Platão - Apolodoro e um Companheiro APOLODORO - Creio que a respeito do que quereis saber não estou sem preparo. Com efeito, subia eu há pouco à cidade, vindo de minha casa em Falero, quando um conhecido atrás de mim avistou-me e de longe me chamou, exclamando em tom de brincadeira: “Falerino! Eh, tu, Apolodoro! Não me esperas?” Parei e esperei. E ele disse-me: “Apolodoro, há pouco mesmo eu te procurava, desejando informar-me do encontro de Agatão, Sócrates, Alcibíades, e dos demais que então assistiram ao banquete, e saber dos seus discursos sobre o amor, como foram eles. Contou-nos uma outra pessoa que os tinha ouvido de Fênix, o filho de Filipe, e que disse que também tu sabias. Ele, porém, nada tinha de claro a dizer. Conta-me então, pois és o mais apontado a relatar as palavras do teu companheiro. E antes de tudo, continuou, dize-me se tu mesmo estiveste presente àquele encontro ou não.” E eu respondi-lhe: “É muitíssimo provável que nada de claro te contou o teu narrador, se presumes que foi há pouco que se realizou esse encontro de que me falas, de modo a também eu estar presente. Presumo, sim, disse ele. De onde, ó Glauco?, tornei-lhe. Não sabes que há muitos anos Agatão não está na terra, e desde que eu frequento Sócrates e tenho o cuidado de cada dia saber o que ele diz ou faz, ainda não se passaram três anos? Anteriormente, rodando ao acaso e pensando que fazia alguma coisa, eu era mais miserável que qualquer outro, e não menos que tu agora, se crês que tudo se deve fazer de preferência à filosofia”. “Não fiques zombando, tornou ele, mas antes dize-me quando se deu esse encontro”. “Quando éramos crianças ainda, respondi-lhe, e com sua primeira tragédia Agatão vencera o concurso, um dia depois de ter sacrificado pela vitória, ele e os coristas. Faz muito tempo então, ao que parece, disse ele. Mas quem te contou? O próprio Sócrates? Não, por Zeus, respondi-lhe, mas o que justamente contou a Fênix. Foi um certo Aristodemo, de Cidateneão, pequeno, sempre descalço; ele assistira à reunião, amante de Sócrates que era, dos mais fervorosos a meu ver. Não deixei todavia de interrogar o próprio Sócrates sobre a narração que lhe ouvi, e este me confirmou o que o outro me contara. Por que então não me contas­te? tornou-me ele; perfeitamente apropriado é o caminho da cidade a que falem e ouçam os que nele transitam.” E assim é que, enquanto caminhávamos, fazíamos nossa conversa girar sobre isso, de modo que, como disse ao início, não me encontro sem preparo. Se, portanto, é preciso que também a vós vos conte, devo fazê-lo. Eu, aliás, quando sobre filosofia digo eu mesmo algumas palavras ou as ouço de outro, afora o proveito que creio tirar, alegro-me ao extremo; quando, porém, se trata de outros assuntos, sobretudo dos vossos, de homens ricos e negociantes, a mim mesmo me irrito e de vós me apiedo, os meus companheiros, que pensais fazer algo quando nada fazeis. Talvez também vós me considereis infeliz, e creio que é verdade o que presumis; eu, todavia, quanto a vós, não presumo, mas bem sei. COMPANHEIRO - És sempre o mesmo, Apolodoro! Sempre te estás maldizendo, assim como aos outros; e me pareces que assim sem mais consideras a todos os outros infelizes, salvo Sócrates, e a começar por ti mesmo. Donde é que pegaste este apelido de mole, não sei eu; pois em tuas conversas és sempre assim, contigo e com os outros esbravejas, exceto com Sócrates. APOLODORO - Caríssimo, e é assim tão evidente que, pensando desse modo tanto de mim como de ti, estou eu delirando e desatinando? COMPANHEIRO - Não vale a pena, Apolodoro, brigar por isso agora; ao contrário, o que eu te pedia, não deixes de fazê-lo; conta quais foram os discursos. APOLODORO - Foram eles em verdade mais ou menos assim... Mas antes é do começo, conforme me ia contando Aristodemo, que também eu tentarei contar-vos. Disse ele que o encontrara Sócrates, banhado e calçado com as sandálias, o que poucas vezes fazia; perguntou-lhe então onde ia assim tão bonito. Respondeu-lhe Sócrates: - Ao jantar em casa de Agatão. Ontem eu o evitei, nas cerimônias da vitória, por medo da multidão; mas concordei em comparecer hoje. E eis por que me embelezei assim, a fim de ir belo à casa de um belo. E tu - disse ele - que tal te dispores a ir sem convite ao jantar? - Como quiseres - tomou-lhe o outro. - Segue-me, então - continuou Sócrates - e estraguemos o provérbio, alterando-o assim: “A festins de bravos, bravos vão livremente.” Ora, Homero parece não só estragar mas até desrespeitar este provérbio; pois tendo feito de Agamenão um homem excepcionalmente bravo na guerra, e de Menelau um “mole lancei­ro”, no momento em que Agamenão fazia um sacrifício e se banqueteava, ele imaginou Menelau chegado sem convite, um mais fraco ao festim de um mais bravo. Ao ouvir isso o outro disse: - É provável, todavia, ó Sócrates, que não como tu dizes, mas como Homero, eu esteja para ir como um vulgar ao festim de um sábio, sem convite. Vê então, se me levas, o que deves dizer por mim, pois não concordarei em chegar sem convite, mas sim convidado por ti. - Pondo-nos os dois a caminho - disse Sócrates - decidiremos o que dizer. Avante! Após se entreterem em tais conversas, dizia Aristodemo, eles partem. Sócrates então, como que ocupando o seu espírito consigo mesmo, caminhava atrasado, e como o outro se detivesse para aguardá-lo, ele lhe pede que avance. Chegado à casa de Agatão, encontra a porta aberta e aí lhe ocorre, dizia ele, um incidente cômico. Pois logo vem-lhe ao encontro, lá de dentro, um dos servos, que o leva onde se reclinavam os outros, e assim ele os encontra no momento de se servirem; logo que o viu, Agatão exclamou: - Aristodemo! Em boa hora chegas para jantares conosco! Se vieste por algum outro motivo, deixa-o para depois, pois ontem eu te procurava para te convidar e não fui capaz de te ver. Mas... e Sócrates, como é que não o trazes? - Voltando-me então - prosseguiu ele - em parte alguma vejo Sócrates a me seguir; disse-lhe eu então que vinha com Sócrates, por ele convidado ao jantar. - Muito bem fizeste - disse Agatão; - mas onde está esse homem? - Há pouco ele vinha atrás de mim; eu próprio pergunto espantado onde estaria ele. - Não vais procurar Sócrates e trazê-lo aqui, menino? - exclamou Agatão. - E tu, Aristodemo, reclina­-te ao lado de Erixímaco. Enquanto o servo lhe faz ablução para que se ponha à mesa, vem um outro anunciar: - Esse Sócrates retirou-se em frente dos vizinhos e parou; por mais que eu o chame não quer entrar. - É estranho o que dizes - exclamou Agatão; - vai chamá-lo! E não o largues! Disse então Aristodemo: Mas não! Deixai-o! É um hábito seu esse: às vezes retira-se onde quer que se encontre, e fica parado. Virá logo, porém, segundo creio. Não o incomodeis por­tanto, mas deixai-o. - Pois bem, que assim se faça, se é teu parecer - tornou Agatão. - E vocês, meninos, atendam aos convivas. Vocês bem servem o que lhes apraz, quando ninguém os vigia, o que jamais fiz; agora portanto, como se também eu fosse por vocês convidado ao jantar, como estes outros, sirvam-nos a fim de que os louvemos. - Depois disso - continuou Aristodemo - puseram-se a jantar, sem que Sócrates entrasse. Agatão muitas vezes manda chamá-lo, mas o amigo não o deixa. Enfim ele chega, sem ter demorado muito como era seu costume, mas exatamente quando estavam no meio da refeição. Agatão, que se encontrava reclinado sozinho no último leito, exclama: — Aqui, Sócrates! Reclina-te ao meu lado, a fim de que ao teu contato desfrute eu da sábia ideia que te ocorreu em frente de casa. Pois é evidente que a encontraste, e que a tens, pois não terias desistido antes. Sócrates então senta-se e diz: - Seria bom, Agatão, se de tal natureza fosse a sabedoria que do mais cheio escorresse ao mais vazio, quando um ao outro nos tocássemos, como a água dos copos que pelo fio de lã escorre do mais cheio ao mais vazio. Se é assim também a sabedoria, muito aprecio reclinar-me ao teu lado, pois creio que de ti serei cumulado com uma vasta e bela sabedoria. A minha seria um tanto ordinária, ou mesmo duvidosa como um sonho, enquanto a tua é brilhante e muito desenvolvida, ela que de tua mocidade tão intensamente brilhou, tornando-se anteontem manifesta a mais de trinta mil gregos que a testemunharam. - És um insolente, ó Sócrates - disse Agatão. - Quanto a isso, logo mais decidiremos eu e tu da nossa sabedoria, tomando Dioniso por juiz; agora, porém, primeiro apronta-te para o jantar. - Depois disso - continuou Aristodemo - reclinou-se Sócrates e jantou como os outros; fizeram então libações e, depois dos hinos ao deus e dos ritos de costume, voltam-se à bebi­da. Pausânias então começa a falar mais ou menos assim: - Bem, senhores, qual o modo mais cômodo de bebermos? Eu por mim digo-vos que estou muito indisposto com a bebedeira de ontem, e preciso tomar fôlego - e creio que também a maioria dos senhores, pois estáveis lá; vede então de que modo poderíamos beber o mais comodamente possível. Aristófanes disse então: - É bom o que dizes, Pausânias, que de qualquer modo arranjemos um meio de facilitar a bebida, pois também eu sou dos que ontem nela se afogaram. Ouviu-os Erixímaco, o filho de Acúmeno, e lhes disse: - Tendes razão! Mas de um de vós ainda preciso ouvir como se sente para resistir à bebida; não é, Agatão? - Absolutamente - disse este - também eu não me sinto capaz. - Uma bela ocasião seria para nós, ao que parece - continuou Erixímaco - para mim, para Aristodemo, Fedro e os outros, se vós os mais capa­zes de beber desistis agora; nós, com efeito, somos sempre incapazes; quanto a Sócrates, eu o excetuo do que digo, que é ele capaz de ambas as coisas e se contentará com o que quer que fizermos. Ora, como nenhum dos presentes parece disposto a beber muito vinho, talvez, se a respeito do que é a embriaguez eu dissesse o que ela é, seria menos desagradável. Pois para mim eis uma evidência que me veio da prática da medicina: é esse um mal terrível para os homens, a embriaguez; e nem eu próprio desejaria beber muito nem a outro eu o aconselharia, sobretudo a quem está com ressaca da véspera. - Na verdade - exclamou a seguir Fedro de Mirrinote - eu costumo dar-te atenção, principalmente em tudo que dizes de medicina; e agora, se bem decidirem, também estes o farão. Ouvindo isso, concordam todos em não passar a reunião embriagados, mas bebendo cada um a seu bel-prazer. - Como então - continuou Erixímaco - é isso que se decide, beber cada um quanto quiser, sem que nada seja forçado, o que sugiro então é que mandemos embora a flautista que acabou de chegar, que ela vá flautear para si mesma, se quiser, ou para as mulheres lá dentro; quanto a nós, com discursos devemos fazer nossa reunião hoje; e que discursos - eis o que, se vos apraz, desejo propor-vos. Todos então declaram que lhes apraz e o convidam a fazer a proposição. Disse então Erixímaco: - O exórdio de meu discurso é como a Melanipa de Eurípides; pois não é minha, mas aqui de Fedro a história que vou dizer. Fedro, com efeito, frequentemente me diz irritado: - Não é estranho, Erixímaco, que para outros deuses haja hinos e peãs, feitos pelos poetas, enquanto ao Amor todavia, um deus tão venerável e tão grande, jamais um só dos poetas que tanto se engrandeceram fez sequer um encômio? Se queres, observa também os bons sofistas: a Hércules e a outros eles compõem louvores em prosa, como o excelente Pródico - e isso é menos de admirar, que eu já me deparei com o livro de um sábio em que o sal recebe um admirável elogio, por sua utilidade; e outras coisas desse tipo em grande número poderiam ser elogiadas; assim portanto, enquanto em tais ninharias despendem tanto esforço, ao Amor nenhum homem até o dia de hoje teve a coragem de celebrá-lo condignamente, a tal ponto é negligenciado um tão grande deus! Ora, tais palavras parece que Fedro as diz com razão. Assim, não só eu desejo apresentar-lhe a minha quota e satisfazê-lo como ao mesmo tempo, parece-me que nos convém, aqui presentes, venerar o deus. Se então também a vós vos parece assim, poderíamos muito bem entreter nosso tempo em discursos; acho que cada um de nós, da esquerda para a direita, deve fazer um discurso de louvor ao Amor, o mais belo que puder, e que Fedro deve começar primeiro, já que está na ponta e é o pai da ideia. - Ninguém contra ti votará, ó Erixímaco - disse Sócrates. - Pois nem certamente me recusaria eu, que afirmo em nada mais ser entendido senão nas questões de amor, nem sem dúvida Agatão e Pausânias, nem tampouco Aristófanes, cuja ocupação é toda em tomo de Dioniso e de Afrodite, nem qualquer outro destes que estou vendo aqui. Contudo, não é igual a situação dos que ficamos nos últimos lugares; todavia, se os que estão antes falarem de modo suficiente e belo, bastará. Vamos, pois, que em boa sorte comece Fedro e faça o seu elogio do Amor. Estas palavras tiveram a aprovação de todos os outros, que também aderi­ram às exortações de Sócrates. Sem dúvida, de tudo que cada um deles disse, nem Aristodemo se lembrava bem, nem por minha vez eu me lembro de tudo o que ele disse; mas o mais importante, e daqueles que me pareceu que valia a pena lembrar, de cada um deles eu vos direi o seu discurso. Primeiramente, tal como agora estou dizendo, disse ele que Fedro começou a falar mais ou menos desse ponto, “que era um grande deus o Amor, e admirado entre homens e deuses, por muitos outros títulos e sobre­tudo por sua origem. Pois o ser entre os deuses o mais antigo é honroso, dizia ele, e a prova disso é que genitores do Amor não os há, e Hesíodo afirma que primeiro nasceu o Caos - ... e só depois Terra de largos seios, de tudo assento sempre certo, e Amor... Diz ele então que, depois do Caos foram estes dois que nasceram, Terra e Amor. E Parmênides diz da sua origem bem antes de todos os deuses pensou em Amor. E com Hesíodo também concorda Acusilau. Assim, de muitos lados se reconhece que Amor é entre os deuses o mais antigo. E sendo o mais antigo é para nós a causa dos maiores bens. Não sei eu, com efeito, dizer que haja maior bem para quem entra na mocidade do que um bom amante, e para um amante, do que o seu bem-amado. Aquilo que, com efeito, deve dirigir toda a vida dos homens, dos que estão prontos a vivê-la nobremente, eis o que nem a estirpe pode incutir tão bem, nem as honras, nem a riqueza, nem nada mais, como o amor. A que é então que me refiro? À vergonha do que é feio e ao apreço do que é belo. Não é com efeito possível, sem