humana piorou e se transmitem aos descendentes o próprio pecado e a necessidade da morte. De tal maneira o império da morte dominou os homens, que dera com todos na morte segunda, como devida pena, se uma graça de Deus não devida dela não livrasse alguns deles. Daí que, sendo tantos e tão grandes os povos disseminados por todo o orbe da terra, tão diversos em ritos e em costumes e tão variados em língua, em armas e em roupas, não formem senão dois gêneros de sociedade humana, que, conformando-nos com nossas Escrituras, podemos chamar duas cidades. Uma delas é a dos homens que querem viver segundo a carne, a outra, a dos que querem viver segundo o espírito, cada qual em sua própria paz. E a paz de cada uma delas consiste em ver realizados todos os seus desejos. CAPÍTULO II Que se deve entender por viver segundo a carne? 1. Primeiro, é preciso considerar o que é viver segundo a carne e o que é viver segundo o espírito. Quem de repente topar com semelhante expressão, não recordando ou não reparando na linguagem das Santas Escrituras, pode pensar que os filósofos epicuristas vivem segundo a carne, por fazerem radicar no prazer do corpo o supremo bem do homem. A estes acrescentariam outros, se existem, que de algum modo opinem consista no bem do corpo o supremo bem do homem e toda essa canalha que, sem professar dogma nem filosofia alguma, é propensa à libido e não conhece outros prazeres e gozos além dos corporais e sensíveis. Por outro lado, os estoicos, para esse, viveriam segundo o espírito, porque, segundo eles, o supremo bem do homem se radica no ânimo. E que é o ânimo humano senão o espírito? De acordo, porém, com o sentido da Escritura, uns e outros vivem segundo a carne. Com efeito, não chama carne apenas ao corpo do animal, terrestre e mortal, como quando diz: Nem toda carne é a mesma carne, mas uma é a carne do homem, outra a da besta, outra a das aves e outra a dos peixes, mas a essa palavra dá outras muitas acepções. Algumas vezes chama carne ao homem, quer dizer, à natureza humana, tomando o todo pela parte. Assim: Nenhuma carne será justificada pelas obras da lei. Que quis dar a entender aqui senão todo homem? Mais claramente o expressa pouco depois: Ninguém se justifica pela lei. E aos gálatas: Sabendo que o homem não se justifica pelas obras da lei. Entende-se também em tal sentido: E o Verbo se fez carne, isto é, homem. Alguns, não entendendo bem semelhante passagem, opinaram haver Cristo carecido de natureza humana. Assim como no lugar do Evangelho em que se leem estas palavras de Maria Madalena: Levaram meu Senhor e não sei onde o colocaram se toma a parte pelo todo, pois falava somente da carne de Cristo, que cria haver sido roubada do sepulcro, assim, ao dizer carne, se toma o todo pela parte e se entende o homem, como sucede na citação anterior. 2. Sendo, pois, tantas as acepções que a Divina Escritura dá à palavra "carne" ,cuja investigação e relação seria prolixo fazer, para poder inquirir que é viver segundo a carne (coisa, sem dúvida, má, posto que a natureza da carne não é um mal), examinemos com cuidado a passagem da Carta do Apóstolo São Paulo aos gálatas, que diz: As obras da carne são bem manifestas; são adultério, fornicações, desonestidade, luxúria, culto de ídolos, feitiçarias, inimizades, porfias, emulações, iras, dissensões, heresias, invejas, embriaguezes, glutonerias e coisas semelhantes. A respeito delas previno-vos, como já tenho dito, que os que tais coisas fazem não possuirão o reino dos céus. Desse ponto de vista, toda essa passagem da Carta apostólica pode resolver que é viver segundo a carne. Entre as obras da carne que disse manifestas e, uma vez enumeradas, condenou, encontramos não apenas as relativas ao prazer carnal, como as fornicações, a desonestidade, a luxúria, as embriaguezes, as glutonerias, mas também outras que descobrem os vícios do ânimo, alheios ao prazer da carne. Quem não compreende que a idolatria, as feitiçarias, as inimizades, as porfias, as emulações, as iras, as dissensões, as heresias e as invejas são vícios mais do ânimo que da carne? Pode muito bem suceder que alguém se abstenha dos prazeres carnais por amor da idolatria ou de algum erro herético e, contudo, mesmo em tal caso, a esse homem, que parece refrear e reprimir a libido carnal, a autoridade do Apóstolo intima que vive segundo a carne. O próprio abster-se dos prazeres carnais está dizendo que pratica obras condenáveis da carne. Quem no ânimo não abriga as inimizades? Ou quem diz a inimigo ou a quem imagina tal: "Tens má carne contra mim" e não: "tens mau ânimo contra mim"? Enfim, como ninguém, ouvindo, por assim dizer, carnalidades, vacilaria em atribuí-las à carne, assim ninguém duvida que as animosidades pertencem ao ânimo. Por que, pois, todas essas e outras semelhantes recebem do Doutor dos Gentios, em verdade e em fé, o apelativo de obras da carne, senão porque, segundo a figura literária pela qual se significa o todo pela parte, sua intenção é dar a entender, com o nome de carne, o homem todo? CAPÍTULO III A causa do pecado tem origem na alma, não na carne, e a corrupção contraída pelo pecado não é pecado, mas pena do pecado. 1. Se alguém disser que a carne é a causa de todos os vícios nos maus costumes, justamente porque a alma, tarada com a carne, vive assim, é fora de dúvida que se não fixou em toda a natureza do homem. É verdade que o corpo corruptível oprime a alma; por isso o Apóstolo, quando trata do corpo corruptível, de que pouco antes dissera: Embora nosso homem exterior se corrompa, escreve: Sabemos que, se nossa casa e morada terreno se destrói, Deus nos dará outra casa, casa não feita por mão de homens, que durará eternamente. Que por isso aqui suspiramos, desejando ser sobrevestidos da habitação nossa do céu, se, todavia, formos achados vestidos, não nus. Assim, os que estamos nesta morada gememos, acabrunhados, pois não queríamos ver-nos despojados, mas ser revestidos de maneira que a vida absorva o mortal. Somos acabrunhados pelo corpo corruptível e, sabendo que a causa desse acabrunhamento não é a natureza e a substância do corpo, mas sua corrupção, não queremos ser despojados do corpo, mas ser revestidos de sua imortalidade. Então existirá também o corpo; como, porém, não será corruptível, não se acabrunhará. Logo, o corpo corruptível acabrunha agora a alma e a morada eterna oprime o sentido, que imagina muitas coisas. Quem pensa procedam do corpo todos os males da alma está em erro. 2. Embora Vergílio pareça cantar em versos sublimes os sentimentos de Platão, quando diz: Tem esses germens de vida vigor ígneo que devem à sua origem celeste, enquanto as impurezas do corpo não os contaminam, nem os embotam nossos órgãos terrenos ou nossos membros, já destinados à morte, e embora pretenda dar a entender que as quatro conhecidíssimas perturbações do ânimo, o desejo e o medo, a alegria e a tristeza, como fontes de todo pecado e de todo vício, se devem ao corpo, ao escrever: Quando, porém, isso acontece, as almas conhecem o desejo e o medo, a alegria e a dor, e não veem a claridade dos céus, presas em suas trevas e em seu cárcere sem olhos, nossa fé procede de outra maneira. O motivo é que a corrupção, que acabrunha a alma, não é a causa do primeiro pecado, mas o castigo, nem a carne corruptível fez a alma ser pecadora, e sim a alma pecadora é que fez a carne ser corruptível. Embora seja verdade existirem alguns incentivos e alguns desejos viciosos procedentes da corrupção da carne, não devem ser atribuídos à carne todos os vícios da alma iníqua, para não acontecer que justifiquemos o diabo, que não tem carne. Talvez não se possa dizer que o diabo seja fornicador ou bêbado ou esteja sujeito a qualquer outro mal pertinente ao prazer carnal, embora seja o oculto instigador e o conselheiro de tais pecados, mas é possível dizer-se que é o soberbo e o invejoso por antonomásia.• Essa viciosidade prendeu-o de tal maneira, que com suplício eterno o precipitou nas obscuras prisões deste ar. Os vícios, que estabeleceram seu império no diabo, atribui-os o Apóstolo à carne, embora seja certo que dela o diabo carece. Diz, por exemplo, serem obras da carne as inimizades, as porfias, as emulações, as animosidades e as invejas. Fonte e princípio de todos esses males é a soberba, que sem carne reina sobre o diabo. Quem mais do que ele é inimigo dos santos? Encontra-se alguém mais contencioso, mais animoso, mais êmulo e mais invejoso deles que o diabo? Senhoreando nele todos esses vícios sem a carne, por que são obras da carne senão por serem obras do homem, a quem, como dissemos, dá o nome de carne? Com efeito, o homem não se tornou semelhante ao diabo por ter carne, de que o diabo carece, mas por viver segundo si mesmo, quer dizer, segundo o homem. Também o diabo quis viver segundo si mesmo, quando não se manteve na verdade. E desse modo falou mentira, não de Deus, mas de si próprio, que não apenas é mendaz, mas o pai da mentira. Foi quem primeiro mentiu e o princípio do pecado é o mesmo da mentira. CAPÍTULO IV Que é viver segundo o homem e que segundo Deus? 1. Em consequência, quando o homem vive segundo o homem e não segundo Deus, é semelhante ao diabo. Porque nem o anjo deve viver segundo o anjo, mas segundo Deus, para manter-se na verdade e falar a verdade, que vem de Deus, não a mentira, que nasce dele mesmo. Do homem diz o Apóstolo noutro lugar: Se é que se manifestou a verdade de Deus em minha mentira, chamando à mentira minha e à verdade, de Deus. Quando, portanto, o homem vive segundo a verdade, não vive segundo ele mesmo, mas segundo Deus, pois Deus é quem disse: Eu sou a verdade. Quando vive segundo ele mesmo, quer dizer, segundo o homem, não segundo Deus, indubitavelmente vive segundo a mentira. Não porque o homem seja mentira,sendo Deus seu autor e criador, Deus que não é autor nem criador da mentira, mas porque o homem não foi criado justo para viver segundo ele mesmo, mas segundo quem o fez, isto é, para fazer a vontade de Deus e não a sua. Não viver como sua condição exigia que vivesse, eis a mentira. Quer ser feliz, mas sem viver de maneira que possa ser. Que há de mais mentiroso que semelhante querer? Donde se segue que muito bem se pode dizer que todo pecado é mentira, porque o pecado não se comete senão pela vontade com que queremos que as coisas nos corram bem ou com que não queremos que nos corram mal. Logo, a mentira consiste em que, quando procuramos que tudo nos corra bem, de tal ação nos advém mal ou em que, quando pretendemos que nos corra melhor, desse mesmo ato tudo nos corre pior. Donde isso procede senão do fato de que o homem pode viver bem de Deus, a quem, pecando, abandona, não de si mesmo, porque, vivendo assim, peca? 2. Como observamos, de haver uns que vivem segundo a carne e outros segundo o espírito originaram-se duas cidades diversas e contrárias entre si. A mesma ideia pode ser expressa do seguinte modo: uns vivem segundo o homem e outros segundo Deus. Com meridiana clareza escreve São Paulo aos coríntios: Havendo entre vós zelos e discórdias, não é claro que sois carnais e procedeis segundo o homem? Logo, proceder segundo o homem é igual a ser carnal, porque pela carne, quer dizer, por essa parte do homem, se entende o homem todo. Pouco antes chamara animais àqueles mesmos que agora chamou carnais. Diz assim: Porque quem dos homens sabe as coisas do homem senão o espírito do homem, que está dentro dele? Como as coisas de Deus ninguém as sabe senão o Espírito de Deus. Por conseguinte, diz, não recebemos o espírito deste mundo, mas o Espírito que é de Deus, a fim de conhecermos as coisas que Deus nos comunicou e, por isso, não tratamos com palavras estudadas de ciência humana, mas conforme nos ensina o Espírito, acomodando o espiritual ao espiritual. Porque o homem animal não pode fazer-se capaz das coisas que são do Espírito de Deus, pois para todos são ignorância crassa. A esses homens animais diz pouco depois: E assim é, irmãos, que não pude falar-vos como a homens espirituais, mas como a carnais. Devemos entendê-lo também pela figura de retórica em que se toma o todo pela parte. Assim, pela carne e pela alma, partes do homem, se pode designar o todo, que é o homem. De acordo com isso, o homem animal não é distinto do carnal, mas ambos são a mesma coisa, quer dizer, o homem que vive segundo o homem. Assim se dão a entender os homens, quer nesta passagem: Nenhuma carne será justificada pelas obras da lei, quer nesta: Baixaram com Jacó ao Egito setenta e cinco almas. Ali por toda carne se entende todo homem; aqui, por setenta e cinco almas, setenta e cinco homens. A cláusula não com palavras estudadas de ciência humana poderia expressá-la assim: "não com palavras estudadas de ciência carnal" e nesta: procedeis segundo o homem poderia dizer "segundo a carne". É o que aparece mais claro no que segue: Porque dizendo um: Eu sou de Paulo e o outro: Eu, de Apolo, não sois homens? A expressão; sois animais e sois carnais agora é mais plástica: sois homens, que se traduz: Viveis segundo o homem, não segundo Deus. Se vivêsseis segundo Ele, seríeis deuses. CAPÍTULO V Opinião dos platônicos e dos maniqueístas sobre a natureza da alma. Assim, pois, não há necessidade de acusarmos a natureza da carne, por causa de nossos vícios e pecados, injuriando ao mesmo tempo o Criador. A carne, que em seu gênero e ordem, é boa. O que não é bom é abandonar o bem Criador e viver segundo o bem criado, quer se escolha viver segundo a carne, quer segundo a alma, quer segundo o homem total, constante de alma e de carne (donde lhe vem o poder ser significado só pela alma ou só pela carne). Quem louva a natureza da alma como supremo bem e acusa a natureza da carne como mal, fora de dúvida apetece a alma carnalmente e evita carnalmente a carne, porque se funda na vaidade humana, não na verdade divina. É certo que os platônicos não deliram como os maniqueus, a ponto de detestarem os corpos terrenos como a natureza do mal, posto atribuírem a Deus, como Criador, todos os elementos componentes deste mundo visível e tangível e suas qualidades. Opinam, contudo, que os órgãos terrenos e os membros mortais causam tais impressões nas almas, que delas provêm as doenças dos desejos e dos temores, das alegrias e das tristezas. Nessas quatro perturbações, como as chama Cícero, ou paixões, como muitos traduzem literalmente do grego, radica-se toda a viciosidade dos costumes humanos. Se assim é, que significa que Enéias, em Vergílio, em havendo ouvido do pai, nos infernos, que as almas tornarão de novo aos corpos, se admire de tal opinião e exclame: como é possível, pai, haver almas que queiram remontar outra vez ao ar dos céus e aspirem a entrar de novo no estreito cárcere da carne? Donde lhes vem a esses desgraçados tão insensato desejo de luz? Pode acaso tal insensato desejo, oriundo dos órgãos terrenos e dos membros mortais, ainda subsistir naquela tão celebrada pureza das almas? Não afirma o poeta estarem purificadas de todas essas pestes corpóreas, como ele diz, quando nelas nasce o desejo de retornar outra vez aos corpos? Donde se infere que, embora assim fosse (seria o cúmulo da vaidade), alternando alternativa e incessantemente a purificação e a mácula das almas que vão e vêm, não é possível dizer-se com verdade procedam dos corpos terrenos todos os movimentos viciosos e culpáveis das almas. O motivo é que, segundo a expressão do famoso literato, tão néscio desejo não procede do corpo, de tal modo que obrigue a alma, purificada de toda peste corpórea e livre de todo corpo, a estar em algum corpo. Donde se segue, de acordo com sua própria confissão, não ser apenas a carne que na alma excita o desejo e o temor, a alegria e a tristeza, mas poder também a alma excitar por si mesma tais movimentos. CAPÍTULO VI A retidão ou a malícia das afeições anímicas dependem da vontade humana. É de grande importância saber como é o querer do homem, porque, se desordenado, seus movimentos serão desordenados e, se reto, não apenas serão inculpáveis, mas até mesmo louváveis. Em todos eles há querer, melhor diríamos, todos eles não passam de quereres. Pois que é o desejo e a alegria senão querer em consonância com as coisas que queremos? E que é o temor e a tristeza senão querer em dissonância com o que não queremos? Quando concordamos, apetecendo o que queremos, temos o desejo; quando concordamos, gozando do que queremos, temos a alegria. De igual modo, quando discordamos do que não queremos que suceda, tal querer chama-se temor; quando discordamos do que sucede a quem não o quer, temos o querer chamado tristeza. Em suma, como se alucina ou ofende a vontade do homem, segundo os diferentes objetos que apetece ou recusa, assim a vontade do homem se transforma em tal ou tal afeição. Por isso, o homem que vive segundo Deus e não segundo o homem precisa gostar do bem e, em consequência, odiar o mal. E como ninguém é mau por natureza, pois tudo quanto é mau o é por vício, quem vive segundo Deus deve ódio perfeito aos maus. Tal ódio há de manter-se nesta linha: não odiar o homem pelo vício nem amar o vício pelo homem, mas odiar o vício e amar o homem. Sanado o vício, ficará unicamente o que deve amar e nada do que deve odiar. CAPÍTULO VII As palavras "amor" e "dileção" usam-se indistintamente nas sagradas Letras para o bem e para o mal. 1. De quem tem propósito de amar a Deus e ao próximo como a si mesmo, não segundo o homem, mas segundo Deus, se diz ser de boa vontade por esse amor. Nas Sagradas Letras o nome mais corrente de tal afeto é o de caridade, mas chamam-no também amor. Diz o Apóstolo que o escolhido para governar o povo, segundo sua vontade, deve gostar do bem. O Senhor perguntou ao Apóstolo Pedro: E tua dileção superior à destes? Respondeu-lhe Pedro: Senhor, sabes que te amo. Tornou o Senhor a perguntar-lhe não se o amava, mas se lhe tinha dileção, e Pedro tornou a responder: Senhor, sabes que te amo. À terceira pergunta, porém, o Senhor já não diz: "Tens-me dileção?", mas: Amas-me? E o evangelista acrescenta logo a seguir: Pedro contristou-se de que pela terceira vez lhe perguntasse: Amas-me?, quando na verdade o Senhor perguntara, não três vezes, mas uma apenas: Amas-me? e duas: Tens-me dileção? Disso deduzimos que, quando o Senhor dizia: Tens-me dileção? queria simplesmente dizer: Amas-me? Todavia, Pedro não mudou o termo dessa única realidade, mas respondeu pela terceira vez: Senhor, sabes tudo, sabes que te amo. 2. Julguei-me no dever de recordar tudo isso precisamente por alguns pensarem que uma coisa é a dileção ou caridade e outra o amor. Dizem dever-se tomar em bom sentido a dileção e em mau o amor. É certíssimo não haverem nem mesmo os autores das letras profanas falado com semelhantes acepções. Mas discutam os filósofos sobre se se distinguem e por que razão. Notarei apenas que em seus livros se fala do grande valor do amor cujo objeto é o bem e Deus mesmo. Era forçosa a insinuação de que as Escrituras de nossa religião, cuja autoridade antepomos a quaisquer outros escritos, não chamam a uma coisa amor e à outra dileção. Já mostramos que a palavra "amor" também se usa em bom sentido. Mas com o fim de ninguém imaginar que o amor se toma em bom sentido e em mau e que a dileção somente se toma no bom, repare no que está escrito no Salmo: Quem tem dileção pela iniquidade odeia sua alma. E nesta outra passagem do Apóstolo São João: Se alguém tem dileção pelo mundo nele não habita a dileção de Deus. Eis a dileção, usada em bom e em mau sentido na mesma passagem. E para ninguém impacientar-se, querendo ver o amor empregado em mau sentido (no bom já o mostramos), leia o que está escrito: Levantaram-se homens amantes de si mesmos, amadores do dinheiro. Em conclusão, o reto querer é o amor bom e o perverso querer, o amor mau. E assim, o amor ávido de possuir o objeto amado é o desejo; a posse e o desfrute de tal objeto é a alegria; a fuga ao que é adverso é o temor e sentir o adverso, se acontecer, é a tristeza. Semelhantes paixões, por conseguinte, são más, se mau o amor, e boas, se é bom. Provemos de Escritura em punho o que dissemos. O Apóstolo quer dissolver-se e estar com Cristo e: Ardeu-me a alma em ânsias de desejar-te os juízos ou, se mais adequada a expressão: Minha alma desejou arder em ânsias de teus juízos e: A concupiscência da sabedoria conduz ao reino. Por outro lado, o uso da linguagem alcançou tal auge, que, se se diz "apetite" ou apenas "concupiscência", não se pode entender senão em mau sentido. A alegria, contudo, entende-se no bom: Alegrai-vos, justos, e regozijai-vos no Senhor e: Infundiste-me a alegria no coração e: Encher-me-ás de alegria com tua presença. O temor emprega-o o Apóstolo também no bom sentido, quando diz: Trabalhai com temor e tremor na obra de vossa salvação e: Não te ensoberbeças, antes vive com temor e: Mas temo que, assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, assim também sejam vossos espíritos pervertidos com a castidade existente em Cristo. Enfim, a respeito da tristeza, por Cícero chamada enfermidade e por Vergílio dor, onde diz: Sofrem e gozam (que preferi traduzir por tristeza, porque a enfermidade ou a dor são de uso mais corrente nos corpos), suscita-se questão muito delicada, a saber, se é possível empregá-la para significar algo bom. CAPÍTULO VIII Os estoicos opinaram que no ânimo do sábio se processam três perturbações e dele excluem a dor ou a tristeza, por incompatível, segundo eles, com a virtude anímica. 1. Os estoicos opinaram serem três as que os gregos chamam eupatheiai, por Cícero traduzidas ao latim como "constâncias", correspondentes no ânimo do sábio a suas três perturbações, ao desejo a vontade, à alegria o gozo, ao medo a precaução. E negaram que à enfermidade ou à dor, que para evitar a ambiguidade preferimos denominar tristeza, possa no ânimo do sábio corresponder alguma. À vontade, dizem, apetece o bem, que o torna sábio; o gozo é efeito do bem alcançado, que o sábio consegue por completo; a precaução previne o mal, que o sábio deve evitar. A tristeza, como produto de mal já sucedido, pensam não pode causar nenhum dano ao sábio e, portanto, em seu ânimo nada pode corresponder-lhe a ela. Em sua concepção, por conseguinte, somente o sábio é susceptível de vontade, de gozo e de precaução e somente o néscio é capaz de desejo e de alegria, de temor e de tristeza. As três primeiras são as constâncias, as outras quatro, segundo Cícero, as perturbações, as paixões, segundo outros muitos. Em grego, como fica dito, as três chamam-se eupatheiai e as quatro, páthe. Investigando com todo o cuidado e com todas as minhas possibilidades se esse modo de falar está de acordo com nossas Escrituras, verifiquei que o profeta escreve: Não há gozo para os ímpios, diz o Senhor, como se os ímpios pudessem alegrar-se dos males e não gozar deles, porque o gozo é privativo dos bons e dos piedosos. Lê-se, de igual modo, no Evangelho: Fazei com os demais homens tudo o que queirais façam eles convosco, como se fora impossível querer algo mal ou torpemente, mas não desejá-lo. E verdade que alguns intérpretes, segundo o uso corrente, acrescentaram bens e leram assim: Todo o bem que quereis vos façam os homens. Creram-no assim, para prevenirem a torcida interpretação de alguém capaz de imaginar que, por haver homens que fazem coisas desonestas, por exemplo, para silenciar outras mais torpes, banquetes luxuriosos, deve, pagando na mesma moeda, cumprir nisso o preceito. Mas no Evangelho grego, fonte original dessa versão, não se lê bens, mas: Tudo o que quereis façam os demais convosco fazei-o com eles. E, segundo meu humilde modo de pensar, expressou-o assim porque, ao dizer quereis, já tentou dar a entender bens, pois não diz: "desejais". 2. Nem sempre, contudo, tais diques devem opor-se à nossa linguagem. Impõe-se, entretanto, fazer uso de tal propriedade. E, quando lemos esses autores, cuja autoridade não nos é permitido negar, as passagens em que o reto entendimento não encontre outra saída, como as aduzidas, parte do profeta e parte do Evangelho, é preciso entendê-las assim. Quem ignora que os ímpios não cabem em si de alegria? E, contudo, não há gozar para os ímpios, diz o Senhor. Por que, senão porque o gozar tem significação concreta, quando se emprega a palavra em sentido estrito e próprio? De igual modo, quem negará ser muito bom mandar os homens fazerem com os demais tudo o que desejam façam os demais com eles, para não serem afagados ao mesmo tempo pela torpeza do prazer ilícito? E, todavia, reza o salubérrimo e verdadeiríssimo preceito: Tudo o que quereis façam os homens convosco fazei-o com os demais. Por que, senão porque nesse lugar usou a palavra querer, cuja acepção não pode ser pejorativa, em seu sentido próprio? Certo é que não usara essa expressão mais corrente, frequente, em especial, na linguagem comum: Não queirais proferir mentira alguma, se não houvera também querer mau, de cuja malícia se distingue a vontade pelos anjos pregada nos seguintes termos: Paz na terra aos homens de boa vontade. Se o querer não pode ser senão bom, de boa foi acrescentado por verdadeira redundância. Seria algo demais o que disse o Apóstolo em louvor da caridade, a saber, que a caridade não se goza na iniquidade, se a isso não se reduz o gozo da malícia? Mesmo entre os autores das letras profanas são usados indistintamente esses termos. Cícero, orador tão afamado, diz: Desejo ser clemente, senadores. É evidente que aqui usa em bom sentido essa palavra. E quem haverá tão pouco instruído que não sustente que deveria dizer quero e não desejo? Em Terêncio, certo moço sem-vergonha, ardendo em torpe desejo, diz: Não quero senão Filomena. Que era libido esse querer indica-o suficientemente a resposta de velho escravo a seu senhor. Disse assim: Seria bem melhor buscares o modo de arrancar do peito esse amor que dizer isso, que te acende mais a libido! Testemunho de haverem usado o gozo também em acepção pejorativa é o seguinte verso de Vergílio, em que se expressam de modo resumido as quatro perturbações: Por isso, temem e desejam, sofrem e gozam. Noutra parte diz o mesmo autor: Os maus gozos do espírito. 3. Portanto, querem, se acautelam e gozam os bons e os maus, ou, para dizê-lo com outras palavras, desejam, temem e alegram-se os bons e os maus, uns bem e outros mal, todavia, segundo sua vontade seja reta ou não. A própria tristeza, para a qual os estoicos pensaram não ser possível encontrar correspondente no âmbito do sábio, apresenta-se empregada em boa acepção, principalmente em nossos autores. O Apóstolo gaba os coríntios, porque se contristaram segundo Deus. Mas haverá talvez quem diga haver-se o Apóstolo congratulado com eles porque se contristarem, arrependendo-se, e essa tristeza não podem tê-la senão os que pecaram. Ouçamos-lhe as palavras: Vejo que aquela carta vos contristou por algum tempo, mas agora me alegro, não da tristeza que ti vestes, mas de que vossa tristeza vos haja conduzido ao arrependimento. De modo que a tristeza que ti vestes foi segundo Deus e assim nenhum dano vos causamos. Porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação, de que não se deve arrepender ninguém; ao passo que a tristeza do século causa a morte. E assim vede quanta solicitude produziu em vós a tristeza, segundo Deus, que sentistes. Os estoicos podem sair, assim, em defesa de seu ponto de vista, dizendo ser útil a tristeza, segundo parece, para arrepender-se do pecado, mas ser impossível que se dê no ânimo do sábio, quer o pecado, para contristar-se, arrependendo-se dele, quer outro mal, que, sentindo-o e sofrendo-o, o faça triste. Conta-se que Alcibíades (se a memória não me é infiel a respeito do nome), que se julgava feliz, chorou porque, discutindo certa ocasião com Sócrates, este lhe demonstrou que ele, Alcibíades, era miserável, pois era néscio. Logo, para este a estultícia foi a causa de sua tristeza útil e optável, que faz com que o homem se doa de ser o que não deve. Os estoicos afirmam, entretanto, ser o néscio, não o sábio, quem pode estar triste. CAPÍTULO IX As perturbações anímicas. A vida dos justos goza de retidão de afetos. 1. A tais filósofos, mais ávidos de contenda que de verdade, quanto às perturbações anímicas, já lhes respondemos no Livro Nono desta obra, pondo em evidência tratar-se de questão não tanto de realidades quanto de palavras. Entre nós, segundo as sagradas Escrituras e a sã doutrina, os cidadãos da Cidade Santa de Deus, que vivem segundo Ele na peregrinação desta vida, temem e desejam, sofrem e gozam. E, como seu amor é reto, têm retas essas afeições. Temem a pena eterna e desejam a vida eterna. Sofrem na realidade, porque ainda gemem em si mesmos, à espera da adoção e da redenção do corpo, e gozam em esperança, pois se cumprirá a palavra escrita: A morte foi absorvida pela vitória. Mais ainda, temem pecar e desejam perseverar; doem-se de seus pecados e gozam em suas boas obras. Temem pecar, ouvindo isto: Por causa da inundação dos v(cios resfriar-se-á a caridade de muitos. Desejam perseverar, prestando ouvidos ao que está escrito: Quem perseverar até o fim será salvo. Doem-se de seus pecados, porque atendem a isto: Se dissermos que não temos pecados, enganamo-nos a nós mesmos e não há verdade em nós. Finalmente, gozam de suas boas obras, escutando as seguintes palavras: Deus ama a quem dá com alegria. Ademais, segundo sejam fortes ou fracos, temem ser tentados e desejam ser tentados, doem-se das tentações e gozam nelas. Para temerem ser tentados, ouvem: Se alguém andar preocupado em algum delito, vós, que sois espirituais, instruí-o desse modo em espírito de mansidão, atendendo-te a ti mesmo, não sejas tu também tentado. Para desejarem ser tentados, escutam as palavras de certo homem valoroso da Cidade de Deus, que soam: Põe-me à prova, Senhor, e tenta-me; queima-me os rins e o coração. Para doerem-se em suas tentações, veem Pedro chorando, para gozarem-se nelas, ouvem São Tiago, que diz: Tende, irmãos meus, por objeto de supremo gozo o serdes postos em várias tentações. 2. Tais cidadãos não se inquietam desses afetos apenas por si mesmos, mas também por aqueles que desejam ver-se livres deles, temem perecer, sofrem, se perecem, e gozam, se se veem livres. E, para homenagear o mais eminente de quantos viemos à Igreja da gentilidade, citemos esse homem, o mais valoroso e o melhor, que se gloria em suas enfermidades, o Doutor dos Gentios em verdade e em fé, que trabalhou mais do que todos os seus companheiros de apostolado e instruiu com muitas cartas os povos de Deus, não apenas os presentes, mas também os futuros. Citemos, repito, esse homem, atleta de Cristo, doutrinado por Ele e por Ele ungido, crucificado com Ele e glorioso nele, travando grande combate no cenário deste mundo, de que é espetáculo dos anjos e dos homens, e avançando a passos de gigante até à palma de sua soberana vocação. Espera de muito bom grado, com os olhos da fé, gozar com os que gozam e chorar com os que choram, travando, fora, lutas, dentro, temores, desejando dissolver-se e estar com Cristo, ardendo em desejos de ver os romanos, para produzir algum fruto entre eles, como entre os demais gentios. Citemo-lo, sim, a ele, que emula os coríntios e teme a mesma emulação, por medo a que suas mentes sejam seduzidas pela castidade existente em Cristo, a ele, que traz no coração grande tristeza e contínua dor pelos israelitas. E é porque estes, ignorando a justiça de Deus e querendo pôr em vigor a própria, não se submetem à justiça de Deus, e ele descobre seu luto e também a própria dor perante alguns que antes pecaram e não fizeram penitência por suas impurezas e suas fornicações. 3. Se tais movimentos, se tais afetos, procedentes do amor ao bem e da caridade santa, devem chamar-se vícios, que nos seja permitido chamar virtudes aos autênticos vícios. Mas, se a reta razão dirige e endereça a seu fim próprio semelhantes afeições, quem ousará chamá-las enfermidades da alma ou paixões viciosas? Por esse motivo, o Senhor, que se dignou levar vida humana em forma de escravo, mas carecia em absoluto de pecado, fez uso delas, quando julgou dever fazê-lo. Porque a verdade é que nele, que tinha verdadeiro corpo e verdadeiro ânimo de homem, não era falso tal afeto. Logo, quando em seu Evangelho se conta que se contristou com ira por causa da dureza de coração dos judeus, que disse: Alegro-me por vós, a fim de crerdes, que derramou lágrimas, quando ia ressuscitar Lázaro, que desejou celebrar a Páscoa em companhia de seus discípulos, que, ao aproximar-se a paixão, sua alma esteve triste, contam-se coisas verdadeiras. Entretanto, Ele, por graça e dispensação sua, teve esses movimentos em seu ânimo humano, quando quis, como, quando quis, se fez homem. 4. Portanto, é preciso admitir que, embora nossas afeições sejam retas, são privativas desta vida, não daquela que esperamos há de vir, e com frequência cedemos a elas, mesmo contra nossa vontade. Assim, às vezes choramos, bem a contragosto nosso, embora a isso não sejamos movidos por apetite algum, mas com louvável caridade. Temo-las, por conseguinte, como tara da condição humana; mas Cristo não as teve assim, por sua fraqueza haver sido ex potestate. Se delas carecêssemos, enquanto puxamos a pesada carga de nossa vida, nosso viver não seria reto. O Apóstolo censurava e detestava certas pessoas e acusou-as de não terem afeição alguma. Também o salmo sagrado culpou aqueles de quem diz: Procurei quem compartisse de minha tristeza e não o encontrei. Porque é grande verdade que carecer de dor, enquanto peregrinamos neste vale de misérias, é estado, como disse e sentiu certo literato deste mundo, que não se dá senão à custa de inumanidade no coração e de estupor no corpo. Por isso é que a chamada em grego apatheia, que, se me permitissem, traduziria por impassibilidade, deve ser entendida (pois se toma no ânimo, não no corpo) como vida carecente de tais afeições, que surgem contra a razão e perturbam a mente. É por certo coisa boa e optável em sumo grau, porém não própria desta vida. E não se trata de opinião de homens vulgares, mas, em especial, dos piedosos e dos muito perfeitos e santos: Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e não há verdade em nós. Assim, pois, essa apatheia só se realizará, quando não haja pecado algum no homem. Agora, já está bem viver sem crime e quem pense viver sem pecado não afasta de si o pecado, mas o perdão. Por conseguinte, se o nome de apatheia deve reservar-se para quando não possa suscitar-se afeto algum no ânimo, quem não julgará pior que todos os vícios semelhante estupor? Logo, cabe dizer sem absurdo que a perfeita bem-aventurança que esperamos carecerá de temor e de tristeza. Quem dirá, porém, que ali não haverá amor e gozo senão o que não reza com a verdade? E, se por apatheia se entende o estado em que o medo não aterra e a dor não angustia, deve ser evitada nesta vida, se queremos viver retamente, quer dizer, segundo Deus. Deve-se esperar, entretanto, para a vida bem-aventurada, que se nos promete eterna. 5. O temor de que diz o Apóstolo São João: Na caridade não há temor; antes, a perfeita caridade lança fora o temor, porque o temor tem a pena e quem teme não é perfeito na caridade não é do gênero do que fazia São Paulo recear fossem os coríntios seduzidos pela astúcia da serpente. Esse temor desfruta-o a caridade, melhor diríamos, unicamente a caridade o desfruta. Aquele, ao contrário, é do que se não dá na caridade e de que o apóstolo São Paulo fala nos seguintes termos: Não recebestes o espírito de servidão, para obrardes por temor. Contudo, o temor casto, que há de permanecer por todos os séculos, se há de existir também no século futuro (pois de que outro modo se deve entender "permanecer por todos os séculos"?), não será temor que nos apeie do mal que pode sobrevir-nos, mas temor que nos afiançará no bem que se não pode perder. Porque, onde é imutável o amor ao bem conseguido, o indivíduo, se vale a expressão, está garantido contra o mal, de que deve precaver-se. Significa-se com o nome de "temor casto" a vontade que nos leva necessariamente a opor-nos ao pecado e a fugir dele com a tranquilidade da caridade, não com as inquietudes da fragilidade, por medo a possível pecado. E, se toda classe de temor é incompatível com a segurança certa dos gozos eternos e felizes, disse-se isto: O temor casto ao Senhor, que permanece por todos os séculos no mesmo sentido que o seguinte: Nem ficará frustrada para sempre a paciência dos infelizes. A paciência, necessária apenas onde é preciso suportar males, não será eterna, mas será eterno o termo a que se chega pela paciência. Talvez se haja dito no mesmo sentido que o temor casto permanecerá por todos os séculos, quer dizer, que permanecerá a meta a que o temor conduz. 6. Sendo assim, já que se deve levar vida reta que nos leve à feliz, concluiremos que a vida reta tem retos todos esses afetos e a vida desordenada os tem desordenados. A vida, ao mesmo tempo bem-aventurada e eterna, terá amor e gozo não apenas retos, mas também certos, e estará isenta de temor e de dor. Já podemos conceber quais devem ser, nesta peregrinação, os cidadãos da Cidade de Deus que vivem segundo o espírito, não segundo a carne, quer dizer, segundo Deus, não segundo o homem, e quais serão na imortalidade a que aspiram. E, de maneira incidental, a cidade dos ímpios, ou seja, a sociedade dos que não vivem segundo Deus, mas segundo o homem, e seguem os ensinamentos dos homens e dos demônios no culto à Divindade falsa e no desprezo à verdadeira, sofre as sacudidas de tais afetos e como que os golpes de enfermidades e perturbações. Se em seu seio aloja alguns cidadãos que parecem reprimir e moderar esses movimentos, são inflados e soberbos com tamanha impiedade, que tanto maiores são seus temores, quanto menores suas dores. E, se alguns timbram nisso, com vaidade tanto mais inumana, quanto mais rara, para não se verem exaltados e excitados, nem abalados e dobrados por nenhum afeto, perdem toda humanidade, em lugar de conseguir serenidade verdadeira. Porque ninguém é justo, por ser duro, nem está com saúde, por ser insensível. CAPÍTULO X Estiveram os primeiros homens, antes do pecado, isentos de perturbações no paraíso? Discute-se, não sem razão, se o primeiro homem, ou os primeiros homens (pois o matrimonio era de dois), antes do pecado estava, neste corpo animal, sujeito a semelhantes afetos, de que nos veremos livres no corpo espiritual, uma vez purgado e findo todo pecado. Se estavam sujeitos, como eram felizes naquele famoso lugar de bem-aventurados, quer dizer, no paraíso? Quem pode chamar-se absolutamente feliz, estando afetado de temor ou de dor? Por outro lado, que podiam temer ou de que podiam doer-se aqueles homens que nadavam em tanta afluência de bens, em estado em que não temiam a morte nem enfermidade corporal alguma, em lugar em que nada faltava à sua boa vontade e em que não havia nada que ofendesse a carne ou o ânimo do homem - que vivia em felicidade? Ali reinava imperturbável amor a Deus, os cônjuges viviam entre si em familiaridade sincera e fiel e desse amor fluía grande gozo, sem faltar objeto de amor digno de desfrute. Evitavam o pecado sem inquietude alguma e, ao evitá-lo, não irrompia neles outro mal que os angustiasse. Ou será que ardiam em desejos de acercarem-se da árvore proibida para dela comer e temiam morrer e por isso o desejo e o medo perturbavam aqueles homens já no paraíso? Longe de nós pensar que isso acontecesse, quando não existia o pecado, visto não carecer de pecado desejar o que a lei de Deus proíbe e abster-se dele por temor à pena, não por amor à justiça. Longe de nós, repito, pensar que antes de todo pecado já existisse ali esse pecado, o admitir, aplicando à árvore, o que o Senhor disse da mulher: Se alguém olhar uma mulher com mau desejo já adulterou no coração. Assim, pois, a humanidade toda seria tão feliz como eram os primeiros homens, quando nem as perturbações anímicas os inquietavam, nem as incomodidades corporais lhes causavam mal, se não houvessem praticado o mal que transmitiram a seus descendentes, nem seus descendentes a iniquidade, merecedora de condenação. E semelhante felicidade perduraria até que, em virtude da bênção: Cresce i e multiplicai-vos, se perfizesse o número de santos predestinados e se concedesse outra felicidade maior, qual se dá aos muito bem-aventurados anjos. Em tal estado já seria certa a segurança de que ninguém há de pecar e ninguém há de morrer e a vida dos santos, sem haver provado a dor, o trabalho e a morte, seria tal qual será depois de tudo isso, na incorrupção dos corpos, chegada a ressurreição dos mortos. CAPÍTULO XI A queda do primeiro homem. Nele, a natureza foi criada tão perfeita, que apenas seu autor pode repará-la. 1. Porque Deus previu tudo e não pôde ignorar o pecado do homem, devemos assentar a Cidade Santa segundo o que Ele previu e dispôs, não segundo o que não pôde vir-nos ao conhecimento, porque não esteve nos planos divinos. O homem, com seu pecado, foi incapaz de alterar o decreto divino, como se obrigasse Deus a mudar de decisão. Deus em sua presencialidade previu ambas as coisas, a saber, o mau que havia de ser o homem, por Ele criado bom, e o bem que Ele havia de operar com o homem. Com efeito, embora seja verdade que se diz que Deus muda de decisão (daí o ler-se nas Santas Escrituras que Deus se arrependeu, mas expresso sob a forma de tropa), assim se fala em relação com o que o homem esperava ou encerrava em si a ordem das causas naturais, não de acordo com a efetiva presciência do Onipotente. Como está escrito, o homem foi criado justo por Deus e, por conseguinte, com vontade boa, porque sem vontade boa não seria justo. A boa vontade é, pois, obra de Deus, visto havê-la Deus criado com ela. A má vontade primeira, que no homem precedeu todas as restantes obras más, foi menos obra que verdadeiro declinar das obras de Deus às próprias. E tais obras são más, por serem segundo o próprio cânon, não segundo Deus, de modo que a má vontade ou o homem, enquanto de má vontade, é como a árvore má, de que, como maus frutos, procedem as obras. Daí que a má vontade, mesmo quando não seja segundo a natureza, mas contra a natureza, por ser vício, seja da mesma natureza que o vício, que não pode existir senão em alguma natureza. E somente na natureza criada do nada, não na que o Criador gerou de si mesmo, como o Verbo, por quem foram feitas todas as coisas. Porque, embora seja verdade haver Deus formado o homem do pó, a terra e toda matéria terrena procedem do nada absoluto, como a alma infundida no corpo, quando Deus criou o homem. Os males são superados pelos bens, a ponto de os bens poderem existir sem os males, embora se lhes permita a existência, para ressaltar o bom uso que deles pode fazer a providentíssima justiça do Criador. Assim Deus, verdadeiro e sumo, assim todas as criaturas, celestiais, invisíveis e visíveis, que estão acima desta atmosfera de trevas. Por sua vez, os males não podem existir sem os bens, porque as naturezas em que subsistem, como naturezas, são boas. Subtrai-se, pois, o mal, sem subtrair natureza estranha alguma ou parte dela, senão a que fora viciada e corrompida, sanada e corrigida. O arbítrio da vontade é verdadeiramente livre, quando não é escravo de vícios e de pecados. Nessa condição foi dado por Deus e, uma vez perdido por vício próprio, não pode ser devolvido senão por Ele, que pôde dá-lo. Por isso diz a Verdade: Se o Filho vos dó a liberdade, então sereis verdadeiramente livres, o que equivale a dizer: Se, o Filho vos dá a salvação, então sereis verdadeiramente salvos. E, pois, Libertador pelo fato de ser Salvador. 2. O homem vivia segundo Deus no paraíso corporal e ao mesmo tempo espiritual. Não que houvesse paraíso corporal para os bens do corpo e não fosse espiritual para os da mente ou, então, paraíso espiritual, fonte de gozos para os sentidos interiores do homem, e não um corporal, fonte de gozo para os sentidos exteriores. E certo que um e outro existiam para esses dois fins. Depois, o anjo invejoso e soberbo, afastado de Deus por seu orgulho e encastelado em si mesmo, a estar sujeito preferindo gozar daqueles a ele sujeitos por sua tirânica altivez, caiu do paraíso espiritual. (De sua queda e da de seus companheiros, que de anjos de Deus se transformaram em anjos maus, já falei, segundo minhas possibilidades, no Livro Décimo primeiro e no Livro Décimo segundo desta obra.) Em sua queda, afetando serpentear nos sentidos do homem com cautelosa astúcia (é que o invejava porque caíra e o homem se mantinha em pé), escolheu no paraíso corporal, onde viviam em companhia dos outros animais, inofensivos e mansos, dois indivíduos humanos, o homem e a mulher, escolheu, digo, a cobra, animal lúbrico e que se move com tortuosos meneios, apto para o propósito de falar por sua boca. E, abusando dele, como de instrumento, graças a sua presença angélica e a sua natureza superior, com perversidade espiritual, falou com falácia à mulher. Começou pela parte inferior da sociedade humana, para gradualmente ascender ao todo, na consciência de que o homem não seria tão facilmente crédulo e não poderia ser enganado por erro, senão acedendo ao erro alheio. Assim como Aarão não deu seu consentimento ao povo para a construção do ídolo induzido por erro, mas cedeu obrigado, nem é crível haja Salomão pensado erroneamente que se devia sacrificar aos ídolos, mas foi forçado pelo coquetismo de suas concubinas a cometer semelhantes sacrilégios, assim também estamos em nosso direito, ao supormos que o primeiro homem violou a lei de Deus, não porque crera na verdade aparente que lhe dissera a mulher e seduzido por ela, um a uma, homem a homem, cônjuge a cônjuge, mas por condescender com ela por causa do amor que os unia. Não em vão disse o Apóstolo: Adão não foi enganado; por sua vez, a mulher, sim. Eva tomou por verdadeiras as palavras da serpente e Adão não quis romper o único enlace mesmo na comunhão do pecado. Nem por isso é menos culpado, pois pecou, com ciência e consciência. Desse modo, não diz o Apóstolo: "Não pecou", mas: Não foi enganado. Seu pecado deixa-o a descoberto, ao dizer: Por um homem entrou o pecado no mundo e, pouco depois, mais claramente: Com transgressão semelhante à prevaricação de Adão. Entende, pois, por enganados os que julgam não ser pecado o que fazem; mas Adão soube que era. Doutra forma, como será verdadeiro: Adão não foi enganado? Mas, sem experiência da severidade divina, pôde talvez enganar-se na apreciação, julgando venial o cometido. Por isso não foi seduzido no que o foi a mulher, mas enganou-se no modo com que Deus havia de julgar a escusa: A mulher que me deste ofereceu-me e comi. Para que mais? Embora não fossem ambos enganados, crendo, ambos foram colhidos em pecado e envolvidos nas redes do demônio. CAPÍTULO XII O pecado do primeiro homem. Se alguém se surpreende porque a natureza humana não muda com outros pecados, como mudou com a prevaricação dos dois primeiros pais, causa originária de corrupção tão cruel qual a vemos e sentimos e de estarmos sujeitos à morte e padecermos perturbações e oscilações procedentes de afetos tão contrários entre si, coisas que por certo não existiram no paraíso antes do pecado, apesar de viverem também em corpo animal, se isso, repito, causa surpresa a alguém, não deve julgar que o cometido foi leve e de pouca monta, porque se reduziu a um bocado não mau nem nocivo, mas proibido. Deus não criou nem plantou nada mau naquele lugar de delícias. No mandado encareceu-se a obediência, virtude de certo modo mãe e tutora de todas as demais virtudes da criatura racional, cuja criação se acomodou à seguinte norma: É-lhe útil estar sujeita e nocivo fazer sua vontade e não a de seu Criador. E, posto que não comer de certas árvores, onde havia tanta abundância de outras, era preceito tão simples de observar e tão breve para reter na memória, sobretudo quando a cupidez ainda não oferecia resistência à vontade, consequência da pena da transgressão, sua violação foi tanto mais injusta quanto mais fácil era sua observância. CAPÍTULO XIII Em Adão a má vontade precedeu a obra má. 1. Contudo, começaram a ser maus no interior, para depois se precipitarem em desobediência formal, porque não se houvera consumado a obra má, se não a houvesse precedido a má vontade. Pois bem, qual pôde ser o princípio da má vontade, senão a soberba? O princípio de todo pecado é a soberba, lemos. E que é a soberba, senão apetite de celsitude perversa? A celsitude perversa consiste em abandonar o princípio a que o ânimo deve estar unido e fazer-se de certa maneira princípio para si e sê-lo. E o que acontece quando o espírito se agrada em demasia de si mesmo e agrada-se em demasia de si mesmo quando declina do bem imutável, que deve agradar-lhe mais do que ele a si mesmo. Esse declinar é espontâneo, pois se a vontade houvesse permanecido estável no amor ao bem superior e imutável, que a iluminava para ver e a incendia para amar, não se haveria afastado dele para agradar-se a si mesma e entenebrecer-se e esfriar-se por causa desse afastamento. Disso resultou que ela acreditasse haver-lhe a serpente dito a verdade e ele antepusesse o querer de sua esposa ao mandado de Deus e pensasse que sua transgressão seria venial, se não se separasse da companheira de sua vida, nem mesmo no cometimento do pecado. Logo, a obra má, quer dizer, a transgressão, o comer do fruto proibido, praticaram-na os que já eram maus, porque o mau fruto, como semelhante ação, não o produz senão a árvore má. E isso de a árvore ser má procede de algo contrário à natureza, pois tem origem no vício da vontade, contrário à natureza. Entretanto, o vício não pode depravar toda natureza, mas apenas a feita do nada. Donde se segue que seu ser, o ser natureza, o deve a Deus, seu Autor, e a queda de seu ser a ter sido feita do nada. O homem não foi, em sua queda, reduzido ao nada absoluto, mas, voltado para si mesmo, seu ser veio a ser menos do que quando estava unido a Quem é em sumo grau. Ser em si mesmo, ou melhor, comprazer-se em si mesmo, abandonando a Deus, não é ser nada, mas aproximar-se do nada. Por isso, nas sagradas Escrituras, aos soberbos também se lhes denomina, dizendo serem os que se comprazem em si mesmos. E bom ter no alto o coração, não elevado a si mesmo, o que é privativo da soberba, mas ao Senhor, o que é próprio da obediência, exclusiva dos humildes. Conclusão: É próprio da humildade (coisa maravilhosa!) elevar o coração, e exclusivo da soberba abaixá-lo. Ao parecer, é paradoxo que a soberba desça e a humildade suba. Mas acontece que a humildade piedosa nos submete ao superior e nada há superior a Deus; por isso, a humildade que nos submete a Deus exalta-nos. Por sua vez, a soberba, que radica em vício, ao mesmo tempo que desdenha estar submetida, deprende-se do ser a quem não há nada superior e torna-se inferior, cumprindo-se, assim, o que está escrito: Derribaste-os quando mais se elevavam. Note-se que não diz: "Uma vez que se hajam elevado", como se primeiro se tenham ensoberbecido e depois hajam sido derribados, mas: quando mais se elevam, então é que precisamente são arrasados. Por esse motivo agora, nesta Cidade de Deus, se encarece a humildade à Cidade de Deus que peregrina neste século, humildade cujo exemplo culminante é Cristo, seu Rei. As Sagradas Letras ensinam que a altivez domina em especial no inimigo dessa Cidade, o demônio. E aí que radica a profunda diferença que distingue as duas cidades de que falamos. Uma é a sociedade dos homens piedosos e outra a dos homens ímpios, cada qual com os anjos de seu grêmio, nos quais precedeu, ali o amor a Deus e aqui o amor a si mesmo. 2. O diabo não houvera, pois, surpreendido o homem em pecado tão claro e manifesto, se já não houvesse começado a agradar-se a si mesmo. Encantou-o, por isso, a ideia: Sereis como deuses. E haveriam podido sê-lo melhor, mantendo-se obedientes a seu verdadeiro e soberano princípio que constituindo-se, pela soberba, em princípio para si mesmos. Com efeito, os deuses criados não são deuses por sua verdade, mas por participação do verdadeiro Deus. Contudo, quanto mais apetece, menos é e, enquanto ama ser autossuficiente, perde Aquele que na verdade lhe basta. O mal, que impele o homem a agradar-se a si mesmo, como se fora luz, e a afastar-se daquela luz, que, se lhe agrada, a ele também transforma em luz, precedeu primeiro em segredo e seguiu depois em público. Porque é verdade o que está escrito: Antes da queda o coração se exalta e antes da glória se humilha. E certo que a queda que se realiza em segredo precede à queda que se processa à luz, embora ninguém pense que no primeiro caso se trata de queda. Quem considera exaltação a queda? E, todavia, já existe desfalecimento ali, o abandonar o Excelso. Quem não vê haver queda quando se dá a transgressão de mandado certo e incontrastável? Deus proibiu-o para que, uma vez consentido, não pudesse ser definido nem mesmo por imaginação de alguma justiça. E ainda me atrevo a dizer que aos soberbos é útil a queda em algum pecado claro e patente, a fim de que se desagradem, eles que já haviam caído, comprazendo-se em si mesmos. O desprazer-se de Pedro, quando chorou, foi mais salutar que seu comprazer-se, quando presumiu de si. É esse também o pensamento do salmo sagrado: Cobre-lhes o rosto de ignomínia e buscar-te-ão o nome, Senhor, quer dizer, para agradares os que buscam teu nome, que se agradaram, buscando o próprio. CAPÍTULO XIV A soberba da transgressão foi pior do que a transgressão A soberba é pior e mais condenável, porque busca o recurso da escusa até para os pecados mais evidentes. Assim fizeram os primeiros homens. Eva disse: A serpente enganou-me e comi. E Adão, por sua vez: A mulher que me deste por companheira deume do fruto e comi. Nenhum pedido de perdão, nenhum recurso à compaixão do Médico. Embora, como Caim, não neguem havê-lo cometido, a soberba procura descarregar em outro a responsabilidade de suas más obras. A soberba da mulher culpa a serpente; a do homem, a mulher. Mas, quando se dá transgressão formal do mandado divino, há autêntica acusação, não escusa. E não se viram livres de pecado, porque a mulher o cometeu, aconselhada pela serpente, e o homem a instâncias da mulher, como se alguém devesse crer ou ceder a algo senão a Deus. CAPÍTULO XV Justiça do castigo imposto à desobediência dos primeiros pais. 1. Tão logo o homem desprezou o mandado de Deus, desse Deus que o criara, que o fizera à sua imagem e o antepusera aos restantes animais, que o estabelecera no paraíso e lhe dera abundância de todas as coisas e de saúde, que, longe de impor-lhe muitos preceitos graves e difíceis, o provera, para encarecer a obediência, de um muito leve e breve, com que advertia à criatura ser Ele seu Senhor e convir-lhe servi-lo livremente, sobreveio-lhe justa condenação. E tal, que o homem, que, guardando o mandamento, havia de ser espiritual até mesmo na carne, se transformou em carnal até mesmo na mente. Como, por sua soberba, se compraz em si mesmo, a justiça de Deus entregou-o a si mesmo, mas não para viver em sua pura independência, e sim para arrastar, lutando contra si mesmo, em lugar da liberdade que desejou, dura e miserável servidão sob o poder daquele a quem, pecando, deu seu consentimento. Morto voluntariamente em espírito, havia de morrer no corpo contra sua vontade e, desertor da vida eterna, ficaria condenado também à morte eterna, se a graça não o livrasse. Quem julga excessiva ou injusta semelhante condenação por certo não sabe avaliar qual a injustiça de pecado cometido em circunstâncias em que era tão fácil não pecar. Assim como a obediência de Abraão é merecidamente elogiada, porque matar o filho era mandado muito difícil e duro, assim a desobediência do paraíso é tanto maior quanto o mandado carecia em absoluto de dificuldade. E como a obediência do segundo Adão é mais admirável, por haver-se tornado obediente até à morte, assim a desobediência do primeiro é mais detestável, porque se tornou desobediente até morrer. E, sendo tão grande a pena imposta à desobediência e tão fácil o mandamento do Criador, quem explicará satisfatoriamente o mal que significa não obedecer em coisa tão fácil e a preceito de tão grande poder e que ameaça com tamanho suplício? 2. Enfim, e para dizê-lo em poucas palavras, que se retribuiu, como pena, ao pecado de desobediência, senão a desobediência? E que miséria mais própria do homem que a desobediência de si mesmo contra si mesmo, de modo que, por não haver querido o que pôde, queira agora o que não pode? Embora seja verdade que no paraíso, antes do pecado, não podia tudo, somente queria o que podia e, portanto, podia tudo o que queria. Agora, porém, como vemos em sua descendência e nos testemunha a Divina Escritura, o homem se tornou semelhante à vaidade. Quem poderá contar as coisas que quer e não pode, se o ânimo é contrário a si mesmo e a carne, inferior a ele, não lhe obedece à vontade? Verdade é que o ânimo com frequência se turba mesmo contra sua própria vontade e a carne se dói, envelhece e morre e, ai de nós, quanto do que padecemos não padeceríamos, se nossa natureza em tudo e sem medida obedecesse à nossa vontade! Mas a carne está sujeita a enfermidade que não lhe permite obedecer. Que importa o porquê de que, enquanto nossa carne, que nos estivera sujeita, é carga para nós, ao não obedecer-nos, pela justiça de Deus, dominador, a quem não quisemos prestar nosso serviço, nos hajamos convertido em carga para nós, não para Ele? Ele não necessita de nosso serviço, como necessitamos do serviço do corpo, e por isso é castigo nosso o que recebemos e não é castigo dele o que fizemos. Ademais, as dores que se dizem da carne são próprias da alma que as sofre na carne e por meio dela. Pois quê? Pode a carne por si mesma, sem a alma, sentir desejo ou dor? Quando se diz que a carne sente desejo ou dor, ou é o mesmo homem, como já observamos, ou alguma parte da alma, em que a carne imprime sua paixão, paixão que, se molesta, causa dor e, se agradável, prazer. Assim, a dor da carne não passa de ferimento da alma na carne e uma espécie de resistência que oferece à sua paixão, como a dor da alma, chamada tristeza, é o não conformar-se com as coisas que, sem que as quiséssemos, nos sucederam. A tristeza é com frequência precedida pelo medo, que também radica na alma, não na carne. Contudo, à dor da carne não precede nenhum medo carnal, que se sinta na carne antes da dor. Ao prazer precede certo apetite que se sente na carne e é uma espécie de desejo seu. Assim a fome, a sede e a libido, termo empregado com maior propriedade para os órgãos da geração, embora se trate do termo geral para toda paixão. Os antigos definiram a ira como libido de vingança, embora às vezes o homem, mesmo sem haver um sentido capaz de perceber a vingança, se irrite contra os seres inanimados, como quando joga, de raiva, o estilete que escreve ou arrebenta a pena. Por isso, embora semelhante desejo seja mais irracional que os outros, não deixa de ser libido de vingança e de estar fundada sobre não sei que espécie sombria de justiça, por dizê-lo assim, que quer sofram males os que agem mal. Há, pois, libido de vingança, chamada ira; há libido de dinheiro, chamada avareza; há libido de vitória, chamada pertinácia; há libido de glória, chamada jactância. Há outras muitas e variadas libidos, algumas com nomes próprios e outras sem eles. Por exemplo, quem dará nome apropriado e fácil à libido de domínio, de cujo enorme peso na alma dos tiranos dão fé as guerras civis? CAPÍTULO XVI Sentido próprio da palavra "libido". É verdade haver muitas classes de libido; quando, porém, se diz simplesmente libido, sem mais nada, é costume quase sempre entender-se a que excita as partes sexuais do corpo. E é tão forte, que não apenas domina o corpo inteiro nem só dentro e fora, mas também põe em jogo o homem todo, reunindo e misturando entre si o afeto do ânimo e o apetite carnal, produzindo desse modo a voluptuosidade, que é o maior dos prazeres corporais. Tanto assim, que, no momento preciso em que a voluptuosidade chega ao cúmulo, se ofusca por completo quase a razão e surge a treva do pensamento. Quem, amigo da sabedoria e dos gozos santos, levando vida matrimonial, mas consciente, segundo o conselho do Apóstolo, de que possui seu vaso em santificação e honra, não na enfermidade do desejo, como os gentios, que desconhecem Deus, não preferiria, se lhe fora possível, gerar filhos sem essa libido? Assim, na ação gerativa, os membros destinados à geração serviriam à mente, como os demais, cada qual em suas respectivas funções, se movem sob a ação do arbítrio da vontade, não sob a excitação do fogo libidinoso. E que mesmo os que nos gozos matrimoniais ou nas impurezas vergonhosas buscam esse prazer não sentem a seu capricho semelhantes comoções. Às vezes esse movimento os importuna, sem que o queiram, às vezes lhes engana o desejo. A alma chia por causa do calor da concupiscência e o corpo tirita de frio. Assim, coisa estranha, a libido não somente se recusa a obedecer ao desejo legítimo de gerar, mas também ao apetite lascivo. Ela, que de ordinário se opõe ao espírito que a enfreia, às vezes se revolve contra si mesma e, excitado o ânimo, se nega a excitar o corpo. CAPÍTULO XVII Nudez e rubor dos primeiros pais. Envergonhamo-nos com razão dessa libido; são, com razão, chamados vergonhosos, coisa que antes do pecado não eram, os membros que a libido move ou não move por força de certo direito próprio, por dizê-lo assim, não de todo sujeito a nosso arbítrio. Assim o diz a Escritura: Estavam nus e não se envergonhavam. Não é que sua nudez lhes fosse desconhecida, não; o caso é que a nudez ainda não era vergonhosa, porque a libido ainda não ativava os membros contra a vontade, nem a desobediência da carne ainda testificava contra a desobediência do homem. Não haviam, com efeito, sido criados cegos, como o vulgo ignorante imagina, posto que Adão viu os animais e lhes impôs nomes e da mulher se lê que viu que a árvore era boa para comer e agradável à vista. Seus olhos estavam, pois, abertos, mas não o estavam para isso, quer dizer, não reparavam em que os cobria a veste da graça, desconhecendo, por isso, a repugnância de seus membros à vontade. Retirada essa graça, para fazê-los pagar com desobediência sua própria desobediência, fez-se sentir nos movimentos do corpo desavergonhada novidade. Tornou-se, por isso, indecente a nudez, fê-los conscientes e cobriu-os de confusão. Isso deu origem a que, violado o mandado de Deus com transgressão de tal maneira manifesta, se escrevesse: E abriram-se-lhes os olhos e conheceram que estavam nus; teceram folhas de figueira e fizeram tangas para si. Diz que se lhes abriram os olhos, não para verem, pois antes também viam, mas para do bem que perderam discernirem o mal em que incorreram. A árvore que ensejava tal conhecimento, se eles provassem do fruto contra a proibição, tomou daí o nome e chamou-se árvore da ciência do bem e do mal. Que verdade é que a experiência da enfermidade torna mais sensível o preço da saúde! Conheceram que estavam nus, quer dizer, despojados da graça, que os garantia contra o rubor provocado pela nudez corporal, porque a lei do pecado ainda não resistia à mente. Conheceram-no; seriam mais felizes, se o ignorassem e, crendo e obedecendo a Deus, não houvessem cometido o pecado que os obrigou a provar os frutos nocivos da infidelidade e da desobediência. Por isso, envergonhados pela desobediência de sua carne, como testemunho e castigo de sua própria desobediência, teceram folhas de figueira e fizeram tangas para si, quer dizer, cintos (= succinctoria), como alguns intérpretes traduziram. Campestria (=tangas) é palavra latina que tomou seu significado dos panos com que no campo de Marte os jovens cobriam suas vergonhas. Os assim cingidos eram chamados campestrati (= os que usam tangas) pelo vulgo. O pudor fazia-os cobrir os membros que a libido movia desobedientemente contra a vontade, condenada por sua desobediência. Daí que todos os povos, como descendentes desse tronco comum, considerem natural o velar as vergonhas, a ponto de alguns bárbaros não descobrirem essas partes nem mesmo nos banhos e lavarem-nas com seus trajes. E nas retiradas selvas da Índia, onde alguns filosofam nus (por isso foram chamados gimnossofistas), cobrem seus órgãos genitais, ao passo que trazem à mostra os demais membros. CAPÍTULO XVIII Pudor que acompanha o ato da geração. No ato mesmo da geração (e não falo apenas de certas uniões carnais que, para escaparem à justiça humana, buscam a obscuridade, mas também do uso de prostitutas, que a cidade terrena, ao aprove-lo, tornou lícito), até nesse caso impune e permitido, a libido foge à luz e aos olhos. Os próprios lupanares têm, por vergonha natural, quarto escuro; assim, vemos haver sido mais fácil à impureza eximir-se da proibição da lei que à falta de vergonha suprimir os mistérios do pudor. Os desonestos chamam desonestas a suas ações e, embora gostem delas, não se atrevem a ostentá-las. E que direi do concúbito conjugal, que, segundo a lei das Tábuas matrimoniais, tem por objeto a procriação dos filhos? Não se busca também para ele, embora honesto e lícito, lugar retirado e secreto? E, antes de o esposo começar a fazer carinhos à esposa, não espera saírem todos quentes a quem alguma necessidade permitia estivessem presentes, os criados e os próprios padrinhos? É verdade que o maior mestre da eloquência romana, como alguém o chama, diz que as coisas bem feitas procuram a luz, quer dizer, gostam de ser conhecidas; mas essa ação legítima apetece ser conhecida e ao mesmo tempo tem vergonha de ser vista. Quem ignora o que os esposos fazem entre si com vistas à procriação dos filhos e qual o objeto de celebrarem-se com tanta pompa as bodas? Entretanto, no ato mesmo da geração não permitem sejam testemunhas nem mesmo os filhos, se já têm alguns. O conhecimento de ação semelhante legítima gosta de tal maneira da luz dos ânimos, que foge à dos olhos. E de onde se origina isso senão do fato de que o naturalmente honesto anda de braço, embora por castigo, com o vergonhoso? CAPÍTULO XIX A sabedoria como freio e dique da ira e da libido. Eis o motivo que induziu os filósofos mais próximos à verdade a admitirem que a ira e a libido são partes viciosas do ânimo, porque se lançam em torvelinho e em desordem até às coisas não proibidas pela sabedoria. Por isso, de acordo com eles, é necessário o comedimento da razão e da mente. A razão tem sede (é doutrina deles) na parte superior da alma, em uma espécie de atalaia, donde governa, com o fim de que, mandando ela e servindo estas, se produza no homem justiça perfeita. Essas partes assim viciosas, segundo eles, mesmo no homem moderado e sábio, que a mente, de esporas e freio, tem de refrear e afastar das coisas injustamente alcançadas e permitir-lhes as concebidas pela lei da sabedoria, essas partes, digo, no paraíso, antes do pecado, não eram viciosas. Ali seus movimentos não iam contra o reto querer e por isso não havia necessidade de tê-las dentro dos justos limites, como que governadas pelos freios da razão. Isso de agora seus movimentos serem assim e suas mudanças serem mais fáceis numas e mais difíceis noutras, mudanças que intentam operar as esporas e o freio de quem vive piedosa, justa e sobriamente, não é saúde natural, mas enfermidade culpável. Qual a causa de que os movimentos de ira e de outras paixões não os cubra o manto do rubor, como faz com os movimentos da libido, que se manifestam nos órgãos da geração? Simplesmente porque a vontade tem senhorio absoluto sobre o uso dos demais membros do corpo e, quando neles consente, ela é que os move, não seus afetos. Assim, quem, irado, injuria outro por palavra ou o golpeia, não poderia fazê-lo, se a língua e as mãos não se movessem sob o impulso da vontade. A vontade empunha o leme de tais membros, embora não existia a ira. Por sua vez, a libido de tal maneira submeteu as partes genitais do corpo a seu aparente domínio, que não podem mover-se sem ela e sem sua presença espontânea ou provocada. Eis o objeto da vergonha; eis o que os olhos dos que olham evitam com rubor. O homem mais facilmente tolera multidão de espectadores, quando injustamente se irrita contra outro, que o olhar de um só, quando justamente se ajunta com a mulher. CAPÍTULO XX A torpeza dos cínicos. Isso passou despercebido aos filósofos caninos, ou seja, os cínicos, que contra o rubor humano lançaram opinião desavergonhada e imunda, digna de seu nome. Diziam que, por ser legítima a união carnal dos esposos, não deve causar vergonha tê-la em público nem se deve evitar a prática desse ato em qualquer rua ou praça. Não obstante, o pudor natural dessa vez prevaleceu sobre o erro. Embora contem haver Diógenes posto seu sistema alguma vez em prática, pensando que assim tornaria mais célebre sua escola, gravando na memória dos mortais a mais ruidosa desvergonha, depois os cínicos não lhe imitaram o exemplo. Foi mais poderoso neles o pudor, que os induzia a guardar o respeito humano, que o erro, que lhes inspirava se tornassem semelhantes aos cães. E permito-me opinar que aquele ou aqueles que referem haver consumado o ato em público representaram essa cena carnal ante homens desconhecedores do que se ocultava sob o pálio, pois talvez não lhes fosse possível sentir semelhante voluptuosidade sob a impressão de olhares humanos. Os filósofos não se envergonhavam de mostrar sua intenção luxuriosa onde a própria libido se envergonhava de surgir. E vemos que ainda hoje existem filósofos cínicos. São os homens que andam cobertos de pálio e carregam clava; nenhum deles, entretanto, se atreve a tais desmandos. Se alguns se atrevessem a fazê-lo, aposto que lhes faltariam pedradas, não, porém, opróbrios. Não há dúvida de que a natureza humana se envergonha dessa libido. E com razão, porque em sua desobediência, que deixou os órgãos sexuais submetidos a seus próprios movimentos e os desligou da vontade, se mostra bem às claras a paga que o homem recebeu de sua própria desobediência. E foi conveniente que seu vestígio aparecesse em especial nos membros que servem à geração da natureza, piorada pelo primeiro enorme pecado. E ninguém se vê livre de semelhante cruz, se a graça de Deus não expia em cada indivíduo o pecado cometido em comum, quando todos éramos em um só, e vingado pela justiça divina. CAPÍTULO XXI Bênção, prevaricação e libido. Suas relações. Longe de nós pensar que os dois primeiros esposos, no paraíso, com essa libido, de que se envergonharam, cobrindo em seguida sua nudez, tornariam efetiva a bênção de Deus: Crescei e multiplicai-vos e povoai a terra. A libido surgiu depois do pecado e, depois do pecado, nossa natureza, pudica, despojada do domínio que tinha sobre o corpo, sentiu esse desarranjo, advertiu-o, envergonhou-se dele e cobriu-o. Todavia, a bênção dada ao matrimônio, para crescerem, multiplicarem-se e povoarem a terra, embora seja verdade que subsistiu nos delinquentes, o foi antes de delinquirem, dando-nos a entender com isso que a procriação dos filhos é glória do matrimônio, não castigo do pecado. Na atual economia, porém, os homens, desconhecedores da felicidade do paraíso, pensam haver sido impossível gerar filhos sem experimentar semelhante libido, de que até a honestidade do matrimonio se envergonha. E, para opinarem assim, alguns repelem com insolente desdém as Divinas Escrituras, em especial a passagem em que se lê que, depois do pecado, se envergonharam de sua nudez e cobriram suas vergonhas, outros, admitindo-as e apreciando-as com grandes honras, não querem que esta passagem: crescei e multiplicai-vos se entenda segundo a fecundidade carnal. E fundam-se em que também da alma se diz algo semelhante em certo salmo: Multiplicarás em minha alma tua virtude. De acordo com isso, no contexto do Genesis: E povoai a terra e dominai-a entendem por terra a carne, que a alma enche com sua presença e domina, quando sua virtude se multiplica. Afirmam, contudo, que os fetos carnais não poderiam nascer antes, nem podem nascer agora, sem essa libido, originada, percebida, confundida e coberta após o pecado. E acrescentam não haverem gerado no paraíso, mas fora. E assim foi na realidade, posto haverem coabitado e gerado seus filhos depois de expulsos dele. CAPÍTULO XXII Instituição e bênção divinas da união carnal. Não temos a menor dúvida de que o crescer, multiplicar-se e Povoar a terra, segundo a bênção de Deus, é dom do matrimônio, instituído por Deus desde o princípio, antes do pecado, ao criar o homem e a mulher. O sexo, evidentemente, supõe algo carnal. E a essa obra de Deus seguiu imediatamente sua bênção. Em havendo dito a Escritura: Fê-los homem e mulher, logo acrescentou: E Deus abençoou-os, dizendo: Crescei e multiplicai-vos e povoai a terra e dominai-a, etc. Embora a tudo isso seja possível dar-se interpretação espiritual não incongruente, as palavras homem e mulher não podem ser entendidas como algo existente em apenas um sujeito, pretextando ser nele uma coisa a que governa e outra a governada. Como de maneira muito clara se vê nos corpos de seres de sexo diferente, o homem e a mulher foram criados com o fim de que, pela geração da prole, crescessem, se multiplicassem e povoassem a terra. Ser refratário a isso constituiria notável absurdo. Não podem tampouco entender-se do espírito, que manda, e da carne, que obedece, nem do ânimo racional, que dirige, e da cupidez irracional, que é dirigida, nem da virtude contemplativa, que impera, e da ativa, que serve, nem do entendimento mental e do sentido corporal. Devem, isso sim, entender-se do laço conjugal, que une entre si os dois sexos. A esse propósito, havendo-se perguntado ao Senhor se era permitido repudiar por qualquer motivo a mulher, pois Moises permitira dar libelo de repúdio, por causa da dureza de coração dos judeus, respondeu: Não haveis lido que Aquele que no princípio os criou os fez homem e mulher e disse: Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe e se unirá à sua esposa e serão dois numa só carne? Assim, jó não são dois, mas uma só carne. O que Deus uniu não o desuna, pois, o homem. É, por conseguinte, certo haverem os dois sexos sido criados desde o princípio em diversas pessoas, como agora vemos e palpamos, e serem chamados uma só coisa, quer por sua união, quer pela origem da mulher, formada da costela do homem. O mesmo Apóstolo, fundado nesse primeiro exemplo que precedeu na criação divina, exorta os maridos, em concreto, a que amem as respectivas esposas. CAPÍTULO XXIII Haveria, no paraíso, libido no ato da geração? 1. No fundo, quem diz que, se não houvessem pecado, não haveriam coabitado nem gerado, afirma haver-se o pecado do homem tornado necessário para completar o elenco dos santos. E funda-se em que, se, não pecando, somente eles existiriam, visto como, por certo, se não houvessem pecado, não haveriam podido gerar, é fora de dúvida haver-se o pecado tornado necessário para que não existissem apenas dois homens justos, e sim muitos. Como é absurdo crê-lo, deve-se, antes, acreditar que os santos suficientes para cobrir as praças da Cidade bem-aventurada se reduziriam, embora ninguém houvesse pecado, aos que a graça de Deus vai recrutando agora entre a multidão dos pecadores, enquanto os filhos deste século geram e são gerados. 2. Sem o pecado, por conseguinte, esses matrimônios dignos da felicidade do paraíso seriam fecundos em agradáveis frutos e estariam isentos de toda libido vergonhosa. Na verdade, atualmente não há exemplo capaz de ilustra-lo. Nem por isso, entretanto, deve ser incrível pudesse o referido membro obedecer sem libido à vontade, pois são tantos os que agora lhe estão sujeitos. Se movemos as mãos e os pés, quando queremos, a seus atos próprios, sem renitência alguma e com facilidade assombrosa, como observamos em nós e nos demais, em especial nos artífices, em quem habilidade mais industriosa presta socorro à fraqueza e à lentidão da natureza, por que não acreditamos que os órgãos da geração, no ato da geração, poderiam obedecer docilmente à vontade humana, como os demais, se não existisse a libido, justo castigo da desobediência? Cícero mesmo, quando em sua obra Sobre a República fala das diferentes classes de governo, vale-se desse dado da natureza humana e diz serem os membros do corpo mandados como verdadeiros filhos, por estarem sempre prontos a obedecer, e serem as partes viciosas da alma verdadeiras escravas, que é preciso submeter a regime mais severo. É verdade que a ordem natural ao corpo antepõe o espírito; contudo, o espírito domina com maior facilidade o corpo que a si mesmo. Mas a libido de que tratamos é tanto mais vergonhosa quanto o ânimo não tem poder absoluto sobre si mesmo, para não agradar-lhe, nem sobre o corpo, para ser a vontade, não a libido, que mova tais membros vergonhosos. Radica o rubor agora em que o corpo oferece resistência ao ânimo, devendo estar-lhe sujeito, por ser natureza inferior. Nas outras paixões, quando o ânimo enfrenta a si mesmo, ele mesmo é o vencedor, embora desordenado e vicioso, visto ser vencido pelas partes que devem estar sujeitas à razão; mas, afinal, são partes suas e por isso, como fica dito, é vencido por si mesmo. O ânimo que ordenadamente se vence a si mesmo, fazendo que seus movimentos irracionais obedeçam à mente, à razão (se, ademais, esta se submete a Deus), é virtuoso e digno de louvor. E para o espírito é menos vergonhoso quando é desobedecido por suas partes inferiores do que quando seu querer e suas ordens são desobedecidas pelo corpo, corpo que é diferente dele, inferior a ele e não vive sem ele. 3. Mas, quando o comando da vontade contém os membros, cujo concurso é necessário à ação dos órgãos que a concupiscência solicita, contra a vontade, então a castidade é conservada; não que o sentimento do criminoso prazer esteja extinto, mas porque o consentimento é recusado. Essa oposição, esse debate, esse duelo entre a vontade e a libido, por suficiência de vontade e indigência de libido, revolta, castigo da revolta, nada disso a união conjugal teria conhecido no paraíso. A vontade não teria encontrado em todos os membros do corpo senão fiéis servidores. O órgão criado para o trabalho final teria fecundado o campo natural, como a mão semeia a terra. Agora, o pudor não me permite estender-me mais nessa matéria e obriga-me a pedir perdão e a não ferir os ouvidos castos; todavia, então não havia motivo para isso. As palavras relativas a tal assunto deslizariam livremente ante os ouvidos do pensador sem perigo de obscenidade, pois não haveria palavras obscenas; pelo contrário, as conversas a respeito desses membros seriam tão honestas como falar doutras partes do corpo. Quem aproximar-se destas páginas com sentimentos pouco castos atribua-os a sua culpa, não à natureza; condene em si mesmo a impureza da alma, não em nós o inevitável emprego de certas palavras. Sei que, diante destas páginas, o ouvinte ou leitor piedoso e casto me perdoa com facilidade, até eu vencer a infidelidade, não argumentando sem fundamento, mas com experiência vivida. Poderiam tais palavras ofender quem não se deixa, em absoluto, escandalizar, quando ouve o Apóstolo trovejar contra a monstruosa depravação das mulheres que trocaram o uso natural pelo uso contrário à natureza. E dispensar-me-ão, em especial, se levam em conta que não falo e censuro agora, como o Apóstolo, a condenável obscenidade, mas, para explicar, de acordo com minhas forças, os efeitos da geração humana, evito, a exemplo seu, as palavras obscenas. CAPÍTULO XXIV A vontade e os órgãos da geração no paraíso. 1. Ali o homem semearia e a mulher receberia o sêmen, quando e quanto fosse necessário, sendo os órgãos da geração movidos pela vontade, não excitados pela libido. Porque não movemos de acordo com nosso capricho apenas os membros articulados com ossos, como os pés, as mãos e os dedos, mas também movemos os compostos de nervos flácidos, agitando-os, estendemo-los, estirando-os, dobramo-los, retorcendo-os, endireitamo-los, encolhendo-os à nossa vontade. Assim fazemos com os membros da boca e do rosto, que a vontade move como lhe aprazo Os pulmões, as mais moles das vísceras, salvo as medulas, e por isso resguardados pela caixa torácica, para respirar, aspirar e emitir ou modificar a voz, servem, como foles de órgão, à vontade de quem sopra, respira, fala, grita ou canta. E não me detenho a dizer que a certos animais é natural e inato moverem, apenas no ponto em que se sentem atormentados, a pele que lhes cobre o corpo todo; com o tremor da pele enxotam não apenas as moscas que pousam neles, mas também se livram dos aguilhões que lhes cravam. E porque o homem não possa fazê-lo, havemos de dizer que o Criador não pôde dar semelhante faculdade aos viventes que quis? Logo, ao homem foi também possível ter sujeitos os membros inferiores, faculdade que perdeu por sua desobediência, visto haver sido fácil para Deus criá-lo de maneira que os membros de sua carne, agora unicamente movidos pela libido, os movesse apenas a vontade. 2. São-nos conhecidas as naturezas de alguns homens, distintas dos demais e admiráveis de tão raras, que fazem com o corpo, a seu bel-prazer, coisas que outros não podem e, ouvidas, com dificuldade são acreditadas. Há quem mova ambas as orelhas ao mesmo tempo ou em separado; há quem, sem mover a cabeça, joga os cabelos à testa e, quando quer, os retira. Outros há que, comprimindo um pouco o diafragma, da infinidade e variedade de coisas que engoliram como que de verdadeira bolsa tiram o que querem. Existem outros que imitam e exprimem com tamanha perfeição o canto das aves e as vozes dos animais e doutros homens, que, se a gente não os vê, se torna impossível distingui-los. Não faltam alguns que, sem fedor, pela extremidade terminal do intestino emitem sons de tal maneira harmoniosos, que se diria cantarem por essa boca. Eu mesmo vi alguém suar quando queria e de ninguém se oculta existirem alguns que choram quando querem e se afogam em verdadeiro mar de lágrimas. Muito mais incrível, porém, é o fato sucedido há pouco e testemunhado por muitos irmãos nossos. Em paróquia da igreja de Calama havia certo presbítero chamado Restituto, que, quando queria (quem desejava ser testemunha presencial da maravilha costumava pedir-lhe que o fizesse), ao ouvir vozes que imitassem lamento de homem, perdia os sentidos e jazia estendido no chão, de tal modo semelhante a morto, que não apenas não sentia os toques e as picadas, mas até mesmo, às vezes, era queimado com fogo, sem sentir dor alguma, senão mais tarde e por efeito da ferida. E prova de que seu corpo não se movia, não porque o presbítero o aguentasse, mas porque não sentia, era não dar sinal algum de respiração, como verdadeiro morto. Contudo, depois contava que, quando os circunstantes falavam mais alto, ouvia como que vozes ao longe. Se, por conseguinte, na presente vida, repleta de pesares por causa da carne corruptível, há pessoas a quem, em muitos movimentos e paixões, o corpo obedece de maneira maravilhosa e extraordinária, por que não cremos que, antes da desobediência e da corrupção, poderiam, sem libido alguma, servir à vontade no relativo à geração? O homem foi abandonado a si mesmo porque abandonou a Deus, comprazendo-se em si mesmo, e, não obedecendo a Deus, não pôde obedecer a si mesmo. Sua mais evidente miséria procede daí e consiste em não viver como quer. É certo que, se vivesse à sua vontade, se julgaria feliz; na realidade, porém, não o seria, se vivesse torpemente. CAPÍTULO XXV Na presente vida não se alcança a verdadeira felicidade. A verdade é que, se refletimos um pouco, vemos que não vive como quer senão quem é feliz e que apenas o justo é feliz. Mas, por sua vez, o justo não vive como quer, se não chega a estado em que não possa morrer, nem ser enganado, nem ofendido, e isso com certeza de que será sempre assim. Talo estado desejado pela natureza, que não será plena e perfeitamente feliz, se não logra realizar por completo seus desejos. Pois bem, que homem pode viver como quer, se o próprio viver não está em suas mãos? Quer viver e vê-se constrangido a morrer. Como, pois, viverá como quer quem não vive enquanto quer? E, se quiser morrer, como pode viver como quer quem não quer viver? E, se quer morrer, não porque não queira viver, mas para viver melhor depois da morte, também não vive como quer. Viverá assim quando chegar, morrendo, ao que quer. Está bem. Suponhamos que vive como quer, porque se violentou e se obrigou a não querer o que não pode e a querer o que pode, seguindo o conselho de Terêncio: Porque não podes fazer o que queres, queres o que podes. Pergunto: É acaso feliz, por ser pacientemente miserável? Se realmente não amamos a vida feliz, não a possuímos. Portanto, se a amamos e a possuímos, necessariamente a amamos mais que a todas as demais coisas, visto como quanto se ama deve ser amado por causa dela. Por conseguinte, se a amamos quanto merece (e não é feliz quem não ama a vida feliz quanto merece), é impossível que quem a ama não deseje seja eterna. Logo, será feliz quando for eterna. CAPÍTULO XXVI Que devemos acreditar, baseados na felicidade, a respeito da geração no paraíso? De acordo com isso, no paraíso o homem vivia como queria, porque apenas queria o que Deus mandara. Vivia gozando de Deus e era bom por sua bondade; vivia sem nenhuma indigência e estava em suas mãos viver sempre assim. A abundância de alimentos matava-lhe a fome, a de bebidas, a sede, e a árvore da vida defendia-o da velhice. Nenhuma dor a corrupção causava ao corpo nem o corpo a seus sentidos. No interior não temia enfermidade, nem ferimentos no exterior. A carne do homem gozava de perfeita saúde; a alma, de tranquilidade absoluta. Como no paraíso eram desconhecidos o calor e o frio, assim em seu habitante era desconhecido o aguilhão com que o desejo ou o temor lhe aguilhoavam a boa vontade. Não havia tristeza nem alegria fútil. Gozo eterno, procedente de Deus, perpetuava-se e nele ardia a caridade do coração puro, da boa consciência e da fé não fingida. A sociedade conjugal era acompanhada de amor honesto. A mente e o corpo andavam de comum acordo e o mandado era fácil e exequível. A fadiga não condenava o homem ao repouso, nem o homem cedia, mau grado seu, à prostração do sono. Deus nos livre de crer que em tal facilidade de mandados e em tamanha felicidade os homens não poderiam gerar sem doença da libido. Esses membros, como os demais, mover-se-iam ao arbítrio da vontade e o marido fundir-se-ia no regaço da esposa com tranquilidade de ânimo, sem o estímulo do ardor libidinoso e sem a corrupção da integridade corporal. E não porque a experimentação não possa prová-lo, semelhante fato é menos digno de fé, visto como, a instâncias do momento, essas partes as dominava a vontade, não o ardor tempestuoso. Então, o sêmen viril poderia ser injetado na esposa, sem romper-lhe a integridade, assim como agora a virgem pode, sem violá-la, ter a menstruação. O sêmen poderia introduzir-se pelo mesmo conduto por onde pode ser expelido o mênstruo. Assim como para o parto relaxa as vísceras maternas, não o gemido da dor, mas a maturidade do feto, assim para a fecundação e a concepção uniria as duas naturezas, não o apetite libidinoso, mas o uso voluntário. Estamos falando de coisas que, na atual economia, são vergonhosas e, por isso, embora tratemos de conjeturar, segundo nossas possibilidades, como e quais seriam antes de serem vergonhosas, é preciso pôr freio às palavras e ceder ao pudor, que nos contém, ao invés de soltar as rédeas à nossa pobre eloquência. E, dado que o que digo não o experimentaram nem mesmo aqueles que poderiam experimentá-lo (porque, uma vez metidos no pecado, mereceram ser desterrados do paraíso e não coabitar com vontade tranquila), como agora, ao resenhá-lo, não evocará o homem a experiência da libido túrbida e não o vislumbre de plácida vontade? Por isso o pudor não permite falar com desenvoltura, embora não faltem razões ao pensador. Contudo, a Deus onipotente, Criador soberano e soberanamente bom de todas as naturezas, que auxilia e premia as boas, abandona e condena as más e ordena todas, não lhe faltarão meios em sua sabedoria para completar o número de predestinados à sua cidade, tirando-os da corrupção do gênero humano. E não os discerne por seus merecimentos, posto que a massa total estava condenada como que de raiz, mas por sua graça, e mostra não apenas nos que livra, mas também nos que não livra, que lhe são devedores. Cada qual reconhece dever a própria libertação a bondade indevida, a bondade gratuita, quando se vê livre da companhia daqueles com quem devia ser por justiça castigado. Por que, pois, não havia Deus de criar aqueles que de antemão sabia que haviam de pecar, se neles e por eles poderia mostrar que lhes merecia a culpa e que lhes deu sua graça e que, sob tal Criador e Ordenador, a própria desordem dos pecadores não perverteria a justa ordem das coisas? CAPÍTULO XXVII A perversidade dos pecadores, anjos ou homens, não perturba a divina Providência. Anjos ou homens, os pecadores nada fazem que possa turbar as obras grandes de Deus, pendentes de sua vontade apenas. Pois quem, de maneira providente e onipotente, a cada ser distribui sua essência, sabe usar não só dos bons, mas também dos maus. E assim, usando Deus bem do anjo mau, condenado empedernido como prêmio de sua má vontade, com o fim de que para o futuro já não a tivesse boa, por que não havia de permitir que tentasse o primeiro homem, por Ele criado reto, isto é, com boa vontade? Com efeito, criado fora de tal maneira, que venceria o anjo mau, se confiasse no auxílio de Deus, e seria vencido por ele comprazendo-se soberbamente em si mesmo e abandonando a Deus, seu Auxiliador e Criador. O merecimento bom radicaria em sua vontade reta, divinamente auxiliada, e o mau em sua vontade perversa, que abandona a Deus. Não podia confiar em Deus, sem o auxilio de Deus; por sua vez, estava em suas mãos afastar-se da graça divina, comprazendo-se em si mesmo. Como não podemos viver na carne, sem o subsídio dos alimentos, e podemos não viver nela, como fazem os suicidas, assim no paraíso não podiam viver sem o auxílio de Deus, mas podiam viver mal, embora desaparecesse a felicidade e se lhe seguisse justo castigo. Se, por conseguinte, não se ocultava de Deus essa futura queda, que razão há para que não permitisse fosse o homem tentado pelo anjo invejoso? E verdade que era indubitável sua certeza de que seria vencido; ao mesmo tempo, entretanto, era presciente de que a descendência do homem, auxiliada pela graça, havia de vencer o demônio, redundando tal vitória em glória dos santos. Desse modo, nem o futuro se ocultava de Deus, nem sua presciência constrangia quem quer que fosse a pecar. E a experiência que se seguiu revelou à criatura racional, angélica e humana, a diferença que existe entre a própria presunção e o socorro divino. Quem ousará crer ou dizer que Deus não pôde evitar nem a queda do anjo, nem a do homem? Mas preferiu deixar-lhas essa faculdade e provar, assim, de quanto mal é capaz o orgulho e de quanto bem sua graça. CAPÍTULO XXVIII As duas cidades. Origem e qualidades. Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus, testemunha de sua consciência. Aquela ensoberbece-se em sua glória e esta diz a seu Deus: Sois minha glória e quem me exalta a cabeça. Naquela, seus príncipes e as nações avassaladas veem-se sob o jugo da concupiscência de domínio; nesta, servem em mútua caridade, os governantes, aconselhando, e os súditos, obedecendo. Aquela ama sua própria força em seus potentados; esta diz a seu Deus: A ti hei de amar-te, Senhor, que és minha fortaleza. Por isso, naquela, seus sábios, que vivem segundo o homem, não buscaram senão os bens do corpo, os da alma ou os de ambos e os que chegaram a conhecer Deus não o honraram nem lhe deram graças como a Deus, mas desvaneceram-se em seus pensamentos e obscureceu-se-lhes o néscio coração. Crendo-se sábios, quer dizer, orgulhosos de sua própria sabedoria, a instâncias de sua soberba, tornaram-se néscios e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança de imagem de homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de serpentes. Porque levaram tais ídolos aos povos, para que os adorassem, indo eles à frente, ou os seguiram e adoraram e serviram a criatura e não o Criador, para sempre bendito. Nesta, pelo contrário, não há sabedoria humana, mas piedade, que funda o culto legítimo ao verdadeiro Deus, à espera de prêmio na sociedade dos santos, de homens e de anjos, com o fim de que Deus seja tudo em todas as coisas. LIVRO DÉCIMO QUINTO Os quatro livros seguintes são dedicados ao desenvolvimento das duas cidades. Baseia sua argumentação nos principais capítulos da História Sagrada relacionados com tal assunto. Neste livro recolhe e comenta as passagens do Gênesis que narram a história que vai de Caim e Abel ao dilúvio. CAPÍTULO I Dois viajantes de duas cidades caminham a duas metas distintas. 1. Sobre a felicidade do paraíso ou sobre o próprio paraíso, sobre a vida dos dois primeiros homens nele e sobre seu pecado e castigo já se emitiram muitos pareceres, se pensou muito e se gastou muita tinta nisso. Também eu, nos livros anteriores, disse algo a respeito do assunto, segundo o que li ou pude compreender das Santas Escrituras, procurando não apartar-me de sua autoridade. Exame mais detido de tais pontos enredar-nos-ia em muitas e muito espinhosas questões, que exigiriam série de volumes que excederiam em muito os limites desta obra e do tempo de que disponho. Ando, sem dúvida, tão escasso dele, que não posso deter-me a responder às objeções que possam ser apresentadas pelos escrupulosos e ociosos, mais prontos para perguntar que capacitados para entender. Parece-me, todavia, haver esclarecido algo as difíceis e escabrosas questões acerca da origem do mundo, da alma e do gênero humano. Dividi a humanidade em dois grandes grupos: um, o dos que vivem segundo o homem; o outro, o daqueles que vivem segundo Deus. Misticamente, damos aos dois grupos o nome de cidades, que é o mesmo que dizer sociedades de homens. Uma delas está predestinada a reinar eternamente com Deus; a outra, a sofrer eterno suplício com o diabo. Tal o fim de ambas, de que depois nos ocuparemos. Agora, posto já havermos escrito bastante sobre a origem das duas cidades, quer nos anjos, cujo número nos é desconhecido, quer nos dois primeiros homens, estou em que já devemos tratar de seu desenvolvimento, do dia em que começa ao dia em que deve deter-se a geração dos homens. O desenvolvimento dessas duas cidades compreende todo o lapso de tempo, também chamado século, rápida sucessão de nascimentos e de mortes, que forma o curso das duas cidades. E a que nos referimos. 2. O primeiro filho dos dois primeiros pais do gênero humano foi Caim, pertencente à cidade dos homens, e o segundo, Abel, participante da Cidade de Deus. Em cada homem comprovamos a veracidade das seguintes palavras do Apóstolo: Não é primeiro o espiritual, e, sim, o animal; depois, o espiritual. Donde se segue que cada qual, por descender de tronco condenado, necessariamente primeiro é mau e carnal e depois será bom e espiritual, se, renascendo em Cristo, adiantar na virtude. Quando ambas as cidades empreenderam seu curso evolutivo, por nascimentos e mortes sucessivas, primeiro nasceu o cidadão deste mundo e depois o peregrino do século, pertencente à Cidade de Deus. A este a graça predestinou, a graça escolheu; fê-lo peregrino no solo e cidadão do céu. A verdade é que, quanto ao que se lhe refere, nasce do mesmo nada, originariamente condenado, que os demais; mas Deus, como bom oleiro (é semelhança não insensata, mas sensata, do Apóstolo), fez dessa massa um vaso para honra e outro para ignomínia. Primeiro, fez o vaso para ignomínia e depois o vaso para honra, porque em cada homem, como fica dito, primeiro é o réprobo, passo indispensável para todos nós e em que é necessário deter-nos, e depois o probo, a que chegaremos graças ao progresso na virtude e em que, em chegando, permaneceremos. Donde se segue não ser certo que todo homem mau há de ser bom e sim que ninguém há de ser bom, sem antes haver sido mau. E, quanto mais depressa melhore, tanto mais rapidamente mudará de nome e substituirá o primeiro pelo segundo. Diz a Escritura que Caim construiu uma cidade e Abel, como peregrino, nenhuma ergueu. Porque a Cidade dos santos está no céu, embora cá na terra gere cidadãos, em quem peregrina até chegar o tempo de seu reinado. Então, congregará todos os ressuscitados com seus corpos e lhes dará o reino prometido. E nele reinarão eternamente com seu príncipe, o Rei dos séculos. CAPÍTULO II Os filhos da carne e os filhos da promessa. Na terra houve, realmente, sombra e imagem profética de tal cidade, mais propriamente sinal que representação. Apareceu quando convinha. Chamaram-na também Cidade Santa, em homenagem a seu ser de imagem, e não à realidade que expressava, ao como deve ser. Dessa imagem e do por ela significado, da cidade livre, o Apóstolo fala aos gálatas nos seguintes termos: Dizei-me, os que quereis estar sob a lei, não ouvistes a lei? Porque escrito está que Abraão teve dois filhos: um da escrava e outro da livre. Mas o da escrava nasceu segundo a carne; o da livre, em virtude de promessa. Disse-se tudo isso em alegoria. Essas duas mulheres são os dois Testamentos. Um, dado no monte Sinai, gera escravos e está figurado em Agar. Porque o Sinai é monte da Arábia, que está enlaçado com a Jerusalém atual, escrava com seus filhos. Por sua vez, a Jerusalém de cima é livre e nossa mãe. Pois está escrito: Alegra-te, estéril, que não dás à luz, prorrompe em gritos de júbilo, tu que não és fecunda, porque são muitos mais os filhos da abandonada que os da que tem marido. Somos, irmãos, os filhos da promessa, figurados em Isaac. Mas, como então quem nascera segundo a carne perseguia o nascido segundo o espírito, assim sucede também agora. Que diz, porém, a Escritura? Lança fora a escrava e o filho, que o filho da escrava não há de ser herdeiro com o filho da livre. Mas não somos, irmãos, filhos da escrava, e sim da livre, e Cristo é quem nos adquiriu essa liberdade. Semelhante interpretação, emanada da autoridade do Apóstolo, revela-nos como devemos entender os escritos do Novo e do Velho Testamento. Parte da cidade terrena veio a ser imagem da Cidade celeste; não simboliza a si mesma, mas a outra e, portanto, serve-a. Não foi fundada para ser figura de si mesma, mas da outra, e a cidade que prefigura foi por sua vez prefigurada por outra figura anterior. Com efeito, Agar, escrava de Sarra, e o filho foram de certa maneira imagem dessa imagem. E porque as sombras, em chegando a luz, devem desvanecer-se, por isso Sarra, que era a livre e significa a cidade livre, de que a referida sombra era imagem distinta e nova, disse: Lança fora a escrava e o filho, que o filho da escrava não há de ser herdeiro com meu filho, Isaac, ou, como diz o Apóstolo, com o filho da livre. Encontramos, pois, na cidade terrena duas formas: uma, que ostenta sua presença; outra, que é, com sua presença, imagem da Cidade celeste. Pervertida pelo pecado, a natureza gera os cidadãos da cidade terrena; a graça, que liberta do pecado, gera os cidadãos da Cidade celeste. Por isso, aqueles são chamados vasos de ira; vasos de misericórdia, estes. É o que foi figurado também nos filhos de Abraão. Ismael, um deles, nasceu, segundo a carne, de Agar, a escrava; o outro, Isaac, nasceu, segundo a promessa, de Sarra, a livre. Ambos, sem dúvida, descendem de Abraão; aquele; porém, foi gerado segundo o curso ordinário da natureza e este foi dado em virtude de promessa que figurava a graça. Ali aparece o costume humano, aqui se manifesta o benefício divino. CAPÍTULO III Esterilidade de Sarra e fecundidade recebida. Sarra, na realidade, era estéril. E, sem esperança de descendência, desejando ao menos ter de sua escrava o que não podia ter de si mesma, entregou-a ao abraço do marido, de quem quisera, sem conseguir, gerar. Exigiu, pois, o débito conjugal, usando de seu direito em útero alheio. Ismael nasceu, como nascem todos os homens, da união dos dois sexos, segundo a lei ordinária da natureza. Por isso diz a Escritura haver nascido segundo a carne, não porque tais benefícios não procedam de Deus ou não sejam obras dele, cuja sabedoria operativa alcança de confim a confim e com suavidade dispõe todas as coisas, mas porque, para dar a entender o dom indevido e gratuito da graça por Deus dada aos homens, foi conveniente concedesse um filho contra o curso ordinário da natureza. A natureza nega filhos à união carnal, tal qual podia ser a de Abraão e Sarra em idade tão avançada, a que se acrescentava a esterilidade de Sarra, que não pôde conceber nem quando a idade ainda era susceptível de fecundidade, mas esta não acompanhava a idade. Que a uma natureza em tais condições não se devia o fruto da posteridade significa que a natureza humana, avariada pelo pecado e por isso justamente condenada, dali por diante não seria credora da felicidade verdadeira. Merecidamente, pois, Isaac, nascido em virtude da promessa, figura os filhos da graça, cidadãos da cidade livre, sócios da paz eterna. Nela não reina o amor à vontade própria e particular, mas gozo do bem comum e imutável e a obediência da caridade, que de muitos faz um só coração, ou seja, perfeita concórdia. CAPÍTULO IV A paz e a guerra na cidade terrena. A cidade terrena, que não será eterna, pois, condenada ao último suplício, já não será cidade, tem cá na terra seu bem e em sua possessão goza-se com o gozo que tais coisas podem oferecer. E porque semelhante bem não é tal que de quem dele gosta exclua as angústias, por isso essa cidade se divide contra si mesma, pleiteando, batalhando, lutando e buscando vitórias mortíferas ou pelo menos mortais. Porque, seja qual for a parte da cidade que se levante em guerra contra a outra, pretende ser vencedora, embora cativa dos vícios. Se vence e se ensoberbece mais soberbamente, sua vitória é mortífera; se, todavia, pesando a condição e as consequências comuns, é maior sua aflição pelas desgraças que podem sobrevir que seu orgulho pelas vantagens que traga, a vitória é apenas mortal. Porque nem sempre pode dominar, subsistindo, aqueles que pôde submeter, vencendo. Não é acertado dizer não serem bens os bens desejados por essa cidade, posto ser ela mesma verdadeiro bem e o melhor do gênero. Por causa desses bens ínfimos, deseja certa paz terrena e anela alcançá-la pela guerra. Se vence e não há quem lhe resista, nasce a paz de que careciam os partidos, contrários entre si, que lutavam com infeliz miséria por coisas que não podiam possuir ao mesmo tempo. Essa a paz perseguida pelas penosas guerras, essa a paz alcançada pelas vitórias pretensamente gloriosas. Quando vencem os que lutaram pela causa mais justa, quem duvida se deva acolher com aplausos a vitória e com gozo a paz? São bens e os bens são dons de Deus. Se, porém, abandonados os bens supremos, possessão da soberana Cidade, onde haverá vitória seguida de eterna e soberana paz, se desejam ardentemente esses bens, de maneira que a gente acredite serem os únicos ou os ame mais que os superiores, de modo inevitável sobrevém a miséria ou aumenta a existente. CAPÍTULO V Dois imperadores: o da cidade terrena e o de Roma O fundador da cidade terrena foi fratricida. Levado pela inveja, matou o irmão, cidadão da cidade eterna e peregrino na terra. Por isso não é de maravilhar haja tal exemplo, ou, como diriam os gregos, tal arquétipo (arkhétypos), sido imitado, depois de tanto tempo, pelo fundador da cidade que com o tempo havia de ser cabeça da cidade terrena de que falamos e senhora de inúmeros povos. Também ali, como diz um de seus poetas, se regaram com sangue fraterno os primeiros muros. Foi o que aconteceu na fundação de Roma, durante a qual, segundo a História, Rômulo matou o irmão, Remo, com a diferença de aqui serem ambos cidadãos da cidade terrena. Ambos pretendiam a glória de ser fundadores da república romana, mas não podiam ambos ter a glória que teria um só deles, se o outro não existisse, porque os domínios que sua glória queria, dominando, seriam mais reduzidos, se lhe minguasse o poder, por viver o companheiro no mando. E para o mando passar íntegro a um apenas, eliminou o companheiro, com o crime aumentando império que com a inocência fora menor e melhor. Contudo, Caim e Abel não estavam ambos tocados de ambição semelhante, nem o fratricida invejou o outro por temer se limitasse ainda mais seu poderio, se ambos mandassem, porque Abel não buscava ser senhor na cidade que seu irmão fundava. Invejou-o simplesmente com a inveja diabólica com que os maus invejam os bons, sem motivo algum, apenas porque uns são bons e outros maus. A bondade não diminui, por admitir que dela participe companheiro; ao contrário, aumenta tanto mais quanto mais concordemente a possui a caridade individual dos consócios. Na realidade, quem se nega a tê-la em comum não goza dessa possessão, sendo mais completo seu gozo quanto mais generosamente nela ame o companheiro. O acontecido entre Rômulo e Remo mostra como a cidade terrena se divide contra si mesma; o sucedido entre Caim e Abel é reflexo das inimizades que existem entre as duas cidades, entre a Cidade de Deus e a dos homens. Em suma, que os maus lutam uns contra os outros e, por sua vez, contra os bons. Mas os bons, se perfeitos, não podem ter nenhuma altercação entre si. Podem, se capazes, embora ainda imperfeitos. Nesse caso, o bom luta contra outro pelo mesmo flanco por onde luta contra si mesmo. E em cada homem a carne apetece contra o espírito e o espírito contra a carne. Por isso a concupiscência espiritual deste pode lutar contra a carnal daquele, como os bons e os maus lutam entre si. E certo, além disso, poderem lutar entre si as concupiscências carnais de dois bons, embora não perfeitos, como lutam entre si os maus, até a sanidade dos capazes lograr a derradeira vitória. CAPÍTULO VI Sofrimento dos cidadãos da Cidade de Deus em sua peregrinação rumo à pátria. Deles somente a medicina de Deus pode curá-los. Este sofrimento - isto é, a desobediência de que falamos no Livro Décimo quarto - é castigo da primeira desobediência. Não é, portanto, natureza, mas vício. Diz-se, por isso, aos capazes e bons, que em seu peregrinar vivem da fé: Levai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo. E noutra parte: Corrigi os inquietos, consolai os pusilânimes, alentai os débeis e sede pacientes com todos. Evitai, pois, que alguém retribua a outrem mal por mal. E noutro lugar: Se alguém andar preocupado com algum delito, instruí-o vós, que sois espirituais, com espírito de mansidão, pensando que também podeis ser tentados. E de igual modo: Não se ponha o Sol, estando irados. E no Evangelho: Se teu irmão pecar contra ti, corrige-o a sós entre ti e ele. O Apóstolo diz, por sua vez, dos pecados a que se teme se siga escândalo: Quanto aos que vivem no pecado, repreende-os na presença de todos, para que os demais temam. São, por esse motivo, muitos os mandados a respeito do perdão mútuo e exige-se cuidado muito esmerado, com o fim de manter-se a paz, sem a qual ninguém pode ver a Deus. Apresenta-se na Escritura terrível juízo contra o servo obrigado a pagar a dívida de dez mil talentos que lhe fora perdoada, por não haver perdoado insignificante dívida de cem denários a companheiro seu de escravidão. Proposta a parábola, Cristo acrescentou: Assim se portará meu Pai celestial convosco, se cada um de vós não perdoar de coração seu irmão. Assim se curam os cidadãos da Cidade de Deus que peregrinam por este vale de lágrimas e suspiram pela paz da pátria soberana. O Espírito Santo opera interiormente, para surtir efeito o remédio aplicado no exterior. Embora, para falar aos sentidos humanos, aos corpóreos em espécie humana e aos outros em sonhos, Deus se sirva das criaturas a Ele sujeitas, é inútil para o homem a pregação das verdades, se Ele não opera e move interiormente com sua graça. Mas Deus faz isso com juízo muito secreto, mas justo, e dos vasos de misericórdia discerne os vasos de ira. Se, com o auxílio que Ele nos presta de modo maravilhoso e oculto, o pecado, ou melhor, o castigo do pecado, que nos habita os membros, não reina em nosso corpo mortal, segundo o preceito do Apóstolo, de maneira que lhe obedeçamos aos desejos, e se não abandonamos nossos membros, para servirem de instrumentos de iniquidade, o espírito adquire a força de não consentir, entregando-se à direção de Deus. Assim, agora o homem terá governo mais tranquilo e depois, perfeitamente são e revestido de imortalidade, reinará sem pecado em paz eterna. CAPÍTULO VII Causa do crime de Caim e sua obstinação nele. 1. De que, porém, lhe serviu a Caim haver-lhe Deus recordado o que acabamos de expor a nosso modo, quando lhe falou como costumava fazer aos primeiros homens, como amigo e de forma congruente, mediante criatura a Ele sujeita? Não perpetrou acaso o crime concebido, o fratricídio, mesmo depois da advertência divina? Quando Deus discerniu os sacrifícios de ambos, olhando com agrado os de Abel e com desprazer os de Caim, coisa que manifestou, sem dúvida, por algum sinal visível, e o fez por serem más as obras deste e boas as do irmão, Caim entristeceu-se em extremo e seu rosto empalideceu. Diz assim o texto sagrado: E disse Deus a Caim: Por que estás triste e por que teu rosto empalideceu? Não é verdade que, se ofereces bem e não divides bem, pecas? Acalma-te. Converter-se-á a ti e dominá-lo-ás. Não é fácil compreender a reprimenda de Deus a Caim: Não é verdade que, se ofereces bem e não divides bem, pecas? Com efeito, não diz o porquê ou o fim dela. Sua obscuridade deu origem a muitas interpretações entre os expositores das Divinas Escrituras, que se afanam por entendê-lo em conformidade com a regra de fé. Oferece-se bem o sacrifício, quando se oferece ao verdadeiro Deus, único a quem deve ser oferecido. Mas não se divide bem, quando não se discernem bem os lugares, os tempos, as coisas oferecidas, quem oferece, a quem se oferece ou a quem se distribui a oferenda, para consumi-la. De acordo com isso, por divisão entendemos aqui discriminação. Assim, quando se oferece onde não convém ou o que não convém nesse lugar, mas noutro, ou quando se oferece quando não convém ou o que não convém na ocasião, mas noutra. E, de igual modo, quando se oferece coisa que jamais se devia oferecer, quando o homem reserva para si oferenda mais seleta que a que oferece a Deus ou quando se faz partícipe profano da coisa oferecida a quem não deve sê-lo. Não é fácil determinar em qual desses pontos Caim desagradara a Deus. Nas palavras do Apóstolo São João, que, falando desses dois irmãos, diz: Não imiteis Caim, que procedia do espírito maligno e matou o irmão. Por que o matou? Porque suas obras eram más e as do irmão, justas, deixa-se entrever que Deus não se agradou de sua oferenda, justamente por haver dividido mal, dando a Deus algo seu e reservando para si a si mesmo. Isso mesmo fazem todos aqueles que, seguindo a própria vontade, quer dizer, não vivendo de coração reto, mas perverso, a Deus oferecem oferendas, pensando com elas obrigá-lo não a auxiliá-las a curar-se de suas cupidezes, mas a saciá-las. Típico da cidade terrena é render culto a Deus e aos deuses para com seu auxilio conseguir vitórias e assim gozar da paz terrena, não por amor ao bem, mas por ânsia de domínio. Os bons usam do mundo para gozarem de Deus; os maus, ao contrário, querem usar de Deus para gozarem do mundo. Falo de quem pelo menos crê que Deus existe e cuida das coisas humanas, pois outros há muito piores, que nem nisso creem. Por conseguinte, ao perceber haver-se Deus comprazido no sacrifício oferecido pelo irmão e não no seu, Caim deveria, convertendo-se, imitar o bom irmão e não, ensoberbecendo-se, tornar-se êmulo seu. Mas entristeceu-se e seu rosto empalideceu. Deus repreende em especial o pecado de entristecer-se por causa da bondade de outra pessoa, sobretudo se é seu irmão. Tal foi o objeto da reprimenda, ao perguntar-lhe: Por que estás triste e por que teu rosto empalideceu? Deus olhou-lhe o coração e, ao ver nele a inveja ao irmão, repreendeu-o. Os homens, de quem se oculta o coração do próximo, podem duvidar e não saber se a tristeza, ao saber que desprazia a Deus, lhe nasceu da malignidade ou da bondade do irmão, cujo sacrifício agradou a Deus. Mas Deus, ao declarar o porquê de não ser aceito, dizendo ser culpa sua, não do irmão, porque não dividindo bem, quer dizer, não vivendo retamente, fora injusto e se tornara indigno de ter aceita a oblação, põe em evidência haver Caim sido muito mais injusto, odiando sem motivo seu justo irmão. 2. Não o deixa, contudo, sem justo, bom e salutar conselho e assim lhe diz: Acalma-te. Converter-se-á a ti e dominá-lo-ás. A quem? Ao irmão acaso? De maneira alguma. A quem, então, senão ao pecado? Primeiro lhe disse: Pecaste. Depois acrescentou: Acalma-te. Converter-se-á a ti e dominá-lo-ás. Certo que a gente pode entender também que a conversão do pecado reverte ao homem, de forma que tome consciência de que o pecado deve ser imputado a si mesmo, não a outro. Nisso radica o que têm de salutar a penitência e o pedido de perdão. Desse modo, a frase: Converter-se-á a ti não deve ser entendida no futuro, mas no imperativo, como mandado e não predição. Cada qual dominará o pecado, se não lhe dá a primazia sobre si mesmo, escusando-o, mas o submete a si, arrependendo-se dele. Do contrário, se, quando surge, lhe dá acolhida, também servirá o que domina. Por pecado aqui se entende a concupiscência carnal, de que diz o Apóstolo: A carne apetece contra o espírito. Entre os frutos da carne enumerava a inveja, que aguilhoava Caim e o incendia contra o irmão. Agora já é fácil entender isto: Converter-se-á a ti e dominá-lo-ás. Com efeito, quando a parte carnal, que o Apóstolo chama pecado na seguinte passagem: Não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim, quando essa parte, dizíamos, que os próprios filósofos dizem viciosa e não dever arrastar atrás de si a mente, mas deve ser dominada por ela e desviada das ações ilícitas pelo freio da razão, se move a cometer algum desaforo, se se acalma e obedece ao Apóstolo nisto: Não abandoneis vossos membros ao pecado, para servirem de instrumentos à iniquidade, dominada e vencida, converter-se-á ao espírito, a fim de que a razão impere sobre ela, humilhada. Reduziu-se a isso o imperativo de Deus ao que ardia em chamas de inveja contra o irmão e desejava tirá-lo de diante dos olhos, quando devia imitá-lo. Acalma-te, diz-lhe. Detém tua mão criminosa, não reine o pecado em teu corpo mortal, para obedecer-lhe aos desejos, nem abandones os membros ao pecado, para servirem de instrumentos à iniquidade. Converter-se-á a ti, não secundado em seus propósitos, mas reprimido com calma. E dominá-lo-ás com o fim de que, não lhe permitindo operar exteriormente, se acostume a não rebelar-se interiormente, sujeitando-se ao império da mente, reitora e guia mestra. No mesmo livro também da mulher se disse algo semelhante, quando, depois do pecado, receberam do juízo de Deus as sentenças condenatórias, o diabo na serpente, a mulher e o marido em suas próprias pessoas. Em havendo-lhe dito: Multiplicar-te-ei os trabalhos e gemidos e parirás com dor os filhos, acrescentou em seguida: E converter-te-ás a teu marido, que te dominará. Como se vê, a mesma coisa que se disse a Caim do pecado ou da concupiscência viciosa nessa passagem foi dita à mulher pecadora. Nisso também se aprecia quanto é apropriado dizer que o homem, para dirigir a mulher, há de assemelhar-se ao ânimo, que governa a carne. Por isso diz o Apóstolo: Quem ama sua mulher ama a si mesmo, pois é certo jamais haver alguém aborrecido a própria carne. Tais males, por conseguinte, devem ser curados como nossos, não condenados como alheios. Caim recebeu o mandamento divino de Deus, como prevaricador, e, crescendo nele a inveja, perfidamente matou o irmão. Assim era o fundador da cidade terrena. Como este era figura dos judeus, que deram morte a Cristo, pastor da grei humana, prefigurado em Abel, pastor de rebanho real, pois tudo isso é realidade alegórica e profética, abstenho-me de dizer por enquanto. Contudo, recordo já havê-lo tocado na obra Contra Fausto Maniqueu. CAPÍTULO VIII Qual a razão de Caim, nos albores do gênero humano, haver fundado uma cidade? 1. Agora, julgo-me na obrigação de defender a História, com o fim de que não se considere incrível a Escritura, quando diz haver um homem apenas edificado uma cidade, em tempo em que, segundo parece, não havia na terra senão quatro homens ou, por melhor dizer, três, após o fratricídio de Caim, a saber: o primeiro homem, pai de todos, Caim e seu filho Enoc, de quem tomou nome a cidade. Quem assim raciocina pouco repara em que o autor da História Sagrada não tinha necessidade de nomear todos os homens então existentes, mas apenas aqueles exigidos pelo plano de sua obra. A intenção do escritor, instrumento em mãos do Espírito Santo, era, através de certas gerações oriundas de um homem apenas, chegar até Abraão e depois, através da descendência deste, ao povo de Deus. Nesse povo, distinto de todos os demais, prefigurar-se-iam e prenunciar-se-iam as coisas futuras, previstas em espírito e relacionadas com a cidade cujo reino será eterno e com Cristo, seu Rei e Fundador. E fá-lo-ia de tal forma, que da outra sociedade de homens, por nós chamada cidade terrena, não calara quanto lhe fora suficiente narrar, para a Cidade de Deus, comparada com sua contrária, transformar-se em focos de luz. Quando a Divina Escritura, ao resenhar o número de anos vividos pelos homens e concluir a respeito de cada um deles com estas palavras: E teve filhos e filhos e foram todos os dias, deste ou daquele, tantos, e morreu, como não nomeia os filhos e as filhas, acaso havemos de crer que durante tantos anos, como viviam na primeira época do mundo, não nasceram muitos homens, de cujos clãs se fundaram diversas cidades? Mas foi incumbência de Deus, sob cuja inspiração se escreveu tudo isso, ordenar e discernir desde o princípio essas duas sociedades nas diferentes gerações. Tramaram-se, assim, em separado, as gerações dos homens, ou seja, dos que viviam segundo o homem e as dos filhos de Deus, quer dizer, dos que viviam segundo Deus, até o dilúvio, em que se narra a discriminação e concreção de ambas as cidades. A discriminação, sem dúvida alguma, porque se referem em separado as gerações de ambas, a de Caim, o fratricida, e a de Set. Este nasceu também de Adão e veio a ocupar o lugar do falecido irmão. E a concreção, porque os bons, inclinando-se ao mal, se fizeram merecedores da devastação do dilúvio, exceção feita do justo chamado Noé, da esposa e dos três filhos, com as respectivas noras (oito pessoas que mereceram escapar, na arca, à universal catástrofe). 2. Da seguinte passagem não é lógico concluir-se haver sido Enoc seu primeiro filho: E Caim conheceu sua mulher, que concebeu e deu à luz Enoc. E pôs-se a edificar uma cidade em nome de seu filho Enoc. Não devemos pensá-lo tampouco, baseados em dizer-se haver conhecido sua mulher, como se fora essa a primeira vez que coabitava maritalmente com ela. Disse-se a mesma coisa de Adão, não apenas quando foi concebido Caim, seu primogênito, segundo parece, mas também depois. E assim diz a Escritura: Adão conheceu Eva, sua mulher, que concebeu e deu à luz um filho, em quem pôs o nome de Set. Donde se segue que essa linguagem é corrente na Escritura e que, embora seja certo não empregar-se sempre que se refere algo relativo à concepção humana, também é certo que não somente se emprega quando ambos os esposos coabitam pela primeira vez. E dizer que a cidade teve seu nome tampouco não é argumento contundente para concluir haja Enoc sido o primogênito, pois não é utopia pensar que o pai, por qualquer motivo, mesmo tendo mais filhos, o amasse mais que aos outros. Tampouco Judá foi primogênito e apesar disso, dele tomou o nome a Judéia e os judeus. Mas, admitindo-se fosse o primogênito o fundador da referida cidade, nem por isso se deve acreditar haver imposto seu nome à cidade fundada, quando nasceu. Nesse lance era impossível instituir com um só sujeito uma Cidade, que na realidade não passa de multidão de homens unidos entre si por algum laço social. Parece mais acertado dizer que, aumentada prodigiosamente a família desse filho, chegando ele apenas a formar um povo, então constituiu a cidade e lhe impôs o nome do primogênito. Tão longa era a vida daqueles homens, que, dos mencionados, quem menos viveu antes do dilúvio viveu setecentos e cinquenta e três anos. Muitos passaram dos novecentos, mas ninguém chegou aos mil. De acordo com isso, quem duvidará que, durante a vida de apenas um homem, o gênero humano pudesse multiplicar-se tanto que bastaria para constituir não uma, mas muitas cidades? Semelhante conjetura não é nada difícil fazê-la. Sabemos, por exemplo, haver a descendência de Abraão no povo hebreu, em pouco mais de quatrocentos anos, sido tal, que por ocasião da saída do Egito já existem seiscentos mil moços aptos para as armas. Sem contar os idumeus, que não pertenciam ao povo de Israel e descendiam de Esaú, descendente de Abraão, e outras cidades procedentes do mesmo Abraão, não, porém, de sua mulher Sarra. CAPÍTULO IX Que dizer da longevidade dos homens antediluvianos e de sua maior corpulência? Ninguém, portanto, que pondere com sensatez as coisas porá em dúvida que Caim poderia fundar não apenas uma cidade, mas até mesmo uma cidade grande no tempo em que a vida dos mortais era tão longa. Mas talvez não falte algum incrédulo que nos proponha questão sobre o número de anos então vividos pelos homens, segundo nossos códices, e negue dever-se-lhes fé nisso. Desse modo, negam-se também a crer que os corpos eram então muito maiores que hoje. Não obstante, o mais célebre de seus poetas, Vergílio, a propósito de enorme pedra que servia de limite de campos e forçudo homem daqueles tempos pôs nos ombros, correu com ela, torceu e lançou, diz: Doze homens dos mais robustos, como os agora produzidos pela terra, com dificuldade teriam podido carregar semelhante massa às costas. Com isso dá a entender que então a terra costumava produzir corpos maiores. Quão maiores seriam, portanto, nos tempos mais antigos do mundo, antes do célebre e famoso dilúvio! Sobre a grandeza dos corpos, com frequência os incrédulos se rendem perante os sepulcros descobertos pela impetuosidade dos rios, pela vetustez ou por outros acidentes, em que aparecem ossos de mortos de grandeza incrível. Eu mesmo vi na praia da Útica, não apenas eu, mas alguns outros comigo, um dente molar de homem, tão enorme, que, cortado em pedacinhos, penso que se poderiam fazer cem dos nossos. Suponho, contudo, que seria de algum gigante, porque, embora seja verdade que então todos os corpos eram muito maiores que os nossos, os gigantes eram infinitamente maiores que os demais. Em épocas posteriores e até mesmo em nossa, embora raros, quase nunca faltaram corpos que sobrepassassem de muito o tamanho corrente. Plínio Segundo, homem muito sábio, garante que, à medida que os séculos avançam, a natureza produz corpos menores. Conta, além disso, que Homero com frequência se queixa desse fato, não escarnecendo-o, como se não passasse de ficção poética, mas considerando-o escritor dessa espécie de milagres e historiador fidedigno. Contudo, os ossos que vão sendo descobertos põem-nos à vista, depois de tantos séculos, o tamanho dos corpos antigos. Mas o número de anos que os homens daquelas calendas viviam não podem ser averiguados agora por documentos de tal índole. Quanto ao mais, isso não deve impedir que se dê crédito à História Sagrada, cujas narrações seria tão mais imprudente não crê-las quanto mais à risca lhe vemos cumpridas as predições. O mesmo Plínio diz haver regiões em que se vive até duzentos anos. Se, por conseguinte, alguns países que nos são desconhecidos conservam vestígios da vida longa de que não temos noção, por que não crer haja essa vida tido também seu período áureo? E porventura crível existir em alguma parte o que não existe aqui e incrível haver existido em algum tempo o que não existe agora? CAPÍTULO X Diferenças no número de anos entre nossos códices e os hebraicos. Assim, embora entre nossos códices e os hebraicos pareça haver alguma diversidade no número de anos (ignoro por quê), não é tanta que não estejam acordes em afirmar a longevidade dos homens de então. Com efeito, de acordo com nossos códices, o primeiro homem, Adão, antes de gerar Set, viveu duzentos e trinta anos e, segundo os hebraicos, cento e trinta. Mas, segundo os nossos, depois viveu setecentos anos e, de acordo com os outros, oitocentos. E assim ambos concordam no total. Nas gerações seguintes, o pai, antes de gerado o referido filho, vive, segundo os códices hebraicos, cem anos menos que de acordo com os nossos e, depois de gerado, esses cem anos faltam nos nossos. Assim, em ambos os casos estão acordes no total. Na sexta geração nem uma só variante existe em ambos os códices. Na sétima, em que se conta que Enoc não morreu, mas, por haver agradado a Deus, foi trasladado, se dá a mesma discrepância que nas cinco primeiras, dos cem anos antes de gerado, e no total a mesma consonância. Segundo ambos os códices, viveu, antes de trasladado, trezentos e sessenta e cinco anos. A oitava geração apresenta diversidade menor, mas distinta das demais. Matusalém, filho de Enoc, antes de gerar quem o segue na lista, não viveu, segundo os códices hebraicos, cem anos menos, mas vinte mais. Esses anos acham-se aumentados uma vez mais nos nossos, depois de havê-la gerado, e outra vez coincide em ambos o total. Somente na nona geração, ou seja, nos anos de Larnec, filho de Matusalém e pai de Noé, discrepam, mas não muito, no total. Segundo os códices hebraicos, viveu vinte e quatro anos mais do que segundo os nossos. Antes de Noé ser gerado, dão-lhe os hebraicos seis anos menos que os nossos e, depois de gerado, trinta mais. E assim, como fica dito, subtraídos esses seis, são vinte e quatro. CAPÍTULO XI Idade de Matusalém e época do dilúvio. Essa variante entre os códices hebraicos e os nossos originou questão muito debatida. Ei-la: Matusalém, segundo o cômputo, viveu catorze anos após o dilúvio, contra o sentir da Escritura, que diz haverem escapado na arca, ao açoite do dilúvio, apenas oito de todos os homens então existentes na terra. E entre eles não se conta Matusalém. Segundo nossos códices, Matusalém, antes de gerar Lamec, viveu cento e sessenta e sete anos e Lamec, antes do nascimento de Noé, cento e oitenta e oito. Somados, dão trezentos e cinquenta e cinco. Se lhes acrescentamos seiscentos de Noé, ano em que aconteceu o dilúvio, encontramo-nos com novecentos e cinquenta e cinco, do nascimento de Matusalém ao ano do dilúvio. Pois bem, segundo o cômputo, Matusalém viveu novecentos e sessenta e nove, pois antes de gerar Lamec viveu cento e sessenta e sete anos e, depois de gerado, oitocentos e dois. E no total, como dissemos, são novecentos e sessenta e nove anos. Portanto, subtraídos novecentos e cinquenta e cinco, transcorridos do nascimento de Matusalém ao dilúvio, ficam catorze, que ao que parece viveu depois do dilúvio. Por esse motivo, alguns pensaram haver vivido, não na terra, onde toda carne, cuja natureza não lhe permite viver nas águas, foi destruída, mas com seu pai, que fora trasladado ao céu e ali viveu até passar o dilúvio. E é que não admitem que se negue fé aos códices pela Igreja recebidos como mais autênticos e acham mais fácil estejam errados os dos judeus que esses. Não admitem fora mais fácil se introduzisse neles algum erro dos intérpretes que naquela língua a falsidade, língua original de que a Escritura, passando pelo grego, foi traduzida para a nossa. Não é crível, acrescentam, que os Setenta, que interpretaram simultaneamente no mesmo sentido, se equivocaram ou quiseram mentir em coisas que não os interessavam. E afirmam haverem os judeus, invejosos de nós, porque a Lei e os Profetas nos chegaram através dessa tradução, variado seus códices, para menoscabarem a autoridade dos nossos. Dessa opinião ou conjetura pense cada qual o que quiser. Uma coisa, porém, é certa: Matusalém não viveu após o dilúvio; morreu no mesmo ano, se é verdade o que a respeito disso trazem os códices hebraicos. Meu parecer sobre os Setenta inseri-lo-ei com maior minúcia em lugar mais adequado, com o auxílio de Deus e quanto o exija esta obra. Agora baste dizer que, segundo ambos os códices, os homens de então viviam tanto tempo, que o primogênito dos dois primeiros pais, únicos na terra, poderiam durante a vida gerar número capaz de constituir uma cidade. CAPÍTULO XII Crítica a outra opinião sobre o cômputo daqueles anos. 1. Não devemos tampouco prestar ouvidos a quem pensa se computavam então doutra maneira os anos, quer dizer, que os anos eram tão curtos, que um nosso equivale a dez daqueles. Por conseguinte, acrescentam, quando alguém ouvir ou ler haver algum homem vivido novecentos anos, deve entender noventa, porque dez anos daqueles são iguais a um nosso e um nosso, a dez daqueles. Assim, de acordo com eles, Adão tinha vinte e três anos quando gerou Set, e Set vinte anos e seis meses ao nascer Enós, o que, segundo a Escritura, representa duzentos e cinco. De conformidade com essa opinião, dividiam em dez partes o nosso ano corrente e a cada parte davam o nome de ano. Cada parte consta de senário quadrado, porque Deus concluiu a Criação em seis dias e no sétimo descansou. Sobre tal ponto já falei, segundo minhas possibilidades, no Livro Décimo primeiro. E o senário quadrado, quer dizer, seis vezes seis, é igual a trinta e seis dias, que, multiplicados por dez, dão trezentos e sessenta, isto é, doze meses lunares. Os cinco dias restantes, que completam o ano solar, e as seis horas que, multiplicadas por quatro, dão um dia, que dá origem ao ano bissexto, eram de quando em quando acrescentados pelos antigos para arredondar o número de anos. A tais dias os romanos chamavam intercalares. Portanto, Enós, filho de Set, tinha dezenove anos quando gerou Cainã, anos correspondentes aos cento e noventa da Escritura. Segue-se o mesmo procedimento em todas as gerações em que se dão os anos dos homens antes do dilúvio. Em nossos códices não se encontra quase nenhum que engendrasse aos cem anos ou aos cento e vinte, mais ou menos; os que com menos idade geraram já contavam cento e sessenta e tantos anos. Porque, dizem, ninguém pode gerar aos dez anos e a esse número corresponde o cem deles. Mas aos dezesseis já está em marcha a puberdade, está madura e apta para a geração e a essa idade equivaliam os cento e sessenta anos de então. E, em apoio da não incredibilidade de sua opinião, acrescentam contarem muitos historiadores que o ano dos egípcios constava de quatro meses, de seis o dos acarnanos e de treze o dos lavínios. Plínio Segundo testifica haver visto em certos escritos que um vivera cento e cinquenta e dois anos, outro, dez mais, outros, trezentos, outros, quinhentos, seiscentos e até oitocentos anos; pensou dever-se tudo isso à ignorância dos tempos. Para uns, diz, o ano determinava-o o verão; para outros, o inverno. Para outros por sua vez, as quatro estações. Assim os arcádios, cujos anos constavam de três meses. Acrescente-se, ademais, que os egípcios, cujos anos reduzidos tinham quatro meses, como fizemos notar, às vezes regulavam o ano pelo curso da Lua. E assim, acrescenta, entre eles se conta haja alguém vivido até mil anos. 2. Fundados nessas razões, aparentemente prováveis, alguns, sem negarem fé à História Sagrada, mas desejosos de afiançá-la, com o fim de não tornar-se incrível o que conta de idades tão avançadas, julgam não ser imprudência dizer que então davam o nome de ano a espaço tão reduzido de tempo, que dez daqueles equivalem a um nosso e dez nossos a cem daqueles. Há testemunhos irrefutáveis para prova da falsidade de semelhante opinião; antes, porém, de ensaiar a prova, vou expor outra conjetura, talvez mais aceitável. Poderíamos refutar essa afirmação e demonstrar o contrário, baseando-nos nos códices hebraicos. Lê-se neles que Adão tinha, não duzentos e trinta anos, mas cento e trinta, quando gerou o terceiro dos filhos. Pois bem, se esses anos equivalem a treze nossos, é indubitável que o primeiro teve de gerá-lo quando tinha onze anos ou não muitos mais. E quem pode gerar em tal idade, segundo a lei ordinária e corrente da natureza? Contudo, deixemos de lado esse, que talvez, ao ser criado, já era apto para a geração, por não ser crível haja sido criado tão pequeno como nossas criancinhas. Seu filho não tinha, quando gerou Enós, duzentos e cinco anos, como lemos, mas cento e cinco. Portanto, de acordo com tal opinião, ainda não tinha onze anos. E que direi de seu filho Cainã, que, segundo nossos códices, tinha cento e sessenta anos e, segundo os hebraicos, apenas setenta, quando gera Malaleel? Se então setenta equivaliam a sete nossos, pergunto: Quem gera com sete anos? CAPÍTULO XIII Autoridade dos códices hebraicos e dos Setenta no cômputo dos anos. 1. Mas, logo depois de dizê-lo, replicar-me-ão que é mentira dos judeus, como já dissemos acima, e que os Setenta, homens de tão louvável renome, não poderiam mentir. Se perguntarmos aqui: Que é mais crível? Que os judeus, disseminados pelo mundo todo, hajam conspirado de comum acordo para escrever-se semelhante patranha e se hajam privado da verdade, por inveja à autoridade dos outros, ou que os Setenta, judeus também, porque o eram, reunidos no mesmo lugar por Ptolomeu, rei do Egito, para levar-se a cabo tal obra, hajam invejado aos gentios a mesma verdade e de comum acordo concertado essa impostura? Livre-nos Deus de pensar que homem sensato imagine que os judeus, por perversos e maus que os suponham, hajam podido insinuar semelhante falsidade em tantos códices e tão disseminados por toda parte, ou que os Setenta, homens de tão merecida reputação, se conchavaram para arrebatar a verdade aos gentios. Qualquer pessoa diria, por conseguinte, ser mais crível que, quando começaram a ser copiados da biblioteca de Ptolomeu, então se introduziu errata em um códice, no primeiro copiado, por exemplo, transmitindo-se assim mais e mais, sem excluir a possibilidade de erro do copista também no segundo. Supô-lo na questão acerca dos anos de Matusalém não é absurdo, do mesmo modo que no outro caso, em que se excediam em vinte e nove anos e não concordavam na soma. Contudo, nos demais casos em que se continua a aparente mentira de dar ao pai, antes do nascimento do filho, aqui, cem anos de mais, ali, cem anos de menos e, após o nascimento, acrescentar os cem anos onde não existem e tirá-los donde existem, para equilibrar a soma, repetindo-se o fato na primeira, na segunda, na terceira, na quarta, na quinta e na sétima geração, parece que o erro conserva certa constância, se tem cabimento falar assim, e não cheira a casualidade, mas a artifício. 