Friedrich Nietzsche – Além do Bem e do Mal Ou Prelúdio de uma filosofia do futuro NOTA PRELIMINAR Muito se tem visto em termos de introdução e prefácios a obras de filosofia. Alguns tradutores, eivados de boas intenções, mas sem formação filosófica mínima, confundem filosofia com a explanação das biografias dos autores filosóficos e apenas nisso veem utilidade. Como se o conceito de útil tivesse grande força filosófica! Como diz o próprio Nietzsche, há demasiadas profundidades atrás de um livro, cavernas que se pospõem aos planos frontais, um requinte em máscaras e subterfúgios — precisamente, a nosso ver, para apartar as aves domésticas dos altos voos destinados às aves de rapina. Ouçamos o que diz Nietzsche a respeito deste seu livro em "Ecce Homo"; parte III, "Porque escrevo bons livros". I "As minhas finalidades para os anos seguintes estavam fixadas com a máxima precisão. Terminada a parte afirmativa de meu objetivo, surgia agora a meta negativa, quer na palavra, quer na ação: a inversão de todos os valores que tiveram curso e vez nesse período, a guerra suprema, a evocação de um dia decisivo. Neste período efetiva-se a busca de caracteres semelhantes ao meu, pesquisa lenta e demorada, de individualidades transbordantes de energia que pudessem ajudar-me no mister de destruição. A partir de então, todas as minhas obras assemelham-se a anzóis: tenho a pretensão de entender melhor que qualquer outro dessas coisas relativas a caniços... Se a isca não foi abocanhada, a culpa não é minha. Não havia peixe... II Esta obra (l886) é, na essência, uma crítica da modernidade — não excluídas as ciências ditas modernas, as artes modernas e até a política moderna — indicando também um tipo oposto, muito mais que moderno, um tipo nobre, afirmativo. Neste sentido, o livro é uma "escola do cavalheiro", considerando-se esse conceito de modo mais intelectual e radical do que tem sido até agora. É necessário ter coragem no corpo, ainda que simplesmente para aceitar esta interpretação, é preciso desconhecer o medo. Todas as coisas de que se ufana nossa época são consideradas como contrárias a este tipo, quase "modos nocivos", por exemplo, o famoso "objetivismo", a "compaixão pelos sofredores", o "sentido histórico" com sua submissão ao gosto exótico, com sua banalidade diante dos petits laits, o "espírita científico". Considerando que este livro é posterior em publicação ao "Assim falava Zaratustra", talvez se chegue mesmo a determinar o regime dietético a que deve sua origem. Os olhos acostumados por um longo constrangimento a olhar agudamente para longe — Zaratustra vê mais longe que o Tzar — vê-se forçado a lançar uma vista de olhos aguda às coisas próximas, às circunvizinhas. Em todos os detalhes e sobretudo em termos formais verificar-se-á um idêntico e voluntário alheamento dos instintos que tornaram possível a criação do Zaratustra. Nota-se a figura da forma, das intenções, da arte de calar, a psicologia é tratada com dureza e crueldade, preconcebidas, não há, em todo o livro, uma única palavra de bondade... Repouso, que poderia adivinhar que tipo de repouso exige uma dissipação de vontade como a do "Zaratustra"? Teologicamente falando — escutai, não é fato comum que eu adote a voz do teólogo! — foi deus mesmo que, acabado seu trabalho e assumida a forma de serpente pôs-se ao pé da ciência — assim descansou do cansaço de ser Deus. Fez bem... O diabo nada mais é que o ócio de deus a cada sete dias..." Seria preciso mais? PREFÁCIO Supondo-se que a verdade seja feminina — e não é fundada a suspeita de que todos os filósofos, enquanto dogmáticos, entendem pouco de mulheres? Que a espantosa seriedade, a indiscrição delicada com que até agora estavam acostumados a afrontar a verdade não eram meios pouco adequados para cativar uma mulher? O que há de certo é que essa não se deixou cativar — e os dogmáticos de toda a espécie voltaram-se tristemente frente a nós e desencorajaram-se. Se de resto pode-se dizer que ainda estejam em pé! Aqui estão os troçadores que pretendem ter a dogmática caído irremissivelmente e até que esteja agonizante. Falando sério há um bom motivo para esperar que em filosofia o dogmatizar, ainda que tenha esbanjado frases solenes e aparentemente incontestáveis, tenha sido uma nobre peraltice de diletantes e que está próximo o tempo em que se compreenderá cada vez mais quão mesquinhas são as bases dos edifícios sublimes e aparentemente inabaláveis, erigidos pelos filósofos dogmáticos — alguma superstição sobrevivente de épocas pré-históricas (como superstição da alma que ainda hoje continua a ser fonte de queixumes com a superstição do "sujeito" e do "eu"), sem falar em alguns jogos de palavras, alguns erros gramaticais, ou ainda alguma audaz generalização de muito poucos fatos, muito pessoais e muito humanos, antes de mais nada humanos. A filosofia dos dogmáticos foi, esperamos, simplesmente uma promessa para alguns milhares de anos no futuro, como em tempos ainda remotos o foi a astrologia, a serviço da qual foram dispendidos mais dinheiro, trabalho, perspicácia e paciência de que até agora já se dispendeu com uma ciência positiva qualquer — à astrologia e às suas aspirações sobrenaturais devemos o estilo grandioso da arquitetura da Ásia e do Egito. Parece que toda coisa grande para poder se imprimir com caracteres indeléveis no coração humano deve primeiramente passar sobre a terra sob o aspecto de uma caricatura monstruosa e assustadora; tal caricatura monstruosa foi a filosofia dogmática; por exemplo a doutrina dos Vedas na Ásia e o platonismo na Europa. Somos ingratos para com eles, ainda que seja necessário confessar que o pior, o mais pertinaz e o mais perigoso de todos os erros foi o de um filósofo dogmático e precisamente a invenção platônica do puro espírito e do bom por si mesmo. Mas hoje que o superamos, que a Europa respira aliviada de., tal incubo e que pelo menos pode dormir um sono mais salutar, somos, nós cuja única junção é permanecermos acordados, somos os herdeiros de toda força, acumulada pela longa luta contra o erro. Seria preciso colocar a verdade de pernas para a ar, renegar a perspectiva, a condição fundamental da vida, para falar do espírito do bem como o faz Platão; antes, como médico, poder-se-ia perguntar "por que uma tal moléstia no produto mais belo da Antiguidade, em Platão? Seria então verdadeiro que Sócrates o tivesse corrompido? Seria Sócrates efetivamente o corruptor da juventude? Mereceu, na verdade, a sua cicuta?" Porém a luta contra Platão, ou para dizê-lo de modo mais inteligível e popular, a luta contra a milenar opressão clerical cristã — uma vez que o Cristianismo é um Platonismo para a povo — produziu, na Europa, uma maravilhosa tensão dos espíritos até então nunca vista na terra; com o arco vergado de tal forma pode-se visar o alvo mais longínquo. É verdade que para o europeu esta tensão é causa de mal-estar; e duas grandes tentativas de relaxar o arco já foram feitas, a primeira vez com o jesuitismo e a segunda com a propaganda das ideias democráticas. Com o auxílio da liberdade de imprensa e com a leitura dos jornais chegamos a tal ponto que o espírito não sentirá mais incubo de si mesmo. (Os alemães inventaram a pólvora, que isto lhes sirva de orgulho; mas inventaram a imprensa e com isso cometeram erros!) Mas nós, nós que não somos jesuítas, democratas e nem mesmo suficientemente alemães, nós, nós bons europeus e espíritos livres — sentimos agora toda a opressão do espírito, possuímos toda a tensão do arco! E, é claro, também a seta, a tarefa, e quem sabe? o alvo... Sils-Maria, Engadina Sup., junho de 1885. PRIMEIRA PARTE OS PRECONCEITOS DOS FILÓSOFOS 1 O amor pela verdade que nos conduzirá a muitas perigosas aventuras, essa famosíssima veracidade de que todos os filósofos sempre falaram respeitosamente — quantos problemas já nos colocou! E problemas singulares, malignos, ambíguos! Apesar da velhice da estória, parece que acaba de acontecer. Se acabássemos, por esgotamento, sendo desconfiados e impacientes, que haveria de estranho? É estranhável que essa esfinge nos tenha levado a nos formular toda uma série de perguntas? Quem afinal vem aqui interrogar-nos? Que parte de nós tende "para a verdade?" Detivemo-nos ante o problema da origem dessa vontade, para ficar em suspenso diante de outro problema ainda mais importante? Interrogamo-nos sobre o valor dessa vontade. Pode ser que desejamos a verdade, mas por que afastar o não verdadeiro ou a incerteza e até a ignorância? Foi a problema da validade do verdadeiro que se colocou frente a nós ou fomos nós que o procuramos? Quem é Édipo aqui? e quem é a Esfinge? Encontramo-nos frente a uma encruzilhada de questões e problemas. E parece, afinal de contas, que não foram colocados até agora, que fomos os primeiros a percebê-los, que nos atrevemos a confrontá-los, já que implicam um risco, talvez a maior dos riscos. 2 Nossas mentes rechaçam a ideia do nascimento de uma coisa que pode nascer de. uma contrária, por exemplo: a verdade do erro; a vontade do verdadeiro da vontade do erro; o ato desinteressado do egoísmo ou a contemplação pura do sábio, da cobiça. Tal origem parece impossível: pensar nisso parece próprio de loucos. As realidades mais sublimes devem ter outra origem, que lhes seja peculiar. Não pode ser sua mãe esse mundo efêmero, falaz, ilusório e miserável, esta emaranhada, cadeia de ilusões, desejos e frustrações. No seio do ser, no qual não morrerá nunca, num deus oculto, na “coisa em si” é onde deve se lobrigar seu princípio, ali e em nenhuma outra parte. Este é o preconceito característico dos metafísicos de todos os tempos, este gênero de apreciação se encontra na base de todos seus procedimentos lógicos. A partir desta "crença" esforçam-se em alcançar um “saber”, criam a coisa que, afinal, será pomposamente batizada com o nome de "verdade". A crença medular dos metafísicos é a crença na antinomia dos valores. Nem aos mais avisados dentre eles ocorreram dúvidas desde o início, quando teria sido mais necessário: ainda que tivessem feito vota "de onnibus dubitandum". Entretanto, deve-se duvidar, imediatamente, da existência de antinomias; depois dever-se-ia perguntar se as valorações e as oposições de valores usuais às quais os metafísicos apuseram seu sinete, não são apenas valorações superficiais, perspectivas momentâneas, tomadas a partir de um ângulo determinado, perspectivas de peixe, no faisão dos pintores. Qualquer que seja o valor que concedamos ao verdadeiro, à veracidade, ao desinteresse, poderia acontecer que nos víssemos obrigados a atribuir à aparência, à vontade da ilusão, ao egoísmo e à cobiça, um valor superior e mais essencial à vida; poder-se-ia chegar a supor inclusive que as coisas boas têm um valor pela forma insidiosa em que estão emaranhadas e talvez até cheguem a ser idênticas em essência às coisas más que parecem suas contrárias. Talvez! ..., mas há quem se preocupe com esses perigosos 'talvez'? Esse, terá que esperar a chegada de uma nova espécie de filósofos, diferentes em gostos e inclinações a seus predecessores: filósofos do perigoso 'talvez', em todos os sentidos da palavra. Falo com toda sinceridade, pois vejo a vinda desses novos filósofos... 3 Terminei por acreditar que a maior parte do pensamento consciente deve incluir-se entre as atividades instintivas sem se excetuar a pensamento filosófico. Cheguei a essa ideia depois de examinar detidamente o pensamento dos filósofos e de ler as suas entrelinhas. Ante esta perspectiva será necessário revisar nossos juízos a esse respeito, como já o fizemos a respeito da hereditariedade e as chamadas qualidades 'inatas'. Assim como o ato do nascimento tem pouca importância relativamente ao processo hereditário, assim também o "consciente" não se opõe nunca de modo decisivo ao instintivo. A maior parte do pensamento consciente de um filósofo está governada por seus instintos e forçosamente conduzido por vias definidas. Atrás de toda lógica e da aparente liberdade de seus movimentos, há valorações, ou melhor, exigências fisiológicas impostas pela necessidade de manter um determinado gênero de vida. Daí a ideia, por exemplo, de que tem mais valor o determinado que o indeterminado, a aparência menos valor que a "verdade". Apesar da importância normativa que tem para nós, tais juízes poderiam ser apenas superficiais, uma espécie de tolice, necessária para a conservação de seres como nós. Naturalmente, aceitando que o homem não seja, precisamente, a "medida das coisas"... 4 A falsidade de um juízo não pode constituir, em nossa opinião, uma objeção contra esse juízo. Esta poderia ser uma das afirmativas mais surpreendentes de nossa linguagem. A questão é saber em que medida este juízo serve para conservar a espécie, para acelerar, enriquecer e manter a vida. Por princípio estamos dispostos a sustentar que os juízos mais falsos (e entre estes os "juízos sintéticos a priori") são para nós mais indispensáveis, que o homem não poderia viver sem as ficções da lógica, sem relacionar a realidade com a medida do mundo puramente imaginário do incondicionado e sem falsear constantemente o mundo através do número; renunciar aos juízos falsos equivaleria a renunciar à vida, a renegar à vida. Admitir que o não-verdadeiro é a condição da vida, é opor-se audazmente ao sentimento que se tem habitualmente dos valores. Uma filosofia que se permita tal intrepidez se coloca, apenas por este fato, além do bem e do mal. 5 O que nos incita a olhar todos os filósofos de uma só vez, com desconfiança e troça, não é porque percebemos quão inocentes são, nem com que facilidade se enganam repetidamente. Em outras palavras, não é frívolo nem infantil indicar a falta de sinceridade com que elevam um coro unânime de virtuosos e lastimosos protestos quando se toca, ainda que superficialmente, o problema de sua sinceridade. Reagem com uma atitude de conquista de suas opiniões através do exercício espontâneo de uma dialética pura, fria e impassível, quando a realidade demonstra que a maioria das vezes apenas se trata de uma afirmação arbitrária, de um capricho, de uma intuição ou de um desejo íntimo e abstrato que defendem com razões rebuscadas durante muito tempo e, de certo modo, bastante empíricas. Ainda que o neguem, são advogados e frequentemente astutos defensores de seus preconceitos, que eles chamam "verdades". E ainda que não o creiam, estão muito longe de possuir o heroísmo próprio da consciência que se confessa a si mesma sua mentira, isto é, muito longe do valor que se deseja ouvir, seja para advertir um amigo ou para colocar em guarda o inimigo ou para burlar a si mesmo. A hipocrisia rígida e virtuosa com que o velho Kant nos leva por todas as veredas de sua dialética para nos induzir a aceitar seu imperativo categórico, é um espetáculo que nos faz sentir o imenso prazer de descobrir as pequenas e maliciosas sutilezas dos velhos moralistas e dos pregado. res. Somemos a tudo isso o malabarismo, pretensamente matemático, com que Spinoza termina por escudar e mascarar sua filosofia, tratando de intimidar assim, desde o princípio, a audácia do assaltante que se atreve a pôr os olhos numa virgem invencível: Palas Atenéia. Como se pode ver através de tão pequeno broquei e inútil máscara, a timidez e a vulnerabilidade de um ente doente e solitário. 6 Passo a passo, fui descobrindo que até o presente, em toda grande filosofia se encontram enxertadas não apenas a confissão espiritual, mas suas sutis "memórias", tanto se assim o desejou seu autor quanto se não se apercebeu disso. Mesmo assim, observei que em toda filosofia as intenções morais (ou imorais) constituem a semente donde nasce a planta completa. Com efeito, se queremos explicar como nasceram realmente as afirmações metafísicas mais transcendentes de certos filósofos, seria conveniente perguntar-nos antes de tudo: A que moral querem conduzir-nos? A resposta, a meu ver, é que não se pode crer na existência de um "instinto do conhecimento", que seria o pai da filosofia. Pelo contrário, acredito que outro instinto tenha se servido do conhecimento (ou do desconhecimento) como instrumento, porém se examinássemos os instintos fundamentais, no homem, no intento de saber até que ponto os filósofos puderam divertir-se em seu papel de gênios inspiradores (de daimons ou de duendes), veríamos que todos fizeram filosofia um dia ou outro, e que cada um deles considera sua filosofia como fim único da existência, como dona legítima dos demais instintos. Pois não é menos certo que todo instinto quisesse chegar ao predomínio e, enquanto tal, aspira a filosofar. Pode, entretanto, acontecer doutro modo, inclusive "melhor" se se desejar entre os sábios, entre os espíritos verdadeiramente científicos, porque, penso, talvez haja neles algo parecido ao instinto do conhecimento, algo parecido a uma pequena peça de relojoaria independente e, bem montada. cumpra sua tarefa sem que os demais instintos do sábio participem dela de modo essencial. De acordo com o que vemos e pensamos, os verdadeiros "interesses" do sábio se encontram geralmente noutra parte: por exemplo, na política, na sua família, no seu meio de subsistência. Daí torna-se inclusive indiferente que o sábio aplique seu pequeno mecanismo a um determinado problema científico, e pouco importa que o sábio do "porvir" (jovem sábio) se converta num bom filósofo, num bom conhecedor de cogumelos ou num bom químico. No filósofo, nada há que possa ser considerado impessoal. Quanto à sua moral, oferece particular e muito especialmente um testemunho claro e decisivo do que é, quer dizer, da hierarquia que seque nele os instintos mais íntimos de sua natureza. 7 Até que grau pode chegar à malícia dos filósofos? Repassando a história do pensamento filosófico, talvez não se encontre nada mais venenoso que a glosa que Epicuro se permitiu contra Platão e seus seguidores: chamava-os dionysiokolakes. Esta palavra significa etimologicamente, e à primeira vista "aduladores de Dionísio," isto é, literalmente expressando: "esbirros do tirano", vis cortesãos, porém significa ainda, que não eram mais que simples comediantes, sem a menor sombra de seriedade (uma vez que Dionysokolox era uma designação popular do comediante). Nesta última interpretação, se fazia patente o veneno que Epicuro lançava contra Platão. Sentia-se humilhado pelo porte majestoso, pelas hábeis entradas que tão bem faziam Platão e seus discípulos e que ele não :sabia executar, apesar de ter sido autor de 300 volumes de grande valor encerrado no jardim de sua escola de Samos. Por que esta manifestação de maldade? Por despeito e inveja a Platão? O que se pode afirmar, sem dar lugar a dúvidas, é que foram necessários cem anos para que a Grécia descobrisse quem era, na verdade, Epicuro, aquele Deus dos jardins. Supondo-se que tenha chegado a se dar conta. 8 Portanto, é oportuno repetir afirmativamente que em toda filosofia a "convicção" do filósofo, num preciso momento mostra-se de uma maneira que poderia ser bem expressada através da linguagem de um antigo mistério medieval; "Adventavit asinus pulcher et fortissimus". 9 Como se enganam aqueles que querem viver "de acordo com a natureza"! Nobres estoicos, que falsas palavras! Com efeito, imaginai um ser moldado pela Natureza, prodigioso à sua imagem, infinitamente indiferente, carente de intenções, e vislumbres de piedade e justiça, fecundo, estéril e incerto, ao mesmo tempo; porém imagina! também o que significa a própria indiferença convertida em poder: poderíeis viver de acordo com essa diferença? Viver é querer ser diferente da Natureza, formar juízos de valor, preferir, ser injusto, limitado, querer ser diferente! Admitindo que o lema "de acordo com a Natureza" signifique no fundo "de acordo com a vida" seria possível que atuásseis de outra forma? Por que então fazer um princípio do que já sois, daquilo que podeis deixar de ser? Vede, pois, que em verdade, sucede exatamente o contrário: quando pretendeis desentranhar fervorosamente em a Natureza os preceitos de nossas leis, o que buscais, na realidade, é algo muito distinto do que gostaríeis de encontrar. Os atores de impostura, querendo enganar aos demais, promoveis a vingança de vós mesmos! Vosso orgulho sempre demolido pretende impor à Natureza vossa moral e vosso ideal. Sim, porque desejais que tudo quanto existe se reduza à vossa própria imagem, fazendo uma prodigiosa e eterna apoteose e uma generalização do estoicismo. Porém, apesar de todo nosso amor pela verdade, vos empenhas em ver a Natureza como ela não é, em vê-la estoica, e finalmente, não podeis vê-la de outro modo. Não sei que orgulho limitado me inspira esta Insensata esperança, posto que, ainda que estando conscientes de que sois vosso próprio tirano, insistis em vosso erro, acreditando, que a Natureza se prestará à tirania, como se o estoicismo não fosse também parte da natureza. Tudo isso, entretanto, é uma velha e eterna história, a filosofia, no fundo da Natureza, e seu contexto visível, é apenas esse instinto tirânico: a vontade de potência em seu aspecto mais intelectual, a vontade de "criar o mundo" e implantar nele a causa primeira. 10 A sutileza, e quase poderia ser dito, a malícia, com a qual em toda Europa é atacado o problema do “mundo real” e do "mundo aparente", dá muito o que pensar e escutar; os que tão somente ouvem a repetida canção da "vontade do verdadeiro" não têm o sentido da audição muito desenvolvido. Pode ser que, em certos casos, essa "vontade do verdadeiro" chegue a formar parte do jogo; o que não deixaria de ser uma extravagante toleima, e aventureira, um orgulho metafísico empenhado em manter uma posição perdida e que sempre preferiria uma mancheia de "certeza" a uma carrada de insossas possibilidades. Também pode acontecer que existam fanáticos da consciência, puritanos que preferem morrer sobre uma vã ilusão e não sobre uma incerta realidade. Mas isto não só é niilismo, mas também sintoma de uma alma que se sente desesperada e fatigada até a morte, por muito valorosa que possam parecer as atitudes de semelhante virtude. Parece, sem dúvida, que nos pensadores mais vigorosos e vivazes, que ainda sentem o desejo de viver, as coisas sucedem de outra forma: esses filósofos não mais concedem crédito à aparência, do que a seu corpo físico, segundo a qual a terra está imóvel, renunciando assim, com fingido bom humor, a seu próprio corpo, a seu bem mais seguro (pois há por acaso algo mais seguro do que o próprio corpo?). Quem tema certeza de que o propósito seja algo mais do que tratar de reconquistar uma possessão de outrora, mais segura que o corpo, um vestígio da antiga crença na "alma imortal" ou no "Deus de antanho", ou quiçá algumas dessas ideias com as quais se vivia melhor, mais seguro, mais alegre, do que com as "ideias modernas"? Esta atitude de desconfiança com respeito às "ideias modernas" consiste em negar-se a acreditar em tudo o que foi construído ontem e hoje. A isto se une, talvez, um ligeiro mal-estar. Um sarcasmo para com esse "bric-à-brac" de conceitos heteróclitos que o chamado positivismo oferece hoje em dia aos consumidores; pois quem possui um gosto refinado sente repugnância frente a essa mescla de feira e esse montão de retalhos que apresentam os filosofastros do real, para quem nada é novo, tampouco verdadeiro. Parece-me que, neste ponto, deve-se dar a razão aos céticos inimigos do real, a esses minuciosos analistas do conhecimento: o instinto que os distancia da realidade presente não foi refutado. Que oferecem os escabrosos caminhos que nos conduzem para trás? O essencial neles não é o retrocesso, mas o fato de que desejem caminhar sozinhos. Com pouco mais de vigor, valentia, de sentido artístico, poderiam ir além, e não para trás. 11 Segundo me parece, todo mundo se esforça hoje para minimizar a influência real que Kant exerceu na filosofia alemã e por dar importância ao problema do valor que ele mesmo se atribuía; Kant estava extremamente orgulhoso de sua tábua de categorias. Com esta tábua na mão dizia: "Isto é o mais difícil que jamais se empreendeu nas aras da metafísica". Entendamos bem estas palavras: que jamais se empreendeu. Kant orgulhava-se de ter descoberto no homem uma nova faculdade, a de formular juízos sintéticos "a priori". Reconheçamos que se equivocava neste ponto, mas nem por isso o desenvolvimento e o rápido floresci, mento da filosofia alemã deixam de ser frutos desse orgulho que incitou a todos os jovens pensadores a descobrir algum outro motivo de orgulho ou pelo menos, algumas "novas faculdades". Bem, reflitamos um pouco, posto que ainda temos tempo. De que modo são possíveis os juízos sintéticos a priori? Perguntava-se Kant. Em poucas palavras, sua resposta foi esta: por meio de uma faculdade. infelizmente, não se expressou com tanta concisão, mas de um modo prolixo, pomposo, com ostensivo luxo de pensamentos obscuros e de linguagem confusa até fazer incompreensível a jocosa tolice alemã que se absconde no fundo desta resposta. Todos se sentiram embriagados da alegria ante a ideia dessa nova faculdade, e o entusiasmo chegou às culminâncias quando Kant descobriu mais uma faculdade moral do homem. Nesta época os alemães eram, todavia, morais, e ignoravam o "realismo político". Esta foi a lua-de-mel da filosofia alemã. Todos os jovens teólogos do seminário de Tubingen se dedicaram à busca de "faculdades" novas. E o que foi não descobriram, nessa inocente época de juvenil riqueza, na qual a fada maligna do romantismo embargava o espírito dos alemães com suas fanfarronices e canções! Não se distinguia ainda entre "descobrir" e "inventar". A principal descoberta foi a da faculdade "suprassensível". Schelling denominou-a intuição intelectual. satisfazendo assim aos mais fervorosos desejos de seus queridos alemães, cujos corações apenas aspiram à piedade. A pior injustiça que se pode cometer contra esse descontrolado e novelesco movimento que era só juventude — ainda que tenha disfarçado com um véu de ideias cinzentas e senis — seria a de torná-lo a sério e aplicar-lhe, por exemplo, as sanções da indignação moral. Finalmente, envelheceram e o sonho desvaneceu-se. Chegou o momento em que abriram os olhos, haviam sonhado e Kant foi o primeiro. "Por meio de uma faculdade", ou pelo menos, havia querido dizer, mas isto é uma resposta, uma explicação? Ou é simplesmente uma repetição da pergunta? Por que faz dormir o ópio? "Por meio de uma faculdade", pela virtus dormitiva, disse o médico de Molière: "Quia est in eo virtus dórmitiva cuyus est natura sensus assoupire". Creio que é chegado o momento de substituir a pergunta de Kant: "Como são possíveis os juízos sintéticos a priori?" por esta outra pergunta: "Por que é necessário acreditar nesta classe de juízos?" Devemos lembrar que a conservação de seres de nossa espécie necessita desses juízos que devem ser tidos como verdadeiros, o que não impede por suposição, que possam ser falsos, ou, para sermos mais claros, mais chãos e radicais: os juízos sintéticos a priori não deveriam ser "prováveis". Nós não temos nenhum direito sobre eles, são como tantos outros juízos falsos que pronunciamos. Entretanto, necessitamos considerá-los verdadeiros: isto nada mais é que uma suposição imprescindível para viver. E se, todavia, deve-se referir à prodigiosa ação que a "filosofia alemã" — espero que todos compreendam o direito às aspas exerceu em toda a Europa, temos de confessar que contribuiu para isso certa virtus dormitiva. Os ociosos de classe alta, os moralistas, os místicos, os artistas, as três quartas partes dos cristãos e os obscurantistas, políticos de qualquer nacionalidade se sentiam ditosos por possuir na filosofia alemã um antídoto contra o sensualismo ainda florescente que transmitia o século anterior a este; em resumo, sensus assoupire ... 12 A teoria atômica da matéria é uma das coisas mais bem rebatidas que existem, e quiçá não exista em toda Europa um só sábio que seja tão ignorante a ponto de conferir-lhe ainda certa importância além daquela de uso doméstico (como meio de abreviação das fórmulas). Em primeiro lugar temos de agradecê-lo ao dálmata Boscovich. Para ele, o átomo é um centro de força que explica todas as propriedades da matéria. E Boscovich foi, com o polonês Copérnico, o maior e mais. vigoroso adversário da aparência. Com efeito, se Copérnico logrou fazer-nos crer, contra o testemunho de nossos sentidos, que a Terra não está imóvel, Boscovich nos ensinou a renegar o último artigo de fé que ainda subsistia no terreno da crença nos “corpos”, na “matéria”. E antes que Boscovich, já o havia ensinado Berkeley, o que havia de certo neste último resíduo, nesta parcela ínfima da terra que é o átomo. Foi o maior triunfo jamais alcançado sobre os sentidos. Entretanto, é necessário ir mais além e declarar uma guerra sem quartel contra a tão traída clandestina "necessidade atômica" que continua rondando perigosamente por terrenos insuspeitados, como o faz também a "necessidade metafísica", mais famosa ainda. Dever-se-á sacrificar a esse outro atomismo mais funesto ainda que o cristianismo, e por mais tempo: o atomismo psíquico. Tomo a liberdade de designar assim a crença que converte a alma em coisa indestrutível, invisível, eterna, uma mônada, um atomon. É desta crença que se deve livrar a verdadeira ciência, e toda investigação científica que se proclame como tal. Para o mais, fica claro entre nós que não é necessário suprimir "a alma" de um só golpe e renunciar a uma das mais antigas e veneráveis hipóteses da alma. isto é, ideias como a da "alma imortal", a "alma múltipla", a alma edifício coletivo de instintos e paixões", ideias que desde já reclamam direito de cidadania na ciência. O psicólogo novo, para acabar com a superstição que se multiplicou em torna da noção de alma, lançou-se de certo modo a um novo deserto e a uma nova desconfiança. Provavelmente a tarefa dos antigos psicólogos tenha sido mais alegre e tenha tido mais sorte, porém. apesar disso, o psicólogo novo sente-se por isso mesmo impulsionado, condenado a inventar e talvez — quem sabe? — também a descobrir. 13 Antes de afirmar que o instinto de conservação é o instinto motor do ser orgânico, dever-se-ia refletir. O ser vivo necessita e deseja inicialmente e acima de todas as coisas dar liberdade de ação à sua força, ao seu potencial. A própria vida é vontade de potência. O instinto de conservação vem a ser uma consequência indireta, e em todo caso, das mais frequentes. Resumindo, neste ponto como em outros deve-se desconfiar de princípios teológicos inúteis tais como o instinto de conservação e o esforço de preservar o ser que se deve à inconsequência de Spinoza. Assim o exige o método, que deve ser essencialmente parco de princípios. 14 Em nossa época talvez existam cinco ou seis cérebros que começam a suspeitar que talvez a física não seja mais que um instrumento para interpretar e regrar o mundo, uma adaptação para nós mesmos, se nos é permitido dizê-lo, e não uma explicação do universo. Entretanto, na medida em que a física se apoia na crença dos dados proporcionados pelos sentidos, esta vale mais e continuará valendo mais — durante muito tempo — que uma verdadeira explicação. Conta com o testemunho dos olhos e dos dedos, isto é, a vista e o tato. Numa época de gostos profundamente plebeus oferece uma atração sugestiva, embriagadora, convincente, posto que nosso século adota com extraordinária facilidade as normas do sensualismo eternamente popular. O que há de claro aqui? O que é que parece "claro"? Antes de mais nada o que se pode ver e tocar. Portanto, é preciso levar até esse ponto os problemas. E daí, precisamente, que a oposição à evidência perceptível tenha sido o encanto do pensamento platônico, que era um pensamento aristocrático próprio de homens dotados talvez de sentidos mais vigorosos e exigentes que os de nossos contemporâneos, mas que sabiam saborear um triunfo superior mantendo-se senhores de si mesmos e lançando sobre a heterogênea variedade dos sentidos, como dizia Platão, uma rede de pálidos conceitos de aparência triste e fria. Este modo platônico de submeter ao mundo, de interpretá-lo tinha em si mesmo um gozo de qualidade muito diferente da que nos oferecem os físicos de hoje ou esses operários da filosofia, darwinistas e antifinalistas, com seu princípio do "mínimo de energia" que é o máximo de estupidez. "Ali onde o homem não pode ver nem tocar nada, não há nada que procurar", o que não deixa de ser um imperativo muito distinto daquele de Platão, porém adaptável a uma raça dura e laboriosa de futuros mecânicos e futuros engenheiros que apenas tenham de cuidar de trabalhos superlativamente grosseiros. 15 Para estudar seriamente a fisiologia é preciso afastar-se da ideia de que os órgãos são fenômenos, tal como os considera a filosofia idealista e que, portanto, não poderiam ser causas. Consequentemente dever-se-ia aceitar o sensualismo, pelo menos a título da hipótese reveladora, para não dizer de princípio heurístico. Como?! Pois não há quem diga que o mundo exterior é obra de nossos órgãos? Sendo assim, nossos próprios órgãos seriam obra de nossos órgãos. Eis aqui o que eu chamaria uma radical reductio ad absurdum, admitindo que a noção de causa sui seja algo de fundamentalmente absurdo. Pois, não é o mundo exterior que é obra de nossos sentidos. 16 Ainda há ingênuos acostumados à introspecção que acreditam que existem "certezas imediatas", por exemplo, o "eu penso" ou, como era a crença supersticiosa de Schopenhauer, o “eu quero”; como se nesse caso o conhecimento conseguisse apreender seu objeto pura e simplesmente, enquanto "coisa em si" sem alteração por parte do objeto e do sujeito. Afirmo que a "certeza imediata", bem como o "conhecimento absoluto" ou a "coisa em si" encerram uma contradictio in adjecto; seria, pois, esta a ocasião de livrar-se do engano que encerram as palavras. O Vulgo acredita que o conhecimento consiste em chegar ao fundo das coisas; por outro lado, o filósofo deve dizer-se: "Se analiso o processo expressado na frase, eu penso", obtenho um conjunto de afirmações arriscadas, difíceis e talvez impossíveis de serem justificadas; por exemplo, que sou eu quem pensa, que é absolutamente necessário que algo pense, que o pensamento é o resultado da atividade de um ser concebido como causa, que exista um "eu"; enfim, que se estabeleceu de antemão o que se deve entender por pensar e que eu sei o que significa pensar. Pois se eu não tivesse antecipadamente respondido à questão por minha própria razão, como poderia julgar que não se trata de uma "vontade" ou de um "sentir"? Resumindo o exposto, este "eu penso" implica que comparo meu estado momentâneo com outros estados observados em mim para estabelecer o que é, posto que é preciso recorrer a um "saber de origem diferente", pois, "eu penso" não tem para mim nenhum valor de "certeza imediata". Em lugar dessa segurança em que o vulgo talvez venha a crer, o filósofo por seu lado não retira mais que um punhado de problemas metafísicos, de verdadeiros casos de consciência intelectuais que podem ser colocados da seguinte forma: De onde retiro minha noção de "pensar"? Por que devo crer na causa e no efeito? Com que direito posso falar de um "eu" e de um "eu" como causa e para cúmulo, causa do pensamento? Aquele que se atrever a responder imediatamente a estas questões metafísicas alegando uma espécie de intuição do conhecimento, como se faz quando se diz: "eu penso e sei que isto pelo menos é verdade, que é real", com certeza provocará no filósofo de hoje um sorriso e uma dupla interrogação: "Senhor, dirá o filósofo, parece-me incrível que o senhor não se equivoque nunca, mas porque anseia por encontrar a verdade acima de tudo, sem limitação de esforços?" 17 Quando se fala da superstição dos lógicos não deixo nunca de insistir num pequeno fato que as pessoas que padecem desse mal não confessam senão através de imposição. É o fato de que um pensamento ocorre apenas quando quer e não quando "eu" quero, de modo que é falsear os fatos dizer que o sujeito "eu" é determinante na conjugação do verbo "pensar". "Algo" pensa, porém não é o mesmo que o antigo e ilustre "eu", para dizê-lo em termos suaves, não é mais que uma hipótese, porém não, com certeza, uma certeza imediata. Já é demasiado dizer que algo pensa, pois esse algo contém uma interpretação do próprio processo. Raciocina-se segundo a rotina gramatical: "Pensar é uma ação, toda ação pressupõe a existência de um sujeito e portanto..." Em virtude de um raciocínio semelhante e até igual, o atomismo antigo que unia a "força atuante" à parte de matéria em que se encontra essa força, atua a partir desta: o átomo. Os espíritos mais rigorosos terminaram por desfazer-se deste último “resíduo terrestre" e inclusive pode chegar o dia em que os lógicos prescindam desse pequeno “algo” que ficará como resíduo ao evaporar-se o antigo e venerável "eu". 18 Não é o menor dos encantos o fato de que uma teoria possa ser rebatida, pelo contrário, parece que a teoria mil vezes rechaçada do "livre arbítrio" deve sua sobrevivência apenas a essa qualidade, posto que sempre vemos surgir alguém disposto a refutá-la ainda. 19 Os filósofos gostam de falar da vontade como se fosse a melhor coisa conhecida do mundo. Schopenhauer deu a entender inclusive que a vontade é algo que realmente distinguimos, algo perfeitamente reconhecido, sem demasia e sem falta, mas parece-me que Schopenhauer, neste como em outros casos seguiu a mesma rota que todos os filósofos: adotou e exagerou ao máximo um preconceito popular. A vontade se me apresenta inicialmente, como algo complexo, algo que não possui outra unidade que seu nome e nesta unicidade de nome é precisamente onde encontra seu fundamento o preconceito que enganou a prudência sempre muito deficiente dos filósofos. Sejamos, pois, mais discretos, menos filósofos e admitamos que em cada vontade existe, antes de mais nada uma infinidade de sentimentos: o do estado do qual se quer sair, o do estado ao qual se tende, a sensação destas duas direções, ou seja "daqui" — "até lá"; enfim, uma sensação muscular que, sem chegar a pôr em movimento braços e pernas, toma parte dele assim que nos dispomos a "querer". Do mesmo modo que o sentir, um sentir multíplice, é evidente que um dos componentes da vontade, contém também um "pensar", em todo ato voluntário há um pensamento diretor e portanto, deve-se evitar a crença que se pode afastar esse pensamento do “querer” para obter um precipitado que continuaria sendo vontade. Em terceiro lugar a vontade não é apenas um conjunto de sensações e pensamentos, mas também e antes de tudo um estado afetivo, a emoção derivada do mando, do poderio. O que se chama "livre arbítrio" é essencialmente o sentimento de superioridade que se sente ante um subalterno. "Eu sou livre, ele deve obedecer", eis o que há no fundo de toda vontade, a certeza intima que constitui o estado de ânimo de quem manda. Querer significa ordenar a algo em si mesmo que obedece ou, pelo menos, é considerado como obediente. Mas observemos agora a própria essência da vontade, essa coisa tão complexa para a qual o vulgo usa apenas uma palavra. Se fôssemos a um só tempo, aquele que manda e o que obedece, sentiríamos ao obedecer a impressão de que estávamos sendo obrigados, pressionados e simultaneamente impulsionados a resistir ao movimento, impressões que sequem imediatamente ao ato da volição; porém na medida em que, por outro lado, temos o costume de não fazer caso dessa ambivalência, de enganar-nos a seu respeito graças ao conceito sintético do eu", toda uma cadeia de conclusões errôneas e consequentemente, de falsas apreciações da vontade também se ligam ao querer. Como quem acredita de boa-fé que basta querer para atuar, assim, na maioria dos casos, alguém se contentou em querer e como também se deve esperar o efeito da ordem, isto é, a obediência, o cumprimento do ato prescrito, a aparência se traduz pelo sentimento de que o ato deveria se produzir necessariamente. Em outras palavras, aquele que quer, acredita que querer e fazer se resumem numa única coisa. Para ele o êxito e a execução do querer são efeitos do próprio querer e esta crença torna mais forte o sentimento de poder, que ele sente, e que o êxito traz como companheiro. O "livre arbítrio": esta é a designação desse complexo estado de prazer do homem que quer, que manda, e que, ao mesmo tempo, se confunde com o que executa, gozando assim o prazer de superar obstáculos com a ideia de que é sua própria vontade que triunfa sobre as resistências. Assim pois, o ato voluntário soma, deste modo, ao prazer de dar uma ordem, o prazer do instrumento que o executa com êxito; à vontade são acrescentadas vontades "subalternas", almas subalternas e dóceis, pois nosso corpo não é mais que a habitação de muitas almas. L'effet c'est moi: acontece aqui o mesmo que em toda coletividade feliz e bem organizada; a classe dirigente se apropria dos êxitos da coletividade. Em todo querer se trata simplesmente de mandar e de obedecer dentro de uma estrutura coletiva complexa, constituída, como já disse, por "muitas almas". Portanto o filósofo deveria considerar o querer a partir do ângulo da moral, a moral como conceito de uma ciência dominante. Donde brota o fenômeno da vida. 20 Dir-se-ia que os diferentes conceitos filosóficos não são nada arbitrários, que não se desenvolvem separadamente, mas que mantém certo parentesco. Precisamente por isso, ao fazer sua aparição na história do pensamento, não deixam de pertencer a um mesmo sistema, exatamente o mesmo que os diversos representantes da fauna do continente. É isso que se percebe na segurança com que os mais diferentes filósofos vêm a ocupar por sua vez seu posto dentro de um determinado esquema prévio das possíveis filosofias. Uma magia invisível os obriga a percorrer incessantemente a mesmo círculo, por mais independentes que se creiam, um dos outros, em sua vontade de elaborar sistemas, algo os impulsiona a sucederem-se numa determinada ordem, que é, entretanto, a ordem sistemática inata dos conceitos de seu parentesco essencial. Na verdade, seu pensamento consiste menos em investigar que em reconhecer, recordar, voltar atrás, reintegrar uma zona muito antiga e distante da alma donde saíram esses conceitos que não procuram descobrir. A atividade filosófica nesse aspecto, é uma espécie de atavismo do mais elevado grau. A estranha similaridade que guardam entre si todas as filosofias indianas, gregas e alemãs, tem uma explicação simples. Efetivamente, quando há parentesco linguística é inevitável que em virtude de uma filosofia gramatical, exercendo no inconsciente as mesmas funções gramaticais em domínio e direção, tudo se encontra preparado para um desenvolvimento análogo aos sistemas filosóficos, enquanto o caminho parece fechado para quaisquer outras possibilidades de interpretação do universo. As filosofias do grupo linguística uro-altaico (nas quais a noção de sujeito está pouco desenvolvida) provavelmente observaram e interpretaram o mundo com outros olhos e seguiram por caminhos diferentes dos indo-europeus ou muçulmanos. O fascínio que exercem certas funções gramaticais é, no fundo, o exercido por determinadas valorações fisiológicas e certas particularidades raciais. Isto para refutar as afirmações superficiais de Locke a respeito da origem das ideias. 21 A causa sui é a mais bela contradição já cogitada, uma espécie de violação e golpe mortal à lógica. Porém o orgulho ilimitado do homem conduziu-o a um emaranhamento cada vez maior no intrincado absurdo, o desejo do "livre arbítrio" entendido no sentido superlativo e metafísico que domina ainda (por desgraça, nos cérebros semicultivados) que é a necessidade de suportar a completa e absoluta responsabilidade de seus atos e não atribuí-la a Deus, ao mundo, à hereditariedade, à sorte, à sociedade, esta causa sui não é mais que a necessidade de ser alguém, e com esta audácia intrépida que supera à do barão de Munchhausen tenta tirar a si mesmo do pântano do nada puxando seus próprios cabelos e entrar na luz da existência. Se alguém chegasse a vislumbrar a néscia rusticidade do famoso conceito do "livre arbítrio" até chegar a afastá-lo do seu espírito, eu lhe rogaria que desse, mais um passo e afastasse de seu cérebro o contrário desse pseudoconceito, isto é, o "determinismo", que conduz ao mesmo abuso das noções de causa e efeito. Não é preciso cometer o erro de tornar condicionados causa e efeito, como fazem os naturalistas (e todos que sequem seu método de pensar) segundo as cretinices mecanicistas em voga, que querem que toda causa impulsione e pressione até produzir um efeito. É conveniente, entretanto, não se servir da “causa” e do “efeito” senão em termos de puros conceitos, ou seja, como ficções convencionais que servem para designar, para pôr-se de acordo, porém de modo algum para explicar alguma coisa. No "em si" não há nenhum vestígio de "nexo causal", de "necessidade", de "determinismo psicológico", o "efeito" não é consequência de nenhuma "causa", nenhuma "lei" impera ali. Ninguém mais que nós foi o inventor de tais ficções como: a causa, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a necessidade, o número, a lei, a liberdade, a razão, o fim, e quando introduzimos falsamente nas "coisas" este mundo de símbolos inventados, quando o incorporamos às coisas como se lhes, pertencesse "em si" mais uma vez, como sempre fizemos, criamos uma mitologia. Na verdade, estamos frente à vontade forte ou fraca. Quando um pensador trata de descobrir de uma só vez em todo "encadeamento causal" algo que se pareça a uma frustração, a uma necessidade, a uma concatenação obrigada, a uma pressão, a um servilismo, é quase sempre sintoma de que há algo que falha no ente em questão e ao sentir deste modo é inquestionável que a personalidade ali se desvele. Deste modo geral. Se minhas observações são exatas o problema do determinismo é considerado a partir de dois aspectos absolutamente diferentes, porém sempre de modo absolutamente subjetivo, uns, não querendo dividir a "responsabilidade" de sua crença em si mesmos, seu direito pessoal, produto de Seu próprio mérito (caso das castas vaidosas); outros, contrariamente, recusando toda responsabilidade, impulsionados pelo desprezo de si mesmos e ansiosos de livrar-se sem considerar sobre quem ou onde caia a pesada carga de seu eu. Quando estes escrevem livros tendem a empreender a defesa dos malfeitores, seu disfarce mais sutil é simular uma espécie de socialismo da piedade e, natural e efetivamente, o fatalismo dos fracos de vontade é maravilhosamente embelezado quando consegue apresentar-se como "religion de la souffrance humaine". Este é, sem dúvida, seu modo peculiar de demonstrar seu "bon goút". 