Herbert Spencer – Primeiros Princípios Sumário Primeira parte: o incognoscível I: Religião e Ciência II: Ideias fundamentais da Religião III: Ideias fundamentais da Ciência IV: Relatividade de todo conhecimento V: Reconciliação Segunda parte: o cognoscível I: Definição da Filosofia II: Dados da Filosofia III: Espaço, tempo, matéria, movimento e força IV: Indestrutibilidade da matéria V: Continuidade do movimento VI: Persistência da força VII: Persistência das relações entre as forças VIII: Transformação e equivalência das forças IX: A direção do movimento X: Ritmo do movimento XI: Recapitulação; problema final XII: Evolução e dissolução XIII: Evolução simples e composta XIV: A lei da evolução XV: A lei da evolução (continuação) XVI: A lei da evolução (continuação) XVII: A lei da evolução (final) XVIII: Interpretação da evolução XIX: Instabilidade do homogêneo XX: A multiplicação dos efeitos XXI: A segregação XXII: O equilíbrio XXIII: A dissolução XXIV: Resumo e conclusão PRIMEIRA PARTE: O INCOGNOSCÍVEL I Religião e Ciência § 1. Esquecemo-nos, muito frequentemente, não só de que "há sempre um fundo de bondade nas coisas más", mas muito geralmente também, de que há um fundo de verdade nas coisas falsas. Embora muitos admitam, de maneira abstrata, a probabilidade de que a falsidade tenha usualmente um núcleo de verdade, poucos a trazem à mente e a aplicam quando julgam opiniões alheias. Em geral se repele, com indignação e desprezo, toda crença que esteja em aberta oposição com os fatos, e no calor do confronto, raramente se pergunta o que abona ou justifica tal crença para o pensamento humano. Contudo, algumas razões devem existir para sua admissão, alguma relação com a experiência humana, relação talvez vaga e imperfeita, mas ainda assim, uma relação. A história mais absurda pode ter sua origem em um acontecimento real, sem cuja existência essa ideia descabida ora divulgada jamais houvesse nascido. Ainda que a imagem amplificada e deformada que nos transmite um rumor seja completamente distinta da realidade, sem este não teríamos imagem amplificada e deformada. Assim acontece com as crenças humanas em geral. Mesmo que algumas nos pareçam absolutamente falsas, pode-se admitir que tivessem sua origem em fatos, que primitivamente continham, e talvez contenham ainda, algo de verdade. E especialmente, temos com segurança de admiti-lo, quando se trata de crenças que prevaleceram por muito tempo e se difundiram muito, e, sobretudo, se são crenças vivas e quase ou totalmente universais. A presunção de que uma crença reinante não é inteiramente falsa adquire certa força conforme o número de seus partidários. Se admitirmos não ser possível a vida sem certa conformidade entre as condições de foro íntimo e as circunstâncias do Universo; se admitimos ainda que sempre há uma probabilidade em prol da verdade total ou parcial de uma convicção, deveremos atribuir muitas probabilidades de fundamento às convicções de um grande número de indivíduos, pois comumente as ideias falsas individuais se eliminam e emprestam ao juízo geral um valor maior. Talvez se objete que muitas das crenças mais expandidas são aceitas sob a fé da autoridade; que os que as professam nada fizeram por si para comprová-las, e que, portanto, a multidão de crentes pouco diz a favor da probabilidade de uma crença. Mas tal não é certo; quando uma crença conquista numerosos adeptos sem sofrer alguma crítica, é evidente que, em tese geral, está em harmonia com outras crenças dos homens que a aceitam, e, se estas foram pessoalmente comprovadas, proporcionam um fundamento indireto àquela com a qual se harmonizam. Pode ocorrer que esse fundamento tenha apenas um valor muito insignificante; mas é forçoso convir que algum valor terá. Se pudéssemos formar ideias claras sobre este ponto, elas nos seriam muito úteis. É muito conveniente formular, se possível, uma teoria geral das opiniões admitidas, a fim de não as estimar de mais nem de menos, mas por seu justo valor. A formação de juízos exatos acerca das questões que se discutem depende, em grande parte, da atitude que guarda nosso espírito quando ouvimos a controvérsia ou nela tomamos parte; e se queremos que essa atitude seja a melhor possível, é preciso que conheçamos o que há de verdadeiro e de falso nas crenças humanas. Para isso não devemos, por uma parte, aceitar sem reservas ideias preconcebidas como dogmas, como o conhecido vox Populi, vox Dei; nem, por outra parte, desconhecer o que a história nos revela: nem sempre a maioria acertou, mas raramente errou por completo. Uma das condições principais de um pensamento livre e amplo é evitar os extremos; devemos, pois, procurar com cuidado não cair neles, e a melhor salvaguarda para escapar da queda é a consideração e tolerância com as opiniões alheias. Quanto a isso, é preciso considerar a espécie de relação que comumente liga a opinião aos fatos. Tomemos por exemplo uma das crenças que, sob diversas formas, reinaram em todos os tempos e países. § 2. As tradições mais antigas representam os chefes como deuses ou semideuses. No entender de seus súditos, os reis primitivos tinham uma origem sobre-humana e exerciam um poder também sobre-humano. possuíam prerrogativas divinas, os súditos se prostravam ante eles como ante os altares dos deuses e até foram adorados, em alguns casos. Se se necessitava uma prova de que verdadeiramente se concedia ao monarca um caráter divino ou semidivino, a encontraríamos nessas raças selvagens que admitem ainda uma origem divina para os chefes e suas famílias, e creem que só o chefe tem alma. Naturalmente, a par dessas crenças existiam outras, segundo as quais o chefe tinha sobre seus vassalos um poder ilimitado, um absoluto direito de propriedade, direito até sobre suas vidas. Até hoje, nas ilhas Fiji, a vítima marcha para a morte com pés e mãos livres, a um sinal do rei, e declara que "tudo que este manda deve ser executado". Em tempos e países menos bárbaros, encontramos essas crenças um pouco modificadas. Já não se considera o monarca como um deus ou semideus, mas um homem que possui autoridade e talvez algo da natureza divina. Conserva, como ocorre agora no Oriente, títulos comemorativos de um parentesco e uma descendência celestes; é saudado com a mesma humildade de formas e de palavras que a Divindade; e se, na prática, a vida e a fortuna de seus súditos não estão totalmente à sua disposição, o estão em teoria. Em um período mais adiantado da civilização, como na Idade Média, na Europa, sofrem ainda maior mudança as opiniões sobre a natureza das relações entre os povos e seus chefes. A teoria da origem divina cede lugar à do direito divino. O rei não é um deus e nem um semideus, nem mesmo um descendente de Deus, mas um vigário de Deus; os sinais de respeito que lhe são tributados não são de uma humildade tão exagerada, e seus títulos sagrados perdem muito de sua significação; sua autoridade deixa de ser ilimitada; os súditos lhe negam o direito de dispor arbitrariamente de suas vidas e bens e sua fidelidade adota a forma de obediência a seus mandatos. À medida que se desenvolve a opinião pública, o poder Soberano se restringe; a crença