Sêneca: Consolação à Minha Mãe Hélvia I — 1. Muitas vezes, minha boa mãe, estive a ponto de escrever-te para te consolar: sempre me detive. Muitas considerações levaram-me a ousar: principalmente, pensava que teria esquecido todas as minhas preocupações, se tivesse conseguido secar por um pouco tuas lágrimas, embora não podendo enxugá-las por completo; além disso, tinha certeza de que, se conseguisse confortar antes a mim mesmo, minha tentativa de tirar-te da prostração teria sido mais eficaz; enfim, temia que a sorte, sobre a qual fui vitorioso, pudesse vencer algum dos meus queridos; de qualquer maneira, pondo a mão sobre a minha chaga, era levado a querer curar tuas feridas. 2. Muitas outras razões, de outro lado, afrouxavam esse meu propósito: compreendia que não devia afrontar tua dor ainda recente e ardente, para evitar que os confortos a exasperassem e a aumentassem, visto que também nas doenças nada há mais danoso que um remédio intempestivo. Esperava, portanto, que a violência da dor se quebrasse, e que, mitigada pelo tempo a ponto de suportar os remédios, permitisse ser tocada e observada. Mais ainda, conquanto folheasse todas as obras compostas pelos mais ilustres gênios para acalmar ou pelo menos aliviar as dores, não encontrava exemplo algum de alguém que tivesse consolado seus queridos enquanto ele mesmo era por eles lastimado. De modo que a novidade do empreendimento me fazia hesitar e temer que essa não fosse uma consolação, mas uma excitação à dor. 3. Que novas palavras, e não tiradas da usual linguagem de todo dia, devia usar um homem que, já em cima da fogueira, levantava a cabeça para consolar os entes queridos? Toda dor que passa os limites do suportável tira necessariamente a faculdade de escolher as palavras, se amiúde sufoca também a voz. Procurarei, todavia, fazê-lo como posso, não porque tenha confiança em minha capacidade, mas porque o fato de que o consolador seja eu mesmo poderá constituir a mais feliz das consolações. È confio que a mim, a quem nunca negaste nada, agora não negarás, por muito obstinada que seja a tua aflição, que ponha um limite a tuas lágrimas. II — 1. Olha quanta confiança tenho em teu afeto: tenho certeza de que serei mais forte do que tua dor, sendo que nada é mais forte do que ela entre os míseros. E para não a afrontar logo, dela me aproximarei antes, e dentro porei tudo o que pode inflamá-la; observarei e reabrirei outra vez todas as chagas já cicatrizadas. 2. Alguém dirá: "Que nova maneira de consolar é essa, lembrando os males esquecidos e pondo perante o cúmulo de todas as suas desventuras uma alma que a muito custo consegue suportar só uma?" Mas reflita, esse alguém, que os males que chegaram a esse ponto de gravidade, isto é, de piorar não obstante o remédio, curam-se geralmente com os contrários. Antes de tudo por-lhe-ei na frente todos os seus lutos, todas as desventuras; e isto será não um medicamento brando, mas uma cauterização e uma amputação. E que obterei? Que uma alma, que venceu tantas misérias, enrubesça por não ter a força de suportar, sobre um corpo coberto de cicatrizes, uma nova ferida. 3. Que chorem e se lastimem e se enfraqueçam, ao sopro das mais leves contrariedades, as almas delicadas das pessoas que uma tranquilidade demasiadamente longa enervou; mas as pessoas que passaram toda a vida na desgraça devem suportar com forte e imutável constância mesmo as dores mais graves. A perpétua infelicidade só tem isto de bom: que endurece por fim os que incansavelmente persegue. 4. Descanso algum te concedeu a sorte, entre os mais graves lutos; e nem excetuou o dia de teu nascimento. Assim que nasceste, ou melhor, enquanto nascias, perdeste tua mãe, e foste por assim dizer abandonada à vida. Cresceste sob o jugo que uma madrasta, que todavia obrigaste, com um respeito e um afeto que só se pode ver numa filha, a ser-te realmente mãe; mas não há ninguém a quem uma madrasta mesmo ótima não tenha custado sempre demasiado cargo. Perdeste, enquanto esperavas a sua chegada, um amoroso tio, homem bom e forte; e, pois, que a sorte temia apresentar-se muito pouco feroz, deixando-te um intervalo de repouso, tiveste que sepultar no mesmo mês o marido bem-amado, que te tornara mãe de três filhos; e esse luto te foi anunciado enquanto ainda choravas o outro, enquanto teus filhos estavam longe, como se teus males tivessem sido recolhidos todos propositalmente naquela época para que não tivesses nada sobre o que tua dor pudesse reclinar-se. 5. Não falo dos perigos contínuos e dos sustos, de que sem interrupção sustentaste os assaltos. Faz pouco tempo que recolheste os ossos de três netos no mesmo seio em que foram criados; e vinte dias depois de celebrar o enterro de meu filho, morto entre teus braços e teus beijos, tiveste a notícia de meu exílio. Somente isso te faltava até agora: chorar os vivos. III — 1. Sim, é verdade: essa recente ferida é a mais grave de quantas já desceram em teu corpo, porque não esfolou somente a pele, mas penetrou profundamente em teu peito e até o coração. Mas como os recrutas gritam mesmo quando levemente feridos, e temem a mão do médico mais do que as espadas, enquanto os veteranos, por muito profundos que sejam os golpes recebidos, suportam pacientemente e sem queixas que seus corpos sejam limpos da podridão como se fossem de outrem, assim tu agora deves submeter-te com firmeza à cura. 2. Longe de ti as lamúrias e os gemidos e as outras manifestações de dor feminina: mal empregadas foram tantas desventuras, se ainda não aprendeste a ser desventurada. Talvez pareça que te tratei com demasiada severidade, não tirando nenhum de teus males, mas antes amontoando-os todos diante de ti? IV — 1. A isso me induziu um fim magnânimo: isto é, estabeleci vencer tua dor, não iludi-la. E vencê-la-ei, creio eu, se conseguir demonstrar antes de tudo que não sofro por uma razão a respeito da qual eu poderia ser chamado mísero e por causa da qual os meus familiares poderiam tornar-se míseros; depois demonstrarei, passando a ti, que nem tua sorte, que em tudo está unida à minha, se pode chamar infeliz. 2. Começarei dizendo, como teu afeto materno almeja ouvir, que eu não tenho mal algum. Se puder, demonstrar-te-ei como também as coisas que tu pensas que me aniquilam com seu peso não são nem elas intoleráveis. Se, enfim, nisso não for possível acreditares, terei pelo menos o orgulho de estar contente nessas condições, que costumam tornar míseros os homens. Não creias em outros, no que dizem a meu respeito: pessoalmente, para que não sejas agitada por falsas opiniões, declaro-te que não sou em nada mísero; direi mais, para que tenhas maior certeza: nunca poderei ser mísero. V — 1. A natureza nos gerou em bom estado e nele estaríamos se dela não nos afastássemos. Ela fez com que não precisássemos de muitas coisas para viver prosperamente: cada um pode por si tornar-se feliz. Pouca importância têm as coisas contingentes, tanto que não têm poder, nem, se favoráveis, de ensoberbecer o sábio, nem, se contrárias, de abatê-lo: ele esforçou-se sempre para pôr em si cada bem seu, para obter de si toda a sua alegria. 