22 Perdoem a esse velho filólogo que sou, se não renuncia a abdicar do maligno prazer que representa pôr o dedo na chaga das explicações errôneas, de vossas fraquezas filológicas. Porque, em verdade, esse mecanismo das "leis da natureza", de que vós, físicos, falais com tanto orgulho, não é um fato nem um texto, mas uma composição ingenuamente humana dos fatos, uma deturpação do sentido, uma adulação servil à habilidade dos instintos democráticos da alma moderna. "Em todas as partes, igualdade diante da lei, a este respeito, a natureza, não foi mais bem tratada que nós". Sedutora segunda intenção que encobre mais uma vez o ódio da plebe contra toda marca de privilégio e de tirania, bem como uma segunda forma mais sutil de ateísmo. "Ni Dieu, ni maitre". Vós também desejais que assim seja e por isso gritais: "Vivam as leis da natureza!" Porém, repito, isto é interpretação e não texto. Poderia surgir alguém com intenções opostas e com muitos outros artifícios de interpretação que decifrasse, nesta própria natureza e partindo dos mesmos fenômenos, o mistério do triunfo brutal e desapiedado de vontades tirânicas, quando este novo intérprete nos revelaria a "vontade de potência" em sua realidade e em sua força absoluta até que todas as palavras seriam inutilizáveis e inclusive a palavra “tirania” pareceria um eufemismo. Este filósofo acabaria, contudo, por afirmar, relativamente a este mundo, o mesmo que vós, isto é, que tem um curso "necessário", "previsível" não pelo fato de estar submetido a leis, mas pela absoluta inexistência de leis e porque a força a cada instante, vai até a última de suas consequências. Mas como isso não é mais que uma interpretação, já sei que objetareis: pois bem, tanto melhor! 23 Toda a psicologia manteve-se vinculada, até hoje, a preconceitos e apreensões de ordem moral; não ousou adentrar em suas profundezas. Concebê-la, como eu o faço, sob as espécies de uma morfologia e de uma genética da vontade de potência, é uma ideia que ninguém abordou nem mesmo superficialmente, suponho que, partindo que se escreveu seja possível adivinhar o que permaneceu em silêncio. A poderosa força dos preconceitos morais penetrou profundamente no círculo da espiritualidade pura, aparentemente a mais fria e desprovida de ideias preconcebidas e, como é natural, influiu nela — de modo prejudicial — uma ação paralisadora, deslumbrante e deformante. Uma psicofisiologia autêntica se choca contra resistências inconscientes no coração do investigador. A simples teoria da interdependência dos instintos "bons" e maus" parece um refinamento de imoralidade e desperta o perigo e o desgosto inclusive numa consciência valente e vigorosa. E a desgosto é maior ante a doutrina que faz derivar os bons instintos dos maus, Admitindo, todavia, que existe alguém que chega a considerar como paixões essenciais da vida ao ódio, inveja, cobiça e comando, como principias fundamentais da vida, como algo que lia economia de vida deve existir fundamental e essencialmente e que por conseguinte deve ser ainda intensificado se se deseja intensificar a vida, este homem sofrerá algo como um enjoo devido à orientação de seu próprio juízo. Contudo esta hipótese não é mais penosa e a mais estranha, neste imenso domínio quase virgem do conhecimento, do qual todos têm mil e uma boas razões para se manterem à distância..., se podem. Nosso barco sofre a tormenta! Serremos os dentes! Vigilantes! Firmes no leme! Naveguemos em linha reta acima da moral! Porém, apesar de tudo decidisses conduzir vossa nau a essas praias, então só vos resta o remédio de manter esse valor, ficar alerta e manter firme o timão. Que importa nosso destino! Nunca até agora encontraram os navegantes, intrépidos e aventureiros — um mar de conhecimentos mais profundos e o psicólogo que faz tais "sacrifícios" (este não é o sacrilizio dell'intelletto) reclamará como próprio o direito de que a psicologia seja de novo instaurada como rainha das ciências, aquela à qual as demais ciências têm a "obrigação" de servir e preparar, pois a psicologia se converteu de novo no caminho que condiz aos problemas fundamentais. SEGUNDA PARTE O ESPÍRITO LIVRE 24 O sancta simplicitas! Em que mundo mais estranhamente simplificado e falsificado vive a humanidade! É infinito o assombro diante de tal prodígio. Quão claro, livre, fácil e simples conseguimos tornar tudo quanto nos rodeia! Quão brilhantemente soubemos. Deixar que nossos sentidos caminhassem pela superfície e conspirar a nosso pensamento um desejo de piruetas caprichosas e de falsos raciocínios! Quanto nos esmeramos para conservar intacta nossa ignorância, para lançar-nos aos braços de uma despreocupação, de uma imprudência, de um entusiasmo e de uma alegria de viver quase inconcebíveis, para gozar a vida! E sobre esta nossa ignorância edificaram-se as ciências baseando a vontade de saber em outra ainda mais poderosa, a vontade de permanecer na incógnita, na contra verdade, não sendo esta vontade o contrário da primeira, mas sua forma mais refinada. A linguagem, aqui, como em todos os outros lugares, tem que arrastar consigo toda sua torpeza e continuar falando de suas oposições, quando tratam-se de matizes e sutis gradações; além disso, a hipocrisia consuetudinária da moral, que se converteu, de modo invencível, na "carne de nossa carne e sangue de nosso sangue", desnaturalizou nos também as palavras de nossa própria boca. Nós, que estamos alertas, de quando em quando advertidos do engano, escapamos dela e rimos ao ver que a melhor das ciências continua sendo a que melhor pretende deter-nos neste mundo simplificado, absolutamente artificial, alienado e falsificado para nosso uso, porque essa ciência também, apesar dela mesma, ama o erro, uma vez que por ser vivente, ama a vida. 25 Depois de um preâmbulo um pouco irônico, direi agora uma palavra séria que é dirigida aos espíritos mais sérios. Sede prudentes, filósofos e amigos do sofrimento e guardai-vos do martírio oriundo do “amor à verdade”! Guardai-vos inclusive de defendê-los. Isto prejudica a inocência e a delicada imparcialidade de vossa consciência, pois a luta contra o perigo, a injúria, a suspeita, o ostracismo e as consequências mais brutais do ódio, os impeliram a desempenhar o papel de defensores da verdade nesta terra. Como se a verdade fosse tão ingênua ou tão torpe que tivesse necessidade de defensores! E defensores como vós, cavaleiros da Triste Figura, rufiões do espírito que teceis teias de aranha! Em resumo, sabeis que pouco importa que a última palavra seja dita por vós, que inclusive jamais filósofo algum pronunciou a última palavra e que ofereceríeis uma prova de uma veracidade mais digna de louvor ao colocar alguns pontos de interrogação atrás de vossas fórmulas favoritas e de vossas teorias preferidas (e mesmo atrás de vossa pessoa se a ocasião se apresentar). É preferível que vos afasteis, que vos refugieis em algum retiro! Colocai vossos disfarces, fazei uso da astúcia para serdes confundidos com outros ou ainda para que aprendam a temer-vos um pouco! Não esqueçais o jardim, eu vos rogo, o jardim com suas cancelas douradas. E cercai-vos de pessoas que sejam como um jardim ou o reflexo do sol na água, pois quando cai a tarde, o dia não é mais que lembrança. Escolhei a boa solidão, a solidão livre, a que vos permite seguir sendo bons em qualquer sentido. Quanta perfídia, astúcia e maldade adquirimos depois de uma grande guerra que não se pode fazer abertamente! Quão receosos nos tornamos com o temor prolongado, a angustiosa espera com os olhos fixos no inimigo, em todos os inimigos possíveis! Estes desterrados da sociedade, estes perseguidos, estes acossados e inclusive estes eremitas por necessidade, como Spinoza ou Giordano Bruncy, terminam sempre por se converterem, ainda que sob a máscara mais intelectual e talvez sem sabê-lo, em mestres em matéria de ódio e nuns envenenadores seja qual for a máscara espiritual e talvez sem o saberem (que se experimente escavar o fundamento da ética e da teologia de Spinoza), sem falar sequer dessa vacilante indignação moral que, num filósofo, atesta de modo infalível que perdeu todo seu humor filosófico. O calvário do filósofo, seu "sacrifício pela verdade", faz sair à luz o que este ainda possuía de demagogo e de comediante e por pouco que tenha sido observado, compreender-se-á que se pode experimentar o desejo de ver, pelo menos uma vez, a certos filósofas em estado de degenerescência, como "mártires", como comediantes, como tribunos. Porém é necessário aperceber-se da farsa que se representa uma vez caído o pano, prova de que a grande tragédia propriamente dita terminou, supondo que o conhecimento de toda filosofia tenha sido uma grande tragédia. 26 O homem pertencente à elite procura instintivamente sua torre de marfim, um baluarte que o libere da massa. do vulgo, da multidão, um lugar para esquecer “o homem”, cuja "regra", entretanto, constitui a exceção, a menos que seja um caso particular em que sob um instinto mais forte ainda se oponha a esta regra, sendo ele mesmo o cognoscente, no grande e excepcional sentido da palavra. Quem quer que no trato com os homens, não tenha passado por todos os matizes da angústia, o rubor e a palidez da compaixão, a necessidade imperiosa do isolamento, esse não é verdadeiramente um homem de gosto superior. Porém se permanece altivo e taciturno em seu refúgio, então não está destinado ao conhecimento, não é predestinado a ele. Se o estivesse chegaria a dizer-se um dia: "Ao diabo com meu bom gosto". A regra é mais interessante que à exceção, mais interessante que eu, eu que sou a exceção. E desceria de sua torre com a sublime decisão de "misturar-se" com a multidão. O estudo do homem comum, estudo prolongado e sério, que requer muito tato, repugnância dominada, familiaridade, más companhias — e toda companhia é má, exceto a de nossos iguais — é um capítulo necessário na vida de todo filósofo, o mais desagradável talvez e, quem sabe. O mais pródigo em decepções. Porém se tem sorte, como costuma acontecer a todo favorito do conhecimento, receberá auxílios que tornarão mais tolerável sua tarefa; refiro-me aos cínicos, aos que confessam ingenuamente a animalidade, a vulgaridade, "a regra" que trazem em si, e que, entretanto, conservam bastante espírito e penetração para sentirem-se obrigados a falar ante testemunhos de si mesmos e de seus semelhantes; por vezes chegam a se revolver em seus livros como em seu próprio monturo. O cinismo é a única força sob a qual as almas vulgares roçam o que se chama sinceridade e na presença de todos os matizes de si mesmo, o homem superior deverá aguçar o ouvido e considerar-se feliz todas as vezes que perceber as palhaçadas despudoradas ou os desvarios do sátiro científico. Em certos casos, o encanto acompanha o asco, quando, por um capricho da natureza, o gênio foi entregue a um mono imprudente. como o abade Galiani, o homem mais profundo, mais penetrante e possivelmente também o mais tenebroso de seu século; era muito mais profundo que Voltaire e, consequentemente, sobressaia mais que ele ao calar-se. Frequentemente acontece, que a cabeça de um sábio seja acompanhada pelo corpo de um mono, que uma inteligência sutil e excepcionalmente dotada acompanhe uma alma vulgar; este caso não é raro entre os médicos e os fisiólogos da moral especialmente. Sempre que se fale mal do homem sem pôr malícia nisto, o amante do conhecimento deve prestar ouvidos e ficar atento sempre que ouvir falar sem indignação. Porém se a irascibilidade é a mão da mentira, então ninguém mente mais que o homem indignado. 27 É difícil fazer-se compreender, sobretudo quando se pensa e se vive gangasrokogati. Estas três palavras sânscritas: gangasrotogati, kurmagati, mandeikagati, significam respectivamente; no ritmo do Ganges, isto é presto; em passo de tartaruga, isto é, lento; em passo de rã, ou staccato. Assim, pois, quando se está em meio a homens que vivem e pensam de outra forma, seja kurmagati, ou mandeikagati, tudo é segundo o modo de andar das rãs. Faço tudo que é precisa para que me entenda e agradeceria calorosamente àqueles que têm a boa vontade de interpretar com certa sutileza ao que dizemos. Mas quanto ao que se refere aos "bons amigos", sempre demasiado indolentes, que acreditam ter o direito de não se esforçarem, seria conveniente conceder-lhes antecipadamente um pouco de jogo, certo campo livre para sua falta de inteligência. Deste modo teríamos que rir. Ou ainda, desembaraçar-nos deles — e continuar rindo! 28 O ritmo do estilo é o que há de mais difícil de traduzir de um idioma para outro, depende do caráter da raça ou, para falar em termos mais fisiológicos, do ritmo médio de sua respiração. Há uma infinidade de traduções que foram feitas com boas intenções, mas que são quase falsificações, porque se esqueceram do caráter verdadeiro do texto original, ou de seu tom vigoroso e alegre, que ajuda a sobrevoar tantas coisas e palavras perigosas. A língua alemã está praticamente incapacitada de apresentar um "presto" na própria língua, disso podemos deduzir sem nenhum temor de equivocar-se que o alemão não pode empregar os matizes mais alegres e audazes, próprios de um espírita livre e independente, como se poderia dizer, do mesmo modo, que não possuem em seu corpo e sua consciência nada do saltimbanco ou do sátiro; mas também não sabiam traduzir a Aristófanes ou Petrônio. Encontram-se entre os alemães com toda prolixidade, tudo que há de gravidade majestosa, de pesadume, de pompa solene, todos os gêneros intermináveis e enfadonhos. Seria perdoável se eu afirmasse que a prosa de Goethe, com seu misto de gravidade e de elegância, não constitui uma exceção? Sua prosa é o espelho do "bom tempo antigo" ao qual pertencia e a expressão do gosto alemão, num tempo em que ainda existia um "gosto alemão", o do barroco, in moribus et artibus. Lessing representa uma exceção graças à sua natureza de comediante que compreendia muitas coisas, ele, que não por acaso foi tradutor de Bayle e que gostava de refugiar-se nas paragens de Diderot e Voltaire, mais gosto ainda encontrava nos autores cômicos antigos. Lessing gostava da independência até no ritmo de seu estilo, era seu modo de evadir-se da Alemanha. Porém, como poderia a língua alemã, ainda que através da prosa de um Lessing imitar o ritmo de um Maquiavel, que em seu Príncipe nos faz respirar o ar seco e sutil de Florença e que coloca mesmo as mais graves questões em allegríssimo, talvez com um delicioso prazer de atrever-se a esse contraste, pensamentos grandes, pesados, perigosos, apresentados sob um ritmo de galope do mais insolente bom humor? Quem se atreveria, afinal, a traduzir Petrônio para o alemão, o qual mais que qualquer outro grande músico é o virtuoso do presto tanto por seus rodeios e sutilezas quanto pelo seu vocabulário? Que importam, finalmente, todas as vilezas de um mundo enfermiço e perverso ainda que fossem as do mundo antigo, quando se galopa, como ele, nas asas do vento, com o ímpeto, o sopro e a ironia libertadora de um furacão que vivifica todas as coisas? Quanto a Aristófanes, esse espírito que transfigura e completa a antiguidade e por amor ao qual se pode perdoar ao helenismo por ter existido (supondo que se tenha compreendido radicalmente tudo o que deve ser perdoado e transfigurado), não sei de nada que tenha feito com que eu sonhasse tanto acerca da natureza enigmática de Platão, como esse pequeno fato que tão felizmente nos foi transmitido; sob a almofada de seu leito funerário não se encontrou nem "Bíblia", nem escrito egípcio, pitagórico ou platônico, mas um exemplar de Aristófanes. Como Platão teria suportado aquela vida grega à qual dizia não — sem Aristófanes? 29 A independência é o privilégio dos fortes, da reduzida minoria que tem o calor de auto afirmar-se. E aquele que traia de ser independente, sem estar obrigado a isso, mostra que não apenas é forte, mas também possuidor de uma audácia imensa. Aventura-se num labirinto, multiplica os mil perigos que implica a vida; se isola e se deixa arrastar por algum Minotauro oculto na caverna de sua consciência. Se tal homem se extinguisse estaria tão longe da compreensão dos homens que estes nem o sentiriam nem se comoveriam em absoluto. Seu caminho está traçado, não pode voltar atrás, nem sequer lograr a compaixão dos seres humanos. 30 É difícil evitar que nossas visões mais elevadas pareçam loucuras e por vezes até crimes, quando chegam a ouvidas que não são capazes de compreendê-las. A distinção entre o esotérico e o esotérico, adotada antigamente pelos filósofos hindus, gregos, persas e muçulmanos, isto é, em todas as partes onde se acreditava numa hierarquia e não na igualdade de fato e de direito, esta distinção não repousava tanto como se acredita no fato de que a filosofia esotérica permanece no exterior e, é visível para todos, que a avaliam, a medem e a julgam de fora e não de dentro, o essencial é que vê as coisas de baixo, enquanto que a filosofia esotérica vê de cima. No cimo de certos cumes mesmo a própria tragédia deixa de parecer trágica. E se fossem reunidos numa única massa todos os males do mundo, quem se atreveria a dizer que esse aspecto nos levaria necessariamente à piedade, isto é, a um aumento dos males? O que serve de alimento para o espírito de uma categoria de homens superiores é quase sempre um veneno para uma espécie diferente e inferior. As virtudes do homem ordinário transferidas a um filósofo seriam, possivelmente, vícios e debilidades. Um homem superior teria que degenerar para adquirir as qualidades que obrigariam a considerá-lo um santo, no mundo inferior no qual caísse. Existem livros de efeitos contrários para a alma e para a saúde sempre que seja uma alma inferior, uma energia vital débil, uma alma superior ou uma energia poderosa. No primeiro caso, estes livros são perigosos, corruptores e dissolventes; no segundo caso são uma chamada às armas que induz aos mais valentes a porem à prova sua força. Os livros de todos sempre são malcheirosos: neles há o cheiro da arraia miúda. Onde quer que a povo fale e beba, e mesmo onde venera, produz cheiro mau. Ao se querer respirar ar puro, não se deve ir à igreja. 31 Quando se é jovem se venera ou se despreza indiscriminadamente, sem considerar o conceito de valor do matiz, que é o melhor benefício da vida. Pagar um alto preço por não ter sabido opor-se aos homens ou às coisas a não ser com um sim ou não, considera-se justo, tudo está posto no mundo para que o pior dos gostos, o gosto do absoluto, seja cruelmente burlado e escarnecido. A inclinação à cólera ou à veneração, própria da juventude, não parece repousar até depois de ter desfigurado as coisas e os homens, o que lhes serve de desafogo. A juventude tem, por natureza, uma inclinação a falsificar e enganar. Quando a alma jovem, torturada por mil desilusões, volta, finalmente, cheia de suspeitas contra si mesma, desgarra-se com impaciência ardente e violenta e em seus remorsos vinga-se de sua grande cegueira, como se esta tivesse sido voluntária. Nesta idade de transição, alguém castiga a si mesmo, desconfia de seu próprio sentimento, inflige a seu entusiasmo o tormento da dúvida, a boa consciência parece um perigo, como um véu que lançasse sobre si mesmo e, inicialmente, toma partido, mas a fundo, contra a "juventude". Dez anos mais tarde nos apercebemos que aquilo também era juventude! 32 A característica do maior período da história — a pré-história — foi valorar uma ação segundo suas consequências. O próprio ato importava tão pouco quanto suas origens, mais ou menos como acontece, hoje em dia, na China, onde os filhos recebem honra ou vergonha como herança dos pais; era o efeito retroativo do êxito ou do fracasso o que induzia a pensar bem ou mal de uma ação. Convenhamos, pois, que aquele foi o período pré-moral da humanidade. O imperativo “conhece-te a ti mesmo” era, pelo contrário, desconhecido. No decurso dos últimos dez anos, mudou-se o caminho e agora, o valor é atribuído não às consequências da ação, mas às suas causas. Isto representa um acontecimento importante, produto de um grande refinamento do juízo, o efeito distante e inconsciente dos valores aristocráticos, da crença nas “origens”, o sinal distintivo de um período que poderíamos denominar de período moral da humanidade, definitivamente o primeiro passo para o conhecimento de si mesmo. Por isso a ação ocorre ao inverso e em lugar de se procurarem as consequências, trata-se de encontrar a origem. Que inversão de perspectiva! Uma inversão que é fruto de longas lutas e prolongadas atribuições, mas, na verdade, uma nova superstição de funestas consequências, uma singular estreiteza de interpretação, que chegou para dominar atravessando este caminho, Atribuiu-se a origem de um ato, no sentido mais estrito do termo, a uma intenção e se esteve de acordo com a crença de que o valor de um ato reside no valor de sua intenção. A intenção era por si só a origem e a pré-história da ação; e por este preconceito se diferenciou até nossos dias o louvor e a censura, formularam-se juízos e inclusive se filosofou. Hoje não deveríamos sentir a necessidade de uma inversão total dos valores, graças a um novo retorno sobre nós mesmos, a uma nova sondagem do homem? Não chegamos ao princípio de um novo período ao qual se qualifica, negativamente desde o começo, de extra moral, posto que entre nós, pelo menos, imoralistas, se começa a entrever que o valor decisivo de um ato reside precisamente no que tem de não intencional, e que tudo o que tem de intencional. tudo o que se pode ver ou saber dele, tudo que forma sua superfície e sua epiderme que, como toda epiderme, é mais o que oculta que o que desvela? Resumindo, vemos que a intenção nada mais é que um signo e um sintoma que tem necessidade de ser interpretado, um signo carregado de demasiadas significações para ter uma única para ele. Mantemos a opinião de que a moral, tal como foi concebida até hoje, a moral das intenções foi um preconceito, um juízo precipitado e provisório que a coloca no mesmo lugar que a astrologia e a alquimia e em todo caso, algo que deve ser superado. A superação da moral e a triunfo desta sobre si mesma, seria a denominação da larga e misteriosa tarefa reservada às consciências mais sutis e mais corretas e às malignas da atualidade, estas viventes pedras de toque da alma. 33 É irremediável: é necessário responsabilizar e julgar sem piedade, os sentimentos de dedicação e sacrifício pelo próximo, toda a moral da abnegação; com a estética da "concepção desinteressada" pela qual a desvirilização da arte tenta, mui sutilmente, conseguir uma boa consciência. Os sentimentos que pretendem existir "para os demais" e "não para mim" possuem um encanto excessivo e uma dulçura que, por serem muito insinuantes, nos tornam desconfiados. E nos perguntamos: "Não será tentativa de sedução?" O fato de tais sentimentos serem do agrado daqueles que os experimentam e inclusive do simples espectador, não é um argumento a seu favor, mas sim um convite à prudência. Sejamos, pois, prudentes. 34 Seja qual for o ponto de vista filosófico no qual nos coloquemos, reconhecer-se-á que a falsidade do mundo em que acreditamos viver é a coisa mais verdadeira e firme que nossa visão pode apreender. Encontramos repetidamente razões que nos fazem supor que existe na essência das coisas um princípio que induz a juízos falsos. Quem, entretanto, responsabilizar o nosso pensamento pela falsidade do mundo, isto é, “o espírito” — saída honrosa, seguido por todo "advocatus dei" consciente ou inconsciente — quem tomar como erradamente interpretado este mundo com o espaço, tempo. forma e movimento, terá boas razões, pelo menos, para, finalmente, aprender a desconfiar do próprio pensar. Portanto, talvez seja uma conclusão errônea tornar nosso pensamento responsável pela falsidade do mundo. Entretanto, pensamos. Não seria motivo para pelo menos desconfiar de nosso pensamento? Não terá o pensamento nos preparado o mais macabro de seus ardis? Que garantia temos para impedir que continue fazendo das suas? Falando seriamente a inocência dos pensadores tem algo de comovedor que inspira respeito. Esta inocência lhes permite ainda hoje apresentarem-se diante da consciência psicológica e pedir-lhe que responda sinceramente a suas perguntas, por exemplo, que diga se é "real", porque foge do mundo exterior e outras questões da mesma natureza. Talvez isto seja uma ingenuidade, porém algo que nos honra, a nós, filósofos, é a crença nas "certezas imediatas". Porém, com toda sinceridade, não deveríamos deixar de nos considerar unicamente como seres morais? Esta teoria é uma puerilidade que nos traz pouca honra, prescindindo da moral. É um conceito pouco louvável e, portanto, uma imprudência a ser evitada, porém, cá entre nós, além do mundo burguês, de suas afirmações e negações, o que nos poderia impedir uma imprudência e de dizer: "O filósofo, tem direito de ter "mau caráter", porque tem sido continuamente o mais enganado? Hoje tem o dever de desconfiar, desde o fundo do abismo de todas as suspeitas, tem direito de olhar ao mundo esquadrinhando-o com malignidade, se for preciso. Perdoes-me este logro, esta triste caricatura, este artifício, pois desde há muito tempo examinei por minha parte meus pensamentos e meus afetos relativamente aos enganadores e enganados e guardo algumas chibatadas para os filósofos cuja cólera cega se rebela contra o fato de ter sido o motivo da chalaça. E por que não o seriam? É um simples preconceito acreditar que a verdade é melhor que a aparência, é inclusive a mais infundada que existe. Deve-se confessá-lo, a vida não seria possível sem toda uma engrenagem de apreciações e de aparências, e se se suprimisse o "mundo aparente", com toda a indignação voltada contra ele por certos filósofos, supondo-se que isto fosse possível, nada restaria tampouco de nossa "verdade". Pois, o que nos obriga a admitir que exista uma parede divisória entre o “verdadeiro” e o "falso"? Não bastaria admitir graus de aparência, como quem falasse de matizes e harmonia, mais ou menos claros ou obscuros, valores diferentes para empregar a linguagem dos pintores? Por que o mundo em que vivemos não poderia ser fictício? E se objetasse ainda que toda ficção deve ter um autor não se poderia responder com toda franqueza; "Por quê?" A expressão "deve ter" não constitui também parte da ficção? Não se pode permitir um pouco de ironia com o sujeito, com o predicado e com o objeto? O filósofo não tem razão de declarar-se rebelde contra a confiança cega concedida à gramática? Respeito muito aos governantes, porém, não seria a hora da filosofia renunciar um pouco à fé nos governantes? 35 Oh! Voltaire! Oh! Humanidade! Oh! Estupidez! A “verdade”, a busca da verdade são coisas delicadas. Desde o momento em que o homem se conduz nesse aspecto de um modo demasiado humano, — quando busca a verdade apenas para fazer o bem" -, pode-se dizer, e eu o sustento, que não encontra nada. 36 Ainda que admitíssemos que fora do nosso mundo de desejos e paixões não nos é dado nada "real", que não podemos alcançar "realidade" mais alta ou mais profunda que a de nossos instintos — pois o pensamento não expressa mais que a relação destes instintos, não seria razoável perguntar: Este mundo dado, não bastaria para compreender a partir daquilo que nos é semelhante, o mundo que se chama mecanicista ou material? Não quero dizer percebê-lo e entendê-lo como ilusão, como "aparência" ou "representação", no sentido de Berkeley ou Schopenhauer, mas como realidade da mesma ordem que nossas próprias paixões, como forma mais primitiva do mundo das paixões, de um mundo que englobou numa poderosa unidade tudo aquilo que no processo orgânico se ramifica e se diferencia (e, consequentemente, afina-se e se debilita), como espécie de vida instintiva na qual todas as funções orgânicas: secreção, nutrição, mudanças orgânicas, se encontram sinteticamente ligadas e confundidas entre si, ou seja, uma forma preliminar da vida. Não apenas é permissível aventar esta pergunta, como também o exige a consciência de nosso método. Não admitir vários tipos de causalidade até que se tenha levado ao limite extremo (ao disparate, com a permissão de Vossas Excelências) a tentativa de nos contentarmos com um só tipo — esta é uma moral do método a que, hoje, não devemos fugir — dedutível "por definição" como o diria um matemática. A questão é saber se consideramos a vontade como realmente eficiente, ou se acreditamos na causalidade da vontade, se for assim — e no fundo é isso o que implica nossa crença na causalidade — estamos obrigados a fazer esta experiência, e colocá-la como hipótese, como uma causalidade da vontade. A "vontade", naturalmente, não pode laborar mais que sobre uma "vontade" e não sobre uma "matéria" (sobre os nervos, por exemplo), numa palavra, deve chegar a colocar a proposição de que sempre que se constatam "efeitos" devem-se à ação de uma vontade sobre outra vontade. Todo processo mecânico, na medida em que é alimentado por uma força eficiente, revela precisamente uma “vontade-força”. Suponho, finalmente, que se chegasse a explicar toda nossa vida instintiva como o desenvolvimento da vontade — da vontade de potência, é minha tese — teria adquirido o desejo de chamar a toda energia, seja qual for, vontade de potência. O mundo visto por dentro, definido e determinado por seu "caráter inteligível" seria — precisamente “vontade de potência” e nada mais. 37 Se alguém interpretar isso no sentido de que Deus esteja refutado e o demônio não — seria o caso de avisá-lo de que não usamos linguagem vulgar. Ao contrário! Ao contrário, meus amigos! E de resto que diabo obriga a falar em linguagem vulgar? 38 Do mesmo modo que, em pleno século das luzes, estalou a Revolução Francesa, acontecimento tão falso e sinistro quanto inútil, porém na qual os nobres e os entusiastas espectadores de toda Europa misturaram apaixonadamente e durante tanto tempo suas próprias revoltas e seus próprios entusiasmos, uma nobre posteridade poderia iludir-se relativamente ao passado e talvez chegasse a interpretá-la de modo tolerável. Porém, isto já não teria acontecido? Não somos essa “nobre posteridade”? E, desde o momento em que nos apercebemos disso, não pertence tudo isso — ipso facto — ao passado? 39 Ninguém, por muito complacente que seja, admitirá que uma doutrina é verdadeira pelo simples motivo de que nos torne felizes e virtuosos, excetuando-se talvez, os amáveis idealistas, entusiastas, do bom, do verdadeiro, e do belo, que acreditam estar circundados por toda classe de coisas que, ainda que confusas, são tão rústicas quanto aprazíveis. A felicidade e a virtude não são argumentos. Entretanto existem espíritos reflexivos com tendência a esquecer que a desgraça e a maldade não são também objeções válidas. Uma coisa pode ser verdadeira ainda quando prejudicial e perigosa no mais alto grau, pois poderia acontecer que o fundamento radical da existência implicaria que não se pudesse ser conhecido a fundo, a não ser através da morte, de modo que o vigor de um espírito fosse medido pela dose de "verdade" que pudesse suportar, ou, mais exatamente, até que grau fosse preciso adoçar a verdade, velá-la, falseá-la. Porém é indubitável que os maus e os deserdados possuem mais e maiores dotes para descobrir certas partes da verdade e tem mais possibilidades de consegui-lo e isto pode ser percebido sem que se fale aqui dos maus que são felizes, espécie acerca da qual os moralistas preferem calar. É possível que para o nascimento do espírito vigoroso e independente sejam mais favoráveis a dureza e a astúcia que essa fina, doce e complacente frivolidade e essa arte de aceita-la facilmente, que apreciamos com tanta justeza no homem cultivado. Stendhal acrescenta um último traço ao esboço do filósofo de pensamento livre, traço que não quero deixar de sublinhar para o refinamento do gosto alemão e porque vai contra esse gosto: "Para ser filósofo — disse esse último grande psicólogo — é preciso ser claro, seco, equânime, isto é, para ver claro dentro do que é. Um banqueiro que enriqueceu tem uma parte do caráter requerido para fazer descobertas em filosofia, isto é, para ver claro no que é”. 40 Tudo que é profundo aprecia o disfarce, as coisas mais profundas têm inclusive ódio à imagem e ao símbolo. O pudor de um deus não gostaria de pavonear-se sob a forma de seu próprio contrário? Problema difícil. Seria estranho que não se encontrasse algum místico que se atrevesse a agir por sua conta. Há processos de caráter tão delicado que é conveniente encobri-los e fazê-los irreconhecíveis através de seu pesadume, há certas manifestações de amor e generosidade exuberante após as quais nada há de mais aconselhável que apanhar um bastão e surrar à testemunha ocular para turvar sua memória. Mais de um se dedica a perturbar e a maltratar sua própria memória, para, assim, pelo menos, vingar-se de seu único cúmplice — o pudor é muito engenhoso. Não são as coisas piores as que nos causam maior vergonha. Atrás de uma máscara nada mais há que felonia. Há tanta bondade na astúcia! Por outro lado, por delicadeza do pudor, o homem bem-dotado desse sentimento encontra seu próprio destino e suas decisões mais delicadas em caminhos pouco frequentados pelos homens. Dissimula a seus olhos os perigos mortais que corre e também a segurança que reconquistou. E. assim, ainda que não tenha desejado, chegará u m dia em que descobrirá que, apesar de tudo, apenas uma máscara dele é conhecida, e que é bom que assim seja. Todo espírito profundo necessita uma máscara. Mas, entretanto, em torno de todo espírito profundo se forma constantemente uma máscara, graças à interpretação, continuamente falsa, isto é, superficial, dada a todas suas palavras e a todas manifestações de sua vida. 41 É importante demonstrar a si mesmo que se está destinado à independência e ao mando, porém é preciso que se o faça a tempo. Não se deve afastar a obrigação de fazer estas provas, más também não se ligar a ninguém, porque toda pessoa é uma prisão. E muito menos ligar-se a uma pátria, ainda que seja a mais maltrapilha e mendicante, e não esquecer que é menos difícil desligar-se de uma pátria vitoriosa. Não se deixar prender por um sentimento de compaixão, ainda que seja em favor de homens superiores, cujo martírio e angústia não tivesse defesa. Não se apegar a uma ciência, ainda que nos seduzam as descobertas que parece nos reservar. Não se prender às próprias virtudes e ser vitimado, como um todo, por uma de nossas qualidades particulares, por exemplo, por nossa "hospitalidade"; como o perigo dos perigos nos alunos nobres e ricos que se dissipam prodigamente e quase com indiferença, desenvolvendo mesmo o vício da virtude da liberalidade! Não nos apegarmos a nossas virtudes, não nos sacrificarmos a uma inclinação particular. Deve-se saber concentrar-se e conservar-se, o que é a melhor prova de independência. 42 Vejo aparecer no horizonte uma nova espécie de filósofos, os quais queriam ter justamente e talvez injustamente o direito de serem chamados tentadores. O nome não é em si mesmo mais que uma tentativa, ou, se preferirem, uma tentação. 43 Serão amigos da "verdade" esses filósofos do amanhã? Possivelmente, pois todos os filósofos foram amigos das suas verdades. Mas, não serão certamente, pensadores dogmáticos. Deve-se renunciar ao mau gosto de querer estar de acordo com muitas pessoas. O que é bom para mim, não é bom para o paladar do vizinho. E como poderia haver um "bem comum"? Esta frase encerra uma contradição. O que pode ser desfrutado em comum é sempre coisa de baixa, definição, de pouco valor. Enfim, as grandes coisas estão reservadas para os grandes espíritos, os abismos para os espíritos profundos; as delicadezas e os calafrios reservados aos refinados, numas palavras raridades para os raros. 44 Depois de tudo que disse terei necessidade de dizer que também serão espíritos livres os filósofos do porvir, que serão algo mais elevado. radicalmente diferente. que não quer ser nem desconhecido nem confundido? Ao dizer isso me sinto obrigado com eles e conosco, espíritos livres, que somos seus mensageiros e precursores, a afastar deles e de nós um velho e estúpido preconceito, um mal-entendido absurdo que nublou durante muito tempo a noção do espírito livre. Para falar sem meias palavras, são niveladores, desses que se chamam erroneamente "livres-pensadores", escravos a serviço do gosto democrático, homens privos de solidão, de uma solidão que lhes seja própria, são, enfim, ridiculamente superficiais, sobretudo por sua tendência fundamental de ver nas formas da antiguidade a causa de toda miséria humana. Sua aspiração é a felicidade do rebanho, as verdes pastagens, a segurança e o bem-estar. As duas cantilenas que repetem até o cansaço são "a igualdade dos direitos" e a "compaixão relativamente a todo ser que sofre"; consideram que o sofrimento é algo que deve ser exterminado. Nós vemos as coisas a partir de um ponto de vista oposto a este, e nosso espírito está aberto diante deste problema. Em que condições e em que forma a planta humana desenvolveu-se mais vigorosamente até agora? Acreditamos que isto se produziu sempre em condições completamente opostas, que foi necessário que o perigo que acicata a vida humana crescesse até a enormidade. Acreditamos que a insensibilidade, o perigo, a escravidão, que se encontram sempre na rua e nos corações, a clandestinidade, a austeridade, toda classe de bruxarias, tudo o que é mau, terrível, tirânica, tudo que existe no homem de animal predador ou de réptil, é da mesma forma que seu oposto, útil para elevar o nível da espécie humana. E com isto não dizemos o bastante; o que devemos dizer e calar aqui sim coloca contra a teologia moderna e contra todos os desejos do rebanho. E que há de surpreendente se nós, "espíritos livres", somos infimamente comunicativos? Se nós, em nenhuma forma e nem sob nenhum aspecto, não nos preocupamos em descobrir de que o espírito deve livrar-se e ao que deve lançar-se depois? E quanto à fórmula que implica grande risco: "além do bem e do mal", tem utilidade para nós pelo menos para indicar que somos algo distinto, dos livre pensadores, ainda que se os designe em francês, italiano ou alemão, segundo o gosto desses extravagantes defensores das "ideias modernas" tendo estado em muitas paragens do espírito, como em casa ou em hospedagem, fugido sempre dos redutos obscuros e agradáveis em que preferências e preconceitos, juventude, origem, acaso de homens e livros ou mesmo fadigas de peregrinações pareciam reter-nos, cheios de malícia face às atrações da dependência, nós, nós temos afastado o servilismo implicado pelas honras, dinheiro, cargos públicos ou arrebatação dos sentidos, com certo agradecimento à desgraça e às enfermidades; agradecidos a Deus, ao diabo, à ovelha e ao inseto que se reúnem em nós, com uma curiosidade que raia à enfermidade. Investigamos até à crueldade, dispostos a encher nossas mãos com aquilo que repugna aos estômagos capazes de digerir as coisas mais indigestas. capazes de todos os misteres que requeiram astúcia, penetração e sentidos aguçados, dispostos a todos os perigos — graças a um excesso de "livre arbítrio" — ricas em primeiros planos e em segundas intenções que ninguém perscruta até o fundo, ocultos por sob mantos de luz, conquistadores assemelhados, contudo, a herdeiros e dissipadores, coordenadores e colecionadores incessantes, avaros de nossas riquezas e gavetas transbordantes, destros para saber distinguir entre o que aprender e o que esquecer, inventores de esquemas, por vezes orgulhosas deles, por vezes pedantes, por vezes formigas laboriosas dia e noite e, quando necessário, espantalhos (e é preciso sê-lo, pelo menos na medida em que a solidão é nossa amiga, amigos inatos, jurados e zelosos de nossa própria e profunda solidão, da meia-noite e do meio-dia). Ante vossos olhos a espécie de homens que somos, espíritos livres... vós, a quem vejo chegar, vós, novos filósofos... tereis, talvez, um pouco de nós. TERCEIRA PARTE O FENÔMENO RELIGIOSO 45 A alma humana e seus confins, o complexo da experiência humana interior obtida até agora; a altura, a profundidade, as cotas da experiência, toda a estória da alma até agora e suas possibilidades ainda inexploradas; tudo isto é para o psicólogo nato e para quem ama a "grande caçada" — verdadeiro terreno predestinado. Mas quão frequente deve exclamar com desespero: "estou só, ai de mim, só nesta grande floresta, nesta floresta virgem!" e deseja ter uma centena de companheiros e de bons sabujos bem amestrados para encurralar sua presa, para desentocar a sua selvagem, a alma. Em vão descobre cada vez mais, com amargo desengano, quanto é difícil encontrar os companheiros e os cães adequados para descobrir as coisas que moveram sua curiosidade. O inconveniente de mandar os doutos a caçarem em territórios inexplorados e perigosos, nos quais sejam necessárias a coragem, a prudência, a firmeza em todos os sentidos, torna-se claro, que se tornam inúteis, quando começa a “grande” caçada e então o maior perigo: porque então perdem a agudeza visual e a finura do olfato. Assim, por exemplo, para conjecturar e considerar qual foi o problema da ciência e do conhecimento na alma dos homines religiosi seria preciso que um indivíduo fosse tão profundo, tão vulnerável, tão desmesurado, quanto foi a consciência intelectual de um Pascal e ademais seria preciso ainda, para ele. aquele horizonte amplo de um espírito lúcido e maligno, que saiba abarcar e ordenar do alto, reduzir e constranger a fórmulas aquela mixórdia de experiências dolorosas e perigosas. Mas quem teria tanto para me prestar um tal serviço e quem teria o tempo de buscar um tal servidor? São, evidentemente muito raros e é inverossímil que possam ser encontrados em todos os tempos. Deve-se fazer tudo sozinho se se quer aprender algo, isto é, há muito que fazer! Para mim minha transbordante curiosidade é o mais agradável de todos os vícios. Perdão, queria dizer que o amor à verdade terá sua recompensa no céu, mas também na terra. 46 A fé, tal qual a requeria e não raramente a obtinha o Cristianismo primitivo, em meio ao mundo cético e meridionalmente liberal, que tinha atrás de si uma luta várias vezes secular entre escolas filosóficas e trazia em si o fruto, educado na tolerância, desejada pelo imperium romanum — não era a fé ingênua e rude de escravos, pelo qual um Lutero ou um Cromwell ou qualquer cérebro bárbaro do Norte sentiam atacado o seu Deus, o seu Cristianismo; essa se aproxima mais àquela fé de Pascal que se assemelha de modo horrível a um lento suicídio da razão — da razão amolecida e decrépita, que não se deixa extinguir de um só golpe. A fé cristã é, desde seus primórdios, sacrifício, sacrifício de toda liberdade, de toda independência do espírito; ao mesmo tempo, escravização e escárnio de si mesmo, mutilação de si. Deseja-se a crueldade religiosa para impor essa fé a uma consciência enfraquecida, complicada e viciada, fé que parte do pressuposto que uma sujeição do espírito provoca uma dor indescritível, que todo o passado e todos os hábitos do espírito se rebelam contra o "absurdissimum" que representa para ele uma tal fé. Os homens modernos, com sua indiferença por toda nomenclatura cristã, não se ressentem mais do superlativamente horrível, que para o gosto dos antigos se encerrava no paradoxo da fórmula: "Deus na Cruz". Mas em nenhum outro lugar se encontrou até agora tamanha ousadia na inversão de ideias, nada de tão terrível, de tão interrogativo e de discutível como aquela fórmula: prometia uma revolução total de todos os valores antigos. É o Oriente, o profundo Oriente, o escravo oriental, que assim se vinga de Roma e de sua tolerância aristocrática e frívola, do "catolicismo" romano da incredulidade, e sempre foi assim, não em termos de fé, mas da liberdade da fé, a indiferença estoica e sorridente contra a seriedade da fé, que suscitou o desdém dos escravos contra seus senhores, que os lançou em rebelião contra esses. O "Liberalismo" provoca a desdém, uma vez que o escravo deseja apenas o incondicionado, ele compreende apenas o tirânico, ainda que na moral, ame como odeia, sem gradações, mas até a última profundidade, até a dor, até a moléstia — toda sua grande miséria oculta rebela-se contra o gosto aristocrático que parece negar a dor. Manter-se céptico diante da dor, que no fundo é uma postura da moral aristocrática, contribuiu grandemente para a grande insurreição dos escravos, começada com a revolução francesa. 