no caráter sobrenatural do rei há muito foi afastada, e não deixou atrás de si mais que a opinião vulgar que atribui a ele uma bondade, uma sabedoria e uma beleza extraordinárias. A lealdade, que a princípio implicitamente significava a submissão à vontade do chefe, não significa ou expressa hoje senão um tributo de subordinação ou respeito. Nossa teoria e nossa prática política rechaçam absolutamente essas prerrogativas reais, indiscutíveis em outros tempos. Destronando alguns reis e os substituindo por outros, não só negamos o direito divino de certas pessoas ao poder soberano, como também todo outro direito que não o da vontade nacional. Nossas formas de linguagem e os documentos oficiais ainda consignam que os cidadãos são súditos do rei; mas nossas crenças afetivas e nossos atos cotidianos implicitamente afirmam o contrário. Obedecemos somente às leis feitas pelos congressos; despojamos inteiramente os monarcas do Poder Legislativo, e nos rebelaríamos contra seu exercício, se intentado por eles, mesmo em matérias de mínima importância. A doutrina primitiva está, pois, totalmente extinta em nossos tempos e países. O abandono das primitivas opiniões políticas não teve como único efeito transferir o poder das mãos de um autocrata para uma assembleia representativa, mas também fazer com que as ideias que hoje se tem do governo, qualquer que seja sua forma, sejam muito distintas das antigas. Os governos, populares ou despóticos, gozavam antigamente de uma autoridade ilimitada sobre seus súditos; os indivíduos existiam para o bem do Estado e não este para o bem daqueles. Em nosso tempo, e nos países liberalmente regidos, não só a vontade nacional substituiu a do rei, como se restringiu muito a esfera de exercício daquela. Na Inglaterra, por exemplo, embora não haja uma teoria precisa que limite a autoridade governamental, esta tem, na prática, limites tacitamente reconhecidos por todos. Não há nenhuma lei orgânica formalmente proclamando que as legislaturas não podem dispor a seu arbítrio da vida dos cidadãos, como dispunham os reis que promoviam hecatombes humanas; contudo, se hoje os mesmos intentassem usar o poder, em vez de produzir a morte de alguns cidadãos, a sua temeridade produziria sua ruína. De modo análogo, ver-se-ia logo a inteira segurança que damos às liberdades e direitos individuais contra as usurpações do Estado-poder, se se intentasse, por uma lei, apoderar-se de uma classe de cidadãos para empregá-los em serviços públicos, como faziam os governos primitivos. Se um homem de Estado propusesse uma divisão da propriedade sob o modelo de alguma antiga sociedade democrática, encontrar-se-ia frente a um clamor público poderoso, que lhe negaria o direito a dispor arbitrariamente dos bens particulares. E não apenas os direitos fundamentais de cada cidadão se elevam hoje frente a frente e ao nível dos do Estado, como sucede o mesmo com direitos menos importantes; por exemplo, há tempos que as leis sobre vestuário, ou sobre os gastos privados, caíram em desuso, e se se tentasse ressuscitá-las, a opinião pública demonstraria que essas matérias estão fora do alcance das leis. Há muitos anos vimos afirmando na prática e há pouco consagramos nas leis o direito de todo homem escolher suas crenças religiosas, em vez de recebê-las prontas da autoridade temporal. Temos já completa liberdade de pensamento na tribuna e na imprensa, em que pese todos os esforços legislativos para suprimi-la ou restringi-la. Mais recentemente, reclamamos e obtivemos, salvo um curto número de exceções, a liberdade de comércio. Assim, pois, nossas doutrinas políticas atuais diferem grandemente das antigas, não só quanto à natureza do depositário do poder, mas também quanto à extensão e limites desse poder. E a transformação não chegou ainda a seu termo. A par dessa opinião média corrente, existem outras, menos difundidas, que vão mais além, na mesma direção. Segundo elas, é preciso restringir as ações do governo em limites mais estreitos do que os que têm hoje na Inglaterra. A antiga doutrina, segundo a qual o indivíduo só existia para o Estado, foi substituída em grande parte por uma doutrina moderna, segundo a qual o Estado existe apenas para os cidadãos e da qual se pretende deduzir todas as suas lógicas consequências. Para os partidários dessa doutrina, é sagrada a liberdade individual, que não tem outros limites senão a liberdade dos demais cidadãos; o Poder Legislativo não pode, pois, estabelecer restrições justas ao exercício dessa liberdade, seja proibindo ação que permite a lei da igualdade na liberdade, seja tomando as propriedades dos cidadãos além do estritamente imprescindível para sufragar os gastos públicos necessários. Afirmam também que o Estado só deve desempenhar uma função, a de proteger os cidadãos uns contra os outros e contra os inimigos externos. Com base na manifesta tendência que reinou em todo processo da civilização, de ampliar as liberdades do indivíduo e restringir as funções do Estado, creem que se poderá chegar a estabelecer um regime político definitivo, que dará ao indivíduo o máximo possível de liberdade e ao governo o mínimo possível de poder, regime sob o qual a liberdade de cada um não será limitada senão pela liberdade análoga dos demais, sendo o único dever do governo o de fazer respeitar esse limite. Encontramos, pois, nos diversos tempos e lugares, dizendo respeito à origem, autoridade e funções de governo, uma grande variedade de opiniões, cujos principais gêneros acabamos de apontar, gêneros que se subdividem em uma infinidade de espécies. O que devemos então dizer da verdade ou da falsidade dessas opiniões? Se excetuarmos um curto número de tribos bárbaras, a divindade ou semidivindade de um monarca é olhada hoje em todo lugar como um absurdo que supera os limites da credulidade humana. Somente em um reduzido número de lugares subsiste ainda uma vaga ideia de que o chefe tem atributos sobrenaturais. Muitas sociedades civilizadas que ainda admitem o direito divino dos governos repeliram, há tempos, o direito divino dos reis. Por outro lado, a crença de que as disposições legislativas têm um caráter sagrado está desaparecendo, e elas não são consideradas nada além de convênios. Os partidos mais avançados chegam a sustentar que os governos carecem de autoridade intrínseca, e que nem sequer podem recebê-la por um convênio, mas que as possuem unicamente como administradores dos princípios morais dedutíveis das condições essenciais da vida social. Pois bem: entre tantas crenças, com suas inumeráveis modificações, devemos dizer que uma contém a verdade e todas as outras são falsas, ou dizer que cada uma delas contém a verdade mais ou menos velada por erros? A análise, guiada pelo princípio geral que já expusemos, nos faz admitir a última das duas proposições que acabamos de enunciar. Com efeito, por mais ridícula que pareça cada uma dessas doutrinas a quem não as recebeu como parte integrante de sua educação, há uma condição que a sustenta e que a fez reconhecida - em seu tempo e país - como um fato indiscutível. De maneira direta ou subentendida, cada uma delas proclama certa subordinação das ações