2. Por conseguinte, a diferença cronológica entre os exemplares gregos e latinos, duma parte, e o original hebraico, doutra, não poderia ser atribuída à malignidade dos judeus nem à sábia exatidão dos Setenta, mas, antes, a erro do primeiro copista a transcrever o exemplar original da biblioteca do rei Ptolomeu. Ainda hoje vemos que, quando os números não têm alguma intencionalidade especial, facilmente inteligível, ou não é de evidente utilidade sabê-lo, são copiados com descuido e corrigidos com mais descuido ainda. Quem, por exemplo, se julgará obrigado, se não se importa com isso, a saber quantos milhares de homens teve cada tribo de Israel em particular? E, além disso, quantos há que lhe compreendam a utilidade e a profundidade? Na realidade, a intenção do autor, quando através da série das gerações catalogadas põe neste códice cem anos que faltam naquele, faltando, depois de gerado, no que se encontravam e encontrando-se no que faltavam, coincidindo desse modo o total, era dar-nos a entender haverem os antigos vivido muitos anos, porque seus anos eram muito breves. E pretende esclarecê-lo, baseado na maturidade da puberdade, já apta para a geração, pensando por isso que aqueles anos insinuam aos incrédulos dez nossos. E para que não se recusem a crê-lo, acrescenta cem anos, quando não encontra idade apta para a geração, e tira-os, depois de gerados os filhos, para que concorde a soma. Quer, evidentemente, fazer a idade dos primeiros homens coincidir com a idade reconhecida necessária para a geração, sem prejuízo do número total dos anos que viveram. O fato de não seguir semelhante procedimento na sexta geração é razão forte para dizer-se havê-lo seguido quando o exigia a realidade a que aludimos, justamente por não havê-lo seguido quando não o exigia. De fato, vemos que, na mesma geração, dizem os códices hebraicos haver Jared, antes de gerar Enoc, vivido cento e sessenta e dois anos, que, segundo o cômputo dos anos breves, são dezesseis e algo menos de dois meses, idade já apta para a geração. Não teve, por isso, necessidade de acrescentar cem anos breves, para chegar a vinte e seis, nem de subtraí-los, depois de nascido Enoc, pois não os acrescentara antes. E seria esse o motivo de ambos os códices estarem acordes nessa passagem. 3. Mas agora surge nova dificuldade. Por que na oitava geração, antes de Lamec nascer de Matusalém, se lê nos códices hebraicos haver este vivido cento e oitenta e dois anos e nos nossos vinte menos, costumando acrescentar cem aqui, e, depois de gerado Lamec, se reintegram na soma, não discrepando os códices no total? Se, por conseguinte, por causa de a puberdade já ser madura aos cento e setenta anos, queria dar a entender dezessete, como não devia acrescentar nada, tampouco devia subtrair coisa alguma. E compreende-se, porque já chegara a idade apta para a geração, motivo por que acrescentava cem anos aos em quem não a encontrava. Se não procurasse reintegrá-los para tornar concorde a soma, pois os tirara antes, poderíamos pensar, com certo direito, deverem-se a erro eventual os vinte anos. Ou será que, pensando mal, devemos crer haja tal coisa sido feita com malícia, para ocultar o artifício consistente em primeiro acrescentar cem anos e depois subtraí-los, fazendo sem necessidade algo semelhante, não nos cem anos, mas em qualquer número, subtraído antes e acrescentado depois? Considerem-no como quiserem, creiam ou não, seja ou não seja assim, não tenho a menor dúvida de haver-se feito retamente e com o fim de, em havendo variantes nos códices, posto não poderem ambos ser historicamente verdadeiros, dar-se mais crédito à língua oriental, de que arrancam as traduções. Ademais, três códices gregos, um latino e outro sírio, estão acordes entre si e neles se lê haver Matusalém morrido seis anos antes do dilúvio. CAPÍTULO XIV Os anos sempre foram iguais. 1. Passemos agora a ensaiar o modo de evidenciar que aqueles anos não eram tão curtos que dez deles completem um nosso, e sim que os anos da longa vida daqueles homens eram tão extensos como os atuais (regulados também pelo curso do Sol). Em primeiro lugar está escrito haver o dilúvio acontecido no ano seiscentos da vida de Noé. Por que, se aquele ano, tão reduzido que dez deles fazem um nosso, tinha trinta e seis dias, se lê neste lugar: E a água do dilúvio veio sobre a terra no ano seiscentos da vida de Noé, no segundo mês, no dia vinte e sete do mês? Se o costume antigo deu nome a ano tão curto, não tem meses ou seu mês é de três dias, para ter doze meses. Como ou por que se disse no ano seiscentos, no segundo mês, no dia vinte e sete do mês, senão porque os meses de então eram tais quais os de agora? Doutro modo, a que vem dizer que o dilúvio começou no dia vinte e sete do segundo mês? De igual modo, no fim do dilúvio a gente lê: No sétimo mês, no dia vinte e sete do mês, a arca pousou sobre os montes de Ararat. E a água foi descendo até o undécimo mês: no undécimo mês, no dia primeiro do mês, apareceram os cumes dos montes. Logo, se os meses eram iguais aos nossos, eram-no também, sem dúvida, os anos, posto não poderem meses de três dias ter vinte e sete dias. E se se chamava dia à trigésima parte de três dias, diminuindo assim, proporcionalmente, tudo, segue-se haver-se reduzido a quatro dias incompletos dos nossos o enorme dilúvio, que, segundo a Escritura, durou quarenta dias e quarenta noites. Quem aguentará tal absurdo e disparate? Em consequência, repila-se esse erro, que de tal maneira pretende sobre falsa conjetura construir o edifício da fé em nossas Escrituras, que o destrói. O dia era então, evidentemente, igual ao de agora, constava de vinte e quatro horas; o mês era como o atual e contava-se do começo ao fim da Lua; também o ano era igual, composto de doze meses lunares, a que se deviam acrescentar cinco dias e seis horas, para ajustar-se ao curso solar. De acordo com isso, também é certo haver o dilúvio começado no segundo mês do ano seiscentos da vida de Noé, no dia vinte e sete do mesmo mês. O dilúvio prolongou-se, ademais, durante quarenta dias com imensas chuvas, dias de vinte e quatro horas e não de duas ou pouco mais. Como conclusão, diremos haverem os antigos vivido mais de novecentos anos e que os anos eram todos iguais, quer os cento e setenta e cinco vividos por Abraão, quer os cento e cinquenta vividos por Jacó, quer os cento e vinte vividos por Moisés, quer os setenta, oitenta ou não muitos mais vividos pelos homens, de quem está escrito: E o que disso passa, trabalho e dor. 2. Contudo, a diferença numérica registrada entre os códices hebraicos e os nossos concorda em afirmar a longevidade dos antigos. E, quando em ambos haja diversidade incompatível com a verdade, deve-se crer, como mais fiel, a língua original, de que nossa versão procede. Mas não carece de mistério que, podendo qualquer pessoa de qualquer nacionalidade corrigir os Setenta nos casos em que diferem dos outros, ninguém se haja atrevido a fazê-la, fundado nos códices hebraicos. Isso prova não ser tida por mentira a variante; também penso não se deve considerá-la assim. Onde não haja erro do copista e o sentido esteja de acordo com a verdade, a gente deve pensar que quiseram dizer algo novo, movidos pelo Espírito divino, e anunciar a verdade, não como intérpretes, mas com liberdade de profetas. Por isso, quando os apóstolos aduzem testemunhos das Escrituras, usam não apenas os textos hebraicos, mas também os Setenta. Sobre isso prometi falar mais demoradamente, com o auxílio de Deus, em lugar mais oportuno; agora vou concluir o que vem ao caso. E digo que ninguém deve pôr em dúvida haja o primogênito do primeiro homem podido constituir cidade em época em que os homens viviam tanto tempo. E tal cidade é a terrena, bem diferente da Cidade de Deus. Para escrever sobre esta é que me impus a rude tarefa de obra tão enorme. CAPÍTULO XV Quando coabitaram pela primeira vez os homens dos primeiros tempos? 1. É crível, perguntará alguém, que homem apto para a geração e sem propósito de guardar continência se abstivesse da coabitação carnal durante cento e tantos anos ou não muito menos, segundo os códices hebraicos, oitenta, setenta, sessenta, ou, se não se absteve, não haja podido gerar filhos? A semelhante questão podem ser dadas duas soluções, a saber, ou a puberdade foi proporcional, sendo tão mais tardia quanto maior o número de anos de vida, ou, o que me parece mais aceitável, aqui não se mencionam os primogênitos, mas os exigidos pela ordem de sucessão, para chegar a Noé, de quem se retomou a Abraão. E depois isso se fez até certo tempo, quanto convinha, com as gerações mencionadas, assinalar o curso da gloriosíssima Cidade de Deus, que neste mundo peregrina em busca da pátria soberana. Inegável é que Caim foi o primeiro filho, nascido da união carnal entre o homem e a mulher, pois, se não lhes houvesse sido associado, Adão não teria dito, ao nascer-lhe o primogênito: Adquiri um homem por graça de Deus. Seguiu-o Abel, vítima do irmão. E, de certa maneira, figura da peregrina Cidade de Deus e mostra que ela há de padecer iníquas perseguições, devidas até certo ponto aos ímpios e terrígenas, quer dizer, aos que amam a origem terrena e gozam da efêmera felicidade da cidade terrena. O que não se mostra tão claro é a idade em que Adão os gerou. Vão-se mesclando, a partir daí, as gerações de Caim e as de outro filho de Adão, que veio preencher o claro deixado pelo irmão e a quem chamou Set, dizendo as seguintes palavras: Deus suscitou-me outro filho em lugar de Abel, a quem Caim matou. Assim, insinuando em ordem inversa as duas gerações, a de Set e a de Caim, as duas cidades de que tratamos, a celeste, peregrina na terra, e a terrena, ansiosa e apegada aos gozos terrenos, como se fossem os únicos existentes, a Escritura, ao fazer a recensão de Adão até à oitava geração, em ninguém do ramo de Caim expressa os anos que tinha quando gerou o filho seguinte constante da lista. Porque o Espírito de Deus não quis ressaltar nas gerações da cidade terrena os anos anteriores ao dilúvio. Ao contrário, preferiu pô-los em evidência nas gerações da Cidade celeste, como mais dignos de recordação. Por isso, quando Set nasceu, a Escritura não silenciou os anos do pai, que já gerara outros filhos. Apenas Caim e Abel? Quem ousará dizê-lo? Porque de serem os únicos postos na lista das gerações não se segue necessariamente haverem sido os únicos até então gerados por Adão. Quem que evite a pecha de temerário se atreverá a dizer quantos foram seus filhos, lendo na Escritura que gerou filhos e filhas, cobrindo com o manto do silêncio os nomes dos demais? Muito bem, portanto, depois do nascimento de Set, Adão pode dizer, por inspiração divina: Deus suscitou-me outro filho em lugar de Abet, porque ia conformar e completar a santidade do outro, não por haver nascido imediatamente depois dele. De igual modo, quando está escrito: E Set viveu duzentos e cinco anos ou, segundo o hebraico, cento e cinco anos e gerou Enós, quem, senão o temerário, afirmará haver sido este o primogênito? Com ar admirado, perguntaríamos, com razão, se é crível que, sem propósito de guardar continência, não houvesse feito uso do matrimônio durante tantos anos ou, casado, não gerasse se também dele se lê: E gerou filhos e filhas e todos os dias de Set foram novecentos e doze anos e morreu. De igual modo procede com os demais que cita, não omitindo haverem gerado filhos e filhas. Por isso, não é evidente se o filho mencionado em cada caso é o primogênito, além de não ser crível que em idade tão avançada os pais fossem impúberes ou não tivessem mulher e filhos nem que os citados fossem os primogênitos. Deve-se, simplesmente, dizer que, como a intenção do autor da História Sagrada era, notando os tempos, chegar, através das gerações, ao nascimento e à vida de Noé, época do dilúvio, não mencionou as primeiras gerações imediatas aos pais, mas apenas as exigidas pela ordem da narração genealógica. 2. À guisa de exemplo, vou abrir parênteses para esclarecer essa ideia e ninguém pôr-lhe em dúvida a possibilidade. Recorrendo à genealogia carnal de Cristo, através de seus pais e começando por Abraão, com o propósito de chegar a Davi, diz o evangelista São Mateus: Abraão gerou Isaac. Por que não disse Ismael, seu primeiro filho? Isaac, prossegue o evangelista, gerou Jacó. Por que não diz Esaú, seu primogênito? A razão é que por eles não podia chegar a Davi. Eis, por conseguinte, o motivo. Depois acrescenta: Jacó gerou Judá e seus irmãos. Acaso foi Judá o primogênito? Judá, acrescenta, gerou Farés e Zara. E nenhum destes foi seu primogênito, pois antes já engendrara três. Em conclusão, na lista das gerações menciona apenas aqueles através de quem chegará a Davi e deste ao termo de seu propósito, o que nos permite suspeitar que os antigos, antes do dilúvio, não mencionaram os primogênitos, mas aqueles cujas ordenadas e sucessivas gerações levaram ao patriarca Noé. Desse modo, não nos fatigaremos, meditando muito na questão, obscura e supérflua, de tardia puberdade nos homens de então. CAPÍTULO XVI O direito conjugal nos primeiros matrimônios. A necessidade que o gênero humano tinha do enlace entre homens e mulheres, para multiplicar-se por geração, depois da primeira união entre o homem, feito do pó, e a mulher, formada de costela do homem, e a falta de homens, pois existiam somente os filhos de ambos, deram margem a que os homens tomassem por esposas as próprias irmãs.• E isso, quanto mais antigamente se fez por exigência da necessidade, tanto mais condenável se tornou depois, graças ao veto da religião. Teve-se muito em conta em tudo isso a caridade. Desse modo, os homens, cuja concórdia é proveitosa e boa, ligam-se entre si com diferentes laços de sangue e não se concentram muitos em um só, mas cada qual se vai difundindo noutros; as pessoas têm, assim, muitos laços comuns e se afeiçoam mais e mais à vida social. Pai e sogro são nomes designativos de dois parentescos. Tendo, pois, cada qual um por pai e outro por sogro, torna-se mais extensa e numerosa a caridade. Adão viu-se obrigado a ser ambas as coisas para os filhos e filhas, quando irmãos e irmãs se casavam entre si. De igual modo, Eva, sua mulher, foi sogra e mãe para os filhos e filhas. Se existissem então duas mulheres e uma fosse a mãe e outra a sogra, a amizade social ter-se-ia estendido mais. Do mesmo modo, a irmã, ao tornar-se esposa, se tornava sujeito de dois parentescos, que, distribuídos de forma que uma fosse a irmã e outra a esposa, aumentariam com o número de homens a união social. Mas então, quando existiam somente os filhos dos dois primeiros pais, isso não podia ser realidade. Em consequência, quando, por já serem numerosos os seres humanos, tal procedimento se tornou possível, tiveram de tomar por esposas pessoas que não fossem irmãs e a necessidade já não serviria de escusa a quem o fizesse, mas, ao contrário, quem o fizesse praticaria horrendo crime. Porque, se os netos dos dois primeiros pais, que já podiam tomar por esposas as primas, se unissem em matrimônio com as irmãs, contrairiam não dois, mas três parentescos, devendo, portanto, ir-se cada qual separando do tronco comum, para prender em mais gente a caridade. Nesse caso, para os filhos, quer dizer, para os esposos, que eram irmão e irmã, o mesmo homem seria pai, sogro e tio, de igual modo sua mulher seria mãe, sogra e tia para os filhos comuns e, por sua vez, os filhos entre si não apenas seriam irmãos e cônjuges, mas também primos, por serem filhos de irmãos. Em troca, tais parentescos, que uniam três homens a um só, uniriam nove, se repartidos entre diferentes sujeitos. Assim, um só homem teria uma por irmã, outra por esposa e outra ainda por prima, um por pai, outro por tio e outro ainda por sogro, uma por mãe, outra por tia e outra ainda por sogra, estendendo-se, dessa forma, os vínculos sociais, não coarctados à insignificância, mas alargados a numerosas e amplas afinidades. 2. Acrescido e multiplicado o gênero humano, vemos mesmo entre os idólatras observada semelhante lei. Embora não faltem leis subversivas que permitem os matrimônios entre irmãos, costume mais louvável proscreveu essa licença e, apesar de nas origens do gênero humano haver sido lícito casar-se irmão com irmã, aparta-se disso, como se nunca houvesse sido praticado. É indubitável que o costume causa funda impressão no espírito humano. Considera-se extrema injustiça tergiversá-lo ou ir contra ele, que nesse caso freia os excessos da concupiscência. Porque, se injusto é meter-se em campo alheio, levado pela avidez de possuir, quanto mais o será traspassar, nos braços da libido carnal, as fronteiras dos costumes? Sabemos por experiência própria que, devido ao costume, mesmo em nossos dias são muito raros os casamentos entre primos, por tratar-se de grau de parentesco muito próximo do fraterno, embora as leis o permitam, pois a lei divina não o proibiu e a humana não o proibira ainda. Ação lícita, embora, condenavam-na por frisar pelo ilícito, por parecer-lhas que casar-se com prima era quase casar-se com irmã, já que os primos também se chamam irmãos de sangue e são quase irmãos carnais. Assim vemos haverem os patriarcas antigos posto grande empenho em não deixar afastar-se e desaparecer o parentesco, perdendo-se pouco a pouco nos graus genealógicos, e em aproxime-lo com novo matrimonio, se se afastara, dando consistência outra vez, de certo modo, ao parentesco que se esfumava. Por isso, povoado já de homens o mundo, não gostavam de casar-se com irmãs por parte de pai, de mãe ou de ambos, e sim com pessoas de sua estirpe. Quem duvidará, porém, ser mais honesta em nossos dias a proibição dos casamentos entre primos? E não só pelas razões aduzidas, para multiplicarem-se os parentescos e não se darem dois na mesma pessoa, podendo ser dois os sujeitos e aumentar, assim, o número de vínculos sociais, mas também porque o pudor tem um não sei quê de natural e louvável, que não permite se una alguém àquela que, em razão do parentesco, lhe merece respeitosa reverência, pois da libido, mesmo geradora, vemos envergonhar-se a própria honestidade conjugal. 3. Com efeito, do ponto de vista social, a cópula carnal entre o homem e a mulher é, diríamos, uma espécie de sementeira da cidade. A cidade terrena precisa unicamente da geração; a celestial, por sua vez, requer, além disso, a regeneração, para abolir a vergonha da primeira. A História Sagrada não diz palavra alguma sobre a existência de algum sinal corporal e sensível da regeneração, antes do dilúvio e, no caso de ter existido, qual foi, como a circuncisão, mais tarde prescrita a Abraão. Não cala, contudo, haverem os patriarcas mais antigos oferecido sacrifícios a Deus, coisa também feita pelos dois primeiros irmãos. Lê-se do próprio Noé que, depois de sair da arca, ofereceu sacrifício a Deus. Sobre esse ponto já falamos nos livros precedentes e dissemos que por esse meio os demônios se arrogaram a Divindade e se julgaram deuses, ardentemente desejosos de exigir o sacrifício e gozar de tais honras, sabendo que o verdadeiro sacrifício se deve ao verdadeiro Deus. CAPÍTULO XVII Um tronco com dois ramos principais. Como Adão era o pai dessas duas classes de homens, a saber, daquele cuja série compõe a cidade terrena e do outro, cuja descendência integra a Cidade celeste, ao morrer Abel e em sua morte encarecer grande mistério, ficaram constituídos dois pais de cada ramo, Caim e Set. Na descendência destes, que precisava ser mencionada, foram-se na linhagem humana descobrindo indícios mais evidentes de ambas as cidades. Com efeito, Caim gerou Enoc e em seu nome fundou uma Cidade, a terrena, não peregrina neste mundo, mas apoltronada em sua paz e felicidade temporais. Caim significa Posse. Por isso, quando nasceu, disse o pai ou a mãe: Adquiri um homem pela graça de Deus. E Enoc significa Dedicação, pois a cidade terrena está dedicada a este mundo, onde foi fundada e tem o fim que apetece e pretende. Set, por sua vez, significa Ressurreição; Enós, seu filho, significa Homem, não, porém, no mesmo sentido que Adão, pois também este nome significa homem. Ao que parece, é o nome comum pelo hebraico usado para designar o homem e a mulher. Assim está escrito dele: Fê-los homem e mulher, abençoou-os e pôs-lhes o nome de Adão. Donde se segue haver sido Eva, sem dúvida, o nome próprio da mulher e Adão, que quer dizer Homem, nome comum a ambos. Enós significa Homem, mas, segundo os peritos nessa língua, não pode ser aplicado à mulher, pois é filho da Ressurreição e nela não se casam nem tomam esposas, porque não haverá geração no lugar aonde leva a regeneração. Acho que não será fora de propósito fazer notar que, nas gerações descendentes de Set, quando se diz haver gerado filhos e filhas, justamente por essa razão mulher alguma é expressa pelo nome, ao passo que nas descendentes de Caim o último nome é o da última mulher gerada. Assim se lê: Matusael gerou Lamec e Lamec tomou duas mulheres, uma chamada Ada e a outra, Zilá. Ada deu à luz Jobel. Este é o pai dos que habitam nas cabanas dos pastores. E teve um irmão chamado Jubal, inventor do saltério e da dtara. Zilá deu à luz Tubalcaim, artista em ferro e cobre. Noema foi irmã de Tubalcaim e encerra as gerações de Caim. De Adão inclusive são oito, a saber, sete até Lamec, que teve duas mulheres, e a oitava é a geração que se prolonga em seus filhos, entre os quais se enumera uma mulher. Insinua-se, pois, com elegância que a cidade terrena há de ter até o fim gerações carnais, provenientes da união sexual entre homens e mulheres. Por isso, as mulheres do último patriarca citado são dadas a conhecer pelo nome, coisa não usada antes do dilúvio, com exceção de Eva. Assim como Caim, que significa Posse, fundador da cidade terrena, e seu Filho Enoc, que significa Dedicação e em cuja honra foi fundada, evidenciam que essa cidade tem princípio e fim terrenos e limita suas esperanças a este mundo visível, assim do filho de Set, que significa Ressurreição e é o pai das gerações mencionadas em separado, deve ser considerado o que diz a História Sagrada. CAPÍTULO XVIII Relações figurativas de Abel, Set e Enós com Cristo e com seu corpo, quer dizer, com a Igreja. Também a Set, diz a Escritura, lhe nasceu um filho, a quem deu o nome de Enós. Este pôs a esperança em invocar o nome do Senhor. Eis a voz e o testemunho da verdade. O homem, filho da ressurreição, vive em esperança, enquanto a Cidade de Deus, nascida da fé na ressurreição de Cristo, peregrina neste mundo. Assim, pois, a morte e a ressurreição de Cristo estão figuradas naqueles dois homens, em Abel, que significa Luto, e em Set, seu irmão, igual a Ressurreição. Dessa fé nasce a Cidade de Deus, quer dizer, o homem que pós a esperança em invocar o nome do Senhor. Porque, como diz o Apóstolo, somos salvos pela esperança. E não se diz que alguém tenha esperança do que já se vê, pois como poderá esperar o que uê? Portanto, se esperamos o que não vemos, aguardamo-lo graças à paciência. Com efeito, quem não imaginará existir aqui profundo mistério? Não é verdade haver Abel posto a esperança em invocar o nome do Senhor, pois, segundo a Escritura, seu sacrifício foi aceito a Deus? Não é verdade que também Set pós a esperança em invocar o nome do Senhor, pois dele se disse: Deus suscitou-me outro filho em lugar de Abel? Por que, pois, de modo especial se atribui a este o que é comum a todos os bons, senão porque convinha que no primogênito, segundo a narração, do pai dos predestinados à melhor parte, quer dizer, à soberana Cidade, se prefigurasse o homem, ou seja, a sociedade de homens que vivem na realidade da cidade terrena, não segundo o homem, mas segundo Deus, à espera da felicidade eterna? Assim, não se disse: Este esperou no Senhor, ou então: Este invocou o nome do Senhor, mas: Este pós a esperança em invocar o nome do Senhor. Que é pôs a esperança em invocar, senão profecia segundo a qual invocaria o nome do Senhor o povo que dele procederia, em conformidade com a eleição da graça? E o que disse outro profeta, e o Apóstolo entende referir-se ao povo pertencente à graça de Deus: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. A passagem: E deu-lhe o nome de Enós, que significa homem e a seguinte: Este pôs a esperança em invocar o nome do Senhor mostram de modo bem claro não dever o homem pôr em si a própria esperança. Maldito todo aquele que põe a esperança no homem, lê-se noutra parte. Não deve, tampouco, pô-la em si mesmo, com o propósito de ser cidadão de outra cidade que não está dedicada ao tempo, segundo os filhos de Caim, quer dizer, não o está no torrentoso curso deste século mortal, mas na imortalidade da eterna bem-aventurança. CAPÍTULO XIX De que é figura a translação de Enoc? Essa linhagem, cujo pai é Set, em uma das gerações, na sétima, contando-se Adão, também tem um nome que significa Dedicação. Enoc é o sétimo nascido de Set e significa Dedicação. Este, porém, tão grato a Deus, foi trasladado ao céu e na ordem das gerações tem posição notável por ser o sétimo a partir de Adão, dia em que se consagrou o sábado. E ao mesmo tempo o sexto, dia em que Deus fez o homem e rematou todas as suas obras, a contar de Set, quer dizer, depois do pai das gerações separadas da descendência de Caim. A translação de Enoc figura o dia aprazado de nossa dedicação, já feita em Cristo, nossa Cabeça, que ressuscitou para não mais morrer e também foi trasladado. Resta, porém, outra dedicação, a de toda a casa que tem por fundamento Cristo, dedicação diferida até o fim, até o dia em que se efetuará a ressurreição de todos os que jamais tornarão a morrer. Pouco importa a nosso caso dizer casa de Deus, templo de Deus ou cidade de Deus, pois todos esses termos são correntes em nossa língua. Vergílio mesmo chama cidade dominadora à casa de Assáraco, designando com tal nome os romanos, que, através dos troianos, se originam de Assáraco. Chama-lhe também casa de Enéias, porque os troianos, fundadores de Roma, arribaram à Itália com Enéias à frente. Nisso poeta imitou as Sagradas Letras, que chamam de casa de Jacó numeroso povo hebreu. CAPÍTULO XX Dificuldade nas gerações. 1. Alguém dirá: Se, na enumeração, pela linhagem de Set, das gerações de Adão, o propósito do historiador era chegar a Noé, em vida de quem sucedeu o dilúvio, e, a partir dele, tornar a tecer a lista de gerações até Abraão, por quem o evangelista São Mateus começa as gerações que rematam em Cristo, eterno Rei da Cidade de Deus, que intentava nas gerações de Caim e aonde pretendia levá-las? Resposta: Ao dilúvio, em que foi destruída toda a raça da cidade terrena, depois restaurada pelos filhos de Noé. Essa sociedade terrena e essa sociedade de homens que vivem segundo o homem subsistirão até o fim do mundo e dela diz o Senhor: Os filhos deste século geram e são gerados. Mas a regeneração conduz à Cidade de Deus, peregrina neste mundo, rumo a outro, em que seus filhos não geram nem são gerados. Aqui, por conseguinte, gerar e ser gerado é comum a ambas as cidades, embora a Cidade de Deus neste mundo tenha muitos milhares de cidadãos que se abstêm da geração e a outra também tenha alguns que a imitam nisso, embora continuem errados. À cidade terrena pertencem, ademais, aqueles que, desviando-se da fé, plantaram e implantaram diversas heresias e, portanto, vivem segundo o homem, não segundo Deus. Os gimnossofistas hindus, que, segundo contam, filosofam nus nas selvas da Índia, são também cidadãos seus e, contudo, abstêm-se da geração. Porque a continência não é bem, senão quando observada em conformidade com a fé no soberano bem, a saber, Deus. Entretanto, ninguém a praticou antes do dilúvio, pois se lê que o próprio Enoc, sétimo a partir de Adão e arrebatado do mundo, não morto, antes de ser trasladado gerou filhos e filhas. Conta-se no número destes Matusalém, elo de enlace entre as gerações a recordar. 2. Por que, pois, se citam tão poucos sucessores nas gerações de Caim, se era preciso prolongá-las até o dilúvio e se passava tempo muito longo, anterior à puberdade, em que se abstinham da geração durante cem anos ou mais? Se o autor do livro não tinha em mente alguém a quem pretendesse chegar pela série de gerações, como nos descendentes de Set quis chegar a Noé, para deste acelerar de novo a marcha em sua lista, que necessidade tinha, havendo sido destruída a descendência de Caim, de passar em silêncio os primogênitos para chegar a Lamec, cujos filhos encerram essa genealogia? Quer dizer, encerra-se na oitava geração a partir de Adão e sétima a partir de Caim, como se depois houvesse de unir-lhe algo, para chegar ao povo de Israel, em que a Jerusalém terrena ofereceu figura profética da Cidade celeste, ou a Cristo segundo a carne que é Deus eternamente bendito sobre todas as coisas, Fundador e Rei da Jerusalém soberana. Isso poderia fazer pensar que nessa lista genealógica se nomeiam os primogênitos. Mas por que tão poucos? Pois não poderiam ser, até o dilúvio, apenas esses, não abstendo-se da geração os pais até puberdade centenária, se é que então a puberdade tardia não estava em proporção direta com a longevidade. Supondo-se tivessem todos trinta anos, quando começaram a gerar, oito vezes trinta (por serem oito as gerações, contados Adão e os filhos de Lamec) são duzentos e quarenta anos. E é possível não hajam gerado durante todo o tempo que vai até o dilúvio? Em suma, por que não quis o autor mencionar as gerações seguintes? Computam-se, de Adão ao dilúvio, segundo nossos códices, dois mil duzentos e sessenta e dois anos e, segundo os hebraicos, mil seiscentos e cinquenta e seis. E, por pensarmos ser mais verdadeiro o número menor, de mil seiscentos e cinquenta e seis anos tiremos duzentos e quarenta. Pergunto: É crível que durante mil quatrocentos e tantos anos, que faltam para o dilúvio, os filhos de Caim não geraram filho algum? 3. Que semelhante dificuldade, entretanto, nos lembre as duas soluções precedentemente enunciadas: ou a longa existência dos primeiros homens tornava mais tardia a puberdade ou a genealogia não leva em conta os primogênitos, mas somente os filhos que levam em linha reta àquele a quem o historiador tem em vista, a Noé, por exemplo, na raça de Set. Ora, se na linhagem de Caim não existe a mesma intenção que trata com negligência os primogênitos, para chegar a um concreto através dos referidos, então é preciso admitir a puberdade tardia. Isso equivaleria a dizer que houve tempo em que chegavam a ser púberes e aptos para a geração depois dos cem anos, de modo que a lista genealógica aponta os primogênitos e, assim, até o dilúvio se completou esse número tão desorbitado de anos. Contudo, também poderia acontecer que por outra causa mais profunda, que me escapa, se encarecesse a cidade terrena, finalizando suas gerações em Lamec e filhos, deixando o autor de comentar as demais que possivelmente existiram até o dilúvio. Independentemente disso, que nos faz pensar em puberdade tardia naqueles homens, e para excluí-la, também pode ser causa de a lista das gerações não seguir a linha dos primogênitos o haver a cidade, fundada por Caim em nome de seu filho Enoc, dilatado seus domínios e tido muitos reis, não ao mesmo tempo, mas um depois do outro, sucessores que iam sendo engendrados pelos próprios reis. Caim foi, talvez, o primeiro desses reis; seu filho Enoc, em cujo nome fundou a cidade, o segundo. O terceiro, Gaidad, filho de Enoc; o quarto, Maniel, filho de Gaidad; o quinto, Matusael, filho de Maniel; o sexto, Larnec, filho de Matusael, que completa o número sete, a partir de Adão e pela linha de Caim. Não era, ademais, necessário que no trono sucedessem aos pais os primogênitos dos reis, mas aqueles a quem o merecimento, por causa de alguma virtude útil à cidade terrena, ou a boa sorte fizesse merecedores da coroa ou, melhor ainda, com certo direito hereditário, quem fosse o filho predileto do pai. Contudo, o dilúvio poderia muito bem acontecer em vida e durante o reinado de Larnec, perecendo com ele todos os homens, exceto os refugiados na arca. Nem é de maravilhar que em intervalo de tantos anos e durante tanto tempo transcorrido de Adão ao dilúvio não fossem numericamente iguais as gerações de ambos os ramos, sendo sete pela linha de Caím e dez pela de Set. Como já dissemos, Lamec é o sétimo descendente de Adão; o décimo, Noé. E não se cita apenas um filho de Lamec, como nas gerações precedentes, porém muitos, justamente por não saber-se com certeza quem havia de suceder-lhe, caso entre sua morte e o dilúvio ainda houvesse tempo útil para reinar. 4. Mas, seja qual for o modo por que se contem as gerações de Caim, pelos primogênitos ou pelos reis, parece-me que por nenhum motivo devo passar em silêncio que, sendo Lamec o sétimo descendente de Adão, se acrescentam quatro filhos seus, para completar-se o número onze, símbolo do pecado. Acrescentam-se três filhos e uma filha. Podem as mulheres, todavia, significar outra coisa, não a que parece devia ser encarecida agora. Estamos falando das gerações e das mulheres cala-se a origem. Com efeito, como a lei se encerra no número dez (daí o nome de Decálogo), indubitável é que o número onze denota infringência da Lei, por transcender o dez, e, portanto, pecado. Por essa razão Deus mandou fazer onze cortinas de pelo de cabra no tabernáculo do testemunho, que era como que o templo portátil de seu povo durante a viagem. No cilício recordam-se os pecados, por causa dos cordeiros que hão de estar à esquerda. Assim, fazendo penitência, nos prostramos, cobertos de cilício, como que para dizer com o Salmista: Meu pecado está sempre ante meus olhos. Em conclusão, a descendência de Adão, pela linha do criminoso Caim, termina com o número onze e tem por fecho uma mulher, de cujo sexo se origina o pecado, que a todos nos ligou à morte. Ademais, a tal pecado seguiu a voluptuosidade da carne, que resiste ao espírito, pois Noema, nome da filha de Lamec, significa voluptuosidade. Mas o número de gerações que, pela linha de Set, se sucedem de Adão a Noé é o número dez, o número legítimo. Acrescentam-se a esse número os três filhos de Noé, dos quais apenas dois abençoados, porque, quando um deles pecou, foi excluído como réprobo e os outros, abençoados, foram agregados, perfazendo-se desse modo o número doze. Este número é acreditado também pelos patriarcas e pelos Apóstolos, que são doze, quer dizer, as partes constitutivas do sete multiplicadas uma pela outra. É o produto de quatro por três ou de três por quatro. Em face de semelhante perspectiva, penso devermos abordar já o problema de como as duas linhas, que com distintas gerações insinuam duas cidades, uma de terrígenas e outra de regenerados, se foram mesclando e se confundiram, a ponto de a humanidade inteira, exceto oito homens, tornar-se merecedora de perecer no dilúvio. CAPÍTULO XXI Duas narrações diferentes: uma, contínua, a partir de Enoc; outra, retrospectiva, a partir de Enós. Primeiro, é preciso apresentar o problema: na lista das gerações de Caim, aos demais descendentes é, na narração, anteposto Enoc, em cujo nome foi fundada a cidade, e a partir dele vão-se enumerando o desaparecimento de todo esse ramo. Por outro lado, na outra, citado Enós, filho de Set, e sem consignar as seguintes até o dilúvio, abre-se parêntese e diz-se: Este é o livro da origem dos homens. Quando Deus fez Adão, fê-lo à sua imagem. Fê-los homem e mulher, abençoou-os e no dia em que os fez pôs-lhes o nome de Adão. Tenho para mim dever-se o parêntese à intenção de começar de novo, a partir de Adão, a recordação dos tempos, coisa que o autor não quis fazer na cidade terrena, como se Deus a mencionasse sem levá-la em conta. Mas por que recapitular esses tempos, depois de mencionado o filho de Set, homem que pôs a esperança em invocar o nome do Senhor, senão por tratar-se de ocasião propícia para assim confrontar ambas as cidades: a que parte de homicida e chega a outro, pois Lamec também cometeu homicídio em suas duas mulheres, e a que parte daquele que pôs a esperança em invocar o nome do Senhor? Eis a soberana e única ocupação que nesta mortalidade deve ter a Cidade de. Deus, peregrina neste mundo, ocupação encarecida por homem gerado daquele em quem reviveu o assassinado. Tal homem representa a unidade da soberana Cidade, não completa ainda, é verdade, mas que um dia receberá seu complemento com o precedente dessa prefiguração profética. O filho de Caim, quer dizer, o filho da Posse (de que, senão da cidade terrena?), tomou, pois, nome dessa cidade, fundada em seu nome! E de quem o Salmo canta: Invocarão seus nomes em suas próprias terras. Por isso incorrem no que está escrito em outro Salmo: Senhor, em tua cidade aniquilarás sua imagem. Por outro lado, ponha o filho de Set, ou seja, o filho da Ressurreição, sua esperança em invocar o nome do Senhor! De tal sociedade de homens é figura quem diz: Serei como oliveira frutífera na casa de Deus, pois esperei em sua misericórdia. Não aspire, por conseguinte, à vanglória de conseguir nome famoso na terra, porque é bem-aventurado quem põe a esperança no nome do Senhor, e não volve os olhos às vaidades e aos mentirosos desatinos do mundo. Com efeito, confrontadas ambas as cidades, a da mortalidade deste século e a da esperança de Deus, ambas saídas de porta comum, a mortalidade aberta em Adão, para correrem e avançarem a seu fim específico e devido, começa a recordação dos tempos. Nessa resenha acrescenta outras gerações, tornando a começar a narração a partir de Adão, de cuja posteridade, como de massa entregue a justa condenação, de uns fez Deus vasos de ira para ignomínia e de outros, vasos de misericórdia, para honra. E deu àqueles como castigo o merecido e a estes como graça o indevido, a fim de a soberana Cidade aprender dos vasos de ira a não confiar em seu livre-arbítrio, mas a pôr a esperança em invocar o nome do Senhor. A vontade foi criada naturalmente boa pela bondade de Deus, mas mutável pelo imutável, pois criada do nada, e não apenas pode declinar do bem para com livre-arbítrio fazer o mal, como também do mal para fazer o bem, embora incapaz disso, se lhe falta o auxílio de Deus. CAPÍTULO XXII O pecado dos filhos de Deus. A rede do amor às mulheres estrangeiras. O dilúvio. Assim, desenvolvendo-se e crescendo o gênero humano em posse do livre-arbítrio, operaram-se, mediante comunicação de iniquidade, a mistura e uma espécie de confusão de ambas as cidades. E esse mal, uma vez mais, teve como pedra de toque o sexo fraco, embora não do mesmo modo que no princípio do mundo. Na realidade, no caso, as mulheres não induziram os homens ao pecado, seduzidas pela mentira de outrem; os filhos de Deus, quer dizer, os cidadãos da cidade peregrina no mundo, começaram, por causa da beleza corpórea delas, a amar essas mulheres, que desde o princípio tinham maus costumes na cidade terrena, na sociedade dos terrígenas. É certo que a beleza é bem e dom de Deus, mas Deus também a dá a quem é mau, precisamente para os bons não a considerarem grande bem. Assim, abandonado o bem supremo, próprio dos bons, chegou inevitavelmente o declinar para o bem mínimo, não privativo dos bons, mas comum a bons e maus. Os filhos de Deus ficaram presos pelo amor às filhas dos homens e, para casarem-se com elas, sujeitaram-se aos costumes da sociedade terrena e abandonaram a piedade que guardavam na sociedade santa. A beleza do corpo, bem criado por Deus, mas temporal, ínfimo e carnal, é mal amado, quando o amor a ele se antepõe ao devido a Deus, bem eterno, interno e sempiterno. Assim, quando o avaro, abandonando a justiça, ama o ouro, o pecado não é do ouro, mas do homem. E assim sucede a toda criatura, pois, sendo boa, pode ser amada bem e mal. Amada bem, quando observada a ordem; mal, quando pervertida. Em elogio ao Círio, exprimi resumidamente em versos tal ideia: Essas coisas são tuas e são boas, porque tu, que és bom, as criaste. Nelas nada há nosso, senão nosso pecado, quando, invertendo a ordem, amamos o que foi por ti criado ao invés de amar-te. O Criador, se é realmente amado, isto é, se é amado Ele e não outra coisa em seu lugar, não pode ser mal amado. O amor, que faz com que a gente ame bem o que deve amar, deve ser amado também com ordem; assim, existirá em nós a virtude, que traz consigo o viver bem. Por isso, parece-me ser a seguinte a definição mais acertada e curta de virtude: A virtude é a ordem do amor. Eis por que a esposa de Cristo, a Cidade de Deus, canta no Cântico dos Cânticos: Ordenai em mim a caridade. Turbada, pois, a ordem de semelhante caridade, quer dizer, da dileção e do amor, os filhos de Deus esqueceram-se de Deus e amaram as filhas dos homens. Ambos os nomes distinguem suficientemente ambas as cidades. Não que não fossem filhos dos homens por natureza; é que começaram a ter outro nome por graça. Na passagem em que diz haverem os filhos de Deus amado as filhas dos homens,a própria Escritura chama anjos de Deus aos filhos de Deus. Isso deu margem a muita gente pensar não fossem homens, mas anjos. CAPÍTULO XXIII Que dizer da opinião de haverem sido anjos, não homens? 1. Na questão sobre se podem os anjos, sendo espíritos, unir-se carnalmente com as mulheres, já toquei, embora de passagem e sem dar-lhe solução, no Livro Terceiro desta obra. Diz a Escritura: Dos espíritos faz anjos seus, quer dizer, dos espíritos por natureza faz anjos seus, encomendando-lhes o ofício de anunciar. Diz-se em grego ághghelos, que em latim soa angelus e se traduz por "núncio". Não é fácil, porém, dizer se fala de seus corpos, quando acrescenta: E seus ministros, fogo abrasador, ou quer dar a entender devam seus ministros arder na caridade como em fogo abrasador. A própria Escritura, contudo, testemunha haverem os anjos aparecido aos homens em corpos tais, que não apenas podiam ser vistos, mas também tocados. E ainda há mais. E fato do domínio público, que muitos asseguram haver experimentado ou ouvido de pessoas autorizadas, que tinham experiência disso, haverem os Silvanos e os Faunos, vulgarmente chamados íncubos, atormentado com frequência as mulheres e nelas saciado suas paixões. Ademais, são tantos e de tal ponderação os que afirmam que certos demônios. chamados Dúsios pelos gauleses, intentaram e executaram semelhante torpeza, que negá-lo parece falta de vergonha. Por isso, não me atrevo a definir se há espíritos de corpos aéreos (pois também o ar, quando agitado por leque, excita a sensibilidade do tacto e dos demais sentidos) capazes de semelhante libido, quer dizer, de ter a seu modo comércio carnal com as mulheres. Não ouso, contudo, de modo algum crer que os santos anjos de Deus então caíram deste modo; nem deles fala o Apóstolo São Pedro, quando diz: Porque Deus não perdoou os anjos delinquentes, mas precipitou-os nos escuros cárceres do inferno, reservando para o juízo seu castigo. Inclino-me a crer que fala daqueles que, depois de se afastarem de Deus, caíram com o diabo, seu príncipe, cuja astúcia invejosa, na forma de serpente, fez cair o primeiro homem. A Santa Escritura é testemunho abundante em provas de os homens de Deus serem chamados também anjos. Assim, de São João está escrito: Eis que despacho à tua presença meu anjo, que irá diante de ti, preparando-te a caminho. E o profeta Malaquias, por graça peculiar sua, ou seja, a ele pessoalmente comunicada, a si mesmo chamou anjo. 2. Alguns, todavia, não perfilham tal modo de pensar, por lermos na Escritura que dos chamados anjos de Deus e das mulheres por eles amadas não nasceram, ao que parece, homens de nossa raça, mas gigantes, como se em nossos dias não nascessem homens cujos corpos sobrepujam de muito a estatura ordinária, como há pouco insinuei. Não é certo que, há alguns anos, quando Roma viu aproximar-se-lhe das portas a devastadora mão dos godos, havia ali certa mulher, que vivia com os pais, cuja estatura, de certo modo gigantesca, sobrepujava em muito os demais? Era admirável o gentio que vinha de toda parte vê-la. E o mais maravilhoso era não serem os pais sequer tipos ordinários, de estatura hoje comum. Puderam, portanto; nascer gigantes antes mesmo de os filhos de Deus, também chamados anjos de Deus, se misturarem com as filhas dos homens, ou seja, dos que viviam segundo a carne, em outros termos, dos filhos de Set com as filhas de Caim. Supõe-no a própria Escritura canônica no livro que comentamos. Eis suas palavras: Acontece que, depois de haverem-se multiplicado os homens na terra e de haverem-lhes nascido filhas, vendo os anjos de Deus serem belas as filhas dos homens, dentre elas tomaram por esposas as que mais lhes agradaram. E disse o Senhor: Desses homens farei desaparecer meu espírito, por serem carne. Viverão apenas cento e vinte anos. Naquele tempo havia gigantes na terra. E depois os filhos de Deus se uniram com as filhas dos homens e nelas geraram filhos para si, filhos que foram as pessoas de renome daquele tempo. Tais palavras do texto sagrado indicam com luz meridiana que, quando os filhos de Deus tomaram por mulheres as filhas dos homens, por serem boas, quer dizer, formosas, já havia gigantes na terra. A Escritura costuma chamar bons também os formosos de corpo. O certo é que depois de tal procedimento nasceram gigantes, pois diz assim: Naquele tempo já havia gigantes na terra. E depois os filhos de Deus se uniram com as filhas dos homens. Antes e depois, por conseguinte, do referido acontecimento. O que acrescenta: E geraram-nos para si mostra com suficiência que primeiro, quer dizer, antes de os filhos de Deus caírem em tais desmandos, geravam filhos para Deus, não para si, noutras palavras, não dominados pela libido, mas com vistas à propagação. E não geravam filhos para sua vaidade, mas cidadãos para a Cidade de Deus, a quem anunciaram, como anjos de Deus, que em Deus puseram a esperança, assemelhando-se àquele que nasceu de Set, era filho da Ressurreição e pôs a esperança em invocar o nome do Senhor. Nessa esperança seriam, com sua posteridade, coerdeiros dos bens eternos e, sob a paternidade de Deus, irmãos de seus filhos. 3. Mas ninguém há de pensar que foram anjos de Deus de tal maneira que não eram homens, pois a própria Escritura declara abertamente que foram homens. Depois de dizer que os anjos de Deus, cativos da beleza das filhas dos homens, dentre elas tomaram por esposas as que mais lhes agradaram, acrescentou: E disse Deus: Desses homens farei desaparecer meu espírito, por serem carne. O espírito de Deus fizera-os anjos de Deus e filhos de Deus; por declinarem, porém, às coisas inferiores, são chamados homens, nome de natureza e não de graça, e, além disso, também são chamados carne, espíritos desertores e desertos, por desertarem. Os Setenta chamam-nos anjos de Deus e filhos de Deus; tais nomes, todavia, não se encontram em todos os códices. Alguns trazem apenas filhos de Deus. Por outro lado, Áquila, o intérprete preferido pelos judeus, não traduz anjos de Deus nem filhos de Deus, mas filhos dos deuses. São verdadeiras, penso, ambas as versões. Eram filhos de Deus e irmãos dos pais, que tinham, como eles, Deus por pai, e filhos dos deuses, porque gerados pelos deuses, com quem eram deuses também, segundo o Salmo: Eu disse: Sois deuses e todos filhos do Altíssimo. É, pois, razoável acreditar que os Setenta receberam espírito profético e que, se por própria autoridade mudaram algo em sua versão e o expressaram de modo diferente do original, o fizeram, sem dúvida, por inspiração divina. Deve-se reconhecer, ademais, que em hebraico esse termo é ambíguo e, portanto, admite ambas as traduções, de filhos de Deus e filhos dos deuses. 4. Omitamos as fábulas dos escritos apócrifos, assim chamados porque de origem desconhecida até mesmo de nossos pais, através de quem nos chegou, em sucessão notória e certa, a autoridade das verdadeiras Escrituras. Embora, na realidade, nesses escritos apócrifos se encontre uma ou outra verdade, por causa de abundantes falsidades carecem de autoridade canônica. Não podemos negar haja Enoc, sétimo a contar de Adão, escrito algumas coisas divinas, pois o Apóstolo São Judas o diz em sua epístola canônica. Mas, não sem motivo, não se encontram no cânon das Escrituras, que se conservava no templo do povo judeu, mercê do cuidado dos sacerdotes que se iam sucedendo. A própria antiguidade dos livros de Enoc tornou-os suspeitos e a falta de tradução legítima atraiu dúvida acerca de sua autenticidade. Por esse motivo, aos escritos que foram publicados com seu nome e contêm fábulas de gigantes cujos pais não foram homens, os prudentes acham, com fundamento, que não se lhes deve fé, assim como a muitos outros publicados por hereges com nomes de profetas e, mais recentemente, com nomes de Apóstolos. Uns e outros foram privados de autoridade canônica e, depois de esmerado exame, incluídos no número dos apócrifos. É certo, segundo as Escrituras canônicas, hebraicas e cristãs, que houve muitos gigantes antes do dilúvio, que foram cidadãos da cidade terrena e que os filhos de Deus, nascidos de Set, segundo a carne, caíram nessa sociedade, abandonando a justiça. Não é de maravilhar, portanto, que deles pudessem nascer também gigantes, porque, embora verdade que nem todos fossem gigantes, então havia muitos mais do que nos tempos seguintes ao dilúvio. E ao Criador prouve criá-los para mostrar ao sábio que não se devem superestimar nem a beleza, nem a grandeza, nem a fortaleza corporal e que os bens espirituais e imortais, que o beatificam, privativos dos bons, não comuns a bons e maus, são muito superiores e estáveis. Outro profeta, encarecendo exatamente isso, diz: Ali viveram os famosos gigantes que houve no princípio, homens de grande estatura e destros na guerra. Deus não os escolheu, nem lhes deu a senda da ciência, e pereceram, porque careceram da sabedoria, e pereceram por sua estupidez. CAPÍTULO XXIV Como deve ser entendido: "Viverão apenas cento e vinte anos"? As seguintes palavras de Deus: Viverão apenas cento e vinte anos não devem ser entendidas como prenúncio de que para o futuro os homens não haviam de viver mais de cento e vinte anos, porquanto, depois do dilúvio, houve quem vivesse até quinhentos. Deve-se, antes, entender que Deus o disse, quando Noé frisava pelos quinhentos anos, quer dizer, tinha quatrocentos e oitenta de vida, que, de acordo com o estilo da Escritura, seriam, em números redondos, quinhentos. Com frequência o todo expressa a parte maior. Pois bem, o dilúvio aconteceu no ano seiscentos da vida de Noé, no segundo mês. E, assim, esses cento e vinte anos seriam os anos de vida restantes aos homens, que, findo tal prazo, haviam de ser aniquilados pelo dilúvio. Há razão para se acreditar haja o dilúvio chegado, quando na terra apenas havia homens merecedores de que tal morte vingadora de ímpios os arrasasse, não porque semelhante gênero de morte cause nos bons, que hão de algum dia também render tributo à morte, algum mal capaz de prejudicá-los depois da morte. Quanto a isso, é de notar não haver perecido no dilúvio nenhum dos que a Santa Escritura menciona como descendentes de Set. Eis, segundo a narração divina, a causa do dilúvio: Vendo o Senhor Deus que a maldade do homem se multiplicara na terra e cada qual no íntimo cogitava de todo dia fazer mal, lembrou-se de que na terra fizera o homem, pensou e disse: Da face da terra exterminarei o homem que fiz, do homem à besta e dos répteis às aves do céu, porque estou irado de havê-los feito. CAPÍTULO XXV A ira de Deus. A ira de Deus não é nele turbação do ânimo, mas o juízo pelo qual castiga o pecado. Seu pensamento e sua reflexão é a razão imutável das coisas mutáveis. Porque Deus, que sobre todos os seres tem opinião tão estável como certa é sua presciência, não se arrepende, como o homem, de suas obras. Se a Escritura não usasse semelhantes expressões, sua forma não seria, até certo ponto, familiar e compreensível a toda classe. de homens, cujo aproveitamento pretende. Desse modo, aterra os soberbos e desperta os negligentes, exercita os que investigam e alenta os inteligentes, coisa que não faria, se primeiro não se inclinasse e se abaixasse a dar a mão aos estendidos no chão. O anunciar a morte de todos os animais terrenos e voláteis é imagem da grandeza da catástrofe vindoura, não ameaça de morte feita aos animais privados de razão, como se também houvessem pecado. CAPÍTULO XXVI A arca de Noé, símbolo de Cristo e da Igreja. 1. O mandar Deus a Noé, homem justo e, segundo a fidedigna expressão da Escritura, perfeito em sua geração (não com a perfeição com que na imortalidade os cidadãos da Cidade de Deus hão de igualar os anjos de Deus, é verdade, mas com a perfeição de que são capazes nesta peregrinação), que construa uma arca para nela escapar à devastação do dilúvio com os seus, com a mulher, filhos, noras e os animais que por ordem de Deus também fez entrar na arca, é, sem dúvida, figura da Cidade de Deus peregrina neste mundo, quer dizer, da Igreja, que se salva pelo lenho de que pendeu o Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus. As medidas de seu comprimento, largura e altura são símbolo do corpo humano, em cuja realidade veio aos homens, como fora predito. Com efeito, o comprimento do corpo humano, do alto da cabeça aos pés, é seis vezes a largura que vai do lado direito ao esquerdo e dez vezes a altura, medida no lado, das costas ao ventre. Assim, se medes alguém, estendido de bruços ou de costas, o comprimento, da cabeça aos pés, é seis vezes maior que a largura, da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita, e dez vezes que a altura, do solo ao vértice. Por isso, a arca foi feita de trezentos côvados de comprimento, cinquenta de largura e trinta de altura. A porta aberta no costado da arca significa, sem dúvida, o ferimento aberto pela lança, ao atravessar o lado do Crucificado. Os que vêm a Ele entram por ele, porque dele manaram os sacramentos, com que os crentes são iniciados. O mandar construí-la de tábuas de madeira quadradas significa a vida plenamente estável dos santos, porque o quadrado, para qualquer lado que o vires, fica sempre firme. Em suma, todas as coisas que se fazem notar na estrutura da arca são sinais de futuras realidades na Igreja. 2. Seria muito demorado explicá-los agora e, além disso, já o fizemos na obra intitulada Contra Fausto Maniqueu, que negava existisse nos livros dos judeus alguma profecia acerca de Cristo. Pode ocorrer que alguém o exponha com mais competência que eu e outro com mais do que esse, mas tudo quanto se diga deve relacionar-se com a Cidade de Deus de que falamos, viajara em meio deste mundo corrompido como em meio do dilúvio, se tal expositor não quer apartar-se do sentido do autor. Se, por exemplo, alguém não quiser entender as seguintes palavras: Farás de dois e de três pavimentos as partes Inferiores, como dissemos na obra citada, quer dizer, que os dois pavimentos significam que a Igreja se congrega de todas as nações, ou seja, de dois gêneros de homens, a circuncisão e o prepúcio, ou, segundo a expressão do Apóstolo, de judeus e de gregos, e os três pavimentos figuram a restauração de todos os povos, depois do dilúvio, mercê dos três filhos de Noé, que esse alguém dê outra interpretação, mas não estranha à regra de fé. Porque não quis fosse a arca habitável somente nas partes inferiores, mas também nas superiores, chamou-a de dois pavimentos e, como também nas em cima das superiores havia de sê-lo, chamou-a de três pavimentos, de forma que da base ao teto havia terceira habitação. Outro poderia entender pelos três pavimentos as três virtudes recomendadas pelo Apóstolo, a fé, a esperança e a caridade. Pode-se entender também (e é o que parece mais razoável) as três abundantes colheitas do Evangelho, em que um rende trinta, outro, sessenta, outro cem. Em tal gradação, o último posto caberia à castidade conjugal, o segundo à vidual e o superior à virginal. E assim diríamos de qualquer outra interpretação que possa ser proposta em conformidade com a fé da Cidade Santa. Considere-se, pois, dito o que devia expor agora, porque, embora não idêntica a exposição, não deve discordar da fé católica. CAPÍTULO XXVII Posição intermediária na interpretação, nem exclusivamente histórica, nem exclusivamente alegórica. 1. Ninguém deve, todavia, pensar que tais coisas foram escritas à toa, que aqui se deve buscar unicamente a verdade histórica, sem nenhuma significação alegórica, ou que, pelo contrário, negando a historicidade, se diga serem puras alegorias, que, sejam quais forem, não contêm nenhuma profecia da Igreja. Quem, de juízo perfeito, sustentará haverem sido, sem fim concreto, escritos livros, durante milhares de anos conservados com tanta religiosidade e tão esmerada ordem na sucessão, ou dever-se considerar neles o histórico apenas? Quanto a isso de histórico, para omitir outros pontos, digo que, se o número de animais obrigou a dar semelhantes dimensões à arca, que necessidade havia de fazer entrar um casal de animais impuros e sete dos puros, se para a conservação de ambas as espécies bastava igual número de ambas as classes? Ou será que Deus, que, para refazer-lhes o gênero, mandou recolhê-los, não podia recriá-los do mesmo modo que os criara? 2. Quem sustenta não serem fatos, e sim meras figuras representativas de realidades, pensa, em primeiro lugar, não haver sido possível dilúvio tão enorme, cujas águas, crescendo, subiram quinze côvados acima dos montes mais altos. E, ao dizê-lo, está pensando no cume do Olimpo, acima do qual, segundo dizem, não podem subir as nuvens, pois é tão alto como o céu e nessa altura não existe esse ar tão pesado, de que se originam os ventos, as nuvens e as chuvas. Não repara, porém, que nessa altura pode existir a terra, o mais pesado de todos os elementos. Ou será que vão negar-me agora ser terra o cume do monte? Por que, pois, se empenham em que a terra pôde elevar-se a tais regiões do éter e em que não o pôde a água, se os medidores e pesadores dos elementos afirmam ser a água superior à terra e mais leve que ela? Qual a razão de a terra, mais pesada e inferior, haver durante tantos milhares de anos ocupado o lugar mais sereno do ar e de à água, mais leve e superior, não ser permitido fazê-lo, embora por breve tempo? 3. Acrescentam que a capacidade da arca não dava para tantos animais de ambos os sexos, um casal dos impuros e sete dos puros. Mas tenho a impressão de que apenas contam trezentos côvados de comprimento e cinquenta de largura e não reparam em que há outro tanto nas partes superiores e outro tanto nas em cima das superiores e, por conseguinte, os referidos côvados se triplicam e dão, respectivamente, novecentos e cento e cinquenta. E se agora pensamos na engenhosa observação de Orígenes, segundo quem Moisés, versado, como está escrito, em toda a sabedoria dos egípcios, muito amigos da Geometria, poderia tomar os côvados por côvados geométricos, equivalente cada qual a seis dos nossos, quem não vé quantos animais poderiam caber em tamanha dimensão? Dizer, portanto, não haver sido possível construir arca de tal magnitude é calúnia sem sentido, dado sabermos que se construíram cidades imensas, além de haver durado cem anos a construção da arca. Trata-se de argumento forte, salvo se é possível unir-se, somente com cal, pedra com pedra, para construir muralha que rodeie muitas milhas, e não o é juntar tábua com tábua por meio de pregos, tachões, cravos e breu, para construir arca de grandes dimensões e linhas retas. Ademais, não seria lançada ao mar a esforço braçal; as próprias águas é que, em chegando, a ergueriam, por exigência da ordem natural dos pesos; quanto ao leme, estaria mais em mãos da divina Providência que da destreza humana, para a arca não ir a pique por nenhum dos lados. 4. Aqui se tornaram costumeiras algumas perguntas curiosas sobre se houve na arca, quanto aos mais diminutos animaizinhos, como os ratos e lagartos, os gafanhotos e escaravelhos e, enfim, as moscas e as pulgas, número maior que o prefixado por Deus. Antes de mais nada, é necessário advertir a quem as faz que as seguintes palavras: Que rastejam na terra devem ser estendidas de tal maneira que não impliquem necessidade de guardar na arca os animais que podem viver na água, quer no fundo, como os peixes, quer na superfície, como muitas aves. Portanto, ao dizer: Serão macho e fêmea, dá a entender o fim, quer dizer, a reparação do gênero animal. E, por conseguinte, não havia necessidade de estarem na arca os animais que podem nascer sem união carnal, que procedem das coisas ou da corrupção das coisas ou que, se estivessem, como de ordinário estão nas casas, poderiam ser encontrados em número indefinido. Se, porém, pretendem que o mais sagrado dos mistérios, como o tratado, e a figura de realidade tão excelsa não podem ser expressos com exatidão na verdade histórica, sem que esse número limitado de animais que naturalmente não podem viver na água estivesse presente na arca, respondo que se tratava de incumbência divina, não destes ou daqueles homens. A verdade é que Noé não os introduzia, apanhando-os; permitia-lhes a entrada, porque vinham e iam entrando. Aqui vem muito a pelo aquilo de virão a ti, quer dizer, não por obra do homem, mas por vontade de Deus, de forma que é de crer não estivessem na arca os carecedores de sexo. A isso mesmo é que induzem estas palavras determinadas e concretas: Serão macho e fêmea. Há bichos que nascem de quaisquer coisas, sem união carnal, unindo-se depois carnalmente e gerando, como as moscas, e outros que não têm macho nem fêmea, como as abelhas, Mas os animais que têm sexo e não geram, como os mulos e as mulas, não sei se estariam dentro da arca e não bastara estivessem somente os pais, quer dizer, o gênero equino e asinino e assim quanto aos restantes animais híbridos, se é que há. Mas, se o exigia também o mistério, digo que também se achavam na arca, pois em tal classe de animais há de igual modo macho e fêmea. 5. Com frequência alguns se preocupam em saber que classe de alimentos poderiam ter na arca os animais que, ao que parece, não vivem senão de carne. E a esse propósito perguntam se, além do número determinado, havia, sem violar a ordem, outros que Noé se vira obrigado a introduzir para alimentar os demais, ou (e é o mais crível) se havia alguns alimentos comuns e adequados a todos os animais. O certo é que conhecemos muitos animais que se alimentam de carne, mas também comem legumes e frutas e, principalmente, figos e castanhas. Que tem, pois, de particular haja tal homem, sábio e justo, instruído por Deus no conveniente a cada animal, preparado alimento apropriado a cada gênero? Ademais, que não comeriam, acossados da fome? E que alimento Deus não poderia tornar suave e salutar, se, com divina facilidade, pode fazer com que vivam sem comer, caso o alimentar-se não o exija o cumprimento alegórico de tal mistério? Ninguém, pois, que não seja porfiador se permite o luxo de opinar não ser figura da Igreja tal série de signos de fatos concretos. Os povos todos já atopetaram a Igreja e nela estão unidos entre si até o fim os puros e os impuros com tais vínculos de unidade, que tão evidente fato basta para dissipar qualquer dúvida sobre outros, talvez mais obscuros e mais difíceis de conhecer. Sendo assim, ninguém, por obstinado e rebelde que seja, ousará pensar que o escreveram inutilmente, ou, havendo mesmo sucedido, não tem significação alguma, ou se trata de meras alegorias, não de fatos. E não é possível, tampouco, dizer com probabilidade serem estranhos a significação eclesiológica, mas, pelo contrário, é de crer hajam sido transmitidos e escritos com muita sabedoria, realmente acontecido, significarem algo e ser esse algo prefiguração da Igreja. Mas, chegados a tal ponto, já é hora de pôr termo a este livro, para continuar a busca na marcha de ambas as cidades, da terrena, que vive segundo o homem, e da celeste, que vive segundo Deus, do dilúvio em diante. LIVRO DÉCIMO SEXTO Na primeira parte, do capítulo I ao XII, expõe o desenvolvimento de ambas as cidades, da celeste e da terrena, segundo a História Sagrada, de Noé a Abraão. Na segunda, trata apenas do desenvolvimento da cidade celeste, de Abraão aos reis de Israel. CAPÍTULO I Houve depois do dilúvio, de Noé a Abraão, algumas famílias que viveram segundo Deus? É difícil saber pela Escritura, a ponto de deixá-lo claro, se, após o dilúvio, continuaram as pegadas da Cidade Santa em sua marcha ou se eclipsaram, por intercalarem-se os tempos da impiedade, de forma que não existisse um homem sequer que adorasse o único Deus verdadeiro. E é difícil justamente porque nos livros canônicos, a partir de Noé, que mereceu ver-se, na arca, com a esposa, os três filhos e as respectivas noras, livres da catástrofe diluvial, não encontramos, até Abraão, elogiada com testemunho divino e manifesto a piedade de ninguém. Refere-se, unicamente, que Noé, vendo e antevendo os acontecimentos futuros, abençoa com bênção profética Sem e Jafé, dois de seus filhos. Esse tom profético impregna também a maldição lançada sobre o filho do meio, quer dizer, mais moço que o primogênito e mais velho que o último, que pecara contra o pai, não em sua própria pessoa, mas na pessoa do filho e, portanto, seu neto, com as seguintes palavras: Maldito seja o menino Canaã! Será escravo de seus irmãos. Canaã era filho de Cam, que não cobrira, mas descobrira a nudez do pai, quando estava dormindo. Por isso, acrescentou em seguida a bênção dos outros dois filhos, do primogênito e do caçula, dizendo: Bendito o Senhor Deus de Sem! Canaã será seu escravo. Alegre Deus a Jafé e habite nas tendas de Sem. Essa bênção, como o plantar Noé a vinha, sua embriaguez, sua nudez e o mais ali acontecido e aqui registrado estão repletos de sentido profético e oculto sob véu. CAPÍTULO II Figuração profética nos filhos de Noé. 1. Mas agora, já efetivamente cumpridas nos descendentes, estão de sobejo descobertas as coisas que estiveram encobertas. Quem, reparando nisso com inteligência e atenção, deixa de vê-las cumpridas em Cristo? Sem, de cuja estirpe Cristo nasceu, segundo a carne, significa Nomeada. E que há de mais nomeada que Cristo, cujo nome já exala por toda parte a fragrância que, em canto profético, o Cântico dos Cânticos compara ao unguento derramado? Em suas casas, quer dizer, em suas igrejas é que habita multidão de nações, porque Jafé significa isso mesmo, Multidão. Por sua vez, Cam, que se traduz por Astuto e é o segundo dos três filhos de Noé, como que distinguindo-se de ambos e permanecendo entre eles, não participando das primícias dos israelitas nem da plenitude dos gentios, que figura, senão os hereges, homens ardentes e animados não do espírito de sabedoria, mas do de impaciência que, de ordinário, lhes arde no coração e perturba a paz dos fiéis? Isso, porém, redunda em proveito dos capazes, segundo as palavras do Apóstolo: E necessário haver heresias, para que entre nós se revelem os de virtude provada. Por isso, também está escrito: O filho instruído será sábio e usará utilmente do néscio. Referentes à fé católica, há muitos pontos que, ao serem postos no tapete da discussão pela astuta inquietude dos hereges, para podermos fazer-lhes frente, devem ser considerados com mais cuidado, entendidos com mais clareza e pregados com mais insistência. E, assim, a questão suscitada pelo adversário oferece oportunidade para aprender. E bem verdade poderem parecer representados no segundo filho de Noé não apenas os que se encontram publicamente separados, como também todos aqueles que, gloriando-se do nome de cristãos, levam vida licenciosa, pois com sua fé anunciam a paixão de Cristo, figurada pela nudez de Noé, e com sua má vida a desonram. Desses tais está dito: Por seus frutos os conhecereis. Precisamente por isso Cam foi amaldiçoado em seus filhos, como em seu fruto, isto é, em sua obra, e, por conseguinte, é muito próprio dizer que Canaã significa seus Movimentos. E isso que é mais, senão a obra deles? Sem e Jafé, todavia, como a circuncisão e o prepúcio, ou, segundo a terminologia do Apóstolo, como os judeus e os gregos, mas chamados e justificados, havendo conhecido de algum modo a nudez do pai, figurativa da paixão do Salvador, tomando de uma capa, puseram-na sobre as espáduas e, entrando de costas, cobriram a nudez do pai e não viram o que taparam com respeito. Na paixão de Cristo honramos, de certo modo, o que foi feito em nosso favor e horrorizamo-nos do crime dos judeus. A capa figura o sacramento; as espáduas, a lembrança do passado, porque a Igreja celebra a paixão de Cristo como já passada, não a espera como futura nem mesmo no tempo em que Jafé mora nas tendas de Sem e o mau irmão habita entre eles. 2. Mas o mau irmão é criança, quer dizer, escravo dos irmãos bons, em seu filho, ou seja, em sua obra, quando os bons usam conscientemente dos maus, para exercitar sua paciência ou para proveito de sua sabedoria. Há, testemunha-o o Apóstolo, pessoas que anunciam Cristo com intenção perversa: Contanto que Cristo, diz, seja anunciado, quer por algum pretexto, quer por verdadeiro zelo, regozijo-me com isso e sempre me regozijarei. Plantou a vinha de que diz o profeta: A vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel. E bebeu de seu vinho, quer entendamos o cálice de que se diz: Podeis beber o cálice que tenho de beber? e: Pai, se possível, passe de mim este cálice!, que sem dúvida significa sua paixão, quer a passagem queira dar a entender que, como o vinho é fruto da vinha, dessa mesma vinha, quer dizer, da linhagem dos israelitas, por nós tomou sua carne e seu sangue, para poder padecer. E embriagou-se, quer dizer, padeceu, e ficou nu. Com efeito, ficou nu, isto é, apareceu sua fraqueza, de que diz o Apóstolo: A fraqueza de Deus é mais forte que os homens e a loucura de Deus é mais sábia que os homens. Quando a Escritura, após dizer: E ficou nu, acrescentou: em sua casa, mostra com elegância que havia de padecer a cruz e a morte nas mãos dos homens de sua própria estirpe, os judeus. Os réprobos anunciam a paixão de Cristo, mas só de boca e exteriormente, pois não compreendem o que anunciam. Os probos, por sua vez, têm no homem interior tão grande mistério e honram interiormente, no coração, a debilidade e a loucura de Deus, mais forte e mais sábia, respectivamente, que os homens. Figura de semelhante realidade é que Cam, saindo, o anunciou ao exterior, enquanto Sem e Jafé, para velar, quer dizer, para honrá-lo, entraram, ou seja, o fizeram interiormente. 3. Vamos sondando como podemos tais segredos da divina Escritura, uns com maior exatidão que outros. Mas sempre manifestando fielmente, como é certo, que tais acontecimentos não se deram e foram registrados sem alguma prefiguração do futuro e que devem referir-se a Cristo e à sua Igreja, que é a Cidade de Deus. Desde os albores do gênero humano não faltou predição que a anunciasse e as predições vemo-las totalmente cumpridas. Após a bênção dada aos filhos de Noé e da maldição lançada sobre o segundo, durante mais de mil anos, até Abraão, não se faz menção dos justos que tributaram piedoso culto a Deus. Não creio, realmente, que faltassem; acontece que recordá-los a todos seria demasiado longo, mais próprio da exatidão de historiador que da providência de profeta. O escritor das Sagradas Letras ou, melhor, o Espírito de Deus por meio dele, escreve acontecimentos que recordam o passado, mas ao mesmo tempo prenunciam o futuro. Isso concerne à Cidade de Deus. Porque quanto nesses livros se diz dos homens que não são cidadãos de tal cidade tem o propósito de que ela progrida ou campeie, não ser comparada com a contrária. Certo que não devemos imaginar que todos os acontecimentos narrados encerrem alguma significação, embora seja de notar que o.s que não a encerram foram acrescentados com vistas aos outros. E verdade que apenas com a relha é que se ara a terra, mas para que isso possa ser feito as demais partes do arado também se tornam necessárias. E é verdade, outrossim, que nas cítaras e outros instrumentos musicais dessa classe somente são tocadas as cordas, mas para acomodá-las são precisas, em unidade harmônica, as restantes partes, que não são tocadas, mas a que se unem as outras, que produzem o som. Assim, na História profética também se expressam alguns acontecimentos que não figuram nada; unem-se-lhes, porém, os que figuram algo e, por assim dizer, se ligam a eles. CAPÍTULO III Gerações dos três filhos de Noé. 1. É preciso, por conseguinte, considerar as gerações dos filhos de Noé e nesta obra, que intenta mostrar o desenvolvimento de ambas as cidades, da terrena e da celeste, insertar quanto pareça digno de menção. Começaram a ser lembradas pelo filho menor, por Jafé. Citam-se dele oito filhos e sete netos de dois dos filhos, três de um e quatro de outro. Quinze ao todo. São quatro os filhos de Cam, ou seja, do segundo filho de Noé, além de cinco netos e de um filho e dois bisnetos de um só neto. Onze ao todo. Enumerados esses, torna ao princípio e diz: Cuch gerou Nemrod, que começou a ser gigante na terra. Era gigante caçador contra o Senhor. Daí o provérbio: Gigante caçador contra o Senhor, como Nemrod. O princípio de seu reino foi Babei, Arac, Acad e Calane, na terra de Senaar. De sua terra saiu Assur e fundou Nínive, a cidade de Roobot-Ir, Cale e Resen, entre Nínive e Cale. Resen é grande cidade. Cuch, portanto, pai do gigante Nemrod, é dos filhos de Cam o primeiro citado. Cinco filhos seus e dois netos já haviam sido mencionados. Gerou, pois, o referido gigante, depois de nascidos os netos ou, é mais crível, a Escritura falou dele em particular por causa de sua preeminência, porquanto nos fala ao mesmo tempo de seu reinado e de outras cidades ou regiões já citadas. Quanto ao que diz de Assur, que saiu daquela terra, quer dizer, da terra de Senaar, pertencente ao reino de Nemrod, e fundou Nínive e as outras cidades indicadas, é preciso afirmar que isso aconteceu muito depois. Trata-o acidentalmente, por causa da celebridade do reino assírio, dilatado de maneira prodigiosa por Nino, filho de Belo e fundador da grande cidade de Nínive. O nome de tal cidade deriva do seu. De Nino vem Nínive. Assur (daí assírios) não se conta no número dos filhos de Cam, segundo filho de Noé, mas no dos filhos de Sem, primogênito de Noé. Donde claramente se segue que da estirpe de Sem procederam os que mais tarde possuiriam o reino do gigante Nemrod e, afastando-se dali, fundariam outras cidades, das quais a principal se chamou Nínive, de Nino. Chegado a esse ponto, retrocede a outro filho de Cam, de nome Mesraim, de cujos filhos fala, não como de homens concretos, mas como de sete nações. Acrescenta que da sexta, como do sexto filho, se originou a nação dos chamados filisteus. Assim, somam oito. Daí retoma a Canaã, filho de Cam, em quem foi amaldiçoado, e faz menção de onze filhos. Depois, apontadas algumas cidades, diz até aonde chegaram suas fronteiras. Assim, contados os filhos e os netos, a descendência de Cam ascende, de acordo com isso, a trinta e uma pessoas. 2. Resta falar dos filhos de Sem, primogênito de Noé, a quem gradualmente conduz a narração genealógica iniciada no filho menor. Mas, ao começar o relato dos filhos de Sem, há certa obscuridade, que é preciso aclarar com explicação, por ser de grande importância para nossa busca. Eis o texto: E a Sem, pai de todos os filhos e irmão maior de Jafé, nasceu-lhe também Héber. A ordem verbal é a seguinte: E a Sem nasceu-lhe Héber, ou seja, também a ele mesmo, quer dizer, ao mesmo Sem, lhe nasceu Héber, e o referido Sem é o pai de todos os seus filhos. Quis, pois, dar a entender que Sem era o patriarca de todos os nascidos de sua estirpe, que vai referir em seguida, quer filhos, netos, bisnetos, quer outros descendentes. Não é verdade haja Sem gerado Héber, que é o quinto na série de seus descendentes. Sem gerou, entre outros, Arfaxad; Arfaxad gerou Cainã; Cainã gerou Salé; Salé gerou Héber. Não sem motivo foi citado em primeiro lugar na linha oriunda de Sem e anteposto até mesmo aos filhos, apesar de ser o quinto neto. A razão é justificar-se a tradição de que dele tomaram nome os hebreus, embora possa haver outra opinião, segundo a qual o nome procederia de Abraão, como abraeus. Mas a verdade é esta. De Héber chamaram-se hebereus e depois, perdida uma letra, hebreus. O hebraico somente o povo de Israel pôde consegui-lo e nesse povo a Cidade de Deus foi peregrina e misteriosamente figurada nos santos e em todos. A Escritura cita, primeiro, seis filhos de Sem; depois, quatro netos, nascidos de um só filho. Menciona, a seguir, outro filho de Sem, que gerou um neto, a quem, por sua vez, lhe nasceu um bisneto, que gerou um tetraneto, Héber. Héber gerou dois filhos e a um deles chamou Faleg, que significa Dissidente. Em seguida, a Escritura dá a razão de tal nome, dizendo: Pois então se fez a divisão da terra. Depois esclareceremos o que isso quer dizer. O outro filho de Héber gerou doze filhos; assim, todos os descendentes de Sem somam vinte e sete. No total, os descendentes dos três filhos de Noé, a saber, quinze de Jafé, trinta e um de Cam, mais vinte e sete de Sem, somam setenta e três. Prossegue a Escritura: São esses os filhos de Sem, em suas tribos, segundo suas línguas, em suas terras e em suas nações. E, falando de todos ao mesmo tempo: São essas as tribos dos filhos de Noé, segundo suas gerações e suas nações. A multidão de gente delas oriunda povoou a terra depois do dilúvio. Donde se conclui haver então setenta e três nações ou, melhor dizendo, setenta e duas nações, não homens. É o que depois se provará. Referidos os filhos de Jafé, assim se concluiu a narração: A multidão de gente deles procedente formou grupos de nações, divididas por terras, línguas, famílias e tribos. 3. Em determinada passagem, ao falar dos filhos de Cam, a Escritura alude de modo mais claro às nações, como já demonstrei mais acima. Mesraim gerou os chamados ludins e, assim, as demais nações, até sete. E, enumeradas todas, conclui, dizendo: São esses os filhos de Cam, em suas tribos, segundo suas respectivas línguas, em suas terras e em suas nações. Em conclusão, passou em silêncio os filhos de muitos, porque, em nascendo, se foram agregando a outras nações e formaram nações à parte. Por que outra causa, enumerando oito filhos de Jafé, acrescenta serem só de dois de seus filhos, e, alistando quatro filhos de Cam, acrescenta haverem nascido de três de seus filhos, enquanto, citando seis filhos de Sem, anota apenas a descendência de dois deles? Acaso ficaram sem descendência os demais? Deus nos livre de crê-lo! Acontece que não fundaram povos que os tornassem dignos de menção, pois, ao nascerem, se iam juntando a outros povos. CAPÍTULO IV A diversidade de línguas e o princípio de Babilônia (Babei). Uma vez contado ter língua própria cada uma das referidas nações, o historiador torna ao tempo em que todos falavam a mesma língua e, baseado nisso, expõe o acidente causador da diversidade de línguas. Toda a terra, diz, tinha uma só língua e todos o mesmo modo de falar. Mas sucedeu que os homens, distanciando-se do Oriente, encontraram extensa planície na terra de Senaar e nela se estabeleceram. E disseram uns aos outros: Vinde, façamos tijolos e cozamo-los ao fogo. Os tijolos serviram-lhes de pedra e o betume, de argamassa. E acrescentaram: Eia! Edifiquemos uma cidade e uma torre cujo topo chegue ao céu e tornemo-nos famosos, antes de dispersar-nos sobre a face da terra. Mas eis que o Senhor desceu a ver a cidade e a torre edificada pelos filhos dos homens. E disse Deus: Eis um só povo e uma só língua; começaram esta obra e não desistirão de quanto intentaram fazer. Eia, pois! Desçamos e confundamos-lhes ali mesmo a língua, de sorte que um não entenda a fala do outro. E dali o Senhor os dispersou pela face da terra e deixaram de edificar a cidade e a torre. E deu-lhe o nome de Confusão por isto, porque Deus ali confundiu a língua dos homens. E dali os espalhou por toda a terra. Tal cidade, chamada Confusão, é Babilônia (Babei), cuja maravilhosa construção a própria História dos gentios celebra. Babilônia quer dizer Confusão. Donde se segue haver sido seu fundador o gigante Nemrod, como a Escritura rapidamente indicou mais acima, quando, ao falar dele, disse que o princípio de seu reino foi Babilônia, quer dizer, a cidade que ia à frente das demais cidades e em que se encontrava como que a metrópole ou a corte do reino, embora certo não haver sido aperfeiçoada ao extremo imaginado pela soberba impiedade. Porque estava nos planos fazê-la extraordinariamente alta, até o céu, segundo sua expressão, quer semelhante desejo se limitasse a determinada torre entre as demais, quer se estendesse a todas. Estariam, nesse caso, significadas pelo singular, como se diz soldado para significar milhares de soldados e rã e gafanhoto para expressar a multidão de rãs e de gafanhotos, duas pragas mandadas aos egípcios por meio de Moisés. Mas que ia fazer a vã presunção dos homens? Por mais que levantassem ao céu e contra Deus a mole de pedra, quando transcenderia os montes? Quando escaparia ao espaço do ar nebuloso? Em que pode prejudicar a Deus qualquer elevação de corpo ou de espírito, por maior que seja? O verdadeiro e seguro caminho para chegar ao céu é a humildade. Levanta ao alto o coração ao Senhor, não contra o Senhor, como do gigante Nemrod se disse que era caçador contra o Senhor. Alguns, por não entende-lo, traduziram ante o Senhor, não contra o Senhor, enganados pela ambiguidade da palavra grega enantíon que significa ante e contra. Tal palavra emprega-se no Salmo: Choremos ante o Senhor, que nos criou. E também no Livro de Jó, em que se lê: Irrompeste encolerizado, contra o Senhor. Neste último sentido é que deve ser entendida em gigante caçador contra o Senhor. E que quer dizer caçador nessa passagem, senão enganador, opressor e assassino dos animais da terra? Com seus povos, pois, levantava torre contra o Senhor, torre que significou a soberba ímpia. E é justo o castigo do mau afeto, mesmo daquele que não consegue seu efeito. Que classe de castigo foi esse? Como a língua é o instrumento de domínio de quem manda, nela foi condenada a soberba, de tal sorte que quem mandava no homem, que não quis entender os mandamentos de Deus, para obedecer-lhes, não era entendido. Assim, a conspiração gorou, separando-se cada qual daquele a quem não entendia e juntando-se a quem podia falar com ele. E pelas línguas dividiram-se as nações e dispersaram-se pela terra como prouve a Deus, que isso fez por meios ocultos e incompreensíveis a nós. CAPÍTULO V Como desceu o Senhor a confundir as línguas? E desceu o senhor, está escrito, a ver a cidade e a torre edificadas pelos filhos dos homens, quer dizer, não pelos filhos de Deus, mas pela sociedade que vive segundo o homem e chamamos cidade terrena. Deus, que está todo inteiro em todas as partes, não se move com movimento local. Diz-se que desce, quando faz algo na terra. E, como acontecimento maravilhoso e fora do curso ordinário da natureza, mostra, de certo modo, sua presença. De igual maneira, Deus, que nunca e nada pode ignorar, não aprende como ver, mas se diz que vê e conhece temporalmente, porque faz ver e conhecer. Não se via, pois, a referida cidade como Deus fez que se visse depois, quando mostrou quanto lhe desagradava. Também é possível, não obstante, entender-se que Deus desceu àquela cidade, porque desceram seus anjos, em quem habita, de forma que as seguintes palavras: E disse o Senhor Deus: Eis um só povo e uma só língua etc. e as acrescentadas a seguir: Vinde e, descendo, confundamos-lhes ali mesmo as línguas não passem de recapitulação, para explicar como sucedeu que dissera: Desceu o Senhor. Porque, se já descera, que quer dizer: Vinde e, descendo, confundamos, o que se entende dito aos anjos, senão que descia" por ministério dos anjos, quem estava nos anjos que desciam? E de notar que não diz: Vinde e, descendo, confundi, mas: Confundamos-lhes ali mesmo as línguas, mostrando que Deus age por seus ministros, de forma que são seus coopera dores, segundo as palavras do Apóstolo: Pois somos os cooperadores de Deus. CAPÍTULO VI Como devemos entender que Deus fala aos anjos? 1. Também poderiam entender-se com os anjos estas palavras, ditas quando o homem ia ser criado: Façamos o homem, pois não disse: Faça-o eu. Como, porém, acrescentou: à nossa imagem e não é permitido crer haja o homem sido feito à imagem dos anjos ou que sejam a mesma a imagem dos anjos e a de Deus, é ortodoxo entender ali a pluralidade da Trindade. E a Trindade, como é um só Deus, após haver dito: Façamos, acrescenta: E fez Deus o homem à imagem de Deus e não: Fizeram os deuses ou: À imagem dos deuses. Na referida passagem também seria possível entender-se a Trindade, se houvesse algo que não permitisse aplicar o plural aos anjos, como se o Pai dissera ao Filho e ao Espírito Santo: Vinde e, descendo, confundamos-lhes ali mesmo as línguas. Aos anjos convém-lhes mais chegarem-se a Deus com movimentos santos, quer dizer, com piedosos pensamentos e consultar a Verdade imutável, como a lei eterna em sua soberana corte. Pois não são a verdade para. si mesmos, mas, partícipes da Verdade criadora, lançam-se a ela como à fonte da vida, com o propósito de nela haurirem o que de si mesmos não têm. E o movimento que aproxima os que não se afastam é estável neles. Deus não fala aos anjos como falamos uns aos outros, como falamos a Deus ou aos anjos, como nos falam os anjos ou Deus, por meio deles, mas de modo inefável. E isso é-nos transmitido de maneira adequada a nosso ser. A palavra mais sublime de Deus e anterior a todas as suas obras é a razão imutável de tais obras. Carece, é verdade, de som estrondoso ou fugaz, mas tem força permanente na eternidade e operante no tempo. Com essa palavra fala aos santos anjos e também a nós, em longínquo desterro, embora de maneira diferente. Quando com o ouvido interior percebemos alguma palavra de semelhante linguagem, então nos assemelhamos aos anjos. Não tenho, portanto, obrigação de a cada passo ir dando a razão das palavras de Deus, pois a Verdade imutável fala de modo inefável, diretamente e por si mesma, à criatura racional ou fala por intermédio de outra criatura, quer por imagens espirituais a nosso espírito, quer por vozes corporais a nosso ouvido. 2. As palavras: E agora não desistirão de quanto intentaram Jazer não as acrescentou como confirmação, mas como pergunta. Assim costumam dizer os que ameaçam, como alguém escreve: Não chamei às armas nem o persegui pela cidade? Devem, pois, ser entendidas assim: Acaso não lhes faltará agora tudo quanto intentaram fazer? Mas, claro, dito assim, não expressa a ameaça. Por causa de espíritos algo tardos é que acrescentamos a partícula ne (acaso) e dissemos nonne (acaso não), por não podermos escrever a entonação de quem fala. Dos três filhos de Noé começaram a estender-se pelo mundo setenta e três ou, melhor, como logo provaremos, setenta e duas nações e outras tantas línguas, que, crescendo, povoaram também as ilhas. Mas o número de nações cresceu muito mais que o de línguas. Na própria África sabemos de muitas nações bárbaras com uma só língua. E quem duvida que, multiplicado o gênero humano, hajam os homens podido, com navios, passar a morar nas ilhas? CAPÍTULO VII Questão acerca da origem dos animais depois do dilúvio. Agora se propõe questão relativa aos animais que não se encontram sob o domínio do homem nem nascem da terra, como as rãs, mas se propagam pela união de macho fêmea, como os lobos e demais de seu gênero. E pergunta-se: E possível que depois do dilúvio, que aniquilou todos os animais não entrados na arca, existiram nas ilhas, se unicamente foram reproduzidos pelos casais salvos na arca? Certo que para as ilhas próximas é de crer-se hajam passado a nado; há, porém, ilhas tão distantes e afastadas dos continentes, que parece impossível haja algum animal arribado a elas a nado. Também é crível que os homens, levados pelo amor à caça, os trasladaram para o lugar em que habitavam, restaurando, assim, as diversas espécies. Não se deve, ademais, negar que também os anjos poderiam transportá-las por ordem ou permissão de Deus. E, se nasceram da terra, como em sua primeira criação, quando Deus disse: Produza a terra alma viva, fica muito mais claro que houve na arca animais de todo gênero, não tanto para reparar sua espécie animal quanto para figurar as diversas nações por causa do sacramento da Igreja, se nas ilhas, a que não poderiam passar, a terra produziu muitos animais. CAPÍTULO VIII Os monstros humanos e sua procedência. 1. Pergunta-se, além disso, se é crível que dos filhos de Noé ou, melhor, de Adão, de quem esses também procedem, se hajam propagado certas raças de homens monstruosos de que a História dos povos dá fé. Assegura-se, com efeito, que alguns têm um olho no meio da testa, que outros têm os pés virados para trás, que outros possuem ambos os sexos, a mamila direita de homem e a esquerda de mulher, e que, servindo-se carnalmente deles, alternativamente geram e dão à luz. Também contam que alguns não têm boca e vivem exclusivamente do ar, respirado pelo nariz. Afirmam que outros têm um côvado de altura e por isso os gregos os chamam de pigmeus e que em algumas regiões as mulheres concebem aos cinco anos e não vivem mais de oito. Contam, de igual modo, existirem homens de velocidade espantosa; têm nos pés uma só perna e, quando andam, não dobram a curva da perna. Chamam-nos ciópodes, porque no verão, deitados de costas, se defendem do sol com a sombra dos pés. Dizem que outros carecem de cabeça e têm os olhos nos ombros. E assim de outra infinidade de homens ou quase homens que se encontram pintados em mosaico no porto de Cartago, extraídos dos livros como de história das mais curiosas. Que direi dos cinocéfalos, cujas cabeças de cachorro e cujos próprios latidos mostram serem mais animais que homens? Mas ninguém é obrigado a crer na existência dessa série de homens que dizem existir. Contudo, quem quer que nasça homem, quer dizer, animal racional e mortal, por mais rara e estranha que nos pareça sua forma, cor, movimento, voz ou qualquer outra virtude, parte ou qualidade natural, nenhum fiel duvidará originar-se do primeiro homem. Sempre fica margem para ver o que a natureza operou em muitos e o que é admirável por sua própria raridade. 2. A razão que entre nós se dá dos partos monstruosos pode servir para povos inteiros. Deus, Criador de todas as coisas, conhece onde, quando e o que é ou foi oportuno criar e, ademais, conhece a beleza do universo e a semelhança ou diversidade das partes que a compõem. A quem é incapaz de contemplar o conjunto choca certa desproporção em determinada parte, por ignorar a que parte se adapta e a que diz relação. Sabemos nascerem homens com mais de cinco dedos nas mãos e nos pés. Trata-se, por certo, de diferença mais leve que aquela; mas, embora o porquê nos seja desconhecido, Deus nos livre de desatinar ao extremo de pensar haver-se o Criador equivocado no número de dedos do homem. E assim é, embora surja diferença maior, pois sabe o que faz Aquele cujas obras ninguém pode com justiça censurar. Em Hípona-Diarrito há um homem que tem a planta dos pés em forma de meia-lua, com apenas dois dedos nas extremidades, e assim também as mãos. Se houvesse alguma nação com igual tara, acrescentar-se-ia àquela curiosa e surpreendente história. Negaremos, por isso, que tal homem se origina do primeiro criado? Os andróginos, também chamados hermafroditos, embora muito raros, é fácil encontrá-los de quando em quando, caso em que aparecem ambos os sexos e a gente não sabe de qual devem tomar o nome. Prevaleceu, contudo, o costume de pôr-lhas o nome do sexo superior, quer dizer, do masculino, pois jamais ninguém os chamou de andróginos ou hermafroditas. Faz alguns anos, recentemente por certo, nasceu no Oriente um homem de membros superiores duplos e inferiores simples. Tinha duas cabeças, dois peitos e quatro mãos, um só ventre e duas pernas, como homem comum, e viveu tantos anos, que sua fama o converteu em atração turística. Quem será capaz de lembrar todos os seres humanos nascidos dessemelhantes em extremo dos que os geraram? E como não é possível negar que tais indivíduos se originam daquele único pai, é preciso confessar que povos cujo corpo, segundo a História, é como que desorbitado e contrário ao curso ordinário da natureza, de que gozam todos ou quase todos, se é possível aplicar-se-lhes a definição de animais racionais e mortais, também procedem do tronco único do primeiro homem. Supomos, claro está, serem verdadeiras as coisas contadas da disparidade dessas nações e da diversidade entre si e conosco. Se ignorássemos, por exemplo, que os monos, os micos e as esfinges não são homens mas animais, esses historiadores poderiam, gloriando-se da própria curiosidade, fazer-nos crer com impune vaidade tratar-se de nações de homens. Se, porém, são homens semelhantes seres, de que se escreveram coisas tão maravilhosas, quem sabe se Deus também quis alguns povos assim, com o propósito de que não pensássemos se houvesse equivocado sua sabedoria, que dá forma à natureza humana, como a arte de artista menos perfeito, ao criar tais monstros, que para nós é claro nascerem dos homens? Não deve, por conseguinte, parecer-nos absurdo haver certas raças monstruosas no gênero humano, pois é igual ao caso de haver indivíduos monstruosos em determinada nação. Assim, para concluir essa questão com circunspeção e prudência, direi que não passam de pura novela as coisas escritas sobre algumas nações, que, se se trata de realidade, não são homens ou que, se homens, descendem de Adão. CAPÍTULO IX Existência dos antípodas. Quanto à fábula dos antípodas, quer dizer, de homens cujos pés pisam o reverso de nossas pegadas na parte oposta da terra, onde o Sol nasce, quando se oculta de nossos olhos, não há razão que nos obrigue a dar-lhe crédito. Tal opinião não se funda em testemunhos históricos, mas em meras conjeturas e raciocínios aparentes, baseados em estar a terra suspensa na redondez do céu e o mundo ocupar o mesmo lugar, ínfimo e médio. Daí deduzem não poder carecer de habitantes a outra parte da terra, quer dizer, a parte debaixo de nós. E não reparam em que, mesmo crendo ou demonstrando com alguma razão que o mundo é redondo e esférico, não é lógico dizer que a terra não é coberta de água por esse lado. A Escritura, que dá fé das coisas passadas precisamente porque suas predições se cumprem, não mente. Além de parecer enorme absurdo dizer que alguns homens, atravessada a imensidade do oceano, puderam navegar e arribar à referida parte com o fito exclusivo de salvaguardar em sua origem a continuidade unitária do gênero humano. Vejamos, pois, se entre esses povos, que, segundo a Escritura, se dividiram em setenta e duas nações e outras tantas línguas, podemos encontrar a Cidade de Deus, que viaja no mundo e chegou ao dilúvio e à arca. Porque a verdade é que se demonstra haver perseverado nos filhos de Noé devido a suas bênçãos, em especial no maior, Sem, pois a bênção de Jafé importava em habitar nas terras do irmão. CAPÍTULO X Sem e a respectiva descendência, até Abraão. 1. Deve-se, pois, iniciar a série de gerações a partir de Sem, que nos designa a Cidade de Deus após o dilúvio, como a série das gerações de Set a designava antes dele. Por essa razão, a divina Escritura, depois de haver apresentado a cidade terrena em Babilônia, quer dizer, na confusão, retoma, como que recapitulando, ao patriarca Sem, a partir de quem empreende a marcha das gerações até Abraão, fazendo notar em que ano de sua vida gerou o filho continuador da série e quantos anos viveu. Aqui devo recordar minha promessa e deixar claro por que dissemos que o nome de um dos filhos de Héber foi Faleg, porque em seus dias se fez a divisão da terra. Por essa divisão que devemos entender senão a diversidade de línguas? Deixando de lado os filhos de Sem, que não vêm ao caso na lista das gerações, cita apenas aqueles através de quem é possível chegar a Abraão. Seguira o mesmo processo antes do dilúvio, quanto às gerações descendentes de Set, filho de Adão, até chegar a Noé. Assim começa a lista das gerações: São essas as gerações de Sem. Sem tinha cem anos, quando gerou Arfaxad, no segundo ano depois do dilúvio. Depois de gerar Arfaxd, Sem viveu quinhentos anos e gerou filhos e filhas. O mesmo estilo emprega nos outros, com o cuidado de indicar os anos em que cada qual gerou o filho que vai arrolar na lista genealógica, estendida a Abraão, e os anos vividos depois, dizendo, ademais, haver gerado filhos e filhas. O fim dessa última recomendação é dar-nos ideia da possível origem do crescimento dos povos, para não perguntarmos, puerilmente atentos aos poucos nomes mencionados, como pôde a linhagem de Sem povoar tantas regiões e fundar tantos reinos, o reino dos assírios, em especial, em que Nino, dominador dos povos orientais, teve reinado imensamente venturoso e deixou à posteridade império muito extenso e sólido, que se manteve durante muito tempo. 2. Para não nos alongarmos mais do que o devido, anotamos como digno de consideração em semelhante lista não quantos anos cada qual viveu de acordo com essa genealogia, mas apenas em que ano cada um deles gerou o filho que nela o segue, com o propósito de deduzir o número de anos transcorridos do fim do dilúvio a Abraão. E, em atenção aos pontos em que a necessidade nos obriga a demorar-nos, vamos brevemente e de passagem tocar outros. Dois anos após o dilúvio, Sem, com cem anos de idade, gerou Arfaxad; aos cento e trinta e cinco anos Arfaxad gerou Cainã, que, por sua vez, quando tinha cento e trinta e cinco anos, gerou Salé. Salé contava outros tantos, quando gerou Héber, que contava cento e trinta e quatro anos, quando gerou Faleg, em cujos dias se fez a divisão da terra. Faleg viveu cento e trinta anos e gerou Reu; Reu, à Idade de cento e trinta e dois, gerou Sarug. Aos cento e trinta, Sarug gerou Nacor; Nacor, aos setenta e nove, gerou Taré. E Taré, aos setenta anos, gerou Abrão, a quem Deus mais tarde mudou o nome, chamando-lhe Abraão. Assim, pois, do dilúvio a Abraão transcorrem mil e setenta e dois anos, segundo a edição Vulgata, quer dizer, dos Setenta. Nos códices hebraicos, ao que parece, se dão muitos anos menos, mas não os provam ou fazem-no com muita dificuldade. 3. Quando buscamos, pois, a Cidade de Deus nas referidas setenta e duas nações, não podemos afirmar que, no tempo em que falavam a mesma língua, o gênero humano já.abandonara o culto ao verdadeiro Deus. De tal modo seria assim, que a verdadeira piedade se conservara só nas gerações que descendem de Sem por Arfaxad e tendem ao patriarca Abraão. Devemos afirmar, isso sim, que a cidade ou sociedade dos ímpios surgiu a partir da soberba construção da torre até o céu, imagem da ímpia vaidade. Se antes não existia ou estava oculta ou, melhor, se ambas subsistiram, a saber, a piedosa nos filhos de Noé abençoados e em seus descendentes e a ímpia naquele que foi amaldiçoado e em sua descendência, de que nasceu o gigante caçador contra Deus, não é fácil dizê-lo. Talvez (e é, sem dúvida, o mais crível) antes mesmo da fundação de Babilônia existissem desprezadores de Deus nos filhos desses dois e adoradores de Deus nos de Cam. Contudo, somos obrigados a crer que homens de um e outro gênero nunca faltaram no mundo. É o que parecem manifestar as seguintes palavras: Todos se extraviaram e juntamente se tornaram inúteis; não há quem faça o bem, não há um sequer, e outro salmo, de que são estas: Não perceberão de uma vez todos aqueles que cometem a iniquidade e, como quem come um pedaço de pão, devoram meu povo? Logo, então já existia o povo de Deus. Donde se segue que a cláusula: Não há quem faça o bem, não há um sequer se refere aos filhos dos homens, não aos filhos de Deus. Porque primeiro disse: Do céu olhou Deus para os filhos dos homens, para ver se havia alguém que tivesse juízo ou buscasse a Deus, e depois acrescentou as palavras que provam serem réprobos todos os filhos dos homens, quer dizer, os pertencentes à cidade que vive segundo os homens, não segundo Deus. CAPÍTULO XI A língua primitiva foi a mais tarde chamada hebraico, de Héber. 1. Assim como a existência de uma única língua comum não obstou à existência de filhos malvados, pois antes do dilúvio a língua era uma só e, apesar disso, todos exceto uma família, a do justo Noé, mereceram ser riscados do mapa, assim também, quando as nações ímpias e soberbas foram justamente castigadas e divididas por meio da diversidade de línguas e a cidade dos ímpios recebeu o nome de Confusão, quer dizer, se chamou Babilônia, não faltou uma família, a de Héber, em que se conservasse a língua antes comum a todos. Por isso, como acima lembrei, é que na enumeração dos filhos de Sem (cada um deles deu origem a nações concretas) em primeiro lugar se menciona Héber, seu tetraneto, quer dizer, o quinto de seus descendentes. E como a referida língua, que não sem fundamento acreditamos haver sido a primitiva, comum ao gênero humano, se conservou em sua família, ao dividirem-se as nações por suas línguas, por isso mais tarde se chamou hebraico. O motivo é que então era preciso, dando-lhe nome próprio, distingui-la das outras línguas, pois todas também tinham nome próprio, ao passo que, quando única, se chamava simplesmente língua ou linguagem humana, usada, como era, por todos os homens. 2. Talvez alguém diga: Se a divisão da terra, quer dizer, dos homens existentes na terra, ocorreu no tempo de Faleg, filho de Héber, a língua primígena, comum a todos, deveria tomar o nome de Faleg. Mas é de notar haver o próprio Héber posto nome ao filho, em concreto o de Faleg, que significa Divisão, porque nascido justamente quando se efetuou a divisão da terra pelas línguas, ou seja, ao mesmo tempo. É ao que aludem as seguintes palavras: Fez-se em seus dias a divisão da terra. Se de fato Héber já não vivia, quando se multiplicaram as línguas, não daria seu nome à língua que se conservou em sua raça. O que nos leva a crer seja o hebraico a língua primitiva comum a todos é que a multiplicação e alteração das línguas é efeito de castigo, à margem do qual deveria, evidentemente, permanecer o povo de Deus. E, assim, não é fora de propósito seja essa a língua usada por Abraão, que não pôde transmiti-la a todos os filhos, mas apenas aos que, nascidos de Jacó e formando de maneira mais evidente e notória o reino de Deus, mereceram guardar os testamentos de Deus e a linhagem de Cristo. O próprio Héber não legou o idioma a todos os descendentes, mas somente àqueles cujas gerações levam a Abraão. Por esse motivo, embora não se haja exposto com clareza que, quando os ímpios edificavam Babilônia, na terra havia homens piedosos, tal obscuridade não foi para defraudar a atenção do historiador, mas, pelo contrário, para exercitá-la. Há dois fatos: primeiro, a língua primitiva foi única e Héber é, na narração, anteposto a todos os filhos de Sem, embora seja seu quinto descendente; segundo, essa língua chama-se hebraico e foi empregada pelos patriarcas e pelos profetas, não só em sua fala, mas também nas Sagradas Letras. Por isso, agora, quando, ao dividirem-se as línguas, nos perguntam onde pôde subsistir a língua antes comum a todos, posto não haver dúvida de que entre os que se conservou não existiu a pena consistente na mudança de línguas, que outra coisa vem às mentes senão que se conservou na nação daquele de cujo nome tomou nome? E prova não pequena da perfeição de tal nação é que, sendo outras nações castigadas com a mutação das línguas, não a alcançou semelhante castigo. 3. Mas agora se apresenta nova questão: Como puderam Héber e o filho formar diferente nação cada um deles, se em ambos encontramos a mesma língua? É certo que o povo hebreu descende de Héber a Abraão e por este ao tempo em que o povo de Israel se tornou grande povo. Como, pois, todos os homens mencionados como filhos dos três filhos de Noé formaram cada qual uma nação, se Héber e Faleg não as formaram? Na realidade, o mais provável é haver o gigante Nemrod formado também sua nação. E fez-se dele menção à parte por seu vasto império e por sua extraordinária estatura, de sorte que o número de setenta e duas nações subsiste. Faleg, por sua vez, foi mencionado não precisamente por haver fundado nação (pois a sua era a nação dos hebreus e a língua a mesma), mas por haver sucedido em seu tempo o memorável acontecimento da divisão da terra. E não deve tampouco surpreender-nos como se tornou possível que o gigante Nemrod vivesse até à fundação de Babilônia, à confusão de línguas e à divisão das nações, porque de ser Héber o sexto a partir de Noé e ele o quarto não se segue não hajam podido conviver até essa época. Sucede que viviam mais onde são menos as gerações e menos onde são mais ou que onde são menos geravam mais tarde e mais cedo onde são mais. E preciso, além disso, entender que, quando se levou a cabo a divisão da terra, não somente já haviam nascido os restantes filhos dos filhos de Noé, que, segundo a Escritura, são pais de nações, mas também que sua idade avançada lhes permitia terem também numerosas famílias merecedoras do nome de nações. Donde se segue não devermos nem por sonho pensar hajam sido gerados na ordem em que os vemos mencionados. De outro modo, como se tornou possível que os doze filhos de Jectã, filho também de Héber e irmão de Faleg, já houvessem formado nações, se Jectã nasceu depois de Faleg, seu irmão, pois foi mencionado depois, suposto que, ao nascer Faleg, se realizou a divisão da terra? Deve-se notar, por conseguinte, que, apesar de citado primeiro, nasceu muito depois de seu irmão Jectã e os doze filhos deste já teriam famílias tão numerosas, que podiam ser divididas cada uma delas em sua língua própria. Assim, primeiro foi citado quem era posterior em idade, como nos filhos de Noé começou pelos filhos de Jafé, o menor deles, seguiu pelos filhos de Cam, o segundo, e em último termo cita os filhos de Sem, o primeiro. Conservaram-se em parte os nomes de tais nações, de sorte que ainda hoje se evidencia donde derivam, como de Assur os assírios e de Héber os hebreus; em parte mudaram por arcaísmo, de forma que os eruditos e pesquisadores da História antiga com dificuldade puderam descobrir as origens não de todas, mas de algumas das referidas nações. Dizem que os egípcios procedem de Mesraim, filho de Cam, mas aqui o nome nada lembra. Sucede o mesmo quanto aos etíopes, que se dizem descendentes de outro filho de Cam, chamado Cuch. Considerando-os todos, encontram-se mais nomes trocados que permanentes. CAPÍTULO XII Pausa em Abraão. Nova ordem na Cidade Santa. Vejamos, agora, o progresso da Cidade de Deus a partir do parêntese aberto no patriarca Abraão. Aqui o conhecimento de tal cidade faz-se luz e têm tintas mais claras as promessas que vemos cumprirem-se em Cristo. Como sabemos, por indicação da Santa Escritura, Abraão nasceu na região dos caldeus, terra pertencente ao império dos assírios. Entre os caldeus de então já imperavam as superstições ímpias, como entre as demais nações. Existia uma família, a de Taré, de que nasceu Abraão, na qual se conservara o culto ao único Deus verdadeiro; quanto é crível, era a única em que se conservava a língua hebraica. E isso apesar de também ela, como outrora o povo de Deus no Egito, haver, na Mesopotâmia, servido falsos deuses, segundo a narração de Jesus Nave, derivando pouco a pouco as demais famílias de Héber a outras línguas e a outras nações. Assim como no dilúvio de água sobreviveu uma família apenas, a de Noé, para restaurar o gênero humano, assim no dilúvio das superstições que inundou o mundo se salvou uma família, a de Taré, e nela se custodiou a plantação da Cidade de Deus. Finalmente, assim como ali, uma vez enumeradas as gerações até Noé, o número de anos e exposta a causa do dilúvio, antes de Deus falar a Noé sobre a construção da arca, se diz: São estas as gerações de Noé, assim também aqui, mencionadas as gerações de Sem, filho de Noé, a Abraão, abre igual parêntese e diz: São estas as gerações de Taré: Taré gerou Abrão, Nacor e Arã. E Arã gerou Lô. E Arã morreu antes do pai, Ta ré, na terra em que nasceu, na região dos caldeus. Abrão e Nacor casaram-se. Chamava-se Sara a mulher de Abrão; a de Nacor, Melca, filha de Arã. Arã, pai de Melca, foi também pai de Jesca, que, segundo parece, se identifica com Sara, esposa de Abraão. CAPÍTULO XIII Motivo do silêncio a respeito de Nacor durante a transmigração. Depois se conta como, em companhia dos seus, Taré deixou a terra dos caldeus, foi para a Mesopotâmia e habitou em Harã. Contudo, de um dos filhos, Nacor, não se diz coisa alguma, como se não o houvesse acompanhado. A narração diz assim: Toré tomou consigo seu filho Abrão, Ló, filho de Arã, e Sara, sua nora, esposa de seu filho Abrão, e tirou-os da região dos caldeus, para passar à terra de Canaã. E chegou a Harã e estabeleceu-se ali. Como se vê, de Nacor e de Melca, sua esposa, não se faz menção. Mas acontece que depois, quando Abraão envia um servo a buscar esposa para seu filho Isaac, se diz: Tomou o servo dez camelos dos do senhor e, levando consigo toda classe de bens do amo, posto a caminho, foi à Mesopotâmia, à cidade de Nacor. Prova-se, por esse e por outros testemunhos da História Sagrada, haver Nacor, irmão de Abraão, saído também da terra dos caldeus e fixado residência na Mesopotâmia, onde antes Abraão morara com o pai. Por que não o menciona a Escritura, quando, em companhia dos seus, Taré saiu da Caldeia e se estabeleceu na Mesopotâmia, se como acompanhantes cita Abraão, seu filho, Sarra, sua nora, e Ló, seu neto? Que outro motivo podemos dar senão que talvez apostatara da religião do pai e do irmão, dera seu nome à superstição dos caldeus e depois, quer arrependido, quer perseguido por julgarem-no suspeito, também emigrou? No livro intitulado De Judite, quando Holofernes, inimigo dos israelitas, pergunta que nação era essa e se se devia pelejar contra ela, respondeu-lhe Aquior, chefe dos amonitas: Senhor, escuta a palavra da boca de teu servo e direi a verdade acerca do povo que junto de ti habita esta montanha; tem por certo que desta boca não sairá mentira. Descendem dos caldeus e antes habitaram na Mesopotâmia. Como não quiseram adorar os deuses de seus pais, gloriosos entre os caldeus, e, afastando-se da religião de seus pais, adoraram o Deus do céu, que conheceram, foram expulsos da presença de seus deuses e fugiram para a Mesopotâmia, onde moraram muitos anos. Seu Deus mandou-os sair de sua morada e ir para a terra de Canaã, onde se estabeleceram etc. Donde se segue de maneira clara haver a família de Taré sido perseguida pelos caldeus por .causa da verdadeira religião, que a levava a render culto ao único Deus verdadeiro. CAPÍTULO XIV Idade de Taré e sua morte em Harã. Morto Taré na Mesopotâmia, onde, segundo a Escritura, viveu duzentos e cinco anos, começa a insinuação das promessas por Deus feitas a Abraão. Eis suas palavras: E foram os anos de Taré em Harã duzentos e cinco e morreu em Harã. Mas tal passagem não deve ser entendida como se houvesse vivido ali todo esse tempo; diz-se isso porque sua vida, que se reduziu a duzentos e cinco anos, ali viu o fim. Do contrário, ser-nos-iam desconhecidos os anos da vida de Taré, porque em parte alguma se lê com que idade chegou a Harã. Ademais, é absurdo pensar que, em lista genealógica em que se referem com esmero quantos anos viveu cada qual, se deixe sem consignar apenas o número de anos vividos por Taré. Com efeito, quando a Escritura passa em silêncio a idade de alguns por ela mencionados, é por não estarem na lista, em que se enumeram os tempos pela morte dos pais e a sucessão dos filhos. Nessa lista, que vai de Adão a Noé e deste a Abraão, não há nenhum sem o número de anos que viveu. CAPÍTULO XV Quando, por ordem de Deus, Abraão saiu de Harã? 1. Estas palavras, que lemos, depois de referida a morte de Taré, pai de Abraão: E disse o Senhor a Abraão: Sai de tua terra, de tua parentela e da casa de teu pai etc., não devem fazer-nos pensar que, como na narração é essa a ordem, seja também no tempo dos acontecimentos. Se é assim, trata-se de questão insolúvel. Depois dessas palavras dirigidas por Deus a Abraão, a Escritura diz assim: E saiu Abraão, como lhe dissera o Senhor, e Ló partiu com ele. Abraão tinha setenta e cinco anos, quando saiu de Harã. Como é possível que seja verdade, se saiu de Harã após a morte do pai? Como acima fizemos notar, Taré gerou Abraão aos setenta anos. Se lhes acrescentarmos os setenta e cinco que Abraão tinha, ao sair de Harã, teremos o total de cento e quarenta e cinco anos. Taré tinha, pois, tal idade, quando da referida cidade da Mesopotâmia saiu Abraão, que então vivia o setuagésimo quinto ano de vida. Portanto, o pai, que o gerara aos setenta, estava, como fica dito, pelos cento e quarenta e cinco. Logo, não saiu dali depois da morte do pai, quer dizer, depois de duzentos e cinco anos, vividos pelo pai; como, na época, estava com setenta e cinco anos, o pai, que o gerara aos setenta anos, contava então, evidentemente, cento e quarenta e cinco. Deve-se entender, por conseguinte, que a Escritura, como de hábito, fez nova recapitulação do tempo já passado. Mais acima fez o mesmo. Depois de mencionar os filhos dos filhos de Noé, disse que se haviam dividido em suas nações e em suas línguas e, contudo, em seguida, como se seguisse cronologicamente, acrescenta: E, então, toda a terra tinha a mesma linguagem e falavam todos a mesma língua. Como estavam divididos, segundo suas nações e suas línguas, se tinham todos uma só língua, senão porque a narração retoma, recapitulando, ao que já sucedera? Assim, nesta passagem diz: E foram os anos de Taré em Harã duzentos e cinco anos e morreu Taré em Harõ; depois, voltando a colher o fio da narração começada em Taré, acrescenta, para completá-la: E disse o Senhor a Abraão: Sai de tua terra etc. Depois de tais palavras de Deus, acrescenta: E saiu Abraão, como lhe dissera o Senhor, e Ló partiu com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos, quando saiu de Harã. Em conclusão, efetuou a saída, quando o pai tinha cento e quarenta e cinco anos e ele setenta e cinco. A questão resolveu-se também de outro modo. Segundo tal solução, os setenta e cinco anos que Abraão tinha, quando saiu de Harã, computar-se-iam a partir do ano em que Deus o livrou do fogo dos caldeus, não do ano em que nasceu, como se tal fosse a data precisa do nascimento. 2. Mas Santo Estevão, narrando-o nos Atos dos Apóstolos, diz: O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão, quando estava na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã, e disse-lhe: Sai de tua terra, de tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que te mostrarei. De acordo com tais palavras de Santo Estevão, Deus não falou a Abraão após a morte do pai, que certamente morreu em Harã, onde o filho morou com ele, e sim antes de habitar nessa cidade, mas já na Mesopotâmia. Já saíra, pois, do meio dos caldeus. E, assim, o que Santo Estevão acrescenta: Então Abraão saiu da Caldeia e habitou em Harã não mostra que isso se levou a cabo depois de Deus haver-lhe falado (pois não saiu da Caldeia depois de tal admonição divina, visto como diz haver-lhe Deus falado, quando se encontrava na Mesopotâmia), mas se refere a todo o tempo expresso pelo advérbio então, quer dizer, desde que saiu da Caldeia e fixou residência em Harã. É o que Isto prova: E, depois da morte do pai, Deus o colocou nesta terra em que vós e vossos pais residis agora. Não diz: Morto o pai saiu de Harã; diz: Morto o pai, Deus colocou-o aqui. Em conclusão, devemos entender que Deus falou a Abraão, ainda na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã, que chegou a Harã com o pai, guardando no coração o preceito de Deus, e que dali saiu aos setenta e cinco anos e aos cento e quarenta e cinco do pai. E diz que sua instalação na terra de Canaã, não sua saída de Harã, se deu após a morte do pai, pois, quando comprou essa terra e começou a possuí-la como dono, já lhe morrera o pai. Isto, porém, que Deus lhe diz, já estabelecido na Mesopotâmia, quer dizer, já fora da terra dos caldeus: Sai de tua pátria, de tua parentela e da casa de teu pai, não lhe ordena banir o corpo, pois já o fizera, mas de tais coisas desprender o espírito. Dali não saíra, pois, de coração, se estava movido pela esperança e pelo desejo de voltar, desejo e esperança que, com o auxílio e a ordem de Deus, a obediência de Abraão devia cercear. Pode-se admitir, sem dúvida, que Abrão cumpriu o preceito de Deus, saindo de Harã com Sarra, sua esposa, e Ló, seu sobrinho, após Nacor haver seguido o pai. CAPÍTULO XVI Ordem e qualidade das promessas que Deus fez a Abraão. Já é hora de considerar as promessas que Deus fez a Abraão. Nelas brilham com maior clareza os oráculos de nosso Deus, que é o mesmo que dizer do verdadeiro Deus, sobre o povo dos piedosos, proferidos pela autoridade dos profetas. A primeira está expressa nos seguintes termos: E disse o Senhor a Abraão: Sai de tua terra, de tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei. Far-te-ei chefe de grande nação, obençoar-te-ei, glorificar-te-ei o nome e serás abençoado. Abençoarei os que te abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem e em ti serão abençoadas todas as nações da terra. E de notar que aqui se prometem duas coisas a Abraão: uma, que sua descendência possuirá a terra de Canaã, expressa nestas palavras: Vai para a terra que te mostrarei e far-te-ei chefe de grande nação; outra, muito mais excelente, que não se deve entender referente à sua descendência carnal, mas espiritual, graças à qual é pai, não de uma nação apenas, a israelita, mas de todas as nações que caminham pelas veredas de sua fé. Tal promessa principia assim: E em ti serão abençoadas todas as nações da terra. Eusébio acha que semelhante promessa foi feita no ano setenta e cinco da vida de Abraão, que teria saído de Harã tão logo a recebeu. E funda-se em que a Escritura não pode contradizer-se nesta passagem: Abraão tinha setenta e cinco anos, quando saiu de Harã. Mas, se essa promessa foi feita esse ano, Abraão já morava em Harã com o pai, pois não poderia sair, se antes não houvesse estado ali. Isso está em contradição com o que diz Santo Estevão: O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão, quando estava na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã? Deve-se, pois, entender que no mesmo ano aconteceu tudo isto: a promessa de Deus, antes de Abraão habitar em Harã, sua permanência em Harã e sua saída. E isso não apenas porque, em suas Crônicas; Eusébio começa a contar do ano de tal promessa e mostra haver saído do Egito depois de quatrocentos e trinta anos, época do estabelecimento da lei, como também porque isso mesmo é que o Apóstolo São Paulo expressa. CAPÍTULO XVII Os três mais brilhantes impérios dos gentios. O dos assírios já era muito florescente no tempo de Abraão. Nesse mesmo tempo já floresciam três impérios dos gentios, em que da maneira mais insigne se distinguia a cidade dos terrígenas, quer dizer, a sociedade dos homens que vivem segundo o homem, sob o domínio dos anjos prevaricadores. Tais impérios eram o dos siciônios, o dos egípcios e o dos assírios. O dos assírios era o mais poderoso e florescente de todos. Nino, filho de Belo, subjugara todos os povos da Ásia, exceto a Índia. E não chamo Ásia à região que é província da Ásia Maior, mas à chamada Asia Universal, uma das duas, segundo uns, e, segundo outros, uma das três grandes partes do mundo, que seriam a Ásia, a Europa e a África. Não se observou igualdade nessa divisão, pois a Ásia se estende do meio-dia, pelo Oriente, ao setentrião, a Europa, do setentrião ao Ocidente, e a África, do Ocidente ao meio-dia. Donde se depreende, ao que parece, ocuparem a Europa e a África a metade do orbe e a Ásia a outra metade. Mas fizeram-se essas duas partes porque entre ambas se encontra o oceano, que recolhe as águas de dois continentes, formando, assim, grande mar. Por isso, dividido o mundo em duas partes, Oriente e Ocidente, a Ásia fica em uma e a Europa e a África em outra. Dos três impérios então florescentes, o dos siciônios não estava sujeito aos assírios, por acharem-se na Europa. Como, porém, não lhes estava sujeito o dos egípcios, se dominavam toda a Ásia, exceto, como fica dito, a Índia? Na Assíria, pois, predominava o poder da cidade ímpia. Sua corte era Babilônia, que é o mesmo que dizer Confusão, nome muito apropriado para a cidade terrígena. Ali já reinava Nino, após a morte de Belo, seu pai, primeiro rei dessa cidade pelo espaço de sessenta e cinco anos. Seu filho Nino, que lhe sucedeu no trono, reinou cinquenta e dois anos. Reinava há quarenta e três anos, quando nasceu Abraão, mais ou menos no ano mil e duzentos antes da fundação de Roma, que é como que a Babilônia do Ocidente. CAPÍTULO XVIII Segunda promessa que Deus fez a Abraão. Abraão, portanto, saiu de Harã aos setenta e cinco anos de vida e aos cento e quarenta e cinco do pai e com Ló.seu sobrinho, e Sarra, sua esposa, encaminhou-se para Canaã, chegando até Siquém, onde recebeu novo oráculo de Deus, referido nos seguintes termos: Deus apareceu a Abraão e disse-lhe: Darei esta terra à tua descendência. Nessa promessa não se faz menção da descendência que o constitui pai de todas as nações, mas apenas daquela que o torna pai de uma só nação, a israelita. E esta é a que possuiu a referida terra. CAPÍTULO XIX A castidade de Sarra, protegida por Deus no Egito. Depois, Abraão ergueu um altar ali, invocou Deus e partiu dali. Habitou no deserto, donde pela fome se viu obrigado a passar ao Egito. Quando disse que sua mulher era sua irmã, não mentiu, porque na realidade o era, pois era sua prima carnal, como Ló, que estava no mesmo grau de consanguinidade, também foi chamado irmão seu. Calou, portanto, que era sua esposa, mas não o negou, encomendando a Deus o velar por sua castidade e precavendo, como homem, as ciladas humanas. Se não tomasse todas as precauções possíveis contra o perigo, dir-se-ia que tentava Deus, não que esperava nele. Sobre tal questão já dissemos o bastante, respondendo às calúnias do maniqueísta Fausto. Aconteceu, por fim, o que Abraão esperava do Senhor. Feito chaga viva, Faraó, rei do Egito, que a tomara por esposa, devolveu-a ao marido. Longe de nós pensar que se viu manchada por coito adúltero, pois é muito mais crível não hajam as enormes chagas permitido a Faraó cometer semelhante crime. CAPÍTULO XX Separação entre Abraão e Ló. Nela ficou a salvo a caridade. Quando Abraão voltou do Egito ao lugar donde saíra, Ló, seu sobrinho, separou-se dele, sem rompimento de relações, e retirou-se para Sodoma. As grandes riquezas que adquiriram e as frequentes brigas de seus pastores levaram-nos a tomar essa decisão, para, assim, evitarem a pugnaz discórdia entre seus familiares. Homens que eram, isso podia suscitar contenda também entre eles. E Abraão, prevenindo semelhante mal, dirige a Ló as seguintes palavras: Não haja briga entre nós nem entre meus pastores e os teus, porque somos irmãos. Não está a terra toda à tua vista? Separa-te de mim; se forem para a esquerda, irei para a direita, se forem para a direita, irei para a esquerda. Disso talvez se haja originado, entre os homens, o pacífico hábito de, ao repartirem-se os terrenos, o mais velho dividir e o mais moço escolher. CAPÍTULO XXI Terceira promessa que Deus fez a Abraão. Depois de Abraão e Ló se separarem, forçados pela necessidade de manterem as famílias, não pela fealdade da discórdia, e quando Abraão já estava vivendo na terra de Canaã e Ló em Sodoma, o Senhor dirigiu a palavra a Abraão pela terceira vez: Olha com teus olhos e estende a vista daqui ao Aquilão e ao Africo, ao Oriente e ao mar. Toda a terra que vês dá-la-ei a ti e à tua posteridade até o século e multiplicar-te-ei a descendência como a areia da terra. Se alguém pode contar a areia da terra, contará também tua descendência. Levanta-te e percorre essa terra em todo o comprimento e em toda a largura, porque a darei a ti. Não é evidente que nessa promessa ,esteja implícita a outra, que o constitui pai de todas as nações. E possível supor se refiram a isso estas palavras: E multiplicar-te-ei Q descendência como a areia da terra, expressão figurada, que os gregos chamam hipérbole e na realidade é metafórica, não própria. E ninguém, algo versado na Escritura, duvida serem correntes nela tanto esse como os demais tropos. Tal figura retórica, quer dizer, tal modo de expressar-se, ocorre quando o que se diz de uma coisa excede em muito o que a coisa em si mesma é. Quem, por exemplo, não vê ser incomparavelmente maior o número de grãos de areia que o de homens, de Adão ao fim do mundo? Quanto maior não será, portanto, que a descendência de Abraão, não só a pertinente à nação israelita, como também a que é e será segundo a imitação da fé no mundo inteiro e em todos os povos! Essa linhagem é, na realidade, bem pouca coisa em comparação com a multidão dos ímpios, embora esses poucos formem inumerável número, hiperbolicamente expresso pela areia da terra. Verdade é que a multidão prometida a Abraão é inumerável, não para Deus, mas para os homens, pois para Deus não o é nem mesmo a areia da terra. Em consequência, por ser mais congruente comparar à multidão da areia ambas as descendências de Abraão, a israelita e a universal toda, a que também se estende a promessa, não segundo a carne, mas segundo o espírito de muitos filhos, é possível entender-se que a promessa aqui feita se aplica a ambas as realidades. Mas dissemos não ser evidente porque a multidão da única nação, descendente, segundo a carne, de Abraão, através de seu neto Jacó, cresceu tanto, que encheu quase todas as partes do mundo. Por isso, poderia também ser comparada hiperbolicamente à multidão de grãos de areia, porque esta só é inúmera para o homem. E certo que ninguém duvida haver-se expresso apenas a terra chamada Canaã. Estas palavras, porém: Dá-la-ei a ti e à tua descendência até o século podem suscitar dúvida em alguns, se por até o século entendem eternamente. Se, por outro lado, por até o século entendem aqui, como fielmente sustentamos, o princípio do século futuro e o fim do presente, não lhes oferecerão dificuldade alguma. Porque, embora expulsos de Jerusalém, os israelitas moram e morarão até o fim em outras cidades da terra de Canaã. Ademais, quando essa terra é habitada pelos cristãos, a linhagem de Abraão é que nela habita. CAPÍTULO XXII Vitória de Abraão sobre os Inimigos de Sodoma. Depois de haver recebido tal promessa, Abraão emigrou e acampou em outro lugar da mesma região, quer dizer, perto do carvalhal de Mambre, em Hebron. Mais tarde, quando se travava a guerra de cinco reis contra quatro e, vencidos os sodomitas, também Ló ficou prisioneiro, Abraão, acompanhado de trezentos e dezoito dos seus, o livrou dos inimigos que atacaram Sodoma. E, lutando em favor dos reis de Sodoma, venceu e recusou os despojos que o rei de Sodoma lhe oferecia. Então, porém, Melquisedec, sacerdote do Deus excelso, o abençoou. De Melquisedec referem-se muitas grandes coisas na epístola escrita aos hebreus, que muitos dizem e alguns negam ser do Apóstolo São Paulo. Em tal ocasião apareceu pela primeira vez o sacrifício que hoje em todo o orbe os cristãos oferecem a Deus, cumprindo-se o que muito depois do acontecimento se profetizou de Cristo, que ainda havia de encarnar-se: Es sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec. Quer dizer, não segundo a ordem de Aarão, ordem que desapareceria à luz da realidade figurada por essas sombras. CAPÍTULO XXIII Nova promessa de Deus a Abraão. A justificação pela fé. Também nessa oportunidade o Senhor falou a Abraão em visão. Deus prometeu-lhe proteção e graça e Abraão, solícito por sua posteridade, disse que certo Eliezer, criado seu, seria seu herdeiro. E Deus imediatamente lhe prometeu herdeiro, não doméstico seu, mas autêntico filho de Abraão, cuja descendência seria inumerável, não como os grãos de areia da terra, mas como as estrelas do céu. Aqui, segundo me parece, se lhe anuncia posteridade destinada à glória das beatitudes celestes. Pois, quanto ao número, que são as estrelas do céu em relação com os grãos de areia da terra, a não ser que alguém diga assemelhar-se tal comparação em as estrelas poderem tampouco ser contadas? Porque não devemos julgar possível vê-las todas, pois, quanto mais alguém fita os olhos, tantas mais vê. Donde se deduz ser razoável pensar que até mesmo aos mais perspicazes algumas escapam, sem falar dos astros, que, segundo contam, saem e se põem em parte do mundo muito afastada de nós. Enfim, a quantos se jactam de haverem compreendido e consignado o número de estrelas, como Arato, Eudoxo ou alguns outros, se há, a esses tais a autoridade das Escrituras desdenha. E é nessa passagem que se inserem as palavras que, para encarecer a graça de Deus, o Apóstolo nos lembra: Abraão creu e foi-lhe imputado para justiça. Com isso pretende que a circuncisão não se glorie, empenhando-se em à fé do Cristo não admitir os incircuncisos, pois, quando a fé do patriarca Abraão lhe foi imputada para justiça, ainda não fora circuncidado. CAPÍTULO XXIV Simbolismo do sacrifício oferecido por Abraão. 1. Na mesma visão, falando Deus com ele, disse-lhe também: Sou o Senhor, que te tirei da região dos caldeus, para dar-te esta terra e seres seu herdeiro. E, perguntando-lhe Abraão como saberia que seria seu herdeiro. respondeu-lhe Deus: Escolhe-me uma novilha, uma cabra e um carneiro, todos de três anos, uma rola e uma pomba. Tomou, pois, todos esses animais, partiu-os pelo meio e pô-los frente a frente, mas não dividiu as aves. E, como está escrito, as aves baixavam sobre os corpos divididos e Abrão sentou-se perto deles. Ao por do sol, o pavor surpreendeu Abrão, de quem se apoderou tenebroso e grande temor. E então se lhe disse: Sabe que teus descendentes serão peregrinos em terra alheia, os reduzirão a escravos e os afligirão pelo espaço de quatrocentos anos. Mas julgarei a nação a que servirão de escravos. Depois disso, daqui sairão carregados de riquezas. Entretanto, irás, entrado em bem-aventurada velhice, juntar-te em paz a teus pais. E não voltarão para cá até a quarta geração, porque ainda agora os pecados dos amorreus não encheram a medida. Posto o sol, ergueu-se viva chama e apareceram fumegante braseiro e lâmpadas de fogo, que atravessaram por entre os animais divididos. Nesse dia o Senhor Deus firmou aliança com Abrão, dizendo: À tua posteridade darei esta terra, do rio do Egito ao grande rio Eufrates, os queneus, os queneseus, os cadmoneus, os heteus, os fereseus, os refains, os amorreus, os cananeus, os eveus, os girgaseus e os jebuseus. 