2. E com isso pensas talvez que eu queria dizer que sou um sábio? Não, absolutamente; porque, se pudesse mesmo só afirmá-lo, isso significaria que não só não seria infeliz, mas seria o mais felizardo de todos os homens e quase um deus. Agora (e isso basta para suavizar qualquer miséria) me entreguei aos sábios, e, ainda incapaz de defender-me por mim, encontrei em campo alheio o abrigo, que facilmente protege a si mesmo e aos seus. 3. Eles me aconselharam que ficasse sempre atento e observasse qualquer ataque, qualquer assalto da desgraça muito antes que me abatesse. A desventura é grave para aqueles a quem chega inesperadamente; facilmente a suporta quem sempre a espera. Assim, também o ataque de um exército inimigo dispersa os soldados tomados de surpresa; mas se preparados para a guerra antes da guerra, ordenados e prontos repelem a primeira investida, que é a mais furiosa. 4. Nunca me entreguei à sorte, mesmo quando parecia que estivesse em paz comigo; todos os favores, dos quais muito generosamente me cercava (riquezas, cargos, prestígio), coloquei-os em tal lugar de onde pudesse retomá-los, sem me aborrecer. Deixei sempre grande distância entre mim e eles: tirou-me os favores, portanto, não mos arrancou. A sorte contrária não diminui senão os homens que se deixaram enganar pela prosperidade. 5. Os homens que se agarram a seus presentes como a coisas das quais temos perpétua propriedade, e que por eles querem ser invejados pelos outros, jazem prostrados e aflitos, quando os deleites falsos e fugazes abandonam sua alma vã e pueril, que ignora qualquer prazer real; mas quem na prosperidade não se orgulhou, não se abala se as coisas mudam. Contra um e outro estado têm uma alma invicta, cheia de firmeza já experimentada, porque experimentou na boa sorte o que é útil contra a infelicidade. 6. Por isso, como nas coisas que todos almejam possuir, sempre pensei que não houvesse algum bem verdadeiro (e as achei vazias e cobertas de uma maquilagem aparente e ilusória, sem nada que parecesse à sua aparência), assim agora, nesses que são chamados males, não encontro nada que seja tão horrível e duro como pode fazer temer a opinião do vulgo. A própria palavra "exílio" chega ao ouvido muito duramente e fere quem a ouve como triste e execrável justamente por essa convicção radicada em todos: assim decidiu o povo. Mas o sábio rejeita em grande parte os decretos do povo. VI — 1. Sem dar importância, portanto, ao critério da maioria, que se deixa transportar pela superficialidade e pela opinião corrente, vamos ver o que é o exílio. É, na substância, uma mudança de lugar. Para que não pareça que eu esteja atenuando sua aridez e tirando o que tem de pior, direi ainda os aborrecimentos que derivam dessa mudança: pobreza, desonra, desprezo. Com esses lutarei mais tarde: por enquanto, quero limitar-me a examinar qual é a dor proveniente da pura e simples mudança de lugar. 2. "Viver longe da pátria é intolerável." Olha, pois, para a multidão, à qual não são suficientes as casas da imensa Roma: a maior parte dela está longe de sua pátria. Afluem de seus municípios, de suas colônias, de toda a terra, quem levado pela ambição, quem pelo seu dever de magistrado, quem por uma missão confiada, quem pelo afã de gozar em lugar mais apropriado e rico de vícios, quem pelo desejo de estudos literários, quem pelos espetáculos; alguns foram impelidos pela amizade, outros por uma atividade que encontrou mais amplo teatro para demonstrar a própria virtude; alguns levaram para lá sua venal beleza, outros sua venal eloquência. 3. Nenhuma raça de homens falta na cidade, que oferece grandes prêmios às virtudes e aos vícios. Suponhamos que todas essas pessoas sejam chamadas, uma por uma; e se pergunte a cada uma onde nasceu: veremos que a maioria é formada por gente que deixou sua residência para se estabelecer numa cidade grandíssima e belíssima, realmente, mas não sua. 4. Em seguida, deixando essa cidade, que se pode chamar cosmopolita, vamos para todas as outras: não existe nenhuma que não tenha sua população em grande parte estrangeira. Deixemos as cidades que atraem as multidões com sua posição amena e com suas campinas risonhas; observemos os lugares mais desertos, as ilhas mais rochosas, Ciatos, Sérifo, Giaro, Cossura: não encontraremos lugar algum de exílio, onde alguém não more por seu prazer. 5. Onde se poderá encontrar um rochedo mais desguarnecido do que este? Ou mais pobre para quem procure riqueza? Ou mais selvagem para quem dê atenção aos homens? Ou mais horrível pela posição? Ou mais inclemente pelo clima? Apesar de tudo, também aqui moram mais estrangeiros do que indígenas. A mudança de lugar não é, pois, tão grave, se esse lugar consegue tirar alguém de sua pátria. — 6. E há também quem afirme existir nas almas humanas certa inclinação natural a mudar de sede e transferir a sua própria residência; pois que o homem recebeu da natureza um intelecto móvel e inquieto, que nunca para num lugar, mas anda de um lado e de outro, levando seus próprios pensamentos para qualquer coisa, ansioso de sossego e ávido de novidade. 7. Isso não pode admirar a quem reflita em sua primeira origem; pois que o homem não é plasmado de pesada matéria terrena, mas deriva do sopro divino: e as coisas celestes estão sempre em movimento; melhor, fogem em veloz corrida. Olha as estrelas, que iluminam o mundo: nenhuma delas fica parada. O sol anda continuamente e vai de lugar em lugar e, embora rodando com todo o universo, move-se em sentido contrário ao céu e passa por todos os pontos das constelações e nunca para: seu movimento e seu andar de um lugar a outro são eternos. 8. Todas as coisas rodam e passam: vão de um a outro ponto, como ordena a inexorável lei do mundo; quando terão terminado, durante um determinado período de tempo, sua volta, farão novamente o caminho percorrido. Continuas, agora, a pensar que a alma humana, formada pelas mesmas partículas das quais são constituídos os astros, sofre em viajar e em migrar, quando o próprio deus simpatiza ou talvez vive justamente pelo seu eterno velocíssimo movimento? VII — 1. Agora, das estrelas volta-te para as coisas humanas: verás que todos os homens e todos os povos, sem exceção alguma, mudaram suas sedes. Que procuram as cidades gregas nos países dos bárbaros? E as colônias macedônias no meio dos hindus e dos persas? Na Cítia e em todas as terras daqueles povos ferozes e indômitos, veem-se cidades gregas fundadas nas costas do Ponto: nem a rigidez do inverno perpétuo, nem a índole dos habitantes, selvagens como seu clima, obstaculizaram os emigrantes. 2. Na Ásia Menor há uma multidão de gregos; Mileto fundou em todo o mundo e deu habitantes a setenta e cinco cidades: todo o lado da Itália banhado pelo mar Jônio tornou-se a "Magna Grécia". A Ásia deu origem aos etruscos, os tírios (fenícios) habitam a África, os cartagineses, a Espanha, os gregos introduziram-se na Gália, os gauleses, na Grécia; os Pireneus não impediram a passagem dos germanos: 3. A volúvel raça humana espalhou-se por todos os caminhos do mundo, mesmo se desagradáveis e desconhecidos. Levaram consigo os filhos, as esposas e os pais, mesmo se velhos; alguns, após terem sido jogados aqui e acolá, não escolheram eles mesmos o lugar onde parar, mas pelo cansaço pararam no mais próximo; outros conquistaram com as armas o direito de apoderar-se das terras alheias; outros foram engolidos pelo mar, enquanto iam para terras desconhecidas; outros pararam onde a falta do necessário os obrigou a parar. 