do indivíduo às exigências sociais. Existem grandes divergências quanto ao poder a que elas se subordinam, mas todo o mundo é concorde quanto à existência necessária de "alguma" subordinação; nisto há completa unanimidade, desde a ideia mais antiga e trivial de aliança, até a atual teoria política mais avançada. Sem dúvida, entre o selvagem que coloca sua vida e seus bens à mercê absoluta de seu chefe e o anarquista que nega o direito do governo, autocrático ou democrático, de imiscuir-se na liberdade individual, parece haver, à primeira vista, um antagonismo total e irreconciliável; mas a análise revela, mesmo nessas opiniões extremas, uma ideia comum, a de que há limites que as ações dos indivíduos não devem ultrapassar; ocorre que para um esses limites têm seu fundamento na vontade real, enquanto que, para o outro, são corolários dos direitos dos cidadãos. Poderia parecer, à primeira vista, que chegamos a uma conclusão insignificante, qual seja: no fundo de todos os credos políticos contrários há um princípio comum, evidente por si mesmo. Mas a questão não está na novidade nem no valor desse princípio a que nos conduziu a análise. Ao final, esse princípio, como relativo a uma única esfera da atividade humana, é particular, mas não é difícil generalizá-lo e estabelecer que, mesmo que isso passe geralmente despercebido, é indubitável que em todas as crenças humanas do mesmo gênero ou relativas ao mesmo assunto, mesmo nas mais opostas, há em geral um fundamento comum; o que, se não deve ser admitido como verdade indiscutível, merece, no entanto, ser tomado como algo de grande probabilidade. Quando um postulado, como o que acabamos de estabelecer, não é afirmado com plena consciência, mas implícita e inconscientemente, não apenas por um homem ou uma sociedade, mas por numerosas sociedades que diferem em incontáveis meios e graus em suas outras crenças, adquire uma segurança bem maior que qualquer outro. E quando, como no nosso caso, o postulado é abstrato - não sendo baseado em alguma experiência concreta comum a toda humanidade, sendo resultado de uma grande variedade de experiências, podemos dizer que ele se aproxima da certeza dos postulados das ciências exatas. Não chegamos assim a uma generalização que possa habitualmente nos guiar na busca do núcleo de verdade que reside nas coisas errôneas? O exemplo precedente nos mostra claramente que nas opiniões parecendo absoluta e supremamente más há, contudo, algo de bom, e nos indica, ao mesmo tempo, o método para encontrar essa parte boa ou verdadeira, capaz de nos servir de guia para buscá-la. Consiste o método na comparação de todas as opiniões do mesmo gênero, ou seja, sobre o mesmo assunto; separar, como se se anulassem mutuamente, no todo ou em parte, os elementos especiais e concretos que constituem o que está em desacordo nessas opiniões; observar o que resta, após essa eliminação de elementos discordantes, e achar para esse resíduo uma expressão abstrata que continue verdadeira em todas as suas modificações divergentes. § 3. A aceitação franca desse princípio geral e a sequência do curso que ele nos indica, irão enormemente nos ajudar a lidar com esses antagonismos crônicos que dividem a humanidade. Aplicando-o não só às ideias que não nos interessam particularmente, mas também em relação com nossas próprias ideias e às dos nossos contrários, seremos conduzidos a emitir juízos mais justos; não acreditaremos sempre que nossas convicções são absolutamente verdadeiras, e as opostas absolutamente falsas; não deixaremos que se imponham, como acontece com o vulgo que não raciocina, ideias que só vieram até nós pelo acaso de haver nascido em tais ou quais tempos ou países; não cometeremos, por outro lado, o erro de Opor a ideias contrárias negações absolutas ou desdenhosas, como fazem os que se proclamam críticos independentes. De todos os antagonismos entre as crenças humanas, o mais antigo, o mais profundo, o mais grave e mais universal é o da Religião e da Ciência. Ele começou quando o descobrimento das leis mais simples, relativas a coisas vulgares, pôs fim ao fetichismo que reinava nos espíritos, e hoje se encontra em todos os lugares de todas as esferas do pensamento humano, desde a interpretação mais simples dos fenômenos mecânicos até os mais complexos feitos históricos. Ele tem suas raízes nos mais profundos hábitos de pensamento das diferentes classes de mentes. E as concepções contraditórias sobre a natureza e a vida, que esses hábitos de pensamento geram, inclinam o indivíduo ao bem ou ao mal, em seus sentimentos e em sua conduta. Uma incessante batalha de opinião como essa, travada em todos os tempos sob as bandeiras da Religião e da Ciência, sem dúvida criou uma animosidade tal que impede uns combatentes de apreciarem o valor dos outros. Essa luta encarna, na mais vasta escala, e com mais violência que qualquer outra, aquela fábula tão profundamente moral dos cavaleiros que combatiam pela cor de um escudo. Cada combatente, não vendo a questão senão de seu ponto de vista, acusava o outro de estúpido ou malévolo, porque não via o mesmo escudo naquele outro, e não ocorria a ninguém mudar para o lado oposto para descobrir a realidade. Felizmente, com o tempo, as ideias adquirem caráter cada vez mais liberal, o que devemos incentivar tanto quanto possível, preferindo sempre a verdade à auréola do triunfo, permitindo que conheçamos o que leva nossos adversários a pensar como pensam, e aceitar que sua obstinação em sustentar uma crença deve-se ao fato de que percebem algo que não percebemos. Assim, poderemos completar a parte de verdade que possuímos, com a parte que eles possuem, e apreciando em seu real valor a autoridade humana, escaparemos dos extremos de uma cega submissão ou de uma estúpida resistência. Não apreciaremos os julgamentos humanos como absolutamente bons nem maus, mas tomaremos o partido mais fácil de defender, aquele de que ninguém possui a verdade absoluta e completa, como também ninguém está absolutamente errado em suas ideias. Vamos examinar, pois, as duas faces dessa grande controvérsia, conservando, tanto quanto possível, a imparcialidade que acabamos de recomendar. Resistamos aos preconceitos da educação, fechemos os ouvidos aos murmúrios sectários e vejamos as probabilidades a priori que contam para cada lado. § 4. Aplicando diligentemente o princípio geral já enunciado, podemos afirmar, desde já, que as várias formas de crenças religiosas que existiram e que existem, têm todas, em seu último extremo, algum fato que lhes sirva de fundamento. A analogia nos leva a pensar que não há uma só que seja única e totalmente verdadeira, mas que em todas há que existir algo de bom e verdadeiro, mais ou menos oculto por algumas coisas erradas. A parte de verdade contida nos falsos credos pode ser muito distinta da maioria, ou mesmo da totalidade de seus dogmas, e sem dúvida, como existem poderosas razões para acreditar, tal parte é mais abstrata do que todos eles, e não deve com eles ter semelhança. Mas ainda assim, existe essa verdade essencial, e devemos buscá-la por maiores que sejam suas divergências com os dogmas que a expressam sob formas