2. Tudo isso aconteceu e se disse em visão, mas por inspiração de Deus. Explicar pormenorizadamente cada ponto desses levaria tempo e excederia a humilde pretensão da presente obra. Basta saber o imprescindível. A fé do patriarca Abraão, pela qual creu em Deus e que lhe foi imputada para justiça, não sofreu desfalecimento, quando disse, depois de haver-lhe sido prometido herdar a referida terra: Senhor dominador, segundo que sinais saberei que a herdarei? Não disse: Como saberei?, como se ainda não cresse, mas: Segundo que sinais saberei?, como que pedindo semelhança da realidade, com que pudesse conhecer-lhe o modo. De igual modo, não implica desconfiança a atitude da Virgem Maria, quando disse: Como será isso, pois não conheço homem algum? Ela, que estava certa do que sucederia, pedia explicação, o como da obra. E tal pergunta achou eco: O Espírito Santo descerá sobre ti e a virtude do Altíssimo cobrir-te-á com sua sombra. Aqui também se deu conveniente sinal, o de animais, de uma novilha, uma cabra e um carneiro, e de duas aves, uma rola e uma pomba. E, segundo tal figura, já conhecia o futuro, que não duvidava sucederia. Talvez esteja significado pela novilha o povo submetido ao jugo da lei, pela cabra esse mesmo povo, futuro pecador, e pelo carneiro o povo que havia de reinar. (E acrescenta-se serem de três anos os referidos animais justamente por causa das três épocas notáveis: de Adão a Noé, de Noé a Abraão e deste a Davi, que, após a reprovação de Saul, é o primeiro a sentar-se no trono de Israel por vontade de Deus. Na terceira época, que vai de Abraão a Davi, como quem anda na terceira idade da vida, chegou o referido povo à mocidade). E, embora não signifiquem isso, mas outra coisa mais adequada, não duvido coisíssima alguma estarem os espirituais prefigurados pela rola e pela pomba. E a razão da cláusula: E as aves não as dividiu é dividirem-se os carnais entre si, mas os espirituais, não, quer se afastem das conversas sobre negócio dos homens sobre negócio, como a rola, quer vivam em meio delas, como a pomba. Ambas as aves são simples e inofensivas e com isso dava a entender que no povo israelita, futuro possuidor daquela terra, os homens seriam filhos da promessa e herdeiros de reino permanente com felicidade eterna. As aves que desciam sobre os corpos divididos não indicam nada bom; são simplesmente os espíritos do ar, que buscam, como próprio pasto, a divisão dos carnais. Abraão sentou-se perto delas e isso significa deverem os fiéis autênticos perseverar até o fim entre as guerrilhas dos carnais. O pavor e o temor tenebroso e grande que se apoderou de Abraão ao pôr do sol significa que no fim do mundo os fiéis sofrerão grandes atribulações e mágoas. Dessas disse o Senhor em seu Evangelho: Então haverá terrível atribulação, qual não houve desde o princípio. 3. Estas palavras ditas a Abraão: Sabe que teus descendentes serão peregrinos em terra alheia, os reduzirão a escravos e os afligirão pelo espaço de quatrocentos anos são manifesta profecia acerca do povo de Israel, que seria escravo no Egito. Isso não quer dizer que o referido povo haveria de viver quatrocentos anos na escravidão dos egípcios, mas que tais acontecimentos se realizariam nesses quatrocentos anos. E assim como de Taré, pai de Abraão, se disse: E Taré viveu em Harõ duzentos e cinco anos, não porque os passou todos ali, mas porque ali os completou, assim também aqui se interpôs: E reduzi-los-ão à escravidão e afligi-los-ão pelo espaço de quatrocentos anos, por haver-se completado na aflição o referido número, não por havê-lo passado todo ali. E diz quatrocentos anos para dar números redondos, embora hajam sido alguns mais, quer se computem a partir do tempo em que se fizeram a Abraão essas promessas, quer a partir do nascimento de Isaac, que perpetua a raça, objeto da promessa. Contam-se, pois, como já observamos acima, a partir do ano setenta e cinco de Abraão, quer dizer, da primeira promessa até Israel sair do Egito quatrocentos e trinta anos. O Apóstolo recorda-os nos seguintes termos: O que quero dizer é que, havendo feito Deus aliança em forma, a lei dada quatrocentos e trinta anos depois não impede nem invalida a promessa. Esses quatrocentos e trinta anos puderam reduzir-se, em números redondos, a quatrocentos, por não serem muitos mais. E se a isso acrescentamos haverem já passado alguns anos, quando se mostraram e disseram a Abraão tais conhecimentos, melhor ainda. O mesmo cômputo do número redondo quatrocentos quis Deus usá-lo no nascimento de Isaac, que ocorreu, já centenário o pai, quer dizer, aos vinte e cinco anos da primeira promessa, porquanto esses, subtraídos dos quatrocentos e trinta, dão quatrocentos e cinco. Isso e as palavras seguintes da profecia divina ninguém duvida que se referem ao povo israelita. 4. As palavras: Posto o sol, ergueu-se viva chama e apareceram fumegante braseiro e lâmpadas de fogo, que atravessaram por entre os animais divididos, significam que no fim do mundo os carnais serão julgados pelo fogo. Como a perseguição à Cidade de Deus, nunca dantes vista, que se espera como futura, está denotada no tenebroso temor que de Abraão se apoderou ao pôr do sol, ou seja, no fim do mundo, assim também o fogo que aparecerá ao pôr do sol, ou seja, no fim do mundo, simboliza o dia do juízo, que separará os homens carnais, que se salvarão pelo fogo, dos que se condenarão no fogo. Enfim, o pacto feito com Abraão declara propriamente a terra de Canaã e nela nomeia, do rio do Egito ao grande Eufrates, onze nações. E note-se que não se diz do grande rio do Egito, que seria o Nilo, mas do rio, que será o pequeno, que separa o Egito e a Palestina e a cuja margem está Rinocorura. CAPÍTULO XXV Agar, escrava de Sarra e concubina de Abraão. Vem depois a época do nascimento dos filhos de Abraão, um de Agar, a escrava, outro de Serra, a livre. Deles já falamos no livro anterior. Quanto às relações de Abraão com tal concubina, creio não se deve imputar a Abraão semelhante crime. Dela usou com a intenção de ter filhos, não para satisfazer a libido, e não agravando a esposa, mas, ao contrário, secundando-lhe o propósito. Sarra pensou consolar a própria esterilidade, apropriando-se, por vontade, na pessoa da escrava, da fecundidade que por natureza não tinha, de acordo com o direito de que fala o Apóstolo: E, de igual modo, o marido não é dono do respectivo corpo, mas a mulher é. Aqui não há desejo lascivo nem torpeza injusta. A mulher, com vistas à procriação, entrega a escrava ao marido, que a aceita com idêntico propósito; ambos não pretendem a luxúria do pecado, mas o fruto da natureza. Assim, quando a escrava, já grávida, se ensoberbeceu, menosprezando a esterilidade da ama, Serra, desconfiada como mulher que era, o imputou ao esposo, e Abraão, mesmo nessa oportunidade, demonstrou haver gerado por ato livre, não por ser escravo do amor, e guardado em Agar a fidelidade devida à sua esposa Sarra. Provou, ademais, que não satisfez o próprio prazer, mas a vontade de Sarra; que aceitou a escrava, porém, não a pediu; que se aproximou dela e não ficou preso; que a fecundou e não a amou. Diz Abraão. Aí tens a escrava à tua disposição; faze dela o que quiseres. Homem admirável! Usava das mulheres como deve fazê-lo todo homem: da própria, com moderação, da escrava, por obediência, de nenhuma, sem temperança! CAPÍTULO XXVI Deus promete a Abraão que sua esposa Sarra, apesar de estéril, lhe dará um filho. 1. Depois disso, Agar deu à luz Ismael. Nele Abraão poderia pensar haver-se cumprido a promessa que Deus lhe fizera com estas palavras, ao perceber-lhe a intenção de constituir herdeiro seu doméstico: Não será esse teu herdeiro, mas outro que sairá de ti. E, para não imaginar-se já estar no filho da escrava cumprida a promessa, à idade de noventa e nove anos, apareceu-lhe o Senhor e disse-lhe: Sou teu Deus; trabalha por agradar-me, vive de maneira irrepreensível e confirmarei o pacto entre mim e ti e cumular-te-ei de toda classe de bens. E Abrão prostrou-se e o Senhor falou-lhe nestes termos: Eu sou, e eis minha aliança contigo: virás a ser pai de muitas nações. De hoje em diante, teu nome não será Abrão, mas Abraão, porque te tenho destinado para pai de muitas nações. Far-te-ei extraordinariamente fecundo, constituir-te-ei chefe de muitos povos e de ti descenderão reis. Estabelecerei minha aliança entre nós ambos e, depois de ti, em tuas gerações; entre tua posteridade e mim estabelecerei eterno pacto, pelo qual serei teu Deus e Deus de tua posteridade. Dar-te-ei e a teus descendentes a terra em que agora te encontras como peregrino, toda a terra de Canaã em possessão perpétua e serei Deus deles. E Deus acrescentou a Abraão: Também cumprirás minha aliança e, depois de ti, tua posteridade em suas gerações. Eis o pacto que hás de observar entre mim e vós e entre tua descendência: Todo homem será circuncidado e entre vós circuncidareis a carne de vosso prepúcio; será esse o sinal do pacto contraído entre mim e vós. Será circuncidado aos oito dias todo menino nascido entre vós. Será circuncidado também o escravo, tanto o da própria estirpe como o nascido de estrangeira, quer dizer, seja circuncidado tanto o doméstico como o comprado. E meu pacto permanecerá em vossa carne como sinal da aliança eterna. Quem não for circuncidado, qualquer homem cujo prepúcio não haja sido circuncidado no oitavo dia, será eliminado de sua raça, porque violou minha aliança. E disse Deus a Abraão: Sara, tua mulher, já não se chamará Sara, mas seu nome será Sarra. Abençoá-la-ei e dela dar-te-ei um filho. Abençoá-lo-ei, será origem de nações e dele descenderão reis de vários povos. Abraão prosternou-se e sorriu, dizendo no coração estas palavras: Vejam se a velho de cem anos como eu lhe vai nascer algum filho e mulher de noventa anos como Sarra vai dar à luz! E Abraão disse a Deus: Viva Ismael em tua presença! E Deus respondeu-lhe: Sim, sim, eis que Sarra, tua esposa, te dará um filho e lhe porás o nome de Isaac; com ele estabelecerei meu pacto em aliança eterna. E serei seu Deus e Deus de sua descendência. Também te ouvi o pedido em favor de Ismael! Abençoei-o e dar-te-ei descendência numerosa e grande. Será pai de doze nações e fá-lo-ei chefe de grande nação. Meu pacto, porém, estabelecê-lo-ei com Isaac, filho teu que por esta mesma época Sarra te dará no ano que vem. 2. Em tal passagem, as promessas acerca da vocação dos gentios tornam-se evidentes em Isaac, quer dizer, no filho da promessa, figura da graça, não da natureza, porque se prometeu a velho centenário e a velha estéril. Embora seja verdade que Deus também concorre para o desenvolvimento natural da procriação, quando, impossibilitada e viciada a natureza, se manifesta o poder de Deus, sua graça aparece com maior clareza. E como isso não se deveria à geração, mas à regeneração, Deus ordenou a circuncisão, quando prometeu filho a Sarra. O mandar circuncidar todos, não apenas os filhos, mas também os escravos, domésticos e comprados, prova que a graça é para todos. Que significa a circuncisão, senão a natureza renovada e despojada da velhice? E que simboliza o oitavo dia, senão a Cristo, que ressuscitou no fim da semana, quer dizer, depois do sábado? Mudam-se os nomes dos pais. Tudo respira a novidade e o Novo Testamento sai das sombras do Velho. Que é o Velho Testamento, senão a ocultação do Novo? Que é o Novo, senão a manifestação do Velho? O sorriso de Abraão é testemunho de alegria, não de desconfiança. E as palavras ditas no coração: Vejam se a velho de cem anos como eu lhe vai nascer algum filho e mulher de noventa anos como Sarra vai dar à luz! não exprimem dúvida, mas admiração. E se alguém sente dúvidas acerca de como se cumpriram ou se hão de cumprir as seguintes palavras: Dar-te-ei e a teus descendentes a terra em que agora te encontras como peregrino, toda a terra de Canaã em possessão perpétua, baseado em que nenhuma possessão terrena pode ser eterna para nação alguma, lembre-se do costume de traduzir-se por eterno o termo grego aiónion, derivado de século, pois em grego se chama aión ao século. Mas, por temor a tergiversar-lhe por completo o sentido, os latinos não se atreveram a traduzi-lo por secular. E é claro, porque seculares dizemos de muitas coisas que sucedem neste século, embora durem pouco, enquanto aiónion denota duração sem fim ou algo que dura até o fim do mundo. CAPÍTULO XXVII A circuncisão e seus efeitos. A gente pode ainda perguntar como devem ser interpretadas estas palavras: Qualquer homem cujo prepúcio não haja sido circuncidado no oitavo dia será eliminado de sua raça, porque violou minha aliança. A verdade é que os meninos, cujas almas perecerão segundo o texto, não têm culpa alguma, porque os pais, que não cuidaram de circuncidá-los, não eles, violaram a aliança de Deus. Mas dizemos haverem também as crianças violado o pacto de Deus na pessoa daquele em quem todos pecamos, não segundo sua própria vida, mas segundo a origem comum da linhagem humana. Além do Velho e do Novo Testamentos, que qualquer pessoa pode conhecer, lendo, há muitos outros testamentos ou alianças de Deus. O primeiro pacto feito com o homem é sem dúvida este: O dia em que dele comerdes morrereis de morte. Por isso, no livro intitulado Eclesiástico, está escrito: Toda carne há de deteriorar-se como simples vestimenta. O testamento, desde o princípio do século: Morrereis de morte. Se, por conseguinte, a lei dada nas épocas seguintes em termos mais claros permite ao Apóstolo dizer que onde não há lei, não há prevaricação, como conciliar tais palavras com as do salmo: Tive por prevaricadores todos os pecadores da terra, senão dizendo serem réus de transgressão de alguma lei todos quantos se encontram ligados por algum pecado? Se, portanto, as crianças (e a fé autêntica assim ensina) nascem pecadoras, não propriamente, mas originalmente (daí o admitirmos a necessidade da graça remissiva dos pecados), pelo simples fato de serem pecadoras são transgressoras da lei dada no paraíso. São, assim, verdadeiras estas duas proposições: Tive por prevaricadores todos os pecadores da terra e: Onde não há lei, não há prevaricação. Em consequência, como a circuncisão simbolizou a regeneração, é com justiça que, por causa do pecado original, violador da primeira aliança de Deus, a geração perderá com justiça as crianças, se a regeneração não as livra. Tais palavras devem ser entendidas como se dissessem: Quem não haja sido regenerado perecerá, pois, quando com todos os demais homens pecou em Adão, violou o pacto de Deus. Se houvesse dito: Porque violou essa minha aliança, obrigar-nos-ia a restringi-lo à circuncisão. Como, porém, não disse que aliança a criança violou, estamos em liberdade para entender a aliança em cuja violação a criança pode ser solidária. E, se alguém se empenha em dizer que se refere à circuncisão, porque, ao não ser circuncidado, violou o pacto de Deus, procure modo racional, não absurdo, de dizer que alguém violou o pacto não violado por ele, mas nele. Deve-se, mesmo nesse caso, fazer notar que a alma da criança incircuncisa não perece injustamente, pela negligência havida nela, mas pela tara do pecado original. CAPÍTULO XXVIII A mudança de nomes em Abraão e em Sarra. Esplêndida e grande promessa foi feita a Abraão nestes termos tão claros: Tenho-te destinado para pai de muitas nações. Far-te-ei extraordinariamente fecundo, constituir-te-ei chefe de muitos povos e de ti descenderão reis. E de Sarra dar-te-ei um filho, abençoá-lo-ei, será origem de nações e dele descenderão vários povos. Essa promessa vemo-la cumprida agora em Cristo. A partir desse momento, a Escritura já não chama os esposos como antes, Abrão e Sara, e sim como, segundo o uso corrente, os venho chamando desde o princípio desta obra, Abraão e Sarra. E dá-se nas seguintes palavras o motivo da mudança do nome de Abrão para Abraão: Porque te tenho destinado para pai de muitas nações. Esse é, pois, o significado de Abraão; Abrão, seu antigo nome, traduz-se por ilustre pai. Da mudança do nome de Sara para Sarra não se dá o motivo, mas os intérpretes dos nomes hebreus contidos nas Sagradas Letras dizem que Sara significa Princesa minha e Sarra, Virtude. Escreve-se, por isso, na Epístola aos Hebreus: Graças à fé, a própria Sarra recebeu a virtude de conceber. Ambos já eram velhos, como a Escritura atesta, mas a ela acrescentava-se a esterilidade; padecia, ademais, de menopausa, o que bastaria para tornar-lhe impossível a concepção, embora não fosse estéril. Mulher de idade avançada, se ainda goza do fluxo menstrual, pode ter filhos de algum jovem, mas não o pode de velho, apesar de o velho poder fecundar mocinha, como Abraão pôde, após a morte ,de Serra, fecundar Cetura, porque a encontrou na flor da vida. E o que o Apóstolo encarece como maravilhoso, quando diz que Abraão já tinha o corpo entorpecido, porque naquela idade era impotente para fecundar qualquer mulher que para tal efeito ainda tivesse um pouco de vida. Devemos, por conseguinte, entender que estava de corpo morto para algo, não para tudo, pois, se o estivesse para tudo, já não seria velhice de vivo, mas cadáver de morto. Talvez também seja possível solucionar semelhante questão, dizendo haver Abraão fecundado mais tarde Cetura, porque esse dom recebido de Deus nele perdurou até após a morte da mulher. Parece-me, porém, mais viável a primeira solução dada, por ser verdade não poder velho centenário fecundar mulher alguma; é-o agora, entretanto, não então, quando a vida do homem era de tal maneira prolongada, que cem anos não lhe pesavam, tornando-o velho decrépito. CAPÍTULO XXIX Aparição de Deus a Abraão em Mambré, em figura de três homens ou anjos. Deus apareceu a Abraão no carvalhal de Mambré em figura de três homens, anjos, sem dúvida. Alguns, todavia, pensam que um deles era Cristo, que, segundo eles, antes de encarnar-se era visível. E próprio do divino poder e da natureza invisível, incorporal e imutável, tornar-se visível aos olhos humanos, sem mutação alguma, não por si mesmo, mas por intermédio das criaturas a ele sujeitas. E que não lhe está sujeito? Mas, se para dizerem que um deles era Cristo se apoiam em que, havendo visto três, falou em particular ao Senhor, de acordo com o texto: E eis que três personagens estavam parados diante dele. Em vendo-os, da porta da tenda correu-lhes ao encontro e saudou-os, prostrando-se em terra. E disse: Senhor, se achei graça em tua presença etc., por que também não reparam em que dois deles foram destruir os sodomitas, quando Abraão ainda estava falando com aquele a quem chama Senhor e intercedendo para que em Sodoma não aniquilasse indistintamente o justo e o ímpio? Além disso, Ló recebeu os outros dois e, falando com eles, também diz Senhor. Primeiro, falou no plural: Vamos, senhores, vinde para a casa de vosso servo etc.; depois acrescenta: Os anjos pegaram-nos pela mão a ele, à esposa e às duas filhas, porque o Senhor os perdoava. E disseram-lhe, tão logo o tiraram da cidade: Salva tua vida, não olhes para trás nem pares em toda a região. Põe-te a salvo na montanha, para não acontecer que também tu morras abrasado. E disse-lhes Ló: Rogo-te, Senhor, pois teu servo achou graça a teus olhos etc. O Senhor, na pessoa dos dois anjos, responde-lhe em seguida, no singular, dizendo: Olha, tive piedade de ti etc. Donde se segue ser muito mais crível dizer hajam Abraão e Ló reconhecido o Senhor nos anjos, aquele nos três, este, nos dois, e falado com ele no singular, mesmo conscientes de serem homens. O acolhimento que lhes deram corresponde a isso, pois os serviram como mortais e indigentes. Sem dúvida, porém, neles algo havia que chamava a atenção; tanto que, embora os tratassem como a homens, não tinham a menor dúvida de que o Senhor estava neles como costuma estar nos profetas. E assim se explica que às vezes os chamaram no plural e às vezes disseram simplesmente Senhor, no singular, vendo-o neles. A Escritura testemunha que eram anjos, mas testemunha-o não apenas no Genesis, onde se narram tais acontecimentos, como também na Epístola aos Hebreus, em que, gabando a hospitalidade, se diz: Pois alguns, praticando-a, deram, sem saber, hospitalidade aos anjos. Esses três personagens foram os instrumentos da nova promessa feita a Abraão acerca de Isaac, o filho que teria de Sarra. E a resposta divina foi a seguinte: Abraão será chefe de nação numerosa e grande, e nele serão abençoadas todas as nações da terra. Tais palavras encerram perfeita e resumida promessa de duas realidades: da nação de Israel, segundo a carne, e de todas as nações, segundo a fé. CAPÍTULO XXX Livramento de Ló e concupiscência de Abimelec. Havendo-se Ló retirado de Sodoma, após a referida promessa, o céu choveu fogo e reduziu a cinzas toda a Cidade ímpia, em que a sodomia de uma e outra classe se tornara tão corrente como os demais atos permitidos pelas leis. Mas também esse formidável castigo foi imagem do futuro juízo de Deus. Com efeito, por que os anjos proibiram olhassem para trás os libertados por eles, senão porque, se quisermos escapar ao juízo final, não deveremos desejar tornar ao homem velho, de que a graça despoja o regenerado? De fato, a esposa de Ló, onde olhou para trás, ali ficou e, convertida em sal, deu aos fiéis certo condimento, que lhes permite saborear algo do citado exemplo. Mais tarde, em Gerara, Abraão repetiu com Abimelec, rei de tal cidade, o mesmo ardil usado no Egito e assim conservou intacta a esposa. Foi então que, increpando-lhe o rei por haver calado ser sua esposa e dito ser sua irmã, Abraão lhe confessou seus temores e acrescentou: É, na realidade, minha irmã, não de mãe, mas de pai. Era irmã de Abraão por parte de pai e uma de suas parentas mais chegadas. E tão bela, que, mesmo nessa idade, podia inspirar amor. CAPÍTULO XXXI Isaac e o porquê de tal nome. Depois disso nasceu a Abraão um filho de sua esposa Serra, segundo a promessa de Deus. Pôs-lhe Abraão o nome de Isaac, que quer dizer Sorriso. Porque o pai sorriu, quando lhe foi prometido, mas sorriu de admiração e de gozo, e a mãe sorriu também, quando lho prometeram aqueles mancebos, sorriso de felicidade e de gozo, coisa que um dos anjos lhe repreendeu, dizendo que o riso, embora de gozo, não manifestava perfeita fé. Mais tarde o mesmo anjo a confirmou na fé. E eis o porquê do nome do menino. Que o riso não era de caçoada, mas de alegria, mostrou-o Sarra, ao nascer Isaac e pôr-lhe nome. Diz assim: Deus fez-me rir; quem quer que o ouça se regozijará comigo. Pouco tempo depois, escrava e filho foram expulsos de casa. Essas duas mulheres, segundo o Apóstolo, figuram os dois Testamentos, o Velho e o Novo. Sarra simboliza a Jerusalém celeste, quer dizer, a Cidade de Deus. CAPÍTULO XXXII Obediência e fé do patriarca Abraão. Morte de Sarra. 1. Nessa série de acontecimentos, cujo relato levaria muito tempo, há um notável, a tentação de Abraão, de quem se exigia imolar o queridíssimo filho Isaac, para provar sua piedosa obediência e dá-la a conhecer aos homens, não a Deus. Porque nem toda tentação é reprovável, pois à que serve de prova à virtude devem ser dadas as boas-vindas. Na maioria dos casos o único meio de o homem conhecer-se a si mesmo é este, tentear as próprias forças, não de palavra, mas por experiência, respondendo a essa espécie de pergunta que é a tentação. Se nela o homem reconhece a mão de Deus, é piedoso, firma-se com a firmeza da graça, não se ensoberbece com a inanidade da jactância. Abraão jamais acreditou que Deus se deleitasse em vítimas humanas, mas a voz do preceito divino deve ser obedecida e não discutida. Mas Abraão merece encômio, por acreditar que o filho, uma vez imolado, ressuscitaria, fundando sua crença em que Deus lhe dissera, quando se negava a satisfazer a esposa, desejosa de expulsar de casa a escrava e o filho: Em Isaac será chamada tua descendência. E logo a seguir se diz: Mas também do filho da escrava farei pai de grande povo, por ser de teu sangue. Como, pois, disse: Em Isaac será chamada tua descendência, se Deus diz a mesma coisa de Ismael? Expondo o significado das palavras: Em Isaac será chamada tua descendência, escreve o Apóstolo: Isso significa não serem filhos de Deus os filhos da carne; os filhos da promessa, esses é que são os descendentes de Abraão. E por isso, com o fim de os filhos da promessa serem descendência de Abraão, são chamados em Isaac, quer dizer, reunidos em Cristo pela chamada da graça. Fortalecido pela fé nessa promessa e consciente de que devia cumprir-se naquele a quem Deus mandava dar morte, o santo patriarca não duvidou que Deus, capaz de dar-lho contra toda esperança, podia devolver-lho, uma vez sacrificado. Assim o entendeu e assim o explica o autor da Epístola aos hebreus: Abraão brilhou pela fé, ao ser tentado em Isaac, pois ele, que recebera as promessas e a quem se dissera: Em Isaac será chamada tua descendência, ofereceu o filho único, mas estava intimamente convencido de que Deus podia ressuscitá-lo dentre os mortos. Assim, acrescenta: Recebeu-o, por isso, também em figura de outro. Em figura de quem, senão daquele de quem diz o mesmo Apóstolo: Quem não perdoou o próprio Filho, mas, ao contrário, o entregou por todos nós? Eis a razão de haver Isaac carregado até o lugar do sacrifício a lenha sobre que seria colocado, como o Senhor carregou a cruz. Enfim, visto haver-se impedido vibrasse o pai o golpe mortal contra Isaac, não destinado à morte, a quem figurava o cordeiro, cujo sangue simbólico, uma vez imolado, consumou o sacrifício? É de notar que, quando Abraão o viu, estava preso pelos chifres a um arbusto. A quem figurava, pois, senão a Jesus, que, antes de ser imolado, os judeus coroaram de espinhos? 2. Mas escutemos, antes, as palavras de Deus, por boca do anjo. Abraão estendeu a mão, diz a Escritura, para pegar o cutelo e matar o filho. Mas o anjo do Senhor gritou-lhe do céu: Abraão! Eis-me aqui, replicou-lhe etc. Não estendas a mão sobre o moço, prosseguiu o anjo, nem lhe causes nenhum mal, pois agora me dou conta de seres temente a Deus, porquanto, por amor de mim, não perdoaste teu filho amado. Agora me dei conta de etc. equivale a dizer: Agora te fiz ver etc., porque Deus não o ignorava. Depois, sacrificado o cordeiro em lugar de Isaac, seu filho, Abraão, segundo o texto, deu ao lugar o nome de "o Senhor viu". E ainda hoje se diz: O Senhor apareceu na montanha. Semelhante à expressão: Agora me dei conta de etc., usada em lugar de: Agora te fiz ver etc., é a seguinte: O Senhor viu, em lugar de: O Senhor apareceu, quer dizer, fez com que o vissem. E pela segunda vez o anjo do Senhor chamou do céu a Abraão, dizendo: Jurei por mim mesmo, diz o Senhor, em face de me haveres cumprido a palavra, não perdoando, por amor de mim, teu filho amado, que te cumularei de bênçãos e te multiplicarei a descendência como as estrelas do céu e como os grãos de areia das praias do mar. E tua descendência possuirá em herança as cidades de seus inimigos e em tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque prestaste ouvidos à minha voz. Assim, depois do holocausto, figura de Cristo, Deus confirmou com juramento a promessa da vocação dos gentios na descendência de Abraão. Prometera-o já muitas vezes, mas nunca o jurara. Que é o juramento do veraz e verdadeiro Deus, senão confirmação de suas promessas e censura aos incrédulos? 3. Depois morreu Serra. Tinha, então, cento e vinte e sete anos; o esposo, cento e trinta e sete. Era dez anos mais velho, como no-lo deixa entrever, quando se lhe prometeu o filho: Vejam se a velho de cem anos como eu vai nascer-lhe algum filho e mulher de noventa anos como Sarra vai dar à luz! Abraão comprou o campo de Efron e nele enterrou a esposa. Então, segundo a narração de Santo Estevão, é que se estabeleceu na referida terra, pois começou a possuí-la em herança. Isso aconteceu depois da morte do pai, que, segundo deduções, morreu dois anos antes. CAPÍTULO XXXIII Rebeca, esposa de Isaac. Depois, com quarenta anos de idade, Isaac tomou por esposa Rebeca, neta de seu tio Nacor. Q pai contava então cento e quarenta anos e haviam passado três desde a morte da mãe. O pai enviou um servo à Mesopotâmia, para buscar-lhe mulher; disse-lhe: Põe a mão sob minha coxa; conjuro-te, pelo Senhor Deus do céu e da terra, que não cases meu filho Isaac com mulher das filhas dos cananeus. Que se mostrou nisso, senão que o Senhor e Deus do céu e da terra tomaria carne saída dessa coxa? Serão esses, porventura, débeis sinais da verdade prenunciada, que vemos cumprida em Cristo? CAPÍTULO XXXIV Que significam as segundas núpcias de Abraão com Cetura? E que simboliza o casamento de Abraão com Cetura após a morte de Sarra? Longe de nós suspeitá-lo de incontinente, sobretudo sendo de idade tão avançada e homem tão fiel e santo. Buscava, acaso, a procriação de filhos, crendo, como cria, com fé muito provada, na promessa de Deus, segundo a qual os filhos de Isaac se multiplicariam como as estrelas do céu e os grãos de areia da terra? Se na realidade, porém, Agar e Ismael, segundo os ensinamentos do Apóstolo, simbolizam os homens carnais do Antigo Testamento, por que Cetura e seus filhos não figuram os carnais, que se julgam pertencentes ao Novo Testamento? Ambas são chamadas esposas e concubinas de Abraão, ao passo que Sarra jamais recebeu o nome de concubina. Quando Agar foi entregue a Abraão, diz a Escritura: Dez anos depois de Abraão haver entrado em Canaã, Serra, esposa de Abraão, tomou sua escrava Agar, egípcia, e a deu por mulher ao esposo. Por sua vez, de Cetura, com quem se desposou, após a morte de Sarra, assim se lê: Acercando-se Abraão, tomou por esposa outra mulher, chamada Cetura. Eis que, nessa passagem, são chamadas esposas. Mas além disso, ambas foram concubinas, segundo as palavras da Escritura: E Abraão deu toda a herança a seu filho Isaac; aos filhos das concubinas fez-lhes donativos e, ainda vivo, separou-os de seu filho Isaac, enviando-os para o Oriente, para a parte oriental. Os filhos das concubinas, quer dizer, os hereges e judeus carnais, recebem alguns donativos, mas não chegam ao reino prometido. O motivo é que Isaac é o único herdeiro e não são filhos de Deus os filhos da carne, mas os filhos da promessa, esses é que são seus descendentes. Disse-se dessa descendência: Em Isaac será chamada tua descendência. E a verdade é que não vejo outra razão para Cetura, tomada por esposa após a morte de Sarra, ser chamada concubina, senão tal mistério. Quem, todavia, não quiser aceitar essa suposta interpretação, não calunie a Abraão. Sabemos, porventura, se Deus o ordenou assim, para confundir os futuros hereges, inimigos das segundas núpcias, pois o caso desse patriarca prova não ser pecado alguém tornar a casar, morto o consorte? Abraão morreu com cento e setenta e cinco anos. Seu filho Isaac tinha, então, setenta e cinco anos, pois o gerara aos cem. CAPÍTULO XXXV Outro simbolismo. Luta de dois gêmeos no ventre de Rebeca. Demos um passo mais e vejamos o desenvolvimento da Cidade de Deus através dos descendentes do Abraão. Do nascimento de Isaac ao ano sessenta de sua vida, em que lhe nasceram os filhos, acontecimento digno de menção há um apenas. Pediu a Deus que desse fecundidade à esposa, pois era estéril; o Senhor deferiu-lhe o pedido e, quando Rebeca concebeu, os gêmeos, ainda no ventre materno, lutavam. Angustiada pelo consequente mal-estar, dirigiu-se ao Senhor e recebeu esta resposta: Há duas nações em teu seio e de teu ventre sairão dois povos. Um povo subjugará o outro e o maior servirá o menor. De tal passagem trata o Apóstolo São Paulo de coligir robusto testemunho em prol da graça. E funda-se em que, antes de nascerem, sem haverem feito nem bem, nem mal, sem merecimento bom de espécie alguma, é eleito o menor e reprovado o maior, quando na realidade, no tocante ao pecado original, eram ambos iguais, e, no tocante ao pecado pessoal, ambos careciam dele. Sinto não me permita o plano desta obra estender-me nesse ponto, de que em outros escritos já falei bastante. A perícope: O maior servirá o menor quase nenhum de nossos intérpretes a aplicam a outro povo que não o judeu, dizendo que este, maior, servirá o povo menor dos cristãos. E, embora seja verdade que isso parece haver-se cumprido no povo idumeu, descendente do maior, que tinha dois nomes (chamava-se Esaú e Edom; por isso, idumeus), pois o dominou o povo nascido do menor, o povo israelita, ao qual ficou submetido, é mais razoável acreditar que a intenção da profecia: Um povo subjugará o outro e o maior servirá o menor vai além, a algo superior. E que é isso, senão o que com toda a clareza vemos cumprir-se nos judeus e nos cristãos? CAPÍTULO XXXVI Oráculo e bênção recebida por Isaac. Também Isaac recebeu oráculo semelhante aos recebidos pelo pai. Eis como se expressa: Sobreveio grande fome à terra, além da fome havida no tempo de Abraão; por isso Isaac foi a Gerara, a Abimelec, rei dos filisteus. O Senhor apareceu-lhe ali e disse-lhe: Não desças ao Egito, mas habita na terra que te direi e nela vive como peregrino. Estarei contigo e dar-te-ei minha bênção. Hei de dar-te e à tua descendência toda esta terra e confirmarei o juramento que fiz a Abraão, teu pai. Multiplicar-te-ei a posteridade como as estrelas do céu, a teus descendentes darei toda esta região e serão abençoadas em tua descendência todas as nações da terra, justamente porque Abraão, teu pai, prestou ouvidos à minha voz e guardou meus preceitos, meus mandados, meus estatutos e minhas leis. Esse patriarca não teve senão essa mulher e nenhuma concubina. Contentou-se com a posteridade de dois gêmeos, havidos de um só ato. Também ele, quando morava entre estrangeiros, temeu pela beleza da esposa e, seguindo o exemplo do pai; não disse que era sua esposa, mas chamou-a irmã, pois era parenta sua por parte de pai e de mãe. E os estrangeiros, ao saberem-na sua esposa, não a violaram tampouco. Contudo, embora Isaac não haja conhecido outra mulher além da própria esposa, nem por isso devemos antepô-lo ao pai. Os merecimentos do pai, por sua obediência e sua fé, eram muito superiores, pois Deus diz ao filho que lhe dá essas bênçãos por causa do pai. Serão abençoadas, diz-lhe, em tua descendência todas as nações da terra, justamente porque Abraão, teu pai, prestou ouvidos à minha voz e guardou meus preceitos, meus mandados, meus estatutos e minhas leis. E noutro oráculo: Sou o Deus de teu pai Abraão; não temas, pois estou contigo, te abençoei, e te multiplicarei a descendência por causa de teu pai Abraão. Tais palavras deixam entrever a grande castidade observada por Abraão nos atos que os homens impuros, amigos de nas Santas Escrituras procurar justificação para a própria maldade, acham haver realizado por libido. Ademais, também nos ensinam não deverem os homens ser comparados entre si por bens ou atos concretos, mas pelo conjunto e totalidade de sua vida. Porque pode suceder que alguma pessoa supere outra em qualidade vital e moral e essa qualidade seja muito superior àquela em que é superada pela outra. E, assim, bem ponderadas as coisas, embora, absolutamente falando, a continência seja preferível ao matrimônio, o casado fiel é melhor que o continente infiel. E o homem infiel não apenas é menos digno de louvor, como também é merecedor da mais pesada censura. Suponhamos que ambos são bons. Mesmo nesse caso, o casado mais fiel e obediente a Deus é melhor que o continente menos fiel e menos obediente. Mas, em igualdade de circunstâncias, quem duvida que ao casado é preferível o homem continente? CAPÍTULO XXXVII Simbolismo místico de Esaú e Jacó. Ambos os filhos de Isaac, a saber, Esaú e Jacó, vão crescendo de igual modo. Em virtude do pacto e da palavra dada, transfere-se ao menor a primogenitura. O maior, vencido por imoderado desejo, pediu ao irmão o prato de lentilhas que o irmão preparara e, por esse preço e mediante prévio juramento, vendeu-lhe a primogenitura. O caso ensina-nos que no comer o censurável não é a realidade das comidas, mas a imoderação do desejo. Envelhece Isaac e, como consequência da velhice perde a vista. Quer abençoar o filho maior e, sem sabê-lo, abençoa o menor em lugar dele, que era peludo, coisa que o menor supriu, cobrindo com peles de cabrito o pescoço e as mãos, como se carregasse os pecados alheios, para a mão paterna apalpá-la. Com o propósito de ninguém imaginar haver sido fraudulento o dolo de Jacó e não encerrar grande mistério, a Escritura predissera que Esaú era moço destro na caça e homem rude, ao passo que Jacó era moço simples e morava em casa. Alguns intérpretes nossos traduziram assim o latino simplex: sem engano. Mas, quer se traduza por sem dolo, quer por simples, quer por sem fingimento, pois talvez seja essa a melhor tradução da palavra grega áplastos, que é o engano do homem sem dolo, ao receber semelhante bênção, que o dolo do homem simples, que o fingimento de quem não mente, senão profundo mistério da verdade? Qual a bênção? Bem se vê, diz, ser como o odor de campo florido, abençoado pelo Senhor, o odor que sai de meu filho. Deus te dê abundância de trigo e de vinho, do orvalho do céu e da fertilidade da terra. Sirvam-te as nações e adorem-te os príncipes. Que sejas senhor de teu irmão. Adorar-te-ão os filhos de teu pai. Maldito seja quem te maldisser e bendito seja quem te bendisser. A bênção de Jacó significa a pregação do nome de Cristo em todas as nações. Eis a obra atual, eis a tarefa atual. Isaac figura a Lei e os Profetas. A Lei bendiz a Cristo por boca dos judeus, como sem conhecê-lo, porque também a desconhecem. Como verdadeiro campo, o mundo é perfumado pelo nome de Cristo. Dele é a bênção do orvalho do céu, quer dizer, da chuva da palavra divina, e da fertilidade da terra, ou seja, da vocação dos povos. Sua é a abundância de vinho e de trigo, quer dizer, a multidão reunida pelo pão e pelo vinho no sacramento de seu corpo e sangue. As nações rendem-lhe vassalagem e os príncipes adoram-no. E o Senhor de seu irmão, porque seu povo domina os judeus. Os filhos de seu pai, quer dizer, os filhos de Abraão, segundo a fé, adoram-no, por também ser filho de Abraão, segundo a carne. Quem o maldisser é maldito e quem o bendisser é bendito. Esse nosso Cristo, repito, é bendito, ou seja, é verazmente pregado por boca dos judeus, depositários da Lei e dos Profetas, embora não compreendam e pensem bendizer outro, que seu erro espera. Mas eis que, quando o maior vem receber a bênção prometida, Isaac pasma e maravilha-se de saber que abençoou um por outro e pergunta quem é aquele a quem abençoou. Contudo, não se queixa de haver sido enganado; ao contrário, revelando-se-lhe logo ao coração grande mistério, evita a indignação e confirma a bênção. Quem é, pois, que me trouxe da caça que apanhou? pergunta. Comi de tudo, antes de vires, abençoei-o e bendito seja. Quem não esperaria, em tais circunstâncias, a maldição de homem irritado, se isso não fora motivado por inspiração divina, mas se devera a costume humano? Que maravilhas realizadas, sim, mas profeticamente, realizadas na terra, mas celestialmente, realizadas por meio do homem, mas divinamente! Se se examinasse com minudência cada uma dessas coisas tão fecundas em mistérios, seriam precisos inúmeros volumes. Mas a sobriedade do plano fixado para esta obra obriga-nos a caminhar depressa a outros acontecimentos. CAPÍTULO XXXVIII Envio de Jacó à Mesopotâmia. Visão no caminho. Suas quatro mulheres. 1. Os pais de Jacó enviam-no à Mesopotâmia para casar-se. Eis as palavras do pai, ao enviá-lo: Não tomarás mulher entre as filhas dos cananeus. Levanta-te e vai à Mesopotâmia, à casa de Batuel, pai de tua mãe, e toma ali mulher entre as filhas de Labão, irmão de tua mãe. Que meu Deus te abençoe, faça-te fecundo e te multiplique; serás desse modo chefe de muitas nações. Que te dê a bênção de Abraão, teu pai, tanto a ti como à tua descendência, para te fazeres herdeiro da terra de tua peregrinação, dada por Deus a Abraão. Por semelhantes palavras entendemos já feita a divisão entre a descendência de Jacó e a outra linha de Isaac, que entronca em Esaú. Quando se disse: Em Isaac será chamada tua descendência (e tal descendência pertencia à Cidade de Deus), essa separou-se de outra descendência de Abraão, personificada no filho da escrava e depois continuada nos filhos de Cetura. Mas era duvidoso ainda se a bênção de Isaac se destinava a ambos os filhos ou a um deles apenas e, se a um só, a qual deles. A dúvida dissipou-se, quando o pai, abençoando profeticamente Jacó, disse: E serás chefe de muitas nações. Que ele te dê a benção de Abraão, teu pai. 2. Ia Jacó caminho da Mesopotâmia, quando em sonho recebeu o oráculo que a Escritura refere nos seguintes termos: Deixando o "poço do juramento" , Jacó pôs-se a caminho e dirigiu-se a Harã. Chegou a certo lugar, onde o surpreendeu a noite, e ali dormiu. Tomou uma pedra das que ali havia e, pondo-a por travesseiro, dormiu ali mesmo e sonhou. E em sonho viu, fixa na terra, uma escada cujo topo tocava o céu; os anjos de Deus subiam e desciam por ela. Recostava-se sobre ela o Senhor e disse: Sou o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de Isaac; não temas. Dar-te-ei e a tua descendência a terra em que dormes. Tua posteridade será como os grãos de areia da terra e estender-se-á sobre o mar, ao Áfrico, ao Aquilão e ao Oriente, e serão abençoadas em ti e em tua descendência todas as tribos da terra. Estarei contigo, guardando-te aonde quer que vós, e restituir-te-ei a esta terra, porque, enquanto não houver cumprido quanto te prometi, não te abandonarei. Despertou Jacó do sono e disse: Na verdade, o Senhor está neste lugar e eu não o sabia. E temeu e acrescentou: Que terrível é este lugar! Na realidade, esta é a casa de Deus e a porta do céu. Levantou-se Jacó e, tomando a pedra que lhe servira de travesseiro, ergueu-a à guisa de monumento, sobre cujo topo derramou óleo, e deu ao lugar o nome de Casa de Deus. Isso encerra sentido profético. Jacó não derramou óleo na referida pedra, à imitação dos idólatras, como que erigindo-a em deus, pois não adorou a pedra nem lhe ofereceu sacrifício. E como o nome de Cristo vem de crisma, que significa unção, tal ato figura grande mistério. O próprio Salvador lembra-nos no Evangelho essa escada e seu simbolismo, quando, após haver dito de Natanael: Eis aqui verdadeiro israelita em quem não há dolo, pois quem teve a referida visão foi Israel, quer dizer, Jacó, acrescenta: Em verdade, em verdade vos digo que algum dia vereis aberto o céu e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem. 3. Jacó seguiu caminho da Mesopotâmia para casar-se. Ensina-nos a divina Escritura como e por que teve quatro mulheres, de quem teve doze filhos e uma filha, sem desejar nenhuma delas ilicitamente. Viera para tomar uma esposa apenas; como, porém, lhe deram uma por outra, não despede a esta com quem por engano passara a noite, de medo que ficasse desonrada. E como naquele tempo não havia lei alguma que proibisse a poligamia, para multiplicar-se a posteridade, também tomou por esposa a única a quem prometera casamento. Esta, porém, como era estéril, entregou a escrava ao marido, para dela ter filhos. O mesmo fez, imitando-a, a irmã mais velha, apesar de não ser estéril, pois desejava multiplicar a prole. Segundo a Escritura, Jacó pediu apenas uma e não usou de muitas senão impelido pelo dever de procriar, sempre respeitando o direito conjugal, de tal maneira que não o faria, se não lho pedissem suas mulheres, detentoras do poder que as leis do matrimonio lhes concedem sobre o corpo do marido. De quatro mulheres teve doze filhos e uma filha. Entrou, mais tarde, no Egito, graças a seu filho José, que, vendido pelos invejosos irmãos, fora conduzido para essa terra, onde se tornou poderoso. CAPÍTULO XXXIX Por que Jacó se chamou também Israel? Como há pouco dissemos, Jacó também se chamava Israel, nome mais conhecido no povo que dele descende. Tal nome impôs-lhe o anjo, figura de Cristo, com quem, de regresso da Mesopotâmia, lutou. A vitória obtida por Jacó sobre o anjo, porque este, para figurar o mistério, o quis assim, significa a paixão de Cristo, vencido, ao que parece, pelos judeus. E, contudo, pediu a bênção ao anjo derrotado, bênção que consistiu na imposição do referido nome. Israel significa Visão de Deus, visão que, no fim do mundo, será o prêmio de todos os santos. O anjo tocou-lhe, como a vencedor, a parte mais larga da coxa e deixou-o coxo. Jacó era, pois, ao mesmo tempo tornado coxo e abençoado; abençoado nos que de seu povo acreditaram em Cristo é coxo nos infiéis. A parte mais larga da coxa figura numerosa multidão, pois entre seus descendentes muitos há de quem profeticamente se predisse: E vão coxeando fora de suas sendas. CAPÍTULO XL Entrada de Jacó no Egito e concordância de textos. A Escritura diz que em companhia de Jacó entraram no Egito setenta e cinco pessoas, inclusive os filhos dele. Dentre eles somente se faz menção de duas mulheres, uma, filha, outra, neta do patriarca. Mas, seriamente examinado o texto, chegamos à conclusão de que a família de Jacó não era assim numerosa no dia ou no ano em que entrou no Egito, por serem mencionados também os bisnetos de José, que era impossível já existissem. Jacó tinha, então, cento e trinta anos e trinta e nove seu filho José, que, segundo consta, tomou esposa aos trinta anos mais ou menos. Como, por conseguinte, dos filhos havidos dessa mulher poderia ter bisnetos? Ademais, Efraim e Manassés, filhos de José, ainda não tinham filhos, pois eram crianças de menos de nove anos, quando Jacó entrou no Egito. Como é que entre os setenta e cinco entrados então com Jacó no Egito não apenas se contam os filhos deles, mas também os netos? Na relação constam Maquir, filho de Manassés, e Galaad, filho de Maquir, neto de Manassés e bisneto de José. Também constam Utalaã, filho de Efraim e neto de José, e Edom, filho de Utalaã, neto de Efraim e bisneto de José. É impossível já existissem, quando Jacó chegou ao Egito e falou aos filhos de José, seus netos e avós desses, crianças menores de nove anos. Na realidade, ao referir a entrada de Jacó no Egito e dizer haverem-no acompanhado setenta e cinco almas, não fala de um dia ou de um ano a Escritura, mas de todo o tempo vivido por José, a quem se deveu a referida entrada. De José assim diz a Escritura: José habitou no Egito com os irmãos e toda a família do pai, viveu cento e doze anos e viu até a terceira geração os filhos de Efraim. Em outros termos, seu bisneto, seu terceiro descendente ao lado de Efraim, pois, contando até a terceira geração, temos o filho, o neto e o bisneto. Depois acrescenta: E nasceram sobre as coxas de José os filhos de Maquir, filho de Manassés. Trata-se do neto de Manassés e bisneto de José. Aqui, como na passagem em que chama filhas de Jacó a sua única filha, a Escritura, segundo seu estilo, usa o plural. Em latim também isso é corrente; diz-se liberi por filhos, embora se trate de apenas um. E não se deve pensar que, como para pôr em relevo a felicidade de José se diz haver chegado a ver os bisnetos, já haviam estes nascido, quando Jacó entrou no Egito, pois então José contava trinta e nove anos. O que origina erro, se consideradas com menos cuidado tais coisas, é aquilo que está escrito: Eis os nomes dos filhos de Israel que entraram no Egito com Jacó, seu pai. Disse-se isso porque no total com ele somam setenta e cinco, não por já coexistirem todos, quando entrou no Egito. Dá-se-nos, como fica dito, todo o tempo da entrada, que durou tanto quanto viveu José, a quem, ao que parece, se deveu a entrada. CAPÍTULO XLI Bênção de Judá. Assim, pois, se por causa do povo cristão, em que a Cidade de Deus é peregrina na terra, buscamos Cristo, segundo a carne, na descendência de Abraão, deixando de lado os filhos das concubinas, topamos com Isaac. Se o buscamos na descendência de Isaac, deixando de lado Esaú ou Edom, que é a mesma pessoa, apresenta-se-nos Jacó, também chamado Israel. E, se agora preteridos os demais, o buscamos na descendência de Israel, vem-nos ao encontro Judá, de cuja tribo nasceu Cristo. Vejamos, pois, a bênção profética dada a Judá, quando Israel, às portas da morte, abençoou os filhos: Ó Judá! exclama. Teus irmãos louvar-te-ão. Tuas mãos cairão sobre teus inimigos e os filhos de teu pai adorar-te-ão. És, Judá, filhote de leão; elevaste-te como árvore em pleno crescimento, filho meu; depois, recostando-te, dormiste como leão e à maneira de filhotinho de leão. Quem o despertará? Não se tirará o cetro de Judá nem de sua descendência o chefe, enquanto não se cumprirem as promessas que lhe foram feitas. Será a esperança das nações, amarrando seu jumentinho à vide e o jumentinho de sua jumenta à cepa fértil. Lavará no vinho suas vestes e no sangue das uvas seu manto. Seus olhos estão vermelhos de vinho e mais brancos que o leite seus dentes. Expus essa passagem toda em minha disputa Contra o Maniqueu Fausto e suponho haver dito o suficiente para mostrar a verdade de tal profecia. Nela também está predita, com a palavra dormiste, a morte de Cristo e, com o nome de leão, o poder que tem de morrer ou não, não a necessidade. No Evangelho fez exibição de semelhante poder com as seguintes palavras. Tenho poder para entregar minha alma e tornar a recobrá-la. Ninguém a tira de mim; eu é que de própria vontade a dou e a recobro de novo. Assim rugiu o leão, assim cumpriu a palavra. Relaciona-se com esse mesmo poder o que se aduziu da ressurreição. Quem o despertará? Quer dizer, não o fará homem algum, senão o mesmo que disse do próprio corpo: Destruí este templo e reedificá-lo-ei em três dias. O gênero de morte, quer dizer, a elevação à cruz, está expresso nesta palavra só: Elevaste-te. E isto: Recostando-te, dormiste o evangelista expõe quando diz: E, inclinando a cabeça, entregou o espírito. Também é possível entendê-lo referente à sua sepultura, em que, dormindo, descansou e de que ninguém o ressuscitou, como fizeram os profetas com alguns e ele mesmo com outros, mas de que despertou como que de sono. Suas vestes, lavadas no vinho, quer dizer, de todos os pecados purificadas em seu sangue, sangue precioso, mistério bem conhecido pelos batizados, pelo que acrescenta: e no sangue das uvas seu manto, que é senão a Igreja? Seus olhos estão vermelhos de vinho significa as pessoas espirituais, embriagadas por essa bebida, de que canta o Salmo: Quão excelente é teu cálice, que embriaga! A expressão: E mais brancos que o leite seus dentes significa o leite que no Apóstolo bebem os pequeninos, quer dizer, as palavras que alimentam os ainda não capazes de alimento sólido. Sobre ele, pois, é que recaíram as promessas feitas a Judá, antes de cujo cumprimento não faltaram nunca príncipes, ou seja, reis de Israel, saídos de tal estirpe. E é a esperança das nações, expressão mais clara em si mesma que qualquer exposição. CAPÍTULO XLII Os filhos de José e a bênção de Jacó. Como os dois filhos de Isaac, a saber, Esaú e Jacó, figuraram dois povos, o dos judeus e o dos cristãos (embora, segundo a carne, não sejam os judeus os descendentes de Esaú, mas os idumeus, nem os cristãos, descendentes de Jacó, mas, antes, os judeus, pois o sentido da figura se resume nestas palavras: O maior servirá o menor), assim também o fizeram os dois filhos de José. O maior representou os judeus; o menor, os cristãos. Ao abençoá-los, Jacó pós a mão direita sobre o menor, que lhe estava à esquerda, e a esquerda sobre o maior, que lhe estava à direita. Então, o pai, molestado, o advertiu, corrigindo-lhe o erro e indicando-lhe o maior. Mas o pai negou-se a mudar as mãos e disse: Sei, filho, sei. Este será pai de um povo e será exaltado, mas o irmão, mais moço que ele, será maior que ele. Sua linhagem estender-se-á a muitas nações. Eis de novo duas promessas distintas. Um será pai de um povo; o outro, de muitas nações. Há coisa mais evidente que nessas duas promessas se contenha o povo dos israelitas e toda a terra na descendência de Abraão, aquele, segundo a carne, esta, segundo a fé? CAPÍTULO XLIII Época de Moisés, de Jesus Nave, dos juízes e dos reis. Saul, primeiro rei, e Davi, príncipe no mistério e no merecimento. 1. Depois da morte de Jacó e de José, durante os cento e quarenta e quatro anos transcorridos até a saída do Egito, a nação judaica se multiplicou tão prodigiosamente, apesar de perseguições cruéis, que houve tempo em que os egípcios, maravilhados do crescimento de tal povo e temerosos, davam morte às crianças tão logo nasciam. Nessa época, Moisés, escolhido por Deus para por seu intermédio operar grandes coisas, foi subtraído ao furor dos assassinos e levado para a casa real, onde foi alimentado e adotado pela filha do Faraó (nome comum dado no Egito a todos os reis). E chegou a progredir tanto, que do duríssimo e pesadíssimo jugo do cativeiro a que estava sujeita livrou a nação que de maneira tão maravilhosa crescera. Melhor, livrou-a Deus, por meio dele, de acordo com a promessa feita a Abraão. Obrigado a fugir dali, por temor, porque saiu em defesa de um israelita e deu morte a um egípcio; depois, enviado por ordem do céu, venceu, pelo poder do Espírito divino, os magos do faraó que se lhe opunham. E então, negando-se os egípcios a deixar o povo de Deus sair do Egito, se viram atacados pelas dez famosas pragas: a água transformada em sangue, as rãs, os piolhos, as moscas, a morte do gado, as chagas, a chuva de pedras, os gafanhotos, as trevas e a morte dos primogênitos. Finalmente, os egípcios foram sepultados no Mar Vermelho, quando em perseguição dos israelitas, a quem, depois de feridos pelas pragas, haviam permitido saíssem do Egito. Abriu-se o mar e deixou passagem livre aos que se iam; tornando a juntar-se, a água afogou os que lhes iam no encalço. Depois, o povo de Deus, com Moisés à frente, viveu durante quarenta anos no deserto; foi então que se dedicou o tabernáculo do testemunho, em que se rendia culto a Deus com sacrifícios, figuras das coisas futuras. Isso aconteceu depois de haver sido a lei dada no monte, de maneira muito terrível, pois evidentíssima se manifestava a Divindade, com sinais e vozes admiráveis. Isso sucedeu, uma vez saído do Egito o povo e já morando no deserto, cinquenta dias após a celebração da Páscoa da imolação do cordeiro, símbolo de Cristo e figura da imolação e da paixão sofrida antes de passar deste mundo ao Pai (pois em hebraico Páscoa significa Passagem). E isso é tão verdade, que, uma vez já revelado o Novo Testamento, cinquenta dias após a imolação de Cristo, nossa Páscoa, desceria do céu o Espírito Santo. A tal Espírito o Evangelho dá o nome de dedo de Deus, para tornar a fazer menção do primeiro acontecimento prefigurado, visto como as Tábuas da Lei se anunciam escritas pelo dedo de Deus. 2. Morto Moisés, pôs-se à frente do povo Jesus Nave, introduziu-o na terra da promissão e repartiu-a pelo povo. Esses dois admiráveis chefes terminaram com êxito muitas guerras, mostrando-lhes Deus procederem as vitórias não tanto do merecimento do povo hebreu quanto dos pecados das nações em guerra. A tais chefes, estabelecido na terra da promissão o povo, sucederam os juízes. Assim começava o cumprimento da primeira promessa feita a Abraão, tocante à nação dos hebreus e à terra de Canaã, não a tocante a todas as nações e a todo o orbe da terra. Esta última cumprir-se-ia na encarnação de Cristo, não com as práticas da Lei velha, mas com a Lei evangélica. Tal verdade está de antemão prefigurada em não haver sido Moisés, que no monte Sinai recebera a Lei para o povo, mas Jesus Nave, a quem Deus, por ordem própria, mudara o nome, quem introduziu o povo na terra prometida. No tempo dos juízes, segundo os pecados do povo ou a misericórdia de Deus, assim alternavam a prosperidade e a adversidade nas guerras. 3. Daí se passou à época dos reis. O primeiro foi Saul. Mas, vencido e morto em choque guerreiro e reprovado com toda a sua raça, para dela não mais haver reis, sucedeu-lhe no trono Davi, cujo filho mais eminente se chama Cristo. Fez-se pausa nele, que marca, por assim dizer, o começo da juventude do povo de Deus. Sua adolescência estendeu-se de Abraão a Davi. Não em vão o evangelista São Mateus mencionou catorze gerações nesse período, a saber, de Abraão a Davi. Com efeito, o homem começa a ser capaz de gerar da adolescência e por esse motivo as gerações começam de Abraão, constituído em pai de nações, quando lhe foi mudado o nome. Antes de Abraão, quer dizer, de Noé até ele, o povo de Deus viveu a meninice e, por isso, então se inventou a primeira língua, a hebraica. A meninice é precisamente a idade em que o homem começa a falar, já morta a infância, assim chamada porque durante ela é impossível falar. E também é fora de dúvida que o esquecimento encobre essa primeira idade, como o dilúvio fez desaparecer a primeira idade do gênero humano. Quantos há que se recordam da própria infância? Deve-se a isso que no atual desenvolvimento da Cidade de Deus, como o livro anterior contém a primeira idade do mundo, este abarque a segunda e a terceira. Impôs-se nessa terceira idade o jugo da Lei, prefigurado pela novilha, a cabra e o carneiro de três anos; apareceram inúmeros pecados e surgiu o princípio do reino terreno, em que não faltaram homens espirituais, mistério prefigurado na rola e na pomba. LIVRO DÉCIMO SÉTIMO Trata do progresso da Cidade de Deus no tempo dos reis e dos profetas, de Samuel e Davi a Cristo. E expõe, além disso, as profecias referentes a Cristo e à Igreja consignadas nas Sagradas Letras, sobretudo nos livros dos Reis, dos Salmos e de Salomão. CAPÍTULO I Os profetas. Como vão tendo cumprimento as promessas por Deus feitas a Abraão, a cuja descendência pertenciam, como dissemos, suposta essa promessa, tanto o povo israelita, segundo a carne, como todas as nações, segundo a fé, no-la irá mostrando a Cidade de Deus em sua marcha através dos tempos. Como o livro anterior finalizou no reinado de Davi, deste agora passaremos aos seguintes, expondo quanto julguemos suficiente para a obra empreendida. O tempo que vai de quando o santo Samuel começou a profetizar até o povo de Israel ser levado cativo para Babilônia e a instauração da casa de Deus, após setenta anos de cativeiro, de acordo com a profecia de Jeremias, esse tempo é a época dos profetas. Isso não obsta que com pleno direito possamos chamar profetas ao patriarca Noé, época do dilúvio, e a outros anteriores e posteriores à época em que começa a monarquia no povo de Deus, por haverem realizado ou predito como futuras certas coisas relacionadas com a Cidade de Deus e o reino dos céus. Acrescenta-se a isso serem alguns chamados mais expressamente por tal nome; assim Abraão, assim Moisés. Contudo, por antonomásia, chamou-se época dos profetas os anos seguintes às profecias de Samuel, que ungiu Saul primeiro rei e depois, rejeitado este, por ordem de Deus ungiu Davi, de cuja estirpe, enquanto assim convenha, descendam os demais. Se quiséssemos referir quanto os profetas disseram de Cristo, enquanto em alternativa incessante de nascimentos e mortes a Cidade de Deus continua a marcha dos séculos, perder-me-ia no infinito. Primeiro, porque, se tratássemos, com o auxilio de Deus, de considerar a Escritura, que, relatando, na devida ordem, façanhas dos reis e acontecimentos dos reinados, parece, com esmero de historiador, preocupada com os fatos, nela descobriríamos empenho especial, se não superior, pelo menos não inferior, de prenunciar o futuro, ao invés de anunciar o passado. Quem ignora, por pouco que pense nisso, o trabalho, o tempo, os muitos volumes necessários para investigá-la? E segundo, porque são tantas as coisas de indubitável caráter profético sobre Cristo e sobre o reino dos céus, ou seja, sobre a Cidade de Deus, que para expô-las seria preciso ir muito além dos limites prefixados ao plano deste trabalho. Portanto, na realização desta obra, com o beneplácito de Deus, moderarei, quanto possa, de tal maneira a pena, que nem direi coisas supérfluas, nem omitirei as necessárias. CAPÍTULO II Em que época se cumpriu a promessa de Deus acerca da terra de Canaã. Dissemos no livro anterior que desde as primeiras promessas por Deus feitas a Abraão já se lhe prometeram duas coisas, a saber, sua descendência possuiria a terra de Canaã, expressa nas palavras: Vai para a terra que te mostrarei e far-te-ei cabeça de grande nação e outra, muito superior a essa, que não versa sobre a descendência carnal, mas sobre a espiritual, e em virtude de que não é pai da nação israelita apenas, mas de todas as nações que lhe seguem as pegadas da fé. Tal promessa iniciou-se nestes termos: E em ti serão abençoadas todas as tribos da terra. E depois aduzimos outra série de testemunhos em prol da promessa de ambas as coisas. A descendência de Abraão, quer dizer, o povo de Israel, segundo a carne, já se estabelecera na terra prometida, onde, não só de posse das cidades inimigas, mas também com reis próprios, já iniciara sua monarquia. Assim já ficavam cumpridas em grande parte as promessas de Deus a respeito do povo. E não apenas as feitas aos três patriarcas, Abraão, Isaac e Jacó, e quaisquer outras feitas em seus dias, mas também as feitas a Moisés, que do cativeiro egípcio livrou o povo e por meio de quem se revelaram todas as coisas passadas, quando conduzia o povo pelo deserto. E a divina promessa de possuir a terra de Canaã, do rio do Egito ao grande Eufrates , não se cumpriu no tempo do famoso chefe Jesus Nave, que introduziu o povo na terra da promissão e entre as doze tribos, a que Deus o enviara, repartiu as nações conquistadas, nem, depois dele, durante todo o período dos juízes. Não se encontrava tal promessa, todavia, em longínquo futuro; era de cumprimento esperado a todo instante. Cumpriu-se sob Davi e seu filho Salomão, cujo reino alcançou a extensão prometida. Porque subjugaram esses povos todos e os transformaram em tributários seus. Sob os referidos reis estabelecera-se a descendência de Abraão na terra da promissão, ou seja, na terra de Canaã, de tal maneira que já nada faltava para o cumprimento formal da promessa terrena de Deus. Unicamente faltava, quanto à prosperidade temporal, que, através das gerações, a nação judaica até o fim dos séculos perseverasse estável nesse estado, se obediente às leis de seu Deus e Senhor. Mas, como Deus não ignorava que não seria assim, usou de penas temporais para adestrar os poucos fiéis existentes entre eles e advertir do que convinha os futuros fiéis de todas as nações, pois neles e pela encarnação de Cristo, já revelado no Novo Testamento, se cumpriria a outra promessa. CAPÍTULO III Que entendem os profetas por Jerusalém? Três acepções. 1. Assim como os oráculos divinos dirigidos a Abraão, a Isaac e a Jacó e, de igual modo, outros sinais ou palavras proféticas se revelaram, segundo as Sagradas Letras, em épocas anteriores, assim também as profecias, a partir dos reis, se referem, parte, à descendência carnal de Abraão e, parte, à sua própria descendência, em que são abençoados todos os povos, coerdeiros de Cristo pelo Novo Testamento e chamados a possuir a vida eterna e o reino dos céus. Logo, parte refere-se à escrava, geradora de escravos, quer dizer, à Jerusalém terrestre, escrava com seus filhos, e parte à cidade livre de Deus, Jerusalém eterna nos céus, cujos filhos, homens que vivem segundo Deus, são peregrinos na terra. Mas nessas profecias há coisas relacionadas com ambas: em sentido próprio, com a escrava; em sentido figurado, com a livre. 2. Em consequência, as profecias ou as palavras proféticas são de três classes: umas, relativas à Jerusalém terrena; outras, à celeste; outras ainda, a ambas. Vou provar com exemplos minha asserção. O profeta Natã foi enviado ao rei Davi, para exprobrar-lhe o pecado e anunciar-lhe os castigos que o esperavam. Quem duvida que esses e outros avisos divinos semelhantes, dirigidos a todos, quer dizer, de interesse ou utilidade do povo, ou a indivíduo em particular, que em prol da vida temporal davam a conhecer algo futuro, se referiam à cidade ter rena? Lê-se em Jeremias: Eis que aí vem o tempo, diz o Senhor, em que farei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá, aliança não segundo a que contrai com seus pais no dia em que os tomei pela mão, para tirá-los da terra do Egito. Já que não se mantiveram no cumprimento do pacto, abandonei-os, diz o Senhor. Eis o pacto que farei com a casa de Israel: Depois de chegar o referido tempo, diz o Senhor, lhes imprimirei na mente minhas leis, no coração lhas gravarei, os verei, serei seu Deus e serão meu povo. Trata-se, fora de dúvida, de profecia relativa à Jerusalém celeste, cuja recompensa é Deus e cujo único soberano bem é possuí-lo e pertencer-lhe. Tal profecia, porém, refere-se a ambas, porque chama Jerusalém à Cidade de Deus e nela profetiza a futura casa de Deus; essa mesma profecia, entretanto, cumpriu-se, ao que parece, quando o rei Salomão edificou o soberano templo. Tais acontecimentos, segundo a História, sucederam na Jerusalém terrena e figuraram a Jerusalém celeste. Esse gênero de profecia, combinação de ambos os sentidos, tem grande valor nos antigos livros canônicos que narram o passado e exercitou e ainda exercita sobremaneira o engenho dos pesquisadores das Sagradas Letras. A tal ponto é assim, que nas predições já historicamente cumpridas na descendência carnal de Abraão investigam o sentido alegórico, que há de realizar-se na descendência espiritual dele. Alguns, levados por semelhante afã, pensaram não haver nos referidos livros nada predito e já realizado ou realizado sem predição, que não diga ou insinue alguma relação, alegórica, é verdade, mas relação, com a soberana Cidade de Deus e com seus filhos, peregrinos na terra. Se é assim, as palavras dos profetas ou, melhor, de todas as Escrituras que aparecem sob o nome de Antigo Testamento, teriam apenas dois sentidos, não três. Nele não haverá, por conseguinte, nada alusivo unicamente à Jerusalém terrena, se tudo quanto se diz e se cumpre, dela ou por causa dela, significa algo que, em prefiguração alegórica, se refere à Jerusalém celeste. Haverá, portanto, dois sentidos apenas: um deles corresponde à Jerusalém livre; o outro, a ambas. Tenho para mim que, como andam muito errados os que acham que, nesse gênero de letras, os acontecimentos realizados carecem de qualquer significação alegórica, assim também muito ousados andam os que sustentam que todas as coisas envolvem algum simbolismo. Por isso dissemos não terem dois sentidos, mas três. E digo-o sem criticar os capazes de em qualquer acontecimento descobrir sentido espiritual, sempre, é claro, que se conserve em primeiro plano a verdade histórica. Quanto ao mais, que fiel duvida não se haverem feito sem algum propósito as coisas que se não podem relacionar com acontecimentos humanos ou divinos, realizáveis ou realizados? Quem não procurará dar-lhes interpretação espiritual, se puder, ou pelo menos confessará dever procurá-lo quem possa? CAPÍTULO IV Que figurou a mudança do reino e do sacerdócio de Israel? Profecia de Ana, mãe de Samuel e símbolo da Igreja 1. O progresso da Cidade de Deus até à época dos reis, até Davi, rejeitado Saul, subir ao trono, logrando que sua posteridade reinasse por muito tempo na Jerusalém terrena, oferece-nos verdadeiro símbolo, ao significar e prenunciar com tais acontecimentos algo que não se deve passar em silêncio. Trata-se da mudança das coisas futuras, no que toca aos dois Testamentos, o Antigo e o Novo - onde sacerdócio e realeza se trocaram no novo Sacerdote e no novo Rei eterno, Jesus Cristo. Eli, sumo sacerdote rejeitado, e Samuel, que o substituiu nesse ministério e exerceu ao mesmo tempo o múnus de sacerdote e juiz, e, por outro lado, o reprovado Saul e Davi, constituído em rei, figuram o que venho dizendo. Ana, mãe de Samuel, a princípio estéril e depois feliz da própria fecundidade, profetizou, segundo parece, isso mesmo, quando, exultante de alegria, deu graças ao Senhor e com a mesma piedade com que lho oferecera lhe consagrou o menino que nascera. Eis como se expressa: Meu coração firmou-se no Senhor e meu Deus exaltou-me o poder. Já posso responder de boca cheia a meus inimigos, pois a causa de minha alegria é a salvação que recebi de ti. Porque ninguém é santo como o Senhor e não há justo como o nosso Deus; ninguém, além de ti, é santo. Cessai de gloriar-vos soberbamente e de falar coisas elevadas e não vos saia da boca a jactância, porque Deus, que tudo sabe, é o Senhor e o Deus que prepara suas revelações. Afrouxou o arco dos poderosos e revestiu de vigor os débeis. Os abundantes em pão vieram a ter menos e os famintos atravessaram a terra. A estéril teve sete filhos e ficou sem vigor a que tinha muitos. É o Senhor quem dá a morte e a vida, conduz ao sepulcro e livra dele. O Senhor faz pobres e ricos, abate e exalta. Levanta da terra o pobre e do monturo ergue o mendigo, para colocá-lo entre os potentados do povo, dando-lhe trono de glória em herança. Ele dá a oferenda a quem faz voto e Ele abençoou os dias do justo, porque o homem não é poderoso por sua própria força. O Senhor desarmou seu inimigo, o Senhor, que é santo. Não se glorie o sábio em sua Sabedoria, nem o poderoso em seu poder, nem o rico em suas riquezas; quem gloriar-se glorie-se nisto, em entender e conhecer o Senhor e praticar o direito e a justiça no meio da terra. Deus subiu aos céus e trovejou; Ele, porque é justo, julgará os confins da terra. É Ele quem dá força a nossos reis e exaltará o poder de seu Cristo. 2. Haverá, talvez, quem pense tratar-se de palavras de mulherzinha simples, alegre com o nascimento do filho. Está, porventura, de tal maneira afastada da luz da verdade a razão humana, que não compreenda estarem tais palavras muito acima dessa mulher? Na verdade, quem repara nas coisas cujo cumprimento já se iniciou na peregrinação terrena, não dá atenção e não tem consciência de que por intermédio dessa mulher, de nome Ana, que significa Graça, falou com espírito profético a religião cristã, a Cidade de Deus, cujo rei e fundador é Cristo, em suma, a graça de Deus, de que os soberbos se afastam para caírem, e se locupletam os humildes, para erguerem-se, coisa posta em relevo sobretudo nesse hino? Apesar de, talvez, não faltar quem diga não haver profetizado coisa alguma a referida mulher, mas apenas feito louvação a Deus em panegírico transbordante de alegria, por haver recebido o filho, que o Senhor, acedendo-lhe aos rogos, lhe concedeu. Que significa, nesse caso, isto: Afrouxou o arco dos poderosos e revestiu de vigor os débeis; os abundantes em pão vieram a ter menos e os famintos atravessaram a terra, porque a estéril teve sete filhos e ficou sem vigor a que tinha muitos? Tivera sete filhos, apesar de estéril? Quando dizia isso, tinha um só, mas nem mesmo depois teve sete (o sétimo seria Samuel); teve apenas três filhos e duas filhas. Ademais, se não profetizava, como ou por que, em povo em que ainda não havia reis, disse as seguintes palavras finais: Dá força a nossos reis e exaltará o poder de seu Cristo? 3. Diga, pois, a Igreja de Cristo, a Cidade do grande Rei, cheia de graça e fecunda em filhos, diga e repita o profetizado tanto tempo antes por boca dessa piedosa mulher: Meu coração firma-se no Senhor e meu Deus exaltou-me o poder. Seu coração está verdadeiramente firmado e seu poder verdadeiramente exaltado, por não havê-los posto em si, mas no Senhor, seu Deus. Já posso responder de boca cheia a meus inimigos, porque a palavra de Deus não se encontra presa aos grilhões do cativeiro nem aos pregadores apressados. A causa de minha alegria, diz, é a salvação que recebi de ti. A salvação é Jesus Cristo, a quem o velho Simeão, como se lê no Evangelho, diz, abraçando-o, pequenino, e reconhecendo-lhe a grandeza: Agora, Senhor, já do mundo podes tirar teu servo em paz, porque já meus olhos viram a Salvação que nos enviaste. Diga e repita uma vez mais a Igreja: A causa de minha alegria é a salvação que recebi de ti, porque ninguém é santo como o Senhor e não há justo como nosso Deus, por ser santo e santificador, justo e justificador. Ninguém, além de ti, é santo, porque ninguém se torna santo senão por ti. Depois acrescenta: Cessa i de gloriar-vos soberbamente e de falar coisas elevadas e não vos saia da boca a jactância, porque Deus, que tudo sabe, é o Senhor. Ele conhece-vos como ninguém vos conhece, porque, se alguém julga ser algo, se engana, pois não é nada. Isso dirige-se aos inimigos da Cidade de Deus, pertencentes a Babilônia, que se ufanam de sua própria virtude e não se gloriam no Senhor, mas em si mesmos. A esse número também pertencem os israelitas carnais, cidadãos terrígenas da Jerusalém terrestre, que, como diz o Apóstolo, não conhecendo a justiça de Deus, quer dizer, aquela que Deus, único justo e justificador, dá ao homem, e afanados em estabelecer a sua própria, isto é, aquela que julgam alcançada para si e por si mesmos, não dada por Deus, não se sujeitaram à justiça de Deus. E, sem dúvida, não se submeteram, por serem soberbos, julgando-se capazes de agradar a Deus por seus próprios esforços sem a graça de Deus, de Deus que tudo sabe e, por isso mesmo, é árbitro das consciências, intuindo os pensamentos dos homens, que são vaidade, se dos homens e não inspirados por Ele. E quem prepara suas revelações. Que revelações senão a queda dos soberbos e a exaltação dos humildes? Eis como se cumprem: Afrouxou o arco dos poderosos e revestiu de vigor os débeis. Afrouxou o arco, quer dizer, o intento dos que se julgam tão poderosos, que sem a graça de Deus e sem seu auxílio são capazes de auto suficientemente cumprir os divinos mandamentos. E, por outro lado, são revestidos de vigor aqueles que intimamente clamam: Senhor, tem misericórdia de mim, que desfaleço. 4. Os abundantes em pão, prossegue, vieram a ter menos e os famintos atravessaram a terra. Quem são os abundantes em pão senão aqueles mesmos que se julgam poderosos, quer dizer, os israelitas, a quem Deus comunicou seus oráculos? Mas nesse povo os filhos da escrava tornaram-se menores. Com essa expressão, minorati sunt, pouco latina, porém, muito expressiva, se diz que de maiores se tornaram menores, porque nos pães, quer dizer, na palavra de Deus, que entre todas as nações unicamente os israelitas então receberam, apenas sentem o gosto das coisas terrenas. Por sua vez, as nações às quais não se dera a lei, quando, graças ao Novo Testamento, chegaram a conhecer tais palavras, atravessaram, famintas, a terra, porque nelas não sentiram o gosto das coisas terrenas, mas das celestes. E fazendo como quem procurava o porquê de ser assim, diz: Porque a estéril teve sete filhos e ficou sem vigor a que tinha muitos. A profecia projetou aqui jorros de luz para quem conhece o número sete, em que se significa a perfeição da Igreja universal. Por esse motivo, o Apóstolo São João escreve a sete Igrejas, dando a entender, assim, que escrevia à totalidade da única Igreja. E nos Provérbios de Salomão, a Sabedoria, figura de tal mistério, diz: Edificou casa para si e lavrou sete colunas. A Cidade de Deus era estéril em todas as nações, antes de surgir o feto que agora vemos. E agora também vemos sem vigor a Jerusalém terrestre, que tinha muitos filhos, porque os filhos da livre existentes em seu seio lhe constituíam o vigor; como agora nela não há espírito, mas apenas letra, perdido o vigor, debilitou-se. 5. É o Senhor quem dá a morte e a vida. Deu morte à que tinha muitos filhos e vida à estéril, que teve sete, embora possível entender-se também, talvez com mais propriedade, que dá vida àqueles a quem antes dera morte. A mesma ideia repete-se, ao que parece, nestas palavras: Conduz ao sepulcro e livra dele. Aqueles a quem o Apóstolo se dirige nestes termos: Se morrestes com Cristo, buscai as coisas lá de cima, onde Cristo está sentado à destra de Deus, sem dúvida, receberam do Senhor morte que os salvou. Aqueles a quem diz: Saboreai as coisas do céu, não as da terra são os famintos que atravessaram a terra. Porque já estais mortos, diz. Eis a morte que salva por Deus. A seguir acrescenta: E vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Eis a vida também dada por Deus. São os mesmos, porém, os conduzidos ao sepulcro e os livrados dele? Ambas as coisas vemos cumpridas em Cristo, quer dizer, em nossa Cabeça, com quem disse o Apóstolo estar nossa vida escondida em Deus. E deu-lhe morte, pois não perdoou o próprio Filho, mas entregou-o por todos nós. E devolveu-lhe a vida, visto havê-lo ressuscitado dos mortos. E já que na profecia se lhe ouve a voz: Não me abandones a alma no sepulcro, conduziu-o ao sepulcro e tirou-o dele. Sua pobreza enriqueceu-nos, pois o Senhor é quem faz pobres e ricos. Para percebê-lo, ouçamos o seguinte: Abate e exalta. Abate, é certo, os soberbos e exalta os humildes. Todas as palavras dessa mulher, cujo nome significa Graça, resumem-se nestas: Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes. 6. E o acréscimo: Levanta da terra o pobre a ninguém quadra melhor que àquele que, sendo rico, se fez pobre por nós, para que fôssemos enriquecidos, como dissemos há pouco, por sua pobreza. Levantou-o tão depressa da terra, para que sua carne não conhecesse a corrupção. E aplicou-lhe também isto: E do monturo ergue o mendigo. Mendigo é igual a pobre. O monturo de que é tirado alude muito bem aos perseguidores judeus, em cujo número se contava o Apóstolo, que perseguiu a Igreja e dizia: Tais coisas, que antes eu supunha vantajosas para mim, tive-as na conta de perdas, por amor a Cristo, e considerei-as não apenas desvantagens, mas também monturo, para ganhar a Cristo. Da terra foi, por conseguinte, levantado o pobre e posto sobre todos os ricos e do monturo tirado o mendigo e posto sobre todos os opulentos, para colocá-lo entre os potentados do povo, a quem diz: Sentar-vos-ei em doze tronos. E dá-lhes trono de glória em herança. Haviam dito os potentados: Bem vês que abandonamos tudo e te seguimos. Haviam feito com verdadeiro poder semelhante voto. 7. Donde, porém, lhes veio o poder de fazê-lo senão daquele de quem logo a seguir se disse: Ele dá a oferenda a quem faz voto? Do contrário, seriam daqueles potentados cujo arco ficou bambo. Ele, que dá a oferenda a quem faz voto, porque ninguém, salvo quem dele receber a oferenda, pode oferendar algo bom a Deus. E prossegue: Ele abençoou os anos do justo, a fim de que por todo o sempre viva com aquele a quem se disse: E teus anos não terão fim. Ali permanecerão os dias, aqui passam, melhor diria, perecem, pois, antes de virem, não são e, vindos, já não são, porque trazem consigo seu fim. De ambas as coisas, assim expressas: Ele, que dá a oferenda a quem faz voto e abençoou os anos do justo, fazemos uma e recebemos outra. Mas não a recebemos da bondade de Deus, se com seu auxílio não fazemos primeiro a outra, porque o homem não é poderoso em sua própria força. O Senhor desarmará o adversário dele, quer dizer, o invejoso do ofertante, que pretende tornar-lhe impossível o cumprimento do voto. A ambiguidade do grego dá margem a entender-se também seu inimigo. Quando o Senhor haja começado a possuir-nos, o inimigo, que até agora fora nosso, faz-se, não há dúvida, inimigo dele e é vencido por nós, mas não com nossas forças, porque o homem não é poderoso em sua própria força. O Senhor, pois, desarmará seu inimigo o Senhor santo, para vencerem-no os santos, feitos santos pelo Santo dos santos, pelo Senhor. 8. Não se glorie o sábio em sua sabedoria, nem o poderoso em seu poder, nem o rico em suas riquezas; quem gloriar-se, glorie-se disto, de entender e conhecer o Senhor e de praticar o direito e a justiça no meio da terra. Não entende e conhece pouco o Senhor quem conhece e entende ser o Senhor quem lhe dá o conhecer e entender-se. Que tens, pergunta o Apóstolo, que não hajas recebido? E, se o recebeste, de que te glorias, como se não o houvesses recebido? Quer dizer, como se o motivo ou objeto por que te glorias procedesse de ti. Pratica o direito e a justiça quem vive retamente. E vive retamente quem obedece ao mandado de Deus e o fim dos mandamentos, quer dizer, a que se referem os mandamentos, é a caridade que nasce de coração puro, de consciência boa e de fé não fingida. Pois bem, tal caridade, como testemunha o Apóstolo São João, procede de Deus. Logo, a prática do direito e da justiça procede de Deus. Que significa, porém, no meio da terra? Será que não devem praticar o direito e a justiça os habitantes dos confins da terra? Por que, pois, se acrescentou no meio da terra? Se não se houvesse acrescentado, dizendo simplesmente praticar o direito e a justiça, o mandamento abrangeria por igual os homens mediterrâneos e os marítimos. Mas tenho para mim haver-se dito no meio da terra para designar o tempo que a gente vive no corpo, a fim de ninguém pensar que, finalizada a vida, haja no corpo tempo suficiente para praticar o direito e a justiça, coisa não feita enquanto vivia na carne, e desse modo poder escapar ao juízo divino. Nesta vida cada qual traz consigo sua terra, que, morto o homem, vai parar na terra comum e depois, ressuscitado, lhe será devolvida. Deve-se, portanto, praticar o direito e a justiça no meio da terra, quer dizer, enquanto nossa alma se encontra aprisionada neste corpo terreno, o que nos será de grande utilidade no futuro, quando cada qual receberá a paga devida às boas ou más ações que por meio do corpo haja feito. A expressão do Apóstolo (por meio do corpo) significa: durante o tempo vivido no corpo. Porque, se alguém, com intenção perversa e no pensamento, blasfema, embora tal ação não a realize com nenhum membro nem movimento do corpo, nem por isso deixa de ser culpado, pois a realizou durante o tempo que viveu no corpo. E assim podemos muito bem entender as palavras do salmo: Deus, nosso rei desde antes dos séculos, operou a salvação no meio da terra. O Senhor Jesus, nesse caso, identifica-se com nosso Deus, anterior aos séculos, porque os séculos foram feitos por Ele. Operou nossa salvação no meio da terra, quando o Verbo se fez carne e habitou em corpo de terra. 9. Após a profecia de Ana sobre como deve gloriar-se quem se gloria, quer dizer, que não deve gloriar-se em si mesmo, mas no Senhor, diz, de olhos postos no dia do juízo: O Senhor subiu aos céus e trovejou. Julgará os confins da terra, porque é justo. Observa, em tais palavras, a ordem da profissão de fé dos fiéis. Cristo, Nosso Senhor, subiu aos céus, donde virá julgar os vivos e os mortos. Com efeito, como diz o Apóstolo: Quem subiu, senão quem desceu aos mais ínfimos lugares da terra? Quem desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas. Trovejou, pois, por meio das nuvens, que, subido, encheu do Espírito Santo. Dessas nuvens fala no profeta Isaías, quando ameaça a Jerusalém escrava, quer dizer, a vinha ingrata, de não chover sobre ela. E acrescentou: Ele julgará os confins da terra, como que dizendo: Até os confins da terra, pois quem julgará, sem dúvida alguma, todos os homens não deixará de julgar as outras partes da terra. Mas talvez melhor se entenda por confins da terra os confins da vida humana, porquanto o homem não será julgado segundo o estado atual, em que oscila do bem ao mal e do mal ao bem, mas segundo for encontrado no instante final. Por isso se disse que quem perseverar até o fim se salvará. Logo, quem com perseverança pratica o direito e a justiça no meio da terra não será condenado, quando forem julgados os poderes da terra. E dá força, diz, a nossos reis, quer dizer, para não condená-los no juízo. Dá-lhes força para governarem a carne como reis e, naquele que por eles derramou o próprio sangue, vencerem o mundo. E exaltará o poder de seu Cristo. Como exaltará Cristo o poder de seu Cristo? Acima, ao dizer: O Senhor subiu aos céus, entendemos tratar-se de Cristo Senhor; dele mesmo aqui se diz que exaltará o poder de seu Cristo. Quem é, pois, o Cristo de seu Cristo? Ou exaltará, porventura, o poder de cada um de seus fiéis, segundo a expressão da referida mulher, no começo de seu hino: Meu Deus exaltou-me o poder? Na realidade, podemos muito bem chamar cristos a todos os ungidos com seu crisma, porque o Cristo único o formam o corpo e sua cabeça. É a que se reduz a profecia de Ana, mãe do ilustre e santo Samuel. Nele figurou-se, então, a mudança do antigo sacerdócio, que agora vemos cumprida, e foi aí que a que teve muitos filhos ficou sem vigor, a fim de que, transformada em mãe de sete, a estéril tivesse novo sacerdócio em Cristo. CAPÍTULO V Desaparecimento do sacerdócio de Aarão, predito ao sacerdote Eli. 1. O homem de Deus, cujo nome se silencia, mas que por seu ofício e ministério se apresenta como profeta, enviado ao sacerdote Eli, expressa isso mesmo com maior clareza. Eis o texto: Certo homem de Deus chegou-se a Eli e disse-lhe: Isto diz o Senhor: Manifestei-me à família de teu pai, quando estavam no Egito, submetidos ao jugo de Faraó. E escolhi a família de teu pai entre todos os cetros de Israel, para se encarregarem de meu sacerdócio e para que subissem a meu altar, me queimassem incenso e andassem vestidos com o efod. Dei a comer à casa de teu pai parte dos sacrifícios que os filhos de Israel fazem com fogo. Por que, pois, me olhaste com olhos impudentes o incenso e o sacrifício e teus filhos glorificaste mais do que a mim, permitindo-lhes abençoar, em minha presença, as primícias de todo sacrifício oferecido em Israel? Por isso diz o Senhor Deus de Israel: Decidi que tua casa e a casa de teu pai passarão eternamente em minha presença. E agora diz o Senhor: Isso é que não. Glorificarei os que me glorifiquem e quem me despreze será desprezado. Eis que chega o tempo em que da casa de teu pai te exterminarei a descendência e jamais terá sacerdote em minha casa. Afastarei todos de meu altar, para que lhes desfaleçam os olhos e lhes descaia a alma. Quantos restarem de tua casa morrerão a golpes de espada e será sinal disso o que sucederá a teus dois filhos, Hofni e Finéios, pois ambos morrerão no mesmo dia. Procurarei sacerdote fiel, que faça quanto meu coração e minha alma desejam, construirei para ele casa sólida e duradoura e passará sempre em presença de meu Cristo. E todo aquele que sobreviver de tua casa virá adorá-lo com um óbolo de prata, dizendo: Acomoda-me em alguma parte de teu sacerdócio, para eu comer o pão. 2. É exagero afirmar que essa profecia, tão claro prenúncio da mutação do antigo sacerdócio, se cumpriu à letra em Samuel. Apesar de ser verdade que Samuel não pertencia a tribo distinta da tribo por Deus destinada a servir o altar, não era dos filhos de Aarão, cuja posteridade fora designada para perpetuar o sacerdócio. Como consequência, tal acontecimento foi figura, como que envolta em sombra, da mudança que por intermédio de Jesus Cristo se operaria mais tarde. A profecia, em sentido próprio, pertencia ao Antigo Testamento e, em sentido figurado, ao Novo. Falo quanto ao fato, não quanto às palavras, quer dizer, o ocorrido significava o que, em palavras, o profeta expressou ao sacerdote Eli. Houve, depois, sacerdotes da família de Aarão, como Sadoc e Abiatar, no reinado de Davi, e outros mais tarde, mas muito antes da época em que devia cumprir-se em Cristo a predição acerca da mudança do sacerdócio. Quem, observando-o com o olhar da fé, não vê já estar cumprida? Com efeito, atualmente não resta aos judeus nem tabernáculo, nem templo, nem altar, nem sacrifício, nem, por conseguinte, alguns dos sacerdotes que, segundo a lei de Deus, deviam ser da família de Aarão. É a isso que na citada profecia alude o profeta, quando afirma: Isto diz o Senhor Deus de Israel: Decidi que tua casa e a casa de teu pai passarão eternamente em minha presença. E agora diz o Senhor: Isso é que não. Glorificarei os que me glorifiquem e quem me despreze será desprezado. Aqui chama casa do pai. Saiba-se que não fala do pai próximo, mas de Aarão, primeiro sacerdote instituído, de quem descendem todos os demais, coisa que as expressões anteriores deixam entrever: Manifestei-me à família de teu pai, quando estavam na terra do Egito, submetidos ao jugo de Faraó. E entre todos os cetros de Israel escolhi a família de teu pai, para encarregar-se de meu sacerdócio. Quem de seus pais esteve sob o jugo dos egípcios e, libertados, foi escolhido para o sacerdócio, senão Aarão? Nessa passagem diz-se, por conseguinte, que de sua estirpe já não haverá sacerdotes. E já o vemos cumprido. Avive-se a fé! Os fatos aí estão, podem ser vistos, tocados com a mão e entram pelos olhos dos que não querem ver. Eis que chega o tempo, diz, em que te exterminarei a descendência da casa de teu pai e jamais terás sacerdote em minha casa. E afastarei todos de meu altar, a fim de que lhes desfaleçam os olhos e lhes descaia a alma. Eis chegado o tempo predito. Não há sacerdotes segundo a ordem de Aarão; quantos restam de sua estirpe, ao considerarem que o sacrifício dos cristãos brilha em todo o mundo e ao seu lhe foi subtraído tão grande honra, desfalecem-lhes os olhos e descai-lhes a alma, de tristeza consumida. 3. Porém, o seguinte refere-se, em sentido próprio, à casa de Eli, a quem se dirigia: Quantos restarem de tua casa morrerão a golpes de espada e será sinal disso o que há de acontecer a teus dois filhos, Hofni e Finéias, quer dizer, ambos morrerão no mesmo dia. O mesmo sinal que marcou o sacerdócio arrebatado à casa de Eli marcou que o sacerdócio devia mudar-se da casa de Aarão. A morte de ambos os filhos de Eli não significou a morte dos homens, mas a do sacerdócio na descendência de Aarão. O que se segue já se relaciona com o sacerdote de que é figura Samuel, sucessor de Eli. Fala-se, por conseguinte, de Jesus Cristo, verdadeiro sacerdote do Novo Testamento: Procurarei sacerdote fiel, que proceda segundo meus desejos e meus pensamentos, e para ele construirei casa duradoura e sólida. Tal casa é a Jerusalém eterna e soberana. E passará sempre, diz, em casa de meu Cristo. Passará, quer dizer, estará ante ele, como antes dissera da casa de Aarão: Decidi que tua casa e a casa de teu pai passarão sempre em minha presença. Passará em presença de meu Cristo refere-se, sem dúvida, a casa, não a Cristo sacerdote, Mediador e Salvador. Logo, sua casa passará em presença dele. Pode-se também entender que passará da morte à vida durante todo o tempo de nossa mortalidade até o fim dos séculos. E, quando Deus diz: Que faça quanto meu coração e minha alma desejam, não pensemos que tem alma, pois Ele é o criador da alma. Semelhantes expressões aplicam-se a Deus metaforicamente, não em sentido próprio, como dele se diz que tem pés, mãos e outros membros do corpo. Ademais, para ninguém imaginar haver o homem sido feito à imagem de Deus, segundo o corpo, a Deus também se atribuem asas, membros de que o homem carece. E assim se diz a Deus: Amparo-me à sombra de tuas asas, para os homens entenderem que isso se diz de maneira metafórica, não propriamente, de sua natureza inefável. 4. As palavras: E todo aquele que sobreviver de sua casa virá adorá-lo não se referem propriamente à casa de Eli, mas à de Aarão, de que até a vinda de Cristo sobreviveram homens e de cuja linhagem restam alguns. Porque da casa de Eli já se dissera antes: E quantos restarem de tua casa morrerão a golpes de espada. Como é possível ser verdadeiro que todo aquele que sobreviver de tua casa virá adorá-lo, se é verdade que ninguém escapará à espada vingadora? Talvez quisesse dar a entender com isso todos os pertencentes à estirpe sacerdotal, segundo a ordem de Aarão. Se, pois, faz parte dos predestinados restantes, de quem disse outro profeta: Os sobreviventes salvar-se-ão, a que acrescenta: Assim, pois, também agora se salvaram os sobreviventes acolhidos pela eleição da graça, pois com tais sobreviventes quadrariam perfeitamente as palavras: Todo aquele que de tua casa sobreviver, sem dúvida alguma crerá em Cristo. Assim, no tempo dos Apóstolos muitos dessa nação creram e, ainda agora, embora muito raras, não faltam pessoas que creiam, cumprindo-se nelas o que logo a seguir acrescentou o homem de Deus: Virá adorá-lo com um óbolo de prata. A quem virá adorar senão ao sumo Sacerdote, que é também Deus? No sacerdócio segundo a ordem de Aarão, os homens não iam ao templo ou ao altar de Deus adorar o sacerdote. Que significa com um óbolo de prata, senão a palavra abreviada da fé, a que o Apóstolo aplica o seguinte: O Senhor estabelecerá palavra reduzida e breve sobre a terra? O salmo que canta: Palavras puras e sinceras são as palavras do Senhor, são prata refinada ao fogo prova que nessa passagem prata equivale a palavra. 5. Que diz aquele que vem adorar o sacerdote de Deus e o sacerdote-Deus? Acomoda-me em alguma parte de teu sacerdócio, para eu comer o pão. Não quero gozar das honras, já inexistentes, de meus pais; acomoda-me em qualquer parte de teu sacerdócio. Escolhi ser o ínfimo da casa de Deus, quer dizer, desejo ser um membro qualquer de teu sacerdócio. Chama aqui sacerdócio ao povo, cujo sacerdote é o Mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo. A esse povo diz o Apóstolo São Pedro: Povo santo, sacerdócio real. Verdade é que alguns traduziram de teu sacrifício, não de teu sacerdócio; isso, porém, significa igualmente o povo cristão. Por isso diz o Apóstolo São Paulo: Embora muitos, viemos a ser um só pão, um só corpo. As palavras para eu comer o pão expressam de maneira elegante o gênero de sacrifício de que diz o Sacerdote: E o pão que darei para a vida do mundo é minha própria carne. E tal sacrifício não é segundo a ordem de Aarão, mas segundo a ordem de Melquisedec. Entenda-o bem o leitor. A breve e salutarmente humilde confissão: Acomoda-me em alguma parte de teu sacerdócio, para eu comer o pão é o óbolo de prata, porque a palavra do Senhor, que mora no crente, é breve. Acima dissera haver dado à casa de Aarão, para comida, as vítimas do Antigo Testamento, expressando-se assim: E dei à casa de teu pai, para comida, parte de todos os sacrifícios dos filhos de Israel que se fazem com fogo; eram precisamente esses os sacrifícios dos judeus. E agora disse: Para comer o pão, que é o sacrifício dos cristãos no Novo Testamento. CAPÍTULO VI O sacerdócio e o reino judaicos. 1. Embora tais coisas então se predissessem com grande profundidade e agora despeçam luz clara, alguém pode objetar com certa probabilidade: Quem nos garante o cumprimento de todas as predições de tais livros, se este oráculo divino; Tua casa e a casa de teu pai passarão eternamente em minha presença não pôde cumprir-se? Porque vemos haver-se mudado esse sacerdócio e não ser de esperar se cumpra algum dia a promessa feita a essa casa, pois foi abolido e mudado e a eternidade pregada se refere, antes, ao que lhe sucede. Quem assim fala não compreende ou não lembra que o sacerdócio, mesmo o segundo a ordem de Aarão, se constituiu como sombra do sacerdócio vindouro, eterno. E, portanto, quando se prometeu a eternidade, não se prometeu à sombra e à figura, mas ao figurado e adumbrado. E, para não se imaginar que a própria sobra permanece, necessário foi profetizar também sua mudança. 2. Nesse sentido, a realeza de Saul, reprovada e rejeitada, também era sombra de realeza futura, que teria duração eterna. O óleo com que o ungiram (desse crisma derivou Cristo) devemos entendê-lo misticamente e nele considerar grande mistério. Assim, o próprio Davi respeitou-o tanto nele, que o coração lhe pulava de medo, quando, escondido em escura caverna, onde, forçado por necessidade natural, Saul também entrara, lhe cortou furtivamente um pedacinho da túnica, para fazê-lo ver, mostrando-lho, que o perdoara, podendo haver-lhe dado morte. E com isso afugentar-lhe-ia do espírito a suspeita que o levava a no santo Davi ver inimigo seu e a persegui-la com violência. Este receava ser culpado da profanação de tão grande mistério simplesmente por haver-lhe tocado a túnica. Assim está escrito: A consciência de Davi remordeu-o, por haver tocado a orla do manto de Saul. Persuadiam-no os companheiros a dar morte a Saul, entregue como estava a suas mãos. Não permita Deus, disse, que eu ponha em prática semelhante conselho, levantando a mão contra e sobre ele, porque é o ungido do Senhor. E respeitava tão honrada mente essa figura do futuro não tanto por si mesma quanto pelo figurado por ela. Samuel diz a Saul: Porque não me cumpriste o mandamento, que o Senhor te intimou, o reino de Israel, que Deus te preparara para sempre, já não subsistirá, não será estável. O Senhor buscará alguém segundo seu coração e chamá-lo-á a ser príncipe de seu povo, porquanto não guardaste o mandado por Ele. Isso não se deve entender como se Deus houvera disposto que Saul reinasse eternamente e depois não quisesse manter a promessa, pois não ignorava que havia de pecar. Havia-lhe aparelhado o reino, isso sim, mas para figura do reino eterno. Por isso acrescentou: E agora teu reino não subsistirá para ti. Subsistiu e subsistirá o figurado por ele, não subsistirá, porém, para ele, porque nem ele, nem sua descendência reinarão eternamente, a fim de que, ao menos na sucessão de seus descendentes, parecesse cumprir-se a promessa de eternidade. O Senhor buscará alguém, diz. Essas palavras apontam para Davi ou para o Mediador do Novo Testamento, figurado no crisma com que foram ungidos Davi e sua linhagem. O Senhor não busca alguém, como se não soubesse onde está, mas fala por intermédio de alguém, à maneira humana, e com semelhante modo de falar também nos busca. E éramos tão conhecidos não apenas por Deus Pai, como também por seu Unigênito, que veio buscar o que perecera, que antes da criação do mundo nos escolhera nele. Buscará para si (quaeret) significa terá por seu. Daí que em latim essa palavra admita preposição e se diga acquirit (adquire), cujo significado é claro, embora buscar (quaerere), sem preposição, signifique adquirir (acquirere). Por isso os lucros também se chamam ganhos (quaestus). CAPÍTULO VII Queda do reino de Israel. 1. Saul pecou de novo por desobediência e Samuel tornou a dirigir-lhe a palavra em nome do Senhor: Porque desprezaste a palavra do Senhor, o Senhor rejeitou-te, para não seres rei de Israel. Saul confessa outra vez seu pecado, pede perdão e roga a Samuel que consigo volte a aplacar Deus. E diz-lhe Samuel: Não voltarei contigo, porque desprezaste a palavra do Senhor e o Senhor te rejeita, para não seres rei de Israel. Samuel voltou o rosto, para ir-se, e Saul segurou-o pela orla do manto e rasgou-o. Replicou-lhe Samuel, então: Hoje o Senhor destituiu Israel do reino, tirando-o de tua mão; dá-lo-á a um de teus próximos, melhor do que tu. Israel ficará dividido em duas partes. E não voltará atrás nem se arrependerá, porque não é, como o homem, susceptível de arrependimento. O homem ameaça e não persevera. Aquele a quem diz: O Senhor rejeita-te, para não seres rei de Israel e: Hoje o Senhor destituiu Israel do reino, tirando-o de tua mão, reinou sobre Israel quarenta anos. Quer dizer, reinou tanto tempo quanto Davi e ouviu essa palavra na primeira época de sue reinado. Dáse-nos a entender com isso que já não haveria de reinar ninguém de sua estirpe e devemos fixar a atenção na estirpe de Davi, de que nasceu, segundo a carne, o Mediador entre Deus e os homens, Cristo homem. 2. Na Escritura não se lê, como em muitos códices latinos: O Senhor arrancou-te da mão o reino de Israel, mas como traduzimos, acomodando-nos aos códices gregos: O Senhor destituiu Israel do reino, tirando-o de tua mão, dando a entender, assim, que de tua mão é o mesmo que Israel. Tal homem personificava figuradamente o povo de Israel, destinado a perder o reino, havendo Nosso Senhor Jesus Cristo de reinar espiritual, não carnalmente, pelo Novo Testamento. Quando se diz: E dá-lo-á a outro próximo, faz-se alusão a parentesco carnal, pois Cristo nasceu de Israel, segundo a carne, como Saul. O acréscimo bom sobre ti pode-se entender por melhor que tu. Alguns assim traduziram. Mas é mais aceitável o sentido de bom sobre ti. Ele está sobre ti, porque é bom, segundo as palavras proféticas: Enquanto ponho debaixo de teus pés todos os teus inimigos. Entre esses inimigos está Israel e a tal perseguidor seu arrebatou-lhe Cristo o reino. E o Israel em que não havia engano fora ali como trigo entre palha. Dele procediam os Apóstolos, dele os santos mártires, o primeiro dos quais foi Santo Estevão, dele brotou a série de Igrejas mencionadas pelo Apóstolo São Paulo, que em sua conversão engrandeceu a Deus. 3. Acerca das palavras: Israel ficará dividido em duas partes não me restam dúvidas. Devem ser entendidas como se dissessem que uma parte é o Israel inimigo de Cristo e outra o Israel simpatizante com Cristo; uma, o Israel da escrava e a outra o Israel da livre. Ambas as classes estavam a princípio juntas, como Abraão ainda unido à escrava, até que a estéril, fecundada pela graça de Cristo, exclamou: Expulsa a escrava e o filho. Sabemos que Israel, durante o reinado de Roboão e por causa do pecado de Salomão, se dividiu em dois grupos e se manteve assim, cada facção com seus reis, até os caldeus subjugarem a nação toda e levarem-na para o cativeiro. Mas que é que isso tem com Saul? Se se houvesse de fazer tal ameaça, por que não dirigi-la de preferência a Davi, de quem Salomão era filho? Ademais, agora a nação hebreia não se dividiu, mas se dispersou indiferentemente pelo mundo, na comunhão do mesmo erro. Porém, a divisão que Deus cominou na pessoa de Saul, representante do reino e do povo, seria imutável e eterna, como atestam as seguintes palavras: E não voltará atrás nem se arrependerá, porque não é, como o homem, susceptível de arrependimento. O homem ameaça e não persevera, que é o mesmo que dizer: o homem ameaça e não é constante; por sua vez, Deus não, porque não se arrepende como o homem. Quando diz que se arrepende, a Escritura refere-se à mutação das coisas, continuando imutável a presciência divina. E dizer que não se arrepende quer dizer que não muda. 4. Por tais palavras vemos que Deus pronunciou sentença irrevogável e perpétua sobre a divisão do povo de Israel. Todos que passaram, passam ou passarão desse povo a Cristo, segundo a presciência de Deus, não procedem dele, e sim segundo a natureza única do gênero humano. Ademais, todos os israelitas que aderirem a Cristo e nele permanecerem jamais estarão com os israelitas, que até o fim do mundo continuarão sendo inimigos seus. A divisão aqui pregada subsistirá sempre. O Antigo Testamento, dado sobre o Monte Sinal e gerador de escravos, tem este valor apenas, o de dar testemunho do Novo. Enquanto alguém lê Moisés, cobre com véu o coração; ao passar a Cristo, descerra-se o véu. Com efeito, quem dá esse passo do Antigo ao Novo Testamento muda ,de propósito e já não aspira à felicidade carnal, mas à espiritual. E a razão por que o grande profeta Samuel, antes de ungir Saul rei, rogou ao Senhor por Israel e foi escutado. E, estando oferecendo holocaustos, ao aproximarem-se os estrangeiros para lutar com o povo de Deus, trovejou sobre eles o Senhor, confundiu-os, e eles se abateram ante Israel e foram vencidos. Tomou, então, uma pedra, colocou-a entre a antiga e a nova Massefat e chamou-a Abenezér, que em latim significa pedra do ajudador. E disse: Até aqui o Senhor nos ajudou. Massefat com efeito significa "intenção". A pedra do ajudador é a mediação do Salvador, graças à qual há de o homem passar da Massefat velha à nova, quer dizer, da intenção com que se esperava a falsa felicidade carnal no reino carnal à intenção com que se espera a verdadeira felicidade espiritual no reino dos céus, por intermédio do Novo Testamento. E, como nada lhe é superior, a consegui-la é que o Senhor nos auxilia. CAPÍTULO VIII Promessas feitas a Davi e não cumpridas em Salomão, mas plenissimamente em Cristo. 1. Vamos, pois, quanto ao ponto de que estamos tratando, esclarecer o que Deus prometeu a Davi, sucessor de Samuel, mudança que figurou a mudança suprema, a que se relacionam todas as coisas ditas por Deus e consignadas em tais livros. Sorriu a fortuna ao rei Davi e então pensou em edificar casa.a Deus, o tão afamado templo mais tarde construído por seu filho Salomão. Cogitando ele nessas coisas, o Senhor dirigiu a palavra ao profeta Natã, dizendo-lhe que se apresentasse ao rei. E, depois de Deus haver dito que Davi não lhe edificaria a casa e que passara tanto tempo sem mandar ninguém de seu povo edificar-lhe casa de cedro, acrescentou: Agora dirás ao meu servo Davi: Isto diz o Senhor Todo-poderoso: Tirei-te dentre os rebanhos, para que fosses o chefe de meu povo, Israel. Estive contigo em todos os teus caminhos, diante de ti exterminei todos os teus inimigos e tornei-te o nome tão célebre como o dos grandes da terra. Buscarei lugar estável para meu povo de Israel, estabelecê-lo-ei nele e nele habitará à parte, sem ser daí por diante inquieto. Não tornará a humilhá-lo o filho da iniquidade, como vinha fazendo desde que constituí juízes sobre meu povo de Israel. Farei com que permaneças em paz com todos os teus inimigos e o Senhor anunciar-te-á que lhe edifiques casa. Quando hajas terminado teus dias, irás descansar com teus pais e depois de ti levantarei teu descendente, nascido de ti, e lhe prepararei o reino. Edificará templo em meu nome e dirigir-lhe-ei eternamente o trono. Serei seu pai e será meu filho. Se sua iniquidade chegar a ser real, corrigi-lo-ei com vara de homens e com toques de filhos de homens. Mas não apartarei dele minha misericórdia, como apartei daqueles que expulsei de minha presença. Sua casa será estável, seu reino permanecerá eternamente diante de mim e seu trono sempre estará de pé. 2. Em grande erro está quem pense haver-se tal promessa cumprido em Salomão. Apenas repara em que: Este edificará minha casa e em que foi justamente Salomão quem construiu o soberbo templo e não em que: Sua casa será estável e seu reino permanecerá eternamente diante de mim. Atente, pois, e contemple o palácio de Salomão, repleto de mulheres estrangeiras, que dão culto a falsos deuses, e o próprio rei sábio, seduzido e às vezes por elas precipitado na idolatria, e não se atreva a pensar que a promessa de Deus foi mendaz ou Ele não pôde de antemão saber o que seriam Salomão e sua casa. Embora, porém, não víssemos cumpridas essas palavras em Nosso Senhor Jesus Cristo, nascido da linhagem de Davi, segundo a carne, não deveríamos pô-lo em dúvida, sob pena de, inane e vãmente, buscarmos outro messias, como os judeus carnais. E tão verdade que Salomão, para eles, não é o filho nessa passagem prometido ao rei Davi, que, já revelado com tamanha clareza o prometido, ainda dizem com admirável cegueira que esperam outro. Na realidade, também em Salomão se vê certa imagem do futuro, pois edificou o templo, viveu em paz, como seu nome indica (Salomão quer dizer pacífico), e no princípio de seu reinado foi digno de louvor. Sua pessoa prefigurava, como sombra do futuro, Nosso Senhor Jesus Cristo, mas não o exibia. Daí a Santa Escritura dizer algumas coisas dele como se dele estivessem preditas, quando na realidade o que está é fazendo profecia e delineando-o, de certa maneira, como figura do futuro. Além dos livros históricos, em que se conta seu reinado, há um salmo, o 71, encabeçado por seu nome. Dizem-se nele muitas coisas incompatíveis com sua pessoa e, por outro lado, tão aptissimamente convenientes a Cristo, que se torna evidente se haja debuxado naquele certa figura e apresentado neste a própria verdade. Os limites do reino de Salomão, para citar um caso, são conhecidos; lê-se, entretanto, no salmo: Dominará de um mar a outro e do rio ao extremo da terra. Isso vemo-lo cumprido em Cristo, cujo império começou no rio, onde foi batizado por São João e começou a ser conhecido, fazendo ato de presença pelos discípulos, que não o chamavam apenas Mestre, mas também Senhor. 3. Salomão começou a reinar ainda em vida de seu pai Davi, coisa nunca vista entre aqueles reis, com o fim exclusivo de ficar claro que a profecia dirigida ao pai não apontava para ele. Eis a profecia: Quando hajas terminado teus dias, irás descansar com teus pais e depois de ti levantarei um descendente, nascido de ti, e lhe prepararei o reino. Por que, pois, no seguinte: Este edificará minha casa há de a profecia referir-se a Salomão e nas palavras precedentes: Quando hajas terminado teus dias, irás descansar com teus pais e depois de ti levantarei um descendente não se há de considerar prometido outro pacífico, de quem se anunciou que surgiria não antes, como esse, mas depois da morte de Davi? Por longo que seja o tempo transcorrido até o advento de Jesus Cristo, sempre é certo que após a morte do rei Davi, a quem se fez semelhante promessa, viria aquele que edificaria uma casa a Deus, não de madeira e pedra, mas de homens, casa de cuja edificação gozamos. A tal casa, quer dizer, aos fiéis de Cristo, dirige-se o Apóstolo nos seguintes termos: O templo de Deus é santo e esse templo sois vós. CAPÍTULO IX Semelhança entre a profecia do salmo 88 e a do profeta Natã. Por esse motivo, no salmo 88, intitulado Instrução a Etã Israelita, faz-se menção das promessas por Deus feitas ao rei Davi e dizem-se coisas semelhantes às citadas do livro dos Reis. Assim, por exemplo: Jurei a meu servo Davi que lhe farei florescer eternamente a descendência. E também: Outrora falaste em visão a teus filhos e disseste: Em homem poderoso tenho preparada minha assistência e exaltei aquele que do meio do meu povo escolhi. Falei a meu servo Davi e ungi-o com óleo sagrado. Protegê-lo-á minha mão, fortalecê-lo-á meu braço. Já não terá poder sobre ele o inimigo, já não poderá ofendê-lo o filho da iniquidade. E de sua presença exterminarei seus inimigos e porei em fuga os que o aborrecem. Acompanhá-lo-ão minha verdade e minha misericórdia e em meu nome será exaltado seu poder. E sobre o mar estenderá a mão e sobre os rios a destra. Invocar-me-á, dizendo: És meu pai, meu Deus e o autor de minha salvação. E constitui-lo-ei meu primogênito e o mais excelso entre os reis da terra. Conservar-lhe-ei para sempre meu favor e minha aliança com ele será estável. Farei que sua descendência subsista pelos séculos dos séculos e seu trono enquanto durem os céus. Tudo isso, dito sob o nome de Davi, quando retamente entendido, entende-se de Jesus Cristo, por causa da forma de escravo que, como Mediador, tomou da descendência de Davi, no seio da Virgem. Fala-se, algumas linhas depois, dos pecados de seus filhos, pouco mais ou menos nos mesmos termos que no livro dos Reis, o que nos inclina ainda mais a considerá-los como palavras de Salomão. Ali, no livro dos Reis, se diz: Se sua iniquidade chegar a ser real, corrigi-lo-ei com vara de homem e com toques de filhos de homens. Mas dele não apartarei minha misericórdia. Os referidos toques são, sem dúvida, os vestígios do corretivo, donde procedem estas palavras: Não toqueis meus ungidos. Que quer dizer isso, senão: Não os molesteis? No mesmo salmo, tratando aparentemente de Davi, diz-se algo assim: Se seus filhos abandonarem minha lei e não procederem de acordo com meus desejos, se violarem meus justos preceitos, castigar-lhes-ei com a vara as maldades e com o açoite os pecados. Mas não retirarei dele minha misericórdia. Note-se que não disse "deles", falando, como falava, dos filhos, mas dele, que, bem entendido, tem o mesmo significado. Pois bem, em Cristo, cabeça da Igreja, não é possível encontrar pecado algum que, guardada a misericórdia, precise ser castigado por Deus com corretivos humanos, mas é-o em seus membros e em seu corpo, que é o seu povo. Assim, no livro dos Reis, se fala da maldade dele e, no salmo, da de seus filhos, com o fim de dar-nos a entender que, de certo modo, o que se diz de seu corpo também se diz dele. Por essa razão Ele próprio disse do céu, quando Saulo lhe perseguia o corpo, quer dizer, os fiéis: Saulo, Saulo, por que me persegues? Acrescenta o salmo: Jamais faltarei à verdade, nem violarei minha aliança, nem retratarei as promessas que me saíram da boca. Jurei uma vez por meu santo nome que não faltarei ao que prometi a Davi, quer dizer, que jamais mentirei a Davi. Trata-se de modismo da Escritura. Acerca de que não mentirá? Acrescenta: Sua linhagem durará eternamente e seu trono resplandecerá para sempre em minha presença, como o Sol, como a Lua e como o arco-íris, testemunho fiel no céu. CAPÍTULO X Os acontecimentos da Jerusalém terrena desmentiram o cumprimento nela das promessas feitas por Deus. Depois de fundamentos tão sólidos de promessa tão transcendental, para que não a julguem cumprida em Salomão e tal esperança conduza a busca inútil, exclama o profeta: Tu, Senhor, o rejeitaste e reduziste a nada. Isso aconteceu no reinado de Salomão e em sua posteridade, até à ruína da Jerusalém terrestre, capital de seu reino, e, principalmente, até à destruição do templo construído por Salomão. Mas, para não imaginarem que isso ia de encontro às promessas de Deus, acrescentou em seguida: Diferiste teu Cristo. Se, por conseguinte, foi diferido o Cristo do Senhor, não é nem Salomão, nem Davi. Todos os reis consagrados com o místico crisma era chamados cristos (ungidos), não apenas de Davi em diante, mas já desde Seul, primeiro a ser ungido rei do povo israelita e a quem o próprio Davi chamou cristo do Senhor. Mas havia um só Cristo verdadeiro, de quem com sua unção profética eram figura aqueles. Esse Cristo, segundo a opinião dos homens, que pensaram devia ser Davi ou Salomão, diferia-se para mais tarde, mas, segundo a Providência de Deus, ia-se preparando o tempo de seu advento. Entrementes, enquanto Ele chegava, que se fez do reino da Jerusalém terrestre, onde se esperava que reinaria? O salmo acrescenta logo a seguir: Anulaste a aliança com teu servo, deitaste por terra sua santidade. Destruíste todos os seus muros e converteste em espanto suas fortalezas. Saquearam-no quantos passam pelo caminho; fez-se o escárnio dos vizinhos. Exaltaste o poder de seus inimigos e cumulaste de contentamento seus adversários. Tens embotado o fio de sua espada e fizeste em pedaços seu sólio. Encurtaste os dias de seu reinado e cobriste-o de ignomínia. Todas essas desgraças caíram sobre a Jerusalém escrava, em que reinaram também alguns filhos da livre, que na mão sustinham temporalmente esse cetro e empunhavam com verdadeira fé o cetro da Jerusalém celeste; esperando no Cristo. Basta lermos a História, para inteirar-nos do desenvolvimento de tais acontecimentos no referido reino. CAPÍTULO XI A substância radical do povo de Deus. Depois dessas profecias, o profeta faz oração a Deus, mas até mesmo na oração há profecia: Até quando, Senhor, apartas até o fim? Subentende-se teu rosto, como se diz noutro salmo: Até quando apartarás de mim teu rosto? Alguns códices não trazem apartas, mas apartarás, embora se possa entender: Apartas tua misericórdia, que prometeste a Davi. A expressão in finem que significa, senão até o fim? E no fim encontram-se expressos os últimos tempos, quando tal nação há de crer em Jesus Cristo. Mas antes disso era preciso que acontecessem as calamidades que mais acima o profeta lamentou. Por causa delas acrescenta: Tua indignação arderá como fogo. Lembra-te de qual é minha substância. Se o filho do homem não fosse a substância de Israel, graças à qual se viram livres muitos filhos de homens, na realidade seria inútil a criação dos filhos dos homens. Agora, contudo, em virtude do pecado do primeiro homem, toda a natureza humana caiu e caiu da verdade na vaidade. E precisamente a isso que outro salmo alude: O homem assemelhou-se à vaidade; seus dias passam como a sombra. Mas Deus não criou em vão todos os filhos dos homens, porque por mediação de Jesus livra muitos da vaidade. Quanto aos que de antemão soube que não havia de livrar, criou-os para utilidade dos que havia de livrar e para comparar entre si, por oposição, ambas as cidades, não inutilmente, mas com essa belíssima e justíssima ordenação de toda criatura racional. Depois acrescenta: Que homem hó que haja de viver sem jamais ver a morte? Acaso livrará a alma do poder do inferno? Que homem será, senão a substância de Israel, procedente da estirpe de Davi, Cristo Jesus? Dele diz o Apóstolo que, ressuscitado dos mortos, já não morre jamais e a morte já não terá domínio sobre Ele. Vive e não verá a morte, mas já morreu. E livrou a alma do poder do inferno, a que descera para dar liberdade aos cativos. E livrou-a em virtude do poder desta maneira pregado no Evangelho: Tenho poder para entregar minha alma e para recobrá-la. CAPÍTULO XII A quem se refere o pedido de promessas do referido salmo 88? O salmo termina assim: Senhor, onde estão tuas antigas misericórdias, que com juramento prometeste a Davi, pondo tua verdade por testemunha? Tem presente, Senhor, os opróbrios que teus servos sofreram de várias nações, opróbrios que tenho selados no peito, opróbrios com que nos exprobram, Senhor, teus inimigos, que nos lançam em rosto a mutação de teu Cristo. Acerca de tais promessas cabe muito bem perguntar se se referem aos israelitas, desejosos do cumprimento da promessa feita a Davi, ou, pelo contrário, aos cristãos, israelitas não segundo a carne, mas segundo o espírito. E certo haverem sido ditas ou escritas durante o tempo de Etã, cujo nome encabeça o salmo, e durante o reinado de Davi. Sendo assim, se não se revestisse da personalidade de quantos muito depois viriam e para quem seria antiga a época das promessas feitas a Davi, o profeta não diria: Senhor, onde estão tuas antigas misericórdias, que com juramento prometeste a Davi, pondo tua verdade por testemunha? Podemos entender, porém, que muitas nações, quando perseguiam os cristãos, lhes lançaram em rosto a paixão de Cristo, chamada mutação pela Escritura, porque, morrendo, se tornou imortal. De acordo com isso, também pode ser entendida por mutação de Cristo a exprobrada aos israelitas, pois, quando esperavam que viria para eles, veio para todos. E isso muitas nações que, pelo Novo Testamento, creram nele lhes lançam em rosto, pois continuaram na lei antiga. Nesse caso, as palavras: Tem presente, Senhor, os opróbrios que teus servos sofreram, são ditas porque, não se esquecendo deles o Senhor, mas antes, compadecendo-se deles, deve depois do opróbrio atraí-los, por sua vez, à fé. Parece-me, porém, sentido mais próprio o primeiro. Aos inimigos de Cristo, a quem se lança em rosto havê-los Cristo abandonado, passando aos gentios, não é fácil nem viável aplicar-lhes a súplica: Tem presente, Senhor, os opróbrios que teus servos sofreram, porque tais judeus não devem ser chamados servos do Senhor. Mas essas palavras referem-se àqueles que, padecendo pelo nome de Cristo os graves vexames das perseguições, puderam recordar que o reino excelso fora prometido à descendência de Davi. E assim dizem, desejando-o, não desesperando, mas pedindo, buscando, clamando: Senhor, onde estão tuas antigas misericórdias, que com juramento prometeste a Davi, pondo tua verdade por testemunha? Tem presente, Senhor, os opróbrios que teus servos sofreram de várias nações, opróbrios que tenho selados no peito, quer dizer, opróbrios que com paciência suportei no íntimo. Opróbrios que nos exprobram, Senhor, teus inimigos, que nos lançam em rosto a mutação de teu Cristo. Que significa: Tem presente, Senhor, senão: Tem piedade de mim e dá-me, pela humilhação tolerada com paciência, a glória que com juramento prometeste a Davi, pondo tua verdade por testemunha? Se aplicamos aos judeus essas palavras, os servos de Deus, conduzidos ao cativeiro, após a destruição da Jerusalém terrestre e antes do advento de Cristo, puderam dizer tais coisas, entendendo por mutação de Cristo que não se devia esperar dele a felicidade terrena e carnal, como apareceu nos poucos anos do rei Salomão, mas a espiritual e celeste. A infidelidade dos gentios, desconhecendo-a, quando exultava e insultava o povo de Deus cativo, exprobrava-lhe a mutação de Cristo, mas como quem ignora exprobra os que sabem. E a seguinte conclusão do salmo: Bênção ao Senhor para sempre. Assim seja, assim seja! quadra muito bem ao povo de Deus pertencente à Jerusalém celeste, quer em relação aos que estavam entre as sombras do Velho Testamento, antes de revelar-se o Novo, quer em relação àqueles que, revelado o Novo Testamento, pertencem plena e claramente a Cristo. A bênção do Senhor à descendência de Davi não devemos crê-la temporal, como se mostrou nos dias de Salomão, mas eterna. Montado sobre essa certíssima esperança, diz: Assim seja, assim seja! A repetição de tais palavras exprime a confirmação da esperança. Consciente disso, diz Davi no Segundo Livro dos Reis, tema vivo desta digressão: E asseguraste a casa de teu servo para os séculos vindouros. E pouco depois acrescenta: Começa agora e bendize para sempre a casa de teu servo etc. Então, precisamente, geraria o filho de cuja estirpe nasceria Cristo, por quem seria eterna sua casa e, ao mesmo tempo, a casa de Deus. E casa de Davi em razão de sua linhagem e casa de Deus por causa do templo de Deus, mas templo feito de homens, não de pedras, em que eternamente mora o povo com seu Deus e em seu Deus e Deus com seu povo e em seu povo. Deus encherá seu povo e o povo será cheio de seu Deus, quando Deus for todo em todas as coisas. Deus, força no combate, será prêmio na paz. Depois das palavras de Natã: E o Senhor anunciar-te-á que lhe edificarás casa, logo se acrescentam as palavras de Davi: Porque tu, Senhor onipotente, Deus de Israel, revelaste ao ouvido de teu servo e lhe disseste: Edificar-te-ei casa. Essa casa edificamo-la também nós, vivendo bem, mas com o auxílio de Deus, porque, se o Senhor não edificar a casa, em vão se fatigam os que a fabricam. E, quando completar-se a dedicação da casa, serão realidade as palavras de Deus, ditas por Nata: E colocarei em lugar estável meu povo de Israel, estabelecê-lo-ei nele e nele viverá separado, sem ser daí por diante inquietado. E o filho da iniquidade não tornará a humilhá-lo, como fazia desde que constituí juízes sobre meu povo de Israel. CAPÍTULO XIII A paz prometida a Davi não i realmente a que houve durante o reinado de Salomão. É loucura esperar tamanho bem neste mundo terrenal. Haverá quem pense haver-se tal promessa cumprido na paz havida durante o reinado de Salomão? A Escritura dá especial importância a essa paz, porque figura da vindoura. Já não preveniu com vigilância essa falsa conjetura, quando, após dizer: E o filho da iniquidade não tornará a humilhá-lo, acrescentou: Como fazia desde o tempo em que constituí juízes sobre meu povo de Israel? Antes da instituição dos reis, foi o povo governado pelos juízes desde que recebeu a terra da promissão. E é verdade que o humilhava o filho da iniquidade, quer dizer, o inimigo estrangeiro, enquanto, segundo se lê, alternaram a paz e a guerra. Encontramos, além disso, épocas de paz mais dilatadas que a que houve sob Salomão, que reinou quarenta anos. Sob Aod, por exemplo, houve oitenta anos de paz. Longe, pois, de nós a ideia de que semelhante promessa se refere aos dias de Salomão e, muito menos, claro está, aos de qualquer outro rei. Nenhum rei dentre eles teve reinado tão pacífico e nunca essa nação manteve seu império sem temor ao jugo inimigo. E é que os vaivens da vida humana a povo algum concedem segurança tal, que lhe permita não temer as incursões hostis. Portanto, o lugar de morada tão pacífica e segura aqui prometido é eterno e devido aos moradores eternos na mãe Jerusalém livre, onde reinará realmente o povo de Israel, porque Israel significa o que vê a Deus. A vida piedosa, penetrada do desejo de tal prêmio, deve ter por guia a fé, através desta dolorosa peregrinação. CAPÍTULO XIV Afã de Davi na disposição dos salmos e seu mistério. No curso temporal da Cidade de Deus, Davi reinou primeiro na Jerusalém terrena, figura do futuro. Era Davi homem versado na música e não amava a harmonia com prazer vulgar, mas com intenção elevada. Com ela servia seu Deus, que é o verdadeiro Deus, em figuração mística de grande realidade. O concerto acorde e compassado de diversos sons insinua com variedade concorde a unidade compacta de cidade bem ordenada. Encontram-se quase que exclusivamente nos salmos as profecias. O chamado livro dos Salmos contém cento e cinquenta. Alguns creem haver Davi composto apenas os salmos que lhe trazem o nome. Existe, ademais, quem julgue serem obra sua apenas os que trazem a seguinte nota: De Davi e haverem sido compostos por outro e adaptados a ele os intitulados A Davi. Tal opinião cai por terra ante a voz evangélica do Salvador, que diz haver Davi afirmado em espírito ser Cristo seu Senhor. Trata-se do salmo 109. E começa assim: Disse o Senhor a meu Senhor: Senta-te à minha direita, enquanto ponho teus inimigos por escabelo de teus pés. E a verdade é que esse salmo não se intitula De Davi, mas A Davi, como a maioria deles. Julgo mais aceitável pensar que os cento e cinquenta salmos são obra sua, que a alguns ele mesmo intitulou com nomes de outros, que figuravam algo relativo ao assunto, e que os demais não quis tivessem por título o nome de ninguém. Deus mesmo inspirou também a disposição de tal variedade, obscura, é verdade, mas profunda. Não é objeção contra isso que alguns salmos apareçam iniciados com nomes de profetas muito posteriores ao rei Davi e pareçam ditas por eles as coisas ali ditas. E é que muito bem pôde o Espírito profético revelar a Davi, que profetizava, os nomes de profetas vindouros, para que em profecia cantasse algo apropriado à pessoa deles. Assim, vemos antigo profeta falar de Josias e de suas futuras façanhas mais de trezentos anos antes de esse rei nascer. CAPÍTULO XV Texto e contexto das profecias contidas nos salmos e relativas a Cristo e à Igreja. Diz-me o coração que agora esperam de mim que explique neste ponto do livro as profecias contidas nos salmos de Davi e relativas a Cristo e a sua Igreja. Mas, embora não satisfaça às exigências dos leitores (e de um salmo já o fiz antes), afasta-me disso mais a abundância que a falta de material. Não me permito citar tudo, em atenção à brevidade, e temo que, ao escolher uns, pareça a alguns sábios que silencio os mais essenciais. Além disso, dado que o testemunho do salmo aduzido deve ser confirmado por seu próprio contexto, a fim de não haver nada que se lhe oponha, receio que, se não forem aduzidos todos, pareça que, à maneira dos centões, vou, para realizar meu propósito, respigando versículos, extraindo-os como que de grande poema, que a investigação prova não tratar-se de tal ponto, mas de outro e muito diferente. E, claro está, para poder esclarecê-lo em cada salmo, é preciso expô-lo por completo. O trabalho que isso exige é possível inferir-se de alguns tratadistas e de nossos volumes sobre o tema. Leia-os, pois, quem tenha tempo e verá quanto e quantas coisas Davi, o profeta rei, profetizou sobre Cristo e sua Igreja, quer dizer, sobre o Rei e sobre a Cidade por Ele fundada. CAPÍTULO XVI O salmo 44 e suas profecias. 1. Por mais apropriadas e claras que sejam as expressões proféticas a respeito de qualquer coisa, necessariamente andam mescladas com as metafóricas, precisamente as que, graças aos tardos de inteligência, proporcionam aos doutos pesado e duro trabalho expositivo. À primeira vista, algumas delas fazem reparar em Cristo e na Igreja, embora sempre permaneça algo obscuro, que exige explicação dada com vagar. Assim, por exemplo, a passagem do livro dos Salmos: Fervendo-me está o peito em pensamentos sublimes. Ao rei consagro minha obra. Minha língua é pena de amanuense que escreve muito ligeiro. O tu, que dos filhos dos homens és o mais gentil em formosura, vê-se a graça derramada em teus lábios; por isso Deus abençoou-te para sempre. Cinge em volta de ti a espada, ó potentíssimo! Com essa tua galhardia e formosura, caminha, avança prosperamente e reina por meio da verdade, da mansidão e da justiça e tua destra conduzir-te-á a coisas maravilhosas. Tuas penetrantes setas transpassarão, Ó rei; o coração de teus inimigos; render-se-ão a ti os povos. Teu trono, Ó Deus, permanece pelos séculos dos séculos; o cetro de teu reino é cetro de retidão. Amaste a justiça e aborreceste a iniquidade; eis por que te ungiu Deus, teu Deus, com óleo de alegria, com preferência a teus companheiros. Mirra, aloés e cássia exalam-se de tuas vestes e de teus palácios de marfim, em que com seu odor te recrearam. Filhas de reis são tuas damas de honra. Quem, por mais míope que seja, aqui não vê Cristo, que pregamos e em quem cremos, ouvindo a Deus, cujo trono é eterno, Cristo ungido por Deus, como Deus unge com crisma não visível, mas espiritual e inteligível? Quem é tão rude em religião ou tão surdo à fama que dele corre por toda parte, que não saiba que Cristo deriva de crisma, quer dizer, de unção? Conhecido o Rei Cristo, já as demais coisas aqui ditas metaforicamente, qual sua formosura, superior à de todos os filhos dos homens, com beleza tanto mais digna de amor e admiração quanto menos corpórea, qual sua espada, suas flechas e tudo o mais submetido a quem reina por meio da verdade, da mansidão e da justiça, estude-o, se dispõe de tempo. 2. A seguir dirige o olhar à Igreja, unida em matrimônio espiritual e amor divino a tão nobre esposo. Falam dela os seguintes versículos: A tua direita está a rainha, com vestido bordado de ouro e engalanada com vários adornos. Escuta, ó filha, considera, presta ouvido atento e esquece teu povo e a casa de teu pai. E o Rei mais se enamorará de tua beleza, porque é o Senhor teu Deus, a quem todos hão de adorar. As filhas de Tiro virão com donativos e apresentar-te-ão humildes súplicas todos os poderosos do povo. No interior está a principal glória ou luzimento da filha do Rei; cobre-a vestido com vários adornos e recamado de franjas de ouro. Serão apresentadas ao rei as virgens que hão de formar o séquito dela; à tua presença serão trazidas suas companheiras. Conduzidas serão com festas e regozijo; ao templo ou palácio do Rei serão levadas. Em lugar de teus pais, nascer-te-ão filhos, que constituirás príncipes sobre a terra e •conservarão por todas as gerações a memória de teu nome. Eis por que os povos te cantarão louvores eternamente pelos séculos dos séculos. Acho que ninguém desatinará ao extremo de Imaginar que aqui se elogia e se descreve alguma mulherzinha, pais se fala da esposa daquele a quem se diz: Teu trono, ó Deus, permanece pelos séculos dos séculos; o cetro de teu reino é cetro de retidão. Amaste a justiça e aborreceste a iniquidade; eis por que te ungiu Deus, teu Deus, com óleo de alegria, com preferência a teus companheiros. Trata-se, não há dúvida alguma de Cristo, preferido aos cristãos, companheiros de sua glória. Quanto à rainha, forma-se da unidade e concórdia universal dos cristãos. A cidade do grande Rei é como se lhe chama noutro salmo. É a espiritual Sião, nome que significa Contemplação, por contemplar o supremo bem do século futuro, a que dirige todos os seus pensamentos. E também a Jerusalém espiritual, de que tanto temos falado. Sua inimiga é a cidade do diabo, Babilônia, quer dizer, Confusão. Pela regeneração, a rainha é libertada e passa do rei péssimo ao Rei ótimo, quer dizer, do diabo a Cristo. E por isso se lhe diz: Esquece teu povo e a casa de teu pai. Os israelitas que o são pela carne, não pela fé, fazem parte dessa cidade ímpia e são, além disso, inimigos desse grande Rei e de sua rainha. Cristo, ao vir a eles e ser morto, fez-se, antes, salvador daqueles que não viu em carne. Daí que noutro salmo diga esse nosso Rei: Livrar-me-ás das contradições do povo; constituir-me-ás chefe das nações. Povo que eu não conhecia submeteu-se a meu domínio; apenas ouviu, rendeu-me obediência. Esse povo dos gentios que Cristo não conheceu com presença corporal, mas nele creu, uma vez que lho anunciaram, pois dele com razão se diz: Apenas ouviu, rendeu-me obediência, porque a fé entra pelo ouvido, esse povo, digo, agregado aos israelitas autênticos pela carne e pela fé, é a Cidade de Deus, que deu à luz também a Cristo, segundo a carne, quando a formavam apenas os israelitas. Desse povo era a Virgem Maria, em quem, para fazer-se homem, Cristo se encarnou. De tal Cidade diz outro salmo: A mãe de Sião dirá: Homens e mais homens fizeram-se nela e o Altíssimo é quem a estabeleceu. Quem é o altíssimo, senão Deus? Por conseguinte, Cristo-Deus fundou-a nos patriarcas e nos profetas, antes de fazer-se homem, mercê de Maria, na referida cidade. Da rainha da Cidade já se dissera muito tempo antes o que já vemos cumprido: Em lugar de teus pais, nascer-te-ão filhos e constitui-los-ás príncipes sobre toda a terra. A terra inteira está repleta de magistrados e chefes oriundos de tais filhos e os povos, reunindo-se nela, aclamam-na com louvor eterno pelos séculos dos séculos. Quanto haja, pois, de obscuro nas explicações figuradas, seja qual for o sentido que se lhe dê, deve estar em harmonia com as coisas claras. CAPÍTULO XVII O salmo 109 e o sacerdócio de Cristo. O salmo 21 e a paixão do Redentor. Assim ocorre neste salmo, em que abertamente se declara Cristo sacerdote, como ali Rei: Disse o Senhor a meu Senhor: Senta-te à minha direita, enquanto ponho teus inimigos como escabelo a teus pés. Que Cristo se senta à direita é de fé, não opinião. Por sua vez, ainda não vemos seus inimigos postos debaixo de seus pés. Eis a questão e aparecerá no fim do mundo. Acreditamo-lo agora; vê-lo-emos depois. E as palavras: De Sião fará o Senhor sair o cetro de teu poder e dominarás em meio de teus inimigos são tão claras, que negar-lhe o conteúdo não é apenas infidelidade, mas também falta de vergonha. Os inimigos são os primeiros a confessar que saiu de Sião a lei de Cristo, que chamamos Evangelho e vem designada por cetro de seu poder. Que domina em meio de seus inimigos, os próprios dominados, rangendo e batendo os dentes, mas nada podendo fazer contra Ele, testemunham. Acrescenta a seguir: O Senhor jurou e não se arrependerá. Essa expressão está indicando a imutabilidade disto: És sacerdote sempiterno, segundo a ordem de Melquisedec. E sê-lo-á justamente porque daí por diante não existirão o sacerdócio nem o sacrifício, segundo a ordem de Aarão, pois, sob o sacerdócio de Cristo, em toda parte se oferecerá a oferenda oferecida por Melquisedec, quando abençoou Abraão. Quem se permitirá duvidar sobre qual a pessoa a quem isso se refere? A alusão é clara. É feita, se o entendemos bem, às coisas apontadas, talvez mais obscuramente, no mesmo salmo, como já observamos em nossos sermões ao povo. Assim, noutro salmo e por boca do profeta, Cristo fala de sua humilhante paixão: Transpassaram-me as mãos e os pés e contaram-me os ossos um por um. E puseram-se a olhar-me e a observar-me. Tais palavras estão mostrando-lhe o corpo, estendido na cruz, os pés e as mãos, traspassados com cravos, e o grato espetáculo que desse modo ofereceu aos observadores e curiosos. E acrescenta: Repartiram entre si minhas vestes e deitaram sortes sobre minha túnica, profecia cujo cumprimento literal o Evangelho narra. A essa luz, as coisas menos claras que nele se dizem ficam perfeitamente inteligíveis, fazendo-as concordar com essas, cuja claridade deslumbra. Sobretudo tendo em conta que os acontecimentos que não cremos passados e vemos presentes foram preditos muito antes no salmo e agora se cumprem no mundo inteiro. Assim o que se segue no referido salmo: Lembrar-se-ão do Senhor, a Ele converter-se-ão todos os confins da terra e prostrar-se-ão diante dele todas as nações, porque o reino é do Senhor e Ele dominará as nações. CAPÍTULO XVIII Profecias acerca da morte e ressurreição do Senhor nos salmos 3,40, 15 e 67. 