4. E, assim, também são diferentes as causas que os levaram a abandonar a própria e procurar outra pátria: quem, fugindo às armas inimigas, foi expulso de sua terra e levado, despojado de tudo, para terra estrangeira, pela destruição de sua cidade; quem foi expulso pela guerra civil; quem foi mandado embora pela necessidade de diminuir a população demasiadamente abundante; quem foi obrigado a fugir por uma epidemia ou por frequentes terremotos, ou por qualquer outra causa que tornava o país mal são e inabitável; outros foram seduzidos pela fama de uma região fértil, exageradamente famosa. 5. Quem por uma causa, quem por outra se afastou de sua casa: isto, porém, mostra claramente que nada ficou nunca no mesmo lugar em que nasceu. Eterno é o mudar do gênero humano; todos os dias alguma coisa muda em tão enorme esfera; põem-se os alicerces de novas cidades, surgem novos nomes de povos, depois que os precedentes se extinguiram ou foram absorvidos por povos mais fortes. Que mais são essas emigrações de povos, senão públicos exílios? 6. Mas para que levar-te num tão longo discurso? Para que lembrar Antenor, que fundou Pádua, e Evandro, que pôs o reino dos Árcades nas margens do Tibre? E Diomedes e os outros que, vencidos ou vencedores, a guerra de Tróia dispersou por terras alheias? 7. O Império Romano reconhece como seu fundador um exilado, fugido pela queda de sua cidade, à procura de terras longínquas por medo dos vencedores, trazido à Itália pelo Fado com poucos companheiros sobreviventes. E quantas colônias semeou, mais tarde, por todas as províncias o povo romano! Ele mora aonde chegou vitorioso. A essas mudanças de lugar muitos aderiram de boa vontade, e também os velhos, abandonados os próprios altares, seguiam os colonos além-mar. 8. É inútil, por outra, citar mais exemplos: um ainda acrescentarei, que se apresenta espontaneamente ao olhar: também esta ilha amiúde mudou de habitantes. Sem calcular os mais antigos, cujos nomes se perdem na noite dos tempos, os gregos da Fócida, que agora moram em Marselha, pararam antes nesta ilha; não se sabe exatamente o que os fez fugir depois: se o clima áspero ou a vizinhança da Itália muito poderosa, ou o mar sem portos; não foi, certamente, a barbaridade dos habitantes, como aparece pelo fato de que pararam no meio de povos gauleses, ferozes e incivis, então, muito mais que todos os outros. 9. Depois passaram por essa ilha os ligúrios e depois também os iberos, como se vê pela semelhança dos costumes: têm, de fato, chapéus e calçados semelhantes àqueles dos cantábrios, e também algumas palavras: pois que a língua deles, devido a suas relações com os gregos e os ligúrios, modificou-se profundamente. Foram trazidas ainda duas colônias de cidadãos romanos, uma por Mário e outra por Sila: tantas vezes mudaram os habitantes desse árido e espinhoso rochedo! 10. A custo, enfim, se pode encontrar um recanto habitado ainda pelos indígenas: tudo está misturado e transplantado. A cada um sucedeu outro; este desejou o que aquele achou aborrecido; esse foi expulso do lugar, de onde antes expulsara os outros. Porque a sorte quis que nada ficasse sempre no mesmo lugar. VIII — 1. Não considerando os outros inconvenientes conexos com o exílio, contra a mudança de lugar pareceu remédio suficiente a Varrão, o mais douto entre os romanos, pensar que, por toda parte onde formos, teremos ao nosso redor a mesma natureza; e a Bruto pensar que quem parte pode levar consigo suas virtudes. 2. E se alguém julga ineficaz para consolar o desterrado um só desses dois remédios, deverá reconhecer que juntos são eficazes. De fato, quão pouco é o que perdemos! Mas nos seguem em toda parte as duas coisas mais belas: a natureza comum a todos e a virtude individual. 3. Crê-me, isso foi feito por aquele que deu forma ao universo, seja ele o Deus Senhor de Tudo, seja a incorpórea razão, artífice das maiores obras, seja o divino espírito difundido com igual intensidade em todas as coisas, máximas e mínimas, seja a sorte e a série imutável das causas ligadas uma à outra: isto, digo eu, foi feito para que não fiquem ao arbítrio alheio senão as coisas de menor valor. 4. O que no homem há de melhor está além de toda a força humana e não pode ser dado nem tirado. Esse céu, que é a coisa maior e mais bela que a natureza tenha criado, e a alma que o contempla e o admira — e dele é a parte mais nobre — são nossos, sempre, e conosco ficarão enquanto vivermos. 5. Por isso, alegres e de cabeça erguida iremos com passo intrépido aonde quer que a sorte nos leve, percorreremos qualquer terra: entre os confins do mundo não há exílio; porque nada daquilo que está dentro dos confins do mundo é estranho ao homem. De qualquer parte o olhar levanta-se igualmente para o céu, a mesma distância separa em qualquer parte as coisas divinas das humanas. 6. Por isso, enquanto meus olhares não se afastarem do espetáculo que nunca os farta; enquanto me for permitido olhar o sol e a lua, fixar os outros planetas, deles observar o nascimento e o ocaso e as distâncias, e indagar as causas que tornam seu curso mais veloz e mais lento, contemplar durante a noite tantas estrelas brilhantes, uma imóvel, outra que se move em curto espaço mas sempre sobre seu caminho, e algumas que aparecem de repente, algumas que espiram centelhas, como se caíssem, tanto que ofuscam a vista, ou cintilantes percorrem voando um grande espaço; enquanto estiver com todas essas coisas e me confundir, tanto quanto é permitido ao homem, com as coisas celestes; enquanto tiver sempre alta a alma, inclinada por sua natureza à contemplação dos astros a ela semelhantes — que importa que solo eu pise? IX — 1. "Mas esta terra não é rica de árvores frutíferas que alegrem a vista; não é sulcada por rios grandes e navegáveis; nada produz que os outros povos venham procurar, é fértil apenas o suficiente para nutrir os habitantes; nela não se abrem pedreiras de mármores procurados, nela não se escavam minas de ouro ou de prata." 2. Acanhada é a alma, que as coisas terrenas deleitam; e é preciso arrancá-la dessas e levá-la para as que em toda parte aparecem igualmente e igualmente resplandecem. Devemos refletir que esses bens terrenos são obstáculos aos verdadeiros bens por causa das opiniões falsas e mentirosas: quanto mais compridos pórticos se constroem, quanto mais altas torres se levantam, quanto mais amplos caminhos se abrem, quanto mais profundas se escavam as grutas estivas, quanto mais monumentais se erguem os tetos das salas de jantar, tanto mais todas essas coisas nos esconderão o céu. 3. Embora o acaso te tenha atirado em tal lugar, em que a mais luxuosa habitação seja uma choupana, terias na verdade uma alma vil e serias um mesquinho confortador de ti mesmo, se te resignasses a isso só, lembrando a choupana de Rômulo. Deves antes dizer: "Esta humilde choupana hospeda virtudes? E então é mais linda que todos os templos, pois que nela estão a justiça, a moderação, a sabedoria, a piedade, a regra para justamente cumprir todos os deveres, a ciência das coisas divinas e humanas. Lugar nenhum é apertado, se pode conter tantas e tão grandes virtudes, nenhum exílio é tão grave, se nele podemos ir com aquelas virtudes". 