tão diferentes. Imaginar que todas as ideias religiosas estejam absolutamente desprovidas de fundamento é rebaixar muito a inteligência média da humanidade, da qual herdamos toda nossa inteligência individual. Essa razão geral, iremos encontrá-la reforçada por outras razões especiais. Assim, à presunção de que todos os credos do mesmo gênero tenham um fundamento comum e real, se junta, neste caso, outra presunção, derivada da onipresença ou universalidade das crenças religiosas. Devemos acreditar que há tribos que não cultivam a mais simples ideia de uma teoria da criação, e que essa ideia não aparece enquanto o homem não adquire certo grau de desenvolvimento intelectual; mas, embora seja isto uma verdade, resulta no mesmo: a partir do momento em que se admite que todas as raças cujo desenvolvimento intelectual atingiu certo nível, existem já noções vagas sobre essência e origem misteriosas do mundo, e se pode afirmar serem essas noções produtos inegáveis do desenvolvimento intelectual. A imensa variedade dessas ideias apenas reforça essa dedução, pois denota a independência de suas origens e existências, e mostra também como em diferentes épocas e lugares, condições semelhantes conduziram a ideias e resultados também semelhantes. A suposição de que os inumeráveis e diferentes fenômenos que oferece a história das religiões são, embora da mesma família, acidentais e fortuitos, não se sustenta. Lealmente consultada a consciência, dá ela um desmentido formal à opinião que reduz as crenças religiosas a simples contos sacerdotais. Mesmo pensando apenas em probabilidades, não se pode admitir racionalmente que em todas as sociedades presentes e passadas, civilizadas ou selvagens, certos indivíduos se coligaram para enganar os demais e tenham chegado aos seus fins por meios tão semelhantes. Se dissermos que uma primeira ficção pôde ser inventada por um clero primitivo, antes da dispersão do gênero humano para fora de seu lugar de origem, responde a filologia que esta dispersão começou antes que a linguagem estivesse suficientemente desenvolvida para expressar ideias religiosas. Ademais, mesmo que a hipótese dessa origem artificial se apoiasse em outros argumentos, não poderia explicar esses fatos: porque mesmo nas formas religiosas mais diversas, surgem constantemente os mesmos elementos; porque a crítica, destruindo século após século os dogmas religiosos particulares, não destruiu a ideia fundamental que sustenta essas crenças. Há aqui um problema surpreendente: certas crenças caem em descrédito pelos absurdos e superstições que acumularam; morrem em meio à indiferença geral ou lutando contra outras crenças; e as vemos pouco a pouco ressuscitar e reafirmar-se, se não com a mesma forma, com o mesmo conteúdo. É assombrosa essa ressurreição, e, contudo, a hipótese citada não a explica. Concorrem, pois, para provar as profundas raízes das ideias religiosas: sua universalidade, sua evolução independente das várias raças primitivas que as adotaram e sua grande vitalidade. Em outras palavras, se não admitimos sua origem sobrenatural, como crê a maioria, devemos pensar que têm sua origem no lento desenvolvimento e na acumulação gradual da experiência humana. Poder-se-ia dizer que as religiões são produto do sentimento religioso, que produzem quimeras para sua própria satisfação, as remetem ao exterior e as tomam paulatinamente como reais, mas com isso o problema afasta-se, mas não é resolvido. Seja o sentimento religioso pai da ideia de religião ou tenham ambos a mesma origem, permanece a questão: de que nasce, onde nasce o sentimento religioso? Que ele é um constituinte da natureza humana afirma a hipótese em questão, o que não pode ser negado pelos que preferem outras hipóteses. Se se pode classificar entre as emoções humanas o sentimento religioso que anima a maioria dos homens e que se revela em certas ocasiões mesmo naqueles que parecem dele mais desprovidos, não podemos conscientemente abandoná-lo. Somos forçados a buscar sua origem e sua função. Encontramos então um atributo que, sem exagero, exerceu enorme influência, desempenhou importante papel nos primeiros tempos históricos, e é hoje em dia alma de numerosas instituições, causa de infindáveis discussões, instigador de inúmeras ações. Uma teoria geral do conhecimento que não trate desse atributo virá a ser extremamente defeituosa. Mesmo sem outros objetivos, ainda que apenas como uma questão filosófica, somos chamados a responder sobre o que significa tal atributo. E não podemos fugir à tarefa sem admitir a incompetência da Filosofia. Para tanto devemos escolher entre duas únicas hipóteses: segundo uma delas, o sentimento que corresponde a cada ideia resulta, como todas as faculdades humanas, da Criação. Segundo a outra, tal sentimento, como todos, é fruto da evolução. Se aceitamos a primeira hipótese, adotada no passado universalmente, e até hoje pela imensa maioria, a questão está resolvida; o homem foi dotado pelo Criador de um sentimento religioso que corresponde aos desígnios da Criação. Se adotamos a segunda, surgem as perguntas: em que circunstâncias surgiu o sentimento religioso e qual sua finalidade no seio da humanidade? Temos que aceitar essas questões e solucioná-las. Se, segundo essa hipótese, consideramos o sentimento religioso como resultado da ação recíproca do organismo sobre o meio em que vive, devemos crer que existem fenômenos tais que produziram o dito sentimento e, portanto, este é tão normal quanto qualquer outro. Além disso, se é certo, como supõe a hipótese do desenvolvimento, de uma forma inferior para outra superior, que o fim a que atendem direta ou indiretamente as mudanças progressivas deve ser a adaptação a todas as necessidades da existência, devemos concluir que o sentimento religioso contribui de alguma maneira para o bem-estar da humanidade. As duas hipóteses levam então ao mesmo princípio: o sentimento religioso foi gerado ou diretamente por um Criador ou pela ação gradual de causas naturais; em um ou outro caso devemos respeitar tal sentimento. E outra consideração, que mormente os homens de ciência devem assinalar, é a de que ocupados de verdades já estabelecidas e sempre acostumados a encarar as coisas desconhecidas como objetos de descobrimentos futuros, esquecem facilmente que a Ciência, qualquer que seja seu estágio de desenvolvimento, é incapaz de acompanhar o espírito de investigação. O conhecimento real não preenche nem preencherá jamais o domínio do pensamento possível. Depois do descobrimento mais prodigioso se apresenta e se apresentará sempre a questão: o que existe além? Do mesmo modo que é impossível conceber limites para o espaço e pensar que não há mais espaço além desses limites, não há explicação bastante profunda que exclua a pergunta: qual é a explicação desta explicação? Podemos considerar a Ciência como uma esfera que gradualmente cresce e cujo crescimento só faz ampliar seus pontos de contato com o desconhecido que a cerca. Existem, pois, e existirão sempre dois modos opostos de pensamento, porque, agora e no futuro, o espírito humano se ocupará não apenas dos fenômenos determinados e suas relações, mas também