1. Os salmos contêm, igualmente, profecias acerca da ressurreição de Cristo. Que outra coisa significam as seguintes palavras do salmo 3, ditas da pessoa dele: Dormi, entreguei-me a profundo sono e levantei-me, porque o Senhor me tomará sob seu amparo? Haverá quem desatine a ponto de crer haja o profeta querido assinalar com pedra branca que dormiu e se levantou, se tal sonho não fosse a morte e o despertar a ressurreição, que sob semelhante imagem conveio se anunciasse de Cristo? Isso aparece com luz mais meridiana no salmo 40. Na pessoa do Mediador são, segundo o costume, narradas como passadas as coisas que se profetizavam futuras. As coisas futuras já pareciam realidade na predestinação e presciência de Deus, porque eram certas. Prorrompiam meus inimigos em imprecações contra mim: Quando morrerá, diziam, e se acabará sua memória? Se algum deles entrava para visitar-me, seu coração falava mentiras e tramava iniquidades contra mim. Safa para fora e confabulava com os outros. Sussurravam contra mim todos os meus inimigos; todos conspiravam, para acarrearem-me males. Sentença iníqua pronunciaram contra mim. Mas, porventura, quem dorme não há de tornar a levantar-se? Essas palavras estão insinuando simplesmente uma interpretação e é como se dissessem: Acaso quem morre não há de tornar à vida? As anteriores provam que seus inimigos maquinaram e dispuseram sua morte, o que se realizou graças àquele que entrava para visitá-lo e saía para atraiçoa-lo. A quem não lhe vem à mente Judas, discípulo transformado em traidor? E, como haviam de levar a efeito suas maquinações, quer dizer, lhe haviam de dar morte, dando a entender que com malícia vã dariam morte àquele que ressuscitaria, acrescentou o referido verso, como que dizendo: Que fazeis, insensatos? Vosso crime será meu sono. Acaso aquele que dorme não há de tornar a levantar-se? E, contudo, tamanho desaforo não há de ficar sem castigo, segundo se deduz dos seguintes versículos: E, o que é mais, homem com quem eu vivia, em doce paz, em quem eu confiava e que comia de meu pão levantou contra mim a planta dos pés, quer dizer, calcou-me com os pés. Tu, porém, Senhor, acrescenta, tem piedade de mim e ressuscita-me, para eu dar-lhes o que merecem. Quem, vendo os judeus arrancados de sua terra com raiz e tudo, após a guerra e a destruição que se seguiram à paixão e ressurreição de Cristo, negará a veracidade de semelhante ameaça? Aquele a quem deram morte ressuscitou e logo lhes aplicou corretivo temporal, reservando outro para os impenitentes, para quando venha julgar os vivos e os mortos. Jesus mesmo, descobrindo aos Apóstolos o traidor, oferecendo-lhe um bocado, citou esse versículo do salmo e aplicou-o a si mesmo: Quem comia de meu pão levantou contra mim a planta dos pés. Isto: Em quem confiava não convém à cabeça, mas ao corpo, pois o Salvador não desconhecia o traidor, já que antes dissera: Um de vós é diabo. Mas costuma tomar sobre si a pessoa de seus membros e a atribuir-se o que é deles, pois cabeça e membros formam um só corpo, Cristo. Assim se explicam as palavras do Evangelho: Tive fome e me destes de comer e assim o explica Ele: Quando o fizestes a um destes meus pequeninos, a mim o fizestes. Disse, pois, esperar o que esperaram de Judas seus discípulos, quando se juntou aos Apóstolos. 2. Os judeus, contudo, não creem haja de morrer o Cristo por eles esperado. Por isso, não creem tampouco seja nosso o Cristo anunciado pela lei e pelos profetas, mas unicamente deles, e figuram-no isento da morte. E com admirável cegueira e vaidade sustentam que as palavras citadas não significam a morte e a ressurreição, mas o sono e o despertar. Mas grita-lhes o salmo 15: Regozijou-se por isso meu coração e depois minha língua prorrompeu em cânticos. Mais ainda, minha carne descansará na esperança. Porque sei que não hás de abandonar-me no sepulcro, nem permitirás que teu santo experimente a corrupção. Quem diria que sua carne descansou com a esperança de pela alma não ser abandonada no sepulcro, mas de reviver, tornando a ela, para não ser corrompida, como costumam corromper-se os cadáveres, senão quem ressuscitou no terceiro dia? A verdade é que não podem dizê-lo do rei profeta, de Davi. E canta o salmo 67: Nosso Deus é Deus que salva e o Senhor sairá pela morte. É possível falar mais claro? O Deus que salva é Jesus, que significa Salvador ou Salvação. Deu-se a razão de tal nome nas palavras proferidas antes de nascer da Virgem: Darás à luz um filho. E por-lhe-ás o nome de Jesus, pois Ele salvará o povo de seus pecados. E, como derramou o sangue em remissão desses pecados, não devia sair da vida por outra porta que a da morte. Por isso, em havendo dito: Nosso Deus é o Deus que salva, acrescentou a seguir: E o Senhor sairá pela morte, para dar a entender que havia de salvar-nos, morrendo. Diz-se com admiração: E o Senhor, como que dizendo: Tal é a vida dos mortais, que nem o próprio Senhor teve outra porta de saída que a morte. CAPÍTULO XIX O salmo 68 e a Infidelidade dos judeus. Como, porém, os judeus não cedem a testemunhos tão manifestos como os dessa profecia, mesmo após a sanção dos fatos, tão clara e tão certa, indubitavelmente neles se cumpre a do salmo seguinte. O profeta aí diz da pessoa de Cristo o relativo à sua paixão e expressou o que se patenteou no Evangelho: Apresentaram-me fel para comer e em minha sede deram-me a beber vinagre. Depois desse banquete, depois de manjares de tal qualidade, acrescentou: Em justa paga converta-se-lhes a mesa em laço de perdição. Obscureçam-se-lhes os olhos, para não verem, e traze-os sempre curvados para o chão, etc. Tudo isso não é desejo, mas predição profética sob a forma de desejo. Que tem, pois, de particular que não vejam aqueles cujos olhos estão obscurecidos, para que não vejam? Que tem de particular que não contemplem as coisas celestiais aqueles que têm a cerviz sempre encurvada, a fim de estarem inclinados às coisas terrenas? Tais metáforas tomadas do corpo denotam realmente os vícios da alma. E, para pôr limite a minha pena, baste o dito sobre os salmos, quer dizer, sobre as profecias do rei Davi. Perdoem-nos os leitores para quem tudo isso é muito conhecido e não se queixem de eu haver omitido passagens, segundo seu modo de pensar mais decisivas e adequadas. CAPÍTULO XX Reinado e merecimentos de Davi e de seu filho Salomão. Profecias acerca de Cristo em seus livros presumidos ou reais. 1. Davi, filho da Jerusalém celeste, tão enaltecido pela Escritura, reinou na Jerusalém terrena. Com sua humilde e salutar penitência sobrepassou seus delitos, tanto que é, sem dúvida, do número daqueles de quem diz: Felizes aqueles a quem se lhes perdoaram as iniquidades e se lhes apagaram os pecados. A Davi sucedeu no trono seu filho Salomão, que, como observamos, ainda em vida do pai começou a reinar. A prosperidade, que enfastia o espírito dos sábios, prejudicou-o mais do que lhe aproveitou a Sabedoria, ainda hoje digna de memória e então gabada por toda parte. Também ele, segundo parece, profetizou em seus livros. Três deles foram admitidos no cânon: os Provérbios, o Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos. Outros dois, intitulados, um, a Sabedoria, o outro, o Eclesiástico, pela semelhança de estilo, a tradição tem-nos atribuído também a Salomão. Contudo, a Igreja, principalmente a ocidental, já de há muito os admitiu como canônicos. Em um deles, na Sabedoria, prediz-se claramente a paixão de Cristo. Eis o que dizem seus cruéis matadores: Armemos, pois, laços ao justo, visto não ser de proveito para nós, ser contrário a nossas obras e lançar-nos em rosto os pecados contra a lei. E desacredita-nos, divulgando-nos o depravado procedimento. Protesta ter a ciência de Deus e chama-se a si mesmo Filho de Deus. Fez-se censor de nossos pensamentos. Não podemos sofrer nem mesmo vê-lo, porque sua vida não se assemelha à dos outros e tem procedimento muito diferente. Olha-nos como a gente frívola e ridícula, abstém-se de nossos usos como de imundícias, prefere o que os justos esperam na morte. E gloria se de ter Deus por pai. Vejamos agora se suas palavras são verdadeiras. Observemos o que lhe acontecerá e veremos qual será seu paradeiro. Que, se na verdade é filho de Deus, Deus tomará conta dele e o livrará das mãos dos adversários. Experimentemo-lo, à força de afrontas e de tormentos, para conhecer-lhe a resignação e provar-lhe a paciência. Condenemo-lo à morte mais infame, pois, segundo suas palavras, será atendido. Tais coisas idearam e tanto desatinaram, cegos de soberba. E no Eclesiástico prediz-se nos seguintes termos a fé dos gentios: Ó Deus, dominador de todas as coisas, tem misericórdia de nós e infunde em todas as nações teu temor. Levanta o braço contra as nações estrangeiras e experimentem teu poder. Em presença deles demonstraste em nós tua santidade, a fim de conhecerem, como conhecemos, ó Senhor, que não há Deus além de ti. Essa profecia em forma de oração e de súplica vemo-la cumprida por Jesus Cristo. Como, porém, tais livros não se encontram no cânon dos judeus, têm menos força contra os contraditores. 2. Demonstrar que tudo quanto desse jaez se diz nos três livros, que certamente são de Salomão e reconhecidos como canônicos pelos judeus, convém a Cristo e à Igreja seria muito penoso e, se o abordássemos, levar-nos-ia muito além do justo. Todavia, as palavras dos homens ímpios, que lemos nos Provérbios: Escondamos injustamente na terra o homem justo e traguemo-lo vivo, como o inferno faz. Apaguemos-lhe da terra a memória e deitemos-lhe a mão à preciosa herança, não têm sentido de tal maneira obscuro que não possamos com facilidade entender que se referem a Cristo e à sua Igreja. Na parábola evangélica Jesus pós algo semelhante na boca dos maus colonos: Eis o herdeiro; vinde, matemo-lo e sua herança será nossa. De igual modo, aqueles que souberam ser Cristo a sabedoria de Deus costumam entender sempre relativo a Cristo e à sua Igreja o texto já citado que fala da estéril. A Sabedoria construiu casa para si e lavrou sete colunas. Imolou vítimas, misturou o vinho e preparou a mesa. Enviou os servos a convocar com excelente elogio ao banquete, dizendo: Se existe algum néscio, que venha a mim. E aos carentes de juízo disse-lhes: Vinde comer de meu pão e beber o vinho que vos tenho preparado. Tais palavras deixam-nos entrever que a Sabedoria de Deus, ou seja, o Verbo, coeterno com o Pai, edificou para si casa no seio da Virgem, o corpo humano, e que a ele, como os membros à cabeça, sujeitou a Igreja, imolou as vítimas dos mártires, preparou a mesa com vinho e pão (clara alusão ao sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec) e chamou os insensatos e destituídos de juízo, pois, segundo a expressão do Apóstolo, escolheu os fracos para confundir os fortes. Nesta passagem dirige-se aos fracos: Deixai a estultícia, para viverdes, e buscai a prudência, para terdes vida. Fazer-se partícipe de sua mesa é começar a ter vida. E que significação mais própria é possível dar às palavras do Eclesiastes: O homem não tem outro bem senão o que come e bebe, senão aplicá-las à participação nessa mesa, em que o Mediador do Novo Testamento, sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, oferece o próprio corpo e sangue? Tal sacrifício sucedeu aos sacrifícios do Velho Testamento, mero símbolo do futuro. No salmo 39 também reconhecemos a voz do Mediador, que fala por boca do profeta: Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas deste-me corpo perfeito. É que, em lugar de todos aqueles sacrifícios e oblações, se oferece seu corpo, ministrado aos comungantes. Que o Eclesiastes não pensa nos banquetes do prazer carnal, quando fala de comer e beber (ponto com frequência repetido e grandemente encarecido), deixa de sobejo entrever, ao dizer: Melhor é ir à casa enlutada que à taberna e, pouco depois: O coração dos sábios vai à casa enlutada; o coração dos néscios, à casa de banquetes. Acho, porém, mais digno de menção o tocante a ambas as cidades, a do diabo e a de Cristo, e a seus dois reis, Cristo e o demônio. Ai de ti, ó terra! diz, cujo rei é adolescente e cujos príncipes comem de manhã. Ditosa, tu, ó terra, cujo rei é filho dos livres e cujos filhos comem no devido tempo, sem impaciência e sem confusão. Por causa da estultícia, soberba, temeridade, petulância e demais vícios costumeiramente abundantes na adolescência, chamou de adolescente o diabo; chamou a Cristo filho dos livres, quer dizer, dos santos patriarcas, Cidadãos da Cidade livre, que carnalmente o geraram. Os príncipes daquela cidade comiam de madrugada, ou seja, antes da hora devida, porque não esperavam a felicidade real no século futuro, a verdadeira, desejando ser felizes quanto antes com a felicidade do mundo. Ao contrário, os príncipes da cidade de Cristo esperam com paciência o tempo da felicidade autêntica. E o que indicam as expressões sem impaciência e sem confusão, porque não os engana a esperança, de que diz o Apóstolo: A esperança não confunde. E certo salmo: Ninguém que espere em ti ficará confundido. O Cântico dos Cânticos é volúpia espiritual das almas santas nas bodas do Rei e da Rainha da Cidade, quer dizer, de Cristo e da Igreja. Mas essa volúpia envolve-se no véu da alegoria para aguilhoar ainda mais o desejo de conhecê-lo e o prazer de tirar-lhe o véu, a fim de surgirem o esposo, a quem se diz no Cântico: Amam-te os justos, e a esposa, que ouve: A caridade em tuas delícias. Por termos ante os olhos o fim da obra, passamos por alto muitas coisas. CAPÍTULO XXI Reis posteriores a Salomão em Judá e em Israel. Nos demais reis de Judá e de Israel posteriores a Salomão, com dificuldade se encontra profecia cujas enigmáticas palavras e adivinhações quadrem a Cristo e à Igreja. Judá e Israel foram os nomes das duas partes em que se dividiu o reino, por juízo de Deus e em prêmio do crime de Salomão, sob seu filho, que lhe sucedeu no trono. As dez tribos dadas a Jeroboão, escravo de Salomão, constituído rei delas na Samaria, chamaram-se propriamente Israel, nome comum a todo aquele povo. E as outras duas tribos, Judá e Benjamim, que permaneceram submetidas a Jerusalém, em consideração a Davi, cuja realeza Deus não queria abolir por completo, receberam o nome de Judá, tribo de que era Davi. A tribo de Benjamim, parte, como dissemos, desse reino, era o berço de Saul, predecessor de Davi. Ambas as tribos, repito, chamavam-se Judá, distinguindo-se com esse nome de Israel, que reservou para si as dez tribos de rei próprio. A tribo de Levi, tribo sacerdotal, encarregada do culto a Deus e não sujeita aos reis, completava o número treze. E José, um dos doze filhos de Israel, não formou apenas uma tribo, como os outros, mas duas, Efraim e Manassés. Não obstante.a tribo de Levi pertencia mais ao reino de Jerusalém, onde estava o templo de Deus a que servia. Dividido o reino, em Jerusalém reinou Roboão, primeiro rei de Judá, filho de Salomão; em Samaria, Jeroboão, rei de Israel, escravo de Salomão. E, quando Roboão intentou vingar como usurpação tirânica o cisma do reino, Deus preveniu o derramamento de sangue fraterno, dizendo por seu profeta haver sido Ele o autor da partilha. Donde se deduz que em tal assunto não houve pecado algum por parte do rei de Israel nem por parte do povo, mas unicamente cumprimento de castigo imposto pela vontade de Deus. Uma vez que a conheceram ambas as partes, fizeram as pazes, pois a divisão foi de reino, não de religião. CAPÍTULO XXII Jeroboão e a Idolatria. Profecias durante seu reinado. Mas Jeroboão, de espírito perverso, não crendo em Deus, cuja veracidade experimentara, pois lhe recebera das mãos o prometido reino, receou que, se o povo fosse ao templo de Deus, em Jerusalém, onde devia sacrificar, segundo a lei divina, toda a nação seria seduzida e tornaria à estirpe de Davi. Assim, introduziu a idolatria no reino e com nefanda impiedade enganou o povo de Deus, obrigando-o a render com ele culto aos ídolos. Contudo, nem mesmo então Deus deixou de por seus profetas repreender não apenas o rei, mas também seus sucessores, que lhe imitaram a impiedade, e todo o povo. Em Israel e entre eles viveram os grandes e famosos Elias e Eliseu, seu discípulo, que fizeram muitas maravilhas. A Elias, que em semelhante conjuntura dizia: Senhor, passaram à espada teus profetas, destruírem-te os altares, fiquei eu só e procuraram-me para tirar-me a vida, foi-lhe respondido haver ali sete mil homens que não haviam dobrado os joelhos diante de Baal. CAPÍTULO XXIII Diversos azares dos reinos Judaicos até o cativeiro. E no reino de Judá, cuja capital era Jerusalém, tampouco faltaram profetas no tempo dos reis seguintes. Deus enviava-os, quando lhe aprazia, quer para anunciar o necessário, quer para corrigir os pecados e encomendar a justiça. Porque também ali, embora em menor escala que em Israel, houve reis que com impiedades ofenderam gravemente a Deus e foram castigados mais suavemente com o povo que os imitava. É certo haver outros reis de virtude grandemente louvada e assinalada; em Israel, porém, uns mais e outros menos, foram todos maus. Tanto uma parte como a outra, segundo a ordem ou a permissão da Providência divina, viviam em contínua alternativa de boa e de má fortuna. E assim se lastimavam não apenas por causa das guerras externas, mas também por causa das guerras civis, brilhando mercê disso a misericórdia ou a ira de Deus. Semelhante estado de coisas durou até que, crescendo-lhe mais e mais a indignação, toda a nação foi vencida em guerra contra os caldeus e na maioria levada cativa para a Assíria. Primeiro, as dez tribos de Israel; mais tarde, Judá, após a ruína de Jerusalém e seu famosíssimo templo. Nesse cativeiro viveu pelo espaço de setenta anos. Depois, posta em liberdade, restaurou o templo destruído e, embora muitos vivessem em terra estrangeira, dali por diante já não houve dois reinos nem dois reis. Havia um só príncipe, cuja corte era Jerusalém. E ao templo de Deus, ali existente, em determinadas épocas vinham todos, de todas as partes e pelos meios de que dispunham. Mas nem mesmo então lhes faltaram inimigos e conquistadores de outras nações, pois Cristo já os encontrou tributárias dos romanos. CAPÍTULO XXIV Últimos profetas entre os Judeus e profetas Já próximos do nascimento de Cristo. No tempo que mediou entre a volta da Babilônia e o nascimento do Salvador, depois de Malaquias, Ageu e Zacarias, profetas de então, e Esdras, não tiveram mais profetas. Apenas Zacarias, pai de João, e Isabel, sua esposa, profetizaram já às vésperas do nascimento do Salvador. E, quando nasceu, o velho Simeão, a velha e viúva Ana e João, o último de todos. Este, já moço, anunciou Cristo, já moço, não como futuro, mas assinalando com conhecimento profético o desconhecido. Por isso disse o Senhor que a lei e os profetas duraram até João. Dá-nos o Evangelho a conhecer as profecias dos cinco e também fala que a Virgem, Mãe do Senhor, profetizou antes de São João. Mas os judeus infiéis não admitem semelhante profecia. Todavia, aceitam-nas muitos deles que creram no Evangelho. Nessa ocasião Israel dividiu-se realmente em dois grupos, com a divisão cuja imutabilidade o profeta Samuel anunciou a Saul. Os judeus infiéis admitiram no cânon Malaquias, Ageu, Zacarias e Esdras. São os últimos admitidos. Seus escritos são como os de outros que entre a grande multidão de profetas escreveram coisas que figuram no cânon. De suas profecias sobre Cristo e a Igreja acho-me no dever de nesta obra citar algumas. Fá-lo-ei com mais vagar no livro seguinte, para não sobrecarregar em demasia o presente. LIVRO DÉCIMO OITAVO Nele fala do desenvolvimento simultâneo de ambas as cidades, da terrena e da celeste, de Abraão ao fim do mundo. Menciona, além disso, os oráculos que anunciaram Cristo, quer das sibilas, quer, acima de tudo, dos vates sagrados que escreveram desde o princípio do Império romano: de Oséias, Amós, Isaías, Miquéias e seguintes. CAPÍTULO I Resumo e recapitulação. Prometi falar sobre a origem, desenvolvimento e fins necessários de ambas as cidades, de Deus e deste século, em que aquela, na pessoa dos homens, seus cidadãos, peregrina agora. Para tanto, nos dez primeiros livros desta obra refutei, com o auxilio divino, os inimigos da Cidade de Deus, que a Cristo, fundador dela, antepuseram seus deuses e de maneira atroz, com rancor próximo do frenesi, invejam os cristãos. Nos quatro livros seguintes tratei da origem de ambas as cidades, cumprindo a primeira parte de minha tríplice promessa. Depois, no Livro Décimo quinto, falei do desenvolvimento delas, do primeiro homem ao dilúvio. De tal época a Abraão correram parelhas ambas as cidades no tempo e nesta obra. Mas de Abraão à época dos reis de Israel (período exposto no Livro Décimo sexto) e dos reis à encarnação do Salvador (fecho do Livro Décimo sétimo) parece haver corrido sozinha em nossa pena a Cidade de Deus, embora no mundo hajam ambas seguido curso e desenvolvimento temporal idênticos. Assim sucedeu desde o princípio do gênero humano. Assim procedi com o propósito de o desenvolvimento próprio da Cidade de Deus aparecer mais distintamente, sem ser comparado ao contrário com o da outra, desde que as promessas de Deus começaram a ser mais claras até o nascimento do Messias, em quem se deviam cumprir tais promessas. Verdade é que até a revelação do Novo Testamento não se mostrou entre luz, mas entre sombras. Agora julgo ser preciso, quanto for suficiente, analisar, desde os dias de Abraão, o curso da cidade terrena, a fim de o leitor poder comparar entre si ambas as cidades. CAPÍTULO II Reis da cidade terrena e época de seu reinado. 1. Estendida pela terra toda e nos mais diversos lugares, ligada pela comunhão da mesma natureza, a sociedade dos mortais divide-se com frequência contra si mesma e a parte que domina oprime a outra. Deve-se isso a que cada qual busca a própria utilidade e a própria cupidez e a que o bem que apetecem não é suficiente para ninguém nem para todos, por não ser o bem autêntico. Rende-se à vencedora a parte vencida, isto é, à dominação, preferindo à liberdade qualquer tipo de segurança e paz. Tanto assim, que grande admiração causou o povo que a servir preferiu perecer. Com efeito, em quase todas as nações a natureza grita com voz forte que a ser aniquilados nos últimos furores da guerra os vencidos preferem sofrer o jugo dos vencedores. E assim se entende que, não sem decreto da Providencia, em cujas mãos está o ser vencido ou vencedor na guerra, uns povos hajam sido senhores e outros, súditos. Mas entre todos os impérios da terra em que a utilidade ou a cupidez terrenas dividiram a sociedade (sociedade que com palavra genérica chamamos cidade deste mundo) pelo poder e ancestralidade sobressaem dois, o dos assírios e o dos romanos, ordenados e distintos um do outro, tanto pelos lugares como pelo tempo. Aquele floresceu primeiro e surgiu no Oriente; este brilhou depois e surgiu no Ocidente. O fim de um assinalou o princípio do outro. Diríamos serem os demais reinos e reis verdadeiros apêndices de ambos. 2. Nino, segundo rei dos assírios, que sucedera a Belo, seu pai, primeiro rei desse reino, estava no trono, quando na terra dos caldeus nasceu Abraão. Era então muito pequeno ainda o reino dos siciônios, pelo qual o doutíssimo Marco Varrão começou a História do Povo Romano. Dos reis dos siciônios passa aos atenienses, destes aos latinos e dos latinos aos romanos. Porém, tais impérios, que precederam a fundação de Roma, são muito pouca coisa em comparação com o dos assírios. E verdade que Salústio, historiador romano, reconhece haverem os atenienses sido muito célebres na Grécia, mas é mais a fama que a realidade. Falando deles, diz: As façanhas dos atenienses, segundo me parece, foram gloriosas e grandes, mas talvez fiquem um pouco por baixo da fama. A eloquência dos engenhosos escritores que ali viveram contribuiu muito para engrandecer as glórias dos atenienses pelo mundo. Assim, a virtude e o valor de seus heróis foram realçados pela grandeza de seus preclaros engenhos. Acrescente-se a isso a glória não pequena de que nela se cultivaram sobremaneira a filosofia e as letras. Se consideramos o império, nenhum superou em amplitude e extensão, nos primeiros tempos, o dos assírios. Com efeito, conta-se que Nino, filho de Belo, submeteu a Ásia toda, levando suas conquistas aos confins da Líbia. A Ásia toda, quer dizer, a terça parte do mundo, quanto à divisão numérica, e a metade, quanto à extensão. No Oriente apenas os da Índia ficaram sem ser tributários do referido império. Morto Nino, declarou-lhes guerra Semíramis, viúva dele. Assim, submeteram-se e obedeceram ao Império assírio todos aqueles povos, quase, diríamos, sem livre determinação. Abraão nasceu, sob o reinado de Nino, entre os caldeus. Mas, como a História dos gregos nos é muito mais conhecida que a dos assírios e pelos gregos passaram aos latinos e aos romanos os que pretenderam historiar, da mais remota antiguidade, as origens do povo romano, julgo-me na obrigação de recordar os reis assírios, a fim de mostrar como Babilônia, primeira Roma, anda de jornada com a Cidade de Deus, peregrina neste mundo. Quanto aos acontecimentos que convenha inserir nesta obra, para comparar entre si ambas as cidades, a terrena e a celeste, será melhor tomá-los dos gregos e latinos, entre quem Roma é como que segunda Babilônia. 3. Quando Abraão nasceu, reinava sobre os assírios Nino, segundo rei deles, e Europs sobre os siciônios. O primeiro, sucedeu a Belo; o segundo, a Egialeu. Quando Deus prometeu a Abraão numeroso povo e a bênção de todas as nações em sua descendência, depois de haver saído de Babilônia, reinava sobre os assírios o quarto rei e sobre os siciônios o quinto. Era rei dos assírios, depois de sua mãe Semíramis, o filho de Nino, que, segundo a História, a matou porque ousou profanar incestuosamente o filho. Alguns acham que essa mulher fundou Babilônia. Na realidade, pôde restaurá-la. Quando e como foi fundada já o dissemos no Livro Décimo sexto. Ao filho de Nino e de Semíramis, que a esta sucedeu no trono, alguns chamam também Nino e outros, com palavra derivada do pai, Nínias. Na época Telxião regia o império dos siciônios. Em seu reinado correram dias tão bonançosos e alegres, que, morto, lhe renderam culto divino, com sacrifícios e jogos. E contam haver sido o primeiro a ser honrado com a instituição dos jogos. CAPÍTULO III Reis da Assíria e da Siciônia, quando nasceram Isaac, Esaú e Jacó. Sob o reinado de Nínias e segundo a promessa de Deus, nasceu Isaac, filho de Abraão, com cem anos de idade, e de sua esposa Sarra, que, por estéril e velha, já perdera a esperança de conceber. Na Ásia reinava então o quinto rei, Arrio. Nasceram a Isaac, aos setenta anos de idade, dois gêmeos, Esaú e Jacó, de sua esposa Rebeca, ainda em vida de seu avô Abraão, que já beirava os cento e sessenta anos. E Abraão morreu depois de fazer cento e setenta e cinco anos. Na Assíria reinava então Xerxes I, por sobrenome Baleu; na Siciônia, Turíaco ou, segundo outros, Turímaco; eram ambos sétimos reis de seus povos. O reino de Argos nasceu com os netos de Abraão e seu primeiro rei foi Ínaco. Não nos esqueçamos que, segundo conta Varrão, os siciônios costumavam sacrificar sobre o sepulcro de Turíaco. No reinado de Armamítres e de Leucipo, oitavos reis da Assíria e da Siciônia, e de Ìnaco, primeiro de Argos, falou Deus a Isaac e prometeu-lhe, como fizera ao pai, que daria a sua descendência a terra de Canaã e em sua descendência seriam abençoadas todas as nações. Essas mesmas promessas foram repetidas ao filho, neto de Abraão, primeiro chamado Jacó e depois Israel, durante o reinado de Beloco, nono rei da Assíria, e de Foroneu, segundo de Argos, filho de Ínaco, continuando Leucipo no trono da Siciônia. Nesse tempo, a Grécia, sob o império de Foroneu, rei de Argos, começou a florescer por certas instituições políticas e civis. Porém, Fegoo, irmão menor de Foroneu, foi, depois de morto, honrado como deus: edificaram-lhe templo sobre o sepulcro e imolaram-lhe bois. Tenho para mim que o julgaram digno de tanta honra porque na parte do reino que lhe tocou por sorte (pois o pai antes de morrer o distribuíra entre os filhos) levantara capelas para o culto aos deuses e ensinara a medida e o cálculo do tempo em meses e anos. Admirando nele o autor de tantas novidades, os homens, ainda rudes, acreditaram que se fizera deus após a morte ou quiseram-no assim. Conta-se também que Io , filha de Ínaco, depois chamada Isis, recebeu culto no Egito, como grande deusa, embora outros escrevam que, rainha da Etiópia, veio para o Egito, onde, acrescentam, reinou com tanta sabedoria e justiça e inventou as letras e muitas outras coisas úteis, merecendo por tudo isso honras divinas, após a morte, e tamanhas honras, que incorreria em sentença capital quem se atrevesse a dizer que fora simples mortal. CAPÍTULO IV Os dias de Jacó e de seu filho José. Baleu, décimo rei, reinava na Assíria, na Siciônia o nono, Mesapo, chamado, segundo outros, Cefíso (se na realidade se trata de um homem só e nesses escritos não há confusão de nomes e, portanto, de indivíduos), e era Ápis terceiro rei de Argos, quando, com cento e oitenta anos de idade, morreu Isaac e deixou os gêmeos com cento e vinte. O menor, Jacó, pertencente à Cidade de Deus, com exclusão do maior, tinha doze filhos. José, um deles, venderam-no os irmãos, ainda em vida de seu avô Isaac, a mercadores que se dirigiam ao Egito. Apresentou-se José a Faraó, que o exaltou da humilhação em que jazia. Contava trinta anos na época. E que interpretou divinamente os sonhos do rei e anunciou a vinda de sete anos de abundância, aos quais se seguiram sete anos de escassez. Isso valeu-lhe a ascensão ao governo do Egito e o ser libertado do cárcere, onde estava aferrolhado por defender a própria castidade, não permitindo o profanasse a vergonhosa paixão de sua senhora, que logo depois havia de mentir ao crédulo esposo. José, ao fugir, deixou o manto nas mãos de sua senhora. No segundo ano dos sete estéreis, Jacó desceu para o Egito com todos os seus, aos cento e trinta anos de idade, segundo a resposta que dera ao rei. José tinha então trinta e nove, pois aos trinta que tinha, quando o rei o elevou a governador do Egito, acrescentara sete de abundância e dois de fome. CAPÍTULO V Ápis, rei de Argos. Os egípcios chamaram-no Serápis e tributaram-lhe honras divinas. Nesse tempo, Ápis, que com seus navios passara ao Egito, onde morreu, tornou-se Serápis, o maior de todos os deuses egípcios. Por que, morto, deixa o nome de Ápis, para chamar-se Serápis? Varrão dá-nos muito simples motivo disso. Porque, diz, o caixão que lhe serviu de tumba, hoje chama do sarcófago, se diz em grego sorós e nele começaram a venerá-lo, antes de lhe construírem templo. De sorós e Apis, primeiro se chamou Sorápis; depois, pela mudança de uma letra, como é corrente, se chamou Serápis. E decretou-se pena capital contra quem dissesse que ele fora homem. Varrão acha que para significar isto, o calar haverem sido homens, têm as estátuas de Ísis e de Serápis, em quase todos os templos, um dedo nos lábios, como que indicando silêncio. E ao boi, que o Egito, com estranha superstição, alimentava com deliciosos bocados, em homenagem ao deus, como o veneravam vivo e sem sarcófago, chamavam Ápis, não Serápis. Quando esse boi morria, procuravam novilho da mesma cor, quer dizer, pintado de malhas brancas; se o encontravam, criam que o caso encerrava algo de maravilhoso e divino. A verdade é que não era difícil aos demônios, para enganarem os homens, apresentarem à vaca prenhe a imagem do referido touro, cuja representação aparecesse corporalmente. Assim, com varas de várias cores, Jacó fez suas ovelhas nascerem multicores. E isso, que os homens podem fazer com cores reais e verdadeiras, podem os demônios fazer muito facilmente, apresentando cores fantásticas, quando os animais concebem. CAPÍTULO VI Rei de Argos e da Assíria, por ocasião da morte de Jacó. Ápis, rei de Argos, não do Egito, morreu no Egito. Sucedeu-lhe no trono seu filho Argos, de cujo nome derivam os argos e os argivos, pois sob os reis anteriores nem a cidade, nem a nação tinham tal nome. Sob seu reinado e sendo rei dos siciônios Ereto e dos assírios Baleu, com a idade de cento e quarenta e sete anos Jacó morreu no Egito. Na hora da morte abençoou os filhos e os netos pela linha de José e com admirável clareza profetizou Cristo nas seguintes palavras, pronunciadas ao dar a bênção a Judá: Não faltará príncipe de Judá e de sua descendência a cabeça até cumprir-se o que lhe foi prometido. Ele será a esperança das nações. Durante o reinado de Argos, a Grécia começou a cultivar o campo e a semear com sementes importadas. Também Argos, depois de morto, foi tido por deus e honrado com templos e com sacrifícios. Semelhante honra, já em seu reinado e antes, rendeu-se a particular chamado Homogiro, morto por um raio e também o primeiro a jungir os bois ao arado. CAPÍTULO VII Morte de José e reis de então. Reinando na Assíria o duodécimo rei, Mamito, na Siciônia o undécimo, Plemneu, e em Argos ainda Argos, com cento e dez anos José morreu no Egito. Depois de sua morte o povo de Deus aumentou de maneira prodigiosa e permaneceu no Egito cento e quarenta e cinco anos, a princípio, enquanto viveram os contemporâneos de José, tranquilamente. Mais tarde, invejando-lhe o crescimento e receando-se dele, o oprimiram com perseguições e trabalhos servis intoleráveis, até ser tirado do Egito. (Mesmo, porém, em meio de tais aperturas, crescia como que fecundado pelo céu.) Na Ásia e na Grécia durante esse tempo todo continuavam no trono os mesmos reis. CAPÍTULO VIII Reis e religião que se ia impondo, quando Moisés nasceu. Reinava na Assíria o décimo quarto rei, Safo, na Siciônia o duodécimo, Ortópolis, e o quinto, Criaso, em Argos, quando o Egito assistiu ao nascimento de Moisés, libertador do povo de Deus da servidão egípcia. Tal escravidão foi conveniente, para assim avivar a ânsia do povo pelo auxílio do Criador. Alguns creem que nesse tempo existiu Prometeu. E, como foi um dos grandes mestres da Sabedoria, dizem que de barro formou os homens. Não se sabe, todavia, quem foram os sábios de seu tempo. Atlas, seu irmão, dizem haver sido grande astrólogo. Daí se originou a fábula que finge que sustenta o céu com os ombros, embora com seu nome haja monte cuja altura, segundo parece, levou o vulgo a pensar que suporta o céu. Nesse tempo começaram a espalhar-se na Grécia as ficções fabulosas. Mas até Cécrope, rei dos atenienses, em cujo reinado tomou tal nome a cidade e Deus, por intermédio de Moisés, tirou seu povo do Egito, foram alistados no número dos deuses alguns mortos, de acordo com a cega superstição dos gregos. Entre eles encontramos de diverso modo, nos diferentes autores, Melantonice, esposa do rei Criaso, Forbas, seu filho, sexto rei de Argos depois do pai, Jasão, filho de Tríopa, sétimo rei, e o nono rei, Estenelas, Esteneleu ou Estenelo. Também contam haver nesse tempo vivido Mercúrio, neto de Atlas por parte de sua filha Maia, acontecimento que até as letras mais vulgares cantam. Sobressaiu como perito nas artes e entregou-as aos homens, motivo que lhe granjeou o ser, depois de morto, crido deus ou tido nessa conta. À mesma época de Argos, embora um pouco posterior, pertence, segundo contam, Hércules, embora, na verdade, alguns o julguem anterior a Mercúrio. Segundo penso, estes enganam-se. Mas, seja qual for a época de seu nascimento, consta por historiadores de peso haverem ambos sido homens e, por causa dos benefícios e comodidades oferecidas à vida dos mortais, deles merecido honras divinas. Minerva é muito mais antiga que todos esses. Conta-se que no tempo de Ogiges apareceu, na flor da idade, junto ao lago Tritão. Por isso é chamada também Tritônia. Deve-se-lhe a invenção de muitas artes úteis. A gente inclinou-se tanto mais a crê-la deusa quanto menos lhe conhecia a origem. Isso de haver nascido da cabeça de Júpiter não é realidade histórica, mas ficção poética. Os historiadores divergem quanto à determinação da época em que viveu Ogiges e houve grande dilúvio, não o dilúvio universal a que não escaparam os homens, exceto os da arca, desconhecido pelos historiadores gregos e latinos, maior, porém, que o de Deucalião. Varrão, por exemplo, começa a partir de tal época o livro já citado. E não acha nada mais antigo que o dilúvio de Ogiges. Nossos cronistas Eusébio e Jerônimo, cuja opinião se apoiou em historiadores anteriores, referem haver o dilúvio de Ogiges acontecido depois de mais de trezentos anos, no reinado de Foroneu, segundo rei de Argos. Seja como for, o certo é que, reinando Cécrope em Atenas, já se rendia culto a Minerva. E sob esse rei é que se fundou ou restaurou Atenas. CAPÍTULO IX Quando foi fundada Atenas e origem de seu nome, segundo Varrão. Eis a origem atribuída por Varrão ao nome de Atenas. Vem de Minerva, que em grego se diz Athéna. De repente surgiu ali uma oliveira e brotou água noutro lugar. Então, movido por semelhantes prodígios, o rei mandou perguntar a Apoio de Delfos que significava aquilo e que se devia fazer. Respondeu que a oliveira significava Minerva, a água, Netuno e que de ambos os nomes os cidadãos podiam escolher um para a cidade. Recebido o oráculo, Cécrope convocou todos os cidadãos de ambos os sexos. (O costume admitia também as mulheres às votações públicas). Proposta a questão, os homens votaram em Netuno; as mulheres, em Minerva. E, como havia uma mulher mais, Minerva ganhou a votação. Então, Netuno, irritado, assolou com as encrespadas ondas do mar as terras dos atenienses, porque aos demônios não é difícil dar mais extensão ao fluxo das águas. Diz o mesmo autor que, para amansarem-lhe a ira, os atenienses castigaram as mulheres com três penas: carecerem de voto dali por diante, não imporem o nome da mãe a nenhum filho e não serem chamadas ateneias. Assim, a famosa cidade, mãe e nutriz das artes liberais e de tantos e tão ilustres filósofos, o que a Grécia tem de mais glorioso e nobre, se chamou Atenas por divertirem-se os demônios com a lide de suas divindades, masculina e feminina, e com a vitória da feminina, alcançada pelas mulheres. E a cidade, assolada pelo vencido, viu-se obrigada a castigar a vitória da vencedora, temendo mais as águas de Netuno que as armas de Minerva. No castigo das mulheres também Minerva sofreu derrota. Não prestou auxílio às que votaram nela, nem sequer para que, despojadas do sufrágio e sem poderem legar o nome aos filhos, se lhes permitisse serem chamadas ateneias e conservarem o nome da deusa, que, graças ao voto, ganhou a batalha. Quantas e que coisas poderiam ser ditas aqui, se nossa pena não estivesse com tanta pressa! CAPÍTULO X Ensino de Varrão sobre o nome "areópago" e sobre o dilúvio de Deucalião. Nega-se Marco Varrão a dar crédito às fábulas que redundam em desdouro dos deuses, por medo a pensar indignamente da digna majestade deles. E por isso não quer acreditar haja o areópago, onde São Paulo disputou com os atenienses e cujos curiais se chamaram areopagitas, recebido tal nome porque Marte, Ares em grego, acusado de homicídio perante doze juízes, que o julgavam naquele pago, saiu absolvido, pois obteve seis votos e, quando havia empate, era costume antepor à condenação a absolvição. Contra semelhante opinião, comumente admitida, afana-se em arranjar outra origem para o referido nome, baseando-se no conhecimento de histórias obscuras, com o propósito de desfazer a crença de haverem os atenienses derivado de Marte e de pago o nome areópago, que se traduziria por pago de Marte. Seria injurioso para os deuses, a quem não podem ser atribuídos os litígios e os processos. E sustenta não ser menos fabulosa essa história de Marte que a das três deusas, Vênus, Juno e Minerva, que pela maçã de ouro disputaram ante Páris o prêmio de beleza. E acontece que, para aplacar os deuses, que se deleitam com tais velhacarias, reais ou aparentes, as representam e as dançam entre aplausos nos teatros. Varrão não crê nisso, porque, segundo ele, desdiz da natureza e dos costumes dos deuses. Mas, ao atribuir origem histórica e não fabulosa ao nome de Atenas, em seus escritos insere contenda tal entre Minerva e Netuno, por causa da cidade, que, fazendo exibição de prodígios, não se atreveria a dirimir a questão o próprio Apolo, que, como Júpiter e Páris no pleito das deusas, remeteu aos homens a decisão do caso. Minerva venceu em votos e foi vencida pelo castigo das que nela votaram. Foi capaz de ganhar Atenas aos homens e não o foi de chamar ateneias às amigas, as mulheres. Nesse tempo, sob o reinado de Cranau, sucessor de Cécrope, ou, segundo Eusébio e Jerônimo, ainda sob Cécrope, aconteceu o dilúvio de Deucalião, assim chamado porque Deucalião reinava na região que mais sofreu a violência das águas. Esse dilúvio não se estendeu ao Egito nem às regiões vizinhas. CAPÍTULO XI Saída do Egito, empreendida por Moisés, e reis que reinavam por ocasião da morte de Jesus Nave. Moisés tirou, pois, do Egito o povo de Deus nos últimos dias do reinado de Cécrope, rei dos atenienses, tempo em que Ascatades reinava na Assíria, Marato na Siciônia, Tríopa em Argos. Em seguida entregou ao povo a lei recebida de Deus no Monte Sinal. Chamava-se Velho Testamento, por serem terrenas suas promessas, enquanto Jesus Cristo promete o reino dos céus no Novo. Era preciso observar semelhante ordem, observada, segundo o Apóstolo, por todo homem que se encaminha para Deus e consistente em ser primeiro o elemento animal e depois o espiritual. Porque, como ele diz e é grande verdade, o primeiro homem é o terrestre, formado de terra, e o segundo é o celestial, vindo do céu. Moisés governou o povo no deserto pelo espaço de quarenta anos e morreu com cento e vinte, após haver profetizado Cristo pela figura das observâncias carnais no tabernáculo, no sacerdócio, nos sacrifícios e nos demais mandamentos místicos. A Moisés sucedeu Jesus Nave, que, depois de, por ordem de Deus, conquistar as nações que a possuíam, introduziu o povo na terra da promissão. Após a morte de Moisés, governou o povo durante vinte e sete anos e morreu. Na Assíria reinava então o décimo oitavo rei, Amintas, na Siciônia o décimo sexto, Córax, em Argos o décimo, Dânao, e em Atenas o quarto, Erictônio. CAPÍTULO XII Solenidades que os reis da Grécia Instituíram em homenagem aos falsos deuses, de quando Israel saiu do Egito até à morte de Jesus Nave. Por essa época, quer dizer, da saída do Egito à morte de Jesus Nave, que introduziu o povo na terra da promissão, os reis da Grécia instituíram em honra dos falsos deuses muitas solenidades, que com augusta pompa traziam à memória o dilúvio e a vida trabalhosa dos homens dele salvos, que tão depressa subiam às montanhas quanto desciam às planícies. Porque é tal a interpretação que se dá à subida e descida dos lupercos pela via sagrada, que, segundo ela, os homens, ante o crescimento das águas, procuraram o alto dos montes e, ao tornarem as águas ao leito, também eles baixaram às planícies. Conta-se, além disso, que, nesse tempo, Dioniso, por sobrenome pai Líber, que, depois de morto, obteve o título de Deus, ensinou, quando na Ática, seu hospedeiro a plantar a videira. Dedicaram-se, então, a Apolo de Delfos os jogos de música, para aplacar-lhe a ira, pois atribuíam a esterilidade da Grécia a não lhe haverem defendido o templo, quando o rei Danao invadiu aquelas terras e lhes deitou fogo. Mas a dedicação deveu-se a oráculo do mesmo Apolo. Erictônio foi quem primeiro instituiu os jogos na Ática, não apenas em honra dele, mas também em honra de Minerva. O prêmio do vencedor em tais jogos era azeite de oliveira, porque dizem que Minerva ensinou seu cultivo, como Líber o do vinho. Acrescenta a fábula que nesse tempo, Xanto, rei dos cretenses, a quem outros dão nome diferente, raptou Europa, que concebeu e deu à luz Redamanto, Sarpedon e Minos, que vulgarmente passam por filhos de Júpiter e da citada mulher. Os adoradores dessas divindades acreditam na historicidade do que dissemos do rei de Creta e, quanto ao que os poetas cantam, os teatros aplaudem e os povos celebram de Júpiter, julgam-no pura fábula, inventada para motivo dos jogos e para com suas imaginárias velhacarias aplacarem-se as divindades. Por esses tempos corria também a fama de Hércules na Tíria, mas na realidade não se trata do famoso, de quem falamos acima. A História mais oculta conta que houve muitos pais Líber e muitos Hércules. Esse Hércules, de quem citam doze grandiosas façanhas, entre as quais não mencionam a morte do africano Anteu, proeza praticada pelo outro, contam as histórias haver morrido queimado pelas próprias mãos no Monte Eta, por não poder suportar, com o poder que lhe permitia dominar os monstros, a enfermidade de que padecia. Nesse tempo, o rei ou, melhor, o tirano Busíris imola aos deuses os próprios hóspedes. Foi filho, segundo parece, de Netuno e de Líbía, filha de Epafo; mas, para não acusar os deuses, não se creia haver Netuno cometido tal pecado; atribuam-no aos poetas e ao teatro, que assim aplacam os deuses. Dizem haverem Vulcano e Minerva sido os pais de Erictônio, rei dos atenienses, em cujos últimos anos morreu Jesus Nave. Mas, como querem que Minerva seja virgem, acrescentam que Vulcano, na refrega havida entre ambos, se excitou e derramou o sêmen na terra e por isso ao homem assim nascido se lhe impôs esse nome. Porque em grego refrega é éris, terra, khthón, e Eríctónío se compõe dessas duas palavras. E isso é necessário admitir. Os mais avisados repelem semelhante relato, afastam-no de seus deuses e explicam essa fabulosa opinião, dizendo que no templo de Vulcano e de Minerva (era o mesmo o de ambos em Atenas) se encontrou exposto um menino envolto em um dragão, o que lhe augurava grande futuro; como eram desconhecidos os pais do pequeno, consideraram-no filho de Vulcano e de Minerva, em atenção ao templo. Parece, porém, mais acertada no caso a explicação da fábula que a da História. Mas a nós que nos importa? Sirva a História de instrução aos homens religiosos e a fábula, de deleite aos impuros demônios, a quem os homens religiosos rendem culto como a deuses. Embora o neguem, não podem purificá-los de todas as faltas, porque lhes exibem os jogos a pedido deles e neles torpemente representam o que, segundo parece, com Sabedoria negam. Além disso, os deuses aplacam-se com essa falsidade e torpeza. E, se é verdade que a fábula canta crime falso dos deuses, também deleitar-se em crime falso é crime verdadeiro. CAPÍTULO XIII Ficções fabulosas no tempo dos juízes. Depois da morte de Jesus Nave, o povo de Deus foi governado pelos juízes. Nesses anos as humilhações e os trabalhos alternaram com a prosperidade e o consolo, segundo seus pecados e a misericórdia de Deus. Inventaram-se, nessa época, as fábulas sobre Triptolemo, que, por ordem de Ceres, foi transportado por serpentes aladas e, voando, levou trigo às regiões necessitadas, e sobre o Minotauro, monstro encerrado no labirinto, cuja saída, uma vez nele entrados, os homens já não encontravam, presas de inextricável erro. Inventaram-se também as fábulas dos centauros, metade cavalo, metade homem, de Cérbero, cachorro de três cabeças à entrada do inferno, e de Frixo e Hele, irmã dele, que voavam, montados em cima de um carneiro. E dessa época são também as fábulas de Górgona, que tinha serpentes ao invés de cabelos e convertia em pedra quem a olhasse, de Belerofonte, ginete de cavalo de asas chamado Pégaso, de Anfião, que atraía e abrandava as pedras com a suavidade de sua lira, do carpinteiro Dédalo e de seu filho Ícaro, que voaram com asas artificiais. É necessário acrescentar as fábulas de Édipo, que obrigou a despenhar-se por si mesmo o monstro chamado Esfinge, de rosto humano e quatro pés, porque resolveu o enigma que apresentava como insolúvel, e de Anteu, filho da Terra, morto por Hércules, porque, caindo na terra, se levantava mais forte. Talvez haja algumas outras que passei em silêncio. Essas e outras fábulas semelhantes, surgidas até à guerra de Tróia, com a qual terminou Marco Varrão o segundo livro Sobre a Origem do Povo Romano, inventou-as também o engenho humano, baseado em certas façanhas reais, não vergonhosas para os numes. Mas, quanto àqueles que imaginaram o rapto do belíssimo jovem Ganimedes, praticado por Júpiter, para cometer estupro (crime cometido pelo rei Tántalo e pela fábula atribuído a Júpiter), o concúbito de Júpiter, sob chuva de ouro, com Dánae (figura da corrupção da mulher pelo ouro) e as demais ações e ficções de então, atribuídas a Júpiter, não é possível dizer o cúmulo de males que supõem no coração de homens que toleram tais mentiras e de bom grado as aceitam. Na realidade, quanto com mais devoção rendiam culto a Júpiter, tanto mais severamente deveriam castigar quem se atrevesse a atribuir-lhe essas torpezas. E, contudo, vemos que, longe de se indignarem contra os atrevidos blasfemadores, cairá sobre eles a cólera dos deuses, se não levarem à cena essas vergonhosas ficções. Nesse mesmo tempo, Latona deu à luz Apolo, não ao dos oráculos, de quem antes falamos, mas àquele que em companhia de Hércules esteve a serviço de Admeto. Mas passou por tal deus, que quase todos o confundem com o autêntico Apolo. Então, Líber pai guerreou na Índia, acompanhado por tropa de mulheres, as bacantes, insignes não tanto pela coragem como pelo furor. Alguns escrevem que Líber foi vencido e aprisionado; outros, que Perseu o matou em combate, sem calarem o lugar de sua sepultura. E, todavia, em honra desse deusinho instituíram-se, por intervenção dos imundos demônios, as solenidades, melhor, as sacrílegas bacanais. O próprio Senado, após muitos anos, envergonhou-se tanto de sua raivosa torpeza, que proibiu celebrá-las em Roma. Depois de mortos, Perseu e sua mulher Andrômeda, que viveram nesse tempo, foram tidos por deuses de maneira tão unânime, que os homens não se envergonharam de dar a algumas estrelas o nome de ambos. CAPÍTULO XIV Os poetas teólogos. Também houve, nessa época, poetas que se diziam teólogos, por comporem versos em honra dos deuses. Compunham-nos, entretanto, a deuses que, embora grandes homens, não passaram de homens ou são elementos deste mundo, criado pelo verdadeiro Deus, ou ordenados em principados e potestades, segundo a vontade do Criador e seu próprio merecimento. E se, em sua fútil e vasta produção, se encontra algo acerca do único Deus verdadeiro e com Ele renderam culto a outros que não o são e lhes prestaram a vassalagem devida unicamente ao verdadeiro Deus, não o serviram como se deve. Além disso, Orfeu, Museu e Uno não puderam eliminar de sua obra as fábulas infamantes de seus deuses. Esses teólogos renderam culto aos deuses, mas a eles mesmos os homens não o tributam como a deuses, embora a cidade dos ímpios tenha o costume de fazer Orfeu presidir, não sei como, os sacrifícios infernais, melhor dizendo, os sacrilégios. Ino, esposa do rei Atamante, e seu filho Melicertes morreram, precipitando-se espontaneamente no mar. A opinião pública assegurou-lhes lugar entre os deuses. Foi o que aconteceu a vários homens de então, entre outros o Cástor e a Pólux. Verdade é que à mãe de Melicertes os gregos chamam Leucotéia, os latinos, Matuta, mas uns e outros a consideram deusa. CAPÍTULO XV Ocaso do reino de Argos. Pico, filho de Saturno, sucessor do pai no reino dos laurentinos. Por esse tempo chegou ao ocaso o reino de Argos, transferido a Micenas, de que Agamêmnon foi rei, e surgiu o reino dos laurentinos. Pico, filho de Saturno, foi quem primeiro empunhou as rédeas desse império, sendo Débora, juíza dos hebreus. Mas por ela também operava o Espírito de Deus, pois era profetisa. Sua profecia é pouco clara, para a gente, sem longos comentários, poder demonstrar que alude a Cristo. Então os laurentinos já reinavam na Itália. Esse povo é, depois dos gregos, a origem mais imediata de Roma. A monarquia dos assírios continuava existindo e estava no trono Lampares, seu vigésimo terceiro rei, quando Pico principiou a ser o primeiro rei dos laurentinos. Vejam o que dizem de Saturno, pai de Pico, os adoradores desses deuses, pois negam haver sido homem. Outros escreveram que reinou na Itália, antes de seu filho Pico; di-lo Vergílio em versos famosos: "Reuniu, em seguida, os homens ferozes espalhados por nossas montanhas. Deu-lhes leis e foi sua vontade que a terra em que se ocultara e que era para ele seguro asilo tivesse o nome de Lácio. Dizem que seu reino constituiu o período da idade de ouro”. Mas chamem-nas de ficções poéticas e sustente-se que o pai de Pico foi Esterces, que, bom lavrador, descobriu, segundo contam, que o excremento dos animais fertiliza os campos. Seu nome vem de stercus (excremento) e não falta quem o chame Estercúcio. Seja qual for o motivo do nome de Saturno, certo é que, ao fazerem Esterces ou Estercúcio deus da agricultura, a razão os acompanhou. No número de tais deuses também incluíram Pico, seu filho, de quem asseguram haver sido preclaro augure e bom guerreiro. Pico gerou Fauno, segundo rei dos laurentinos, que também é ou foi deus para eles. Antes da guerra de Troia, tributaram honras divinas aos homens mortos. CAPÍTULO XVI Diomedes, catalogado entre os deuses, e seus companheiros, convertidos em aves, segundo a tradição. Após a destruição de Tróia, tão cantada em toda parte e tão conhecida pelas crianças, que notavelmente se vulgarizou por sua grandeza e pelas excelentes penas dos escritores, destruição levada a cabo no reinado de Latino, filho de Fauno, que deu nome ao reino dos latinos, cessando então o reino dos laurentinos, os gregos vencedores, abandonaram Tróia, reduzida a pó, e, tornando aos lares, sofreram mil e um desastres e horríveis perdas. E, contudo, com essas e outras aumentaram o número de deuses. De Diomedes fizeram deus. Conta-se que os deuses lhe impuseram terrível castigo e não retomou à pátria. Seus companheiros foram convertidos em aves e isso não confirmam com fábulas e poesia, mas de História em punho. A tais aves, acreditam eles, nem mesmo Díomedes, uma vez feito deus, pôde devolver a forma humana, nem obter de Júpiter, seu rei, semelhante graça, como noviço nesse empíreo. Mais ainda, dizem que seu templo se acha na ilha Diornedéia, não longe do Monte Gárgano, na Apúlia, e as referidas aves, moradoras do lugar, andam rondando o templo, obsequiando-o de maneira tão admirável, que enchem de água o bico e depois o espargem. E acrescentam que, se gregos ou indivíduos de origem grega se aproximam do local, não apenas aquietam, mas até mesmo os acariciam; pelo contrário, se se aproximam estrangeiros, lhes voam em redor da cabeça e os bicam até matá-los, às vezes. Acrescentam que para tais casos estão armadas de bicos grandes e duros. CAPÍTULO XVII Pensamento de Varrão acerca das metamorfoses humanas. Em confirmação desse fato cita Varrão outros casos não menos incríveis da muito famosa maga Círce, que transformou em porcos os companheiros de Ulisses. Também cita os árcades, que, nas asas da sorte, passavam a nado certo pântano, onde se convertiam em lobos, e viviam com outras feras parecidas nos bosques da região. E acrescenta que, se se abstinham de carne humana, ao cabo de nove anos tornavam a passar o pântano e a mudar-se em homens. Finalmente, cita pelo nome certo Demeneto, que, havendo saboreado o sacrifício de uma criança, que os árcades costumavam fazer a seu deus Liceu, se transformou em lobo e, aos dez anos, voltando a ser homem, se exercitou no pugilato, de que se sagrou campeão no certame olímpico. Julga o referido historiador que o motivo de na Arcádia dar-se a Pã e a Júpiter o nome de Liceu é esse de transformar homens em lobos, coisa que, segundo ele, exige poder divino. Porque em grego lobo é Iykos e daí parece derivar o nome Liceu. Acrescenta que os lupercos de Roma são, por assim dizer, os descendentes de tais mistérios. CAPÍTULO XVIII O que merece fé nas metamorfoses humanas devidas aos demônios? 1. Mas talvez os leitores esperem minha opinião acerca de tamanho engano dos demônios. E que direi? Pois direi que é preciso fugir de dentro de Babilônia. Esse preceito profético tem sentido espiritual muito profundo. E é que se torna preciso fugir da cidade deste mundo, que é a sociedade dos anjos e dos homens ímpios, e encaminhar-se para Deus pelos passos da fé, que age pelo amor. Quanto maior vemos ser o poder dos demônios nestas baixezas, tanto maior a força com que devemos aderir ao Mediador, por quem subiremos das baixezas ao topo da montanha. Com efeito, se disséssemos que não se deve dar crédito a tais fenômenos, ainda hoje não faltaria quem garantisse haver ouvido ou visto coisas semelhantes. Ouvi, na Itália, em mais de uma ocasião, que em certas regiões, segundo se falava, as estalajadeiras, iniciadas nas artes sacrílegas, costumavam dar aos viajantes, escondido no queijo, algo que no mesmo instante os transformava em burros de carga, para transportar-lhes a bagagem, e, isso feito, os devolvia à forma anterior. A metamorfose, todavia, não lhes trocava a razão em bestial, mas conservava-a racional e humana, como no caso real ou imaginário contado por Apuleio em O Asno de Ouro. Refere que certa vez tomou a beberagem, que o converteu em asno, mas conservou-lhe humana a razão. 2. Isso tudo é tão falso ou, pelo menos, tão raro, que há motivo mais do que suficiente para não dar-lhe crédito. Mas é preciso crer com fé sincera que Deus onipotente pôde fazer tudo quanto queira, quer castigando, quer premiando. E, além disso, que os demônios não agem segundo o poder de sua natureza (pois também ela é criatura angélica, embora sua malícia proceda de seu próprio vício), mas segundo a permissão de Deus, cujos juízos são ocultos, mas nunca injustos. Outra verdade incontrovertível é que os demônios, quando operam fenômenos como os que referimos, não criam natureza alguma, mas, no máximo, mudam a espécie das coisas criadas pelo verdadeiro Deus, com o fim de parecerem o que não são. Assim, pois, não há razão alguma que me leve algum dia a crer que o poder ou a arte dos demônios possa realmente dar forma irracional ao corpo e, muito menos, à alma do homem. Admito que, de modo que não sei explicar, possa alguma forma corpórea chegar à percepção sensível de alguém, porque, na imaginação ou em sonho, a fantasia humana se diversifica em mil e uma coisas e, embora incorpórea, é capaz de revestir-se de formas parecidas com os corpos, quando os sentidos do homem estão adormecidos ou em estado de letargia. Tanto é assim, que às vezes os corpos humanos estão estendidos em alguma parte, vivos, é certo, mas em esvaecimento mais profundo que o do sono. Assim, pôde suceder que aos sentidos de outro a fantasia apareça corporizada em imagem de animal e esse outro a julgue real, como em sonho lhe acontece transportar carga. E, se essa carga é verdadeiro corpo, puxam-na os demônios, para engano dos homens, que veem, em parte, corpos verdadeiros, os da carga, e, em parte, falsos, os dos burros de carga. Certo Prestâncio contava que o pai, havendo tomado tal beberagem, ficou como que adormecido no leito, sem poder despertar. Alguns dias depois, acordou como que de prolongado sonho e contou que, transformado em cavalo, levara aos soldados, com outros animais de carga, desses alimentos chamados retica, porque envoltos em redes. Comprovou-se, mais tarde, que sucedera tal como contou. Porém, Prestâncio sempre o considerou mero sonho. Outro referia que determinada noite, antes de recolher-se, viu certo filósofo muito conhecido seu chegar-lhe em casa e explicar-lhe doutrinas platônicas que antes, a seu pedido, não quisera expor-lhe. E, como perguntasse ao filósofo por que fazia agora o que se negara a fazer na própria casa, replicou-lhe: "Não fiz, mas sonhei que fizera." E, assim, um viu, acordado, por meio de imagem fantástica, o que o outro viu em sonho. 3. Tais fatos não me chegaram ao conhecimento através de pessoas desacreditadas, mas de testemunhas que acho muito merecedoras de fé. Se o caso das metamorfoses dos homens em lobos, devidas aos deuses ou aos demônios e consignadas nos escritos, como a dos árcades, e o de que "os sortilégios de Circe transformaram os companheiros de Ulisses" é real, creio ser factível do modo por mim proposto. Quanto às aves de Diomedes, como dizem que a raça delas continua, acho que, ao invés de os homens haverem sido metamorfoseados, as aves é que foram postas em seu lugar, como a cerva em lugar de Ifigênia, filha do rei Agamêmnon. Porque é fácil para os demônios, se Deus o permite, operar semelhante classe de prodígios. Como, porém, depois do sacrifício, a mocinha foi encontrada viva, tornou-se fácil concluir haver posto em seu lugar a cerva. Por outro lado, os companheiros de Diomedes, como desapareceram de súbito e não reapareceram, vítimas dos anjos maus, ministros da cólera divina, a gente acreditou-os transformados nas aves que, secretamente trazidas dos lugares habitados pela espécie, os teriam no mesmo instante substituído. Que levem água no bico ao templo de Diomedes e o borrifem, que acariciem os gregos e persigam os estrangeiros, não é de maravilhar o façam por inspiração dos demônios. A eles precisamente lhes interessa firmar nos corações a crença de haver Diomedes sido feito Deus, para engano dos homens, a fim de renderem culto a muitos deuses falsos, com injúria ao verdadeiro Deus, e servirem homens mortos que nem mesmo em vida viveram como deviam, com templos, altares, sacrifícios e sacerdotes, coisas todas que, quando retas, são devidas unicamente a Deus, verdadeiro e vivo. CAPÍTULO XIX Enétas arribou à Itália, quando Abdon era juiz dos hebreus. Após a destruição de Troia, Enéias arribou à Itália com vinte navios, portadores dos despojos troianos. Então, Latino reinava na Itália, Menesteu em Atenas, Polifides na Siciônia e Tautanes na Assíria; Abdon era juiz dos hebreus. Morto Latino, Enéias reinou por três anos, continuando nos respectivos tronos os reis citados, exceção feita da Siciônia, cujo rei já era Pelasgo, e dos hebreus, de quem já era juiz Sansão, cuja maravilhosa força o fez passar por Hércules. Os latinos converteram Enéias em Deus porque, morto, desapareceu. Os sabinos, por sua vez, elevaram à categoria de deus seu primeiro rei, Sanco, ou, como alguns lhe chamam, Sancto. Nessa mesma época, Codro, rei de Atenas, apresentou-se incógnito aos do Peloponeso, inimigos da cidade, para ser assassinado. Assim fizeram. Contam haver, desse modo, libertado a pátria, porque o oráculo dissera aos do Peloponeso que sairiam vencedores, se não matassem o rei dos atenienses. Mas enganou-os, apresentando-se em traje de mendigo, e graças à briga em que se meteu, provocou a própria morte. É a isso que Vergílio alude, quando fala nas brigas de Codro. Os atenienses renderam-lhe honras divinas, com sacrifícios e tudo. Era quarto rei dos latinos Sílvio, filho de Enéias, não de Creusa, de quem nasceu Ascânio, terceiro rei desse povo, mas de Lavínia, filha de Latino, filho póstumo, segundo parece, de Enéias, vigésimo nono rei dos assírios Oneu, décimo sexto dos atenienses Melanto e juiz dos hebreus Eli, quando ruiu o reino dos siciônios, que contava novecentos e cinquenta e nove anos. CAPÍTULO XX A sucessão dos reis de Israel, depois dos juízes. Estavam no trono os citados reis, quando, já abolido o governo dos juízes, começou a monarquia em Israel, de que Saul foi o primeiro rei. O profeta Samuel é desse tempo. Sobre os latinos começavam a reinar então os silvanos, nome herdado de Sílvio, primogênito de Enéias, e sempre acrescentado ao nome próprio, como mais tarde se chamaram Césares os sucessores de César Augusto. A Saul, rejeitado após quarenta anos de reinado, para que sua linhagem não mais reinasse, Davi sucedeu no trono. Foi então que em Atenas, quando da morte de Cedro, cessou a monarquia e os magistrados começaram a governar a república. Depois de Davi, rei por espaço de quarenta anos, subiu ao trono Salomão, construtor do majestoso templo de Jerusalém, dedicado a Deus. Em seu tempo os latinos fundaram Alba e desde então os reis do Lácio já não se diziam reis dos latinos, mas dos albanos. A Salomão sucedeu seu filho Roboão, sob quem o povo se dividiu em dois reinos, cada um deles com seu próprio rei. CAPÍTULO XXI Reis do Lácio. Enéias e Aventino, deuses. O Lácio teve onze reis depois de Enéias e a nenhum deles concedeu honras divinas. Aventino, duodécimo rei após Enéias, havendo sido morto em combate e sepultado no monte que tem seu nome, foi acrescentado ao número desses deuses feitos pelos latinos. Deve-se notar que alguns não querem escrever que o mataram em combate, mas dizem que não mais apareceu e, além disso, acrescentam que o nome do monte não veio de seu nome; chamou-se Aventino porque as aves iam pousar nele. Depois de Aventino, só de Rômulo, fundador de Roma, o Lácio fez Deus. Entre este e aquele há dois outros reis. O primeiro é Procas, honra da nação troiana, na frase de Vergílio. Em seu tempo, enquanto Roma já ia saindo da infância, o reino dos assírios, o maior de todos, quanto à duração, chegou ao fim e eclipsou-se. Passou aos medos, depois de quase mil e trezentos e cinco anos, contando Belo, pai de Nino, que foi o primeiro a reinar, contente com a pequenez do reino. Procas precedeu Amúlio no reino. Amúlio fez vestal a Réia, também chamada Ilia, filha de seu irmão Numitor e mãe de Rômulo. Dizem haver concebido de Marte dois gêmeos e honram ou escusam o pecado, fingindo que uma loba alimentou os meninos expostos. Essa espécie de animal, segundo eles, está consagrada a Marte e, nesse caso, parecia que a loba, ao reconhecer os filhos de Marte, os amamentasse. Mas não falta quem afirme que, vendo os gêmeos chorando, certa mulher: pública os recolheu e foi quem primeiro lhes deu de mamar (pois a essa classe de mulheres se dava o nome de lobas e, por isso, os lugares torpes agora se chamam lupanares); depois, os meninos chegaram às mãos do pastor Fáustulo, cuja esposa, Aca, os alimentou. Que teria de estranho, todavia, que uma fera alimentasse de maneira providencial os meninos, que haviam de fundar tão grandiosa cidade, para ferretear a crueldade do rei, que mandara lançá-los à água, de que se viram maravilhosamente salvos? A Amúlio sucedeu no reino do Láclo seu irmão Numítor, avô de Rômulo, E Roma foi fundada no primeiro ano do reinado de Numitor. Reinou, portanto, conjuntamente com seu neto Rômulo. CAPÍTULO XXII A fundação de Roma coincidiu com o fenecimento do reino dos assírios e com o reinado de Ezequlas em Judá. Para abreviar o mais possível, direi que Roma foi fundada como outra Babilônia, como filha da primeira, e que aprouve a Deus servir-se dela para humilhar o universo todo e pacificá-lo, reduzindo-o à unidade da mesma república com as mesmas leis. Já existiam povos poderosos e aguerridos e nações destras nas armas, que não era fácil submeter e era necessário vencer com muitos perigos, muito sangue e horrível morticínio. Quando a Assíria subjugou quase toda a Ásia, embora por meio das armas, a guerra não necessitava ser cruel e sangrenta, porque as nações ainda eram poucas, rudes e muito reduzidas. O motivo é claro, pois desde o dilúvio universal, de que escaparam apenas oito homens na arca de Noé, haviam passado pouco mais de mil anos, quando Nino subjugou toda a Ásia, exceto a Índia. Roma, por sua vez, não dominou todas essas nações do Oriente e do Ocidente que agora lhe vemos submetidas ao império com tamanha facilidade e presteza, porque, ao expandir-se, se chocou com potências belicosas e fortes; Quando da fundação de Roma, o povo hebreu já se encontrava há setecentos e dez anos na terra prometida. Desses, Jesus Nave governou vinte e sete, os juízes, trezentos e vinte e nove, os reis, trezentos e sessenta e dois. Rei de Judá era então Acaz ou, segundo outro cômputo, seu sucessor, Ezequias, rei excelente em virtude e em piedade, que reinou (e isso consta) no tempo de Rômulo. No outro reino hebreu, em Israel, Oséias já começara a reinar. CAPÍTULO XXIII A sibila Eritréia e suas profecias sobre Cristo. Alguns creem que nessa época vaticinou a sibila Eritreia. Varrão pretende ter havido muitas sibilas, não apenas uma. E fato haver a sibila Eritréia escrito algumas coisas claras acerca de Cristo. Eu mesmo tive o gosto de ler alguns versos, em mau latim e rima ainda pior, devidos a tradutor desconhecido, segundo pude comprovar mais tarde. O exímio pro cônsul Flaciano, homem de palavra fácil e de muito saber, falando comigo certo dia a respeito de Cristo, mostrou-me um códice grego e disse-me tratar-se dos carmes da sibila Eritréia. E fez-me notar que em determinada passagem as letras iniciais dos versos compunham, por ordem, as seguintes palavras: Iesoús Khreistós Theoú Hyiós Sotér, quer dizer, Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador.• Eis o sentido de tais versos, segundo outra tradução latina, mais acertada e mais bem rimada: A Terra cobrir-se-á de suor frio. Será o sinal do juízo. O Rei imortal dos séculos baixará do céu e apresentar-se-á em carne para julgar a terra. E, quando o mundo decline para seu ocaso, o fiel e o infiel verão Deus, acompanhado de seus santos. As almas apresentar-se-ão ao juiz com os respectivos corpos e na terra já não haverá beleza nem verdura. Os homens deixarão os ídolos e as riquezas. O fogo abrasará as terras e, ganhando céu e mar, quebrará as portas do sombrio Averno. Já libertos da carne, os corpos dos santos gozarão da luz e os pecadores serão abrasados por eterna chama. Então, revelando seus atos ocultos, cada qual descobrirá os próprios segredos e Deus fará luz nos corações. Tudo então será choro e ranger de dentes. O Sol escurecerá e o coro dos astros perderá o tom. Girará o céu e a Lua apagar-se-á como lâmpada; abater-se-ão as colinas, altear-se-ão os vales e nas coisas humanas não haverá culminâncias nem alturas. Os montes nivelarão com os campos e o mar será inavegável. A Terra far-se-á em pedaços, as fontes e os rios serão torrados ao fogo. Mas no alto soará então o triste som da trombeta e tudo se cobrirá de gritos e de pranto. Abrir-se-á a Terra e deixará ver seu profundo e caótico abismo. Perante o tribunal do Senhor comparecerão os reis e os céus verterão torrentes de fogo e de enxofre. Nesses versos latinos, traduzidos de qualquer maneira do grego, não foi possível dar com o sentido que em grego resulta da união das letras iniciais do verso, em especial quanto ao Y, porque em latim não há palavras começadas por essa letra, para formação de frase completa. Isso, porém, acontece em três versos apenas: no quinto, no décimo oitavo e no décimo nono. Com efeito, se não lemos as letras que servem de laço de união na inicial desses três versos, recordando estar em seu lugar o Y, a frase fica expressa em seis palavras: "Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador". Assim, quando se diz em grego, não em latim. São, pois, vinte e sete versos, número que é três elevado ao cubo, porque três vezes três são nove e três vezes nove, para a figura ter largura igual à altura, vinte e sete. Se unimos as primeiras letras das cinco palavras gregas: Iesoús Khreistós Theoú Hyiós Sotér, que querem dizer: "Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador", fica Ikhthys, que significa Peixe. Esse nome místico simboliza Cristo, porque apenas Ele foi capaz de viver vivo, quer dizer, sem pecado, no abismo de nossa mortalidade, semelhante às profundezas do mar. 2. Além disso, o referido poema da sibila Eritréia ou, como outros preferem, Cuméía, em sua composição não contém nada que favoreça o culto aos deuses falsos; ao contrário, tão acremente fala contra eles e seus adoradores, que me parece poder ser enumerada entre os pertencentes à Cidade de Deus. Lactâncio também insere em suas obras alguns vaticínios sobre Cristo; são de sibila, porém, não diz de qual. Julguei mais acertado reunir, como se fora um só, os testemunhos dispersos em sua obra e dá-los em comprimidos. Virá, diz a sibila, às mãos iníquas dos infiéis, darão, com as mãos sacrílegas, bofetadas em Deus e com a boca impura cuspir-lhe-ão no rosto. E Ele entregará aos golpes, sem resistência, as costas inocentes. Ao ser esbofeteado, silenciará, a fim de ninguém saber que ele é o Verbo ou donde vem, para falar aos infernos e ser coroado de espinhos. Deram-lhe fel para comer e, contra a sede, vinagre. Será essa a única hospitalidade que lhe oferecerão. E tu, néscia, não reconheceste teu Deus sob o disfarce com que se apresentou aos mortais, mas coroaste-o de espinhos e deste-lhe a beber amargo fel. Rasgar-se-á o véu do templo e ao meio-dia escura noite cobrirá a terra inteira durante três horas. Morrerá, é certo, dormirá três dias e então, surgindo do sepulcro, volverá à luz. E mostrará aos eleitos as primícias da ressurreição. Lactâncio citou esses testemunhos das sibilas, tomados daqui e dali, em diversos lugares de sua obra, segundo o plano dela exigia. Sem interpolar coisa alguma, limitando-me a reduzi-los a unidade, procurei fazer que se distingam pelas letras iniciais, se é que os escritores futuros não se descuidarão de conservá-los. Asseguram alguns autores não haver a sibila Eritréia existido no tempo de Rômulo, mas durante a guerra de Tróia. CAPÍTULO XXIV Os sete sábios da Grécia e o cativeiro das dez tribos de Israel no reinado de Rômulo, que, depois de morto, recebeu honras divinas. Sob o reinado de Rômulo viveu Tales de Mileto, um dos sete sábios, Sophoi em grego, sucessores dos poetas teólogos, entre quem sobressaiu Orfeu. Nessa mesma época, os caldeus conquistaram as dez tribos, que na divisão se chamaram Israel e levaram-nas, cativas, para sua terra. As duas tribos de Judá ficaram na Judéia e tinham em Jerusalém a capital do reino. Havendo desaparecido Rômulo, coisa muito conhecida do vulgo, os romanos alistaram-no no número dos deuses. Semelhante prática já caíra em desuso e no tempo dos césares só se fazia por adulação. Cícero estriba-se nisso para grandes elogios tributar a Rômulo, por tais honras haver merecido em época bem civilizada e de luzes, não em época de ignorância e rudeza, em que era fácil enganar os homens. Mas é de notar-se que ainda não se revelara a sutil e engenhosa loquacidade dos filósofos. Mas, se é verdade não haverem, nas épocas seguintes, transformado em deuses os homens mortos, também o é não haverem deixado de considerar deuses (e de render-lhas culto) os criados por seus maiores. E, o que é mais, aumentaram, construindo ídolos (coisa desconhecida pelos antigos), o incentivo da louca e sacrílega superstição. Iam-no operando-lhas no coração os imundos demônios, enganando-os com mentirosos oráculos, para torpemente representarem nos jogos as fabulosas torpezas dos deuses já desterradas nesses séculos de luzes, em honra das falsas divindades. A Rômulo sucedeu Numa, que povoou Roma de deuses, falsos por certo, para custodiá-la, e, depois de morto, não mereceu ser agregado a semelhante multidão, como se a multidão de deuses por ele criada já houvesse lotado o céu, onde já não houvesse lugar para ele. Contam que Manasses, rei ímpio, que deu morte ao profeta Isaías, segundo alguns, reinava sobre os judeus, quando viveu a sibila de Samos. CAPÍTULO XXV Que filósofos brilharam durante o reinado de Tarquínio Prisco entre os romanos e de Sedecias entre os Judeus, ao tempo da tomada de Jerusalém e da ruína do templo? Reinando entre os judeus Sedecias e entre os romanos Tarquínio Prisco, sucessor de Anco Márcio, o povo judeu foi levado, cativo, para Babilônia. Jerusalém foi destruída; o templo construído por Salomão, derrocado. Ao repreenderem-lhes as impiedades e maldades, os profetas predisseram-lhes tal acontecimento, em especial Jeremias, que chegou a determinar o número de anos. Nessa época viveu Pítaco de Mitilene, outro dos sete sábios. Segundo Eusébio, os outros cinco, que com Tales e Pítaco completam o número, viveram também por essa época, em que o povo de Deus estava cativo em Babilônia. Eis seus nomes: Sólon de Atenas, Quílon de Lacedemônia, Períandro de Corinto, Cleóbulo de Lindos e Bías de Priene. Floresceram depois dos poetas teólogos e foram chamados sábios porque se avantajaram aos demais homens em vida louvável e deram resumidos alguns preceitos morais. No tocante às letras, não legaram à posteridade obra alguma, salvo as leis, que, segundo dizem, deu Sólon aos atenienses. Tales foi físico e compôs alguns livros que lhe contêm a doutrina. Nessa mesma época do cativeiro judeu, floresceram físicos como Anaximandro, Anaxímenes e Xenófanes. Então brilhava também Pitágoras, a partir de quem começaram a chamar-se filósofos. CAPÍTULO XXVI Contemporaneidade da libertação Judia e romana. Nesse tempo, Ciro, rei dos persas e imperador também dos assírios e caldeus, afrouxando um pouco o cativeiro dos judeus, deixou livres cinquenta mil homens, para irem reedificar o templo. Limitaram-se a fazer-lhe os alicerces e a edificar um altar, porque uma invasão inimiga impediu de continuarem, diferindo-se a obra até o reinado de Dario. Durante esses anos aconteceram as façanhas descritas no livro de Judite, que os judeus não admitiram no cânon. Concluídos, sob o reinado de Dario, os setenta anos preditos pelo profeta Jeremias, devolveu-se a liberdade aos judeus, reinando sobre os romanos Tarquínio, seu sétimo rei. Este foi desterrado e então os romanos se eximiram do domínio de seus reis. Até essa época, Israel sempre teve profetas. Houve muitos; contudo, tanto entre os judeus como entre nós, consideram-se canônicos os livros de uns poucos. No fim do livro anterior prometi citar alguns neste; creio chegada a hora de fazê-lo. CAPÍTULO XXVII Os profetas e suas profecias. Para termos ideia de tal época, retrocedamos alguns anos. Principia assim o livro de Oséias, o primeiro dos doze profetas menores: Palavras do Senhor ditas a Oséias no tempo de Ozias, de Joatão, de Acaz e de Ezequias, reis de Judá. Amós escreve também que profetizou no tempo do rei azias. E acrescenta, além disso, Jeroboão, rei de Israel, que viveu nesse tempo. Isaías, filho de Amós, quer do profeta citado, quer de outro Amós não profeta, o que é mais provável, começa seu livro com esses quatro reis citados por Oséias e diz haver profetizado no tempo deles. Miquéias marca como tempo de sua profecia época posterior a azias e nomeia três dos reis mencionados por Oséias: Joatão, Acaz e Ezequias, que, segundo se deduz de seus escritos, profetizaram contemporaneamente. E necessário acrescentar-lhes Jonas e Joel; o primeiro profetizou sob azias; o segundo, sob Joatão, sucessor de Oséias. Os dois últimos dados, porém, deduzimo-los das crônicas, pois em suas obras calam a data. Essa época abarca o período que vai de Procas, rei dos latinos, e Aventino, seu sucessor, a Rômulo, já rei dos romanos, ou melhor, ao princípio do reinado de seu sucessor Numa Pompílio, pois o reinado de Ezequias, rei de Judá, se prolongou até esse tempo. E nesse espaço brotaram essas fontes proféticas. Era o fim do Império assírio e o princípio do romano. Isso quer dizer que, como ao nascimento do Império assírio assistiu Abraão, a quem se fizeram as mais claras promessas de bênção de todas as nações da terra em sua descendência, assim agora, ao nascer a Babilônia do Ocidente, em cujo império encarnaria Cristo, cumprindo-se nele as profecias orais e escritas, as promessas deviam ser renovadas aos profetas. Até então Israel quase sempre teve profetas, mas, a partir do começo da monarquia, mais para uso próprio que dos gentios. A época em que a escritura profética se impunha com clareza para proveito dos gentios foi precisamente essa, da fundação da cidade que seria a senhora e dona das nações. E assim foi. CAPÍTULO XXVIII Profecias de Oséias e de Amós em sua relação com o Evangelho. Tamanha a profundeza das palavras do profeta Oséias, que se torna custoso demais sondá-las. Mas promessa é dívida. E sucederá, escreve, que no lugar em que se lhes disse: Não sois meu povo, serão chamados filhos do Deus vivo. Refere-se o texto à vocação dos gentios, que antes não pertenciam a Deus. Os próprios Apóstolos assim o entendem. Como os gentios também são, espiritualmente, filhos de Abraão e por isso com razão se lhes chama Israel, o profeta acrescenta: E os filhos de Israel virão a formar uma unidade, escolherão para si um só chefe e elevar-se-ão sobre a terra. Querer explicá-lo seria desvirtuar as palavras do profeta. Recordem-se apenas a pedra angular e as duas paredes, uma composta dos judeus e a outra, dos gentios, aquela, sob o nome de filhos de Judá, esta, sob o de filhos de Israel, apoiando-se ambas no mesmo chefe e elevando-se sobre a terra. O mesmo profeta dá testemunho de que os israelitas carnais que agora não querem crer em Cristo nele crerão algum dia, não eles, pois passarão com a morte, mas os filhos, quando diz: Os filhos de Israel estarão muito tempo sem rei, sem chefe, sem sacrifício, sem altar, sem sacerdócio e sem profecias. Quem não vê ser esse o atual estado dos judeus? Mas ouçamos o que acrescenta: E depois, tornarão os filhos de Israel e buscarão o Senhor seu Deus e seu rei Davi e se maravilharão do Senhor e de seus bens nos últimos tempos. Não há nada mais claro que tal profecia, em que o rei Davi está simbolizando Cristo, que, como diz o Apóstolo, nasceu, segundo a carne, da linhagem de Davi. O mesmo profeta predisse a ressurreição de Cristo no terceiro dia, mas com profundeza misteriosa, profética, na passagem em que diz: Revigorou-nos depois de dois dias e no terceiro ressuscitaremos. Nesse sentido aqui fala o Apóstolo: Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas do alto. Amós profetiza esses mistérios nos seguintes termos: Prepara-te, Israel, para invocar teu Deus. Eis que sou aquele que forma os trovões, cria os ventos e aos homens anuncia seu Cristo. E noutra passagem: Nesse dia restaurarei o tabernáculo de Davi, que está por terra, restabelecerei o igualado com a terra, refarei o destruído e reedificá-lo-ei como em tempos passados. De sorte que me busquem o resto dos homens e todas as nações em que se invocou meu nome, diz o Senhor, autor de tais maravilhas. CAPÍTULO XXIX Predições de Isaías sobre Cristo e a Igreja. 1. Isaías não é do número dos doze profetas chamados menores, porque suas profecias são breves, comparadas com as dos chamados maiores, que compuseram extensos volumes. Isaías pertence a esses últimos, mas, para observar a ordem cronológica, ponho-o com os dois anteriores. Esse profeta, entre as repreensões e as instruções que dá e as ameaças futuras que intima ao povo pecador, profetizou sobre Cristo e sobre a Igreja, quer dizer, sobre o Rei e sobre a Cidade por Ele fundada, muito mais coisas que os outros. Tanto assim, que alguns o dizem mais evangelista que profeta. Por amor à brevidade, limitar-me-ei a citar um texto apenas. Falando pela pessoa de Deus Pai, diz: Sabei que meu servo será sábio e será cumulado de honra e de glória. Como será o assombro para muitos, assim sua beleza e sua glória serão desfiguradas e desonradas pelos homens. Será objeto de admiração para muitas nações e os reis escutarão em silêncio, porque aqueles a quem dele nada se anunciara o verão e os que não haviam ouvido falar dele saberão quem é. Quem acreditou, Senhor, em nossa palavra? E a quem se revelou o braço do Senhor? Diante dele, balbuciamos como criança e nossa língua será raiz em terra árida. Nele já não há glória nem beleza. Vimo-lo e está falto de atrativo; sua beleza está desfigurada e é o mais deforme dos homens. E homem todo chagado e às enfermidades feito. Seu rosto está desfigurado e afrontado, sem que ninguém lhe dê apreço. Tomou sobre si nossos pecados, padece por nós e críamos que suas dores, suas chagas e suas aflições eram próprias, quando, na realidade, chagado por causa de nossas iniquidades e quebrantado por nossos pecados. O castigo, causa de nossa paz, descarregou sobre Ele e suas contusões curaram-nos. Fomos todos como ovelhas desgarradas, seguindo cada qual a senda de seu erro, e o Senhor entregou-o por nossos pecados. E Ele, assim castigado, não abriu a boca. Como ovelha, foi levado ao sacrifício e, como cordeiro, ao tosquiador, sem mostrar tenção de falar, assim com a boca fechada. A ignomínia de seu julgamento foi o pedestal de sua glória. Quem poderá explicar-lhe a geração? Tirar-lhe-ão a vida e pelos pecados de meu povo dar-lhe-ão morte. Sua sepultura custará a vida aos pecadores e os ricos tirarão vingança de sua morte, pois não fez maldade alguma e nem houve engano em sua boca. Mas o Senhor quis limpar-lhe a chaga. Se derdes a vida pelo pecado, vereis numerosa descendência. Quer o Senhor livrar-lhe a alma da dor, mostrar-lhe a luz, cumulá-lo de Sabedoria e justificar o justo sacrificado por muitos. Ele carregar-lhes-á os pecados. Assim, adquirirá domínio sobre muitos e repartirá os despojos dos poderosos. Para esse fim sua alma foi entregue à morte e Ele foi contado no número dos pecadores. Levou sobre os ombros os pecados de muitos e por seus pecados foi entregue à morte. Isso, quanto a Cristo. 2. Ouçamos o que acrescenta, a respeito da Igreja. Diz assim: Alegra-te, estéril, tu que não pares; rompe em palavras de contentamento e de júbilo, tu que não dás à luz, porque os filhos da abandonada já são muito mais do que os da que tem marido. Estende o lugar de tua morada e de teus redis e firma bem teus fundamentos. Não deixes de fazê-lo; estende teus cordéis e finca bem tuas estacas. Estende-te mais à direita e à esquerda e tua descendência herdará as nações e povoarás as cidades desertas. Não temas pelas censuras que te façam nem te envergonhes, porque foste difamada, pois esquecerás tua confusão eterna e não mais recordarás o opróbrio de tua viuvez. Quem te faz semelhante mercê é o Senhor, cujo nome é o Senhor dos exércitos, e quem livra se chama Deus de Israel e de toda a terra etc. Bastem esses testemunhos, embora alguns pontos requeiram explicação. Tenho para mim serem suficientes textos tão claros para obrigar os inimigos a entendê-los, mesmo contra a vontade. CAPÍTULO XXX Profecias de Miquéias, Jonas e Joel. 1. Falando de Cristo, sob a imagem de alto monte, diz assim o profeta Miquéias: Nos últimos tempos, o homem de Deus aparecerá elevado sobre o cimo dos montes e levantar-se-á sobre as colinas. E ali irão a toda pressa as nações e os povos e dirão: Vinde, subamos ao monte do Senhor e à casa de Jacó, e ensinar-nos-á seu caminho e caminharemos por suas sendas, porque a lei sairá de Sião e a palavra do Senhor, de Jerusalém. Ele julgará muitos povos e por muito tempo sujeitará as nações poderosas. Do lugar em que Cristo nasceu diz o mesmo profeta: E tu, Belém, casa de Éfrata, és a menor, para seres contada entre as demais de Judá. De ti sairá quem há de ser chefe de Israel e foi engendrado desde o princípio e desde toda a eternidade. Por isso Deus abandonará os seus até o tempo em que dê à luz a que está de parto e o resto de seus irmãos reunir-se-á com os filhos de Israel. Deter-se-á, contemplará e apascentará sua grei com a autoridade e o poder recebido do Senhor e ao Senhor, seu Deus, renderão honra, porque agora Ele é glorificado até os confins da terra. 2. O profeta Jonas anunciou Cristo não tanto por palavras quanto por essa espécie de paixão que sofreu e é mais eloquente e clara que o foram suas palavras sobre a morte e a ressurreição do Salvador. Com efeito, por que foi ingerido no ventre da baleia e arrojado no terceiro dia, senão para significar que Cristo sairia do sepulcro no terceiro dia? 3. As profecias de Joel requerem ampla explicação, para esclarecer as relativas a Cristo e à Igreja. Não omitirei, contudo, uma delas, lembrada também pelos Apóstolos, quando, reunidos os fiéis, sobre eles desceu o Espírito Santo, que Cristo lhes prometera. Depois disso, diz, derramarei meu espírito sobre toda classe de homens. Vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos anciãos terão sonhos e vossos moços, visões. E nesses dias também sobre meus servos e servas derramarei meu espírito. CAPÍTULO XXXI A salvação do mundo por Cristo, predita por Abdias, Naum e Habacuc. 1. Três dos profetas menores, Abdias, Naurn e Habacuc, não nos dão as datas de suas profecias nem as encontramos nas crônicas de Eusébio e de Jerônimo. Verdade é que juntam Abdias com Miquéias, não, porém, na passagem em que dão a data em que, segundo seus próprios escritos, Miquéias profetizou. Acho, todavia, que isso se deve a erro do copista, descuidado em especial quando se trata dos trabalhos alheios. Os outros não os encontrei nos códices das crônicas que consultei. Mas, já que estão admitidos no cânon, é preciso acolhê-las também aqui. Os escritos de Abdias são os mais curtos de todos os profetas e neles fala contra a Iduméia, quer dizer, contra a nação de Esaú, o Rejeitado, o maior dos dois filhos de Isaac e neto de Abraão. Pois bem, se por Iduméia entendemos os gentios, tomando a parte pelo todo, podemos muito bem aplicar a Cristo, entre outras coisas, isto: A santidade e a salvação estarão sobre o monte de Sião. E pouco depois, no fim da profecia: E os redimidos do monte de Sião surgirão para defender o monte de Esaú e reinará o Senhor. É evidente que isso se cumpriu quando os redimidos do monte de Sião, quer dizer, os filhos da Judéia, os que creem em Cristo e, sobretudo, os Apóstolos, surgiram para defender o monte de Esaú. Como o defenderiam, senão pela pregação do Evangelho, salvando os que creram e arrancando-os do poder das trevas, para transferi-las para o reino de Deus? Essa ideia expressou-a, quando acrescentou: E reinará o Senhor. O monte de Sião significa a Judéia, onde, segundo a profecia, estarão a santidade e a salvação, a saber, Jesus Cristo. O monte de Esaú é a Iduméia, figura da Igreja dos gentios, que, como expus, os redimidos do monte de Sião defenderam, para reinar o Senhor. Isso, antes de cumprir-se, era obscuro; mas, cumprido, que fiel o não compreende? 2. O profeta Naum, melhor diríamos, Deus pelo profeta, diz: Quebrarei os ídolos talhados e fundidos e pô-los-ei em sepultura, porque eis sobre os montes os pés ligeiros do que vem evangelizar e anunciar a paz. Soleniza tuas festividades e cumpre teus votos, que já se não aproximarão mais de ti, para que envelheças. Tudo está consumido, cumprido e arruinado. Já sobe quem sopra em teu rosto e te livra da atribulação. Quem subiu dos infernos e soprou o Espírito Santo no rosto de Judá, quer dizer, dos judeus, seus discípulos, lembre-o quem haja lido o Evangelho. Aqueles cujas festividades se renovam de tal modo que já não envelhecem pertencem ao Novo Testamento. Agora já vemos por terra os ídolos talhados e de fundição, quer dizer, os ídolos de deuses falsos, e como que sepultados no esquecimento. Sabemos, além disso, haver-se tal profecia cumprido também nesse ponto. 3. Quanto a Habacuc, de que outra vinda fala senão da de Cristo, quando diz: O Senhor respondeu-me: Escreve claramente a visão em tabuinhas para entende-la quem quer que a leia. Porque é visão para tempo determinado e se cumpriu no fim e não cairá no vazio. Se tardar, espera-o, porque Aquele que vem, virá e não se demorará. CAPÍTULO XXXII Profecias da oração e do cântico de Habacuc. E em sua oração e cântico a quem diz senão a Cristo, nosso Senhor: Ouvi-te, Senhor, a palavra, e enchi-me de temor. Contemplei-te, Senhor, as obras e fiquei assombrado? Que é isso senão extraordinária surpresa à vista de tão inefável salvação, nova e súbita, dos homens? Em meio dos animais serás conhecido. Que significam esses animais? Os dois Testamentos, os dois ladrões ou Moisés e Elias, com quem falou no alto do monte. Quando venha a hora, serás conhecido e, em chegando o tempo, manifestar-te-ás. Não necessita explicação. Quando minha alma houver-se turbado nele, no mais aceso de tua cólera, lembrar-te-ás de tua misericórdia. Que indicam tais palavras senão os judeus, personificados nele, pertencente à nação deles, que, sob a ira mais cruel, crucificaram Cristo, e a quem, lembrando-se de sua misericórdia, se dirigiu nestes termos: Perdoa-os, pai, porque não sabem o que fazem? Deus virá de Temã; o Santo, de monte umbroso e espesso. Outros, em lugar de de Temã, traduzem do Austro ou do Áfrico. Isso significa o meio-dia, quer dizer, o ardor da caridade e o esplendor da verdade. O monte umbroso e espesso pôde ser entendido de muitos modos, mas tomá-lo-íamos de bom grado pela profundidade das Sagradas Escrituras, que contêm profecias acerca de Cristo. Nelas há muitas coisas obscuras e ocultas que exercitam a mente do pesquisador. Jesus Cristo sai dessas trevas, quando a inteligência sabe encontrá-lo nelas. Seu poder brilhou nos céus e a terra está cheia de suas maravilhas. Que é isso senão o que diz o salmo: Sobe, ó Deus, acima dos céus e faze tua glória brilhar por toda a terra? Teu esplendor será como a luz, é como que dizer que sua fama iluminará os fiéis. E que significa: O poder está em tuas mãos, senão o troféu da cruz? E estabeleceu a firme caridade de sua fortaleza. Isso não precisa de explicação sequer. Ante Ele virá a palavra, que atrás de suas pisadas sairá para o campo. Quer dizer: Foi prenunciado antes de vir e anunciado depois de chegado. Deteve-se e a terra comoveu-se, quer dizer, deteve-se a auxiliar e a terra comoveu-se a crer. Olhou e as nações murcharam, ou seja, compadeceu-se e os povos fizeram penitência. Com violência esmagou os montes, quer dizer, esmagou, à força de milagres, o orgulho dos soberbos. Abateram-se as colinas eternas, humilharam-se no tempo, para serem exaltadas na eternidade. Vi-lhe as entradas eternas, preço de seus trabalhos, ou seja, vi o trabalho da caridade premiado com a eternidade. Os tabernáculos da Etiópia e as tendas da terra de Madiã cobriram-se de espanto, quer dizer, surpreendidos de súbito pelo anúncio de tuas maravilhas, mesmo os não submetidos ao Império romano, os povos agregar-se-ão ao povo cristão. Enojaste-te, Senhor, dos rios e encolerizaste-te contra o mar? É alusão a que agora não veio julgar o mundo, mas salvá-lo. Porque montas em teus cavalos e tua viagem é a salvação, quer dizer: teus evangelistas, a quem diriges, levar-te-ão e teu Evangelho é a salvação para os que creem em ti. Retesarás teu arco contra os cetros, diz o Senhor: ameaçarás com teu julgamento até mesmo os reis da terra. Os rios rasgarão a terra, quer dizer, as correntes oratórias de teus pregadores abrirão o coração dos homens, para que te confessem, desses homens a quem se diz: Rasgai o coração, não as vestes. Que significa: Verte-ão e doer-se-ão os povos, senão que, para serem bem-aventurados, chorarão? E que quer dizer: Ao andares, dispersarás as águas, senão que, andando em teus pregadores, esparzes aqui e ali os rios de tua doutrina? Que significa: O abismo ergueu a voz? Exprimiu, porventura, a profundeza do coração humano? A profundeza de sua fantasia: trata-se de uma espécie de exposição do versículo anterior, porque profundeza equivale a abismo. E, ao acrescentar de sua fantasia, deve-se subentender ergueu a voz, quer dizer, expressou o que viu. Porque a imaginação é visão que não pôde ocultar nem reter, mas publicou-a em louvor. O Sol elevou-se e a Lua permaneceu em sua ordem. Subiu Cristo ao céu e sua Igreja permaneceu ordenada sob seu rei. Tuas flechas irão à luz, quer dizer, tuas palavras não serão pregadas em segredo, mas em público. Ao resplendor dos relâmpagos de tuas armas: subentende-se: irão tuas flechas. Ele dissera aos discípulos: O que vos digo de noite dizei-o à luz do dia. Tuas ameaças deprimirão a terra, ou seja, com tuas ameaças humilharás os homens. E derribarás as nações com teu furor, porque teu castigo humilhará os que se exaltam. Saíste para salvar teu povo, para salvares teus cristos ou ungidos, enviaste a morte sobre a cabeça dos pecadores. Isso é claro. Carregaste-os de grilhões até o pescoço. Por grilhões podemos entender os felizes grilhões da Sabedoria, de forma que metam os pés nos grilhões e no pescoço a gargalheira. Rompeste-os até causares espanto na mente; subentende-se os grilhões, pois lhes colocou os bons e lhes rompeu os maus, dos quais se diz: Rompeste-me os grilhões. E a expressão: Com espanto na mente significa de modo maravilhoso. A cabeça dos poderosos mover-se-á por ela, quer dizer, por essa admiração. E abrirão a boca, como o pobre que come às escondidas. Alguns poderosos dos judeus vinham ao Senhor, maravilhados com o que Ele fazia e dizia, e comiam, famintos e às escondidas, de medo dos judeus, o pão da doutrina, como o Evangelho faz notar. Meteste no mar teus cavalos e agitaram muitas águas, quer dizer, muitos povos. E que alguns não se converteriam por medo e outros não perseguiriam com furor, se não fossem todos agitados. Reparei nisso e meu coração pasmou, ao considerar minhas próprias palavras. E profundo temor penetrou-me até os ossos e meu intimo perturbou-se todo. Refletindo sobre suas palavras, ficou surpreso com as frases que ia deixando cair profeticamente e em que contemplava as coisas futuras. Previa esse tumulto dos povos e as próximas perseguições contra a Igreja; em seguida, reconhecendo-se membro dela, diz: Repousarei no dia da tribulação, como se fosse daqueles que gozam na esperança e pacientemente sofrem a tribulação. A fim de ir encontrar-me com o povo de minha peregrinação, apartando-se do povo mau, de seu parentesco carnal, que, não sendo peregrino no mundo, não busca a pátria celeste. Porque a figueira não dará frutos e as vinhas não brotarão. Faltará o fruto à oliveira e os campos não darão o que comer. Não haverá ovelhas nos pastos nem bois nos estábulos. Via que essa nação, que havia de dar morte a Cristo, perderia os abundantes bens espirituais por ele figurados, à maneira dos profetas, na fecundidade da terra. E, porque tal nação não foi vítima da ira divina, pois, ignorando a justiça de Deus, quis estabelecer em seu lugar a própria, acrescenta a seguir: Exultarei no Senhor e regozijar-me-ei em Deus, meu Salvador. O Senhor, meu Deus e meu poder, assentar-me-á perfeitamente os pés e por-me-á no alto para que saia vitorioso por seu cântico, a saber, pelo cântico de que se diz algo semelhante no salmo: Assentou-me os pés sobre pedra, dando-me firmeza aos passos. E na boca pôs-me cântico novo, hino de louvor a nosso Deus. Triunfa, pois, pelo cântico do Senhor quem se compraz nos louvores a Deus, não nos a si próprio, a fim de que se glorie no Senhor quem se glorie. Quanto ao mais, alguns códices trazem: Regozijar-me-ei em Deus, meu Jesus, o que me parece melhor que a outra tradução, em que não se emprega esse nome tão amoroso e doce. CAPÍTULO XXXIII Profecias de Jeremias e de Sofonias sobre Cristo e a vocação dos gentios. 1. Jeremias é um dos profetas maiores, como Isaías, não dos menores, já citados. Quando profetizou, em Jerusalém reinava Josias e sobre os romanos Anco Márcio, às vésperas já do cativeiro dos judeus. Suas profecias prolongaram-se até o quinto mês do cativeiro, segundo se colige de seus escritos. Junto a ele se acha Sofonias, um dos menores, que diz haver profetizado também no tempo de Josias, mas não diz até quando. Jeremias, portanto, não profetizou apenas no tempo de Anca Márcia, mas também no tempo de Tarquínio Prisco, quinto rei dos romanos, já no trono quando do cativeiro. Jeremias, pois, diz de Cristo: O Cristo, o Senhor, alento de nossa boca, foi preso por nossos pecados, mostrando, assim, em poucas palavras, ser Cristo nosso Senhor e haver padecido por nós. E noutra passagem: Este é meu Deus e em sua presença não há ninguém que se lhe compare. Ele encontrou todos os caminhos da Sabedoria e deu-a a seu servo Jacó e a Israel, seu amado. Depois se deixou ver sobre a terra e conversou com os homens. Alguns não atribuem esse testemunho a Jeremias, mas a certo escriba seu chamado Baruc; porém, de ordinário é atribuído a Jeremias. O mesmo profeta volta a dizer: Olhai que vem o tempo, diz o Senhor, em que de Davi farei nascer vergôntea, descendente justo, que reinará como Rei, será sábio e governará a terra com retidão e justiça. Em seus dias Judá será salvo e Israel viverá tranquilamente; e o nome com que será chamado esse Rei é o de justo Senhor ou Deus nosso. Eis como fala da vocação futura dos gentios (que agora vemos cumprida): Senhor, meu Deus e meu refúgio no dia da aflição, dos confins da terra as nações virão a ti e dirão: Na realidade, nossos pais adoraram ídolos falsos e não há neles utilidade alguma. E, como os judeus não o conheceriam e lhe dariam morte, o mesmo profeta acrescenta: Grave e profundo é o coração do homem. Quem o conhecerá? A passagem citada no Livro Décimo Sétimo a respeito do Novo Testamento, cujo Mediador é Cristo, também é desse profeta. Diz assim: Eis que vem o tempo, diz o Senhor, em que firmarei nova aliança com a casa de Jacó etc. 2. Vou citar agora as predições de Sofonias, contemporâneo de Jeremias, acerca de Cristo: Espera-me, diz o Senhor, no dia de minha ressurreição, porque minha vontade é congregar as nações e reunir os reinos. E também: O Senhor mostrar-se-á terrível contra eles, exterminará todos os deuses da terra e adorá-lo-ão todas as nações da terra, cada qual em seu território. E pouco depois: Então, nos povos e em sua descendência infundirei língua, a fim de que todos invoquem o nome do Senhor e o sirvam sob o mesmo jugo. Dos confins dos rios da Etiópia trar-me-ão oferendas. Já não serás, então, confundida por todas as impiedades que cometeste contra mim, porque apagarei de ti as maldades de tuas ofensas. Já deixarás de gloriar-te sobre meu santo monte, de ti farei povo humilde e manso e o resto de Israel temerá o nome do Senhor. A esses restantes alude outra profecia, que o Apóstolo recorda nos seguintes termos: Embora teu povo, Israel, fosse como a areia do mar, os restantes salvar-se-iam. Os restantes dessa nação creram em Cristo CAPÍTULO XXXIV Profecias de Daniel e Ezequiel, concordes no referente a Cristo e à sua Igreja. 1. Daniel e Ezequiel, dois dos profetas maiores, profetizaram durante o cativeiro de Babilônia. Daniel determinou até o número de anos que passariam antes do advento e paixão de Cristo. O cômputo seria longo reproduzi-lo aqui, além de que outros já o fizeram antes de mim. De seu poder e glória fala nestes termos: Tive visão em sonhos, na qual vi que entre as nuvens do céu vinha personagem que parecia o Filho do homem e avançou até o Ancião dos dias. E, em apresentando-se ante Ele, deu-lhe o principado, a honra e o reino; e todos os povos, tribos e línguas servi-lo-ão. Seu poder é poder eterno, que não passará, e seu reino será indestrutível. 2. Ezequiel, por sua vez, segundo o estilo dos profetas, figurando Cristo em Davi, de cuja descendência tomou a carne em forma de escravo, porque se fez homem, e pela qual o Filho de Deus também é chamado servo de Deus, prenunciou-o assim, falando como se fora Deus Pai: E suscitarei pastor que me apascente os rebanhos, meu servo Davi. Apascentá-lo-á e será seu pastor. Eu, o Senhor, serei seu Deus e meu servo Davi será o príncipe em meio deles. Disse-o eu, o Senhor. E noutro lugar: E haverá somente um rei que os mande a todos e nunca mais formarão duas nações, nem no futuro estarão divididos em dois reinos. Não mais se contaminarão com seus ídolos, nem com suas abominações, nem com todas as suas maldades; tirá-los-ei salvos de todos os lugares em que pecaram, purificá-los-ei, serão meu povo e serei seu Deus. E meu servo Davi será rei e um só será o Pastor de todos eles. CAPÍTULO XXXV Vaticínios de Ageu, de Zacarias e de Malaquias. 1. Ainda restam três profetas menores, Ageu, Zacarias e Malaquias, que profetizaram durante o cativeiro. Ageu predisse Cristo e a Igreja, breve, mas claramente, nos seguintes termos: Isto diz o Senhor dos exércitos: Mais um pouco de tempo e porei em movimento o céu e a terra, o mar e os continentes. Porei em movimento todas as nações e virá o Desejado de todas as gentes. Essa profecia já está cumprida em parte; o resto esperamos que no futuro se cumpra. Já comoveu o céu com o testemunho das estrelas e dos anjos em sua encarnação. Com o imenso milagre de haver nascido de virgem mobilizou a terra. Moveu o mar e os continentes, quando Cristo foi anunciado nas ilhas e no orbe todo. O seguinte: E virá o Desejado de todas as gentes, devemos entendê-lo de sua segunda vinda, porque, para ser desejado pelos que o esperam, foi conveniente que fosse antes amado pelos crentes. 2. De Cristo e da Igreja assim fala Zacarias: Regozija-te sobremaneira, filha de Sião, e salta de júbilo, filha de Jerusalém, porque eis que a ti vem teu Rei, o Justo e o Salvador; virá pobre e montado em cima de jumenta e seu jumentinho. E dominará de um mar a outro e dos rios aos confins da terra. O Evangelho ensina-nos em que ocasião Cristo se serviu dessa cavalgadura e menciona, em parte, a referida profecia. Noutra passagem, dirigindo-se ao próprio Cristo e falando da remissão dos pecados que seu sangue ia operar, diz o profeta. E tu, pelo sangue de teu testamento, fizeste os teus, que se encontravam cativos, saírem da cisterna sem água. A regra de fé dá-nos liberdade para interpretarmos de diversas maneiras essa cisterna. Segundo me parece, o melhor sentido de tal palavra é a profundidade estéril e seca da miséria humana, em que não correm os rios da justiça, mas a lama da iniquidade. Fala-se dela em determinado salmo: E tirou-me da cisterna de minha miséria e do lodo da terra. 3. Anunciando a Igreja, que vemos propagada por Cristo, Malaquias, na pessoa de Deus, diz de modo claro aos judeus: Meu afeto de maneira alguma está em vós, diz o Senhor dos exércitos, nem de vossa mão aceitarei oferenda alguma. Porque do Levante ao Poente é grande meu nome entre as nações e em todo lugar se sacrificará e se oferecerá a meu nome oferenda pura, pois é grande meu nome entre as nações, diz o Senhor. Tal sacrifício é o oferecido pelo sacerdócio de Cristo, segundo a ordem de Melquisedec, que vemos oferecer-se em todo lugar, do Oriente ao Poente. E não podem negar haver cessado o sacrifício dos judeus, a quem disse: Meu afeto de maneira alguma está em vós, nem de vossa mão aceitarei oferenda alguma. Por que ainda esperam outro Cristo, se essa profecia, que veem cumprida, só pôde ser cumprida por Ele? Pouco depois acrescenta, na pessoa de Deus: Minha aliança nele foi aliança de vida e de paz e dei-lhe que santamente me temesse e tivesse respeito a meu nome. A lei da verdade regia-lhe a boca, andou em paz comigo e de seus pecados converteu muitos. Os lábios do sacerdote hão de ser o depósito da ciência e de sua boca hão de todos esperar a lei, porque é o anjo do Senhor onipotente. Não é estranho chamar-se anjo do Senhor onipotente a Jesus Cristo. Como se lhe chamou servo, por causa da forma de servo que tomou, assim também se lhe chama anjo, por causa do Evangelho por Ele anunciado aos homens. Porque Evangelho, traduzido a nosso idioma, é igual a boa-nova, a anjo, a núncio. Diz mais: Eis que envio meu anjo, que preparará o caminho diante de mim. De súbito virá a seu templo o Senhor, a quem buscais, e o anjo do Testamento, a quem desejais. Vede-o, aí vem, diz o Senhor onipotente. Quem suportará o dia de sua chegada? E quem lhe resistirá ao olhar? Nessa passagem anunciam-se a primeira e a segunda vindas de Cristo, a saber, a primeira, nestas palavras: De súbito virá a seu templo, quer dizer, à sua carne, de que disse no Evangelho: Destruí este templo e reedificá-lo-ei em três dias, a segunda, nestas: Vede-o, aí vem, diz o Senhor onipotente. Quem suportará o dia de sua chegada? E quem lhe resistirá ao olhar? As expressões: O Senhor, a quem buscais, e o anjo do Testamento, a quem desejais, significam os judeus, que buscam e desejam Cristo, segundo o teor das Escrituras que leem. Muitos deles, porém, não conheceram já haver chegado o Messias que desejavam e buscavam, porque suas faltas passadas lhes cegaram o coração. O Testamento a que antes aludiu, quando disse: Meu Testamento pactuou-se com ele, ou aqui, ao nomear o anjo do Testamento, é, sem dúvida alguma o Novo Testamento, em que se prometeram bens eternos, não o Velho, em que se prometeram bens temporais. Muitos débeis na fé, tendo em grande estima esses últimos bens e servindo o verdadeiro Deus por amor a tal prêmio, turbam-se, ao verem que também os ímpios nadam e sobrenadam neles. Por semelhante motivo, o mesmo profeta, para distinguir entre a felicidade eterna do Novo Testamento, que só é dada aos bons, e a felicidade terrena do Velho, dada com certa frequência aos maus, diz: Tomaram corpo vossas palavras contra mim, diz o Senhor, e dissestes: Em que te difamamos? Dissestes: É insensato todo aquele que serve a Deus. E que nos vem de te havermos guardado os mandamentos e de havermos andado em oração diante do Senhor onipotente? Agora beatificamos os estranhos, se renovam os praticantes do mal e os que foram contra Deus também se salvam. Isso falaram entre si os tementes a Deus. E Deus esteve atento, escutou e ante Ele escreveu um livro que devia servir de monumento em favor dos que temem o Senhor e lhe reverenciam o nome. Esse livro é figura do Novo Testamento. Por fim, escutemos o seguinte: E serão minha herança, diz o Senhor onipotente, no dia em que me ponha a agir, e escolhê-los-ei como o pai escolhe o filho obediente. Mudareis de opinião e notareis a diferença que há entre o justo e o injusto, entre quem serve Deus e quem não o serve. Porque eis que chega o dia, aceso como fornalha ardente, e os abrasará. Todos os estrangeiros e todos os pecadores serão como estopa, esse dia que se aproxima queimá-los-á, diz o Senhor onipotente, e deles não ficarão nem ramos, nem raízes. Para vós, que me tem eis o nome, nascerá o sol da justiça, que traz a salvação à sombra de suas asas. Saireis e, como novilhos soltos, saltareis de gozo. Calcareis os pecadores e serão pó sob vossos pés no dia em que eu agir, diz o Senhor onipotente. Esse dia é o dia do juízo. Dele falaremos de maneira mais ampla no devido lugar, se Deus quiser. CAPÍTULO XXXVI Esdras e os Livros dos Macabeus. Depois destes três profetas, Ageu, Zacarias e Malaquias, escreveu Esdras nessa mesma época em que o povo foi livrado do cativeiro babilônico. Mas passa mais por historiador que por profeta. Seu livro parece-se com o de Ester, em que se contam suas façanhas, realizadas em louvor a Deus não longe desse tempo. Talvez se possa dizer que Esdras profetizou Cristo na disputa suscitada entre alguns jovens sobre qual o ser mais poderoso do mundo. E, havendo dito um deles que os reis, outro que o vinho e outro que as mulheres, que algumas vezes mandaram nos reis, este último terminou provando ser a verdade que leva a palma. Acontece que o Evangelho nos diz que Cristo é a verdade. Da restauração do povo até Aristóbulo, príncipes, não reis, governaram os judeus. O cômputo desse tempo não se enumera nas Escrituras canônicas, mas em outras; assim, nos livros dos Macabeus, tidos por canônicos pela Igreja e por apócrifos pelos judeus. A Igreja assim pensa por causa dos terríveis e admiráveis sofrimentos desses mártires, que antes da encarnação de Cristo lutaram até a morte pela lei de Deus e suportaram inauditas e graves torturas. CAPÍTULO XXXVII As profecias são mais antigas que a filosofia pagã. No tempo de nossos profetas, cujos escritos se difundiram pelo mundo inteiro, ainda não existiam filósofos entre os gentios. Pelo menos não se chamavam assim, pois o nome teve origem em Pitágoras de Samos, que começou a brilhar e a ser conhecido quando se concedeu a liberdade aos judeus. Logo, os demais filósofos foram muito posteriores aos profetas. Com efeito, Sócrates mesmo, mestre de quantos então floresceram, príncipe da Moral ou parte ativa, vem depois de Esdras nas crônicas. Pouco depois nasceu Platão, que se avantajaria de muito aos demais discípulos de Sócrates, Se lhes acrescentamos os sete sábios, que ainda não se chamavam filósofos, e depois os físicos, Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras e alguns outros anteriores a Pitágoras, que sucederam a Tales no estudo e busca da natureza, nem mesmo eles são anteriores a todos os nossos profetas. Tales, o mais antigo dos físicos, floresceu, segundo contam, no reinado de Rômulo, quando o rio da profecia brotou da fonte de Israel, nessa série de escritos que inundou o mundo inteiro. Apenas os poetas teólogos, Orfeu, Lino e Museu e, se houve, alguns outros entre os gregos, foram anteriores aos profetas hebreus, cujos escritos estão canonizados. Mas tampouco eles precederam nosso grande teólogo Moisés, que anunciou o único Deus verdadeiro e cujos escritos ocupam o posto de honra no campo do cânon. Assim, os gregos, cuja língua enriqueceu grandemente as letras humanas, não têm por que se jactar de sua Sabedoria como mais antiga e menos ainda como superior a nossa religião, única fonte de Sabedoria autêntica. Contudo (e é necessário admiti-lo), não só na Grécia, mas também nas nações bárbaras, como no Egito, já antes de Moisés havia certa doutrina, Sabedoria para eles. Se isso não fosse verdade, os Livros santos não diriam estar Moisés versado em toda a Sabedoria dos egípcios, pois onde nasceu e foi adotado e alimentado pela filha do faraó, aí o educaram nas artes liberais. Mas nem mesmo a Sabedoria dos egípcios precedeu a dos profetas, visto Abraão também haver sido profeta. E que Sabedoria poderia haver no Egito, se Isis, a quem, depois de morta, renderam culto como a grande deusa, ainda lhes não ensinara as letras? Pois bem, Isis era filha de Ínaco, primeiro rei de Argos, e nessa época já haviam nascido os netos de Abraão. CAPÍTULO XXXVIII Sabedoria do cânon eclesiástico. E, se remontamos a tempos mais antigos, antes do dilúvio já existia o patriarca Noé, a quem com fundamento chamaríamos profeta, porque a arca por ele construída era profecia do Cristianismo. E que dizer de Enoc, sétimo descendente de Adão? Dele, em sua Epístola canônica, não diz o Apóstolo Tiago haver profetizado? Seus escritos não foram admitidos no cânon nem pelos judeus, nem por nós porque sua antiguidade os tornava suspeitos. E verdade que se escrevem obras cuja autenticidade não parece duvidosa a quem, segundo seu próprio critério, crê no que bem entende. A castidade do cânon não os aceitou, não porque repila a autoridade de tais homens que agradaram a Deus, mas porque não lhes acredita na autenticidade. Ademais, não é de estranhar que obras publicadas sob o renome de tão alta antiguidade sejam consideradas suspeitas. Assim, vemos que na História dos reis de Israel e de Judá (que, por ser canônica, acreditamos verdadeira) se citam muitas façanhas que ali não se encontram e se remete o leitor a outros livros escritos por profetas e, às vezes, nos dão o nome deles. E, todavia, não foram admitidos no cânon consagrado pelo povo de Deus. Confesso que a razão disso me escapa, sob pena de dizer que esses homens a quem o Espírito Santo revelava as coisas dignas de canonizadas pela religião puderam escrever algumas coisas como homens e historiadores e outras, como profetas, por inspiração divina. E, desse modo, umas deviam atribuir-se-lhes como tais sujeitos e outras a Deus, que falava por intermédio deles. Aquelas deviam-se a investigação científica; estas, a autoridade religiosa. Essa autoridade é a guardiã do cânon; se à margem dele se publicam alguns escritos com o nome de profetas antigos, não servem nem a título de erudição, por ser incerto se pertencem ao autor a quem se atribuem. A isso se deve o não dar-se fé a esses livros, em especial aos que contêm coisas contrárias aos livros canônicos, prova infalível de sua inautenticidade. CAPÍTULO XXXIX Os hebreus e sua língua. Não se deve pensar, como alguns pensam, haver a língua hebraica sido conservada apenas por Héber, que deu seu nome aos hebreus, dele transmitido a Abraão, e haverem as letras hebraicas começado a partir da lei dada por Moisés. É mais crível que tão celebrada língua, com seus caracteres, foi conservada, através dos séculos, desde a época primitiva. Com efeito, Moisés no povo de Deus estabeleceu mestres que lhe ensinaram as letras antes de conhecer as letras da divina lei. A esses homens a Escritura chama grammatoeisagoghéis, que poderemos traduzir por indutores ou introdutores às letras justamente porque as induzem, quer dizer, as introduzem, de certo modo, no coração dos discípulos, melhor, nelas introduzem os discípulos. Que nação alguma, pois, se glorie de sua Sabedoria como mais antiga que nossos patriarcas e profetas, que a Sabedoria divina assistiu, porquanto nem o Egito, acostumado a jactar-se falsa e vãmente da antiguidade de sua Sabedoria, pôde reivindicar semelhante prioridade. Ninguém tampouco se atreva a dizer haverem os egípcios sido muito sábios nas disciplinas mágicas antes de, as letras lhes chegarem ao conhecimento, quer dizer, antes de Isis instruí-los. Ademais, a que se reduzia sua famosa Sabedoria senão à astronomia e a alguma outra ciência análoga, mais própria para exercitar as inteligências que para tornar o homem verdadeiramente sábio? Quanto à filosofia, que acredita ensinar aos homens o modo de tornarem-se felizes, não floresceu nessa terra até os dias de Mercúrio, chamado Trismegisto. Tais estudos floresceram, portanto, muito antes dos sábios ou filósofos gregos, mas depois de Abraão, de Isaac, de Jacó e de José. E também depois de Moisés. Porque Atlas, esse grande astrólogo, irmão de Prometeu e avô materno do grande Mercúrio, de quem era neto Mercúrio Trismegisto, vivia quando Moisés nasceu. CAPÍTULO XL Vaidade dos egípcios. Sua ciência não é tão antiga. É, pois, inútil certos charlatães, inflados de néscia presunção, dizerem que no Egito há mais de cem mil anos se conhece a astrologia. Em que livro encontraram esse número, se faz pouco mais de dois mil anos que de sua mestra Ísis aprenderam as letras? E afirmativa de Varrão, historiador de vulto, e está de acordo com a verdade das divinas Letras. Se de Adão, primeiro homem, passaram apenas seis mil anos, os que adiantam opiniões tão contrárias a verdade tão reconhecida, não merecem antes ser ridicularizados que refutados? A quem podemos dar mais crédito, quanto às coisas passadas, do que àquele que predisse as coisas futuras que vemos cumpridas? Além disso, a própria discordância dos historiadores entre si nos oferece robusto argumento para, de preferência, crermos nos que não se opõem à História divina. Quando os cidadãos da cidade ímpia, espalhados por todo o mundo, leem homens muitos sábios, todos de igual autoridade na matéria, e verificam que entre si disputam sobre acontecimentos dos mais recuados de nossa época, não sabem a que ater-se nem a quem dar fé. Por outro lado, apoiados na autoridade divina, no concernente a nossa religião, não duvidamos que quanto se lhe opõe é falsidade, seja qual for o valor dado a tais histórias nas letras profanas. E que, verdadeiras ou falsas, não têm grande importância para a gente levar vida reta e feliz. CAPÍTULO XLI Discordância da filosofia e concordância das Escrituras na Igreja. 1. Mas deixemos os historiadores e perguntemos aos filósofos, cujos escritos parecem ter como único escopo o de encontrar meio de vida apto para consecução da felicidade: Por que os discípulos discrepam dos respectivos mestres e uns dos outros os condiscípulos, senão porque na busca procederam como homens e com raciocínio humano? Admito que haja podido influir o afã de glória, desejoso cada qual de avantajar-se aos demais em Sabedoria e agudeza, sem se sujeitar ao ponto de vista alheio e inventando doutrina e opinião próprias, e também que alguns ou muitos se separaram dos respectivos mestres ou condiscípulos por amor à verdade, lutando por ela, embora não o fosse. Mas que pôde ou aonde e por onde a infelicidade humana conduz à bem-aventurança, se não leva por guia a autoridade divina? Nossos autores, admitidos e registrados no cânon das Sagradas Letras, não dissentem uns dos outros em nada e nunca. Isso deu ensejo à crença, tão espalhada não entre quatro charlatães de algumas escolas e ginásios, mas entre os homens do campo e da Cidade, doutos e indoutos, de que, ao escreverem, Deus lhes falou ou Deus falou por intermédio deles. Era preciso que fossem poucos, para que o número não vulgarizasse tal patrimônio da religião, mas não tão poucos que a perfeita concordância deles não constituísse verdadeiro milagre. Entre a multidão de filósofos que deixaram doutrinas por escrito não é fácil falar dos que se encontrem de acordo em todos os pontos. Não insisto, porque seria demorado mostrá-lo. 2. Que autor, não importa de que escola, há tão acatado na cidade demonólatra, que condene os demais que opinam coisas adversas e diversas? Em Atenas não estavam em voga e em moda, ao mesmo tempo, os epicuristas, afirmando que os deuses não cuidam das coisas humanas, e os estoicos, sustentando que, ao contrário, deuses protetores as dirigiam e defendiam? Por isso, sempre me causou estranheza fosse Anaxágoras condenado por dizer que o sol era pedra ardente, negando Deus, pois Epicuro vivia em pleno esplendor e em plena segurança na mesma cidade, negando não apenas a divindade do Sol e dos demais astros, mas também defendendo não haver no mundo nem Júpiter, nem outras potestades a que chegassem as súplicas e orações dos homens. Em Atenas não brilhavam Aristipo, que punha o supremo bem do homem no prazer do corpo, e Antístenes, que o radicava na virtude da alma, fazendo o destino da vida consistir em fins tão diversos e tão contrários entre si? Ademais, afirmava o primeiro que o sábio devia fugir de governar a república, o segundo, que devia governá-la e cada qual reunia discípulos que lhe continuavam a escola. Com sua tropa cada um deles combatia pela própria opinião e discutia-se, em pleno dia, no vasto e celebérrimo Pórtico, nos ginásios, nos jardins, nos lugares públicos e nas casas. Uns sustentavam a existência de apenas um mundo; outros, a de muitos; uns, que o mundo teve princípio; outros, que não; uns, que terá fim; outros, que será eterno; uns que é governado pela inteligência divina; outros, que pela fortuna ou pelo azar. Uns defendiam que as almas são imortais, outros, que mortais. Os defensores da imortalidade, uns dizem que retornam aos irracionais; outros, que não; quanto aos da mortalidade, uns sustentam que morrem com o tempo e outros, que depois vivem mais ou menos tempo e afinal morrem. Uns fazem o supremo bem consistir no corpo; outros, na alma; outros, em ambos; outros a ambos acrescentam os bens extrínsecos. Uns afirmavam que a gente sempre devia acreditar nos sentidos do corpo; outros, que nem sempre; outros, que nunca. Que povo, que reinado, que autoridade pública da cidade ímpia assentou praça de juiz para definir entre opiniões tão opostas dos filósofos, aprovando umas e repelindo outras? Não é verdade havê-las recebido todas indiferentemente, embora não se tratasse de algum pedaço de terra ou de alguma soma de dinheiro, mas das coisas mais transcendentais, que decidem a felicidade ou miséria dos homens? Embora na realidade se ensinassem algumas verdades, a falsidade campeava com a mesma licença. Tanto assim que essa cidade misticamente e não sem motivo se chama Babilônia, quer dizer, como já observamos, Confusão. Pouco importa ao diabo, seu rei, que por causa de erros contrários os homens se combatam, pois a impiedade humana a todos mantém escravizados por igual. 3. Por outro lado, essa nação, esse povo, essa cidade, essa república, em uma palavra, os israelitas, a quem se confiou a palavra de Deus, jamais confundiram os pseudoprofetas com os profetas autênticos; pelo contrário, sempre concordes entre si e em nada discordes, reconheciam e retinham os verdadeiros autores das Sagradas Letras. Para eles, eram esses os filósofos, quer dizer, os amigos da Sabedoria, seus sábios, seus teólogos, seus profetas e seus doutores em piedade e em probidade. Quem sentiu e viveu segundo suas máximas não sentiu e viveu segundo os homens, mas segundo Deus, que por meio deles falou. Se proíbem o sacrilégio, Deus é quem o proíbe. Se dizem: Honra teu pai e tua mãe, é preceito de Deus. Se disseram: Não fornicarás, não furtarás, não matarás e demais mandamentos, não se trata de palavras de homens, mas de oráculos divinos. Todas as verdades que entre seus erros alguns filósofos chegaram a discutir e se esforçaram em persuadir com esmero, como, por exemplo, que Deus criou o mundo e o administra com Providencia e quanto escreveram sobre a beleza das virtudes, o amor à pátria, a fidelidade na amizade, as boas obras e o concernente aos bons costumes, embora desconhecendo o fim a que deviam tender e os meios, tudo isso foi pregado ao povo na Cidade de Deus por boca dos profetas, sem argumentos e sem disputas. Assim, o iniciado em tais verdades temeria desprezar não o engenho humano, mas a palavra do próprio Deus. CAPÍTULO XLII Providência de Deus na tradução do Antigo Testamento, feita do hebraico para o grego. Um dos Ptolomeus, rei do Egito, empenhou-se em conhecer e possuir as Sagradas Letras. Após a morte do admirável colosso Alexandre da Macedônia, cognominado o Grande, que subjugara toda a Ásia e quase o orbe inteiro, parte pela força e pelas armas e parte pelo terror, conquistando, entre outras regiões do Oriente, a Judéia, seus capitães dividiram o reino, não para o governarem em paz, e sim para desfazerem-no em guerras. Justamente nessa época principiava no Egito o reinado dos Ptolomeus. O primeiro deles foi o filho de Lago, que levou cativos para o Egito muitos judeus. Ptolomeu Filadelfo, sucessor dele, deu-lhes a liberdade e permitiu-lhes voltarem para sua terra. E, o que é mais, enviou presentes para o templo de Deus e pediu ao então pontífice Eleazar que lhe mandasse as Escrituras, pois sem dúvida ouvira, nas asas da fama, serem divinas e desejava, por isso, dar-lhes lugar de destaque em sua famosa biblioteca. O sumo sacerdote enviou-lhas em hebraico e o rei pediu tradutores para traduzi-las. Enviaram-se-lhe setenta e dois homens, seis de cada tribo, muito versados na língua hebraica e na grega. O costume logrou chamar a essa versão a versão dos Setenta. Conta-se que na tradução houve unanimidade tão maravilhosa, tão estupenda e tão plenamente divina, que, havendo-a feito cada um deles em separado (assim quis Ptolomeu provar-lhe a fidelidade), coincidiram de tal modo tanto no sentido como nas palavras, que parecia obra de um tradutor só. E não é de estranhar, pois em todos atuava o mesmo Espírito. Deus, com esse admirável dom, quis encarecer aos gentios que algum dia creriam, como já vemos cumprido, na autoridade das Escrituras como obra divina, não humana. CAPÍTULO XLIII Autoridade e valor dos Setenta. Embora outros hajam traduzido as Sagradas Escrituras do hebraico ao grego, como Áquila, Símaco, Teodocião e o autor anônimo de obra semelhante, por isso chamada Quinta Edição, a Igreja recebeu a versão dos Setenta como se fora única e dela se servem os gregos cristãos, cuja maioria ignora se há alguma outra. Dessa versão dos Setenta fez-se versão para o latim; é a usada nas Igrejas latinas. Em nossos dias, Jerônimo, homem de muito saber e muito versado nas três línguas, traduziu as Escrituras diretamente do hebraico para o latim. Os judeus reconhecem tratar-se de tradução muito fiel e sustentam que os Setenta se equivocaram em muitos pontos. As Igrejas de Cristo, contudo, acham que se deve antepor a qualquer outra a autoridade dos homens escolhidos pelo pontífice Eleazar para semelhante obra. E que, mesmo quando não os houvesse assistido um só Espírito, o divino, sem dúvida, mas, como homens sábios, houvessem comparado as palavras umas com as outras e deixado as do agrado de todos, a versão deles sempre seria preferível à de qualquer tradutor isolado. Como neles, porém, apareceu tão claro sinal da divindade, qualquer outra versão fiel da Escritura, feita do hebraico para outra língua, ou está concorde com os Setenta ou, se não está, segundo possa parecer, deve-se acreditar exista algum profundo mistério oculto na versão dos Setenta. Porque o mesmo Espírito, que assistiu os profetas, quando compunham as Escrituras, animava os setenta homens, quando as traduziam. E, fora de dúvida, poderia muito bem, com autoridade divina, dizer outra coisa, como se os profetas houvessem dito ambas as coisas, porque ambas diria o mesmo Espírito. Poderia dizer de várias maneiras a mesma coisa, a fim de que, se não as mesmas palavras, ao menos descobrissem o mesmo sentido os bons entendedores. Poderia, além disso, acrescentar ou omitir algo, para mostrar-nos não haver o tradutor sido escravo das palavras, mas do poder divino, que o repletava e dirigia na obra. Alguns acharam ser preciso corrigir a versão dos Setenta pelos códices hebraicos, mas não se atreveram a pôr de lado o que os Setenta lhes acrescentaram. Limitaram-se unicamente a acrescentar o que faltava nos Setenta e se encontrava nos códices hebraicos. E fizeram observá-lo, pondo no princípio dos versículos certos sinais em forma de estrelas, chamados asteriscos. O que falta nos códices hebraicos e existe nos Setenta assinalaram-no com traços horizontais, semelhantes a vírgulas deitadas. Desses códices ainda hoje encontramos e em grande quantidade entre nós. Para apreciar as coisas não omitidas nem acrescentadas, mas ditas doutro modo, quer tenham sentido abertamente idêntico, quer sentido diferente, é preciso cotejar e confrontar ambos os códices. Se, por conseguinte, como deve ser, não consideramos os homens que compuseram as Escrituras senão como instrumentos do Espírito de Deus, diremos que as coisas que se encontram no original hebraico e não se encontram nos Setenta quis o Espírito divino dizê-las pelos profetas e não por estes. E quanto há nos Setenta e falta no códice hebraico o mesmo Espírito preferiu dizê-las por estes, mostrando, de tal modo, haverem uns e outros sido profetas. Assim, disse umas coisas por Isaías, outras, por Jeremias, outras, por este ou aquele profeta ou disse doutra forma as mesmas coisas por este ou por aquele. Enfim, quando em ambas as fontes se contêm as mesmas coisas, quis o Espírito servir-se de uns e de outros para dize-las, mas de tal modo que aqueles profetizassem e estes lhes interpretassem as profecias. O mesmo Espírito que assistiu os primeiros, estabelecendo perfeita concordância entre eles, apareceu nos segundos, conduzindo-lhes a pena, para fazerem traduções idênticas. CAPÍTULO XLIV Discordância entre os Setenta e o texto hebraico. Explicação. Talvez alguém pergunte: Como saberei se o profeta Jonas disse aos ninivitas: Mais três dias e Ninive será destruído ou mais quarenta dias etc.? Quem não vê o que o profeta, enviado a Nínive para cominar-lhe a iminente destruição, não poderia em semelhante conjuntura assinar-lhe dois termos diferentes e inconciliáveis? Porque, se o prazo é de três dias, não será de quarenta e, se de quarenta, não será de três. Se me perguntam qual dos dois determinou Jonas, acho mais acertado o texto hebraico: Mais quarenta dias e Ninive será destruída, porque os Setenta, traduzindo-o muito depois, puderam fazê-lo dizer outras palavras, que, todavia, estão relacionadas com o tema e noutros termos expressam um só e mesmo sentido. Além disso, convidaria o leitor, sem desdenhar nenhuma autoridade dessas, a apoiar-se na História e buscar a causa da história narrada. Os acontecimentos preditos ocorreram em Nínive, é verdade, mas há neles algo mais profundo e superior a essa cidade, como também é verdade que de fato o profeta esteve três dias no ventre do cetáceo e, contudo, figurava outro, que estaria três dias no sepulcro, e esse outro era o Senhor de todos os profetas. Se, portanto, por essa cidade entendemos figurada profeticamente a Igreja dos gentios, de certo modo destruída pela penitência, Igreja que não mais será o que foi, como a mudança de tal Igreja, figurada por Nínive, foi obra de Cristo, é o próprio Cristo o simbolizado nos três ou nos quarenta dias. Nos quarenta, porque, após ressuscitar, viveu quarenta dias entre os discípulos e subiu ao céu; nos três, porque no terceiro dia ressurgiu. Assim, parece haverem os setenta tradutores e profetas querido despertar o leitor desejoso unicamente de ater-se aos dados históricos, convidando-o a aprofundar-se no conteúdo da profecia e dizendo-lhe de certa maneira: Busca nos quarenta dias o mesmo que podes achar nos três dias; nos quarenta encontrarás a ascensão, nos três, a ressurreição. Isso pôde, pois, ser simbolizado, com muito acerto, por ambos os números, de um modo no profeta Jonas e doutro nos Setenta, mas sempre por obra de um só e mesmo Espírito. Fujo à prolixidade e, por isso, não quero aduzir outros exemplos, em que se acreditaria que os Setenta se afastam da verdade do texto hebraico, quando, bem entendidos, estão perfeitamente acordes. Daí o haver eu, a meu modo, crido acertado servir-me do original hebraico e dos Setenta, seguindo o exemplo dos Apóstolos, que ao citarem, assim fizeram, porque, afinal de contas, trata-se da mesma autoridade divina. Mas prossigamos, segundo nossas possibilidades, em nosso empenho. CAPÍTULO XLV Decadência dos judeus e fim dos profetas. 