isso, nem cidade nem indivíduo produzir grandes e belas obras. Afirmo eu então que todo homem que ama, se fosse descoberto a fazer um ato vergonhoso, ou a sofrê-lo de outrem sem se defender por covardia, visto pelo pai não se envergonharia tanto, nem pelos amigos nem por ninguém mais, como se fosse visto pelo bem-amado. E isso mesmo é o que também no amado nós notamos, que é sobretudo diante dos amantes que ele se envergonha, quando surpreendido em algum ato vergonhoso. Se por conseguinte algum meio ocorresse de se fazer uma cidade ou uma expedição de amantes e de amados, não haveria melhor maneira de a constituírem senão afastando-se eles de tudo que é feio e porfiando entre si no apreço à honra; e quando lutassem um ao lado do outro, tais soldados vence­riam, por poucos que fossem, por assim dizer todos os homens. Pois um homem que está amando, se deixou seu posto ou largou suas armas, aceita­ria menos sem dúvida a ideia de ter sido visto pelo amado do que por todos os outros, e a isso preferiria muitas vezes morrer. E quanto a abandonar o amado ou não socorrê-lo em perigo, ninguém há tão ruim que o próprio Amor não o torne inspirado para a virtude, a ponto de ficar ele semelhante ao mais generoso de natureza; e sem mais rodeios, o que disse Homero “do ardor que a alguns heróis inspira o deus”, eis o que o Amor dá aos amantes, como um dom emanado de si mesmo. E quanto a morrer por outro, só o consentem os que amam, não apenas os homens, mas também as mulheres. E a esse respeito a filha de Pélias, Alceste, dá aos gregos uma prova cabal em favor dessa afirmativa, ela que foi a única a consentir em morrer pelo marido, embora tivesse este pai e mãe, os quais ela tanto excedeu na afeição do seu amor que os fez aparecer como estranhos ao filho, e parentes apenas de nome; depois de praticar ela esse ato, tão belo pareceu ele não só aos homens mas até aos deuses que, embora muitos tenham feito muitas ações belas, foi a um bem reduzido número que os deuses concederam esta honra de fazer do Hades subir nova­mente sua alma, ao passo que a dela eles fizeram subir, admirados do seu gesto; é assim que até os deuses honram ao máximo o zelo e a virtude no amor. A Orfeu, o filho de Eagro, eles o fizeram voltar sem o seu objetivo, pois foi um espectro o que eles lhe mostra­ram da mulher a que vinha, e não lhe deram, por lhes parecer que ele se acovardava, citaredo que era, e não ousava por seu amor morrer como Alceste, mas maquinava um meio de penetrar vivo no Hades. Foi real­mente por isso que lhe fizeram justiça, e determinaram que sua morte ocorresse pelas mulheres; não o honraram como a Aquiles, o filho de Tétis, nem o enviaram às ilhas dos bem-aventurados; que aquele, informado pela mãe de que morreria se matasse Heitor, enquanto que se o não matasse voltaria à pátria onde morreria velho, teve a coragem de preferir, ao socorrer seu amante Pátroclo e vingá-lo, não apenas morrer por ele mas sucumbir à sua morte; assim é que, admirados a mais não poder, os deuses excepcionalmente o honraram, porque em tanta conta ele tinha o amante. Que Ésquilo sem dúvida fala à toa, quando afirma que Aquiles era amante de Pátroclo, ele que era mais belo não somente do que este como evidentemente do que todos os heróis, e ainda imberbe, e além disso muito mais novo, como diz Homero. Mas com efeito, o que realmente mais admiram e honram os deuses é essa virtude que se forma em torno do amor, porém mais ainda a admiram e apreciam e recompensam quando é o amado que gosta do amante do que quando é este daquele. Eis por que a Aquiles eles honraram mais do que a Alceste, enviando-o às ilhas dos bem-aventurados. Assim, pois, eu afirmo que o Amor é dos deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e da felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após sua morte.” De Fedro foi mais ou menos este o discurso que pronunciou, no dizer de Aristodemo; depois de Fedro houve alguns outros de que ele não se lembrava bem, os quais deixou de lado, passando a contar o de Pausânias. Disse este: “Não me parece bela, ó Fedro, a maneira como nos foi proposto o discurso, essa simples prescrição de um elogio ao Amor. Se, com efeito, um fosse o Amor, muito bem estaria; na realidade porém, não é ele um só; e não sendo um só, é mais acertado primeiro dizer qual o que se deve elogiar. Tentarei eu portanto corrigir este senão, e primeiro dizer qual o Amor que se deve elogiar, depois fazer um elogio digno do deus. Todos, com efeito, sabemos que sem Amor não há Afrodite. Se, portanto, uma só fosse esta, um só seria o Amor; como porém são duas, é forçoso que dois sejam também os Amores. E como não são duas deusas? Uma, a mais velha sem dúvida, não tem mãe e é filha de Urano, e a ela é que chamamos de Urânia, a Celestial; a mais nova, filha de Zeus e de Dione, chamamo-la de Pandêmia, a Popular. É forçoso então que também o Amor, coadjuvante de uma, se chame corretamente Pandêmio, o Popular, e o outro Urânio, o Celestial. Por conseguinte, é sem dúvida preciso louvar todos os deuses, mas o dom que a um e a outro coube deve-se procurar dizer. Toda ação, com efeito, é assim que se apresenta: em si mesma, enquanto simplesmente praticada, nem é bela nem feia. Por exemplo, o que agora nós fazemos, beber, cantar, conversar, nada disso em si é belo, mas é na ação, na maneira como é feito, que resulta tal; o que é bela e corretamente feito fica belo, o que não o é fica feio. Assim é que o amar e o Amor não é todo ele belo e digno de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente. Ora pois, o Amor de Afrodite Pandêmia é realmente popular e faz o que lhe ocorre; é a ele que os homens vulgares amam. E amam tais pessoas, primeiramente não menos as mulheres que os jovens, e depois o que neles amam é mais o corpo que a alma, e ainda dos mais desprovidos de inteligência, tendo em mira apenas o efetuar o ato, sem se preocupar se é decente­mente ou não; daí resulta então que eles fazem o que lhes ocorre, tanto o que é bom como o seu contrário. Trata-se com efeito do amor proveniente da deusa que é mais jovem que a outra e que em sua geração participa da fêmea e do macho. O outro porém é o da Urânia, que primeiramente não participa da fêmea mas só do macho - e é este o amor aos jovens - e depois é a mais velha, isenta de violência; daí então é que se voltam ao que é másculo os inspirados deste amor, afeiçoando-se ao que é de natureza mais forte e que tem mais inteligência. E ainda, no próprio amor aos jovens poder-se-iam reconhecer os que estão movidos exclusivamente por esse tipo de amor; não amam eles, com efeito, os meninos, mas os que já começam a ter juízo, o que se dá quando lhes vêm chegando as barbas. Estão dispostos, penso eu, os que começam desse ponto, a amar para acompanhar toda a vida e viver em comum, e não a enganar e, depois de tomar o jovem em sua inocência e ludibriá-lo, partir à procura de outro. Seria preciso haver uma lei proibindo que se amassem os meninos, a fim de que não se perdesse na incerteza tanto esforço; pois é na verdade incerto o destino dos meninos, a que ponto do vicio ou da virtude eles chegam em seu corpo e sua alma. Ora, se os bons amantes a si mesmos se impõem voluntariamente esta lei, de­via-se também a estes amantes populares obrigá-los a lei semelhante, assim como, com as mulheres de condição livre, obrigamo-las na medida do possível a não manter relações amorosas. São estes, com efeito, os que justa­mente criaram o descrédito, a ponto de alguns ousarem dizer que é vergonhoso o aquiescer aos amantes; e assim o dizem porque são estes os que eles consideram, vendo o seu despropósito e desregramento, pois não é sem dúvida quando feito com moderação e norma que um ato, seja qual for, incorreria em justa censura. Aliás, a lei do amor nas demais cidades é fácil de entender, pois é simples a sua determinação; aqui, porém ela é complexa. Em Élida, com efeito, na Lacedemônia, na Beócia, e onde não se saiba falar, simplesmente se estabeleceu que é belo aquiescer aos amantes, e ninguém, jovem ou velho, diria que é feio, a fim de não terem dificuldades, creio eu, em tentativas de persuadir os jovens com a palavra, incapazes que são de falar; na Jônia, porém, e em muitas outras partes é tido como feio, por quantos habitam sob a influência dos bárbaros. Entre os bárbaros, com efeito, por causa das tiranias, é uma coisa feia esse amor, justamente como o da sabedoria e da ginástica; é que, imagino, não aproveita aos seus governantes que nasçam grandes ideias entre os governados, nem amizades e associações inabaláveis, o que justamente, mais do que qualquer outra coisa, costuma o amor inspirar. Por experiência aprenderam isto os tiranos desta cidade; pois foi o amor de Aristogitão e a amizade de Harmódio que, afirmando-se, destruíram lhes o poder. Assim, onde se estabeleceu que é feio o aquiescer aos amantes, é por defeito dos que o estabeleceram que assim fica, graças à ambição dos governantes e à covardia dos governados; e onde simplesmente se determinou que é belo, foi em consequência da inércia dos que assim estabeleceram. Aqui, porém, muito mais bela que estas é a norma que se instituiu e, como eu disse, não é fácil de entender. A quem, com efeito, tenha considerado que se diz ser mais belo amar claramente que às ocultas, e sobretudo os mais nobres e os melhores, embora mais feios que outros; que por outro lado o encorajamento dado por todos aos amantes é extraordinário e não como se estivesse a fazer algum ato feio, e se fez ele uma conquista parece belo o seu ato, se não, parece feio; e ainda, que em sua tentativa de conquista deu a lei ao amante a possibilidade de ser louvado na prática de atos extravagantes, os quais se alguém ousasse cometer em vista de qualquer outro objetivo e procurando fazer qualquer outra coisa fora isso, colheria as maiores censuras da filosofia - pois se, querendo de uma pessoa ou obter dinheiro ou assumir um comando ou conseguir qualquer outro poder, consentisse alguém em fazer justa­mente o que fazem os amantes para com os amados, fazendo em seus pedi­dos súplicas e prosternações, e em suas juras protestando deitar-se às portas, e dispondo-se a subserviências a que se não sujeitaria nenhum servo, seria impedido de agir desse modo, tanto pelos amigos como pelos inimigos, uns incriminando-o de adulação e indignidade, outros admoestando-o e envergonhando-se de tais atos - ao amante porém que faça tudo isso acresce-lhe a graça, e lhe é dado pela lei que ele o faça sem descrédito, como se estivesse praticando uma ação belíssima; e o mais estranho é que, como diz o povo, quando ele jura, só ele tem o perdão dos deuses se perjurar pois juramento de amor dizem que não é juramento, e assim tanto os deuses como os homens deram toda liberdade ao amante, como diz a lei daqui - por esse lado então poder-se-ia pensar que se considera inteiramente belo nesta cidade não só o fato de ser amante como também o serem os amados amigos dos amantes. Quando porém, impondo-lhes um pedagogo, os pais não permitem aos amados que conversem com os amantes, e ao pedagogo é prescrita essa ordem, e ainda os camaradas e amigos injuriam se vêm que tal coisa está ocorrendo, sem que a esses injuria­dores detenham os mais velhos ou os censurem por estarem falando sem acerto, depois de por sua vez atentar a tudo isso, poderia alguém julgar ao contrário que se considera muito feio aqui esse modo de agir. O que há porém é, a meu ver, o seguinte: não é isso uma coisa simples, o que justa­mente se disse desde o começo, que não é em si e por si nem belo nem feio, mas se decentemente praticado é belo, se indecentemente, feio. Ora, é indecentemente quando é a um mau e de modo mau que se aquiesce, e decente­mente quando é a um bom e de um modo bom. E é mau aquele amante popular, que ama o corpo mais que a alma; pois não é ele constante, por amar um objeto que também não é constante. Com efeito, ao mesmo tempo que cessa o viço do corpo, que era o que ele amava, “alça ele o seu voo”, sem respeito a muitas palavras e promessas feitas. Ao contrário, o amante do caráter, que é bom, é constante por toda a vida, porque se fundiu com o que é constante. Ora, são esses dois tipos de amantes que pretende a nossa lei provar bem e devidamente, e que a uns se aquiesça e dos outros se fuja. Por isso é que uns ela exorta a perseguir e outros a evitar, arbitrando e aferindo qual é porventura o tipo do amante e qual o do amado. Assim é que, por esse motivo, primeiramente o se deixar conquistar é tido como feio, a fim de que possa haver tempo, que bem parece o mais das vezes ser uma excelente prova; e depois o deixar-se conquistar pelo dinheiro e pelo prestigio político é tido como feio, quer a um mau trato nos assustemos sem reagir, quer beneficiados em dinheiro ou em sucesso político não os desprezemos; nenhuma dessas vantagens, com efeito, parece firme ou constante, afora o fato de que delas nem mesmo se pode derivar uma amizade nobre. Um só caminho então resta à nossa norma, se deve o bem-amado decentemente aquiescer ao amante. É com efeito norma entre nós que, assim como para os amantes, quando um deles se presta a qualquer servidão ao amado, não é isso adulação nem um ato censurável, do mesmo modo também só outra única servidão voluntária resta, não sujeita a censura: a que se aceita pela virtude. Na verdade, estabeleceu-se entre nós que, se alguém quer servir a um outro por julgar que por ele se tornará melhor, ou em sabedoria ou em qualquer outra espécie de virtude, também esta voluntária servidão não é feia nem é uma adulação. É preciso então congraçar num mesmo objetivo essas duas normas, a do amor aos jovens e a do amor ao saber e às demais virtudes, se deve dar-se o caso de ser belo o aquiescer o amado ao amante. Quando com efeito ao mesmo porto chegam amante e amado, cada um com a sua norma, um servindo ao amado que lhe aquiesce, em tudo que for justo servir, e o outro ajudando ao que o está tornando sábio e bom, em tudo que for justo ajudar, o primeiro em condições de contribuir para a sabedoria e demais virtudes, o segundo em precisão de adquirir para a sua educação e demais competência, só então, quando ao mesmo objetivo convergem essas duas normas, só então é que coincide ser belo o aquiescer o amado ao amante e em mais nenhuma outra ocasião. Nesse caso, mesmo o ser enganado não é nada feio; em todos os outros casos, porém é vergonhoso, quer se seja enganado, quer não. Se alguém com efeito, depois de aquiescer