de algo não aparente em que estão implicados. Resulta daí que se o conhecimento não pode monopolizar nossa faculdade de pensar, se essa faculdade pode dirigir sua atenção para além dos limites do conhecido, existirão sempre os pensamentos religiosos, pois a Religião, sob todas as suas formas, se distingue das demais crenças, por ter seus objetos fora da esfera da experiência. Assim, por insustentáveis que possam ser as crenças religiosas existentes, por absurdos que sejam alguns de seus componentes, por irracionais que sejam os argumentos que as apoiam, não podemos ignorar a verdade misteriosa que muito provavelmente elas guardam. Em primeiro lugar, podemos acreditar que quaisquer credos, amplamente difundidos, tenham algum fundamento, e essa verossimilhança seja muito grande para crenças universais, como as religiosas. Em segundo lugar, existe o sentimento religioso, e seja qual for a sua origem, sua existência é prova de seu grande significado. Em terceiro e último lugar, na extraesfera, que sempre existirá, como antítese da esfera científica, pode situar-se o sentimento religioso. Temos assim três fatos que se apoiam e se reforçam mutuamente, e em cuja virtude podemos assegurar: as religiões, mesmo nenhuma sendo verdadeira, são, pelo menos, imagens imperfeitas da verdade religiosa. § 5. Como, para o religioso, parecerá absurdo ter que justificar a Religião, também para o cientista parecerá inconcebível a necessidade de defender a Ciência, embora fazer a segunda coisa seja tão necessário quanto fazer a primeira. Se existem aqueles que, revoltados com as loucuras e corrupções das crenças religiosas, apenas devotam a elas desprezo e aversão e ignoram a verdade fundamental que abrigam, outros há que, assustados com a crítica demolidora dos cientistas contra os dogmas religiosos que têm como essenciais, abrigam contra a Ciência os preconceitos mais violentos. Sua hostilidade não se baseia em razões sérias, mas, acreditando que a Ciência abalou suas convicções mais caras, acreditam também que ela destruirá afinal tudo que veem como sagrado, e sentem um indistinto temor. Mas o que é a Ciência? Para fazer compreender a que ponto é absurdo todo preconceito contra ela, basta notar que nada mais é que um desenvolvimento metódico e de grau superior do conhecimento comum, e que, por consequência, quem a repelir, deve também rechaçar todo tipo de conhecimento. O homem mais temente nada de mau encontrará em constatar que o Sol se levanta mais cedo e se põe mais tarde durante o verão do que no inverno. Julgará útil essa observação para o trabalho do dia a dia. Pois bem: a astronomia é apenas um sistema de observações análogas, elaboradas com maior exatidão e sobre maior número de objetos, até deduzir delas a disposição real do céu e afastar as falsas ideias que dele cultivávamos. O ferro se oxida, quando mergulhado na água, o fogo queima a madeira, a carne morta apodrece. São noções que o mais fanático sectário ouvirá sem alarmar-se e julgará de bom alvitre saber, e que são apenas verdades químicas. A química é uma coleção coordenada de fatos semelhantes, comprovados com precisão, classificados e generalizados de forma tal que se possa prever que mudanças sofrerá tal ou qual corpo, simples ou composto, em determinadas condições. O mesmo ocorre com todas as ciências; germinam, separadamente e cada uma, das experiências da vida quotidiana, e à medida que crescem, juntam insensivelmente fatos mais distantes, mais numerosos, mais complexos, encontrando neles leis de mútua dependência, semelhantes às que nos revela o conhecimento dos objetos que nos são familiares. Em nenhum lugar podemos traçar uma linha e dizer: aqui começa a Ciência. Esta, como o conhecimento vulgar, tem por fim direcionar nossas ações, mesmo quando busca solucionar os problemas mais recônditos ou mais abstratos. Pelos inúmeros processos industriais e pelos diversos meios de locomoção com que nos presenteou, a Física governa mais completamente nossa vida social do que o faz, com os selvagens, o conhecimento dos objetos que rodeiam regularmente sua vida. A Anatomia e a Fisiologia, por seus efeitos na prática da medicina e da higiene, exercem sobre nossas ações uma influência quase igual à do conhecimento dos bons e maus efeitos que exercem sobre nosso corpo os agentes de nosso ambiente. Toda Ciência é previsão, e toda previsão, afinal, nos ajuda, em maior ou menor grau, a evitar o mal e a alcançar o bem. Como a visão de um objeto em nosso caminho evita que nele tropecemos, as noções mais complexas e delicadas, que constituem a Ciência, nos livram de tropeçar nos inúmeros obstáculos que se nos interpõem quando buscamos alguma meta distante. E uma vez que as formas mais simples e as mais complexas de nossos conhecimentos têm a mesma origem e o mesmo fim, devem ter o mesmo tratamento. Somos levados, logicamente, a admitir os mais extensos conhecimentos que nossas faculdades possam alcançar ou repelir os mais simples que todo mundo possui. Não há alternativa lógica entre aceitar plenamente nossa inteligência e repudiar até mesmo essa inteligência rudimentar, que temos em comum com os brutos. Perguntar - e é essa a questão que imediatamente diz respeito a nosso argumento - se é verdadeira a Ciência, é bem como perguntar se o Sol ilumina. Se os religiosos veem a Ciência com um temor tão secreto, é porque são conscientes da inegável validade da maioria de suas proposições. Sabem que durante dois mil anos de crescimento, algumas das suas maiores partes - Matemática, Física, Astronomia - sujeitaram-se à rigorosa crítica de sucessivas gerações, e a despeito disso, se estabeleceram cada vez mais firmemente. Sabem ainda que, ao contrário de muitas de suas próprias doutrinas, que já foram universalmente aceitas, mas que com o passar do tempo vêm sendo questionadas, as doutrinas da Ciência, a princípio confinadas a poucos e esparramados pesquisadores, vêm de maneira contínua crescendo na aceitação geral e são hoje em grande parte consideradas fora de discussão. Sabem também que os homens de ciência, por todo o mundo, submetem, uns aos outros, os resultados de suas experiências, para os mais profundos exames, e que os erros são expostos impiedosamente, e rejeitados tão logo descobertos. Sabem, finalmente, que testemunhos ainda mais conclusivos serão encontrados na comprovação diária de previsões científicas e nos incessantes triunfos daquelas artes conduzidas pela Ciência. Considerar com alienação aquilo que tem tais credenciais só pode ser classificado como tolice. Se os defensores da religião têm alguma desculpa na linguagem de certos sábios, isso não basta para justificar sua hostilidade. Tanto do lado da Ciência, quanto do seu próprio lado, devem admitir que a insuficiência do advogado não depõe essencialmente contra a causa. A Ciência deve ser julgada por si mesma: e assim julgada, só o mais distorcido intelecto não verá que ela é merecedora de todas as reverências. Haja ou não outra revelação na Ciência, ela indiscutivelmente deu-nos já uma, via da inteligência de que somos dotados: aquela da contínua descoberta de como se ordena o Universo. É dever de cada um verificar