4. Bruto, em seu livro Das Virtudes, conta ter visto Marcelo desterrado em Mitilene, e tê-lo encontrado feliz, o quanto pelo menos pode sê-lo um homem, e dedicado aos bons estudos como em nenhum outro período da vida; e diz ainda que por tal motivo teve a sensação, partindo, de ir ele para o exílio, porque voltava sem Marcelo, mais que de deixar Marcelo no exílio. 5. Ó bem-aventurado Marcelo, teu exílio agradou a Bruto mais que teu Consulado teria agradado à República! Que homem deve ter sido ele se obteve que outro se considerasse um desterrado somente porque se afastava dele, exilado! Que homem deve ter sido para ser admirado por outro homem, que foi admirado, ele próprio, por Catão! 6. Conta ainda Bruto que Júlio César, passando por Mitilene, não parou, porque não podia suportar a cena de um homem reduzido a tão míseras condições. A Júlio César impetrou mais tarde a volta com públicas súplicas o Senado, tão atencioso e meigo, que parecia que todos tivessem naquele dia a alma de Bruto, e que pedissem não para Marcelo, mas para si próprios, para não ficarem exilados, como teriam ficado sem ele; mas muito mais glorioso foi para Marcelo o dia em que Bruto não suportou deixá-lo e César não suportou vê-lo desterrado, porque teve a sorte de ver o reconhecimento de ambos: Bruto se sentiu magoado de voltar sem Marcelo, César ficou envergonhado. 7. Não há dúvida de que um homem tão forte como Marcelo tenha exortado amiúde a si mesmo a suportar o exílio de bom grado com estas palavras: "Não é uma desventura que tu estejas bem longe da pátria. Apreendeste de teus estudos pelo menos o suficiente para saber que para o sábio todo lugar é pátria. Por outro lado, o homem que te mandou ao exílio não esteve ele mesmo dez longos anos longe da pátria? Esteve para estender os domínios romanos, todavia esteve longe. 8. E agora chama-o a si a África, que ameaça uma nova guerra, chama-o a Espanha, que consolida a sedição desordenada e abatida, chama-o o infiel Egito, chama-o todo o mundo que espera das agitações do Império a ocasião para revoltar-se. Aonde correrá antes? Contra que parte se voltará? Sua vitória o arrastará para todas as terras. O vulgo pasmado e reverente olhe para ele; tu vive contente, porque Bruto te admirou!" X — 1. Portanto, Marcelo suportou bem seu exílio, e nada mudou em sua alma a mudança de lugar, embora disso lhe derivasse a pobreza. Mas cada pessoa, que não seja possuída pelo demônio da avareza e do luxo, que confunde a ordem das coisas, sabe que a pobreza não é um mal. Quão pouco chega, de fato, para sustentar um homem! E a quem pode faltar esse pouco, se tem alguma virtude? 2. No que me diz respeito, tenho consciência de ter perdido preocupações, não riquezas. As necessidades do corpo são poucas: pode subtrair-se do frio, e tirar-se a fome e a sede; tudo o que se deseja a mais procura-se para os vícios e não para as necessidades. Não é preciso sondar todo o mar nem encher o ventre com animais matados nem arrancar as ostras das praias desconhecidas dos mares mais longínquos: que os deuses e as deusas exterminem aqueles, cujo afã de coisas raras passa além dos confins de um império, que suscita tantas invejas! 3. Querem que se apanhe para lá do Fásis alguma raridade para que embeleze seu suntuoso banquete, e não têm vergonha de fazer vir aves desde os partos, aos quais ainda não fizemos pagar a derrota de Crasso. De toda parte do mundo acolhem alimentos, conhecidos e ignorados, para sua gula enjoada; da extrema parte do oceano são trazidas as iguarias que seu estômago, estragado pelas gulodices, pode aceitar; vomitam para comer, comem para vomitar, e não se dignam a digerir nem os petiscos que eles procuram por toda a terra. Quem despreza essas coisas, que dano pode receber da pobreza? Além disso, se alguém as deseja, ela lhe será útil. Sara, de fato, sem querer; e se, não forçado, toma um remédio, pelo menos durante o tempo em que não pode querer, é como se não quisesse. 4. Calígula (que a natureza degenerou, penso eu, para mostrar quanto pode o máximo dos vícios no máximo da prosperidade) gastou em um dia só para um almoço dez milhões de moedas de cobre; e, embora ajudado pela fantasia de seus cortesãos, pôde a custo encontrar a maneira de converter o tributo de três províncias num almoço. 5. Paupérrimos aqueles cujo paladar não se excita senão perante alimentos preciosos: preciosos não por algum excelente sabor ou doçura da gula mas pela raridade e dificuldade de encontrá-los! Caso contrário, se readquirissem o bom senso, que necessidade haveria de tantas fadigas gastas em servir o ventre, de iguarias de países longínquos, e de despovoar e de sondar os abismos? Espalhados jazem os alimentos, que a natureza pôs por toda parte; mas eles, como cegos, os relaxam e percorrem todas as regiões e atravessam os mares para estimular a grande preço a fome, que com pouco poderiam satisfazer. 6. Teríamos vontade de lhes dizer: "Para que fazeis descer ao mar os navios? Para que armais as mãos contra as feras e contra os homens? Para que correis aqui e acolá afanosamente? Para que acumulais riquezas sobre riquezas? Não quereis refletir quão pequenos são vossos corpos? Não vos parece uma loucura, até a mais solene das loucuras, desejar muito, quando o vosso corpo pode conter tão pouco? Podereis aumentar vosso patrimônio, levar mais longe os confins do Império, mas não dilatar vossos corpos. Quando vossas compras tenham saído perfeitamente, e vossos soldados vos tenham trazido preciosos manjares, e esses manjares de todas as partes da terra sejam recolhidos, não tereis onde pôr vossos banquetes. 7. Para que procurais tantas coisas? Na verdade, eram infelizes vossos antepassados (sobre cuja virtude se baseiam ainda hoje vossos vícios), que preparavam a comida com suas próprias mãos, dormiam no chão e tinham casas ainda não resplandecentes de ouro e templos ainda não reluzentes de pedras preciosas; e juravam religiosamente sobre divindades feitas de argila; e aqueles que a essas divindades tinham implorado, embora certos de morrer, para não faltar à fé jurada, voltavam para o inimigo!" 8. E aquele nosso ditador, que ouviu os embaixadores dos samnitas, enquanto que com a mesma mão, com a qual muitas vezes abatera o inimigo e pusera a coroa de louro sobre o altar de Júpiter Capitolino, virava no fogo um modesto alimento, vivia talvez menos feliz do que viveu nosso quase contemporâneo Apício, que na cidade, da qual certa vez foi obrigado a partir pelos filósofos, teve escola de gulodice e contaminou seu tempo com sua ciência? 