1. A partir do momento em que os judeus deixaram de ter profetas, a nação piorou, embora se esperasse florescimento nessa época da restauração do templo, após o cativeiro de Babilônia. Esse era o sentido dado por aquele povo carnal à profecia de Ageu: A glória desta última casa será grande, será maior que a da primeira. Mas o que vem antes evidencia que falava do Novo Testamento, pois diz, prometendo de maneira clara a Cristo: Porei em movimento todas as nações e virá o Desejado de todas as gentes. Com autoridade de profetas, os Setenta deram às palavras outro sentido, que quadra melhor ao corpo que à cabeça, quer dizer, melhor à Igreja que a Cristo: Virão as nações que o Senhor escolheu entre todas, quer dizer, virão os homens de quem no Evangelho diz Cristo: Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos. Com efeito, desses escolhidos das nações, como que de pedras vivas, é que se edifica a casa de Deus pelo Novo Testamento, casa muito mais gloriosa que o templo construído por Salomão e restaurado depois do cativeiro. Desde então, o povo judeu não mais teve profetas e sofreu males sem conta de parte dos reis estrangeiros e dos romanos, para não pensar que tal profecia de Ageu se cumpriu com a restauração do templo. 2. Pouco tempo depois foi submetido ao Império de Alexandre. Embora então não causasse nenhum estrago, pois, não se atrevendo a resistir, se rendeu e se submeteu por bem, a glória dessa casa não foi tão grande como fora sob a livre dominação de seus reis. É certo haver Alexandre imolado vítimas no templo de Deus; fê-lo, porém, levado menos por verdadeira piedade que por ímpia superstição, crendo dever culto a esse Deus como aos deuses falsos. Após a morte de Alexandre, Ptolomeu, filho de Lago, como acima observei, levou os judeus em cativeiro para o Egito e Ptolomeu Filadelfo, que lhe sucedeu, deu-lhes generosamente a liberdade. A este devemos em grande parte, como ficou dito, a versão dos Setenta. Depois se viram complicados nas guerras narradas nos livros dos Macabeus. Mais tarde foram vencidos por Ptolomeu Epífanes, rei de Alexandria, e se viram constrangidos, pelas inauditas crueldades de Antíoco, rei da Síria, a tributar culto aos ídolos. As sacrílegas superstições dos gentios profanaram o templo, até que o purificou de toda essa idolatria o valor de Judas Macabeu, grande capitão, que expulsou os generais de Antíoco. 3. Pouco depois, entretanto, a ambição de certo Alcimo o fez usurpar o pontificado, apesar de não pertencer à linha sacerdotal. Isso era crime. Passaram cinquenta anos, durante os quais, exceto algumas oportunas campanhas, os judeus não tiveram paz; ao cabo deles, Aristóbulo apoderou-se do diadema, fazendo-se pontífice e rei ao mesmo tempo. Antes, desde o retorno de Babilônia e a restauração do templo, não haviam tido reis, mas chefes ou príncipes, e, embora o rei também possa ser chamado príncipe, pelo principado que ostenta, e chefe, por ser comandante do exército, nem todo príncipe ou chefe pôde ser chamado rei. Alexandre sucedeu a Aristóbulo no sacerdócio e no trono. Contam que em seu reinado foi cruel para com os súditos. Depois dele foi rainha dos judeus sua esposa Alexandra, que marcou o início de males muito maiores. Como seus dois filhos, Arístóbulo e Hircano, disputassem entre si o império, as forças romanas, a pedido de Hírcano, voltaram-se contra a nação israelita. Roma já subjugara a África e a Grécia e passeara por outras partes do mundo suas armas vitoriosas. Não podendo manter-se por si mesma em pé, parecia quebrantada por sua própria grandeza. Via-se atormentada por furiosas sedições domésticas, daí passou às guerras dos partidos, chegando, assim, às guerras civis. Tão abatida e quebrantada se achava a república, que esteve a ponto de mudar de regime e implantar a monarquia. Pompeu, um dos grandes capitães dos romanos, invadiu com seu exército a Judéia, tomou a cidade, abriu o templo, não como suplicante, mas como vencedor, e entrou no santo dos santos, não como vencedor, mas como profanador. Só ao sumo sacerdote era permitido entrar. Confirmado no pontificado e constituído em sumo sacerdote, consigo levou Aristóbulo prisioneiro. Depois, Cássio saqueou o templo. Alguns anos mais tarde mereceram rei estrangeiro, Herodes, em cujo reinado nasceu Cristo. Já chegara a plenitude dos tempos, preditos em Espírito pelo patriarca Jacó nos seguintes termos: Não faltará príncipe de Judá nem cabeça de sua posteridade, até vir aquele que se aguardou e é a esperança das nações. Os judeus sempre tiveram reis de sua nação, até Herodes, seu primeiro rei estrangeiro. Já chegara o tempo da vinda do Esperado, em quem se cumpririam as promessas do Novo Testamento. As nações não poderiam esperar, como agora fazem, a derradeira vinda, quando com todo o seu poder venha a julgar os homens, se primeiro não houvessem crido nele, quando veio ser julgado na humildade de sua paciência. CAPÍTULO XLVI O nascimento do Salvador e a dispersão dos judeus. Reinando Herodes na Judéia, o imperador César Augusto dera paz ao mundo, depois de mudado o regime constitucional da república, quando Cristo, segundo a citada profecia, nasceu em Belém de Judá, homem visível, nascido humanamente de virgem, e Deus oculto, divinamente gerado por Deus Pai. Assim o predissera o profeta: Sabei que uma virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamarão Emanuel, que quer dizer Deus conosco. E Ele, para evidenciar sua divindade, operou muitos milagres. Deles os Evangelhos recolheram alguns, os suficientes para provar-lhe o intento. O primeiro milagre foi seu admirável nascimento; o último, a gloriosa ascensão ao céu com o corpo ressuscitado. Os judeus, que o mataram e se negaram a crer nele, porque convinha que morresse e ressuscitasse, sofreram o mais desgraçado saque dos romanos, foram expulsos de sua terra, de que os estrangeiros já eram senhores, e dispersos por todas as partes. (E é verdade, porque não faltam em nenhuma.) Assim, suas próprias Escrituras testemunham não havermos inventado as profecias acerca de Cristo. Muitos deles, havendo-as considerado antes da paixão e sobretudo após a ressurreição, vieram a Ele. A esses tais se dirigem estas palavras: Quando o número de filhos de Israel for como a areia do mar, os restantes serão salvos. Os demais cegaram segundo a profecia: Em justa paga converta-se-lhes a mesa em laço de ruína e perdição. Obscureçam-se-lhes os olhos para não verem e traze-os sempre encurvados para o chão. Na realidade, quando não dão crédito a nossas Escrituras, neles, que as leem como cegos, se cumprem as suas. Talvez alguém diga haverem os cristãos imaginado as profecias acerca de Cristo que se publicam com o nome de sibilas ou de outros, se é que na realidade existe alguma que não seja de origem judaica. A mim me bastam as que seus próprios códices me facilitam e conhecemos pelos testemunhos que, mesmo contra sua vontade, contêm esses códices de que são depositários. Sobre sua dispersão pela superfície da terra, onde quer que se encontre a Igreja, pôde-se ler a profecia, em um dos salmos expressa nos seguintes termos: Meu Deus me prevenirá com sua misericórdia. Meu Deus me há de mostrá-la em meus inimigos, dizendo-me: Não acabes com eles, para não esquecerem tua lei. Dispersa-os com teu poder. Deus, por conseguinte, mostrou à Igreja, em seus inimigos, os judeus, a graça de sua misericórdia, porque, como diz o Apóstolo, seu pecado oferece às nações a oportunidade necessária para se salvarem. E não os matou, quer dizer, neles não destruiu o judaísmo, embora vencidos e subjugados pelos romanos, de medo que, esquecidos da lei de Deus, não pudessem oferecer-nos testemunho do que tratamos. Em consequência, não se contentou com dizer: Não acabes com eles, para não esquecerem tua lei, mas acrescentou: Dispersa-os. Porque, se com esse testemunho das Escrituras permanecessem apenas em sua terra, sem serem dispersos por todas as partes, a Igreja, espalhada pelo mundo todo, não poderia tê-los em toda parte como testemunhas das profecias que precederam Cristo. CAPÍTULO XLVII Afora os Israelitas, existiam, antes do cristianismo, cidadãos da Cidade celeste? Se, por conseguinte, algum autor estranho aos judeus e não admitido no cânon das Sagradas Letras profetizou Cristo e já nos chegou ou se chegar-nos ao conhecimento, podemos aduzi-lo a título de redundância. Não porque esse testemunho nos seja necessário, mas por não ser incongruência acreditar que em outras nações existiram homens a quem se revelou tal mistério. Além disso, os impelidos a predizê-lo ou foram partícipes da mesma graça, ou a ela estranhos, mas instruídos pelo anjos maus, que, como sabemos, confessaram Cristo presente, ao passo que os judeus não o reconheciam. Ademais, não acho que os próprios judeus se atrevam a sustentar que ninguém, afora os israelitas, pertenceu a Deus desde a escolha de Israel e a rejeição de seu irmão maior. É verdade haver sido esse o povo com propriedade chamado povo de Deus, mas não podem negar a existência, nas demais nações, de alguns homens dignos de serem chamados verdadeiros israelitas, por serem cidadãos da pátria celeste, unidos com vínculos não terrenos, mas celestiais. Se o negam, é fácil convencê-los com o exemplo do admirável e santo Jó, nem indígena nem prosélito, quer dizer, adventício ao povo de Israel, mas estrangeiro oriundo da Iduméia, onde nasceu e morreu. Prodiga-lhe tais elogios a palavra divina, que, quanto à piedade e à justiça, não se lhe pôde comparar nenhum homem de seu tempo. Embora as crônicas não nos digam em que tempo viveu, podemos conjeturá-lo por seu livro, admitido pelos judeus no cânon, em face de sua excelência. Viveu três gerações depois de Jacó. Não tenho a menor dúvida haver-se tratado de desígnio da Providência divina, que quis ensinar-nos com semelhante exemplo que também entre as demais nações existiram homens que viveram segundo Deus, lhe agradaram e são membros da Jerusalém espiritual. Mas deve-se acreditar haja tal graça sido concedida somente àqueles a quem divinamente se revelou Jesus Cristo homem, único Mediador entre Deus e os homens. Sua futura encarnação era então prenunciada aos futuros santos, como se nos anunciou, já realizada sua encarnação, a fim de que, por mediação sua, uma e a mesma fé conduza a Deus todos os predestinados à Cidade de Deus, à casa de Deus, ao templo de Deus. Quanto às profecias feitas por outros sobre a graça de Deus por meio de Jesus Cristo, pôde-se pensar tratar-se de ficções dos cristãos. Assim, não existe argumento mais forte contra os impugnadores nem mais próprio para confirmar-nos a fé, se se tomam as coisas como se deve, que aduzir as predições divinas acerca de Cristo contidas nos códices dos judeus. Estes, arrancados dos próprios lares e esparzidos pelo orbe inteiro, contribuíram com seu testemunho para o florescimento universal da Igreja de Cristo. CAPÍTULO XLVIII A profecia de Ageu e seu cumprimento na Igreja. Esta casa de Deus é de maior glória que a primeira, construída de madeira e de pedras preciosas e recoberta de ouro. A profecia de Ageu não se cumpriu na restauração do templo, pois desde a restauração teve sua época de maior esplendor no tempo de Salomão. Mais ainda, pôde-se dizer que sua glória minguou com o cessamento das profecias e, depois, por causa dos diversos estragos sofridos pelos judeus até sua destruição, levada a cabo pelos romanos, como já apontamos. Por sua vez, esta casa, pertencente ao Novo Testamento, é tanto mais gloriosa quanto melhores as pedras que a compõem, pedras vivas pela renovação e pela fé. Figurou-a a restauração do templo porque, em linguagem profética, essa renovação significa o Novo Testamento. Nas palavras de Deus por meio do profeta: Darei paz a este lugar, deve-se entender pelo lugar que significa o lugar significado. Como esse lugar restaurado figura a Igreja, que seria edificada por Cristo, as referidas palavras têm o seguinte sentido: Estabelecerei a paz no lugar que figura. Com efeito, todas as coisas figurativas parecem representar, de certa maneira, as coisas figuradas. Por isso diz o Apóstolo: E a pedra era Cristo, porque a pedra de que falava era figura de Cristo. A glória desta casa do Novo Testamento é, pois, maior que a da do Antigo e assim aparecerá quando se faça a dedicação. Virá então o Desejado das nações, como se lê no códice hebraico, porque sua primeira vinda não podia ser desejada por todas as nações, pois não conheciam quem haviam de desejar e ainda não haviam crido nele. Então, segundo os Setenta (porque também seu sentido é profético), virão os que o Senhor escolheu de todas as nações. Então virão unicamente os escolhidos, de quem diz o Apóstolo: Escolheste-nos nele antes da criação do mundo. O grande Arquiteto, que disse: Muitos são os chamados e poucos os escolhidos, sabia muito bem que o edifício desta casa, que não mais veria ruína, não o formariam os chamados que mereceram ser despedidos, mas apenas os escolhidos. Mas agora, enquanto esses que a peneira separará, como da palha separa o grão na eira, enchem as Igrejas, a glória desta casa não se mostra tão grande como se mostrará quando cada qual, esteja onde estiver, estará sempre. CAPÍTULO XLIX Da convivência geral de escolhidos e réprobos na Igreja. Neste século perverso, nestes tristes dias, em que pela humilhação presente a Igreja logra a exaltação futura e é exercitada com os aguilhões do terror, com os tormentos da dor, com os enfados do trabalho e com os perigos das tentações, sem ter outra alegria além da esperança, se se regozija como deve, muitos réprobos se misturam com os bons. Uns e outros são recolhidos na rede evangélica e no mundo, como no mar, presos nas malhas, nadam estremisturados até chegarem à praia, em que os maus serão separados dos bons. Deus habitará nos bons como em seu templo e será todo em todos. Assim vemos cumprir-se a voz de quem no salmo falava nestes temos: Publiquei e anunciei por toda parte e multiplicaram-se sem número. É o que acontece agora, desde que se anunciou, primeiro por boca de São João, seu precursor, e depois pela própria: Fazei penitência, porque está próximo o reino dos céus. Rodeou-se de alguns discípulos, a quem chamou Apóstolos, homens de condição humilde, desconsiderados e sem letras, de sorte que, se fossem ou fizessem algo digno, Ele o seria ou faria neles. Houve entre eles um mau; porém, o Senhor, usando bem de sua maldade, serviu-se dele para cumprir o decretado quanto à sua paixão e dar exemplo de toler8ncia à Igreja. Suficientemente espalhada a semente do santo Evangelho, sua presença corporal padeceu, morreu e ressuscitou, mostrando com sua paixão o que devemos suportar pela verdade e com sua ressurreição o que devemos esperar na eternidade, sem falar do profundo sacramento de seu sangue, derramado em remissão dos pecados. Depois, durante quarenta dias, conviveu na terra com os discípulos e perante seus olhos subiu aos céus; dez dias mais tarde enviou, segundo prometera, o Espírito Santo, cuja vinda sobre os fiéis se manifesta por este signo soberano e soberanamente necessário: cada um deles fala as línguas de todos os povos, figurando, assim, a futura unidade da Igreja católica, que se espalha por todas as nações e fala todas as línguas. CAPÍTULO L A pregação do Evangelho e seu esclarecimento. Vem depois a profecia que diz: A lei sairá de Sião e a palavra de Deus de Jerusalém e as predições do próprio Cristo, quando, após ressuscitar, ante a admiração dos discípulos, lhes abriu o espírito para entenderem as Escrituras e lhes disse: Assim estava escrito e assim era necessário que Cristo padecesse, no terceiro dia ressuscitasse dentre os mortos e em seu nome se pregassem a todas as nações, começando por Jerusalém, a penitência e a remissão dos pecados. Acrescenta-se a essas a que fez, respondendo aos que lhe perguntavam por sua derradeira vinda: Não vos toca saber os tempos e os momentos que o Pai tem reservados para seu poder. Recebereis, isso sim, a virtude do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em toda a Judéia e Samaria e até os confins da terra. De acordo com tais profecias, a Igreja partiu de Jerusalém e, havendo na Judéia e Samaria sido muitos os que creram, estendeu-se a outras nações, pregando-lhes o Evangelho aqueles a quem Cristo, como luzeiros, preparara com a palavra e incendera com o Espírito Santo. Dissera-lhes: Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma. Para não enfriá-los o temor, ardiam no fogo da caridade. Em suma, para a pregação de seu evangelho não se serviu apenas daqueles que o viram e ouviram antes e depois de sua paixão e ressurreição, mas também dos que Se lhes seguiram e em meio de perseguições, tormentos e mortes sem conta, lhe levaram a palavra ao mundo inteiro. Deus confirmava-o com maravilhas, com prodígios, com virtudes várias e com diversos dons do Espírito Santo. Com isso pretendia que os gentios, crendo no crucificado pela redenção deles, venerassem com amor cristão o sangue dos mártires, por eles derramado com furor diabólico, e os reis, cujos editos minavam a Igreja, se submetessem com humildade ao nome que se afanaram em cruelmente desterrar da terra. Assim, as perseguições se dirigiram contra os deuses falsos, por cuja causa haviam sido antes perseguidos os adoradores do verdadeiro Deus. CAPÍTULO LI A diversidade de heresias é argumento a favor da Igreja católica. 1. Mas o diabo, vendo que os templos dos demônios eram abandonados e o gênero humano acudia ao nome do Mediador e do Libertador, suscitou os hereges a fim de que, sob o nome de cristãos, combatessem a doutrina cristã. Como se a Cidade de Deus pudesse ter no seio, sem correção e discriminação, pessoas de tão contrários pontos de vista, a exemplo dos filósofos, que se contradiziam uns aos outros na cidade da confusão! Os que na Igreja de Cristo têm opiniões perigosas e más, se, corrigidos, resistem com contumácia, se negam a emendar-se das pestíferas e mortíferas doutrinas e persistem em defendê-las, tornam-se hereges e, uma vez fora da Igreja, olhamo-los como inimigos que a exercitam. Assim, com seu mal são úteis aos verdadeiros católicos, membros de Cristo, usando Deus bem dos maus e cooperando tudo para o bem dos que o amam. Com efeito, os inimigos da Igreja, quer se tenham tornado cegos pelo erro, quer tenham sido rejeitados por causa da malícia, se a perseguem corporalmente, exercitam-lhe a paciência e, se a combatem com doutrinas contrárias, exercitam-lhe a Sabedoria. Mas sempre, para amar os inimigos, os fiéis lhe exercitam a benevolência ou a beneficência, quer com eles procedam por conferências pacíficas, quer por terríveis castigos. Por isso, o diabo, príncipe da cidade Impia, sublevando seus escravos contra a Cidade de Deus, peregrina neste mundo, não se permite causar-lhe dano algum. A divina Providência procura-lhe consolo na prosperidade, para que a adversidade não a quebre, e exercitação na adversidade, para que a prosperidade não a corrompa. Tal equilíbrio é a origem das palavras do salmo: À proporção dos muitos males que me atormentaram o coração, teus consolos encheram-me a alma de alegria. No mesmo tom diz o Apóstolo: Alegres na esperança e sofridos na tribulação. 2. O Doutor das Gentes diz também que todos os que queiram viver santamente segundo Cristo hão de sofrer perseguições. E preciso, pois, ater-se à ideia de não poderem faltar em tempo algum. Porque, quando parece reinar a paz por parte dos inimigos de fora (e na realidade reina e oferece grande consolo, em especial aos débeis), dentro não faltam, mais ainda, são muitos os inimigos cujos costumes corrompidos atormentam o coração dos homens de bem. São a causa de blasfemarem contra o nome cristão e católico e quanto mais amam tal nome as almas piedosas, ardentemente desejosas de viver segundo Cristo, tanto mais sentem lhe façam semelhante injúria os maus cristãos e seja por isso menos amado do que desejam. Outro objeto de dor para os piedosos é pensar que os hereges, que se dizem também cristãos e têm os mesmos sacramentos, as mesmas Escrituras e a mesma profissão, com suas dissensões enredam na luta muitos dispostos a abraçar o Cristianismo. E dão lugar a blasfêmias contra o nome cristão, nome que também ostentam. Esses e outros erros e desregramentos dos homens são calada perseguição aos que querem viver santamente em Cristo, ainda que ninguém lhes atormente e vexe o corpo. E a perseguição interior, cordial, não corporal. Isso arrancou aquele grito: À proporção das muitas dores que me atormentaram o coração, pois não diz "meu corpo". Ademais, porém, como é sabido que as promessas de Deus são imutáveis e o Apóstolo diz: O Senhor conhece os seus, pois aos que tem previstos também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho e, portanto, nenhum deles pôde perecer, o salmo acrescenta: Teus consolos encheram-me a alma de alegria. A dor que rói o coração dos justos perseguidos pelos costumes dos maus ou falsos cristãos é útil aos que a sentem, porque nasce da caridade, que se alarma por esses miseráveis e por aqueles cuja salvação impedem. Enfim, os fiéis recebem grandes consolos da emenda dos maus, cuja conversão lhes esparge sobre as almas uma chuva de fecundidade tão grande quanto a dor que antes as atormentou. Neste século, nestes tristes dias, não só desde Cristo e dos Apóstolos, mas desde o primeiro justo, Abel, a quem o cruel irmão deu morte, até o fim do mundo, a Igreja continua peregrinando entre as perseguições do mundo e os consolos de Deus. CAPÍTULO LII Haverá mais perseguições, segundo alguns creem, que as dez havidas? 1. Acho temeridade dizer ou crer, como alguns creram e creem, que, depois das dez sofridas, a Igreja não sofrerá perseguições até o anticristo, que suscitará a undécima e última. Deve-se a Nero a primeira; a Domiciano, a segunda; a terceira, a Trajano; a quarta, a Antonino; a Severo, a quinta; a sexta, a Maximino; a sétima, a Décio; a oitava, a Valeriano; a nona, a Aureliano; a décima, a Diocleciano e Maximiano. As dez pragas do Egito, que precederam à saída do povo de Deus, figurariam tais perseguições; a undécima praga, consistente no afogamento dos egípcios no Mar Vermelho, quando em perseguição aos hebreus, ao passo que o povo de Deus o passou a pé enxuto, simbolizaria a última perseguição, a do anticristo. Segundo me parece, os acontecimentos do Egito não são figura profética de tais perseguições, embora os que assim pensam hajam cotejado e comprovado com engenho e esmero todos os pormenores, mas não guiados por espírito profético, e sim fundados em conjeturas do espírito humano, que às vezes chega à verdade e às vezes-se engana. 2. Da perseguição em que foi crucificado o Salvador que dirão os que assim pensam? Que número lhe atribuirão? Se pretendem contar apenas as padecidas pelo corpo da Igreja, não a que deu morte à cabeça, que dirão da suscitada em Jerusalém, depois da ascensão de Cristo, na qual foi lapidado Santo Estevão, São Tiago, irmão de São João, decapitado, São Pedro, encarcerado e libertado por um anjo, os fiéis, expulsos de Jerusalém e dispersados, na qual Saulo, mais tarde Apóstolo São Paulo, espezinhava a Igreja e depois sofria por ela, evangelizando a fé, o que a fizera sofrer, percorrendo a Judéia e outras nações, aonde seu ardente zelo o levava a pregar Cristo? Por que, pois, querem fazê-las começar em Nero, se até os dias de Nero a Igreja foi crescendo em meio de atrocíssimas perseguições, que seria muito demorado contar? Se acham que entre as perseguições se devem registrar todas as suscitadas pelos reis, Herodes também o foi e fez sofrer uma das mais cruéis depois da ascensão do Senhor. Ademais, que respondem de Juliano, que não enumeram entre os dez? Dirão acaso não haver perseguido a Igreja, se proibiu que os cristãos ensinassem e aprendessem as letras liberais? Privou Valentiniano, o Maior, mais tarde imperador, de seu cargo militar, por haver confessado a fé cristã. Deixo de dizer o que começara a fazer em Antioquia, quando, admirado da constância e da fidelidade de certo jovem que, atormentado durante um dia inteiro, cantava entre unhas de ferro e tormentos a liberdade e a alegria, se horrorizou e receou envergonhar-se mais grotescamente nos demais. Enfim, em nosso tempo, o irmão de Valentiniano, o ariano Valente, não suscitou no Oriente sangrenta perseguição contra a Igreja católica? Que significa não considerar que a Igreja, espalhada e florescente por todo o mundo, pôde ser perseguida pelos reis em determinada nação, sem que o seja noutras? Talvez alguém diga que se deve não contar como perseguição a do rei dos godos, dirigida com estranha crueldade na própria Gótia contra os cristãos católicos, muitos dos quais foram coroados com o martírio, segundo ouvimos a alguns irmãos que lembram havê-lo visto, pois então eram crianças. Que se passa agora na Pérsia? Não é verdade haver fervido (se é que já amainou) tal perseguição contra os cristãos, que alguns, fugindo de lá, vieram parar nas Cidades romanas? Ponderando essas e outras coisas assim, acho não dever-se determinar o número de perseguições que hão de exercitar a Igreja. Mas não seria menor temeridade assegurar algumas outras, exceto a última, de que nenhum cristão duvida. Deixamos, pois, em suspenso a questão, sem apoiar nem desapoiar nenhuma dessas opiniões, mas retraindo-nos, simplesmente, da audaz presunção de afirmar uma delas. CAPÍTULO LIII O tempo da última perseguição está oculto. 1. A presença de Cristo fará cessar a última perseguição, a do anticristo. Está escrito que o matará com o sopro de sua boca e o destruirá por completo com o resplendor de sua presença. Aqui é costume perguntar-se: Quando sucederá isso? Na verdade, trata-se de pergunta importuna. Porque, se fosse útil sabê-lo, quem melhor do que o divino Mestre poderia dar a resposta aos discípulos? Ao invés de calarem, apresentaram-lhe a questão nos seguintes termos: Apresentar-te-ás, Senhor, nesse tempo, quando restituirás o reino a Israel? Respondeu-lhes Ele: Não vos compete saber os tempos que o Pai tem reservados para seu poder. Verdade é que não lhe perguntaram o dia, a hora ou o ano, mas o tempo, e Ele lhes deu a referida resposta. Em vão nos afanamos, pois, em determinar os anos restantes até o fim do mundo, pois ouvimos da boca da Verdade que não nos toca sabê-lo. Contudo, uns contam quatrocentos, outros, quinhentos, outros, mil, da ascensão do Senhor à sua última vinda. Dizer em que funda cada qual a própria opinião seria desnecessário e prolixo. Baste saber que se baseiam em conjeturas humanas, sem alegarem nada autorizado da Escritura canônica. Os dedos dos calculadores os reprova e manda deixar em compasso de espera Aquele que diz: Não vos compete saber os tempos que o Pai tem reservados para seu poder. 2. Como, porém, se trata de palavra evangélica, não é de maravilhar não se hajam rendido a ela os adoradores de muitos e falsos deuses nem recuado de fingir respostas dos demônios, a quem rendem culto como a deuses, dizendo estar determinado o tempo que há de durar a religião cristã. Vendo, pois, que perseguições de tal maneira cruéis não a haviam destruído, mas, ao contrário, lhe deram nova vitalidade, excogitaram não sei que versos gregos, efundidos por divino oráculo, como resposta a consulta de alguém, e neles absolvem Cristo dessa espécie de sacrilégio. Mas acrescentam haver-se São Pedro servido de encantamentos para fazer adorar o nome de Cristo durante trezentos e sessenta e cinco anos, findos os quais seria abolido esse culto. Ó imaginação de doutores! o espíritos letrados, dignos de crer de Cristo o que não quereis crer em Cristo, a saber, que o discípulo Pedro não aprendera dele as artes mágicas, mas, sendo Cristo inocente, foi seu feiticeiro o discípulo e com suas artes mágicas, com grandes perigos e trabalhos e com o derramamento do próprio sangue a que fosse adorado seu nome preferiu o fosse o do Mestre! Se o feiticeiro Pedro fez que o mundo amasse tanto a Cristo, que fez o inocente Cristo para assim amá-lo Pedro? Respondam e compreendam, se podem, que a mesma soberana graça que fez que o mundo amasse a Cristo pela vida eterna fez com que São Pedro o amasse para alcançar essa mesma vida eterna a ponto de sofrer por Ele a morte temporal. Ademais, que deuses serão esses que podem predizer tais coisas e não podem impedi-las, deuses obrigados a ceder a um único feiticeiro e criminoso mago, que, como dizem, matou, despedaçou e sepultou com rito nefando; uma criancinha de um ano de idade, deuses que permitem que seita a eles contrária subsista tanto tempo, sobrepondo-se, sem resistência e com paciência, às horrendas crueldades das perseguições, e também lhes destruam os ídolos, os templos, os sacrifícios e os oráculos? Que deus será esse, enfim, não nosso, mas deles, atraído por semelhante maldade ou compelido a suportá-la? Porque não é a demônio, mas a deus, que atribuem tais versos, em que se acusa a Pedro de haver com arte mágica imposto essa fé. Bom deus para quem não teme a Cristo! CAPÍTULO LIV Absurdo da ficção dos gentios acerca da duração da religião cristã. 1. Se o ano prometido pela mentirosa adivinhação e crido pela enganada credulidade já não houvesse passado, recolheríamos aqui essas e outras histórias assim. Como, porém, faz alguns anos, já decorreram trezentos e sessenta e cinco do estabelecimento do culto a Cristo por sua presença física e por seus Apóstolos, que outra prova buscamos para refutar semelhante falsidade? Não se fixe o início dessa realidade no nascimento de Cristo, porque na infância e na meninice ainda não tinha discípulos. Quando começou a tê-los, então brilharam por sua presença corporal a doutrina e a religião cristãs, quer dizer, depois de São João havê-lo batizado no rio Jordão. Com efeito, a isso aludia a profecia que diz: Dominará de mar a mar e do rio ao extremo da terra. Mas antes da paixão e ressurreição de Cristo a fé não fora anunciada a todos, pois se anunciou em sua ressurreição, como, nos seguintes termos, o Apóstolo faz os atenienses notarem: Admoesta agora os homens que todos e em toda parte façam penitência, porquanto está determinado o dia em que com justiça há de julgar o mundo por meio do homem em quem, ressuscitando-o dentre os mortos, a todos definiu a fé. Por isso me parece mais acertado, para solucionar o problema, começar dessa data. Além de que então se deu também o Espírito Santo, como convinha se desse, depois da ressurreição de Cristo, à cidade que seria o ponto de origem da lei segunda, ou seja, do Novo Testamento. A primeira chamada Antigo Testamento, promulgou-a Moisés no Monte Sinal. Da que Cristo havia de dar se predisse: De Sião sairá a lei; de Jerusalém, a palavra do Senhor. Por isso, Ele disse convir que em seu nome se pregasse penitência a todas as nações, mas começando por Jerusalém. Aqui teve origem o culto a seu nome, a fé em Jesus Cristo, que fora crucificado e ressuscitara. Ali essa fé se abrasou e inflamou a ponto de alguns milhares de homens, milagrosamente convertidos ao nome de Cristo, venderem os próprios bens e distribuírem o dinheiro aos pobres, para com santo propósito e ardentíssima caridade abraçarem voluntária pobreza. Assim dispostos, lutavam até à morte, entre os judeus frenéticos e sedentos de sangue, em defesa da verdade, não com poder armado, mas com poderosa paciência. Se para isso não houve necessidade da magia, por que duvidam crer que a mesma virtude divina que fez isto aqui pôde fazer aquilo no mundo inteiro? Se os malefícios de Pedro é que inflamaram em Jerusalém essa multidão de homens arrastados ao culto a Cristo, que haviam pregado na cruz e, uma vez ali, insultado, é preciso considerar esse ano como data inicial para a contagem dos trezentos e sessenta e cinco. Cristo morreu em 25 de março, sob o consulado dos dois gêmeos. Ressuscitou no terceiro dia, segundo o testemunho dos Apóstolos, testemunhas oculares. Aos quarenta dias subiu ao céu e dez dias depois, quer dizer, cinquenta dias após haver ressuscitado, enviou o Espírito Santo. Aí três mil homens deram crédito aos Apóstolos que o pregavam. Então começou o culto a seu nome, pela virtude do Espírito Santo, segundo nossa fé ou segundo a verdade, pelas artes mágicas de São Pedro, segundo a mentira ou o erro da impiedade. Pouco depois se converteram cinco mil homens, ante a maravilhosa cura de um coxo de nascença de tal maneira impossibilitado, que o levavam todos os dias à porta do templo, onde pedia esmola. Isso se deveu à palavra de Pedro em nome de Jesus Cristo. Assim, a Igreja aumentou mais e mais e fez novas conquistas para a fé. E, pois, muito fácil deduzir o dia em que começou o referido ano. Seria, portanto, o dia em que foi enviado o Espírito Santo, quer dizer, lá pelos idos de maio. Mas acontece que, contando os cônsules, os trezentos e sessenta e cinco anos se completam nesses idos, sob o consulado de Honório e de Eutiquíano. No ano seguinte, sendo cônsul Málio Teodoro, quando, segundo o oráculo dos demônios ou a ficção dos homens, já não devia existir a religião cristã, não era necessário investigar os possíveis acontecimentos nas demais partes do mundo. Porque sabemos que em Cartago, a mais nobre e célebre cidade da África, Gaudêncío e Jóvio, condes do imperador Honório, em 19 de março destruíram os templos dos deuses falsos e reduziram-lhes a pedaços os ídolos. Daí para cá, pelo espaço de trinta anos, quem não vê como aumentou o culto ao nome de Cristo, em especial depois de muitos, enredados por essa mentirosa profecia e por isso apartados da fé, se haverem feito cristãos, ao verem passar a quimérica e risível data fixada? Nós, pois, que somos e nos chamamos cristãos, não cremos em Pedro, mas naquele em quem Pedro creu. A palavra de Pedro acerca de Cristo é palavra que nos edifica, não poemas que nos envenenam; Pedro não é artífice de malefícios que nos engana, mas benfeitor que nos assiste. Cristo, Mestre de Pedro na doutrina que conduz à vida eterna, é também nosso Mestre. 2. Mas já é hora de pôr fim a este livro, em que, segundo me parece, retracei suficientemente o progresso mortal de ambas as cidades, a terrena e a celeste, aqui na terra misturadas até o fim do mundo. De homens ou de outros seres a terrena, a seu talante, forjou para si deuses falsos, servia-os e oferecia-lhes sacrifícios; a celeste, peregrina na terra, não forja deuses falsos, mas, ao contrário, é criatura do verdadeiro Deus e seu verdadeiro sacrifício. Ambas usam por igual dos bens temporais ou são afligidas por iguais males, mas sua fé, sua esperança e sua caridade são diferentes, até que sejam separadas no juízo final e chegue cada uma delas a seu fim, que não terá fim. Nos livros seguintes tratarei de tais fins. LIVRO DÉCIMO NONO Versa sobre os fins de ambas as cidades, da celeste e da terrena. Nele se resumem as diversas opiniões dos filósofos em torno da felicidade da vida. Ao passo que as refuta com grande lucidez e trabalho, prova em que consistem a felicidade e a paz da cidade ou do povo cristão. Qual se pôde gozar na vida presente e esperar na futura. CAPÍTULO I Varrão menciona duzentas e oitenta e oito facções sobre o problema do fim. 1. Já que me vejo na necessidade de tratar dos fins de ambas as cidades, da terrena e da celeste, primeiro vou expor, quanto permita o plano da presente obra, os argumentos em que os homens fundaram a obtenção da felicidade na infelicidade desta vida. Ao mesmo tempo farei ver, não apenas pela autoridade divina, mas também pela razão, por causa dos infiéis, a grande diferença que há entre as vaidades dos filósofos, a esperança, que Deus nos deu, e a realidade, quer dizer, a felicidade autêntica que nos dará. Os filósofos trataram com diligência do fim dos bens e dos males. Enfrascados em tal problema com a máxima atenção, afanaram-se em dar com o meio de tornar feliz o homem. O fim de nosso bem é aquele objeto pelo qual se devem apetecer os demais e apetecê-lo por si mesmo. E o fim do mal, aquele pelo qual se devem evitar os demais e evitá-lo por si mesmo. Desse modo, por fim do bem não entendemos fim consuntível até o não ser, mas perfectível até à plenitude, e por fim do mal, não o que o destrua, mas o que o leve ao mais alto grau de nocividade. Esses fins são o soberano bem e o soberano mal. Os que fazem profissão de estudiosos da Sabedoria na vaidade deste mundo trabalharam o indizível, como dissemos, para nesta vida encontrar e obter o soberano bem e evitar o soberano mal. Mas, embora hajam caído em diversos erros, a luz natural não permitiu se desviassem tanto do caminho da verdade, que não localizem o fim dos bens e dos males, uns na alma, outros no corpo e outros em ambos. Dessa tríplice divisão geral, Marco Varrão, em sua exata e penetrante obra Sobre a Filosofia, deduz tal variedade de pontos de vista, que, acrescentando pequenas diferenças, é fácil chegar a duzentos e oitenta e oito, se não reais, pelo menos possíveis. 2. Com o fim de brevemente mostrá-lo, é preciso partir do ponto de partida de Varrão. Há quatro coisas que os homens buscam naturalmente, sem necessidade de mestre, nem de doutrina, nem de indústria, nem da arte de viver, que se chama virtude e é adquirível. São: o prazer, o movimento agradável do sentido do corpo, o descanso, que exclui todo sofrimento corporal, ambas as coisas juntas, por Epicuro chamadas prazer, e os princípios da natureza, que compreendem essas e outras coisas, como, no corpo, a integridade, sanidade e incolumidade dos membros e, na alma os dotes de espírito, grandes ou pequenos. As quatro coisas, o prazer, o descanso, o prazer e o descanso e os princípios da natureza, de tal maneira se encontram arraigados em nós, que a virtude adquirida pela doutrina deve ser buscada por elas ou elas pela virtude ou umas e outras por si mesmas. Assim, cada uma delas triplica, o que, evidenciado em uma, é fácil descobrir nas demais. O prazer do corpo, submetido, preferido ou associado à virtude da alma dá origem a três facções. Está submetido à virtude, quando tomado como instrumento dela. Assim, é dever da virtude viver para a pátria e gerar filhos para ela, coisas que não se podem fazer sem deleite corporal. Tal prazer ocorre tanto no comer e beber para viver como no coabitar para propagar a espécie. Quando preferido à virtude, é apetecido por si mesmo e, nesse caso, a virtude não passa de meio que age apenas para conseguir ou conservar o prazer corporal. Esta vida é desfigurada porque a virtude serve o prazer como a senhor, embora certo não merecer esse nome semelhante virtude. Esse infame sistema, todavia, tem defensores e apologistas entre os filósofos. Enfim, o prazer se une à virtude, quando nem esta, nem aquele são apetecidos um pelo outro, mas cada qual o é por si mesmo. E como o prazer, sujeito, anteposto ou unido à virtude, forma três facções, assim acontece na quietude, assim em ambos e assim nos princípios da natureza. Segundo o vaivém das opiniões humanas, essas coisas às vezes se encontram submetidas, às vezes preferidas, às vezes unidas à virtude e, assim, se formam doze facções. Esse número, porém, por sua vez duplica, se se lhe acrescenta outra diferença, a vida social. Quem adere a uma dessas doze facções o faz exclusivamente por si ou por outro com quem comparte suas vontades. Haverá, pois, doze facções de filósofos que acham deva cada facção ser defendida por si mesma e outras doze que sustentam deverem filosofar desta ou daquela maneira não só por si mesmas, mas também pelas outras, cujo bem apetecem como próprio. As vinte e quatro facções duplicam também, se se lhes acrescenta a diferença própria dos neoacadêmicos. Já temos, por conseguinte, quarenta e oito. Cada qual pôde manter e defender como certa uma das vinte e quatro facções (e assim os estoicos sustentaram consistir na virtude o bem do homem que o torna feliz) ou como incerta ou meramente verossímil, qual acreditaram os neoacadêmicos. Aí já estão vinte e quatro facções dos filósofos que defendem a própria opinião como certa por causa da verdade e outras vinte e quatro dos que as dizem incertas pela verossimilhança. Além disso, porque cada qual pôde abraçar uma das quarenta e oito facções, seguindo o modo de vida de outros filósofos ou seguindo os dos cínicos, essa diferença as duplica, de maneira que somam noventa e seis. Acrescente-se que, como os homens podem defender qualquer delas, levando vida ociosa, a exemplo dos que por possibilidade e gosto se entregaram aos estudos, ou vida de negócios, como os que juntaram o estudo da filosofia com o governo e a administração da república, ou vida mista, como os que dedicaram parte da vida ao ócio erudito e parte ao negócio necessário, tais diferenças podem triplicar o número de facções e elevá-las a duzentas e oitenta e oito. 3. Eis o que recolhi do livro de Varrão o mais sucinta e claramente que pude, atendo-me a seu pensamento e explicando-o a meu modo. Segue longo processo para refutar essas opiniões e escolher uma delas, para ele a dos antigos acadêmicos, que foram fundados por Platão e como certas lhes mantiveram as doutrinas até Polemão, quarto representante da Academia. Distingue dos antigos os neoacadêmicos, segundo os quais todas as coisas são incertas, opinião originária de Arcesilau, sucessor de Polemão. E acrescenta estar isenta de erro e de dúvida a opinião dos acadêmicos antigos. Seria demorado provar cada um desses pontos. Mas não estaria certo omitir o problema de plano. Em primeiro lugar, põe de lado todas as diferenças que multiplicaram o número de facções e assim procede por não estar nelas a meta do bem. Segundo ele, nenhuma facção filosófica existe ou se diferencia das outras senão por ter concepção própria sobre a meta dos bens e dos males. Porque o único motivo que leva o homem a filosofar é o desejo de ser feliz e o que o torna feliz é a meta do bem. Por conseguinte, se a facção filosófica não tem ponto de vista próprio acerca do bem, não merece o nome de facção filosófica. Assim, quando se pergunta se o sábio deve levar vida social, tendo por soberano bem, que torna feliz o homem, procurar para o amigo o bem que para si mesmo procura ou se somente deve buscar a felicidade para si mesmo, a questão não é do soberano bem, mas de saber se deve associar-se à participação de tal bem, não por si mesmo, mas pelo companheiro, de modo a gozar-lhe do bem como goza do próprio. Assim também, quando se pergunta se todas as coisas devem ser consideradas incertas, segundo os neoacadêmicos, ou certas, segundo os outros filósofos, não se pergunta qual a meta do bem a perseguir, mas se deve duvidar ou não da verdade desse bem. Em outros termos, para dizê-lo com mais clareza, perguntar semelhante coisa equivale a perguntar se se deve buscar esse bem, tendo-o por verdadeiro, ou antes, só parecendo verdadeiro, embora, na realidade, falso. Mas uns e outros buscam o mesmo e único bem. A própria diferença de hábito e costume dos cínicos não alude à meta do bem, mas ao modo como deve viver quem busca o verdadeiro bem, seja qual for o que assim lhe pareça. Enfim, houve homens que, fazendo o soberano bem radicar nos diversos objetos, uns na virtude, outros no prazer, não deixavam o modo de vida que aos cínicos lhes ganhou o nome. Seja qual for a diferença que dos demais filósofos distinga os cínicos, é certo que carecia de valor para a escolha do bem beatificante. Porque, se importasse algo, é indubitável que a mesma maneira de viver obrigaria a abraçar o mesmo fim e um modo diverso de vida não permitiria aderir a ele. CAPÍTULO II Redução, feita por Varrão, de todas as facções a três. Quando se pergunta qual dos três gêneros de vida deve ser escolhido, a saber, o ocioso, entregue à contemplação ou busca da verdade, o de negócios ou ativo, que atua na gerência das coisas humanas, ou o misto, o soberano bem não é objeto da pergunta. O problema versa meramente sobre qual dos três gêneros facilita ou dificulta a obtenção ou a conservação do soberano bem. O certo é que o homem, do momento em que chega a esse bem, é feliz. Porém, a paz do estudo, a atividade pública ou a alternativa de ambas não dão imediatamente a felicidade. Muitos podem viver de acordo com um desses três gêneros de vida e errar ao apetecer o soberano bem que fará feliz o homem. São questões muito diferentes a da meta dos bens e dos males, que constitui cada facção de filósofos, e as da vida social, da dúvida dos acadêmicos, do vestuário e alimentos dos cínicos e dos três gêneros de vida, o ocioso, o ativo e o misto. Semelhante problema não se apresenta, ao tratar-se da meta dos bens e dos males. Por isso, Marco Varrão, rechaçando as quatro diferenças, a saber, a vida social, os neoacadêmicos, os cínicos e o tríplice gênero de vida, que fazia o número de facções subir a duzentas e oitenta e oito e, talvez, algumas outras que se lhes pudessem acrescentar, porque não versam sobre a ciência do soberano bem e, portanto, não são nem devem chamar-se facções, retoma às doze primeiras, em que unicamente se trata de saber qual o bem do homem cuja consecução o faça feliz, para demonstrar que apenas uma delas é verdadeira, as demais, falsas. Rejeitado o tríplice gênero de vida, subtraem-se duas terças partes a esse número e ficam noventa e seis facções. Subtraída a diferença proveniente dos cínicos, reduzem-se à metade e ficam quarenta e oito. Tiremos a diferença relativa aos neoacadêmicos e torna a ficar a metade, ou seja, vinte e quatro. Subtraia-se, por fim, a diferença relacionada com a vida social e ficam doze, número que essa diferença duplicara. As doze não se lhes pôde negar o apelativo de facções, porque têm por escopo a procura do soberano bem. Encontrado o soberano bem, seu contrário é o mal supremo. Essas doze facções nascem da triplicação destes quatro objetos: o prazer, a quietude, ambos e os princípios da natureza, por Varrão chamados primigênios. Esses quatro objetos, com efeito, estão, cada um deles em particular, às vezes subordinados à virtude e então parecem desejáveis como instrumentos da virtude e não por si mesmos, às vezes são preferidos, dando a entender que a virtude não é necessária por si mesma, mas para obter ou conservar tais objetos, e, às vezes, lhe estão unidos, caso em que a virtude e eles são apetecíveis por si mesmos, triplicam o número quatro e formam doze facções. Dos referidos quatro objetos, Varrão exclui três, a saber, o prazer, a quietude e o conjunto de ambos, não porque os reprove, mas porque os princípios da natureza implicam prazer e quietude. Que necessidade há, por conseguinte, de dessas duas coisas fazer três, a saber, duas, buscando em separado o prazer e a quietude, a terceira buscando ambas ao mesmo tempo, se os princípios da natureza impregnam essas e outras muitas coisas? Três facções, segundo ele, devem ser examinadas para fazer a escolha entre elas. A razão admite apenas uma verdadeira, quer uma dessas, quer outra, como depois veremos. Entrementes, consideremos breve e claramente, se possível, o modo usado por Varrão na escolha. Reduzem-se a isto as três facções: a apetecer os princípios da natureza pela virtude, a virtude pelos princípios da natureza ou ambos, a virtude e os princípios da natureza, por si mesmos. CAPÍTULO III Três facções relativas ao soberano bem do homem. Qual deve ser preferida. Varrão e Antíoco. 1. Varrão afana-se em definir o verdadeiro entre os três sistemas e procede assim. Dá por certo não ser o soberano bem buscado pela filosofia o soberano bem da planta, nem o do irracional, nem o de Deus, mas o do homem. Por isso acha dever-se aquilatar o conceito de homem, cuja natureza sente constar de duas partes, corpo e alma. Não duvida ser a alma a superior e mais nobre, mas duvida se a alma sozinha é o homem, de forma que para ela o corpo seja o que o cavalo é para o cavaleiro. O cavaleiro, com efeito, não é homem e cavalo, mas homem só, e recebe o nome de cavaleiro por ter certa relação com o cavalo. E também se é o homem apenas o corpo, com determinada relação com a alma, como o copo com a bebida, pois a vasilha e a bebida nela contida não se chamam copo, nome dado ao copo só. Enfim, duvida se nem a alma apenas, nem somente o corpo, mas ambos ao mesmo tempo, são o homem, cujo todo é formado por ambas as partes, assim como a dois potros cangados chamamos biga; cada um deles, o direito ou o esquerdo, é parte da biga e a nenhum em separado damos o nome de biga, mas aos dois juntos, sim. Das referidas três hipóteses escolhe a terceira, pois crê não ser o homem apenas a alma nem somente o corpo, mas a alma e o corpo juntos. Falando com lógica, acrescenta que o soberano bem beatificante do homem consiste no conjunto de bens da alma e do corpo. Por isso acha deverem os princípios da natureza ser apetecidos por si mesmos e constituir a virtude, arte de viver que ensina a ciência, o mais excelente de todos os bens da alma. Em recebendo os princípios da natureza, independentes dela e anteriores a toda ciência, a virtude, ou seja, a arte de viver, apetece-os todos por si mesma e, ao mesmo tempo, apetece a si mesma. E usa deles e de si mesma com o fim de deleitar-se e gozar de todos mais ou menos, segundo sejam maiores ou menores. Quando necessário, despreza alguns menores para adquirir ou conservar os maiores. Nenhum de todos os bens da alma ou do corpo a virtude antepõe a si mesma. Faz bom uso de si mesma e dos demais bens que fazem feliz o homem. Onde não está, os outros bens, por mais abundantes que sejam, não são para bem do que os possui e, portanto, não merecem o nome de bens, porque não podem ser úteis a quem os usa mal. Por conseguinte, a vida do homem é feliz, quando goza da virtude e dos demais bens da alma e do corpo, sem os quais a virtude não pôde subsistir. Se goza também de alguns ou de muitos outros não necessários para que a virtude subsista, é mais feliz; se os possui todos, sem faltar-lhe nenhum, nem da alma, nem do corpo, é felicíssima. A vida não é o mesmo que a virtude, porque nem toda vida é virtude, mas apenas a vida sábia. Contudo, a vida, seja qual for, pôde existir sem a virtude, que por sua vez, não pôde existir sem a vida. O mesmo diríamos da memória, da razão e das outras faculdades semelhantes existentes no homem. Também são anteriores à ciência e sem elas não pôde existir ciência alguma, nem, por conseguinte, a virtude, fruto de aprendizagem. Quanto aos bens do corpo, como a ligeireza, a formosura, a força e assim por diante, a virtude pôde existir sem eles e eles sem a virtude; todavia, são bens. Segundo tais filósofos, a virtude ama-os também por si mesma e deles usa e goza como lhe convém. 2. Acrescentam que essa vida feliz é também vida social, que, como os próprios, ama por si mesmos os bens dos amigos e lhes deseja o que para si mesma deseja. E isso, quer vivam na mesma casa, como a esposa, os filhos ou os domésticos; no mesmo lugar em que está situada a casa, quer dizer, na mesma cidade, como os cidadãos; em todo o orbe, como as nações unidas pela sociedade humana; quer no mundo, compreendido sob o nome de céu e terra, como os deuses, que, segundo os referidos filósofos, são amigos dos homens sábios e a quem conscientemente damos o nome de anjos. Sustenta, ademais, não haver lugar para dúvidas, quanto à questão do soberano bem e do soberano mal. Nisso radica a distinção que os separa dos neoacadêmicos, além de que pouco lhes importa siga o filósofo este ou aquele gênero de vida, o dos cínicos ou qualquer outro, para alcançar o soberano bem. Enfim, quanto aos três gêneros de vida, ocioso, ativo e misto, agrada-lhes mais o terceiro. Varrão garante serem esses o modo de pensar e os ensinamentos dos antigos acadêmicos, segundo o testemunho de Antíoco, mestre de Cícero e seu, embora na realidade pareça haver Cícero seguido em mais pontos os estoicos que os antigos acadêmicos. Mas que nos importa a nós, que devemos julgar das coisas em si, saber a opinião de cada um dos homens? CAPÍTULO IV Pensamento dos cristãos acerca do ponto relativo ao soberano bem. 1. Se nos perguntam qual o pensamento da Cidade de Deus acerca de cada um de tais pontos, em primeiro lugar acerca do fim dos bens e dos males, ela mesma responderá ser a vida eterna o soberano bem, a morte eterna o soberano mal. E, como consequência, devemos bem viver, para obtermos aquela e esquivar esta. Está escrito: O justo vive da fé, porque, como ainda não vemos nosso bem, é preciso que o busquemos pela fé. O próprio bem viver não o obtemos com nossas próprias forças, se quem nos deu a fé, que nos leva a crer em nossa debilidade, não nos auxilia a crer e a suplicar. Com estranha vaidade, fizeram a felicidade depender de si mesmos aqueles que julgaram encontrar-se nesta vida o fim dos bens e dos males e, assim, radicaram o soberano bem no corpo ou na alma, ou nos dois juntos, ou, para expressá-lo de maneira mais explícita, no prazer, ou na virtude, ou em ambos ao mesmo tempo; na quietude, ou na virtude, ou em ambos; no prazer e na quietude juntos, ou na virtude, ou em ambos; nos princípios da natureza, ou na virtude, ou em ambos. A Verdade riu-se de semelhante orgulho, ao dizer o Senhor por seu profeta: Conheci serem vãos os pensamentos dos homens ou, segundo o Apóstolo São Paulo: O Senhor conhece os pensamentos dos sábios e sabe serem vãos. 2. Que caudal de eloquência bastaria para descrever as misérias desta vida? Cícero tentou fazê-lo a seu modo em Acerca da Consolação por ocasião da morte de sua filha. Mas como voa rasteiro! Os princípios da natureza, quando, como, onde podem ser possuídos nesta vida, sem estarem sujeitos a vaivens sem conta? A que dor e a que inquietude, contrárias ao prazer e à quietude, não se acha exposto o corpo do sábio? A debilidade ou amputação de membros é contrária à integridade do homem; a deformidade, à beleza; a enfermidade, à saúde; a lassitude, às forças; o langor ou o peso, à ligeireza. De qual desses males está livre a carne do sábio? Quando adequados e próprios, também o equilíbrio e o movimento do corpo se contam entre os princípios da natureza. Que sucederá, porém, se alguma indisposição faz os membros tremerem? Que sucederá, se a espinha dorsal se curva a ponto de o homem, transformando-se em quadrúpede, arrastar as mãos pelo solo? Não dará isso em terra com a beleza e o decoro do equilíbrio e do movimento corporal? Que dizer dos bens primários da alma, o sentido e o intelecto, um dado para perceber a verdade, o outro para compreendê-la? Mas, quanto ao primeiro, que tal ficará ou a que se reduzirá o sentido, se, para não dizer outra coisa, o homem se torna cego e surdo? Quanto ao segundo, aonde irão parar a razão e a inteligência, onde serão sepultadas, se por alguma enfermidade o homem se torna louco? Quando os frenéticos dizem absurdos sem conta e fazem extravagâncias estranhas e até contrárias a seu bom plano de vida e a seus costumes, se o consideramos com seriedade, quer o hajamos visto, quer o imaginemos, mal podemos conter as lágrimas e choramos. Que direi daqueles que sofrem a possessão dos demônios? Onde está sepultada sua inteligência, quando o espírito maligno usa, a seu capricho, da alma e do corpo dos possessos? Quem garante que nesta vida esse mal não pôde sobrevir ao sábio? Ainda há mais. Quão defeituosa é nesta carne a percepção da verdade, segundo as palavras da Sabedoria: O corpo corruptível agrava a alma e a morada terrena oprime o sentido, que imagina muitas coisas! O ímpeto ou vontade de ação, se é que a expressão fielmente traduz a palavra grega ormé, também contado entre os primeiros princípios da natureza, não é porventura nos furiosos a causa dos movimentos e das ações que nos horrorizam, ao perverter-se o sentido e transtornar-se a razão? 3. Enfim, a própria virtude, que não entra no número dos princípios da natureza, pois se trata de fruto tardio da ciência, mas reclama para si o primeiro posto entre os bens humanos, que faz na terra senão contínua guerra contra os vícios, não contra os exteriores, mas contra os interiores, não contra os alheios, mas contra os próprios e pessoais? Essa guerra trava-a sobretudo a virtude, chamada em grego sophrosyne e em latim "temperança" , que tem por objeto frear a libido carnal, a fim de que não leve a mente a consentir, despenhando-se em mil e um crimes. Não pensemos não existir vício em nós, quando a carne, como diz o Apóstolo, deseja contra o espírito. A esse vício diretamente se opõe determinada virtude, por ele apontada nos seguintes termos: E o espírito deseja contra a carne. São princípios, acrescenta, contraditórios entre si e, por isso, não fazeis quanto quereis. Que queremos fazer, quando queremos chegar à perfeição do soberano bem, senão que a carne não deseje contra o espírito nem crie em nós o vício contra o qual o espírito deseja? Mas, embora queiramos fazê-lo na presente vida, como não podemos, procuremos ao menos, com o auxílio de Deus, não ceder, fazendo o espírito render-se à carne, que deseja contra ele, e não consentir na perpetração do pecado. Deus nos livre de acreditar que, desgarrados e lutando ainda nessa guerra intestina, já conseguimos a felicidade, sem a posse da vitória. Existe algum sábio que não sustente esse íntimo combate contra as próprias paixões? 4. Que diremos da virtude chamada prudência? Sua vigilância toda não se encaminha a discernir os bens dos males, para sem erro buscar os primeiros e fugir dos segundos? Ela mesma é prova de estarmos no mal e de o mal estar em nós. Ensina-nos que é mal consentir na libido pecaminosa e bem não consentir nela. O mal que a prudência nos ensina a não consentir e a temperança nos faz combater nem a prudência, nem a temperança o descartam desta vida. Que dizer da justiça, cujo objeto é dar a cada qual o que é seu? (Assim, no homem há ordem justa e procedente da natureza, ordem segundo a qual a alma está submetida a Deus, a carne à alma e a alma e a carne a Deus.) Não é verdade que também essa virtude prova que ainda trabalha em tal obra, a cujo fim, todavia, não chegou? A alma está, com efeito, tanto menos submetida a Deus quanto menos pensa nele. A carne está tanto menos submetida ao espírito quanto mais deseja contra o espírito. Enquanto arrastarmos esta debilidade, esta enfermidade, esta tara, como ousaremos dizer que já estamos salvos? E, se ainda não estamos salvos, como ousaremos dizer-nos de posse da bem-aventurança final? A fortaleza, acompanhada de qualquer sabedoria que seja, é o mais irrefragável testemunho dos males do homem, males que se vê obrigada a tolerar com paciência. Maravilha-me hajam os estoicos tido a ousadia de negar a existência de tais males e de aconselhar ao sábio que, se forem tão fortes que não possa ou não deva suportá-las, se suicide e emigre desta vida. Tal é a estupidez do orgulho desses homens que pretendem encontrar nesta vida e em si mesmos o princípio da felicidade. E tal a desvergonha deles, que chamam feliz o sábio, segundo o descreve sua vaidade, embora fique cego, surdo, mudo, fisicamente incapaz, seja atormentado por dores de crueldade inimaginável ou lhe sobrevenha outro mal, que se veja obrigado a matar-se, finalizando assim esta vida. Ó vida bem-aventurada, que recorre à morte para deixar de sê-la! Se é feliz, continue vivendo. Se dela foge, obrigado pelos referidos males, como é feliz? Não são males, porventura, os que triunfam sobre a fortaleza e a obrigam não apenas à rendição, mas também ao disparate de considerar feliz a vida a que se deve fugir? Quem é tão cego a ponto de não ver que, se é feliz, não se deve fugir-lhe? E, se admitem que se deve fugir dela, por causa do peso da enfermidade que a oprime, por que não lhe reconhecem a miséria, dobrando a soberba cerviz? Uma pergunta: Catão matou-se por paciência ou, antes, por impaciência? Acho que não o teria feito, se houvesse suportado com paciência a vitória de César. Onde está sua fortaleza? Cedeu, rendeu-se, foi de tal maneira vencido, que abandonou e desertou da vida feliz. Ou já não era feliz? Então, era miserável. E como não eram males os que tornavam-lhe miserável a vida e merecedora de que lhe fugisse? 5. Mesmo os peripatéticos, os da antiga Academia, de quem Varrão se mostra defensor, e quantos admitem a existência de tais males falam com mais tolerância. Mas o erro deles é estranho, porque sustentam ser feliz a vida, embora sejam de tal maneira duros os referidos males, que obriguem a gente a matar-se, para fugir-lhes. Os tormentos e as dores do corpo são males, diz Varrão, e tanto piores quanto mais podem aumentar. Por isso, para te veres livre deles, deves fugir desta vida. De que vida? pergunto. Desta vida, tão carregada de males, responde ele. Que é feliz em meio desses males que devem, segundo afirmas, decidir-nos a fugir-lhe? Ou será que a chamas feliz justamente porque te é lícito afastar-te de tais males pela morte? Que aconteceria, se, por oculto juízo de Deus, ficasses retido entre esses males, sem ser-te permitido morrer nem jamais separar-te deles? Na verdade, então darias a esta vida, pelo menos, o qualificativo de miserável. Não deixa, pois, de ser miserável por ser prestes abandonada, porquanto, se eterna, serias o primeiro a tachá-la de miserável. Nem por ser breve deve parecer-nos não ser miséria ou, maior absurdo ainda, dever chamar-se felicidade, por ser miséria breve. Há nesses males grande força que obriga o homem, inclusive o sábio, a deixar de ser homem. Porque dizem (e dizem verdade) que o primeiro e mais potente grito da natureza consiste em o homem amar-se a si mesmo e, como consequência, naturalmente fugir à morte. E tão amigo é de si próprio, que quer ser animal e conservar essa íntima união de corpo e alma e apetece-o com veemência. Há grande violência nesses males, que superam o sentido da natureza, que leva a evitar a morte a todo custo e por todos os meios. E superam-no de tal forma, que agora deseja e apetece a morte e, se não há quem lha dê, o homem por suas próprias mãos a inflige a si mesmo. Há grande poder nesses males que tornam homicida a fortaleza, se é que em tal caso deve chamar-se fortaleza, porquanto é por eles vencida de tal modo que ela, que como virtude se encarregara da direção e da defesa do homem, não apenas não pôde conservar seu ser pela paciência, como também (e isso é que é triste!) se vê constrangida a matar-se. E verdade que o sábio deve suportar com paciência a morte, mas quando vem de mão estranha. Se, por conseguinte, se vê obrigado a infligi-la a si mesmo, é preciso admitir que, para eles, semelhantes acidentes são males, males, porém, intoleráveis, que o obrigam a cometer esse desatino. Vida oprimida pelo peso de tantas e tais misérias ou sujeita aos acontecimentos externos jamais seria chamada feliz, se os homens, que lhe dão esse nome, como cedem à infelicidade, vencidos pelo alude de males que os leva ao suicídio, se dignassem ceder à felicidade, rendendo-se à evidência das razões na busca da vida feliz, e não acreditassem que nesta mortalidade a gente deve gozar do soberano bem. Aqui, as próprias virtudes, o mais útil e nobre do homem, quanto maior auxílio nos oferecem contra a violência dos perigos, das dores e dos trabalhos, tanto mais fiéis testemunhos são das misérias. Porque, se não são verdadeiras virtudes (e essas não podem possuí-las senão os que têm verdadeira piedade), não permitem a ninguém livrar-se de miséria alguma. E não fazem semelhante promessa porque as verdadeiras virtudes não sabem mentir. Prometem, isso sim, que a vida humana, constrangida a ser miserável entre os mil e um males deste mundo, pôde com a esperança do século futuro ser feliz e, ao mesmo tempo, salva. Com efeito, como será feliz, se ainda não está salva? Por isso, o Apóstolo São Paulo, falando, não dos homens imprudentes, impacientes, intemperantes e iníquos, mas dos que vivem segundo a verdadeira piedade e têm virtudes autênticas, diz: Porque não somos salvos senão em esperança. Mas não se diz que alguém tem esperança daquilo que jó vê, pois como poderá alguém esperar o que já vê? Se, por conseguinte, esperamos o que não vemos, aguardamo-lo pela paciência. A felicidade segue o mesmo caminho que a salvação, o da esperança. E como a salvação não a temos já, mas a esperamos futura, assim se passa com a felicidade. A cláusula pela paciência está posta porque vivemos entre males, que é preciso suportar com paciência, até lograrmos os inefáveis bens que nos deleitarão plenamente. Então já não haverá nada que tolerar. A salvação da outra vida será, por conseguinte, a felicidade final. E os filósofos, que não querem crer porque não veem, forjam a seu talante, fundados em virtude tanto mais enganosa quanto mais soberba, o fantasma de felicidade terrena. CAPÍTULO V A vida social e suas dificuldades. Nossa mais ampla acolhida à opinião de que a vida do sábio é vida de sociedade. Porque donde se originaria, como se desenvolveria e como alcançaria seu fim a Cidade de Deus, objeto desta obra, cujo Livro Décimo Nono estamos escrevendo agora, se não fosse vida social a vida dos santos? Mas quem será capaz de enumerar a infinidade e gravidade dos males a que nesta mísera condição mortal está sujeita a sociedade humana? Quem bastará para ponderá-los? Escutem um de seus poetas cômicos, que, com a aprovação de todo o auditório, põe na boca de certo personagem estas palavras: Tomei esposa e, então, quanta miséria vi! Nasceram-me filhos e quantas preocupações mais! Que dizer dos choques de amor, descritos pelo mesmo Terêncio, injúrias, suspeitas, inimizades, guerra hoje e paz amanhã? Não é verdade que as taças humanas transbordam desses licores? Não é verdade que isso também sucede com frequência nos amores honestos entre amigos? Não é verdade que os homens por toda parte sentimos injúrias, suspeitas, inimizades e guerras? São males certos, mas a paz é bem incerta, por desconhecermos o coração daqueles com quem queremos tê-la e, embora o conheçamos hoje, não sabemos o que será amanhã. Que pessoas costumam ou, pelo menos, devem ter mais amizade entre si que as residentes sob o mesmo teto, na mesma casa? Quem delas, todavia, está segura, quando vê os males acontecidos por causa de ocultas maquinações, males tanto mais amargos quanto mais doce foi a paz considerada verdadeira, embora não passasse de astuta mentira? Isso fez Cícero dizer estas palavras, que ferem o coração, convidam a chorar e arrancam lágrimas: Não há traições mais perigosas que aquelas que se cobrem com a máscara do afeto ou com o nome de parentesco. Porque é fácil a gente pôr-se em guarda contra inimigo declarado, mas, ai, como é difícil dar com o meio de romper secreta trama, interior e doméstica, que nos encadeia antes de podermos reconhecê-la e descobri-la. Por esse motivo tampouco é possível ouvir-se sem dor no coração as palavras divinas: Os inimigos do homem serão os moradores de sua própria casa. Porque, mesmo quando alguém seja tão forte que aguente com paciência ou tão vigilante que se guarde com prudência das maquinações contra ele feitas por amizade fingida, necessariamente há de para ele, se é bom, ser grave tormento o mal praticado por tais homens, ao perceber tratar-se de gente péssima. Isso, quer fossem sempre maus e se fingissem tais, quer hajam trocado em malícia sua bondade. Se a casa, refúgio comum nesses males que sobrevêm aos homens, não está segura, que será da cidade? Que será da cidade, tanto mais cheia de pleitos, cíveis e criminais, quanto maior é, embora escape às turbulentas sedições, com frequência sangrentas, e às guerras civis, acontecimentos de que as cidades às vezes se veem livres, mas dos perigos nunca? CAPÍTULO VI Erro dos juízos humanos, quando a verdade se encontra oculta. Que dizer dos juízos que os homens fazem dos homens, atividade que não pôde faltar nas cidades, por mais em paz que estejam? Já pensamos alguma vez em quais, quão miseráveis e quão dolorosos são? Julga quem não pôde ler na consciência de quem é julgado. Daí nasce com frequência a necessidade de recorrer com tormentos a testemunhas inocentes para declararem a verdade de causa alheia. Que direi do tormento que se faz o acusado sofrer em sua própria causa? E que, quando para saberem se é culpado o atormentam e, sendo inocente, se lhe impõem penas certas por crime incerto, não porque se descobre que o cometeu, mas porque se ignora que não cometeu? A ignorância do juiz é, com frequência, a desventura do inocente. E o que é mais intolerável, mais de chorar e mais digno, se fora possível, de ser banhado em torrentes de lágrimas é que, ordenando o juiz torturar o réu, para não fazer, por ignorância, inocente morrer, lhe sucede, por causa da miséria de tal ignorância, matar o torturado e inocente a quem torturara a fim de não matá-lo inocente. Se,de acordo com a doutrina dos referidos filósofos, o réu preferisse fugir da vida a suportar por mais tempo semelhantes tormentos, diria haver cometido crime que não cometeu. Ei-lo já condenado e morto e o juiz sem saber se deu morte a culpado ou a inocente, havendo-o torturado a fim de por ignorância não matar inocente. Torturou-o para conhecer-lhe a inocência e matou-o sem conhecê-la. Nessas trevas da vida civil, juiz que seja sábio se sentará ou não no tribunal? Sentar-se-á, sem dúvida, porque a isso o constrange e obriga a sociedade humana, a qual ele considera crime abandonar. E não considera crime torturar testemunhas inocentes em causas alheias, nem que os acusados, a miúdo vencidos pela violência da dor, declarando de si mesmos coisas falsas, sejam condenados, apesar de inocentes, depois de inocentes, haverem sido torturados! Tampouco considera crime que, às vezes, os acusadores, talvez com o desejo de serem úteis à sociedade humana e com o fim de não ficarem impunes os crimes, mentindo as testemunhas e o réu enfrentando com bravura os tormentos, não confessando, sem poderem provar suas declarações, embora verdadeiras, sejam condenados por juiz ignorante! O juiz sábio não se julga culpado de tantos pecados e de tão enormes males, porque não os pratica com vontade perversa, mas por invencível ignorância, e, como a isso o força a sociedade humana, também por ofício se vê obrigado a praticá-los. No caso há, por conseguinte, miséria do homem e não malignidade do juiz. Se a necessidade, quer dizer, a ignorância e o ofício de juiz o constrangem a castigar e a torturar inocentes, é pouco não ser réu, se além disso não é feliz? Ah! Como não andaria mais sensata e dignamente, reconhecendo em tal necessidade a miséria humana e odiando-a em si mesmo e, se tem algum sentimento de piedade, clamando a Deus: Livra-me de minhas necessidades! CAPÍTULO VII Diversidade de línguas e miséria das guerras. Depois da cidade ou da urbe vem o orbe da terra, terceiro grau da sociedade humana, que percorre os seguintes estágios: casa, urbe e orbe. O universo é como o oceano das águas: quanto maior, tanto mais escolhos. A principal causa da separação entre os homens é a diversidade de línguas. Suponhamos que em viagem se encontram duas pessoas; uma ignora a língua da outra, mas por necessidade têm de caminhar juntas grande trecho. Os animais mudos, embora de espécie diferente, associam-se de modo mais fácil que essas duas pessoas, apesar de seres humanos. E quando, unicamente por causa da diversidade de línguas, os homens não podem comunicar uns aos outros o que pensam, de nada serve para associá-los a mais pura semelhança de natureza. Tanto assim, que em tal caso o homem está melhor em companhia de seu próprio cão que de homem estranho. Todavia, dir-se-á, aconteceu que cidade feita para imperar não apenas impôs o jugo, mas também o domínio social e pacífico de sua língua às nações dominadas e tal conquista preveniu a carência de intérpretes. E verdade, mas à custa de quantas e que enormes guerras, de quanta devastação e de quanto derramamento de sangue se conseguiu! Passaram esses males e, contudo, a miséria deles não se acabou. Embora certo que não faltaram, nem faltam, nações estrangeiras inimigas contra as quais sempre se travaram e ainda hoje se travam guerras, a própria grandeza do império deu origem a guerras de pior tipo, às guerras sociais e às civis. Por causa delas o gênero humano padece tremendos choques, tanto quando se guerreia para conseguir a paz, como quando se teme novo recrudescimento. Se quiséssemos expor como merecem os mil e um estragos produzidos por tais males, suas duras e inumanas crueldades, embora por uma parte me fosse impossível pintá-los como exigem, qual seria, por outra, o fim de tão prolixas palavras? O sábio, acrescentam, há de travar guerras justas. Como se o sábio, cônscio de ser homem, não sentirá muito mais ver-se obrigado a declarar guerras justas, pois, se não fossem justas, não devia declará-las e, portanto, para ele não haveria guerras! A injustiça do inimigo é a causa de o sábio declarar guerras justas. Semelhante injustiça, embora não acompanhada de guerra simplesmente por ser tara humana, deve deplorá-la o homem. E evidente, por conseguinte, que neles reconhece a miséria quem quer que considere com dor males tão enormes, tão horrendos e inumanos. Quem os tolera e considera sem dor é muito mais miserável ao julgar-se feliz, porque perdeu o sentimento humano. CAPÍTULO VIII Insegurança da amizade nesta vida. Se ignorância próxima da demência, frequente, por certo, na mísera condição desta vida, não nos cega a ponto de confundirmos o amigo com o inimigo e o inimigo com o amigo, que consolo melhor encontramos, entre as agitações e amargores da sociedade humana, que a fé sincera e o mútuo amor dos bons e autênticos amigos? Quantos mais, entretanto, e em mais lugares os temos, tanto mais receamos lhes suceda algum acidente desses de que o mundo anda cheio. Porque não nos preocupa somente que os não aflijam a fome, as guerras, as enfermidades, o cativeiro e os males que isso tudo traz consigo, impossíveis de imaginar, mas também receamos (e trata-se de receio muito mais amargo) se tornem pérfidos e malvados. Quando isso acontece (tanto mais, evidentemente, quanto mais e mais diferentes são nossos amigos) e nos chega ao conhecimento, quem, senão aquele que sente semelhantes reveses, poderá imaginar as chamas em que nos arde o coração? Preferiríamos saber mortos nossos amigos, embora também isso não pudéssemos sabê-lo sem dor. Como é possível que não nos injete a tristeza na alma a morte de pessoas cuja vida nos alegrava com os consolos da amizade? Quem proscreve essa tristeza proscreva também, se pôde, a conversa entre amigos. Interrompa ou corte o fio da própria amizade, rompa com selvagem estupidez os mais doces laços das relações humanas. Ou, se não, creia ser necessário usá-los sem que a amizade alente no espírito esse ar de doçura. Se tudo isso é impossível, como não há de ser-nos amarga a morte daquele cuja vida nos é doce? Daí nasce essa melancolia, essa espécie de ferida ou chaga do coração, não inumana, que só encontra cura nas doçuras das consolações. Dizer que tais feridas cicatrizam tanto mais cedo e facilmente quanto melhor a alma, não é dizer que na alma não existe chaga. Apesar de a morte dos seres mais queridos, em especial se fautores dos laços sociais, afligir mais branda ou mais duramente a vida dos mortais, preferimos vê-los morrer a vê-los desertar da virtude ou da fé, que é morrer na alma. Dessa imensa quantidade de males a terra está cheia. Por isso está escrito: Não é verdade que a vida do homem sobre a terra é tentação? Por isso diz o Senhor: Ai do mundo, por causa dos escândalos! E de igual modo: Porque abundou a iniquidade, esfriará a caridade de muitos. Eis por que devemos felicitar-nos pela morte de nossos melhores amigos. E, quando nosso coração for presa da angústia, consolemo-nos e pensemos haver a morte livrado os amigos dos males que ferem, depravam ou, pelo menos, põem em perigo nesta vida até mesmo os homens bons. CAPÍTULO IX A amizade dos santos anjos e o porquê de ocultar-se de nós. Quanto aos santos anjos, quer dizer, à quarta sociedade estabelecida pelos filósofos que pretendem tenhamos os deuses por amigos, passando do orbe ao mundo e abarcando assim, de certo modo, também o céu, não tememos que tais amigos nos contristem com sua morte ou com sua depravação. Como, porém, não temos com eles a familiaridade que temos com os demais homens e é uma das aflições da vida e, às vezes, Satanás, segundo a Escritura, se transfigura em anjo de luz para tentar aqueles que têm necessidade de ser assim provados ou merecem ser enganados, a grande misericórdia de Deus é necessária, para que ninguém, crendo ter por amigos os anjos bons, tenha por amigos fingidos a demônios maus, inimigos tanto mais daninhos quanto mais astutos e mentirosos. Quem tem necessidade da grande misericórdia de Deus senão a grande miséria humana, oprimida por ignorância tão supina, que a simulação dos demônios com facilidade a engana? E muito certo haverem tais filósofos, que disseram ter os deuses por amigos, caído na cidade ímpia na armadilha dos demônios, que a dominam por completo e com ela sofrerão suplício eterno. Porque à vista de todos está pelos sacrifícios, ou por melhor dizer, pelos sacrilégios com que seus adoradores pensaram dever render-lhes culto e pelos nefandos jogos com que, por exigência e a pedido dos demônios, representavam essas maldades e ignomínias que serviam para aplacá-los. CAPÍTULO X Fruto da vitória preparado para os santos. Os santos e os fiéis adoradores do único Deus soberano e verdadeiro ainda não se encontram a salvo dos enganos e das multiformes tentações dos demônios. Neste vale de fraqueza e de miséria, tal inquietude não carece de sentido, pois acende e excita o desejo da segurança em que haverá inteiramente certa e perfeita paz. Aí se encontrarão todos os dons da natureza, quer dizer, as perfeições dadas pelo Criador à nossa natureza, bens eternos não apenas para a alma, curada pela sabedoria, mas também para o corpo, renovado pela ressurreição. Aí as virtudes não lutarão contra os vícios ou contra os males, mas, como prêmio de sua vitória, possuirão eterna paz, não turbada por inimigo algum. Será essa a bem-aventurança final, o fim da perfeição, que não terá fim. O mundo chama-nos felizes de verdade, quando gozamos de paz, tal qual podemos gozar nesta vida; semelhante felicidade, entretanto, comparada com a final, de que falamos, não passa de verdadeira miséria. Quando nós, mortais, entre a efemeridade das coisas, possuímos a paz que pôde existir no mundo, se vivemos retamente, a virtude usa com retidão de seus bens; mas, quando não a possuímos, a virtude faz bom uso até mesmo dos males de nossa condição humana. A verdadeira virtude consiste, portanto, em fazer bom uso dos bens e males e em referir tudo ao fim último, que nos porá na posse de perfeita e incomparável paz. CAPÍTULO XI A felicidade da paz eterna, verdadeira perfeição e fim dos santos. Podemos, por conseguinte, dizer da paz o que dissemos da vida eterna, a saber, que é o fim de nossos bens, visto como certo salmo, falando da cidade objeto deste laborioso trabalho, assim se expressa: Louva o Senhor, Jerusalém, louva, Sião, teu Deus. Porque Ele, que as portas te reforçou com fortes barras e te abençoou os filhos e moradores, estabeleceu a paz em tuas fronteiras. Quando os ferrolhos de suas portas estiverem reforçados, ninguém entrará nela, ninguém sairá dela. Por essas fronteiras de que fala o salmo devemos entender aqui a paz que queremos provar ser a final. O nome místico de tal cidade, quer dizer, Jerusalém, significa "visão da paz", como já fizemos observar. Mas, como o nome de paz é também corrente nas coisas mortais, onde não se dá a vida eterna, preferi reservar o nome de vida eterna para o fim em que a Cidade de Deus encontrará seu supremo e soberano bem. Do referido fim diz o Apóstolo: Agora, livres do pecado e convertidos em servos de Deus, tendes a santificação por vosso fruto e por fim a vida eterna. Mas, como também os não familiarizados com as Sagradas Escrituras podem entender por vida eterna a vida dos pecadores, quer, segundo alguns filósofos, por causa da imortalidade da alma, quer, segundo nossa fé, por causa das intermináveis penas dos ímpios, que não seriam eternamente atormentados, se não vivessem eternamente, deve chamar-se fim dessa cidade, em que gozará do soberano bem, ou a paz na vida eterna, ou a vida eterna na paz. Assim todos podem entendê-lo com facilidade. E tão nobre bem é a paz, que mesmo entre as coisas terrenas e mortais nada existe mais grato ao ouvido, nem mais desejável ao desejo, nem superior em excelência. Abrigo a convicção de que, se me detivesse um pouco a falar dele, não seria oneroso aos leitores, tanto pelo fim da cidade de que tratamos como pela doçura da paz, ansiada por todos. CAPÍTULO XII Paz, suprema aspiração dos seres. 1. Quem quer que repare nas coisas humanas e na natureza delas reconhecerá comigo que, assim como não há ninguém que não queira sentir alegria, assim também "não há ninguém que não queira ter paz". Com efeito, os próprios amigos da guerra apenas desejam vencer e, por conseguinte, anseiam, guerreando, chegar à gloriosa paz. E em que consiste a vitória senão em sujeitar os rebeldes? Logrado esse efeito, chega a paz. A paz é, pois, também o fim perseguido por aqueles mesmos que se afariam em demonstrar valor guerreiro, comandando e combatendo. Donde se segue ser a paz o verdadeiro fim da guerra. O homem, com a guerra, busca a paz, mas ninguém busca a guerra com a paz. Mesmo os que de propósito perturbam a paz não odeiam a paz, apenas anseiam mudá-la a seu talante. Sua vontade não é que não haja paz, e sim que a paz seja segundo sua vontade. Se por causa de alguma sedição chegam a separar-se de outros, não executam o que intentam, se não têm com os cúmplices uma espécie de paz. Por isso os bandoleiros procuram estar em paz entre si para alterar com mais violência a paz dos outros. Se existe algum salteador tão forçudo e inimigo de companhia que não confie em ninguém e sozinho assalte, mate e se entregue à pilhagem, tem pelo menos uma espécie de paz, seja qual for, com aqueles que não pôde matar e de quem quer ocultar o que faz. Em casa procura viver em paz, com a esposa, com os filhos, com os domésticos, se tem, e gosta de que, sem abrirem a boca, lhe obedeçam à vontade. Se não lhe obedecem, fica zangado, ralha e castiga e, se a necessidade o exige, restabelece com crueldade a paz familiar. Vê a impossibilidade de existir paz na família, se os membros não se submetem ao chefe, que em sua casa é ele. Se alguma cidade ou povo quisesse submeter-se a ele, como desejava lhe estivessem sujeitos os de casa, já não se esconderia como ladrão em nenhuma caverna, mas andaria de cabeça erguida à vista de todos, porém com a mesma cupidez e malícia. Todos desejam, pois, ter paz com aqueles a quem desejam governar a seu arbítrio. E, quando querem fazer guerra a outros homens, querem primeiro fazê-los seus, se podem, para depois impor-lhes as condições de sua paz. 2. Imaginemos alguém descrito com as pinceladas da fábula e dos poetas. Talvez por causa da invariável ferocidade, a chamá-lo homem preferiram chamá-lo semi-homem. Seu reino seria a solidão espantosa de antro deserto e tão enorme sua malícia, que recebeu o nome grego de kakós (mau). Sem esposa com quem ter conversas amorosas, nem filhos pequeninos que lhe alegrassem os dias, nem maiores a quem mandasse. Não gozava da conversa de nenhum amigo, nem mesmo de Vulcano, seu pai, mas ao menos era mais feliz que ele, porque não gerou outro monstro semelhante. Longe de dar o que quer que fosse a quem quer que fosse, roubava os demais, quando e quanto podia e queria. Contudo, em seu antro solitário, cujo chão, segundo o poeta, estava sempre regado de sangue, somente ansiava pela paz, repouso sem transtorno e sem turbação de violência ou medo. Desejava também ter paz com o próprio corpo; quanto mais tinha, tanto melhor andava. Dava ordem aos membros e os membros obedeciam. Com o propósito de pacificar quanto antes sua mortalidade, que contra ele se rebelava por causa da indigência e da fome, coligadas para do corpo dissociarem e desterrarem a alma, roubava, matava e devorava. Embora inumano e fero, velava, inumana e ferozmente, pela paz de sua vida e saúde. Se quisesse ter com os outros a paz que em sua caverna e em si mesmo tanto buscava para si, não o chamariam mau, nem monstro, nem semi-homem. Se as estranhas formas de seu corpo e o torvelinho de chamas que vomitava pela boca afastou de sua companhia os homens, não era cruel por desejo de fazer mal, mas por necessidade de viver. Mas Caco não existiu ou, o que é mais crível, não foi tal qual o poeta o pinta, porque, se não alargasse tanto a mão em acusá-lo, seriam poucos os louvores de Hércules. Tal homem, ou por melhor dizer, tal semi-homem, não existiu, como tantas outras ficções poéticas. Porque mesmo as feras mais cruéis (e Caco participou também dessa fereza, recebeu o nome de semifera) protegem a espécie com certa paz, coabitando, gerando, tendo e alimentando os filhotes, apesar de com frequência insociáveis e solitárias, quer dizer, não como as ovelhas, os cervos, as pombas, os estorninhos e as abelhas, mas como os leões, as raposas, as águias e as corujas. Que tigre não ama com enternecimento os filhotes e, deposta a ferocidade, não os acaricia? Que milhafre, por mais solitário que voe sobre a presa, não procura companheira, faz o ninho, choca os ovos, alimenta os filhotinhos e mantém como pôde a paz em casa com a companheira, como uma espécie de mãe de família? Quanto mais não é o homem arrastado pelas leis da natureza humana a formar sociedade com todos os homens e a conseguir a paz em tudo quanto esteja a seu alcance! Os maus combatem pela paz dos seus e, se possível, querem submeter todos, para todos servirem um só. Por quê? Porque, por medo ou por amor, desejam estar em paz com ele. Assim, a soberba imita com perseverança a Deus. Odeia sob ele a igualdade com os companheiros, mas deseja impor seu senhorio em lugar do dele. Odeia a justa paz de Deus e ama sua própria paz, embora injusta. Impossível é que não ame a paz, seja qual for. É que não há vida tão contrária à natureza, que lhe apague até os últimos vestígios. 3. Quem sabe antepor o reto ao torto e a ordem à perversidade reconhece que, comparada com a paz dos justos, a paz dos pecadores não merece sequer o nome de paz. O antinatural ou contrário à ordem há de necessariamente estar em paz em alguma, de alguma e com alguma parte das coisas em que é ou de que consta. Do contrário, deixaria de ser. Imaginemos alguém suspenso pelos pés e de cabeça para baixo. A situação do corpo e a ordem dos membros são antinaturais, porque invertida a ordem exigida pela natureza, estando em cima o que naturalmente deve estar embaixo. Semelhante desordem perturba a paz do corpo e por isso é molesta. Mas a alma está em paz com o corpo, afana-se por sua saúde e por isso há quem sinta a dor. Se, acossada pelas angústias da dor, se separasse, há, enquanto subsista a união dos membros, alguma paz entre eles e por isso ainda alguém há suspenso. O corpo terreno tende à terra e, opondo-se a isso o que o mantém suspenso pelos pés, busca a ordem da paz que lhe é própria e de certo modo pede, com a voz do peso, o lugar em que naturalmente repouse. Uma vez exânime e sem sentidos, não se aparta de paz que lhe é peculiar, quer conservando-a, quer tendendo a ela. Se o embalsamam, de sorte que se impeça a dissolução do cadáver, certa paz une-lhe as partes entre si e faz todo o corpo buscar o lugar terreno e conveniente e, por conseguinte, pacífico. Mas, se não o embalsamam e fica entregue ao curso ordinário da natureza, estabelece-se combate de vapores contrários que nos ofendem o sentido. É o efeito da putrefação, até unir-se aos elementos do mundo e reentrar em sua paz, peça a peça e pouco a pouco. Dessas transformações nada se subtrai às leis do supremo Criador e Ordenador, que governa a paz do universo. Porque, embora do cadáver de animais maiores nasçam animaizinhos, cada corpúsculo deles, por lei do Criador, mantém consigo mesmo a paz que lhe protege a imperceptível existência. Apesar de alguns animais devorarem os corpos mortos de outros, sempre encontram as mesmas leis difundidas por todos os seres para a conservação das espécies, pacificando cada parte com a parte que lhe convém, seja qual for o lugar, a união ou as transformações sofridas. CAPÍTULO XIII A paz universal e sua indefectibilidade. 1. Assim, a paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a saúde do animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua ordenada concórdia. A paz da casa é a ordenada concórdia entre os que mandam e os que obedecem nela; a paz da Cidade, a ordenada concórdia entre governantes e governados. A paz da cidade celeste é a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. A paz de todas as coisas, a tranquilidade da ordem. A ordem é a disposição que às coisas diferentes e às iguais determina o lugar que lhes corresponde. Portanto, como os miseráveis, enquanto tais, não estão em paz, não gozam da tranquilidade da ordem, isenta de turbações, mas, porque merecida e justamente miseráveis, mesmo na miséria não podem estar fora da ordem. Não estão unidos aos bem-aventurados, mas deles separados pela lei da ordem. Quando não estão turbados, unem-se quanto podem às coisas em que estão. Neles há, portanto, certa tranquilidade na respectiva ordem e, por conseguinte, certa paz. São porém, miseráveis, porque, embora estejam onde devem estar, não estão onde não se veriam precisados de sofrer. São mais miseráveis, se não estão em paz com a lei que rege a ordem natural. Quando sofrem, a paz vê-se turbada por esse lado, mas subsiste por este em que nem a dor consome, nem a união se destrói. Do mesmo modo que há vida sem dor e não pôde haver dor sem vida, assim há certa paz sem guerra, mas não pôde haver guerra sem paz. Isso não pela guerra em si, mas pelos agitadores das guerras, que são naturezas, mas não seriam, se a paz não lhes desse subsistência. 2. Existe natureza em que não há nenhum mal nem pôde haver mal algum. Mas não pôde existir natureza alguma em que não se ache algum bem. Portanto, como natureza, nem a própria natureza do diabo é mal. Sua perversidade é que a torna má. Não se manteve na verdade, mas não lhe escapou ao julgamento. Não se manteve na tranquilidade da ordem, mas não escapou ao poder do Ordenador. A bondade de Deus, que aparece em sua natureza, não o subtrai à justiça de Deus, que o ordena no castigo. Nele Deus não castiga o bem por Ele criado, mas o mal por ele cometido. Não priva a natureza de tudo quanto lhe deu, mas subtrai algo e deixa-lhe algo, a fim de haver quem sofra a subtração. A dor é o melhor testemunho do bem subtraído e do bem deixado, porque, se não existisse o bem deixado, não poderia causar mágoa o bem tirado. Quem peca é pior, se se alegra no dano à equidade; quem é atormentado, se dele não tira nenhum bem, sofre o dano à saúde. E que a equidade e a saúde são dois bens e da perda do bem é preciso doer-se, não alegrar-se (se é que não há compensação no melhor e é melhor a equidade da alma que a saúde do corpo). E mais conveniente, sem dúvida, o pecador doer-se de seus suplícios que alegrar-se de seus crimes. Assim como alegrar-se do bem abandonado ao pecar é prova da vontade má, assim a dor do bem perdido testemunha a natureza boa. Quem sente haver perdido a paz de sua natureza sente-o por certos restos de paz que o fazem amar sua natureza. E com justiça que, no último suplício, em meio das torturas, os injustos e os ímpios choram a perda dos bens naturais, pois sentem a exata justiça que lhos retira, após haverem desprezado a bondade infinita que lhos deu. Deus, pois, sapientíssimo criador e justíssimo ordenador de todas as naturezas, que na terra estabeleceu o gênero humano para ser-lhe o mais belo ornamento, deu aos homens certos bens convenientes a esta vida, quer dizer, a paz temporal, pelo menos a de que nosso destino mortal é capaz, a paz na conservação, integridade e união da espécie, tudo o que é necessário à manutenção ou à recuperação dessa paz, como, por exemplo, os elementos na conveniência e no domínio de nossos sentidos, a luz visível, o ar respirável, a água potável e tudo quanto serve para alimentar, cobrir, curar e adornar o corpo, sob a condição, muito justa, por certo, de que todo mortal que fizer uso legítimo desses bens apropriados à paz dos mortais os receberá maiores e melhores, a saber, a paz da imortalidade, acompanhada de glória e de honra próprias da vida eterna, para gozar de Deus e do próximo em Deus. Quem usar indignamente de tais bens perdê-los-á, sem receber os outros. CAPÍTULO XIV A ordem e a lei celestial e terrena. O uso das coisas temporais relaciona-se, na terra, com a obtenção da paz terrena e, na Cidade de Deus, com a obtenção da paz celeste. Por isso, fôssemos animais irracionais, não apeteceríamos senão à ordenada complexão das partes do corpo e à quietude das apetências. Nada apeteceríamos, por conseguinte, fora disso, com o fim de que a paz do corpo redundasse em proveito da paz da alma. Porque a paz da alma irracional é impossível sem a paz do corpo, pois não pôde conseguir a quietude de suas apetências. Mas ambos servem à paz que entre si mantêm a alma e o corpo, paz de vida ordenada e de saúde. Assim como os animais mostram amar a paz do corpo, quando se esquivam da dor, e da paz da alma, quando, para satisfazerem suas necessidades, seguem a voz de suas apetências, assim também, fugindo à morte, indicam às claras quanto amam a paz, que liga a alma e o corpo. Mas o homem, dotado de alma racional, submete à paz da alma tudo quanto tem de comum com os irracionais, a fim de contemplar algo com a mente e, segundo esse algo, agir de sorte que nele haja ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, em que consiste, como já dissemos, a paz da alma racional. A isto deve endereçar seu querer, a que a dor não a atormente, nem o desejo a inquiete, nem a morte a separe, para conhecer algo útil e segundo tal conhecimento compor sua vida e costumes. Mas como seu espírito é fraco, para o afã de conhecer não precipitá-lo em erro algum, tem necessidade do magistério divino para conhecer com certeza e de seu auxílio para agir com liberdade. Como, enquanto mora neste corpo mortal, anda longe de Deus e caminha pela fé e não pela espécie, por isso é preciso que relacione tanto a paz do corpo com a da alma, como a de ambos juntos, àquela paz que existe entre o homem mortal e o Deus imortal, dando assim margem à obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. E, posto o divino Mestre ensinar dois preceitos principais, a saber, o amor a Deus e o amor ao próximo, nos quais o homem descobre três seres como objeto de seu amor, isto é, Deus, ele mesmo e o próximo, e não pecar, amando-se a si mesmo, quem ama a Deus, é lógico leve cada qual a amar a Deus o próximo a quem o mandam amar como a si mesmo. Assim deve fazer com a esposa, com os filhos, com os domésticos e com os demais homens com quem puder, como quer olhe o próximo por ele, caso venha a necessitar. Assim terá paz com todos em tudo que dele dependa, essa paz dos homens que é a ordenada concórdia. Eis a ordem que se há de seguir: primeiro, não fazer mal a ninguém; segundo, fazer bem a quem a gente possa. Em primeiro lugar está o cuidado com os seus, porque a natureza e a sociedade humana lhe dão acesso mais fácil e meios mais oportunos. Por isso diz o Apóstolo: Quem não provê aos seus, mormente se familiares, nega a fé e é pior que infiel. Daí nasce também a paz doméstica, quer dizer, a ordenada concórdia entre quem manda e os que em casa obedecem. Mandam os que cuidam, como o homem à mulher, os pais aos filhos, os patrões aos criados. Obedece quem é objeto de Cuidado, como as mulheres aos maridos, os filhos aos pais, os criados aos patrões. Mas em casa do justo, que vive da fé e ainda peregrina, longe da cidade celeste, quem manda também serve aqueles que parece dominar. A razão é que não manda por desejo de domínio, mas por dever de caridade, não por orgulho de reinar, mas por misericórdia de auxiliar. CAPÍTULO XV A liberdade natural e a servidão do pecado. Trata-se de prescrição da ordem natural. Assim Deus criou o homem. Domine, diz, os peixes do mar, as aves do céu e todo réptil que se move sobre a terra. Quis que o homem racional, feito à sua imagem, dominasse unicamente os irracionais, não o homem ao homem, mas o homem ao irracional. Eis o motivo de os primeiros justos haverem sido pastores e não reis. Com isso Deus manifestava o que pede a ordem das criaturas e o que exige o conhecimento dos pecados. O jugo da fé impôs-se com justiça ao pecador. Por isso não vemos empregada nas Escrituras a palavra servo antes de o justo Noé castigar com tal nome o pecado do filho. Esse nome mereceu-o, pois, a culpa, não a natureza. A palavra servo, na etimologia latina, designa os prisioneiros, cuja vida os vencedores conservavam, embora pudessem matá-los por direito de guerra. Tornavam-se servos; palavra derivada de servir. Isso também é merecimento do pecado. Pois, embora se trave guerra justa, a parte contrária guerreia pelo pecado. E toda vitória, mesmo a conseguida pelos maus, humilha os vencidos por juízo divino, corrigindo os pecados ou castigando-os. Testemunha-o Daniel, homem que no cativeiro confessa a Deus seus pecados e os pecados de seu povo e reconhece, com piedosa dor, ser essa a razão do referido cativeiro. A causa primeira da servidão, é, pois, o pecado, que submete um homem a outro pelo vínculo da posição social. E o efeito do juízo de Deus, que é incapaz de injustiça e sabe impor penas segundo o merecimento dos delinquentes. O Senhor supremo diz: Todo aquele que comete pecado é escravo do pecado. Por isso muitos homens piedosos servem patrões iníquos, mas não livres, porque quem é vencido por outro fica escravo de quem o venceu. Na verdade, é preferível ser escravo de homem a sê-lo de paixão, pois vemos quão tiranicamente exerce seu domínio sobre o coração dos mortais a paixão de dominar, por exemplo. Mas na ordem de paz que submete uns homens a outros, a humildade é tão vantajosa ao escravo, como nociva ao dominador a soberba. Contudo, por natureza, tal como Deus no princípio criou o homem, ninguém é escravo do homem nem do pecado. Mas a escravidão penal está regida e ordenada pela lei, que manda conservar a ordem natural e proíbe perturbá-la. Se nada se fizesse contra essa lei, não havia nada a castigar com essa escravidão. Por isso, o Apóstolo aconselha aos servos que estejam submissos aos respectivos senhores e os sirvam de coração e de bom grado. Quer dizer, se os donos não lhes dão liberdade, tornem eles, de certa maneira, livre sua servidão, não servindo com temor falso, mas com amor fiel, até que passe a iniquidade e se aniquilem o principado e o poder humano e Deus seja todo em todas as coisas. CAPÍTULO XVI A justiça no domínio. Assim, vemos que, embora tivessem escravos, nossos patriarcas administravam a paz doméstica, distinguindo entre os filhos e os escravos somente no relativo aos bens temporais. No referente ao culto a Deus, de que se devem esperar os bens eternos, olhavam com igual amor todos os membros da casa. Isso é tão conforme com a ordem natural, que o nome de pai de família vem daí e de tal maneira está divulgado, que mesmo os senhores injustos gostam de que os chamem por ele. Os autênticos pais de família consideram filhos todos os membros da família, no tocante ao culto e honra a Deus. Desejam e anseiam por chegar à casa celeste, onde não seja necessário mandar os homens, porque na imortalidade não será preciso acudir a necessidade alguma. E até aí devem tolerar mais os senhores, que mandam, que os servos, que servem. Se em casa alguém turba a paz doméstica por desobediência, é para sua própria utilidade corrigido com a palavra, com pancadas ou com qualquer outro gênero de castigo justo e lícito admitido pela sociedade humana, para reuni-lo à paz de que se afastara. Como não é benfeitor quem corre em auxílio de alguém para fazê-lo perder algum bem, assim também não é inocente quem, perdoando, permite que alguém incorra em mal ainda mais grave. A inocência, pois, não exige apenas não fazer mal a ninguém, mas também afastar o próximo do pecado ou castigar o pecado. Isso com o fim de o castigo corrigir o castigado e servir de lição aos outros. A casa deve ser o princípio e o fundamento da cidade. Todo princípio relaciona-se com seu fim e toda parte com seu todo. É, por isso, claro e lógico deva a paz doméstica redundar em proveito da paz cívica, quer dizer, deva a ordenada concórdia entre os que mandam e os que obedecem relacionar-se com a ordenada concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem. Donde se segue que o pai de família deve dirigir sua casa pelas leis da cidade, de tal forma que se acomode à paz da cidade. CAPÍTULO XVII Em que radica a paz da sociedade celeste com a cidade terrena e em que a discórdia? Mas a família dos homens que não vivem da fé busca a paz terrena nos bens e comodidades desta vida. Por sua vez, a família dos homens que vivem da fé espera nos bens futuros e eternos, segundo a promessa. Usam dos bens terrenos e temporais como viajantes. Não os prendem nem desviam do caminho que leva a Deus, mas os sustentam a fim de que suportem com mais facilidade e não aumentem o fardo do corpo corruptível, que oprime a alma. O uso dos bens necessários a esta vida mortal é, portanto, comum a ambas as classes de homens e a ambas as casas, mas no uso cada qual tem fim próprio e modo de pensar muito diverso do outro. Assim, a cidade terrena, que não vive da fé, apetece também a paz terrena; porém, firma a concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem, para haver, quanto aos interesses da vida mortal, certo concerto das vontades humanas. Mas a cidade celeste, ou melhor, a parte que peregrina neste vale e vive da fé usa dessa paz por necessidade, até passar a mortalidade, que precisa de tal paz. Por isso, enquanto está como viajante cativa na cidade terrena, onde recebeu a promessa de sua redenção e como penhor dela o dom espiritual, não duvida em obedecer às leis regulamentadoras das coisas necessárias e do sustento da vida mortal. Como a mortalidade lhes é comum, entre ambas as cidades há concórdia com relação a tais coisas. Acontece, porém, que a cidade terrena teve certos sábios condenados pela doutrina de Deus, sábios que, por conjeturas ou por artifícios dos demônios, disseram que deviam acomodar muitos deuses às coisas humanas. Encomendaram-lhes à tutela diversos seres, a este o corpo, àquele a alma e, no mesmo corpo, a um a cabeça, a outro a cerviz; quanto às demais partes, a cada um deles a sua. De igual modo na alma. A este encomendaram o espírito, àquele a ciência, a um a cólera, a outro a concupiscência e, quanto às coisas necessárias à vida, a um o gado, a outro o trigo, a outro o vinho, a outro o azeite, a outro as selvas, a outro o dinheiro, a outro a navegação, a outro as guerras e as vitórias, a outro os matrimônios, a outro os partos e a fecundidade, a outro os seres. A cidade celeste, ao contrário, conhece um só Deus, único a quem se deve o culto e a servidão, em grego chamada latréia, e pensa com piedade fiel não ser devido senão a Deus. Tais diferenças deram motivo a que essa cidade e a cidade terrena não possam ter em comum as leis religiosas. Por causa delas a cidade celeste se vê na necessidade de dissentir da cidade terrestre, ser carga para os que tinham opinião contrária e suportar-lhes a cólera, o ódio e as violentas perseguições, a menos que algumas vezes refreie a animosidade dos inimigos com a multidão de fiéis e sempre com o auxílio de Deus. Enquanto peregrina, a cidade celeste vai chamando cidadãos por todas as nações e formando, de todas as línguas, verdadeira cidade viajora. Não se preocupa com a diversidade de leis, de costumes nem de institutos, que destroem ou mantêm a paz terrena. Nada lhes suprime nem destrói, antes os conserva e aceita; esse conjunto, embora diverso nas diferentes nações, encaminha-se a um só e mesmo fim, a paz terrena, se não impede que a religião ensine deva ser adorado o Deus único, verdadeiro e sumo. Em sua viagem a cidade celeste usa também da paz terrena e das coisas necessariamente relacionadas com a condição atual dos homens. Protege e deseja o acordo de vontades entre os homens, quanto possível, deixando a salvo a piedade e a religião, e ministra a paz terrena à paz celeste, verdadeira paz, única digna de ser e de dizer-se paz da criatura racional, a saber, a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. Em chegando a essa meta, a vida já não será mortal, mas plenamente vital. E o corpo já não será animal, que, enquanto se corrompe, oprime a alma, mas espiritual, sem necessidade alguma, plenamente submetido à alma. Possui essa paz aqui pela fé, de que vive justamente, quando refere à consecução da verdadeira paz todas as boas obras que faz para com Deus e com o próximo, porque a vida da cidade é vida social. CAPÍTULO XVIII Paralelo entre a nova Academia e a fé cristã. Nada existe mais contrário à Cidade de Deus que a incerteza em que Varrão faz radicar a característica da nova Academia. Aos olhos cristãos semelhante dúvida é loucura. Das coisas que compreende com o espírito e com a razão o cristão tem conhecimento certíssimo, embora limitado pelo corpo corruptível que oprime a alma, porque, como diz o Apóstolo, conhecemos em parte. Crê nos sentidos, que manifestam as realidades evidentes, e deles serve-se a alma, por intermédio do corpo, pois é mais miserável o engano de quem pensa que nunca se lhes deve fé. Enfim, acredita nas Santas Escrituras, antigas e novas, que chamamos canônicas e são as fontes da fé da qual vive o justo. Graças a ela, caminhamos sem titubeação, enquanto peregrinamos longe do Senhor. Permanecendo a salvo e certa essa fé, podemos pôr em dúvida, sem medo de repreensão, algumas coisas que não nos chegaram ao conhecimento, não conhecemos nem pelos sentidos, nem pela razão, nem nos foram anunciadas pela Escritura canônica, nem por testemunhos a que fora absurdo não dar crédito. CAPÍTULO XIX Vida e costumes do povo cristão. Na realidade, não importa nada a tal cidade o gênero de vida adotado por quem abraça a fé que leva a Deus, contanto que não vá de encontro aos preceitos divinos. Por isso, os filósofos que se fazem cristãos não se veem obrigados a mudar de padrão de vida, se não o impede a religião, mas a abdicar das falsas doutrinas. É-lhe, assim, indiferente a distinção que Varrão assinalou nos cínicos, contanto que nada se faça contra a honestidade e a temperança. Quanto aos três gêneros de vida, o ocioso, o ativo e o misto, embora, sem prejuízo da fé, cada qual possa escolher o que lhe agrade e chegar por ele aos prêmios eternos, interessa considerar o que o amor à verdade nos dá e o que o dever de caridade nos pede. Ninguém deve, com efeito, entregar-se de tal maneira ao ócio, que se esqueça de ser útil ao próximo, nem de tal maneira à ação, que se esqueça da contemplação de Deus. No ócio não se deve amar a inação, mas a busca e encontro da verdade, a fim de cada qual progredir em tal conhecimento e não invejar ninguém. Na ação não se devem amar a honra ou o poderio nesta vida, porque tudo quanto há sob o sol é vaidade, mas o trabalho, de que a honra e o poderio não passam de instrumentos, o trabalho em si mesmo, se se propõe a justiça e a utilidade, quer dizer a incolumidade dos que nos estão subordinados segundo Deus. É o de que já falamos mais acima e faz o Apóstolo dizer: Quem deseja o bispado deseja bom trabalho. Sua intenção era dar a entender que o episcopado é nome designativo de trabalho, não de dignidade. A palavra é grega e significa que quem está à frente é superintendente de seus subordinados, quer dizer, tem de olhar por eles. Ept significa "sobre" e skopós, "intenção"; portanto, podemos traduzir eptskopêtn por "superintender". De acordo com isso, não é bispo quem gosta de presidir, não de ser útil. Assim, pois, todos podem aplicar-se ao estudo e à busca da verdade; é a dignidade do ócio. Quanto às funções superiores, necessárias para governar o povo, a conveniência de ocupá-las e preenchê-las não poderia escusar o inconveniente de desejá-las. Por isso, o amor à verdade busca o ócio santo e a necessidade do amor aceita devotar-se às obras de justiça. Se ninguém nos impõe semelhante peso, devemos entregar-nos à busca e à contemplação da verdade. Se alguém no-lo impõe, devemos aceitá-lo por necessidade da caridade. Mesmo em tal caso não se devem abandonar totalmente os encantos da verdade, para não acontecer que, privados desse doce apoio, a necessidade nos oprima. CAPÍTULO XX Nesta vida os cidadãos da cidade santa são felizes em esperança. Se, por conseguinte, soberano bem da Cidade de Deus é a paz eterna e perfeita, não a que os mortais atravessam entre o nascimento e a morte, mas aquela em que permanecem, uma vez imortais e livres, quem há capaz de negar que essa vida será muito feliz ou de não achar, comparada com ela, misérrima esta, por mais repleta que esteja de bens anímicos, corporais ou externos? Contudo, quem se conduz de tal modo que ao fim da que ardentíssima e fidelissimamente espera refere o uso pôde com razão chamar-se feliz neste mundo, mais, na verdade, pela esperança que pela realidade. A realidade presente, sem tal esperança, é felicidade falsa e autêntica miséria, porque não usa dos verdadeiros bens do espírito. Não é verdadeira sabedoria a que nessas coisas, que discerne com prudência, suporta com fortaleza, reprime com temperança e ordena com justiça, não se propõe o supremo fim, em que Deus será todo em todas as coisas na certeza da eternidade e na perfeição da paz. CAPÍTULO XXI Existência da república romana. Definição de Cipião. 1. Este é precisamente o lugar próprio para eu dizer, o mais concisa e claramente que me for possível, o que prometi no Livro Segundo desta obra. E é mostrar que, segundo as definições de que Cipião se serve nos livros Sobre a República de Cícero, nunca existiu a república romana. Em poucas palavras define a república, dizendo que é a coisa do povo. Se for verdadeira semelhante definição, a república romana nunca existiu, por jamais haver sido coisa do povo, que é a definição de república. Define o povo, dizendo-o sociedade fundada sobre direitos reconhecidos e sobre a comunidade de interesses. Depois explica o que entende por direitos reconhecidos. E acrescenta que a república não pôde ser governada sem justiça. Em consequência, onde não há verdadeira justiça não pôde existir verdadeiro direito. Como o que se faz com direito se faz justamente, é impossível que se faça com direito o que se faz injustamente. Com efeito, não devem chamar-se direito as iníquas instituições dos homens, pois eles mesmos dizem que o direito mana da fonte da justiça e é falsa a opinião de quem quer que erradamente sustente ser direito o que é útil ao mais forte. Portanto, onde não existe verdadeira justiça não pôde existir comunidade de homens fundada sobre direitos reconhecidos e, portanto, tampouco povo, segundo a definição de Cipião ou de Cícero. E, se não pôde existir o povo, tampouco a coisa do povo, mas a de conjunto de seres que não merece o nome do povo. Se, por conseguinte, a república é a coisa do povo e não existe povo que não esteja fundado sobre direitos reconhecidos e não há direito onde não há justiça, segue-se que onde não há justiça não há república. Pois bem, a justiça é a virtude que dá a cada qual o seu. Que justiça é essa que do verdadeiro Deus afasta o homem e o submete aos imundos demônios? Isso é, porventura, dar a cada qual o seu? Ou será que quem tira a propriedade a quem a comprou e a dá a quem não tem direito a ela é injusto e é justo quem se furta ao Deus dominador e Criador seu e serve os espíritos malignos? 2. Nessa obra Sobre a República disputa-se acalorada e duramente contra a injustiça em prol dá justiça. Primeiro, trataram os defensores da injustiça contra a justiça. Diziam não poder a república manter-se e estender-se senão pela injustiça. Apresentaram como argumento irrespondível ser injusto estarem os homens sujeitos a homens dominadores. A cidade dominadora, capital de grande república, acrescentavam, não pôde dominar suas províncias, se não acolhe tal injustiça. Os partidários da justiça responderam ser justo, porque a servidão é vantajosa para esses homens, quando o direito afasta o abuso, quer dizer, priva os maus da licença de fazer mal. E tê-los-ão melhor, domados, porque, indomados, se portariam pior. Em apoio dessa prova aduziu-se exemplo oferecido pela própria natureza. "Por que, pois," pergunta, "Deus manda o homem, a alma manda o corpo, a razão manda a libido e as demais paixões da alma?" Tal exemplo mostrou com simplicidade que a servidão é útil para alguns e servir Deus é útil para todos. Quando a alma está submetida a Deus, impera com justiça sobre o corpo e, na alma, a razão, submetida a Deus, manda com justiça a libido e as demais paixões. Portanto, quando o homem não serve Deus, que justiça há nele? A verdade é que, se não serve a Deus, a alma não pôde com justiça imperar sobre o corpo, nem a razão sobre as paixões. E, se no homem individualmente considerado não há justiça alguma, que justiça pôde haver em associação de homens composta de indivíduos semelhantes? Não existe, por conseguinte, esse direito reconhecido que constitui em povo a sociedade de homens, que é o que se chama república. Que direi do interesse comum que reúne o clã dos homens, elemento que faz entrar na definição de povo? Se se presta a isso um pouco de atenção, não é tampouco útil aos ímpios, que vivem como todo aquele que não serve Deus e serve os demônios, tanto mais ímpios quanto mais desejam que lhes sacrifiquem como a deuses, apesar de imundíssimos espíritos. Mas tenho para mim que quanto dissemos do direito é suficiente para mostrar que, segundo a referida definição, não existe o povo, se não há justiça, e, por conseguinte, tampouco república. Pretender que em sua república os romanos não serviram imundos espíritos, mas deuses santos e bons, não é querer, porventura, fazer-nos repetir tudo quanto abundantemente dissemos disso? Quem tiver lido até este os livros anteriores pôde duvidar de que os romanos serviram demônios impuros e maus, a menos que seja rematado tolo ou impudente discutidor? Mas, para não repetir a que ralé pertenciam aqueles a quem sacrificavam, citarei o escrito na lei de Deus: Quem sacrificar a outros deuses e não somente ao único Senhor será exterminado. Esse mandamento e essa ameaça exprimem a vontade de que ninguém sacrifique aos deuses, nem aos bons, nem aos maus. CAPÍTULO XXII É o verdadeiro Deus o dos cristãos? Mas podem replicar: Quem é esse Deus ou como se prova que nenhum outro merece o cultos dos romanos? A pessoa deve estar muito cega para nestas alturas perguntar quem é esse Deus. É o Deus de quem os profetas predisseram as coisas que vemos cumpridas. É o mesmo Deus que disse a Abraão: Em tua descendência serão abençoadas todas as nações. Que isso se realizou em Cristo, nascido dessa estirpe segundo a carne, o,s inimigos de tal nome, mesmo contra a vontade, reconhecem. E o mesmo Deus que por seu Espírito inspirou todas as predições cumpridas na Igreja, já estendida pelo orbe todo, e por mim citadas em livros anteriores. É o mesmo Deus que Varrão, o mais sábio dos romanos, julga ser Júpiter, embora não saiba o que diz. Isso demonstra, segundo penso, não haver homem tão erudito pensado que tal deus não existe ou era desprezível, pois achou que era aquele que ele julgava ser o soberano dos deuses. Enfim, é o mesmo Deus de quem Porfírio, o mais sábio dos filósofos, apesar de acérrimo inimigo dos cristãos, confessa ser grande Deus, segundo os oráculos daqueles mesmos que o referido filósofo julga deuses. CAPÍTULO XXIII Pensamento de Porfírio acerca dos oráculos dos deuses. 1. Nos livros que intitulou de ek loghíon philosophias (Sobre a Filosofia dos Oráculos) e em que examina e consigna essas pretensas respostas divinas tocantes à filosofia, diz, usando as palavras da tradução latina do texto grego, que a alguém que lhe perguntava que deus devia aplacar para que a esposa se afastasse do Cristianismo Apoio respondeu (palavras textuais): Talvez te fosse mais fácil escrever na água letras impressas ou voar pelo ar, abrindo ao sopro da brisa tuas leves asas, que sanar a razão de tua mulher prostituída à impiedade. Deixa-a, pois, em seu ridículo erro, cantar com voz lúgubre e fictícia Deus morto, a quem, condenado por juízes justos, morte ignominiosa e pública tirou a vida à força. Depois desses versos de Apoio, traduzidos ao latim sem ritmo nem medida, acrescentou: Esses versos mostram a tergiversação desse irremediável preconceito, pois diz que os judeus sabem honrar Deus melhor que eles. Eis que, em desdouro de Cristo, antepôs os judeus aos cristãos e admite que os judeus honram Deus. Assim expõe os versos de Apoio em que diz haver Cristo sido morto por juízes justos, dando a entender que, julgando-o eles com justiça, Ele foi castigado com justiça. Veja-se o que o mentiroso vate de Apoio disse de Cristo; acreditou-o, ou então o expositor inventou o que o vate não disse. Depois veremos como lhe consta e como faz os oráculos concordar entre si. Aqui diz haverem os judeus, adoradores de Deus, com justiça condenado Cristo à morte ignominiosa. Era a ocasião de prestar ouvidos ao Deus dos judeus, de quem dá testemunho, ao dizer: Quem sacrificar a outros deuses e não somente ao Senhor será exterminado. Passemos a testemunhos mais claros e ouçamos o elogio da grandeza desse que diz Deus dos judeus. Perguntou a Apoio o que é melhor, o verbo, a razão ou a lei e respondeu com os seguintes versos. Cita em seguida os versos de Apoio, entre os quais se encontram estes, que bastam para nosso propósito: Deus é o princípio gerador e o rei supremo anterior a tudo, ante quem tremem o céu, a terra, o mar, os abismos infernais e as próprias divindades fremem de espanto. Sua lei é o pai, que os santos hebreus honram muito. Esse oráculo do deus Apoio reconhece, segundo Porfírio, ser tão grande a grandeza do Deus dos judeus, que ante Ele os próprios deuses tremem. Posto haver esse Deus afirmado que quem sacrificasse aos deuses seria exterminado, maravilho-me de que Porfírio não se atemorizasse e temesse ser exterminado, sacrificando aos deuses. 2. Esse filósofo diz também coisas boas de Cristo, como se esquecido das palavras injuriosas que citei faz pouco ou como se durante o sono os deuses maldissessem a Cristo e, em despertando, lhe reconhecessem a bondade e o gabassem como merece. Com efeito, como quem vai revelar algo maravilhoso e incrível, escreve: Parecerá, talvez, à margem da opinião de alguns o que vou dizer. Os deuses declararam que Cristo é homem muito piedoso, se tornou imortal e dele deixaram grata lembrança. Quanto aos cristãos, acrescenta, o testemunho dos deuses declara-os impuros, maculados e implicados no erro e acusa-os de outras mil e uma blasfêmias. A seguir acrescenta outras imprecações, que supõe oráculos dos deuses. E prossegue assim: A quem perguntava se Cristo é Deus respondeu Hécate: Já conheceis o processo seguido pela alma imortal separada do corpo; se despojada da Sabedoria, sabeis estar sempre condenada a erro. A alma de que falais é a de homem notável pela piedade, mas os que lhes rendem culto não estão na verdade. Depois das palavras do pretenso oráculo, faz o seguinte comentário: Disse ser homem muito piedoso e haver, depois da morte, recebido imortalidade como a de outros justos, mas que os cristãos erram, prestando-lhe culto. E como outros perguntassem, acrescenta, por que fora condenado, a deusa respondeu em oráculo: O corpo está sempre exposto aos tormentos que o esgotam, mas a alma dos justos tem por morada o céu. Essa alma de que falais foi fatal ocasião de erro para outras almas que os destinos não haviam chamado a receber os favores dos deuses nem a conhecer o imortal Júpiter. Por isso detestei os deuses, porque a quem o destino não concedeu conhecer Júpiter nem receber os favores dos deuses, esse homem concedeu fatal enviscar-se em erro. Quanto a ele, é justo, admitido no céu na sociedade dos justos. Guarda-te, pois, de blasfemar contra ele e compadece-te da loucura dos homens e do perigo fácil e precipite que dai nasce. 3. Quem é tão néscio que não entenda haverem tais oráculos sido inventados por esse homem tão astuto e inimigo mortal dos cristãos ou proferidos com idêntica intenção pelos impuros demônios? A intenção seria fazer a gente acreditar, em face dos louvores tributados a Cristo, que têm razão, quando censuram os cristãos, fechando assim aos homens, quanto podem, o caminho da salvação eterna, a que não chegam, se não se fazem cristãos. Porque não lhes importa à nociva e perigosa astúcia que acreditem nos elogios que fazem de Cristo, contanto que também lhes deem crédito às calúnias contra os cristãos. Dessa forma, quem crer em ambas as coisas será louvador de Cristo, com a condição de não ser cristão, e assim, embora o louve, Ele não o livrará da dominação de tais demônios. O caso agrava-se, se levamos em conta que louvam Cristo, de sorte que quem acreditar no homem pregado por eles não é verdadeiro cristão mas herege fotiniano, que em Cristo não vê Deus, mas somente o homem. Assim, impedem que Ele os salve e os solte dos fortes laços dos demônios, que falam unicamente mentiras. Quanto a nós, não podemos aprovar nem as censuras de Apoio a Cristo, nem os elogios de Hécate. Aquele pretende haver Cristo sido injusto e justamente condenado à morte por juízes justos; esta fala dele como de homem muito piedoso, é verdade, mas apenas homem. Ambos têm objetivo comum, qual o de impedir que os homens se tornem cristãos, único meio de se livrarem de sua tirania. Ademais, o referido filósofo, ou melhor, quem dá crédito a tais oráculos contra os cristãos, primeiro harmonize, se puder, Hécate com Apoio e ponha na boca de ambas as divindades o elogio ou a condenação de Cristo. Mesmo, porém, que pudesse fazê-lo, evitaríamos de igual modo os demônios, mentirosos vituperadores e panegiristas de Cristo. E, como um deus e uma deusa se contradizem acerca de Cristo, louvando uma divindade o que a outra censura, os pagãos, em boa lógica, não deviam dar-lhes crédito, quando caluniam os cristãos. 