de per si, e até onde possa, essa descoberta. E receber com humildade essa verificação. § 6. A verdade deve estar presente, então, nos dois lados dessa grande controvérsia. Uma consideração despida de preconceitos sobre seus aspectos gerais nos leva a concluir que a Religião, sempre presente como uma trama se compondo na tessitura da história, expressa um fato eterno; enquanto consiste quase em um truísmo dizer que a Ciência é uma massa organizada de fatos, sempre crescendo e purificando-se de seus erros. E se ambas têm sua base na realidade das coisas, então devem se harmonizar. Não se pode supor que existam duas ordens de verdades em permanente e absoluta oposição. Tal suposição apenas poderia ser admitida como uma forma de maniqueísmo inconfessável, mas que nem por isso deixa de estar presente na maioria das crenças. Mesmo que no fundo de muitas pregações clericais esteja a ideia de que a Religião é de Deus e a Ciência do diabo, nem o mais veemente fanático irá afirmá-lo positivamente. E se não se mantém tal doutrina, é forçoso que sob esse aparente antagonismo esteja encoberta uma inteira concordância. Deve, pois, cada lado reconhecer no outro verdades não desprezíveis; saiba todo homem que vê o Universo do ponto de vista religioso que a Ciência é um elemento da Criação, e deve por isso ser levada em conta com os mesmos sentimentos que todo o restante, como por outro lado, saiba quem vê o Universo do ponto de vista científico que a Religião faz também parte da mesma Criação. Deve, pois, ser tratada como objeto de estudo, sem mais reservas que qualquer outra realidade. Esforce-se cada parte para compreender a outra; convença-se de que tem com a outra parte um elemento comum que merece ser compreendido, e que, uma vez encontrado, constituir-se-á na base de uma reconciliação completa. Como encontrar esse elemento comum? Como conciliar Religião e Ciência? Esse é o problema a que devemos dedicar-nos com perseverança. Não é um armistício o que queremos, nem um simples compromisso, como aqueles propostos de tempos em tempos, artificiais e temporários, como sabem até seus autores. Queremos encontrar as condições para uma conciliação real e permanente. Para tanto devemos buscar uma verdade primária, que tanto a Religião quanto a Ciência admitam com total sinceridade, sem sombra ou restrição mental, sem nenhuma concessão, sem que nenhum dos dois lados ceda em algo que depois tente recobrar. O fundamento deve ser um princípio, que ambas as partes afirmem, e o façam em separado; um princípio que a Religião afirme com energia, sem auxílio da Ciência, e que a Ciência afirme categoricamente, sem auxílio da Religião, e para cuja defesa as partes estejam, pois, aliadas. Por outro lado, propomo-nos a coordenar as convicções, aparentemente opostas, que Religião e Ciência abrigam. Da fusão de ideias antagônicas, contendo cada uma parte de verdade, nasce sempre um desenvolvimento superior. Assim, em Geologia, obteve-se rápido progresso no juntar as duas hipóteses: ígnea e aquosa; em Biologia, ao reunir a doutrina dos tipos e a da adaptação; em Psicologia, o progresso, antes detido, continua desde que os discípulos de Locke e os de Kant concordaram nas ideias de que as experiências organizadas produzem formas de pensamento; e em Sociologia, descobre-se um caráter positivo desde quando os partidários do progresso e da ordem defendem verdades recíproca e mutuamente complementares. O mesmo deve, pois, acontecer em maior escala entre Ciência e Religião. Aqui também devemos buscar uma concepção que combine as conclusões dos dois campos; e esperar importantes resultados advindos dessa combinação. Para compreender como Ciência e Religião expressam faces opostas dos mesmos acontecimentos - uma próxima e visível, outra, afastada e invisível - devemos atentar para essa busca; e atingir essa meta deve modificar profundamente nossa Teoria Geral das coisas. Já mostramos vagamente, nas páginas anteriores, o método de busca da reconciliação mencionada. Antes de prosseguir, contudo, seria de bom alvitre tratar da questão do método de maneira mais definitiva. Para encontrar a verdade em que Religião e Ciência se mesclam, devemos saber em que direção a buscar e que espécie de verdade será. § 7. Encontramos a priori motivo para crer que em todas as religiões, mesmo as mais primitivas, existe encoberta uma verdade básica. Inferimos que essa verdade fundamental é aquele elemento comum a todas as religiões, que resta após todas as peculiaridades discordantes terem mutuamente se anulado. Além disso, inferimos que esse elemento é quase certamente mais abstrato do que qualquer doutrina religiosa atual. É, pois, patente que apenas em alguma proposição altamente abstrata podem Religião e Ciência encontrar um terreno comum. Nem dogmas tais como trinitarismo e unitarismo, nem uma ideia como a da expiação, ainda que possam ser comuns a todas as religiões, podem aspirar vir a ser a desejada base de conciliação, pois a Ciência não reconhece credos como esses, que estão fora de seu alcance. Assim, vemos não apenas que, julgando por analogia, a verdade essencial contida na Religião é aquele elemento mais abstrato permeando todas as suas formas, mas também que esse mais abstrato dos elementos é o único no qual será plausível Religião e Ciência concordarem. Coisa semelhante ocorre se começamos pelo outro lado e inquirimos que verdade científica pode unir Ciência e Religião. É manifesto que a Religião não pode tomar conhecimento de doutrinas científicas específicas, como não pode a Ciência reconhecer doutrinas religiosas especiais. A verdade que a Ciência afirma e a que a Religião endossa não pode ser aquela escudada nas matemáticas; não pode ser uma verdade física ou química; não pode ser a verdade que pertença a uma ciência particular. Nenhuma generalização dos fenômenos de espaço, tempo, matéria ou força pode vir a ser uma concepção religiosa. Tal concepção, se existir algures na Ciência deve ser mais geral do que as que citamos - deve estar sublinhando todas elas. Se há uma ideia científica que possa chegar a ser reconhecida em comum com a Religião, deve ser uma ideia mais geral que todas as outras, o princípio de todas as demais. Finalmente, se há um fato que admitam, a um só tempo, Religião e Ciência, deve ser tal que dele surjam todas as ciências particulares. Levando em conta, pois, que essas duas realidades são constituintes da mesma mente, e respondem por diferentes aspectos do mesmo Universo, deve existir uma harmonia fundamental entre elas; temos boas razões para concluir que a verdade mais abstrata contida na Religião e a mais abstrata verdade presente na Ciência, devem ser uma só - aquela em que as duas se fundem. O maior fato a ser encontrado em nosso alcance mental deverá ser aquele que estamos buscando. Unindo os polos positivo e negativo do pensamento humano, deve ele ser o fato mais compreensivo de nossa inteligência. § 8. Antes de prosseguir na busca por esse dado comum, quero pedir alguma paciência. Os próximos três capítulos, partindo de diferentes pontos e convergindo para a mesma conclusão, serão comparativamente pouco convidativos. Estudantes