a um amante, na suposição de ser este rico e em vista de sua riqueza, fosse a seguir enganado e não obtivesse vantagens pecuniárias, por se ter revelado pobre o amante, nem por isso seria menos vergonhoso; pois parece tal tipo revelar justamente o que tem de seu, que pelo dinheiro ele serviria em qualquer negócio a qualquer um, e isso não é belo. Pela mesma razão, também se alguém, tendo aquiescido a um amante considerado bom, e para se tornar ele próprio melhor através da amizade do amante, fosse a seguir enganado, revelada a maldade daquele e sua carência de virtude, mesmo assim belo seria o engano; pois também nesse caso pare­ce este ter deixado presente sua própria tendência: pela virtude e por se tornar melhor, a tudo ele se disporia em favor de qualquer um, e isso é ao contrário o mais belo de tudo; assim, em tudo por tudo é belo aquiescer em vista da virtude. Este é o amor da deusa celeste, ele mesmo celeste e de muito valor para a cidade e os cidadãos, porque muito esforço ele obriga a fazer pela virtude tanto ao próprio amante como ao amado; os outros, porém são todos da outra deusa, da popular. É essa, ó Fedro, concluiu ele, a contribuição que, como de improviso, eu te apresento sobre o Amor”. Na pausa de Pausânias - pois assim me ensinam os sábios a falar, em termos iguais - disse Aristodemo que devia falar Aristófanes, mas tendo-lhe ocorrido, por empanturramento ou por algum outro motivo, um acesso de soluço, não podia ele falar; mas disse ele ao médico Erixímaco, que se reclinava logo abaixo dele: - Ó Erixímaco, és indicado para ou fazer parar o meu soluço ou falar em meu lugar, até que eu possa parar com ele. E Erixímaco respondeu-lhe: - Farei as duas coisas: falarei em teu lugar e tu, quando acabares com isso, no meu. E enquanto eu estiver falando, vejamos se, relendo tu o fôlego por muito tempo, quer parar o teu soluço; serão, gargareja com água. Se então ele é muito forte, toma algo com que possas coçar o nariz e espirra; se fizeres isso duas ou três vezes, por mais forte que seja, ele cessará. - Não começarás primeiro o teu discurso, disse Aristófanes; que eu por mim é o que farei. Disse então Erixímaco: “Parece-me em verdade ser necessário, uma vez que Pausânias, apesar de se ter lançado bem ao seu discurso, não o rematou convenientemente, que eu deva tentar pôr lhe um remate. Com efeito, quanto a ser duplo o Amor, parece-me que foi uma bela distinção; que porém não está ele apenas nas almas dos homens, e para com os belos jovens, mas também nas outras partes, e para com muitos outros objetos, nos corpos de todos os outros animais, nas plantas da terra e por assim dizer em todos os seres é o que creio ter constatado pela prática da medicina, a nossa arte; grande e admirável é o deus, e a tudo se estende ele, tanto na ordem das coisas humanas como entre as divinas. Ora, eu começarei pela medicina a minha fala, a fim de que também homenageemos a arte. A natureza dos corpos, com efeito, comporta esse duplo Amor; o sadio e o mórbido são cada um reconhecidamente um estado diverso e dessemelhante, e o dessemelhante deseja e ama o dessemelhante. Um portanto é o amor no que é sadio, e outro no que é mórbido. E então, assim como há pouco Pausânias dizia que aos homens bons é belo aquiescer, e aos intemperantes é feio, também nos próprios corpos, aos elementos bons de cada corpo e sadios é belo o aquiescer e se deve, e a isso é que se o nome de medicina, enquanto que aos maus e mórbidos é feio e se deve contrariar, se se vai ser um técnico. É com efeito a medicina, para falar em resumo, a ciência dos fenômenos de amor, próprios ao corpo, no que se refere à repleção e à evacuação, e o que nestes fenômenos reconhece o belo amor e o feio é o melhor médico; igualmente, aquele que faz com que eles se transformem, de modo a que se adquira um em vez do outro, e que sabe tanto suscitar amor onde não há mas deve haver, como eliminar quando há, seria um bom profissional. É de fato preciso ser capaz de fazer com que os elementos mais hostis no corpo fiquem amigos e se amem mutuamente. Ora, os mais hostis são os mais opostos, como o frio ao quente, o amargo ao doce, o seco ao úmido, e todas as coisas desse tipo; foi por ter entre elas suscitado amor e concórdia que o nosso ancestral Asclépio, como dizem estes poetas aqui e eu acredito, constituiu a nossa arte. A medicina portanto, como estou dizendo, é toda ela dirigida nos traços deste deus, assim como também a ginástica e a agricultura; e quanto à música, é a todos evidente, por pouco que se lhe preste atenção, que ela se comporta segundo esses mesmos princípios, como provavelmente parece querer dizer Heráclito, que aliás em sua expressão não é feliz. O um, diz ele com efeito, “discordando em si mesmo, consigo mesmo concorda, como numa harmonia de arco e lira”. Ora, é grande absurdo dizer que uma harmonia está discordando ou resulta do que ainda está discordando. Mas talvez o que ele queria dizer era o seguinte, que do agudo e do grave, antes discordantes e posterior­mente combinados, ela resultou, graças à arte musical. Pois não é sem dúvida do agudo e do grave ainda em discordância que pode resultar a harmonia; a harmonia é consonância, consonância é uma certa combinação — e combinação de discordantes, enquanto discordam, é impossível, e inversamente o que discorda e não combina é impossível harmonizar —assim como também o ritmo, que resulta do rápido e do certo, antes dissociados e depois combinados. A combinação em todos esses casos, assim como lá foi a medicina, aqui é a música que estabelece, suscitando amor e concórdia entre uns e outros; e assim, também a música, no tocante à harmonia e ao ritmo, é ciência dos fenômenos amorosos. Aliás, na própria constituição de uma harmonia e de um ritmo não é nada difícil reconhecer os sinais do amor, nem de algum modo há então o duplo amor; quando porém for preciso utilizar para o homem uma harmonia ou um ritmo, ou fazendo-os, o que chamam composição, ou usando corretamente da melodia e dos metros já constituídos, o que se chamou educação, então é que é difícil e que se requer um bom profissional. Pois de novo revém a mesma ideia, que aos homens moderados, e para que mais moderados se tornem os que ainda não sejam, deve-se aquiescer e conservar o seu amor, que é o belo, o celestial, o Amor da musa Urânia; o outro, o de Polímnia, é o popular, que com precaução se deve trazer àqueles a quem se traz, a fim de que se colha o seu prazer sem que nenhuma intemperança ele suscite, tal como em nossa arte é uma importante tarefa o servir-se convenientemente dos apetites da arte culinária, de modo a que sem doença se colha o seu prazer. Tanto na música então, como na medicina e em todas as outras artes, humanas e divinas, na medida do possível, deve-se conservar um e outro amor; ambos com efeito nelas se encontram. De fato, até a constituição das estações do ano está repleta desses dois amores, e quando se tomam de um moderado amor um pelo outro os contrários de que há pouco eu falava, o quente e o frio, o seco e o úmido, e adquirem uma harmonia e uma mistura razoável, chegam trazendo bonança e saúde aos homens, aos outros animais e às plantas, e nenhuma ofensa fazem; quando porém é o Amor casado com a violência que se torna mais forte nas estações do ano, muitos estragos ele faz, e ofensas. Tanto as pestes, com efeito, costumam resultar de tais causas, como também muitas e várias doenças nos animais como nas plantas; geadas, granizos e alforras resultam, com efeito, do excesso e da intemperança mútua de tais manifestações do amor, cujo conhecimento nas translações dos astros e nas estações do ano chama-se astronomia. E ainda mais, não só todos os sacrifícios, como também os casos a que preside a arte divinatória — e estes são os que constituem o comércio recíproco dos deuses e dos homens — sobre nada mais versam senão sobre a conservação e a cura do Amor. Toda impiedade, com efeito, costuma advir, se ao Amor moderado não se aquiesce nem se lhe tributa honra e respeito em toda ação, e sim ao outro, tanto no tocante aos pais, vivos e mortos, quanto aos deuses; e foi nisso que se assinou à arte divinatória o exame dos amores e sua cura, e assim é que por sua vez é a arte divinatória produtora de amizade entre deuses e homens, graças ao conheci­mento de todas as manifestações de amor que, entre os homens, se orientam para a justiça divina e a piedade. Assim, múltiplo e grande, ou melhor, universal é o poder que em geral tem todo o Amor, mas aquele que em torno do que é bom se consuma com sabedoria e justiça, entre nós como entre os deuses, é o que tem o máximo poder e toda felicidade nos prepara, pondo-nos em condições de não só entre nós mantermos convívio e amizade, como também com os que são mais poderosos que nós, os deuses. Em conclusão, talvez também eu, louvando o Amor, muita coisa estou deixando de lado, não, todavia por minha vontade. Mas se algo omiti, é tua tarefa, ó Aristófanes, completar; ou se um outro modo tens em mente de elogiar o deus, elogia-o, uma vez que o teu soluço já o fizeste cessar.” Tendo então tomado a palavra, continuou Aristodemo, disse Aristófanes: - Bem que cessou! Não, todavia, é verdade, antes de lhe ter eu aplicado o espirro, a ponto de me admirar que a boa ordem do corpo requeira tais ruídos e comichões como é o espirro; pois logo o soluço parou, quando lhe apliquei o espirro. E Erixímaco lhe disse: - Meu bom Aristófanes, vê o que fazes. Estás a fazer graça, quando vais falar, e me forças a vigiar o teu discurso, se por­ventura vais dizer algo risível, quando te é permitido falar em paz. Aristófanes riu e retomou: - Tens razão, Erixímaco! Fique-me o dito pelo não dito. Mas não me vigies, que eu receio, a respeito do que vai ser dito, que seja não engraçado o que vou dizer - pois isso seria proveitoso e próprio da nossa musa - mas ridículo. - Pois sim! - disse o outro - lançada a tua seta, Aristófanes, pensas em fugir; mas toma cuidado e fala como se fosses prestar contas. Talvez, todavia, se bem me parecer, eu te largarei. “Na verdade, Erixímaco, disse Aristófanes, é de outro modo que tenho a intenção de falar, diferente do teu e do de Pausânias. Com efeito, parece-me os homens absolutamente não terem percebido o poder do amor, que se o percebessem, os maiores templos e altares lhe preparariam, e os maiores sacrifícios lhe fariam, não como agora que nada disso há em sua honra, quando mais que tudo deve haver. É ele com efeito o deus mais amigo do homem, protetor e médico desses males, de cuja cura dependeria sem dúvida a maior felicidade para o gênero humano. Tentarei eu portanto iniciar-vos em seu poder, e vós o ensinareis aos outros. Mas é preciso primeiro aprenderdes a natureza humana e as suas vicissitudes. Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando e virando as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo. Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores. Eram, por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses. Zeus então e os de­mais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, após fulminá-los como aos gigantes, fazer desaparecer lhes a raça - pois as honras e os templos que lhes vinham dos homens desapareceriam — nem permitir-lhes que continuassem na impiedade. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e mais úteis para nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão saltitando.” Logo que o disse pôs-se a contar os homens em dois, como os que cortam as sorvas para a conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firme­mente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, numerosas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição. Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria meta­de e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era mulher - o que agora chamamos mulher — quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo. Tomado de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a frente - pois até então eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras; pondo assim o sexo na frente deles fez com que através dele se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea, pelo seguinte, para que no enlace, se fosse um homem a encontrar uma mulher, que ao mesmo tempo gerassem e se fosse constituindo a raça, mas se fosse um homem com um homem, que pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e pudessem repousar, voltar ao trabalho e ocupar­-se do resto da vida. E então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana. Cada um de nós portanto é uma téssera complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento. Por conseguinte, todos os homens que são um corte do tipo comum, o que então se chamava andrógino, gostam de mulheres, e a maioria dos adultérios provém deste tipo, assim como também todas as mulheres que gostam de homens e são adúlteras, é deste tipo que provêm. Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirige muito sua atenção aos homens, mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm deste tipo. E todos os que são corte de um macho perseguem o macho, e enquanto são crianças, como cortículos do macho, gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os homens e a eles se enlaçar, e são estes os melhores meninos e adolescentes, os de natural mais corajoso. Dizem alguns, é verdade, que eles são despudorados, mas estão mentindo; pois não é por despudor que fazem isso, mas por audácia, coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante. Uma prova disso é que, uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a ser homens para a política, os que são desse tipo. E quando se tornam homens, são os jovens que eles amam, e a casamentos e procriação naturalmente eles não lhes dão atenção, embora por lei a isso sejam forçados, mas se contentam em passar a vida um com o outro, solteiros. Assim é que, em geral, tal tipo se torna amante e amigo do amante, por­que está sempre acolhendo o que lhe é aparentado. Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade, tanto o amante do jovem como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer separar-se um do outro nem por um peque­no momento. E os que continuam um com o outro pela vida afora são estes, os quais nem saberiam dizer o que querem que lhes venha da parte de um ao outro. A ninguém com efeito pareceria que se trata de união sexual, e que é porventura em vista disso que um gosta da companhia do outro assim com tanto interesse; ao contrário, que uma coisa quer a alma de cada um, é evidente, a qual coisa ela não pode dizer, mas adivinha o que quer e o in­dica por enigmas. Se diante deles, deitados no mesmo leito, surgisse Hefesto e com seus instrumentos lhes perguntasse: Que é que quereis, ó homens, ter um do outro?, e se, diante do seu embaraço, de novo lhes perguntasse: Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um para o outro, de modo que nem de noite nem de dia vos separeis um do outro? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-vos numa mesma pessoa, de modo que de dois vos tomeis um só e, enquanto viverdes, como uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que morrerdes, lá no Hades, em vez de dois ser um só, mortos os dois numa morte comum; mas vede se é isso o vosso amor, e se vos contentais se conseguirdes isso. Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só diria que não, ou demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só. O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; é, portanto, ao desejo e procura do todo que se dá o nome de amor. Anteriormente, como estou dizendo, nós éramos um só, e agora é que, por causa da nossa injustiça, fomos separados pelo deus, e como o foram os árcades pelos lacedemônios; é de temer então, se não for­mos moderados para com os deuses, que de novo sejamos fendidos em dois, e perambulemos tais quais os que nas estelas estão talhados de perfil, serra­dos na linha do nariz, como os ossos que se fendem. Pois bem, em vista dessas eventualidades todo homem deve a todos exortar à piedade para com os deuses, a fim de que evitemos uma e alcancemos a outra, na medida em que o Amor nos dirige e comanda. Que ninguém em sua ação se lhe oponha - e se opõe todo aquele que aos deuses se torna odioso - pois amigos do deus e com ele reconciliados descobriremos e conseguiremos o nosso próprio amado, o que agora poucos fazem. E que não me suspeite Erixímaco, fazendo comédia de meu discurso, que é a Pausânias e Agatão que me estou referindo talvez também estes se encontrem no número desses e são ambos de natureza máscula mas eu no entanto estou dizendo a respeito de todos, homens e mulheres, que é assim que nossa raça se tornaria feliz, se plenamente realizássemos o amor, e o seu próprio amado cada um encontrasse, tornado à sua primitiva natureza. E se isso é o melhor, é forçoso que dos casos atuais o que mais se lhe avizinha é o melhor, e é este o conseguir um bem amado de natureza conforme ao seu gosto; e se disso fôssemos glorificar o deus responsável, merecidamente glorificaríamos o Amor, que agora nos é de máxima utilidade, levando-nos ao que nos é familiar, e que para o futuro nos dá as maiores esperanças, se formos piedosos para com os deuses, de restabelecer-nos em nossa primitiva natureza e, depois de nos curar, fazer-nos bem aventurados e felizes. Eis, Erixímaco, disse ele, o meu discurso sobre o Amor, diferente do teu. Conforme eu te pedi, não faças comédia dele, a fim de que possamos ouvir também os restantes, que dirá cada um deles, ou antes cada um dos dois; pois restam Agatão e Sócrates." - Bem, eu te obedecerei - tornou-lhe Erixímaco; - e com efeito teu discurso foi para mim de um agradável teor. E se por mim mesmo eu não soubesse que Sócrates e Agatão são terríveis nas questões do amor, muito temeria que sentissem falta de argumentos, pelo muito e variado que se disse; de fato porém eu confio neles. Sócrates então disse: - É que foi bela, ó Erixímaco, tua competição! Se, porém, ficasses na situação em que agora estou, ou melhor, em que estarei, depois que Agatão tiver falado, bem grande seria o teu temor, e em tudo por tudo estarias como eu agora. - Enfeitiçar é o que me queres, ó Sócrates, disse-lhe Agatão, a fim de que eu me alvoroce com a idéia de que o público está em grande expectativa de que eu vá falar bem. - Desmemoriado eu seria, Agatão - tornou-lhe Sócrates - se depois de ver tua coragem e sobranceria, quando subias no estrado com os atores e encaraste de frente uma tão numerosa plateia, no momento em que ias apresentar uma peça tua, sem de modo algum te teres abalado, fosse eu agora imaginar que tu te alvoroçarias por causa de nós, tão poucos. - O quê, Sócrates! - exclamou Agatão; - não me julgas sem dúvida tão cheio de teatro que ignore que, a quem tem juízo, poucos sensatos são mais temíveis que uma multidão insensata! - Realmente eu não faria bem, Agatão - tornou-lhe Sócrates - se a teu respeito pensasse eu em alguma deselegância; ao contrário, bem sei que, se te encontrasses com pessoas que considerasses sábias, mais te preocuparias com elas do que com a multidão. No entanto, é de temer que estas não sejamos nós - pois nós estávamos lá e éramos da multidão - mas se fosse com outros que te encontrasses, com sábios, sem dúvida tu te envergonharias deles, se pensasses estar talvez cometendo algum ato que fosse vergonhoso; senão, que dizes? - É verdade o que dizes - respondeu-lhe. - E da multidão não te envergonharias, se pensasses estar fazendo algo vergonhoso? E eis que Fedro, disse Aristodemo, interrompeu e exclamou: - Meu caro Agatão, se responderes a Sócrates, nada mais lhe importará do programa, como quer que ande e o que quer que resulte, contanto que ele tenha com quem dialogue, sobretudo se é com um belo. Eu por mim sou sem dúvida com prazer que ouço Sócrates a conversar, mas é me forçoso cuidar do elogio ao Amor e recolher de cada um de vós o seu discurso; pague então cada um o que deve ao deus e assim já pode conversar. - Muito bem, Fedro! exclamou Agatão - nada me impede de falar, pois com Sócrates depois eu poderei ainda conversar muitas vezes. “Eu então quero primeiro dizer como devo falar, e depois falar. Parece-me com efeito que todos os que antes falaram, não era o deus que elogiavam, mas os homens que felicitavam pelos bens de que o deus lhes é causador; qual, porém é a sua natureza, em virtude da qual ele fez tais dons, ninguém o disse. Ora, a única maneira correta de qualquer elogio a qualquer um é, no discurso, explicar em virtude de que natureza vem a ser causa de tais efeitos aquele de quem se estiver falando. Assim então com o Amor, é justo que também nós primeiro o louvemos em sua natureza. tal qual ele é, e depois os seus dons. Digo eu então que de todos os deuses, que são felizes, é o Amor, se é lícito dizê-lo sem incorrer em vingança, o mais feliz, porque é o mais belo deles e o melhor. Ora, ele é o mais belo por ser tal como se segue. Primeiramente, é o mais jovem dos deuses, ó Fedro. E uma grande prova do que digo ele próprio fornece, quando em fuga foge da velhice, que é rápida evidentemente, e que em todo caso, mais rápida do que devia, para nós se encaminha. De sua natureza Amor a odeia e nem de longe se lhe aproxima. Com os jovens ele está sempre em seu convívio e ao seu lado; está certo, com efeito, o antigo ditado, que o semelhante sempre do semelhante se aproxima. Ora, eu, embora com Fedro concorde em muitos outros pontos, nisso não concordo, em que Amor seja mais antigo que Crono e Jápeto, mas ao contrário afirmo ser ele o mais novo dos deuses e sempre jovem, e que as questões entre os deuses, de que falam Hesíodo e Parmênides, foi por Necessidade e não por Amor que ocorreram, se é verdade o que aqueles diziam; não haveria, com efeito, mutilações nem prisões de uns pelos outros, e muitas outras violências, se Amor estivesse entre eles, mas amizade e paz, como agora, desde que Amor entre os deuses reina. Por conseguinte, jovem ele é, mas além de jovem ele é delicado; falta-lhe, porém, um poeta como era Homero para mostrar sua delicadeza de deus. Homero afirma. com efeito, que Ate é uma deusa, e delicada - que os seus pés em todo caso são delicados quando diz: seus pés são delicados; pois não sobre o solo se move, mas sobre as cabeças dos homens ela anda. Assim, bela me parece a prova com que Homero revela a delicadeza da deusa: não anda ela sobre o que é duro, mas sobre o que é mole. Pois a mesma prova também nós utilizaremos a respeito do Amor, de que ele é delicado. Não é com efeito sobre a terra que ele anda, nem sobre cabeças, que não são lá tão moles, mas no que há de mais brando entre os seres é onde ele anda e reside. Nos costumes, nas almas de deuses e de homens ele fez sua morada, e ainda, não indistinta­mente em todas as almas, mas da que encontre com um costume rude ele se afasta, e na que o tenha delicado ele habita. Estando assim sempre em contato, nos pés como em tudo, com os que, entre os seres mais brandos, são os mais brandos, necessariamente é ele o que há de mais delicado. É então o mais jovem, o mais delicado, e além dessas qualidades, sua constituição é úmida. Pois não seria ele capaz de se amoldar de todo jeito, nem de por toda alma primeiramente entrar, despercebido, e depois sair, se fosse ele seco. De sua constituição acomodada e úmida é uma grande prova sua bela compleição, o que excepcionalmente todos reconhecem ter o Amor; é que entre deformidade e amor sempre de parte a parte há guerra. Quanto à beleza da sua tez, o seu viver entre flores bem o atesta; pois no que não floresce, como no que já floresceu, corpo, alma ou o que quer que seja, não se assenta o Amor, mas onde houver lugar bem florido e bem perfumado, ai ele se assenta e fica. Sobre a beleza do deus já é isso bastante, e, no entanto, ainda muita coisa resta; sobre a virtude de Amor devo depois disso falar, principalmente que Amor não comete nem sofre injustiça, nem de um deus ou contra um deus, nem de um homem ou contra um homem. À força, com efeito, nem ele cede, se algo cede - pois violência não toca em Amor - nem, quando age, age, pois todo homem de bom grado serve em tudo ao Amor, e o que de bom grado reconhece uma parte a outra, dizem “as leis, rainhas da cidade", é justo. Além da justiça, da máxima temperança ele compartilha. É com efeito a temperança, reconhecida­mente, o domínio sobre prazeres e desejos; ora, o Amor, nenhum prazer lhe é predominante; e se inferiores, se­riam dominados por Amor, e ele os dominaria, e dominando prazeres e desejos seria o Amor excepcional­mente temperante. E também quanto à coragem, ao Amor “nem Ares se lhe opõe”. Com efeito, a Amor não pega Ares, mas Amor a Ares - o de Afro­dite, segundo a lenda - e é mais forte o que pega do que é pegado: dominando assim o mais corajoso de todos, seria então ele o mais corajoso. Da justiça portanto, da temperança e da coragem do deus, está dito; da sua sabedoria, porém resta dizer; o quanto possível então deve-se procurar não ser omisso. E em primeiro lugar, para que também eu por minha vez honre a minha arte como Erixímaco a dele, é um poeta o deus, e sábio, tanto que também a outro ele o faz; qualquer um em todo caso torna-se poeta, “mesmo que antes seja estranho às Musas”, desde que lhe toque o Amor. E o que nos cabe utilizar como testemunho de que é um bom poeta o Amor, em geral em toda criação artísticapois o que não se tem ou o que não se sabe, também a outro não se poderia dar ou ensinar. E em verdade, a criação dos animais todos, quem contestará que não é sabedoria do Amor, pela qual nascem e crescem todos os animais? Mas, no exercício das artes, não sabe­mos que aquele de quem este deus se toma mestre acaba célebre e ilustre, enquanto aquele em quem Amor não toque, acaba obscuro? E quanto à arte do arqueiro, à medicina, à adivinhação, inventou-as Apolo guiado pelo desejo e pelo amor, de modo que também Apolo seria discípulo do Amor. Assim como também as Musas nas belas-artes, Hefesto na metalurgia, Atena na tecelagem, e Zeus na arte “de governar os deuses e os homens”. E daí é que até as questões dos deuses foram regra­das, quando entre eles surgiu Amor, evidentemente da beleza - pois no feio não se firma Amor -, enquanto que antes, como a princípio disse, muitos casos terríveis se davam entre os deuses, ao que se diz, porque entre eles a Necessidade reinava; desde porém que este deus existiu, de se amarem as belas coisas toda espécie de bem surgiu para deuses e homens. Assim é que me parece, ó Fedro, que o Amor, primeiramente por ser em si mesmo o mais belo e o melhor, depois é que é para os outros a causa de outros tantos bens. Mas ocorre-me agora também em verso dizer alguma coisa, que é ele o que produz paz entre os homens, e no mar bonança, repouso tranquilo de ventos e sono na dor. É ele que nos tira o sentimento de estranheza e nos enche de familiaridade, promovendo todas as reuniões deste tipo, para mutuamente nos encontrarmos, tornando-se nosso guia nas festas, nos coros, nos sacrifícios; incutindo brandura e excluindo rudeza; pródigo de bem-querer e incapaz de malquerer; propício e bom; contemplado pelos sábios e admirado pelos deuses; invejado pelos desafortunados e conquistado pelos afortunados; do luxo, do requinte, do brilho, das graças, do ardor e da paixão, pai; diligente com o que é bom e negligente com o que é mau; no labor, no temor, no ardor da paixão, no teor da expressão, piloto e combatente, protetor e salvador supremo, adorno de todos os deuses e homens, guia belíssimo e excelente, que todo homem deve seguir, celebrando-o em belos hinos, e compartilhando do canto com ele encanta o pensamento de todos os deuses e homens. Este, ó Fedro, rematou ele, o discurso que de minha parte quero que seja ao deus oferecido, em parte jocoso, em parte, tanto quanto posso, discretamente sério.” Depois que falou Agatão, continuou Aristodemo, todos os presentes aplaudiram, por ter o jovem falado à altura do seu talento e da dignidade do deus. Sócrates então olhou para Erixímaco e lhe disse: - Porventura, ó filho de Acúmeno, parece-te que não tem nada de temível o temor que de há muito sinto, e que não foi profético o que há pouco eu dizia, que Agatão falaria maravilhosamente, enquanto que eu me havia de embaraçar? - Em parte - respondeu-lhe Erixímaco - parece-me profético o que disseste, que Agatão falaria bem; mas quanto a te embaraçares, não creio. - E como, ditoso amigo - disse Sócrates - não vou embaraçar-me, eu e qualquer outro, quando devo falar depois de proferido um tão belo e colo­rido discurso? Não é que as suas de­mais partes não sejam igualmente admiráveis; mas o que está no fim, pela beleza dos termos e das frases, quem não se teria perturbado ao ouvi­-lo? Eu por mim, considerando que eu mesmo não seria capaz de nem de perto proferir algo tão belo, de vergonha quase me retirava e partia, se tivesse algum meio. Com efeito, vinha-me