4. Quando Porfírio ou Hécate, no panegírico de Cristo, diz haver Ele sido ocasião fatal de erro para os cristãos, explica as causas desse erro, segundo ele. Mas, antes de expô-las, vou permitir-me uma pergunta: Se Cristo foi ocasião fatal de erro para os cristãos, foi voluntária ou involuntariamente? Se voluntariamente, como é justo? Se involuntariamente, como é feliz? Ouçamos agora as causas do pretenso erro. Existem, diz Porfírio, espíritos imperceptíveis e terrenos submetidos ao poder dos demônios maus. Os sábios dos hebreus, entre os quais estava esse Jesus, segundo os oráculos de Apoio, citados mais acima, do culto aos maus demônios e aos espíritos inferiores afastavam as pessoas religiosas e proibiam-nas de se ocuparem com eles. Queriam que adorassem, isso sim, os deuses do céu e, sobretudo, Deus Pai. Isso, acrescenta, mandam também os deuses; antes jó mostramos como advertem à alma que reconheça Deus e mandam render-lhe culto em todas as partes. Mas os ignorantes, Os ímpios, a quem o destino não chamou a receber os favores dos deuses nem a conhecer o imortal Júpiter, não prestando ouvidos aos deuses nem aos homens divinos, deram de mão a todos os deuses e abraçaram o culto aos demônios maus. É verdade que fingem adorar Deus, mas nada fazem de quanto é preciso para adorá-lo. Porque Deus, como Pai de todas as coisas, não tem necessidade de nada. Para nós, entretanto, é verdadeiro bem odorá-lo pela justiça, pela castidade e pelas outras virtudes, fazendo da vida contínua oração, pela imitação e busca de sua verdade. A busca purifica-nos, acrescenta, e a imitação deifica-nos o amor, elevando-o a Ele. O panegírico de Deus Pai é exultante e rende homenagem à inocência de costumes que é o verdadeiro culto a Deus. De tais preceitos estão repletos os livros proféticos dos hebreus, quer repreendam os vícios, quer louvem a virtude. Mas, quando fala dos cristãos, engana-se ou calunia-os quanto apraz aos demônios, deuses para ele, como se fora difícil recordar as torpezas e as desvergonhas que nos teatros e nos templos se representavam em honra de tais deuses e considerar o que se lê, se ouve e se diz nas igrejas e o que se oferece ao verdadeiro Deus. Semelhante paralelo dirá de que parte está a edificação e de qual a ruína dos costumes. E que outro, senão o espírito diabólico, lhe disse tão evidente e ridícula mentira, a saber, que os cristãos não detestam, mas, ao contrário, reverenciam os demônios, que os hebreus proíbem adorar? Mas o Deus que os sábios dos hebreus adoraram proíbe também sacrificar aos santos anjos e às virtudes de Deus, que amamos e veneramos na viagem de nossa vida mortal, como Cidadãos e bem-aventurados. Na lei que deu ao povo hebreu ribomba como trovão esta ameaça terrível: Quem sacrificar aos deuses será exterminado. Para ninguém imaginar que a proibição visava unicamente aos demônios maus e aos espíritos terrenos, pois as Santas Escrituras os chamam também deuses, não dos hebreus, mas dos gentios, como se lê na seguinte passagem de certo salmo, segundo os Setenta: Porque todos os deuses dos gentios são demônios, para ninguém imaginar, repito, que se proibia sacrificar a esses demônios, mas era permitido sacrificar aos celestes, a todos ou a alguns, acrescentou a seguir: E não somente ao Senhor, quer dizer, somente ao Senhor. Dou esse esclarecimento para ninguém pensar, enganado por esta expressão: nisi Domino soli (senão ao Senhor somente), tratar-se do senhor Sol, a que, segundo ele, se deve sacrificar. Basta folhear o texto grego para dissipar semelhante erro. 5. O Deus dos hebreus, de quem tão exímio filósofo dá tão excelso testemunho, deu ao povo hebreu lei escrita em língua hebraica, lei não desconhecida e obscura, mas já divulgada em todas as nações. Nessa lei está escrito: Quem sacrificar aos deuses e não somente ao Senhor será exterminado. Que necessidade há de andar à caça de testemunhos desse ponto na Lei e em seus profetas? Digo mal andar à caça, pois, como não se trata de coisas abstrusas e raras, basta respigar as correntes e claras e inseri-las neste debate. Mostrar-nos-ão com luz meridiana não querer o verdadeiro e soberano Deus que o homem sacrifique a ninguém, senão a Ele. Eis oráculo breve, diríamos mais, grandioso, ameaçador, mas verdadeiro, dó Deus que os homens mais sábios do paganismo tão excelsamente pregam! É preciso escutá-lo, temê-lo, cumpri-la, para não acontecer que aos desobedientes lhes sobrevenha o extermínio. Quem sacrificar aos deuses, diz, e não somente ao Senhor, será exterminado, não porque tenha necessidade de alguma coisa, mas porque nos convém ser coisa sua. Assim, nas Sagradas Letras dos hebreus se canta: Disse ao Senhor: És meu Deus, porque não necessitas de meus bens. Nós, quer dizer, sua cidade, somos seu mais excelente e nobre sacrifício. Tal é o mistério que celebramos em nossas oblações, bem conhecidas dos fiéis, como dissemos em livros anteriores. Os oráculos divinos anunciaram pelos profetas hebreus, que as vítimas oferecidas pelos hebreus em figura do porvir cessariam e as nações, do levante ao poente, não ofereceriam senão um sacrifício, o que agora vemos cumprido. Já citamos alguns desses testemunhos, os suficientes, com que salpicamos esta obra. Deve-se, portanto, exigir essa justiça que faz com que o único e supremo Deus, segundo sua graça, impere à obediente cidade que não sacrifique a ninguém senão a Ele. Desse modo, em todos os homens, cidadãos de tal cidade e obedientes a Deus, a alma imperará fielmente e com ordem legítima sobre o corpo e a razão sobre as paixões. Dessa maneira, como um só justo vive da fé, assim também o conjunto e o povo de justos viverão dessa fé que age pela caridade, que leva o homem a amar a Deus como deve e ao próximo como a si mesmo. Em conclusão, onde não existe semelhante justiça não existe tampouco a congregação de homens, fundada sobre direitos reconhecidos e comunidade de interesses. E, se isso não existe, não existe o povo, se verdadeira a definição dada de povo. Por conseguinte, não existe tampouco república, porque onde não há povo não há coisa do povo. CAPÍTULO XXIV Outra definição, mais acessível e mais adaptável, de povo. Se pomos de lado essa definição de povo e damos esta: "O povo é o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados" , é preciso, para saber o que é cada povo, examinar os objetos de seu amor. Não obstante, seja qual for seu amor, se não é conjunto de animais desprovidos de razão, mas de seres racionais, ligados pela concorde comunhão de objetos amados, pôde, sem absurdo algum, chamar-se povo. Certo que será tanto melhor quanto mais nobres os interesses que os ligam e tanto pior quanto menos nobres. De acordo com isso, o povo romano é povo e seu governo, república. A história dá testemunho do que esse povo amou em sua origem e nas épocas seguintes, de como se foram infiltrando as mais sangrentas sedições, as guerras civis, e de como se rompeu e se corrompeu a concórdia, que é de certo modo a saúde do povo. Nos livros precedentes há muitos dados a respeito disso. Por isso, não diríamos que não é povoou que seu governo não é república, enquanto subsista o conjunto de seres racionais unidos pela comunhão concorde de objetos amados. O que dissemos de tal povo e de tal república tornamo-lo extensivo ao povo de Atenas ou de outras regiões da Grécia, ao do Egito, ao da primeira Babilônia dos assírios, quando nas respectivas repúblicas sustiveram grandes ou pequenos impérios, e ao de qualquer outra nação. Porque, em geral, a cidade dos ímpios, refratária às ordens de Deus, que proíbe sacrificar a outros deuses afora Ele, e, por isso, incapaz de fazer a alma prevalecer sobre o corpo e a razão sobre os vícios, desconhece a verdadeira justiça. CAPÍTULO XXV Não pôde haver verdadeiras virtudes onde não há verdadeira religião. Por mais louvável que pareça o império da alma sobre o corpo e da razão sobre as paixões, se a alma e a razão não rendem a Deus a homenagem de servidão que Ele manda, tal império não é verdadeiro e justo. Como é que a alma que desconhece o verdadeiro Deus e, em lugar de estar-lhe sujeita, se prostitui aos mais infames demônios, que a violam, pôde ser senhora do corpo e dos vícios? As virtudes que julga possuir, ao mandar sobre o corpo e as paixões, para obter e conservar algo, se não as refere a Deus, não são virtudes, mas vícios. E que, apesar de alguns pensarem que as virtudes são verdadeiras e honestas, quando referidas a si mesmas e postas como fim próprio, não passam de vaidade e soberba. Portanto, não são virtudes, mas vícios, e como tais devem ser consideradas. Assim como não procede do corpo, mas é superior ao corpo, o que faz o corpo viver, assim também não procede do homem, mas é superior ao homem, o que faz o homem viver na bem-aventurança, e não somente o homem, mas também qualquer outro poder e virtude celeste. CAPÍTULO XXVI A paz do povo separado de Deus e uso que dela faz, em sua peregrinação, o povo de Deus. Donde se segue que, assim como a alma é a vida do corpo, assim também Deus é a vida bem-aventurada do homem. Dele dizem as Sagradas Letras dos hebreus: Feliz o povo que tem Deus por Senhor. Desgraçado, pois, do povo afastado de Deus! Também goza de certa paz própria, que não deve ser desprezada, paz de que não gozará no fim, porque dela não faz bom uso antes do fim. Mas interessa também a nossa cidade que dela goze neste mundo, porque, enquanto confundidas ambas as cidades, também usamos da paz de Babilônia. O povo de Deus é livrado pela fé e para com ela caminhar, enquanto viva. Eis o motivo que leva o Apóstolo a advertir à Igreja que ore pelos reis e pelos constituídos em dignidade, a fim, diz ele, de levarmos vida tranquila e calma, no exercício da piedade e da caridade. Quando anuncia ao antigo povo de Deus seu cativeiro e lhe recomenda ir para a Babilônia sem murmurar e dando a Deus prova de sua paciência, o profeta Jeremias aconselha-o a orar por essa cidade, porque em sua paz encontrareis vossa paz, quer dizer, a paz temporal comum aos bons e aos maus. CAPÍTULO XXVII A paz dos adora dores de Deus. Porém, a paz, privativa de nós, aqui e com Deus a gozamos pela fé e eternamente a desfrutaremos com Ele pela visão clara. Aqui, a paz, tanto a comum como a privativa de nós; é mais consolo de nossa miséria que gozo de nossa ventura. Nossa própria justiça, embora verdadeira, quando a referimos ao supremo bem, é tal nesta vida, que antes consiste na remissão dos pecados que na perfeição das virtudes. Testemunha-o a oração da Cidade de Deus, peregrina no mundo. Clama a Deus pela boca de todos os seus membros: Perdoa-nos nossas devidas, assim como perdoamos nossos devedores. Essa oração não é eficaz para aqueles cuja fé sem obras é morta, mas o é para aqueles cuja fé obra pela caridade. Os próprios justos têm necessidade de semelhante oração, porque, embora a alma deles esteja submetida a Deus, a razão não impera perfeitamente aos vícios nesta vida mortal e neste corpo corruptível e opressor da alma. Embora mande, nunca o faz sem combate e sem resistência por parte das paixões. E sempre é verdade que mesmo no mais forte lutador e dominador de tais inimigos neste vale de fraqueza se insinua algo que, se não o faz pecar por fácil obra, o faz pela palavra móvel como a onda ou pelo inconstante pensamento. Por isso, enquanto dominamos as paixões, não há perfeita paz, porque as que resistem se debatem em perigosa peleja e as vencidas ainda não têm assegurada a vitória, mas requerem vigilante opressão. Nessas tentações, das quais a Escritura resumidamente diz: Não é, porventura, contínua tentação a vida do homem sobre a terra?, quem não presumirá que sua vida seja tal que não precise dizer a Deus: Perdoa-nos nossas devidas, senão o homem soberbo? E soberbo não por grandeza, mas por vaidade. A homem assim resiste com justiça Aquele que dá sua graça aos humildes. Por isso está escrito: Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes. Aqui, a justiça consiste em que Deus mande no homem obediente, a alma no corpo e a razão nos vícios, embora se rebelem, quer vencendo-os, quer oferecendo-lhes resistência, e em que se peça a Deus a graça do merecimento e o perdão dos pecados e se deem graças pelos favores recebidos. Na paz final, entretanto, que deve ser a meta da justiça que tratamos de adquirir aqui na terra, como a natureza estará dotada de imortalidade, de incorrupção, carecerá de vícios e não sentiremos nenhuma resistência interior ou exterior, não será necessário a razão mandar nas paixões, pois não existirão. Deus Imperará sobre o homem e a alma sobre o corpo. E haverá tanto encanto e felicidade na obediência quanta bem-aventurança na vida e na glória. Tal estado será eterno e estaremos certos de sua eternidade. Por isso, na paz dessa felicidade e na felicidade dessa paz consistirá o soberano bem. CAPÍTULO XXVIII Fim dos ímpios. Ao contrário, para os não pertencentes à referida Cidade de Deus haverá miséria eterna, por outro nome segunda morte, porque nem a alma, nem o corpo vivem. A alma, porque estará separada de sua vida, que é Deus, e o corpo, porque sofrerá dores eternas. A segunda morte será mais dura, porque não poderá terminar com a morte. Mas, como a guerra é contrária à paz, como a miséria à felicidade e a morte à vida, pôde-se perguntar, com razão, se à paz final, tão celebrada e louvada como soberano bem, não seria interessante opor o soberano mal da guerra final. Consideremos, de início, o que há de funesto e desastroso na guerra; tudo se reduz à oposição e ao choque de duas coisas entre si. Que guerra, pois, mais cruel e mais encarniçada a gente pôde imaginar que aquela em que a vontade será tão contrária à paixão e a paixão à vontade, que a inimizade entre ambas jamais cessará pela vitória de uma ou de outra? E qual mais cruenta que aquela em que a violência da dor combate a natureza do corpo, sem que nenhum dos dois se renda? Quando no mundo tal combate se desencadeia, ou vence a dor e a morte priva do sentido, ou vence a natureza e a saúde expulsa a dor. Na outra vida, porém, a dor subsiste para atormentar e a natureza para sentir a dor e nenhuma das duas falta para que o castigo para sempre dure. Mas, como tanto os bons como os maus passam pelo juízo final, uns ao soberano bem, que se deve apetecer, e outros ao soberano mal, que se deve esquivar, desse ponto tratarei no livro seguinte, se Deus quiser. LIVRO VIGÉSIMO Testemunhos do juízo final, tirados do Novo e do Antigo Testamento. CAPÍTULO I Os juízos de Deus e o juízo final. 1. Agora vou, com a graça de Deus, falar do dia do juízo final e, comprovando-lhe a existência, contra a incredulidade dos ímpios, assentar a pedra dos testemunhos divinos. Os que recusam crê-los afanam-se em se opor a eles com raciocínios humanos, cheios de mentiras e de erros, sustentando, quer que esses testemunhos das Sagradas Letras tenham outro sentido, quer negando qualquer autoridade divina a tais palavras. Porque julgo não haver mortal que, entendendo-o em seu verdadeiro sentido e crendo tratar-se da palavra do verdadeiro e soberano Deus, não se renda a ela e a admita. E isso, quer o confesse por palavra, quer se envergonhe ou tema confessá-lo por vãos escrúpulos, quer se empenhe em contenciosamente defender, com teimosia que raia pela loucura, a falsidade do que sabe ou crê falso contra a verdade do que sabe ou crê verdadeiro. 2. Assim, o que a Igreja universal do verdadeiro Deus confessa e professa, a: saber, que do céu Cristo há de vir julgar os vivos e os mortos, a isso damos o nome de último dia do juízo divino, quer dizer, o fim dos tempos. Não se sabe quantos dias durará o referido juízo, mas ninguém que haja lido as Escrituras Sagradas, por maior que haja sido a negligência com que o fez, desconhece ser usança de tais Letras empregar o termo "dia" pelo "tempo" . Por isso, quando dizemos dia do juízo, acrescentamos "último" ou "final", porque Deus julga também agora e julgou desde o princípio do gênero humano, quando expulsou do paraíso e afastou da árvore da vida nossos primeiros pais, perpetradores de enorme pecado. Pode-se, ainda mais, dizer que julgou quando não perdoou os anjos prevaricadores, cujo príncipe, por si mesmo pervertido, só de inveja enganou os homens. Ao juízo de Deus, profundo e justo, deve-se que nas regiões do ar e na terra a vida dos demônios e a dos homens sejam tão míseras e estejam tão repletas de erros e de defeitos. Mas, embora ninguém houvesse pecado, dever-se-ia a justo e reto juízo de Deus o conservarem-se todas as criaturas unidas a seu Senhor em eterna bem-aventurança. E não se contenta com submeter a juízo universal os demônios e os homens, ordenando serem miseráveis como prêmio a seus primeiros pecados, mas julga, além disso, das obras próprias de cada indivíduo, feitas com liberdade. Porque também os demônios lhe pedem que não os atormente e não injustamente os perdoa ou castiga segundo a perversidade de cada um deles. Embora ninguém possa fazer o bem sem o divino auxílio nem fazer o mal, se justo juízo de Deus não o permite, os homens, às vezes abertamente e sempre em segredo, quer nesta vida, quer após a morte, sofrem castigo por causa de seus crimes. Pois, como diz o Apóstolo, em Deus não cabe injustiça e, em outra parte: Seus juízos são inescrutáveis e seus caminhos, incompreensíveis. Neste livro, portanto, não tratarei dos primeiros juízos de Deus nem dos atuais, mas do juízo final, quando Cristo virá julgar os vivos e os mortos. Esse é propriamente o dia do juízo, porque então já não haverá lugar para ignorantes queixas sobre a felicidade de tal injusto e a infelicidade de tal justo. Aparecerá, então, a autêntica felicidade dos bons e a irrevogável e merecida infelicidade dos maus. CAPÍTULO II O vaivém das coisas humanas e os ocultos juízos de Deus. Nesta vida aprendemos a suportar com paciência os males, porque também os bons os suportam, e a não dar muito apreço aos bens, porque também os maus os conseguem. Assim, até nas coisas em que a justiça de Deus não aparece topamos com divino e salutar ensinamento. É verdade que ignoramos por que juízo de Deus este homem de bem é pobre e aquele mau é rico, por que vive alegre este, que, de acordo conosco, deveria estar expiando, através de cruéis sofrimentos, a corrupção de seus costumes, e por que triste aquele, cuja vida exemplar deveria ter a alegria como recompensa. Não sabemos por que ao inocente não apenas não se faz• justiça, mas também condenam, vítima da injustiça do juiz ou dos falsos testemunhos das testemunhas, enquanto o culpado triunfa, impune, e, triunfando, insulta o inocente. Ignoramos por que o ímpio goza de saúde invejável e o piedoso é consumido por pestilenta enfermidade, por que moços, salteadores e ladrões, têm saúde de ferro, ao passe que crianças, incapazes de mesmo por palavra ofender alguém, são vítimas de dores cruéis. Não sabemos por que aquele cuja vida poderia ser útil aos homens é arrebatado por morte prematura, quando outros, que nem mesmo mereciam haver nascido, vivem muitos anos. Ignoramos também por que o carregado de crimes se vê cumulado de honras e as trevas da desonra cobrem o homem irrepreensível. Quem, por fim, será capaz de coligir e enumerar as coisas desse jaez? Se tal paradoxo fosse constante na vida, em que, como diz o salmo sagrado, o homem se fez semelhante à vaidade e seus dias passam como a sombra, e unicamente os maus obtivessem os bens terrenos e transitórios e somente os bons padecessem os males, essa disposição poderia ser atribuída a juízo de Deus justo ou, pelo menos, benigno. Assim poderíamos pensar que aqueles que não conseguirão os bens eternos, que fazem felizes os homens, são, por causa de sua malícia, enganados com os bens efêmeros e temporais, ou, graças à misericórdia de Deus, consolados com eles, e aqueles que não sofrerão os tormentos eternos são, por causa de seus pecados, por pequenos que sejam, afligidos com os males temporais ou exercitados para aperfeiçoamento de suas virtudes. Como porém, hoje em dia não apenas os bons sofrem males e os maus têm bens, coisa, ao parecer, injusta, mas também, além disso, com frequência os maus sofrem seus males e os bons têm suas alegrias. os juízos de Deus tornam-se mais inescrutáveis e seus caminhos, mais incompreensíveis. Apesar de ignorarmos por que juízo Deus faz ou permite isso, Ele, em quem reside a soberana virtude, a soberana Sabedoria e a soberana justiça e não há fraqueza, temeridade, nem injustiça alguma, com isso aprendemos a não dar demasiado apreço aos bens ou aos males, comuns aos bons e aos maus, e a buscar os bens próprios dos bons e, sobretudo, a fugir dos males privativos dos maus. Quando chegarmos ao juízo de Deus, tempo propriamente chamado dia do juízo e, às vezes, dia do Senhor, reconheceremos a justiça dos juízos de Deus, não apenas dos emitidos nesse último dia, mas também dos emitidos desde o princípio e dos que emitirá até o referido momento. Aí também aparecerá por que justo juízo Deus faz com que todos os seus justos juízos se ocultem de nossos sentidos e de nossa razão, embora nesse ponto não se oculte da fé das almas religiosas ser justo o que se oculta. CAPÍTULO III Testemunhos desse ponto, extraídos do Eclesiastes de Salomão. Salomão, o rei mais sábio de Israel, que reinou em Jerusalém, começou da seguinte maneira o livro intitulado Eclesiastes, pelos judeus incluído no cânon das Sagradas Letras: Vaidade das vaidades, disse o Eclesiastes, vaidade das vaidades e tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho que desenvolve sob o sol? E, ligando a essa ideia o quadro das misérias humanas, menciona as atribulações e os erros desta vida e prova, pela fuga do tempo, não haver nada sólido nem estável aqui na terra. Em meio de tal vaidade de coisas terrenas lamenta, sobretudo, que, avantajando-se a Sabedoria à insipiência, como a luz às trevas, e estando os olhos do sábio em sua cabeça, enquanto o néscio caminha nas trevas, todos corram a mesma sorte nesta vida. Com isso dá a entender que os males são comuns aos bons e aos maus. E acrescenta que os bons sofrem como se fossem maus e os maus prosperam como se fossem bons. Eis suas palavras: Ainda há outra vaidade sobre a terra: há justos aos quais ocorrem males como a ímpios e ímpios tratados como justos. E também a isso chamei vaidade. Homem tão sábio consagrou todo o seu livro a intimar-nos tal vaidade, sem dúvida para fazer-nos desejar a vida onde não existe a vaidade sob o sol, mas a verdade sob o Fazedor do Sol. Desvanecer-se-á, porventura, o homem, feito semelhante à vaidade, nessas vaidades, sem justo juízo de Deus? Não obstante, enquanto lhe está sujeito, é de grande importância saber se resiste ou obedece à verdade e se é verdadeiramente piedoso ou não. Importa não precisamente para adquirir os bens desta vida ou para evitar os males, que passam como sombra, mas para voltar-nos os olhos para o juízo final, em que para sempre se darão os bens aos bons e os males aos maus. Enfim, o Sábio conclui seu livro com as seguintes palavras: Teme a Deus, diz, e guarda-lhe os mandamentos, porque isso é o homem todo. Com efeito, todo homem é apenas guarda fiel dos mandamentos de Deus e quem não é isso nada é. Porque toda obra, quer dizer, a feita pelo homem nesta vida, boa ou má, por vil ou desprezível que seja, Deus a trará a juízo. Noutros termos, toda obra aparentemente desprezível e, portanto, nem aparente, Deus a vê e não a despreza nem a esquece no juízo. CAPÍTULO IV Plano a seguir na citação dos testemunhos. Respigarei, primeiro no Novo Testamento e depois no Antigo, os testemunhos, tomados das Sagradas Escrituras, que me propus aduzir, do juízo final. Embora o Antigo preceda o Novo em tempo, o Novo precede-o em autoridade, porque aquele não passa de prelúdio deste. Começaremos, pois, pelos testemunhos do Novo Testamento, e, para dar mais força à prova, depois aduziremos os do Velho. O Antigo Testamento compreende a Lei e os Profetas; o Novo, o Evangelho e as Epístolas dos Apóstolos. Diz o Apóstolo: Deu-nos a lei o conhecimento do pecado, mas agora a justiça de Deus se nos revelou sem ela, segundo o testemunho da lei e dos profetas. E essa justiça de Deus é pela fé em Jesus Cristo manifestada a todos quantos nele creem. A justiça de Deus pertence ao Novo Testamento e está confirmada pelo Antigo, quer dizer, pela lei e pelos profetas. Devo, pois, em primeiro lugar expor a causa e convocar depois as testemunhas. Diz o próprio Cristo, mostrando-nos a ordem a seguir: O doutor bem instruído no tocante ao reino de Deus é semelhante ao pai de família que de seu depósito vai tirando coisas novas e velhas. Não disse velhas e novas, coisa que houvera dito, se à ordem de tempo não houvesse preferido guardar a de merecimento. CAPÍTULO V Palavras do Salvador tocantes ao juízo final. 1. Repreendendo a incredulidade das cidades em que operara grandes milagres e opondo-lhes Cidades alienígenas, diz o Salvador mesmo: Digo-vos que no dia do juízo Tiro e Sidônia serão tratadas com menor rigor que vós. E, pouco depois, a outra cidade: Em verdade te digo que no dia do juízo Sodoma será castigada com menos rigor que tu. Aí mostra de maneira muitíssimo clara que o dia do juízo há de vir. E diz noutro lugar: No dia do juízo os naturais de Nínive se levantarão contra essa raça de homens e a condenarão, porquanto fizeram penitencia por causa da pregação de Jonas. E, contudo, quem aqui está é mais que Jonas. No dia do juízo a rainha do Sul se levantará contra esta geração e a condenará, pois veio dos extremos da terra para escutar a Sabedoria de Salomão. E, contudo, aqui tendes quem é mais que Salomão. Essa passagem ensina-nos duas verdades, a saber, o juízo virá e virá acompanhado da ressurreição dos mortos. Porque, falando dos ninivitas e da rainha do Sul, sem dúvida falava dos mortos, de quem predisse ressuscitariam no dia do juízo. E não disse que a condenarão porque a julgarão, mas porque, comparados com eles, tais homens merecerão ser condenados. 2. De igual modo, noutra passagem, falando da atual convivência dos bons com os maus e da futura separação que se realizará no dia do juízo, se serve da parábola do campo semeado de bom trigo, a que se acrescenta a cizânia. Ao expô-la aos discípulos, diz-lhes: Quem semeia a boa semente é o Filho do homem. O campo é o mundo. A boa semente são os filhos do reino. A cizânia, os filhos do maligno. O inimigo que a semeou é o diabo. A ceifa é o fim do mundo. Os ceifeiros são os anjos. E, assim como se junta a cizânia e se queima no fogo, assim sucederá no fim do mundo: o Filho do homem enviará seus anjos e arrancarão de seu reino todo escândalo e quantos praticam a maldade. E arrojá-los-ão ao forno de fogo, onde haverá choro e ranger de dentes. Ao mesmo tempo, no reino de seu Pai os justos resplandecerão como o Sol. Quem tem ouvidos para ouvir que ouça. Na realidade, aí não fala do juízo nem do dia do juízo, mas o expressa muito mais claramente com os fatos e prediz que virá o fim dos séculos. 3. E, dirigindo-se aos discípulos: Em verdade vos digo que os que me haveis seguido, quando, na regeneração, o Filho do homem se sentar no só lia de sua majestade, também sentareis em doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel. Isso indica que Jesus julgará com os discípulos. Por isso noutra parte disse aos judeus: Se expulso os demônios em nome de Belzebu, em nome de quem os expulsam vossos filhos? Serão, por isso, vossos juízes Não devemos pensar que, como fala de doze tronos, apenas doze homens julgarão com Ele. O número doze exprime a totalidade dos que julgarão com Ele, porque o número sete ordinariamente quer dizer totalidade e suas duas partes, ou seja, três e quatro, multiplicadas, dão doze. Com efeito, três vezes quatro e quatro vezes três somam doze, sem acudir a outras razões que venham ao caso. Ademais, como lemos que em lugar do traidor Judas foi ordenado o Apóstolo São Matias, São Paulo, que trabalhou mais que todos os outros, já não teria trono em que sentar-se. E ele mesmo dá a entender que pertence, com outros santos, ao número dos juízes, quando diz: Não sabeis que temos de ser juízes até dos anjos? Apresenta-se igual problema com o número doze, no tocante aos que devem ser julgados. Não porque se disse: E julgareis as doze tribos de Israel, a tribo de Levi, a décima terceira tribo, não será julgada ou julgarão apenas esse povo e não as demais nações. Com a palavra regeneração quis, sem dúvida, exprimir a ressurreição dos mortos. Nossa carne será regenerada pela incorrupção, como nossa alma o é pela fé. 4. Passo por alto muitos textos que parecem aludir ao juízo final, mas, considerados com certo escrúpulo, se mostram ambíguos ou susceptíveis de aplicação a outro ponto, que pode ser, quer a vinda do Salvador todos os dias em sua Igreja, quer dizer, em seus membros, em que se manifesta parcialmente e pouco a pouco, porque toda ela é seu corpo, quer a destruição da Jerusalém terrena, de que fala com frequência e parece tratar-se do fim do mundo e do último dia do juízo. Assim, é quase impossível entender as referidas passagens, sem esmerada comparação de textos dos três evangelistas, a saber, São Mateus, São Marcos e São Lucas, porque, onde a explicação de um deles é mais obscura, a do outro é mais clara e o que se refere ao mesmo objeto ressalta com mais evidência. É o que me propus fazer em carta dirigida a Hesíquio, de feliz memória, bispo de Salona, carta intitulada Do Fim do Mundo. 5. Vou, pois, abordar a passagem do Evangelho de São Mateus em que se fala da separação dos bons e dos maus, a realizar-se no último juízo de Cristo. Quando o Filho do homem vier com toda sua majestade e acompanhado de todos seus anjos, sentar-se-á no trono de sua glória. E fará comparecer diante dele todas as nações e separará uns dos outros, como dos cabritos o pastor separa as ovelhas, pondo as ovelhas à direita e os cabritos à esquerda. Então, o Rei dirá aos que lhe estiverem à direita: Vinde, benditos de meu Pai, tomar posse do reino que vos está preparado desde o princípio do mundo. Porque tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, era peregrino e me hospedastes, estava nu e me cobristes, enfermo e me visitastes, preso e viestes ver-me. Ao que os justos lhe responderão, dizendo: Quando, Senhor, te vimos com fome e te demos de comer, sedento e te demos de beber? Quando te encontramos peregrino e te hospedamos, nu e te vestimos? Quando te vimos enfermo ou na prisão e fomos visitar-te? E dir-lhes-á em resposta o Rei: Em verdade vos digo que sempre que o fizestes com algum de meus pequeninos a mim o fizestes. Ao mesmo tempo, dirá aos que lhe estiverem à esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, destinado ao diabo e seus anjos. Lembre-lhas, depois, as obras que não fizeram e louvou nos da direita. E, perguntando-lhe quando o haviam visto em tal necessidade, respondeu-lhes que não lho fizeram a Ele o que não fizeram a seus pequeninos. E como remate acrescentou: Por isso, esses irão para o suplício eterno e os justos para a vida eterna. O evangelista São João diz de maneira clara haver Cristo marcado o juízo para a hora da ressurreição dos mortos. Depois de dizer que o Pai, não julga ninguém, mas todo o poder de julgar o deu ao Filho, a fim de todos honrarem o Filho como honram o Pai, pois quem não honra o Filho não honra tampouco o Pai, que o enviou, acrescenta: Em verdade, em verdade vos digo que quem me ouve a palavra e crê naquele que me enviou possui a vida eterna e não entrará em juízo, mas passará da morte à vida. Eis que assegura que seus fiéis não entrarão em juízo. Como, pois, serão separados dos maus pelo juízo e lhe estarão à direita, se nessa passagem juízo não é sinônimo de condenação? Com efeito, não incorrerão em tal juízo os que lhe escutam a palavra e creem naquele que o enviou. CAPÍTULO VI Qual a primeira ressurreição e qual a segunda. E prossegue, dizendo: Em verdade, em verdade vos digo que vem o tempo e já estamos nele, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a escutarem reviverão. Porque, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim também deu ao Filho ter a vida em si mesmo. Como se vê, não fala da segunda ressurreição, ou seja, dos corpos, ressurreição final, mas da primeira, que se opera agora. Para distingui-la da outra, disse: Vem o tempo e já estamos nele. Essa ressurreição não é a dos corpos, mas a das almas. As almas também morrem, de morte consistente na impiedade e no pecado. De homens mortos de tal morte é que o próprio Senhor disse: Deixa que os mortos enterrem seus mortos, quer dizer, deixa que os mortos da alma sepultem os mortos do corpo. Em prol desses mortos que a iniquidade e a impiedade fazem morrer na alma, diz: Vem o tempo e já estamos nele, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a escutarem reviverão. Os que a escutarem, quer dizer, os que lhe obedecerem, os que neles crerem.e perseverarem até o fim. Aí não faz distinção entre os bons e os maus. Para todos é bom ouvir-lhe a voz e viver, passando da morte da impiedade à vida da piedade. Dessa morte escreve nos seguintes termos o Apóstolo São Paulo: Logo, todos morreram e Cristo morreu por todos, para que os que vivem já não vivam para si, mas para Aquele que morreu e ressuscitou por eles. Todos, pois, sem exceção, morreram pelo pecado, quer pelo pecado original, quer pelos atuais, acrescentados por ignorância ou por malícia. E o único vivo, quer dizer, o único isento de pecado, morreu pelos mortos, a fim de que os que vivem, por haverem-lhes sido remitidos os pecados, já não vivam para si, mas para Aquele que morreu por todos por causa de nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação. E, além disso, para que, crendo naquele que justifica o ímpio e sendo justificados da impiedade, como os mortos, que ressuscitam, possamos pertencer à primeira ressurreição, que se efetua agora. À primeira pertencem unicamente os que serão para sempre bem-aventurados; à segunda, de que em seguida falarei, pertencem, segundo o Apóstolo, tanto os bons como os maus. Esta é de misericórdia; aquela, de juízo. Por esse motivo canta o salmo: Cantarei, Senhor, tua misericórdia e teu juízo. 2. Da derradeira sentença é que fala a seguir, quando diz: E deu-lhe o poder de julgar, porque é o Filho do homem. Isso prova que virá julgar na mesma carne em que veio a ser julgado. Tal é o sentido das palavras: Porque é o Filho do homem. E depois acrescenta, a propósito do tratado: Não vos admireis disso, porque virá o tempo em que todos os que estão nos sepulcros lhe ouvirão a voz. E sairão, ressuscitados para a vida, os que fizeram boas obras e ressuscitados para o juízo os que obraram mal. Juízo com que pouco antes, como agora, designou a condenação nos seguintes termos: Quem me escuta a palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não incorrerá em juízo, mas passará da morte à vida. Isso significa que, pertencendo à primeira ressurreição, passagem atual da morte à vida, a gente não incorrerá na condenação, designada com o nome de juízo. Assim, neste lugar: E, ressuscitados para o juízo, ou seja, para a condenação, os que fizeram o mal. Ressuscite, pois, na primeira ressurreição quem não quiser ser condenado na segunda. Porque virá o tempo e já estamos nele, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a escutarem reviverão, quer dizer, não cairão na condenação, também chamada segunda morte. Nessa morte, depois da segunda ressurreição, que será dos corpos, serão precipitados os que não ressuscitem na primeira, que é das almas. Virá, pois, o tempo (aqui não acrescenta: E já estamos nele, porque será no fim do mundo, ou seja, no último e tremendo juízo de Deus), em que todos os que estão nos sepulcros lhe ouvirão a voz e sairão. Aqui não diz como na primeira: E os que a escutarem reviverão, pois nem todos viverão com essa vida, que por ser feliz merece tal nome. A verdade é que não poderiam ouvi-la sem certa vida, nem saírem dos sepulcros, ao ressuscitar o corpo. O porquê de que não viverão todos manifesta-se no seguinte: Sairão, ressuscitados para a vida, os que fizeram boas obras. Eis os que ressuscitarão. E, ressuscitados para o juízo, os que fizeram o mal. Eis os que não viverão, porque morrerão com a segunda morte. Praticaram o mal porque viveram mal e viveram mal porque não ressuscitaram na primeira ressurreição, que agora se opera nas almas, ou não perseveraram até o fim no propósito de sua ressurreição. Como são duas as ressurreições, de que já falei mais acima, uma segundo a fé, que agora se opera pelo batismo, e outra segundo a carne, que se operará no juízo final, quando a carne se torne incorruptível e imortal, assim são as duas ressurreições. A primeira, que agora se efetua, é a das almas e não permite incorrer na segunda morte. E a segunda, que virá no fim do mundo, não é das almas, mas dos corpos. Enviará, por efeito do último juízo, uns para a segunda morte e outros para a vida imortal. CAPÍTULO VII As duas ressurreições. Os mil anos do Apocalipse e razoável modo de pensar sobre eles. 1. O mesmo evangelista São João fala dessas duas ressurreições em seu Apocalipse. Mas é tal seu modo de expressar-se, que alguns dos nossos, não entendendo a primeira, foram parar em fábulas ridículas. Diz São João no citado livro: Vi também descer do céu um anjo, que tinha na mão a chave do abismo e grande corrente. E agarrou o dragão, a antiga serpente que se chamou diabo e satanás, acorrentou-o por mil anos e precipitou-o no abismo. E fechou o abismo e sobre ele pós seu selo, para que, até que se completem os mil anos, não mais seduza as nações. Depois será solto por pouco tempo. Depois vi tronos e os que se sentavam neles, a quem foi dado o poder de julgar. E vi as almas dos degolados por haverem dado testemunho de Jesus e por causa da palavra de Deus e quantos não adoraram a besta, nem sua imagem, nem receberam na fronte e nas mãos sua marca, também reinaram com Jesus mil anos. Os outros não viveram até que se completassem os mil anos. Essa é a primeira ressurreição. Bem-aventurado e santo quem toma parte nessa primeira ressurreição. Sobre eles não terá poderio a segunda morte. E serão sacerdotes de Deus e de Cristo e com Ele reinarão mil anos. Aqueles que por causa de tais palavras supuseram fosse corporal a primeira ressurreição adotaram semelhante opinião, movidos, sobretudo, pelos mil anos, na ideia de que todo esse tempo deve ser como o sábado dos santos, em que santamente repousarão depois de seis mil anos de trabalhos. Esses anos contam-se a partir da criação do homem e de sua queda, ganha pelo pecado, da felicidade do paraíso nas misérias da vida mortal. E assim como está escrito: Um dia perante Deus é como mil anos e mil anos como um dia, passados os seis mil anos como seis dias, o sétimo, quer dizer, os últimos mil anos, farão as vezes do sábado para os santos, que ressuscitarão para celebrá-la. Essa opinião seria até certo ponto admissível, se se acreditasse que durante o referido sábado os santos gozarão de algumas delícias pela presença do Senhor. Eu mesmo aderi algum tempo a esse modo de pensar. Mas seus defensores dizem que os ressuscitados folgarão em imoderados banquetes carnais, em que haverá comida e bebida em tal excesso, que excederão as orgias pagãs. E isso não podem crê-lo senão os carnais. Os espirituais, porém, dão-lhes o nome de khiliastás, palavra grega que literalmente podemos traduzir por milenaristas. Refutá-los por miúdo levaria muito tempo. Prefiro, por isso, mostrar como a gente deve entender essas palavras da Escritura. 2. Diz o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo: Ninguém pode entrar em casa do forte e roubar-lhe os vasos, se primeiro não o "marra bem. Por forte designa o diabo, pois pôde submeter a si o gênero humano. e por vasos os fiéis, que mantinha enredados na impiedade e no pecado. Para manietar, pois, o referido forte, São João viu no Apocalipse descer do céu um anjo, que tinha na mão a chave do abismo e grande corrente. E agarrou o dragão, prossegue, a antiga serpente que se chamou. diabo e satanás, e acorrentou-o por mil anos. Quer dizer, acorrentou-lhe o poder de seduzir e de dominar os redimidos. Os mil anos podem, segundo me parece, ser entendidos de duas maneiras: ou porque isso há de passar-se nos mil últimos anos, quer dizer, no sexto milhar, como no sexto dia, cujos últimos agora transcorrem, para serem seguidos pelo sábado que não tem tarde, ou seja, pelo repouso dos santos, que não terá fim (e em tal sentido aqui chamaria mil anos à última parte desse tempo, como dia que dura até o fim do mundo, tomando a parte pelo todo), ou se serve dos mil anos para designar a duração do mundo, empregando número perfeito para denotar a plenitude do tempo. O número mil é o cubo de dez e dez vezes dez é cem. Cem é figura plana; para torná-la sólida é preciso multiplicar cem por dez e já temos os mil. Se, por conseguinte, às vezes se emprega o número cem para indicar totalidade, como quando o Senhor fez esta promessa àquele que tudo deixa para segui-lo: Receberá o cêntuplo nesta vida, o que o Apóstolo expõe do seguinte modo: Como não tendo nada e possuindo tudo, pois antes já dissera que o mundo das riquezas é propriedade do homem fiel, quanto mais se usará o número mil para designar universalidade, sendo o cubo de dez? É o melhor sentido das palavras do salmo: Nunca se esqueceu da aliança e da promessa feita para mil gerações, ou seja, para todas. 3. E precipitou-o no abismo, quer dizer, precipitou, realmente, o diabo no abismo, que representa a inumerável multidão de ímpios, cujos corações são abismo de malignidade contra a Igreja de Deus. E diz havê-lo precipitado não porque o diabo ali já não estivesse, mas porque, excluído do coração dos fiéis, começou a possuir mais profundamente os ímpios. É mais possuído pelo diabo quem não apenas se afasta de Deus, mas odeia sem motivo os que o servem. E fechou o abismo, prossegue, e sobre ele pós seu selo, para, até que se completem os mil anos, não mais andar enganando as nações. Fechou sobre ele, quer dizer, proibiu-o de sair e violar o mandado. O acréscimo: E pós seu selo pode significar que Deus não quer que se saiba quem pertence ao diabo e quem não. Está absolutamente oculto nesta vida, porque não se sabe, se quem parece estar de pé cairá e se quem parece já estar no chão se levantará. Mas, acorrentando e aprisionando o diabo, impede-o de seduzir as nações que pertencem a Cristo e ele antes seduzia ou retinha. Porque, como diz o Apóstolo, antes da criação do mundo Deus resolveu do reino das trevas livrar essas almas e transferi-las para o reino do Filho de seu amor. E que fiel ignora que o diabo ainda agora seduz as nações e consigo as leva para o suplício eterno? Não o faz com os predestinados à vida eterna. Não há por que inquietar-se de o diabo frequentemente seduzir aqueles que, já regenerados em Cristo, caminham pelas veredas do Senhor. Porque o Senhor conhece os que lhe pertencem e nenhum deles satanás seduz, arrastando-o para a condenação eterna. Deus conhece-os como Deus, quer dizer, como Aquele de quem nada do futuro se oculta, não como homem, que só vê outro homem quando presente (se é que se pode dizer que vê aquele cujo coração não vê) e nem mesmo é capaz de ver que espécie de pessoa ele próprio virá a ser. O diabo foi, pois, acorrentado e fechado no abismo para isto, para não seduzir as nações que integram a Igreja e tinha seduzidas antes mesmo da existência da Igreja. Não disse: Para não seduzir ninguém, mas: Para não seduzir as nações, com as quais, sem dúvida, quis dar a entender a Igreja. Até que se completem os mil anos, ou seja, o restante do sexto dia, que é de mil anos, ou todos os anos que dure o mundo. 4. As palavras: Para não mais seduzir as nações, até que se completem os mil anos não nos devem fazer pensar que depois haverá de seduzir essas mesmas nações componentes da Igreja predestinada, proibição que lhe valeu ser acorrentado e preso. Porque ou se trata de expressão semelhante a outra, corrente nas Escrituras, por exemplo, neste salmo: Nossos olhos estão cravados no Senhor, Deus nosso, para que se apiade de nós, o que não quer dizer que, uma vez que se apiade, não estarão os olhos de seus servos fitos no Senhor, seu Deus, ou a ordem gramatical é a seguinte: Fechou e sobre ele pôs seu selo até que se completem os mil anos. Em tal caso, a interposição: Para não mais seduzir as nações deve ser entendida como independente e inconexa com essa ordem como que acrescentada depois. O período completo seria assim: Fechou e sobre ele pós seu selo até que se completem os mil anos, para não mais seduzir as nações. Em outros termos: o abismo estará fechado até que se completem os mil anos, para que cesse de seduzir as nações. CAPÍTULO VIII Como se entende o acorrentar e o soltar o diabo? 1. Depois, acrescenta, será solto por pouco tempo. Se o diabo está acorrentado e fechado a fim de não poder seduzir a Igreja, sua liberdade consistirá em poder fazê-lo? Nem pensá-lo. Nunca seduzirá a Igreja, predestinada e eleita antes da criação do mundo, da qual está escrito que o Senhor conhece os que lhe pertencem. Contudo, quando o diabo for solto, na terra haverá uma Igreja, como houve desde sua instituição e sempre haverá em seus filhos, em sucessão contínua de nascimentos e de mortes. Pouco depois diz que o demônio, uma vez livre, virá, com todas as nações que haja seduzido no mundo inteiro, guerrear contra a Igreja e o número de tais inimigos igualará os grãos de areia do mar. E estenderam-se, diz, pela redondeza da terra e cercaram o acampamento dos santos e a cidade amada. Mas Deus fez chover fogo do céu, que os consumiu, e o diabo, que os seduzira, foi precipitado em lago de fogo e enxofre, em que também o foram a besta e o falso profeta. E ali estarão atormentados dia e noite pelos séculos dos séculos. A passagem já se refere ao juízo final; achei melhor mencioná-la desde já, por temor de que alguém imagine que, no breve espaço de tempo em que o diabo andará solto, não existirá a Igreja neste mundo, quer porque não a encontre, quer porque a destrua com sua perseguição. O diabo não está, pois, acorrentado todo o tempo abrangido por esse livro, a saber, desde a primeira vinda de Cristo até o fim do mundo, em que se dará a segunda. E que estar acorrentado durante mil anos significa que nesse intervalo não seduzirá a Igreja, pois não a seduzirá nem mesmo quando for solto. E, é claro, se para ele o estar acorrentado é não poder seduzir ou não ser-lhe permitido fazê-lo, ser solto que será, senão poder seduzir ou ser-lhe permitido fazê-lo? Isso não se realizará. O cativeiro do diabo consiste simplesmente em não ser-lhe permitido tentar os homens quanto possa, por sedução ou por violência, para fazê-los passar para seu partido. Se isso lhe fosse permitido durante tão longo espaço de tempo, a fraqueza humana é tal, que faria cair grande número de fiéis e os derribaria e desviaria da fé, coisa que Deus não quer. E precisamente por isso está acorrentado. 2. Mas será solto quando faltar pouco tempo. Diz-nos a Escritura que o demônio e seus cúmplices porão em jogo toda sua sanha em três anos e seis meses e seus adversários serão tais, que nem pela força, nem por suas artimanhas poderão vencê-los. Se nunca fosse solto, conhecer-se-lhe-ia menos o maligno poder, seria menos provada a fidelíssima paciência da cidade santa e, finalmente, brilharia menos a Sabedoria do Onipotente, ao fazer bom uso de tamanho mal. Deus não o impediu de todo de tentar os santos, apesar de havê-lo expulso do foro íntimo dos homens, em que radica a fé em Deus, a fim de que no exterior se aproveitassem do combate. Mas ligou-o aos de seu partido, para que, babando-se de malícia, de sua piedosa fé não afastasse muitos homens fracos que deviam engrossar as fileiras da Igreja: uns futuros crentes; outros, já crentes. Soltá-lo-á no fim, para que a Cidade de Deus, com imensa glória de seu Redentor, Protetor e Libertador, veja que terrível adversário ela venceu. Que somos, comparados aos fiéis e santos que então haverá? Para submetê-los a prova, soltará esse brutal inimigo, contra quem, apesar de acorrentado, com tantos riscos travamos batalha. Embora não haja dúvida de que também durante esse intervalo existiram e existem alguns soldados de Cristo de tal maneira aguerridos e bravos, que, se estiverem vivos, quando for solto, lhe evitarão com suma maestria as arremetidas e as aguentarão com suma paciência. 3. Mas o diabo não foi acorrentado somente quando a Igreja, saindo da Judéia, começou a estender-se pelas demais nações: continua acorrentado e continuará sempre, até o fim do mundo, em que deverá ser solto. Todo dia vemos pessoas que, abandonando a infidelidade, se convertem à fé; isso, não há dúvida alguma, continuará a repetir-se até o fim do mundo. E, na verdade, o forte está acorrentado para cada fiel, quando arrancado, como sua presa, às garras do demônio, e o abismo, em que foi encerrado, não ficou destruído pela morte dos perseguidores existentes quando encerrado pela primeira vez. Sucederam-lhes e suceder-lhes-ão até o fim dos séculos odiadores dos cristãos, em cujos corações, cegos e profundos, todo dia é encerrado como em verdadeiro abismo. O problema crucial é saber se nos referidos três últimos anos e seis meses, quando, solto, se assanhará com todas as forças, alguém abraçará a fé, não abraçada por ele. Como se justificarão as palavras: Quem entrará em casa do forte e lhe roubará os vasos, se primeiro não o amarra bem, se, estando solto, também lhos roubam? Essa frase parece obrigar-nos a pensar que em tal tempo, embora curto, ninguém se fará cristão, mas o diabo lutará com os cristãos que já o forem. E, se alguns deles forem vencidos e o seguirem, temos de reconhecer que não eram do número dos filhos predestinados de Deus. Não é em vão que em sua epístola diz de alguns o mesmo Apóstolo São João, autor do Apocalipse: Saíram de nosso meio, mas não eram dos nossos, porque, se fossem dos nossos, teriam, sem dúvida, perseverado conosco. E que diremos das crianças? Não é crível que a última prova não encontre alguma criança, filho de cristão e ainda não batizada, ou não nasça nenhuma durante esse tempo e, nesse caso, os pais não a aproximem da fonte da regeneração. Se o fazem, como lhe arrebatarão tais vasos, uma vez solto o diabo, em cuja casa ninguém entra para roubar-lhos, se antes não o amarra bem? Creiamos, antes, que durante esse tempo à Igreja não faltarão as apostasias nem as conversões. E serão de tal modo fortes então os pais, para batizar os filhos, e os novos fiéis, que vencerão o forte, apesar de solto, quer dizer, que, embora contra eles empregue toda a artilharia nunca dantes usada ou os aperte até afogá-los, lhe atalharão os ardis e o confundirão. E, assim, o roubarão, embora não esteja acorrentado. Mas nem por isso será falsa a palavra do Evangelho: Quem entrará em casa do forte e lhe roubará os vasos, se primeiro não o amarra bem? Tal é, com efeito, a ordem observada em testemunho da palavra divina. O forte foi, primeiro, acorrentado e depois lhe roubaram os vasos, à vontade e em todas a nações, para aumento da Igreja, de sorte que, revigorada e robustecida pela fé nas coisas divinamente preditas e realizadas, se capacite para despojar o forte, embora ande solto. E é preciso admitir que, campeando a iniquidade, esfriará a caridade de muitos, e muitos não escritos no livro da vida se renderão às inauditas perseguições e artimanhas do demônio já solto. Devemos de igual modo acreditar que não apenas os verdadeiros fiéis de então, mas também alguns que estarão fora da Igreja, auxiliados pela graça de Deus e pela autoridade das Escrituras, que predisseram o fim do mundo, já diante dos olhos deles, estarão mais dispostos a crer o que não criam e mais fortes para vencer o diabo, por mais solto que ande. Se é assim, diremos que primeiro foi acorrentado com o fim de, uma vez solto, despojarem-no de seus bens e que por isso o Salvador disse: Quem entrará em casa do forte para roubar-lhe os vasos, se primeiro não o ata bem? CAPÍTULO IX Diferenças entre o reino eterno e o reino dos santos com Cristo durante mil anos. 1. Neste intervalo, durante os mil anos de acorrentamento do diabo, quer dizer, desde a primeira vinda de Cristo, os santos reinam também com Ele. Se, com efeito, além do reino de que se dirá no fim dos séculos: Vinde, benditos de meu Pai, possuir o reino que vos está preparado, os santos a quem diz: Estou convosco até a consumação dos séculos não terão outro, embora muito inferior, em que reinem com Ele, sem dúvida agora não chamaria à Igreja seu reino ou reino dos céus. Porque é hoje que o doutor de quem falamos antes e que tira de seu depósito coisas novas e velhas é instruído nas coisas do reino de Deus. E é da Igreja que os ceifeiros hão de arrancar a cizânia, que se deixou crescer com o trigo até a ceifa. Eis a exposição da parábola: A ceifa é o fim do mundo e os ceifeiros, os anjos. E assim como se apanha a cizânia e se queima no fogo, assim sucederá no fim do mundo. O Filho do homem enviará seus anjos e de seu reino arrancarão todos os escândalos. Arrancá-los-ão, porventura, do reino em que não há escândalos? Não. Será deste reino aqui da terra, a Igreja. Também diz: Quem violar um desses mandamentos, por mínimos que pareçam, e ensinar os homens a fazer o mesmo será considerado como o último no reino dos céus, mas quem os cumprir e ensinar será considerado grande no reino dos céus. Coloca ambos no reino dos céus, tanto quem não observa os mandamentos que ensina como quem os observa e os ensina, mas aquele será o mínimo e este, o máximo. Logo depois disso acrescenta: Porque vos digo que, se vossa justiça não for mais plena e maior que a dos escribas e fariseus, quer dizer, maior que a dos que não cumprem o que ensinam, pois dos escribas e fariseus diz em outro lugar: Dizem e não fazem, se vossa justiça, repito, não exceder em muito a deles, que equivale a dizer, se quebrantardes e não fizerdes o que ensinais, não entrareis no reino dos céus. É preciso, pois, distinguir entre o reino dos céus em que estão tanto quem lhe põe em prática os ensinamentos como quem não os põe, sendo pequeno um e grande o outro, e o reino dos céus em que não entra senão quem os pratica. Assim, o primeiro, morada mista, é a Igreja qual é agora; o segundo, entrada única, é a Igreja qual será quando nela não haja pecadores. A Igreja é, pois, agora o reino de Cristo e o reino dos céus. E agora com Ele reinam também seus santos, certo que de modo diferente de como reinarão mais tarde, mas a cizânia não reina com Ele, embora cresça com o trigo na Igreja. Somente reinam com Ele aqueles que fazem o que diz o Apóstolo: Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus; saboreai as coisas do céu, não as da terra. Desses também diz que sua conversação está nos céus. Enfim, com Ele reinam os que de tal modo estão em seu reino, que são eles reino seu. Como, porém, são reino de Cristo os que, para omitir outras coisas, embora nele permaneçam até o fim do mundo, em que do reino serão arrancados os escândalos, nele buscam a satisfação de seus próprios interesses, não a dos de Cristo? 2. Eis como o Apocalipse fala da primeira ressurreição desse reino militante, em que há inimigos que combater e paixões a que fazer frente e dominar, vencidas, até chegar ao reino pacífico, sem inimigos nem lutas. Após dizer que o diabo ficará acorrentado mil anos e, ao cabo deles, solto por pouco tempo, acrescenta, recapitulando o que fará a Igreja ou o que nela farão durante esse tempo: E vi tronos e os que se sentavam neles, a quem foi dado o poder de julgar. Não se deve pensar que isso se refere ao último juízo. Trata-se dos tronos dos prepósitos e dos próprios prepósitos que agora dirigem a Igreja. O poder de julgar que lhes foi dado parece ser propriamente o de que se disse: O que ligardes na terra será ligado no céu e o que desligardes na terra será desligado no céu. Por isso o Apóstolo escreve: Como poderia meter-me a julgar os de fora? Os de dentro não é que tendes o direito de julgar? E as almas dos degolados por confessarem Cristo, acrescenta o Apocalipse, e por causa da palavra de Deus. Aqui se subentende, é claro, o que diz em seguida: Reinarão com Jesus mil anos, quer dizer, as almas dos mártires separadas dos respectivos corpos. Com efeito, as almas dos justos mortos não são separadas da Igreja, que já é hoje o reino de Cristo. Do contrário, não seriam comemorados no altar de Deus na comunhão do corpo de Cristo e não lhes aproveitaria coisa alguma recorrer nos perigos ao batismo, para não saírem do mundo sem havê-la recebido, nem à reconciliação, quando a penitência ou consciência criminosa haja porventura separado alguém desse corpo. Por que tais práticas senão porque os fiéis, mesmo os defuntos, são membros da Igreja? E que, mesmo com os respectivos corpos, não reinam com Ele, mas com suas almas já reinam durante o referido período de mil anos. E ao que se referem estas outras palavras deste livro: Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor. Já lhes diz o Espírito que descansem de seus trabalhos, pois suas obras os vão acompanhando. Aqui, pois, com Cristo a Igreja reina nos vivos e nos mortos. Porque, como diz o Apóstolo, Cristo morreu para adquirir domínio sobre os vivos e sobre os mortos. Menciona, porém, unicamente as almas dos mártires, porque reinam, sobretudo, com Cristo esses mortos que até à morte lutaram pela verdade. Contudo, tomando o todo pela parte, entendamos que também os demais mortos são membros da Igreja, que é o reino de Cristo. 3. As seguintes palavras: E quantos não adoraram a besta nem sua imagem, nem receberam na fronte e nas mãos sua marca devemos entendê-las referentes aos vivos e aos mortos. Quanto à besta, embora o caso requeira exame mais sério, pode ser tomada, sem que se cause repugnância à retidão da fé, pela cidade ímpia e pelo povo infiel, contrário ao povo fiel e à Cidade de Deus. A imagem da besta parece-me ser a dissimulação dos homens que, fazendo profissão de fé, vivem como infiéis. Fingem ser o que não são e não são cristãos senão em caricatura e de nome. À besta pertencem, com efeito, não apenas os inimigos do nome de Cristo e de sua gloriosíssima cidade, mas também a cizânia, que no fim do mundo deve ser arrancada de seu reino, que é a Igreja. E quem são os que não adoram a besta nem sua imagem, senão os que fazem o que diz o Apóstolo, não se deixam atrelar ao mesmo jugo com os infiéis? Não adoram, quer dizer, não consentem, não se submetem nem se rebaixam a receber a marca, ou seja, o selo do crime nem na fronte, por causa de sua santa profissão, nem nas mãos, por causa de suas obras. Os isentos de tais males, quer ainda vivam nesta carne mortal, quer estejam mortos, já agora em certa medida reinam com Cristo durante o período de tempo representado pelos mil anos. 4. Os outros, acrescenta, não viveram. Porque é chegado o tempo em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, os que a escutarem viverão e os demais não viverão. E o acréscimo: Até que se completem os mil anos significa não haverem vivido no tempo em que deviam viver, ou seja, passando da morte à vida. E por isso, quando chegar o dia da ressurreição dos corpos, de seus sepulcros não sairão para a vida, mas para o juízo, para a condenação, que constitui a segunda morte. Porque todo aquele que, até que se completem os mil anos, durante todo o tempo em que se efetua a primeira ressurreição, não haja vivido, quer dizer, não haja ouvido a voz do Filho de Deus e passado da morte à vida, na segunda ressurreição passará à segunda morte com seu corpo. São João acrescenta: Essa é a primeira ressurreição. Bem-aventurado e santo quem toma parte nessa primeira ressurreição, quer dizer, quem dela participa. E é dela partícipe quem não apenas ressuscita, saindo do pecado, mas também persevera no estado de ressurreição. Sobre eles, prossegue, a segunda morte não terá poder. Tem-no, por conseguinte, sobre os outros, de quem disse mais acima: Os outros não viveram até que se completem os mil anos. Porque, embora certo que durante o período designado por mil anos viveram a vida do corpo, não viveram a da alma, ressuscitando da morte em que a impiedade os aferrolhou, para que tomassem parte na primeira ressurreição e sobre eles não tivesse poder a segunda morte. CAPÍTULO X Que se deve responder a quem opina que a ressurreição não diz respeito às almas, mas somente aos corpos. Há quem pense que só se pode falar de ressurreição dos corpos e, em consequência, sustentam que a primeira se realiza também nos corpos. Argumentam assim: quem cai há de levantar-se. Os corpos, em morrendo, caem (de cair vem cadáver); logo, os corpos é que ressuscitam, não as almas. Mas que responderão ao Apóstolo, que admite essa ressurreição? Aqueles a quem o Apóstolo se dirige nos seguintes termos: Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas do alto haviam ressuscitado segundo o homem interior, não segundo o homem exterior. O mesmo sentido exprime-o com outras palavras: A fim de que, a exemplo de Cristo, que para glória do Pai ressuscitou dentre os mortos, procedamos de acordo com novo teor de vida. E com as palavras: Levanta-te, ó tu que dormes, ressuscita da morte e Cristo iluminar-te-á. Quanto à maior, de que concluem ressuscitem os corpos, não as almas, pois cair é privativo dos corpos, por que não reparam nestas palavras: Não vos aparteis dele, para não cairdes; O cair ou o manter-se em pé pertence a seu Senhor; Quem pensa estar em pé tome cuidado para não cair? Tenho para mim que tal queda há de prevenir-se na alma, não no corpo. Se, pois, a ressurreição é privativa dos que caem e as almas também caem, segue-se que também as almas ressuscitam. Após dizer: Sobre esses a segunda morte não terá poder, acrescentou: Serão sacerdotes de Deus e de Cristo e com Ele reinarão mil anos. Não alude somente aos bispos e aos presbíteros, que na Igreja são os propriamente chamados sacerdotes, mas a todos os membros do grão-Sacerdote, como a todos os fiéis se lhes dá o nome de cristãos por causa do crisma místico. Assim, o Apóstolo São Pedro os chama povo santo e sacerdócio real. Apesar de em poucas palavras e de passagem, São João declara que Cristo é Deus, ao dizer: Sacerdotes de Deus e de Cristo, ou seja, do Pai e do Filho. E, ademais, Cristo, embora Filho do homem pela forma de servo que assumiu, se fez sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedec, como já dissemos mais de uma vez nesta obra. CAPÍTULO XI Gog e Magog e sua perseguição. E ao cabo dos mil anos, diz o Apocalipse, satanás será solto de sua prisão e sairá para enganar as nações que há nos quatro ângulos do mundo, Gog e Magog, a fim de reuni-los para a batalha. E seu número será como a areia do mar. Então os seduzirá para consigo levá-las a essa guerra, pois também antes os seduzia, segundo suas possibilidades, com todas as forças e com os mais variados ardis. Diz sairá, quer dizer, das trevas do ódio lançar-se-á aos furores de perseguição aberta, a última que, já próximo o juízo final, a santa Igreja sofrerá na terra toda. Toda a Cidade de Cristo será perseguida por toda a cidade da terra. Quanto às nações denominadas Gog e Magog, não devemos pensar que se trate dos povos bárbaros de certa região do mundo, como fizeram os que julgam serem os getas e os massagetas, iludidos pelas primeiras letras de tais nomes, ou outros povos estranhos e alheios ao Império Romano. O texto faz notar estarem estendidos por todo o orbe, quando diz: As nações que há nos quatro ângulos do mundo e acrescenta serem Gog e Magog. Comprovamos que Gog significa teto, e Magog, do teto como se dissesse, pouco mais ou menos, "a casa" e "aquele que dela sai". São, pois, as nações em que, como dissemos mais acima, o diabo está fechado como que em verdadeiro abismo; delas sai e procede de certo modo, sendo elas a casa e ele quem dela sai. E, se às nações aplicarmos ambos os termos, não um às nações e outro ao diabo, elas são a casa, porque esse velho inimigo está fechado e como que a coberto nelas e elas sairão da casa quando deixarem aparecer o ódio que ocultam. E as palavras: E estenderam-se pela redondeza da terra e cercaram o acampamento dos santos e a cidade amada não significam que os inimigos vieram ou virão a lugar determinado e concreto, em que estará assentado o acampamento dos santos e a cidade amada, pois essa é a Igreja de Cristo, estendida por todo o orbe. E, por isso, ela, que estará em todas as nações, estará então em toda parte. E o que significa a redondeza da terra. Aí estará o acampamento dos santos, aí estará a amada Cidade de Deus. Aí estará, cercada e perseguida por seus cruéis inimigos, porque também eles estarão em toda parte. Noutros termos, será arrincoada e metida nas apertadas garras da tribulação, mas não abandonará o campo de batalha, significado pela expressão "acampamento". CAPÍTULO XII Concerne ao último suplício dos ímpios o descer fogo do céu e devorá-los? A frase: E do céu fará chover fogo, que os consumirá não se refere ao último suplício, quando lhes diga: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno. Porque, então, serão enviados para o fogo, não descerá sobre eles o fogo do céu. Por fogo do céu podemos muito bem entender aqui a firmeza dos santos, que os fortalecerá para que não cedam aos sanhudos inimigos nem lhes façam a vontade. O firmamento é o céu, cuja firmeza alentará ardente zelo no peito dos inimigos, porque os sequazes do anticristo não puderam dobrar os santos de Cristo. Será esse o fogo que os devorará e vem de Deus, porque sua graça é que torna invencíveis os santos, objeto de tormentos para seus inimigos. Assim como neste lugar se trata do zelo bom: O zelo por tua casa me consome, assim neste se fala do mau: O zelo apoderou-se do populacho ignorante e é o fogo que agora consome os adversários. Diz agora para excluir o fogo do juízo final. E, se entende por esse fogo a praga que ferirá os perseguidores da Igreja que Cristo encontrar vivos quando vier, ocasião em que com sopro de sua boca matará o anticristo, tampouco será esse o último suplício dos ímpios, mas o que devem sofrer após a ressurreição dos corpos. CAPÍTULO XIII Está compreendido nos mil anos o tempo da perseguição do anticristo? Como já dissemos, de acordo com o testemunho do Apocalipse e o do profeta Daniel, durará três anos e seis meses a perseguição que o anticristo desencadeará. Embora se trate de curto espaço de tempo, há razão suficiente para perguntar se está ou não compreendido nos mil anos do cativeiro do diabo e do reinado dos santos com Cristo. Porque, se dizemos que sim, então o reino dos santos com Cristo será mais duradouro que o cativeiro do diabo, pois reinarão com seu Rei no auge da perseguição, quando se encontre solto e ataque com todo o furor. Como, pois, a Escritura assinala o cativeiro do diabo e o reinado dos santos dentro de mil anos, se o cativeiro do diabo termina três anos e meio antes de os santos cessarem de reinar com Cristo? Por outra parte, se dizemos não estar compreendido nos mil anos o breve espaço da perseguição, mas ser acréscimo, vemo-nos obrigados a confessar que durante a referida perseguição os santos não reinarão com Cristo. E nesse caso poderíamos entender em sentido próprio o seguinte: Serão sacerdotes de Deus e de Cristo e com Ele reinarão mil anos. E, ao cabo dos mil anos, satanás será solto de sua prisão. Isso não significaria que o reinado dos santos e a prisão do diabo cessarão ao mesmo tempo, de forma que o tempo da perseguição não pertence ao reinado dos santos nem à prisão de satanás, coisas igualmente incluídas nos mil anos, e, portanto, é adicional. Mas quem ousará afirmar que os membros de Cristo não reinarão com Ele precisamente quando se unirão mais estreitamente a Ele e quando a glória dos combatentes e a coroa dos mártires será tanto maior e mais maciça quanto mais rude o combate? Se se pretende ser inconveniente dizer que então não reinarão, em virtude dos males que sofrerão, a lógica exige dizer-se que os santos que hajam padecido antes desses mil anos não reinaram com Cristo no tempo de seu sofrimento. Por conseguinte, as almas dos degolados por confessarem Jesus e por causa da palavra de Deus, vistas pelo autor do Apocalipse, não reinavam com Cristo quando padeciam perseguição e não eram reino de Cristo quando Ele com tamanha excelência as possuía. Trata-se, na verdade, de enorme e extremamente detestável absurdo. Ao menos, não se pode negar que as almas vítimas dos gloriosíssimos mártires, uma vez finalizadas as dores e trabalhos desta vida e separadas de seus membros mortais, reinaram e reinam com Cristo, até que se completem os mil anos, e depois reinarão com Ele, já unidas a seus corpos imortais. Em consequência, as almas dos mártires, tanto as já separadas dos corpos, antes da última perseguição, como as que então se separaram, com Ele reinarão os referidos três anos e meio, até o mundo terminar e passarem ao reino que não terá morte. Será, portanto, mais longo o reinado dos santos com Cristo que a prisão e cativeiro do demônio, pois aqueles reinarão com seu Rei, o Filho de Deus, uma vez já solto o diabo, durante esses três anos e meio. De fato, quando São João diz: Serão sacerdotes de Deus e de Cristo e com Ele reinarão mil anos. E, ao cabo deles, Satanás será solto de sua prisão, podemos entender que os mil anos não fixam fim ao reino dos santos, e sim à prisão de Satanás (nesse caso os mil anos, quer dizer, todos os anos, seriam suficientemente flexíveis para o reinado dos santos ser mais longo e mais curta a prisão de Satanás), ou que, como três anos e meio é espaço de pouca monta, não quis levar em conta que à primeira vista se julgue mais curta a prisão do diabo e mais longo o reinado dos santos. Vimos algo semelhante no Livro Décimo sexto desta obra, com respeito aos quatrocentos anos, que, embora fossem alguns mais, assim foram contados, em números redondos, pela Escritura. A bom observador não escapa tratar-se de estilo corrente nas Sagradas Letras. CAPÍTULO XIV A condenação do diabo em companhia dos seus. A ressurreição dos mortos e o juízo final. Depois de haver falado da última perseguição, o Apóstolo São João resume em poucas palavras quanto o diabo e a cidade inimiga de que é príncipe hão de padecer no juízo. Diz assim: E o diabo que os seduzira foi precipitado em lago de enxofre e fogo, em que também o foram a besta e o falso profeta. E a( serão atormentados dia e noite pelos séculos dos séculos. Já dissemos que pela besta podemos entender muito bem a cidade ímpia. O pseudoprofeta é o anticristo ou a imagem da besta, quer dizer, a dissimulação de que antes falei. Depois, como o epílogo versa sobre o último juízo, que se realizará com a segunda ressurreição dos mortos, com a ressurreição dos corpos, narra como se lhe revelou. Vi, diz, grande e reluzente trono e quem nele se sentava, a cuja vista desapareceu a terra e o céu e deles nada ficou. Não diz: "Vi grande e reluzente sólio e quem nele se sentava e à sua vista desaparece a terra e o céu" , porque isso não sucedeu então, quer dizer, antes de julgados os vivos e os mortos, mas disse: Vi quem estava sentado no trono, a cuja vista desapareceu a terra e o céu. Mas depois, uma vez efetuado o juízo, deixam de existir este céu e esta terra e então começarão a existir céu novo e nova terra. Este mundo não passará por aniquilação, mas por mutação. Por isso escreve o Apóstolo: A figura deste mundo passa. Desejo, portanto, que vivais sem cuidados nem inquietudes. Passa, pois, a figura do mundo, não a natureza. Em havendo São João declarado haver visto quem estava sentado no trono, a cuja vista desapareceu a terra e o céu, o que sucederá depois, acrescenta: E vi os mortos, grandes e pequenos, e abriram-se os livros. Abriu-se, ademais, outro livro, o livro da vida de cada um deles. E os mortos foram julgados pelo que estava escrito nesses livros, cada qual segundo suas obras. Diz que se abriram os livros e um livro. E acrescentou a qualidade desse livro, dizendo: que é o da vida de cada qual. Os primeiros livros são, sem dúvida, os Livros santos, tanto do Antigo como do Novo Testamento, para mostrarem os mandamentos que Deus ordenara cumprir. E o outro, o livro da vida de cada qual, mostrava os mandamentos cumpridos ou violados por cada qual. Se esse livro o imaginamos materialmente, quem poderá medir-lhe o tamanho e a grossura? Ou quanto tempo se empregará para ler esse livro, que contém a vida de todos e cada um dos homens? Presenciarão acaso o ato tanto anjos como homens e cada um deles ouvirá do anjo a ele assinado o relato de sua vida? Esse livro não será, pois, para todos, mas cada qual terá o seu. E o que a Escritura dá a entender, ao dizer que se abriu, ademais, outro livro. É preciso entender aqui a virtude divina, que trará à memória de cada qual todas as suas obras, boas ou más, e fará que de relance os olhos da alma as vejam, com o fim de a ciência acusar ou escusar a consciência. Desse modo serão julgados todos ao mesmo tempo. Essa virtude divina recebeu o nome de livro, porque nela de certo modo se lê quanto, mercê dela, se recorda. E, para mostrar que mortos devem ser julgados, os pequenos e os grandes, acrescenta a modo de recapitulação e tornando aos que omitira, ou melhor, diferira: O mar apresentou seus mortos e a morte e o inferno entregaram os seus. Isso sucedeu, sem dúvida, antes de os mortos serem julgados, apesar de havê-la referido depois. Por isso dissemos tratar-se de uma espécie de recapitulação e de retorno ao omitido. Mas agora observa a ordem e para explicá-la repete o que antes já dissera do juízo. Depois das palavras: O mar apresentou seus mortos e a morte e o inferno entregaram os seus, acrescentou a seguir: E julgou cada qual segundo suas obras. E justamente o que antes dissera: E os mortos foram julgados segundo suas obras. CAPÍTULO XV Quais os mortos apresentados pelo mar e quais os entregues pela morte e pelo inferno? Mas quem são os mortos que o mar tinha em seu seio e apresentou? Porque nem os que morrem no mar escapam ao inferno, nem o mar lhes conserva os corpos, nem, o que é mais absurdo, o mar tinha os bons e o inferno os maus. Quem acreditará nisso? Talvez não estejam enganados os que acham que nessa passagem o mar faz as vezes do mundo. Ao dizer que aqueles que Cristo encontrará com vida serão julgados com os que hão de ressuscitar, o Apóstolo também chama de mortos, tanto os bons, a quem dirige estas palavras: Mortos estais e vossa vida está escondida com Cristo em Deus, como os maus, de quem se disse: Deixai que os mortos enterrem seus mortos. Ademais, podem ser chamados mortos porque seus corpos são mortais. E esse o motivo das palavras do Apóstolo: O corpo está morto por causa do pecado, mas o espírito vive em virtude da justificação. Isso prova existirem estas duas coisas em homem vivo, mas corpóreo: corpo morto e espírito vital. E, todavia, não diz corpo mortal, mas corpo morto, apesar de pouco mais adiante chamá-las, como é mais corrente, corpos mortais. O mar apresentou os mortos que nele estavam, quer dizer, o mundo apresentou os homens nele existentes, porque ainda não haviam morrido. E a morte e o inferno, acrescenta, entregaram os seus. O mar apresentou-os, porque se apresentaram como foram achados, e a morte e o inferno entregaram-nos, porque os devolveram à vida, de que já haviam saído. E não bastou dizer a morte ou o inferno em separado, mas disse a morte e o inferno: a morte, por causa dos bons, que a sofreram, mas não sofreram o inferno, e o inferno, por causa dos maus, que, ademais, nele pagam os suplícios que merecem. Se, pois, não parece absurdo crer que os antigos santos que tiveram fé na encarnação de Cristo estiveram depois da morte em lugares muito afastados daqueles em que os ímpios são atormentados, mas próximos dos infernos, até haverem sido livrados pelo sangue de Cristo e pela visita que Ele lhes fez, indubitavelmente os redimidos pela efusão desse sangue não descem aos infernos e não esperam senão o dia em que, tomando seus corpos, recebam a merecida recompensa. E, quando diz: E cada qual foi julgado segundo suas obras, em poucas palavras acrescentou como foi esse juízo: E a besta e o falso profeta foram lançados no lago de fogo. Com ambos esses nomes designou o diabo, autor da morte e das penas do inferno, e com ele toda a sociedade dos demônios. Já o adiantara: E o diabo, que os seduzira, foi precipitado em lago de fogo e enxofre. E o que ali se expressou de modo obscuro: Aonde também o foram a besta e o falso profeta, aqui se esclareceu nestes termos: E os que não foram achados escritos no livro da vida foram arrojados no lago de fogo. Esse livro não menciona Deus receando enganar-se por esquecimento. Significa simplesmente a predestinação daqueles a quem se dará a vida eterna. Não é que Deus não os conheça e leia esse livro para conhecê-los, pelo contrário, sua infalível presciência é o livro da vida, em que estão escritos, quer dizer, conhecidos desde muito antes. CAPÍTULO XVI O novo céu e a nova terra. Depois de haver falado do juízo dos maus, São João devia dizer algo também do juízo dos bons. Já explicou estas breves palavras do Senhor: Esses irão para o suplício eterno. Agora faltava explicar estas: E os justos, para a vida eterna. Vi, diz, um novo céu e uma nova terra. Porque o primeiro céu e a primeira terra desapareceram e já não há mar. A ordem desses acontecimentos será anotada mais acima a propósito da passagem em que diz haver visto quem se sentava no trono, a cuja vista desapareceram a terra e o céu. Uma vez julgados os que não estão escritos no livro da vida e arrojados ao fogo eterno (e penso que a natureza e o lugar desse fogo não os conhecerá nenhum homem, a menos que lho revele o Espírito de Deus), passará a figura deste mundo pela conflagração do fogo mundano, como o dilúvio se deveu à inundação das águas do mundo. A conflagração dos elementos corruptíveis fará desaparecerem, como dissemos, as qualidades próprias de nossos corpos corruptíveis. A substância, ao contrário, gozará das qualidades conformes com os corpos imortais, em virtude dessa maravilhosa mudança, quer dizer, o mundo renovado estará em harmonia com os corpos dos homens igualmente renovados. Das palavras: E já não há mar não é fácil inferir se se transformará ou se esse grande incêndio o secará. Lemos que haverá novo céu e nova terra, mas não me lembra haver lido em parte alguma algo sobre novo mar. É verdade que nesse livro se fala de um como que mar de vidro semelhante ao cristal, mas a passagem não trata do fim do mundo, além de que não diz mar, mas uma espécie de mar. Contudo, à maneira dos profetas, que gostam de empregar metáforas para velar o pensamento, poderia muito bem, ao dizer que já não há mar, estar falando no mar de que escrevera: E o mar apresentou seus mortos. O motivo é que então já não existirá o mundo proceloso e turbulento que é a vida dos mortais, apresentada sob a imagem de mar. CAPÍTULO XVII Glorificação eterna da Igreja. Depois, acrescenta, vi descer do céu a grande cidade, a nova Jerusalém, que vinha de Deus, ataviada como noiva engalanada para o esposo. E ouvi grande voz que safa do trono e dizia: Eis o tabernáculo de Deus com os homens, com quem Ele morará. Serão seu povo e Ele será seu Deus. Deus enxugar-lhes-á todas as lágrimas dos olhos. E já não haverá morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram. E disse quem estava sentado no trono: Vou renovar todas as coisas. Essa cidade desceu do céu, segundo ele, porque a graça de Deus, que a formou, é celeste. E assim diz por Isaías: Eu sou o Senhor, que te forma. E desceu do céu desde o princípio, desde que seus cidadãos crescem pela graça de Deus, que mana da regeneração comunicada pela vinda do Espírito Santo. Mas no juízo de Deus, que será o último e obra de Jesus Cristo, seu Filho, receberá esplendor tão maravilhoso e novo da graça divina, que não ficarão nem vestígios de sua velhice, pois os corpos passarão de sua antiga corrupção e mortalidade a incorrupção e imortalidades novas. Parece-me excessivo e ousado pretender que essas palavras se refiram aos mil anos em que reinarão com seu Rei, quando as palavras seguintes não admitem dúvida: Deus enxugar-lhes-á dos olhos todas as lágrimas. E já não haverá morte, nem pranto, nem gritos, nem dor. Quem será tão néscio, tão louco e tão possuído do delírio da obstinação, que se atreva a dizer que, entre as misérias desta vida, não apenas o povo santo, mas cada um dos santos, está isento de lágrimas e de dores? Diz-nos a realidade que quanto mais santo e mais cheio de bons desejos alguém é, tanto mais abundante seu pranto na oração. Não é acaso esta a voz de cidadão da Jerusalém celeste: Minhas lágrimas serviram-me de pão dia e noite? E esta: Todas as noites rego de lágrimas meu leito e com elas inundo o lugar de meu descanso? E também esta: De ti não se ocultam meus gemidos e esta: Renovou-se minha dor? Ou será que não são seus filhos os que gemem sob o peso dessa carga, de que não querem ser despojados, mas revestidos, para o mortal ser absorvido pela vida? Não são esses os que, possuindo as primícias do Espírito, intimamente suspiram, à espera da adoção, pela redenção de seu corpo? E não era cidadão da Jerusalém celeste o Apóstolo São Paulo e não o era mais ainda quando por seus irmãos carnais, os israelitas, sentia profunda tristeza e trazia o coração preso a contínua dor? Quando não haverá morte nessa cidade, senão quando se disser: Onde está, ó morte, teu combate? Onde, o teu aguilhão? O aguilhão da morte é o pecado? Ele já não existirá, quando se diga: Onde está? Agora não é obscuro cidadão da gloriosa Cidade, mas o próprio São João, quem clama em sua Epístola: Se dissermos que não temos pecados, enganamo-nos a nós mesmos e não há verdade em nós. Nesse livro, intitulado Apocalipse, há muitas coisas obscuras para exercitar o espírito do leitor e umas tantas, poucas por certo, claras, que permitem compreender as outras, não sem grande trabalho. Porque repete de muitos modos as mesmas ideias, de tal sorte que parece dizer coisas diversas, quando, ao contrário, são as mesmas, expressas de maneira diferente. Mas as palavras: Deus enxugar-lhes-á dos olhos todas as lágrimas. E já não haverá morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, referem-se com tamanha clareza ao século vindouro, à imortalidade e à eternidade dos santos (pois só então e só ali não existirão essas misérias), que, se as achamos obscuras, não devemos buscar coisas claras nas Sagradas Letras. CAPÍTULO XVIII Doutrina de São Pedro sobre o juízo final. Vejamos agora que o Apóstolo São Pedro escreve sobre o juízo final: Nos últimos dias virão, diz, artificiosos impostores, que, levados de suas próprias paixões, dirão: Onde está a promessa de sua vinda? Porque, desde a morte de nossos pais, todas as coisas continuam como no princípio de sua criação. É que não sabem, porque querem ignorá-lo, que no princípio foi criado o céu e a terra, tirados da água e em meio dela constituídos pela palavra de Deus, e por isso o mundo de então pereceu afogado nas águas. Mas os céus e a terra agora existentes foram restabelecidos por essa mesma palavra e estão destinados a ser presa do fogo no dia do juízo e do extermínio dos homens ímpios. Mas vós, meus amados, não deveis ignorar que ante Deus um dia é como mil anos e mil anos como um dia. Assim, o Senhor não difere sua promessa, como alguns imaginam, mas espera com paciência por amor a vós, não querendo que ninguém pereça, senão que todos se convertam ao arrependimento. Quanto ao mais, o dia do Senhor virá como ladrão e então os céus passarão com espantoso estrondo, os elementos, ardendo, se dissolverão e a terra será abrasada com todas as suas obras. E, como todas as coisas hão de perecer, como deveis ser em vossa vida santa, aguardando e saindo a esperar a vinda do dia do senhor, dia em que os céus, ardendo, se dissolverão e ao calor do fogo se derreterão os elementos? Mas esperamos, segundo suas promessas, novos céus e nova terra, onde a justiça reinará. Não lembra sequer a ressurreição dos mortos, mas diz bastante da destruição do mundo. E, ao mencionar o dilúvio, parece advertir-nos que creiamos haja o mundo de perecer um dia. Diz, com efeito, que naquele tempo viu seu fim o mundo de então, não apenas o orbe da terra, mas também os céus, quer dizer, o espaço de ar que a subida das águas afogara. Entende por céus, ou melhor, por céu, o lugar do ar onde sopra o vento e somente esse lugar não os céus superiores, onde estão colocados o Sol, a Lua e as estrelas. Assim, toda ou quase toda essa região do ar se converteu em úmido elemento e desse modo pereceu com a terra, também sepultada pelo dilúvio. Mas os céus e a terra, escreve ele, agora existentes foram restabelecidos por essa mesma palavra e estão destinados a ser presa do fogo no dia do juízo e do extermínio dos homens ímpios. Portanto, a terra e o céu, quer dizer, o mundo, que veio ocupar o lugar do mundo destruído pelo dilúvio, está destinado a ser presa do fogo no dia do juízo e do extermínio dos homens ímpios. Não hesita em chamar extermínio à grande transformação que os homens sofrerão, embora seja certo que sua natureza subsistirá sempre, mesmo em meio dos suplícios eternos. Talvez alguém pergunte: Se o mundo arderá depois do juízo, onde estarão os santos durante esse incêndio, pois, tendo corpo, necessariamente ocuparão lugar corporal, antes de Deus haver estreado novo céu e nova terra? A isso podemos responder que estarão nas regiões superiores, aonde não chegará a chama do fogo nem chegou a água do dilúvio. Ademais, seus corpos serão tais, que poderão estar onde queiram. E, uma vez imortais e incorruptíveis, não temerão o fogo desse incêndio, do mesmo modo que os corpos corruptíveis dos três moços puderam, sem ser queimados, viver em meio das chamas. CAPÍTULO XIX São Paulo aos tessalonicences. O anticristo. 1. Vejo-me na necessidade de omitir grande número de testemunhos evangélicos e apostólicos sobre o juízo final, para não prolongar demasiado este livro. Mas não posso deixar de citar o Apóstolo São Paulo em sua Segunda Epístola aos tessalonicenses. Diz assim: Entretanto irmãos, vos suplicamos, pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, e de nossa reunião com Ele, que não abandoneis com ligeireza vossos sentimentos nem vos alarmeis com supostas revelações, com certas palavras ou com cartas supostamente enviadas por nós, como se já estivesse muito próximo o dia do Senhor. Não vos deixeis de maneira alguma seduzir por ninguém, porque não virão sem que primeiro haja acontecido a apostas ia e aparecido o homem do pecado, o filho da perdição, que se oporá a Deus e se levantará contra tudo que se diz Deus ou se adora, até chegar a tomar assento no templo de Deus, dando a entender que é Deus. Não vos lembrais de que, quando me encontrava entre vós, vos dizia essas coisas? Já sabeis a causa que agora o detém, até que seja manifestado no tempo oportuno. O fato é que já se vai operando o mistério da iniquidade. Entretanto, quem agora está firme mantenha-se assim, até que o impedimento seja removido. E então se deixará ver o perverso a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca e destruirá com o resplendor de sua presença, o iníquo que com o poder de Satanás virá com toda a sorte de milagres, de sinais e de prodígios falsos e com todas as ilusões que podem conduzir à iniquidade aqueles que se perderão por não haverem recebido e amado a verdade, a fim de se salvarem. Deus enviar-lhes-á, por isso, o artifício do erro, para crerem na mentira. Assim, serão condenados todos os que não creram na verdade, mas se comprazeram na maldade. 2. É indubitável estar falando do anticristo e de que o dia do juízo (a que chama dia do Senhor) não virá, se antes não vier o por ele chamado apóstata, claro está que do Senhor. Se a gente pode com razão dizê-lo de todos os ímpios, quanto mais poderá dizê-lo do anticristo? Em que templo de Deus se sentará? Não sabemos se será nas ruínas do templo de Salomão ou na Igreja. É claro que o Apóstolo não chamaria templo de Deus ao templo de algum ídolo ou do demônio. Por isso alguns pretendem que essa passagem que fala do anticristo não se refira ao príncipe, mas a seu corpo todo, ou seja, à multidão de homens que lhe pertencem, com ele à cabeça. E acham mais correto seguir o texto grego e não dizer em latim in templo Dei (no templo de Deus), mas in templum Dei sedeat (tome assento dentro do templo de Deus), como se o anticristo fosse o templo de Deus, que é a Igreja. Assim, dizemos: Sedet in amicum (tem-se por amigo), ou seja, como amigo e outras locuções semelhantes. A frase: Já sabeis a causa que agora o detém significa que já sabem o motivo de sua vinda retardar-se. E é com o fim de que a seu tempo apareça. Como, porém, diz que já a sabiam, não expressou com clareza o motivo. Por isso nós, que não sabemos o que sabiam, ansiamos compreender, graças a esforços, o pensamento do Apóstolo e não podemos, porque o que acrescentou lhe obscurece ainda mais o sentido. Com efeito, que significa: O fato é que já começou a operar-se o mistério da iniquidade. Só que aquele que agora se mantém se mantenha em pé até ser tirado do meio. E então se manifestará o mau? Confesso, com franqueza, não compreender o que quer dizer. Não omitirei, contudo, as conjeturas humanas, que pude ouvir ou ler. 3. Alguns pensam que aqui o Apóstolo São Paulo fala do Império Romano e que foi esse o motivo que o induziu a escrever com tanta obscuridade por medo de ser acusado de desejar mal ao Império Romano, que esperavam eterno. De sorte que com as palavras: O fato é que o mistério da iniquidade já começou a operar-se quereria significar Nero, cujas obras pareciam as do anticristo. Por isso, imaginam que ressuscitará e será o anticristo. Outros acham não haver sido assassinado, e sim raptado, para julgarem-no morto, e estar oculto, vivo e na vigorosa plenitude de que gozava quando o acreditavam morto, até que a seu tempo reapareça e seja restabelecido no reino. Mas essa opinião parece-me assaz estranha e nova. Quanto ao mais, as palavras do Apóstolo: Só que aquele que agora se mantém se mantenha em pé até ser tirado do meio podemos, sem nenhum absurdo, considerá-las referentes ao Império Romano, como se dissesse: Só que o que agora impera impere até ser tirado do meio, quer dizer, até ser suprimido. E então se manifestará o mau, termo que sem dúvida alguma designa o anticristo. Outros, porém, acham que tanto estas palavras: Já sabeis a causa que o detém, como estas: Já começou a operar-se o mistério da iniquidade, se referem unicamente aos maus e aos hipócritas existentes na Igreja, até formarem número capaz de constituir o povo do anticristo. É, dizem eles, ao que chama mistério de iniquidade, porque é coisa oculta. Essas outras palavras seriam exortação do Apóstolo aos fiéis para perseverarem firmes na fé: Só que aquele que agora se mantém se mantenha em pé até ser tirado do meio, quer dizer, até sair da Igreja o mistério de iniquidade agora oculto. E acreditam aludirem a esse mistério aquelas palavras do evangelista São João em sua epístola: Filhos, esta já é a última hora e, como haveis ouvido que há de vir o anticristo, assim agora muitos se fizeram anticristos. Isso faz-nos perceber que já é a última hora. Saíram dentre nós, mas não eram dos nossos, pois, se fossem dos nossos, haveriam, sem dúvida, perseverado conosco. Assim como, dizem eles, antes do fim, antes dessa hora que São João chama última, já saíram da Igreja muitos hereges, pelo Apóstolo chamados anticristos, assim também todos os não pertencentes a Cristo, mas ao anticristo, então sairão e então se manifestarão. 4. Assim, uns deste modo e outros daquele explicam as obscuras palavras do Apóstolo. Uma coisa é indubitável e certa: São Paulo diz que Cristo não virá julgar os vivos e os mortos, se antes o anticristo, seu inimigo, não vier seduzir os mortos na alma, apesar de essa sedução pertencer ao oculto juízo de Deus. Sua presença manifestar-se-á com o poder de satanás, como diz o Apóstolo, com toda a sorte de milagres, de sinais e de prodígios falsos, para seduzir os que devem perecer. Então satanás será solto e, por intermédio do anticristo, porá em jogo todo o seu poder, operando maravilhas, é verdade, mas enganosas. Costuma-se perguntar se o Apóstolo diz sinais e prodígios de mentira porque enganará os sentidos dos homens por meio de fantasmas, fazendo-os ver o que não faz, ou se o disse porque, embora verdadeiros os prodígios, arrastarão à mentira os que, desconhecedores do poder do diabo, suporão requererem poder divino, sobretudo quando receba poder qual nunca teve. Com efeito, quando do céu baixou fogo e consumiu a família de Jó, junto com seus muitos rebanhos, e impetuoso torvelinho lhe derribou a casa e sob as ruínas lhe sepultou os filhos, isso não foram ilusões. Eram obras de satanás, a quem Deus dera tal poder. A qual dessas hipóteses se deveu o dizer prodígios e sinais de mentira sabê-lo-emos então. Seja qual for, o certo é que com esses sinais e esses prodígios seduzirá aqueles que hajam merecido ser seduzidos, por não haverem recebido e amado a verdade, que os teria salvo. O Apóstolo não vacila em acrescentar: Deus enviar-lhes-á, por isso, o artifício do erro, que os fará crer na mentira. Enviá-lo-á Deus, porque permitirá ao diabo fazer esses prodígios. Permite-o por juízo muito justo, embora o diabo o realize por desejo criminoso e injusto. A fim de serem julgados, acrescenta, todos os que não creram na verdade, mas se comprazeram na maldade. Os julgados serão, pois, seduzidos; os seduzidos, condenados. Os julgados serão seduzidos pelos juízos de Deus, ocultamente justos e justamente ocultos, que desde o primeiro pecado jamais cessaram de julgar os homens. E os seduzidos serão condenados no último juízo, que será público, por Jesus Cristo, que, injustissimamente condenado, condenará com toda a justiça. CAPÍTULO XX Primeira aos tessalonicenses. A ressurreição dos mortos. 1. No lugar citado, o Apóstolo não fala da ressurreição dos mortos. Mas em sua Primeira Epístola aos Tessalonicenses diz-lhes: Quanto aos defuntos, não queremos, irmãos, deixar-vos em vossa ignorância, para não vos entristecerdes do modo como costumam fazê-lo os demais homens que não têm essa esperança. Porque, se cremos haver Jesus morrido e ressuscitado, também devemos crer que Deus levará com Jesus aqueles que hajam morrido por Ele. Por isso vos dizemos, sob a palavra do Senhor, que os vivos, os que ficaremos até a vinda do Senhor, não tomaremos a dianteira aos que já morreram antes. Porquanto o Senhor mesmo, à intimação e à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, descerá do céu e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois os vivos, os que houvermos ficado, seremos arrebatados juntamente com eles, sobre as nuvens, ao encontro de Cristo no ar e assim estaremos com o Senhor eternamente. Essas palavras do Apóstolo provam com luz meridiana a futura ressurreição dos mortos, quando Cristo virá julgar todos. 2. Nesse ponto costuma-se perguntar o seguinte: Morrerão aqueles que Cristo, ao vir, encontrar vivos e o Apóstolo figura em si e naqueles que com ele viviam ou passarão com celeridade espantosa da morte à imortalidade, no instante preciso em que com os ressuscitados sairão ao encontro de Cristo? Seria insensatez pensar que, enquanto vão pelos ares à altura, não podem morrer e reviver. As palavras: E assim estaremos eternamente com o Senhor não devem ser entendidas como se dissesse que permaneceremos sempre com o Senhor no ar, visto como nem Ele ali permanecerá, pois virá de passagem. Iremos, por conseguinte, ao encontro de quem vem, não de quem está, mas assim estaremos com o Senhor, quer dizer, tendo corpo eterno em toda parte a que com Ele vamos. O próprio Apóstolo parece obrigar-nos a pensar que aqueles que o Senhor encontrar vivos morrerão nesse breve espaço de tempo e vestirão a imortalidade, quando diz: Todos serão vivificados em Cristo. E, noutro lugar, falando da ressurreição: O que semeias não recebe vida, se antes não morre. Como, pois, os que Cristo encontrar vivos serão vivificados nele pela imortalidade, se não morrem, quando está escrito: O que semeias não é vivificado, se antes não morre? E, se é certo que não se pode dizer com propriedade que o corpo do homem é semeado, se, morrendo, não torna à terra, segundo a sentença por Deus intimada ao primeiro pecador, pai do gênero humano: És terra e à terra irás, é necessário admitir que os que Cristo encontrar com vida, ainda não despojados dos corpos, não estão compreendidos nem nessas palavras do Apóstolo, nem nessas do Genesis, E claro que os arrebatados às nuvens não são semeados, porque nem vão à terra, nem retomam, quer por não experimentarem a morte, quer por morrerem momentaneamente no ar. 3. Por outro lado, sai-nos ao encontro o mesmo São Paulo em sua carta aos coríntios. Todos ressuscitaremos, diz ele, ou, segundo outros códices: Todos dormiremos. Se, pois, sem a morte é impossível a ressurreição e nessa passagem dormição significa morte, como dormirão ou ressuscitarão todos, se são tantos os homens que Cristo encontrará com vida e não morrerão nem ressuscitarão? Se cremos que os santos, que Cristo encontrará com vida, serão elevados para lhe irem ao encontro, deixando nesse voo seus corpos mortais e vestindo-se de imortalidade, não encontraremos grandes dificuldades nas palavras do Apóstolo. Nem nestas: O que semeias não é vivificado, se antes não morre nem nestas: Todos ressuscitaremos ou: Todos dormiremos. E que aqueles não serão vivificados pela imortalidade, se antes não morrerem, embora por um instante. Assim já não serão estranhos à ressurreição, precedida da dormição, que de fato se deu, apesar de por pouco tempo: Mas por que nos parece incrível seja essa multidão de corpos de certo modo semeada no ar e nele instantaneamente tome vida imortal e incorruptível, se cremos no que diz o mesmo Apóstolo, a saber, que a ressurreição se efetuará em um abrir e fechar de olhos e o pó dos corpos, estendido em mil e um lugares, se juntará com facilidade e prontidão assombrosas? E não pensemos que esses santos não os alcançará a sentença pronunciada contra o homem: És terra e à terra irás, pretextando que seus corpos não tornam à terra e que, como morrem no voo, nesse ínterim ressuscitarão também. À terra irás significa: Perdida a vida, irás ao que eras antes de havê-la recebido ou, em outros termos: Serás inanimado, o que já eras antes de ser animado. O homem era terra e nessa terra Deus infundiu sopro de vida e o homem ficou constituído em alma vivente. É, pois, como se dissesse: És terra animada, coisa que não eras; serás como eras, terra sem alma. O que são todos os corpos mortos, antes de apodrecerem, serão esses, se morrem e onde quer que morram, pois se verão privados de vida e a receberão no mesmo instante. Irão à terra, porque de homens vivos se converterão em terra, assim como vai à cinza o que se converte em cinza, vai à velhice o que envelhece e a caco o barro e outras mil e uma expressões da linguagem ordinária. Mas tudo isso não passa de conjeturas de nossa pobre razão, que não compreende como será isso e talvez possa compreendê-lo melhor quando se realize. Se, pois, queremos ser cristãos, devemos crer que a ressurreição dos corpos sucederá quando Cristo vier julgar os vivos e os mortos. De não podermos compreender perfeitamente como será não se segue ser vã nossa fé. Mas, como prometi, vou examinar, quanto eu julgue suficiente, os testemunhos dos livros proféticos do Antigo Testamento relativos ao juízo final de Deus. Se o leitor procurar se valer do que venho dizendo, para compreendê-lo não será preciso prolongada exposição. CAPÍTULO XXI Palavras de Isaías a respeito da ressurreição dos mortos e da retribuição do juízo. 1. Diz o profeta Isaías: Os mortos ressuscitarão, ressuscitarão os que estavam nos sepulcros e todos os que estão na terra se alegrarão, porque teu orvalho lhes dará a saúde, mas a terra dos ímpios cairá. A primeira parte do versículo alude à ressurreição dos bem-aventurados. E estas palavras: Mas a terra dos ímpios cairá, podemos muito bem entendê-las assim: Mas os corpos dos ímpios cairão na condenação. Se queremos aprofundar-nos mais no que se disse da ressurreição dos bons, devem-se referir a primeira estas palavras: Ressuscitarão os mortos e à segunda estas: E ressuscitarão os que estão nos sepulcros. E aos santos que o Senhor encontrar vivos muito bem se lhes aplicará isto, caso perguntemos por eles: E todos os que estão na terra se alegrarão, porque teu orvalho lhes dará a saúde. Saúde, nessa passagem, podemos legitimamente tomar por imortalidade. Trata-se da saúde mais perfeita, dessa que não tem necessidade de alimentos nem dos remédios cotidianos. O mesmo profeta fala do dia do juízo, depois de haver falado de esperança aos bons e de terror aos maus. Eis suas palavras: Isto diz o Senhor: Derramarei sobre eles como que um rio de paz e como que uma torrente que inundará a glória das nações. Seus filhos serão levados sobre os ombros; os mimados, em seu regaço. Como mãe que consola o filhinho, assim vos consolarei e recebereis essa consolação em Jerusalém, vê-lo-eis, vosso coração regozijar-se-á e vossos ossos reverdecerão como a erva. A mão do Senhor far-se-á visível em favor de seus adoradores; sua ameaça, contra os contumazes. Porque eis que o Senhor virá como fogo e seu carro como tempestade, para derramar com indignação sua vingança e o extermínio com chamas de fogo. O Senhor julgará toda a terra pelo fogo e toda carne pela espada. E muitos serão feridos pelo Senhor. O rio de paz prometido aos santos é, sem dúvida, a abundância dessa paz que transcende qualquer outra. Essa a paz que nos banhará no fim e de que no livro precedente já falamos de sobejo. Diz que esse rio desce sobre aqueles a quem se promete tamanha felicidade para dar-nos a entender que, na bem-aventurada região que é o céu, esse rio sacia todos os anseios. E, como a paz da incorrupção e da imortalidade dali flui e chega até aos corpos terrenos, por isso diz que esse rio desce, quer dizer, transbordando dos seres superiores, cai sobre os mais humildes e torna os homens iguais aos anjos. Por essa Jerusalém de que fala não devemos entender a escrava com seus filhos, mas, ao contrário, a Jerusalém livre, nossa eterna mãe nos céus, onde seremos consolados, após os trabalhos e as dores da vida mortal, e, como criancinhas, carregados aos ombros e nos joelhos. Aquela beatitude, nova para nós, acolher-nos-á com inefáveis carícias, a nós, rudes e noviços. Ali veremos e nosso coração se alegrará. Não declarou o que veremos. Mas que será senão Deus? Desse modo se cumprirá em nós a promessa do Evangelho: Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão Deus. Veremos, ademais, todas aquelas coisas que agora não vemos e das quais, quando nelas cremos, formamos ideia segundo o alcance de nosso espírito, mas infinitamente inferior à realidade. Vereis, diz, e vosso coração regozijar-se-á. Aqui credes, ali vereis. 2. E, temendo que as palavras: E vosso coração regozijar-se-á nos induzissem a pensar serem exclusivos do espírito os bens da Jerusalém celeste, acrescenta: E vossos ossos reverdecerão como a erva. Aí já compreendeu a ressurreição dos mortos, como que dizendo algo que omitira. Ela não se realizará quando a houvermos visto, mas, ao contrário, a veremos quando se houver realizado. Com efeito, do céu novo e da nova terra e também das promessas feitas aos santos, já falara antes. Haverá, diz, céu novo e nova terra, não recordarão as coisas passadas e jamais haverá memória delas, mas nelas acharão alegria e regozijo. Porque de Jerusalém farei cidade de júbilo e de meu povo, povo de alegria. Em Jerusalém acharei minhas delícias e em meu povo meu gozo. E nunca jamais se ouvirá nela a voz do pranto etc. Afanam-se alguns em referi-la ao reino carnal dos mil anos. Segundo o estilo profético, o profeta mistura com as próprias as expressões figuradas, com o fim de o espírito sóbrio esforçar-se útil e salutarmente em buscar sentido espiritual. Mas a preguiça carnal e a rudeza ignorante e folgazona do espírito contentam-se com a casca, que é a letra, e acham não deverem aprofundar-se mais. Baste isso, quanto às palavras proféticas citadas e seu contexto. No lugar que comentamos e motivou esta digressão, após haver dito: E vossos ossos reverdecerão como a erva, para mostrar que falava da ressurreição dos corpos, mas dos bons, acrescentou: A mão do Senhor far-se-á visível em favor de seus adoradores, Que mão é essa senão a que de seus menosprezadores distingue os adoradores de Deus? Dos primeiros diz logo a seguir: E sua ameaça, contra os contumazes ou, como traduzem outros, contra os incrédulos. A ameaça, evidentemente, não se cumprirá então, mas, intimada agora, então surtirá efeito. Porque, acrescenta, eis que o Senhor virá como fogo e seus carros como tempestade, para derramar com indignação sua vingança, e o extermínio com chamas de fogo. O Senhor julgará toda a terra pelo fogo e toda carne pela espada. E muitos serão feridos pelo Senhor. As palavras fogo, tempestade e espada significam as penas do juízo, visto dizer que o Senhor virá como fogo e ser indubitável que virá assim para aqueles para quem sua vinda será penal. Os carros (note-se que emprega o plural) designam os ministérios dos anjos. E, quando diz que toda a terra e toda carne serão julgadas pelo fogo e pela espada, por esses dois termos é preciso entender os homens terrenos e carnais, não os espirituais e os santos. Disse-se dos primeiros que só se preocupam com as coisas terrenas e que não se preocupar senão com as coisas da carne é morte. Dá-lhes o Senhor o nome de carne, quando diz: Meu espírito não permanecerá nesses homens, por serem carne. O ferimento de que fala, ao dizer: Muitos serão feridos pelo Senhor, é o que causará a segunda morte. É certo que se podem entender em bom sentido o fogo, a espada e o ferimento. O Senhor manifestou sua vontade de enviar fogo à terra. Quando desceu o Espírito Santo, os discípulos viram como que línguas de fogo. Não vim, disse também o Senhor, trazer paz à terra, mas espada. E a Escritura chama espada de dois fios à palavra de Deus, por causa do duplo fio dos dois Testamentos. No Cântico dos Cânticos, a santa Igreja diz estar ferida pela caridade como que pela flecha do amor. Mas aqui, quando ouvimos ou lemos que o Senhor vem executar suas vinganças, é claro como se devem entender essas expressões. 3. Depois de haver indicado em uma palavra os que serão consumidos por esse juízo, o profeta, figurando os pecadores e ímpios sob a imagem das carnes proibidas pela antiga lei, das quais não se abstiveram, resume a graça do Novo Testamento, da primeira vinda do Salvador ao último juízo, em que põe termo à sua profecia. Conta primeiro que o Senhor virá congregar todas as nações, que se reunirão e serão sua glória. Porque, como diz o Apóstolo, todos pecaram e todos tem necessidade da glória de Deus. Acrescenta que perante eles fará milagres tão maravilhosos, que crerão nele, e que enviará alguns deles a diferentes nações e às longínquas ilhas, que não lhe ouviram o nome nem lhe viram a glória. Esses eleitos, prossegue, anunciarão sua glória aos gentios e conduzirão à fé em Deus Pai os irmãos daqueles a quem se dirigia, quer dizer, os israelitas escolhidos. De todas as partes do mundo levarão presentes ao Senhor, sobre animais de carga e carros (animais e carros que, sem dúvida, são o auxílio divino que Deus manda por ministério dos anjos ou dos homens). E levá-los-á à santa cidade de Jerusalém, agora difundida por toda a terra nos fiéis santos. Quando sentem o divino auxílio, os homens creem e, quando creem, vêm. O Senhor, não obstante, compara-os, em imagem, aos filhos de Israel, que em seu templo lhe oferecem vítimas, acompanhando-as de salmos. Essa prática já está introduzida também na Igreja. Aos israelitas prometeu aceitar sacerdotes e levitas; ao cumprimento disso estamos assistindo agora. Agora vemos precisamente não serem os sacerdotes e os levitas escolhidos em razão da raça e do sangue, como se fazia no sacerdócio antigo segundo a ordem de Aarão, e sim, como convinha ao espírito do Novo Testamento, em que Cristo é o sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, de acordo com os merecimentos pela divina graça conferidos a cada qual. E os merecimentos não devemos ponderá-los pela função, às vezes desempenhada por homens indignos, mas pela santidade, não comum aos bons e aos maus. 4. Depois de assim haver escrito sobre a misericórdia de Deus para com sua Igreja, misericórdia cujos efeitos não são tão conhecidos e palpáveis, o profeta promete, da parte de Deus ou por si mesmo, os fins a que cada qual chegará, quando no último juízo os bons forem separados dos maus. Porque, como o céu novo e a nova terra permanecerão em minha presença, disse o Senhor, assim permanecerão vossa descendência e vosso nome e passarão de mês em mês e de sábado em sábado. Todo homem virá prostrar-se diante de mim e adorar-me em Jerusalém, disse o Senhor. E sairão e verão os membros dos homens prevaricadores. Seu verme não morrerá nunca, seu fogo jamais se apagará e servirão de espetáculo a toda carne. O profeta encerra o livro no ponto em que o mundo terminará. Verdade é que alguns não traduziram os membros dos homens, mas os cadáveres dos homens, entendendo, evidentemente, por cadáveres as penas corporais, embora não seja costume chamar-se cadáver senão à carne sem alma e esses corpos hajam de ser corpos animados, porque, do contrário, não poderão sentir os tormentos. Talvez não seja absurdo chamá-los de cadáveres pela simples razão de tratar-se de corpos de mortos caídos na segunda morte. Dever-se-iam a isso também as palavras do mesmo profeta já antes citado: A terra dos ímpios cairá. Quem não vê que cadáver vem da palavra cair? E manifesto que esses tradutores puseram varões em lugar de homens, pois ninguém ousará dizer que as mulheres pecadoras não sofrerão esse suplício. Toma-se, pois, a parte superior, quer dizer, a parte de que a mulher foi formada, por ambos os sexos. Contudo (e isso vem mais ao caso), ao dizer, falando dos bons: Virá toda carne, porque o povo cristão se comporá de toda classe de homens (e saiba-se que aí não estarão todos os homens, porquanto muitos estarão nos tormentos), e ao dizer, falando dos maus, para seguir o fio de minhas palavras, serem membros ou cadáveres, mostra que o juízo, que tanto aos bons como aos maus dará seu devido fim, sucederá após a ressurreição da carne, de que fala com muita clareza. CAPÍTULO XXII Como se entende que os santos sairão para ver os suplícios dos maus? Como, porém, sairão os bons para ver os suplícios dos maus? Diremos, acaso, que abandonarão corporalmente suas felizes moradas e se dirigirão ao local das penas para com os olhos do corpo presenciar os tormentos dos maus? Deus nos livre de acreditar nisso! Sairão pelo conhecimento ou pela ciência. A palavra sair está indicando que estarão fora os que serão atormentados. Por isso o Senhor chama trevas exteriores a esses lugares opostos à entrada que indica ao bom servo, ao dizer-lhe: Entra no gozo de teu Senhor. Assim, ninguém pensará que os maus ali entram para serem conhecidos, e sim que os bons parece saírem até eles pela ciência que lhes permite conhecê-los, porque conhecerão o que está fora. Os atormentados não saberão o que se passa dentro, no gozo do Senhor; os que estiverem no gozo do Senhor saberão o que se passa fora, nas trevas exteriores. Disse que sairão, porque deles não se ocultarão tampouco os que estarão de fora. Se, pois, os profetas puderam conhecer essas coisas antes mesmo de acontecerem, porque Deus, por pouquinho que fosse, estava na inteligência desses mortais, como não a conhecerão os santos imortais, uma vez cumpridas, quando Deus estiver todo em todas as coisas? Nessa beatitude serão estáveis a descendência e o nome, descendência de que diz São João: E sua descendência permanece nele, e nome de que Isaías disse: Dar-lhes-ei nome eterno e passarão de mês em mês e de sábado em sábado, como se dissesse de lua em lua e de descanso em descanso. E serão tudo isso, quando saírem dessas velhas e passageiras sombra e entrarem nas eternas e novas claridades. Isso das penas dos maus, tanto o fogo inextinguível como o imperecedouro verme, expuseram-no de modo diferente os diversos autores. Alguns referem ambos ao corpo, outros, ambos à alma e outros ainda, o fogo propriamente ao corpo e o verme metaforicamente à alma, o que parece mais verossímil. Mas não é este o lugar para discutir essa diferença. Propus-me ficar neste livro no juízo final, que dos maus separará os bons. Mais para frente falaremos com mais pormenores das recompensas e dos castigos. CAPÍTULO XXIII Profecias de Daniel sobre a perseguição do anticristo, sobre o juízo de Deus e sobre o reinado dos santos. 1. Daniel prediz o juízo final, fazendo precedê-lo a vinda do anticristo, e estende até o reino eterno dos santos a profecia. Em visão profética viu quatro bestas, figuras de quatro reinos, e o quarto reino conquistado por determinado rei, o anticristo, sem dúvida, e depois deles o reino eterno do Filho do homem, Cristo. E depois escreve: O terror apoderou-se de mim, eu, Daniel, fiquei pasmado e as visões que eu tivera me enchiam de turbação. Aproximei-me de um dos ali presentes e perguntei-lhe sobre o verdadeiro significado daquelas visões. E deu-me a interpretação autentica. Depois, como que expondo o que ouviu daquele a quem pedira a interpretação, acrescenta: Essas quatro bestas são quatro reinos que se levantarão na terra. Depois receberão do Deus Altíssimo o reino dos santos e reinarão até o fim dos séculos e pelos séculos dos séculos. Eu quis, em seguida, informar-me com mais pormenores da quarta besta, tão diferente de todas as outras e sobremodo horrorosa, que tinha dentes e unhas de ferro e comia e esmigalhava, calcando aos pés o que restava. E, ademais, informar-me acerca dos dez chifres que tinha na cabeça e do outro chifre que lhe começara a sair e, quando apareceu, três chifres haviam caído. E de como aquele chifre tinha olhos e boca, que proferia coisas grandiosas, e era maior que todos os outros. Eu estava observando e eis que o tal chifre fazia guerra contra os santos e sobre eles prevalecia. Isso, porém, enquanto não chegou o ancião de dias e sentenciou em favor dos santos do Altíssimo e veio o tempo e os santos obtiveram o reino. O próprio Daniel disse havê-lo perguntado. Logo a seguir escreve: E disse, quer dizer, aquele a quem perguntara respondeu assim: A quarta besta será o quarto reino sobre a terra, o qual será maior que todos os reinos, devorará, calcará aos pés e despedaçará toda a terra. E os dez chifres do referido reino serão dez reis, depois dos quais se levantará outro, que será mais poderoso que os primeiros e derrubará três reis. E falará mal do Excelso, perseguirá os santos do Altíssimo e julgar-se-á com faculdade de mudar o calendário e as leis, que serão deixadas a seu arbítrio por um tempo, por tempos e a metade de um tempo. E haverá sessão no tribunal a fim de tirar-lhe o poder, ser destruído e perecer para sempre. E para o reino, o domínio e a magnificência do reino, quanto há sob o Sol, serem dados ao povo dos santos do Altíssimo, cujo reino é reino sempiterno, e todos os reis servi-lo-ão e obedecer-lhe-ão. Aqui terminou o assunto. Eu, Daniel, fiquei muito conturbado com esses meus pensamentos e mudou-se a cor do rosto. Mas conservei no coração essa visão. Por aqueles quatro reinos alguns entenderam o dos assírios, o dos persas, o dos macedônios e o dos romanos. Quem desejar advertir-se de como é razoável essa interpretação leia o livro intitulado Exposição sobre Daniel, escrito com grande erudição e esmero pelo presbítero Jerônimo. Pelo menos, ninguém que o leia, embora cochile ao fazê-lo, pode duvidar que aí se fala da tirania do anticristo contra a Igreja, embora curta, e de sua anterioridade ao último juízo, em que os santos receberão o reino eterno. O contexto demonstra, ademais, que tempo, tempos e metade de um tempo significam um ano, dois anos e metade de um ano, ou seja, três anos e meio. Às vezes, a Escritura expressa esse mesmo número em meses. É verdade que em latim tempos parece insinuar tempo indefinido, mas aí o hebraico usa o dual, número que também o grego tem e de que o latim carece. Diz tempos, porém equivale a dizer dois tempos. Com franqueza, confesso temer enganar-me na apreciação dos dez reis que existirão no Império Romano, quando vier o anticristo. Talvez venha sem pensá-lo e sem existirem esses reis. Sabemos se nesse lugar o dez não significa a totalidade dos reis que devem preceder-lhe a vinda, como mil, cem, sete e outros números, que não é necessário mencionar, frequentemente significam universalidade? 2. O mesmo Daniel assim se expressa em outra passagem: Virá tempo de tribulação qual não se viu desde que a gente começou a existir sobre a terra até aquele dia. Naquele tempo, teu povo será salvo e todo aquele que se achar escrito no livro da vida. E muitos dos que dormem nas fossas da terra se levantarão, uns para a vida eterna, outros para ignomínia e eterna confusão. Os inteligentes e sábios resplandecerão como a claridade do firmamento e muitos justos brilharão eternamente como estrelas. Essa passagem é muito similar àquela do Evangelho em que se fala da ressurreição dos corpos. Os que para o evangelista estão nos sepulcros são os que para o profeta dormem nas fossas da terra ou, como outros traduziram, no pó da terra. Diz-se no Evangelho: sairão e aqui: se levantarão. E, como no Evangelho se disse: Os que fizeram boas obras, ressuscitados para a vida, e os que fizeram mal, ressuscitados para o juízo, assim também nessa passagem se diz: Uns para a vida eterna, outros para ignomínia e eterna confusão. Mas não faça pensar em diversidade o haver dito o evangelista: Todos os que estão nos sepulcros e o profeta não dizer todos, e sim: Muitos dos que dormem nas fossas da terra, porque às vezes a Escritura usa muitos em lugar de todos. Assim, a Abraão se disse: Em tua descendência serão benditas todas as gerações. Dessa ressurreição escreve pouco depois o mesmo profeta Daniel: Tu, porém, vem e descansa, pois ainda falta algum tempo para a consumação dos séculos. Descansarás e no fim dos tempos ressuscitarás para possuir tua herança. CAPÍTULO XXIV Profecias dos salmos sobre o fim do mundo e sobre o último juízo de Deus. 1. Nos salmos insinuam-se muitas coisas sobre o juízo final, mas em geral se fala de passagem e sumariamente. Mas não me permito passar em silêncio o que neles clarissimamente se diz do fim do mundo. Senhor, no princípio criaste a terra, e os céus são obra de tuas mãos. Eles perecerão, mas tu permanecerás. Envelhecerão como vestimenta. Trocá-los-ás como quem troca de manto e ficarão transformados. Mas tu és sempre o mesmo e teus anos não terão fim. Por que, pois, Porfírio, que louva a piedade dos judeus e os felicita por adorarem o grande Deus verdadeiro, terrível para os próprios deuses, acusa de extrema loucura os cristãos, fundado nos oráculos de seus deuses, por dizerem que este mundo há de perecer? Eis que as Sagradas Letras dos salmos dizem a Deus, ante quem, segundo confissão desse grande filósofo, os próprios deuses tremem: Os céus são obra de tuas mãos e eles perecerão. Quando pereçam os céus, acaso não perecerá o mundo, cuja parte superior e mais firme são os céus? Se esse modo de pensar desagrada a Júpiter, a quem o filósofo, segundo sua própria confissão, deve esse oráculo em que acusa de excessiva credulidade os cristãos, por que não tacha de loucura a Sabedoria dos judeus, em cujos livros mais sagrados se leem essas palavras? Se, pois, essa Sabedoria, que tanto agrada a Porfírio que na boca de seus deuses põe elogios a ela, ensina que os céus hão de perecer, por que é tão vã sua falácia que chega a reprovar na fé dos cristãos, entre outras verdades, o dogma do fenecimento do mundo, pois, se o mundo não fenece, os céus não podem perecer? É verdade que nas Letras Sagradas que são propriamente nossas e não nos são comuns com os judeus, quer dizer, nos Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, se lê: A figura deste mundo passa e: O mundo passa e também: O céu e a terra passarão. Mas estas expressões: praeterit, transit, transibunt (passa, passarão) são de ordinário mais suaves que peribunt (perecerão). E na carta do Apóstolo São Pedro, onde diz que o mundo então existente pereceu inundado pela água, é fácil entender a que parte do mundo se refere e como entende que pereceu e a que céus alude, ao dizer que serão reservados para que o fogo os queime no dia do juízo e do extermínio dos homens ímpios. Pouco depois acrescenta: O dia do Senhor virá como ladrão e então os céus passarão com espantoso estrondo, os elementos, ardendo, se dissolverão e a terra e suas obras serão abrasadas. E depois aduz: Perecendo todas essas coisas, como deveis ser? Aí podemos entender que os céus que perecerão são os que ficam reservados para o fogo e que os elementos que se dissolverão são os que subsistem na parte inferior da terra, exposta a tempestades e agitações. Nela disse encontrarem-se os céus em que estão suspensos os astros, céus que, sem contar os superiores, permanecem intactos. E o fato de que as estrelas cairão do céu, além de ser possível dar-lhe outro sentido mais verossímil, prova de sobejo a permanência dos céus, se é que as estrelas cairão dele. Ou é, pois, locução figurada, que é o mais provável, ou sucederá no céu inferior, mais admiravelmente, porém, do que sucede agora. Daí dizer o poeta: Uma estrela cai do firmamento através das sombras, deixando rasto de luz em seu curso, e foi esconder-se no bosque de Ida. Mas, quanto à passagem que citei do salmo, parece não excetuar nenhum céu o salmista; todos, portanto, perecerão, segundo ele. Porque, ao dizer: Os céus são obra de tuas mãos e eles perecerão, das mãos de Deus não desliga nenhum céu e, portanto, tampouco o exclui do fenecimento. Não se dignarão, pois, fundados nas palavras de São Pedro, a quem odiaram de morte, defender a piedade dos judeus, canonizada pelos oráculos de seus deuses. E tampouco pretenderão que, como em sua epístola o Apóstolo toma a parte pelo todo, ao dizer haver o mundo perecido pelo dilúvio, pois só pereceu a parte inferior com seu céu, assim o salmista tomava a parte pelo todo, ao dizer: Eles perecerão, porquanto perecerão os céus inferiores. Como, porém, não se dignarão fazê-lo, de medo de aprovar o modo de pensar do Apóstolo São Pedro ou de à última conflagração conceder somente o poder que se dá ao dilúvio, a eles, que sustentam a impossibilidade de o gênero humano perecer pelas águas e pelo fogo, só lhes resta dizer haverem seus deuses louvado a Sabedoria dos judeus porque não haviam lido esse salmo. 2. O salmo 49 fala também do juízo final nestes termos: Deus virá manifestamente, virá nosso Deus e não calará. O fogo arderá em sua presença e a seu redor esbravejará horrorosa tempestade. Chamará o céu lá em cima e a terra, para discernir seu povo. Congregai ante ele seus justos, os que por meto de sacrifícios fizeram o testamento de Deus. Trata-se de profecias referentes, segundo entendemos, a nosso Senhor Jesus Cristo, que do céu virá, como esperamos, julgar os vivos e os mortos. Ele, que primeiro veio, oculto, para ser injustamente julgado pelos injustos, virá manifestamente julgar de maneira justa os justos e os injustos. Virá, repito, manifestamente e não calará, quer dizer, falará como juiz Ele, que veio oculto, calou ante o juiz, quando conduzido como ovelha ao matadouro, e esteve manso como o cordeiro ante o tosquiador, segundo vemos anunciado em Isaías e cumprido no Evangelho. Quanto ao fogo e à tempestade, já dissemos como entendê-los, ao explicarmos expressões semelhantes em Isaías. Com as palavras: Chamará o céu lá em cima, visto como os santos e os justos com razão se chamam o céu, o salmista quis, sem dúvida, dizer o mesmo que o Apóstolo: Seremos arrebatados juntamente com eles sobre as nuvens ao encontro de Cristo no ar. À primeira vista e segundo a letra, como se vai chamar o céu lá em cima, se o céu só pode estar lá em cima? Se nas palavras: e a terra, para discernir seu povo, unicamente se subentende chamará, quer dizer, chamará também a terra, sem subentender-se lá em cima, o sentido, segundo a reta fé, parece ser este: O céu figura aqueles que hão de julgar com Ele; a terra, os que devem ser julgados. De acordo com isso chamará o céu lá em cima não equivale a: Elevá-los-á ao ar, e sim a: Fá-los-á subir aos tronos de justiça. As palavras: Chamará o céu lá em cima podem ter estoutro sentido: Chamará de seus supernos e excelsos assentos os anjos com quem desce a julgar. E chamará também a terra equivale a dizer os homens que devem ser julgados na terra. Se, porém, quando diz: E a terra, deve-se subentender as palavras chamará e lá em cima, caso em que seria este o sentido: Chamará lá em cima o céu e chamará lá em cima a terra, acho que não se deve entender nada melhor que os homens que serão levantados no ar ao encontro de Cristo. E disse céu pelas almas e terra pelos corpos. Que significa discernir seu povo, senão pelo juízo separar dos maus os bons, como dos cabritos as ovelhas? Depois se dirige aos anjos e lhes diz: Congregai ante Ele seus justos, por ser indubitável que ato de tal alcance devem realizá-la os anjos. E, se perguntamos que justos hão de os anjos congregar ante Ele, responde: Os que fizeram o testamento de Deus sobre os sacrifícios. A isto é que se reduz a vida dos santos, a fazer o testamento de Deus sobre os sacrifícios. Com efeito, as obras de misericórdia estão sobre os sacrifícios, ou seja, devem antepor-se aos sacrifícios, segundo as palavras de Deus, que diz: Misericórdia quero, não sacrifício, ou, se sobre os sacrifícios, dando outro sentido à expressão, se refere aos sacrifícios como se fazem sobre a terra, o que se faz na terra, as obras de misericórdia são os sacrifícios que agradam a Deus, como recordo haver observado no livro Décimo desta obra. Nessas obras os justos cumprem o testamento de Deus, porque as fazem movidos pelas promessas contidas no Novo Testamento. Por isso será no último juízo que Cristo, convocados ante si seus justos e postos à sua direita, lhes dirá: Vinde, benditos de meu Pai, possuir o reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e me destes de comer, e o mais que nessa passagem se diz em relação às boas obras dos bons e ao prêmio eterno que receberão em virtude da última sentença do juiz. CAPÍTULO XXV Profecia de Malaquias. O juízo final e a purificação pelas penas. O profeta Malaquias ou Malaqui, também chamado Anjo, que, segundo alguns, outro não é senão Esdras, de quem há outros escritos incluídos no cânon (opinião que, segundo São Jerônimo, corre entre os judeus), anuncia nos seguintes termos o último juízo: Ei-lo, aí vem, diz o Senhor Todo-poderoso, e quem suportará o dia de sua entrada ou quem poderá deter-se a contemplá-la? Porque ele entra como fogo ardente e como erva dos pisoeiros. E sentar-se-á a fundir e a polir o ouro e a prata, purificará os filhos de Levi, acrisolá-los-á como o ouro e a prata e eles oferecerão ao Senhor vítimas em justiça. O sacrifício de Judá e de Jerusalém será grato ao Senhor, como outrora nos primeiros anos. Aproximar-me-ei de vós para julgar e serei testemunha veloz contra os feiticeiros, os adúlteros, os perjuros e contra os que defraudam o salário do trabalhador, oprimem com violência as viúvas, maltratam os órfãos, fazem injustiça ao estrangeiro e não me temem o nome, diz o Senhor onipotente. Sou o Senhor, vosso Deus, e não mudo. Essas palavras, segundo me parece, manifestam com clareza que para alguns haverá naquele juízo penas purgatórias. Que outra coisa cabe entender no seguinte: Quem suportará o dia de sua entrada ou quem poderá deter-se a contemplá-la? Porque ele entra como fogo ardente e como erva dos pisoeiros. E sentar-se-á a fundir e a polir o ouro e a prata, purificará os filhos de Levi e acrisolá-los-á como o ouro e a prata? Isaías diz algo parecido: O Senhor limpará as imundícies dos filhos e das filhas de Sião e mediante o sopro do juízo e o espírito do fogo purificar-lhes-á o sangue. É assim, a não ser que alguém queira dizer que são purificados de suas imundícies e acrisolados, quando deles os maus forem separados pelo juízo penal, e que a separação e condenação desses é a purificação dos outros, porque daí por diante já não viverão em confusa mistura. Depois acrescenta: E purificará os filhos de Levi, acrisolá-los-á como o ouro e a prata, e eles oferecerão ao Senhor vítimas em justiça. E o sacrifício de Judá e de Jerusalém será grato ao Senhor. Com isso indica que esses mesmos que serão purificados serão depois gratos ao Senhor pelos sacrifícios de justiça e, assim, purificados de sua injustiça, motivadora do desagrado de Deus. Uma vez purificados, serão vítimas de plena e perfeita justiça. Podem acaso oferecer a Deus algo mais aceitável que suas próprias pessoas? Essa questão das penas purgatórias remeto-a a lugar mais oportuno, para dela falarmos mais a fundo. Pelos filhos de Levi, de Judá e de Jerusalém é preciso entender a Igreja de Deus, composta não apenas dos judeus, mas também de outras nações. E, ademais, não como é agora, nesse estado em que, se dissermos que não temos pecado, nos enganamos a nós mesmos e a verdade não está em nós, e sim qual será então, purificada pelo juízo final como a eira pelo vento. Então, já purificados pelo fogo os que têm necessidade dessa purificação, já ninguém oferecerá sacrifícios por seus pecados. Porque, sem dúvida, todos os que assim oferecem são réus de pecados e oferecem sacrifícios para alcançar a remissão. E alcançá-la-ão, uma vez que hajam sacrificado e Deus lhes haja aceitado o sacrifício. CAPÍTULO XXVI Sacrifícios que os santos oferecerão a Deus. 1. Querendo mostrar que sua Cidade não estará implicada em tais costumes, Deus disse que os filhos de Levi oferecerão os sacrifícios em justiça. E, portanto, não em pecado nem pelo pecado. Em consequência, podemos concluir destas palavras: E o sacrifício de Judá e de Jerusalém será grato ao Senhor, como nos dias antigos e nos primeiros anos, que em vão os judeus garantem o cumprimento, como no passado, dos sacrifícios, exigidos pela lei do Antigo Testamento. Então não ofereciam vítimas em justiça, mas em pecado, pois as ofereciam principal e primordialmente pelos pecados. Isso é tão verdade, que o próprio sacerdote, de quem devemos presumir que era mais justo que os demais, costumava, segundo a ordem de Deus, oferecê-las primeiro por seus pecados e depois pelos do povo. E preciso, pois, explicar o sentido destas palavras: Como nos dias antigos e nos primeiros anos. Talvez se refiram ao tempo em que os primeiros homens estavam no paraíso. E era precisamente então que, em estado de pureza e de integridade, isentos de toda mancha e de todo pecado, se ofereciam a Deus como hóstias puríssimas. Desde, porém, que por causa de sua desobediência foram expulsos do paraíso e a natureza humana foi condenada neles, exceto o Mediador e algumas crianças depois do batismo, ninguém, como está escrito, está isento de pecado, nem mesmo a criança de apenas um dia de vida. Alguém replicará que podemos com razão dizer que oferecem sacrifícios em justiça os que os oferecem com fé, pois o justo vive da fé, embora se engane a si mesmo, se diz estar isento de pecado. Nesse caso não dirá que vive da fé. Dirá porventura alguém dever o tempo da fé igualar-se àquele fim em que serão purificados pelo fogo do último juízo os que ofereçam sacrifícios em justiça? E, por conseguinte, visto ser preciso crer que, depois dessa purificação, os justos já não terão nenhum pecado, esse tempo, quanto a carecer de pecado, não pode comparar-se com nenhum outro, a não ser com aquele em que os primeiros homens viveram, antes da prevaricação, vida inocente e feliz no paraíso. Pode-se muito bem, portanto, dar esse sentido às referidas palavras: Como nos dias antigos e nos primeiros anos. Também Isaías diz, após a promessa de novo céu e de nova terra, entre outras alegorias e imagens enigmáticas sobre a bem-aventurança dos santos, que não expusemos para evitar a prolixidade: Os dias de meu povo serão como os dias da árvore da vida. Quem haja relanceado a vista pelas Sagradas Letras ignora onde plantou Deus a árvore da vida, de cujo fruto foram privados os primeiros homens, quando sua desobediência os arrojou do paraíso e Deus pós ígnea e terrível guarda em torno da árvore? 2. Talvez alguém sustente que os dias da árvore da vida a que o profeta alude são os dias da Igreja, que agora correm, e que a Cristo é que o profeta chama árvore da vida. Porque é a Sabedoria de Deus de que diz Salomão: E árvore de vida para todos os que a abraçam. E talvez também sustentem não haverem os primeiros homens vivido alguns anos no paraíso, de que tão cedo foram mandados embora, que nele não geraram filho algum, e, por isso, não poderem referir-se a esse tempo as palavras comentadas: Como nos dias antigos e nos primeiros anos. Passo por alto esse ponto, para não me ver obrigado a entrar em discussão longa em demasia, com o propósito de que a manifestação da verdade os confirme em sua crença. Ocorre-me, ademais, outro sentido que me impede de acreditar haverem os dias antigos e os primeiros anos dos sacrifícios carnais sido prometidos pelo profeta como dom excepcional. As vítimas da antiga lei, que deviam ser, por prescrição, cordeiro imaculado e sem defeito, representavam os homens santos, isentos de todo pecado. E assim só existiu Cristo. Depois do juízo, os que hajam sido dignos de purificação já haverão sido purificados pelo fogo e os santos já não terão pecado e oferecer-se-ão a si mesmos em justiça como hóstias imaculadas e sem mancha. Então serão como nos dias antigos e nos primeiros anos, quando a oferenda de vítimas sem mácula era como que sombra do sacrifício futuro. A pureza figurada pelos corpos dos animais imaculados será então realidade na carne e na alma imortal dos santos. 3. Depois, dirigindo-se aos dignos, não de purificação, mas de condenação, lhes diz: E aproximar-me-ei de vós para julgar e serei testemunha veloz contra os feiticeiros, os adúlteros, etc. E, enumerados os crimes condenáveis, acrescenta: Porque sou o Senhor, vosso Deus, e não mudo. Como se dissesse: Embora vos mude para pior vossa culpa e para melhor minha graça, não mudo. Diz que será testemunha, porque em seu juízo não necessitará de testemunhas, e testemunha veloz, quer porque virá de repente e de improviso e seu juízo será rápido e sem que o esperem tão cedo, quer porque sem necessidade de muitas palavras convencerá as consciências. As perguntas ao ímpio, como está escrito, versarão sobre seus pensamentos. E, como diz o Apóstolo, os pensamentos dos homens hão de acusá-las ou escusá-las no dia em que Deus julgará os segredos dos corações por Jesus Cristo, segundo meu Evangelho. Esse sentido pode aplicar-se também ao fato de que Deus será testemunha veloz, pois em um instante trará à lembrança acontecimentos susceptíveis de convencer e castigar as consciências. CAPÍTULO XXVII A separação dos bons e dos maus e como repercutirá no juízo final. Tem relação com o juízo final o texto que do mesmo profeta ao de leve aduzi no Livro Décimo oitavo. Eis a passagem: Serão minha herança, diz o Senhor onipotente, no dia em que agirei e os escolherei como pai que -escolhe filho obediente. Converter-vos-eis e conhecereis a diferença que há entre o justo e o pecador e entre quem serve Deus e quem não o serve. Porque eis que chegará o dia como fornalha ardente e os consumirá. Todos os alienígenas e todos os pecadores serão como estopa e o dia que se aproxima os abrasará, diz o Senhor Todo-poderoso, e neles não deixará nem raiz, nem ramos. Mas para os que me temeis o nome nascerá o sol de justiça e encontrareis a salvação em suas asas. Saireis, saltando como vitelinhos fora do redil, calcareis os ímpios e serão cinza sob vossos pés, diz o Senhor onipotente. Essa diferença de prêmios e de penas, que dos pecadores distingue os justos e na vaidade da vida presente não se nota sob o sol, quando essa diferença aparecer sob o sol de justiça que brilhará na vida futura, então será o juízo nunca dantes visto. CAPÍTULO XXVIII Interpretação espiritual da lei de Moisés. o mesmo profeta acrescenta: Lembrai-vos da lei que para todo o Israel dei em Horeb a Moisés, meu servo. Recorda com muita oportunidade os mandamentos de Deus, depois de haver posto em relevo a enorme diferença que há entre quem observa a lei e quem a menospreza. Tinha, ademais, outra intenção, a de ensinar a entender espiritualmente a lei e a nela achar Cristo, juiz que deve fazer a distinção entre os bons e os maus. Não foi em vão que o Senhor disse aos judeus: Se crêsseis em Moisés, também creríeis em mim, pois escreveu de mim. Por entenderem carnalmente a lei e desconhecerem que as promessas terrenas por ela feitas são figuras das celestes, caem em tais absurdos, que se atrevem a dizer: É loucura servir Deus. Que proveito tiramos de guardar-lhe os mandamentos e de andar suplicantes em presença do Senhor onipotente? Agora chamamos e com razão felizes os estranhos e todos os iníquos triunfam na vida. Essas murmurações de certo modo forçaram o profeta a anunciar o juízo final, em que os maus não serão felizes nem mesmo de falsa felicidade, mas aparecerão desgraçados a todas as luzes, e os bons não estarão sujeitos a miséria alguma, mesmo temporal, mas gozarão de felicidade gloriosa e eterna. Algo semelhante dissera antes, ao referir outros mexericos: O homem que pratica o mal é bom aos olhos do Senhor e esses por Ele são aceitos. Esses murmúrios contra Deus são fruto, como digo, de interpretação carnal da lei de Moisés. Por isso o salmista, no salmo 72, diz haverem-lhe tremido as pernas e dado passos em falso, porque invejou os pecadores, ao ver a paz de que gozam. E entre outras coisas, diz: Como Deus sabe disso? Terá conhecimento disso o Altíssimo? E também: Justifiquei inutilmente, porventura, o coração e lavei as mãos entre inocentes? Tratando de resolver a dificílima questão que se apresenta, ao ver miseráveis os bons e felizes os maus, acrescenta: Difícil me será compreender isso, enquanto eu não entrar no santuário de Deus e conhecer o fim de cada qual. No último juízo não será assim. As coisas aparecerão de maneira muito diferente, quando se manifestarem a felicidade dos justos e a miséria dos pecadores. CAPÍTULO XXIX A vinda de Elias antes do juízo. E, depois de havê-los advertido de que se lembrariam da lei de Moisés, prevendo que ainda ficariam muito tempo sem entendê-la espiritualmente, como se deve, acrescentou: Enviar-vos-ei Elias de Tesba, antes de vir o grande e luminoso dia do Senhor, que ao filho converterá o coração do pai e ao próximo o coração do homem, por temor de que, vindo, destrua a terra toda. É crença muito difundida e arraigada no coração dos fiéis que no fim do mundo, antes do juízo, os judeus crerão no verdadeiro Messias, quer dizer, em nosso Cristo, graças ao admirável e grande profeta Elias, que lhes explicará a lei. Não carece de fundamento a esperança de que virá antes da vinda do juiz e Salvador, pois é com razão que ainda hoje o julgam vivo. E certo, dado o testemunho evidente e claro das Santas Escrituras, haver sido arrebatado em carro de fogo. Ao vir, exporá espiritualmente a lei, entendida carnalmente pelos judeus. E ao filho converterá o coração do pai, quer dizer, aos filhos o coração dos pais, pois os Setenta usaram o singular pelo plural. O sentido é este: os filhos, os judeus, entendam a lei como a entenderam os pais, os profetas, entre quem se contava Moisés. Assim, o coração dos pais converter-se-á aos filhos, quer dizer, os pais chamarão os filhos a seu modo de interpretar a lei. E aos pais o coração dos filhos, assentindo estes no que sentiram aqueles. Em lugar disso disseram os Setenta: E ao próximo o coração do homem, pois não há ninguém mais próximo que os pais e os filhos. A essas palavras dos Setenta, que interpretaram a Escritura como profetas, talvez seja possível dar outro sentido mais elevado. Segundo ele, Elias converterá ao Filho o coração de Deus Pai, não fazendo, é claro, que o Pai ame o Filho, mas ensinando aos judeus que, assim como o Pai ama o Filho, assim também amem eles o Cristo, nosso Cristo, a quem antes haviam odiado. Com efeito, Deus, segundo os judeus, em nosso tempo tem apartado de nosso Cristo o coração. E, para eles, Deus converterá o coração ao Filho, quando, transformado o coração deles, virem o amor do Pai ao Filho. E ao próximo o coração do homem, quer dizer, Elias converterá também o coração do homem ao próximo; que coisa melhor que isto podemos entender: converterá o coração do homem a Cristo-homem? Porque Cristo, sendo nosso Deus na forma de Deus, se dignou, tomando a forma de servo, ser também nosso próximo. E Elias fá-lo-á por temor de que, vindo, destrua a terra toda. São terra todos os que não têm gosto senão pelas coisas da terra, como os judeus carnais. Esse vício motivou aqueles murmúrios contra Deus: Agrada-se dos maus e: É loucura servir a Deus. CAPÍTULO XXX Obscuridade do Antigo Testamento a respeito da pessoa de Cristo como juiz no último juízo. 