9. Vale a pena saber como acabou: após dissipar cem milhões de moedas de cobre na cozinha, após gastar em cada orgia somas fabulosas iguais a muitas dádivas de príncipes e às rendas dos tributos do Estado, por fim, oprimido pelas dívidas, foi obrigado a examinar suas contas; e, calculando que lhe teriam sobrado dez milhões de Moedas de cobre, como se viver com dez milhões de moedas de cobre fosse para ele viver sob o espectro da fome, envenenou-se. 10. Que necessidade louca de luxo havia nesse homem, para o qual ter dez milhões de moedas de cobres era pobreza! E agora pensa se puderes, que o que importa é a quantidade de dinheiro, não a da alma... Houve quem se afligiu de possuir dez milhões de moedas de cobre e afastou-se, envenenando-se, daquilo que tantos almejam possuir! Para homem tão estulto, a última bebida foi salutar: os verdadeiros venenos ele os comia e bebia quando não se deleitava somente, mas se vangloriava de banquetes imensos, ostentava seus vícios, arrastava toda a cidade a imitar suas prodigalidades, e levava a segui-lo por tal caminho a mocidade, que mesmo sem maus exemplos é por natureza mais inclinada para o mal que para o bem. 11. Isso acontece a quem não usa as riquezas conforme o bom senso, que tem regras bem determinadas, mas conforme seus preciosos hábitos, cujo capricho é demasiado grande para ser dominado. Para a cobiça nada chega, para a natureza basta também pouco. Por isso a pobreza não traz nenhum dano ao desterrado; porque lugar algum de exílio é tão pobre que não seja bastante fértil para alimentar um homem. XI — 1. "Mas o desterrado sentirá a falta de roupas e de casa." Mesmo se ele desejar essas coisas somente porque são necessárias, não lhe faltará nem teto nem trapo para vestir. Como com pouco se nutre, assim com pouco se veste o corpo humano: a natureza quis que as necessidades, que ela deu ao homem, não fossem difíceis de satisfazer. 2. Mas se desejar vestes de púrpura repleta de muitas conchas, ou tecidas de ouro, ou bordadas com várias cores e pontos, ele é pobre por culpa não da sorte mas sua. E se a esse homem devolveres tudo o que perdeu, nada obterá mesmo após a restituição, faltar-lhe-á, comparado com aquilo que deseja, mais que quanto falta ao desterrado, comparado com o que possuía. 3. Se deseja vasilhame de ouro e prata ilustrado pela assinatura de antigos artesãos, e bronzes que se tornaram preciosos pela loucura dos amadores, e um exército de escravos, tanto que se torne estreita a casa mais espaçosa, e cavalos ocupados só em comer e engordar, e mármores de todas as regiões; mesmo que todas essas coisas lhe sejam amontoadas na frente, nunca lhe satisfarão a insaciável alma, mais do que qualquer quantidade de água poderia saciar o homem cujo desejo provém não da falta de água mas do queimar das vísceras ardentes: porque essa não é sede, mas doença. 4. Nem isso acontece só pelo dinheiro ou pela comida: todos os desejos, que nascem não do desejo mas do vício, têm a mesma natureza: por muito que se acumule na frente de tais homens, a cobiça desses não terá fim, mas dará mais um passo. Quem, portanto, permanece contente entre os limites marcados pela natureza, não conhece a pobreza: quem sair desses limites é pobre mesmo entre as maiores riquezas. Às necessidades provêm suficientemente também os lugares do exílio; às coisas supérfluas não bastam os reinos. 5. É a alma que torna ricos os homens: a alma segue-os no exílio; e quando encontra quanto basta para sustentar o corpo, mesmo nas mais ásperas solidões, é rica e goza de seus bens: à alma nada importa o dinheiro, não mais do que importa aos deuses imortais. 6. Todas essas coisas que os tolos, escravos do próprio corpo, olham admirando — mármores, ouros, pratas, grandes mesas redondas e polidas — são pesos terrenos que não podem atrair uma alma pura e que lembra sua natureza, imune de tal vício e pronta para voar ao céu assim que liberta do corpo, e no entanto observa as coisas divinas com pensamento incansável, quanto lho permite o grave e importuno cargo dos membros, que a cercam. 7. Por isso não pode nem ser mandada ao exílio, pois que ê livre, semelhante aos deuses, presente em todo o espaço e contemporânea a todo o tempo: porque seu pensamento vaga em todos os céus e penetra o passado e o futuro. É esse nosso mísero corpo, prisão e corrente da alma, que pode ser jogado em qualquer lugar; sobre ele têm poder os suplícios, os roubos, as doenças: a alma é sagrada e eterna, e ninguém lhe pode fazer violência. XII — 1. A fim de que tu não creias que para aliviar os aborrecimentos da pobreza (que é grave só para os homens que a creem tal) eu me sirva unicamente de preceitos dos sábios, observa como são mais numerosos os pobres; nem poderás dizer que eles são mais tristes ou mais preocupados do que os ricos, porque até se diria que são mais felizes quanto menos possuem os objetos que possam magoá-los. 2. Deixemos os pobres e vamos aos ricos; em quantas circunstâncias são eles semelhantes aos pobres? Quando viajam, suas bagagens são só uma parte daquilo que possuem; e, se a viagem impõe pressa, devem privar-se da multidão de acompanhadores. Quando soldados, quanto da própria riqueza levam consigo, visto que a rude vida da milícia impede todo luxo? 3. Os ricos são iguais aos pobres não somente em certas condições de tempo ou por miséria de lugar: quando são tomados pelo tédio das riquezas, escolhem alguns dias em que comem no chão e deixam seu vasilhame de ouro e de prata, servindo-se de louças de barro. Loucos, temem sempre aquilo que às vezes desejam! Imitam a pobreza para experimentar um prazer; e, contudo, quanta escuridão e quanta ignorância daquilo que ela realmente é ofende seus cérebros! 4. Quanto a mim, cada vez que volto com o pensamento aos antigos tempos, tenho pudor de procurar confortos à pobreza: pois a corrupção de nosso tempo chegou a tal ponto que o viático, que se deixa aos desterrados é maior do que aquilo que era uma vez o patrimônio dos ricos. É sabido que Homero teve um só escravo; Platão, três; Zenão, de quem teve origem a austera e viril escola estoica, nenhum; e quem poderá dizer que eles tiveram uma vida infeliz, sem arriscar-se a parecer a todos por essa sua opinião infelicíssimo ele mesmo? 5. Para as exéquias de Menênio Agripa, que foi mediador de paz entre os nobres e a plebe, foi preciso fazer uma coleta. Atílio Regulo, depois de ter dispersado os cartagineses na África, escreveu ao Senado que seu colono tinha ido embora, abandonado seu campo; e o Senado estabeleceu que o campo fosse cultivado durante a ausência de Atílio Regulo às expensas públicas. Não achas que valeria a pena não ter um criado, para ter como colono o povo romano? 6. As filhas de Cipião receberam um dote do erário, porque o pai não lhes deixara nada; e era lógico, por Hércules, que o povo romano pagasse ao menos um tributo a Cipião, pois exigia um tributo anual de Cartago. Felizes os maridos para os quais foi sogro o povo romano! Ou crês que aqueles cujos filhos são casados com dançarinas, que têm um milhão de moedas de cobre de dote, sejam mais felizes que Cipião, cujos filhos receberam em dote do Senado, seu tutor, uma pequena moeda? 