47 Onde quer que tenha se manifestado a neurose religiosa, encontramo-la vinculada a três perigosas prescrições: solidão, jejum e castidade — mas não se pode estabelecer com certeza qual seja a causa, qual o efeito, nem mesmo que exija propriamente uma relação de causa e efeito. O que dá o direita de manifestar uma tal dúvida é o fato de que entre os sintomas mais comuns que costumam acompanhá-la encontra-se ainda uma imprevista e desenfreada volúpia, tanto entre os povos selvagens quanto nos civilizados, libidinagem que se converte com a mesma celeridade em fanatismo de contrição, em renegação do mundo e da vontade; deve-se procurar a explicação numa epilepsia dissimulada? Mas neste caso mais que em qualquer outro deve-se cuidar para não querer definir a qualquer custo; em nenhum outro caso pulularam tão frequentemente o absurdo e a superstição, nada pareceu interessar mais aos homens, incluindo os filósofos, e já é tempo de se considerar um pouco mais friamente as coisas, de sermos mais circunspectos, melhor ainda volver a vista, afastar-se. Mesmo na filosofia mais recente, na de Schopenhauer, encontra-se, quase como um problema em si, esta angustiosa questão da crise e do despertar da religião. O impacto das perguntas: Como é possível negar à vontade? Como é possível o santo? Parece que estes problemas fizeram de Schopenhauer um filósofo e foram origem de sua filosofia. Se nos perguntassem o que pode apaixonar aos homens de todas as classes e de todos os tempos, inclusive aos filósofos, acerca do fenômeno da santidade, poderia responder sem medo de errar que é a aparência de milagre que tem esse fenômeno. Acreditamos observar neste fenômeno a metamorfose súbita do "mal" em santo, em homem de bem. E, por consequência nitidamente schopenhaueriana, seu discípulo mais convicto (ainda que último, pelo menos para a Alemanha), isto é, Richard Wagner, coroou a obra da própria vida com a apresentação daquele tipo horrível e eterno sob os despojos de Kundry, type vécu, em carne e osso, no mesmo instante em que psiquiatras de quase toda a Europa tinham bom motivo de estudá-lo de perto, onde a neurose religiosa, ou como eu a chamo "a mania religiosa" tinha seu último foco epidêmica disfarçado com a portada da saúde". A psicologia naufragava contra esse escolho: não seria por que tivesse se colocado sob o domínio da moral, porque ela mesma acreditava nas oposições morais dos valores e porque introduzia nos textos e nos fatos uma versão errônea, uma interpretação? Como? Por acaso o "milagre" é apenas uma falha de interpretação, uma falta de filologia? 48 Parece que as raças latinas sentem mais intimamente seu catolicismo, do que nós pessoas do Norte, e consequentemente a incredulidade nos países católicos deve significar qualquer coisa de muito distinta daquela dos países protestantes — porque equivale a uma espécie de revolta contra o espírito da raça, enquanto para nós denota um retorno ao espírito (ou à falta de espírito) — da raça. Nós, do Norte, somos provenientes, indubitavelmente, de raças bárbaras, mesmo relativamente a nosso espírito religioso: que na verdade não temos. Podem ser excetuados os celtas que forneceram o melhor terreno para a propagação da infecção cristã nos países nórdicos, na França, o ideal cristão, tanto quanto o permite o fraco sol do Norte, atinge seu maior desenvolvimento. Quão estranhamente piedosos pois parecem, para nosso gosto, também os últimos cépticos franceses, principalmente quando têm sangue celta em suas origens! Que odor de catolicismo anti-alemão existe na sociologia de Auguste Comte com a sua lógica dos instintos, tão romanas que odor de jesuitismo no amável e prudente Cícero de Port Royal, Saint Beuve, com toda a sua aversão pelos jesuítas. E Ernesto Renan, quão inacessível soa para nós setentrionais a linguagem de um Renan, em que todo momento um princípio de tensão religiosa faz perder o equilíbrio à sua alma finamente voluptuosa e amante das sutilezas. Citamos as seguintes belas frases dele e rapidamente uma resposta maligna e impertinente se apresentará à nossa alma, menos bela e mais rude, porque mais alemã: — Disons donc hardiment que la religian est un preduit de l'homme normal, que l'homme est plus dans le vrai quand il est plus religieux et le plus assuré d'une destinée infinie... C'est quand il est bom qu'il veut que la vertu correspond à un ordre éternel, c'est quando il contemple les chases d'une manière désintéressée qu'il trouver Ia mort revoltante et absurde. Comment ne pas rupposer que c'est dans ces moments-là, que l'homme voit le mieux?..." (Dizemos então seguramente que a religião é produto do homem normal, que o homem está mais próximo do verdadeiro quando é mala religioso e mais seguro de um destino Infinito... É quando é bom que ele vê que a virtude corresponde a uma ordem eterna, é quando contempla as coisas de maneira desinteressada que acha a morte revoltante e absurda. Como não supor que é nesses momentos que o homem deseja o melhor?) O som desta frase está tão nas antípodas de minha orelha e de meus hábitos, que quando o li pela primeira vez escrevi à margem: "la niaiserie religieuse par excellence" (tolice religiosa por excelência). — Mas para vergonha de meu primeiro ressentimento acabei por considerar valiosas aquelas frases que cavalgavam a verdade! É tão estranhamente gentil, tão honorável ter os próprios antípodas. 49 O que causa estupor na religiosidade dos antigos gregos é a exuberante gratidão que exala da mesma. Um homem que ocupa uma tal posição frente à natureza e à vida pertence a uma espécie realmente muito aristocrática!! Mais tarde, quando a plebe, também na Grécia, tornou-se preponderante, o temor invadiu também a religião, e o Cristianismo começou a preparar-se. 50 O amor de Deus, foi o amor rusticamente sincero e indiscreto de Lutero — o protestantismo não tem "delicadeza", a delicadeza meridional; no amor de Deus existe o êxtase oriental do escravo liberto ou perdoado sem tê-lo merecido, por exemplo, Santo Agostinho, no qual ofende a falta de modos e apetites aristocráticos, há a delicadeza e a concupiscência feminil, a qual, vergonhosa e ignorante aspira a uma união "mystica et physica", como por exemplo a de Madame de Guyon. Em muitos casos se revela bastante estranhamente algo semelhante ao travestimento da puberdade de uma moçoila ou de um jovenzinho, isto talvez absconda a histeria de uma solteirona, talvez também a sua última ambição — em tais casos a Igreja canonizou a mulher, frequentemente. 51 Até este momento mesmo os homens mais potentes têm se inclinado em--sinal de adoração frente ao santo, como diante de um enigma da sujeição de si mesmo, da última privação voluntária. Por que se inclinaram? Pressentiam nele — ou melhor, atrás da interrogação do seu aspecto mesquinho e miserável, a força superior que quer se afirmar numa tal vitória, a força da vontade, o próprio brado de dominação, ao honrar o santo, honravam algo em si mesmos. Além do mais, a vista do santo insinuava em si uma suspeita; uma tal monstruosidade de negação contra a natureza, não seria desejada e querida sem uma finalidade, assim diziam e acreditavam. Deveria haver um motivo para fazer isso, um perigo tão grave, que o asceta, graças aos seus conselheiros secretos, espera conhecer? Em breve, os poderosos da terra apresentaram um novo temor, pressentiram uma força nova, um inimigo ignorado e ainda invicto: "a vontade da dominação", foi essa que os constrangiu a deterem-se diante do santo. Sentiam necessidade de interrogá-lo. 52 No "Antigo Testamento" judaico, que é o livro da justiça divina, os personagens, as coisas, os discursos, tudo é de um estilo tão grandioso que a literatura grega e hindu nada lhe pode contrapor de tão grande. Sentimo-nos invadidos pelo terror e pelo respeito frente a estes imensos desvelamentos daquilo que já foi o homem, e se pensa tristemente na velha Ásia e na pequena península, a Europa. que deseja representar, relativamente àquela "o progresso da humanidade". Certamente que por si mesmo não é mais de um fraco animal doméstico. cujas necessidades são precisamente aquelas de um animal doméstico (como nossos homens cultos de hoje, compreendidos os cristãos do cristianismo "iluminado"); frente àquelas ruínas não sabe nem mesmo maravilhar-se, nem se entristecer o gosto pelo "Velho Testamento" é pedra de toque para se reconhecer o grande e o pequeno: — encontra maior conformidade a seu gênio no Novo Testamento, o livro da graça (no qual abunda o bafio adocicado de mofo dos carolas e das pequenas almas). Ter acrescido o Novo Testamento, que é uma espécie de rococó do gosto sob todos os aspectos, ao Velho Testamento, formando assim a "Bíblia", o "livro" por excelência, é talvez a maior temeridade, o maior "pecado contra o espírito" que a Europa literária tem na consciência. 53 Por que o ateísmo, hoje? "O pai" em Deus foi radicalmente refutado, também o "juiz", o "remunerador". Foi refutado seu "livre arbítrio": não ouve e se ouvisse não poderia nos ajudar em nada. É isto que parece vergonhoso: parece não saber se explicar de modo claro — Feria obscuro? Isto foi o que descobri, em muitas conversas, perguntando, apurando os ouvidos, acerca das causas da decadência do teísmo na Europa, parece-me que o instinto religioso vai aumentando poderosamente destarte, mas que resta, profundamente desacreditado, o ensinamento teístico. 54 O que fez, enfim, toda filosofia moderna? De Descartes em diante, e mais contra ele que tomando como base suas afirmações — por todos os filósofos foi cometido um atentado contra o antigo conceito de alma, sob a aparência de criticar o conceito do sujeito e do predicado, — isto é, um atentado contra a suposição fundamental da doutrina cristã. A filosofia moderna sendo uma crítica do conhecimento teórico é secreta ou abertamente anticristã, porque, seja isso dito para a orelha mais delicada, não realmente antirreligiosa. Uma certa feita acreditava-se na "alma" como na gramática e no sujeito gramatical: afirmava-se "eu" é a condição, "penso" é o predicado e o condicionado, o pensar é uma atividade para a qual é preciso imaginar um sujeito como causa. Depois se tentou, com tenacidade e astúcia admiráveis, sair desta rede — acreditou-se então que o oposto era verdadeiro, "penso" condição, "eu" condicionado; sendo o "eu" portanto nada mais que uma síntese produzida pelo pensar por si mesmo, Kant afinal desejava provar que partindo do sujeito, o sujeito não podia ser demonstrado, o objeto tampouco; a possibilidade de uma "existência aparente" do sujeito individual, portanto da alma. Ideia que não parece nova e que nos Vedanta exerceu um poder imenso sobre a terra. 55 Existe uma grande variedade na crueldade religiosa: mas três tipos são os mais importantes. Sacrificavam-se homens ao Deus e precisamente aqueles mais amados entre os outros — a esta categoria pertenciam os sacrifícios das primícias, comum a todas religiões pré-históricas e também o sacrifício do imperador Tibério na gruta de Mitra na ilha de Capri, o mais horrível de todos os anacronismos romanos. Depois durante a época moral da humanidade sacrificou-se ao próprio Deus os próprios instintos mais poderosos, a “natureza”; a alegria de tais sacrifícios brilha no olhar cruel do asceta, do fanático contranatura. Finalmente o que restava a sacrificar? Não se chegaria ao ponto de sacrificar tudo aquilo que havia de confortante, de sagrado, de sadio, a ponto de sacrificar a esperança, a fé numa secreta harmonia, na beatitude e na justiça eterna? Não se devia sacrificar ainda a Deus e por crueldade contra si mesmo adorar a pedra, a estupidez, a força da gravidade, o destino, o nada? Sacrificar Deus ao nada — este mistério paradoxal da extrema crueldade foi reservado à geração presente: todos nós já sabemos alguma coisa. 56 Quem, como eu, se ocupou por muito tempo por um desejo enigmático a penetrar profundamente o pessimismo e a liberá-lo da estreiteza, da ingenuidade meio cristã, meio germânica, que neste século se apresentou pela última vez, isto é, com a filosofia de Schopenhauer, que com olhos asiáticos e hiperasiáticos guardou realmente em seu interior e até o fundo aquela filosofia que é a mais completa negação do mundo que se possa imaginar — além dos confins do bem e do mal e não mais, como Buda e Schopenhauer dentro da absurda cerca da moral, então abriu, sem propriamente desejá-lo, os olhos para o ideal contrário, para o ideal do homem mais orgulhoso, mais exuberante de vitalidade e afirmador do mundo, o qual não apenas conseguiu satisfazer-se, resignar-se com aquilo que era e que é, mas deseja ter tudo isso de novo, como era e como é, interiormente, gritando sem cessar "da capo" não apenas relativamente a si mesmo, mas todo o espetáculo e não tanto ao espetáculo, mas, no fundo, àquele que é necessário ao espetáculo e o torna necessário, porque sempre é necessário a si mesmo. Como? E isso não seria: "Circulus vitiosus deus"? 57 Com o poder de sua visão espiritual e da sua penetração aumenta a distância e de certo modo o espaço em redor do homem; o seu mundo ganha em profundidade, sempre novos astros, novos problemas, novas imagens e novos enigmas surgem em seu horizonte. Talvez tudo isto sobre o que seu olho espiritual tenha exercitado sua penetração, não tenha sido mais que ocasião para exercício, um jogo, coisa de crianças e de parvos; talvez um dia os conceitos mais elevados, pelos quais mais longamente se tenha lutado e sofrido, "Deus" e o "pecado" não tenham maior importância para nós que aquela que um velho possa conceder aos folguedos e dores da infância e talvez então o "homem velho" sentirá necessidade de um outro folguedo, de uma outra dor, sempre criança, eternamente criança! 58 Observou-se atentamente como uma vida estritamente religiosa e a sua ocupação preferida do exame de consciência ao microscópio, como ainda aquele estado de tenra apatia, conhecido como "prece" e é uma permanente espera da "vinda de Deus", requerem necessariamente ócio, completo ou parcial, quero dizer o non far niente em boa fé, hereditário, ínsito no sangue ao qual não é de todo estranho o sentimento aristocrático de que o trabalho desonra — isto é, avilta o corpo e a alma? E que, consequentemente, a operosidade moderna, ruidosa, avara de seu tempo, soberba, estultamente soberba, mais que qualquer outra coisa prepara o caminho para a incredulidade? Entre aqueles, por exemplo, que atualmente vivem na Alemanha afastados da religião, encontro muitas gradações do "livre pensar" tanto pela espécie quanto pela origem, mas principalmente, em maior número, aqueles nos quais a laboriosidade de geração em geração apagou os instintos religiosos: nem mesmo chegam a saber para que serve a religião e apercebem-se da existência desta com uma espécie de estupor apático. Sentem-se suficientemente ocupados, aquelas intrépidas pessoas, com seus negócios e seus prazeres, sem falar na "pátria", nos jornais, e nos "deveres de família" e parece bastante correto que não encontrem tempo para a religião, ainda mais pelo fato de não saberem se ela oferece um novo negócio ou passatempo, uma vez que acreditam que não é possível que se vá à Igreja exclusivamente para gastar o bom humor. Não são inimigos dos costumes religiosas e se em certas circunstâncias exigirem, por exemplo, por imposição estatal, que participem de tais costumes, farão tudo quanto se lhes for exigido, como tantas outras coisas, com modéstia e paciente gravidade, sem desejo de compreender e sem sentir desconforto; vivem demasiado à parte para ter razões pró ou contra tal coisa. A estes indiferentes pertence atualmente o grande número de protestantes da classe média, particularmente nos grandes centros obreiros do comércio e da indústria bem como a maioria dos doutores laboriosos e tudo que vive na ou da universidade (excetuando-se os teólogos, relativamente aos quais o fato e a possibilidade que possam existir, são para o psicólogo um problema muito delicado). Raramente, na esfera dos homens religiosos ou sobretudo clérigos, se tem uma ideia de quanta boa vontade é requerida, hoje em dia, para que um cientista alemão se interesse seriamente pelo problema da religião; a sua profissão por si mesma (isto é, como já indicamos, sua laboriosidade profissional, à qual pela sua consciência moderna se sente obrigado) o faz propender a uma indiferença superiormente serena e indulgente quanto à religião, indiferença à qual por vezes se mescla um leve desprezo por aquela "sordidez" do espírito que ele pressupõe onde quer que se professe uma religião. Sobretudo com a ajuda da História (logo, não pela sua experiência) o douto tende a conservar uma respeitosa seriedade e uma certa reserva temerosa pelas religiões, mas ainda que fosse forçado a uma espécie de reconhecimento relativamente à mesma, apesar de si mesmo não teria se aproximado um só passo àquilo que ainda subsiste com o nome de Igreja ou de sociedade religiosa, talvez se avizinhasse precisamente do contrário. A indiferença prática em termos de religião, na qual foi nascido e educado, sublimasse nele, até à circunspecção de uma polidez, a qual evita todo contato com pessoas ou coisas religiosas e pode ocorrer que precisamente a profundidade de sua tolerância e de seu humanismo lhe permitam evitar a delicada crise que traz a tolerância por si mesma. — Cada época possui uma espécie divina de ingenuidade que lhe é própria e pela qual as épocas seguintes podem invejá-la e que dose de ingenuidade digna de admiração, infantil e desmesuradamente vazia existe na fé que a douto tem em sua própria superioridade, na boa consciência da própria tolerância, na segurança simples que permite ao seu instinto de considerar o homem religioso como um tipo de valor inferior e colocado mais abaixo, da qual ele se libertou, afastou-se e sobre o qual se elevou — ele, o anão presunçoso e plebeu, o incansável obreiro do campo das "ideias", das "ideias modernas". 59 Quem observou bem o mundo, adivinha facilmente quanta sabedoria existe no fato dos homens serem superficiais. O instinto de conservação ensina rapidamente a ser leviano, volúvel e falso. Encontra-se cá e lá uma adoração apaixonada e exagerada pelas "formas puras" tanto entre os filósofos, quanto entre os artistas: mas, sem dúvida, aquele que acha tão necessário o culto da superfície deve ter feito algumas tentativas malsucedidas de ver "sob" ela. E ainda existe um grupo em relação com estes cérebros inflamados, filhos dos artistas natos, para os quais não existe outra forma de gozar a vida além da alteração de sua imagem (de certa forma, penosa vingança contra a vida). Poder-se-ia deduzir o grau ou a medida em que lhes é detestável a vida de acordo com o modo pelo qual desejam falsear sua imagem, diluí-la, transcendê-la, divinizá-la. O temor profundo de cair num pessimismo incurável obriga a aferrar-se a uma interpretação religiosa da existência. O instinto teme a verdade que chega ao homem antes que este tenha se tomado suficientemente forte, duro e artista. Neste aspecto, a "compaixão", a "vida em Deus" apareceriam como o produto mais refinado e esquisito do medo à verdade, como uma devoção e embriaguez de artista ante a mais sistemática de todas as falsificações. Possivelmente jamais tenha havido meio mais eficaz para embelezar o homem que a piedade; é ela que o transforma em arte, em superfície, em jogo de cores, bondade, chegando até a deixar de sofrer. Assim, pois, poder-se-ia considerar a todos esses artistas como homines religiosi do mais alto grau. 60 Amar o homem pelo amor de Deus — este sentimento foi até agora o mais aristocrático e o mais elevado que já se conseguiu alcançar entre os homens. Que o amor pelo homem sem um segundo fim santificante seja uma estupidez e uma brutalidade a mais, que a inclinação a amar ao homem deve alcançar por uma inclinação superior sua medida, sua finura, seu grão de sal, a sua dose de âmbar, qualquer que tenha sido o homem que experimentou primeiramente um tal sentimento, o primeiro que "viu" segundo ele, quanto a sua língua deve ter vacilado quando tentou exprimir pela primeira vez um sentimento tão delicado, este homem deveria ser venerado eternamente, porque foi o homem que voou mais alto que todos os outros até agora e errou no mais delicioso dos mundos. 61 O filósofo, tal qual o compreendemos, nós, espíritos livres, o homem da responsabilidade mais ampla, que tem a consciência do desenvolvimento mais completo do homem, este filósofo utilizar-se-á da religião como um meio de elevação e educação, como é habitual servir-se das contingências políticas e econômicas de sua época. A influência eletiva, educativa, quer dizer, tanto criativa e plasmadora quanto destrutiva, que pode ser exercida através das religiões é vária e múltipla de acordo com os homens que submerjam sob seu fascínio e que neste procurem proteção. Para os fortes, para os independentes, preparados e predestinados a dominar, nos quais se personificam o intelecto e a arte de uma raça dominante, a religião é um meio a mais para suprimir os obstáculos, para poder reinar: é um vínculo que conjuga dominadores e súditos, que revela e presentifica aos dominadores a consciência dos súditos, naquilo que esta tem de mais abscôndito, mais íntimo, aquilo precisamente desejaria escapar à obediência. E no caso em que certa natureza, de origem nobre, inclinasse uma alta espiritualidade a uma vida mais retirada, mais secreta, conservando apenas o lado mais delicado do domínio (exercido sobre seus discípulos escolhidos ou membros de uma mesma associação), a própria religião poderia ser usada como um meio de presumir-se contra o fracasso e o aborrecimento ligado a um domínio mais grosseiro e de ficar preservado do inevitável lodo da política. Isto se refere aos brâmanes, por exemplo; através do auxílio de uma organização religiosa asseguraram-se o direito de eleger um rei para o povo, enquanto se mantinham à distância e apartados, sentindo que suas atribuições eram superiores à do rei. Assim, a religião proporciona condições a alguns indivíduos para preparar-se a uma futura dominação, àquelas classes fortes que avançam lentamente e nas quais graças à vida regrada, a força e o desejo da vontade, a vontade da dominação de si mesmo, mantém-se num crescendo contínuo: àqueles a religião oferece ocasiões e tentações suficientes para a adesão a uma intelectualidade mais elevada, de provar o seu grande autodomínio, o silêncio e a solidão — o ascetismo e o puritanismo são meios de educação e de enobrecimento quase indispensáveis, mesmo quando uma raça deseja dominar sua própria origem plebeia e atingir uma futura dominação. Relativamente aos homens vulgares, finalmente, que são a maior parte, e que existem unicamente para servir utilmente à universalidade e por isto tem direito a existir; a religião tem a inestimável vantagem de torná-los satisfeitos da própria posição, proporcionar-lhes paz ao coração, enobrecer a sua obediência, confortá-los e induzi-los a dividir com seus pares as alegrias e as dores, de contribuir para transfigurar de certo modo a sua monótona existência, a baixeza, a miséria na sua alma semibestial. A religião e o significado religioso da vida embelezam com um raio de sol a existência daqueles homens atribulados, e torna suportável o seu próprio aspecto, influi como a filosofia de Epicuro, sobre os sofredores de grau superior, restaurando, afinando, desfrutando, por assim dizer, o sofrimento, para finalmente santificá-los e justificá-los. No cristianismo e no budismo talvez nada mais respeitável que a sua arte de ensinar, ainda que às mais ínfimas criaturas humanas, de elevá-las, através da piedade, a uma ordem aparente de coisas mais elevadas e torná-las contentes, graças a isto com a ordem real em que vivem tão duramente e precisamente esta dureza é necessária. 62 Por outro lado, para mostrar a contraparte de tais religiões, e pôr a lume a sua sinistra periculosidade — paga-se sempre caro e de modo terrível sempre que as religiões não são empregadas para a criação e a educação nas mãos do filósofo, mas quando são deixadas agindo por si mesmas, quando desejam ser fins últimos e não apenas meios entre outros meios. Entre os homens como em qualquer outra espécie de animais há um resíduo de abortados, de doentes, de degenerados, de fracos, que sofrem necessariamente, os casos bem-sucedidos são também no homem sempre uma exceção e pode-se dizer, refletindo que o homem é um animal ainda não determinado, que esses são uma rara exceção. Mas, pior ainda, quanto mais elevado é o tipo do homem, que é representado por esse indivíduo, tanto menos provável que seja bem-sucedido; o casual, a lei do irracional se manifestam em toda a economia do homem na forma mais terrível, no efeito distributivo que exercem sobre os homens superiores, nos quais as condições de vida são delicadas, múltiplas e dificilmente calculáveis. Que atitude assumem as maiores religiões frente a este excesso de casos falhados? Tendem a conservá-los, mantê-los vivos com todos os meios possíveis, tomam partido por eles, uma vez que são religiões dos sofredores, dão razão a todos aqueles para os quais a vida é uma moléstia e querem fazer crer e tornar possível que todos os outros modos de viver e sentir a vida são falsos e impossíveis. Por mais alto que se possa valorar uma tal terna preocupação de tomar compatível e conservar, ao mesmo tempo em que a mesma se estende inclusive ao tipo mais elevado, e até agora sempre o mais sofredor, do homem — afinal de contas as religiões soberanas têm sido a principal causa da manutenção do tipo "homem" num grau mais baixo — conservaram demasiado daquilo que estava destinado a perecer. Devem-se a elas benefícios inestimáveis, e quem tem um tesouro de reconhecimento para não se tornar pobre diante disso, que, por exemplo, fizeram os "homens espirituais" do cristianismo para a Europa?! Confortavam-se os sofredores, infundia-se coragem aos oprimidos e aos desesperados, emprestavam seu braço para aqueles que não podiam caminhar por si mesmos, atiravam-se, longe do mundo, nos conventos, casas de correção da alma, todos os insatisfeitos, os náufragos da sociedade humana; o que deviam fazer ainda para poder contribuir com boa consciência e premeditadamente para a conservação máxima de tudo aquilo que estivesse doente e sofrendo, ou para falar mais claramente, para a deterioração da raça europeia? Faltava inverter todos os valores! Enfraquecer os fortes, diminuir as grandes esperanças, tornar suspeita a felicidade que reside na beleza, transmutar tudo aquilo que há de independente, de viril, de conquistador. de dominador no homem, todos os instintos que no homem, o tipo mais elevado e melhor sucedido, estão incertos, aviltação, destruição de si mesmos. transmutar o amor pelas coisas terrenas e pela dominação das mesmas em ódio contra a terra e tudo aquilo que é terreno — eis o objetivo da Igreja e que deveria encontrar tal prevalência que, segundo sua valoração, o desejo de subtrair-se ao mundo, à ação dos sentidos se identificou com a ideia do "homem superior". Creio que com o ar zombeteiro e indiferente de um deus epicúreo se pudesse passar em revista a comédia estranhamente dolorosa e ao mesmo tempo grosseira e refinada do Cristianismo, acredito que não se poderia deixar de admirar e de rir: não é incrível que durante dezoito séculos apenas um ideal e uma vontade tivessem dominado a Europa — aqueles de fazer do homem um aborto sublime? Mas quem, dotado de necessidades opostas e armado com um martelo divino, quisesse aproximar-se desse produto quase arbitrariamente degenerado e entristecido, que se chama o europeu cristão (Pascal, por exemplo) não exclamaria desdenhoso, impiedoso, aterrado: "Oh! Vós, estultas que vos presumis piedosos, que fizestes? Não saiu este trabalho de vossas mãos! Como desperdiçasses, deformastes a mais bela das massas, a melhor que um escultor pudesse desejar! Que coisa tivestes a desfaçatez de fazer?" Quero dizer: o Cristianismo foi a espécie mais nefasta das presunções. Homens, não suficientemente elevados e duros, para trabalhar como artistas com o "homem", homens não suficientemente fortes e previdentes e tendo a necessária abnegação para fazer triunfar a lei fundamental que milhares e milhares de abortos devem morrer, homens não suficientemente aristocráticos para ver o abismo intransponível que separa o homem do homem — tais homens com seu intento de "igualdade diante de Deus" dirigiram até agora os destinos da Europa, e até se formou uma espécie de homem diminuído, uma variedade quase ridícula, um animal de rebanho, afável, amolecido, medíocre, o moderno Europeuma. QUARTA PARTE AFORISMOS E INTERLÚDIOS 63 Quem nasceu mestre, somente leva a sério as coisas apenas no que se referem a discípulos, inclusive a si mesmo. 64 "A ciência pela ciência" é a última cilada que nos arma a moral — e é precisamente essa que envolve a todos inextrincavelmente em sua rede. 65 A atração exercida pelo conhecimento seria bastante fraca, se para atingi-lo não fosse preciso vencer tantos pudores. 65-a Somos mais desonestos para com Deus: pretendemos que ele não possa nem deva pecar. 66 A propensão a aviltar-se, a deixar derrubar, desfrutar e carregar-se de mentiras, poderia ser o pudor de um Deus em meio aos homens. 67 O amor por um único ser é uma barbárie: porque acontece em detrimento de todos os outros seres. Mesmo o amor de Deus. 68 "Eu fiz isto", me diz a memória. "Não posso tê-lo feito", sustém a meu orgulho que é inexorável. Finalmente cede a memória. 69 Observou-se mal a vida, se ainda não se descobriu a mão que, piedosamente, mata. 70 Quando se tem caráter ainda se tem na vida a própria aventura típica, que sempre se renova. 71 O sábio como astrônomo — Enquanto sentires os astros como algo "acima de ti", não possuirás ainda o olhar do vidente. 72 Não a potência, mas a duração de um sentimento elevado forma os homens superiores. 73 Aquele que atinge seu ideal, por si só o ultrapassa. 73-a Eis pavões que escondem zelosamente sua cauda e nisso colocam sua soberba. 74 Um homem dotado de gênio é insuportável se além disso não tem pelo menos duas outras qualidades: a gratidão e a polidez. 75 O grau e espécie de sexualidade de um indivíduo penetram até o mais alto grau em seu espírito. 76 Em condições de paz o homem belicoso engalfinha-se consigo mesmo. 77 Os princípios servem para tiranizar os próprios hábitos, a justificá-los, honrá-los, vituperá-los ou escondê-los — dois homens de princípios iguais desejam alcançar, provavelmente, coisas fundamentalmente diferentes. 78 Quem despreza a si mesmo, se honra pelo menos como desprezador. 79 Uma alma que se sabe amada, mas não sabe retribuir, manifesta suas próprias profundezas: o que estava sepultado no fundo vem à tona. 80 Uma coisa explicada deixa de interessar. — O que queria dizer o Deus que sugeriu: "conhece a ti mesmo"? Talvez quisesse dizer: "deixa de interessar-te por ti mesmo! torna-te objetivo"! — Sócrates? e o "homem científico"? 81 É uma coisa terrível morrer de sede em meio ao mar. É realmente necessário que se ponha tanto sal na vossa verdade a ponto de torná-la incapaz de satisfazer a sede? 82 "Piedade para todos" — seria dureza e tirania contra ti mesmo, meu Caro! 83 O Instinto — Quando a casa está em chama esquece-se até de comer. Mas depois come-se sobre as cinzas. 84 A mulher aprende a odiar à medida que desaprende a fascinar. 85 As mesmas paixões no homem e na mulher são diferentes em seu andamento e é por isso que o homem e a mulher jamais deixam de se desentender. 86 As mulheres escondem no fundo de sua vaidade pessoal um desprezo imperial — pela "mulher" uma. 87 Coração encadeado, espírito livre — Quando se prende o coração e se o mantém preso, pode-se permitir muita liberdade ao espírito: eu já o disse uma vez. Mas não se deseja crer-me, porque não era coisa já consabida. 88 Começa-se a desconfiar das pessoas muito prudentes quando elas se mostram embaraçadas. 89 As aventuras terríveis nos fazem pensar se aqueles que são por elas tocados não são também algo terrível. 90 As pessoas graves, melancólicas, tornam-se precisamente por aquilo que tornam as outras mais pesadas, isto é, o ódio e o amor, mais leves e saem aos poucos à sua superfície. 91 Tão frio, tão gelado que apenas ao tocá-lo já se queimam os dedos, cada mão que o toca retrocede apavorada! E precisamente por isso alguns o acreditam ardente. 92 Quem ainda não se sacrificou pelo menos uma vez pela sua própria reputação? 93 Na afabilidade para com todos não se vê traço de misantropia, mas se houver, quanto desprezo pelos homens. 94 A maturidade do homem consiste em ter reencontrado a seriedade que em criança se colocava nos jogos. 95 Envergonhar-se da própria imoralidade é um degrau da escada no extremo da qual se sentirá vergonha da própria moralidade. 96 É preciso despedir-se da vida como Ulisses de Nausica, mais bendizendo-a que enamorado. 97 Como! Um grande homem? Não consigo ver mais que um comediante do próprio ideal. 98 Quando se amestra a própria consciência, esta acaricia ao mesmo tempo em que morde. 99 Fala o desiludido: Esperava ouvir o eco, mas apenas ouço loas. 100 Diante de nós mesmos sempre nos fazemos sentir menos agudos que realmente somos. assim repousamos do cansaço que nos causa o próximo. 101 Hoje um vidente gostaria de acreditar-se um Deus tornado animal. 102 Encontrar amor em quem se ama deveria desenganar realmente aquele que ama acerca do objeto amado. — Como? Seria ainda uma coisa modesta aquela de te amar? Ou ainda tola? Ou ainda, ou ainda... 103 O perigo na felicidade — "Tudo é pelo melhor, agora! Agora amo qualquer destino — quem deseja ser meu destino? 104 Não é já o seu amor ao próximo, mas, unicamente a impotência desse seu amor que impede aos cristãos de hoje... de lançar-nos à fogueira. 105 Ao espírito livre, àquele que possui a "religião do conhecimento" — repugna a pia fraus mais que a impia fraus. Daí nasce a profunda incompreensão da Igreja quando se pertence ao "espírito livre" — a Igreja tenta sujeitar. 106 Graças à música as paixões encontram gozo em si mesmas. 107 Quando se toma a resolução de tapar os ouvidos mesmo aos mais válidos argumentos contrários, dá-se indícios de caráter forte. Embora isso também signifique eventualmente a vontade levada até à estupidez. 108 Não existem fenômenos morais, mas uma interpretação moral dos fenômenos. 109 O delinquente de modo muito frequente não está à altura de seu delito: ele o empequenece e o calunia. 110 Os advogados dos delinquentes são raramente tão artistas que consigam fazer ressaltar a favor de quem cometeu, quanto de tão terrivelmente belo existe na ação cometida. 111 Quando nosso orgulho foi ofendido é precisamente quando nossa vaidade se sente menos ofendida. 112 Aquele que se sente predestinado mais à contemplação que à fé, todos os crentes parecem demasiado escandalosos e indiscretos: procura evitá-los. 113 Desejas predispor alguém a teu favor? Finge-te embaraçado diante dele. 114 A enorme expectativa e a vergonha da expectativa que as mulheres colocam no amor carnal, tiram desde logo todas as perspectivas às mulheres. 115 Onde não está em jogo nem o amor nem o ódio, as mulheres são medíocres artistas. 116 As grandes épocas de nossa vida ocorrem quando sentimos a coragem de rebatizar o mal que em nós existe como o melhor de nós mesmos. 117 A vontade de superar uma paixão não é mais que a vontade de outra ou muitas outras paixões. 118 Existe uma ingenuidade na admiração: aquela do indivíduo que jamais pensou que um dia pudesse ser admirado. 119 A náusea pela sordidez pode ser tão grande que nos impeça de purificar-nos, de justificar-nos. 120 A sensualidade costuma crescer mais rapidamente que o amor, de tal forma que a raiz permanece débil e pode ser facilmente extirpada. 121 Refinamento a fato de Deus ter aprendido grego quando quis ser escritor — e que não o tenha aprendido melhor. 122 Comprazer-se com uma loa é em alguns um cumprimento do coração e precisamente o contrário de uma vaidade do espírito. 123 Também o concubinato sofreu uma corrupção graças ao matrimônio. 124 Quem na fogueira exulta ainda, não triunfa da dor, mas de felicidade de não sentir a dor que esperava. Um símbolo. 125 Quando somos obrigados a mudar de opinião acerca de um indivíduo, fazemos com que pague muito caro o trabalho, que custa uma tal mudança. 126 Um povo é o rodeio da natureza para chegar a seis ou sete grandes homens... Sim, e para depois evitá-los. 127 A ciência é repugnante ao pudor de todas as verdadeiras mulheres. Sentem a mesma sensação que se quisesse olhá-las por sob a pele, pior ainda, sob as vestes. 128 Quanto mais abstrata a verdade que desejares ensinar, mais deveras seduzir os sentidos para que se sintam atraídos por ela. 129 O diabo tem as mais amplas perspectivas relativamente a Deus, por isso se mantém tão distante dele: o diabo, quer dizer, o mais antigo amigo do conhecimento. 130 O ser verdadeiro começa a mostrar-se quando o seu talento declina, quando deixa de mostrar o quanto pode. O talento também é um adorno e um adorno também serve para esconder. 131 Cada sexo se engana relativamente ao outro, e assim, na verdade, no fundo, ama e respeita apenas a si mesmo (ou para exprimir-me mais gentilmente o próprio ideal). Assim, o homem deseja que a mulher seja plácida, mas a mulher é essencialmente aversa à placidez, da mesma forma que o gato, por mais que seja capaz de ter aparência de placidez. 132 É se punido principalmente pela própria virtude. 133 Quem não consegue encontrar o caminho para seu próprio ideal leva vida mais impensada e deslocada que a de um homem que não tem ideal. 134 Através dos sentidos temos toda manifestação de certeza, de boa consciência, toda aparência de verdade. 135 O farisaísmo do homem bom não é uma degeneração; é, pelo contrário, em grande parte, uma condição para ser bom. 136 Um procura quem possa ajudá-lo a desenvolver as próprias ideias, outro procura a quem possa ajudar, disso nasce uma conversação interessante. 137 Em nossas relações com os cientistas e com os artistas enganamo-nos frequentemente num douto que parece digno de estudo, descobre-se não raramente um homem medíocre e num artista medíocre — um homem muito interessante. 138 Fazemos em vigília aquilo que fazemos em sonho, criamos o interlocutor e depois o esquecemos. 139 Na vingança e no amor a mulher é mais cruel que o homem. 140 Conselho em forma de adivinhas: Para que o vínculo não se rompa é preciso que abocanhes bem. 141 O baixo ventre é a causa pela qual o homem não acha tão fácil sentir-se um deus. 142 A frase mais pudica que já ouvi: "Dans le véritable amour c'est l'áme, qui enveloppe le corps" (No verdadeiro amor, a alma é que envolve o corpo). 143 O que melhor se faz, gostaríamos que fosse aquilo que é mais difícil de se fazer. Isto explica a origem de certas morais. 144 Quando uma mulher tem veleidades literárias, eis um índice de qualquer afecção da sensualidade. A esterilidade predispõe a uma certa virilidade do gosto, o homem é. falemos com franqueza. o animal in fecundo. 145 Confrontando, em geral, o homem à mulher pode-se afirmar: a mulher não possuiria o talento de se adornar se não tivesse o instinto que a faz compreender que isso representa uma segunda parte. 146 Quem deve enfrentar monstros deve permanecer atento para não se tornar também um monstro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar dentro de ti. 147 Tirado de antiga novela florentina — mas também da vida: buona femmina e mala femmina vuol bastone (Tanto a boa mulher quanto a má desejam um arrimo). (Sacchetti, nov. 86) 148 Induzir o nosso próximo a ter de nós uma boa opinião e depois acreditar sinceramente naquela opinião: quem possui tanta arte nisso quanto as mulheres? 149 Aquilo que numa época parece mau, é quase sempre um restolho daquilo que na precedente era considerado bom o atavismo de um ideal já envelhecido. 150 Ao redor dos heróis tudo se torna tragédia, em torno dos semideuses, drama satírico e ao redor de Deus tudo se transforma — em quê? talvez no mundo? 151 Não basta ter gênio, é preciso também ter permissão de tê-lo — que lhes parece, meus amigos? 152 Onde se ergue a árvore da ciência, eis o paraíso. Isto diziam as serpentes da antiguidade mais remota e as modernas. 153 Aquilo que se faz por amor sempre se faz além dos limites do bem e do mal. 154 A objeção, a oposição caprichosa, a desconfiança jucunda, a ironia, são símbolos de saúde; tudo aquilo que é incondicionado pertence aos domínios da patologia. 155 O sentido do trágico cresce e decresce com a sensualidade. 156 A loucura é muito rara em indivíduos — nos grupos, nos partidos, nos povos, na época — essa a regra. 157 A ideia do suicídio é um potente meio de conforto: com ela superamos muitas noites más. 158 Ao mais forte de nossos instintos, ao tirano dentro de nós se sujeitam não apenas nossa razão, mas também nossa consciência. 159 Deve-se devolver o bem e o mal; mas por que precisamente à mesma pessoa que fez o bem ou o mal? 160 Não se ama suficientemente o próprio conhecimento quando se o comunica a outros. 161 Os poetas são imprudentes com as próprias aventuras — desfrutam-nas. 162 Nosso próximo não é nosso vizinho, mas o vizinho deste — assim pensam todos os povos. 163 O amor traz a lume as qualidades mais elevadas e mais secretas de quem ama, aquilo que nele há de raro, de excepcional e com isso engana facilmente acerca daquilo que nele é regra. 164 Jesus disse aos seus judeus: "a lei era para os escravos, amai a Deus como eu o amo, como seus filhos! Que importa a moral para nós, filhos de Deus?" 165 Dedicado a todos os partidos. — Um pastor sempre tem necessidade de um carneiro que sirva de guia ao rebanho — ou então é constrangido a fazer-se de carneiro. 166 Com a boca se proferem mentiras, é verdade, porém os trejeitos que se fazem ao mesmo tempo traduzem a verdade. 167 Nos homens rudes a ternura é objeto de vergonha — e algo precioso. 168 O cristianismo perverteu a Eros, este não morreu, mas degenerou-se. tornou-se vicio. 169 Falar muito de si mesmo pode ser também um modo de se esconder. 170 No elogio há muito maior indiscrição que na censura. 171 Em um homem de ciência a compaixão quase faz rir, como um ciclope com mãos feminilmente delicadas. 172 Abraçamos, por amor à humanidade, abraçamos ao primeiro que chega (porque não se pode abraçar a humanidade inteira), mas é precisamente isto que não é preciso fazer compreender ao primeiro que chega... 173 Não se odeia àquele que se despreza, mas se odeia apenas àquele que acreditamos igual ou superior a nós. 174 Oh vós, utilitaristas, também vós tendes amor a tudo que é útil porque serve de veículo às vossas inclinações — mas no fundo também considerais inoportuno o ringir de suas rodas. 175 Acabamos por amar nosso próprio desejo, em lugar do objeto desejado. 176 A vaidade dos outros é fastidiosa apenas quando se choca com nossa própria vaidade. 177 Acerta da "verdade" ninguém até agora foi suficientemente verdadeiro. 178 Não se acredita nas estultices das pessoas prudentes: que perda para os direitos do homem. 179 As consequências de nossas ações nos agarram pelo pescoço, sem perguntar se no entretempo melhoramos, 180 Há uma ingenuidade na mentira que é indício de boa-fé. 181 É inumano bendizer quando somos amaldiçoados. 182 A familiaridade do homem superior é exasperante porque não podemos retribui-la. 183 Não pelo fato de me teres mentido, mas por não poder acreditar-te, é que me agonio. 184 Na bondade há por vezes uma insolência que me parece malícia. 