à mente o discurso de Górgias, a porto de realmente eu sentir o que disse Homero: temia que, concluindo, Agatão em seu discurso enviasse ao meu a cabeça de Górgias, terrível orador, e de mim mesmo me fizesse uma pedra, sem voz. Refleti então que estava evidentemente sendo ridículo, quando convosco concordava em fazer na minha vez, depois de vós, o elogio ao Amor, dizendo ser terrível nas questões de amor, quando na verdade nada sabia do que se tratava, de como se devia fazer qualquer elogio. Pois eu achava, por ingenuidade, que se devia dizer a verdade sobre tudo que está sendo elogiado, e que isso era fundamental, da própria verdade se escolhendo as mais belas manifestações para dispô-las o mais decente­mente possível; e muito me orgulhava então, como se eu fosse falar bem, como se soubesse a verdade em qual­quer elogio. No entanto, está aí, não era esse o belo elogio ao que quer que seja, mas o acrescentam o máximo é coisa, e o mais belamente possível, quer ela seja assim quer não; quanto a ser falso, não tinha nenhuma importância. Foi com efeito combinado como cada um de nós entenderia elogiar o Amor, não como cada um o elogiaria. Eis por que, pondo em ação todo argumento, vós o aplicais ao Amor, e dizeis que ele é tal e causa de tantos bens, a fim de aparecer ele como o mais belo e o melhor possível, evidentemente aos que o não conhecem - pois não é aos que o conhecem - e eis que fica belo, sim, e nobre o elogio. Mas é que eu não sabia então o modo de elogiar, e sem saber concordei, também eu, em elogiá-lo na minha vez: “a língua jurou, mas o meu peito não”; que ela se vá então. Não vou mais elogiar desse modo, que não o poderia, é certo, mas a verdade sim, se vos apraz, quero dizer à minha maneira, e não em competição com os vossos discursos, para não me prestar ao riso. Vê então, Fedro, se por acaso há ainda precisão de um tal discurso, de ouvir sobre o Amor dizer a verdade, mas com nomes e com a disposição de frases que por acaso me tiver ocorrido. Fedro então, disse Aristodemo, e os demais presentes pediram-lhe que, como ele próprio entendesse que devia falar, assim o fizesse. - Permite-me ainda, Fedro - re­tornou Sócrates - fazer umas perguntinhas a Agatão, a fim de que tendo obtido o seu acordo, eu já possa assim falar. - Mas sim, permito - disse Fedro. - Pergunta! - E então, disse Aristodemo, Sócrates começou mais ou menos por esse ponto: - Realmente, caro Agatão, bem me pareceste iniciar teu discurso, quando dizias que primeiro se devia mostrar o próprio Amor, qual a sua natureza, e depois as suas obras. Esse começo, muito o admiro. Vamos então, a respeito do Amor, já que em geral explicaste bem e magnificamente qual é a sua natureza, dize-me também o seguinte: é de tal natureza o Amor que é amor de algo ou de nada? Estou perguntando, não se é de uma mãe ou de um pai - pois ridícula seria essa pergunta, se Amor é amor de um pai ou ele uma mãe - mas é como se, a respeito disso mesmo, de “pai”, eu perguntasse: “Porventura o pai é pai de algo ou não? Ter-me-ias sem dúvida respondido, se me quisesses dar uma bela resposta, que é de um filho ou de uma filha que o pai é pai ou não?” - Exatamente - disse Agatão. - E também a mãe, não é assim? - Também - admitiu ele. - Responde-me ainda, continuou Sócrates, mais um pouco, a fim de melhor compreenderes o que quero. Se eu te perguntasse: “E irmão, enquanto é justamente isso mesmo que é, é irmão de algo ou não?” - É, sim, disse ele. - De um irmão ou ele uma irmã, não é? Concordou. - Tenta então, continuou Sócrates, também a respeito do Amor dizer-me: o Amor é amor de nada ou de algo? - De algo, sim. - Isso então, continuou ele, guarda contigo, lembrando-te de que é que ele é amor; agora dize-me apenas o seguinte: Será que o Amor, aquilo de que é amor, ele o deseja ou não? - Perfeitamente - respondeu o outro. - E é quando tem isso mesmo que deseja e ama que ele então deseja e ama, ou quando não tem? - Quando não tem, como é bem provável - disse Agatão. - Observa bem, continuou Sócrates, se em vez de uma probabilidade não é uma necessidade que seja assim, o que deseja, deseja aquilo de que é carente, sem o que não deseja, se não for carente. É espantoso como me parece, Agatão, ser uma necessidade; e a ti? - Também a mim - disse ele. Tens razão. Pois porventura desejaria quem já é grande ser grande, ou quem já é forte ser forte? - Impossível, pelo que foi admiti­do. - Com efeito, não seria carente disso o que justamente é isso. - É verdade o que dizes. - Se, com efeito, mesmo o forte quisesse ser forte, continuou Sócrates, e o rápido ser rápido, e o sadio ser sadio - pois talvez alguém pensasse que nesses e em todos os casos semelhantes os que são tais e têm essas qualidades desejam o que justamente têm, e é para não nos enganarmos que estou dizendo isso - ora, para estes, Agatão, se atinas bem, é forçoso que tenham no momento tudo aquilo que tem, quer queiram, quer não, e isso mesmo, sim, quem é que poderia desejá-lo? Mas quando alguém diz: “Eu, mesmo sadio, desejo ser sadio, e mesmo rico, ser rico, e desejo isso mesmo que tenho”, poderíamos dizer­-lhe: “O homem, tu que possuis riqueza, saúde e fortaleza, o que queres é também no futuro possuir esses bens, pois no momento, quer queiras quer não, tu os tens; observa então se, quando dizes “desejo o que tenho comigo”, queres dizer outra coisa senão isso: “quero que o que tenho agora comigo, também no futuro eu o tenha.” Deixaria ele de admitir? Agatão, dizia Aristodemo, estava de acordo. Disse então Sócrates: - Não é isso então amar o que ainda não está à mão nem se tem, o querer que, para o futuro, seja isso que se tem conservado consigo e presente? - Perfeitamente - disse Agatão. - Esse então, como qualquer outro que deseja, deseja o que não está a mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele próprio e o de que é carente; tais são mais ou menos as coisas de que há desejo e amor, não é? - Perfeitamente - disse Agatão. - Vamos então, continuou Sócrates, recapitulemos o que foi dito. Não é certo que é o Amor, primeiro de certas coisas, e depois, daquelas de que ele tem precisão? - Sim - disse o outro. - Depois disso então, lembra-te de que é que em teu discurso disseste ser o Amor; se preferes, eu te lembrarei. Creio, com efeito, que foi mais ou menos assim que disseste, que aos deuses foram arranjadas suas questões através do amor do que é belo, pois do que é feio não havia amor. Não era mais ou menos assim que dizias? - Sim, com efeito - disse Agatão. - E acertadamente o dizes, amigo, declarou Sócrates; e se é assim, não é certo que o Amor seria da beleza, mas não da feiura? Concordou. - Não está então admitido que aquilo de que é carente e que não tem é o que ele ama? - Sim - disse ele. - Carece então de beleza o Amor, e não a tem? - É forçoso. - E então? O que carece de beleza e de modo algum a possui, porventura dizes tu que é belo? - Não, sem dúvida. - Ainda admites, por conseguinte que o Amor é belo, se isso é assim? E Agatão: - É bem provável, ó Sócrates, que nada sei do que então disse? - E, no entanto, prosseguiu Sócrates, bem que foi belo o que disseste, Agatão. Mas dize-me ainda uma pequena coisa: o que é bom não te parece que também é belo? - Parece-me, sim. - Se, portanto, o Amor é carente do que é belo, e o que é bom é belo, também do que é bom seria ele carente. - Eu não poderia, ó Sócrates, disse Agatão, contradizer-te; mas seja assim como tu dizes. - É a verdade, querido Agatão, que não podes contradizer, pois a Sócrates não é nada difícil. E a ti eu te deixarei agora; mas o discurso que sobre o Amor eu ouvi um dia, de uma mulher de Mantinéia, Diotima, que nesse assunto era entendida e em muitos outros — foi ela que uma vez, porque os atenienses ofereceram sacrifícios para conjurar a peste, fez por dez anos recuar a doença, e era ela que me instruía nas questões de amor — o discurso então que me fez aquela mulher eu tentarei repetir—vos, a partir do que foi admitido por mim e por Agatão, com meus próprios recursos e como eu puder. É de fato preciso, Agatão, como tu indicaste, primeiro discorrer sobre o próprio Amor, quem é ele e qual a sua natureza e depois sobre as suas obras. Parece-me então que o mais fácil é proceder como outrora a estrangeira, que discorria interrogando-me, pois também eu quase que lhe dizia outras tantas coisas tais quais agora me diz Agatão, que era o Amor um grande deus, e era do que é belo; e ela me refutava, exata­mente com estas palavras, com que eu estou refutando a este, que nem era belo segundo minha palavra, nem bom. E eu então: - Que dizes, ó Diotima? É feio então o Amor, e mau? E ela: - Não vais te calar? Acaso pensas que o que não for belo, é forçoso ser feio? - Exatamente. - E se não for sábio é ignorante? Ou não percebeste que existe algo entre sabedoria e ignorância? - Que é? - O opinar certo, mesmo sem poder dar razão, não sabes, dizia-me ela, que nem é saber - pois o que é sem razão, como seria ciência? - nem é ignorância - pois o que atinge o ser, como seria ignorância? - e que é sem dúvida alguma coisa desse tipo a opinião certa, um intermediário entre entendimento e ignorância. - É verdade o que dizes, tornei-lhe. - Não fiques, portanto, forçando o que não é belo a ser feio, nem o que não é bom a ser mau. Assim também o Amor, porque tu mesmo admites que não é bom nem belo, nem por isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está, dizia ela, entre esses dois extremos. - E, todavia, é por todos reconhecido que ele é um grande deus. - Todos os que não sabem, é o que estás dizendo, ou também os que sabem? - Todos eles, sem dúvida. E ela sorriu e disse: - E como, ó Sócrates, admitiriam ser um grande deus aqueles que afirmam que nem deus ele e? - Quem são estes? Perguntei-lhe. - Um és tu - respondeu-me - E eu, outra. E eu: - Que queres dizer com isso? E ela: - É simples. Dize-me, com efeito, todos os deuses não os afirmas felizes e belos? Ou terias a audácia de dizer que algum deles não é belo e feliz? - Por Zeus, não eu - retornei­lhe. - E os felizes então, não dizes que são os que possuem o que é bom e o que é belo? - Perfeitamente. - Mas, no entanto, o Amor, tu reconheceste que, por carência do que é bom e do que é belo, deseja isso mesmo de que é carente. - Reconheci, com efeito. - Como então seria deus o que justamente é desprovido do que é belo e bom? - De modo algum, pelo menos ao que parece. - Estás vendo então - disse - que também tu não julgas o Amor um deus? - Que seria então o Amor? - perguntei-lhe. - Um mortal? - Absolutamente. - Mas o quê, ao cento, ó Diotima? - Como nos casos anteriores - disse-me ela - algo entre mortal e imortal. - O quê, então, ó Diotima? - Um grande gênio, ó Sócrates; e com efeito, tudo o que é gênio está entre um deus e um mortal. - E com que poder? Perguntei-lhe. - O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte divinatória, como também a dos sacerdotes que se ocupam dos sacrifícios, das iniciações e dos encantamentos, e enfim de toda adivinhação e magia. Um deus com um homem não se mistura, mas é através desse ser que se faz todo o convívio e diálogo dos deuses com os homens, tanto quando despertos como quando dormindo; e aquele que em tais questões é sábio é um homem de gênio, enquanto o sábio em qualquer outra coisa, arte ou oficio, é um artesão. E esses gênios, é certo, são muitos e diversos, e um deles é justamente o Amor. - E quem é seu pai - perguntei-lhe - e sua mãe? - É um tanto longo de explicar, disse ela; todavia, eu te direi. Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeira­mente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio ele recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá. Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio - pois já é -, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso. - Quais então, Diotima - perguntei-lhe - os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes? - É o que é evidente desde já - respondeu-me - até a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre. É essa então, ó Sócrates, a natureza desse gênio; quanto ao que pensaste ser o Amor, não é nada de espantar o que tiveste. Pois pensaste, ao que me parece a tirar pelo que dizes, que Amor era o amado e não o amante; eis por que, segundo penso, parecia-te todo belo o Amor. E de fato o que é amável é que é realmente belo, delicado, per­feito e bem-aventurado; o amante, porém é outro o seu caráter, tal qual eu expliquei. E eu lhe disse: - Muito bem, estrangeira! É belo o que dizes! Sendo, porém, tal a natureza do Amor, que proveito ele tem para os homens? - Eis o que depois disso - respondeu-me - tentarei ensinar-te. Tal é de fato a sua natureza e tal a sua origem; e é do que é belo, como dizes. Ora, se alguém nos perguntasse: Em que é que é amor do que é belo o Amor, ó Sócrates e Diotima? ou mais claramente: Ama o amante o que é belo; que é que ele ama? - Tê-lo consigo - respondi-lhe. - Mas essa resposta - dizia-me ela - ainda requer uma pergunta desse tipo: Que terá aquele que ficar com o que é belo? - Absolutamente - expliquei-lhe - eu não podia mais responder-lhe de pronto a essa pergunta. - Mas é, disse ela, como se alguém tivesse mudado a questão e, usando o bom em vez do belo, perguntasse: Vamos, Sócrates, ama o amante o que é bom; que é que ele ama? - Tê-lo consigo - respondi-lhe. - E que terá aquele que ficar com o que é bom? - Isso eu posso - disse-lhe - mais facilmente responder: ele será feliz. - É com efeito pela aquisição do que é bom, disse ela, que os felizes são felizes, e não mais é preciso ainda perguntar: E para que quer ser feliz aquele que o quer? Ao contrário, completa parece a resposta. - É verdade o que dizes - tornei-lhe. - E essa vontade então e esse amor, achas que é comum a todos os homens, e que todos querem ter sempre consigo o que é bom, ou que dizes? - Isso - respondi-lhe - é comum a todos. - E por que então, ó Sócrates, não são todos que dizemos que amam, se é que todos desejam a mesma coisa e sempre, mas sim que uns amam e outros não? - Também eu - respondi-lhe - admiro-me. - Mas não! Não te admires! - retrucou ela; - pois é porque destaca­mos do amor um certo aspecto e, aplicando-lhe o nome do todo, chamamo-lo de amor, enquanto para os outros aspectos servimo-nos de outros nomes. - Como, por exemplo? Perguntei-lhe. - Como o seguinte. Sabes que "poesia" é algo de múltiplo; pois toda causa de qualquer coisa passar do não-ser ao ser é “poesia”, de modo que as