7. Como pode queixar-se um desterrado de que lhe falte alguma coisa, se para Cipião faltou o dote, para Regulo um colono, para Menênio o enterro, e se para todos aquilo que faltava foi substituído tanto mais honrosamente, justamente porque faltava? Com esses advogados a pobreza não só é defendida, mas pode tornar-se até agradável. XIII — 1. Poder-se-á responder: "Por que divides artificiosamente todas essas coisas, que são toleráveis quando isoladas e não quando juntas? É tolerável mudar de sede, se mudar somente a sede; é tolerável a pobreza, conquanto não se junte a ela a desonra, que abate todas as almas por si só. 2. Às pessoas que me queiram assustar, acumulando diante de mim todos os males, é preciso responder assim: se formos suficientemente fortes contra uma só desgraça, o seremos igualmente contra todas. Desde que a virtude robustece a alma, ela é por toda parte invulnerável. 3. Se te livraste da avareza, que é o mais violento flagelo da humanidade, a ambição não retardará teu caminho; se consideras a morte não como uma pena mas como uma lei da natureza, de modo que a alma fique desembaraçada do medo dela, nenhum outro medo ousará vir aborrecê-la; se estás convencido de que a união dos sexos foi dada ao homem não para o prazer mas para a continuação da espécie, e não violas essa lei arcana e severíssima, profundamente enraizada em nossas vísceras, estarás imune a qualquer outro desejo do prazer. A razão não vence os vícios um por um, mas os abate todos contemporaneamente: ela vence uma vez por todas. 4. Pode acreditar-se, talvez, que o sábio seja perturbado pela infâmia, ele que reúne tudo em si e está tão afastado das opiniões do vulgo? Mais ainda do que a infâmia é uma morte infamante: contudo, Sócrates, com o mesmo rosto, com o qual certa vez, único em Atenas, dominara os trinta tiranos, entrou no cárcere, tornando-o com isso menos infamante: porque o cárcere não é cárcere quando nele está um Sócrates. 5. Quem pode ser tão cego, perante a verdade, a ponto de achar desonrosa para Marcos Catão a dupla recusa de suas candidaturas à pretoria e ao Consulado? Foi antes vergonha para a pretoria e para o Consulado, os quais não podiam senão ser honrados por um Catão. 6. Ninguém pode ser desprezado por outrem, se não se desprezou antes a si mesmo. A esse tipo de desonra estão sujeitas as almas covardes e fracas; mas para o homem que se eleva acima e contra os mais cruéis golpes da sorte, e domina os males que oprimem os outros, as desventuras são como uma auréola. De fato, nós somos tais que nenhuma coisa desperta nossa admiração tanto quanto um homem forte na desventura. 7. Quando, em Atenas, Aristides estava sendo levado ao suplício, quem quer que o encontrasse baixava o olhos e gemia, como se tivesse sido condenado não um homem justo mas a própria justiça: assim mesmo, houve quem lhe cuspisse no rosto. Teria podido sentir indignação, sabendo que ninguém que tivesse a boca pura teria ousado tal coisa: ele, ao contrário, limpou o rosto, e sorrindo disse ao magistrado, que o acompanhava: "Avise esse tal que de agora em diante não boceje mais tão indecentemente". E foi esse o melhor modo de se fazer vilania a vilania. 8. Sei que alguns dizem que não há pior coisa que o desprezo e que prefeririam a morte. A esses responderei que amiúde o exílio não produz o desprezo: quando cai um grande (e contínua grande mesmo no chão), ele não é desprezado mais do que quanto o sejam as ruínas dos templos, que os devotos adoram igualmente como se estivessem de pé. XIV — 1. Então, minha querida mamãe, não tens, pelo que me diz respeito, nenhum motivo para te consumires em pranto: resta examinar, ainda, se podem estimular-te motivos particulares; isto é, se pode magoar-te a ideia de que perdeste uma ajuda e uma defesa, ou a ideia de que não podes suportar minha falta. 2. Para a primeira bastam poucas palavras, porque conheço tua alma, e sei que ela, em seus entes queridos, não ama senão eles mesmos. Esta ideia se refere às mães, que, com feminina incapacidade de controle, querem controlar os poderes dos filhos; às mães que, como as mulheres não podem exercer os cargos públicos, satisfazem à própria ambição por meio dos filhos, pondo-a a serviço dos outros. 3. Tiveste grande prazer nos bens de teus filhos, muito pouco gozaste dos mesmos, impuseste sempre um limite à nossa generosidade, sem impor limite algum a ti mesma; quando ainda vivo teu pai, aumentaste a riqueza, que já teus filhos possuíam; administraste nossos haveres com o mesmo cuidado como se fossem teus, com o mesmo escrúpulo como se fossem de outrem; não procuraste nenhuma vantagem de nossa influência, como se fosse coisa de outrem, e de nossas honras não te foi dado mais do que o prazer e as despesas: nunca teu afeto visou ao útil. Não podes, pois, magoar-te, porque ao filho, que te foi arrancado, faltem as coisas que, quando ele se encontrava no primitivo estado, nunca as achaste necessárias a teu afeto. XV — 1. Para te dar conforto, devo bater sobre a verdadeira origem de tua grande dor de mãe: "Tenho, então, que me privar do abraço de meu filho amado; não posso ter a alegria de vê-lo e de falar-lhe! Onde está aquele em cuja presença a tristeza desaparecia de meu rosto e no qual derramava qualquer pensamento triste meu? Onde estão os colóquios, que não me saciavam, os estudos dos quais participava com maior interesse do que é de costume entre as mulheres, com maior camaradagem do que é comum ver nas mães? Onde estão os encontros, nos quais, ao ver sua mãe, ele se iluminava de um riso de eterna criança?" 2. Junta a isso a vista dos lugares, onde gozamos e vivemos juntos, e, necessariamente, a vista de todos os objetos, que te lembram nossa recente vida em comum, estímulo eficacíssimo para azedar a dor: pois a sorte quis completar sua cruel maquinação contra ti, fazendo com que te afastasses, tranquila e sem nem a suspeita de um semelhante acontecimento, apenas dois dias antes de me golpear. 3. Fora um bem a distância que nos tivera afastado um do outro; fora um bem nossa separação de alguns anos para preparar-te a essa desgraça: voltaste, ao contrário, não para ter a alegria de ver teu filho mas para perder o costume de estar longe dele. Se tivesses partido muito tempo antes, terias suportado com maior coragem o golpe, pois a longa separação teria atenuado a saudade; se não te tivesses afastado novamente, terias tido pelo menos o extremo prazer de ver teu filho dois dias mais. Ao contrário, a sorte cruel dispôs as coisas de modo que nem estivesses a meu lado na desgraça, nem estivesses habituada à ausência. 