185 — Ele não me agrada. — Por quê? — Porque não me sinto à sua altura. Algum homem já respondeu de tal forma? QUINTA PARTE PELA HISTÓRIA NATURAL DA MORAL 186 O sentimento moral é presentemente na Europa tão fino, tardio, múltiplo, irritável, refinado, quanto a "ciência moral" é ainda jovem. principiante, entorpecida e grosseira; um contraste atraente, que por vezes se manifesta na própria pessoa do moralista. O próprio título "ciência da moral" é relativamente aquilo que quer significar muito presunçoso e contrário ao bom gosto, que prefere expressões mais modestas. Deveria ter a coragem de confessar aquela coisa que necessitará ainda por muito tempo, aquela única que provisoriamente tem um direito a ser, isto é, recolher o material, reunir os conceitos, coordenar todo um mundo de sentimentos delicados exterminados, de diferenciações de valores, os quais vivem, crescem. geram e perecem e, talvez, tentar tornar inteligíveis as formas renovadoras e mais frequentes desta cristalização vivente — como preparação a uma doutrina dos tipos da moral. É bem verdade que até agora não se foi suficiente modesto. Os filósofos sem exceção encaram-se sempre com uma seriedade ridícula, algo de muito elevado, de muito solene, não apenas deviam ocupar-se da moral, como ciência, mas desejavam estabelecer os fundamentos da moral, e todos acreditaram firmemente tê-lo conseguido, mas a moral era encarada por eles como coisa "dada". Quão distante de seu orgulho canhestro se encontrava a tarefa, aparentemente insignificante e inconcludente, de uma simples descrição, já que uma tal incumbência requer mãos e sentidos inefavelmente delicados. É sem dúvida que esta é a razão dos moralistas conhecerem tão grosseiramente os "facta" da moralidade, através de compêndios arbitrários ou ainda através de uma abreviação casual, por exemplo, aquela moral de seu ambiente, de sua própria classe, da sua igreja, do espírito do tempo em que vivem, do seu clima, de seu país e precisamente por isso estavam mal informados e pouco lhes importava estar bem informados acerca das nações, das épocas, da história dos tempos passados; jamais estiveram face a face com os verdadeiros problemas da moral que se apresentam apenas quando se verifica o confronto de muitas morais. Na, assim chamada, “ciência da moral” faltava precisamente, por mais que isso pareça estranho, o próprio problema da moral e não havia mesmo a suspeita da existência de algum problema. Aquilo que os filósofos chamam "fundamento da moral" e aquilo que pretendiam, não era, visto em verdadeira grandeza, mais que uma forma sapiente da boa fé na moral dominante, um novo meio de exprimir esta moral, portanto um estado de fato nos limites de uma moralidade determinada ou ainda, em última análise, uma espécie de negação, que uma tal moral pudesse ser concebida como problema; e em cada caso o contrário de um desânimo, de uma análise, de uma contestação, de uma vivissecção desta boa-fé. Perceba-se com qual ingenuidade quase digna de admiração o próprio Schopenhauer nos apresenta o próprio dever e tirem-se conclusões sobre os métodos científicos de uma "ciência" em que os mais recentes mestres falam ainda a linguagem das crianças e das moçoilas: "o princípio"; diz ele (pág. 137 dos Problemas Fundamentais do Ética) — "o princípio acerca do qual todas as éticas estão de acordo, verdadeiramente, é: neminem laedè, immo omnes, quantum potes juva". "Esta é a tese que todos os moralistas se afariam em demonstrar... o verdadeiro fundamento da ética, que, como a pedra filosofal, procura-se há séculos." A dificuldade em demonstrar essa tese é certamente grande — como se sabe, nem mesmo Schopenhauer chegou a consegui-lo e que percebeu profunda e intimamente quanto é absurdamente falsa e sentimental uma tal tese num mundo que tem como essência a vontade de dominar, a vontade de potência — e é bom lembrar que Schopenhauer ainda que fosse pessimista, era antes de mais nada: flautista... Tocava todos os dias, depois do jantar, se consultarmos a seu respeito o seu biógrafo. E então perguntamo-nos: um pessimista, um renegador de Deus e do mundo, que se detém frente à moral e toca flauta à moral laede neminem é, tal pessoa, pessimista? 187 Ainda que deixando de parte o valor de certas afirmações, como por exemplo, "existe em nós um Imperativo categórico", sempre é lícito perguntar, ainda. o que se pode, a partir de uma tal afirmação, deduzir da pessoa que afirma? Existem morais que têm por função justificar seus autores aos olhos dos outros; outras morais têm por objetivo tranquilizar e tornar satisfeito; noutras o autor tende a crucificar-se, a humilhar-se; outras servem para vingança, outras como esconderijo e outras ainda para exaltar a si mesmo, para elevar-se acima dos outros. Algumas vezes a moral serve ao seu autor para mentir, outras vezes para fazer mentir a si mesmo ou a uma parte de si mesmo; alguns moralistas quiseram desafogar sobre a humanidade seu desejo de dominação, os próprio caprichos criadores; outros, entre os quais talvez Kant dão a entender com sua moral “aquilo que em mim é respeitável, é que sei obedecer — e vós deveis fazer da mesma formal” — logo, mesmo as morais nada mais são que a linguagem figurada das paixões. 188 Toda moral é, em oposição ao laisser aller, uma espécie de tirania contra a "natureza" e contra a "razão", mas isto ainda não pode servir de objeção contra ela, se não fosse preciso inventar uma outra moral que decretasse que toda tirania e irracionalidade são ilícitas. O mérito essencial de toda moral é o de exercer uma longa coação, para compreender o estoicismo, o Port-Royal ou o puritanismo, basta lembrar a constrição que tornou possível às línguas tornarem-se fortes e livres, a constrição do metro, a tirania da rima e do ritmo. Quanto devem ter suado os poetas e os oradores de todos os povos! — sem excetuar alguns escritores de prosa de nossos dias, com ouvido sensível, e tudo isso por "uma tolice" como dizem alguns utilitaristas imbecis, que com isso desejam tornar-se cridos por pessoas sensatas — "por sujeição a leis arbitrárias" como dizem os anarquistas, que com isso desejam demonstrar a sua "liberdade de espírito". Mas o fato curioso reside em que tudo aquilo que há de livre sobre a terra, tudo aquilo que existe de fino, de ousado, a dança, a maestria segura tanto no pensar, no governar, do perdoar ou do persuadir, seja na arte ou nos costumes, desenvolveu-se precisamente em função da "tirania" de tais "leis arbitrárias", e, falando seriamente, há muita probabilidade de sustentar que precisamente nisto consista a “natureza” e o “natural”, antes que no "laisser aller". Todo artista sabe que o seu estado "natural" se encontra muito longe do "laisser aller", este natural que consiste em ordenar, pôr. dispor, formar livremente, em momentos de "inspiração" — é então que ele obedece severa e finamente a leis múltiplas que repelem reduções a fórmulas, com noções, devida à sua própria dureza e precisão (mesmo o conceito mais determinado frente a essas torna-se algo confuso, com vários sentidos de interpretação). O essencial “no céu e na terra” é, segundo parece, digamo-lo mais uma vez. que se obedeça, assim deve-se estabelecer algo pelo que valha a pena viver, por exemplo, a virtude, a arte, a música, a dança, a razão, a espiritualidade, enfim, algo que transfigure. de refinado, de louco e de divino. A longa servidão do espírito, a coação da desconfiança ao comunicar os próprios pensamentos, o freio imposto aos pensadores ao formular os próprios pensamentos pelas peias da Igreja e das cortes ou pela "necessidade" de adaptá-los às premissas aristotélicas, a longa vontade de interpretar tudo aquilo que ocorre segundo um esquema cristão e de descobrir a mão de Deus, de justificar a sua presença em cada ocorrência casual — o que há nisso de violento, de arbitrário, de duro, de horrível, de irracional mostrou ser o meio pelo qual ao espírito europeu foi dada a sua força, a sua curiosidade ilimitada, a sua fina mobilidade, ainda que com isso se tenha perdido uma quantidade irreparável de força e espírito (uma vez que ai sempre a natureza se manifesta por aquilo que é de uma grandiosidade pródiga e indiferente, desdenhosa e aristocrática). Se durante milênios inteiros os pensadores europeus tentaram apenas provar, hoje, ao contrário, é suspeito todo pensador que queira provar qualquer coisa, unia coisa tida por segura e que devia aparentar ser o resultado de suas sérias meditações como em outros tempos se fazia na astrologia asiática e do mesmo modo que atualmente costuma-se dar uma interpretação cristã-moral "em honra a Deus" e pela saúde da alma" às mais comuns ocorrências pessoais — aquela tirania, aquele arbítrio, aquela estupidez rigorosa e grandiosa educaram o espírito, ao escravidão, segundo parece, tanto aos intelectos grosseiros quanto aos mais delicados serve necessariamente como meio de disciplina espiritual. Deste ponto de vista é preciso considerar a toda moral, a natureza é aquela que em si toma odioso o laisser aller, a excessiva liberdade, e cria a necessidade de horizontes acanhados, de deveres abafantes, que restringe a perspectiva e de certo modo ensina que a ignorância é uma condição necessária da vida e de seu desenvolvimento. "Deves obedecer a quem quer que seja e totalmente, de outro modo perecerás e perderás toda autoestima" — isto me parece ser o imperativo moral da natureza, o qual, para dizer a verdade, não é nem categórico como pretendia o velho Kant (donde o "de outro modo") nem dirigido ao indivíduo (que importa para a natureza o indivíduo?) — mas aos povos, às raças, às classes, mas antes de mais nada ao animal chamado "homem", à humanidade. 189 A ociosidade é um peso sobre as espáduas das raças laboriosas. Através de um golpe de mestre o instinto inglês fez do domingo um dia santo e enfadonho, tão enfadonho que deseja inconscientemente os dias de trabalho como espécie de jejum inteligentemente criado e posto, como o que se encontra também no Mundo Antigo (embora não exatamente sobre o trabalho, como é claro nos países meridionais). É preciso que haja diversos tipos de jejum. Em todos os lugares em que reina o poder dos instintos e dos hábitos é função do legislador introduzir dias em que cada um destes instintos seja amordaçado e encadeado para que aprenda a desejar de novo. Consideradas as coisas a partir de um ponto de vista superior, as gerações e épocas inteiras que sofreram qualquer forma de fanatismo moral são como estes períodos intercalados de submissão e de jejum. Durante estes períodos um instinto aprende a dobrar-se, a submeter-se, e ao mesmo tempo a purificar-se e afinar-se. Do mesmo modo algumas seitas filosóficas permitem semelhante interpretação (por exemplo, o estoicismo em meio de um ambiente corrompido como foi a civilização helenista, saturada de perfumes afrodisíacos). Torna-se agora mais fácil explicar a qual paradoxo se deve precisamente a sublimação do instinto sexual em amor-paixão durante a era cristã da Europa e sob a pressão de juízos de valor cristãos. 190 Há algo na moral de Platão que não pertence a sua filosofia e que por caprichos do acaso se encontra nela. Falamos do socratismo, que no fundo era repelido por sua natureza de aristocrata. Ninguém causa mal a si mesmo voluntária e conscientemente; portanto o mal apenas é feito involuntariamente. Bem, o mau acaba por prejudicar a si mesmo e não o faria se soubesse em que consiste a mal. Portanto, o mau não o é mais que por erro. Tirem-no de seu erro imediatamente e se tornará bom. Este modo de discorrer tem cheiro de plebe, a plebe para quem do ato mau só são importantes as consequências nocivas e considera que é incongruente agir mal, uma vez que para o mau são sinônimos "o bem", o "útil" e o "agradável". Em todo utilitarismo da moral pode-se, de saída, admitir esta mesma origem, e seguir o seu faro — rara vez ocorrerá erro de caminho — Platão envidou todos os esforços para introduzir uma interpretação sutil e refinada da doutrina de seu mestre, autor de qualquer outra motivo para introduzir a si mesmo, ele, o mais audaz dos intérpretes que apanhou nas ruas todo o Sócrates como um tema ou canção popular para fazer variações até o infinito e impossível; ou seja, em todas suas próprias máscaras e multiplicidades. Gracejando e ademais com graça homérica, o que é o Sõcrates platônico senão: p??ste ??át?? ?t??e? ??át?? µes?? te ??a??a 191 Falemos do velho problema teológico da "fé" e da “ciência”, dizendo doutro modo, o problema do instinto e da razão, a questão de saber se o instinto pode julgar as coisas com mais autoridade que a razão. Este velho problema se encontra representado pela primeira vez na pessoa de Sócrates, muito tempo antes que o cristianismo dividisse os espíritos. É verdade que o talento de Sócrates, talento eminentemente dialético se inclinou num princípio para a razão. Também é verdade que - durante toda sua vida riu da inépcia e da incapacidade dos nobres atenienses, homens instintivos como todos os aristocratas, que nunca podiam encontrar o motivo de suas ações. Porém secretamente e em sua intimidade riu também de si, perscrutando sua consciência e seu foro íntimo, encontrava em si mesmo a mesma torpeza e a mesma impotência. Porém, por que dizia assim mesmo que devia renunciar aos instintos por isso? Aos instintos e à razão deve-se educar, deve-se obedecer aos instintos para convencer à razão que os apoie com bons argumentos. Este foi, em verdade, o problema daquele grande e misterioso irônico. Reduziu sua consciência a contentar-se com uma espécie de engano voluntário, na verdade, havia posto a lume o caráter irracional dos juízos morais. Platão quis persuadir a si mesmo, lutando com todas as suas forças, que era superior a seus predecessores, que a razão e o instinto tendem espontaneamente ao mesmo fim, ao bem, a "Deus". Desde Platão que era mais inocente nestas matérias e não dispunha da astúcia plebeia, teólogos e filósofos seguiram o mesmo caminho, isto é, que em matéria de moral, o instinto ou a "fé", como dizem os cristãos, triunfou até hoje. Descartes, pai do racionalismo (e consequentemente avó da revolução) é uma exceção. Descartes não reconhecia autoridade que não fosse da razão, mas a razão é apenas um instrumento e Descartes era superficial. 192 Seguindo o curso da história de qualquer ciência será possível descobrir que se descubra em sua evolução uma Unha geral que servirá para compreender os fenômenos mais antigos e gerais do "saber" e do "conhecer". Nos dois casos o que se desenvolve primeiro são as hipóteses prematuras, as ficções, a estúpida boa vontade do "crer", a ausência de desconfiança e de paciência. Somente mais tarde nossos sentidos aprenderam que não completamente, a serem os órgãos do conhecimento. Para nosso olho é mais fácil reproduzir uma imagem amiúde reproduzida que reter o novo ou diferente de uma impressão, para que isso não sucedesse seria preciso mais força. Ouvir novos sons é difícil para o ouvido, compreendemos mal uma língua estrangeira e involuntariamente tratamos de transformar estes sons em palavras que nos parecem mais familiares. Foi assim que o alemão de tempos idos fez de "arcubalista" a palavra Armbrust (balista). Toda mudança, toda novidade nos provocam sentimentos de hostilidade. Nos fenômenos sensoriais mais simples reinam as paixões de temor, de amor e de ódio, incluindo a paixão passiva da inércia. Do mesmo modo que ante certas coisas concretas vemos apenas uma parte e nos imaginamos o resto, na presença das ocorrências mais estranhas fazemos da mesma forma, imaginando grande parte do acontecimento. Um leitor, por exemplo, não lê as palavras e menos ainda todas as. sílabas de uma página, de vinte palavras capta quatro ou cinco ao acaso e "adivinha" o sentido da oração. Mesmo assim, não vemos uma árvore de modo exato e em sua totalidade, com suas folhas, seus ramos, sua cor e sua forma; é muito mais fácil para nós imaginar aproximadamente uma árvore. Tudo isto nos mostra que estamos habituados a mentir. Ou, para dizê-lo de um modo mais refinado e velado, somos muito mais artistas do que acreditamos. Por exemplo, durante uma conversação animada a figura de meu interlocutor se apresenta diante de mim segundo o pensamento que expressa ou que acredito ter despertado nele. Consequentemente, o delicado jogo dos músculos e a expressão facial devem ter sido inventados por mim. É provável que tal pessoa estivesse com outra expressão, ou talvez com nenhuma. 193 Quidquid luce luit, tenebris agit, mas também vice-versa. O que vivemos em sonhos quando estes se repetem periodicamente, acaba por tomar parte do curse, geral de nossa alma, com a mesma razão que as coisas "realmente vividas". Suponhamos que um indivíduo tenha sonhado repetidas vezes que voava e que tenha acabado por acreditar que pode e sabe voar. Este indivíduo que conhece a sensação de certa leveza divina, que acredita que pode "subir" sem esforço nem tensão, "descer" sem rebaixar-se, como não haveria de dar à palavra "felicidade" uma cor e significação distinta? Como não haveria de desejar de outro modo a felicidade? Comparando este "voo" ao "impulso" de que falam os poetas, este último nos parecerá demasiado terrestre, demasiado influenciado pela vontade e muito "pesado". O sonho pode ser uma fonte de riqueza ou de pobreza, segundo nos traga ou arranque uma felicidade. Em pleno dia, inclusive nos momentos mais lúcidos em que nosso espírito está mais desperto, é quando nos sentimos mais dominados por nossos sonhos. 194 É na posse onde a diferença entre os homens se revela com maior vigor. Esta diferença se manifesta na diversidade de seus juízos de valor, no fato de serem diferentes e em que não opinam do mesmo modo sobre certos valores. Se a posse é uma mulher, por exemplo, um homem modesto considerará como signo de propriedade suficiente e satisfatória o poder dispor de seu corpo e gozar dele. Um outro que seja mais desconfiado e exigente tratará de observar o que tem de incerto, de puramente aparente e exigirá provas mais sutis, não se conformará com a entrega, mas exigirá que renuncie ao que tem ou deseja ter. Um terceiro irá ainda mais-longe em sua desconfiança e em sua vontade de posse, perguntar-se-á se a mulher renunciou a todo amor por ele e se não o faz por um fantasma de si mesmo, exigirá ser conhecido a fundo, atrever-se-á a deixar-se adivinhar. Somente sentirá que a mulher lhe pertence inteiramente se ela não se enganar a respeito dele. Somente então acreditará possuí-la, quando ela chegar a amar a tudo de bom e mal que nele existe. Quem deseja possuir uma nação achará que todos os ardis são bons para conseguir esse efeito. Outro mais sutil em seu desejo de posse, dirá: "não se deve enganar, portanto, é preciso que eu me faça conhecer e, inicialmente, que conheça a mim mesmo". Este tosco artifício reside em quase todos os homens caridosos e benévolos. Começam por ajeitar à sua vontade aqueles a quem querem socorrer e dizem dele, por exemplo, "que merece ser ajudado", que é precisamente de ajuda que precisa, que se mostrará infinitamente grato, e, portanto, preso e submetido como resposta ao apoio que lhe prestaram. É com tais ideias que manipulam aos necessitados, como uma "propriedade", sendo seu desejo possuir o motor que os leva a apresentarem-se benévolos e caritativos. — Estes benfeitores mostram ciúmes se se os contrariam ou se são precedidos em sua ação caritativa. Os pais, muitas vezes inconscientemente, fazem de seus filhos algo semelhante a eles e a isto dão o nome de educação. Nenhuma mãe duvida, no fundo de seu coração, que o filho que trouxe ao mundo seja de sua propriedade, nenhum pai precisa o direito de impor-lhe suas concepções e seus juízos de valor. Em outros tempos se considerava como um direito dos pais a disposição da vida ou da morte do recém-nascido (como exemplo poder-se-ia citar o caso dos antigos germanos) e o educador, a classe social, o sacerdote, o soberano. e ainda o pai, vêm em cada novo ser humano a oportunidade de se apropriar sem mais de um novo objeto. Donde se deduz que:... 195 Os judeus — “povo nascido da escravidão” como disse Tácito em uníssono com toda a antiguidade, “povo eleito entre todos os povos”, como eles mesmos dizem e creem, levaram a cabo essa milagrosa inversão de valores que deu à vida durante milênios um novo e perigoso atrativo. Os profetas judeus fundiram numa só definição o “rico”, “ímpio”, “violento”, “sensual” e pela primeira vez colocaram a pecha da infâmia à palavra “mundo”. Nesta inversão de valores (que fez também da palavra “pobre” sinônimo de “santo” e de “amigo”) é que se fundamenta a importância do povo judeu, com ele, em moral, começa a insurreição dos escravos. 196 Que existam nas proximidades do sol inumeráveis corpos opacos que jamais veremos é coisa que se pode inferir. Isto é um símbolo e poderíamos dizer que um moralista psicólogo não decifra o que está escrito nas estrelas a não ser como uma linguagem de símbolos e signos, que permite calar muitas coisas. 197 Enquanto procurarmos não sei que gérmen "mórbido" no fundo dos seres fortes com as feras e os vegetais dos trópicos, enquanto procurarmos um inferno interior, nos enganaremos redondamente acerca do animal de presa e do homem de presa. Desconheceremos, por exemplo, a natureza de um César Bórpia. Entretanto, isto é o que fizeram os moralistas em sua maioria. Segundo parece os moralistas sentem um ódio poderoso contra as florestas virgens e contra os trópicos! E sustentam como exato que o "homem dos trópicos" deva ser descreditado a qualquer custo, apresentando-o como forma degenerada e mórbida do homem, ou como se fosse seu próprio inferno e seu próprio tormento. E tudo isso com que fito? Porventura em proveito das zonas temperadas? Em favor dos homens moderados? dos homens morais? dos medíocres? Uma contribuição ao capítulo: A moral sob a forma do medo. 198 Todas essas morais que se referem ao indivíduo para fazer "sua felicidade", nada mais são que compromissos com o perigo que ameaça a pessoa dentro de si mesma. São porventura mais que receitas contra suas paixões, contra suas boas e más inclinações, quando tendem a mandar e dominar como amos; astucias e pequenas ou grandes artimanhas com calor de remédio caseiro? Todas têm formas escuras e absurdas porque se dirigem a todos e generalizam onde deveriam particularizar. Todas se expressam de modo absoluto e se consideram como absolutas. A todas falta o sazonamento para serem suportáveis, e talvez ainda aliciantes quando contêm especiarias em grande quantidade e têm um odor perigoso, especialmente do "mundo de lá", tudo isto misturado com o intelecto vale bem pouca coisa e não pode ser chamado “ciência” e ainda menos "sapiência", dizemos e repetimos, judiciosidade, judiciosidade, judiciosidade, juntamente com imbecilidade, imbecilidade, imbecilidade — trata-se da indiferença ou frieza da estátua contra a ardente loucura da paixão, que os estoicos consideraram o meio da cura; ou ainda no não rir e no não chorar de Spinoza que propugnava pela destruição das paixões através da análise e vivissecção das mesmas, trata-se enfim do abaixamento a um nível inócuo que permita satisfazê-las, o aristotelismo da moral, ou ainda da moral que satisfaz as paixões pela sua diluição e torná-las espirituais através do simbolismo da arte, por exemplo, da música, ou ainda através da amor de Deus ou do amor ao homem pelo amor de Deus — uma vez que mesmo na religião as paixões têm seu direito de cidadania, contando que... — OU então dar o braço às paixões, fácil e caprichosamente, como ensinaram Goethe e Hafiz, do atrevido lançar as redes, da licentia morum corporal e espiritual em certos casos excepcionais dos velhos excêntricos de bom senso ou de ébrios nos quais o "perigo é mínimo". Ainda isto como contribuição à moral sob forma do medo. 199 A existência de rebanhos humanos é imoral (confrarias sexuais, comunidades, tribos, nações igrejas, e estados) e sempre houve muitos homens que obedecem a um pequeno número de chefes. A obediência foi o que mais se exercitou e cultivou entre os homens. Poder-se-ia deduzir que cada um de nós possui a necessidade inata de obedecer, uma espécie de consciência formal que ordena: "farás isto ou aquilo, sem discutir", te absterás disto ou daquilo sem objetar, numa palavra, é um "tu farás". Necessidade que procura saciar-se e proporcionar conteúdo à sua forma, e então, segundo sua intensidade, impaciência e tensão, como apetite grosseiro sem padrão de escolha, aceitará tudo que lhe gritam aos ouvidos, quaisquer pessoas que o comandem, sejam pais. professores, lei, preconceitos, opiniões públicas etc. A evolução marcha, portanto, de modo tão limitado como titubeante, lenta e frequentemente regressiva, já que o instinto gregário da obediência é o que se herda mais facilmente e o que prospera à custa da arte de mandar. Supondo-se que este instinto chegue aos últimos excessos, chega-se à inexistência dos comandos — são independentes ou sofrem profundamente de má consciência, precisam inicialmente se iludir, a fim de poderem comandar: fingem também obedecer. Este é o estado da Europa moderna. E se a este instinto se permitisse alcançar o grau máximo, não existiria mais ninguém para mandar e viver independentemente, e eu o chamo "a hipocrisia moral dos dominadores". Para calar sua consciência fazem-se passar pelos executores de mandatos antigos e supremos (os dos antepassados, os da Constituição, os de direito, os das leis e inclusive os de Deus), ou recolhem fórmulas gregárias da mentalidade do rebanho e se oferecem seja como "o primeiro servidor do Estado" ou como o "instrumento" do bem público. Hoje por outro lado, o homem de rebanho, na Europa, mostra-se como única espécie autorizada, glorificando suas qualidades, graças às quais é domesticado, tratável e útil ao rebanho, e tendo estas como as únicas virtudes humanas, virtudes como a sociabilidade, benevolência, alteridade, aplicação, moderação, modéstia, indulgência, piedade. Em todos os casos em que seja impossível passar sem chefes e sem carneiros condutores procura-se em nossos dias, por todos os meios, substituir os dirigentes por um pequeno grupo de homens inteligentes de tipo gregário. Esta entre outras a origem das constituições representativas. Que bem-estar sentem, apesar de tudo, estes europeus gregários; alívio de um jugo que se faz insuportável, como a aparição de um senhor absoluto! O efeito produzido pelo advento de Napoleão foi o último grande exemplo europeu. A história da influência de Napoleão é, poder-se-ia dizer, a história da maior sorte que atingiu nosso século nos seus homens e nos momentos ais preciosos. 200 O homem das épocas de decomposição tem em si uma herança de ascendência híbrida, um fardo de instintos e normas ambivalentes e, amiúde, mais que contraditórios, em luta constante. Este homem de civilizações tardias e de aspirações intelectuais esfarrapadas é frequentemente um ser débil. Conforme uma medicina e mentalidade lenitivas — epicúreas ou, cristãs, por exemplo, a felicidade lhe parecerá sobretudo como a felicidade de desfrutar o repouso, a paz, saciedade de sentir-se reconciliado consigo mesmo. Porém se o conflito e a guerra são para seres mais fortes um encanto e um estímulo a mais, então nascem esses homens prodigiosos, incompreensíveis e insondáveis, esses homens enigmáticos predestinados a vencer e seduzir, cujos mais belos exemplos são Alcibíades e César (a acrescentaria de bom grado o nome de Frederico II de Hohenstaufen, este primeiro europeu segundo minha opinião e entre os artistas, talvez, Leonardo da Vinci). Fazem sua aparição precisamente nas épocas em que o tipo oposto o débil toma o primeiro plano com seu desejo de repouso; os dois tipos se completam e são originados pelas mesmas causas. 201 Não pode haver moral do "amor ao próximo" eu quanto o olhar permaneça fixo na observação da humanidade, enquanto se considere imoral apenas o que parece ameaçar a sobrevivência da coletividade: enquanto o utilitarismo das avaliações morais permanecer subordinado unicamente à utilidade do rebanho. Na época romana mais florescente um ato caritativo não se qualificava nem como bom nem mau, nem como moral ou imoral. Ainda que se o louvasse, seu elogio era concedido com uma espécie de desprezo involuntário quando se comparava esta ação com outra que servisse ao interesse da comunidade, da res pública. Ainda que tenha existido em outras épocas uma prática limitada e constante da compaixão, da igualdade, da ajuda recíproca, estavam, entretanto, à margem da moral. Em resumo, o "amor ao próximo" é quase sempre coisa secundária, convencional por um lado, e arbitrária por outro, se comparado com o medo ao próximo. Uma vez que a estrutura da sociedade parece ter boas bases ao abrigo de perigos exteriores, esse medo ao próximo abre aos juízos morais perspectivas novas, instintos fortes e perigosos. Nasce a espírito da aventura, da louca temeridade, o rancor, a astúcia, a capacidade, o desejo de dominar que eram até então não apenas respeitados, sob nomes distintos, é claro, daqueles que indicamos, e obrigatoriamente cultivados e selecionados, já que constantemente se tinha necessidade deles contra os inimigos da coletividade. Estes instintos são considerados mais perigosos agora que já não tem outras canalizações de derivação e, gradualmente, se chegou a difamá-los como imorais e por deixá-los abandonados na calúnia. Os instintos mais elevados e fortes levam o indivíduo além e mais alto que a mediocridade e da baixeza do instinto gregário, indicam a morte do amor próprio da coletividade, extirpam sua fé em si mesma, quebrantam-na de certo modo e - a reação é caluniar esses instintos. A decisão de estar só parece perigosa e tudo que separa o indivíduo do rebanho, tudo aquilo que assusta ao próximo, será designado como o mal. Por outro lado, o espírito tolerante, humilde, submisso, respeitoso com a igualdade, com a mediocridade dos desejos colhe epitetos e honras morais. Na história da sociedade há um ponto de delinquência e de debilidade enfermiça, em que a própria sociedade toma partido de que a prejudica. Castigar lhe parece, em certa medida, injusto ou pela obrigação de castigar a faz sofrer. Colocar assim a solução é como impedir ao criminoso que continue produzindo danos, sem necessidade de castigá-lo; é assim como a moral gregária, a moral do medo tira suas últimas consequências. Se esquadrinhamos a consciência do europeu de nossos dias tiraremos de suas mil dobras e de seus mil esconderijos o mesmo imperativo, a timidez do rebanho. Chama-se progresso ao fato de não querer que chegue um dia em que não haja nada o que temer. 202 É necessário repetir o que dissemos tantas vezes, uma vez que nossas verdades, poucas vezes encontram para elas ouvidos complacentes. Sabemos por outro lado, quão descortês é o resultado de misturar o homem geral, sem parábola adequada, aos animais em geral. E a verdade é que estamos distantes de cometer uma injustiça, ao empregar assiduamente, referindo-nos aos defensores das ideias "modernas", as palavras "rebanho" e outras expressões como "instintos gregários" e outras bastante parecidas com esta. A verdade é que não podemos nos subtrair à repetição destas expressões, isto é, proceder doutra forma, uma vez que esta é nossa nova verdade. Em mais de uma ocasião comprovamos que em todos os países da Europa e nos que se acham sob sua influência, estamos de acordo no mais essencial relativamente aos juízos morais. Na Europa sabemos o que Sócrates afirmava não saber e tudo o que a famosa serpente de antigamente havia se comprometido a mostrar; não ignoramos, portanto, o que é o bem e o mal. Repetir isso insistentemente possivelmente parecerá demasiado duro e difícil de compreender, entretanto, o que se tem por glorioso e como tal se aprova, não é mais que o Instinto animal que chamamos homem. Este instinto é, seja com louvor ou censura, o que irrompendo na Europa trata de se impor, ou se impõe, sobre todos os demais instintos segundo seja, naturalmente, a forma de assimilação fisiológica mais ou menos crescente. porém que. de ambos os modos, já é por si mesmo um sintoma. Digamos, pois, que a moral na Europa é atualmente uma moral de rebanho. A nosso juízo é uma variedade de moral humana que deveria admitir a realidade existencial e concreta de outras morais, que ainda que sendo diferentes. são intrinsecamente superiores. Porém acontece que esta moral se defende obstinadamente, chegando sempre à mesma conclusão analítica: "A única moral sou eu e não há outra moral além de mim!" Assim, por imperativo e ajuda de uma religião que se mostrou complacente com os desejos do rebanho, chegamos a encontrar a moral até nas instituições políticas e sociais; de tal modo que cada vez é mais evidente que para esta moral o movimento democrático é o herdeiro do movimento cristão. Eis aqui a extravagância da piedade para com Deus. E assim, todos de acordo em seus desassossegos a respeito da piedade universal e sua fé no rebanho coletivo. isto é, neles mesmos. 203 Nós que temos uma fé diferente, nós, para quem o movimento democrático representa não apenas uma forma de decadência da organização política, mas também uma forma de decadência, isto é, uma diminuição do homem, uma mediocrização, um abaixamento do seu valor, para qual ponto deveríamos dirigir nossa esperança? — Para novos filósofos, não há outra escolha, para espíritas fortes e suficientemente independentes, tanto para poder dar um impulso a juízos de valor opostos, reformar, inverter os valores eternos — verdadeiros precursores do homem do futuro, os quais presentemente devem formar o núcleo que constrangerá a vontade dos milênios a abrir novos sendeiros, ensinar ao homem que o seu futuro é a... vontade, que da vontade de um homem depende a preparação de grandes ousadias e tentativas complexas para a elevação e melhoria para colocar um termo à horrível dominação do contrassenso e do caso que até agora se chamou de "história) — o contrassenso do "número máximo" é apenas a última forma — e para alcançar tudo isto um dia se manifestará a necessidade de uma nova espécie de filósofos e de governantes, frente aos quais tudo aqui que foi até agora, no mundo, espíritos misteriosos, terríveis e humanitários, será apenas uma pálida e triste imagem. A visão de tais condutores reluz frente a nossos olhos: posso dizê-lo francamente a vós, espíritos livres? A circunstância que se necessitaria, em parte, criar, em parte desfrutar porque pode surgir: os caminhos e as provas presumíveis, através das quais uma alma possa elevar-se a uma tal altura, a uma tal potência que leve a sentir a necessidade de uma tal incumbência, uma reforma dos valores, sob os quais, sob a nova pressão a consciência se retempere, o coração se transmute em bronze, para poder suportar o peso de uma tal responsabilidade, e por outro lado, a necessidade de tais condutores, o terrível perigo de que venham a faltar, ou ainda abortar ou degenerar — eis a nossa principal preocupação, eis o que nos perturba — podeis compreendê-lo, espíritos livres? São estes os graves pensamentos, as tempestades que atravessam o céu de nossa existência. Poucas dores igualam aquela de ter visto, adivinhado, pressentido talvez, um homem extraordinário desviar-se do seu caminho e degenerar, mas quem tem, coisa bem rara, os olhos abertos para o perigo comum de que "o homem" degenere; que, conosco, reconheceu a monstruosa casualidade que até agora decidiu o futuro do homem na qual não a mão, nem mesmo um dedo de Deus jamais se misturou — quem compreendeu a fatalidade que se encerra na ingenuidade infantil, na exuberância confiante das "ideias modernas", mas mais ainda em toda a moral cristã europeia: esse sentirá uma inefável opressão no coração — abarcará com um olhar aquilo que se poderia fazer do homem através de um acúmulo favorável, de um aumento de força e de obrigações, então dirá a si mesmo. com toda a convicção de sua consciência, como o homem está longe de ser exaurido pelas maiores eventualidades, como outras vezes em que o homem se encontrou frente a novas decisões, novos sendeiros — sabendo muito bem por sua própria dolorosa lembrança contra quais ridículos escolhos tantos seres, destinados às coisas desde o nascimento, naufragaram, despedaçaram-se, afundaram, entristeceram. A degeneração universal do homem rumo a isto, que aos socialistas — aos cabeças de abóbora se apresenta como o "homem do futuro" — como o seu ideal esta degeneração, esta diminuição do homem até torná-lo um homem de rebanho perfeito (ou ainda, como dizem, o homem da "sociedade livre"), um embrutecimento do homem ao nível dos direitos iguais e deveres é possível, não há dúvida! Quem meditou até às últimas consequências sobre essa possibilidade, chegou a conhecer uma nova espécie de náusea — e um novo dever! SEXTA PARTE NÓS, OS DOUTOS 204 Mesmo correndo o risco de mostrar que o moralizar, mesmo aqui, é sempre aquilo que foi, isto é, um modo corajoso de "montrer ses plaies" como diz Balzac — ousarei opor-me contra a inconveniente e daninha desnivelação que ameaça estabelecer-se, sem que nos apercebamos disso entre ciência e filosofia. Acredito que pela própria experiência — e parece-me que experiência significa sempre triste experiência — se deva ter o direito de se permitir uma palavra a respeito de uma questão tão elevada como aquela do tipo: onde não se deve falar, como os cegos às cores, ou dos artistas e das mulheres, contra a ciência (ah! aquela maldosa ciência) gemem no seu instinto e no seu pudor, sempre chega a descobrir em cada coisa aquilo que esconde. A declaração de independência do homem de ciência, a sua emancipação da filosofia é um dos efeitos mais delicados da ordem e da desordem democráticas. A glorificação de si mesmo, e a presunção do douto estão hoje na plena floração de sua primavera — o que não quer dizer que neste caso que os louvores de si mesmo tenham um olor mais delicado -"Chega de patrões! — também isto é requerido pelo espírito plebeu e depois que a ciência soube defender-se com o maior sucesso da teologia, da qual longamente foi serva, agora em sua audácia e irracionalidade quer ditar leis à filosofia e também ser patroa, mas que digo — filósofa. Minha memória — a memória de um homem de ciência, com a devida vênia pulula de orgulhosa ingenuidade a respeito da filosofia e dos filósofos, ingenuidade que ouvi de jovens naturalistas e velhos médicos, sem falar dos mais doutos e presunçosos entre os doutos, os filólogos e os pedagogos, que por sua própria profissão são obrigados a sê-lo. Algumas vezes o especialista, o homem de horizontes, limitados, que se punha em guarda, instintivamente, contra todos os deveres e faculdades sintéticas, outras o trabalhador diligente que sentia um odor de otium e aristocrática modo de viver na economia da alma filosófica e que se sentia prejudicado e diminuído com isso. Outras vezes o daltonismo do utilitarista, que nada mais vê na filosofia que uma série de sistemas refutados e um esbanjamento, que não "beneficia" ninguém. Outras vezes se revela o medo de um misticismo mascarado e de uma limitação da consciência, outras vezes a falta de estima por alguns filósofos, que depois degenerou na falta de estima pela própria filosofia. Mas mais frequentemente encontrei nos jovens doutores, sob o altivo desprezo da filosofia, o efeito deletério da obra de um filósofo qualquer, ao qual se havia recusado obediência, porém sem emancipar-se do desprezo que ele havia sido capaz de inspirar relativamente aos outros filósofos e disso resultava uma espécie de aborrecimento com a filosofia em geral. (Tal me parece o efeito último de Schopenhauer na Alemanha Moderna — graças à sua pouco inteligente exasperação contra Hegel quase chegou a tirar fora de qualquer nexo com a cultura alemã à mais recente geração germânica — cultura, que a bem julgar, representa o ápice de um refinamento adivinhatório do senso histórico, mas Schopenhauer nesse aspecto era pobre, insensível, anti-alemão até à genialidade.) Geralmente, tomando as coisas por alto, pode ocorrer que seja humano, demasiado humano, que a miséria dos filósofos modernos tenha contribuído mais que qualquer outra coisa a reduzir o respeito à filosofia e arreganhado as portas para os instintos plebeus. Se tivesse a coragem de confessar a si mesmo, até que ponto o nosso mundo moderno se ressente da falta de filósofos tais como Heráclito, Platão, Empédocles ou qualquer outro nome que tenham tido os sublimes solitários do espírito, e quanto a bom direito frente a certos representantes da filosofia e que estão hoje em moda — na Alemanha, por exemplo, os dois leões de Berlim, o anarquista Eugênio Duhring e o amalgamista Eduardo Hartmann — um honesto homem dedicado à ciência pode se sentir melhor. Frente aos filósofos confusionistas, particularmente, e que se autodenominam filósofos realistas ou positivistas, pode ser gerada uma desconfiança perigosa na alma de um jovem douto ambicioso. Pois mesmo estes, na melhor das hipóteses são apenas especialistas e cientistas — são facilmente convencíveis. São vencidos que forçosamente retornam à senhoria da ciência, porque propuseram a si mesmos algo mais, sem ter direito àquele algo mais, nem mesmo à responsabilidade que isso impunha, os quais, portanto, honestamente, mas cheios de cólera, de sede de vingança, representam com palavras e com fatos a incredulidade na função diretiva e no direito de predomínio da filosofia. Como poderia ser de outro modo!? A ciência está hoje em plena floração e demonstra sinceramente a boa-fé com que está animada, enquanto aquilo, que representa o gradual envelhecimento da filosofia, aquele avanço da filosofia que nestes dias permanece apenas pode gerar desconfiança e mal humor, se não levar a menosprezo ou compaixão. Filosofia reduzida à "teoria do conhecimento", mas, na verdade, nada mais que registro de uma época, uma teoria da abstinência, uma filosofia que não sabe ultrapassar a soleira e que meticulosamente recusa a si mesma o direito de entrar — mas esta é uma filosofia agonizante. algo que provoca piedade. E como tal filosofia pode dominar!?? 205 Os perigos que a formação e desenvolvimento do filósofo moderno devem temer são tão múltiplos que se chega a duvidar se um tal fruto pode chegar a amadurecer. A ciência abrange um círculo monstruosamente vasto e com isso cresceu também a possibilidade de que o filósofo se detenha nos primórdios de teu estudo e se ponha a se "especializar" em algum aspecto; de tal forma que não possa chegar à altura desejada, que lhe permitiria olhar do alto, ao alto, para baixo e ao seu redor. Ou que chegue a ela demasiado tarde, quando já tiver esbanjado seu melhor tempo, as suas melhores forças ou chegar desgastado, pesado, degenerado, de tal modo que seu juízo dos valores tenha apenas uma pequena importância. A tal ponto que a agudeza de sua consciência intelectual o torne titubeante e faz com que protele sua chegada; teme as seduções do diletantismo, que se encontra em todas as coisas, sabe muito bem que perdeu a consideração por si mesmo, ainda que chegue ao conhecimento não mais pode mandar, não pode guiar, deve resignar-se a ser, no máximo, uma espécie de Cagliostro, um engodador da espírito, em outras palavras, um sedutor. Em última análise isto é uma questão de ação, se não fosse uma questão de consciência. Para aumentar ainda as dificuldades entre as quais se debate o filósofo acresce-se, que este peça a si mesmo um juízo, um sim ou não, não acerca da ciência, mas sobre a vida e sobre o valor da vida. Dificilmente ele chega a se persuadir que tem um direito, antes, um dever de externar esse juízo, e, hesitante, duvidoso e interdito, é reduzido a procurar seu caminho para esse direito e esta crença, ajudando-se apenas com as mais vastas experiências, talvez as mais confusas e as mais violentas. Na verdade, o vulgo se enganou inteiramente acerca do filósofo, desconheceu-o, trocando-o por homem de ciência ou douto idealista, ou com o sentimental, que vive fora dos sentidos e do mundo, inebriado pela divindade, e se hoje em dia escuta-se louvar alguém que vive "sabiamente" por "filósofo" isto quer dizer apenas que vive "prudentemente retirado". A sabedoria, na ideia do vulgo, é uma espécie de fuga, um meio, um artifício para se livrar a bom preço do embaraço, mas o verdadeiro filósofo pelo menos assim nos parece, não é, meus amigos? vive "antifilosoficamente", "contrariamente à sabedoria" e antes de mais nada imprudentemente e sente o peso e o dever de numerosas tentativas e tentações da vida — arrisca-se continuamente, joga o grande jogo. 206 Frente a um homem de gênio, isto é, um ser que cria ou fecunda, estas duas expressões tomadas em seu sentido mais lato, o homem de ciência, o douto, tem sempre em si algo da solteirona, uma vez que exatamente como esta não tem a menor ideia destas duas funções, as mais importantes do homem. De fato, ambos, tanto a solteirona quanto os doutos, são respeitáveis, à guisa de compensação, e em tais casos também se a sublinha, mostrando um certo despeito ao se sentir obrigado a fazer uma tal concessão. Olhando mais de perto, o que é homem de ciência? Antes de mais nada uma espécie de homem sem nobreza, isto é, não dominante, não exercendo a autoridade, e nem mesmo suficiente a si mesmo, possui a laboriosidade, a paciência de classificar e ordenar as coisas, o senso da regularidade e da medida nas suas faculdades e necessidades, o instinto próprio de seus pares, as necessidades idênticas a de seus pares, por exemplo, daquele tanto de independência, daquela quantidade de pastagem verde, sem o que um trabalho tranquilo parece impossível, duma certa pretensão às honras e à consideração (que sobretudo supõe que se reconheçam seus méritos e que é capaz de fazer reconhecer), este raio de sol da fama, esta constante ratificação do próprio valor, da própria utilidade, para poder domar a desconfiança interna, congênita a todos os homens dependentes e agregados. O douto possui ainda, como é bem natural, a franqueza e os defeitos de uma raça sem nobreza: inveja grosseira superabundante e um olho de lince para os mais leves defeitos das naturezas superiores. Mostra-se familiar, mas se entrega voluntariamente e não se deixa arrastar pela corrente e precisamente diante do homem da grande corrente ele permanece frio e fechado em si mesmo — seu olho assemelha-se então a um lago liso, antipático. sem encrespar de ondas por nenhum entusiasmo, por nenhuma simpatia. Mas as coisas piores e mais perigosas das quais é capaz um douto são provenientes do instinto da mediocridade da própria espécie, daquele jesuitismo da mediocridade que inconscientemente trabalha na demolição do homem extraordinário e tende a despedaçar todo arco tenso ou, melhor ainda, a diminuir a sua tensão. Tudo isso, entendamos, com o devido respeito, delicadamente: eis a verdadeira arte do jesuitismo, que sempre soube se fazer passar pela religião da piedade. 