confecções de todas as artes são “poesias”, e todos os seus artesãos poetas. - É verdade o que dizes. - Todavia continuou ela - tu sabes que estes não são denominados poetas, mas tem outros nomes, enquanto de toda a “poesia” uma única parcela foi destacada, a que se refere à música e aos versos, e com o nome do todo é denominada. Poesia é com efeito só isso que se chama, e os que têm essa parte da poesia, poetas. - É verdade - disse-lhe. - Pois assim também é com o amor. Em geral, todo esse desejo do que é bom e de ser feliz, eis o que é “o supremo e insidioso amor, para todo homem”, no entanto, enquanto uns, porque se voltam para ele por vários outros caminhos, ou pela riqueza ou pelo amor à ginástica ou à sabedoria, nem se diz que amam nem que são amantes, outros ao contrário, procedendo e empenhando-se numa só forma, detêm o nome do todo, de amor, de amar e de amantes. - É bem provável que estejas dizendo a verdade - disse-lhe eu. - E de fato corre um dito, continuou ela, segundo o qual são os que procuram a sua própria metade os que amam; o que eu digo porém é que não é nem da metade o amor, nem do todo; pelo menos, meu amigo, se não se encontra este em bom estado, pois até os seus próprios pés e mãos querem os homens cortar, se lhes parece que o que é seu está ruim. Não é com efeito o que é seu, penso, que cada um estima, a não ser que se chame o bem de próprio e de seu, e o mal de alheio; pois nada mais há que amem os homens serão o bem; ou te parece que amam? - Não, por Zeus - respondi-lhe. - Será então - continuou - que é tão simples assim, dizer que os homens amam o bem? - Sim - disse-lhe. - E então? Não se deve acrescentar que é ter consigo o bem que eles amam? - Deve-se. - E sem dúvida - continuou - não apenas ter, mas sempre ter? - Também isso se deve acrescentar. - Em resumo então - disse ela - é o amor, amor de consigo ter sempre o bem. - Certíssimo - afirmei-lhe - o que dizes. - Quando então - continuou ela - é sempre isso o amor, de que modo, nos que o perseguem, e em que ação, o seu zelo e esforço se chamaria amor? Que vem a ser essa atividade? Podes dizer-me? - Eu não te admiraria então, ó Diotima, por tua sabedoria, nem te frequentaria para aprender isso mesmo. - Mas eu te direi - tornou-me. -É isso, com efeito, um parto em beleza, tanto no corpo como na alma. - É um adivinho - disse-lhe eu - que requer o que estás dizendo: não entendo. - Pois eu te falarei mais clara­mente, Sócrates, disse-me ela. Com efeito, todos os homens concebem, não só no corpo como também na alma, e quando chegam a certa idade, é dar à luz que deseja a nossa natureza. Mas ocorrer isso no que é inadequado é impossível. E o feio é inadequado a tudo o que é divino, enquanto o belo é adequado. Moira então e Ilitia do nascimento é a Beleza. Por isso, quando do belo se aproxima o que está em concepção, acalma-se, e de júbilo transborda, e dá à luz e gera; quando porém é do feio que se aproxima, som­brio e aflito contrai-se, afasta-se, recolhe-se e não gera, mas, retendo o que concebeu, penosamente o carrega. Daí é que ao que está prenhe e já intumescido é grande o alvoroço que lhe vem à vista do belo, que de uma grande dor liberta o que está prenhe. É com efeito, Sócrates, dizia-me ela, não do belo o amor, como pensas. - Mas de que é enfim? - Da geração e da parturição no belo. - Seja - disse-lhe eu. - Perfeitamente - continuou. - E por que assim da geração? Porque é algo de perpétuo e mortal para um mortal, a geração. E é a imortalidade que, com o bem, necessariamente se deseja, pelo que foi admitido, se é que o amor é amor de sempre ter consigo o bem. É de fato forçoso por esse argumento que também da imortalidade seja o amor. Tudo isso ela me ensinava, quando sobre as questões de amor discorria, e uma vez ela me perguntou: - Que pensas, ó Sócrates, ser o motivo desse amor e desse desejo? Porventura não percebes como é estranho o comportamento de todos os animais quando desejam gerar, tanto dos que andam quanto dos que voam, adoecendo todos em sua disposição amorosa, primeiro no que concerne à união de um com o outro, depois no que diz respeito à criação do que nasceu? E como em vista disso estão prontos para lutar os mais fracos contra os mais fortes, E mesmo morrer, não só se torturando pela fome a fim de alimentá-los como tudo o mais fazendo? Ora, os homens, continuou ela, poder-se-ia pensar que é pelo raciocínio que eles agem assim; mas os animais, qual a causa desse seu comportamento amoroso? Podes dizer-me? De novo eu lhe disse que não sabia; e ela me tornou: - Imaginas então algum dia te tornares temível nas questões do amor, se não refletires nesses fatos? - Mas é por isso mesmo, Diotima - como há pouco eu te dizia - que vim a ti, porque reconheci que precisava de mestres. Dize-me então não só a causa disso, como de tudo o mais que concerne ao amor. - Se de fato - continuou - crês que o amor é por natureza amor daquilo que muitas vezes admitimos, não fiques admirado. Pois aqui, segundo o mesmo argumento que lá, a natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal. E ela só pode assim, através da geração, porque sempre deixa um outro ser novo em lugar do velho; pois é nisso que se diz que cada espécie animal vive e é a mesma - assim como de criança o homem se diz o mesmo até se tornar velho; este na verdade, apesar de jamais ter em si as mesmas coisas, diz-se todavia que é o mesmo, embora sempre se renovando e perdendo alguma coisa, nos cabelos, nas carnes, nos ossos, no sangue e em todo o corpo. E não é que é só no corpo, mas também na alma os modos, os costumes, as opiniões, desejos, prazeres, aflições, temores, cada um desses afetos jamais permanece o mesmo em cada um de nós, mas uns nascem, outros morrem. Mas ainda mais estranho do que isso é que até as ciências não é só que umas nascem e outras morrem para nós, e jamais somos os mesmos nas ciências, mas ainda cada uma delas sofre a mesma contingência. O que, com efeito, se chama exercitar é como se de nós estivesse saindo a ciência; esquecimento é escape de ciência, e o exercício, introduzindo uma nova lembrança em lugar da que está saindo, salva a ciência, de modo a parecer ela ser a mesma. É desse modo que tudo o que é mortal se conserva, E não pelo fato de absolutamente ser sempre o mesmo, como o que é divino, mas pelo fato de deixar o que parte e envelhece um outro ser novo, tal qual ele mesmo era. É por esse meio, ó Sócrates, que o mortal participa da imortalidade, no corpo como em tudo mais o imortal, porém é de outro modo. Não te admires, portanto, de que o seu próprio rebento, todo ser por natureza o aprecie: é em virtude da imortalidade que a todo ser esse zelo e esse amor acompanham. Depois de ouvir o seu discurso, admirado disse-lhe: - Bem, ó doutíssima Diotima, essas coisas é verdadeiramente assim que se passam? E ela, como os sofistas consumados, tornou-me: - Podes estar certo, ó Sócrates; o caso é que, mesmo entre os homens, se queres atentar à sua ambição, admirar-te-ias do seu desarrazoamento, a menos que, a respeito do que te falei, não reflitas, depois de considerares quão estranhamente eles se com­portam com o amor de se tornarem renomados e de “para sempre uma glória imortal se preservarem”, e como por isso estão prontos a arrostar todos os perigos, ainda mais do que pelos filhos, a gastar fortuna, a sofrer privações, quaisquer que elas sejam, e até a sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou ela, que Alceste morreria por Admeto, que Aquiles morreria depois de Pátroclo, ou o vosso Codro morreria antes, em favor da realeza dos filhos, se não imaginassem que eterna seria a memória da sua própria virtude, que agora nós conservamos? Longe disso, disse ela; ao contrário, é, segundo penso, por uma virtude imortal e por tal renome e glória que todos tudo fazem, e quanto melhores tanto mais; pois é o imortal que eles amam. Por conseguinte, continuou ela, aqueles que estão fecundados em seu corpo voltam-se de preferência para as mulheres, e é desse modo que são amorosos, pela procriação conseguindo para si imortalidade, memória e bem-aventurança por todos os séculos seguintes, ao que pensam; aqueles porém que é em sua alma - pois há os que concebem na alma mais do que no corpo, o que convém à alma conceber e gerar; e o que é que lhes convém senão o pensamento e o mais da virtude? Entre estes estão todos os poetas criadores e todos aqueles artesãos que se diz serem inventivos; mas a mais importante, disse ela, e a mais bela forma de pensa­mento é a que trata da organização dos negócios da cidade e da família, e cujo nome é prudência e justiça - destes por sua vez quando alguém, desde cedo fecundado em sua alma, ser divino que é, e chegada a idade oportuna, já está desejando dar à luz e gerar, pro­cura então também este, penso eu, à sua volta o belo em que possa gerar; pois no que é feio ele jamais o fará. Assim é que os corpos belos mais que os feios ele os acolhe, por estar em concepção; e se encontra uma alma bela, nobre e bem dotada, é total o seu acolhimento a ambos, e para um homem desses logo ele se enriquece de discursos sobre a virtude, sobre o que deve ser o homem bom e o que deve tratar, e tenta educá-lo. Pois ao contato sem dúvida do que é belo e em sua companhia, o que de há muito ele concebia ei-lo que dá à luz e gera, sem o esquecer tanto em sua presença quanto ausente, e o que foi gerado, ele o alimenta justamente com esse belo, de modo que uma comunidade muito maior que a dos filhos ficam tais indivíduos mantendo entre si, e uma amizade mais firme, por serem mais belos e mais imortais os filhos que têm em comum. E qualquer um aceitaria obter tais filhos mais que os humanos, de­pois de considerar Homero e Hesíodo, e admirando com inveja os demais bons poetas, pelo tipo de descendentes que deixam de si, e que uma imortal glória e memória lhes garantem, sendo eles mesmos o que são; ou se preferes, continuou ela, pelos filhos que Licurgo deixou na Lacedemônia, salvadores da Lacedemônia e por assim dizer da Grécia. E honrado entre vós é também Sólon pelas leis que criou, e outros muitos em muitas outras partes, tanto entre os gregos como entre os bárbaros, por terem dado à luz muitas obras belas e gerado toda espécie de virtudes; deles é que já se fizeram mui­tos cultos por causa de tais filhos, enquanto que por causa dos humanos ainda não se fez nenhum. São esses então os casos de amor em que talvez, ó Sócrates, também tu pudesses ser iniciado; mas, quanto à sua perfeita contemplação, em vista da qual é que esses graus existem, quando se procede corretamente, não sei se serias capaz; em todo caso, eu te direi, continuou, e nenhum esforço pouparei; tenta então seguir-me se fores capaz: deve com efeito, começou ela, o que corretamente se encaminha a esse fim, começar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos, e em primeiro lugar, se corretamente o dirige o seu dirigente, deve ele amar um só corpo e então gerar belos discursos; depois deve ele compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da que está em qualquer outro, e que, se se deve procurar o belo na forma, muita tolice seria não considerar uma só e a mesma a beleza em todos os corpos; e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho; depois disso a beleza que está nas almas deve ele considerar mais preciosa que a do corpo, de modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto, contente-se ele, ame e se interesse, e produza e procure discursos tais que tornem melhores os jovens; para que então seja obrigado a contemplar o belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum, e julgue enfim de pouca monta o belo no corpo; depois dos ofícios é para as ciências que é preciso transportá-lo, a fim de que veja também a beleza das ciências, e olhando para o belo já muito, sem mais amar como um doméstico a beleza individual de um criançola, de um homem ou de um só costume, não seja ele, nessa escravidão, miserável e um mesquinho discursador, mas voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos discursos belos e magníficos ele produza, e reflexões, em inesgotável amor à sabedoria, até que aí robustecido e crescido contemple ele uma certa ciência, única, tal que o seu objeto é o belo seguinte. Tenta agora, disse-me ela, prestar-me a máxi­ma atenção possível. Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido orientado para as coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando ao ápice dos graus do amor, súbito perceberá algo de maravilhosa­mente belo em sua natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores, primeiramente sempre sendo, sem nascer nem perecer, sem crescer nem decrescer, e depois, não de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem quanto a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a uns fosse belo e a outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe-á o belo como um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo tem consigo, nem como algum discurso ou alguma ciência, nem certa­mente como a existir em algo mais, como, por exemplo, em animal da terra ou do céu, ou em qualquer outra coisa; ao contrário, aparecer-lhe-á ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo mais que é belo dele participa, de um modo tal que, enquanto nasce e perece tudo mais que é belo, em nada ele fica maior ou menor, nem nada sofre. Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do cor­reto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder correta­mente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo. Nesse ponto da vida, meu caro Sócrates, continuou a estrangeira de Mantinéia, se é que em outro mais, poderia o homem viver, a contemplar o próprio belo. Se algum dia o vires, não é como ouro ou como roupa que ele te parecerá ser, ou como os belos jovens adolescentes, a cuja vista ficas agora aturdido e disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus amados e sempre estejam com eles, a nem comer nem beber, se de algum modo fosse possível, mas a só contemplar e estar ao seu lado. Que pensa­mos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mor­tais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única contemplar? Porventura pensas, disse, que é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele objeto, com aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou não consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, por que é no real que estará tocando? Eis o que me dizia Diotima, ó Fedro e demais presentes, e do que estou convencido; e porque estou convencido, tento convencer também os outros de que para essa aquisição, um colaborador da natureza humana melhor que o Amor não se encontraria facilmente. Eis por que eu afirmo que deve todo homem honrar o Amor, e que eu próprio prezo o que lhe concerne e particularmente o cultivo, e aos outros exorto, e agora e sempre elogio o poder e a virilidade do Amor na medida em que sou capaz. Este discurso, ó Fedro, se queres, considera-o proferido como um encômio ao Amor; se não, o que quer que e como quer que te apraza chamá-lo, assim deves fazê-lo. Depois que Sócrates assim falou, enquanto que uns se põem a louvá-lo, Aristófanes tenta dizer alguma coisa, que era a ele que aludira Sócrates, quando falava de um certo dito; e súbito a porta do pátio, percutida, produz um grande barulho, como de foliões, e ouve-se a voz de uma flautista. Agatão exclama: “Servos! Não ireis ver? Se for algum conhecido, chamai-o; se não, dizei que não estamos bebendo, mas já repousamos”. Não muito depois ouve-se a voz de Alcibíades no pátio, bastante embriagado, e a gritar alto, perguntando onde estava Agatão, pedindo que o levassem para junto de Agatão. Levam-no então até os convivas a flautista, que o tomou sobre si, e alguns outros acompanhantes, e ele se detém à porta, cingido de uma espécie de coroa tufada de hera e violetas, coberta a cabeça de fitas em profusão, e exclama: “Senhores! Salve! Um homem em completa embriaguez vós o recebereis como companheiro de bebida, ou deve­mos partir, tendo apenas coroado Agatão, pelo qual viemos? Pois eu, na verdade, continuou, ontem mesmo não fui capaz de vir; agora porém eis-me aqui, com estas fitas sobre a cabeça, a fim de passá-las da minha para a cabeça do mais sábio e do mais belo, se assim devo dizer. Porventura ireis zombar de mim, de minha embriaguez? Ora, eu, por mais que zombeis, bem sei por­tanto que estou dizendo a verdade. Mas dizei-me daí mesmo: com o que disse, devo entrar ou não? Bebereis comigo ou não? Todos então o aclamam e convidam a entrar e a recostar-se, e Agatão o chama. Vai ele conduzido pelos homens, e como ao mesmo tempo colhia as fitas para coroar, tendo-as diante dos olhos não viu Sócrates, e, todavia, senta-se ao pé de Agatão, entre este e Sócrates, que se afastara de modo a que ele se acomodasse. Sentando-se ao lado de Agatão ele o abraça e o coroa. Disse então Agatão: - Descalçai Alcibíades, servos, a fim de que seja o terceiro em nosso leito. - Perfeitamente - tornou Alcibíades; - mas quem é este nosso terceiro companheiro de bebida? E enquanto se volta avista Sócrates, e mal o viu recua em sobressalto e exclama: Por Hércules! Isso aqui que e? Tu, ó Sócrates? Espreitando-me de novo aí te deitaste, de súbito aparecendo assim como era teu costume, onde eu menos esperava que haverias de estar? E agora, a que vieste? E ainda por que foi que aqui te recostaste? Pois não foi junto de Aristófanes, ou de qual­quer outro que seja ou pretenda ser engraçado, mas junto do mais belo dos que estão aqui dentro que maquinaste te deitar. E Sócrates: - Agatão, vê se me defendes! Que o amor deste homem se me tornou um não pequeno problema. Desde aquele tempo, com efeito, em que o amei, não mais me é permitido dirigir nem o olhar nem a palavra a nenhum belo jovem, serão este homem, enciumado e invejoso, faz coisas extraordinárias, insulta-me e mal retém suas mãos da violência. Vê então se também agora não vai ele fazer alguma coisa, e reconcilia-nos; ou se ele tentar a violência, defende­-me, pois eu da sua fúria e da sua paixão amorosa muito me arreceio. - Não! - disse Alcibíades - entre mim e ti não há reconciliação. Mas pelo que disseste depois eu te castigarei; agora porém, Agatão, ex­clamou ele, passa-me das tuas fitas, a fim de que eu cinja também esta aqui, a admirável cabeça deste homem, e não me censure ele de que a ti eu te coroei, mas a ele, que vence em argumentos todos os homens, não só ontem como tu, mas sempre, nem por isso eu o coroei. - E ao mesmo tempo ele toma das fitas, coroa Sócrates e recosta-se. Depois que se recostou, disse ele: - Bem, senhores! Vós me pareceis em plena sobriedade. É o que não se deve permitir entre vós, mas beber; pois foi o que foi combinado entre nós. Como chefe então da bebedeira, até que tiverdes suficientemente bebido, eu me elejo a mim mesmo. Eia, Agatão, que a tragam logo, se houver aí alguma grande taça. Melhor ainda, não há nenhuma precisão: vamos, servo, traze-me aquele porta-gelo! exclamou ele, quando viu um com capacidade de mais de oito “cótilas”. Depois de enchê-lo, primeiro ele bebeu, depois mandou Sócrates entornar, ao mesmo tempo que dizia: - Para Sócrates, senhores, meu ardil não é nada: quanto se lhe mandar, tanto ele beberá, sem que por isso jamais se embriague. Sócrates então, tendo-lhe entornado o servo, pôs-se a beber; mas eis que Erixímaco exclama: - Que é então que fazemos, Alcibíades? Assim nem dizemos nada nem cantamos de taça à mão, mas simplesmente iremos beber, como os que têm sede? Alcibíades então exclamou: Excelente filho de um excelente e sapientíssimo pai, salve! - Também tu, salve! - respondeu-lhe Erixímaco; - mas que deve­mos fazer? - O que ordenares! É preciso com efeito te obedecer: pois um homem que é médico vale muitos outros; ordena então o que queres. - Ouve então - disse Erixímaco. - Entre nós, antes de chegares, decidimos que devia cada um à direita pro­ferir em seu turno um discurso sobre o Amor, o mais belo que pudesse, e lhe fazer o elogio. Ora, todos nós já fala­mos; tu, porém como não o fizeste e bebeste tudo, é justo que fales, e que depois do teu discurso ordenes a Sócrates o que quiseres, e este ao da direi­ta, e assim aos demais. - Mas, Erixímaco! - tornou-lhe Alcibíades - é sem dúvida bonito o que dizes, mas um homem embriagado proferir um discurso em confronto com os de quem está com sua razão, é de se esperar que não seja de igual para igual. E ao mesmo tempo, ditoso amigo, convence-te Sócrates em algo do que há pouco disse? Ou sabes que é o contrário de tudo o que afirmou? É ele ao contrário que, se em sua presença eu louvar alguém, ou um deus ou um outro homem fora ele, não tirará suas mãos de mim. - Não vais te calar? - disse Sócrates. - Sim, por Posidão - respondeu-lhe Alcibíades; nada digas quanto a isso, que eu nenhum outro mais louvaria em tua presença. - Pois faze isso então - disse-lhe Erixímaco - se te apraz; louva Sócrates. - Que dizes? - tornou-lhe Alcibíades; - parece-te necessário, Erixímaco? Devo então atacar-me ao homem e castigá-lo diante de vós? - Eh! tu! - disse-lhe Sócrates - que tens em mente? Não é para carregar no ridículo que vais elogiar-me? Ou que farás? - A verdade eu direi. Vê se aceitas! - Mas sem dúvida! - respondeu-lhe - a verdade sim, eu aceito, e mesmo peço que a digas. - Imediatamente - tornou-lhe Alcibíades. - Todavia faze o seguinte. Se eu disser algo inverídico, inter­rompe-me incontinenti, se quiseres, e dize que nisso eu estou falseando; pois de minha vontade eu nada falsearei. Se, porém, a lembrança de uma coisa me faz dizer outra, não te admires; não é fácil, a quem está neste estado, da tua singularidade dar uma conta bem feita e seguida. “Louvar Sócrates, senhores, é assim que eu tentarei, através de imagens. Ele certamente pensará talvez que é para carregar no ridículo, mas será a imagem em vista da verdade, não do ridículo. Afirmo eu então que é ele muito semelhante a esses silenos coloca­dos nas oficinas dos estatuários, que os artistas representam com um pifre ou uma flauta, os quais, abertos ao meio, vê-se que têm em seu interior estatue­tas de deuses. Por outro lado, digo também que ele se assemelha ao sátiro Mársias. Que na verdade, em teu aspecto pelo menos és semelhante a esses dois seres, ó Sócrates, nem mesmo tu sem dúvida poderias contestar; que porém também no mais tu te assemelhas, é o que depois disso tens de ouvir. És insolente! Não? Pois se não admitires, apresentarei testemunhas. Mas não és flautista? Sim! E muito mais maravilhoso que o sátiro. Este, pelo menos, era através de instrumentos que, com o poder de sua boca, encantava os homens como ainda agora o que toca as suas melodias —pois as que Olimpo tocava são de Mársias, digo eu, por este ensinadas - as dele então, quer as toque um bom flautista quer uma flautista ordinárias, são as únicas que nos fazem possessos e revelam os que sentem falta dos deuses e das iniciações, porque são divinas. Tu, porém, dele diferes apenas nesse pequeno ponto, que sem instrumentos, com simples palavras, fazes o mesmo. Nós pelo menos, quando algum outro ouvimos mesmo que seja um perfeito orador, a falar de outros assuntos, absolutamente por assim dizer ninguém se interessa; quando porém é a ti que alguém ouve, ou palavras tuas referidas por outro, ainda que seja inteiramente vulgar o que está falando, mulher, homem ou adolescente, ficamos aturdidos e somos empolgados. Eu pelo menos, senhores, se não fosse de todo parecer que estou embriagado, eu vos contaria, sob jura­mento, o que é que eu sofri sob o efeito dos discursos deste homem, e sofro ainda agora. Quando com efeito os escuto, muito mais do que aos coribantes em seus transportes bate-me o coração, e lágrimas me escorrem sob o efeito dos seus discursos, enquanto que outros muitíssimos eu vejo que experimentam o mesmo sentimento; ao ouvir Péricles porém, e outros bons oradores, eu achava que falavam bem sem dúvida, mas nada de semelhante eu sentia, nem minha alma ficava perturbada nem se irritava, como se se encontrasse em condição servil; mas com este Mársias aqui, muitas foram as vezes em que de tal modo me sentia que me parecia não ser possível viver em condições como as minhas. E isso, ó Sócrates, não irás dizer que não é verdade. Ainda agora tenho certeza de que, se eu quisesse prestar ouvidos, não resistiria, mas experimentaria os mesmos sentimentos. Pois me força ele a admitir que, embora sendo eu mesmo deficiente em muitos pontos ainda, de mim mesmo me descuido, mas trato dos negócios de Atenas. A custo então, como se me afastasse das sereias, eu cerro os ouvidos e me retiro em fuga, a fim de não ficar sentado lá e aos seus pés envelhecer. E senti diante deste homem, somente diante dele, o que ninguém imaginaria haver em mim, o envergonhar-me de quem quer que seja; ora, eu, é diante deste homem somente que me envergonho. Com efeito, tenho certeza de que não posso contestar-lhe que não se deve fazer o que ele manda, mas quando me retiro sou vencido pelo apreço em que me tem o público. Safo-me então de sua presença e fujo, e quando o vejo envergonho-me pelo que admiti. E muitas vezes sem dúvida com prazer o veria não existir entre os homens; mas se por outro lado tal coisa ocorresse, bem sei que muito maior seria a minha dor, de modo que não sei o que fazer com esse homem. De seus flauteios então, tais foram as reações que eu e muitos outros tive­mos deste sátiro; mas ouvi-me como ele é semelhante àqueles a quem o comparei, que poder maravilhoso ele tem. Pois ficai sabendo que ninguém o conhece; mas eu a revelarei, já que comecei. Estais vendo, com efeito, como Sócrates amorosamente se com­porta com os belos jovens, está sempre ao redor deles, fica aturdido e como também ignora tudo e nada sabe. Que esta sua atitude não é conforme à dos silenos? E muito mesmo. Pois é aquela com que por fora ele se reveste, como o sileno esculpido; mas lá dentro, uma vez aberto, de quanta sabedoria imaginais, companheiros de bebida, estar ele cheio? Sabei que nem a quem é belo tem ele a mínima consideração, antes despreza tanto quanto ninguém poderia imaginar, nem tampouco a quem é rico, nem a quem tenha qual­quer outro título de honra, dos que são enaltecidas pelo grande número; todos esses bens ele julga que nada valem, e que nós nada somos - a que vos digo - e é ironizando e brincando com os homens que ele passa toda a vida. Uma vez porém que fica sério e se abre, não sei se alguém já viu as estátuas lá dentro; eu por mim já uma vez as vi, e tão divinas me pareceram elas, com tanto aura, com uma beleza tão completa e tão extraordinária que eu só tinha que fazer imediatamente a que me mandasse Sócrates. Julgando, porém, que ele estava interessado em minha beleza, considerei um achado e um maravilhoso lance da fortuna, como se me estivesse ao alcance, de­pois de aquiescer a Sócrates, ouvir tudo a que ele sabia; o que, com efeito, eu presumia da beleza de minha juventude era extraordinário! Com tais ideias em meu espírito, eu que até então não costumava sem um acompanhante ficar só com ele, dessa vez, despachando o acompanhante, encontrei-me a sós - é preciso, com efeito, dizer-vos toda a verdade; - prestai atenção, e se eu estou mentindo, Sócrates, prova - pois encontrei-me, senhores, a sós com ele, e pensava que logo ele iria tratar comigo a que um amante em segredo trataria com o bem-amado, e me rejubilava. Mas não, nada disso absolutamente aconteceu; ao contrário, como costumava, se por acaso comigo conversasse e passasse o dia, ele retirou-se e foi-se embora. Depois disso convidei-o a fazer ginástica comigo e entreguei-me aos exercícios, como se houvesse então de conseguir algo. Exercitou-se ele comigo e comigo lutou muitas vezes sem que ninguém nos presenciasse; e que devo dizer? Nada me adiantava. Como por nenhum desses caminhos eu tivesse resultado, decidi que devia atacar-me ao homem à força e não o largar, uma vez que eu estava com a mão na obra, mas logo saber de que é que se tratava. Convido-o então a jantar comigo, exatamente como um amante armando cilada ao bem-amado. E nem nisso também ele me atendeu logo, mas na verdade com o tempo deixou-se convencer. Quando, porém, veio à primeira vez, depois do jantar queria partir. Eu então, envergonhado, larguei-o; mas repeti a cilada, e depois que ele estava jantado eu me pus a conversar com ele noite adentro, ininterruptamente, e quando quis partir, observando-lhe que era tarde, obriguei-o a ficar. Ele descansava então no leito vizinho ao meu, no mesmo em que jantara, e ninguém mais no compartimento ia dormir senão nós. Bem, até esse ponto do meu discurso ficaria bem fazê-lo a quem quer que seja; mas o que a partir daqui se segue, vós não me teríeis ouvido dizer se, primeiramente, como diz o ditado, no vinho, sem as crianças ou com elas, não estivesse a verdade; e depois, obscurecer um ato excepcional­mente brilhante de Sócrates, quando se saiu a elogiá-lo, parece-me