4. Mas, quanto mais graves são essas dores tanto mais deves chamar em socorro todas as tuas forças, e enfrentar, por assim dizer, com maior ímpeto, esse inimigo, que conheces e que amiúde derrotaste. O sangue que agora derramas não brota de meu corpo ileso: a nova ferida te alcançou através das cicatrizes precedentes. XVI — 1. Não é razoável que te desculpes dizendo que és mulher, porque às mulheres é concedido o direito de chorar em demasia, mas não sem um limite. Nossos antepassados estabeleceram onze meses de luto para as mulheres que choravam o marido: por meio desse decreto público vinham a uma transação com a pertinácia da aflição feminina. Não proibiam o luto, mas lhe impunham um termo; afligir-se sem medida, mesmo quando se perde alguém dos entes mais queridos, é um gosto tolo, e não afligir-se em absoluto é dureza desumana: entre o sentimento e a razão o meio-termo ideal é sentir a dor da perda e reprimi-la. 2. Não é razoável que penses em certas mulheres a cuja dor só a morte põe fim (e tu conheces algumas que, pondo o luto pela morte de um filho, nunca mais o tiraram). De ti, ao contrário, pela energia que tua vida exigiu desde o começo, temos o direito de esperar mais: não pode assumir como desculpa o ser mulher quem sempre foi imune aos defeitos das mulheres. 3. Não te arrastou no número das demais o pior vício de nosso tempo, a falta de pudor; não te dobraram nem as joias nem as pérolas; a riqueza nunca conseguiu brilhar a teus olhos como o máximo bem do gênero humano; a imitação dos piores, que é perigosa mesmo para os honestos, não afastou do caminho certo a ti, que foste criada numa casa antiga e austera; nunca te envergonhaste de tua fecundidade como se fosse coisa repreensível no teu tempo; nunca escondeste, como se fosse um peso vulgar, teu ventre prenhe, como fazem as outras, que se dedicam somente à beleza; nunca suprimiste no seio os filhos concebidos; 4. Não manchaste o teu rosto de cosméticos; nunca te agradaram os vestidos com os quais, quem os veste, está mais nua do que se estivesse nua: único enfeite, beleza superior a qualquer outra e não vinculada a idade alguma, máximo orgulho foi para ti sempre a pudicícia. 5. Não podemos, pois, para legitimar tua dor, servirmo-nos do pretexto de teu sexo, do qual tuas virtudes te afastaram: deves manter-te tão longe dos prantos femininos quanto te mantiveste dos defeitos. Nem as mulheres te deixarão consumir sobre tua ferida, se querem tomar como exemplo aquelas cuja admirada virtude pôs entre o número dos grandes. 6. A sorte reduziu a dois os doze filhos de Cornélia: dez mortos (se repararmos no número) e Gracos (se quisermos fazer a estimação da perda). Contudo, às pessoas que ao redor dela choravam e imprecavam contra seu destino impôs não acusar a sorte, que lhe dera por filhos os Gracos. De tal mulher é justo que nascesse aquele que na assembleia ousou dizer: "Tu ousas dizer mal de minha mãe, que gerou a mim?" Mas muito mais corajosas me parecem as palavras da mãe: porque o filho mostrou ser orgulhoso de sua estirpe, a mãe mostrou ser orgulhosa também da morte dos filhos. 7. Rutília seguiu no exílio o filho Cota, e o afeto prendeu-a de modo que preferiu enfrentar o exílio a enfrentar a dor de estar longe; e não voltou para a pátria senão quando voltou o filho. Com a mesma coragem, com a qual o seguira perdeu-o mais tarde, quando tinha voltado e já se sentia posto em evidência na vida pública; e ninguém a viu chorar depois que o levaram embora. No exílio mostrou sua força de alma, na morte sua sensatez, porque nada conseguiu amedrontar seu amor materno, e nada a fez insistir numa aflição inútil e tola. Quero que tu estejas no número dessas mulheres, e que sigas, em dominar e comprimir teu desgosto, o magnânimo exemplo dessas como sempre dessas imitaste a vida. XVII — 1. Compreendo que isso não está em nosso poder, nem podemos dominar nossas comoções: especialmente as comoções que se originam da dor e são indomáveis e rebeldes a qualquer tratamento. Queremos sepultá-las e sufocar os gemidos: ao contrário, as lágrimas escorrem pelo rosto fingidamente calmo; queremos ocupar a mente nos jogos e nos espetáculos dos gladiadores: ao contrário, mesmo no meio dos espetáculos, que nos deveriam distrair, basta a sombra da saudade para reviver a paixão. 2. É melhor, pois, vencê-la do que enganá-la; porque das distrações, dos prazeres e dos negócios ressurge, e toma vigor do descanso para tornar-se cada vez mais áspera; ao contrário, se ceder à razão, acalma-se para sempre. Por isso, não te recomendarei, como sei que muitos fazem, que faças uma viagem longa que te ocupe, ou agradável que te divirta, nem que ocupes teu tempo revendo diligentemente as contas e administrando o patrimônio; nem que te ocupes sempre com algum novo trabalho. Todas essas coisas são úteis para a dor; e não quero que ela seja enganada, mas que acabe. 3. Por isso te incito a procurar refúgio onde todos os que procuram conforto para suas mágoas deviam refugiar-se: nos estudos liberais. Eles saberão sarar tua ferida, arrancando de ti toda queixa. Tu agora os deverias cultivar mesmo se nunca tivesses tido familiaridade com eles; mas tu, porquanto te permitiu a austeridade de velho tipo de meu pai, abordaste todas as boas artes, embora sem aprofundar seu estudo. 4. Oh! se meu pai, que era o melhor dos homens, mas estava demasiadamente preso aos costumes dos antepassados, tivesse desejado que tu fosses ensinada ao invés de informada somente dos preceitos da sabedoria! Agora, contra os golpes da sorte, precisarias não procurar auxílios mas servir-te dos que tiveste. Mas meu pai não quis que tu seguisses tua inclinação para esses estudos por causa das mulheres que se servem da cultura não para tirar regras de sabedoria e sim para enfeitar-se com ela como com custosa joia. Todavia, graças à tua pronta inteligência, assimilaste mais que quanto pudesse fazer supor o tempo dedicado à cultura: lançaste os alicerces de toda disciplina. 5. Volta para ela, agora: ela te protegerá. Ela te consolará, te deleitará; se entrar em tua alma, acolhida com sincera fé, nela não entrará mais a dor, nem as preocupações, nem o inútil tormento de uma vã aflição: para nenhum desses males estará aberto teu peito, que para as outras fraquezas está, há tempo, fechado. Ela é realmente o mais seguro castelo, e só ela te poderá arrancar do arbítrio da sorte. XVIII — 1. Mas, visto que, enquanto não entrares no porto que os estudos te prometem, precisas de algum amparo onde apoiar-te, quero mostrar-te de que alívios podes dispor. Dirige teu olhar para meus irmãos: se eles estão salvos, não é justo que tu acuses a sorte. 2. Em um ou outro tens razões de alegria diferente: um, com sua atividade alcançou as mais altas honras, outro sabiamente delas se manteve afastado. Vive tranquila na dignidade do primeiro, na paz do segundo, no afeto de ambos. Conheço os sentimentos profundos de meus irmãos: o primeiro ama as honras só para que te ornem, o outro fechou-se numa vida pacífica e calma só para se dedicar a ti. 3. A sorte situou teus filhos da melhor maneira, para que te deem auxílio e deleite: podes ser defendida pela autoridade de um, gozar do ócio do outro. Disputarão entre eles as atenções para contigo, e a saudade de um será compensada pelo afeto de dois filhos: poderás até afirmar sem mais que não te falta senão o número. 4. Desses dirige o olhar a teus netos: ao gracioso menino que é Marcos, diante do qual nenhum aborrecimento pode durar, nenhuma dor, por grande e recente que seja, pode arder no peito de ninguém: o menino vivaz tudo alivia! 