Epicteto – Sobre a Atenção e Máximas Quando você relaxa a sua atenção por um momento, não imagine que você a irá recuperar sempre que o desejar, mas mantenha isso bem em mente, que o seu erro hoje, deve necessariamente colocá-lo numa situação pior noutros momentos. Porque, em primeiro lugar - e essa é a coisa mais perigosa - um hábito de inatenção é gerado e em seguida, outro hábito, de desviar a atenção: e você então poderá entrar no processo de postergar para outro momento ou oportunidade, aquela vida tranquila e condizente, aquele estado de consciência e de comportamento que a própria natureza nos prescreve. Agora se tal postergação da atenção fosse útil, seria ainda mais lucrativo abandoná-la inteiramente; mas se não é lucrativo, porque então não manter a nossa atenção continuamente? "Eu quero jogar hoje". O que lhe impede de fazer isso, se você prestar a atenção? "Eu desejo cantar" O que lhe impede de fazer isso, se você prestar a atenção? Será que alguma parte da vida é excluída, sobre a qual a atenção não atua; ou existiria qualquer porção da vida que venha a ser piorada pela atenção e melhorada na sua falta? Será que o carpinteiro desatento faz melhor o seu trabalho? Será que o timoneiro desatento guia melhor o seu navio? Será que as tarefas menores da vida são realizadas com melhor contento na desatenção? Você não percebe que, quando você permitiu que a sua mente vagasse, você perdeu o poder de retomá-la, de trazê-la para a tarefa que lhe é própria, respeitosa e modesta: você faz tudo que lhe vem à mente e segue as suas inclinações? Por que tenho de prestar a atenção? Primeiro, para aqueles princípios universais que já falei: esses você deve manter e sem eles você não deve nem ir dormir nem se levantar do leito nem se alimentar nem lidar com os homens: 1) o princípio de que ninguém pode controlar a vontade do outro, 2) e que a vontade apenas é a esfera do bem e do mal. Ninguém, portanto, tem o poder de me fornecer o bem ou me envolver no mal, pois apenas eu tenho a autoridade sobre mim próprio nesses assuntos. Assim, quando eu me garanti frente a estes, que necessidade terei eu de ficar perturbado com relação a coisas externas? Que necessidade tenho eu de temer o tirano, a doença, a pobreza ou o desastre? "Mas eu não agrado fulano de tal" Bem, mas ele é as minhas ações? Ele é o meu julgamento? "Não". "Então o que ele me importa?" "Nada, mas ele é muito respeitado". Isto é algo que ele deve considerar e aqueles que o respeitam: eu tenho Aquele A Quem eu devo agradar, Aquele A Quem eu devo me submeter e obedecer - Deus e aqueles próximos a Deus. Ele me remeteu a mim próprio e faz a minha vontade sujeita apenas a mim e me deu regras para o seu uso correto; e se eu as sigo em silogismo, não me preocupo com ninguém que me contradiz, se eu as sigo ao lidar com premissas variáveis, eu não considero a ninguém. Por que então estou aborrecido por aqueles que me criticam em assuntos mais sérios? Qual é a razão dessa perturbação? Nada mais do que o fato que eu não tive nenhum treinamento nessa esfera. Porque cada ciência despreza a ignorância e o ignorante; e isso vale também para as artes. Considere qualquer sapateiro, qualquer carpinteiro e você irá notar que ele ri da multidão quando a sua própria habilidade está sendo questionada. Primeiro temos de ter esses princípios prontos às nossas mãos. Sem eles não devemos fazer nada. Devemos colocar nossos objetivos nessa direção: não persigas nada que esteja fora de ti; nada que não seja teu próprio, como se Ele te tivesse ordenado: persegue apenas aquilo que jaz no interior da tua vontade e tudo o mais apenas aquilo que te é dado a fazer. Mais, temos de nos recordar quem somos e por que nome somos chamados e temos de dirigir os nossos atos de acordo com cada situação e as suas possibilidades. Temos de considerar qual é o tempo para cantar, qual o tempo para jogar e em qual presença: aquilo que não é apropriado para a ocasião; se os nossos companheiros