207 Por maior que possa ser a gratidão que se deve experimentar pelo espírito objetivo — e quem jamais não teve ocasião de sentir-se pelo menos uma vez cansado do subjetivo em geral da sua maldita piedade — é preciso ter cautela mesmo com a própria gratidão evitar os exageros, que na renúncia à independência e à personalidade do espírito surge um escopo em si, uma redenção e uma transfiguração, como aquilo que acontece principalmente na escola pessimista, a qual tem, de resto, todos os seus bons motivos para decretar a honra máxima para a consciência desinteressada". O homem objetivo, que não blasfema nem injuria, como o pessimista, o douto "ideal" em que o instinto científico depois de inúmeras tentativas conseguiu com grande risco surgir e desenvolver-se, encontra-se certamente entre os instrumentos mais preciosos que podem se encontrar, mas necessitam ser manejados por um braço mais potente São apenas instrumento, melhor, um espelho, não objetivos em si mesmo. O homem objetivo é realmente um espelho, habituado a prostrar-se diante de tudo aquilo que deve ser conhecido, sem outros desejos, além daqueles que são concedidos pelo conhecer, o “espelhar” — espera sempre que algo aconteça e então se distende delicadamente em toda a sua extensão, até que os traços de passos leves, as sombras dos fantasmas se imprimam sobre sua superfície e em sua epiderme. Aquilo que ainda lhe resta da "persona" parece-lhe ser algo casual, muitas veles arbitrário, mais frequentemente importuno, assim tornou-se para si mesmo um objeto através do qual passa, em que se refletem imagens e ocorrências estranhas a ele. É para ele dura fadiga, ter consciência de si mesmo e talvez a tenha de um modo falso, mistura facilmente a sua pessoa com a de outro, desconhece as próprias necessidades e particularmente nisso é indelicado e esquecido. Talvez o atormente a saúde, as pequenas misérias da vida, a atmosfera pesada que reparte com a mulher, com o amigo, ou ainda a falta de amigos, da sociedade, mas, embora se esforce em pensar em sua miséria, tudo é em vão — Seu pensamento já voou para longe,, partiu para a generalização do caso e amanhã saberá menos que hoje, qual medicação precisa. Deixou de tornar-se a sério, não tem mais tempo para si próprio; está contente, não porque esteja destituído de penas, mas porque faltam-lhe os dedos para tocá-las. A condescendência consuetudinária, a hospitalidade serena e aberta com que acolhe qualquer acontecimento, a sua benevolência ilimitada, seu perigoso descuidar do sim e do não: — em muitos casos deverá pagar bem caro essa sua virtude! -, e depois, especialmente como homem torna-se facilmente o "caput mortuum" de tal virtude. Se se lhe pede amor e ódio (entendo amor e ódio, como o compreendem Deus, a mulher e o animal), ele fará aquilo que pode e quanto pode. Mas não precisa fazer maravilhas se não pode dar muito, se precisamente aqui se mostra um ser falso, frágil, equívoco e carcomido. O seu amor é volúpia, seu ódio artificial e mais um "tour de force" de homem vaidoso, um exagero. Não é sincero, às vezes pode ser objetivo, sobretudo no seu sereno “totalismo” é ainda “natureza” e “natural”. Sua alma especular e lisa não mais sabe afirmar, não mais sabe negar: não comanda e nem mesmo destrói — "je ne méprise presque rien" — diz com Leibniz, observe-se a importância desse "presque"! Não é mesmo um homem modelo; não precede ninguém, não segue a ninguém, coloca-se a uma distância muito grande para poder tomar o partido do bem ou do mal. Se por tanto tempo foi tomado por filósofo, com o imperioso domador, com o homem superpotente da civilização, e ainda, se lhe foram prestadas excessivas honras e se não se viu o essencial nele — que é uma espécie de instrumento, uma espécie de escravo, ainda que uma das escravidões das mais sublimes, mas nem por isso mesmo — presque rien! O homem objetivo é um instrumento, um precioso instrumento de medida, que se gasta facilmente, um espelho artístico que se turva facilmente, que é preciso manejar cuidadosamente, que se deve honrar, mas não é um fim, um ponto de partida, de saída não é um homem complementar, em que o resto da existência se justifica, não é uma conclusão, e menos ainda princípio, uma geração, uma causa primeira, mas algo primitivamente maciço, sólido, que tolhe por si mesma, que deseja dominar. É, antes, um vaso, delicadamente trabalhado, com contornos finos e movimentados, que deve esperar o advento de um conteúdo qualquer para conformar-se. É geralmente um homem sem conteúdo de qualquer ordem, um homem "sem essência própria", consequentemente um não valor para a mulher. Isto entre parênteses. 208 Se um filósofo, na atualidade, quer fazer crer que não é um cético — será que foi possível perceber algo na precedente definição de espírito objetivo? — uma tal confissão provocará um mau humor geral, ou se olhará nesse caso com um certo temor duvidoso, como se se desejasse perguntar tantas coisas, tantas... até, os mais tímidos, daqueles que aguçam os ouvidos, e que não são muitos, e muitos o proclamarão como um ser perigoso. Parece-lhes, ouvindo-o renegar o ceticismo, como se estivessem ouvindo ao longe um rumor ameaçador, como se estivessem fazendo experimentos com substância explosiva nova, com qualquer dinamite espiritual, alguma "niilina" russa recentemente descoberta, entrever um pessimismo "bonae voluntatis" o qual não apenas diz não, quer o não, mas coisa horrível de se pensar, faz o não. Contra esta espécie de "boa vontade" — vontade da renegação real, efetiva da vida — não há melhor antídoto, melhor calmante que o ceticismo, do doce ceticismo que acalenta, e mesmo Hamlet é prescrito pelos médicos contemporâneos contra o "espírito" e seu rumorejar subterrâneo. "Não temos cheios os ouvidos dos perigosos rumores de fatos?", diz o cético, no seu amor pela quietude, como um policial que deve zelar pela segurança pública, "este não subterrâneo é terrível. Silêncio, pelo menos uma vez, animais subterrâneos!" Aqui é que o cético, este ser delicado, amedronta-se facilmente, a sua consciência está pronta a se sobressaltar a cada não e mesmo a um sim decidido, e experimenta uma espécie de ofensa. Sim e não! — mas isto a seu ver vai contra a moral — contrariamente, gosta de festejar a sua virtude com uma nobre abstenção, por exemplo dizendo com Montaigne: "Que sei eu?" ou, com Sócrates "Sei que não sei nada", ou ainda: "Desconfiei de mim mesmo, nenhuma porta se me abriu aqui" e, "supondo que fosse aberta, por que entrar depressa?" Ou ainda: "Para que servem as hipóteses apressadas?" Abster-se de todas as hipóteses poderia ser prova de bom gosto. "É necessário endireitar aquilo que é curvo? Ou tapar um buraco com uma estopa qualquer? Não há tempo para isso? E o tempo não tem tempo? Mas sois endiabrados que não quereis ESPERAR? Mesmo o incerto tem seus atrativos, a Esfinge é uma Circe, e Circe também era filósofo." Estes são os consolos do cético e é necessário conceder que os necessita. O ceticismo é a expressão mais espiritual para um estado fisiológico complicado, que vulgarmente se chama debilidade nervosa e morbidez, e que se manifesta todas as vezes em que raças ou classes longamente divididas entre si se entrecruzam de modo decidido e repentino. Na nova geração que herdou, por assim dizer, diferentes medidas e valores, tudo é inquietude, turbamento, dúvida, tentativa, as melhores forças agem inibidoramente, as próprias virtudes não permitem, reciprocamente, a crescimento e fortalecimento de cada uma delas, falta equilíbrio à alma e ao corpo, a força gravitacional e a segurança perpendicular. Mas aquele que nasceu de tais raças cruzadas é, inicialmente, adoentado e degenerado em termos de vontade, ignora a independência que há na resolução, a sensação valorosa, a satisfação do querer, duvidam do "livre arbítrio", até em seus sonhos. A nossa Europa é em nossos dias, teatro de uma tentativa insensatamente repentina de mistura radical de classes e consequentemente de raças e, portanto, cética, daquele ceticismo móvel que salta impaciente de ramo em ramo, outras vezes sombrio como uma nuvem prenhe de pontos de interrogação e frequentemente mortalmente saciado do próprio querer! Paralisia da vontade — onde não se encontra, na atualidade, esse ser raquítico?! E quantas vezes com que fausto não é visto! E que fausto sedutor! Esta moléstia endossa as mais suntuosas vestes da mentira, e assim, por exemplo, tudo aquilo que é pomposamente tratado, na atualidade, sob o nome de “objetividade”, de “filosofia científica” de “l'art pour l'art”, de “conhecimento puro e independente da vontade”, nada mais é que ceticismo, paralisação da vontade pomposamente apresentada -, asseguro-me o diagnóstico dessa moléstia europeia. A vontade doente difundiu-se de modo desigual na Europa, manifesta-se com mais força e sob os aspectos mais variados onde a cultura aclimatou-se há mais tempo e tende a limitar-se na medida em que o "bárbaro" tende a manter — ou a reivindicar — os seus direitos sobre os negligentes vestuários da civilização ocidental. É por esta razão que na França atual, a vontade, como é fácil perceber e palpar, se encontra mais adoecida; e a França que sempre foi mestra em tornar sedutoras e atraentes mesmo às mutações mais fatais de seu espírita, aparece hoje, propriamente, à Europa como escola e a exposição universal do ceticismo naquilo que possui de mais atraente. — A força do querer e querer longamente já é mais acentuada na Alemanha e em o Norte mais que no centro, consideravelmente maior na Inglaterra, na Espanha, na Córsega, ali condicionada pela fleugma, lá pela cabeça dura dos seus habitantes — sem falar da Itália que é ainda mais jovem. demasiado jovem para saber o que quer e que deve provar inicialmente que sabe querer, mas maior e mais maravilhosamente desenvolvida se encontra no império do meio, onde a Europa se coliga à Ásia, isto é, na Rússia. Lá, a força do querer foi mantida durante muito tempo, acumulada, lá a vontade permanece alerta — sem saber se será afirmativa ou negativa — em espera ameaçadora, em espera que poderá descarregar-se, para adotar um vocábulo entre os prediletos dos físicos modernos. Não haverá sobretudo necessidade de guerras e complicações nas Índias, para que a Europa seja liberada do maior perigo a ela atinente, como revoluções internas, de um desagregamento do império em pequenas partes e ademais da introdução da absurdidade parlamentar, com a obrigação de cada um ler o seu próprio jornal. Digo isso não como pessoa que o deseje, o contrário é que corresponde ao meu desejo, isto é, um tal crescendo na ameaça russa que forçasse a Europa a tomar-se igualmente ameaçadora, isto é, unir-se numa vontade única de uma nova casta dominante na Europa, numa vontade durável, terrível, especial, que pudesse prefixar-se uma meta — a fim de que a comédia, de muito longa duração, de sua divisão em pequenos estados, da pluralidade de vontade dinástica e democrática possam finalmente cessar. O tempo da pequena política passou, o próximo século promete a luta pelo domínio do mundo, a necessidade de fazer a grande política. 209 Até que ponto a nova época belicosa, na qual evidentemente entramos nós europeus, possa ser talvez favorável ao desenvolvimento de uma nova espécie de ceticismo mais robusto, poderei expressar apenas através de uma comparação, que será compreensível a quem tiver se dedicado à história da Alemanha. Aquele rei da Prússia, ardente entusiasta dos granadeiros de alto e valoroso porte, que deu vida a um gênio militar e cético — e no fundo também ao novo tipo, ou vitoriosamente afirmativo, do alemão — o pai excêntrico e louco do grande Frederico possuía ainda o golpe de vista e a garra afortunados do gênio, sabia o que a Alemanha precisava, mais urgentemente, por exemplo, do que uma cultura ou formas sociais — a sua antipatia pelo jovem Frederico provinha da angústia de um instinto muito profundo. Faltavam homens, e ele com seu amargo despeito, suspeitava que seu filho ainda não fosse, suficientemente homem. Nisto se enganava, mas quem em seu lugar não teria se enganado? Viu seu filho cair nas garras do ateísmo, do “esprit”, da vida sensual dos franceses de espírito entrevia no fundo o grande vampiro do ceticismo, pressagiava o tormento incurável de um coração incapaz de resistir ao mal e ao bem, de uma vontade desprezada que não comanda mais, não mais sabe comandar. Mas em seu filho se radicava uma nova espécie de ceticismo, mais perigoso e tenaz — talvez fomentado pelo ódio paterno e pela melancolia glacial de uma vontade formada na solidão — o ceticismo da virilidade audaz, que é mais afim ao gênio guerreiro e conquistador e que sob o grande Frederico adentrou na Alemanha pela primeira vez. Um tal ceticismo despreza e, no entanto, atrai, escava e alarga sua possessão, não crê, mas com isso não perde a consciência de si mesmo, concede ao espírito uma liberdade perigosa, mas contém com duro freio ao coração. Esta é a forma alemã do ceticismo, o qual, sob a forma de um fredericianismo crescente, levado ao seu supremo grau de espiritualização manteve a Europa sob a denominação do espírito alemão e sua desconfiança histórica e crítica. Graças ao caráter indomavelmente forte e tenaz dos grandes filólogos alemães e dos críticos históricos (os quais, em verdade, foram conjuntamente os artistas da demolição e da decomposição) afirmou-se aos poucos. apesar do acento romântico na música e na filosofia, um novo conceito do espírito alemão, no qual se manifestava resolutamente a propensão ao ceticismo viril, como, por exemplo a impavidez do olhar, na coragem e inflexibilidade da mão que corta, seja na tenaz vontade de descobertas perigosas, expedições polares temerárias, sob céus ameaçadores e desolados. Aqui deve residir seu bom motivo, homens humanitários. ardentes ou superficiais partiram para guerrear o espírito assim conformado: "cet esprit fataliste, ironique, méphistophélique" como o chama, não sem ter calafrios, o Michelet. Mas se se deseja compreender quanta distinção há neste medo do "homem" segundo o espírito alemão, através do qual a Europa foi despertada de seu "sonho dogmático", basta lembrar do antigo conceito que devia ser vencido e superado, basta lembrar que, numa época não muito longínqua um virago, em sua desenfreada presunção, ousou recomendar aos alemães como seres tolos, inofensivos, bonachões, destituídos de vontade e sentimentais, às simpatias da Europa. Intui-se final e profundamente, o espanto de Napoleão ao ver Goethe, isto serve para explicar a ideia que durante muitos séculos se teve do "espírito alemão". "Voilà un hammel" Isto significa: "Mas é um homem” E eu esperava apenas ver um alemão! 210 Admitindo, pois, que qualquer evento deixe entrever na imagem dos filósofos do futuro quanto deverão ser céticos, no sentido indicado anteriormente por nós, apenas seria explicada uma pequena parte de seu ser, e não eles mesmos. Com o mesmíssimo direito poder-se-ia chamá-los críticos e em todo caso seriam homens que experimentam. No nome com que ousei batizá-los sublinhei expressamente a tentativa e o prazer que experimentam na tentativa, talvez porque, críticos pela alma e pelo corpo, gostam de se valer dos experimentos num sentido novo, talvez mais lato, talvez mais perigoso? Serão constrangidos pela grita a perceber que é tormenta levar mais adiante com suas tentativas audazes e dolorosas, do que comporta o gosto efeminado de um século democrático? É indubitável que aqueles que estão por vir não poderão desprezar aquelas qualidades sérias e profundas que distinguem o crítico do cético, como a segurança na medida dos valores, o manejo consciente de uma unidade de método, a coragem reflexiva, o sentimento de ser só, de poder justificar-se, se se concederam encontrar prazer em dizer não, em desmembrar, a possuir uma espécie de crueldade raciocinante, que sabe manejar o cutelo com segurança e delicadeza, mesmo quando o coração sangra. Serão mais duros (e talvez nem sempre contra si mesmos) do que alguns humanitaristas poderão desejar, não procurarão a verdade porque essa lhes agrada", lhes "enleva" e lhes "entusiasma" — antes, estarão muito longe de acreditar que a verdade reserve tanto prazer. Sorrirão, aqueles espíritos severos, quando alguém disser diante deles: "Esta ideia me enleva, como não seria verdadeira?" Ou ainda: "Aquela obra me agrada, como poderá não ser bela?" Ou: "Aquele artista me exalta, como poderia não ser grande?" Talvez não se limitem a um sorriso, mas sintam náusea de um tal sentimentalismo, sentimentos tão idealistas, femininos, hermafroditas, e quem pudesse seguir o seu pensamento até mesmo nas profundidades mais íntimas do coração dificilmente poderia encontrar a intenção de reconciliar os sentimentos cristãos com o “gosto antigo” e menos com o “parlamentarismo moderno” (aquilo que, porquanto se afirma, em nosso século muito instável nas suas ideias e consequentemente tendendo muito a conciliações, acontece também a certos filósofos). Disciplina crítica e tudo aquilo que possa habituar a um pensar puro e rigoroso, os filósofos do futuro pretenderão para si mesmos e mais ainda, ostentarão como um grande ornato — mas, apesar de tudo, não desejarão ser tratados pelo nome de críticos. Aos seus olhos parece não pequena vergonha sentenciar, como se deseja fazer hoje em dia: "A filosofia em si mesma é crítica e ciência da crítica — e nada mais!" Esta avaliação encontra ainda o aplauso dos positivistas franceses e alemães (e pode ser que recebesse ainda a gratidão de Kant, basta lembrar os títulos de suas obras mais importantes), os nossos novos filósofos dirão precisamente isso: os críticos são os instrumentos do filósofo e por serem instrumentos, muito longe de serem propriamente filósofos. Também o grande chinês de Koenigsberg não era mais que um grande crítico no fundo. 211 Insisto em que se deixe de confundir, de uma vez por todas, os operários filosóficos — e em geral, os homens de ciência com os filósofos, e que a cada um seja dado aquilo que lhe pertence, nem mais, nem menos. Pode acontecer que para a educação do verdadeiro filósofo seja preciso que ele percorra todas as gradações, nas quais os seus servos, os operários cientistas da filosofia estão aboletados e devem permanecer firmes — também ele deve ter sido crítico, cético, dogmático e histórico e ademais, poeta, coletor, viajante e charadista e moralista e vidente e "espírito livre", tudo enfim para poder percorrer o círculo dos valores humanos, dos sentimentos de valor e poder lançar um olhar de múltiplos olhos e múltiplas consciências da mais excelsa altitude aos abismos, dos baixios para o alto. Mas tudo isso é apenas uma condição preliminar da sua incumbência. seu destino exige outra coisa: a criação de valores. Os operários da filosofia segundo o nobre modelo de Kant e de Hegel têm por função estabelecer a existência de fato de certas apreciações de valores — isto é de antigas suposições e criações de valores, que com o tempo se tomaram dominantes, constrangê-los em certas fórmulas, seja no reino da lógica, seja da política (ou moral) ou da arte. A estes investigadores compete a função de tornar claros, inteligíveis, palpáveis a todos os acontecimentos, todas as avaliações verificados até agora, de abreviar tudo isso, a tudo aquilo que é longo, mesmo o "tempo" e de tomarem-se senhores absolutos do passado, função imensa e admirável, na qual todo orgulho delicado, toda vontade tenaz podem encontrar satisfação. Mas os verdadeiros filósofos são dominadores e legisladores, dizem: "deve ser assim preestabelecem o caminho e a meta do homem e fazendo isso usufruem do trabalho preparatório de todos os operários da filosofia, de todos os dominadores do passado. Estendem para o futuro as mãos criadoras, tudo aquilo que é e foi, torna-se para eles um meio, um instrumento, um martelo. O seu "conhecer" equivale a um criar, o seu criar a uma legislação, o seu querer à verdade, ao querer o domínio. Existem na atualidade tais filósofos? Não existiram? Não é talvez necessário que existam tais filósofos? 212 Cada vez mais me inclino a acreditar que o filósofo, o homem necessário do amanhã e do depois de amanhã, sempre se tenha encontrado e tenha devido encontrar-se em contradição com sua época, o seu inimigo sempre foi o ideal de hoje. Até agora, todos esses favorecedores do homem que se chamam filósofos — os quais por si mesmos raramente tiveram o sentimento de serem os amigos da sabedoria, mas antes loucos e pontos de interrogação perigosos — acharam seu trabalho duro, indesejado, ingrato e impreterível, mas do qual reconheceram a grandeza ao representar a má consciência do tempo em que viveram. Aplicando o escalpelo do vivissector ao peito da túrtude da época deixaram transpirar a próprio segredo, o de conhecer uma nova grandeza no homem, de buscar uma nova senda inexplorada para alcançar tal grandeza. Todas as vezes desmascararam a hipocrisia, a comodidade, o deixar andar, o deixar cair, em resumo toda a mentira que se encerrava no tipo mais respeitado de moral da sua época... revelaram ao mundo quanta virtude havia sobrevivido a si mesma; sempre disseram: "devemos vencer lá, lã onde tendes menor familiaridade". Frente a um mundo das "ideias modernas" que deve confinar cada um num ângulo "especial" um filósofo, se atualmente pudessem existir filósofos, seria constrangido a contrapor à grandeza do homem, o conceito da "grandeza" por si mesmo em toda sua extensão, na sua multiplicidade, na sua integridade, na pluralidade e assim determinaria o valor e o grau segundo quanto cada um pode suportar e tomar para si, segundo a tensão de que é capaz a sua responsabilidade. Agora, o gosto do dia debilita e afina a vontade, nada é mais moderno que a fraqueza da vontade, pelo que, no ideal do filósofo, no conceito "grandeza" devem estar compreendidas a força da vontade, a força de resistência, a capacidade de assumir resoluções duráveis, e isto da mesma forma e igual direito que a doutrina e os ideais opostos de uma humanidade sabiamente renunciadora, resignada. humilde e altruística eram adequados a uma época que era o contrário da nossa, a uma época que a exemplo do século dezesseis sofria sob o peso da energia da vontade acumulada e da impetuosidade selvagem dos seus sentimentos egoísticos. Nos tempos de Sócrates, entre os homens de instinto enfraquecido, entre os velhos atenienses conservadores, que se deixavam andar — "rumo à felicidade" como diziam, mas realmente apenas segundo seu desejo, — e tinham ademais a boca sempre cheia de magníficas expressões, ás quais a sua vida não mais dava nenhum direito, talvez a ironia fosse necessária à grandeza da alma, era talvez necessária aquela segurança socrática e maligna do velho médico ou do plebeu, que cortavam sem piedade a própria carne, — começaram a servir da carne cru do coração dos "aristocratas", com um olhar que dizia francamente "não fingi diante de mim — nisto, somos iguais!" A Europa da atualidade, ao contrário, apresenta os animais de rebanho distribuindo as honras e possuindo-as, é lugar onde a "igualdade de direitos" por pouco não se transmuta na igualdade da injustiça, quero dizer no guerrear tudo aquilo que é raro, estranho, privilegiado ao homem superior, à alma superior, ao dever superior, à responsabilidade superior, ao império da força criadora; — atualmente o ser aristocrático, o ser por si mesmo e diferente dos outros, o ser só e viver para si só, são atributos da "grandeza" e o filósofo deixará entrever o seu ideal quando decretar: "será o maior aquele que souber ser o mais solitário, o mais misterioso, o mais diferente entre os homens, aquele que será colocado além dos limites do bem e do mal, que será o dominador da própria virtude, que será transbordante de vontade, isto se chamará grandeza, o ser múltiplo e ao mesmo tempo uno, o conjugar a máxima extensão ao conteúdo máximo". E perguntamos uma outra vez: a grandeza é possível na atualidade? 213 Saber o que é um filósofo é algo difícil de determinar unicamente pelo fato de que não é possível ensiná-lo, é preciso "sabê-lo" por experiência, ou ainda é preciso ser tão orgulhoso que não se queira sabê-lo. Mas o hábito que todos possuem de falar de coisas das quais não têm nenhuma experiência, há como alvo principal o filósofo e as coisas filosóficas: um número muito limitado de pessoas tem condições de conhecê-lo e todas as opiniões populares acerca desse assunto são falsas. Assim, por exemplo, aquela consistência genuinamente filosófica de uma espiritualidade impertinentemente audaz, que seque um ritmo de "presto" e de uma dialética rigorosa e necessária, que não dá nenhum passo em falso, é na verdade desconhecida por experiência pela maioria dos pensadores e dos doutos, razão pela qual não é digno de fé cada um deles que fale sobre o assunto. Figuram-se as coisas necessárias como um dever, como argumentação penosa, à qual se é constrangido necessariamente e o próprio pensar aparece como algo de lento, de doentio, de penoso e frequentemente "digno do suor de homens melhores," mas jamais, como algo lépido, divino, e afim à dança, ao entusiasmo juvenil! "Pensar" e tomar algo a "sério" com "gravidade" para aqueles é uma única coisa e isto lhes é ensinado pela própria experiência. Os artistas neste sentido já têm o faro mais aguçado, sabem precisamente quando algo não está à sua altura, quando não podem fazer algo, mas se são constrangidos a fazê-lo, os seus sentimentos de liberdade, de refinamento, de plenos poderes, de predispor, dispor e traduzir em realidade as suas criações, atinge o maior grau de elevação, em resumo, a necessidade se confunde numa única coisa com o "livre arbítrio". Existe enfim uma ordem gradual dos estados de alma, a qual é conforme à ordem gradual dos problemas, e os mais altos problemas ferem sem piedade quem quer que ouse aproximar-se sem estar predestinado pela elevação e potência da sua intelectualidade, a poder resolvê-los. Que ajuda, se hábeis sabichões bons para qualquer função, ou tolos operários ou empiricistas promovem balbúrdia, no seu orgulho plebeu, como tão frequentemente acontece na atualidade, em torno de tais problemas, como se se encontrassem na "corte das cortes"! Mas sobre tais tapetes não devem ser impressas as solas de pés grosseiros, isto já foi previsto pela lei mais primitiva, para estes descarados a porta permanece fechada, e esses tentam em vão colocá-la abaixo a marradas. É preciso nascer para os mundos elevados, ou para dizê-lo com maior clareza, é preciso ter sido elevado; um direito à filosofia, tomando a palavra no sentido mais amplo, só é dado pelas próprias origens, os antepassados, "o sangue", decidem mesmo aqui. Muitas gerações devem ter preparado o advento do filósofo, cada uma de suas virtudes deve ter sido aquisitada, cultivada, herdada e incorporada; não sobretudo o fluxo leve e delicado dos seus pensamentos, mas antes e antes de mais nada a sincera disposição para as grandes responsabilidades, a imperiosidade dos olhares, o saber-se separado do vulgo, dos seus deveres e de suas virtudes, a proteção e pronta defesa de tudo aquilo que é mal interpretado, que é caluniado, seja Deus ou o Diabo, a propensão e a admiração pela grande justiça. a arte do comando, a vastidão da vontade, a lentidão do olhar, que raramente admira, raramente se exalta e raramente ama... SÉTIMA PARTE AS NOSSAS VIRTUDES 214 Nossas virtudes? É provável que também nós tenhamos nossas virtudes, mesmo que, como de imediato se compreende, não sejam aquelas virtudes bondosas e primitivas, que honrávamos em nossos antepassados, embora mantendo-as à respeitosa distância. Nós europeus de depois de amanhã, primícias do século vinte — com a nossa perigosa curiosidade, com nossa multiplicidade, com a nossa arte do disfarce, com nossa crueldade tenaz, e por assim dizer adoçada pelo espírito dos sentidos — se devemos propriamente possuir virtudes, temos apenas aquelas que podem entrar em melhor acordo com nossas inclinações mais secretas e mais acariciadas, com as nossas mais urgentes necessidades, e andamos a procurá-las em nossos labirintos, nos quais como bem se sabe, emaranham-se muitas coisas e outras chegam a perder-se inteiramente. E há algo de mais belo do que procurar as próprias virtudes? Isto não é equivalente a ter fé nas próprias virtudes? Mas o fato de ter fé não é equivalente àquilo que uma vez chamamos boa consciência, conceito venerável que nossos avós enfiavam dentro de nosso intelecto como o rabicho à nuca? Parece quase que por menos que acreditemos seguir a moda antiga e o modo de sentir de nossos avós, numa só cousa somos deles os dignos herdeiros, nós, europeus, produto da boa consciência, agora levamos o rabicho deles. — Ah! Se soubésseis quão depressa — muito depressa — as cousas estão para mudar! 215 Tal como no reino dos astros, dois sóis costumam determinar a órbita de um planeta, como em certos casos um planeta é iluminado por sóis de diferentes cores, ora vermelhas, ora verdes, ora com as cores misturadas, da mesma forma, nós, homens modernos, graças à mecânica complicada do nosso firmamento — estamos determinados por diferentes morais; as nossas ações refletem as diversas cores, às vezes aparentam uma só cor — e em certos casos apresentamos todas as cores. 216 Amar os próprios inimigos? Parece-me que se o tenha apreendido muito bem: percebemo-lo em mil circunstâncias, no pequeno e no grande; sim, quiçá bem melhor agora — chegamos a desprezar enquanto amamos, e precisamente quanto mais intensamente amamos: mas tudo isto inconscientemente, sem fazer caso, com o pudor e o segredo da bondade que gelam os lábios às palavras solenes e virtuosas. A moral como comportamento — isto repugna ao nosso gosto moderno. E isto é também um progresso — como para nossos pais foi um progresso, que a religião enquanto atitude acabou por contrariar o seu gosto (e destarte a aversão e o sarcasmo voltam-se contra a religião e tudo o que outrora era a bagagem necessária de quem se arvorava a livre-pensador). É a música de nossa consciência, a dança de nosso espírito, que não saberiam suportar as litanias dos puritanos, as prédicas dos moralistas, dos assim ditos homens de bem. 217 Guardai-vos contra aqueles que atribuem grande valor a que se reconheça o seu tato moral, a delicadeza nas distinções morais; não nos perdoariam jamais, se lhes ocorrer de cometer um erro diante de nós (ou, até mesmo contra nós) — tornar-se-iam instantaneamente os nossos caluniadores e detratores, mesmo se em aparência continuam a se mostrar nossos amigos. Bem-aventurados aqueles que esquecem, porque acabam esquecendo-se também da insensatez que cometeram. 218 Os psicólogos franceses — e onde, fora da França, hoje em dia ainda se encontram psicólogos? — ainda não acabaram de saborear inteiramente a sua voluptuosidade acre e múltipla da "bêtise bourgeoise" como se com esta atitude denunciassem algo. Flaubert, por exemplo, o honesto burguês de Rouen, acabou não vendo, nem sentindo outra coisa: — era a sua maneira de torturar a si mesmo, uma crueldade refinada contra si mesmo. Ora, eu recomendaria — pois que esta cousa acabaria tediosa — algo diferente para extasiarem-se: ou seja, a astúcia inconsciente da qual se valem os intelectos medíocres em suas relações com os superiores e em sua atitude para com os fins, que estes se prefiguram, aquela astúcia jesuítica e complicada que é mil vezes mais refinada, de quanto nos intervalos mais lúcidos possa ser o intelecto e o gosto de tais espíritos medíocres — e ainda mais o intelecto de suas vítimas: — o que demonstra uma vez mais que o "instinto" de todas as espécies de inteligência, é a mais inteligente. Em resumo, estuda! ó psicólogos, a filosofia da “regra” em sua luta contra a “exceção”: obtereis um espetáculo digno dos deuses e da malícia divina! Ou, digamos ainda mais claramente: fazei uma vivissecção do "bom homem", do homem "bonae voluntatis" ... em vós mesmos! 219 Julgar e condenar moralmente é a vingança preferida das almas limitadas sobre aquelas que são menos que elas, uma espécie de indenização por tudo aquilo que obtiveram de menos da natureza, eis uma ocasião para mostrar espírito e tornar-se refinado — a malícia espiritualiza o homem. No fundo de seus corações gostariam que existisse uma medida, diante da qual também os homens ricos e privilegiados sejam seus iguais, combatem pela igualdade de todos diante de Deus e apenas por isso são constrangidos a crer em Deus. Entre eles encontram-se os mais violentos adversários do ateísmo. É insuportável para eles que se lhes diga que não há medida comum entre a espiritualidade mais elevada e a honorabilidade de um homem honrado, que possui apenas a moralidade. Estou muito longe de dizê-lo, antes, procurarei sua gratidão assegurando que uma alta intelectualidade é apenas o coroamento de certas qualidades morais, que é uma síntese de todos aqueles estados através dos quais passam apenas os homens exclusivamente morais, estados adquiridos graças a uma longa evolução, por uma grande série de gerações; que a alta intelectualidade representa a espiritualização da justiça, daquele rigor temperado pela bondade que sabe ser sua incumbência a manutenção de uma hierarquia entre as coisas e não unicamente entre os homens. 220 O elogio do desinteresse é na atualidade tão popular, que se é forçado, talvez não sem perigo, a perguntar-se, a que coisa o povo verdadeiramente chama interesse e com o que o homem vulgar mais se afadiga, compreendidas as pessoas cultas, senão os doutos, e se não nos enganamos, mesmo os filósofos. Chegar-se-á a constatar o fato de que a maior parte de tudo aquilo, que interessa os gostos mais delicados e refinados, que tem atrativos para uma natureza superior deixa completamente frio ao homem medíocre, e se apesar disso percebe uma inclinação para aquilo chamar-lhe-á "desinteressada" e se maravilhará diante de uma ação desinteressada. Filósofos souberam conferir a uma tal maravilha popular uma expressão sedutora misticamente sobrenatural — talvez pelo fato de que por experiência própria não conheciam as naturezas superiores? — antes de admitir a verdade, que cada ato "desinteressado" é sempre um ato muito interessante e também "interessado" porque se deseja admitir que... "E o amor?" — Como, afinal um ato inspirado pelo amor deveria ser "não egoístico"? — Oh! vós, parvos! "E os elogios diretos, a quem se sacrifica?" — Mas quem realmente é submetido a sacrifícios sabe que os sofreu por alguma coisa, de ter obtido alguma coisa em compensação de seu sacrifício — talvez de si mesmo, por si mesmo — sabe que de um lado concedia, para obter muito mais de outro, senão para ser, ou pelo menos sentir-se algo mais. Mas perdemo-nos num labirinto de perguntas e respostas, que o homem de gosto refinado procura evitar, já que a verdade deve esforçar-se para conter um bocejo, mesmo quando é constrangida a responder. Finalmente, é mulher e não é preciso que a violentemos. 221 Frequentemente, costuma dizer um pedante moralista: costumo tratar com distinção um honrem desinteressado, mas não pelo fato de que seja desinteressado, mas porque me parece que tem um direito de ser útil às próprias expensas a um outro homem. Resumindo, trata-se unicamente de saber quem é ele que é o outro. Por exemplo, num indivíduo nascido para comandar, a abnegação e a modéstia não seriam virtudes, mas o esbanjamento de uma virtude, segundo me parece. Toda moral altruística que, por querer ser incondicionada, quer abarcar a tudo sem distinções, não peca somente contra o bom gosto, mas além disso e bem mais que isso, é um incitamento aos pecados de omissão, uma sedução a mais sob a máscara da filantropia — e particularmente apta a seduzir e danificar os homens mais elevados, mais raros e privilegiados. É preciso forçar a moral a curvar-se diante da hierarquia, é necessário abater a sua prepotência e colocar definitivamente a claro que é imoral afirmar que: aquilo que é justo para um deve ser também para outro". Assim pois dizia aquele bom homem do meu pedante moralista: merecia ser talvez escarnecido quando recordava as morais e a moralidade? Mas não é preciso jactar-se por querer ter demasiada razão, se desejam possui-la aqueles que riem; ter um bocadinho de erro é indício de bom gosto. 222 Onde atualmente se prega compaixão — e se estamos certos apenas a religião é pregada na atualidade — o psicólogo deve abrir muito bem as orelhas; através da vaidade, do rumor próprio a tais pregadores (e se quisermos de todos os pregadores), ele desferirá um gemido rouco e sincero de desprezo por si mesmo. Isso é decorrente, se não é a própria causa, daquele obscurecimento, daquele embrutecimento da Europa, que há um século experimenta um crescendo (e cujos primeiros sintomas são expressos documentalmente numa carta cheia de preocupações do abade Galliani à senhora de Epinay). O homem de "ideias modernas", este macaco orgulhoso, está supremamente descontente consigo mesmo, isto é indubitável. Sofre, mas sua vaidade exige que experimente apenas compaixão. 223 O europeu moderno, produto do cruzamento de raças — um plebeu bastante antipático inicialmente — sente necessidade de um costume, sente necessidade da história que é o arsenal de seus costumes. É verdadeiro, porém que percebe que nenhum se lhe convém e muda continuamente de indumentária. Considere-se um pouco o nosso século segundo esta contínua mudança do estilo da mascarada e no desespero de ver que "nada é feito para eles"!! É inútil apresentar-se com uma veste romântica, clássica, cristã, florentina, barroca, ou ainda "nacional" in moribus et artibus, nada "cai bem?". Mas o espírito, especialmente o "espírito histórico" sabe tirar proveito mesmo disso, sempre encontra meios de exumar algum farrapo virgem de épocas passadas ou de países estrangeiros, gira-se-o, regira-se-o, repõe-se-o, ressoterra-se-o, mas antes de tudo se o estuda. Podemos jactar-nos de sermos a primeira época estudiosa daquilo que foi trazido pelos costumes, quero dizer, das morais, dos artigos de fé, dos gostas artísticos e das religiões, de estarmos preparados como jamais, para o carnaval de grande estilo, ás risadas e à impertinência do carnaval intelectual, à elevação transcendental do absurdo e à extrema potência da mofa aristofanesca. Talvez estejamos para descobrir o reino de nossa "invenção", um reino em que será dado também a nós o sermos originais, por exemplo como parodistas da história universal ou como truões de Deus, e se nada das coisas que hoje existem tiverem um futuro, este será reservado para nosso riso. 224 O senso histórico ou ainda a faculdade de adivinhar rapidamente as relações de ordem entre as valorações pelas quais um povo, uma sociedade, um indivíduo viveram, o "instinto divinatório" pelas relações entre tais valorações, entre as relações da autoridade dos valores e a autoridade das forças eficientes, este senso histórico que nós, europeus, consideramos uma nossa especialidade, veio até nós seguido pela douta e fascinante semibarbárie, em que a mistura democrática das classes e raças lançou a Europa, apenas o século dezenove começou a conhecer senso, que se tornou o seu sexto sentido. O passado em todas suas formas, em todos os seus modos de viver, com todas suas "civilizações", uma sobreposta ou sotoposta à outra, se irradia, graças à mistura indicada em nossa alma moderna, os nossos instintos percorrem toda a via do passado, nós mesmos somos uma espécie de caos, mas, enfim, como já dissemos, o "espírito" sabe encontrar-se sua contrapartida. Graças à nossa semibarbárie do corpo e dos desejos, possuímos acessórios secretos, tais que nenhuma outra época aristocrática os possuiu, antes de mais nada o acesso ao labirinto da civilização imperfeita e de toda a semibarbárie que tomaram existência sobre a Terra e como a parte mais considerável da civilização humana se resume numa semibarbárie, o "senso histórico" significa o senso e o instinto de todas as coisas, o gosto e a expressão de todas as coisas, com o que subitamente se mostra um senso não aristocrático. Por exemplo, gostamos novamente de Homero, talvez para nós seja uma afortunosa vantagem saber degustar Homero, isto que os homens de uma civilização aristocrática (como os franceses do século dezessete, que com Saint-Evremond reprovavam em Homero o seu “Sprit vaste” e dos quais o último eco é Voltaire) não sabiam fazer tão facilmente — e que se permitiam apenas. O sim e o não muito determinados de seu palato, a sua náusea facilmente cingida, sua desconfiança relativamente a tudo que sabiam ser estrangeiro, o seu temor de demonstrar mau gosto, mesmo num momento de altíssimo desejo, e em geral a aversão que experimenta toda sociedade aristocrática e autossuficiente, em confessar um novo desejo, um descontentamento interior, admiração por alguma coisa estrangeira, tudo aquilo a indispõe e a predispõe desfavoravelmente contra as melhores coisas do mundo quando não são de sua propriedade ou não possam tornar-se, e nenhum sentido é menos compreensível a tais indivíduos, que o senso histórico e a curiosidade humilde e plebeia coligada a ele. A mesma coisa vale para Shakespeare, maravilhosa síntese do gosto hispano-mouro-saxão, a respeito do qual um velho ateniense amigo de Ésquilo teria gargalhado ou ficado despeitado: mas nós, acolhemos esta mixórdia como aquilo que há de mais delicado, de mais grosseiro, de mais artificioso, com uma secreta confiança e cordialidade, degustamo-la como um refinamento da arte, reservada apenas para nós e não nos deixamos indispor pelas exalações mefíticas, da vizinhança da pele inglesa, em meio à qual vivem a arte e o gosto shakespeareanos do mesmo modo como quando nos encontrávamos em Nápoles, às margens de Chiaia, seguimo-las fascinados e voluntariamente, sem preocuparmo-nos com exalações que emanavam das cloacas dos quarteirões da plebe. Nós, homens de "senso histórico" — temos a nossa virtude, isto é inegável, somos despretensiosas, desinteressados, modestos, valorosos, cheios de abnegação, de reconhecimento, de boa vontade, e apesar disso, nosso gosto não é, talvez, o melhor. Confessemos, pelo menos uma vez, aquilo que para nós, homens do senso histórico, é mais difícil de sentir, apreender, gostar, preferir, aquilo que no fundo se mostra predisposto e contrário, é precisamente a perfeição, a suprema maturidade de toda civilização e de toda arte, tudo aquilo que é verdadeiramente aristocrático nas obras e nos indivíduos, o momento de suprema indiferença, de tranquilidade, a frieza dourada, que é a propriedade de todas as coisas próximas à perfeição. Talvez a nossa grande virtude do senso histórico seja o oposto necessário do "bom" gosto ou pelo menos do "melhor" gosto, que só sabemos reproduzir em nós com dificuldade. hesitantemente, e constrangidos naqueles momentos poucos e raras de suprema felicidade e transfiguração na vida humana, naqueles momentos miraculosos nos quais uma grande força se deteve voluntariamente frente ao desmensurado e ao infinito, e sente exuberantemente um gáudio sublime num conter-se repentinamente, imobilizar-se, em manter-se firme num terreno ainda vacilante. Esta medida é estranha para nós, confessamo-lo, aquilo que provoca interesse é precisamente o infinito, o desmensurado. Como o cavaleiro transportado pelo seu ginete numa corrida vertiginosa, nós, diante do infinito abandonamos as bridas, nós homens modernos, nós, homens semibárbaros, e sentimos apenas então a nossa felicidade, quanto maior for o perigo. 225 Hedonismo, pessimismo, utilitarismo ou eudemonismo: todos esses modos de pensar, que têm por medida o prazer e o sofrimento, isto é, certos estados acessórios são modos de pensar primitivos e ingênuos, que cada um que se sinta de posse de forças criadoras e de uma consciência artística olhará com ar de desprezo, não falto de compaixão. Compaixão de vós, sim! Mas não a compaixão tal qual a entendeis, não se trata da compaixão pela miséria social, pela sociedade, pelos seus doentes e suas vítimas, pelos seus viciados e vencidos desde a origem que jazem espedaçados a nosso redor e menos ainda compaixão por catervas de escravos resmungadores, opressos e sediciosos, que aspiram ao domínio que chamam "liberdade". A nossa compaixão é bem mais elevada vemos que o homem se empequenece, que vos o diminuis! Momentos em que contemplamos com angústia indescritível a vossa compaixão e evitamos uma tal compaixão, momentos em que achamos mais perigosa a vossa seriedade que qualquer outra leviandade, olhais, possivelmente — e não há "possivelmente" mais estulto que esse — o momento de suprimir o sofrimento e nós? Parece até que se deseja reduzir as coisas a um grau mais agudo e a pior partido do que o foram até agora. O bem-estar, como o entendeis, não representa um fim, mas, pelo menos para nós, o fim! Significa um estado que acaba por tornar o homem ridículo e desprezível — que faz com que deseje a perdição. A escola da dor, da grande dor — não sabeis que esta escola permitiu ao homem atingir certas atitudes? Aquela tensão da alma na desventura, proveniente da própria força, os calafrios que o perpassam quando assiste a uma grande ruína, o engenho, a bravura que se demonstra no suportar, no perseverar, no interpretar, no desfrutar a desventura, tudo isso que a alma ganhou em profundidade, segredo, dissimulação, espírito, astúcia, grandeza, não há talvez conquistado sob o signo da dor, na escola da grande dor? No homem se encontram reunidos a criatura e o criador, no homem está a matéria, isto é o incompleto, o supérfluo, isto é, a argila, o lodo, o absurdo, o caos, mas no homem também está o sopro que cria, que plasma, isto é, a dureza do martelo, quer dizer, o espectador, a divina contemplação do sétimo dia observai o contraste entre vossa compaixão que é a revolta da "criatura que há no homem", isto é, aquilo que deve ser plasmado, estampado, batido como o ferro, afinado, passado pelo fogo e purificado — aquilo que deve e é constrangido a sofrer e a nossa compaixão? Não adivinhais contra que se revolta nossa compaixão, que se rebela contra a vossa, por que a vossa significa o resumo de toda debilidade? E então, compaixão contra compaixão! Mas, como já dissemos, existem problemas mais altos que aqueles que têm por objeto o prazer e o sofrimento e a compaixão e toda filosofia que se devesse ocupar exclusivamente disso, seria sempre uma criancice. 