de Filosofia neles encontrarão muito do que já lhes é familiar, e muitos daqueles não versados na metafísica moderna encontrarão obstáculos na sua compreensão. Contudo, não podemos prescindir desses capítulos. A magnitude do problema que abordamos exigirá que o leitor conceda uma dose maior de atenção. É um assunto que diz respeito a cada um e a todos, mais do que qualquer outro. Mesmo pouco nos afetando diretamente, a conclusão a que chegaremos nos afetará indiretamente em todas as nossas relações - e dirigirá nossas concepções do Universo, da Vida, da Natureza Humana - influenciará nossas ideias sobre o certo e o errado, modificando, assim, nossa conduta. Alcançar um ponto de vista do qual desapareça a aparente contradição entre Religião e Ciência, em que ambas se fundam em uma, deve provocar em nossas ideias uma revolução frutífera e de consequências benéficas, que compensará os esforços. Terminadas essas preliminares, passemos à abordagem dessa tão importante investigação. II Ideias fundamentais da Religião § 9. Quando, à beira-mar, vemos desaparecer no horizonte o casco dos navios que se distanciam e só percebemos, dos mais distantes, as velas superiores, adquirimos, com bastante clareza, a noção da curvatura, ainda que pequena, da parte superior do mar à nossa frente. Mas, quando tentamos estender nossa imaginação por essa curvatura até completar o semicírculo terrestre, isto é, até o ponto de encontro dos meridianos terrestres, situado a oito mil milhas abaixo de nossos pés, nos sentimos completamente desconcertados. Se sequer podemos imaginar em sua verdadeira forma e magnitude um pequeno segmento do globo que se estende por cem milhas à nossa volta, muito menos poderemos conceber todo ele. Podemos imaginar perfeitamente a rocha sobre a qual nos encontramos. Estamos aptos a pensar em seu topo, seus lados, e até sua base ao mesmo tempo, de maneira tal que todas essas imagens apareçam simultaneamente em nosso espírito, compondo a ideia dessa rocha. Contudo, achamos impossível fazer o mesmo quanto à Terra. Se até o poder de imaginar os antípodas na distância espacial que ocupam está além de nosso poder de imaginação, muito mais além estará imaginar todos os outros remotos pontos da superfície terrestre nos seus lugares atuais. Contudo, falamos da Terra como se dela tivéssemos uma ideia, e a imaginamos como imaginamos os objetos menores. Que concepção temos então da Terra? - perguntará o leitor. Porque sem dúvida a esse nome corresponde em nosso espírito certo estado de consciência e se esse estado não é um conceito propriamente dito, que será então? Eis como podemos responder: sabemos, por métodos indiretos, que a Terra é uma esfera; construímos modelos que de maneira aproximada representam a forma e a distribuição das partes da Terra, e em geral, quando falamos de nosso planeta, pensamos em uma massa que se estende indefinidamente sob nossos pés ou talvez, esquecendo a verdadeira Terra, pensamos em um corpo, tal como um modelo de globo terrestre. Quando desejamos imaginar a Terra tal como é na realidade, combinamos essas ideias o melhor que podemos, isto é, unimos à ideia de uma esfera as percepções da superfície terrestre tal como as vemos, formando assim da Terra não um conceito propriamente dito, mas um conceito simbólico, como são a maioria de nossos conceitos, inclusive os mais generalizados. Uma grande proporção de nossos conceitos, inclusive aqueles de caráter muito generalizado, é dessa ordem. Por exemplo, os conceitos das grandes extensões, das grandes durações, dos grandes números e todas as classes de objetos a que nos referimos não são diretamente percebidos, mas o são de maneira mais ou menos simbólica. Assim, ao falar de determinada pessoa, tem-se dela uma ideia bastante completa; se se trata de sua família, é provável que se pense em apenas parte dela, naqueles indivíduos mais importantes ou mais conhecidos, prescindindo dos demais, a quem só conhecemos vagamente, embora possamos, se necessário, precisar e completar seu conhecimento. Se passarmos à classe a que pertence aquela família, fazendeiros, digamos, não enumeramos em pensamento todos os indivíduos incluídos na classe, nem acreditamos que poderíamos fazê-lo, se nos fosse pedido. Se nos fixamos na nacionalidade do sujeito em questão, que é, digamos, inglês, o estado de nosso pensamento que corresponde a esse nome é ainda uma imagem mais incompleta da realidade. E ainda mais se se trata de europeus, de homens, de mamíferos, de vertebrados, de animais, de seres orgânicos etc. Será cada vez menos semelhante a ideia do objeto à medida que é maior o número de indivíduos nela inclusos, ideia essa que, formada pela combinação de um número restrito de exemplares típicos, com a noção de multiplicidade ou repetição de cada exemplar, tende também a ser cada vez mais um puro símbolo. E isto não apenas porque deixa de representar fielmente a extensão do grupo, mas porque, à medida que o grupo se estende, mais heterogêneo se torna e os exemplares típicos em que pensamos se parecem menos com o termo médio dos objetos do grupo. Essa formação de conceitos simbólicos, que inevitavelmente cresce à medida que passamos de objetos pequenos e concretos para grandes e discretos, é na maioria dos casos um processo muito útil e, sem dúvida, necessário. Quando, em vez de coisas cujos atributos possam ser razoavelmente reunidos em um estado simples de consciência, temos que lidar com coisas detendo atributos tão vastos ou numerosos que dificultam uma reunião, é necessário deixar fora do pensamento uma parte desses atributos, ou então nos abstermos totalmente de neles pensar - como concepção mais ou menos simbólica ou como não concepção. Nada devemos transmitir sobre objetos por demais grandes ou numerosos para serem mentalmente imaginados; ou faremos uma exposição com a ajuda de representações extremamente inadequadas de tais objetos - simples símbolos deles. Esse procedimento, se nos permite chegar a proposições e conclusões gerais, também permanentemente nos coloca em perigo e nos induz a erro. Pois frequentemente consideramos como reais os conceitos simbólicos, e somos traídos por inúmeras conclusões falsas. E não apenas estamos sujeitos a formar juízos falsos de uma coisa ou classe de coisas, por ter delas um juízo simbólico e não real, como também porque chegamos a supor que formamos um conceito fiel sobre uma multidão de coisas, quando tal conceito, pelo meio artificial de um símbolo, é falho, também por incluirmos nesse conceito coisas que não podem ser concebidas. Examinemos, por necessário, porque nem sempre podemos evitar cair nesse erro. É imperceptível a passagem dos objetos fáceis de imaginar na sua totalidade para aqueles de que não podemos formar sequer uma representação aproximada. Assim, entre um pedaço de rocha e a Terra, pode-se introduzir uma série de massas, cada uma diferindo tão pouco das adjacentes, que seria difícil dizer em qual delas, nessa série, nossas ideias ou imagens dessas massas começam a ser inadequadas. Similarmente, há uma progressão gradual dos grupos compostos de um número reduzido de indivíduos dos quais podemos ainda formar uma