1. Nas divinas Escrituras há muitos outros testemunhos sobre o juízo final. Estender-me-ia demasiado nesse ponto, se os recolhesse todos. Baste, pois, haver provado que essa verdade foi anunciada tanto no Antigo como no Novo Testamento. Mas o Antigo não diz, com tanta clareza como o Novo, ser Cristo quem fará esse juízo, quer dizer, ser Cristo quem do céu virá como juiz. De ali dizer o Senhor que virá ou dizer o hagiógrafo que virá o Senhor, não se segue logicamente que virá Cristo, pois essa denominação serve tanto para o Pai, como para o Filho, como para o Espírito Santo. Mas esse ponto não convém deixá-lo passar sem provas. É preciso, em primeiro lugar, pôr em evidência que Jesus Cristo fala por seus profetas sob o nome do Senhor Deus, sem ocultar-se como Cristo. Isso é tão verdade, que quando não aparece como tal e, entretanto, se diz que o Senhor Deus virá julgar, pode-se entender tratar-se de Jesus Cristo. Há determinada passagem em Isaías que lança luz sobre o que vou dizendo. Deus fala pelo profeta: Escuta-me, Jacó, e tu, Israel, a quem chamo. Sou o primeiro e sou para sempre. Minha mão fundou a terra e minha destra consolidou o céu. Chamá-los-ei, no mesmo instante se apresentarão, se reunirão todos e escutarão. Quem lhes anunciou tais coisas? Como te amava, cumpri-te a vontade a respeito de Babilônia e exterminei a raça dos caldeus. Falei e chamei: guiei-o e fiz-lhe prosperar a jornada. Acercai-vos de mim e escutai-me: Desde o princípio jamais falei em segredo. Quando as coisas sucediam, encontrava-me presente. E agora me enviou o Senhor Deus e seu Espírito. E, nem mais nem menos, o mesmo que falava com o Senhor Deus e, contudo, não se saberia tratar-se de Jesus Cristo, se não houvesse acrescentado: E agora me enviou o Senhor Deus e seu Espírito. Disse-o segundo a forma de servo, e fala de realidade futura como se já houvera passado. Assim lemos no mesmo profeta: Foi conduzido como ovelha ao matadouro. Não diz: Será conduzido. Em lugar do futuro usa o passado. Esse modo de falar é muito corrente em profecia. 2. Em Zacarias encontramos outra passagem em que esse mesmo pensamento aparece de maneira clara. Nela se diz haver o Onipotente enviado o Onipotente. Quem a quem, senão Deus Pai a Deus Filho? Eis suas palavras: Isto diz o Senhor onipotente: Depois da Glória, enviou-me às nações que vos despojaram. Porque tocar-vos é como tocar-lhe as meninas dos olhos. Estenderei a mão sobre eles, serão despojos dos que foram seus escravos e conhecereis haver-me enviado o Senhor onipotente. Adverte que o Senhor onipotente diz havê-lo enviado o Senhor onipotente. Quem se atreverá a entendê-lo referente senão a Cristo, que fala às ovelhas desgarradas da casa de Israel? Assim diz no Evangelho: Não fui enviado senão às ovelhas da casa de Israel que pereceram. Comparou-as às meninas de seus próprios olhos por causa do imenso amor que lhes tinha. Entre essas ovelhas também se contavam seus Apóstolos. E, depois da glória de sua ressurreição, antes da qual, diz o evangelista, Jesus ainda não fora glorificado, foi, na pessoa de seus Apóstolos, enviado também às nações. Desse modo se cumpriu o que se lê no salmo: Livrar-me-ás das contradições do povo e constituir-me-ás chefe das nações. Os que haviam saqueado os israelitas e aqueles a quem haviam servido os israelitas, quando submetidos às nações, não foram, por sua vez, despojados, mas se transformaram em despojos dos israelitas. Isso mesmo prometera aos Apóstolos, ao dizer-lhes: Far-vos-ei pescadores de homens. E a um deles: Doravante serás pescador de homens. Transformaram-se, pois, em despojos, mas no bom sentido, como os vasos roubados ao forte, mas ao forte amarrado por mão mais forte ainda. 3. Falando por boca do mesmo profeta, diz o Senhor: Naquele dia procurarei exterminar todas as nações que venham contra Jerusalém. E sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém derramarei o Espírito de graça e de misericórdia e porão os olhos em mim por haverem-me insultado. Chorarão sobre ele como o fazem sobre ser amado e chorarão por ele como pelo filho único. A quem cabe, senão unicamente a Deus, exterminar todas as nações inimigas da santa cidade de Jerusalém, que vêm contra ela, quer dizer, lhe são contrárias, ou, segundo outra versão, vêm sobre ela, ou seja, para subjugá-la? E a quem, senão unicamente a Deus, pertence derramar sobre a casa de Davi e sobre os moradores de Jerusalém o Espírito de graça e de misericórdia? Isso é, na verdade, privativo de Deus; di-la Deus pela boca do profeta. E, não obstante, Cristo mostra ser Ele esse Deus que opera todas essas maravilhas divinas, ao acrescentar: E porão os olhos em mim por me haverem insultado. Chorarão sobre ele como choram sobre um ser amado (ou querido) e chorarão por: ele como pelo unigênito. Naquele dia, os judeus, mesmo aqueles que hão de receber o Espírito de graça e de misericórdia, fitando os olhos em Cristo, que virá em toda a sua majestade, e caindo em que é o mesmo de quem zombaram durante a paixão, arrepender-se-ão de havê-la insultado em sua paciência. E também seus pais, autores de tamanha impiedade, o verão quando ressuscitarem, já não para serem corrigidos, mas castigados. Por conseguinte, as palavras: E sobre- a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém derramarei o Espírito de graça e de misericórdia e porão os olhos em mim por me haverem insultado, não aludem a eles, mas aos descendentes de sua raça, que nesse tempo a pregação de Elias conduzirá à fé. Mas, assim como dizemos aos judeus: Destes morte a Cristo embora esse crime se deva a seus pais, assim também eles se afligirão, de certo modo, com serem os autores do mal praticado pelos outros. E, embora, uma vez recebido o Espírito de graça e de misericórdia, os fiéis não sejam condenados com seus ímpios pais, não deixarão por isso de doer-se, como se culpados, do crime de seus pais. A dor não nascerá do reato do crime, mas do afeto de piedade. É verdade que onde os Setenta traduziram: E porão os olhos em mim por me haverem insultado, diz o hebraico: E porão os olhos em mim, a quem traspassaram. Essa palavra exprime com mais clareza a Cristo crucificado. Não obstante, o insulto, segundo a expressão dos Setenta, abarca a totalidade da paixão. Insultaram-no quando foi detido, preso, julgado, vestido com o opróbrio do ignominioso manto de púrpura, coroado de espinhos, ferido na cabeça com o caniço, adorado burlescamente de joelhos em terra, ao carregar a cruz e já pendente do madeiro. Não singularizando, pois, as versões, mas reunindo ambas, ao lermos que o insultaram e o traspassaram, reconhecemos de maneira mais cabal a verdade da paixão do Senhor. 4. Em consequência, quando nos profetas lemos que Deus virá julgar, sem distinguir a pessoa, é preciso entender que se trata unicamente de Cristo, pois, apesar de ser o Pai quem julgará, julgará pela vinda do Filho do homem. Ele, visivelmente, não julga ninguém, mas deu ao Filho, que se manifestará como homem-juiz, assim como foi julgado como homem, o poder de julgar. A que outro se refere o que Deus diz por Isaias sob o nome de Jacó e de Israel, de cuja estirpe nasceu Cristo segundo a carne? Eis o texto: Jacó é meu servo, protegê-lo-ei; Israel é meu escolhido, nele minha alma se compraz. Dei-lhe meu Espírito; Ele fará o julgamento das nações. Não gritará nem calará e sua voz não se ouvirá fora. Não quebrará o caniço partido nem apagará a mecha que ainda fumega, mas julgará conforme a verdade. Resplandecerá e não será ferido, enquanto não fizer na terra o julgamento; e as nações esperarão em seu nome. O hebraico não traz Jacó e Israel, mas os Setenta, dando a entender o que se devia entender por meu servo, quer dizer, pela humílima forma de servo a que se reduziu o Altíssimo, empregaram o nome da pessoa de cuja estirpe tomou a forma de servo. Foi-lhe dado o Espírito Santo, que, segundo o Evangelho atesta, sobre Ele desceu sob a forma de pomba. Ele pronunciou o julgamento das nações, porque prenunciou o cumprimento futuro do que estava oculto às nações. Não gritou, por mansidão; contudo, não cessou de pregar a verdade. Mas sua voz não se ouviu fora, nem se ouve, pois os que estão separados de seu corpo não lhe obedecem. Não abateu nem extinguiu os judeus perseguidores, comparados ao caniço partido, porque perderam a integridade, e à mecha fumegante, porque já não têm a luz. Ele, que não viera julgá-los, mas para ser julgado por eles, perdoou-os. E pronunciou julgamento verdadeiro, predizendo-lhes que seriam castigados, se persistissem em sua malícia. Seu rosto brilhou na montanha e sua fama no orbe inteiro. Não o quebraram nem abateram, porque não cedeu aos perseguidores, nem em sua pessoa, nem em sua Igreja. E por isso não sucedeu nem sucederá o que seus inimigos disseram e ainda dizem: Quando morrerá e lhe será abolido o nome? Enquanto não estabelecer o juízo sobre a terra. Eis revelado o segredo que buscávamos. Esse é, pois, o último juízo que fará na terra, quando vier do céu. Já nele vemos cumprido o que o profeta acrescentou: E as nações esperarão em seu nome. Que esse fato inegável seja razão poderosa para crer no que só a desvergonha permite negar. Quem esperaria o que até mesmo os que se recusam a crer em Cristo já veem cumprido e rangem os dentes e morrem de raiva por não poder-lhe negar a incontestável evidência? Quem, repito, esperaria que as nações haviam de crer no nome de Cristo, quando o prendiam, o amarravam, o esbofeteavam, o insultavam e o crucificavam, quando, enfim, até os próprios discípulos haviam perdido a esperança que começava a brilhar-lhes no coração? O que a custo um ladrão esperou então na cruz todas as nações agora esperam e, por temor à morte eterna, persignam-se com a cruz em que morreu. 5. Já ninguém nega nem sequer duvida que será Jesus Cristo o supremo juiz do juízo final, que será tal. qual se anuncia nas Sagradas Letras. Disso duvida apenas quem, por incredulidade recalcitrante e cega, não crê nas Escrituras, cuja veracidade já se manifestou ao mundo inteiro. Eis as coisas que sucederão no juízo ou até esse tempo: a vinda de Elias Tesbita, a conversão dos judeus, a perseguição do anticristo, a vinda de Cristo para julgar, a ressurreição dos mortos, a separação entre os bons e os maus, a conflagração do mundo e sua renovação. E preciso crer que tudo isso acontecerá. Mas de que modo e em que ordem? A experiência no-lo ensinará melhor do que possam fazê-lo agora as conjeturas da razão humana. Contudo, tenho para mim que sucederão na ordem que vim dizendo. 6. Faltam-me dois livros para eu pôr fim a esta obra e cumprir, graças a Deus, minhas promessas. Um versará sobre o suplício dos maus; outro, sobre a felicidade dos bons. Neles refutarei sobretudo, com o auxílio de Deus, os vãos argumentos dos homens, que parecem roer com sabedoria sua miséria contra as predições e as promessas de Deus e desprezam como ridículos e fracos os dogmas que nos alimentam a fé. Mas da onipotência divina os sábios segundo Deus extraem poderosíssimo argumento para crerem tudo quanto parece incrível aos homens e está contido nas Sagradas Escrituras, cuja verdade já está justificada de tantas maneiras. Têm, ademais, por certo ser impossível que Deus nos engane e possa fazer o que para o infiel é impossível. LIVRO VIGÉSIMO PRIMEIRO Fim próprio da cidade do diabo, ou seja, suplício eterno dos condenados e argumentos para combater a opinião dos incrédulos. CAPÍTULO I Ordem que havemos de seguir e seu por que. Já havendo, por Jesus Cristo, nosso Senhor, juiz de vivos e mortos, chegado a seus fins ambas as cidades, a de Deus e a do diabo, deve-se neste livro, com o auxílio de Deus, tratar com mais esmero da natureza do suplício que sofrerão o demônio e todos os seus sequazes. Decidi seguir essa ordem para no livro seguinte falar da felicidade dos santos. Em ambos os estados a alma estará unida ao corpo e parece mais incrível possam os corpos substituir em tormentos eternos que em, bem-aventurança eterna, livre de toda dor. E, assim, a demonstração de não ser incrível essa pena me facilitará grandemente a prova da imortalidade dos corpos, isenta de toda dor, nos santos. Essa ordem não repugna, em absoluto, à Escritura, que, se é verdade que às vezes começa pela felicidade dos bons, como aqui: Os que fizeram o bem sairão ressuscitados para a vida; os que o mal, ressuscitados para serem condenados, também é verdade que às vezes a pospõe, como neste lugar: O Filho do homem enviará seus anjos e de seu reino recolherão todos os escândalos e os arrojarão à fornalha de fogo ardente, onde apenas haverá choro e ranger de dentes. Ao mesmo tempo, os justos resplandecerão como o sol no reino de seu Pai. E neste: Assim irão os ímpios para o eterno suplício e os justos para a vida eterna. E, se atentarmos nos profetas, veremos que seguem esta ou aquela ordem. Seria muito demorado prová-la. Quanto a nós, já demos a razão da ordem adotada. CAPÍTULO II Podem os corpos viver perpetuamente no fogo? Que direi para convencer os incrédulos de que os corpos animados e vivos não somente podem não ser aniquilados pela morte, mas também subsistir para sempre em meio das chamas? Não querem que nossa prova se funde no poder do Onipotente. Exigem-nos que o provemos com exemplos. Respondemos-lhes haver animais corruptíveis, por serem mortais, que vivem em meio do fogo e, nas fontes de água quente, em que é impossível meter a mão sem queimar-se, viver certa classe de vermes, que não apenas nelas vivem, como também não podem viver fora. Os inimigos recusam-se a crê-lo, se não podemos mostrá-lo, mas, se o apresentamos ou provamos com testemunhos autorizados, porfiam, com idêntica incredulidade, dizendo que isso não basta para ilustrar o ponto em questão. Esses animais, dizem, não vivem sempre e vivem sem dor no fogo, porque nele vegetam e não são atormentados, pois esse elemento se conforma com sua natureza. Como se não fora mais incrível ser alimentado que atormentado por tais seres! E maravilhoso sentir dor no fogo e viver, porém, é mais maravilhoso viver no fogo e não sentir dor. Se, pois, a gente crê nisto, por que não crê naquilo? CAPÍTULO III É lógico dizer que a morte do corpo segue à dor corporal? 1. Não há corpo algum, replicam, que possa sentir dor e não possa morrer. E isso como o sabemos? Com efeito, quem pode garantir que os demônios sintam dor no corpo, quando confessam que grandes tormentos os afligem? Se se replica não haver corpo algum sólido e palpável ou, em uma palavra, não haver carne que possa sentir dor e não possa morrer, não se vai além da apreciação do sentido corporal, dado de experiência. Todos, com efeito, sabem ser mortal a carne. E toda a prova reduz-se a dizer que o que não experimentaram é impossível ou não existe. Como é que a dor vai ser prova da morte, se é, antes, indício de vida? Pode-se perguntar se pode viver sempre, mas é certo que tudo quanto sente dor vive e que toda dor só pode sofrê-la um ser vivo. E necessário que viva o que sente dor, mas a dor não causa necessariamente a morte, porque nem toda dor nos mata o corpo, que é mortal e tem de morrer. O que faz a dor matar no mundo é estar a alma unida de tal maneira ao corpo, que não suporta grandes dores. Afasta-se, porque a união dos membros e dos órgãos vitais é tão delicada, que não pode suportar a violência de dor aguda. No outro mundo, porém, a alma estará tão unida ao corpo, que essa união não poderá ser desfeita pelo correr do tempo nem rompida por nenhuma dor. Portanto, embora seja certo não haver carne que possa sofrer e não possa morrer, na outra vida a carne será tal qual não é agora, como a morte será diferente da que conhecemos. A morte existirá, mas será eterna, quando a alma não poderá viver, por estar separada de Deus, nem ver-se livre das dores do corpo pela morte. A primeira morte tira do corpo a alma contra a vontade dela e a segunda morte retém-na no corpo, mesmo contra a vontade dela. Uma e outra têm de comum que o corpo faz a alma sofrer o que ela não quer. 2. Reparam, não obstante, esses nossos contraditores em não existir agora carne alguma que possa sofrer e não possa morrer e não reparam em existir algo superior ao corpo. A alma, cuja presença faz o corpo viver e o governa, pode padecer e não pode morrer. Eis um ser que sente a dor e é imortal. Pois o que agora sucede na alma de cada homem é precisamente o que sucederá na alma dos condenados. Se consideramos com mais cuidado, veremos que o que chamamos dor no corpo antes é dor da alma. É privativo da alma, não do corpo, sentir a dor, embora proceda do corpo a causa da dor, quando sente dor onde o corpo é lesado. Assim como dizemos corpos que sentem e corpos que vivem, embora o sentido e a vida procedam, respectivamente, da alma e do corpo, assim dizemos corpos que doem, embora o corpo não possa sentir dor. A alma sofre com o corpo no lugar do corpo em que se situa a causa da dor. E sofre também sozinha, embora esteja no corpo, quando o corpo está com saúde e é causa invisível que a entristece. E sofre, ademais, sem estar no corpo, pois o rico sofria nos infernos, quando dizia: Estou atormentado nestas chamas. O corpo, ao contrário, não sente a dor sem estar animado e, animado, não a sente sem a alma. Se, pois, a dor fosse argumento favorável à morte, quer dizer, se a possibilidade da morte dependesse da possibilidade da dor, morrer seria mais próprio da alma, pois é privativo dela sentir a dor. Pois bem, se ela, mais capaz de dor, não pode morrer, como deduzir que os corpos dos condenados morrerão porque sofrem dores agudas? Verdade é haverem os platônicos pensnado que o temor, o desejo, o prazer e a dor se originam dos corpos de terra e dos membros de morte. Assim diz Vergílio: Daí (quer dizer, dos membros de morte, do corpo de terra) nossos temores e nossos desejos, nossos prazeres e nossas dores. Mas no Livro Décimo quarto desta obra provamos que as almas, mesmo as purificadas de toda mancha, conservam estranho desejo de retornar aos corpos. E, onde é possível o desejo, aí é possível também, sem dúvida alguma, a dor, porque o desejo frustrado (ou que não logrou seu intento ou que, logrado, o perdeu) se transforma em dor. Portanto, se a alma, que sente a dor, sozinha ou como principal, goza de imortalidade própria dela, de os corpos sofrerem não se segue que possam morrer. Enfim, se os corpos são causa de as almas sofrerem, por que podem causar-lhes dor e não podem causar-lhes a morte senão por ser ilógico concluir que o que causa dor cause a morte? Por que, pois, há de ser incrível possa esse fogo causar dor aos corpos dos condenados e não a morte, como os corpos causam dor às almas, sem por isso obrigarem-nas a morrer? Logo, a dor não é argumento decisivo para provar a morte futura. CAPÍTULO IV Exemplos tomados à natureza e favoráveis à tese. 1. Se, como escreveram os mais afamados naturalistas, a salamandra vive no fogo, se certos montes célebres da Sicilia, que subsistem íntegros depois de tantos séculos em meio de chamas vorazes, são prova suficiente de que nem tudo o que arde se consome, se, ademais, a alma demonstra que nem tudo o que é susceptível de dor o é também de morte, para que ainda nos pedem exemplos que provem não ser incrível que os corpos dos homens condenados a suplício eterno conservem a alma entre as chamas, ardam sem se consumirem e sintam dor sem morrerem? Daquele que deu a outros seres propriedades tão maravilhosas, que, por serem tantas, já não nos estranham, a substância da carne então receberá essa nova propriedade. Quem senão Deus, criador de todos os seres, deu à carne do pavão real não corromper-se depois da morte? Isso, à primeira vista, parece incrível. Mas um dia, em Cartago, serviram-nos um prato dessa ave. Tomei um pouco do peito, carne magra, e mandei guardá-lo. Ao cabo de tempo suficiente para se corromper qualquer outra carne cozida me apresentaram aquele pedaço e ainda não ofendia o olfato. Vi-o, mais de um mês depois, no mesmo estado. E, depois de um ano, apenas estava um pouco mais seco e mais encolhido. Quem deu à palha o ser ela tão fria, que conserva a neve nela posta, e tão quente, que amadurece as frutas verdes? 2. Quem será capaz de explicar as maravilhas do fogo? Enegrece tudo quanto queima, mas permanece brilhante, descolore quanto sua chama lambe, por bela que seja sua cor, e transforma em negríssimo carvão resplandecente brasa. Esse efeito não é regular nele, pois as pedras cozidas ao fogo embranquecem; quanto mais vermelho fica o fogo, tanto mais branqueiam, embora o branco se ajuste à luz como o negro às trevas. Mas de o fogo queimar a lenha e calcinar as pedras não se segue que esses efeitos contrários se produzam em elementos contrários. Porque, embora certo serem as pedras e a lenha elementos diferentes, não são contrários, como o branco e o negro. E, não obstante, o branco é produzido nas pedras e o negro na lenha, produzindo claridade naquelas e sombra nesta o mesmo fogo que não operaria na pedra, se não o alimentasse a lenha. Que direi do carvão? Não é maravilha ser tão frágil, que a menor pancada o quebra, e tão duro, que nem a umidade o corrompe nem o tempo o destrói? Por isso, os que plantam marcos divisórios de ordinário enterram carvão para servir de prova ao litigante, seja quem for, que depois de anos se apresente a sustentar não ser o limite a pedra chantada. Que, senão o fogo, que tudo corrompe, poderia, em terra em que a madeira apodrece, da incorrupção preservar o carvão? 3. Consideremos agora os milagres da cal. Sem repetir o que eu já disse, que o fogo, que enegrece as demais coisas, a torna branca, é de notar que dentro de si oculta fogo procedente do fogo e, sendo pedra fria, o conserva tão oculto, que os sentidos não o percebem, mas a experiência nos diz que, apesar de o não vermos, dentro dela está como que dormindo. Chamamo-la, por isso, cal viva, como se o fogo que oculta fora a alma invisível desse corpo visível. Que tem, pois, de particular que, ao ser apagada, queime? Para privarem-na do fogo oculto, infundem-na em água ou despejam-lhe água em cima; a cal ferve com água fria, que costuma esfriar o quente. A cal, que parece expirar, ao afastar-se o fogo que ocultava, aparece e depois se torna tão fria por essa espécie de morte, que a água já não a faz queimar. Então, em lugar de chamá-la cal viva, a chamamos de cal extinta. Pode-se acrescentar algo a coisa tão estranha? Sim, ainda há mais. Se, em lugar de água, deitamos azeite, que é melhor alimento para o fogo, a cal não ferve, por mais azeite que ponhamos. Estou certo de que, se o lêssemos ou ouvíssemos contar de alguma pedra da índia e não pudéssemos provê-lo experimentalmente, considerá-lo-íamos embuste ou surpreender-nos-íamos grandemente. E as coisas que todo dia nos ferem os olhos não envilecem por serem menos maravilhosas, mas P9r serem muito correntes, como sucede com certas raridades da Índia. Trazidas dos confins do orbe, cessaram de causar-nos admiração desde que pudemos admirá-las à vontade. 4. Muitos de nós, sobretudo os ourives e os lapidários, têm a pedra-diamante. Conta-se que essa pedra não pode ser cortada nem com ferro, nem com fogo, nem com outra coisa, exceto o sangue de bode. Os que a possuem e a conhecem admiram-na, acaso, como aqueles a quem se lhes mostra sua virtude pela primeira vez? Os que não a viram experimentalmente talvez não o acreditem ou, se o acreditam, o admirem por inexperiência. Fazem o experimento e a princípio a novidade os maravilha, mas a repetição vai-lhes insensivelmente cortando o incentivo à admiração. Sabemos ser estupenda a atração que o ímã exerce sobre o ferro. A primeira vez que o vi fiquei realmente estupefato. Víamos, com efeito, um anel de ferro levantado pela pedra-ímã; depois, como se comunicasse sua força ao ferro, o anel pegou outro, o levantou e esse se uniu a um terceiro, como o primeiro à pedra. Aproximaram um terceiro e um quarto e já ficava como uma corrente de anéis pendentes ligados uns aos outros, sem estarem interiormente enlaçados. Quem não pasmará da virtude dessa pedra, virtude que não estava só nela, mas passava de anel em anel e unia uns aos outros com laços invisíveis? Mas é muito mais surpreendente o que me contou Severo de Mileve, meu irmão e companheiro no episcopado. Comendo certo dia em casa de Batanário, conde de África outrora, viu, dizia ele, que, posta uma pedra-ímã debaixo de um prato de prata e em cima um pedaço de ferro, comunicou ao ferro todos os movimentos que a mão imprimia ao ímã e o fazia ir e vir a seu talante, sem que o prato de prata recebesse impressão alguma. Contei o que vi com meus próprios olhos ou ouvi contado por pessoa cujo testemunho é tão certo para mim como se eu mesmo houvesse visto o acontecido. Agora vou dizer o que li da pedra-ímã. Quando junto dela se coloca diamante, não atrai o ferro; se já o atraíra, solta-o e deixa-o cair. Essas pedras vêm da Índia; mas, se, por nos serem conhecidas, deixamos de admirá-las, que farão os povos que no-las enviam e para quem é tão fácil adquiri-las? Talvez para eles seja tão comum como a calo é para nós, que a vemos, sem estranharmos, ferver sob a ação da água, que apaga o fogo, e não inflamar-se sob a ação do azeite, que alimenta a chama. Isso se deve a encontrarmo-la a cada passo. CAPÍTULO V A razão humana é limitada e finita. 1. Contudo, quando lhes falamos dos milagres de Deus, passados ou futuros, de que não podemos dar-lhas prova experimental, os infiéis pedem-nos o porquê deles. E, como não podemos dá-lo (pois excedem a capacidade da razão humana), julgam ser falso o que dizemos. Que nos deem eles a razão de tantas maravilhas existentes ou sequer das de que podemos ser testemunhas! Se o confessam impossível ao homem, devem convir em não ser lógico dizer que, por não ser possível a gente dar a razão de algo, não existiu ou não existe, uma vez que de fato existem coisas cuja razão é impossível dar. Sem fazer exaustiva relação do sem-fim de fatos recolhidos pela História, vou limitar-me aos atuais, cuja comprovação está, nos lugares em que se realizam, nas mãos de quem quer que possa e queira. Contam que o sal de Agrigento, na Silícia, se desfaz no fogo como em água e, por outro lado, em água crepita como no fogo. Entre os garamantes há fonte tão fria de dia, que é impossível beber-lhe a água, e tão quente de noite, que não há quem possa tocá-la. No Epiro há outra em que, como nas demais, as tochas acesas se apagam, mas, não como nas demais, as apagadas se acendem. Na Arcádia existe certa pedra que, uma vez aquecida, já não é possível resfriá-la; chama-se por isso asbesto. No Egito, o tronco de certa classe de figueiras não sobrenada na água, como os demais troncos, mas vai ao fundo; o mais estranho é que, passado algum tempo no fundo, emerge de novo à superfície, quando o racional seria que, empapado de água, ficasse mais pesado. Nos arredores de Sodoma produzem-se certos frutos que parecem já maduros; mordidos, porém, ou apalpados, rompe-se-lhes a casca e desfazem-se em cinza e fumaça. Na Pérsia há certa pedra por nome pirita, assim chamada porque, se apertada com força, queima a mão, e outra chamada selenito, cujo resplendor interno cresce e decresce com a Lua. As éguas da Capadócia são fecundadas pelo vento e suas crias não vivem mais de três anos. Na Índia, o solo da ilha de Tilos é preferido a todos os demais, porque nunca perdem a folhagem as árvores que nele crescem. 2. Dessas e de outras mil e uma maravilhas que a História encerra, não de coisas passadas, mas na atualidade existentes, que a mim, que persigo outra finalidade na obra, me tomaria demasiado tempo referir, deem a razão, se podem, esses infiéis que se negam a crer nas divinas Letras, pretextando não serem divinas porque contêm coisas incríveis. E é disso precisamente de que estamos tratando. Não há razão, dizem, que faça compreender que a carne arda sem consumir-se e sofra sem morrer. Deem esses grandes pensadores, capazes de dar a razão de todas as maravilhas do mundo, deem pelo menos a dessas poucas que apontei! Não duvido que, se a existência desses fatos fosse desconhecida e lhes disséssemos que hão de suceder um dia, prestariam menos fé a isso que às penas futuras que lhes anunciamos. Quem deles nos creria, se, em lugar de dizermos que os corpos dos condenados viverão e sofrerão eternamente entre chamas, disséssemos que no mundo vindouro haverá sal de tal qualidade que se derreterá em fogo como em água e crepitará em água como em fogo? Quem nos creria, se disséssemos que haverá fonte cuja água no frescor da noite abrasa e no calor do dia gela ou haverá pedra que queima a mão que apertá-la e outra que, acesa, já não pode ser apagada e demais coisas que achei bom referir, prescindindo de muitas outras? Se anunciássemos essas maravilhas para o século futuro, responder-nos-iam os incrédulos: Se quereis que as creiamos, dai-nos a razão de cada uma delas em particular. E ver-nos-íamos obrigados a confessar nossa impotência e a limitação da inteligência humana para aprofundar-se nessas maravilhas de Deus. Abrigamos, contudo, a firme convicção de que o Onipotente nada faz sem razão, embora o pobre intelecto humano seja incapaz de dar a razão disso. Estamos, ademais, convencidos de que em muitas coisas nos é incerto seu querer e que é certíssimo não ser impossível para Ele nada de quanto quiser. Damos-lhe fé, quando no-lo dizem, porque não podemos crê-lo impotente ou mentiroso. Que respondem, porém, esses censores da fé e exatores da razão, quando lhes pedimos contas das maravilhas que realmente existem e a razão não pode compreender, pois parecem contrárias à natureza dos seres? Se dissermos que sucederão, os infiéis nos pedirão também a razão delas, como nos fazem com as penas do juízo. Em conclusão, como a razão humana desfalece e faltam as palavras ante tais obras de Deus e nem por isso deixam de existir, não é porque o homem seja incapaz de compreendê-las que deixarão de existir as penas que anunciamos. CAPÍTULO VI Nem todos os milagres são naturais. 1. Agora talvez respondam: - Essas coisas não existem e não as cremos. Quanto se diz e quanto se conta delas são puras falsidades. E acrescentam este raciocínio: - Se se devem crer esses fatos, crede também, por exemplo, no que dizem nossos autores, a saber, que houve ou há certo templo de Vênus em que se vê um candelabro e nele uma vela que fica acesa ao ar livre e não a apagam nem os ventos, nem as chuvas. Por isso recebeu o mesmo nome que a pedra de que falamos, quer dizer, o de luz inextinguível. Estão em pleno direito ao opor-nos isso para reduzir-nos ao silêncio. Porque, se dizemos não dever-se fé a essa narrativa, diminuímos as referidas maravilhas e, se lha concedemos, autorizamos as divindades dos pagãos. Mas, como já apontamos no Livro Décimo oitavo, não estamos obrigados a crer quanto contém a História dos gentios, quando os próprios historiadores, como diz Varrão, não estão de acordo entre si em muitos pontos e isso quase com deliberação e propósito. Se queremos, podemos crer nas coisas não contrárias aos livros merecedores de nossa fé, que lhes devemos. Quanto às maravilhas de que nos servimos para intimar aos incrédulos a verdade dos acontecimentos futuros, contentamo-nos com aquelas que podemos provar experimentalmente e de que não é difícil topar com testemunhas autorizadas. Essa inextinguível lâmpada do templo de Vênus, longe de dificultar-nos a marcha, abre-nos amplos horizontes. O exemplo da lâmpada inextinguível catalogamo-lo entre os milagres da magia, tanto a exercida pelos demônios como a exercida pelos homens sob seu influxo. Pretender negar esses milagres é ir contra a verdade das Sagradas Letras nas quais cremos. Por conseguinte, ou a indústria humana se serviu da pedra asbesto para manter essa lâmpada ou essa maravilha, admirada pelos homens, é obra da magia ou de algum demônio que, sob o nome de Vênus, se apresentou naquele lugar e fez ante os homens esse prodígio, dando-lhe subsistência temporal e duradoura. Com efeito, os demônios são atraídos a morar em certos lugares por meio de criaturas de Deus, não por alimentos, como os animais, mas como espíritos, por certos sinais conformes ao gosto de cada um deles, como diversas classes de pedras, de madeiras, de animais, de encantamentos e de cerimônias. E, para se deixarem atrair pelos homens, primeiros os seduzem com cautelosa astúcia, quer inspirando-lhes no coração o secreto vírus, quer com eles travando falsa amizade. E de alguns deles fazem discípulos seus e mestres dos outros. Porque, se não lho ensinam, ninguém pode saber que apetece cada qual, que aborrece, com que nome é atraído e com qual se vê forçado. A isso é que, em poucas palavras, se reduzem as artes mágicas e os mágicos. Afanam-se sobretudo em possuir o coração dos mortais e essa posse é sua principal glória, transformando-se para isso em anjos de luz. Existem muitas obras suas, é verdade, mas devemos nos esquivar delas com tanto mais cautela quanto mais maravilhosas são. Servem-nos, ademais, perfeitamente para o ponto de que estamos tratando. Porque, se os imundos demônios são tão poderosos, quanto mais o serão os anjos? E quanto mais o será Deus, que aos anjos deu o poder de operar tais milagres? 2. Admitamos que as criaturas de Deus operam por meio de artes mecânicas essas maravilhas chamadas mekhanémata, tão surpreendentes, que os que não as conhecem as julgam divinas. Assim, vemos que determinada estátua de ferro, suspensa, em certo templo, por duas pedras magnéticas de igual tamanho e peso, colocadas uma no teto e outra no solo, se mantém no ar. Os que ignorassem o truque pensariam tratar-se de milagre. Algo parecido, como dissemos, poderia algum artífice ter feito com a pedra asbesto na lâmpada de Vênus. Admitamos tudo isso e haverem as obras dos magos, por nossa Escritura chamados feiticeiros e encantadores, podido ser de tal forma realçadas pelo demônio, que grande poeta não duvidou em dizer de maga eminente em tais artes: Garantiu-me ela ter poder para de qualquer espírito afugentar os encantamentos, para de um coração a outro passar as inquietudes, deter a água dos rios, obrigar as estrelas a retrocederem em seu curso e evocar de noite os manes. Se vísseis como ruge sob seus pés a terra e como à sua voz baixam os espíritos das montanhas! Se isso é verdade, quanto mais fáceis e factíveis serão para Deus as maravilhas incríveis para os infiéis, para esse Deus que deu essa virtude às pedras e aos demais seres, comunicou o engenho aos homens, que dele se servem para de mil e um modos admiráveis modificar as naturezas, e criou os anjos, naturezas mais poderosas que todos os restantes animais! Seu poder é maravilha que sobrepuja todas as outras; sua Sabedoria, que opera, ordena e permite, no uso dos seres não brilha menos que na criação deles. CAPÍTULO VII A suprema razão da fé nos milagres é a onipotência do Criador. 1. Por que, pois, não pode Deus fazer que ressuscitem os corpos dos mortos e sejam eternamente atormentados no fogo os dos condenados? Pois não criou o céu, a terra, o ar, as águas e o mundo com suas inumeráveis maravilhas, entre as quais a mais surpreendente é o próprio mundo? Mas esses a quem ou contra quem nos dirigimos, que creem em um Deus criador do mundo e dos deuses, por cujo ministério governa o mundo, longe de negarem, exaltam essas potências mundanas, que operam admiráveis prodígios por conta própria ou impelidas por certos ritos ou invocações mágicas. E, quando lhes apresentamos a força maravilhosa de outros seres que não são animais racionais nem espíritos dotados de razão, como os poucos que mencionamos, costumam responder: E força de sua natureza. Nisso consiste sua natureza. São virtualidades naturais dos seres. Logo, a única razão e o único porquê de o sal de Agrigento derreter-se no fogo e crepitar na água é sua natureza ser assim. Mas acontece que antes parece tratar-se de efeito contrário à natureza, que deu ao sal a propriedade de não dissolver-se no fogo, mas na água, e de não tostar-se na água, mas no fogo. Mas, dizem eles, a propriedade natural desse sal é produzir efeitos contrários às demais. Dá-se a mesma explicação para a fonte garamântica, em que um veio está frio de dia e ferve de noite e desta ou daquela maneira causa dor a quem o toca. Dá-se a mesma da outra fonte que está fria e apaga, como as demais, as tachas acesas, mas, de modo admirável e diferente, inflama as apagadas. À mesma explicação recorrem, quanto à pedra asbesto, que, sem ter calor próprio, uma vez inflamada, é impossível apagá-la. E dizer que tal é sua natureza é a única razão que se dá dos outros fenômenos por demais insólitos, cuja só enumeração é fastidiosa. Explicação curta, na verdade, e resposta satisfatória! Se Deus é, pois, o autor de todas as naturezas, por que nossos contraditores, quando se recusam a crer alguma coisa afirmada por nós, sob o pretexto de ser impossível e lhes respondemos que a única explicação é a vontade do Onipotente, não querem dar-nos razão mais forte? É claro que Deus não se diz onipotente senão porque pode quanto quer. Foi Ele quem criou tantas maravilhas, que não só as desconhecidas, mas também as conhecidas, se não as vissem os olhos ou, pelo menos, se delas não houvesse testemunhas dignas de fé, seriam julgadas impossíveis. Porque, quanto àquelas de que não há outras testemunhas além dos autores que as narram e, por não serem divinamente inspirados, poderiam, como todo homem, haver-se enganado, a cada qual é permitido dar sua opinião. 2. Não quero que, sem acurado exame, acreditem nos prodígios por mim referidos, porque sou o primeiro a não estar certo de existirem, exceção feita de uns quantos que pude verificar e qualquer pessoa pode com facilidade constatar. Assim a cal, que em água ferve e em azeite permanece fria; a pedra-ímã, que, com uma espécie de insensível sorvo, não move a palha e atrai o ferro; a carne do pavão real, inacessível à corrupção de que nem a de Platão escapa; assim a palha, tão fria que conserva a neve e tão quente que amadurece as frutas; assim o fogo resplandecente, que segundo seu fulgor branqueia as pedras e, pelo contrário, enegrece os demais objetos. Observa-se o mesmo contraste no azeite, que, por claro que seja, produz manchas negras, e na prata, que, apesar de branca, imprime negror nos objetos. O mesmo sucede com a madeira, quando o fogo a transforma em carvão; torna-se negra a brilhante, frágil a dura e incorruptível a corruptível. Esses e outros muitos efeitos que levaríamos muito tempo a enumerar observei-os pessoalmente e, como nós, muitas outras pessoas. Quanto aos que não vi e li nos livros, confesso não haver-me sido possível controlar por testemunhos fidedignos senão esse da fonte em que se apagam as tochas acesas e se inflamam as apagadas e esse das frutas de Sodoma, beleza por fora e fumaça por dentro. Verdade é que não encontrei ninguém que haja visto essa fonte no Epiro, e sim alguns que conhecem outra semelhante na França, não longe de Grenoble. Quanto às frutas de Sodorna, não apenas as Letras dignas de fé, mas também tanta gente o assegura com tal seriedade que não é possível pô-lo em dúvida. Em relação às outras maravilhas, flutuo entre a afirmação e a negação. Referi-as simplesmente porque as li nos historiadores de nossos adversários. A finalidade que perseguíamos era mostrar como eles dão crédito a seus autores em coisas parecidas, sem que lhes deem a razão do que dizem, e não se dignam crer-nos, embora a demos, quando afirmamos ser obra de Deus tudo quanto transcende os sentidos e a experiência. Pode-se dar razão melhor e mais valedoura das coisas que se predizem fará o Onipotente, que realmente pode fazê-las, que dizer verem-se agora já cumpridas as preditas? Ele fá-las-á, porque predisse que havia de fazer essas coisas tidas por impossíveis, pois prometeu e fez as nações incrédulas crerem coisas incríveis. CAPÍTULO VIII Que é contra a natureza? 1. Talvez repliquem não crerem que os corpos humanos arderão sempre sem nunca morrerem, por sabermos que a natureza dos corpos humanos se comporta de maneira muito diferente. Não se pode, portanto, acrescentam, aplicar ao caso o critério usado para ajuizar dos fenômenos extraordinários, nem dizer: Isso é propriedade natural. Nisso radica a natureza desse ser. Sabemos que o mesmo não sucede à natureza do corpo humano. A isso respondemos, com as Sagradas Letras na mão, que, antes do pecado, o corpo humano tinha determinada constituição, quer dizer, não podia morrer, e depois do pecado tem outra, qual aparece nas misérias da vida presente. Segundo essa última, não poderá viver perpetuamente. O mesmo sucederá na ressurreição dos mortos; sua constituição será diferente da atual que conhecemos. Como, porém, os inimigos não creem nas Escrituras, em que se lê como viveu o homem no paraíso e como estava imune à necessidade da morte (pois, se nelas cressem, não trataríamos com tanto afã da pena futura dos condenados), é preciso fazer uso dos escritos de seus homens mais doutos. Isso mostrará que algo pode, no correr do tempo, manifestar-se de modo muito diferente de como se manifestara em sua natureza determinada. 2: Há nos livros de Marco Varrão, intitulados Da origem do Povo Romano, certa passagem que textualmente diz: Produziu-se no céu estranho portento. Castor escreve haver a brilhante estrela de Vênus, que Plauto chama Vesperugo, e Homero, Héspero, sido objeto de enorme prodígio. Mudava de cor, de aspecto, de tamanho e de movimento. Esse fenômeno não sucedeu nem antes, nem depois. Adasto, ciziceno, e Dion, napolitano, célebres matemáticos, dizem que isso aconteceu no reinado de Ogiges. Varrão, autor tão afamado, não o chamaria portento, se não lhe parecesse contra a natureza. Dizemos, é certo, serem contra a natureza todos os portentos, mas na realidade não são. Como iriam ser contrários à natureza os efeitos produzidos pela vontade de Deus, se é vontade de tal criador a natureza de cada coisa criada? O portento não é, pois, contrário à natureza, mas contrário a nosso conhecimento da natureza. Quem será capaz de contar a multidão de prodígios contidos na História das nações? Limitemo-nos, agora, a nosso caso concreto. Que há tão regulado pelo autor da natureza como o ordenadíssimo curso dos astros? Que há, fundado sobre leis mais imutáveis e fixas? E, contudo, quando Aquele que com soberano império e poder absoluto governa a criação quis, a estrela mais famosa pelo tamanho e pelo esplendor mudou de cor, de magnitude, de aspecto e, o que é mais estranho, mudou a ordem e a lei de seu curso. Perturbou, sem dúvida, todos os mapas dos astrólogos, se já existiam, e todos os cálculos cabalísticos do curso passado e futuro desses astros, tão infalíveis, segundo eles, que se atreveram a aventurar não haver-se produzido nem antes nem depois essa mudança do luzeiro da manhã. Sem irmos mais longe, lemos nos livros divinos que o Sol parou por ordem do santo Jesus Nave, prodígio concedido por pedido feito a Deus, e manteve sua luz até conseguir a vitória na guerra. E tornou atrás para assegurar quinze anos de vida ao rei Ezequias, acrescentando Deus esse prodígio à promessa feita. Quando creem nesses milagres concedidos ao merecimento dos santos, os incrédulos atribuem-nos a artes mágicas. A isso alude o que não a muito de Vergílio recordei sobre a magia: " Deter a água dos rios e obrigar os astros a retrocederem em seu curso." Na mesma Escritura lemos haver o rio detido o curso, quando o povo de Deus, à frente do qual ia o citado Jesus Nave, tentava passá-lo, e fez o mesmo, ao passar o profeta Elias e seu discípulo Eliseu. Que o astro rei retrocedeu em seu curso no tempo de Ezequias já o apontei. Contudo, o prodígio do luzeiro narrado por Varrão não vemos haver-se operado a pedido de algum homem. 3. Cessem, pois, os infiéis de cegar-se ao pretenso conhecimento da natureza. Como se Deus não pudesse operar mudanças nas naturezas que eles, como homens que são, conhecem! E, para falar verdade, as coisas mais ordinárias não são menos maravilhosas que as outras e seriam muito mais estupendas, se os homens tivessem o costume de admirar as coisas maravilhosas, não as raras. Consultai a razão. Quem não se admirará de nessa infinita multidão de homens, tão semelhantes por natureza, ter cada um deles feições tão peculiares, que, se não fossem semelhantes entre si, não se distinguiriam dos animais e, por outro lado, se não fossem dessemelhantes, não se diferenciariam uns dos outros? Logo percebemos a dessemelhança dos que dizemos parecidos. Mais admirável é, porém, considerar a dessemelhança, porque parece mais razoável que natureza comum exija a semelhança. Contudo, porque o raro é o maravilhoso para nós, nunca nos admiramos mais do que quando topamos com dois homens tão parecidos que, ao tentarmos distingui-los, sempre ou quase sempre nos enganamos. 4. Mas o caso contado por Varrão, apesar de historiador dos deles e homem muito sábio, talvez não o creiam ou os impressione menos, porque esse fenômeno foi de curta duração e a estrela depressa tornou ao curso ordinário. Há outro prodígio, ainda hoje existente, que, a meu ver, deve bastar para convencê-los de que conhecer bem o modo de ser e de operar de determinada natureza não é razão para limitar-se o campo de ação de Deus, como se a seu talante não pudesse transformar determinada coisa em outra muito diferente das por eles conhecidas. A terra de Sodoma não foi sempre como é hoje. Seu solo era semelhante aos demais e gozava da mesma ou de mais exuberante fertilidade, pois as divinas Escrituras o comparam ao paraíso de Deus. Depois de o fogo do céu havê-lo arrasado, tem aspecto horroroso, devido à prodigiosa fuligem, como a História profana atesta e os visitantes confirmam. A bela aparência de seus frutos não oculta senão cinza e fumaça. Não era assim Sodoma e agora é. Eis que o Autor das naturezas nessa realizou mudança tão espantosa e tão duradoura, que depois de tanto tempo subsiste ainda. 5. Como para Deus não foi impossível criar as naturezas que quis, não o é tampouco mudá-las a seu gosto. Daí nasce toda essa série de milagres chamados monstros, "ostentos", portentos e prodígios. Se quiséssemos referir e recordá-los todos, esta obra não teria fim. Diz-se derivar de monstrando a palavra monstros e chamarem-se assim porque de certa maneira mostram o futuro. Ostentos deriva de ostendendo; portentos, de portendendo, ou seja, de praeostendendo; prodígios, de porro dicere, porque predizem o porvir. Mas considerem como seus adivinhos, que predizem coisas verdadeiras ou acertam de dizer alguma verdade entre a multidão das palavras que proferem, se enganam, quer por si mesmos, quer por inspiração dos espíritos, que cuidam de nas redes de nociva curiosidade enredar os homens dignos de tal pena. Quanto a nós, porém, pensamos que esses fenômenos que parecem contra a natureza e se dizem contra a natureza (como disse o Apóstolo, falando a linguagem dos homens, que o azambujo é enxertado contra a natureza na oliveira e lhe participa da fecundidade), chamados monstros, "ostentos", portentos ou prodígios, devem mostrar, significar, prognosticar ou predizer o que Deus fará, a saber, o que prenunciou que havia de fazer com os corpos dos condenados, pois não pode impedi-la nenhum obstáculo nem lei alguma da natureza. O como dessas profecias acho que já ficou bem claro no livro anterior, quando nas Santas Escrituras, no Novo e no Velho Testamento, respiguei, não todos os testemunhos relativos ao caso, e sim os suficientes. CAPÍTULO IX O inferno. Natureza das penas eternas. 1. Cumprir-se-á e cumprir-se-á exatamente a predição de Deus, feita por seu profeta, sobre o suplício eterno dos condenados. Seu verme não morrerá e seu fogo não se apagará. E, para encarecer com mais força essa verdade, Jesus diz assim, quando manda cortar os membros que escandalizam o homem, designando por eles os homens que cada qual ama como a seus próprios membros: Se tua mão te é ocasião de escândalo, corta-a; mais te vale entrares maneta na vida eterna que teres as duas mãos e ires para o inferno, para o fogo inextinguível, onde o verme que os rói nunca morre e o fogo nunca se apaga. Diz o mesmo do pé: E, se teu pé te é ocasião de pecado, corta-o; mais te vale entrares perneta na vida eterna que teres dois pés e seres lançado ao inferno, ao fogo inextinguível, onde o verme que os rói nunca morre e o fogo nunca se apaga. E do olho fala nestes termos: E, se teu olho te serve de escândalo, arranca-o; mais te vale entrares caolho no reino de Deus que teres dois olhos e seres lançado ao fogo do inferno, onde o verme que os rói nunca morre e o fogo jamais se apaga. Não corou de nesse lugar repetir três vezes as mesmas palavras. A quem não fará tremer essa repetição e essa ameaça, saída com tal rigor da boca divina? 2. Os que pretendem não serem penas do corpo, mas da alma, o verme e o fogo, dizem que, separados do reino de Deus, os homens serão abrasados na alma por dor e arrependimento infrutífero e tardio. Por isso sustentam que muito bem poderia a Escritura servir-se da palavra fogo para expressar essa dor abrasadora. A isso responde o Apóstolo: Quem se escandaliza, sem que me abrase? Creem também que o verme figura essa dor. Porque está escrito, dizem eles, como a traça à roupa e o verme à madeira, assim a dor atormenta o coração do homem. Quem não duvida que as penas atormentarão tanto a alma como o corpo afirma que o fogo abrasará o corpo e o verme da dor roerá de certo modo a alma. Apesar de esse sentido ser mais crível, pois é autêntico absurdo pensar que não haverá no inferno dor para o corpo ou para a alma, prefiro achar que ambos os suplícios se referem ao corpo do que supor que nenhum se refira a ele. E, segundo me parece, a divina Escritura não menciona a dor da alma por estar, embora não se diga, necessariamente subentendida na do corpo. Assim lemos no Antigo Testamento: O suplício da carne do ímpio será o fogo e o verme. Podia haver dito mais laconicamente: O suplício do ímpio. Por que acrescentou da carne do ímpio, senão porque ambos, o verme e o fogo, serão o castigo da carne? Quis dizer a pena da carne precisamente porque no homem será castigado viver segundo a carne. (Isso levá-lo-á à segunda morte, significada por estas palavras do Apóstolo: Se viverdes segundo a carne, morrereis.) Escolha cada qual o sentido que lhe agrade: atribuir ao corpo o fogo e à alma o verme, aquele própria e este metaforicamente, ou ambas as coisas propriamente ao corpo. Porque antes já mostrei bastante poderem os animais viver também no fogo, em combustão sem consumação e em dor sem morte, por milagre do criador Onipotente. Quem nega ser-lhe isso possível ignora de quem procede quanto admiramos nas naturezas. O mesmo Deus que fez no mundo os milagres pequenos e os grandes que referi e muitíssimos outros que não mencionei foi quem os situou no mundo, o maior dos milagres. Escolha, pois, cada qual o sentido que lhe agrade: pensar que o verme se refere propriamente ao corpo ou se refere metaforicamente à alma, por metáfora tomada das coisas corporais. Qual desses sentidos o verdadeiro? Di-lo-á mais explicitamente a realidade, quando a ciência dos santos for tão perfeita que não necessitarão de experimentar as penas para conhecê-las, pois há de bastar-lhes a Sabedoria, então perfeita e plena. Agora sabemos parcialmente, enquanto não chega a plenitude. Basta-nos, de momento, rechaçar a opinião que sustenta que os corpos dos condenados não serão afetados pelo fogo nem por dor alguma. CAPÍTULO X Pode o fogo do inferno, se corpóreo, abrasar os espíritos malignos, quer dizer, os demônios, incorpóreos? 1. Apresenta-se aqui nova questão: Se não se trata de fogo incorpóreo, análogo à dor da alma, mas de corpóreo, abrasando por contacto e capaz de atormentar os corpos, como servirá também de suplício aos espíritos malignos? Sabemos que o mesmo fogo servirá de suplício aos homens e aos demônios, segundo aquelas palavras de Cristo: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Assim é, a não ser que aluda a terem os demônios também, como vários sábios pensaram, corpo composto de ar espesso e úmido, que se faz sentir quando o vento sopra. Se esse elemento não pudesse receber impressão alguma, não abrasaria, quando aquecido nos banhos. Para abrasar é preciso abrasar-se primeiro e causar a impressão que recebe. Se, por outro lado, alguém afirma não terem corpo os demônios, é inútil a gente quebrar a cabeça ou queimar as pestanas, tratando desse ponto. Que nos veda dizer possam os espíritos incorpóreos, de modo real, embora maravilhoso, ser atormentados por fogo corpóreo, se os espíritos, certamente incorpóreos, dos homens podem atualmente ser encerrados nos corpos e então serão unidos a eles por laços indissolúveis? Os espíritos dos demônios, mais ainda, os espíritos demônios, apesar de incorpóreos, se não têm corpo, unir-se-ão ao fogo material para serem atormentados. Não animarão o fogo de sorte a constituírem-no animal composto de espírito e de corpo, mas, como dissemos, unindo-se com ele de modo maravilhoso e inefável, recebendo do fogo a pena, não dando-lhe a vida. Também esse outro modo segundo o qual os espíritos se unem aos corpos e os tornam animais é de todo admirável e incompreensível ao homem. E isso é o homem mesmo. 2. Diríamos de bom grado que os espíritos arderão sem corpo, como o rico ardia nos infernos, quando clamava: Estou atormentado nesta chama, se não trouxéssemos em mente esta razoável objeção: a chama era da mesma natureza dos olhos que cravou em Lázaro, da língua que desejava refrescar com algumas gotas de água e do dedo de Lázaro, com que queria se fizesse esse serviço. Tudo isso acontecia em lugar onde estavam as almas sem os corpos. A chama que o abrasava e a gotinha que pediu eram incorpóreas, como as coisas vistas em sonho ou em êxtase, que, apesar de incorpóreas, se assemelham aos corpos. O homem nesse estado, embora certo estar em espírito e não com o corpo, então se vê tão semelhante a seu corpo, que é incapaz de distingui-las. Mas aquele inferno, também chamado lago de fogo e enxofre, será fogo corpóreo e atormentará os corpos dos condenados, sejam de homens ou de demônios, os sólidos dos homens e os aéreos dos demônios ou somente os corpos dos homens com seus espíritos e os espíritos dos demônios sem corpos, unidos ao fogo corpóreo para receber a pena, não para vivificá-la. O fogo será único para ambos, como a própria Verdade assegurou. CAPÍTULO XI Exigências da justiça com respeito às penas. Mas, entre esses contra quem defendemos a Cidade de Deus, há quem ache injusto castigar com suplício eterno os pecados, por graves que sejam, desta breve existência. Como se a justiça da lei alguma vez atendesse a proporcionar o castigo com o tempo investido em cometer a falta. As leis, segundo Cícero, estabelecem oito gêneros de penas: multa, prisão, açoite, talião, ignomínia, desterro, morte e escravidão. Qual dessas tem a duração medida pela do crime, fazendo o castigo durar quanto durou o ato criminoso, a não ser talvez a pena do talião? Essa ordena sofra cada qual o mal que fez sofrer; Daí aquela prescrição da lei: Olho por olho e dente por dente. E fisicamente possível arranque a justiça o olho do criminosos em tão pouco tempo como ele o arrancou à vítima. Mas, se a razão exige seja castigado com o açoite o beijo dado em mulher alheia, não açoitam durante muito tempo quem o fez em um instante? E, nesse caso, o encanto de breve prazer não é castigado com duradoura dor? Que direi da prisão? Deve acaso permanecer encarcerado o réu apenas tanto tempo quanto durou o ato que lhe mereceu a pena? De fato, vemos ser muito justo permaneça o escravo muitos anos cativo simplesmente por haver injuriado por palavra o senhor ou por havê-la ferido com rápido golpe. E a multa, a ignomínia, o desterro e a escravidão, penas de ordinário irrevogáveis, não são de certa maneira semelhantes às penas eternas em relação com a brevidade desta vida? Não podem ser eternas cabalmente porque nem a própria vida por elas castigada o é; mas os crimes castigados com penas tão longas são cometidos em muito pouco tempo. A ninguém ocorre pensar devam os tormentos dos malfeitores estar em proporção direta com o tempo de duração do homicídio, do adultério, do sacrilégio e de qualquer outro crime, que não se deve medir pela extensão do tempo, e sim pela maior ou menor qualidade do pecado. Pode-se imaginar que as leis, ao condenarem alguém à morte, façam o castigo radicar nesse breve instante que dura a execução e não em afastá-la para sempre da sociedade humana? Pois o que significa da cidade mortal apartar os homens por meio do suplício da primeira morte é o mesmo que significa apartá-la da cidade imortal pela segunda morte. E, como as leis desta cidade jamais devolvem à sociedade o homem condenado à sentença capital, assim também as daquela nunca volvem à vida eterna o pecador condenado à segunda morte. Como, pois, são verdadeiras, perguntam, estas palavras de vosso Cristo: Com a medida com que medirdes sereis medidos, se pecado temporal é castigado com pena eterna? Não reparam em que a medida de que aí se fala não implica de nenhum modo a igualdade de duração entre o crime e o suplício, mas o legítimo rigor das represálias, em outros termos, é preciso que o mal da ação seja expiado pelo mal da pena. Mas talvez essas palavras se refiram mesmo ao ponto de que no momento o Senhor falava, a saber, dos julgamentos e das condenações. Nesse caso, quem julga e condena injustamente recebe, se julgado e condenado justamente, a mesma medida, embora não do que deu. Julgou e é julgado, mas o castigo que lhe impuseram é justo, ao passo que era injusto o por ele imposto. CAPÍTULO XII Enormidade do primeiro pecado e seus efeitos. Pena eterna parece injusta e dura ao senso humano, porque na miséria desta vida mortal falta o senso da elevada e pura Sabedoria, que capacita para sentir a enormidade do crime cometido na primeira prevaricação. Quanto mais de Deus gozava o homem, maior sua impiedade ao abandoná-lo. E fez-se credor de mal eterno quem em si destruiu o bem que podia ser eterno. Daí a condenação de todo o gênero humano, porque o primeiro culpado foi castigado com toda a sua posteridade, que nele estava latente. Assim, a esse devido e justo suplício ninguém escapa, a não ser por indevida misericórdia e graça. E é tal a disposição dos homens, que em alguns se vê o valor de misericordiosa graça e noutros o de justa vingança. Não se veriam em todos ambas as coisas, porque, se todos permanecessem sob as penas de justa condenação, em nenhum deles se mostraria a misericordiosa graça do Redentor. E, se todos fossem transferidos das trevas para a luz, em ninguém se revelaria a severidade do castigo. Nesse último caso há muitos mais que no outro, para dar-nos a entender que era devido a todos. Se de todos se tirasse vingança, ninguém repreenderia justamente a justiça do vingador; como, porém, são muitos os libertados, já há motivo para dar por esse dom gratuito infinitas graças ao divino Libertador. CAPÍTULO XIII Contra a opinião que sustenta que, para sua purificação, os maus serão castigados depois da morte. Os platônicos, é certo, não querem fique impune pecado algum, mas acham que todas as penas têm finalidade corretiva ou de emenda, tanto as infligidas pelas leis humanas como as sancionadas pelas divinas. E isso, quer o culpado as sofra nesta vida, quer haja de sofrê-las depois da morte, por não fazê-lo aqui ou não corrigir-se. Isso deu origem àquela frase de Vergílio, quando, após falar dos corpos de terra e dos membros destinados à morte, diz que as almas conhecem o temor e o desejo, o prazer e a dor, mas não veem a claridade dos céus, presas em suas trevas e em seu cárcere sem olhos. E acrescenta logo a seguir: Daí que no supremo dia, quando a vida as abandone, quer dizer, quando no supremo dia esta vida as deixe, não estejam, diz, completamente livres das desgraças do mal e das manchas do corpo. Seus vícios, empedernidos pelos anos, deitaram raízes de profundidade assombrosa e é necessário submetê-las a castigos para que os suplícios as limpem. Aí tens umas suspensas no ar, expostas ao sopro veloz dos ventos, outras lavando suas manchas no fundo dos abismos e outras purificando-se no fogo. Os que assim pensam não reconhecem senão penas purgatórias depois da morte. E, como a água, o ar e o fogo são elementos superiores à terra, servem de meios de expiação para purificarem as almas das manchas contraídas ao contacto da terra. Isso encontram no poeta. O ar, onde diz: expostas ao sopro dos ventos; a água, aqui: no fundo dos abismos; o fogo expressa-o pelo próprio nome, ao dizer: outras purificando-se no fogo. Reconhecemos certas penas purgatórias nesta vida mortal. E não têm esse caráter para aqueles cuja vida não melhora, antes piora, com elas, mas para aqueles que, assim castigados, se corrigem. Todas as demais penas, temporais ou eternas, pela divina Providência infligidas a cada qual por ministério dos homens ou dos anjos, bons ou maus, têm por objeto, quer castigar os pecados passados ou atuais, quer exercitar e pôr em relevo as virtudes. Quando alguém padece algum mal por malícia ou erro alheio, peca certamente quem lhe causa esse mal, mas Deus que com juízo justo e oculto o permite, não peca. As penas temporais alguns somente nesta vida as sofrem, outros depois da morte, outros nesta vida e na outra, mas antes do último e mais rigoroso dos juízos. Nem todos os que sofrem penas temporais depois da morte cairão nas penas eternas depois do juízo final. Porque, repetimo-lo, a vários se perdoará no século futuro o que não se lhes perdoará neste, com o fim de não serem castigados com o suplício eterno. CAPÍTULO XIV Penas temporais desta vida. Raríssimos os que em expiação de suas culpas não sofrem nesta vida, mas somente depois dela. Conheci algumas pessoas que chegaram a velhice muito avançada sem jamais haverem estado com a menor febre e passaram a vida em tranquilidade perfeita. Isso não obsta para considerar a vida dos mortais como longa pena e como tentação, segundo as palavras das Sagradas Letras: Não é verdade ser tentação a vida do homem na terra? Já não é pequena pena a ignorância ou a imperícia, cuja aversão é tal que, para escaparem-lhe, as crianças se veem obrigadas, à custa de castigos e dores sem conta, a aprender as artes liberais. O próprio estudo a que os constrangem com castigos, é-lhes tão duro, que a estudar às vezes preferem aguentar os castigos. Quem não sentirá horror e, se se lhe propõe a alternativa, morrer ou voltar à infância, escolherá a morte? Essa que se abre à luz, não vendo, mas chorando, de certo modo profetiza, sem perceber, os males que a esperam. Conta-se haver sido Zoroastro o único que, ao nascer, se riu, mas seu monstruoso riso não lhe augurou nenhum bem. Passa por inventor das artes mágicas, que, não obstante, de nada lhe serviram para contra seus inimigos defender a vã felicidade da presente vida. Porque, sendo rei dos bactrianos, foi vencido por Nino, rei dos assírios. Está escrito: Do dia em que saem do ventre materno ao dia do enterro no seio da mãe comum pesado jugo oprime os filhos de Adão. Essa tara é tão inevitável, que mesmo as crianças pelo batismo livradas do pecado original, visgo que as detinha, estão expostas a inúmeros males, até, às vezes, a padecer as incursões dos espíritos maus. Longe de nós pensar que esses sofrimentos lhes sejam obstáculos, se, por agravar-se o sofrimento e a alma separar-se do corpo, terminam nessa idade a vida. CAPÍTULO XV A graça de Deus e seus efeitos. O pesado jugo imposto aos filhos de Adão do dia de seu nascimento ao dia de seu enterro no seio da mãe comum encerra, todavia, outro mal assombroso. Ensina-nos a sermos sóbrios e a compreendermos ser sequela do nefando pecado cometido no paraíso esta vida penal e dizer respeito unicamente à nova herança do século futuro tudo o que se nos promete no Novo Testamento. Uma vez aceito cá na terra esse penhor, a seu tempo alcançaremos a realidade mesma. Agora caminhemos em esperança e, progredindo dia a dia na perfeição, mortifiquemos pelo espírito as obras da carne. Porque o Senhor conhece quem é dele e todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus, mas por graça, não por natureza. Por natureza só há um Filho de Deus, que, por sua bondade, se fez por nós filho do homem, a fim de que, filhos do homem por natureza, por sua mediação nos tomássemos filhos de Deus por graça. Sempre imutável, Ele vestiu nossa natureza para salvar-nos e, sem despir a divindade, fez-se partícipe de nossa debilidade, para, mudados para melhor, perdermos o que temos de pecadores e de mortais, participando-lhe da imortalidade e da justiça, e conservarmos o que, na plenitude de sua bondade, nos fez de bom na natureza. Como pelo pecado de um só homem caímos em tão deplorável miséria, assim também pela graça de um só homem, que ao mesmo tempo é Deus, chegaremos à posse de nosso soberano bem. E ninguém deve confiar em haver passado do primeiro ao segundo estado sem primeiro chegar ao porto em que já não haverá tentação e alcançar a paz que persegue através dos combates que a carne sustenta contra o espírito e o espírito contra a carne. Semelhante guerra não teria lugar, se, usando do livre-arbítrio, o homem se houvesse conservado na retidão em que foi criado. Agora, o homem feliz que se negou a conservar-se em paz com Deus luta, infeliz, consigo mesmo e, apesar de miserável esse mal, é melhor que sua vida anterior. Melhor é combater os vícios que deixar-se dominar sem choque algum. Melhor é, digo, a guerra com a esperança da vida eterna que o cativeiro sem esperança de liberdade. Verdade é que ansiamos ver-nos também livres dessa guerra e nos abrasamos no fogo do amor divino por conseguir essa ordenadíssima paz que consigo traz a estabilidade e a submissão do inferior ao superior. Mas, embora (não o permita Deus) não esperássemos tamanho bem, a ceder aos vícios e arrojar-nos em seus braços deveríamos sempre preferir o combate, apesar de duro. CAPÍTULO XVI As leis da graça e as idades dos homens regenerados. É tal a misericórdia de Deus para com os vasos de misericórdia destinados à glória, que tanto na primeira como na segunda idade do homem, ou seja, na infância e na puerícia, uma entregue sem resistência à carne e a outra, em que a razão, apesar de não consciente dessa luta, está quase por completo submetida a todas as inclinações viciosas e, embora capaz de fala (o que Induz a crer que a infância já passou), não é capaz de preceitos, quem receber os sacramentos do Mediador, quer dizer, quem do poder das trevas for transferido para o reino de Cristo, embora sua vida termine nesses anos, não apenas não sofrerá penas eternas, mas nem sequer purificatórias. Porque basta a só regeneração espiritual para invalidar depois da morte o débito que a geração carnal contraíra com a morte. E, em chegando à idade capaz de preceitos e de leis, deve começar a guerra contra os vícios e pelejar com bravura por medo de cair em pecados dignos de condenação. Se o hábito da vitória não os rebusteceu ainda, cederão e serão vencidos com mais facilidade, mas, se acostumados a vencer e a dominar, então a vitória é mais trabalhosa e difícil. A vitória autêntica e verdadeira somente a dá o amor à verdadeira justiça, que radica na fé em Cristo. Porque, se a lei manda sem o espírito vir em seu auxilio, a proibição que ela faz do pecado apenas serve para aumentar o desejo e acrescentar o reato da prevaricação. Às vezes, é verdade, há vícios manifestos que são superados por outros vícios ocultos tidos por virtudes, nas quais reina a soberba e ruinosa vaidade de agradar-se a si mesmo. Os vícios devem ser considerados vencidos somente quando o são pelo amor de Deus, que não dá senão Deus mesmo e unicamente pelo Mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, que, para fazer-nos partícipes de sua divindade, se fez partícipe de nossa mortalidade. Mas contam-se nos dedos os homens tão felizes que hajam passado a adolescência sem cometerem algum pecado mortal, sem caírem em algum excesso, em algum crime ou em algum erro ímpio e hajam reprimido com grande liberalidade de espírito quanto lhes haja sugerido a concupiscência carnal. Recebido o preceito da lei, a maioria violou-o e, deixando-se arrastar pela impetuosa corrente dos vícios, depois recorreu à graça adjuvante, que, com penitência mais amarga e luta mais brava a toma vencedora. Submetendo assim o espírito a Deus, ao espírito submetem a carne. Quem deseje fugir das penas eternas seja não só batizado, mas também justificado em Cristo, passando, assim, da tirania do diabo à liberdade de Cristo. Ninguém acredite que as penas do purgatório não serão anteriores ao tremendo e último juízo de Deus. Não se deve, porém, negar que o fogo não será, segundo a diversidade de merecimentos maus, para uns mais brando e para outros mais vivo, quer varie sua intensidade e violência segundo a pena merecida, quer arda por igual, mas nem todos lhe sintam por Igual o sofrimento que causa. CAPÍTULO XVII Primeira opinião sobre a não eternidade das penas. Penso que devo arrazoar e discutir pacificamente com aqueles dentre os nossos que, por espírito de misericórdia, não querem crer que as penas serão eternas. Alguns concedem essa graça a todos os homens que o Juiz justíssimo julgar dignos de tal suplício; outros, somente a alguns. E sustentam que esses serão livrados depois de espaço de tempo mais ou menos longo, segundo a quantidade e a qualidade do pecado. O mais indulgente nesse ponto foi Orígenes. Abriga a crença de que, depois de suplícios mais duros e mais duradouros, segundo seus merecimentos, o diabo e seus anjos serão livrados dos tormentos e associados aos santos anjos. Mas a Igreja condenou-o justamente por esse e por outros erros, entre os quais citarei apenas a alternativa contínua, eterna e de períodos fixos a que submete as almas. Nisso fracassou-lhe a pretensa misericórdia, pois faz os santos sofrerem verdadeiras misérias para pagarem suas penas, propiciando-lhes falsa felicidade que não lhes assegura o gozo do bem eterno e verdadeiro, ou seja, certo e sem temor. Comporta-se de modo muito diverso o erro humano e pleno de misericórdia daqueles que aos condenados e a quantos mais cedo ou mais tarde serão livrados restringem essa alternativa de felicidade eterna e misérias temporais. Se essa opinião é tida por verdadeira e por boa por ser indulgente, será tanto mais verdadeira e melhor quanto mais indulgente. Estendam, pois, e façam essa fonte de misericórdia subir aos anjos condenados, ao menos para libertá-los depois de muitos séculos de tormentos! Por que mana para toda a natureza humana e, em chegando à angélica, seca? Não se atrevem a ir mais longe e a estender sua misericórdia ao diabo. Se alguém se atreve, vence em bondade, é certo, os outros, mas seu erro é tanto mais disforme e mais oposto à palavra de Deus, quanto parece mais generosa clemência. CAPÍTULO XVIII Segunda opinião sobre o mesmo ponto. 1. Outros há, como pude comprovar pessoalmente em meus colóquios, que, sob pretexto de respeito às Santas Escrituras, merecem ser censurados em seu procedimento, pois em proveito próprio fazem Deus muito mais indulgente que os anteriores. Confessam que os pecadores e os infiéis merecem ser castigados, segundo a predição divina, verdadeira, mas que, quando chegue o juízo, a misericórdia aumentará notavelmente. Deus, todo bondade, perdoá-los-á, dizem eles, pelas súplicas e intercessão de seus santos. Pois se oravam por eles, quando os perseguiam como inimigos, quanto mais o farão, quando vivam prostrados, humildes e suplicantes? Não se deve acreditar, acrescentam, vão os santos perder suas entranhas de misericórdia nesse estado de consumada e perfeita santidade, de sorte que eles, que oravam por seus inimigos, quando ainda tinham pecados, não orem por seus devotos, quando começarem a não ter pecado algum. Ou será que Deus não escutará a oração pura desses filhos seus, cuja santidade já alcançou o zênite? Os defensores de que os infiéis e ímpios serão atormentados muito tempo e depois se verão livres de todos os males alegam em seu favor este testemunho do salmo: Acaso Deus se esquecerá de sua clemência ou a ira lhe fechará as entranhas? Esses sustentam que essa passagem lhes favorece muito mais a opinião. A ira de Deus, dizem eles, quer sejam por seu juízo castigados com suplício eterno todos os indignos da bem-aventurança eterna. E, para permitir que sofram algo, por breve que seja, sua ira deterá o curso de sua misericórdia. O salmo nega por isso que haja de fazê-lo. Porque não diz: "Deterá sua ira muito tempo o curso de sua misericórdia?", mas, ao contrário, declara que não o deterá. 2. Com esse modo de pensar pretendem não ser falsa, embora não condene ninguém, a cominação do juízo de Deus, como não podemos dizer falsa a ameaça feita a Nínive de destruição da cidade. E isso apesar de não haver-se realizado sua predição incondicionada. O profeta não diz: "Nínive será destruída, se não fizer penitência e corrigir-se”, mas anunciou a futura destruição da cidade sem acrescentar condição alguma. Essa ameaça consideram-na veraz porque Deus lhes predisse castigo de que eram realmente dignos, apesar de não o haverem sofrido. Se, pois, perdoou os que fizeram penitência, acrescentam, é certo que não ignorava que a fariam; contudo, predisse absoluta e categoricamente a destruição de todos. Isso era assim, prosseguem, na verdade de sua justiça, mas não o era em razão de sua misericórdia, porque sua ira não lhe deteve o curso e perdoou a pena cominada contra os pecadores. Se perdoou então, acrescentam, embora devesse contristar seu santo profeta, quanto mais perdoará, quando todos os santos intercedam para que perdoe os suplicantes mais miseráveis ainda? Quanto conjeturam no fundo do coração pensam havê-lo calado as divinas Escrituras com fim de que muitos se corrijam por temor a essas penas prolongadas ou eternas e haja quem possa orar por aqueles que não se corrijam. Mas não creem que o silencie de modo absoluto a Palavra divina. Pois a que se aplicam, perguntam eles, estas palavras do salmo: Que abundante e grande é, Senhor, a doçura que tens reservada para os que te temem!? Não quer isso dar-nos a entender que essa imensa doçura da misericórdia de Deus foi escondida aos homens para infundir-lhes temor? E acrescentam as palavras do Apóstolo: O fato é que Deus permitiu que todos ficassem envoltos na incredulidade para usar de misericórdia com todos. Aí se diz que não condenará ninguém. Os seguidores dessa opinião não a estendem ao livramento ou condenação do diabo e seus anjos. São tocados de compaixão humana só para com os homens e advogam sobretudo sua própria causa, prometendo ao gênero humano, como por misericórdia geral de Deus, falsa impunidade com vistas a seus corrompidos costumes. Essa a razão por que aqueles que prometam semelhante impunidade também ao príncipe dos demônios e seus satélites os sobrepujarão no encarecimento da misericórdia de Deus. CAPÍTULO XIX Terceira opinião. Outros há que prometem a libertação do suplício eterno somente aos regenerados pelo batismo que participam do corpo de Cristo, não importa qual tenha sido sua vida anterior e a heresia ou impiedade em que hajam caído. E fundam-se naquelas palavras de Jesus: Este é o pão que desceu do céu, a fim de que não morra quem dele comer. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. É preciso, por conseguinte, concluem eles, que esses homens se vejam livres da morte eterna e passem algum dia para a vida eterna. CAPÍTULO XX Quarta opinião. Alguns outros não fazem essa promessa a todos os que receberam o batismo e participaram do sacramento do corpo de Cristo, mas apenas aos católicos, embora vivam perdidamente. Esses foram constituídos no corpo de Cristo por haverem-lhe comido o corpo, não só em sacramento, mas também em realidade. Assim diz o Apóstolo: Embora muitos, somos um só pão, um só corpo. Segundo isso, embora hajam caído na heresia ou na idolatria dos gentios, pelo simples fato de haverem recebido o batismo de Cristo e de haverem-lhe comido o corpo no corpo de Cristo, quer dizer, na Igreja católica, os católicos não morrerão eternamente, mas algum dia gozarão da vida eterna. E sua impiedade, por grande que for, não conta para a eternidade, e sim para a duração e qualidade das penas. CAPÍTULO XXI Quinta opinião. Outros há que, considerando estas palavras: Quem perseverar até o fim se salvará, prometem a salvação aos que perseverem na Igreja, embora vivam escandalosamente nela. Dizem que se salvarão pela prova do fogo e pelos méritos do fundamento, de que diz o Apóstolo: Ninguém pode pôr outro fundamento além do que já foi posto, o qual é Jesus Cristo. Se sobre tal fundamento alguém põe material de ouro, prata, pedras preciosas ou madeira, feno e palha, saiba que há de manifestar-se a obra de cada qual. O dia do Senhor, descobri-la-á, pois há de manifestar-se por meio do fogo e o fogo há de mostrar qual a obra de cada qual. Se subsistir a obra sobreposta de alguém, receberá a paga. Se a obra de outro se queimar, será seu o dano. Não obstante, não deixará de salvar-se, como que pelo fogo, todavia. Admitem que o cristão católico, seja qual for a vida que leve, tem Cristo por fundamento, fundamento que falta a toda heresia separada da unidade de seu corpo. E por isso acham que, em virtude desse fundamento, o cristão católico, embora leve vida escandalosa, como quem sobre esse fundamento põe madeira, feno e palha, se salvará pela prova do fogo, quer dizer, depois de penas passageiras, será livrado do fogo que no último juízo atormentará os maus. CAPÍTULO XXII Sexta e última opinião. Também encontrei outros convencidos de estar o suplício eterno destinado unicamente àqueles que descuidam de redimir seus pecados pelas esmolas, segundo as palavras do Apóstolo São Tiago: Aguarda juízo sem misericórdia quem não usou de misericórdia. Logo, quem usou, deduzem eles, embora não melhore de costume e entre esmolas leve existência desregrada e perdida, será julgado com misericórdia. E não será castigado com a condenação ou, depois de muito ou pouco tempo, dela será liberado. Por isso, acrescentam, o Juiz de vivos e mortos não quis, tanto aos da direita, a quem dará a vida eterna, como aos da esquerda, a quem condenará ao suplício eterno, recordar senão as esmolas feitas ou omitidas. A isso alude, segundo eles, o pedido cotidiano da oração dominical: Perdoa-nos nossas dívidas, assim como perdoamos nossos devedores. Fazer esmola é perdoar as ofensas ao ofensor. O próprio Senhor pô-lo tão em evidência, que chegou a dizer: Se perdoais aos homens suas faltas, também vosso Pai celestial vos perdoará vossas faltas. Mas, se não perdoais os homens, tampouco vosso Pai, que está nos céus, vos perdoará. A esse gênero de esmola referem-se também as citadas palavras do Apóstolo São Tiago: quem não usa de misericórdia será julgado sem misericórdia. O Senhor não distinguiu, acrescentam, entre pecados graves e leves, mas limitou-se a dizer: Vosso Pai perdoar-vos-á vossos pecados, se perdoais os homens. Assim, por perdida que seja a vida do pecador até à morte, acham que seus pecados, sejam quais e quantos forem, lhe são perdoados cada dia em virtude dessa oração cada dia recitada, se se lembrar de perdoar de coração as ofensas a quem lhe peça perdão. Uma vez que, com o auxilio de Deus, hajamos respondido a todos esses pontos de vista, darei fim a este livro. CAPÍTULO XXIII Contra a primeira opinião. Primeiro convém perguntar e ficar sabendo por que a Igreja não pode submeter-se à opinião desses homens que prometem ao diabo a purificação ou o perdão, depois, é certo, de penas duradouras e enormes. Há muitos santos versados no Antigo e no Novo Testamento que não invejaram aos anjos, depois de tantos e tais suplícios, a purificação e a bem-aventurança do reino dos céus. E que recuaram diante do inevitável perigo de aniquilar ou infirmar a sentença divina que o Senhor declarou que havia de pronunciar no dia do juízo: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Isso evidencia que o diabo e seus anjos arderão no fogo eterno. É o que sucede com o que diz o Apocalipse: E o diabo, que os trazia enganados, foi precipitado no lago de enxofre e fogo, aonde também o foram a besta e o falso profeta, e serão atormentados noite e dia pelos séculos dos séculos. A Escritura dizia antes eternamente e agora pelos séculos dos séculos. Essas expressões significam correntemente na Escritura duração sem fim. Não se pode, portanto, achar outra causa mais justa, ou mais evidente que explique por que a verdadeira piedade mantém a crença imutável e firme de que o diabo e seus anjos não retornarão à justiça e à vida dos santos do que esta: a Escritura, que não engana ninguém, diz que Deus não os perdoou. E dessa sorte foram por Ele predestinados à condenação e recluídos nos cárceres das trevas infernais para reservá-los para o juízo final e então castigá-los, entregando-os ao poder do fogo eterno, que os atormentará pelos séculos dos séculos. Se for assim, como pretender que todos os homens ou alguns deles serão livrados da eternidade dessas penas, depois de prolongado padecimento, sem que se debilite a fé, que nos move a crer que o suplício dos demônios será eterno? Com efeito, se entre os que ouçam: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos há alguns ou todos que aí não permanecerão para sempre, que razão há para crer que o diabo e seus anjos aí permanecerão eternamente? Será que a sentença que Deus pronunciará contra os anjos maus e contra os homens maus será verdadeira para os anjos e falsa para os homens? Sim, assim será, se as conjeturas dos homens prevalecem sobre a palavra de Deus. Mas, como isso é absurdo, os que queiram livrar-se do suplício eterno não devem perder o tempo, argumentando contra Deus, mas aproveitá-lo, cumprindo-lhe os mandamentos. Ademais, que é isso de por suplício eterno entender fogo temporal, embora duradouro, e por vida eterna entender vida sem fim, quando, na mesma passagem e sem distinção alguma, Cristo disse: Assim, irão os ímpios para o eterno suplício e os justos para a vida eterna? Se ambos os destinos são eternos, deve-se entender que ambos serão duradouros, mas findáveis, ou ambos perpétuos e sem fim. A correlação no texto é perfeita. De uma parte, o suplício eterno; de outra, a vida eterna. Dizer, porém, num e mesmo sentido, que a vida eterna não terá fim e que o suplício eterno terá fim é o cúmulo do absurdo. Em conclusão, como a vida eterna dos santos não terá fim, tampouco o terá o suplício eterno de quem o mereça. CAPÍTULO XXIV Contra a segunda opinião. 1. Esse raciocínio vale também contra aqueles que, com propósitos egoístas, se afanam, sob pretexto de maior misericórdia, em ir contra as palavras de Deus. Segundo eles, as citadas palavras são verdadeiras não porque os homens hajam de sofrer de fato as penas que se lhes cominam, mas porque merecem sofrê-las. Deus, dizem eles, perdoá-los-á pela intercessão de seus santos, que, orando então por seus inimigos, tanto mais quanto mais santos, sua oração será mais eficaz e mais digna de ser escutada por Deus, pois já não têm pecado. Mas por que, se suas preces são tão eficazes, devido à sua perfeitíssima santidade e à sua pureza, não rogarão também pelos anjos para quem está preparado o suplício eterno, a fim de que Deus lhes mitigue a sentença e a revogue, tirando-os desse fogo? Ou será que haverá alguém tão atrevido que vá mais além e afirme que os santos anjos se unirão aos homens santos, que então serão semelhantes aos anjos de Deus, e juntos rogarão pelos anjos e pelos homens condenados, a fim de que por misericórdia não padeçam o que merecem padecer por justiça? Isso nenhum católico o disse nem dirá jamais. De outra forma, não há razão que justifique o fato de no presente a Igreja não orar pelo diabo e por seus anjos, se do divino Mestre recebeu o mandamento de orar por seus inimigos. A mesma causa que agora impede a Igreja de rogar pelos anjos maus, que sabe seus inimigos, impedir-lhe-á então, no juízo final, rogar pelos homens destinados ao fogo eterno, embora no zênite da santidade. Agora roga pelos homens que são seus inimigos, porque ainda é tempo de frutuosa penitencia. Que pede a Deus por eles senão que os traga à penitência, como diz o Apóstolo, e se desenredem dos laços do diabo, que deles dispõe a seu talante? Se a Igreja soubesse com certeza os que, embora ainda vivam, estão predestinados a ir com o diabo para o fogo eterno, não rogaria por eles, como não ora por ele. Mas, como não está certa de ninguém, ora por todos os seus inimigos, esses cá da terra e, todavia, não é escutada por todos. Escutam-na somente aqueles que, apesar de seus inimigos, estão predestinados a fazer-se filhos da Igreja por meio de suas preces. Se alguns se obstinam até à morte em sua impenitência e de inimigos não se convertem em filhos, acaso roga por eles a Igreja, quer dizer, roga pelas almas de tais defuntos? Por que assim, senão porque se alistou no partido do diabo quem durante esta vida não se passou a Cristo? 2. Há, pois, a mesma razão, repito, para não orar então pelos homens destinados ao fogo eterno que para não orar, nem agora, nem então, pelos anjos maus. Essa mesma estende-se a não orar então pelos defuntos infiéis e ímpios, embora rezemos por todos em geral. A oração da Igreja ou de alguns santos é ouvida para certos defuntos, mas só para aqueles que, regenerados em Cristo, não viveram tão mal que fossem julgados indignos de tal misericórdia, nem tão bem que não necessitassem dela. Também após a ressurreição dos mortos haverá alguns de quem Deus terá misericórdia; não os enviará ao fogo eterno, sob a condição de haverem sofrido as penas sofridas pelas almas dos defuntos. Porque não seria verdadeiro dizer de alguns que não se lhes perdoou nesta vida nem na outra, se não houvesse outros a quem se lhes perdoa, se não nesta vida, na outra. Disse o Juiz de vivos e mortos: Vinde, benditos de meu Pai, possuir o reino que vos está preparado desde a criação do mundo. E a outros, pelo contrário: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. E também: E irão esses para o suplício eterno e os justos para a vida eterna. É excessiva presunção crer que o suplício não será eterno para alguns daqueles que Deus enviou ao suplício eterno. Isso seria persuadir com tal presunção a desesperar ou a duvidar da vida eterna. 3. Ninguém explique, pois, o salmo que canta: Acaso Deus se esquecerá de sua clemência ou a ira lhe fechará as entranhas de misericórdia?, dando margem a opinar que a sentença de Deus é verdadeira em relação aos bons e falsa em relação aos maus ou verdadeira para os homens bons e para os anjos maus e falsa para os homens maus. As palavras do salmo fazem referência aos vasos de misericórdia e aos filhos da promessa, entre quem se contava o profeta. Em havendo dito: Acaso Deus se esquecerá de sua clemência ou a ira lhe fechará as entranhas de misericórdia?, acrescentou em seguida: Então eu disse: Agora começo. Essa mudança provém da destra do Altíssimo. Isso é, sem dúvida, explicação do que acaba de dizer: Ou a ira lhe fechará as entranhas de misericórdia? Esta vida mortal, em que o homem se assemelhou à vaidade e seus dias passam como a sombra, é efeito da ira divina. Contudo, a despeito dessa ira, Deus não se esquece de mostrar sua misericórdia, fazendo o sol nascer sobre bons e maus chover sobre justos e pecadores. Sua ira não lhe fechará as entranhas de misericórdia, sobretudo na mudança que estas palavras expressam: Agora começo. Essa mudança é efeito da mão do Altíssimo. Nesta vida, tão cheia de atribulações, Deus melhora os vasos de misericórdia, embora sua ira não deixe de existir em meio desta miserável corrupção, pois nem sua ira contém o rio de sua bondade. Cumprindo-se desse modo a verdade daquele divino cântico, não há necessidade de estender o sentido ao castigo eterno daqueles que não pertencem à Cidade de Deus. Mas os que pretendem estender essa sentença também aos tormentos dos ímpios que ao menos a interpretem de tal sorte que, permanecendo sobre eles a ira de Deus, que se pronunciou em juízo eterno, não lhe feche suas entranhas de misericórdia. E não façam essa torrente de bondade consistir em das penas que merecem preservar os condenados ou em livra-los delas algum dia, mas em aliviá-las e suavizá-las um pouco. Darão, assim, margem à ira de Deus e a que sua ira não lhe feche suas entranhas de misericórdia. Note-se que de não rechaçarmos esse ponto de vista não se segue que o aprovemos. 4. Aos que veem ameaça e não predição real nestas palavras: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, e nestas: Serão atormentados pelos séculos dos séculos, e ainda nestas: Seu verme não morrerá e seu fogo não se apagará e em outros textos assim, não somos nós, é a própria divina Escritura que redargui e refuta da maneira mais evidente e mais completa. Os ninivitas fizeram penitência nesta vida e, portanto, penitência frutuosa, semeando neste campo em que Deus quis que se semeasse com lágrimas o que depois se colherá com alegria. Contudo, quem negará haver-se cumprido a predição do Senhor, sob pena de não considerar bastante como Deus destrói os pecadores não somente quando irado, mas também quando apiedado? Os pecadores são destruídos de dois modos: como os habitantes de Sodoma, castigando os homens por seus pecados, ou como os ninivitas, destruindo pela penitência os pecados dos homens. A Nínive má foi destruída e foi edificada a boa, coisa que não era. Apesar de erguidas as muralhas e as casas, a cidade foi derrubada em seus corrompidos costumes. Assim, embora o profeta houvesse de contristar-se porque não sucedeu o que os ninivitas esperavam pela profecia, sucedeu o que Deus predissera, porque sabia que essa predição se cumpriria em sentido mais favorável. 5. A fim de que esses desvirtuados misericordiosos compreendam qual o alcance destas palavras: Que abundante e grande é, Senhor, a doçura que escondeste dos que te temem!, leiam o que vem depois: e consumaste nos que esperam em ti. Que significa: Escondeste-a dos que te temem e consumaste-a nos que esperam em ti, senão: A justiça de Deus não é suave para aqueles que por temor às penas querem constituir sua justiça fundada na lei, porque a desconhecem? E, como a desconhecem, não a gostaram. Não esperam em Deus, mas em si mesmos, e por isso esconde-se-lhes a abundância da doçura divina. Temem, é verdade, a Deus, mas com aquele temor servil desacompanhado de caridade, porque a caridade perfeita expulsa o temor. Deus consuma sua doçura nos que esperam nele, inspirando-lhes sua caridade para que com temor casto, não com esse que deita fora o amor, mas com o que permanece eternamente, se gloriem unicamente no Senhor. A justiça de Deus é Cristo, que nos foi dado por Deus, como diz o Apóstolo, para ser nossa Sabedoria, nossa justiça, nossa satisfação e nossa redenção, a fim de que, como está escrito, quem se glorie se glorie no Senhor. Essa justiça de Deus, dom da graça, não efeito do merecimento, desconhecem-na os que anseiam constituir sua justiça. Por isso não se submetem à justiça de Deus, que é Cristo. Precisamente nessa justiça se acha a grande abundância da doçura de Deus. Dela e por ela diz-se no salmo: Gostai e vede quão doce é o Senhor! Nesta peregrinação não a gostamos até à saciedade; por isso estamos mais famintos e mais sedentos dela, para depois nos saturarmos, quando a virmos como é e se cumprir o que está escrito: Serei saciado, quando se manifestar tua glória. Assim consuma Cristo a abundância de sua doçura nos que esperam nele. Logo, se dos que o temem Deus esconde a abundância de sua doçura, no sentido em que nossos adversários a entendem, quer dizer, com o fim de os ímpios, desconhecendo-a por temor de serem condenados, viverem retamente, podendo, assim, haver fiéis que orem pelos que vivem sem freios morais, como o consumará nos que esperam nele, se, como esses sonham, por causa dessa doçura não serão condenados aqueles que não esperam nele? Busque-se, pois, a doçura que Deus aperfeiçoa nos que esperam nele e não a que imaginam que aperfeiçoará nos que o desprezam e blasfemam! Em vão o homem busca na outra vida o que descuidou adquirir nesta. 6. Aquele versículo do Apóstolo: O fato é que Deus permitiu que todos ficassem envoltos na infidelidade para usar de misericórdia com todos não quer dizer que Deus não condenará ninguém. O contexto aclara-nos o sentido. São Paulo dirigia-se aos gentios já crentes e diz-lhes a propósito dos judeus, que mais tarde se converteriam: Assim como outrora não críeis em Deus e agora alcançastes misericórdia, à vista da incredulidade daqueles, assim também esses agora não creram em vossa misericórdia, a fim de algum dia também eles a obterem. A seguir, acrescenta as palavras que os induzem a erro: O fato é que Deus permitiu que todos ficassem envoltos na infidelidade, para usar de misericórdia com todos. Quem são todos senão esses de que falava, quer dizer, vós e eles? Deus deixou, pois, caírem na infidelidade todos os gentios e todos os judeus que previu e predestinou a serem conformes com a imagem de seu Filho. Assim, arrependidos com amarga penitência de sua infidelidade e convertidos à doçura da misericórdia de Deus, clamarão com o salmista: Que abundante e grande é, Senhor, a doçura que escondeste dos que te temem e consumaste nos que esperam, não em si mesmos, mas em ti! Terá misericórdia de todos os vasos de misericórdia. Que significa de todos? Tanto dos gentios que predestinou, chamou, justificou e glorificou, como dos judeus. De todos esses homens, não de todos os homens, não condenará ninguém. CAPÍTULO XXV Que dizer da terceira e da quarta opinião? 1. Respondamos agora àqueles que prometem o livramento do fogo eterno não ao diabo e a seus anjos (como tampouco o fazem aqueles de quem estávamos falando), nem mesmo a todos os homens, mas apenas àqueles que hajam recebido o batismo e participado do corpo e do sangue de Cristo, vivam como vivam em qualquer heresia ou impiedade em que caíram. O Apóstolo contradi-los, ao dizer: São bem fáceis de conhecer as obras da carne. Tais são a fornicação, a desonestidade, a luxúria, a idolatria, a feitiçaria, a inimizade, a porfia, o ciúme, a animosidade, a heresia, a dissensão, a inveja, a embriaguez, a glutona ria e coisas semelhantes. A respeito delas previno-vos, como vos tenho dito, que não alcançarão o reino dos céus os que tais coisas fazem. Essas palavras do Apóstolo são falsas, se os tais hão de possuir o reino de Deus, livres, embora depois de muito tempo, de seus tormentos. Mas, como não são falsas, segue-se que não possuirão o reino dos céus. E, se jamais entrarão na posse desse reino, estarão submetidos a eterno suplício, porque entre o reino de Deus e o suplício eterno não há meio termo. 2. É preciso, por conseguinte, estudar como se deve entender o que diz Nosso Senhor: Este é o pão que desceu do céu, a fim de que não morro quem dele comer. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem dele comer viverá eternamente. Os adversários a quem depois responderemos refutam a opinião daqueles a quem agora respondemos. São aqueles que não prometem a libertação a todos os que hajam recebido o sacramento do batismo e o corpo de Cristo, mas somente aos católicos, embora vivam mal. Porque, assim dizem, comeram o corpo de Cristo, não apenas em sacramento, mas também em realidade, e se constituíram no mesmo corpo. Desse corpo diz o Apóstolo: Apesar de muitos, somos um só pão, um só corpo. Somente, pois, quem se conserva na unidade do corpo de Cristo, desse corpo cujos fiéis costumam receber o sacramento do altar, ou seja, o membro da Igreja, é que verdadeiramente se deve dizer que come o corpo de Cristo e lhe bebe o sangue. Portanto, os hereges e os cismáticos, apartados da unidade desse corpo, podem receber esse sacramento, mas sem fruto e, o que é mais, com dano pessoal, para serem condenados com mais rigor e não serem, embora tarde, livrados. Não estão nesse laço de paz representado por esse sacramento. 3. Por outra parte, esses, que têm razão, quando dizem que não come o corpo de Cristo quem não está no corpo de Cristo, erraram ao prometerem a libertação das penas eternas àqueles que saem da unidade desse corpo e aderem à heresia ou à superstição dos gentios. Devem, em primeiro lugar, considerar como é intolerável e estranho à sã doutrina pensar que muitos ou quase todos os que fundaram ímpias heresias, saindo da Igreja católica e tornando-se heresiarcas, fiquem mais bem acomodados que aqueles que nunca foram católicos e lhes caíram nas armadilhas. Se o batismo que lhes foi administrado na Igreja católica e o sacramento do corpo de Cristo, que receberam no verdadeiro corpo de Cristo, livram do suplício eterno os heresiarcas, reparem em que é pior o desertor da fé, de trânsfuga transformado em seu perseguidor, que aquele que não desertou da fé, pois não a abraçou nunca. Em segundo lugar, o Apóstolo atalha essa opinião, quando, após haver enumerado as obras da carne, prediz, com a mesma Verdade, que os que tais coisas fazem não possuirão o reino dos céus. 4. Donde se segue não deverem estar seguros em seus costumes, estragados e condenáveis, os que perseveram até o fim na comunhão da Igreja católica, atendendo a estas palavras: Quem perseverar até o fim se salvará. Por sua má vida abandonam a justiça de vida, que é Cristo, quer praticando a fornicação, quer manchando o corpo com outras impurezas, que nem São Paulo mesmo quis citar, quer deixando-se arrastar pela luxúria, quer, enfim, fazendo alguma das obras de que diz: Os que tais coisas fazem não possuirão o reino dos céus. Logo, se os que fazem tais coisas não poderão entrar no reino dos céus, irão inevitavelmente para o fogo eterno. Não se deve dizer que, perseverando no desregramento até o fim da vida perseveraram em Cristo até o fim, porque perseverar em Cristo é perseverar em sua fé. E essa fé, segundo a definição do Apóstolo, opera pela caridade. E a caridade, como diz noutra parte, não opera mal. Não se deve tampouco dizer que esses comem o corpo de Cristo, pois nem devem ser contados entre os membros de Cristo. Porque (e conste que omito outras razões) não podem ser ao mesmo tempo membros de Cristo e de meretriz. Finalmente, ao dizer: Quem come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim e eu nele, Cristo nos mostra o que é comer seu corpo e beber seu sangue em verdade e não apenas em sacramento. É, simplesmente, permanecer em Cristo para Ele permanecer no comungante. Como se dissesse: Aquele que não permanece em mim e em quem não permaneço não diga ou pense que come meu corpo e bebe o meu sangue. Pois bem, não permanecem em Cristo os que não são membros seus. E não são membros de Cristo aqueles que se tornam membros de meretriz, a não ser que renunciem ao mal pela penitência e tornem ao bem pela reconciliação. CAPÍTULO XXVI Que é ter Cristo por fundamento e que dizer da quinta opinião? 1. Os cristãos católicos, dizem, por fundamento têm Cristo, de cuja unidade não se separaram, apesar de sobre esse fundamento haverem edificado vida desordenada, como feno, madeira e palha. A verdadeira fé, que faz que Cristo seja seu fundamento, embora com dano, pois serão abrasadas as coisas edificadas sobre ele, poderá livrá-los algum dia da perpetuidade do fogo. Responda a isso, resumidamente, o Apóstolo São Tiago: Se alguém diz que tem fé e carece de obras, poderá salvá-la a fé? E quem é, insistem, aquele de quem diz o Apóstolo: Não deixará de salvar-se, se bem como que pelo fogo? Quem é? Procuremo-lo juntos. Não é, por certo, esse de que fala São Tiago. O contrário seria pôr frente a frente dois Apóstolos, pois um deles diz: Embora alguém tenha más obras, a fé salvá-lo-á pelo fogo e o outro: Se não tem obras, salvá-lo-á a fé? 2. Saberemos quem pode salvar-se pelo fogo, se primeiro conhecermos o que é ter Cristo por fundamento. Para averiguá-lo o quanto antes possível, consideremos a imagem e admitamos que em todo edifício primeiro vem o fundamento. Quem quer, pois, que de tal sorte tenha Cristo no coração, que nem anteponha a Ele as coisas terrenas e temporais, nem aquelas cujo uso lhe é permitido, esse tem Cristo por fundamento. Mas, se a Ele prefere essas coisas, embora pareça ter fé em Cristo, não tem Cristo por fundamento, porquanto o pospõe. Quão menos o terá quem, desprezando os salutares mandamentos, age ilicitamente, não antepondo Cristo, mas pospondo-o, subestimando-lhe os mandados ou permissões e preferindo, contra eles, satisfazer suas paixões? Assim, quando o cristão ama alguma meretriz e, unindo-se a ela, se faz um só corpo com ela, já não tem Cristo por fundamento. Por outro lado, quando alguém ama a própria esposa e o faz segundo Cristo, quem duvida que tem Cristo por fundamento? Se a ama segundo este século, carnalmente, através da morbosidade das concupiscências, como os gentios, que desconhecem Deus, mesmo nesse caso o Apóstolo, ou melhor, Cristo por intermédio do Apóstolo, lho permite por condescendência. Mesmo nesse caso pode ter Cristo por fundamento. Porque, se não lhe antepõe sua afeição e seu prazer, embora sobre ele edifique madeira, feno e palha, tem Cristo por fundamento e se salvará pelo fogo. O fogo da tribulação queimará essas delícias e esses amores, não condenáveis devido ao matrimônio. A esse fogo pertencem a viuvez e as demais calamidades que privam desses gozos. Por isso, essa edificação será prejudicial para quem edificou, porque não terá o que edificou sobre o fundamento e será atormentado pela perda das coisas cujo gozo o encantava. Mas será salvo pelo fogo, pelos méritos do fundamento, porque, se algum perseguidor lhe propusesse optar entre esses objetos e Cristo, a Cristo não anteporia coisa alguma. Vede nas palavras do Apóstolo o homem que sobre o fundamento edifica prata, ouro e pedras preciosas. Quem não tem mulher, diz ele, pensa nas coisas de Deus e em como agradar ao Senhor. Vede agora o outro, que edifica madeira, feno e palha: E quem é casado pensa nas coisas do mundo e em como agradar à mulher. Ver-se-á qual a obra de cada qual, porque o dia a descobrirá, o dia da tribulação, pois será manifestada pelo fogo. Chama fogo à tribulação mesma, como se lê noutra parte: O fogo prova as vasilhas de terra; a tribulação, os homens justos. E também: O fogo descobrirá qual a obra de cada qual. Se a obra de alguém, sobreposta, permanecer (e permanecem os pensamentos dados a Deus e o cuidado de agradar-lhe), receberá a recompensa, quer dizer, receberá o fruto de seus pensamentos. Mas, se a obra de outro se queimar, será seu o dano, porque não terá o que amara. Não obstante, não deixará de salvar-se, pois a tribulação não o separou desse fundamento, embora como que pelo fogo, pois não perderá sem dor ardente o que possuiu com amor atraente. Eis descoberto um fogo que, segundo me parece, não prejudica nenhum dos homens de quem falamos, mas enriquece um deles, causa dano ao outro e põe à prova os dois. 3. Se quiserem, nesse lugar entendamos aquele fogo de que dirá o Senhor aos da esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, de forma a nele incluirmos esses que sobre o fundamento edificam madeira, feno e palha. Mas pensemos que, pelos méritos desse fundamento, esses se verão livres desse fogo, depois de atormentados algum tempo por causa de seus pecados. Que devemos pensar dos da direita, a quem se dirá: Vinde, benditos de meu Pai, possuir o reino que vos está preparado, senão tratar-se daqueles que sobre o fundamento edificaram ouro, prata e pedras preciosas? Se, pois, entendemos desse modo o fogo de que fala o Apóstolo, ao dizer: embora como que pelo fogo, devem ser-lhe arrojados uns e outros, quer dizer, os da direita e os da esquerda. E uns e outros devem ser provados pelo fogo de que se disse: O dia descobrirá a obra de cada qual, pois será manifestada pelo fogo e o fogo provará qual a obra de cada qual. Se ambos serão provados pelo fogo, a fim de um deles, se suas obras permanecerem, quer dizer, não forem consumidas pelo fogo, receber a recompensa, e o outro, se suas obras arderem, receber seu castigo, sem dúvida esse fogo não é eterno. Só os da esquerda serão enviados ao fogo eterno, para sua eterna e suprema condenação. Esse fogo de que fala o Apóstolo prova os da direita. Mas prova-os de tal maneira que não queima o edifício de alguns e queima o de outros. Não queima o edifício daqueles que puseram Cristo por fundamento dele. Assim, salvar-se-ão todos, pois colocaram Cristo por fundamento e o amaram com grande amor. E, se se salvarão, estarão com certeza à direita e com os demais ouvirão estas palavras: Vinde, benditos de meu Pai, possuir o reino que vos está preparado. E não à esquerda, onde estarão os que não hão de salvar-se e, por sua vez, ouvirão: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno. Nenhum desses se livrará do fogo, porque irão todos para o suplício eterno, em que o verme não morrerá e o fogo não se apagará. Aí serão atormentados noite e dia pelos séculos dos séculos. 4. Se se diz que durante o espaço de tempo que mediará entre a morte e esse dia que, depois da ressurreição dos corpos, será o último dia da remuneração e da condenação, as almas estarão expostas ao ardor de fogo que não sentirão aqueles que nesta vida não hajam tido costumes e afeições dignas de consumir-lhes a madeira, o feno e a palha e que os que hajam construído edifício semelhante sentirão o fogo de tribulação transitória que, quer somente ali, quer aqui e ali, quer aqui para não acontecer ali, abrase os pecados inumeráveis, embora veniais, a isso não me oponho, porque talvez seja verdade. A morte do corpo, que é fruto do primeiro pecado e cada qual sofrerá a seu tempo, pode formar parte dessa tribulação. As perseguições contra a Igreja, que lhe coroaram os mártires e todos os cristãos padecem, são como fogo que prova os diferentes edifícios, consome alguns com seus edificadores, se neles não encontra Cristo por fundamento, e, sem tocar em seus autores, queima outros, se o encontra. Esses salvar-se-ão, embora após o castigo. Outros não os consome, porque os acha dignos de permanecer eternamente. Até o fim do mundo haverá também, no tempo do anticristo, perseguição sem precedente na História. Quantos edifícios de ouro ou de feno se levantarão então sobre o ótimo fundamento, Jesus Cristo, para o fogo provar ambos, causando gozo a uns e dano a outros, mas sem perder nem estes, nem aqueles por causa da estabilidade desse fundamento! Mas quem quer que lhe anteponha, não digo a mulher, de quem se serve para o deleite carnal, mas as outras pessoas, que não ama por esse fim e as ama carnalmente, à moda humana, não tem Cristo por fundamento. Esse não se salvará pelo fogo e não se salvará porque não poderá estar com o Salvador, que, falando expressamente sobre esse ponto diz: Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim. E quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é tampouco digno de mim. Quem ama carnalmente esses parentes, não antepondo-os a Cristo, nosso Senhor, e preferiria perdê-los a perder Cristo, se os submetem a essa prova, se salvará pelo fogo. De sua perda só é preciso que a dor queime quanto unira o amor. Portanto, amar, segundo Cristo, o pai, a mãe, os filhos ou as filhas e ajudá-los a conseguir-lhe o reino e a unir-se a Ele ou amá-los por serem membros de Cristo, tal amor não é edifício de madeira, de feno e palha, para ser consumido, mas de ouro, prata e pedras preciosas. Como poderia amar mais do que a Cristo aqueles que a gente ama por Cristo? CAPÍTULO XXVII Contra a sexta opinião. 1. Não resta responder senão àqueles que sustentam que só arderão no fogo eterno os que descuidem fazer esmolas por seus pecados, segundo aquelas palavras do Apóstolo São Tiago: Aguarda juízo sem misericórdia quem não usou de misericórdia. Logo, quem a pratica, concluem, embora não haja corrigido seus dissolutos costumes e viva pecadora e nefariamente em meio de suas esmolas, será julgado com misericórdia. E ou não será condenado, ou depois de algum tempo será livrado da última condenação. Creem que a separação que Cristo fará entre os da direita e os da esquerda, para enviar uns para o reino eterno e outros para o eterno suplício, se fundará unicamente na prática ou omissão da esmola. Apoiam-se, ademais, na oração dominical e dizem poderem ser perdoados pelas esmolas os pecados diariamente cometidos, por enormes que sejam. Como não há dia, prosseguem, em que os cristãos não recitem essa oração, assim também não há pecado, por cotidiano que seja, que não se perdoe por ela, sob a condição de que, quando dizemos: Perdoei-nos nossas dívidas, procuremos pôr em prática o que vem a seguir: assim como perdoamos nossos devedores. O Senhor, acrescentam, não diz: Se perdoardes os pecados aos homens, vosso Pai perdoar-vos-á os pecados leves que todo dia praticais, mas: Perdoar-vos-á vossos pecados. Presumem que os pecados, sejam de que número e qualidade forem, embora os cometam diariamente e morram sem havê-los renunciado, a esmola de perdão não negado pode perdoá-los. 2. Está bem que reparem em que se devem fazer esmolas dignas pelos pecados. Se dissessem que todos os pecados, tanto graves como leves, e todos os costumes criminosos serão perdoados por toda sorte de esmolas, admitiriam que dizem coisa absurda e ridícula. Ver-se-iam, com efeito, obrigados a confessar que um homem muito rico, por exemplo, poderia, com inverter todo dia dez cruzeirinhos em esmolas, redimir os homicídios, os adultérios e demais ações criminosas. Se dizê-lo é absurdo em ponto grande e loucura sem qualificativo, resta saber quais as esmolas dignas pelos pecados, das quais dizia o precursor de Cristo: Fazei frutos dignos de penitência. Ninguém, com certeza, achará dignas as esmolas daqueles que até à morte sepultam a vida, cometendo crimes todo dia. Primeiro, porque, roubando o próximo, dissipam muitas riquezas mais e, dando do que roubam um pouquinho aos pobres, pensam alimentar Cristo, crendo que com ela lhe compram a licença para seus desvarios, ou melhor, que a compram todo dia e com ela cometem tamanhos desatinos. Embora por um só pecado distribuíssem todos os seus haveres aos membros necessitados de Cristo, se não renunciam às suas maldades, tendo essa caridade que não age mal, ser-lhas-ia inútil semelhante liberalidade. Quem por seus pecados faz esmolas dignas, comece primeiro a fazê-las por si mesmo. É indigno não fazer a si mesmo a esmola que se faz ao próximo, ouvindo o Senhor, que diz: Amarás o próximo como a ti mesmo. E também: Apiada-te de tua alma, agradando a Deus. Quem a sua própria alma não faz a esmola de agradar a Deus, como pode dizer que por seus pecados faz esmolas dignas? Nesse sentido está também escrito: Quem é mau para consigo mesmo para quem será bom? As esmolas, pois, auxiliam as orações. Mas deve-se meditar nisto: Pecaste, filho? Para não tornares a pecar, faze oração pelas culpas passadas, a fim de te serem perdoadas. As esmolas devem ser feitas exclusivamente para que sejamos escutados quando pedimos perdão pelos pecados passados, não para que, perseverando neles, creiamos que obtivemos licença para agir mal. 3. O Senhor predisse que havia de imputar aos da direita as esmolas feitas e aos da esquerda as não feitas, a fim de com isso mostrar o valor da esmola para apagar os pecados cometidos, não para impunemente cometê-los sem cessar. Não devemos acreditar que fazem esmolas verdadeiras aqueles que se recusam a melhorar sua vida amoral. Também isto: Sempre que deixastes de fazê-lo com algum de meus pequeninos, deixastes de fazê-lo comigo, mostra que não as fazem, embora creiam que sim. Se dão pão a cristão pobre, por ser cristão, não negarão a si mesmos o pão de justiça que é Cristo, porque Deus não atende a quem se dá, mas à intenção com que se dá. Quem no cristão ama Cristo, dá-lhe esmola com o mesmo espírito com que se acerca de Cristo, não com esse espírito que o induz a, sem castigo, apartar-se de Cristo. Tanto mais alguém se afasta de Cristo quanto mais ama o que Cristo reprova. Com efeito, que lhe aproveita ser batizado, se não é justificado? Não é verdade, porventura, que quem disse: Quem não renascer da água e do Espírito Santo não entrará no reino dos céus, também disse: Se vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus? Por que são tantos os que correm a batizar-se por temor ao primeiro e tão poucos os que procuram Justificar-se por temor ao segundo? Assim como não chama idiota ao irmão quem, quando o injuria, não está enojado com o irmão, mas com seu pecado, pois doutra sorte seria réu do inferno de fogo, assim também quem dá esmola a cristão não a dá a cristão, se nele não ama Cristo, e não ama Cristo, se recusa justificar-se em Cristo. Aproveitaria muito pouco àquele que chama idiota ao irmão, injuriando-o injustamente e sem pensar em corrigi-lo, fazer esmola para obter o perdão, se não acrescenta também o remédio da reconciliação. Assim está proposto no mesmo lugar: Portanto, se, no momento de apresentares tua oferenda no altar, ali te lembras de que teu irmão tem alguma queixa contra ti, deixa ali mesmo tua oferenda ante o altar, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão e depois volta a apresentar tua oferenda. Do mesmo modo, aproveitaria muito pouco fazer grandes esmolas pelos pecados e permanecer nos mesmos costumes pecaminosos. 4. A oração cotidiana, ensinada pelo Senhor (daí seu nome de dominical), apaga os pecados de cada dia, quando todo dia se diz: Perdoai-nos nossas dividas e o que vem a seguir não apenas se diz, mas também se põe em prática: assim como nós perdoamos nossos devedores. Recita-se a oração porque se cometem pecados, não para que se cometam porque se recita. Com essa oração quis o Salvador ensinar-nos que, por mais Justamente que vivamos na frágil noite desta vida, não nos faltarão pecados pelos quais teremos necessidade de orar e de perdoar a quem nos ofenda, para que Deus nos perdoe. O Senhor não diz: Se perdoardes aos homens seus pecados, também vosso Pai vos perdoará vossos pecados, com o fim de que, confiados nessa oração, cometêssemos, em segurança, crimes diários, quer em virtude da autoridade que nos põe ao amparo dos homens, quer por astúcia, enganando os próprios homens. Queria que aprendêssemos a não pensar estarmos sem pecados, embora estejamos isentos de crimes. Assim o advertiu Deus aos sacerdotes da antiga lei, mandando-os oferecer, primeiro, sacrifícios por seus pecados e depois pelos do povo. Merecem mais pormenorizada consideração as palavras de nosso grande Senhor e Mestre. Ele não diz: Se perdoardes aos homens seus pecados, também vosso Pai vos perdoará quaisquer pecados, mas vossos pecados. Note-se que estava ensinando a oração de cada dia e falava a discípulos justificados. Que significa vossos pecados senão os pecados de que não estais isentos nem vós mesmos, que estais justificados e santificados? Os que nessa oração buscam pretexto para o cometimento diário de crimes pretendem que o Senhor falou dos pecados graves, porque não disse: Perdoar-vos-ei os leves, mas vossos pecados. Nós, ao contrário, considerando a quem se dirigia e ouvindo dizer vossos pecados, não devemos entender que essas palavras se refiram senão aos leves, porque seus discípulos já não tinham outros. Não obstante, mesmo os graves, de que é preciso a gente afastar-se por sincera conversão, não se perdoam pela oração, se não se põe em prática o que nela se diz: assim como perdoamos nossos devedores. Se, por conseguinte, as faltas, embora leves, de que não estão livres nem mesmo os santos, não se perdoam de outro modo, quão menos os enredados em crimes enormes, embora deixem de cometê-los, conseguirão o perdão, se forem inexoráveis no perdão das faltas que alguém contra eles cometer, pois diz o Senhor: Se não perdoardes os homens, tampouco vosso Pai vos perdoará! A isso aludem as palavras de São Tiago: Será julgado sem misericórdia quem não use de misericórdia. Deve-se trazer à memória o exemplo do servo devedor, a quem o amo perdoou dez mil talentos e depois obrigou a pagá-los por não haver-se apiedado de um companheiro que lhe devia cem denários. Aos filhos da promessa e vasos de misericórdia aplicam-se as seguintes palavras do mesmo Apóstolo: A misericórdia sobrepuja a justiça. Os justos que viveram em tal santidade que nos tabernáculos eternos recebem aqueles cuja amizade granjeiam pela riqueza de iniquidade chegaram a esse estado pela misericórdia daquele que justifica o ímpio e dá o prêmio segundo a graça e não segundo o merecimento. Conta-se no número desses o Apóstolo, que diz: Consegui a misericórdia para ser fiel. 5. Por outro lado, os recebidos nos tabernáculos eternos é preciso confessar não haverem vivido em tal pureza de costumes que sua vida lhes seja suficiente para se verem livres sem o sufrágio dos santos. Por isso, neles a misericórdia avantaja-se em muito à justiça. Não obstante, não se deve crer que o malvado que não haja dado a sua vida num sentido melhor ou mais tolerável será recebido nos tabernáculos eternos por haver granjeado a amizade dos santos pela riqueza da iniquidade, quer dizer, com o dinheiro ou com os bens mal adquiridos. Ou, talvez, embora bem adquiridos, com falsas riquezas, mesmo quando a iniquidade as julgue verdadeiras porque desconhece as riquezas autênticas, que enriquecem aqueles que recebem outros nos tabernáculos eternos. Há certo gênero de vida que não é tão mau que a liberalidade nas esmolas lhe seja inútil para ganhar o reino dos céus, pois a pobreza dos santos se sustenta com ela e os torna amigos que os receberão nas eternas moradas, nem tão bom que lhe baste para adquirir tamanha felicidade, se não consegue a misericórdia. (E, seja dito entre parênteses, sempre me causou estranheza encontrar em Vergílio as seguintes palavras do Senhor: Das riquezas de origem iníqua fazei amigos, para que vos recebam nas moradas eternas. Muito parecida com essa é aquela: Quem hospeda profeta, em atenção a que é profeta, receberá premio de profeta e quem hospeda justo, em atenção a que é justo, terá galardão de justo. Descrevendo o poeta os Campos Elísios, lugar em que, segundo creem os pagãos, habitam as almas dos bem-aventurados, neles situa não apenas os que mereceram chegar a essas moradas por merecimento próprio, mas também os que, beneficiando outros, perpetuaram sua memória entre os homens, quer dizer, aqueles que merecem por outros, e, merecendo para eles, fizeram com que se lembrassem deles. E como se dissesse, coisa corrente em boca de cristão, quando, humilde, se encomenda a um dos santos: "Lembra-te de mim" e busca gravar-lhe o nome na memória, em merecendo.) Se agora perguntamos por esse gênero de vida e por esses pecados que fecham a entrada do reino dos céus e dos quais se obtém o perdão pelos merecimentos dos santos amigos, situamo-nos em questão muito difícil e muito arriscada. Por certo que, procurando até agora esforçar-me em investigá-la, nada consegui. Talvez esteja escondida por medo de que o afã de progresso míngue o cuidado de evitar os pecados. Se soubéssemos quais ou que delitos são esses em prol dos quais, apesar de sua perseverança, fortificada pelo esquecimento de qualquer emenda moral, se deve buscar e esperar a intercessão dos santos, a desídia humana envolver-se-ia, confiante, no manto dos vícios e não cuidaria de, com o auxílio de alguma virtude, desenredar-se de tal visgo. Buscaria, unicamente, ver-se livre pelos merecimentos dos outros, cuja amizade granjeou com o tesouro de iniquidade e dando esmolas. Por outro lado, enquanto desconhecemos esse gênero de pecado venial, embora exista, aplicamos o afã de melhora na vida, instando com mais vigilância na oração, e não desdenhamos de com o tesouro de iniquidade granjear a amizade dos santos. 6. Esse livramento, obtido por suas orações ou pela intercessão dos santos, previne, é verdade, a condenação ao fogo eterno, mas não vai ao ponto de, após certo tempo de expiação, retirar das chamas o culpado nelas precipitado. Aqueles mesmos que pensam que o que está escrito da terra boa que dá fruto em abundância, uma trinta, outra sessenta e outra cem, se deve entender referente aos santos, que, segundo a diversidade de seus merecimentos, uns renderão trinta, outros sessenta e outros cem, costumam acreditar que isso acontecerá no dia do juízo final e não depois. Conta-se que, vendo que com essa opinião os homens se prometiam perversa impunidade, pois desse modo, ao que parece, todos podem ser salvos, certa pessoa respondeu com muito acerto que cada qual deve viver retamente para com sua vida lograr ser do número dos que hão de interceder pelo livramento dos demais. E acrescentou: Não vão ser tão poucos os intercessores, que, completando logo cada qual seu número, um trinta, outro sessenta e outro cem, fiquem muitos sem poder ser livrados das penas e entre esses se encontrem os que com vaníssima temeridade puseram em fruto alheio a esperança. Baste, pois, haver respondido a esses que, não desprezando a autoridade das Sagradas Letras, que nos são comuns, mas entendendo-as de modo errado, não descobrem nelas o sentido que têm, mas o que querem. E, feito isso, ponhamos, como prometemos, fim a este livro. LIVRO VIGÉSIMO SEGUNDO O objeto deste livro é o fim devido à Cidade de Deus, quer dizer, a eterna felicidade dos santos. Dá-se solidez à fé na ressurreição dos corpos e explica-se em que consistirá. A obra termina com exposição sobre a vida dos bem-aventurados em seus corpos imortais e espirituais. CAPÍTULO I A criação dos anjos e dos homens. 1. Como prometi no livro anterior, este, o último da obra, girará todo ele em torno da felicidade eterna da Cidade de Deus. E digo eterna não porque haja de durar muito tempo e finalizar algum dia, mas porque, como está escrito no Evangelho, seu reino não terá fim. A sucessão das gerações humanas, em que uns morrem para deixar lugar a outros, não é sequer imagem da eternidade. Assemelham-se à árvore de folha perene, que parece conservar sempre o mesmo verdor, enquanto vão caindo umas folhas e brotando outras, perpetuando-se assim a aparência de seu frescor. Nela todos serão cidadãos imortais e os homens alcançarão o que os santos anjos nunca perderam. Deus, seu onipotentíssimo Fundador, fará essa maravilha. Prometeu-o e não pode mentir. Para certifica-lo, fez muitas maravilhas prometidas e não prometidas. 