226 Nós, imorais! — O mundo que se vê, no qual devemos temer e amar — este mundo quase invisível e insensível de comando e obediência delicados, um mundo do "quase" em todo sentido, difícil, comprometedor, áspero e terno, mundo que está defendido contra os espectadores ignaros, contra a curiosidade despudorada! Nós estamos jungidos por ligações muito sólidas, partamos uma camisa-de-força, a camisa de força do dever, e não podemos nos livrar dela e por isso somos também "homens do dever"! Algumas vezes, dançamos, também nós, em meio às nossas cadeias e espadas, frequentemente, isso é bem verdade, rangemos os dentes impacientes com a dureza de nossa sorte. Mas tanto quanto façamos, os imbecis e as aparências estão contra nós e dizem "eis os homens sem dever": Teremos sempre contra nós os imbecis e a aparência! 227 A retidão, supondo-se que essa se a nossa virtude, da qual não podemos nos livrar, nós, espíritos livres, e então queremos trabalhar em torno dela com toda a nossa malignidade com todo nosso amor, sem deixar de nos aperfeiçoar nesta nossa virtude, a única que nos restou, ainda que seu. esplendor venha a iluminar um dia, como auréola crepuscular dourada, acicatante e motejadora, esta civilização envelhecida com sua pesada e tétrica gravidade. E ainda, se um dia nossa retidão devesse estancar e gemer e convulsionar os membros e enrijecer-se e augurar-se algo de melhor, de mais leve, de mais tenro, lisonjeiro como o vício: permaneçamos duros, nós, últimos remanescentes dos estoicos e enviemos-lhe toda a diabrura que tivermos no corpo, a nossa náusea pelas coisas cambiais e incertas, o nosso "nitimur in vetitum", nossa coragem de aventureiros, nossa curiosidade aguerrida e viciada, nossa mais íntima e refinada vontade intelectual de dominar o mundo, que adeja furiosa sobre todos os impérios do futuro — corramos em ajuda de nosso Deus com todos os nossos demônios. É provável que em consequência disso haja mal-entendido e se calunie, mas que importa? Dir-se-á: a sua retidão é a sua diabrura e nada mais! E admitindo que tivessem razão, os deuses não foram diabos que rebatizados tornaram-se santos? E que sabemos acerca de nós mesmos? E como se deve chamar o espírito que aqui nos guia? é questão de nome! E quantos espíritos se albergam em nós? A nossa retidão guardemo-nos, espíritos livres, de que se torne nossa vaidade, nossa pompa, nossa imbecilidade! Toda virtude propende à imbecilidade; "estúpido até a santidade", é usual dizer na Rússia, guardemo-nos, pois, de nos tornarmos à força da retidão santos enfadonhos! A vida não é muito breve para encarar? Seria necessário, realmente, acreditar na vida eterna, para... 228 Que se me perdoe o ter feito a descoberta, que até agora todas filosofias morais foram enfadonhas e pertenceram à classe dos soporíferos — e que nada, a meu ver, produziu tanto dano à virtude quanto a fastidiosidade de seus patrocinadores, com isso, entretanto não quero menosprezar sua utilidade em geral. É muito importante que o menor número possível de indivíduos meditem sobre moral e portanto, é muito importante, mas muito mesmo, que a moral se torne, algum dia, desinteressante! Mas não temei! As coisas ainda permanecem como sempre foram, não vejo ninguém na Europa que tenha o parecer de que meditar sobre moral possa tornar-se perigoso, comprometedor, corruptor, que nisso possa ter havido algo de fatal! Considere-se, por exemplo, os inestancáveis e inevitáveis utilitaristas ingleses, como vão para diante e para trás (em Homero uma similitude que dá melhor e mais claramente a imagem) calcando ou recalcando pesada e afavelmente as pegadas de Bentham do mesmo modo que este seguia as pegadas do honorável Helvetius (não, não era certamente um homem perigoso, este Helvetius, sénateur Pococurante, segundo Galiani). Nenhuma ideia nova, nenhuma reprodução genial de uma ideia antiga, nem mesmo uma estória verdadeira daquilo que já havia sido pensado, em conjunto uma literatura impossível, particularmente quando não se sabe torná-la ácida com um pouco de malignidade. E tudo isto porque, também mesmo nestes moralistas (que sempre devem ser lidos com a máxima independência de espírito, caso se fosse constrangido a lê-los) infiltrou-se aquele antigo vicio inglês que se chama "cant" e é tartufismo moral, mas desta feita mascarado por uma forma científica, onde se encontrará ainda uma certa inquietação secreta de defender-se dos remorsos, dos quais uma raça de antigos puritanos jamais poderá libertar-se mesmo tratando cientificamente de moral. (Não é talvez o moralista o "pendant" do puritano, isto é, um pensador, que admite a moral como coisa digna de ser discutida, interrogada, resumindo, como um problema? Não seria talvez o moralizar — imoral?) No fundo todos os moralistas estão resolvidos a dar razão à moralidade inglesa, na medida em que essa moralidade será útil à humanidade ou à "utilidade pública" ou à "felicidade da maioria", não à felicidade da Inglaterra. Tendem a demonstrar com toda a sua força, que aspirar à felicidade inglesa, isto é, ao comlort e à fashion (e mais acima, uma cadeira no Parlamento), representa o verdadeiro caminho da virtude, mais ainda, que toda a virtude que existiu no mundo não consistiu em nada mais que isso. Nenhum desses animais de rebanho, pesados e de consciência inquieta (que pretendem dissimular és interesses do egoísmo sob os do bem-estar geral) quer entender ou pressentir, que o bem-estar geral não é um ideal, uma meta, um conceito que se possa formular claramente, mas sobretudo um meio de abrir uma passagem que permita apenas um vau e nenhum outro; que o pretender uma única moral para todos tende precisamente a golpear os homens superiores, que existe uma diferença de grau entre os homens e consequentemente entre as morais. São uma espécie de indivíduos muito modestos e medíocres em todos os sentidos esses utilitaristas ingleses e como já dissemos, enfadonhas, e não podemos louvar suficientemente a sua utilidade. Devemos encorajá-los: Salve, bravos carroceiros, sempre "quanto mais, melhor" cada vez mais entorpecidos de cabeça e joelhos, sem entusiasmo e graça, irremediavelmente medíocres, sans génie et sans esprit! 229 Naquelas épocas tardias que podem se orgulhar do seu humanismo há um tal resíduo de temor supersticioso da "besta selvagem e cruel" que se debilita aquela forma até o louvor daquela época humana, que até a verdade palpável, quase por convenção tácita, permanece por séculos e séculos ignorada, porque se teme dar vida à besta felizmente amansada. Talvez seja audácia de minha parte se deixo transpirar uma tal verdade; possam outras contê-la e embebê-la de tanto "leite do pio pensar", que façam com que volte a jazer em seu túmulo muda e esquecida. Preciso começar a pensar diferentemente e abrir bem os olhos acerca da crueldade, é preciso finalmente aprender a impaciência para não tolerar mais que certos erros passageiros empolados e insolentes das virtudes como, por exemplo. cometeram os filósofos antigos e modernos relativamente à tragédia. Quase tudo aquilo que chamamos "cultura superior" baseia-se na espiritualização no aprofundamento da crueldade — esta é minha tese, a besta selvagem não foi morta, vive, prospera, sobretudo se é divinizada. A volúpia dolorosa que é a essência da tragédia, nada mais é que crueldade, tudo aquilo que na paixão trágica, e no fundo mesmo no sublime, mesmo nos mais supremos e mais delicados arrepios da metafísica, desperta uma complacência, obtém seu dulçor apenas pelo ingrediente de crueldade que lhe é mesclado. Todos os prazeres que se apossavam com secreta volúpia dos romanos na Arena, dos cristãos na lembrança da cruz, dos espanhóis frente aos toureiros ou corridas de touros, que experimentam os japoneses da modernidade quando se reúnem para ouvir a tragédia, os operários dos subúrbios de Paris que têm a nostalgia das revoluções sangrentas, os wagnerianos que imersos em êxtase degustam Tristão e Isolda — são apenas filtros mágicos da grande Circe que tem o nome de Crueldade. É preciso emancipar-se desta psicologia oca de uma vez por todas, que se saiba ensinar antes de tudo que a crueldade começa com o aspecto do sofrimento dos outros, que há tanta superabundância de gozo mesmo no próprio sofrimento e em provocá-lo! Onde quer que o homem esteja próximo da auto mortificação (no sentido religioso) ou ainda da mutilação de si mesmo como entre os fenícios e os ascetas, ou em geral da renegação dos sentidos, da contrição, das penitências geradoras de cãibras dos puritanas, das vivissecções da consciência, do sacrifício do intelecto de Pascal, aquilo que secretamente o persuade e o estimula é a sua crueldade, é aquele arrepio perigoso da crueldade exercida contra nós mesmos. Finalmente, considere-se que até o próprio vidente quando obriga seu espírito a conhecer contrariamente à própria inclinação e aos desejos de seu coração — a dizer não, deve querer afirmar, amar, adorar — funciona apenas como artista é transfigurador da crueldade, cada aprofundamento das coisas é por si só uma violência, uma dor que se causa à vontade fundamental do espírito, que incessantemente tende a aparência e à superfície — até na vontade de conhecer há uma gota de crueldade. 230 Talvez não se compreenda de início aquilo que eu disse da "vontade fundamental do espírito", que se me permita uma explicação. — Aquela coisa imperiosa que é chamada "espírito" pelo povo quer ser senhora de si e de tudo que há em seu redor e sentir-se senhora, possui a vontade de reduzir-se da multiplicidade à unidade, uma vontade constrangedora, dominadora, imperiosa, em suma, tirânica. Suas necessidades e suas faculdades são as mesmas que os fisiólogos admitem para tudo aquilo que cresce, vive e se multiplica. A força do espírito de apropriar-se do estranho se manifesta numa potente inclinação de assimilar o moderno ao antigo, de simplificar o que é variegado, de ignorar ou eliminar as contradições, do mesmo modo com que sublinha arbitrariamente, faz ressaltar, faz falsear certos traços característicos do estranho e em toda parte do "mundo exterior". Tem em mira a incorporação de novas experiências, a interpelação de coisas novas nos velhos ordenamentos, ou melhor ainda, o sentimento do acréscimo, o sentimento do acréscimo de força. A essa mesma vontade é recurso válido um instinto aparentemente oposto do espírito que se manifesta com uma resolução súbita de querer a ignorância, com uma exclusão arbitrária, com o fechamento de todas as janelas, com a negação interior de uma ou de outra coisa. com uma proibição de deixar sair como uma espécie de defesa contra muitas coisas dignas de serem conhecidas, com uma certa preferência pela obscuridade, pela aprovação da ignorância, pelos horizontes angustiantes, pela afirmação, como realmente é necessário segundo o grau da potência, assimiladora do espírito, da sua "força digestiva" para falar usando imagens — e a bem dizer, o espírito tem a maior semelhança possível com um estômago. Assim, também pertence a esse capítulo a vontade que o espírito demonstra em muitas ocasiões de deixar-se enganar, talvez com um pressentimento irônico que a coisa não seja mesmo assim, mas que se deseja que sejam assim num dado momento, a satisfação de se mover na incerteza e no equívoco, um sentimento de júbilo interior pelo restrito e secreto de um desvão, por aquilo tudo que é demasiado próximo ao "proscênio", por tudo aquilo que é aumentado, diminuído, embelezado, afastado, uma satisfação pela arbitrariedade de todas estas manifestações da força. Enfim qual a necessidade de considerar aquela premência inquietante que possui o espírito de enganar outros espíritos e de simular diante do mesmo a pressão, a centelha perene de uma força criadora, plasmadora e mobilíssima; com isso o espírito saboreia a volúpia da multiplicidade — precisamente suas artes de Proteus são sua melhor defesa e esconderijo! Contra esta vontade da aparência, da simplificação, da máscara, do manto, em suma, do superficial — já que cada superfície é um manto, — reage a inclinação sublime do vidente, que toma e quer tomar as coisas profundamente, multiplamente, radicalmente, uma espécie de crueldade da consciência e do gosto intelectual que cada valoroso pensador encontrou em si mesmo, sempre que, como é conveniente, acurou o olhar e se submeteu a uma disciplina rigorosa, e mesmo a palavras severas. Ele dirá: "há algo de cruel na inclinação do meu espírito" — tentem os amáveis e virtuosos a levá-lo a cabo! Seria realmente mais gentil, se em lugar da crueldade pudesse ser contatada, imputada, louvada qual. quer outra coisa de nós, por exemplo, uma retidão exuberante" — a nós espíritos livres, muito livres. E esta será, forçosamente, nossa ... glória póstuma! Entretanto — até aquele dia é longa a espera seremos os últimos a nos sentirmos disposição no adorno daquelas quinquilharias morais: todo trabalho feito sem que se tenha considerado esse gosto e sua alegre opulência. São palavras belas, reluzentes, sonoras, festivas: retidão, amor à verdade, amor à sapiência, sacrifício pelo conhecimento, heroísmo da sensibilidade. Faz pulsar o coração com orgulho! Mas nós, eremitas e marmotas, estamos convencidos no íntimo de nossa consciência de eremitas que mesmo essa pomposidade de palavras pertence ao antigo conjunto de mentiras da inconsciente vaidade humana e que mesmo sob estas cores lisonjeiras o terrível texto fundamental "homo natura" sempre deve ser lembrado. Retraduzir o homem em a natureza, tornar-se senhor de muitas interpretações vãs e sentimentais e dos sensos ocultos, do que até agora foi recoberto como que por um estrato de seixos e pelo eterno fundamental "homo natura", tornar possível que de ora em diante o homem esteja diante do homem como atualmente, endurecido na disciplina da ciência, diante outra natura, com olhos impertérritos de Édipo, com as orelhas tapadas de Ulisses, surdo às lisonjas de todos os pássaros metafísicos, que não cessam de cantar: "és mais, mais alto, és de outra origem!" — eis nossa incumbência. Tarefa estranha e maluca, mas sempre uma tarefa — quem poderia negá-lo? Por que nós o escolhemos, esse dever insólito? Ou ainda, modificando a pergunta: "Por que ambicionar o conhecimento a todo custo?" — E nós, colocando as coisas às claras, nós que nos propusemos milhares de vezes a mesma pergunta, não encontramos uma resposta melhor. 231 O estudo nos transforma da mesma maneira que a alimentação, a qual não nos conserva unicamente em vida, como diz o fisiólogo. Mas no fundo de nós mesmos, bem no fundo, há seguramente alguma coisa que não se pode ensinar, um fato espiritual granítico, com resoluções e respostas antecipadamente determinadas frente a certas questões antecipadamente escolhidas. Em cada problema fundamental fala um imutável: "isto sou eu": a respeito do homem e da mulher, por exemplo, um pensador não pode mudar o curso de suas ideias, mas só o estudar a fundo, descobrir as últimas consequências daquilo que nele já é preestabelecido. Descobrem-se, por exemplo, soluções de problemas, nos quais precisamente nós acreditamos intensamente: talvez os chamemos sem mais, nossas convicções — Mais tarde, nas mesmas, vemos apenas sombras que conduzem ao conhecimento de si mesmo, pedras milenares no caminho da solução dó problema de que somos nós, ou mais precisamente ainda, do grande vazio que nós somos, do nosso destino espiritual, daquilo que no fundo de nós não podemos ensinar. Graças a esse cumprimento que fiz também a mim mesmo, talvez me seja permitido exprimir algumas verdades acerca da mulher em si, tanto mais que como já se sabe, essas verdades são apenas — as minhas verdades. 232 A mulher quer fazer-se independente e para começar quer mostrar aos homens o modo de ser da "mulher em si", este é um dos mais odiosos progressos do embrutecimento da Europa. Porquanto como coisas grosseiras expõem à luz estes experimentos pesados da ciência da mulher, que quer desnudar-se! A mulher tem tantos motivos para ser pudica: na mulher há tanta pedanteria, tanta superficialidade, tanta superabundância de coisas aprendidas na escola, de coisas presunçosas, desenfreadas e imodestas — observando-se apenas as relações da mulher com as crianças! — tanta coisa que conservaram apenas por medo do homem. Ah! se o eterno enfadonho na mulher — que não é bem-dotada — devesse desaparecer, se a mulher devesse começar a extirpar radicalmente a sua judiciosidade e as suas artes, que são a graça, o querer, a dissipação dos cuidados, o tornar a vida fácil. o ensinar a torna-la com leviandade: se devesse, finalmente, ex. terminar sua capacidade de causar paixões agradáveis! Ouve-se já um clamor de vozes femininas que, por Santo Aristófanes! mete medo, ouvem-se ameaças de precisão médica acerca daquilo que a mulher em primeiro e em último lugar exige do homem. Não é indício de falta de gosto se a mulher se torna tão científica? Até agora, graças a Deus, o explicar era assunto de homens, dom dos homens e permanecia, assim, "entre eles". De resto, considerando tudo aquilo que as mulheres escrevem acerca da "mulher" é lícito duvidar que a mulher queira se explicar — ou que possa querelo. Ou ainda, e preferivelmente, se com isso a mulher não busca um novo adorno — parece-me que enfeitar-se faz parte integrante do "eterno feminino". Nesse caso quer inspirar pavor de si mesma, e com isso. talvez, conquistar o poder. Mas não quer a verdade: que importa a verdade para as mulheres? Nada, desde que o mundo é mundo, foi mais estranha às mulheres, mais antipática, mais adversa que a verdade; sua grande arte consiste na mentira, o que mais a preocupa é a aparência, é a beleza. Confessemo-lo, nós, homens, amamos precisamente esta arte, este instinto nas mulheres, nós que somos pesados, e que para nossa recreação acompanhamos voluntariamente a seres, sob cujos dedos, olhares, entre cujas ternas maluquices a nossa seriedade, a nossa profundidade assumem o aspecto de uma grande tolice. Finalmente, pergunto, houve algum dia mulher que concedesse profundidade a uma cabeça feminina, justiça a um coração de mulher? E não é talvez verdadeiro que, em termos gerais, que quem demonstrou maior descaso pelas mulheres sempre foram as próprias mulheres? — Não certamente nós, homens. — Nós, homens, desejaríamos que a mulher não continue a comprometer-se pelo lume do progresso; do mesmo modo que se deve à previdência e ao consentimento do homem se a Igreja decretou: mulier taceat in ecclesia! Foi para vantagem das mulheres que Napoleão disse à demasiado loquaz madame De Staêl: “mulier taceat in politicisf” e eu sustento que é um verdadeiro amigo das mulheres aquele que atualmente as aconselha: mulier taceat de muliere. 233 É um indício de corrupção dos instintos — sem falar da corrupção do gosto — se a mulher se comporta como a madame Roland, ou senhora De Staêl, ou ainda como o senhor George Sand, como se com isso pudesse provar algo em favor da mulher. Para nós, homens, as três citadas são as mulheres cômicas por excelência — nada além! — e fornecem precisamente os melhores, posto que involuntários, argumentos contraditórios contra a emancipação e autonomia das mulheres. 234 A estupidez na cozinha, a mulher cozinheira, a incrível inconsciência que preside à alimentação da família e do seu chefe! A mulher não compreende o que significa a alimentação: e quer ser cozinheira! Se a mulher fosse uma criatura pensante teria descoberto "na sua qualidade de cozinheira" há milhares de anos os maiores fenômenos fisiológicos e teria sido capaz de ter obtido o monopólio da medicina! Por culpa das péssimas cozinheiras — pela falta absoluta de racionalidade na cozinha, o desenvolvimento do homem foi, principalmente, impedido e danificado mais que por qualquer outra causa e mesmo hoje melhoramos pouco no que concerne este assunto. Este sermão é dirigido aos estudantes de cursos superiores. 235 Existem perífrases, espirituosidades, sentenças, pequenos grupos de palavras, nos quais se cristaliza inesperadamente toda uma civilização, toda uma sociedade. Servem de apoio à minha assertiva as palavras da senhora De Lambert a seu filho: "Mon ami, ne vous permettez jamais que des folies, qui vous fassent grand plaisir" — cá entre nós, as mais maternais e mais acertadas palavras que um filho jamais ouviu. 236 Aquilo que Dante e Goethe acreditaram relativamente às mulheres, aquele quando cantou "ella guardava suso, ed io in lei", este, quando traduziu livremente aquele verso como "eterno feminino que nos alevanta" — não duvido que toda mulher não vulgar evitará aprovar isso, uma vez que ela acredita precisamente o mesmo do eterno masculino... 237 Sete aforismos sobre mulheres. O mais pesado aborrecimento desaparece quando um homem se lança a nossos pés. A idade e a ciência dão força à fraca virtude. Roupa negra e discrição tornam distinta qualquer mulher. A quem devo estar reconhecida pela minha felicidade? A Deus e... à minha modista. Jovem, antro guarnecido de flores; velha — uma víbora surge do antro. Nome sonoro, pernas bem-feitas e um homem — ah, quem me dera! Em poucas palavras, muito sentido — aqui me escapa a burrice. 237-bis As mulheres foram tratadas pelos homens, até agora, como pássaros que tivessem caído de alguma árvore de sua vizinhança, como algo delicado, fácil de desgastar-se, de selvagem, extravagante, doce, encantador, mas também como algo que precisa ser preso para que não alce voo. 238 Envolver-se no problema fundamental "homem-mulher", negando o abismo do antagonismo, a necessidade de uma tensão perenemente inimiga entre os dois sexos, sonhando direitos iguais, educação igual, aspirações iguais e mesmos deveres — é o indício certo de mente superficial e de um pensador que se mostrou superficial frente a esse escolho perigoso — superficial no instinto! — pode, circunstanciadamente, ser suspeita, antes de ter se revelado, traído — provavelmente em todas as questões fundamentais da vida, mesmo na vida futura, será sempre curto e as profundezas não lhe serão acessíveis. Por outro lado, um homem profundo no espírito e nos seus apetites, mesmo quando possua aquela profundidade da benevolência que facilmente se troca pelo rigor e severidade, pensará a mulher sempre segundo os orientais! deverá concebê-la como sua propriedade que terá direito de manter sob chaves, como algo predestinado a servir e que no servir atinge a própria perfeição — apoiando-se nisso à imensa racionalidade asiática, a superioridade dos instintos asiáticos, como já fizeram os gregos, os melhores discípulos e herdeiros da Ásia, os quais, como é sabido, desde os tempos de Homero aos de Péricles, fizeram caminhar pari passu com o progresso da cultura e acréscimo de vigor, o rigor para com a mulher, isto é, orientalizaram-se sempre mais. E isso foi necessário, lógico, humanamente desejável. Pense-se no assunto que vale a pena. 239 O sexo frágil nunca foi tratado com tantos cuidados pelo homem como em nossa época — isto é parte da inclinação e do gosto fundamentalmente democrático, como ainda a falta de respeito com a idade — que há de surpreendente em abusarmos de tais cuidados? Mas se exige mais, se aprende a exigir, acabaria por ver uma ofensa em cada tributo de estima, porque preferiria a concorrência, antes a luta pelos direitos, resumindo, a mulher está perdendo o seu pudor. Descobrimos de repente que vai perdendo também o gosto. Deixa de temer o homem, mas a mulher que “não mais sabe temer" renuncia aos seus instintos mais genuinamente femininos. Que a mulher destemerosa avance, quando, é transcurado tudo aquilo que inspira temor no homem, digamo-lo mais claramente, quando por todos os modos se impede o homem de ser homem. torna-se então compreensível e compatível; o que é mais difícil de compreender é que até para isso a mulher... degenera. E isto acontece hoje, não nos iludamos a respeito! Onde quer que o espírito industrial tenha obtido primazia sobre o espírito militar e aristocrático, a mulher tende a conquistar a independência econômica e legal de um operário, a mulher operária nos aguarda na soleira da sociedade que principia a formar-se. Enquanto essa se apossa de novos direitos tende a se tornar "senhora" e escreve sob a bandeira da "emancipação" das mulheres e consegue com precisão incrível precisamente o contrário: a mulher regride. Depois da revolução francesa a influência da mulher decresceu tanto quanto cresceram suas pretensões e a emancipação da mulher enquanto é querida pelas mulheres (e não sã por machos cretinos) revela-se como um sintoma curioso do progressivo debilitamento e obtusidade dos instintos essencialmente femininos. Há estupidez nesse movimento, uma estupidez quase masculina da qual toda mulher bem constituída e inteligente deveria envergonhar-se, envergonhar-se de perder o olfato que indica qual o terreno mais apropriado para conseguir a vitória, transcurar o exercício das armas que lhe são próprias, acanalhar-se diante do homem para chegar "até o livro", enquanto antes procurava a educação severa e a humildade astuta: tentar demolir a crença do, homem num ideal fundamentalmente diferente do seu, que se oculta na mulher, a sua fé no eterno; tentar dissuadir o homem de que a mulher é uma espécie de animal doméstico, mais delicado, estranhamente selvagem e por vezes agradável, o qual deseja proteção, acarinhamento, acumular tendenciosamente todos os títulos de escravidão, aos quais na ordem social vigente até aqui a mulher era submetida e o é ainda (como se a escravidão fosse contrária e não uma condição necessária de toda cultura mais elevada, de toda elevação na cultura), que significa tudo isso sendo uma ruína dos instintos femininos, uma desfeminilização? É bem verdade que existem muitos amigos e corruptores imbecis das mulheres entre os doutos asnos do gênero masculino, que sugerem às mulheres que deixem sua feminilidade e imitem todas as tolices, que na Europa debilitaram o homem, a virilidade europeia — que desejam fazer a mulher descer ao nível da cultura geral, à leitura dos jornais e à política! Em certos casos se deseja torná-la espírito livre, literata; como se uma mulher para um homem profundo e ateu não representasse algo repugnante ou ridículo; quase em toda parte são corrompidos os seus nervos com a música mais mórbida e mais perigosa que nenhuma outra (com a nossa música alemã mais recente) e se tornam cada dia mais histéricas e menos adequadas para sua primeira e última missão, que é a de colocar no mundo filhos sãos. Geralmente se deseja torná-la "incivil" ou adotando as suas palavras, tornar forte o sexo frágil através da cultura, como se a história não mostrasse que civilização e enfraquecimento — isto é, desagregação, enfraquecimento, e morbidez da força da vontade, sempre andaram de mãos juntas e que as mulheres mais poderosas e influentes do mundo (a última, mãe de Napoleão) deviam a sua potência e a sua influência sobre os homens precisamente à força da própria vontade — e não aos professores. Aquilo que na mulher inspira respeito e não raramente temor é a sua natureza, que é muito mais natural que a do homem, a sua mobilidade, a agilidade da verdadeira besta fera, a unha felina que esconde, sob a luva perfumada, seu egoísmo ingênuo, sua inépcia em ser educada, o seu ser intimamente selvagem, o inconcebível, a ilimitada mobilidade de suas paixões e virtudes... o que inspira piedade por esse felino perigoso que chamamos "mulher" é que ela é mais sujeita a ;sofrer, mais sensível, mais amorosa e condenada às desilusões mais que qualquer outro animal. Temor e piedade, eis os sentimentos que o homem experimenta até agora diante da mulher, sempre com um pé na tragédia, cuja desventura também entusiasma? E agora tudo isso deve ser acabado? Estuda-se o rompimento do encanto das mulheres? E se está formando, pouco a pouco, o mais enfadonho dos seres? Oh! Europa! Europa! Conhecemos muito bem esse animal de cornos que preferisses a todos os outros e que ainda pode ser perigoso para ti! A velha fábula poderia ainda tomar-se "história" ainda uma vez a desmesurada imbecilidade poderia apossar-se de ti e transtornar-te! Com a diferença de que aquela imbecilidade não servirá de máscara a um Deus, mas apenas a uma "ideia" e a "uma ideia moderna"! OITAVA PARTE POVOS E PÁTRIAS 240 Ouvi, de novo pela primeira vez, a ouverture dos "Mestres Cantores" de Wagner; é uma arte estupenda, pomposa. pesada e tardia que para ser compreendida pretende ser necessário dois séculos de música — que honra para os alemães que este cálculo tenha se mostrado incorreto. Quantos sucos, quantas forças, quantas estações e quantos climas foram misturados! Como essa música que parece por vezes antiga, por vezes estranha, acerba e juvenil, ao mesmo tempo arbitrária e pomposamente tradicional, por vezes maliciosa e mais frequentemente rude e grosseira, tem fogo e coragem e ao mesmo tempo a pele acinzentada e descolorida das frutas amadurecidas depois do tempo! É uma corrente que escorre lenta e majestosa; repentinamente há uma hesitação inexplicável, semelhante à lacuna entre causa e efeito, uma opressão que faz sonhar, quase um incubo — mas eis que novamente a corrente se alarga reproduzindo aquela sensação de bem-estar múltiplo da antiga e nova felicidade que o artista experimenta por si mesmo, que não quer esconder, de uma felicidade consciente e ainda surpresa da maestria dos meios por ela empregados, dos meios novamente encontrados e não completamente experimentados, como ele deseja fazer compreender. Numa palavra, nenhuma beleza, nada de meridional, nada da delicada clareza do céu do sul, nenhuma graça, nenhuma dança, apenas um pouco de vontade lógica. Diria quase um pesadume, ainda que sublinhada como se o artista quisesse fazer compreender que é desejada, uma roupa pesada, algo de originalmente bárbaro e solene, uma confusão de coisas preciosas, doutas e veneráveis, algo de alemão no melhor e no pior significado da palavra, algo de múltiplo, informe, inexaurível à moda alemã, uma certa superpotência alemã da alma, que não teme ocultar-se sob os refinamentos da decadência, sob os quais sente-se melhor que em qualquer outra parte, verdadeira característica da alma alemã, ao mesmo tempo jovem e decrépita, muito débil e exuberante de porvir. Esta música exprime perfeitamente aquilo que penso dos alemães, tem um anteontem e um depois de amanhã não possuem um hoje. 241 Nós, bons europeus, também nós, temos nossos momentos de abandono ao nosso patriotismo e volta aos velhos amores e aos antigos horizontes restritos — forneci as provas disso há pouco — momentos de efervescência, de opressão patriótica e de tantos outros sentimentos envelhecidos. Inteligências mais pesadas que a nossa levariam mais tempo para digerir o mesmo que para nós bastam poucas horas, alguns dispenderiam alguns anos, metade da vida, segundo sua força digestiva, de sua capacidade de "troca de matéria". Sim, posso imaginar obtusas raças hesitantes, as quais mesmo em nossa Europa. rápida nos seus movimentos, requereriam séculos para superar certos acessos atávicos de patriomania e de fixação à terra onde nasceram e retomar novamente à razão, isto é, ao "bom europeísmo". E enquanto divago acerca dessa possibilidade, me é dado assistir, testemunho auricular, a uma conversa entre dois velhos patriotas — e que, segundo parece, não possuíam bons ouvidos posto discutirem em voz muito alta. "Aquele entende tanto de filosofia e tanto se dedica a sabe-la quanto um aldeão ou um estudante que faz parte de uma conspiração", dizia um deles — é ainda uma inocente, mas que importa isto, agora? Estamos no tempo das massas e estas se atiram ao solo diante de qualquer coisa que seja maciça. E isso também em política. Um estadista que levante diante de seus olhos uma nova torre de Babel, qualquer conglomerado monstruoso de império e de potência para o povo é um homem grande; que importa, se nós mais prudentes e reservados, não queremos abdicar por enquanto da antiga crença, que apenas a grandeza da ideia possa conferir grandeza a um fato concreto. Supondo-se que um estadista deva conduzir seu povo a uma política grande, para a qual pela sua natureza não tem nenhuma atitude, nem está preparado, de modo que seria obrigado a sacrificar sua antiga e segura virtude a uma nova e ambígua mediocridade — supondo que um estadista condenasse seu povo em geral a fazer política, enquanto esse até agora tinha coisas mais interessantes a fazer e não pode no fundo da alma libertar-se de uma certa náusea pela irriquietude, pela completa falta de ideias, pelas discórdias sem sentido que caracterizam os povos precipuamente politiqueiros, supondo que um tal estadista agite as paixões e os apetites adormecidos de seu povo, fazer como que pareça uma mancha a sua timidez e sua inclinação a manter-se à parte, atirar-lhe no rosto como uma culpa a sua propensão pelo estrangeirismo, o seu secreto cosmopolismo, supondo que ridicularize tudo aquilo, tudo pelo que seu povo é levado, que dome seu espírito impondo um gosto nacional, tornando seu espírito severo — e, um estadista que fizesse tudo isso empenhando para tanto o futuro de seu povo, supondo que haja um futuro, tal estadista seria “grande”? "Com certeza", responde o outro com veemência, "doutro modo como teria podido fazer tanto! Talvez tenha sido loucura querer tal coisa, mas talvez, nas origens, grandeza não tenha sido mais que loucura!" Abuso de palavras! — exclamou o seu interlocutor forte, forte, forte e louco, mas não grande! Os dois velhos tinham se exaltado, lançando-se à face tais verdades, mas, eu na minha beatitude, enquanto isso, calculava o tempo que seria necessário para outro homem mais forte triunfar sobre esse homem forte e pensava que por uma lei de compensação a superficialidade de um povo serve para o aprofundamento de um outro. 242 Deseja-se chamar "civilização" ou ainda "humanização" ou melhor ainda "progresso" àquilo em que hoje se vê um título de distinção para os europeus; chamemo-lo simplesmente, sem loas e sem grita, como uma forma política, o movimento democrático europeu, atrás dos proscênios morais e políticos, a que se referem tais fórmulas, é cumprido um progresso "fisiológico" imenso, que cresce cada vez mais — um processo de assimilação de todos os europeus, seu destaque cada vez maior das condições que devem a sua origem a raças vinculadas ao clima e às classes, uma crescente independência de cada milieu determinado que gostaria de imprimir-se no corpo e na alma com postulados seculares — pois o advento graduado de uma espécie de homem supernacional e nômade, a qual, falando fisiologicamente, possui um máximo de arte e de força de adaptação como característica típica. Este processo do europeu em formação, o qual pode ser retardado, no seu tempo de grandes recaídas, mas que precisamente por isso ganhará em força e profundidade — mencione-se aqui, entre os sentimentos hostis, o furacão da sentimento que ainda faz furor e também o anarquismo que está para chegar, este processo terá provavelmente resultados, que seus admiradores e mantenedores, os apóstolos das ideias modernas, são os últimos a prever. As mesmas novas condições que serviram para mediocrizar o homem, a criar um homem de rebanho, útil, laborioso, capaz de muitas coisas — são capazes no mais alto grau a gerarem homens excepcionais, da qualidade mais perigosa e atraente. Esta força de adaptação, que atravessa condições incessantemente em mudança, e que começa um novo trabalho a cada geração, a cada quase dez anos, torna impossível a potência do tipo, enquanto o conjunto de impressões que constituirão o europeu do futuro será a dos trabalhadores múltiplos, loquazes, parcos de vontade e muito maleáveis, que têm necessidade de um patrão, como o pão cotidiano, e assim, enquanto a democratização da Europa tende à formação de um tipo especialmente preparado para a servidão, em casos singulares e excepcionais, o homem forte surgira mais forte e mais completo do que conseguiu ser até agora — em razão de sua educação despreconceituosa, da sua imensa diversidade de atividades, de talentos e simulação. Ousarei afirmar que a democratização da Europa é ao mesmo tempo uma preparação involuntária à formação de tiranos tomando essa palavra em todos os sentidos e até no mais espiritual. 243 Ouvi prazerosamente que nosso sol se desloca velozmente para a constelação de Hércules e quero esperar que também o homem desta Terra imite o Sol, e nós, nós bons europeus, antes de ninguém! 244 Houve um tempo em que se estava habituado a chamar profundo aos alemães a título de distinção. Agora são muitas outras as pretensões do espírito alemão. É quase atual e patriótico perguntar-se se este antigo elogio não foi mais que um erro, numa palavra, se a profundidade alemã não é na verdade outra coisa e mais ainda, uma qualidade de quem, felizmente, estarmos a ponto de nos livrar. De todos os disfarces que hoje é capaz o alemão talvez seja o mais perigoso e o mais bem conseguido essa honradez alemã, servil, comunicativa, que coloca sempre as cartas sobre a mesa, este é seu, talento mefistofélico e que pode "levá-los adiante". O alemão é desenvolto, olha com seus olhos alemães, impolutos, azuis e vazios e o estrangeiro o confunde com sua bata. O que quero dizer é que seja lá o que for a profundidade alemã (aqui entre nós podemos nos rir dela) faremos bem em salvaguardar a honorabilidade de sua aparência e de seu bom nome sem mudar demasiadamente nossa velha reputação de nação profunda pela mordaz energia prussiana pela mentira berlinense, e o sabre de Berlim. É prudente para uma nação fazer-se passar por profundo torpe, bonachona, honrada, inábil, talvez seja até mais profundo. Um alemão que tivesse a audácia de firmar: "duas almas, ai de mim! se albergam em meu peito" se enganaria grandemente no número, erraria por muitas almas. Sendo, como povo, uma miscelânea, uma mistura monstruosa de raças, talvez com uni excesso preponderante de elementos préarianos, um povo do meio, em todos os sentidos, os alemães são os seres mais escorregadios, mais vastos, mais contraditórios, mais incógnitos, mais imponderáveis, mais estupefacientes ainda para si mesmos, mais que qualquer outro povo possa sê-lo: subtraem-se a qualquer definição e são, precisamente por isso, a causa de desespero dos franceses. É característica dos alemães a atualidade da questão sobre o que é "alemão". Kotzebetie conhecia, é preciso admiti-lo, muito bem os seus alemães, descobriu-nos, rejubilaram-se aclamando-o, mas também Sand1 sustentava conhecê-los. Jean Paul Richter sabia o que fazia quando se declarou contrário às adulações e exageros mendazes, mas patrióticos de Fichte — mas é presumível que Goethe pensasse diferentemente de Jean Paul muito embora pudesse ter-lhe dado razão quanto a Fichte. O que terá pensado Goethe dos alemães? Ademais, ele nunca se expressou claramente sobre muitas coisas que estavam a seu redor e soube fazer um tesouro do provérbio — o silêncio é de ouro; talvez tivesse boas razões para agir assim. O que é certo é que não ocorreram guerras de libertação a atrapalhar lhe a visão, nem a revolução francesa — a ocorrência que fez com que mudasse de plano toda a concepção de seu Fausto, e acima de tudo pelo problema do homem, foi a aparição de Napoleão. Foram conservadas palavras de Goethe com as quais se expressa, com dura impaciência contra aquilo que então constituía o orgulho de todo bom alemão; o célebre "Gemut" alemão, ele o definia como indulgência pelas fraquezas alheias e pelas próprias. Teria errado? É característico dos alemães que se enganem completamente quando julgam a si mesmos. A alma alemã tem corredores e galerias, cavernas, esconderijos, recessos secretos, sua desordem tem algo de misterioso que atrai, o alemão conhece bem as vias tortuosas que levam ao caos. E como cada coisa ama aquela que se lhe assemelha, o alemão gosta da névoa e tudo que é pouco claro, que está em vias de formação, que é crepuscular, úmido, coberto. Acha profundo o incerto, aquilo que ainda está no estágio de formação, que se esconde, que está crescendo. O alemão propriamente dito não existe ainda, está se tornando, está "se desenvolvendo". A "evolução" é, portanto, o verdadeiro achado alemão no reino das fórmulas filosóficas — um conceito dominante que, graças à aliança entre cerveja e música alemã, está em vias de germanizar a Europa. Os estrangeiros ficam maravilhados e encantados diante dos problemas que coloca à escolha a natureza contraditória que forma o fundo da alma alemã (problemas sistematizados por Hegel, musicados por Wagner). "Bons e pérfidos". — Este contrassenso relativamente a todo outro povo é por demais justificado na Alemanha, tente-se viver algum tempo entre os suecos. O pesadume da douto alemão, a sua torpeza em sociedade, combinam-se admiravelmente bem com acrobacias interiores, com uma audácia leve que os deuses já aprenderam a temer. Para demonstrar ad oculos a alma alemã, basta observar o gosto, a arte, os costumes alemães: que indiferença campesina pelo bom gosto! De que modo são mescladas as coisas nobres e as vulgares! Quão desordenada e, portanto, rica é a economia doméstica daquela alma! O alemão arrasta a própria alma, como faz com todas as ocorrências da vida. Digere mal, não termina nunca sua digestão: a profundidade alemã é apenas uma digestão lenta. E do mesmo modo que os doentes crônicos, todos os dispépticos, amam a comodidade, o alemão ama a “sinceridade” e a “retidão”; como é cômodo ser sincero e reto. Ponhamo-nos, portanto, a modificar nosso pensamento acerca da profundidade alemã, e para tanto esta análise, esta vivissecção da alma alemã. A alma alemã é complexa, de origem múltipla, um agregado, uma sobreposição de almas antes que um verdadeiro edifício, isto depende de sua extração! Enfim, é preciso honrar o próprio nome, não é por acaso que se chama o povo "tiusche" (Alemão antigo, o povo que engana). 245 O bom tempo antigo acabou, com Mozart extinguiu-se o último canto — quão felizes somos nós que ouvimos falar ainda de seu rococó, sua "boa sociedade", seu terno sentimentalismo, seu amor infantil pelo gosto chinês, pelas filigranas, a cortesia de seu coração, sua raiva do terno, do enamorado, do bailarino, do lacrimoso, de sua fé no céu meridional, fazendo um apelo aos traços disto em nós! Ah! Virá um tempo em que tudo estará acabado! — mas é indubitável que ainda antes teremos deixado de compreender e de gostar de Beethoven — que não foi mais que o último eco de uma passagem. de uma. interrupção de estilo e não como Mozart o eco de um gosto europeu que durou séculos. Beethoven é um incidente entre uma alma velha, gasta, que se esfarrapa continuamente e uma alma ébria de juventude e de futuro que chega continuamente; sobre sua música se estende a luz crepuscular de perenes renúncias e imensas e renascentes esperanças — a mesma luz que inundava a Europa quando sonhou com Rousseau, quando dançou ao redor da árvore da liberdade da revolução e quando se prosternou quase em adoração a Napoleão. Mas agora, quão rapidamente empalidece esse sentimento, quão difícil é conhecer por si mesmo um tal sentimento — quão estranha soa hoje a nossos ouvidos a linguagem dos Rousseau, dos Schiller, dos Shelley, dos Byron que foram os arautos deste destino da Europa que Beethoven soube cantar! A música alemã de depois pertence ao romantismo, isto é, a um movimento historicamente ainda mais curto, mais fugaz, mais superficial do que aquele grande intermezzo, que assinala a transição da Europa de Rousseau à de Napoleão e ao advento da democracia. Weber? Mas o que significam para nós o Freyschutz e Oberon? Ou ainda Hans Heiling e o Vampyr, de Marschner? Ou ainda o Tannhauser de Wagner! É uma música remota, admitindo-se que não tenha sido esquecida. E, além disso, toda a música do romantismo não era uma música suficientemente aristocrática para poder impor-se em qualquer parte que não fosse o teatro e diante da multidão; era por si mesma música do segundo grau, que entre os verdadeiros musicistas gozava de pouca consideração. Mas as coisas são bem diferentes quanto a Félix Mendelssohn, o alciônico maestro que pela sua alma mais leve, mais fina, mais felizmente dotada, foi rapidamente venerado e da mesma forma esquecido: ele representa o belo Incidente da música alemã. Quanto a Robert Schumann que tomava as coisas seriamente e que desde o princípio foi acolhido gravemente também, foi o último a fundar escola — não parece hoje felicidade, uma liberação, um despertar de pesadelo, ter superado o romantismo de um Schumann? Schumann refugiado na "Estação suíça" de sua alma dotada de uma índole que tinha elementos de Werther e de Jean Paul, mas certamente não de Beethoven e nem mesmo de Byron, sua música do Manlredo é tão dissonante do assunto que assemelha-se a um delito — Schumann com o seu gosto, que no fundo era gosto pequeno (isto é, de uma propensão perigosa e entre os alemães dubiamente perigosa ao lirismo silencioso e ao embriagamento sentimental) que timidamente se lhe opunha, transbordante de nobre ternura, festivas orgias de alegria e dor anônimas, mais infantil que adulta, um não me toques desde o princípio, este Schumann não representou na música mais que um acontecimento alemão, não uma ocorrência europeia, como Beethoven ou ainda em maior grau, Mozart — com ele a música alemã foi ameaçada pelo maior dos perigos, o de, deixar de ser a expressão da alma europeia tomando-se uma fantasia nacional. 