virão a nos desprezar ou mesmo nós de nós próprios: quando rir e quando criticar, quando ser conciliador e com quem: numa palavra, como devemos manter o nosso caráter na sociedade. Sempre que você se afastar de qualquer um desses princípios, você imediatamente sofre uma perda, não interna, mas gerada pelo próprio ato. E então? É possível escapar inteiramente do erro? Não, é impossível, mas é possível colocar a nossa mente de forma contínua na decisão de não errar. Porque vale a pena persistir nessa proposta. Se no final escaparmos a uns poucos erros e não mais, ainda assim valeu a pena. Como se diz: "Irei fixar a minha atenção amanhã", o que significa, permita-me dizer que você "hoje será desavergonhado, inoportuno e abjeto, que outros terão o poder de envergonhá-lo, que você hoje será o portador da ira e da inveja". Olhe para que erros você se permite conduzir. Não! Se for bom fixar a atenção amanhã tanto melhor será fixá-la hoje, para que você possa fazer a mesma coisa amanhã e não apenas postergar esse ato para depois de amanhã. ------------------------------------------------------------------------------------- MÁXIMAS DE EPICTETO 1 A escravidão do corpo é obra da sorte. A da alma é obra do vício. Quem desfruta da liberdade do corpo é escravo, se tem agrilhoada a alma; quem tem a alma livre desfruta de inteira liberdade, embora carregado de pesados grilhões. A natureza, com a morte, põe cobro à escravidão do corpo, mas a da alma só cessa com a virtude. 2 Guarda-te de exaltar os teus feitos no comércio comum com os homens, pois se sentes grande prazer em narrá-los, nenhum sentem eles em ouvi-los. 3 Envergonhar-te-ia, sem dúvida, a vil entrega do teu corpo ao primeiro transeunte e, no entanto, sem corar, abandonas a alma ao primeiro que se te depara. 4 Não ornes a tua casa com belas pinturas; pelo contrário, faze que resplandeçam nela, por toda parte, a sabedoria e a temperança. Os quadros não passam de uma impostura para enganar os olhos; a sabedoria é um ornamento real e verdadeiro. 5 Sacode enfim o jugo e, livre da servidão, levanta ao céu o rosto para dizer ao teu Deus: "Serve-te de mim como te agradar; nenhum feito me será odioso, se justificar a tua misericórdia para com os homens". 6 Traze constantemente gravados no pensamento a morte, o desterro e as demais coisas que se te afiguram terríveis, e podes ter a certeza de que jamais te assaltarão ideias indignas, nem tampouco desejarás com demasiado ardor coisa nenhuma. 7 O verdadeiro bem do homem está sempre na parte em que difere dos animais; seja essa parte bem fortalecida e alvo de assíduos cuidados, defendam-na as virtudes e, seguramente, nada terá que temer. 8 Vais a Roma, empreendes tão grande jornada para obter um cargo mais brilhante que o de que estás revestido. Que jornada empreendeste para melhorar os teus juízos e opiniões? Que consultaste para corrigir o que em ti há de defeituoso? Em que tempo, em que idade cuidaste de examinar os teus juízos? Percorre com a imaginação todos os anos da tua vida e verás que sempre fizestes o que hoje fazes. 9 O que é senso-comum? Assim como, em todos os homens, existe um ouvido geral e comum que lhes permite discernir igualmente as vozes e ouvir todas as palavras que se proferem, e, mais, outro ouvido, que pode ser chamado artístico, que discerne e separa os sons uns dos outros, assim também há em todos os homens certo sentido natural que, quando não possuem nenhum defeito assinalado no entendimento, lhes permite compreender igualmente tudo o que se lhes propõe. E essa disposição, igual em todos, é o que se chama senso-comum. 10 Um homem é eleito tribuno da plebe. Volta para casa e a vê iluminada. Todos se congratulam com ele. Corre ao Capitólio, faz sacrifícios e dá graças aos deuses. Deu-lhes, por acaso, graças por ter são entendimento e vontade conforme à natureza? 