2. Foi Ele quem no princípio criou o mundo, povoado de seres visíveis e inteligentes, e o criou totalmente bom. Entre esses seres não fez nenhum superior aos espíritos, que dotou de inteligência e os capacitou e habilitou para contemplá-lo e possuí-lo, unindo-os pelos laços dessa sociedade por nós chamada cidade soberana e santa. Nela, o sustentáculo de sua existência e o princípio de sua felicidade é Deus mesmo, que para seus cidadãos é como que a vida e o alimento comum. Ele deu à natureza intelectual o livre-arbítrio, de sorte que, se voluntariamente abandonasse Deus, fonte de sua felicidade, em seguida cairia na mais perfeita miséria. E, sabendo de antemão que, por soberba, alguns anjos queriam bastar-se a si mesmos e constituir-se em princípio da própria felicidade, desertando assim do verdadeiro bem, Ele não os privou desse poder, julgando mais digno de sua onipotência e de sua bondade fazer bom uso dos males que não permiti-los. Com efeito, o mal não existiria, se a natureza mutável, apesar de boa e criada por Deus, bem imutável e sumo, que criou boas todas as coisas, não o houvesse feito a si mesma, pecando. Seu pecado é o melhor testemunho de a natureza haver sido criada boa. Não fosse grande bem, embora inferior a seu Criador, para ela não poderia, sem dúvida, ser mal desertar de Deus como de sua luz. Assim como a cegueira é vício do olho e indica que o olho foi criado para ver a luz e que o sentido capaz de luz é mais excelente que os demais membros (nem por outra causa seria vício para ele carecer de luz), assim também a natureza, que gozava de Deus, evidencia com seu vício que a torna miserável, porque não goza de Deus, haver sido criada boa. Deus castigou a voluntária queda dos anjos com a justíssima pena de infelicidade eterna e deu aos outros, como prêmio de sua fidelidade, a certeza de sua perseverança sem fim. Ele criou o homem reto com o livre-arbítrio e criou-o animal mortal, é verdade, mas digno do céu, se se unisse a seu Autor, e condenado à miséria congruente com sua natureza, se o abandonasse. E, prevendo que, violando a lei divina e abandonando Deus, também o homem havia de pecar, não o privou do poder do livre-arbítrio, porque previa o bem que poderia advir desse mal. Com sua graça Ele vai, com efeito, entre essa raça tão justamente condenada recrutando povo tão numeroso, que vem preencher o vazio deixado pelos anjos rebeldes. Assim, essa cidade amada e soberana, longe de ver-se defraudada no número de cidadãos, se regozija de reunir talvez mais crescido número. CAPÍTULO II A Imutável e eterna vontade de Deus. 1. É indiscutível que os maus fazem muitas coisas contra a vontade de Deus. Mas Deus é tão poderoso e tão sábio, que tudo isso que parece contrário à sua vontade tende, por sua presciência, a fins determinados para os bons e para os maus. Por isso, quando se diz que Deus muda de vontade, irando-se (trata-se de exemplo) contra aqueles a quem se mostrava favorável, mudam os homens, não Ele. As disposições do sujeito fazem-no achar Deus, de certa maneira, mudado. Sucede algo assim como quando o Sol muda para os olhos enfermos e, permanecendo idêntico em si mesmo, de suave se transforma em áspero e de delicioso em importuno. Chama-se também vontade de Deus a que Ele forma nos corações dóceis a suas ordens. Esse o sentido das seguintes palavras do Apóstolo: Deus é quem opera em nós o querer. Como se chama justiça de Deus não só a que o faz justo em si, mas também a que produz no homem que Ele justifica, assim também se chama lei de Deus a lei dos homens, mas dada por Ele. Com efeito, a homens é que Jesus se dirigia, quando disse: Em vossa lei está escrito. E em determinado Salmo lemos: A lei de Deus está gravada em seu coração. Segundo essa vontade que Deus opera nos homens, diz-se que Ele quer o que na realidade não quer, mas o que faz que os seus queiram, como também se diz que conhece, quando faz com que os homens que não conhecem conheçam. Quando o Apóstolo diz, por exemplo: Mas agora que conheceis Deus, ou melhor, que sois conhecidos por Deus, não nos obriga a crer que Deus conheceu então os por Ele conhecidos já antes da criação do mundo; disse havê-los conhecido então, por haver-lhes dado então o poder de conhecê-lo. Essa classe de locução recordo-me de já havê-la explicado nos livros precedentes. Essa vontade, pela qual dizemos querer Deus o que faz com que outros, desconhecedores do futuro, queiram, quer muitas coisas que depois não faz. 2. Seus santos, com vontade santa que Ele mesmo lhes inspira, querem que se realizem muitas coisas e não se realizam. Por exemplo, oram a Deus, piedosa e santamente, em favor de alguém e não são escutados, apesar de haver sido o Espírito Santo quem os moveu a orar. Quando, inspirados por Deus, os santos querem e pedem que alguém se salve, podemos dizer: Deus quer e não o faz. Mas entendamo-lo bem, quer dizer: quer, porque faz com que esses santos queiram. Se, por outro lado, falamos de sua vontade, eterna como sua presciência, fez com certeza tudo quanto quis no céu e na terra, não só as coisas passadas ou presentes, mas também as futuras. Não obstante, antes de chegado o tempo em que determinou sucedessem as coisas que de antemão soube e assim dispôs antes de todo tempo, dizemos: Sucederá, quando Deus queira. E, se ignoramos não só o tempo em que hão de suceder, mas também se sucederão, dizemos: Sucederão, se Deus quiser. E isso não porque a Deus sobrevenha nova vontade, mas porque então sucederá o que em sua vontade imutável previra desde toda a eternidade. CAPÍTULO III Promessa de felicidade eterna para os santos e de suplício eterno para os ímpios. Por isso, para omitirmos mil e uma outras circunstâncias, como agora vemos cumprir-se em Cristo o que Deus prometeu a Abraão, ao dizer-lhe: Em tua descendência serão benditas todas as nações, assim também se cumprirá o por Ele prometido à sua própria raça, quando disse por seu profeta: Haverá céu novo e nova terra. E isto: Haverá céu novo e nova terra e não se lembrarão nem recordarão mais as tribulações passadas, mas nelas acharão alegria e júbilo. Farei a alegria e o júbilo de meu povo e de Jerusalém. Porei em Jerusalém minhas delícias, em meu povo acharei meu gozo e nunca mais se ouvirá nela a voz do pranto. E a predição feita por boca de outro profeta: Naquele tempo, todo o teu povo que se ache escrito no livro será salvo. E levantar-se-ão muitos dos que dormem no pó da terra (ou, como outros traduziram, nas fossas da terra), uns para a vida eterna e outros para ignomínia e confusão eterna. E esta outra passagem do mesmo profeta: Os santos do Altíssimo receberão o reino e reinarão até o fim do século e pelos séculos dos séculos. Pouco depois acrescenta: Seu reino será reino eterno. E outros lugares citados no Livro Vigésimo e alguns não citados da Escritura que exprimem o mesmo pensamento. Cumprir-se-á tudo isso como se cumpriram as maravilhas julgadas impossíveis pelos incrédulos. Porque quem prometeu ambas as coisas e lhes anunciou a realização futura foi Deus mesmo, ante quem tremem as divindades pagãs, segundo o testemunho de Porfírio, eminente filósofo pagão. CAPÍTULO IV Contra os sábios do mundo, que acham não possam os corpos terrenos dos homens ser transferidos para mansão celeste. Mas esses homens, tão doutos, tão sábios e tão refratários a tamanha autoridade, que, como predissera muito antes, a todas as raças impôs a lei e a esperança da ressurreição dos mortos, argumentam, ao que parece com sutileza, contra essa crença. E alegam determinada passagem do livro III Sobre a República, de Cícero. Afirma, primeiro, haverem sido Hércules e Rômulo convertidos de homens em deuses e depois diz: Seus corpos não foram elevados ao céu, porque a natureza não permite subsista noutra parte que não a terra o formado de terra. Eis o grande argumento desses sábios, cujos pensamentos o Senhor sabe muito bem serem vãos. Fôssemos almas somente, quer dizer, espíritos sem corpo, moradores do céu e ignorantes da existência de animais terrenos, não teríamos argumento muito mais forte para não lhe darmos crédito, se nos dissessem que um dia havíamos de por intermédio de maravilhoso laço, unir-nos aos corpos terrenos, para animá-los? Não diríamos que a natureza não suporta que um ser incorpóreo seja aprisionado em corpo? Todavia, a terra está cheia de espíritos que fazem os membros terrenos desenvolver-se em estreita e misteriosa união. Por que, pois, se apraz a Deus, Criador desses animais, não poderá ele elevar um corpo terreno a corpo celeste, se a alma, superior a todo corpo e portanto também ao celeste, pôde ser unida a um corpo terreno? Ou será que tão pequena partícula de terra pôde junto de si reter um ser superior ao corpo celeste, para dele receber o sentido e a vida, e o céu desdenhará receber esse ser sensível e vivo ou, uma vez recebido, não poderá reter esse ser cuja vida e cujo sentido lhe vem de substância superior a todo corpo celeste? Se isso não se faz agora é por ainda não haver chegado o tempo prefixado por Aquele que fez obra muito mais admirável, mas vulgarizada pela assiduidade e pelo costume. Por que não nos maravilha muito mais ver unidas a corpos terrenos as almas incorpóreas, superiores ao corpo celeste, que ver sublimados a moradas celestes, embora corpóreas, os corpos, embora terrenos? Porque estamos acostumados a ver a maravilha que somos e a outra não a vimos e não a somos. E certo que, olhadas as coisas à luz da razão, descobrimos ser obra divina mais admirável unir seres corpóreos a incorpóreos que unir seres diversos, uns celestiais e outros terrestres, mas, afinal, corpos com corpos. CAPÍTULO V A ressurreição da carne e aqueles que a negam. Vá lá que isso outrora haja sido incrível. Eis que o mundo já crê que o corpo terreno de Cristo foi levado para o céu. Tanto doutos como indoutos, salvo uns poucos, sábios e ignorantes, já creem na ressurreição da carne e na ascensão aos céus. Se creem coisa crível, considerem quão estúpidos são os que não a creem. E, se creem coisa incrível, também é incrível seja tão crida coisa incrível. Deus predisse estas duas coisas incríveis: a ressurreição eterna dos corpos e a fé do mundo nela. E predisse-as muito antes de uma delas suceder. Dessas duas coisas incríveis uma já vemos cumprida, a fé do mundo em coisa incrível. Por que, pois, se perde a esperança de que suceda o que o mundo julga incrível, se já se cumpriu coisa igualmente incrível, a fé do mundo em coisa incrível, pois essas duas coisas incríveis, das quais uma vemos e a outra cremos, foram preditas nas mesmas Letras em que repousa a crença do mundo? Se agora se considera o modo como o mundo creu, topa-se com outra coisa mais incrível. Cristo enviou ao mar deste mundo, com as redes da fé, uns quantos pescadores, sem instrução liberal e sem educação, ignorantes dos recursos da gramática, das armas da retórica e dos pomposos artifícios da retórica. E assim pescou infinidade de peixes de toda espécie, das mais raras e variadas espécies, como os filósofos. Se vos agrada (e há de agradar-vos, como não?), aos dois anteriores acrescentemos esse terceiro milagre. Eis três coisas incríveis já cumpridas. É incrível haja Cristo ressuscitado em carne e com ela subido ao céu. E incrível haja o mundo crido coisa tão incrível. E, por fim, é incrível que homens de condição humilde e ínfima, poucos e ignorantes, hajam com tanta eficácia podido persuadir ao mundo e aos sábios do mundo coisa tão incrível. Dessas três coisas incríveis negam-se nossos adversários a crer na primeira e veem-se constrangidos a contemplar a segunda, que não compreendem, se não creem na terceira. Com efeito, a ressurreição de Cristo e sua ascensão ao céu na carne em que ressuscitou já é celebrada e crida por todo o mundo. Se não é crível, donde ou por que o mundo todo a crê? Se grande número de nobres, de poderosos e de sábios dissesse havê-lo visto e desse à publicidade que o viu, não maravilha que o mundo o cresse. É coisa muito dura recusar-lhe crédito. Se, porém, como é verdade, o mundo acreditou em alguns homens, poucos em número, desconhecidos, de condição humilde e ignorantes, que diziam e escreviam que o viram, por que os poucos que ficaram enredados em sua obstinação não creem hoje no mundo que já crê? O mundo creu nesse reduzido número de homens vis, ignorantes e débeis, porque a divindade se mostrou muito mais admiravelmente em testemunhas tão desprezíveis. Sua persuasiva eloquência revelava-se em maravilhas, não em palavras. E os que não haviam visto Cristo ressuscitar e subir ao céu com seu corpo davam fé ao testemunho de alguns homens que o viram e não falavam senão em maravilhas e em portentos. Esses homens, que falavam uma língua ou, quando muito, duas, ouviam-nos todos agora falar maravilhosamente as línguas de todas as nações. Viam que, após quarenta anos de enfermidade, certo coxo de nascença se erguia e andava, a umas palavras que em nome de Cristo lhe dirigiram, que os sudários por eles tocados curavam os enfermos, que milhares de enfermos estendidos no caminho por onde haviam de passar, ao cobri-los a sombra dos caminhantes, recebiam frequentemente a cura. Viam outros muitos sinais prodigiosos por eles operados em nome de Cristo. Enfim, viam que ressuscitavam os mortos. Se admitem a realidade desses fatos, como se leem, eis grande número de coisas incríveis que vêm acrescentar-se às três anteriores. E com todos esses testemunhos aduzidos de fatos portentosos não dobramos a estranha dureza dos incrédulos para crer coisa incrível, a saber, a ressurreição da carne e sua ascensão ao céu. Se não creem haverem os Apóstolos de Cristo feito esses milagres para inculcar a crença na ressurreição e na ascensão de Cristo, basta-nos este único e estupendo milagre: o haver o orbe da terra nelas crido sem milagres. CAPÍTULO VI Roma transformou Rômulo em Deus porque nele amava seu fundador. A Igreja, por sua vez, amou a Cristo porque o considera Deus. 1. Recordemos aqui a passagem em que Cícero estranha hajam crido na divindade de Rômulo. Vou citar suas próprias palavras. Diz assim: O mais digno de admiração na apoteose de Rômulo é que os demais homens elevados à categoria de deuses viveram em séculos de menor nível cultural. Neles, a razão é mais inclinada à ficção; o vulgo, mais fácil à crença. Por outro lado, Rômulo existiu não faz ainda seiscentos anos, quando as letras e as ciências já se achavam muito florescentes e haviam dissipado os erros da inculta vida dos homens de antanho. Pouco depois, a propósito disso, fala de Rômulo nos seguintes termos: Isso leva-nos à conclusão de que Rômulo existiu muitos anos depois de Homero e nessa época era muito difícil a ficção, porque os homens já estavam instruídos e eram tempos de luz. A Antiguidade admitiu fábulas, às vezes burdas e toscas, porém o século de Rômulo já estava muito civilizado parta rechaçar, sobretudo, o impossível. Eis que um dos homens mais sábios e mais eloquentes do mundo de então, Marco Túlio Cícero, se maravilha de haverem crido na divindade de Rômulo, porque o século em que surgiu já era século de luzes e esses não admitem as fábulas. E quem acreditou que Rômulo era Deus senão Roma, ainda em fraldas de criança? Os descendentes viram-se obrigados a manter a tradição de seus maiores e, depois de haverem mamado essa superstição com o leite da mãe que ia crescendo e dilatando seu império, expandiram-na entre os povos dominados. Assim, todas as nações vencidas, sem darem fé à divindade de Rômulo, não deixavam de proclamá-lo deus, por temor de ofenderem a cidade dominadora, Roma, enganada também, se não por amor ao erro, ao menos por erro de seu amor. Quão diferente é nossa fé na divindade de Cristo! E Ele o fundador da Cidade celeste e eterna, que, porém, não o creu Deus por havê-la fundado, mas, ao contrário, mereceu ser fundada porque creu nele. Já fundada e dedicada, Roma levantou templo e nele rendeu culto a seu fundador como a deus; a nova Jerusalém, para ser construída e dedicada, pôs seu Fundador, Cristo Deus, por fundamento de sua fé. A primeira, por amor a Rômulo, acreditou-o deus; a segunda, porque Cristo era Deus, amou-o. Assim como naquela precedeu algo que a induziu a crer em falsa perfeição no amado, assim também nesta algo precedeu a sua fé, que a moveu a com reta fé e não temerariamente amar verdade e não falsidade. Sem contar os inumeráveis milagres que persuadiram da divindade de Cristo, precederam-no as divinas profecias, tão dignas de fé, cujo cumprimento não esperamos, como os patriarcas, mas já vemos verificado. Com Rômulo não se dá o mesmo. Ouve-se ou lê-se haver fundado Roma e reinado nela, mas sobre ele não há profecia alguma anterior. Quanto, porém, a haver sido recebido entre os deuses, a História aceita-o como crença, não o estabelece como fato histórico. Não há milagres que provem a realidade da referida apoteose. Fala-se, como de grande portento, de certa loba que o alimentou e ao irmão. Que é que isso significa para provar que é deus? Se é verdade que se tratava de loba autêntica e não de cortesã, o caso foi comum a ambos os irmãos e, todavia, o outro não é considerado deus. Ademais, a quem se proibiu proclamar a divindade de Rômulo, Hércules e outros personagens semelhantes? Quem preferiu morrer a ocultar sua fé? Renderia alguma nação culto divino a Rômulo, se a isso não se visse constrangida por medo ao nome romano? Quem poderá contar quantos a negar a divindade de Cristo preferiram perder a vida em mãos da crueldade e da ferocidade? Assim, o medo fundado de incorrer mesmo na mais leve indignação dos romanos constrangia alguns povos submetidos a seu império a render culto divino a Rômulo. Por outro lado, o medo, não de incorrer em ofensa leve, mas nos mais variados e horríveis suplícios e até na morte, temida mais do que nenhum outro, não pôde impedir que, pela terra toda, imenso número de mártires não apenas cresse na divindade de Cristo, mas também o confessasse de público. A Cidade de Deus, ainda peregrina na terra, mas já com grande exército de povos, não lutou com seus ímpios perseguidores por sua subsistência temporal, mas, ao contrário, não resistiu, para lograr a eterna. Os cristãos eram carregados de correntes, encarcerados, açoitados, atormentados, queimados, despedaçados, reduzidos a pedacinhos e, todavia, seu número aumentava. Seu ideal não era lutar pela incolumidade do corpo, mas desprezá-la por amor ao Salvador. 2. Não me escapa que Cícero, no livro III Sobre a República, se não me engano, sustenta que Estado bem organizado jamais empreende a guerra, salvo para conservar-lhe a fidelidade ou garantir-lhe a subsistência. Em outra passagem explica o que entende por incolumidade ou subsistência. Diz assim: Por meio de morte rápida, os indivíduos às vezes se furtam à pobreza, ao desterro, à prisão, aos açoites e a outras penas a que não se mostram insensíveis até mesmo os homens mais rudes. Mas a morte, que parece livrar de toda pena os indivíduos, é pena para a Cidade, que deve ter em sua constituição o princípio da eternidade. Assim, pois, a morte não é natural para a república como é para o indivíduo, para quem às vezes não só é necessária, mas até mesmo desejável. Quando alguma cidade se extingue, desaparece e se aniquila, é (se, guardada a proporção, cabe a comparação) imagem da ruína e destruição do mundo inteiro. Cícero fala assim porque pensa, com os platônicos, que o mundo não há de perecer. Não há dúvida, pois, de que, segundo ele, o Estado deve declarar a guerra por sua incolumidade, quer dizer, para subsistir eternamente cá na terra, como ele diz, embora os indivíduos que o compõem morram e nasçam em sucessão contínua, como as árvores de folha perene, a oliveira, o loureiro e outros, a conservam sempre fresca, caindo umas e brotando outras. A morte, segundo ele, não é pena para os indivíduos, pois com frequência os livra de outras penas, mas o é para a cidade. Pergunta-se agora (e com razão) se agiram bem os saguntinos, quando preferiram que Sagunto perecesse a violar a fidelidade por eles devida à república romana. Os cidadãos da república terrena gabam-lhes a decisão e o procedimento. Mas não vejo como possam seguir essa máxima de que a guerra não deve ser empreendida, senão pela fidelidade ou pela incolumidade. Cícero não diz qual das duas é de escolher no caso de com o mesmo risco concorrerem ambas, não sendo possível manter uma sem perder a outra. Este é o caso. Se os saguntinos escolhessem a incolumidade, deveriam atraiçoar sua fidelidade, e, se conservassem a fidelidade, como conservaram, deveriam perder sua subsistência, como na realidade sucedeu. Mas a subsistência da Cidade de Deus não se dá desse modo. Conserva-se, ou por melhor dizer, conquista-se com a fé e pela fé; perdida a fé, ninguém pode arribar-lhe às praias. Esse pensamento de coração generoso e firme é que fez tantos mártires quais não teve nem poderia ter Rômulo, que não teve nem um só a confessar-lhe a pretensa divindade. CAPÍTULO VII A fé do mundo em Cristo foi obra do poder divino, não da persuasão. Parece-me ridículo, ao falar de Cristo, recordar a falsa divindade de Rômulo. Rômulo existiu quase seiscentos anos antes de Cícero, e sua época, segundo dizem, já era tão instruída e culta, que rechaçava todo o impossível. Se assim era então, quanto mais no tempo de Cícero e, sobretudo, mais tarde, sob o reinado de Augusto e de Tibério, épocas de civilização mais avançada, a razão não poderia aguentar, como coisas de todo em todo impossíveis, a ressurreição de Cristo em sua carne e sua ascensão ao céu! Caçoariam dessa crença e não a admitiriam nem escutariam, se a divindade verdadeira ou a verdade divina e infinidade de incontestáveis milagres não lhes houvessem demonstrado a possibilidade e haver-se de fato realizado. Eis por que, a despeito das mais numerosas e encarniçadas perseguições, se acreditou fidelissimamente e se pregou com intrepidez a ressurreição e a imortalidade da carne, que precederam em Cristo e se realizarão no século futuro em todos os homens. Eis por que essa crença foi semeada em todo o orbe, para germinar e reverdejar com mais vitalidade, fecundada pelo sangue dos mártires. Liam-se as predições dos profetas e acrescentavam-se-lhes os portentos e os milagres. Viu-se tratar-se de verdade nova para o costume, não, porém, contrárias à razão. E um dia o orbe que a perseguia com furor passou a abraçá-la com a fé. CAPÍTULO VIII Os milagres de então e os de agora. 1. Por que, replicam, não se fazem agora esses milagres que, segundo vós, se faziam então? Poderíamos dizer haverem sido necessários antes de o mundo crer, para o mundo crer. Quem hoje em dia peça milagres para crer converte-se em grande milagre, pois não crê, quando o mundo todo Já crê. Mas falar assim parece fazer duvidar da realidade dos milagres de então. A que se deve o publicar-se com tanta fé por todas as partes haver Cristo subido ao céu com sua carne? A que se deve que em séculos de luzes, em que se rechaça todo o impossível, haja, ao que parece, o mundo crido, sem milagres, coisas maravilhosamente incríveis? Preferem dizer que eram críveis e por isso foram cridas, Por que então não as creem também eles? Nosso dilema é breve: ou as coisas incríveis que se realizavam e todos viam persuadiram coisa incrível que ninguém via ou era tão crível que não necessitava de milagres para ser crida. Essa resposta é muito apropriada para responder aos mais vaidosos. Não se pode negar haverem-se operado muitos milagres para afirmar o grande e salutar milagre de haver Cristo ressuscitado e subido ao céu com sua carne. Estão consignados nas veracíssimas Letras, que referem a realidade dos milagres e a verdade que intimavam. Os milagres manifestaram-se para dar fé e a fé por eles dada manifestou-os com maior clareza. Leem-se aos povos para que os creiam, mas não lhos leriam, se já não os cressem. Também agora se fazem milagres em seu nome, quer por seus sacramentos, quer pelas orações ou pelas relíquias dos santos, porém sua fama e sua glória não se estendem como as daqueles. O cânon das Sagradas Letras, que convinha estar definido, faz com que aqueles milagres sejam apregoados por todas as partes e se fixem na memória de todos os povos. Estes, ao contrário, não são conhecidos senão nos lugares em que se realizam e a cidade inteira maios conhece. Com frequência, nas cidades, sobretudo nas grandes, uns poucos os conhecem, os demais os ignoram. Acrescentai que os fiéis que os contam aos fiéis de outras regiões não têm sua autoridade abonada por reconhecimento que não deixe lugar a dúvida. 2. O milagre operou-se em Milão, onde na época me encontrava. Certo cego recobrou a vista. E esse chegou ao conhecimento de muitos. A cidade é populosa e nela o imperador estava então. O milagre aconteceu em presença de imensa massa de povo, que concorria a venerar os corpos dos mártires Gervásio e Protásio. Esses corpos, que estavam enterrados e eram quase desconhecidos, foram em sonho revelados ao bispo Ambrósio. Nesse lugar, o cego, dissipadas as trevas dos olhos, viu a luz. 3. Quem, salvo reduzido número de pessoas, ouviu falar em Cartago da cura de Inocêncio, outrora advogado da Prefeitura, cura presenciada por mim? Era homem piedoso e, como ele, todos os de sua casa. Nela havia-nos hospedado a meu irmão Alípio e a mim, que vínhamos de além-mar; ainda não éramos clérigos, mas já nos havíamos engajado no serviço de Deus. Morávamos então com ele. Os médicos tratavam-lhe numerosas e profundas fístulas hemorroidais. Já lhes haviam feito incisões e aplicado no caso todos os remédios que sua arte lhes oferecia. A operação fora muito dolorosa e muito demorada. Os médicos haviam, por inadvertência, deixado uma fístula por demais oculta. Como não a viram, não lhe aplicaram o bisturi. Assim, enquanto curavam e cuidavam de todas as fístulas abertas, a outra tornava inúteis todas as suas curas. O enfermo já desconfiava da demora e temia enormemente nova incisão. Esse o prognóstico feito por outro médico doméstico seu, a quem os outros não haviam permitido nem mesmo assistir como simples testemunha à operação, e seu amo, em acesso de cólera, expulsara de casa e depois recebia com dificuldade. Então, o enfermo exclamou: Quê! Ides operar-me outra vez? Vai cumprir-se o prognóstico daquele a quem não quisestes nem como testemunha? Começaram a caçoar da ignorância do companheiro e a tranquilizar o enfermo com boas palavras e belas promessas. Passaram muitos outros dias ainda e viam-se frustradas todas as tentativas. Os médicos persistiam em sua promessa de curar a hemorragia, não com o bisturi, mas com medicamentos. Chamaram outro médico, já de idade avançada e perito na arte, por nome Amônio. Examinado o lugar dolorido, deu o mesmo parecer que os outros. Crendo-se já fora de perigo, o enfermo, guiado pela autoridade de Amônio, com alegre hilaridade zombava do médico doméstico seu e do prognóstico da nova operação. Que mais? Depois de muitos dias, inutilmente transcorridos, acabaram confessando, cansados e confusos, haver esta solução apenas: o bisturi. Atônito, pálido e turbado, o enfermo até perdeu a fala. Após voltar a si e recobrada a fala, mandou que se retirassem e não mais lhe pusessem os pés em casa. Depois de muito chorar e impelido pela necessidade, lançou mão do último recurso. Chamou certo Alexandrino, célebre cirurgião da época, para fazer o que não permitira fizessem os outros. Veio e, depois de, pelas cicatrizes, haver admirado a habilidade dos que antes o trataram e cônscio de seu dever de homem de bem, aconselhou-o a tornar a chamar os primeiros, para gozarem do fruto de seus esforços. E acrescentou que a única solução era nova incisão, mas não estava de acordo com seus hábitos empalmar a glória de cura tão adiantada a homens cujo saber, perícia e cuidados admirava nas cicatrizes. O enfermo reconciliou-se com seus médicos e aprouve-lhe que, com a assistência do mesmo Alexandrino, abrissem com o bisturi aquela fístula, incurável, segundo o parecer unânime desses médicos. A operação ficou marcada para o dia seguinte. Havendo-se retirado os médicos, caiu o enfermo em tristeza tão profunda, que toda a sua casa se encheu de dor e mal podíamos conter as lágrimas, dessas que a gente chora por defunto. Visitavam-no todo dia santos homens, como Saturnino, de feliz memória, então bispo de Uzala, o presbítero Geloso e os diáconos da Igreja de Cartago. Entre eles (o único sobrevivente), Aurélio, bispo cujo nome deve ser cercado de respeito, com quem, considerando as maravilhosas obras de Deus, conversei muitas vezes sobre o caso, de que se recorda perfeitamente. Costumava visitar o enfermo pela tarde. E o enfermo rogou-lhe, com lágrimas nos olhos, se dignasse na manhã seguinte assistir-lhe aos funerais antes que aos sofrimentos. Haviam-lhe causado tal medo as incisões precedentes, que não duvidava morrer em mãos dos médicos. Consolaram-no e exortaram-no a confiar em Deus e a virilmente aceitar-lhe a vontade. Em seguida, pusemo-nos a orar e, estando ajoelhados como de costume e prostrados em terra, arrojou-se com tal impetuosidade, que parecia que alguém o houvesse bruscamente impelido, e começou a orar também. Quem poderá explicar com palavras de que modo orava, com que afeto, com que unção, com que rio de lágrimas, com que gemidos e soluços, que lhe sacudiam todo o ser e quase lhe afogavam o espírito? Não sei se os demais oravam e se tudo isso não os distraía. Só sei que eu não podia orar. Apenas disse no coração: Se não escutas Senhor, essas preces, que preces de teus servos escutarás? Parecia-me impossível acrescentar-se-lhes mais nada, senão expirar, orando. Erguemo-nos e, recebida a bênção do bispo, retiramo-nos, rogando-nos o enfermo que voltássemos pela manhã, exortando-o eles a ter coragem. Brilhou o dia, esse dia tão receado. Como prometeram, apresentaram-se os servos de Deus. Entraram os médicos e, ante o estupor de todos os presentes, aprestaram tudo quanto a hora pedia, tirando os terríveis instrumentos cirúrgicos. Os de maior autoridade entre os circunstantes consolam o enfermo, dando-lhe ânimo, enquanto é colocado no leito na postura mais cômoda para as incisões. Soltam as bandagens, descobrem a ferida e o médico examina. Busca e rebusca a fístula que havia de operar. Perscruta com os olhos, apalpa com os dedos, usa de todos os meios a seu alcance. Encontrou, por fim, cicatriz muito bem consolidada. Minhas palavras são flébeis para exprimir a alegria, o louvor e a ação de graças que, entre lágrimas de contentamento, brotou da boca de todos a Deus, misericordioso e onipotente. A cena presta-se mais a meditação que a palavras. 3. Em Cartago mesmo, Inocência, mulher muito piedosa e distinta dama da cidade, sofria de câncer no seio, enfermidade, segundo a ciência médica, incurável. É costume cortar-se e separar-se do corpo o membro afetado; quando não, deve-se omitir todo tratamento, com o fim de prolongar um pouco a vida do canceroso, que, segundo Hipocrates opina, há de morrer mais cedo ou mais tarde. Dissera-lho um médico sábio e muito familiar na casa e a dama, orando, encomendou-se apenas a Deus. Nas proximidades da Páscoa, foi advertida, em sonho, que a primeira mulher que encontrasse na parte voltada para o batistério, lhe fizesse o sinal da cruz sobre o membro dolorido. Fê-lo e no mesmo instante recobrou a saúde. Auscultando-a depois e vendo-a saníssima, o médico que lhe aconselhara não aplicar remédio algum, se quisesse viver um pouco mais, perguntava-lhe com insistência qual aplicara. Desejava, como se pode ver, ficar conhecendo remédio que o próprio Hipócrates desconhecera. Contou-lhe a dama o sucedido e ouviu-a o médico com voz e rosto desdenhosos; tanto assim, que a mulher temia ouvi-lo proferir palavras injuriosas a Cristo. Contam haver o médico respondido com religiosa educação: "Eu pensava que ias contar-me algo maravilhoso!" E a dama, já fremendo de horror, replicou: "Que maravilha é haver-me Cristo curado de câncer, se Ele ressuscitou um morto de quatro dias?" Ouvindo o caso, sem poder consentir que permanecesse oculto milagre tão notável, operado naquela cidade e em prol de pessoa tão distinta, pensei em passar-lhe boa reprimenda e até mesmo em brigar com ela. Inocência respondeu-me hão havê-lo caiado. Então perguntei a várias senhoras muito amigas suas, que na ocasião talvez estivessem com ela, se sabiam do caso. Responderam-me desconhecê-lo em absoluto. "Olha Gomo o divulgas, repliquei-lhe, que dele nem tuas amigas íntimas se inteiraram!" E logo fiz que o contasse, pois me referira muito por cima o caso, e o fizesse tintim por tintim e na ordem em que sucedera. Ouvindo-o, maravilharam-se grandemente as damas e glorificaram a Deus. 4. Quem conhece o caso na mesma cidade acontecido com certo médico que sofria de podagra? Já dera o nome para o batismo. Na noite que lhe precedeu o batismo viu em sonho algumas crianças negras e de compridas crinas, que pensou serem demônios e lhe proibiram batizar-se nesse ano. O médico não lhes obedecia e as crianças, pisando-lhe os pés, faziam-no padecer dores mais agudas que nunca. Não obstante, foi batizado, a despeito delas, e no ato do batismo ficou livre não apenas das extraordinárias dores, como também da podagra, sem que dar por diante haja recaído nela, apesar de viver longos anos. Conhecemo-lo e conosco reduzido número de irmãos, a quem puderam chegar os rumores. 5. Antigo ator teatral de Curube com o batismo ficou curado de paralisia e de hérnia. Da fonte da regeneração saiu livre de ambas as moléstias, como se não houvesse tido nenhum mal no corpo. Além de Curube e de raríssimos outros que hajam podido ouvi-lo, quem conhece esse milagre? Ao termos notícia do caso, por ordem do santo bispo Aurélio fizemos o homem vir a Cartago, apesar de os informes no-los haverem dado pessoas de cuja fidelidade não podíamos duvidar. 6. Há em nossa vizinhança certo homem de família tribunícia. Chama-se Hespério e possui no território de Fussala a propriedade agrícola conhecida pelo nome de Zubedí. Havendo visto que em casa os espíritos malignos lhe atormentavam os servos e os animais, rogou a nossos sacerdotes, em minha ausência, fosse ali ter algum deles, para com suas orações afugentá-los. Foi um e, com as mais fervorosas orações, ofereceu no local o sacrifício do corpo de Cristo, para cessar a vexação. E pela misericórdia de Deus, cessou no mesmo instante. De amigo seu Hespério recebera um pouco de terra santa trazida de Jerusalém, onde Cristo foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia. Pendurara-a no quarto, para pôr-se a salvo das incursões demoníacas. Quando lhe purificaram a casa, perguntou o que faria da terra, que não queria, por questão de reverência, continuar guardando no quarto. Por acaso sucedeu que um belo dia meu colega Maximino, então bispo da igreja de Sinite, e eu nos encontrássemos nas cercanias. Hespério rogou-nos que fôssemos visitá-lo. Fomos. Contou-nos o sucedido e pediu-nos enterrássemos a terra em lugar em que os cristãos se reunissem para fazer oração e celebrar os mistérios de Deus. Consentimos e assim se fez. Perto dali havia um jovem camponês paralítico. Tendo ouvido o caso, pediu aos pais que sem demora o levassem ao santo lugar. Uma vez chegado, orou. E no mesmo instante ficou em condições de poder ir-se embora por seus próprios pés, perfeitamente curado. 7. Vitoriana é o nome de propriedade agrícola distante menos de trinta milhas de Hípona, a Real. Nela existe um monumento em memória de Protásio e Gervásio, mártires de Milão. Levaram ao lugar certo adolescente, que estava, ao meio-dia e em pleno verão, banhando seu cavalo no rio, quando o possuiu o demônio. Estava estendido no chão, próximo da morte ou muito semelhante a morto, quando, ao cair da tarde, a dona da propriedade entrou, como de costume, com as criadas e algumas religiosas, a cantar os hinos vespertinos e a fazer orações. Entoam os hinos. Como que ferido por essas vozes e não podendo ou não se atrevendo a mover o altar, agarrava-o o demônio com terrível frêmito, como se estivesse atado ou cravado nele. Depois, rogando com grandes lamentos que o perdoassem, confessava onde, quando e como entrara no adolescente. Por fim, prometendo que sairia dele, ia dizendo o nome de cada um dos membros e ameaçava que, ao sair, os cortaria. Enquanto dizia essas palavras, saiu do moço. Mas um olho do mal-aventurado pendia-lhe agora da bochecha, preso por tênue veia, como se fosse de sua raiz interior, e a pupila, antes negra, ficou toda branca. Ao vê-lo assim, os circunstantes (pois, ouvindo os gritos, outros acudiram e também se prostraram em oração por ele), embora contentes de ver o moço em juízo perfeito, doíam-se da perda do olho e diziam ser necessário procurar o médico. Nisso, o cunhado, que o levava ao lugar, disse: "Para devolver-lhe a vista poderoso é Deus, que afugentou o demônio, graças às orações dos santos." Em seguida, colocou como pôde o olho no lugar e amarrou-o com o lenço. Manteve-o assim durante sete dias. Ao cabo deles, encontrou-o perfeitamente curado. No mesmo local foram curados outros, cuja enumeração levaria muito tempo. 8. Conheço certa senhorita de Hipona que, havendo-se esfregado com o óleo a que o sacerdote que orava por ela misturara suas lágrimas, no mesmo instante ficou livre do diabo. Sei, ademais, que o mesmo aconteceu a determinado moço a primeira vez que um bispo, sem havê-lo visto, orou por ele. 9. Em Hipona havia um velho chamado Florêncio, homem piedoso e pobre, que vivia do ofício de alfaiate. Perdeu a roupa que cobria e, não tendo com que comprar outra, correu a orar à tumba dos Vinte Mártires, muito famosa entre nós, e pediu-lhes que o vestissem. Ouviram-no alguns moços brincalhões que por casualidade ali estavam e, ao retirar-se, seguiram-no, rindo-se dele, como se aos mártires houvera pedido cinquenta óbolos para comprar o traje de que necessitava. Mas Florêncio, continuando o caminho, viu enorme peixe revolvendo-se fora da água. Pescou-o com o auxílio dos moços e vendeu-o por trezentos óbolos a certo cozinheiro por nome Catoso, bom cristão, contando-lhe o que se passara. Dispunha-se a com o dinheiro comprar lã para a esposa fazer-lhe, como pudesse, algo com que vestir-se. Mas o cozinheiro, ao abrir o peixe, achou em seu interior um anel de ouro e, movido à compaixão e com piedoso temor, devolveu-o ao homem, dizendo-lhe: Olha como te vestiram os Vinte Mártires! 10. Levando o Bispo Prejeto a Tibilis as relíquias do gloriosíssimo mártir Santo Estevão, saiu-lhe ao encontro e acompanhou-o grande multidão de gente. Certa mulher cega dos arredores pediu que a levassem ao bispo que trazia as relíquias. Deu algumas flores que levava. Recebeu-as, aproximou-as dos olhos e no mesmo instante recobrou a vista e, com admiração dos presentes, antecedia a procissão, pulando de contentamento. Tomou depois o caminho e não mais buscou quem lhe guiasse os passos. 11. Lucilo, bispo de Sinite, vila próxima de Hipona, levava em procissão as relíquias do mesmo mártir, acompanhado do povo em massa. A fístula que já havia muito tempo o estava fazendo sofrer muito e aguardava a mão de médico familiar seu, que havia de operá-la, ficou curada no mesmo instante, ao contado da sagrada relíquia. E não mais tornou a brotar-lhe no corpo. 12. Eucário, sacerdote natural da Espanha e residente em Calama, há muito tempo padecia de litíase. Curou-o a relíquia do mesmo mártir, levada a Calama por Possídio, seu bispo. O mesmo sacerdote, outra vez presa de enfermidade que o deixou tão abatido quejá lhe haviam amarrado os polegares, ressuscitou, graças ao referido mártir. Levaram a túnica do sacerdote para tocar a relíquia, puseram-na sobre o corpo de Eucário e no mesmo instante tornou à vida. 13. Havia em Calama certo homem chamado Marcial, o mais distinto de sua classe, já entrado em anos e muito inimigo da religião cristã. Verdade é que tinha filha cristã e o genro fora batizado no mesmo ano. Vendo-o prostrado no leito de enfermo, rogaram-lhe filha e genro se tornasse cristão. Rechaçou totalmente a ideia e afastou-os de seu lado com túrbida indignação. Ao genro ocorreu-lhe ir à memória de Santo Estevão e ali orar com todas as forças para Deus conceder-lhe a graça da conversão, não diferindo para mais tarde a crença em Cristo. Orou com imensas lágrimas e com afeto de piedade sinceramente ardente. Depois, ao ir-se embora, pegou ao acaso algumas flores do altar e, como já era de noite, pô-las sobre a cabeça do enfermo. Foi dormir. E eis que, antes do amanhecer, grita que vão correndo chamar o bispo, que por acaso estava então comigo em Hípona, Responderam-lhe que estava ausente. Pediu que fossem os sacerdotes. Foram. Disse que acreditava e, em meio da admiração e do contentamento de todos, recebeu o batismo. Seu fervor foi tal, que em vida sempre teve na boca esta oração: "Cristo, recebe-me o espírito", sem saber haverem sido essas as últimas palavras do bem-aventurado Santo Estevão, quando os judeus o lapidaram. Essas foram também suas últimas palavras, pois não muito depois morreu. 14. No mesmo lugar foram curados pelo mesmo mártir dois gotosos, cidadão um deles, estrangeiro o outro. O cidadão sarou por completo e O estrangeiro teve revelação que lhe mostrou o remédio que devia aplicar, quando sentisse a dor. Aplicava o remédio e a dor acalmava-se no mesmo instante. 15. Auduro é o nome das terras em que há uma igreja e nela uma memória ao mártir Santo Estevão. Um dia uns bois desgovernados que puxavam uma carroça atropelaram com a roda um menininho que estava brincando na eira e o mataram. A mãe, tomando-o nos braços, colocou-o na mesma memória e o menininho não apenas recobrou a vida, como se mostrou completamente ileso. 16. Levaram à mesma memória o vestido de uma religiosa que morava em vizinha propriedade agrícola, chamada Caspaliana; estava gravemente enferma e desenganada dos médicos. A religiosa morreu antes de receber de volta o vestido, que tocou a relíquia. Não obstante, os pais dela cobriram o cadáver com o vestido e a defunta recobrou a vida e ficou curada. 17. Em Hipona, certo Basso de nacionalidade síria, na memória do mesmo mártir orava por uma filha sua, enferma e em perigo de vida. Levava consigo o vestido da menina. Logo, de casa chegaram correndo os criados com a notícia de que falecera. Mas, como estava em oração, os amigos detiveram-nos e proibiram-nos de transmitir-lha, por medo de que chorasse pelas ruas. Regressou a casa e, quando nela não se ouviam senão lamentos, pós sobre a filha o vestido que levava e ela voltou à vida. 18. Aqui mesmo, entre nós, morreu de doença o filho de certo coletor, de nome Irineu. Enquanto, entre gemidos e lágrimas, já se preparavam os funerais, um dos amigos do pai sugeriu a ideia de ungir o corpo do filho com o óleo do mesmo mártir. Feito isso, o menino ressuscitou. 19. O antigo tribuno Eleusino colocou um filho seu, morto de enfermidade, sobre a memória do mártir sita no arrabalde em que vivia. Depois de orar e verter muitas lágrimas, levantou-o vivo. 20. Que farei? A promessa de dar fim a esta obra urge-me e não me permite citar aqui todos os milagres que conheço. Não duvido que muitos dos nossos, quando lerem isto, se queixarão de eu haver passado por alto muitos milagres que conhecem como eu. Peço-lhes desde já que me escusem e considerem demandarem obra volumosa; nesta vejo-me constrangido a silenciá-las. Se quiséssemos referir somente, omitindo outros, as curas milagrosas operadas pelo glorioso mártir Santo Estevão em Calama e aqui em Hipona, encheríamos muitos volumes. E não seríamos, talvez, capaz de recolhê-los todos, mas apenas aqueles de que se fizeram relatórios para lê-los ao povo. Tomei essa decisão, ao ver que também em nossos dias são correntes milagres semelhantes aos antigos que não devem passar inadvertidos. Ainda não faz dois anos, as relíquias desse mártir estão em Hípona, a Real. E, embora de muitos dos milagres aí realizados não se haja feito relatório, já se contavam quase setenta, quando escrevi isso. Em Calama, onde as relíquias estão desde muito antes e os relatórios são mais frequentes, o número sobe incomparavelmente. 21. Sabemos, ademais, haverem-se operado em Uzala, colônia vizinha a Útica, muitas maravilhas por intercessão desse mártir. Evódio, seu bispo, levou ali suas relíquias muito antes de trazê-las a Hipona. Mas nessa terra não existe, ou melhor, não existia, porque talvez agora já exista, o costume de escrever os relatórios. Não faz muito, encontrando-me nesse lugar,• a certa dama da mais alta condição social, Petronia, milagrosamente curada outrora de enfermidade grave que esgotara todos os recursos dos médicos, exortamo-la, com o consentimento do bispo do lugar, a fazer o respectivo relatório para poder lê-lo ao povo. E obedeceu obedientissimamente. No relatório pôs certo dado que não posso silenciar aqui, embora me force a acelerar o passo o fim da obra. Dizia havê-la persuadido determinado judeu a trazer a nu sob as vestes uma cinta de cabelos trançados com um anel que tinha sob o engaste uma pedra encontrada nos rins de um boi. A senhora, vinha com essa aparente cinta à igreja do santo mártir. Mas um dia partiu de Cartago para viver em propriedade agrícola às margens do rio Bagrada e, ao levantar-se para empreender a viagem, viu muito admirada, o anel a seus pés. Apalpou a cintura para ver se estava com a cinta e, achando-a bem amarrada, supôs que o anel se quebrara e escorregara. Examinou-o e, como estivesse perfeitamente inteiro, tomou o prodígio como penhor de próxima cura. Soltou a cinta e arrojou-a com o anel ao rio. Não creem nesse milagre os que não creem haver nosso Senhor Jesus Cristo nascido sem romper a integridade virginal da mãe e aparecido ante os discípulos a portas fechadas. Informem-se, pelo menos, do referido fato e, se o julgarem verdadeiro, creiam nele. É•senhora muito ilustre, bem nascida, casada com homem nobre e mora em Cartago. A cidade é grande e conhecida a pessoa, circunstâncias que não permitem ocultar o fato a quem dele busque saber. O mártir, pelo menos, por intercessão de quem se operou o milagre, acreditou no Filho da Virgem sempre virgem, acreditou naquele que surgiu ante os discípulos a portas fechadas. Em uma palavra, pois é ao que se encaminha tudo quanto vimos dizendo, creu naquele que subiu ao céu com a carne em que ressuscitara. E o segredo de que por sua intercessão se operem tais maravilhas é haver entregue a vida pela fé. Ainda hoje, pois, se realizam muitos milagres e realiza-os o mesmo Deus que fez os que lemos e pelas pessoas que quer e como quer. Mas os últimos não são tão conhecidos nem, para que nela se imprimam, sua leitura frequente golpeia como pedra a memória. Porque mesmo onde têm o cuidado, que começou a tomar corpo entre nós, de ler ao povo os relatórios feitos pelos agraciados, os presentes os ouvem uma vez, porém, muitos estão ausentes. E as pessoas que os ouvem com dificuldade os retêm na memória alguns dias e não é fácil encontrar-se alguém que a quem não assistiu à leitura conte o que ouviu. 22. Entre nós sucedeu milagre não maior que os referidos, porém, tão conhecido, que acho não haver pessoa alguma em Hipona que não o haja visto ou não haja ouvido falar dele e de cuja memória algum dia se apague. Dez irmãos (sete homens e três mulheres), oriundos de Cesaréia da Capadócia e de condição não humilde, havendo-os recentemente amaldiçoado a mãe, por causa de injúrias que lhe fizeram após a morte do pai, foram castigados com castigo consistente em horrível tremor de membros. Não podendo suportar os olhares da gente da terra, foi, cada qual por seu lado, vagamundear por quase todo o Império Romano. Dois deles chegaram à nossa cidade, um irmão e uma irmã, Paulo e Paládia, já conhecidos em muitos outros lugares pela notoriedade de sua miséria. Chegaram uns quinze dias antes da Páscoa. Visitavam todo dia a igreja e nela a memória do gloriosíssimo Santo Estevão, rogando a Deus se apiedasse deles e lhes devolvesse a saúde. Aí e aonde quer que fossem atraíam os olhares do povo. Quem os vira em outra parte e conhecia a causa do tremor contava-o, a seu modo, aos demais. Chegou a Páscoa e, no domingo de manhã, quando grande número de pessoas já enchia a igreja, o moço, agarrado ao gradil do santo lugar onde estavam as relíquias do mártir, orando, caiu de repente e ficou estendido no chão, como se estivesse dormindo. Mas não tremia, como costumava fazer durante o sono. Em alguns o acidente infundia dor; em outros, temor. Uns queriam levantá-lo, outros, porém, o proibiam, dizendo ser melhor esperar o desenlace. Eis que o moço se levantou, sem tremor, porque sarara e estava perfeitamente bem olhando os curiosos. Quem não louvou a Deus então? Enchem-se de vozes, clamores e felicitações as naves da igreja. Correm a mim, que já me preparava para sair. Vinham uns atrás dos outros, contando o último o mesmo que o primeiro contara. Eu, alvoroçado e dando intimamente graças a Deus, vi o agraciado chegar em meio da multidão. Prostrou-se-me aos pés, abracei-o e ergui-o. Dirigimo-nos ao povo. Estava apinhada a igreja. Ressoavam as exclamações de júbilo e aqui e ali se ouviam estas palavras apenas: Graças a Deus! bendito seja Deus! Cumprimentei o povo e ouviu-se novo clamor, mais fervoroso ainda. Por fim, já em silêncio, foram lidas as lições da divina Escritura. Ao chegar à passagem de meu sermão, dirigi algumas palavras, de acordo com o tempo e a grandeza daquela alegria, pois a que me escutassem as palavras preferi admirassem a eloquência de Deus em obra tão grandiosa. O homem comeu conosco e contou-nos pormenorizadamente toda a história de sua desgraça e da de sua mãe e irmãos. No dia seguinte, depois do sermão, prometi ao povo ler-lhe o relatório do acontecido. No terceiro dia, após o domingo de Páscoa, ao fazer a leitura prometida, fiz com que colocassem o irmão e a irmã sobre os degraus do púlpito, donde era meu costume falar. O povo todo olhava-os atentamente, um em atitude tranquila, tremendo da cabeça aos pés a outra. Quem não os vira antes, agora via na irmã. o que a divina misericórdia fizera no irmão. Viam o que nele deviam agradecer e o que deviam pedir para ela. Quando terminou a leitura do relatório, mandei retira-los da vista do povo. Eu começara a fazer algumas reflexões sobre a história, quando se ouvem novas palavras de júbilo, procedentes da memória do mártir. Voltaram-se para lá os ouvintes e iam-se aproximando em massa. A moça descera os degraus e fora orar ao mártir. Mal tocou o gradil, caiu como que em sono e levantou-se curada. Enquanto perguntávamos o que se passara e a que se devia o alegre vozerio entraram com ela na basílica, trazendo-a curada, da tumba do mártir. Então, da boca de homens e mulheres brotou explosão de júbilo, e suas vozes, metade contentamento, metade lágrimas, se prolongaram indefinidamente. Conduziram-na ao lugar onde pouco antes estivera tremendo, e os que antes se haviam compadecido dela agora não cabiam em si de contentamento, ao vê-la. Louvavam a Deus porque ainda não haviam orado por ela e já lhes ouvira Ele as preces. Gritavam em louvor a Deus não palavras, mas vozes sem sentido, tão fortes, que nossos ouvidos mal podiam aguentá-las. Que havia nos corações desse povo tão jubiloso senão a fé em Cristo, pela qual Santo Estevão derramara o sangue? CAPÍTULO IX Os milagres dos mártires dão testemunho de sua fé. De que dão fé esses milagres senão da fé que prega a Cristo ressuscitado e subido ao céu em corpo e alma? Os mártires foram os mártires, quer dizer, as testemunhas dessa verdade. E por ela suportaram um mundo hostil e cruel e venceram-no, não resistindo, mas morrendo. Em prol dessa fé morreram os que tiveram a felicidade de conseguir essa graça do senhor, por causa do nome de quem foram mortos. Em prol dessa fé precedeu sua admirável paciência e seguiu nesses milagres tão grande poder. Porque, se não é verdade haver-se a ressurreição manifestado primeiro em Cristo e dever efetuar-se em todos os homens, tal como o anunciou Cristo e o predisseram os profetas, por quem Cristo foi anunciado, por que têm tanto poder os mortos martirizados pela fé que prega a ressurreição? Com efeito, quer Deus mesmo opere esses milagres de acordo com o modo maravilhoso com que o eterno opera nos efeitos temporais, quer os opere por seus ministros e, nesse último caso, quer como ministros empregue em alguns os espíritos dos mártires, como a homens ainda com corpos, ou em todos eles os anjos, a quem manda invisível, imutável e incorporalmente, interpondo os mártires somente preces, não intervenção ativa, quer os opere de qualquer outra maneira incompreensível para os mortais, o certo é que sempre dão testemunho da fé que prega a ressurreição eterna da carne. CAPÍTULO X Superioridade do culto aos mártires sobre o culto aos demônios. Talvez aqui os adversários repliquem haverem também seus deuses feito maravilhas. Bem. Já é algo comparar seus deuses com nossos homens mortos. Dirão terem também deuses feitos de homens mortos, como Hércules, como Rômulo e outros muitos que julgam elevados à categoria de deuses? Para nós, nossos mártires não são deuses, porque sabemos ser um só e o mesmo nosso Deus e o dos mártires. Contudo, os milagres que os pagãos pretendem operados pelos templos de seus deuses não são comparáveis aos feitos pelas memórias de nossos mártires. Mas, se alguns parecem da mesma ordem, nossos mártires superam-lhes os deuses, como Moisés venceu os magos do faraó. Aqueles fizeram-nos os demônios com a arrogância de sua impura soberba, que os induziu a quererem ser seus deuses; ao contrário, os mártires fazem estes, ou melhor, Deus, pela oração e auxílio deles, com o fim de estender mais e mais a fé que nos move a crer não que os mártires são nossos deuses, e sim que seu Deus é o mesmo que o nosso. Finalmente, os pagãos edificaram templos a seus deuses, erigiram-lhes altares, instituíram sacerdotes para servi-los e ofereceram-lhes sacrifícios. Nós, porém, não elevamos templos a nossos mártires, como a deuses, e sim memórias, como a homens mortos, cujos espíritos vivem diante de Deus. Não erigimos altares aos mártires para oferecer-lhes sacrifícios, mas ao Deus único, Deus dos mártires e nosso. São, nesse sacrifício, nomeados em seu lugar e em sua ordem como homens de Deus que venceram o mundo, confessando seu nada. O sacerdote que oferece o sacrifício não os invoca, porque o oferece a Deus e não a eles, embora o ofereça em suas memórias. E sacerdote de Deus, não dos mártires. O sacrifício é o corpo de Cristo, que não se oferece aos mártires, porque também são esse corpo. A quem se deve crer mais, quando fazem milagres? Àqueles que anseiam os tenham por deuses os agraciados ou àqueles que fazem milagres para a gente crer em Deus e, portanto, em Cristo? Aqueles que quiseram se lhes consagrassem suas próprias torpezas ou àqueles que não querem se lhes consagrem nem seus louvores, mas, ao contrário, anseiam que seus autênticos louvores redundem em glória daquele em quem os louvam? No Senhor são louvadas suas almas. Creiamos, pois, nos que dizem a verdade e fazem maravilhas, visto como por dizerem a verdade sofreram e alcançaram o poder de operar maravilhas. Entre essas verdades, a principal é Cristo haver ressuscitado dentre os mortos e deixar ver em sua carne a imortalidade da ressurreição, que nos prometeu para o princípio do novo século ou para o fim deste. CAPÍTULO XI Contra os argumentos em que os platônicos fundam a negação da ressurreição dos corpos. 1. Baseados no peso dos elementos, os racionalistas, cujos pensamentos e vaidade o Senhor conhece, argumentam contra essa graça de Deus. Ensinou-lhes Platão, seu mestre, estarem os dois maiores elementos do mundo e mais afastados um do outro unidos e enlaçados por outros dois intermédios, o ar e a água. E por isso, dizem, como, em progressão ascendente, a terra é o primeiro, a água o segundo, o terceiro o ar e o quarto o céu, nenhum corpo terreno pode estar no céu. Cada elemento está colocado segundo seu peso e assim conserva seu equilíbrio e lugar. Eis os argumentos que a presunçosa e vã debilidade dos homens opõe à onipotência de Deus. Que fazem, pois, no ar tantos corpos terrenos, se a partir da terra o ar é o terceiro elemento? Talvez se diga não poder dar aos homens, uma vez imortais, virtude e capacidade para morarem no céu mais elevado aquele que, dando aos corpos terrenos das aves leveza de plumas e asas, lhes deu o voarem pelo ar! Os animais terrenos incapazes de voar, como, entre outros, os homens, deviam viver sob a terra, como os peixes, que são animais aquáticos e vivem sob a água. Por que, pois, animal terreno não toma sua vida sequer do segundo elemento, a água, e não do terceiro? Por que, pertencendo à terra, se o obrigam a viver no segundo elemento, na água, se afoga e, no entanto, vive no terceiro? Há no caso erro, porventura, na ordem dos elementos ou a falha não está na natureza das coisas, e sim nos argumentos desses racionalistas? Omito dizer o que já apontei no Livro Décimo terceiro, a saber, existirem corpos terrenos pesados, como o chumbo, a que a arte pode dar forma que lhes permita flutuar sobre a água. E nega-se ao Artífice onipotente o poder de dar ao corpo humano qualidade que o eleve ao céu e nele o mantenha? 2. Esses filósofos já não acham nada que opor a minhas considerações anteriores, mesmo ponderando a pretensa ordem dos elementos. Porque, se a terra ocupa o primeiro posto, a água o segundo, o ar o terceiro, o quarto o céu, sobre todos eles está a natureza da alma. Aristóteles mesmo diz ser o quinto corpo, e Platão nega ser corpo. Se fosse o quinto, com certeza seria superior aos demais; porém, não sendo corpo, avantaja-se em muito a todos. Que faz, pois, em corpo terreno? Que faz em massa tão grosseira, tão pesada e tão inerte o ser mais sutil, mais leve e mais ativo de todos? Não poderá natureza tão excelente elevar seu corpo ao céu? E, se agora os corpos terrenos têm a virtude de reter as almas cá embaixo, não poderão um dia as almas erguer ao alto os corpos terrenos? 3. Se passamos aos milagres de seus deuses, que opõem aos de nossos mártires, não se verificará que os fazem por nós e em proveito nosso? Entre os grandes milagres de seus deuses merece, sem dúvida, ser contado o referido por Varrão de virgem vestal que, falsamente acusada de haver violado seu voto de castidade, encheu de água do Tibre uma peneira e, sem derramar nem uma só gota, a levou a seus juízes. Quem sustinha o peso da água sobre a peneira? Quem impediu a água de cair pelos crivos? Responderão: "Algum deus ou algum demônio". Se algum deus, este é maior que o Deus que fez o mundo? Se algum demônio, este é mais poderoso que o anjo que serve a Deus, criador do mundo? Se, pois, algum deus inferior, anjo ou demônio, pôde suster o peso do úmido elemento, de sorte que, segundo parecia, a água mudara de natureza, não poderia o Deus Todo-poderoso, criador de todos os elementos, tirar, porventura, ao corpo terreno seu peso, a fim de o corpo, já vivificado, habitar onde queira o espírito que o vivifica? 4. Ademais, se o ar é elemento intermediário entre o fogo e a água, a que se deve encontrarmo-lo com frequência entre água e água ou entre a água e a terra? Que são, segundo eles, as nuvens aquosas, entre as quais e a terra se acha o ar? Por que peso, pergunto, e por que ordem de elementos pendem das nuvens, sobre o ar, as torrentes de água, muito impetuosas e abundantes, ao• invés de correrem sob o ar, sobre a terra? Enfim, por que está o ar entre a sumidade do céu e a nudez da terra, em todas as partes do mundo, se seu lugar próprio é entre o céu e a água, como o da água é entre ele e a terra? 5. Em uma palavra, se a ordem dos elementos pede, como diz Platão, estejam os dois extremos, o fogo e a terra, unidos pelos dois meios, pelo ar e a água, e o fogo ocupe o lugar mais alto do céu e a terra o mais baixo do mundo, como fundamento dele, motivo por que a terra não pode estar no céu, qual a razão de o fogo estar na terra? Segundo esse sistema, estes dois elementos, a terra e o fogo, o inferior e o superior, deveriam ocupar seus lugares próprios, de sorte que, como o inferior não pode estar no superior, assim também o superior não pudesse estar no inferior. E, como pensam que não há ou não haverá no céu partícula alguma de terra, assim também não devíamos ver na terra nenhuma porção de fogo. Contudo, vemos que o fogo não somente está na terra, mas também sob ela, e que o vomitam os picos dos montes. Vemos, ademais, que os homens empregam o fogo na terra e o vemos nascer da terra, pois nasce das madeiras e das pedras, corpos terrenos, sem dúvida. Mas esse fogo, dizem eles, é tranquilo, puro, inofensivo, eterno, e este é turbulento, carregado de vapor, corruptível e corruptor. Não obstante, não corrompe os montes e as cavernas da terra em que continuamente arde! Concedamos seja diferente daquele este fogo, a fim de servir-nos em nossas necessidades. Por que não querem que creiamos possa a natureza dos corpos terrenos, tomada algum dia incorruptível, pôr-se em harmonia com a do céu, como aquela em que agora o fogo corruptor está com a terra? Esses argumentos, fundados na ordem e no peso dos elementos, não servem para demonstrar ser impossível ao Onipotente modificar-nos os corpos de tal forma que possam habitar no céu. CAPÍTULO XII Contra as calúnias burlescas dos Infiéis. 1. Também costumam apresentar questão sem sentido e sarcástica contra nossa fé na ressurreição da carne. A pergunta é esta: "Ressuscitarão os fetos abortados?" E, como o Senhor diz: Em verdade vos digo que não perecerá nem um só fio de cabelo de vossa cabeça, acrescentam: Serão iguais em todos a estatura e a robustez ou de tamanho diferente os corpos? No primeiro caso, donde, supondo-se que ressuscitem, tomarão os seres abortados o que, ao nascerem, lhes faltava? E, se não ressuscitarão, porque não nasceram realmente, mas foram expelidos, apresentam a mesma dificuldade nas crianças mortas antes de totalmente desenvolvidas. Não podemos dizer que não ressuscitarão seres que não somente foram gerados, mas também regenerados. Ademais, perguntam qual será o modo dessa igualdade universal. Porque, se todos hão de ter a altura e a robustez daqueles que em vida foram os mais altos e robustos e cada um deles receberá à que teve cá embaixo, donde virá àqueles o que lhes falta para esse talhe? E se, como diz o Apóstolo, havemos de alcançar todos a medida da plenitude da idade de Cristo e, de acordo com isto: Deus predestinou para fazê-los conformes à Imagem de seu Filho, se entende que o corpo de Cristo será em seu reino o talhe e a medida de todos os corpos humanos, é preciso, dizem eles, rebaixar a altura de muitos e desbastar-lhas o tamanho do corpo. Como se cumprirão, nesse caso, estas palavras: Não perecerá nem um só fio de cabelo de vossa cabeça,se perecerá parte da massa corporal? No que tange aos cabelos, pode-se também perguntar se recobraremos quantos caíram às mãos do cabeleireiro. Mas, nesse caso, quem não se horrorizará de tal deformidade? Isso mesmo, sendo consequentes, deve aplicar-se às unhas. Onde ficarão o decoro e a beleza, que deve ter seus direitos mais na imortalidade que na corrupção? Se, caso os ressuscitados não o recobrem, tudo isso perecerá, como pretender que não perecerá nem um só fio de cabelo da cabeça? Apresentam as mesmas dificuldades a respeito da magreza e da gordura. Se todos os ressuscitados serão iguais, não haverá nem gordos, nem magros. Logo, a muitos acrescentar-se-á algo e a muitos tirar-se-á. Por conseguinte, não receberá cada qual o que teve, mas, ao contrário, alguns ganharão o que não tinham e outros perderão o que tinham. 2. Não menor celeuma levantam, fundados na corrupção e decomposição dos corpos mortos, dos quais parte se desvanece no pó e parte se evapora no ar. Uns são comidos pelos animais, outros, consumidos pelo fogo, outros perecem em naufrágio ou, de outro modo, na água, apodrecem e liquefazem-se. Não creem possa tudo isso ser reunido e reintegrado no corpo. Apelam também para certas fealdades ou defeitos, de nascença ou adquiridos. Nesse ponto alegam os partos monstruosos e perguntam com ar Irônico se os corpos portadores de deformidade ressuscitarão com ela. Se respondemos que tudo isso desaparecerá no corpo ressuscitado, nossa resposta acham poder contradizê-la, mostrando as cicatrizes e as chagas de nosso Senhor, pois pregamos haver Ele ressuscitado com elas. Entre todas essas questões propõem uma, a mais difícil, nestes termos: A quem voltará a carne de homem convertido em substância de outro, que, acossado pela fome, o devorou? Essa carne foi assimilada e convertida em carne daquele que vive a suas expensas e com ela encheu os vazios nele devidos à magreza. Com o fim de exporem ao ridículo a fé na ressurreição, perguntam se tornará ao primeiro homem que a possuiu ou a quem a assimilou. Assim, permitem à alma humana, como Platão, em constante alternativa, verdadeiras infelicidades e falsas felicidades ou confessam, com Porfírio, que, após diversas migrações através dos corpos, terminarão algum dia as misérias e não mais tornarão a elas, não, porém, tomando corpo imortal, e sim evitando todo corpo. CAPÍTULO XIII Resposta à objeção relativa aos fetos abortados. Prestando-me a misericórdia de Deus auxílio aos esforços, vou responder às objeções que pus na boca de meus adversários. Não me atrevo a afirmar, mas tampouco a negar, que ressuscitarão os fetos abortados que hajam vivido no útero materno e nele morrido. Não vejo, todavia, por que, se não os excluem do número dos mortos, hão de excluí-los da ressurreição. Porque das duas uma: ou não ressuscitarão todos os mortos e haverá almas humanas que permanecerão eternamente sem corpo, como as que viveram no útero materno ou, se, para ressuscitarem, todas as almas humanas tomarão o corpo que hajam tido, seja de qual for o lugar em que o hajam deixado, não acho razão para excluir da ressurreição as crianças que morreram no útero materno. Atenha-se cada qual a este ou àquele modo de pensar, deve-se aplicar aos fetos, se ressuscitarem, o que vamos dizer das criancinhas. CAPÍTULO XIV Que dizer da ressurreição das criancinhas? Que diremos das criancinhas senão que ressuscitarão e não na pequenez de corpo em que morreram? Em um instante receberão, pela onipotência de Deus, o crescimento que alcançariam com o tempo. As palavras do Senhor: Não perecerá nem um só fio de cabelo de vossa cabeça, afirmam que a gente não perderá nada do que tenha, porém, não negam possa receber o que não tinha. À criança que morre falta o desenvolvimento completo. À criança perfeita falta com certeza a perfeição do tamanho do corpo; não o alcançará, enquanto não chegar ao termo do crescimento. Essa perfeição possuímo-la todos, desde que somos concebidos, mas possuímo-la em potencial, não de fato, assim como todos os membros estão latentes no sêmen, embora aos recém-nascidos ainda faltem muitos, como os dentes e outros assim. Nessa virtude, impressa na matéria corpórea, já parece estar, de certo modo, começado, por assim dizer, o que ainda não existe, ou por melhor dizer, o que está oculto, mas existirá, ou melhor, aparecerá a seu tempo. Nela, a criança, que um dia será grande ou pequena, já é pequena ou grande. Segundo essa virtude, na ressurreição do corpo não tememos, sem dúvida, perder nada, porque, embora ressuscitemos todos iguais e com estatura de gigante, os maiores nada perderão nem se reduzirão, porque isso iria contra a palavra de Cristo, que disse não havia de perecer nem um só fio de cabelo da cabeça. Quanto aos outros, como poderia faltar à onipotência do Criador, que do nada fez todas as coisas, matéria para acrescentar, como maravilhoso artífice, o que viesse a ser necessário? CAPÍTULO XV Serão do talhe do corpo do Salvador todos os corpos ressuscitados? Uma coisa é certa: Cristo ressuscitou com a mesma estatura que tinha ao morrer e não é permitido dizer que, para igualar-se aos mais altos, em chegando o tempo da ressurreição universal, tomará tamanho que não tinha quando aos discípulos apareceu na forma em que o haviam conhecido. Se, pelo contrário, dizemos que os corpos maiores hão de reduzir-se ao tamanho do corpo do Senhor, a muitos será necessário tirar parte do corpo, contra a promessa de que não perecerá nem um só fio de cabelo. Resta, pois, dizer que cada qual receberá seu tamanho, o que teve, ou na juventude, embora haja morrido velho, ou o que havia de ter, se o arrebatou morte prematura. Quanto às palavras do Apóstolo sobre a medida da idade perfeita de Cristo, é preciso dizer terem outro motivo, qual seria o de a medida perfeita da cabeça mística encontrar seu complemento na perfeição de seus membros, de todo o povo cristão, ou, se as entendemos referentes à ressurreição dos mortos, há de a gente crer que os corpos não ressuscitarão na forma anterior ou posterior à juvenil, mas na idade e na robustez a que sabemos haver chegado Cristo. Os mais sábios dos pagãos fixaram nos trinta anos, mais ou menos, a perfeição da juventude. Depois, o homem entra em declínio e caminha para a velhice, idade achacosa. Assim, o Apóstolo não disse: "À medida do corpo" ou: "À medida da estatura", mas: À medida da idade perfeita de Cristo. CAPÍTULO XVI Como se deve entender a conformação dos santos com a Imagem do Filho de Deus? Quando fala dos predestinados a fazer-se conformes à imagem do Filho de Deus, pode-se entender que fala do homem interior. Diz-nos, por isso, noutro lugar: Não queirais conformar-vos com este século, mas, ao contrário, reformai-vos pela renovação de vosso espírito. Enquanto nos reformamos para não nos conformarmos com este século, vamo-nos conformando com o Filho de Deus. Essas palavras podem também ser entendidas no sentido de que, assim como Ele se faz conforme conosco pela mortalidade, assim também nos façamos conformes a Ele pela Imortalidade. Isso também se relaciona com a ressurreição dos mortos. Se nessas palavras, porém, se nos diz a forma em que hão de ressuscitar os corpos, a "conformação" , como a "medida" de que falei, diz respeito à idade e não ao talhe. Cada qual ressuscitará como era ou havia de ser na juventude. E, quanto à forma, pouco importará seja a de criança ou a de velho, pois então nem o espírito, nem o corpo estarão sujeitos a debilidade alguma. Daí que, se alguém sustenta que cada qual ressuscitará no mesmo talhe corporal que tinha quando morreu, não se deve lutar contra ele em laboriosa discussão. CAPÍTULO XVII Ressuscitarão as mulheres em seu próprio sexo? Baseados nestes dois testemunhos: Até chegarmos todos ao estado de homem perfeito, à medida da idade perfeita de Cristo e: Conformes à imagem do Filho de Deus, alguns concluíram que as mulheres não ressuscitarão em seu sexo, mas no do homem. Do barro Deus fez somente o homem; quanto à mulher, formou-a do homem. Tenho para mim que a verdade está do lado daqueles que creem que ressuscitarão ambos os sexos. Na ressurreição já não haverá libido, causa da confusão. Com efeito, antes de pecarem, o homem e a mulher estavam desnudos e não se envergonhavam um do outro. Então, os vícios ficarão suprimidos dos corpos, cuja natureza, no entanto, subsistirá. Pois bem, na mulher o sexo feminino não é vício, mas natureza. Além disso, então não haverá nem comércio carnal nem parto. Os membros da mulher não serão aptos para o uso antigo, e sim para a nova beleza, que não excitará a concupiscência de quem a contemple, mas glorificará a Sabedoria e a clemência de Deus, que fez o que não existia e livrou da corrupção o que fez. No princípio do gênero humano, convinha que a mulher fosse formada de costela do homem adormecido, pois isso era símbolo profético de Cristo e da Igreja. O sono de Adão significava a morte de Cristo, cujo lado a lança atravessou na cruz, após haver expirado, e dele manou sangue e água, figura dos sacramentos, com que se edifica a Igreja. A Escritura usou essa palavra. Não diz: "Formou" ou "fingiu", mas: Edificou-a em mulher. Por isso à Igreja o Apóstolo chama edifício do corpo de Cristo. A mulher é, por conseguinte, criatura de Deus como o homem, mas feita do homem para encarecer a unidade e feita desse modo para figurar, como fica dito, Cristo e a Igreja. Quem criou os dois sexos restabelecerá os dois. Ademais, interrogado pelos saduceus, negadores da ressurreição, a qual dos sete irmãos pertencia a mulher que a todos os tivera por marido, pois cada um deles quisera, segundo a norma da lei, perpetuar a posteridade do irmão, Jesus mesmo diz: Andais errados, por não entenderdes as Escrituras nem o poder de Deus. E, em ocasião tão propícia para dizer tratar-se de pergunta sem sentido, porque a mulher já não seria mulher, mas homem, não o disse, mas acrescentou: Na ressurreição nem se maridarão, nem se desposarão, mas serão como os anjos de Deus no céu. Serão iguais aos anjos, é certo, mas pela imortalidade e felicidade, não pela carne nem pela ressurreição, de que os anjos não têm necessidade, pois não podem correr. O Senhor negou que na ressurreição houvesse núpcias, não que houvesse mulheres. E negou-o em tal conjuntura, que resolveria a questão com resposta mais fácil e mais decisiva, com negar a existência do sexo feminino, se soubesse que no futuro não haveria. Mais ainda, confirmou a existência de ambos os sexos, ao dizer: Não se maridarão, o que tange às mulheres, nem se desposarão, o que respeita aos homens. Por conseguinte, tanto as que costumam maridar-se como os que se desposam estarão na ressurreição, onde, porém, não haverá tais contratos. CAPÍTULO XVIII Cristo, o homem perfeito, e a Igreja, seu corpo. Para compreendermos o que diz o Apóstolo, a saber, que todos chegaremos à idade do homem perfeito, devemos considerar todo o contexto e a circunstância. Eis a passagem: Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus para dar cumprimento a todas as coisas. E assim, Ele mesmo constituiu alguns em Apóstolos, outros em profetas, outros em evangelistas, outros em pastores e doutores. A fim de que trabalhem na perfeição dos santos, nas funções de seu ministério, na edificação do corpo de Cristo. Até chegarmos todos à unidade da mesma fé e do mesmo conhecimento do Filho de Deus, ao estado de homem perfeito, à medida da idade perfeita de Cristo. De maneira que já não sejamos crianças indecisas nem deixemos que todos os ventos de opiniões nos levem de lá para cá, pela malignidade dos homens, que enganam com astúcia para introduzirem o erro. Antes, seguindo a verdade com caridade, vamos em tudo crescendo em Cristo, que é nossa cabeça e de quem todo o corpo, ajustado e conexo entre si, recebe, por todos os vasos e condutos de comunicação, segundo a medida correspondente a cada membro, o aumento próprio do corpo para sua perfeição mediante a caridade. Eis qual o homem perfeito: a cabeça e o corpo, composto de todos os membros, que a seu tempo receberão a perfeição. Vão-se cada dia juntando novos elementos a esse corpo, enquanto se edifica a Igreja, a que se diz: Sais o corpo de Cristo e seus membros. E em outra parte: Por seu corpo, que é a Igreja. E de igual modo: Embora muitos, somos um só pão, um só corpo. Do edifício desse corpo aí se disse: A fim de que trabalhem na perfeição dos santos, nas funções de seu ministério, na edificação do corpo de Cristo. Acrescenta, depois, a passagem que nos ocupa: Até chegarmos todos à unidade de fé e ao conhecimento do Filho de Deus, ao estado do homem perfeito, à medida da idade perfeita de Cristo, etc. Mostra enfim com estas palavras a que corpo devemos entender que se refere essa medida: Vamos em tudo crescendo em Cristo, que é a cabeça e de quem todo o corpo, ajustado e conexo entre si, recebe, por todos os vasos e condutos de comunicação, segundo a medida correspondente a cada membro, o desenvolvimento que lhe convém. Logo, como há medida de cada parte, há também medida do corpo todo, composto de todas essas partes. E essa é a medida da plenitude de que se disse: À medida da plenitude da idade de Cristo. Essa plenitude citou-a também naquele lugar em que, falando de Cristo, diz: E constituiu-o, sobre todas as coisas, cabeça da Igreja, que é seu corpo e sua plenitude. Aquele que tudo consuma em todas as coisas. Se, porém, deves-se a passagem referir-se à forma de ressurreição, que nos impediria de aplicar à mulher o que se diz do homem, caso em que se tomaria "homem" por "homem e mulher"? Assim, diz-se no Salmo: Feliz do homem temente ao Senhor. Nele estão, indubitavelmente, incluídas as mulheres tementes a Ele. CAPÍTULO XIX Na ressurreição todas as fealdades embelezar-se-ão. 1. Que responderei agora às objeções fundadas nos cabelos e nas unhas? Uma vez assentado que de nosso corpo nada perecerá, com o fim de nenhuma deformidade haver nele, compreender-se-á também facilmente que o que constituía monstruosa deformidade não se acrescentará àquelas partes em que tal adição afeie a beleza dos membros. Faz-se, por exemplo, vaso de argila e quer-se depois desmanchá-lo para fazê-lo de novo; não é necessário que, ao refazê-lo, a argila que estivera na asa volte à asa ou a que formava o fundo retome a formá-lo, contanto que toda ela torne a todo ele, quer dizer, toda a argila a todo o vaso, sem dela perder-se parte alguma, embora pequenininha. Se, pois, os cabelos e as unhas, tantas vezes cortados, não podem voltar a seu lugar sem produzirem fealdade, não voltarão. Não serão, contudo, aniquilados, pois serão transformados na mesma carne a que pertenciam, a fim de conservar-se a harmonia das partes e manter-se cada uma delas no lugar próprio. Não ignoro que estas palavras do Senhor: Não perecerá nem um só fio de cabelo de vossa cabeça podemos entendê-las referentes com mais propriedade ao número de cabelos que ao comprimento deles. Nesse sentido diz em outra parte: Todos os cabelos de vossa cabeça estão contados. Isso não quer dizer que pensemos que algum corpo perderá algo do que naturalmente tinha. Apenas quero fazer ver que o disforme (que mostra a condição penal dos mortais) será de tal modo restituído à sua substância, que, conservada a integridade, desaparecerá a deformidade. Se o artista pode desmanchar uma estátua mal feita e dar-lhe nova forma, se pode misturar e combinar o disforme e pouco conforme com a arte, sem apartá-lo do todo, evitando a fealdade e conservando a quantidade, que deve a gente pensar do Artífice Todo Poderoso? Não poderá dos corpos humanos suprimir e separar deformidades naturais ou monstruosas, que são tara desta vida miserável, mas repugnam à futura felicidade dos santos, como esses apêndices naturais, mas indecorosos, de nosso corpo, sem diminuir-lhe em nada a substância? 2. Por conseguinte, pelos magros ou pelos gordos não se deve temer que então sejam, se pudessem, da forma como não quereriam ser nem mesmo aqui embaixo. A formosura do corpo é a harmonia de suas partes com certa suavidade de cor. Onde não há harmonia de partes, existe algo que ofende, ou porque é mau, ou porque é pouco, ou porque é demasiado. Quando o Criador, pelos meios que Ele conhece, suprir a deficiência ou tirar o supérfluo e corrigir o mau, desaparecerá essa deformidade resultante da desproporção das partes do corpo. Qual não será a suavidade da cor onde os justos resplandecerão como o Sol no reino de seu Pai? É de crer haja Cristo escondido aos olhos dos discípulos a claridade de seu corpo, quando lhes apareceu depois da ressurreição. Os débeis olhos humanos, que deviam fixar-se em Cristo ressuscitado, não o suportariam. Por essa mesma razão deixou que lhe tocassem as cicatrizes das chagas, comeu e bebeu com eles, não por necessidade, mas por possibilidade. O estado em que a gente não vê objeto presente e vê outros objetos igualmente presentes, como sucedeu aos discípulos, que não viam a claridade de Cristo e viam outras coisas, chama-se em grego aorasía, palavra que no Gênesis os latinos traduziram por caecitas (cegueira), à falta de outra equivalente. Essa cegueira padeceram-na os sodomitas, quando buscavam as portas do homem justo e não davam com elas. Com efeito, houvesse sido verdadeira cegueira, como a que impede de ver, não buscariam a porta de entrada, mas guias que os conduzissem para fora. 3. Não sei como, mas é certo que nosso afeto para com os bem-aventurados mártires nos faz desejar ver no céu as cicatrizes das chagas recebidas em seus corpos pelo nome de Cristo. Talvez as vejamos. Isso não será deformidade em seus corpos, mas sinal de dignidade. Brilhar-lhes-á certa beleza nos corpos, não, porém, dos corpos, e sim da glória. Não se deve crer tampouco haverem de na ressurreição dos mortos faltar aos mártires os membros que lhes houverem sido cortados, pois se lhes disse: Não perecerá nem um só fio de cabelo de vossa cabeça. Mas, se a beleza exige que no novo século se vejam as marcas gloriosas dos mártires gravadas em sua carne imortal, é de crer que os membros que hajam sido feridos ou mutilados conservarão as cicatrizes e os perdidos não deixarão de recebê-los. Se é verdade que os defeitos de nosso corpo não aparecerão na outra vida, também o é que não devem ser consideradas defeitos as marcas da virtude. CAPÍTULO XX Como se efetuará a ressurreição dos corpos? 1. Longe de nós, por conseguinte, pensar que a onipotência do Criador não pode, para ressuscitar os corpos e devolvê-los à vida, reunir todas as partes que hajam sido devoradas pelos animais, ou consumidas pelo fogo, ou desfeitas em cinza e pó, ou dissolvidas em água, ou dissipadas no ar. Longe de nós pensar que no ser da natureza algo haja tão oculto e tão afastado de nossos sentidos, que possa escapar ao conhecimento e ao poder do Criador. Cícero, cuja autoridade é máxima para nossos adversários, querendo definir Deus à sua maneira, diz: É espírito independente e livre, alheio a toda companhia, conhece e move todas as coisas e está dotado de movimento eterno. E Cícero inspira-se nos grandes filósofos. Para empregar-lhe a linguagem, pode algo passar inadvertido a quem tudo conhece ou algum dia escapar a quem tudo move? 2. Leva-me isso, como que pela mão, a solucionar a seguinte questão, que me parece a mais difícil de todas: Quando a carne de homem morto se converteu em carne de homem vivo, a qual dos dois pertencerá na ressurreição? Suponhamos que algum desgraçado, presa da fome e forçado por ela, come da carne de homem morto (extremo a que, segundo a História, já se chegou e de que nossos desditosos tempos apresentam mais de um exemplo). Pode alguém sustentar com algum fundamento que toda essa substância foi eliminada pelos condutos inferiores e parte não foi assimilada, se a fraqueza que existia e já não existe claramente indica as perdas reparadas por aqueles alimentos? Algumas das considerações precedentes servirão, aliás, para a solução dessa dificuldade. Toda a carne consumida pelo homem evapora-se no ar e reconhecemos poder o Deus onipotente reunir tudo quanto se desvaneceu. Essa carne, será, pois, devolvida àquele em que começou a ser carne humana, pois o outro a tinha como que por empréstimo, e, como moeda alheia, deve restituí-la ao dono. A sua, de que a fome o despojara, ser-lhe-á devolvida por Aquele que pode a seu talante juntar a desaparecida. E, no caso de que fosse aniquilada e dela não ficasse nem rasto nos ocultos seios da natureza, o Onipotente repará-la-ia de qualquer modo. Mas, havendo a Verdade declarado que não perecerá nem um só fio de cabelo de vossa cabeça, é absurdo pensar que, não podendo perecer um só fio de cabelo do homem, hajam podido perecer tanta carne devorada ou consumida pela fome. 3. Ponderadas e examinadas todas essas questões, segundo nossa capacidade, chegamos à conclusão de que na ressurreição os corpos terão a mesma estatura que em cada um deles comportaria o desenvolvimento natural da juventude, desenvolvimento perfeito ou interrompido, com a beleza e a proporção de todos os membros. Com o fim de conservar a proporção, é lógico que, se se houver subtraído algo a monstruoso apêndice, se distribua pelo corpo todo, para que nem isso pereça e se mantenha em tudo a harmonia das partes. Assim, não é absurdo crer que, ao distribuir a todas as partes do corpo o excesso que seria deformidade em uma só, se possa acrescentar algo dele à estatura do corpo. E, se alguém sustenta que cada qual ressuscitará com a mesma estatura que tinha ao morrer, não se deve resistir a ele como quem disputa, contanto que exclua toda deformidade, toda debilidade, toda morosidade, toda corrupção e tudo aquilo que seja contrário à formosura do reino em que os filhos da ressurreição e da promessa serão iguais aos anjos de Deus, se não no corpo nem na idade, pelo menos na felicidade. CAPÍTULO XXI Novidade do corpo espiritual ressuscitado Tudo quanto perderam os corpos vivos ou os cadáveres, depois da morte lhes será restituído juntamente com o que deixaram no sepulcro. E ressuscitará, trocada a velhice do corpo animal em novidade do corpo espiritual, revestido de incorrupção e de imortalidade. Mas, embora, por algum acidente grave e pela crueldade dos inimigos, haja algum corpo sido reduzido todo a pó e dissipado no ar ou em água, de forma que dele não se encontre nem um pedacinho sequer, não pode ser subtraído à onipotência do Criador e não perecerá nem um só fio de cabelo de sua cabeça. A carne espiritual estará submetida ao espírito, mas será carne, não espírito, assim como o espírito carnal esteve submetido à carne, sendo espírito, não carne. Experiência disso temo-la na deformidade de nossa degradação. Não eram carnais segundo a carne, mas segundo o espírito, aqueles a quem o Apóstolo se dirigia nestes termos: Não pude falar-vos como a homens espirituais, mas como a carnais. Nesta vida o homem espiritual é carnal, mas segundo o corpo, e em seus membros vê lei que resiste à lei de seu espírito. Será também espiritual, segundo o corpo, quando a carne houver ressuscitado, cumprindo-se estas palavras do Apóstolo: Semeia-se corpo animal e ressuscitará corpo espiritual. Quantas e quais serão as perfeições do corpo espiritual? Como ainda não temos experiência disso, temo ser temerário em minhas palavras. Contudo, como a glória de Deus exige que não se oculte o contentamento de nossa esperança e como, do íntimo do coração, ardendo em chamas de amor, o salmista escreveu: Amei, Senhor, o decoro de tua casa, rastrearei, com o auxílio de Deus e segundo minhas possibilidades, as graças que nesta misérrima vida faz a bons e maus e a grandeza daquela de que, por não a termos experimentado, não podemos falar dignamente. Omito o tempo em que Deus criou o homem justo, passo por alto a vida feliz dos dois cônjuges nas delícias do paraíso, pois foi tão breve, que nem seus filhos tiveram a ventura de prová-la. Falo somente desta miserável condição que conhecemos e em que vivemos, exposta a tentações sem conta, ou melhor, a uma só tentação contínua, por mais progressos que façamos. Quem poderá explicar os sinais de bondade que Deus mostra ao gênero humano? CAPÍTULO XXII Misérias e males que seguiram a primeira prevaricação. 1. Esta vida, se merece tal nome, tão cheia de males, é prova de toda a raça humana haver sido condenada na primeira origem. Que outra coisa indica a profunda ignorância em que nascem implicados todos os filhos de Adão, princípio de todos os erros e da qual, sem trabalho, dor e temor, não pode o homem livrar-se? Que significam tantas afeições vãs e nocivas, de que nascem as mordazes preocupações, as inquietudes, as tristezas, os temores, os falsos contentamentos, as discórdias, as altercações, as guerras, as traições, os aborrecimentos, as inimizades, os enganos, as adulações, a fraude, o roubo, a rapina, a perfídia, a soberba, a ambição, a inveja, os homicídios, os parricídios, a crueldade, a inumanidade, a maldade, a luxúria, a petulância, a desvergonha, a desonestidade, as fornicações, os adultérios, os incestos e tantos outros estupros e pecados contra a natureza de um e outro sexo, que só o citá-los causa horror, os sacrilégios, as heresias, as blasfêmias, os perjúrios, as opressões de inocentes, calúnias, tramas secretas, prevaricações, falsos testemunhos, julgamentos iníquos, violências, latrocínios e outros males semelhantes que não afloram agora ao pensamento, mas sitiam e cercam a vida dos homens? Verdade é que esses crimes são obra dos maus, mas procedem todos da raiz da ignorância e do amor perverso com que nasce todo filho de Adão. Quem ignora, com efeito, com que ignorância da verdade, já manifesta na infância, e com quantos desejos, que se vão desenvolvendo na meninice, vem o homem a este mundo? Se lhe fosse permitido viver segundo seu capricho e fazer quanto lhe aprouvesse, viria a precipitar-se em todos ou em muitos dos crimes mencionados e em outros não lembrados. 2. Mas, por desígnio da divina Providência, que não abandona de todo os condenados e, a despeito de sua ira, não detém o curso de sua misericórdia, nos sentidos dos homens a instrução e a lei velam contra essas trevas e opõem-se a esses ímpetos. É ação inestimável, mas não se efetua sem trabalho e dor. Que pretendem as mil e uma ameaças feitas às crianças para retraí-las das inclinações viciosas? Que os pedagogos, os mestres, as palmatórias, as varas, as correias, a disciplina, a que a Santa Escritura diz não dever a gente poupar o filho amado, por temor de que cresça indômito e, uma vez endurecido, com dificuldade possa ou talvez já não possa ser corrigido? Que perseguem todos esses castigos senão destruir a ignorância e refrear a má cobiça, taras com que vimos ao mundo? A que se deve que tudo quanto recordamos com trabalho esquecemos sem ele, tudo quanto aprendemos com trabalho ignoramos sem ele, que nos custe tanto ser trabalhadores e tão pouco ser preguiçosos? Não denota isso claramente a que é proclive e inclinada a natureza, viciada por si mesma, e de quanto auxílio necessita para ver-se livre disso tudo? A desídia, a moleza, a preguiça e a negligência são vícios que fogem do trabalho. O próprio trabalho, por útil que seja, é castigo. 3. Além dos castigos impostos às crianças, sem os quais não podem aprender o que querem os pais, que raro desejam algo útil, quem será capaz de dizer e quem susceptível de compreender a infinidade e a enormidade das penas a que está sujeito o gênero humano e não são patrimônio da malícia e da maldade dos bons, mas da triste condição humana? Quanta apreensão e quanta dor não nos causam a orfandade e a viuvez, os danos e as condenações, os enganos e as mentiras dos homens, as suspeitas infundadas, os crimes violentos e as velhacarias alheias? Delas procedem a pilhagem e o cativeiro, as prisões e os cárceres, os desterros e os tormentos, a mutilação, a privação dos sentidos, a brutalidade e outros mil e um atos horrendos assim. Que direi de inúmeros flagelos, males exteriores ao homem que lhe ameaçam o corpo: o calor, o frio, as tormentas, as chuvas, as inundações, os raios, os trovões, o granizo, os terremotos, os abismos abertos na terra, os tropeços, o escaparem-se os cavalos, os venenos das frutas, das águas, do ar e dos animais? Entre eles também se contam as mordeduras mortais ou cruéis das feras, a hidrofobia do cão, animal tão carinhoso e tão amigo do homem, que às vezes se torna mais temível e feroz que os leões e os dragões e faz o homem a quem morde mais temível para os pais, esposa e filhos que a fera mais feroz. Que males sofrem os navegantes e quais os que viajam a pé? Quem pode viajar sem expor-se a qualquer acidente imprevisto? Certo dia, ao voltar da praça, homem muito cheio de saúde caiu e quebrou a perna; o ferimento valeu-lhe a morte. Há posição mais segura, ao que parece, que estar sentado? O sacerdote Eli caiu da cadeira e morreu. Que acidentes não temem os lavradores, melhor diríamos, todos os homens, tanto da parte do céu e da terra como dos animais nocivos? Colhida e enceleirada a colheita, acham que o ano está garantido. Mas sei e conheço que imprevista enchente certa ocasião levou do celeiro a colheita, boa por certo, e os homens fugiram para livrar-se. Quem pode crer estar, por sua inocência, a salvo das multiformes incursões dos demônios? A fim de ninguém confiar, atormentam, por permissão de Deus, de maneira cruel as crianças batizadas, as criaturas mais inocentes do mundo. Ao permiti-lo, Deus ensina-nos a deplorar a miséria desta vida e a desejar a felicidade da outra. O corpo está sujeito a tantas enfermidades, que nem os livros dos médicos as contêm todas. A maioria dos remédios e mezinhas são outros tantos tormentos, de sorte que o homem conjura o suplício do mal com o suplício do remédio. E a sede? Não obrigou alguns homens a beber a própria urina ou a dos outros? A vários não induziu a fome não apenas a alimentar-se de cadáveres humanos, mas com esse fim a matar os semelhantes? E, o que é mais, não houve mães que com incrível crueldade, fruto de fome canina, comeram os próprios filhos? Enfim, quem explicará a inquietude do sono, chamado propriamente repouso, quando acompanhado de espantosas visões, que aterram a alma, visões tão vivas, embora falsas, que não podemos distingui-las das verdadeiras? Em certas enfermidades, essas visões fantásticas atormentam com mais ardor os que estão despertos. Não falo de propósito das ilusões de que os demônios se servem para enganar os homens em perfeita saúde, para perturbar-lhes os sentidos com o prurido de fazê-los admitir como verdadeira a falsidade, apesar de por esse meio não poderem convertê-los a seu partido. 4. Só a graça do Salvador, Cristo, nosso Senhor, livra do inferno desta vida miserável. Seu próprio nome, Jesus, significa Salvador. Devemos pedir-lhe, sobretudo, que depois da vida atual nos livre da outra, mais miserável e eterna, que não é vida, mas morte. Aqui embaixo, embora nas coisas santas e na intercessão dos santos encontremos grande consolo a nossos males, os que pedem graças nem sempre as obtêm. A Providência assim o quer, para que um motivo temporal não leve a seguir uma religião que é preciso abraçar de olhos postos na outra vida, onde já não haverá males. Por isso, em meio dos males, a graça auxilia os melhores, para que os tolerem com tanto mais coragem quanto mais fiéis. Pretendem os sábios deste mundo que a filosofia é útil para isso, essa filosofia que em sua pureza os deuses, segundo Cícero, deram a reduzido número de homens. E não deram, acrescenta, nem poderão dar maior bem aos homens. Isso prova que os próprios adversários se veem forçados a confessar a seu modo ser a divina graça necessária para adquirir não uma filosofia qualquer, mas a autêntica e verdadeira. Portanto, se a verdadeira filosofia, único recurso contra as misérias desta vida, foi dada a poucos homens, isso é prova bastante de serem castigos as misérias a que estão condenados os homens. E, assim como, segundo confissão deles, não há dom mais precioso que esse, assim também é preciso crer que não pode proceder de outro Deus senão daquele reconhecido como o maior de todos pelos adoradores de muitos deuses. CAPÍTULO XXIII As misérias próprias dos justos. Além desses males da presente vida, comuns a bons e a maus, os justos têm outros, peculiares e próprios, a saber, contínua guerra contra as paixões e vida em meio de riscos e perigos. São mais ou menos vivas as rebeliões da carne contra o espírito e do espírito contra a carne, mas não cessam nunca. E, nunca podendo fazer o que queremos e destruir de uma vez por todas a funesta concupiscência, só nos resta lutar com ela, em quanto de nós dependa, auxiliados pela divina graça, e viver em contínua vigilância. Isso fará com que não nos engane a falsa aparência, não nos seduzam as palavras artificiosas, não nos ceguem o espírito as trevas do erro e não tomemos o bom por mau ou o mau por bom. Fará que o temor não nos impeça de fazermos o que devemos, o desejo não nos leve a fazermos o que não devemos, não se ponha o sol sobre nossa ira, as inimizades não nos induzam a devolvermos mal por mal, não nos afogue excessiva ou desordenada tristeza, não sejamos ingratos para com os benefícios recebidos e os maléficos rumores não nos perturbem a consciência. Impedirá que façamos juízos temerários, sejamos susceptíveis aos que façam de nós, reine o pecado, secundando-lhe os desejos, em nosso corpo mortal, façamos de nossos membros instrumentos de iniquidade para o pecado, siga o olho os desordenados desejos, nos vença a ânsia de vingança, detenhamos em coisas ilícitas a imaginação. Enfim, impedirá que ouçamos de bom grado palavras injuriosas ou desonestas, façamos o ilícito,embora nos agrade, esperemos de nossas próprias forças a vitória nessa guerra tão cheia de perigos e de canseiras ou, uma vez alcançada, a atribuamos a nosso poder e não à graça daquele de quem diz o Apóstolo: Demos graças a Deus, que nos deu a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo. E noutro lugar: Em meio de tudo isso triunfamos pela graça daquele que nos amou. Não esqueçamos, porém, que, por mais virtude e força que empreguemos em opor-nos aos vícios e embora triunfemos sobre eles e os submetamos, enquanto estivermos neste corpo, jamais nos faltará motivo para estas palavras, em razão de alguma ofensa feita a Deus: Perdoai-nos as nossas dívidas. Mas naquele reino em que permaneceremos para sempre, vestidos de corpos imortais, já não travaremos guerras nem teremos dívidas, que nunca haveriam existido, se nossa natureza se houvesse mantido na retidão em que foi criada. Assim, este nosso combate, em que corremos risco e de que desejamos ver-nos livres pela vitória final, faz parte dos males desta vida, que vimos, pelas misérias citadas, estar condenada por decreto divino. CAPÍTULO XXIV Também a vida tem seus encantos, bem recebidos do Criador. 1. Agora devemos louvar a justiça do criador nas próprias misérias que afligem o gênero humano, ao considerar-se a imensidade de bens de que a bondade de Deus cumulou a presente vida. Em primeiro lugar, não quis impedir, após o pecado, os efeitos da bênção que com estas palavras lançou aos homens: Crescei, multiplicai-vos e enchei a terra. A fecundidade subsistiu nessa raça com justiça condenada. E, embora o pecado nos haja imposto a necessidade de morrer, não nos pôde tirar essa admirável virtude dos germens, nem a virtude, mais admirável ainda, que produz os referidos germens e está profundamente enraizada e como que engastada no corpo humano. Nessa corrente ou rio que as gerações humanas vão engrossando correm parelhos o mal, procedente do pai, e o bem, dom do Criador. No mal original há duas coisas: o pecado e o castigo. Outras duas no bem: a propagação e a conformação. No tocante à minha intenção, já falei bastante dos males, ou seja, do pecado, fruto de nossa audácia, e do castigo, efeito do julgamento de Deus. Propus-me falar agora dos bens que Deus comunicou ou comunica à natureza, viciada e condenada. Ao condená-la, nem a privou de quanto lhe dera (doutro modo, já não seria), nem a independentizou de seu poder, ao sujeitá-la ao demônio, para castigá-la, pois nem ao próprio demônio alheou de seu império. A natureza do diabo não subsistiria sem Aquele que é o Ser supremo e o princípio de todo ser. 2. Desses dois bens, que manam de sua bondade como de fonte abundante e caem sobre a natureza viciada pelo pecado e condenada por castigo, o primeiro, a propagação, deu-o, ao abençoar o homem, depois de havê-lo criado. No sétimo dia descansou dessas primeiras obras. A conformação radica-se nessa atividade sua que até agora continua. Se subtrai aos seres seu poder eficaz, não poderão nem desenvolver-se, nem completar a duração que a medida de seus movimentos lhes permite, nem conservar o ser que receberam. Deus criou o homem e deu-lhe certa fecundidade para propagar-se e a isso induzia-o o poder, não a necessidade. Tirou esse poder aos homens que quis, fazendo-os estéreis, sem que isso represente menoscabo do gênero humano na bênção aos dois primeiros pais. Não obstante, embora essa faculdade haja sido deixada ao homem, apesar do pecado, não é tal qual seria, se não houvesse pecado. Porque, depois de o homem, elevado a honrosa posição, delinquir, se assemelhou aos animais irracionais e gera como eles, conservando-se sempre nele pequenina centelha de razão que faz aparecer nele a imagem de Deus. Mas, se a conformação não se unisse à propagação, esta não poderia realizar as evoluções da forma e do plano na espécie. Se os homens não houvessem coabitado e Deus houvesse querido povoar de homens a terra, poderia criá-las todos como criou o primeiro. Agora o homem e a mulher podem coabitar, não porém gerar sem a ação criadora de Deus. Como o Apóstolo diz da criação espiritual que constitui o homem na piedade e na justiça: Nem quem planta é algo nem quem rega, mas Deus, que dá o incremento, assim se pode dizer na união conjugal: Nem quem coabita é algo nem quem semeia, mas Deus, que dá o ser. Ou também: Nem a mãe que leva no seio o concebido é algo, mas Deus, que lhe dá o crescimento. Ele só, pela atividade que ainda agora desenvolve, faz que o sêmen explique o que tem de harmônico e saia de invisíveis e latentes refolhos para expor-nos aos olhos as belezas visíveis que admiramos. Só Ele une de modo maravilhoso a natureza corpórea e a incorpórea, uma para mandar, outra para obedecer, e faz o ser animal. Essa obra é tão admirável e tão estupenda, que não apenas o homem, animal racional e, por conseguinte, mais excelente e nobre que todos os outros animais terrestres, mas até mesmo a mais diminuta mosquinha não pode ser atentamente considerada sem confundir a inteligência e penetrá-la de admiração pelo criador. 3. Foi ele quem deu à alma humana essa mente em que a razão e a inteligência estão como que dormidas na infância, como se não existissem, para despertarem e exercitarem-se com a idade. Capacitar-se-á, então, para adquirir a ciência e a doutrina e se habilitará para a percepção da verdade e para o amor ao bem. Com essa capacidade alcançará a Sabedoria e adquirirá as virtudes, a prudência, a fortaleza, a temperança e a justiça, para combater os erros e os restantes vícios naturais. Vencê-los-á unicamente com o desejo do imutável e soberano Bem. Embora essa capacidade não consiga seus efeitos, quem poderá exprimir ou pelo menos conceber a grandeza do bem encerrado nessa maravilhosa obra do Onipotente? Fora da arte de viver corretamente e de chegar à felicidade imortal, arte sublime chamada virtude, que a graça de Deus, por Jesus Cristo, dá aos filhos da promessa e do reino, o engenho humano não inventou e experimentou infinidade de artes, em parte necessárias e em parte voluptuárias, que mostram que entendimento tão excelente e interessado em coisas supérfluas, perigosas e até nocivas tem grande porção de bem em sua natureza, pois com ele pôde inventar, aprender e pôr em atividade isso tudo? Quanto progrediu na agricultura e na navegação! Quanta imaginação e perfeição esbanjadas em vasos de todas as formas e na variada policromia de estátuas e pinturas! Que maravilhas compôs e levou à cena, estranhas para os espectadores e incríveis para os ouvintes! Quantos e quais recursos e artimanhas para caçar, matar e domar animais selvagens! Quantas espécies de venenos, de armas, de máquinas inventaram os homens contra os próprios homens! Quantos remédios ou mezinhas para conservar ou recobrar a saúde! Quantos condimentos e manjares gostosos preparou para o prazer da boca e para excitar o apetite! Que diversidade de sinais, a palavra e a escrita, em primeiro lugar, para exprimir os pensamentos! Que riqueza de adornos na eloquência e na poesia, para deleitar o espírito! E, para agradar o espírito, quantos instrumentos de música e que diversidade de cantos compôs! Que admirável conhecimento da ciência dos números e da extensão! E que sagacidade no descobrimento da harmonia e do curso dos astros! Quem poderia, enfim, dizer todos os conhecimentos, tocantes às coisas naturais, de que se enriqueceu o espírito, sobretudo se quiséssemos insistir em cada um deles em particular e não referi-las todos em geral? E quem se bastará para ponderar a grandeza de engenho demonstrada por filósofos e hereges, ao defenderem seus erros e falsidades? Agora falamos da natureza da mente humana, como dote da vida mortal, não da fé e do caminho da verdade, que conduzem à vida imortal. É certo que tão excelente natureza, obra manifesta do verdadeiro Deus, do Deus Todo-poderoso, que governa tudo quanto criou, nunca jamais houvera caído nessas misérias, se por causa dessas misérias não incorresse nas eternas, exceto os justos, que são livrados, se no primeiro homem, de quem os demais procedemos, pecado enorme em demasia não houvesse precedido o castigo. 4. Se consideramos nosso corpo, embora morra como o dos animais irracionais e seja menos vigoroso que o de muitos deles, quanta bondade e quanta providência de Deus não brilha em cada uma de suas partes! Não estão os órgãos dos sentidos e os demais membros tão bem dispostos e tão bem ordenados sua beleza, forma e modo, que indicam às claras haverem sido feitos para o serviço de alma racional? Vemos curvados para a terra os animais irracionais. O homem não foi criado assim. A forma de seu corpo, ereto e erguido para o céu, adverte-o de que deve desejar apenas as coisas do alto. Ademais, não mostra o bastante, porventura, a que alma deve servir tal corpo a maravilhosa agilidade dada à língua e às mãos, para falar, para escrever e para executar tantas obras de arte? Embora o homem não tivesse necessidade de ação, é tão perfeita a harmonia de suas partes e tão formosas suas proporções, que é difícil dizer se, ao cria-lo, Deus teve em conta mais a utilidade que a beleza. Verdade é que no corpo não encontramos nada útil que não seja ao mesmo tempo belo. Isso ficaria mais claro para nós, se conhecêssemos os números e as medidas que unem entre si todas as partes. Talvez o engenho humano pudesse, à custa de esforços, descobrir algo pelo que vê de fora. Mas os membros ocultos e afastados de nosso olhar, como a prodigiosa rede de veias, de nervos e de músculos e fibras, ninguém pode conhecê-las. Com efeito, apesar de a cruel atividade dos médicos chamados anatomistas despedaçar o cadáver ou o corpo de quem lhes morre às mãos e cortar, examinar, buscar e rebuscar na carne humana, de maneira demasiado inumana, por certo, todos os refolhos, para saber o que, como e em que lugares se deve fazer a cura, os números de que falo e que exterior e interiormente compõem essa coaptação chamada em grego harmonia, tanto do corpo em geral como de seus órgãos em particular, ninguém pode encontrá-las, porque ninguém se abalançou a procurá-las. Se pudessem ser conhecidos nas próprias entranhas, sem beleza, ao que parece, descobrir-se-ia algo tão belo, que a razão, que usa dos olhos, o preferiria a essa beleza aparente, agradável à vista. Há no corpo humano algumas partes que, destinadas a ornamento apenas, não têm utilidade, como, no homem, as mamilas e a barba. Que não se destina a proteger o rosto do homem, mas a enfeitá-la, mostram-no os rostos imberbes das mulheres, aos quais, na realidade, por serem mais débeis, lhes seria mais necessária a proteção. Se, pois, dos que vemos não há membro algum (ninguém o duvida) que, sendo útil, não seja ao mesmo tempo decoroso (alguns há somente decorosos, não úteis), acho ser mais fácil compreender que na criação do corpo à necessidade se antepôs a dignidade. A necessidade passará e virá o tempo em que gozaremos tão só da beleza mútua, sem concupiscência alguma. Esse o objeto mais digno dos louvores ao criador, a quem se diz em certo salmo: Tu te revestiste de glória e de decoro. 5. Em que palavras poderiam caber essa formosura e utilidade outorgadas pela liberalidade de Deus, que sem dúvida não faltam no homem, embora prostrado em meio de misérias e trabalhos e condenado a eles? Falaríamos de variada formosura do céu, da terra e do mar, da abundância e majestade da luz, do Sol, da Lua e das estrelas, das frondosidades dos bosques, das cores e dos perfumes das flores, da diversidade e multidão de aves palradoras e pintadas de cores vivas, desses mil e um gêneros de animais, tanto mais maravilhosos quanto menores (pois admiramos mais o corpo das formigas e das abelhas que o imenso corpo das baleias), do enorme espetáculo do mar, quando veste seu traje de mil e uma cores, às vezes verde com vários matizes, às vezes purpúreo, às vezes azul. Com que prazer o contemplamos também quando se enfurece; depois nasce a calma, porque encanta o espectador, contanto que não abata e combata o navegante! Que direi da diversidade de manjares contra a fome e dos diferentes condimentos que a liberalidade da natureza nos oferece contra o fastio, sem recorrer à arte culinária? Quantos remédios para conservar e recobrar a saúde! Que agradável a alternação do dia e da noite! Que suave a temperatura das brisas! Quanto material não nos oferecem as árvores e os animais para a confecção de roupas! Quem pode descrever tudo? Se quiséssemos ampliar cada uma dessas coisas que resumi e enquadrá-la nestas linhas, quanto tempo me levaria cada qual? Isso tudo é consolo dos miseráveis e condenados, não recompensa dos bem-aventurados. Qual será, pois, a recompensa, se tal é o consolo? Que dará Deus aos que predestinou à vida, se deu isso tudo aos que predestinou à morte? De que bens cumulará na vida bem-aventurada aqueles por quem quis que até à morte seu Filho unigênito padecesse tantos males nesta vida miserável? Por isso é que, falando dos predestinados ao reino dos céus, o Apóstolo diz: O que não perdoou seu próprio Filho, mas, ao contrário, o entregou por todos nós, como não nos dará com Ele qualquer outra coisa? Que seremos, quando se cumprir essa promessa? Como seremos? Que bens receberemos naquele reino, se como penhor já recebemos a morte de Cristo? Como estará o espírito do homem, não sujeito a vícios, e livre deles, sem paixões a combater nem sequer louvavelmente, num estado de paz perfeita? Quanta, quão formosa e quão certa será a ciência de todas as coisas, sem trabalho e sem erro, quando, soberanamente livre e feliz, beber na própria fonte a Sabedoria de Deus? Como será o corpo, quando, plenamente submetido ao espírito e suficientemente vivificado por ele, não tenha necessidade de alimentos? Já não será animal, mas espiritual, conservando, é certo, a substância da carne, isento, porém, da corrupção carnal. CAPÍTULO XXV Obstinação e pertinácia de alguns em impugnar, contra o sentir unânime do mundo, a ressurreição da carne. Os mais famosos filósofos estão de acordo conosco acerca dos bens que a alma bem-aventurada gozará depois desta vida. Combatem, todavia, a ressurreição da carne e negam-na com todas as forças. O grande número dos que nela creem faz reduzir-se enormemente o número dos que a negam. Doutos e indoutos, sábios e ignorantes, converteram-se fielmente a Cristo, que mostrou sua ressurreição, verdade que aos incrédulos parece absurdo. O mundo creu na predição de Deus e a fé do mundo nessa verdade também estava predita. Essas predições não podem ser atribuídas aos malefícios de Pedro, pois o precederam de muitos anos. Esse é o Deus a quem, como já eu disse várias vezes e não me canso de repetir, segundo confissão do próprio Porfírio, que queria prová-lo com os oráculos de seus deuses, até mesmo as divindades temem. Esse filósofo chegou a dar a Deus o nome de Pai e de Rei. Guardemo-nos de entender o que ele predisse como querem entendê-lo os que essa fé não compartem com o mundo. Por que não o entenderam, desde logo, como o entende o mundo, cuja fé foi predita tanto tempo antes, não como o entendem esses poucos charlatães que não quiseram crer no mundo? Com efeito, se dizem que devemos entendê-lo de outra maneira, para não fazermos injúria a esse Deus de que dão testemunho tão esclarecido, dizendo ser vã sua predição, a injúria que lhe fazem é maior, ao dizerem que se deve entender de maneira diferente da que entendeu o mundo, cuja fé Ele gabou, prometeu e cumpriu. Será que não pode fazer que a carne ressuscite e viva eternamente? Ou é obra má e indigna de Deus? De sua onipotência, que opera tantos e tão admiráveis milagres; já falamos longamente. Quereis saber algo que o Onipotente não pode? Pois bem, eu vos direi: Não pode mentir. Creiamos, pois, no que pode, não crendo no que não pode. Não crendo que pode mentir, crede, pois, que fará o que prometeu fazer. Mas crede-o como o creu o mundo, cuja fé Ele predisse, louvou, prometeu e mostrou haver realizado. Como demonstram tratar-se de mal? Então não haverá corrupção alguma, único mal do corpo. Ademais, já falamos da ordem dos elementos e discutimos as demais objeções a esse ponto. No Livro Décimo Terceiro já fizemos ver suficientemente como os movimentos do corpo incorruptível serão flexíveis e fáceis, a julgar pelo que agora vemos, quando o corpo está com saúde, embora sua sanidade atual não seja comparável com a imortalidade. Os que não leram esta obra ou os que queiram recordar o que se disse deem-se ao trabalho de relê-la. CAPÍTULO XXVI Contradição entre Porfírio e Platão a respeito das almas bem-aventuradas. Diz Porfírio, replicam) que, para ser bem-aventurada, deve a alma evitar todo corpo. E pois inútil pretender que o corpo será incorruptível, se a alma não será bem-aventurada, caso não fuja de todo corpo. A essa objeção já respondi o bastante no livro antes citado. Acrescentarei aqui uma coisa apenas: corrija Platão, mestre de todos esses filósofos, seus livros e diga que os deuses devem deixar seus corpos para serem felizes,pois disse estarem encerrados em corpos celestes. Afirma, ademais, haver-lhas Deus, que os criou, prometido, para sua segurança, a imortalidade, quer dizer, eterna permanência em seus corpos, apesar de isso não se dever à natureza deles, mas à vontade de Deus. Isso também deita por terra aquilo de a gente não dever acreditar, por ser impossível, na ressurreição da carne. Com efeito, segundo o mesmo filósofo, quando o Deus incriado prometeu a imortalidade aos deuses, disse-lhes que havia de fazer coisa impossível. Eis as palavras postas por Platão na boca de Deus: Como começastes a ser, não podeis ser imortais e indissolúveis. Mas não vos dissolvereis nem destino algum de morte vos tirará a vida, porque não será mais poderoso que minha vontade, laço mais forte para vossa perpetuidade que o destino a que ficastes ligados, quando vossa existência começou. Se não são apenas absurdos e surdos os que ouvem isso, não duvidarão haver o Deus criador, segundo Platão, prometido algo impossível aos deuses criados. Quem diz: "Não podeis ser imortais, mas sereis imortais por vontade minha", que outra coisa diz senão: "Farei com que sejais o que não podeis ser"? Fará ressuscitar, portanto, a carne incorruptível, imortal, espiritual, Aquele que, segundo Platão, prometeu fazer o impossível. A que vem, pois, gritar ser impossível o que Deus prometeu e o mundo inteiro creu, sobretudo se também prometeu que o mundo creria nisso? Dizemos, ademais, que fará também essa o Deus que, segundo Platão, faz coisas impossíveis. Logo, para ser bem-aventurada, a alma não deve fugir de todo corpo, mas receber corpo incorruptível. Em que corpo incorruptível se alegrará mais do que no corpo corruptível em que gemeu? Assim, para ela não será cárcere aquele desejo citado por Vergílio, que o atribui a Platão: E tornem a querer entrar em cárceres humanos. Digo que a alma não terá o desejo de voltar ao corpo, quando consigo tiver o corpo a que deseja retomar. E tê-lo-á para não mais deixa-lo, nem se verá obrigada a abandoná-lo por causa da morte nem durante o mais breve espaço de tempo. CAPÍTULO XXVII A verdade na concórdia entre Platão e Porfírio. Platão e Porfírio compreenderam cada um de per si algumas verdades e, se pudessem entender-se, talvez se fizessem cristãos. Platão disse não poderem as almas estar eternamente sem os corpos. Logicamente, as almas dos sábios, segundo ele, depois de algum tempo, por longo que seja, tornarão a seus corpos. Porfírio, por sua vez, propôs que a alma perfeitamente purificada, uma vez que retome ao Pai, não voltará jamais às misérias desta vida. Se a verdade que Platão viu a tivesse oferecido a Porfírio, a saber, que as almas plenamente purificadas dos justos e dos sábios haviam de tornar aos corpos humanos, e, por outro lado, a verdade vista por Porfírio este a houvesse comunicado a Platão, quer dizer, que as almas santas jamais hão de tornar às misérias do corpo corruptível, dizendo ambas as ideias, não cada qual a sua, creio que veriam ser lógico que as almas tornarão aos corpos e receberão os corpos para viverem bem-aventurada e imortalmente. Segundo Platão, as almas santas tornarão aos corpos humanos e, segundo Porfírio, não tornarão aos males deste mundo. Diga Porfírio, por conseguinte, com Platão: Tornarão aos corpos. E Platão com Porfírio: Não tornarão aos males. Assim coincidirão em que tornam aos corpos e já não sofrem males. Isso é, nem mais, nem menos, o que Deus promete que há de dar às almas, a saber, felicidade eterna em corpo eterno. Agora, uma vez concedido que as almas dos santos tornarão aos corpos imortais, acho que não terão inconveniente em admitir que tornem a seus próprios corpos, quer dizer, àqueles em que suportaram os males deste mundo e, para se verem livres desses males, serviram piedosa e fielmente a Deus. CAPÍTULO XXVIII Contribuição, na concórdia entre Platão, Labeão e Varrão, à verdadeira fé na ressurreição. Alguns dos nossos, que gostam de Platão por causa da beleza de seu estilo e por causa de algumas verdades esparsas em seus escritos, dizem que pensa algo semelhante ao que pensamos sobre a ressurreição dos mortos. Cícero alude a isso em seus quatro livros Sobre a República, em que trata mais de brincar que de dizer algo verdadeiro. Introduz em sua obra um homem ressuscitado que conta coisas conformes com o modo de pensar dos platônicos. Labeão refere também que dois homens mortos se encontraram um dia em uma encruzilhada e em seguida, havendo recebido ordem para tornarem a seus corpos, juraram viver em perfeita amizade, que durou até morrerem de novo. Mas essa classe de ressurreições narradas por esses autores é como a de ressurreições de pessoas que sabemos haverem ressuscitado e tornado a esta vida, mas não para não mais morrerem. Marco Varrão profere algo mais maravilhoso em seus livros Sobre a Origem do Povo Romano. E, para sermos fiel, eis suas próprias palavras: Alguns astrólogos escreveram estarem os homens destinados a renascimento, pelos gregos chamado "palinghenesía". E fixam-lhe a data para quatrocentos e quarenta anos depois da morte. Nesse momento, o corpo e a alma que um dia estiveram unidos no homem tornarão a juntar-se de novo. Varrão e esses astrólogos (não sei quem, pois, ao admitir-lhes a opinião, não dá seus nomes) dizem algo que, apesar de falso (pois as almas, uma vez unidas aos corpos pela segunda vez, não os abandonarão jamais), abala e deita por terra muitos dos argumentos que, baseados na impossibilidade, nossos adversários nos propõem. Com efeito, aqueles que são ou foram dessa opinião não acharam ser impossível que os cadáveres transformados em ar, em pó, em cinza, em água, em carne de outros animais ou de outros homens, tornem ao que foram. Por conseguinte, se os admiradores de Platão e de Porfírio ainda vivos admitem que as almas santas voltarão aos corpos, como diz Platão, e não tornarão aos males, como diz Porfírio, daí reconstruímos a fé cristã, que diz que receberão os corpos, para viverem eterna e felizmente, sem mal algum. E admitam também, com Varrão, que voltarão aos mesmos corpos de antes. Desse modo ficará resolvida entre eles a questão concernente à ressurreição da carne. CAPÍTULO XXIX A visão de Deus na outra vida. 1. Vejamos agora, quanto o Senhor se digne iluminar-nos, o que hão de fazer os santos em seus corpos imortais e espirituais, quando sua carne não viver carnal, mas espiritualmente. Se hei de falar com franqueza, não sei qual será essa atividade, ou melhor, esse repouso e esse ócio. Os sentidos do corpo nunca mo deram a conhecer. Se digo havê-la visto com o entendimento ou a inteligência, que é nossa inteligência, comparada com tal perfeição? É a mansão em que reinará a paz de Deus, que, segundo o Apóstolo, supera todo entendimento. Qual, senão o nosso ou o dos anjos? O de Deus é claro que não. Se, pois, os santos viverão na paz de Deus, é indubitável que sobrepuja todo entendimento a paz em que devem viver. Sobrepuja, sem dúvida, o nosso, mas sobrepuja também o dos anjos. E o que, segundo me parece, dá a entender nestas palavras: todo entendimento, não excetuando nenhum. É preciso aplicar suas palavras à paz de Deus, que torna Deus aprazível, e dizer que nem nós, nem os anjos podemos conhecê-la como Deus a conhece. Supera, pois, todo entendimento, salvo, é claro, o seu. Mas, como, segundo nossa débil capacidade, participaremos algum dia dessa soberana paz, quer em nós, quer entre nós, quer com Deus, como nosso soberano Bem, assim os anjos, segundo seu grau de conhecimento, a conhecem agora e os homens também, porém, muito menos que eles, por mais adiantados que estejam na virtude. Que grande homem era aquele que dizia: agora conhecemos em parte e em parte profetizamos, até chegar o perfeito. E também: Agora não vemos senão como em espelho e em•enigma, mas então veremos face a face! Desse último modo já o veem os santos anjos, também chamados nossos anjos, porque, depois de libertados do poder das trevas e transferidos para o reino de Cristo, em virtude do penhor recebido do Espírito Santo, começamos a pertencer àqueles anjos com quem possuiremos em comum a santa e dulcíssima Cidade de Deus, sobre a qual já escrevemos tantos livros. Os anjos de Deus são nossos anjos, como o Cristo de Deus é nosso Cristo. São de Deus, porque não abandonaram Deus, e nossos, porque começamos a ser concidadãos seus. Isso fez nosso Senhor dizer: Cuidado para não desprezardes algum destes pequeninos, porque vos faço saber que nos céus seus anjos veem o rosto de meu Pai celeste. Veremos como veem, mas ainda não vemos assim. Daí as palavras já citadas do Apóstolo: Agora não vemos senão como em espelho e em enigma, mas então veremos face a face. Essa visão nos está reservada como recompensa de nossa fé e dela São João fala assim: Quando se manifestar, seremos semelhantes a Ele, pois o veremos como Ele é. Face de Deus significa sua manifestação e não essa parte do corpo a que damos tal nome. 2. Por isso, se me perguntam o que os santos farão no corpo espiritual, não digo o que vejo, mas aquilo em que creio, segundo as palavras do Salmo: Cri e isso fez-me falar. Digo, pois, que verão Deus neste mesmo corpo, mas não é questão fácil saber se o verão por meio dele mesmo, como agora vemos o Sol, a Lua, as estrelas, o mar, a Terra e quanto neles há. É duro dizer que então os santos não poderão abrir e fechar os olhos quando quiserem. E é mais duro dizer que quem ali fechar os olhos não verá a Deus. Se o profeta Eliseu, corporalmente ausente, pensando que ninguém o via, viu seu criado Giezi recebendo os presentes do siro Naamã, a quem o profeta curara de lepra, quão mais facilmente os santos verão, no corpo espiritual, todas as coisas não apenas com os olhos fechados, mas até mesmo se estiverem corporalmente ausentes? Será esse o tempo da perfeição de que fala o Apóstolo: Conheceremos em parte e em parte profetizaremos; quando, porém, chegar o perfeito, desaparecerá o que era em parte. Depois, para com uma espécie de comparação mostrar quanto esta vida se diferencia da futura, por maior que seja o progresso na virtude, acrescenta: Quando eu era menino, tinha gostos de menino, falava como menino, pensava como menino. Já homem feito, porém, deixei as coisas de menino. Agora só vemos em espelho e em enigma, mas então veremos face a face. Agora conheço em parte, mas então conhecerei como sou conhecido. Se nesta vida, em que o conhecimento dos mais eminentes profetas não merece ser comparado com a vida futura mais do que o menino é comparável ao moço, Eliseu viu seu servo, onde não estava, recebendo os presentes, diremos que, quando virmos o que é perfeito e o corpo corruptível não oprimir a alma, mas for incorruptível, os santos terão, para ver, necessidade dos olhos corpóreos, de que Eliseu não necessitava? Segundo os Setenta, são estas as palavras do profeta a Giezi: la acaso meu espírito contigo, quando te saiu ao encontro e, descendo de seu carro, lhe recebeste o dinheiro? Ou, segundo a versão direta do presbítero Jerônimo: Pois quê? Não me encontrava presente em espírito, quando aquele homem saltou de seu coche para ir a teu encontro? Diz o profeta havê-la visto com seu espírito, auxiliado, sem dúvida, extraordinariamente, quer dizer, divinamente. Não haverá mais razão ainda para que então, quando Deus estiver todo em todos, todos recebam esse dom? Não obstante, os olhos do corpo também terão função e estarão em seu lugar e o espírito usará deles por meio do corpo espiritual. O fato de o profeta Eliseu não haver necessitado deles para ver seu servo ausente não quer dizer que não os usou para ver os objetos presentes, que podia ver também com o espírito, embora os fechasse, como viu os ausentes, que estavam longe dele. Longe de nós, por conseguinte, dizer que na outra vida os santos, tendo os olhos fechados, não verão a Deus, pois o verão com o espírito. 3. A questão é saber se o verão também com os olhos do corpo, quando não os tenham abertos. Se seus olhos espirituais, que estarão em seu corpo espiritual, terão a mesma virtude que têm agora os nossos, é certo que com eles não poderão ver a Deus. Terão, portanto, potência muito superior, se por eles será vista a natureza incorpórea, que não está contida em lugar determinado, mas está em todas as partes. Embora digamos que Deus está no céu e na terra (Ele mesmo diz por intermédio do profeta: Encho o céu e a terra), nem por isso podemos dizer que tem uma parte no céu e outra na terra, pois, ao contrário, Ele está todo no céu e todo na terra, não em tempos diversos, mas simultaneamente, coisa que nenhuma natureza corpórea pode. Os olhos dos santos terão maior potência, não para verem com mais agudeza que as serpentes ou as águias (pois os animais, por mais aguda vista que tenham, não podem ver senão corpos), mas para verem também as coisas incorpóreas. Essa grande potencialidade de visão talvez haja sido dada por alguns momentos ao santo patriarca Jó, ainda no corpo mortal, quando diz a Deus: Primeiro te conhecia por ouvir dizer, mas agora te vejo com meus próprios olhos. Por isso me desprezei a mim mesmo e me desfiz e me considerei cinza e pó. Não obstante, a gente também pode entender que no caso se trata dos olhos do coração, dos quais o Apóstolo diz: Tende iluminados os olhos de vosso coração. E que Deus será visto com esses olhos é verdade de que não duvida nenhum cristão que aceite as palavras do divino Mestre: Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus. Mas a questão é saber se o veremos também com os olhos corporais. 4. Estas palavras: E verá toda carne a salvação de Deus, podem, sem nenhum inconveniente, ser entendidas deste modo: E todo homem verá o Cristo de Deus, que foi visto no corpo e será visto na mesma forma, quando julgar os vivos e os mortos. Que é a salvação de Deus, testemunham mil e uma outras passagens das Escrituras, mas com muito mais evidência as palavras do venerável velho Simeão, que, havendo tomado o menino Jesus Cristo nos braços, disse: Agora já podes, Senhor, tirar teu servo em paz deste mundo, segundo tua promessa, porque meus olhos viram tua salvação. As palavras citadas de Jó, assim como se acham nos exemplares hebraicos: E em minha carne verei a Deus, são profecia da ressurreição da carne. Note-se não haver dito: Por minha carne. Se houvera dito, poderíamos entender que se referia a Cristo Deus, que por meio da carne será visto em carne. Estas palavras: Em minha carne verei a Deus, podem, todavia, ser entendidas assim: Estarei em minha carne, quando eu vir a Deus. E o que diz o Apóstolo: Face a face não nos obriga a crer que veremos Deus por essa parte do corpo onde estão os olhos corporais, pois o veremos ininterruptamente com o espírito. Se, com efeito, o homem interior não tivesse sua face, não diria o mesmo Apóstolo: Assim é que todos nós, contemplando de rosto descoberto, como em espelho, o Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo espírito do Senhor. Não entendemos de outra maneira as palavras do Salmo: Aproximai-vos dele e sereis iluminados e o rubor não vos cobrirá o rosto. Pela fé aproximamo-nos de Deus e a fé pertence ao coração, não ao corpo. Como ignoramos a que grau de perfeição chegará o corpo espiritual (falamos de coisa de que não temos experiência), se a autoridade clara da Escritura não vem em nosso socorro, é necessário realizar-se em nós o que se lê na Sabedoria: São tímidos os pensamentos dos homens e incertas nossas providencias. 5. Se, de acordo com o raciocínio dos filósofos, os objetos inteligíveis e os sensíveis ou corpóreos são de tal natureza que o corpo não pode ver os inteligíveis, nem a mente pode por si mesma contemplar os corpóreos, se esse raciocínio, digo, fora verdadeiro, com certeza não poderíamos ver Deus com os olhos do corpo, fossem espirituais embora. Mas esse raciocínio ridicularizam-no a sã razão e a autoridade profética. Quem será tão pouco sensato que se atreva a dizer que Deus desconhece as coisas corpóreas? Contudo, Ele não tem corpo para poder vê-las. Ademais, o que pouco faz citei do profeta Eliseu não é prova bastante evidente de as coisas corpóreas poderem ser vistas pelo espírito, sem necessidade do corpo? Quando o servo recebeu os presentes, realizou ato corpóreo, mas o profeta viu-o com o espírito, não com o corpo. Pois bem, constando ser o corpo visto pelo espírito, por que não pode ser tal a potência do corpo espiritual, que o espírito seja visto pelo corpo? Deus é espírito. Cada qual conhece pelo sentido interior, não pelos olhos do corpo, a vida que o anima e o faz desenvolver-se. Por outro lado, vê com os olhos corpóreos a vida do próximo, por mais invisível que seja. Como dos corpos vivos discernimos os não vivos, senão por vermos ao mesmo tempo os corpos e as vidas, vidas que não podemos ver senão pelo corpo? Mas a vida sem corpo escapa aos olhos corporais. 6. Assim, é possível e muito crível que na outra vida veremos de tal maneira os corpos mundanos do novo céu e da nova terra, que com clareza assombrosa veremos a Deus, que está presente em todas as partes e governa todas as coisas corporais; vê-lo-emos, por intermédio de nossos corpos transformados, e em todos os corpos a que volvermos os olhos. Vê-lo-emos não como agora vemos as coisas invisíveis de Deus, pelas coisas criadas, em espelho, em enigma e em parte, onde vale mais a fé com que cremos que a espécie das coisas corporais que vemos por meio dos olhos corpóreos. Veremos como vemos os homens entre quem vivemos e que vivem e executam movimentos vitais. E não apenas cremos que vivem; vemo-lo, apesar de sem o corpo não podermos ver-lhes a vida, que pelos corpos neles contemplamos sem ambiguidade alguma. Aonde quer que levemos essas luzes espirituais de nossos corpos veremos, com o corpo, o Deus incorpóreo que governa todas as coisas. Logo, veremos Deus por meio de olhos que em poder se assemelharão ao espírito, o que lhes permitirá ver também a natureza incorpórea, coisa difícil ou impossível de justificar por testemunhos das divinas Escrituras, ou, o que é mais fácil de entender, Deus ser-nos-á tão conhecido e tão visível, que com o espírito o veremos em nós, nos outros, em si mesmo, no novo céu e na nova terra, e em todo ser então subsistente. Vê-lo-emos também, pelo corpo, em todo corpo, aonde quer que os olhos espirituais do corpo espiritual se dirijam. Nossos pensamentos serão patentes a todos e mutuamente. Cumprir-se-ão, então, as palavras do Apóstolo: Não julgueis antes do tempo, até que o Senhor venha, ilumine os esconderijos das trevas e descubra os pensamentos do coração; cada qual então será louvado por Deus. CAPÍTULO XXX A eterna felicidade da Cidade de Deus e o sábado perpétuo. 1. Quanta não será a ventura dessa vida, em que haverá desaparecido todo mal, em que não haverá nenhum bem oculto e em que não se fará outra coisa senão louvar a Deus, que será visto em todas as coisas! Não sei que outra coisa se vá fazer em lugar ao abrigo da indigência e do ócio. É ao que me induz o sagrado Cântico, que diz: Bem-aventurados, Senhor, os que moram em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos. Todas as partes do corpo incorruptível, agora destinadas a certos usos necessários à vida, não terão outra função que não seja o louvor divino, porque já não haverá necessidade então, mas perfeita, certa, inalterável e eterna felicidade. Todos os números da harmonia corporal, de que falei e que se ocultam de nós, aparecerão então a nossos olhos, maravilhosamente ordenados por todos os membros do corpo. E de concerto com as demais coisas admiráveis e estranhas que veremos, levarão, pelo encanto da beleza racional, as mentes racionais a louvar tão grande Artífice. Não me atrevo a determinar como serão os movimentos dos corpos espirituais, porque não posso nem mesmo imaginá-lo. Mas, sem dúvida, o movimento, a atitude e a própria espécie, seja qual for, serão harmônicos, pois então haverá deixado de existir o inarmônico. E certo também que o corpo se apresentará no mesmo instante onde o espírito queira e o espírito não quererá o que seja contrário à beleza do corpo ou à sua. Ali será verdadeira a glória, porque não haverá nem erro nem adulação nos penegiristas. Haverá honras verdadeiras, que não serão negadas a ninguém digno delas, nem dadas a ninguém indigno, não podendo ninguém indigno rondar por aquelas mansões, exclusivas de quem é digno. Ali haverá verdadeira paz; ninguém sofrerá contrariedade alguma, nem de si mesmo, nem de outrem. A recompensa da virtude será Aquele que a dá e prometeu dar-se a si mesmo. Nada pode haver superior a Ele e nada maior do que Ele. Que significa o que disse pelo profeta: Serei seu Deus e eles serão meu povo, senão: Serei o objeto que lhes satisfará os anseios, serei tudo quanto os homens podem honestamente desejar: vida, saúde, comida, riqueza, glória, honra, paz e todos os bens? Esse é o sentido exato das palavras do Apóstolo: A fim de Deus ser tudo em todas as coisas. Ele será o fim de nossos desejos e será visto sem fim, amado sem enjoo e louvado sem cansaço. Serão, como a vida eterna, comuns a todos essa graça, esse afeto, essa ocupação. 2. Quanto ao mais, quem se sente com forças para exprimir, se não as tem para imaginar sequer, os graus que, em proporção com o merecimento, haverá de honra e de glória? Não se pode pôr em dúvida que haverá graus. Um dos grandes bens da venturosa Cidade será ver que ninguém invejará ninguém, nem o inferior ao superior, como agora os anjos não têm inveja dos arcanjos. Ninguém desejará possuir o que não recebeu, apesar de perfeita e concordemente unido com quem o recebeu, como no corpo o dedo não quer ser o olho, embora o olho e o dedo integrem a estrutura do mesmo corpo. Cada qual possuirá seu dom, um maior e outro menor, de tal sorte que terá, por cima, o dom de não desejar mais do que tem. 3. Não se pense que, visto os pecados já não poderem causar-lhes prazer, não terão livre-arbítrio. Serão tanto mais livres quanto mais livres se vejam do prazer de pecar, até conseguirem o indeclinável prazer de não pecar. O primeiro livre-arbítrio concedido ao homem, quando Deus o criou justo, consistia em poder não pecar, mas também podia pecar. O último será superior àquele e consistirá em não poder pecar. Esse será também dom de Deus, não possibilidade de sua natureza. Porque uma coisa é ser Deus; outra, ser partícipe de Deus. Por natureza, Deus não pode pecar; por outro lado, quem participa de Deus só recebe dele a graça de não poder pecar. Guardar esta gradação é próprio do dom divino; dar, primeiro, livre-arbítrio pelo qual o homem pudesse não pecar e, depois, outro, pelo qual não pudesse pecar. O primeiro permitia a aquisição de merecimento; o último, o recebimento de recompensa. Mas, porque essa natureza pecou, quando podia pecar, graça mais abundante a liberta, para chegar à liberdade em que não possa pecar. Assim como a primeira imortalidade, que Adão perdeu, pecando, consistiu em poder não morrer e a última consistirá em não poder morrer, assim também o primeiro livre-arbítrio consistiu em poder não pecar e o último consistirá em não poder pecar. E a vontade de piedade e de equidade é tão inamissível como a de felicidade. E certo que, ao pecar, não conservamos nem a piedade, nem a felicidade, mas o querer a felicidade não o perdemos nem mesmo quando perdemos a felicidade. Porque não pode pecar, havemos de negar livre-arbítrio a Deus? Todos os membros da cidade santa terão vontade livre, isenta de todo mal e repleta de todo bem, que gozará indeficientemente das inesgotáveis delícias da eterna alegria, esquecida das culpas e dos castigos, mas sem se esquecer de sua libertação, para não ser ingrata para com seu Libertador. 4. A alma lembrar-se-á dos males passados, mas intelectualmente e sem senti-los. Médico bem instruído, por exemplo, conhece, graças à arte médica, quase todas as enfermidades do corpo; muitas, porém, as que não sofreu, desconhece-as experimentalmente. Assim, os males podem ser conhecidos de dois modos: por ciência intelectual ou por experiência corpórea. De um modo conhece os vícios a Sabedoria do homem de bem; de outro, a vida desregrada do libertino. E podem ser esquecidos também de dois modos. De um modo esquecem-nos o sábio e o estudioso; de outro quem os sofreu: esquecem-nos aqueles, descuidando o estudo; este, despojado de sua miséria. Segundo esse último esquecimento, os santos não se lembrarão dos males passados. Estarão isentos de todos os males, sem que deles lhes reste a menor sensação, e, não obstante, a ciência que então possuirão em maior grau não apenas não ocultará deles seus males passados, como nem mesmo a miséria eterna dos condenados. Com efeito, se não recordarem haver sido miseráveis, como, segundo diz o Salmo, cantarão eternamente as misericórdias do Senhor? Sabemos que a maior alegria dessa Cidade será cantar cântico de glória à graça de Cristo, que nos libertou com seu sangue. Ali se cumprirá isto: Descansai e vede que sou o Senhor. Será esse realmente o grande sábado que não terá tarde, esse sábado encarecido pelo Senhor nas primeiras obras de sua criação, ao dizer: No sétimo dia Deus descansou de todas as suas obras e abençoou-o e santificou-o, porque nele repousou de todas as obras que empreendera. Ali nós próprios seremos o sétimo dia, quando estivermos repletos e cumulados da bênção e da santificação de Deus. Ali, em repouso, veremos que Ele é Deus, qualidade que quisemos usurpar, quando o abandonamos, mordendo a isca destas palavras: Sereis como deuses. E apartamo-nos do verdadeiro Deus, que nos faria deuses por participação dele, não por deserção. Que fizemos sem Ele senão desfazermo-nos em sua ira? Reparados por Ele e consumados por mais abundante graça, descansaremos eternamente, vendo que Ele é Deus, de quem nos veremos repletos, quando Ele estiver todo em todos. Nossas próprias boas obras, quando as consideramos mais dele que nossas, são-nos atribuídas para a obtenção desse sábado. Se, por outro lado, as atribuímos a nós, serão obras servis. Diz-se do sábado: Obra alguma servil fareis nele. A esse respeito diz também o profeta Ezequiel: E dei-lhes meu sábado como sinal de aliança entre eles e mim, afim de saberem que sou o Senhor, que os santificou. Sabê-lo-emos quando estivermos em perfeito repouso e virmos que Ele é Deus. 5. Esse sabatismo tornar-se-á mais evidente, se se computa como outros tantos dias o número de idades, segundo as Escrituras, pois então se verifica ser justamente o sétimo dia. A primeira idade, como o primeiro dia, conta-se de Adão ao dilúvio, a segunda, do dilúvio a Abraão, apesar de não compreender duração igual à da primeira, e sim igual número de gerações, a saber, dez. De Abraão a Cristo, o evangelista São Mateus conta quatorze gerações, abrangidas por três idades: uma, de Abraão a Davi, outra, de Davi ao cativeiro de Babilônia, e a terceira, do cativeiro ao nascimento temporal de Cristo. Já temos cinco. A sexta está transcorrendo agora e não deve limitar-se a número limitado de gerações, em razão destas palavras: Não vos compete conhecer os tempos que o Pai tem reservados para seu poder. Depois desta, Deus descansará como no sétimo dia e fará descansar em si mesmo o sétimo dia, que seremos nós. Levaria muito tempo tratar agora, pormenorizadamente, de cada uma dessas idades. Baste dizer que a sétima será nosso sábado, que não terá tarde e terminará no dia dominical, oitavo dia e dia eterno, consagrado pela ressurreição de Cristo e que figura o descanso eterno não apenas do espírito, mas também do corpo. Ali descansaremos e veremos; veremos e amaremos; amaremos e louvaremos. Eis a essência do fim sem fim. E que fim mais nosso que chegar ao reino que não terá fim! 6. Parece-me que, com o auxílio de Deus e com esta imensa obra, saldei a dívida contraída. Que me perdoe quem achar que eu disse pouco ou demasiado. E quem estiver satisfeito não dê, agradecido, graças a mim, mas a Deus comigo. Assim seja.