246 Que martírio são os livros escritos em alemão para quem possui uma terceira orelha. Com que desdém atravessará o pântano de palavras sem som, de ritmos sem dança, que entre os alemães chama-se livro! E ainda o alemão que lê um livro! Quão mal lê, nitidamente com repugnância! Quantos são os alemães que sabem, que pretendem saber, que em toda boa frase há arte, arte que requer ser adivinhada quando se quer compreender a frase? Um mal-entendido no tempo, por exemplo, e o sentido da frase é perdido! Que não seja lícito ter dúvidas acerca das sílabas que decidem o ritmo, que a ruptura de uma simetria por demais rigorosa deva ser coisa desejada, como um atrativo, que a cada "staccato", a cada "rubato" se deve manter paciente o ouvido atento, que os sentidos devam concentrar-se na sucessão das vogais e dos ditongos, pela delicadeza e riqueza de tons que assumem enquanto se sucedem? Quem, entre os alemães que leem, tem suficiente boa vontade para reconhecer em quem lê tais deveres e tais postulados e perceber toda a arte e intenção postas na língua? Resumindo, se falta ouvido para tudo isso e assim passam inadvertidos os maiores contrastes do estilo, e então, os artifícios mais sublimes são prodigalizados aos surdos. Estes pensamentos me ocorreram quando me deparei com as palavras que trocaram, canhestra e ingenuamente, dois mestres da prosa: um, com palavras que destilam lenta e frias como de uma caverna úmida — porque frisa seu som surdo e a sua ressonância — com um outro, que maneja a língua como espada flexível e que de seu braço até a extremidade de seu pé sente o fascínio perigoso da lâmina rápida e aguda que quer morder, cortar, silvar. 247 Quão pouco o estilo alemão tem a haver com o som e com o ouvido é demonstrado pelo fato de que os melhores entre nossos músicos escrevem mal. O alemão não lê em voz alta, para o ouvido, mas apenas com os olhos; quando lê, substitui suas orelhas pelos olhos. O antigo quando lia — o que acontecia mui raramente — lia para si mesmo, em voz alta, ficava intrigado quando alguém lia em voz baixa e perguntava-se as razões. Em voz alta: isto significa com os crescendo as inflexões, as variações de tom, as alterações de "tempo" em que encontrava prazer o público do mundo antigo. Então, as leis do estilo dos escritores eram idênticas às dos oradores e aquelas leis dependiam em grande parte do maravilhoso desenvolvimento da refinada exigência do ouvida e da língua, em parte devido à robustez, à duração do fôlego do antigo. Um período, segundo os antigos, é antes de tudo um movimento fisiológico, uma vez que abarca apenas um fôlego. Períodos tais quais os encontrados em Demóstenes, em Cícero, duas vezes ascendentes e duas vezes descendentes e tudo no limite de um fôlego, eram prazer para os antigos, que sabiam apreciar a virtude, a raridade, e a dificuldade pela própria experiência, nós, modernos, pensando bem, não temos nenhum direito a períodos grandiosos, nós, de respiração curta em todos os sentidos! O, antigos eram diletantes da arte oratória, todos, sem exceção, e consequentemente conhecedores e por conseguinte, críticos, e com isso levavam aos extremos os seus moradores; do mesmo modo que no século passado, quando todos os italianos e as italianas sabiam cantar, entre eles a arte do canto (e com isso, a melodia) atingiu o ápice. Mas na Alemanha (mesmo nos tempos mais recentes, em que uma espécie de eloquência de tribuna tentou, tímida e desajeitadamente, alçar voo) não houve mais que uma espécie de eloquência pública e aproximadamente artística, a do púlpito. Somente o pregador na Alemanha conhecia o valor de uma sílaba, de uma palavra, sabia quando uma frase bate, salta, precipita, corre, se exaure, ele sobretudo tinha consciência nos ouvidos, mui frequentemente uma má consciência, uma vez que não faltam os motivos se o alemão raramente, ou quase sempre muito tarde atinge a excelência na arte oratória. A maior obra-prima da prosa alemã é, como se convirá, a obra-prima do maior pregador que existiu, a Bíblia é até agora o melhor livro alemão. Em confronto com a Bíblia de Luthero tudo o mais pode ser chamado "literatura" — uma coisa que não cresceu na Alemanha e que, portanto, não criou, nem criará raízes nos corações alemães como o soube fazer a Bíblia. 248 Existem duas espécies de gênio; um que gera e quer gerar, e outro que quer ser fecundado e parir. Entre os povos de gênio alguns receberam a incumbência do problema feminino da gravidez e do trabalho secreto de formar, amadurecer, aperfeiçoar — desta espécie foram os gregos e também os franceses -; os outros são destinados a fecundar e serem a causa de novas ordens de vida — como os judeus, os romanos e talvez também, com toda modéstia, os alemães? Povos dilacerados e extasiados por febres ignotas e impulsos irresistíveis fora de seu ser, enamorados e cúpidos por raças estrangeiras (daquelas que se deixam fecundar) e ao mesmo tempo despótico, como tudo aquilo que sente em si a exuberância da força que “fecunda”, a “graça de Deus”. Estas duas espécies de gênio se procuram, como o macho procura a fêmea, mas não sabem entender-se entre si, como acontece entre macho e fêmea. 249 Cada povo possui sua própria hipocrisia, que chama a sua "virtude". O que existe de melhor neles não se conhece e nem jamais se poderá conhecer. 250 O que a Europa deve aos judeus? Muitas coisas, boas e más, e inicialmente uma coisa que tem do melhor e pior para dar: o estilo grandioso da moral, o terrível e a majestade de postulados imensos, de infinitos significados, todo o romantismo e o sublime dos problemas morais — e consequentemente a parte, mais interessante, embaraçosa e procurada pelo caleidoscópio de seduções da vida, que ilumina com seus últimos clarões a céu, o pôr-do-sol, talvez, de nossa civilização europeia. Nós artistas entre os espectadores e os filósofos nos sentimos reconhecidos por isso — aos judeus. 251 É preciso resignar-se se o espírito de um povo que sofre e quer sofrer de febre nacional e de ambição política é ofuscado algumas vezes por alguma nuvem ou qualquer outra perturbação, se tem, em resumo, qualquer acesso de imbecilidade; assim, por exemplo, os alemães da atualidade cultivaram a demência anti-francesa, outras, a antissemita, a anti-polaca, a romântico-cristã, a wagneriana, a teutônica, a prussiana (como aqueles historiadores cabeçudos: Sybel e Treitschke) — são em suma, pequenos alumbramentos do espírito e da consciência alemã. Mas que se me perdoe, se também eu, depois de uma breve, mas perigosa estada em território muito infecto, não fiquei completamente imune ao contato e comecei, como todos os outros, a ocupar-me de coisas que não me interessavam nem um pouco, primeiro sintoma de infecção política. Por exemplo, a respeito dos judeus, estava a ouvir: — jamais encontrei algum alemão a quem os judeus fossem simpáticos e porquanto se rejeite sistematicamente o antissemitismo propriamente dito pelos assisados e políticos, é preciso lembrar que este juízo, que esta política, não são dirigidos contra a espécie de sentimento por si mesmo, mas sobretudo contra sua perigosa imoderação e precisamente contra o modo infeliz e vergonhoso segundo o qual um tal sentimento se manifesta — sem margem de engano. Que a Alemanha tenha judeus em número suficiente para seu estômago, — o alemão demorará muito para digerir a quantidade de judeus de que atualmente está provido — como já o fizeram os italianos, os franceses, os ingleses, graças à sua digestão mais robusta — eis o que diz claramente a voz do instinto universal, da qual preciso ouvir o aviso. "Não se permita o ingresso de outros judeus na Alemanha! E que lhes seja fechado principalmente o Império do Oriente (e a Áustria). Isto exige o instinto de um povo, cuja índole ainda é fraca e pouco determinada, para que possa ser facilmente absorvida, cancelada por uma raça mais forte. Mas os judeus são incontestavelmente a raça mais vigorosa, mais tenaz e mais genuína que vive na Europa, sabem caminhar nas piores condições (e talvez muito melhor que em condições favoráveis) e isto quanto a tais virtudes, que atualmente se pretende tomar por vícios, em termos de uma fé resoluta, que não tem necessidade de envergonhar-se diante das "ideias modernas", mudam, quando e se se mudam, sempre do mesmo modo que o império russo — Império que tem muito tempo diante de si e que não data de ontem — alarga suas conquistas, quer dizer: "o mais lentamente possível"! Um pensador que fosse responsável pelo futuro da Europa, em todos os seus projetos deveria incluir os judeus e os russos, fatores seguros e prováveis na liça, no grande confronto de forças. Aquilo que hoje é dito "nacional" é antes de tudo "res facta" antes que "res nata" (e que, maldição, assemelhasse a uma res ficta et picta) é de qualquer modo algo que está sendo formado, uma coisa jovem, fácil de ser mudada, mas não ainda uma raça e menos ainda qualquer coisa de aeree perennius, como são os judeus; essas nações devem evitar qualquer concorrência de hostilidade entre elas! Que os judeus se quisessem e fossem constrangidos como parece que o querem fazer os antissemitas poderiam ter o predomínio, literalmente dominar a Europa, é indubitável, talvez não ambicionem tal predomínio. Por ora pedem e desejam, com uma certa insistência, a absorção na Europa, têm sede de ter uma demora estável para que possam ser tolerados, respeitados em qualquer lugar, de pôr fim à sua vida nômade, ao "judeu errante" e seria necessário considerar seriamente tal desejo, tal tendência (significando por si mesma um amolecimento dos instintos hebraicos), talvez ir ao encontro do mesmo, mas para poder fazer isso, seria adequado afastar, de todos os países, os agitadores antissemitas. Dever-se-ia receber os judeus com todas as precauções imagináveis, com um certo espírito seletivo, ao redor, como o fez a nobreza inglesa. É óbvio, que sem temor algum os tipos mais vigorosos e mais sólidos do neo-germanismo poderiam manter relações com os judeus, por exemplo, os oficiais nobres da Marca, seria de grande interesse estudar a mestiçagem do elemento destinado por atavismo ao comando e à obediência — e nas duas coisas o pais citado pode servir de exemplo, clássico — com gênio do dinheiro e paciência (que traria um pouco de espiritualidade, da qual há muita falta no país mencionado). Mas que se me permite truncar minha jucunda divagação patriótica, e que retorne à minha seriedade, ao "problema europeu", como eu o entendo, isto é, da formação da nova casta que reinará na Europa. 252 Não são certamente uma raça filosófica — esses ingleses! Bacon significa um atentado contra o espírito filosófico em geral, Hobbes, Hume, e Locke um aviltamento e um desprezo de mais de um século do conceito do "filósofo". Contra Hume insurgiu-se Kant; quanto a Locke, Schelling pode dizer: "je méprise Locke"; na luta contra o mecanismo brutal da concepção inglesa, estiveram em acordo Hegel e Schopenhauer (com Goethe) esses dois geniais irmãos, inimigos da filosofia, que caminharam rumo aos dois polos opostos do espírito alemão e que se desprezaram apenas como dois irmãos poderiam fazê-lo. O que falta na Inglaterra e sempre faltou, aquele meio comediante e reitor, o insosso fazedor de confusões, Carlyle sabia muito bem, mesmo quando tentava esconder sob os trejeitos apaixonados tudo aquilo que sabia faltar-lhe — isto é, a verdadeira potência da intelectualidade, a verdadeira profundidade do olhar espiritual, logo, a filosofia. É característico de uma raça tão pouco filosófica se prender ao cristianismo com tanta rigidez, a sua disciplina lhe é necessária para tornar-se moral e humana. O inglês, mais triste, mais sensual, mais voluntarioso e mais brutal que o alemão, é também, por ser o mais brutal dos dois, mais religioso que o alemão, posto que o cristianismo lhe é mais necessário. Para quem possui um olfato delicado, esse cristianismo inglês sente ainda o spleen e o extravio alcoólico, contra os quais por certas boas razões isso deve servir de contraveneno, isto é, um veneno mais fina contra um mais grosseiro, na verdade um envenenamento refinado já é um progresso, um passo rumo à intelectualidade num povo rústico. O pesadume e a rústica gravidade são disfarçados e tomados suportáveis, melhor ainda, explicados e transformados pela mímica cristã, pela prece e pelo cântico e para aquele rebanho de animais embriagados que, como nos tempos passados com o metodismo, novamente são ouvidos grunhir com o "Exército da Salvação", pode inclusive acontecer que as colônias penais representem o máximo do "humanismo" que possa ser conseguido, pode-se lhes fazer essa concessão. Aquilo que o ofende mesmo no inglês mais humanizado é a sua total falta de sentimento musical, falando metaforicamente (e sem metáfora). Aos movimentos de sua alma e do seu corpo falta o ritmo do “tempo” e da dança, falta inclusive o desejo de um tal ritmo, da “música”. Que se o ouça quando fala, observe-se o caminhar das mais graciosas inglesinhas — não, nem pombinhas, nem cisnes mais belos que elas — e escute seu canto! Mas, pretendo um pouco mais... 253 Certas verdades são percebidas pelos medíocres primeiramente, porque são mais conformes à sua inteligência e não têm atrativo ou sedução senão para os espíritos medíocres. Se é levado a constatar este fato, por si mesmo pouco confortador, precisamente depois que as mentes de alguns ingleses respeitabilíssimos, mas de inteligência medíocre — designarei Darwin, John Stuart Mill e Herbert Spencer — na média do gosto europeu parecem exercer uma influência preponderante. De fato, quem poderia duvidar da utilidade do aparecimento, a intervalos, de tais espíritos? Seria um erro sustentar que precisamente os espíritos superiores, que tentam sendeiros inacessíveis aos outros, possuam suficiente habilidade para constatar muitos fatos pequenos e vulgares, para tirar deles certas conclusões — pelo contrário. esses são exceções e se encontram numa posição pouco feliz frente à "regra". Além disso, devem fazer outras coisas distintas do apenas conhecer, devem ser, significar, representar novos valores! O abismo que separa o saber do poder é talvez mais profundo e também mais sinistro do que se possa crer aquilo que se ouve do poder, num estilo grandioso, quem tem o espírito que cria, poderá, talvez deva ser um ignorante — posto que as descobertas científicas à Darwin exigem uma certa restrição de vistas, uma certa aridez do espírito, certo pedantismo, muito conforme à índole inglesa. — Não se esqueça que os ingleses, graças à sua profunda mediocridade, ocasionaram uma depressão geral do espírito europeu, as ditas "ideias modernas" ou ainda "ideias do século dezoito", ou ainda "ideias francesas" — isto é, tudo aquilo contra o que o espírito alemão se rebelou com um sentimento de profunda náusea, tem origem inglesa, sem sombra de dúvida. Os franceses nada mais fizeram que macaquear e apresentar as ideias, do mesmo modo que foram seus melhores defensores e infelizmente suas primeiras e mais completas vítimas, depois, a serviço das "ideias modernas" l'âme française acabou por atoleimar-se e desgastar-se a ponto de mais ser reconhecível para quem quer que se lembrasse de sua força antiga, apaixonada e profunda, da sua distinção engenhosa, enfim, de seus séculos dezesseis e dezessete. Mas, seja lá como for, é preciso lembrar desse mandamento da equidade histórica: que a nobreza europeia, aquela do sentimento, do gosto, dos costumes, a nobreza, enfim, no seu mais alto significado, é obra e criação francesa, a vulgaridade europeia, o plebeísmo das ideias modernas é invenção inglesa. 254 Ainda hoje, a França é a sede da cultura mais intelectual e mais refinada da Europa e a alta escola do bom gosto, mas é preciso saber encontrar essa "França do bom gosto". Quem faz parte dela se mantém zelosamente escondido, é composta por um pequeno número de pessoas, talvez não suficientemente seguras sobre suas pernas, na maior parte fatalistas, misantropos, doentes, em parte, ainda, efeminados, refinados, invejosos, que encontram prazer em esconder-se. Mas uma coisa lhes é comum, mantém os ouvidos bem tampados para não ouvir as solenes tolices e o vozeiro vazio do bourgeois democrático. E de fato, a França que se agita no palco é uma França diminuída e grosseira, recentemente, por ocasião dos funerais de Victor Hugo, afogou-se numa verdadeira orgia de mau gosto e, autoglorificação. Também outra coisa lhes é comum: a boa vontade em opor-se à germanização espiritual, e mais ainda, uma absoluta incapacidade de conseguir isso. Talvez neste momento, na França do espírito, que é também a do pessimismo, Schopenhauer seja mais conhecido do que jamais o foi na Alemanha; não falamos de Heinrich Heine que se transferiu para o sangue dos ]!ricos mais refinados e pretensiosos da moderna Paris, ou ainda Hegel que, sob a cobertura de Taine — o maior historiador vivo — exerce uma influência tirânica. E relativamente a Richard Wagner — quanto mais a música francesa tender a identificar-se com as reais necessidades da "Ame moderne" e mais se tornará wagneriana, é correto predizê-lo, isso já acontece em abundância! Restam ainda três coisas que os franceses podem jactar-se de ser seu botim e indiscutível propriedade, aquela característica irredutível de uma superioridade cultural sobre o resto da Europa, e vergonha da voluntária ou involuntária germanização e plebeização do gosto, em primeiro lugar a sua disposição ás paixões artísticas, a adoração da "forma", para a qual foi criada, entre mil outras, a expressão, "l'art paur l'art", isto não faltou na França há já três séculos, e sempre, graças ao respeito que se professa pelo "menor número" é possível, na França, uma espécie de "música de câmara" da literatura, o que não é encontrado em nenhuma parte da Europa. A segunda prerrogativa dos franceses, que lhes confere sua superioridade na Europa é sua antiga múltipla cultura moralista que faz com que, em média mesmo nos "romanciers" dos jornais e dos "boulevardiers de Paris", se encontra uma sensibilidade e uma curiosidade psicológica, de que não se tem ideia na Alemanha (ou menos ainda, uma forma correspondente). Para chegar a isso, faltam aos alemães alguns séculos de trabalho moral, que a França não poupou a si mesma, que por essa razão chamará os alemães de "ingênuos", transformará em louvor os seus defeitos (que coisa contrária à inexperiência, à ingenuidade alemã in voluptate psycholopica, que tem uma afinidade não muito distante com a enfadonha conversa alemã — e como expressão saída da verdadeira curiosidade da imaginação francesa por esse reino de delicados arrepios sirva de exemplo Henry Bayle, aquele singular precursor, que com um "tempo" napoleônico atravessou a sua Europa e percorre muitos séculos da alma europeia, como um descobridor e investigador da mesma, — foram necessárias duas gerações, para poder atingi-la de alguma forma, para remediar alguns dos problemas que, atormentavam e extasiavam aquele curioso epicurista hirto de pontos de interrogações, que foi o último grande psicólogo francês). Mas a França ostenta ainda um terceiro titula de superioridade, na índole francesa se encontra uma síntese suficientemente bem sucedida do norte e do sul, que permite aos franceses compreender e fazer muitas coisas que um inglês não poderia o seu temperamento que periodicamente se volta para o sul e se distancia nesta direção, e no qual de quando em quando transborda o sangue provençal e lígure, preserva-o do horrível cinzento do norte, do fantástico, da anemia dos países sem sol — da nossa moléstia germânica do gosto, contra cujo excesso momentâneo prescreve-se o sangue e o ferro em grandes quantidades, isto é, a "grande política" (terapia perigosa que me ensina a ter paciência, mas não me permite esperar). Ainda hoje na França se procura compreender aos homens raros, dificilmente encontráveis, de vistas mais largas, para poder encontrar a sua satisfação nos limites estreitos dos sentimentos ultrapatrióticos, que sabem amar o Sul em o Norte e o Norte no Sul, em suma os "bons europeus", os europeus do futuro. Para eles foi escrita a música de "Bizet", deste novo gênio que entreviu novas belezas e novas seduções e que descobriu a fímbria do "sul da música". 255 Contra a música alemã sustento que sejam necessárias certas precauções. Suponho que alguém ame o sul como eu amo, como uma grande escola de saúde, tanto espiritual quanto sensual, como imensa orgia de luz na qual pode se expandir um ser cheio de sua independência e de fé em si mesmo, então, esse alguém deve precaver-se contra a música alemã, porque atacando-lhe o gosto, atacar-lhe-á também a saúde. O meridional não por nascimento, mas pela fé, quando sonha um futuro da música, deve ao mesmo tempo sonhar a sua redenção da música do norte e ouvir os prelúdios de uma música mais profunda, mais potente talvez, mais maligna e misteriosa, de uma música superalemã que diante do mar voluptuosamente azul e do sol meridional não enlanguesce, não empalidece, como acontece para toda música alemã, de uma música supereuropéia, capaz de resistir aos pores do sol dos desertos africanos, cuja alma seja conforme à palma, e que se sinta à vontade em meio à possantes e belas feras ferozes e solitárias. — O meu ideal seria uma música, cujo maior fascínio consistisse na ignorância do bem e do mal, uma música, trêmula como nostalgia de marujo, como qualquer sombra dourada, por qualquer lembrança terna, uma arte que absorvesse em si mesma, de uma grande distância, todas as cores de um mundo moral que declina, de um mundo tornado quase incompreensível e que fosse hospitaleira e profunda o bastante para acolher em si os fugitivos tardios. 256 Graças à mórbida aversão que o delírio do nacionalismo suscitou entre os povos da Europa e mantém viva ainda hoje, graças aos políticos de vista curta e mão lesta, os quais por vias de tal aversão estão no auge e não apresentam nem mesmo como a política dissolutora que preferem não possa ser mais que uma política de "intermezzo" — graças a tudo isso e a qualquer outra coisa que atualmente não pode ser exprimida, são transcurados ou interpretados arbitrária e mentirosamente, os indícios mais seguros da vontade de unificação da Europa. Todos os trabalhos secretos da alma dos homens mais profundos e de maior amplitude de visão tendiam a preparar tal síntese e procurar antecipar o europeu do futuro, sobretudo na aparência ou ainda nas horas de fraqueza e na velhice lutaram pelo princípio da "nacionalidade" — e repousaram de si mesmos tornando-se "patriotas". O meu pensamento lembra os homens que tiveram renome: Napoleão, Goethe, Beethoven, Stendhal, Heinrich Heine, Schopenhauer. Não incorrerei em reprovação se a estes nomes eu juntar o de Richard Wagner, acerca do qual não é preciso deixar-se induzir a formar um falso conceito sobre a base de seus próprios mal-entendidos — gênios de sua espécie raramente têm o direito de entender a si mesmos. Ainda menos se deve considerar o caso trivial que se faz na França contra ele — é um fato incontestável que entre o neo-romantismo francês e Richard Wagner há uma íntima afinidade. Comungam intimamente nos cumes e nas profundezas de suas aspirações — a Europa é uma das que se atira na sua arte múltipla e imperiosa, aspirando as alturas e o exterior -, e que coisas mais? A uma nova luz? A um novo Sol? Mas quem jamais saberia exprimir com clareza aquilo que estes mestres, inventores de novas linguagens, não souberam exprimir com clareza? Uma coisa é certa, que todos tinham enfrentado as mesmas tempestades, estes últimos entre os grandes pesquisadores! Todo conjunto dominado completamente pela literatura — esses, os primeiros artistas que possuem uma cultura mundial, na maior parte esses mesmos escritores, poetas, reveladores e amalgamadores das artes e dos sentidos (Wagner, músico, classificado entre pintores, como poeta entre os músicos, como artista em geral entre os grandes atores); todos fanáticos pela expressão "a todo custo" — ressaltarei sobretudo Delacroix cujo espírito tem maior afinidade com Wagner — todos grandes descobridores no reino do sublime, também do brutal e do horrível, descobridores ainda maiores dos efeitos, na encenação, na arte da exposição, todos com engenhosidade muito superior ao seu gênio, virtuosos, perfeitos, sinistramente acessíveis a tudo aquilo que atrai, constrange, revoluciona, inimigos jurados da lógica e da linha reta, ávidos pelo estranho, pelo exótico, pelo monstruoso, pelo contraditório, pelo contorcido. Tântalos da vontade, plebeus aventureiros, os quais no viver e no criar eram incapazes de um "tempo" aristocrático, de um "lento" — lembra-se de Balzac — trabalhadores desenfreados que com o trabalho ameaçavam destruir a si mesmos, antinômicos e rebeldes nos costumes, ambiciosos e insaciáveis sem equilíbrio e sem prazer, mas todos se curvando diante da cruz cristã (e isso foi inevitável porque não havia entre eles quem fosse capaz de conceber uma filosofia do Anticristo) em resumo, uma espécie de homens superiores, temerariamente audazes, estupendamente violentos, cujo voo de águias fascinava aos demais, que apresentaram ao próprio século — que é o século das massas o conceito do "homem superior" ... Queiram os amigos alemães de Wagner examinar conscienciosamente se na arte wagneriana existe algo de puramente alemão ou se sua projeção não é devida precisamente ao fato de se inspirar em fontes não alemãs, e ao fazer isso não esqueçam o fato de que, ao aperfeiçoamento de seu tipo foi indispensável Paris. para a qual lhe chamava imperiosamente a profundidade de seus instintos, que toda sua linha de conduta, ou seu auto apostolado, só poderiam aperfeiçoar-se segundo o modelo do socialismo francês. Talvez se encontre num confronto menos superficial — o que redunda em favor da índole alemã de Wagner — enquanto se demonstrou mais vigoroso, audaz, elevado e menos escrupuloso quanto possa ser um francês do século XIX — e isto pelo mérito do fato de que nós os alemães estamos muito mais próximos dos bárbaros do que os franceses. — Talvez o que Wagner criou de mais singular permanecerá para sempre, e não só atualmente, inacessível, incompreensível, imutável, para toda a raça latina: a figura de Siegfried, deste homem “molto libero” a qual, de fato, é muito livre, muito rude, muito jovial, muito sadio, muito anticatólico para o gosto de povos originários de uma civilização antiga e caduca. Pode significar também uma contravenção romântica, este Siegfried: se bem que Wagner tenha expiado seu pecado, quando em seus últimos dias — sacrificando a um gosto que já era passado, em política — com a sua habitual veemência religiosa começou, se não a empreender, pelo menos a pregar a peregrinagem a Roma. — Para evitar compreensão equivoca de minhas últimas palavras, recorrerei a alguns versos fortes que denunciarão a todas orelhas — mesmo as menos apuradas — o que tenho contra o mais "recente Wagner" e sua música do Parsifal: — Será isto alemão, ainda? – De coração alemão estes guinchos sórdidos? Será de corpo alemão esta auto-descarnação? Alemão este abrir de mãos, sacerdotal? Esta excitação sensorial com dor de incenso? E será alemão este hesitar, precipitar, cambalear, indefinido indefectível bambolear? Estes olhares furtivos de religiosa, este badalar de vésperas, este extasiar falso em céus e supra-céus? Isto, alemão? Refleti ainda às portas, O que ouvis, é Roma... A fé de Roma, sem palavras! NONA PARTE O QUE É ARISTOCRÁTICO? 257 Toda nova elevação do tipo "homem" foi até aqui obra de uma sociedade aristocrática — e sempre será assim, isto é, será sempre inegavelmente devida a uma sociedade que tem fé na necessidade de uma grande escala hierárquica e de uma profunda diferenciação de valor de homem a homem e que para chegar à sua finalidade não saberia fazer menos que escravizar sob uma forma ou outra. Sem o "pathos" da distância que nasce de decisiva diferença de classe, do constante olhar ao redor de si e sob si das classes dominantes sobre pessoas e instrumentos, e de seu constante exercício no obedecer e no comandar, em manter os outros opressos e distantes, não seria nem mesmo possível o outro misterioso "pathos", o desejo de sempre novas expansões das distâncias entre a própria alma, o desenvolvimento de estados sempre mais elevados, mais variados, distantes. maiores. tendentes a alturas ignotas, logo à elevação do tipo "homem", o incessante triunfo do homem sobre si mesmo para adotar em sentido supermoral uma fórmula moral. Certo: não é necessário tecer ilusões humanitárias acerca da origem de uma sociedade aristocrática (portanto da base da elevação do tipo "homem"); a verdade é dura. Digamos, sem meias-palavras, como começou na terra, até agora, toda civilização mais elevada. Homens de uma natureza ainda primitiva, bárbaros no mais terrível sentido da palavra, homens de rapina, ainda de posse de indômita força de vontade e do deseja de dominar se precipitaram sobre raças mais fracas, mais pacíficas que se ocupavam talvez do comércio ou do pastoreio, ou ainda uma outra civilização mais podre, que lançavam os últimos palpitares de vida em raios fúlgidos do espírito e da corrupção... A casta aristocrática sempre foi nos primórdios a mais bárbara; a sua preponderância é procurar não a força física, mas a da alma — eram os homens mais completos (aquilo que quer significar também "as bestas mais completas"). 258 A corrupção, indício manifesto que entre os instintos ameaça a anarquia, e que o edifício fundamental das emoções que se chama "vida" é abalado; a corrupção. segundo o organismo em que se manifesta é algo de fundamentalmente diferente. Se, por exemplo, uma aristocracia como a da França. no começo da revolução, com uma náusea sublime renuncia aos seus privilégios e sacrifica a si mesma a uma exageração do seu senso moral, portanto, esta é corrupção — é o último ato de uma corrupção secular, através da qual, pouco a pouco renunciou às suas prerrogativas senhoriais e se rebaixou exclusivamente às funções reais (para degradar-se até transformar-se no ornato e pompa da corte). O essencial numa boa e sã aristocracia é que esta não se sinta como função, seja de um rei ou de uma comunidade, mas último significado e a mais alta justificação deles, e que recebe de boa consciência o sacrifício de inumeráveis indivíduos, que, por causa dela, devam reduzir-se a serem homens incompletos, escravos, instrumentos. O seu credo fundamental deve resumir-se nisso que a sociedade não deva existir pela própria sociedade, mas simplesmente como base, como alicerce, para servir de sustentáculo, de meio de elevação para uma espécie eleita de ser para que possam atingir os seus altos misteres e de modo geral, uma existência mais elevada; ao lado do cipó fixado ao solo da Ilha de Java, o cipó matador — que se prende ao carvalho para subirem acima dele e para lançar à esplêndida luz do sol a pompa de suas flores e expor então ao mundo a sua felicidade. 259 Abster-se reciprocamente de toda ofensa, da violência, do desfrute, equipar a própria vontade à de outro; isso pode passar, grosso modo, por um bom uso entre indivíduos, quando se interpõem certas condições (isto é, uma real semelhança de forças e de valorações). Mas se se desprezassem estas condições iniciais e se tomassem aqueles princípios como condições básicas de uma sociedade, isso se revelaria rapidamente aquilo que é na verdade, vontade de negação da vida, como princípio de dissolução e decadência. Aqui convém aprofundar o pensamento e pôr de parte todo sentimentalismo: a vida é essencialmente uma apropriação, uma violação, uma sujeição de tudo aquilo que é estranho e fraco, significa opressão, rigor, imposição das próprias formas, assimilação, ou pelo menos, na sua forma mais suave, um aproveitamento mas porque depois sempre deveremos usar tais palavras, em que de tempos mais remotos está inserida uma intenção caluniosa? Também uma corporação, na qual, como indicamos mais acima, os indivíduos se tratam como iguais (isto acontece em toda aristocracia sadia) — deve, embora represente um corpo vivo e não um corpo moribundo, fazer nas próprias relações com outros corpos tudo aquilo que são obrigados a abster-se os seus componentes nas suas relações reciprocas; essa deverá ser a vontade de dominação, desejará crescer, aumentar, atrair, adquirir predomínio — não já pela moralidade ou imortalidade, mas unicamente porque "vive" e porque a vida é a vontade de potência. Mas em nenhum outro ponto além disso a consciência dos europeus é geralmente mais esquiva a toda sugestão, desvanece-se, assim, até mesmo sob roupagens científicas, de um estado social vindouro que não terá o "caráter da fruição" — ouço isso, como se alguém prometesse inventar uma vida que devesse abster-se das funções orgânicas. A "fruição" não é um indício, o, caráter de uma sociedade corrupta ou imperfeita e primitiva; isto é uma parte intima da essência de tudo aquilo que vive, porque não é uma função orgânica, uma consequência da verdadeira vontade de dominar, que não é outra coisa que a vontade de viver. — Admito que como teoria isso possa ser uma coisa nova — na verdade esse é o fato substancialmente primitivo em toda a história, que se tenha pelo menos a coragem de ser sincero consigo mesmo! 260 Na minha peregrinação através das morais mais refinadas e mais grosseiras que reinaram e ainda reinam. constatei a repetição e a conexão de certos traços característicos, de modo que estou prestes a descobrir dois tipos fundamentais e uma diferença também fundamental. Há a moral dos senhores e a moral dos escravos, concluir-se-á rapidamente que nas culturas mais elevadas e cruzadas se encontram tentativas de conciliação entre as duas morais, mais frequentemente ainda uma confusão das mesmas, fruto de mal-entendidos recíprocos e talvez a coexistência de uma ao lado da outra — isso é encontrado em indivíduos, numa só alma. As distinções morais entre os valores teve origem sob uma classe dominante que tinha consciência, com um sentimento de íntima satisfação da própria superioridade sobre a classe dominada — ou ainda entre os dominados, os escravos e os dependentes em qualquer grau. No primeiro caso, isto é, quando os dominadores tiveram que determinar o conceito "bom", os estados mais elevados da alma seriam decisivos na determinação dos títulos de distinção, na sua classificação. O homem aristocrático mantém longe de si os seres nos quais se manifestam certos estados opostos de alma, ele os despreza. Observe-se que neste primeiro tipo de moral, "bom" e "mal" significam unicamente "aristocrático" e "desprezível" — os opostos bom e "mal" têm uma outra origem. Desprezam-se o velhaco, o medroso, o pedante, aquele que não pensa senão na sua vantagem imediata, ainda no desconfiado, cuja visão não é a de ura homem livre, o que se humilha, a espécie "cão" do homem, que sofre qualquer espécie de maltrato, o adulador, quem mendiga uma esmola, e todos os mentirosos — é crença fundamental de todos os aristocratas que o populacho seja mendaz. "Nós verdadeiros" — eis o nome pelo qual se chamavam os nobres da Grécia Antiga. É claro que as indicações dos valores morais foram inicialmente aplicadas aos homens e apenas por derivação às ações humanas, pelo que cometem um erro grosseiro aqueles historiadores — moralistas, que partem de certas interrogações como, por exemplo: "por que o ato piedoso foi louvado?" A espécie aristocrática do homem sente a si mesma como determinadora dos valores, não sente necessidade de ser aprovada, louvada, julga: 1. aquilo que prejudica a mim, é nocivo por si mesmo, sente-se como atribuidora de valor às coisas, criadora de valores. Valora tudo aquilo que conhece de si mesma, é a moral da exaltação de si mesma. Predominam, transbordantes, os sentimentos de prosperidade, de potência, de felicidade, a felicidade da alta tensão, a consciência de uma riqueza que quer atingir as culminâncias e doar-se, — também o homem aristocrático socorre quem é desafortunado, mas não, ou pelo menos não sempre, por compaixão, antes, por um estímulo que lhe vem de seu excesso de potência. O homem aristocrático respeita em si mesmo o potente, como aquele que tem poder mesmo sobre si mesmo, que sabe falar e sabe calar, que sente prazer em ser rigoroso consigo mesmo e respeita todos os rigores. Wotan colocou em seu peito um coração duro, assim se lê numa antiga saga escandinava, palavras saídas da alma de um soberbo vicking. Homens de tal espécie estão longe de desconhecer a compaixão! O herói da saga acrescenta: "Quem em jovem não teve o coração duro, jamais o terá como tal!" Homens aristocráticos e valorosos que pensavam desta forma são os mais distantes daquela moral que vê precisamente na compaixão ou no apiedar-se pelos outros, no désintéressement, o distinto na moral; a fé em si mesmo, o orgulho de si mesmo, uma aversão ingênita e irônica pelo altruísmo caracteriza a moral aristocrática ao mesmo tempo que um leve desprezo por todo sentimentalismo. Os poderosos são aqueles que sabem respeitar, esta é sua arte, sua prerrogativa. A profunda veneração pela velhice e pela tradição — todo direito se baseia nesta dupla veneração, — a fé e o preconceito em favor dos antepassados e o ódio aos de origem plebeia são fatores típicos na moral dos potentes; os homens das "ideias modernas" que acreditam quase instintivamente no "progresso" e no "futuro" e vão cada vez mais perdendo o respeito pela idade, traem com isso, de modo suficiente, a vulgaridade da origem de suas "ideias". Mas, antes de mais nada, parece estranha e adversa a moral dos dominantes para o gosto moderno pelo rigor de suas teses fundamentais, que não haja senão interpares; que relativamente aos seres inferiores, contra tudo aquilo que é estrangeiro, sempre se possa agir segundo o próprio beneplácito ou como “inspira o coração”, e em todos os casos “além dos confins do bem e do mal” — assim também a compaixão. A atitude e a obrigação a um durável reconhecimento, a uma vingança longamente incubada — entre os iguais, bem entendido — o refinamento no vingar-se, a delicadeza do conceito de amizade, a necessidade de ter inimigos (como desafogo para os sentimentos de inveja, do desejo de litigar, de arrogância, mas no fundo para poder ser bom amigo) — todas essas coisas são características da moral aristocrática, a qual, como já foi indicado, não é a moral das "ideias modernas" e por isso, na atualidade, dificilmente se poderá sentir segundo a mesma e ainda desenterrá-la e descobri-la. — Mas é uma coisa muito diferente, o segundo tipo de moral, a moral dos escravos. Suponhamos que os violentados, os opressos, os sofredores, os escravos, os descontentes consigo mesmos, os enfraquecidos se ponham a moralizar o que será equivalente a suas valorações morais? Provavelmente se manifestará em si uma desconfiança pessimista contra a situação do homem em geral, talvez uma condenação do homem juntamente com a de sua situação. O escravo olha com olhos turvos a virtude do potente, é cético e suspeitoso, refinado na sua desconfiança contra tudo que é respeitado pelos potentes e tido em conta de "bom" — gostaria de iludir a si mesmo forçando-se a crer, que mesmo a felicidade que aqueles desfrutam não é genuína. Será preciso, contrariamente, ressaltar e iluminar a virtude apta a tornar suportável a existência dos sofredores, razão pela qual se prosternam em louvor à piedade, a mão sempre aberta e pronta a socorrer, o coração generoso, a paciência, a assiduidade, afabilidade — porque estas são virtudes úteis e representam quase o único meio para sustentar a opressão da existência. A moral dos escravos é essencialmente uma moral utilitária. Eis aqui o centro donde se originou a famosa oposição "bem" e "mal", ao mal se atribui instintivamente uma certa potência, uma periculosidade, uma certa terribilidade, um refinamento, uma força, não desprezíveis. Segundo a moral dos escravos o mal incute também "terror", segundo a moral dos senhores é precisamente o "bom" que inspira terror porque quer inspirá-lo, enquanto o homem "mau" é tido como um ser desprezível. O contraste atinge seu ápice quando, por inevitável consequência da moral servil também aos "bons", por precaução contra esta moral se coloca um pouco de desprezo — ainda que leve e benévolo. uma vez que segundo a moral servil "bom" deve ser precisamente o indivíduo "inócuo"; é bonachão, pode ser facilmente enganado, talvez um pouco tolo, em suma um "bom homme". Onde quer que a moral servil se erga, a língua se mostra inclinada a fazer da palavra "bom" um sinônimo de "tolo". Uma última diferença fundamental: o vivo desejo de liberdade, o instinto da felicidade e do refinamento do sentimento de liberdade pertencem necessariamente à moral e à moralidade dos escravos, quanto à arte e a sentimentalidade na abnegação é o indício regular de um modo de pensar e de valorar aristocrático. Donde é fácil compreender imediatamente como o amor como paixão — nossa especialidade europeia — seja de origem aristocrática: é sabido que a inventaram os cavaleiros-poetas de Provença, os homens estupendamente imaginosos do "gaio saber", aos quais à Europa deve tudo e talvez a si mesma. 261 Entre as coisas, que a um homem aristocrático parecem difíceis de compreender se encontra certamente a vaidade: sentir-se-á tentado a negá-la, mesmo onde um homem de outra espécie a sentisse palpável. Para ele é um verdadeiro problema aquele de imaginar homens que procuram provocar nos outros uma boa opinião de si mesmo, que esses por si mesmos não têm — e por consequência não merecem — e que afinal acabam por acreditar naquela boa opinião dos outros, concebida por ele. Tudo isso lhe parece de tão mau gosto e irreverência consigo mesmo, tão extravagantemente irracional, que se sente quase com vontade de considerar a vaidade como anomalia e que ela exista na maior parte dos casos. Dirá, por exemplo: "Posso enganar-me ao julgar meu próprio valor, mas posso pretender que meu valor seja reconhecido pelos outros na mesma medida que por mim, talvez erroneamente calculada" — isso não é vaidade (poderá ser "presunção", antes, mais frequentemente, aquilo que se chama "humildade" ou ainda "modéstia"). Ou ainda: "posso ter muito boas razões para ter bom conceito, em que os outros me têm, talvez porque sinto respeito por eles, porque os amo e me alegro ao vê-los satisfeitos a meu respeito, talvez porque o bom conceito que têm reforça e confirma a meu, talvez porque o bom conceito dos outros, mesmo quando não compartilhado, me é ou pode ser útil, mas isso está ainda longe da vaidade". O homem aristocrático não pode imaginar, senão com muito esforço, e antes de tudo, com o apoio da história, que de tempos imemoriais, em todas as classes de povo, dependentes de um modo ou de outro, o homem vulgar tenha sido ,apenas aquilo, que mostra a aparência — não sendo habituados estabelecer os valores por si mesmo, este não atribuía a si outro mérito além dos que lhe foram destinados pelos próprios senhores (o verdadeiro direito senhorial é o de criar valores). Pode-se conceber qualquer consequência de um monstruoso atavismo o fato que, ainda agora, o homem vulgar escuta sempre a opinião dos outros a seu respeito e se acomoda instintivamente à mesma, e não sobretudo à "boa" opinião, mas também a uma má e injusta (pense-se um pouco na maior parte das valorações e desprezo do próprio ser, que as mulheres aprendem com os próprios confessores, e em geral o fiel cristão na sua Igreja). E de fato segundo o lento acumular de uma série de coisas democráticas (e de sua causa, o cruzamento de raças senhoriais e servis) o impulso, originariamente aristocrático e raro, de atribuir a si mesmo valor e "pensar bem" acerca de si mesmo, sente-se encorajado e se expande; mas terá contra si uma inclinação mais inveterada, mais difusa e nata — que é a fenômeno da “vaidade” e esta inclinação mais antiga subjugará a outra. O homem vaidoso aprecia todo juízo favorável expresso a seu respeito ( e isso mesmo independentemente do ponto de vista da utilidade e da verdade ou falsidade daquele juízo), do mesmo modo que sofre com todo juízo desfavorável, uma vez que se submete aos dois, sente-se submetido a eles devido àquele antiquíssimo instinto da sujeição, que reaparece indefectível. Há o "escravo" no sangue do homem vaidoso, um resíduo de astúcia servil — e quanto do "escravo" ainda existe na mulher! — e isto faz com que se procure seduzir os outros para ser estimado, o mesmo "escravo" que subitamente cai genufletido diante da opinião alheia, por ele mesmo provocada. — Digamos ainda uma vez: a vaidade é atavismo. 