11 Nunca te vanglories do que de ti não depende. Se um cavalo pudesse falar e dissesse: Sou formoso, seria suportável. Mas que digas tu com vanglória: tenho um formoso cavalo, não. De pouco te envaideces, já que tomas parte apenas no mau uso que fazes da tua imaginação. Quando a usares, sem contrariar a natureza, poderás gloriar-te, porque te gloriarás de um bem que é teu. 12 Quando pretendemos embarcar, desejamos um bom vento para seguirmos o nosso caminho; esperando o dia da partida, vamos com frequência verificar que vento sopra, e, se nos é contrário, exclamamos: sempre vento norte! Quando soprará o vento do poente? Meu amigo, soprará quando lhe aprouver, ou melhor, quando aprouver a Quem manda em todas as coisas. Serás, por acaso, dispensador dos ventos, como Éolo? Façamos sempre o que de nós depende, e valhamo-nos do resto, tal qual se nos apresenta e sucede. 13 Se pretendes que teus filhos, tua mulher e teus amigos vivam sempre, és louco, pois é querer que as coisas que de ti não dependem dependam, e seja teu o que é de outro. Também, se queres que o teu criado não cometa nunca falta nenhuma, estás louco, pois é querer que o vício não seja tal vício. Não queres ver contrariados os teus desejos? Não desejes senão aquilo que de ti depende. 14 De que te queixas? A Divindade deu-te o que há de maior, de mais nobre, de mais divino, deu-te a faculdade de poderes fazer bom uso das tuas qualidades, e de em ti próprio achares os verdadeiros bens. Que mais pretendes? Regozija-te, adora tão carinhoso pai e não deixes de dar-lhe graças no fundo do teu espírito. 15 Os deuses criaram todos os homens para serem felizes; se são desgraçados a culpa é somente deles. 16 As enfermidades entorpecem os atos do corpo, mas não os da vontade. A coxeadura poderá ser um obstáculo para o meu pé, mas não para mim. Pensa desse modo em todos os acidentes que te ocorrerem, e verás que poderão ser obstáculo para tudo, menos para ti. 17 A natureza do mal não existe no mundo, pois não se concebe um fim destinado a se não realizar. 18 Perdeste bens, prazeres, presentes, distinções, e consideras tal uma grande perda de que não consegues consolar-te; mas, ao perderes a fidelidade, o pudor, a doçura, a modéstia, não notas falta. No entanto, uma causa involuntária, e alheia a nós, é que nos rouba aqueles bens, e, por conseguinte, não é vergonhoso perdê-los. Pelo contrário, estes últimos, bens internos, não os perdemos senão por nossa culpa; e se é vergonhoso e reprovável não possuí-los, mais digno ainda de reprovação e vergonha é chegar a perdê-los. 19 Assim como um mercador não repele moeda de ouro assinalada pelo busto do Príncipe, não recusa a alma os verdadeiros bens; com frequência os recebe falsos, mas é que o busto do Príncipe a enganou, e ela não possui a arte de lhe conhecer a falsidade. 20 Se empreenderes feito superior às tuas forças, o pior não é que, por fim, o abandones, mas que te esqueças do que poderias realizar. 21 Em todas as coisas deve fazer-se o que de nós próprios depende. Quanto ao resto, mantenhamo-nos firmes e tranquilos. Sou obrigado a embarcar. Que devo fazer? Escolher cuidadosamente o barco, o piloto, os marinheiros, a estação, o dia e a hora, ou seja, o que de mim depende. Já em alto mar, sobrevém terrível tempestade; não é assunto meu. O barco afunda. Que fazer? Tudo quanto de mim depende: não grito, nem me atormento. Sei que tudo o que nasceu deve morrer; é a lei geral. É preciso que eu morra. Não sou a eternidade, sou um homem, uma parte do todo, assim como a hora é uma parte do dia. A hora chega e passa; eu também chego e passo. O modo de passar é indiferente, quer seja pela febre, quer pela água; tudo é o mesmo. 22 Quem se ajusta como deve às circunstâncias necessárias é prudente e hábil no conhecimento das coisas divinas. 23 Não pretendas que as coisas sejam como as desejas. Deseja-as como são. 24 Lembra-te sempre destas máximas gerais: "Que é próprio de mim? Que não é próprio de mim? Que devo fazer?" Até agora, deixaram-te os deuses gozar de um prazer imenso, deram-te tempo suficiente para pensar, ler, meditar, escrever acerca destas importantes matérias. Esse tempo deve haver-te bastado. Agora, dizem-te: Vai, combate, mostra o que aprendeste, mostra se és atleta digno de nós e de ser coroado, ou um desses gladiadores vis que percorrem o mundo ocultando as suas derrotas. 