5. Que lágrimas não enxugaria seu riso? Que rugas de dor não estenderiam suas carícias? Quem não seria convidado a brincar pela sua alegria? Quem não se sentiria atraído e afastado de seus pensamentos, embora profundos, por aquele seu chilrar, do qual nunca nos cansaríamos? 6. Queiram os deuses conceder-nos que ele sobreviva a nós! Sobre mim pare cansada toda a crueldade da sorte; todas as dores de sua mãe, todas as dores de sua avó, transfiram-se para mim: os outros gozem sempre de seu estado atual. Nenhuma queixa farei sobre meu luto e sobre minha condição, conquanto tenha sido eu o bode expiatório da família, de modo que a ela não chegue nenhuma outra desgraça. 7. Pegue no colo Novatila, que logo te dará bisnetos, e cujo afeto eu cultivava tanto, e que considerava tão minha que agora, por me ter perdido, se pode chamar órfã, embora o pai esteja ainda vivo: ama-a também por mim. A sorte lhe arrancou a mãe, há pouco tempo: teu afeto pode fazer com que ela se magoe pela perda, mas não sinta a falta da mamãe. 8. Agora é o momento de regularizar seus costumes, de formar seu caráter: mais profundamente descem os preceitos que se imprimem nas almas de tenra idade. Acostume-se a falar contigo, cresça como tu a queres: dar-lhe-ás muito, mesmo que só lhe dês o exemplo. Este sagrado dever será para ti como um remédio, porque nada mais que a razão ou uma sábia ocupação pode tirar da dor uma alma que se aflige por uma pessoa querida. 9. Contaria entre os maiores alívios teu pai, se não estivesse longe de ti. Todavia, pelos sentimentos que nutres para com ele, pensa quais sejam os seus para contigo: compreenderás quanto é mais justo que tu te conserves para eles antes que estar fixa sobre mim. Cada vez que te invadir a violência sem limite da dor e ela te quiser arrastar consigo, pensa em teu pai. Tu, dando-lhe tantos netos e bisnetos, não te podes considerar filha única; todavia, depende de ti que esse último período de sua vida seja sereno como foi feliz a vida passada. Enquanto ele viver, não é justo que tu te queixes de viver. XIX — 1. Ainda não falei de teu maior conforto, de tua irmã, daquele coração a ti mais que fiel, no qual passam indivisivelmente todas as tuas mágoas, daquela alma maternal para nós todos. Com ela tu confundiste tuas lágrimas, em seu seio retomaste vida. 2. Ela é sempre o eco fiel de teus sentimentos: só pelo que me diz respeito, sua dor não é causada somente por tua dor. Suas mãos me levaram a Roma; seus cuidados afetuosos e maternais me restabeleceram após longa doença; para ser útil à minha questura, ela, que antes não teria ousado nem falar nem responder em voz alta aos cumprimentos, aumentou suas relações, e por mim, pelo afeto que me dedicava, venceu a vergonha. Sua vida retirada, sua humildade no meio de tanta insolência de outras mulheres, sua calma, seus costumes modestos e amantes da paz familiar, não impediram que se tornasse por mim até ambiciosa. 3. Esse é o alívio, minha querida mãe, pelo qual serás acalmada: fica perto da irmã o mais que puderes, liga-te a ela com apertados abraços. Quem está aflito procura fugir àquilo que sobretudo ama e procura liberdade para sua dor; tu, ao contrário, com qualquer pensamento, aproxima-te dela: seja que tu queiras continuar a ficar neste estado, seja que queiras afastar-te deste estado, tua dor encontrará em tua irmã ou um termo ou uma companhia. 4. Mas, se não me engano, quanto à experiência dessa tão perfeita mulher, ela não permitirá que te consumas numa estéril tristeza, e te porá diante seu exemplo, do qual fui também um espectador. Ela perdera o esposo querido, nosso tio (com o qual casara ainda jovem), mesmo durante a viagem por mar; contudo, suportou ao mesmo tempo a dor e o medo e, vencendo a tempestade, náufraga trouxe salvo o cadáver do marido. 5. Quantos admiráveis feitos de muitas mulheres jazem sepultados no esquecimento! Se a ela fosse dado por sorte viver nos tempos antigos, tão simples em sua admiração pelas virtudes, quantos escritores, disputando entre si, celebrariam essa esposa que, esquecendo ser uma fraca mulher, esquecendo o mar, terrível mesmo para os corações mais fortes, expôs ao perigo sua própria vida para sepultar o cadáver, e não temeu seu perigo, porque pensava no enterro do esposo. É celebrada pelos poemas a mulher que se ofereceu em substituição ao marido; mas até mais querer dar-lhe sepultura com o perigo da vida, porque maior é o amor que enfrenta um perigo igual para uma vantagem menor. 6. Depois disso, ninguém se admire de que ela não tenha sido vista em público por dezesseis anos, durante os quais o marido governou o Egito, e que não admitiu em casa nenhum habitante da província, e que nada pediu ao marido, e que nunca permitiu a ninguém que lhe pedisse alguma coisa. Por isso, aquela província mexeriqueira e hábil em dizer mal dos prefeitos, onde também os que eram isentos de culpa foram atingidos pela maledicência, admirou-a como exemplo único de santidade, e, coisa dificílima para quem ama as indiretas mesmo se perigosas, conteve a seu respeito toda liberdade de palavra, e hoje, sem esperança, deseja uma prefeita a ela semelhante. Teria sido muito se aquela província durante dezesseis anos a tivesse louvado; e, até mais, que a tenha ignorado. 7. Lembro esses fatos não para dizer seus louvores, que um acento tão breve diminui, para que tu entendas a magnanimidade dessa mulher, que não foi vencida pela ambição e pela avareza, companheiras e peste de toda potência, e que o medo da morte, quando o navio já quebrado lhe mostrava iminente o naufrágio, não assustou a ponto de fazer com que desistisse, presa ao marido morto, de procurar não uma salvação para ela mas o modo de levar a salvo o cadáver para sepultá-lo. Tu deves mostrar-te igual a ela em força da alma. E retomar coragem, e comportar-te de maneira que ninguém possa pensar que te arrependes de ter tido a mim como filho. XX — 7. Mas, visto que, não obstante tudo, teu pensamento amiúde correrá a mim, e nenhum de teus filhos neste período será lembrado mais frequentemente do que eu (não porque eles te sejam menos queridos, mas porque é natural que a mão pouse mais sobre a parte que dói), eis como deves pensar-me: alegre e ativo, como se é quando tudo vai bem. De fato, tudo vai bem, pois que a alma, livre de qualquer estorvo, pode atender às ocupações próprias dela, e agora compraz -se em estudos menos severos, agora, ávida de verdade, eleva-se a considerar sua natureza e a do universo. 2. Procura antes as terras e suas posições; depois as leis do mar que as circunda, e o alternar-se da baixa e da alta maré; depois estuda o espaço medonho que liga a terra ao céu e que está cheio do tumulto dos trovões e dos raios, dos sopros dos ventos e da chuva, da neve e da saraiva; enfim, exploradas as zonas mais baixas, irrompe até a sumidade do céu, e goza do espetáculo maravilhoso das coisas divinas e, lembrando sua eternidade, transcorre através de todos os tempos, durante todo o passado e todo o futuro.