262 Uma espécie tem origem, um tipo adquire força e vigor em uma longa luta com condições essencialmente constantes e desfavoráveis. Ao contrário: como se sabe sobejamente, pela experiência das amas de leite, as espécies que fruem de uma alimentação superabundante ou cuidados excessivos, propendem de modo decisivo a uma variação do tipo e abundam de exemplares portentosos e monstruosos (e, portanto, de vícios monstruosos). Ora, considere-se um pouco uma comunidade aristocrática, por exemplo, uma antiga "polis" grega, ou ainda Veneza, sob o aspecto de uma instituição voluntária de elevação e melhoria; vejamos reunidos conjuntamente, reduzidos às próprias forças, homens que querem fazer triunfar a própria espécie, porque devem fazê-la triunfar, uma vez que de outro modo correriam um tremendo risco de serem destruídos. Que faltem as condições favoráveis, a superabundância, os maiores cuidados, que favoreçam a variação do tipo; a espécie tem necessidade de existir como espécie determinada e é constrangida a afirmar-se exclusivamente em razão da dureza, da falta de uniformidade da simplicidade de sua forma, na luta incessante que deve manter com seus vizinhos ou com os súditos rebeldes ou perenemente Sediciosos. Uma experiência muito vasta ensina aos homens, àqueles homens, quais as condições precípuas para que tenham podido, desafiando os céus e a terra, manterem-se e vencer: estas condições é que chamam de virtude e sobretudo a estas tendem a desenvolver. Fazem-no usando rigor; inclusive elevando à categoria de lei, o rigor, toda moral aristocrática é intolerante, na educação da juventude, na posição das mulheres, nos costumes matrimoniais, nas relações entre jovens e velhos, nas penas (que consideram apenas os degenerados) e enumera entre as virtudes a própria intolerância sob o nome de "equidade". Um tipo de homem de poucas facetas, mas muito marcadas, militarmente prudente e taciturno, fechado em si mesmo (e por isso mesmo acessível a todos os encantos, a todas as nuances da vida social) forma-se desafiando a sucessão das gerações; a incessante luta, desafio de condições desfavoráveis é a causa, como já dissemos, para que um tipo se torne forte e rude. Mas finalmente quando surge uma época de prosperidade, a imensa tensão diminui, talvez não mais sejam inimigos os vizinhos, e os meios de viver e mesmo gozar a vida superabundam. De um só gole o vínculo e a necessidade da antiga disciplina desaparecem: a disciplina deixa de ser a única e necessária condição de existência — subsistirá apenas como uma espécie de luxo, como um gosto arcaico. A variação, seja como transformação (em qualquer coisa de mais alto, mais fino, mais raro), seja como degeneração e monstruosidade, surge de improviso, brilhante, em toda sua magnificência, o único ousa ser único e destacar-se dos demais. Em tais momentos críticos da história se cri, contra um crescimento, coordenado e também desordenado e inextrincavelmente confuso, como floresta virgem, uma tendência para o alto, uma espécie de "tempo" trópico no crescimento e um imenso arruinar em perdição, devido a egoísmos ferozmente em luta entre si, e por assim dizer explosivos, que lutam pelo "sol e luz" e da antiga moral não mais sabem conter os limites, nenhuma retenção, nenhuma piedade. Aquela mesma moral que aumentou ou reduziu a força, que tendeu o arco de modo tão ameaçador — já não existe mais. viveu. Atingiu-se o período perigoso e sinistro, onde a vida maior, mais facetada, mais volumosa, manifesta-se no cenário da antiga moral, o "indivíduo" se vê obrigado a inventar uma nova legislação, novas artes e astúcias para a própria conservação, para a própria elevação, para a própria liberação. Manifestam-se novos por que, novos como, as fórmulas comuns desaparecem, imiscuem-se falsas interpretações coligadas ao desprezo de todas as coisas, a decadência, a corrupção, e a raiva mais elevada conjuntas num terrível nó, afirma-se o gênio da raça transbordante de todos os tipos de bem e de mal numa fatal simultaneidade de primavera e outono, plenos de novos atrativos, daqueles véus misteriosos que são prerrogativa de uma corrupção incipiente, jovem, mas não ainda exaurida e extenuada. Surge novamente o perigo mestre, a moral, o grande perigo, mas desta vez ínsito no indivíduo. no próximo, no amigo, na vida, nos próprios filhos, no próprio coração, em tudo aquilo que de mais próprio e secreto têm o desejo e a vontade, que devem pregar os moralistas numa época como essa? Apresentam, esses penetrantes observadores, que estão frente ao desenvolvimento da vida, que tudo a seu redor é ruína e traz ruína, que nada durará além de depois de amanhã. excetuando uma única espécie de homem, o irremissivelmente medíocre. Os medíocres sobretudo têm esperança e probabilidade de continuidade, de propagar-se — esses são os homens do futuro, os únicos aptos a sobreviver; "sede como eles, sede medíocres!", impõe agora a única moral que tem um sentido, que encontra orelhas prontas a ouvir — mas é difícil pregá-la, pregar a esta moral da mediocridade! — uma vez que esta não deve e não pode confessar aquilo que é na verdade e aquilo que quer! Deve falar de medida, de dignidade, de dever, de amor ao próximo, e terá que tomar muito cuidado para não deixar transparecer a ironia. 263 Existe um instinto pelo grau de condição, o qual mais que qualquer outra coisa é o indício de uma condição elevada, existe um sentimento de prazer pelas gradações da veneração que permitem adivinhar a origem e os hábitos aristocráticos. A delicadeza, a bondade, a elevação de uma alma se encontram submetidas a uma dura prova quando esta pressente a aproximação de algo que pertence a uma ordem mais elevada, mas ainda não protegida pelos gestos da autoridade contra os atentados tolos e insolentes: algo ainda indistinto, não ainda descoberto, incerto, talvez arbitrariamente vedado ou disfarçado, como uma pedra de toque vivente. — Aquele que tem o dever e a profissão de investigar as almas sob várias formas se servirá desta arte para determinar o valor definitivo de uma alma, o grau inato e imutável a que pertence, submetê-la-á à prova tomando como base o instinto de veneração. Différence engendre haine: a vulgaridade de muitas naturezas irrompe por vezes à semelhança de águas pútridas quando algum vaso sagrado, alguma preciosa relíquia retirada de escrínios ocultos, algum livro com os sinais de grande destino passam próximos e por outro lado um involuntário amolecimento, um olhar hesitante, uma imobilidade de gestos, demonstram que uma alma sente a vizinhança de algo digno de veneração. O modo pelo qual a Europa vem mantendo alta veneração pela Bíblia é talvez o mais belo resultado da disciplina e amolecimento dos costumes que a Europa deva ao cristianismo: livros tão profundos e da mais alta e extrema importância necessitando ser protegidos por uma tirania exterior, para poder atingir aquela duração milenar que é necessária para exauri-los e interpretá-los completamente, já se obteve muito com o veicular junto às grandes massas (para os espíritos superficiais rápidas digestões) o sentimento de que não se possa tocar a todas as coisas, que existem acontecimentos sagrados, diante dos quais se deve tirar os sapatos e tolher as mãos imundas e esse talvez seja o passo decisivo que podem dar para a humanidade. Vice-versa nas pessoas ditas cultas, nos crentes, nas ideias modernas nenhuma ideia inspira tanta náusea quanto a sua falta de pudor, a cínica impudicícia do olho e da mão com que tocam, olham, seguram todas as coisas e pode acontecer que atualmente no povo, principalmente entre os campônios exista relativamente uma maior nobreza de gosto e de tato na veneração, que no demi-monde do espírito dos homens doutos, que leem os jornais. 264 Não se pode desenraizar dás almas dos homens os mais caros e constantes hábitos que até agora mantiveram seus antepassados: foram assim todas as tentativas de economia, burocráticas ou caseiras, modestas ou burguesas nos seus desejos, modestas também na sua virtude; ou ainda habituados a comandar de manhã até a tarde, dedicados a rudes passatempos e talvez, ao mesmo tempo devotados a deveres e responsabilidades mais duras ainda, renunciando talvez, em um dado momento, às antigas prerrogativas de nascimento e possessão, à própria fé — ao próprio Deus, aqueles homens de uma consciência inexplorável e delicada que enrubesce a cada compaixão. Deve-se excluir absolutamente a possibilidade de que um homem não tenha a qualidade e a predileção dos seus genitores, das suas bisavós ainda que a aparência mostre o contrário. É esse o problema da estirpe: quando se sabe de algo a respeito dos pais, pode-se extrapolar para os filhos qualquer incontinência repugnante, uma indelicada propensão a sempre dar razão a si mesmo — três coisas que conjuntas sempre representaram, em todos os tempos, o tipo plebeu — tudo aquilo deve perpetuar-se também no filho, tão seguramente quanto o sangue gasto, e a melhor das educações servirá apenas para dissimular um tal atavismo. E que mais desejam atualmente a educação e a cultura? Em nossa época democrática, isto é, plebeia, a educação e a cultura devem ser a arte de enganar — acerca das origens, a arte de iludir e esconder o plebeismo hereditário do corpo e da alma. Um educador que, atualmente, pregasse a verdade antes de mais nada e insistisse com seus alunos para que assim fizessem, isto é, que fossem sinceros, naturais e que se comportem segundo sua verdadeira índole — um tal asno virtuoso e ingênuo acabaria recorrendo, cedo ou tarde, à "furca" de Horácio para "naturam expellere"; com qual resultado? A "plebe" usque recurret. 265 Ainda que com o risco de não ser bem aceito por orelhas inocentes, sustento: o egoísmo é parte essencial da alma aristocrática, e por egoísmo denomino aquela fé inamovível de que a seres como "nós somos", os outros seres devem estar sujeitados e devem se sacrificar ao nosso ser. A alma aristocrática aceita este fato constatado de seu egoísmo sem pontos de interrogação, sem sentir nenhuma repugnância, constrição, arbítrio, aceita apenas como algo que tem fundamento nas leis mais primitivas das coisas, se quisesse dar-lhe um nome a chamaria: "a própria justiça". Em dadas circunstâncias, sentem-se inicialmente confusas e confessam a si mesmas que existem outras almas que têm direitos iguais, mas tendo apenas resolvido a questão do grau comportasse com seus pares, privilegiados como ela, com a mesma segurança de pudor e de respeito delicado consigo mesma conforme um mecanismo celeste que é inato em todas as estrelas. É refinamento do egoísmo essa delicadeza e discrição no relacionamento com seus pares — cada astro é também egoísta -; essa honra a si mesma, e nos direitos, que lhe concede não duvida, de modo algum. que a troca de honras e de direitos como essência de cada relação pertença a um estado natural de coisas. A alma aristocrática dá como recebe, devido à força do instinto apaixonado e suscetível da troca, que é profundamente íntimo. O conceito "graça" interpares não tem significado nem cor, pode ser que esta seja uma maneira de deixar cair sobre si mesmo os dons e absorvê-los como a seda faz com as gotas de orvalho; por essa arte, para esta atitude a alma aristocrática não possui nenhuma posição. É impedida pelo próprio egoísmo: em geral olha com má vontade para o alto — olha diretamente para a frente, horizontalmente ou para baixo, sempre lentamente: porque sabe que está no alto. 266 "Não se pode respeitar realmente senão àquele que não procura a si mesmo" — palavras de Goethe ao conselheiro Schlosser. 267 Os chineses têm um provérbio que as mães ensinavam aos seus filhos: siao-sin, "torna pequeno teu coração"! É esta a verdadeira inclinação fundamental nas civilizações avançadas: não duvido que um grego da antiguidade reconhecesse mesmo em nós europeus modernos antes de tudo a diminuição de nós mesmos — só por isso não seríamos do "seu gosto". 268 O que é, enfim, a vulgaridade? — As palavras são notas musicais para os conceitos, mas os próprios conceitos são hieróglifos para certas sensações que retornam sempre, sãs ou em grupo, como grupos de sensações. Não basta para a compreensão mútua usar as palavras, é preciso adequá-las para aquela determinada espécie de acontecimentos interiores, enfim é necessária uma experiência comum. Por esta razão, indivíduos que pertençam à mesma nação entendem-se melhor entre si do que os de nações diferentes, mesmo que se sirvam da mesma linguagem, ou para expressar melhor ainda, os indivíduos que conviveram longamente nas mesmas condições (clima, solo, pais, necessidades, trabalho) formam algo que "se compreende", um povo. Em todas aquelas almas ocorrerá a junção do mesmo número de fatos que sempre se repetem, nessas que se repetem habitualmente haverá a formação de um processo de entendimento cada vez mais rápido — a história da linguagem é a história de um processo de abreviação -, da rápida compreensão surge a união que se torna cada vez mais íntima. Quanto maior é o perigo tanto maior é a necessidade de estar de acordo sobre aquilo que se deverá fazer. Os homens procuram não se desentender nos momentos de perigo, através de suas relações frequentes. Ainda na amizade e no amor podem ser feitas tais experiências e nenhuma relação pode ser duradoura, se um dos dois descobre que o efeito das palavras sobre o outro não) é realmente a expressão do que está sentindo, crendo, prevendo, desejando ou temendo. (O temor de um "eterno desentendimento", eis o gênio benéfico que tantas vezes faz com que pessoas de sexos diferentes venham a se unir sem mais considerações, porque os sentidos e o coração o sugerem e não pelo "gênio da espécie" de Schopenhauer) Aqueles grupos de sensações que se destacam inicialmente numa alma, fazem-se sentir, comandam toda a história — pode tornar um belo dia a causa de que ele se revolte exasperado contra a própria sorte e chegue à tentativa de destruir a si mesmo — perder-se", ele mesmo. Nos psicólogos se encontrara, em sua maior parte, a propensão e o desejo de entreter-se com indivíduos vulgares e regulados, o psicólogo deixa entrever com isso que sempre tem necessidade de um remédio, que precisa fugir, mentir, de rejeitar aquilo que tem sob seu olhar, o que tem como "ofício" colocou em sua consciência. O medo da memória lhe é característico. Frente a juízos alheios o psicólogo emudece repentinamente, escuta impassível, como que venerando, admirando, amando e transfigurando aquilo que ele viu, ou ainda esconde com seu silêncio a aprovação de qualquer observação superficial. Talvez o estado paradoxal em que se encontra vá até o horrível ponto, que o vulgo, as pessoas cultas, os sentimentalistas, precisamente onde começou a sentir uma grande piedade conjunta a um grande desprezo, manifestam uma grande veneração a veneração pelos "grandes homens" e pelos animais portentosos, em virtude dos quais se bendiz e se tem em grande conta a pátria, a terra, a dignidade do homem, a si mesmo, e que se acrescentam aos jovens porque lhes servem de modelo. E quem sabe, se até agora em todos os casos importantes não tenha acontecido a mesma coisa: que a massa tenha adorado um Deus — muito embora o "Deus" não fosse mais que uma vítima votada ao sacrifício! O sucesso sempre foi o mais velhaca, e a "obra" por si mesma representa um sucesso; o grande estadista, o conquistador, o descobridor são irreconhecíveis sob as vestes de sua criação; a "obra", aquela do artista, do filósofo, é aquela que inventa a imagem daquele que a criou ou que se supõe que a tenha criado; os “grandes homens” na forma pela qual são adorados são pequenos e maus poemas fabricados depois; no mundo dos valores históricos predominam os moedeiros falsos. Certos grandes poetas, por exemplo, os Byron, os Musset, os Poe, os Leopardi, os Kleist, os Gogol (não ouso citar nomes maiores, mas penso neles) — tal como são, ou talvez como devem ser, homens do momento, entusiastas, sensuais, ingênuos como crianças, impensados e súbitos na desconfiança e confiança, com almas que escondem, geralmente, um caruncho que as corrói; que talvez se vinguem nas suas obras de alguma dor interna, e frequentemente procuram nos voos elevados o esquecimento de uma memória muito fiel, homens lançados no lodo e enamorados por ele, senão a tornarem-se fogos-fátuos oscilantes em pavis, querendo se passar por estrelas — o povo os chama idealistas — talvez lutando com prolongada náusea, com o espectro, que sem cessar retorna, do ceticismo, que os torna frios e os constrange a desejar a "glória" e beber a "fé em si mesmos nas taças de ébrios aduladores", que martírio são esses artistas e os homens superiores em geral, para quem chegou a descobri-]os! É tão fácil compreender, que precisamente aquelas mulheres — que veem mais claramente no mundo das dores e que são levadas, por natureza, muito além de suas forças, a socorrer e a salvar — indicam aquela piedade ilimitada e cheia de abnegação, que o vulgo, sobretudo o vulgo que adora, não sabe compreender e interpreta a seu modo vulgar e egoisticamente. Aquela piedade se engana regularmente acerca de sua própria força, a mulher quer acreditar que o amor tudo possa — esse seu verdadeiro preconceito. Oh! os sábios do coração adivinham quão pobre, presunçoso, fácil de errar, mais fácil de destruir que de salvar é o melhor, o mais profundo amor! É possível que a santa lenda da vida de Jesus seja um dos casos mais dolorosos advindos da ciência do amor: o martírio de um coração puríssimo e ardente que não se sentia plenamente satisfeito com nenhum amor humano e que sempre pedia mais amor, que pedia loucamente, com imprecações terríveis contra aqueles que lhe negavam amor; a história de um povo sedento, incapaz de saciar-se de amor, que precisava imaginar o inferno para precipitar aqueles que não quisessem amá-lo, e que, tendo finalmente conseguido a ciência do amor humano, precisou imaginar um Deus todo amor, todo potência de amor, que tem piedade do amor humano porque é um amor mesquinho, tão ignorante! Quem sente de tal modo, quem chega a conhecer tão profundamente o amor — busca a morte. Mas por que nos ocuparmos de coisas tão dolorosas? Por que, se não somos constrangidos a isso? 270 O orgulho espiritual e a náusea de todo homem que sofreu muito — o grau social do homem é quase determinado pela profundidade de seu sofrimento — a horrível certeza, pela qual está totalmente compenetrado de, em virtude de seu sofrimento — saber mais que todos os sábios, que todos os doutos deste mundo, de conhecer muitos mundos remotos e horríveis, que conhece pela própria e amarga experiência e dos quais vós nada sabeis!" — esse orgulho espiritual e mudo de quem sofre, esta soberba do eleito do conhecimento, do "iniciado", da vítima (de certo modo), acha necessárias todas as formas de disfarce, donde manter-se distante do contato de certas mãos indiscretamente piedosas, e em gera) de tudo aquilo que não compartilha sua dor. O sofrimento profundo torna o homem aristocrático, separa-o dos outros. Uma das formas mais finas de disfarce é o epicurismo, é uma certa independência ostentada de gosto, que toma a dor com pouco caso e que se rebela ferreamente contra tudo que é triste e profundo. São homens serenamente "jucundos" no único intento de serem mal compreendidos — querem ser mal compreendidos. São homens científicos" que se valem da ciência, porque esta confere um aspecto risonho e sereno, e porque a ciência permite concluir que aqueles que se dedicam a ela são seres superficiais — querem seduzir o mundo com uma conclusão falsa. São espíritos insolentemente livres, que querem esconder e negar o fato de serem corações orgulhosos, incuráveis (o cinismo de Hamlet, o caso Galiani) e por vezes a própria loucura serve de máscara à sua malograda clarividência. Donde resulta que o humanismo delicado deve sentir veneração "pela máscara" e não tornar a psicologia insanamente curiosa algo fora de lugar. 271 Aquilo que contribui mais profundamente para separar dois indivíduos é a diferente interpretação, é diferente grau de sua pureza. O que vale a honestidade, que vale a recíproca utilidade, a boa vontade de ajudar-se um ao outro: enfim chega-se à mesma conclusão — não podem "sentir o cheiro um do outro!" O mais sublime instinto de pureza coloca aquele que o possui na mais perigosa e estranha solidão como um santo — porque isso também é santidade — a mais alta espiritualização do instinto indicado. O conhecimento da indizível felicidade de um banho purificante, uma espécie de desejo, uma sede ardente que incessantemente coloca a alma fora das trevas, à luz do sol, dos abismos da tristeza para a serenidade, para o esplendor, para tudo aquilo que é profundo, delicado — do mesmo modo que uma tal inclinação distingue — porque é uma inclinação aristocrática — também desvincula. A compaixão do santo é a piedade de todo o lodo que emporcalha tudo aquilo que é humano, demasiado humano. Existem graus e alturas em que até a compaixão de si mesmo se sente como uma coisa impura, imunda. 272 Indícios de uma natureza aristocrática: jamais aviltar os nossos deveres pensando que são os deveres de todo mundo; não renunciar jamais às próprias responsabilidades, não desejar incluir os demais nelas; colocar as próprias prerrogativas e o exercício delas no número dos próprios deveres. 273 Um homem que aspira a grandes coisas considera quem quer que se encontre em seu caminho, como um meio ou como um obstáculo, ou como um impedimento ou como um leito para repouso momentâneo. A bondade singularmente elevada para seus semelhantes que que lhe é inata, torna-se-lhe possível apenas quando atinge as alturas e domina. A impaciência e a consciência de ser condenado a uma eterna farsa, mesmo quando atingir as alturas por ele desejadas — uma vez que a própria luta é uma comédia e uma máscara, bem como todos os meios mascaram o fim — tornam-lhe insuportável todo relacionamento social; tal espécie de homem conhece profundamente a solidão, e tanto mais quanto mais veneno possuir. 274 O problema de quem está à espera — É uma ventura particular se um homem que dormita a solução de um problema chega a agir em tempo hábil — a "desafogar-se", por assim dizer. Na maior parte dos casos isto não acontece, e em todas as partes da terra existem aqueles que esperam, e ainda, que esperam em vão. Talvez o grita de despertar chegue muito tarde, o acidente que lhes permite agir se produz — quando a melhor juventude, a força para agir estão entanguidas pela prolongada inércia — e quantos percebem aterrorizados, quando estavam "para cair em pé" que seus membros estavam paralisados e seu espírito grandemente pesado. Muito tarde! — disseram a si mesmos como quem perdeu a fé em si mesmo e se sente inutilizado para sempre. — No domínio do gênio o "Rafael sem mãos"; esta expressão tomada no seu sentido mais amplo, seria talvez não a exceção, mas a regra? Talvez o gênio não seja tão raro quanto se creia? Mas são raras as quinhentas mãos que são necessárias para assenhorar-se do momento oportuno, o momento oportuno para agarrar a fortuna pelos cabelos! 275 Quem não quer ver aquilo que há de elevado no homem procura com olhar penetrante aquilo que ele possui de mais baixo e superficial e com isso trai seu próprio ser. 276 Para toda espécie de ferimento e perda a alma inferior e grosseira é mais bem constituída que a alma nobre; os perigos desta devem ser maiores, a possibilidade de que esta se perca, que se arruíne completamente é, pela multiplicidade de suas condições vitais, imensa. Na lagartixa cada dedo perdido cresce novamente, mas isso não acontece no homem. 277 Eis o que desagrada! Ainda a velha estória! Quando se acabou de construir a própria casa é que se percebe que se começou algo, que se deveria conhecer antes de abalançar-se a edificar, é sempre o maldito: "muito tarde". A melancolia de alguma coisa acabada. 278 Viajante, quem és? Vejo que seques pelo teu caminho, sem zombaria, sem amor, com olhos imperscrutáveis, úmidos e tristes, como uma sonda que sai, para a luz das profundidades das águas — que teria procurado? Teu peito não palpita, o lábio dissimula a náusea, a tua mão tateia lentamente: quem és tu? que fizeste? Repousa aqui. este é um lugar hospitaleiro para todos — restaura-te! E quem quer que sejas, que desejas com impaciência neste momento? O que poderias necessitar! Diga: o que possuo eu te ofereço. Refrigério? — Oh, ser curioso, que dizes? Deixa-me, eu te peço, nada quero! — "Que queres? diga-o!" — "Uma máscara, outra máscara!" 279 Os homens que conheceram a profundidade da tristeza, se traem quando são felizes, têm um certo modo de compreender a felicidade que parece mostrar que querem comprimi-la e sufocá-la, por ciúmes — porque sabem que, infelizmente, essa logo fugirá. 280 "Mal! Mal! Como que ele não vai para a frente? Sim! Mas é mal compreendido se é lamentado por isso. Caminha para diante, como se estivesse para dar um grande salto." 281 E crer-se-á em mim? Mas eu exijo que se me creia, sempre pensei pouco e mal em mim mesmo, e apenas em casos muito raros, à força e sem grande entusiasmo, sempre pronto a afastar o pensamento de "mim" mesmo, sem fé no resultado em virtude de uma invencível desconfiança contra a possibilidade do conhecimento de si mesmo, a qual me reduziu ao ponto de sentir até no conceito "conhecimento imediato" uma “contradictio in adjecto" — isto é o que de mais certo sei a meu respeito. Isto deve ser uma espécie de repugnância em mim, a repugnância de crer em algo determinado acerca de mim. — Talvez nisso tudo se esconda um enigma? Provavelmente, mas não é para meu bico. Talvez isso traia a espécie a que pertenço? — Mas não trai a mim, quanto a isso estou tranquilo. 282 Mas o que te aconteceu? — Não o sei, talvez as harpias tenham voado sobre minha mesa. — Acontece agora, talvez, que um homem cheio de moderação e cuidado seja tomado repentinamente de loucura furiosa, a ponto de quebrar os pratos, virar a mesa, de gritar e provocar escândalos, de injuriar todo mundo, de se retirar finalmente em um canto, envergonhado, furioso consigo mesmo, num canto para quê? Para morrer famélico? Para ser sufocado pela memória? — Quem sente os desejos de uma alma elevada é escrupuloso no escolher e geralmente encontra preparada sua mesa, preparado o alimento de que tem necessidade, correrá em todos os tempos um grande perigo; mas atualmente o perigo é maior que nunca. Ver-se envolvido numa época oca e plebeia, com a qual não pode repartir alimento, é muito provável que morra de fome ou de sede, e quando — raridade — tenha a coragem de compartilhar — possa parecer de nojo súbito. Todos nós provavelmente fomos seduzidos por mesas que não se destinavam a nós — e precisamente os mais espirituais entre nós, que são os mais difíceis de se encontrarem esfaimados, conhecem muito bem aquela "dispepsia" perigosa que surge de uma conscientização repentina da má qualidade da ceva e da companhia que nos circunda — a náusea au dessert. 283 É um modo aristocrático e delicado de assenhorar-se de si mesmo, aquele de louvar quando se deve louvar, particularmente nos casos em que não se está de acordo com os outros — em caso contrário louvar-se-ia no fundo a si mesmo, o que é contrário ao bom goste. Um tal modo de dominar a si mesmo dá sempre ocasião a ser subentendido constantemente. Para que se possa conceder-se esse luxo real de bom gosto e de moralidade, é preciso não viver, é claro, em meio a cretinos em termos de espírito, mas entre indivíduos cujos mal-entendidos e cujas conclusões errôneas divirtam, pelo menos, em razão de sua finura, caso contrário deveremos nos arrepender amargamente. — Ele me louva, logo me dá razão. Esta conclusão asinina nos alivia, a nós solitários, uma boa metade da vida, porque torna os asnos nossos vizinhos e amigos. 284 Viver numa indiferença imensa e orgulhosa — sempre além. Ter e não ter, segundo a própria vontade, as próprias emoções, os próprios prós e contras, dignar-se descer a isso, em algum momento, olhar com olhos de cavalo ou de asno — sabendo assim aproveitar de seu vazio como de sua objetividade. Conservar em si mesmo todas as trezentas superficialidades, também óculos escuros, já que existem casos em que ninguém deve ler em nossos olhos e menos ainda em nossos "bons motivos". Eleger como nosso companheiro inseparável aquele vício impertinente e jucundo, que se chama cortesia. E manter-se senhor das quatro virtudes: coragem, sagacidade, a compaixão e a solidão. Uma vez que para nós a solidão é uma virtude, enquanto propensão a necessidade de pureza, que adivinha como deve ser o contato de homem para homem — "em sociedade" — contato inevitavelmente impuro. Toda comunicação acaba por tornar, de algum modo, em algum lugar, em algum tempo, "vulgar". 285 Os maiores acontecimentos e as maiores ideias — e as ideias maiores são também os maiores acontecimentos — são os últimos a serem compreendidos, as gerações contemporâneas não chegam a vivê-los — passam sempre ao lado deles. Acontece na vida como acontece entre os astros. A luz das estrelas mais longínquas chega mais tarde até nós e tanto que o homem que não as percebeu nega a sua existência. "Quantos séculos necessita um espírito para ser compreendido?" — Mesmo isso é uma medida que por isso mesmo cria uma hierarquia, uma etiqueta indispensável para o espírito tanto quanto para os astros. 286 "Aqui a vida é livre, o espírito elevado" (Verso do Fausto de Goethe, segunda parte, ato V) — Mas existe uma espécie diferente de homem que se encontra também no alto e tem o horizonte livre — mas olha para baixo. 287 O que é aristocrático? Qual é o significado da palavra "aristocrático"? O que se reconhece, se adivinha hoje sob este céu pesado e profundamente nublado pela incipiente soberania da plebe, que torna tudo impenetrável e cinzento, o homem aristocrático? — Não são as ações que o revelam, as ações são sempre sujeitas a interpretações múltiplas e por isso mesmo, impenetráveis, e nem mesmo as "obras". Entre os artistas e os cientistas encontramos atualmente muitos que com suas obras mostram que um desejo ardente os dirige rumo ao que é nobre, mas precisamente este desejo ardente, esta necessidade do aristocrático é que são fundamentalmente diferentes das necessidades da alma propriamente aristocrática, e contrariamente é a característica mais eloquente e perigosa de que precisamente lhes falta. Não a obra, a fé é que é decisiva nesses casos, ela é que determina a hierarquia, para empregar uma antiga fórmula religiosa num significado novo e mais profundo; uma espécie de certeza fundamental que a alma aristocrática tem acerca de si mesma algo que não se pode procurar e não se pode achar e talvez nem mesmo perder. — A alma aristocrática venera a si mesma. 288 Existem certos homens condenados a ter espírito mesmo quando fazem o possível para escondê-lo, mesmo quando se colocam as mãos diante dos olhos que o traem (como se a mão não servisse também para traí-lo), enfim sempre vem à nossa cabeça que ele quer esconder algo, o espírito. Um dos meios mais finos, pelo menos para poder enganar o mais possível, e fazer-se acreditar com maior probabilidade de sucesso — coisa tão desejável na vida comum quanto um guarda-chuva — chama-se entusiasmo, e juntando-se lhe alguns acessórios, por exemplo a virtude, já que, como diz Galiani, que devia sabê-lo: "vertu est enthousiasme". 289 Percebe-se sempre nos escritos de um solitário algo como o eco do deserto, como o murmúrio e o olhar tímido da solidão, as suas expressões mais enérgicas, até seu grito, ressaltam também em uma nova espécie nova e mais perigosa de calar, o subentender. Em quem, por anos inteiros, dia e noite, permanece só com sua alma e com ela discute amigavelmente, quem em sua própria profundidade — que pode ser um labirinto ou uma mina. de ouro — torna-se urso em sua caverna, o caçador de tesouros, ou ainda o custódio do tesouro, o monstro que veta o acesso ao tesouro, os próprios conceitos assumem com o tempo uma certa cor crepuscular, recendem um odor de profundidade, um bafio de mofo, têm qualquer coisa de incomunicável e repugnante, cada qual que lhe passa nas proximidades sente uma lufada de ar frio. O solitário jamais acreditará que um filósofo admitindo que um filósofo seja antes de tudo um solitário — tenha escrito num livro as suas verdadeiras e últimas opiniões: os livros não são escritos para esconder o que se tem de mais íntimo? Sim, duvidará, que um filósofo possa ter opiniões próprias e finais e suspeitará que atrás de sua caverna se esconde uma outra caverna ainda mais funda — um mundo mais vasto mais estranho, mais rico que à superfície, uma profundidade atrás de cada fundo, sob todo "fundamento". Toda filosofia é uma filosofia da superfície, esta a convicção do solitário: "há nisto algo de arbitrário se parou por aqui, olhando atrás e em torno de si, se não escavou aqui mais profundamente e atirou fora as ferramentas — e tudo isso gera desconfiança". Toda filosofia esconde uma outra filosofia; toda opinião é um esconderijo, toda palavra uma nova máscara. 290 O pensador profundo teme mais profundamente ser Compreendido do que ser mal compreendido. Neste último caso sofrerá sua vaidade, mas no primeiro o seu coração, a sua compaixão, que repetem: mas por que desejais, também vós, portar o meu peso? 291 O homem, um animal múltiplo, artificioso e impenetrável, temível para os animais menos pela sua força que pela sua astúcia e prudência, inventou a boa consciência para poder finalmente fruir a simplicidade da sua alma; e toda a moral é uma falsificação corajosa e perene, mediante a qual sobretudo é possível fruir a contemplação da alma. Deste ponto de vista no conceito "arte" estão incluídas muito mais coisas do que geralmente se acredita. 292 Um filósofo é um homem que vive, sente, escuta, suspeita, espera e sonha sempre com coisas extraordinárias, que parece colher as próprias ideias de fora, do alto e debaixo, como uma espécie de acontecimentos apenas a ele reservados e que chegam até ele como raios, e talvez, ele mesmo seja um furacão, prenhe de raios, um homem fatal, em torno do qual se ouve incessantemente o ruído sinistro do trovão. Um filósofo, infelizmente, é por vezes um ser que foge de si mesmo, que frequentemente tem medo de si, mas que é muito curioso, para deixar de voltar, sempre, para si mesmo. 293 Um homem que diz: "isto me agrada, aproprio-me disto e quero protegê-lo e defendê-lo contra tudo"; um homem que se sente capaz de pelejar por uma causa, de levar a cabo uma resolução, de manter uma ideia, de prender uma mulher, de punir e abater um temerário, um homem que tem sua cólera e sua espada, e perto dos quais os fracos, os aflitos, e oprimidos gostam de se refugiar, como animais, como seus tributários naturais, resumindo, um homem que nasceu "senhor" — se um homem como este é tocado pela piedade, neste caso, a piedade tem um valor. Mas que importa a piedade daqueles que por si sós inspiram piedade? Ou daqueles que pregam a piedade! Em quase toda parte da Europa se encontra hoje uma irritabilidade, uma sensibilidade mórbida pela dor e ao mesmo tempo, uma incontinência excessiva no lamentar-se, uma efeminação que quer se dar um ar de superioridade sob o espectro da religião ou o ouropel filosófico — decretou-se um verdadeiro culto ao sofrimento. A falta de virilidade daquilo que foi batizado com o nome de piedade em certos cenáculos sentimentais, é sempre, a meu ver, a primeira coisa que se mostra. — É necessário banir enérgica e radicalmente este mau gosto da última moda — e eu desejo, finalmente, que preso ao pescoço e sobre o coração se traga o amuleto do “gaio saber" — "a gaia ciência" para que se possa compreender-me facilmente. 294 O vício olímpico — A despeito daquele filósofo que como verdadeiro inglês caluniou o riso em todos os pensadores — "o riso é uma verdadeira enfermidade da natureza humana, que todo ser pensante deverá saber vencer" (Hobbes) — eu me permitirei instituir uma classificação dos filósofos segundo a classe a que pertence seu riso — até chegar àqueles que são capazes do riso áureo. E supondo que também os Deuses se ocupem com a filosofia, suposição à qual sou levado por várias razões — não duvido que saibam rir dum modo novo e sobre-humano — acerca das coisas mais sérias, inclusive! Os deuses sentem-se inclinados pelo escárnio, mesmo nas cerimônias sagradas parece que não podem conter o riso. 295 O gênio do coração, como possui aquele grande incógnito, o deus tentador e sedutor de consciências, cuja voz sabe descer até os últimos desvãos da alma, de quem cada palavra, cada olhar, são alimento, cuja propriedade especial é saber parecer — não aquilo que ele é, mas aquilo que para aqueles que o sequem é mais uma imposição para se aproximarem mais e mais e para segui-lo sempre mais íntima e radicalmente: o gênio do coração que faz emudecer todas as vozes altas e vaidosas e ensina a escutar o silêncio, que nivela as almas rudes inspirando-lhes novos desejos — de jazer silenciosas como as águas de um lago a fim de que os céus possam se espelhar nelas — o gênio do coração que sabe reter toda mão inábil e pressurosa, ensinando-as a serem mais delicadas, que sabe adivinhar o tesouro escondido e esquecido, a gota de bondade e de espiritualidade escondida sob a crosta endurecida do gelo, que é uma vara mágica para cada pepita de ouro, aprisionado demoradamente no lodo e na areia: o gênio do coração a cujo contato qualquer um se sente mais rico, não surpreso e beneficiado, não feliz e opresso por ter obtida algo que não seu, mas mais rico de si mesmo, ou sentir-se renovado, desabrochado, vergado e, acariciado pelo sopro do zéfiro, mais terno, mais frágil, mais confuso, mas pleno de esperança inominável, de nova vontade, novas energias, novos desdéns, novos valores do passado — mas que eu faço, meus amigos? De que estou falando? Tive tamanha desconsideração a ponto de não citar seu nome! Se não tiverem adivinhado até agora, quem é este espírito, este deus misterioso, que quer ser louvado como tal. Como acontece com aqueles que desde a infância sempre se encontraram em marcha e entre estranhos, também a minha vida foi atravessada por muitos e variados espíritos, de muitas espécies, singulares e por vezes perigosos, mas antes de nenhum outro por Dionisos, aquele deus ambíguo e tentador, o qual, como sabeis, em todo segredo e veneração, em tempos passados, sacrifiquei minhas premissas (o último talvez que ofereceu sacrifícios a ele, uma vez que não encontrei ninguém que tivesse compreendido aquilo que eu fiz então). Desde então aprendi muito, muitas coisas acerca da filosofia deste deus, e como disse, de ponta a ponta, eu, o último discípulo, o último iniciado do deus Dionisos, e parece-me que é lícito que eu dê um pequeno resumo dessa filosofia aos meus amigos, não acham? A meia voz. como é conveniente, são coisas muito secretas, novas, estranhas, sinistras. Desde o fato de que Dionisos seja filósofo. e que consequentemente os deuses também se ocupem da filosofia, parece-me uma coisa nova, que dá muito no que pensar e que precisamente entre os filósofos será acolhida com desconfiança. Entre nós, meus amigos, essa não encontrará grande oposição, e talvez porque vós chegue tarde, fora do momento oportuno, uma vez que atualmente acreditais de má vontade em Deus e nos deuses. Talvez ainda pela razão, que na sinceridade da minha razão deverei ter ido longe, mais longe do que pode suportar o hábito de vossos ouvidos? É certo que Deus, o Deus citado nesse colóquio andava mais adiante e "me precedia em alguns passos". Se lhe fosse lícito conferir, para uso dos homens, epítetos solenes e virtuosos, deverei louvar muito sua coragem como explorador e descobridor, sua perigosa honestidade, sua sinceridade e seu amor pela sapiência. Mas de todas essa veneráveis quinquilharias um deus como esse não poderia fazer nada. "Conserva isso", ele me diria, "para teu uso e de teus pares e quem necessitar! Não tenho nenhum motivo para esconder minha nudez! — Isso é claro, talvez esta espécie de deus e filósofo não tenha pudor! — Uma outra vez ele disse: "Em certas circunstâncias amo o homem" — e dizendo isso se referia a Ariadne que estava presente — "o homem me parece ser um animal amável, valoroso e engenhoso, que não tem igual na terra e que sabe encontrar o fio em todos os labirintos." "Quero-o bem, penso como poderei fazê-lo progredir ainda mais e torná-lo mais forte, mais maligno e mais profundo, do que foi até agora." "Mais forte, mais profundo, mais maligno? — perguntei espantado... Sim, repetiu, "mais forte, mais maligno, mais profundo e ainda mais belo — acrescentou o deus tentador sorrindo seu riso alciônico, como se tivesse dito algo sumamente gentil. Por aqui vemos que aquela divindade não carece apenas de pudor — antes, existem boas razões de lembrar, que para certas coisas os deuses, todos eles, podem parecer muito humanos. Nós, homens, somos muito mais — humanos. 296 Que será de vós, meus pensamentos, uma vez escritos e pintados? Não há muito, éreis ainda tão vários, jovens, maliciosos, pontiagudos, cheios de drogas picantes, a ponto de me fazerem esternutar e rir — e agora? Estais espoliados do manto da novidade, e temo que alguns de vós estão prestes a se traduzirem em verdade, tanto têm ar de imortalidade, dolorosamente verídicos e tão enfadonhos! E isso já foi diferente? Que escrevemos, que pintamos, nós, mandarins de pincel chinês, nós, imortalizadores das coisas, que se deixam escrever, que poderemos pintar por nós mesmos? Sempre aquilo que está definhando começa a perder a sua fragrância. Nada além de furações, que se extinguem exaustos, nada além de sentimentos tardos e enregelados! Nada além de passarinhos entanguidos por terem voado e por terem voado muito alto, que agora deixam-se apanhar com a mão — com a nossa mão! Imortalizamos aquilo que não poderá ter vida longa, aquilo que não poderá voar, coisas estanques e podres! É pelo vosso ocaso sobretudo, meus pensamentos, escritos e multicores, tenho ainda cores, talvez muitas cores, muitas ternuras multicores e cinquenta gradações de amarelo e marrom, de verde e vermelho — mas por tudo isso, ninguém saberá adivinhar como me aparecesses em vossa manhã, oh vós! -; centelhas imprevisíveis, prodígios da minha solidão, oh vós meus antigos, adorados, meus maus pensamentos! EPÍLOGO DO ALTO DOS MONTES Oh! Meio dia da vida! Época solene! Oh! jardim de estio! Beatitude inquieta da ansiedade na espera: espero meus amigos, noite e dia, onde estais, amigos meus? Vinde! É tempo, é tempo! Não é por vós que o gelo cinzento hoje se adorna com rosas? A vós procura o rio, suspensos nos céus ventos e nuvens se alevantam para observar vossa chegada. competindo com o mais sublime voo dos pássaros. No meu santuário coloquei a mesa: Quem vive mais próximo das estrelas e das horríveis profundezas do abismo? Que reino mais extenso que o meu? E do mel, daquele que é meu, que sentiu seu fino aroma? Aqui estais, finalmente, meus amigos! Ai! não é a mim que procuras? Hesitais, mostrais surpresa? Insultai-me é melhor! Eu não sou mais eu? Mudei de mão, de rosto, de andar? O que eu era, amigos, acaso não mais sou? Tornei-me, talvez, outro? Estranho a mim mesmo? De mim mesmo, fugido? Lutador que muitas vezes venceu a si mesmo? Que muitas vezes lutou contra a própria força, ferido, paralisado pelas vitórias contra si mesmo? Porventura não procurei os mais ásperos ventos e aprendi a viver onde ninguém habita, nos desertos onde impera o urso polar? Não esqueci a Deus e ao homem, blasfêmias e orações? Tornei-me um fantasma das geleiras. Oh! meus velhos amigos, vossos rostos empalidecem de imediato, transtornados de ternura e espanto! Andai, sem rancor! Não podeis demorar aqui! Não é para vós este país de geleiras e rochas! Aqui é preciso ser caçador e antílope! Converti-me em caçador cruel. Vede meu arco: a tensão de sua corda! Apenas o mais forte poderá arremessar tal dardo. Mas não há nenhuma seta mortal copo esta. Afastai-vos, se tendes amor à vossa vida! Fugis de mim!? Oh, coração, quanto sofreste! E entretanto, tua esperança ainda se mantém firme! Abre tuas portas a novos amigos, renuncia aos antigos e às lembranças! Fostes jovem? — Pois agora és mais e com mais brio. Quem pode decifrar os signos apagados, do laço que une com uma mesma esperança? Signos que em outros tempos escreveu o amor, que luzem como velho pergaminho queimado que se teme tocar, como ele. queimado e enegrecido! Basta de amigos! Como chamá-los? Fantasmas de amigos! Que de noite, tentam ainda meu coração e minha janela e me olham sussurrando: "Somos nós"! Oh! Ressequidas palavras, um dia fragrantes como rosas! Sonhos juvenis tão cheios de ilusão, aos quais buscava no impulso de minh’alma, agora os vejo envelhecidos! Apenas os que sabem mudar são os de minha linhagem. Oh! Meio dia da vida! Oh! segunda juventude! Oh! jardim de estio! Beatitude inquieta na ansiedade da espera! Os amigos esperam, dia e noite, os novos amigos. Vinde! É tempo! É tempo! O hino antigo cessou de soar, O doce grito do desejo expira em meus lábios. Na hora fatídica apareceu um encantador, o amigo do pleno meio-dia. Não, não me pergunteis quem é: ao meio-dia, o que era um, dividiu-se em dois. Celebremos, seguros de uma mesma vitória, a festa das festas! Zaratustra está ali, o amigo, o hóspede dos hóspedes! O mundo ri, o odioso véu cai, E eis que a luz se casa com a misteriosa, subjugadora Noite.