25 É admirável a natureza e a lei que nos liga à vida tão fortemente, dizia Xenofonte. Temos extraordinário cuidado com o nosso corpo, por repulsivo e desagradável que seja, ao passo que, se tivéssemos de cuidar do nosso vizinho, por quatro dias que fosse, a coisa nos pareceria insuportável 26 És cego e injusto; podes ser independente e preferes depender de um milhão de coisas que te são estranhas e te afastam do verdadeiro bem. 27 - Sou pretor na Grécia. – Tu pretor? Sabes julgar? Onde aprendeste tal ciência? – Tenho a nomeação de César. E se César te houvesse nomeado juiz em música, de que te valeria a nomeação, se jamais tivesses aprendido uma nota sequer? Mas deixemos isso, e já que o que procuraste foi a nomeação, responde: de que modo obtiveste o cargo? Quem to proporcionou? A quem estendeste a mão? A que porta bateste? A quem deste presente? Com que baixezas, com que indignidade, com que mentiras o compraste? 28 É da virtude, e não do nascimento, que provém a nobreza do homem. – Valho mais que tu; meu pai foi cônsul, eu sou tribuno e tu não és nada. Se nós ambos fôssemos cavalos, e tu me dissesses: – Meu pai foi o mais veloz de todos os cavalos do seu tempo, e eu disponho de muito feno, de muita cevada e de um magnífico arreio, eu te responderia: – Acredito no que me afirmas; mas vamos comer. Não há no homem alguma coisa que lhe seja peculiar, como a corrida ao cavalo, e por meio da qual se lhe possa conhecer a qualidade e julgar do seu mérito? Não é o pudor, a honradez, a justiça? Mostra-me, pois, a vantagem que sobre mim tens nisso, faze-me ver que vales mais do que eu, como homem, porque se me dizes: posso relinchar ou escoicear, respondo-te que a tua vanglória se estriba numa qualidade própria de asno e de cavalo, e nunca de homem. 29 Ninguém pode ser mau e vicioso sem perda segura e dano certo. 30 De quem é esta medalha? De Trajano? Recebo-a e conservo-a. De Nero? Abomino-a e atiro-a para longe de mim. Faze o mesmo com os bons e os maus. Quem é este? Um homem bondoso, sociável, benfeitor, sofrido, amigo dos pobres; apoio-o, faço dele meu concidadão, meu amigo. E aquele quem é? Um homem que tem alguma coisa de Nero; é colérico, mau, implacável, cruel; repilo-o. Por que me disseste que era um homem? Homem soberbo, vingativo, colérico, não é homem, assim como maçã de cera não é maçã; desta só tem o aspecto e a cor. 31 Nunca serás vencido, se não empreenderes luta na qual de ti não dependa vencer. 32 Por acaso será infeliz o cavalo pelo fato de não poder cantar? Não, mas pelo fato de não poder sentir. Sê-lo-á o cão, por não poder voar? Não, mas pelo fato de carecer de inteligência. Consistirá a infelicidade do homem em não poder estrangular leões e realizar coisas extraordinárias? Não, pois não foi criado para isso. O homem é infeliz quando perde o pudor, a bondade, a justiça, e quando se apagam todos os divinos caracteres, impressos em sua alma pelos deuses. 33 Quando ouço chamar a alguém feliz por ver-se favorecido pelo Príncipe, pergunto imediatamente: Que lhe sucedeu? – Foi colocado à frente de uma província. – Mas, obteve ao mesmo tempo tudo quanto precisa para governá-la bem? – Foi nomeado pretor. – Mas dispõe de meios e condições para o ser? Não são as dignidades que proporcionam felicidade, mas sim o desempenhá-las bem e delas fazer bom uso. 34 Que não faz o banqueiro para examinar o dinheiro que lhe entregam? Emprega todos os sentidos, a vista, o tacto, o ouvido. Não se contenta com fazer vibrar a moeda uma, duas, três vezes; à força de analisar os tinidos, quase se converte em músico. Todos somos banqueiros naquilo que, julgamos, nos interessa; não há cuidado nem atenção que não empreguemos para evitar que nos enganem. Mas quando se trata da nossa razão, de examinar os nossos juízos, somos preguiçosos e negligentes, como se tal não tivesse para nós nenhum interesse, porque desconhecemos os prejuízos acarretados pela nossa incúria. 