injusto. E ainda mais, o estado do que foi mordido pela víbora é também o meu. Com efeito, dizem que quem sofreu tal acidente não quer dizer como foi senão aos que foram mordidos, por serem os únicos, dizem eles, que a compreendem e desculpam de tudo que ousou fazer e dizer sob o efeito da dor. Eu então, mordido por algo mais dolo­roso, e no ponto mais doloroso em que se passa ser mordido — pois foi no coração ou na alma, ou no que quer que se deva chamá-lo que fui golpeado e mordido pelos discursos filosóficos, que têm mais virulência que a víbora, quando pegam de um jovem espírito, não sem dotes, e que tudo fazem cometer e dizer tudo - e vendo por outro lado os Fedros, Agatãos, Erixímacos, os Pausânias, os Aristodemos e os Aristófanes; e o próprio Sócrates, é preciso mencioná-lo? E quantos mais... Todos vós, com efeito, participastes em comum do delírio filosófico e dos seus transportes báquicos e por isso todos ireis ouvir-me; pois haveis de desculpar-me do que então fiz e do que agora digo. Os domésticos, e se mais alguém há profano e inculto, que apliquem aos seus ouvidos portas bem espessas. Como com efeito, senhores, a lâmpada se apagara e os servos estavam fora, decidi que não devia fazer nenhum floreado com ele, mas franca­mente dizer-lhe o que eu pensava; e assim o interpelei, depois de sacudi-lo: - Sócrates, estás dormindo? - Absolutamente - respondeu-­me. - Sabes então qual é a minha decisão? - Qual é exatamente? - tornou-me. - Tu me pareces - disse-lhe eu - ser um amante digno de mim, o único, e te mostras hesitante em declarar-me. Eu, porém, é assim que me sinto: inteiramente estúpido eu acho não te aquiescer não só nisso como também em algum caso em que precisasses ou de minha fortuna ou dos meus amigos. A mim, com efeito, nada me é mais digno de respeito do que o tornar-me eu o melhor possível, e para isso creio que nenhum auxiliar me é mais importante do que tu. Assim é que eu, a um tal homem recusando meus favores, muito mais me envergonharia diante da gente ajuizada do que se os concedesse, diante da multidão irrefletida. E este homem, depois de ouvir-me, com a perfeita ironia que é bem sua e do seu hábito, retrucou-me: - Caro Alcibíades, é bem provável que real­mente não sejas um vulgar, se chega a ser verdade a que dizes a meu respeito, e se há em mim algum poder pelo qual tu te poderias tornar melhor; sim, uma irresistível beleza verias em mim, e totalmente diferente da formosura que há em ti. Se então, ao contemplá-la, tentas compartilhá-la comigo e trocar beleza por beleza, não é em pouco que pensas me levar vantagens, mas ao contrário, em lugar da aparência é a realidade do que é belo que tentas adquirir, e realmente é “ouro por cobre” que pensas trocar. No entanto, ditoso amigo, examina melhor; não te passe despercebido que nada sou. Em verdade, a visão do pensa­mento começa a enxergar com agudeza quando a dos olhos tende a perder sua força; tu, porém estás ainda longe disso. E eu, depois de ouvi-lo: - Quanto ao que é de minha parte, eis aí; nada do que está dito é diferente do que penso; tu porém decide de acordo com o que julgares ser o melhor para ti e para mim. - Bem, tomou ele, nisso sim, tens razão; daqui por diante, com efeito, decidiremos fazer, a respeito disso como do mais, o que a nós dois nos parecer melhor. Eu, então, depois do que vi e disse, e que como flechas deixei escapar, imaginei-o ferido; e assim que eu me ergui sem ter-lhe permitido dizer-me nada mais, vesti esta minha túnica - pois era inverno - estendi-me por sob a manta deste homem, e abraçado com estas duas mãos a este ser verdadeira­mente divino e admirável fiquei deita­do a noite toda. Nem também isso, ó Sócrates, irás dizer que estou falseando. Ora, não obstante tais esforços meus, tanto mais este homem cresceu e desprezou minha juventude, ludibriou-­a, insultou-a e justamente naquilo é que eu pensava ser alguma coisa, senhores juízes; sois com efeito juízes da sobranceria de Sócrates - pois ficai sabendo, pelos deuses e pelas deusas, quando me levantei com Sócrates, foi após um sono em nada mais extraordinário do que se eu tivesse dormido com meu pai ou um irmão mais velho. Ora bem, depois disso, que disposição de espírito pensais que eu tinha, a julgar-me vilipendiado, a admirar o caráter deste homem, sua temperança e coragem, eu que tinha encontrado um homem tal como jamais julgava poderia encontrar em sabedoria e fortaleza? Assim, nem eu podia irritar-me e privar-me de sua companhia, nem sabia como atrai-lo. Bem sabia eu, com efeito, que ao dinheiro era ele de qualquer modo muito mais invulnerável do que Ájax ao ferro, e na única coisa em que eu imaginava ele se deixaria prender, ei-lo que me havia escapado. Embaraçava-me então, e escravizado pelo homem como ninguém mais por nenhum outro, eu rodava à toa. Tudo isso tinha-se sucedido anteriormente; depois, ocorreu-nos fazer em comum uma expedição em Potidéia, e éramos ali companheiros de mesa. Antes de tudo, nas fadigas, não só a mim me superava mas a todos os outros - quando isolados em algum ponto, como é comum numa expedição, éramos forçados a jejuar, nada eram os outros para resistir - e por outro lado nas fartas refeições, era o único a ser capaz de aproveitá-las em tudo mais, sobretudo quando, embora se recusasse, era forçado a beber, que a todos vencia; e o que é mais espantoso de tudo é que Sócrates embriagado nenhum homem há que o tenha visto. E disso, parece-me, logo teremos a prova. Também quanto à resistência ao inverno - terríveis são os invernos ali - entre outras façanhas extraordinárias que fazia, uma vez, durante uma geada das mais terríveis, quando todos ou evitavam sair ou, se alguém saía, era envolto em quanta roupagem estranha, e amarrados os pés em feltros e peles de carneiro, este homem, em tais circunstâncias, saía com um manta do mesmo tipo que antes costumava trazer, e descalço sobre o gelo marchava mais à vontade que os outros calçados, enquanto que os soldados o olhavam de soslaio, como se o suspeitassem de estar troçando deles. Quanto a estes fatos, ei-los aí: mas também o seguinte, como o fez e suportou um bravo lá na expedição, certa vez, merece ser ouvido. Concentrado numa reflexão, logo se detivera desde a madrugada a examinar uma ideia, e como esta não lhe vinha, sem se aborrecer ele se conservara de pé, a procurá-la. Já era meio-dia, os homens estavam observando, e cheios de admiração diziam uns aos outros: Sócrates desde a madrugada está de pé ocupado em suas reflexões! Por fim, alguns dos jônicos, quando já era de tarde, de­pois de terem jantado - pois era então o estio - trouxeram para fora os seus leitos e ao mesmo tempo que iam dormir na fresca, observavam-no a ver se também a noite ele passaria de pé. E ele ficou de pé, até que veia a aurora e o sol se ergueu; a seguir foi embora, depois de fazer uma prece ao sol. Se quereis saber nos combates - pois isto é bem justo que se lhe leve em conta - quando se deu a batalha pela qual chegaram mesmo a me condecorar os generais, nenhum outro homem me salvou senão este, que não quis abandonar-me ferido, e até minhas armas salvou comigo. Eu então, ó Sócrates, insisti com os generais para que te conferissem essa honra, e isso não vais me censurar nem irás dizer que estou falseando; todavia, quando já os generais consideravam minha posição e desejavam conceder-me a insigne honra, tu mesmo foste mais solícito que os generais para que fosse eu e não tu que a recebesse. E também, ó senhores, valia a pena observar Sócrates, quando de Delião batia em retirada o exército; por acaso fiquei ao seu lado, a cavalo, enquanto ele ia com suas armas de hoplita. Ora, ele se retirava, quando já tinham debandado os nossos homens, ao lado de Laques: acerco-me deles e logo que os veja exorto-os à coragem, dizendo-lhes que os não abandonaria. Foi aí que, melhor que em Potidéia, eu observei Sócrates - pois o meu perigo era menor, por estar eu a cavalo - primeiramente quanto ele superava a Laques, em domínio de si; e depois, parecia-me, ó Aristófanes, segundo aquela tua ex­pressão, que também lá como aqui ele se locomovia “impondo-se e olhando de través”, calmamente examinando de um lado e de outro os amigos e os inimigos, deixando bem claro a todos, mesma a distância, que se alguém tocasse nesse homem, bem vigorosamente ele se defenderia. Eis por que com segurança se retirava, ele e o seu companheiro; pois quase que, nos que assim se comportam na guerra, nem se toca, mas é aos que fogem em desordem que se persegue. Muitas outras virtudes certamente poderia alguém louvar em Sócrates, e admiráveis; todavia, das demais atividades, talvez também a respeito de alguns outros se pudesse dizer outro tanto; o fato porém de a nenhum homem assemelhar-se ele, antigo ou moderno, eis o que é digno de toda admiração. Com efeito, qual foi Aquiles, tal poder-se-ia imaginar Brasidas e outros, e inversamente, qual foi Péricles, tal Nestor e Antenor - sem falar de outros - e todos os demais por esses exemplos se poderia comparar; o que porém é este homem aqui, o que há de desconcertante em sua pessoa e em suas palavras, nem de perto se poderia encontrar um semelhante, quer se procure entre os modernos, quer entre os antigos, a não ser que se lhe faça a comparação com os que eu estou dizendo, não com nenhum homem, mas com os silenos e os sátiros, e não só de sua pessoa como de suas palavras. Na verdade, foi este sem dúvida um ponto em que em minhas palavras eu deixei passar, que também os seus discursos são muito semelhantes aos silenos que se entreabrem. A quem quisesse ouvir os discursos de Sócrates pareceriam eles inteiramente ridículos à primeira vez: tais são os nomes e frases de que por fora se revestem eles, como de uma pele de sátiro insolente! Pois ele fala de bestas de carga, de ferreiros, de sapateiros, de correeiros, e sempre parece com as mesmas palavras dizer as mesmas coisas, a ponto de qualquer inexperiente ou imbecil zombar de seus discursos. Quem porém os viu entreabrir-se e em seu interior penetra, primeiramente descobrirá que, no fundo, são os únicos que têm inteligência, e depois, que são o quanto possível divinos, e os que o maior número contêm de imagens de virtude, e o mais possível se orientam, ou melhor, em tudo se orientam para o que convém ter em mira, quando se procura ser um distinto e honra­do cidadão. Eis aí, senhores, o que em Sócrates eu louvo; quanto ao que, pelo contrário, lhe recrimino, eu o pus de permeio e disse os insultos que me fez. E na verdade não foi só comigo que ele os fez, mas com Cármides, o filho de Glauco, com Eutidemo, de Díocles, e com muitíssimos outros, os quais ele engana fazendo-se de amoroso, enquanto é antes na posição de bem-amado que ele mesmo fica, em vez de amante. E é nisso que te previno, ó Agatão, para não te deixares enganar por este homem e, por nossas experiências ensinado, te preservares e não fazeres como o bobo do provérbio, que “só depois de sofrer aprende”. Depois destas palavras de Alcibíades houve risos por sua franqueza, que parecia ele ainda estar amoroso de Sócrates. Sócrates então disse-lhe: - Tu me pareces, ó Alcibíades, estar em teu domínio. Pois de outro modo não te porias, assim tão destramente fazendo rodeios, a dissimular o motivo por que falaste; como que falando acessoriamente tu o deixaste para o fim, coma se tudo o que disseste não tivesse sido em vista disso, de me indispor com Agatão, na ideia de que eu devo amar-te e a nenhum outro, e que Agatão é por ti que deve ser amado, e por nenhum outro. Mas não me escapaste! Ao contrário, esse teu drama de sátiros e de silenos ficou transparente. Pois bem, caro Agatão, que nada mais haja para ele, e faze com que comigo ninguém te indisponha. Agatão respondeu: - De fato, ó Sócrates, é muito provável que estejas dizendo a verdade. E a prova é a maneira como justamente ele se recostou aqui no meio, entre mim e ti, para nos afastar um do outro. Nada mais ele terá então; eu virei para o teu lado e me recostarei. - Muito bem - disse Sócrates - reclina-te aqui, logo abaixo de mim. - Ó Zeus, que tratamento recebo ainda desse homem! Acha ele que em tudo deve levar-me a melhor. Mas pelo menos, extraordinária criatura, permite que entre nós se acomode Agatão. - Impossível! - tornou-lhe Sócrates. - Pois se tu me elogiaste, devo eu por minha vez elogiar o que está à minha direita. Ora, se abaixo de ti ficar Agatão, não irá ele por acaso fazer-me um novo elogio, antes de, pelo contrário, ser por mim elogiado? Deixa, divino amigo, e não invejes ao jovem o meu elogio, pois é grande o meu desejo de elogiá-lo. - Evoé! - exclamou Agatão; - Alcibíades, não há meio de aqui eu ficar; ao contrário, antes de tudo, eu mudarei de lugar, a fim de ser por Sócrates elogiado. - Eis aí - comentou Alcibíades - a cena de costume: Sócrates presente, impossível a um outro conquistar os belos! Ainda agora, como ele soube facilmente encontrar uma palavra persuasiva, com o que este belo se vai pôr ao seu lado. Agatão levanta-se assim para ir deitar-se ao lado de Sócrates; súbito porém uns foliões, em numeroso grupo, chegam à porta e, tendo-a encontrado aberta com a saída de alguém, irrompem eles pela frente em direção dos convivas, tomando assento nos leitos; um tumulto enche todo o recinto e, sem mais nenhuma ordem, é-se forçado a beber vinho em demasia. Erixímaco, Fedro e alguns outros, disse Aristodemo, retiram-se e partem; a ele porém o sono o pegou, e dormiu muitíssimo, que estavam longas as noites; acordou de dia, quando já cantavam os galos, e acordado viu que os outros ou dormiam ou estavam ausentes; Agatão porém, Aristófanes e Sócrates eram os únicos que ainda estavam despertos, e bebiam de uma grande taça que passavam da esquerda para a direita. Sócrates conversava com eles; dos pormenores da conversa disse Aristodemo que não se lembrava - pois não assistira ao começo e ainda estava sonolento - em resumo porém, disse ele, forçava-os Sócrates a admitir que é de um mesmo homem o saber fazer uma comédia e uma tragédia, e que aquele que com arte é um poeta trágico é também um poeta cômico. Forçados a isso e sem o seguir com muito rigor eles cochilavam, e primeiro adormeceu Aristófanes e, quando já se fazia dia, Agatão. Sócrates então, depois de acomodá-los ao leito, levantou-se e partiu; Aristodemo, como costumava, acompanhou-o; chegado ao Liceu ele asseou-se e, como em qualquer outra ocasião, passou o dia inteiro, depois do que, à tarde, foi repousar em casa.