35 Exigem os sentinelas uma contra senha de quem quer que se aproxime. Faze o mesmo: exige uma contra senha de tudo quanto se te apresente à imaginação, e nunca serás surpreendido. 36 O desejo e a felicidade não podem estar juntos. 37 Prefiro sempre o que acontece, por estar convencido de que a vontade dos deuses é superior à minha. Atenho-me, pois, a ela, sigo-a e a ela conformo os meus desejos, as minhas vontades e os meus atos. 38 Conserva bem o teu e não invejes o alheio. Nada te impedirá de ser venturoso. 39 Em vez de fazeres a corte a um velho rico, faze-a a um sábio. Este não te fará corar, e tu jamais te afastarás dele de mãos vazias. 40 Suponde uma cidade governada segundo as máximas de Epicuro. Nela tudo será transtorno. Não haverá casamento, nem magistrados, nem colégios, nem polícia, nem educação possível; a piedade, a santidade, a justiça serão desterradas; seguir-se-ão apenas torcidas regras de procedimento e conselhos perniciosos, que nem as mulherezinhas mais desavergonhadas ousarão sustentar. Pelo contrário, numa cidade governada segundo as máximas ditadas pela razão, reinará a justiça e a ordem; seguir-se-ão opiniões sãs, praticar-se-ão todas as virtudes, florescerá a justiça, estará bem regulamentada a polícia, casar-se-ão os cidadãos, terão filhos e servirão aos deuses; o marido, contente com sua mulher, não cobiçará a do próximo; contente com o seu bem, não invejará o dos outros. Numa palavra, em tal cidade se cumprirão todos os deveres. 41 Não depende de ti ser rico, mas ser venturoso. A riqueza nem sempre constitui um bem e, certamente, é pouco duradoura; mas a felicidade que emana da sabedoria é eterna. 42 É tão difícil aos ricos adquirir sabedoria quanto aos sábios adquirir riqueza. 43 O que aflige não é a pobreza, mas a avareza, assim como não é a riqueza que preserva de todo e qualquer temor, mas a razão. 44 Ornar a própria morada com móveis preciosos e magníficos é amar o luxo. Ornar a alma com bondade, liberalidade e justiça é ser verdadeiramente magnífico e humano. 45 A vida que se passa na suntuosidade e na moleza é uma torrente de águas turvas, espumosas, violentas, tumultuosas e passageiras. A vida empregada na virtude é uma pura fonte cujas águas cristalinas, sãs e frescas, jamais se acabam. 46 Não te esqueças de que são os ricos, os reis, os tiranos que proporcionaram personagens às tragédias; os pobres não aparecem nos nossos teatros, e quando neles têm lugar é entre os cantores e bailarinas. São os reis que prosperam no começo da obra; tudo lhes sorri, são honrados, respeitados, erguem-se-lhes altares, ornam-se-lhes os palácios de coroas e bandeiras e, ao cabo do terceiro ou quarto ato, exclamam: Ó Citérea, por que me abriste as portas? 47 Prescreve-te desde o início certas regras, e observa-as, quer estejas só, quer acompanhado. 48 Não rias por muito tempo, nem com excesso, nem com frequência. 49 Guarda-te de usar coisas necessárias ao corpo, enquanto o não exijam as necessidades da alma, como a alimentação, as vestes, a habitação, os criados, etc., e repele tudo quanto diz respeito à moleza e à vaidade. 50 Reúnes em ti qualidades, cada uma das quais exige deveres que é mister cumprir; és homem, cidadão do mundo, filho dos deuses, irmão dos outros homens. Sob outros aspectos, és senador, ou possuis outra dignidade, és jovem ou velho, filho, pai ou marido. Pensa em tudo aquilo a que te obrigam tais nomes e trata de não desonrar nenhum deles. 51 Foi bela sentença a de Agripa: jamais me servirei eu próprio de obstáculo. 52 Como os faróis dos portos que prestam auxílio aos barcos perdidos, o homem de bem, na cidade combatida por toda espécie de tempestades, é de grande utilidade aos concidadãos. 53 Antes de te apresentares ao tribunal dos juízes, apresenta-te ao da justiça. 54 Empalideces, tremes, perturbas-te quando vais ver um príncipe ou outro ilustre senhor – Como me receberá? Como me ouvirá? – Vil escravo! Receber-te-á, ouvir-te-á como queira; tanto pior para ele se acolher mal um homem prudente. Podes tu, por acaso, sofrer pelo erro de outrem? Como lhe falarei? – Falar-lhe-ás como te aprouver. – Tenho medo de perturbar-me. - Não sabes falar com discrição, com prudência e com livre dignidade? Quem te aconselhou a temer um homem? Zeno não temeu Antígono, mas Antígono temeu Zeno. Perturbou-se Sócrates quando falou aos tiranos e aos seus juízes? Tremeu Diógenes quando falou a Alexandre, a Filipe, aos piratas, ao amo que o havia comprado? 55 Quem se submete aos homens já está submetido às coisas. 56 Livra-te de desejos e temores, e livrar-te-á dos teus tiranos. 57 Acabas de libertar um escravo. Mas tu, que lhe desta a liberdade, és livre? Não és escravo de teu dinheiro, de tua mulher, de teus filhos, de teu tirano, do último lacaio de um tirano? 58 Muito bem disse Diógenes que o único meio de estabelecer a liberdade é estar pronto para morrer. 59 O próprio Diógenes escreveu ao rei dos persas: "Mais fácil que reduzir os atenienses à escravidão ser-te-á reduzir os peixes; um peixe viverá mais tempo fora da água que um ateniense na escravidão". 60 Quando estiveres no teu quarto, de noite, com a porta bem fechada e apagadas as luzes, guarda-te de crer que estás só, que o não estás. 61 Afirmava Traséia preferir ser morto hoje a desterrado amanhã. Que lhe respondeu Rufo? Se consideras pior o primeiro, és louco em o escolher; se o consideras melhor, em que estribas a escolha? 62 Diante de toda imagem que te assalte deves estar pronto a dizer: és enganosa, e não o que pareces. Examina-a bem, aprofunda-a e, para sondá-la, serve-te das regras aprendidas, sobretudo da que consiste em examinar se o que te aparece é do número das coisas que dependem de ti ou das que de ti não dependem. 63 Visto que aspiras a tão grandes coisas, lembra-te de que não deves trabalhar medianamente por adquiri-las. Mas de todas as exterioridades deves renunciar completamente a umas e postergar outras; porque se tentas alcançá-las juntamente, perseguindo ao mesmo tempo os verdadeiros bens, as dignidades e as riquezas, não obterás nem sequer estas últimas; talvez deixes de conseguir alguns bens, mas certamente carecerás dos únicos que realmente podem constituir a tua felicidade. 64 Não te esqueças de que se tomas por livres as coisas que, pela sua natureza, são escravas, e por tuas próprias as que de outrem dependem, verás por toda parte obstáculos, afligir-te-ás, perturbar-te-ás, e queixar-te-ás dos deuses e dos homens. Se, pelo contrário, tomas por teu o que verdadeiramente te pertence e por alheio o dos outros, ninguém te obrigará ao que não queiras, nem te impedirá realizar os teus gostos, nem terás motivo de queixa, nem de acusação. 65 Qual é a natureza da divindade? Inteligência, ciência, ordem, razão. Podes, portanto, conhecer qual a natureza do teu verdadeiro bem, que nela somente se encontra. 66 Um dia, perguntou um insolente a Diógenes: És tu, Diógenes, o que crê não haver deuses? - Sou Diógenes, respondeu-lhe ele, e tão certo estou de que há deuses, que estou completamente persuadido que te detestam. 67 Quando te aproximares dos príncipes e dos magnatas, lembra-te de que há lá em cima um Príncipe ainda maior, que te vê e te ouve, e a quem deves comprazer mais que a qualquer outro. 68 Queres agradar aos deuses? Reflete que não há coisa que mais detestem do que a impureza e a injustiça. 69 Não se entristecia Hércules por deixar órfãos os filhos, pois sabia não haver órfãos no mundo, e terem todos os homens um pai que deles cuida e que jamais os abandona. 70 O começo da filosofia é conhecermos a nossa fraqueza, a nossa ignorância e os deveres necessários e indispensáveis. 71 Que é o filósofo? Homem que, se o ouves, há de fazer-te certamente mais livre que todos os pretores.