ideia perfeita, e os grupos, cada vez mais extensos, de que não podemos ter ideia exata. É então inegável que passamos de maneira infinitesimal dos conceitos reais aos simbólicos. Além disso, obrigamo-nos a tratar nossos conceitos simbólicos como se reais fossem, não apenas porque inexiste entre uns e outros uma linha divisória definida, como também porque, na grande maioria dos casos, nos servimos dos simbólicos tão bem ou melhor que os reais, e finalmente por serem signos simplificados, que substituem os signos completos, equivalentes para nós aos objetos reais. As imagens muito imperfeitas das coisas simples, que comumente nós concebemos no pensamento, sabemos que podem ser desenvolvidas e adequadas, se preciso for. Os conceitos de maiores magnitudes e de grandes classes de objetos, que não podemos adequar, não obstante, podemos adquiri-los por procedimentos indiretos de medida ou enumeração. Mesmo que se trate de um objeto absolutamente inconcebível, como o Sistema Solar, o cumprimento das previsões fundadas no conceito simbólico que dele temos nos leva ao convencimento de que esse conceito representa algo real, e em certo sentido, verdadeiramente expressa algumas de suas relações constituintes. Se adquirimos, então, o hábito de considerar as ideias simbólicas como efetivas, como representações reais das coisas, foi porque, na maioria das vezes, tais ideias são suscetíveis de serem completadas e, em quase todos os demais, levam a conclusões que as observações comprovam plenamente, e as aceitamos, muitas vezes sem comprová-las, porque a experiência nos diz que podem ser comprovadas se necessário for. Assim, abrimos a porta às representações de certas coisas que passam por coisas conhecidas, mas que na realidade não podem ser conhecidas de maneira alguma. Em resumo: nossas ideias não são completas a não ser que o número e a espécie dos atributos dos objetos imaginados permitam que eles sejam representados mentalmente em momentos bastante próximos para que possam parecer simultâneos. À medida que os objetos idealizados são mais extensos e complexos, certos atributos, cujas ideias havíamos tido primeiro, são apagados da consciência antes do resto ser representado, ficando assim incompleto o conceito. Quando a magnitude, a complexidade ou a disseminação dos objetos concebidos são muito grandes, não se pode pensar, de uma só vez, além de uma pequena parte desses atributos, e o conceito fica tão imperfeito que se reduz a um simples símbolo. Contudo, quando nossos conceitos simbólicos são tais que nenhum modo de pensar possa nos tornar aptos a constatar a existência de coisas reais que lhes correspondam, nem são verificadas previsões que havíamos deduzido, não são esses conceitos legítimos, mas radicalmente viciosos, ilusórios e fáceis de confundir com puras ficções. § 10. Consideremos agora o alcance dessa verdade geral em nosso tópico atual - as ideias fundamentais da Religião. Começaremos por assinalar que o problema do Universo é proposto por si mesmo, tanto ao homem primitivo como à criança dos países civilizados: que é o Universo? Qual é a sua origem? Estas perguntas surgem, imperiosamente, a todo pensamento humano que se eleva, de vez em quando, sobre as vulgaridades do dia a dia. Pois bem: toda teoria, ao que parece, valerá mais que nenhuma teoria para preencher um vazio no pensamento humano; se é única, lança nele facilmente suas raízes e consequentemente se sustenta, graças à tendência que tem o homem de aceitar explicações aproximadas que sobre algo lhe apresentam, e graças à autoridade que toda explicação dada ganha, comumente com rapidez. Um exame crítico, porém, das diversas hipóteses para as soluções do problema do Universo, provará não só que são insustentáveis todas as levantadas, como também que nenhuma hipótese possível pode ser formulada. § 11. Referindo-nos à origem do Universo, três suposições podem ser formuladas de maneira inteligível: podemos afirmar que é autoexistente, ou que é autocriado ou que foi criado por um agente externo. Não é preciso indagar qual dessas suposições merece mais crédito. O que se encontra na raiz da questão é saber se alguma dessas hipóteses é plenamente concebível, no verdadeiro sentido das palavras. Testemo-las, pois. Quando falamos de um homem independente, de um equipamento automático ou de uma árvore autodesenvolvida, nossa expressão, ainda que inexata, refere-se a fatos que podem ser concebidos no pensamento com razoável clareza. Nossa concepção do autodesenvolvimento de uma árvore é sem dúvida simbólica. Mas, apesar de não podermos realmente representar na consciência toda a série de complexas mudanças pelas quais passa a árvore nesse desenvolvimento, podemos figurar os termos principais dessa série, e a experiência nos mostra que, por uma observação bastante prolongada no tempo, podemos adquirir a faculdade de imaginar a série de mudanças que melhor represente as séries reais, isto é, sabemos que esse conceito simbólico do desenvolvimento espontâneo pode se estender de modo a ficar próximo de um conceito real, e que expressa, ainda que aproximadamente, uma operação efetiva da natureza. Contudo, ao falar da autoexistência, da existência por si, e formarmos dela um vago conceito simbólico, isto por meio das analogias a que já nos referimos, enganamo-nos, se supomos que essa ideia simbólica é da mesma ordem das outras referidas. Unimos as palavras "por si" e "existência". Essa associação e a analogia nos fazem crer que temos uma ideia semelhante à que nos desperta a frase "atividade espontânea". Um esforço para desenvolver esse conceito simbólico, contudo, nos desapontará. Em primeiro lugar, é evidente que a expressão "existência por si" significa uma existência independente de qualquer outra - não produzida por outra qualquer, ou seja, exclui a ideia de uma criação. Por isso, excluindo a ideia de uma causa ou força criadora anterior, necessariamente excluímos a ideia de um começo, pois a ideia de começo supõe uma época em que a existência em questão ainda não havia começado, ou seja, que esse princípio foi determinado por alguma causa, o que é contraditório com a ideia de "existência por si". Essa frase significa, então, existência sem começo, o que é absolutamente inconcebível, pois é o tempo infinito passado que supõe a existência sem começo. Além disso, mesmo que a "existência por si" fosse concebível, não poderia de modo algum explicar o Universo, pois não se concebe melhor a existência de um objeto num momento dado por saber que existia uma hora, um dia, um ano, um tempo finito ou infinito antes. Assim, não só a teoria ateísta é inconcebível, como também, se não o fosse, nem por isso constituiria uma solução do problema do Universo, pois a afirmação de sua "existência por si" de nada serve para o conhecimento de sua existência atual, sendo, portanto, apenas uma nova afirmação do mesmo mistério. A hipótese da criação "por si", que é apenas o que chamamos panteísmo, também é inconcebível. Há fenômenos, como a precipitação de vapor invisível, formando a nuvem, que ajudam a fixar o conceito simbólico de um Universo em espontânea evolução, além de outros fenômenos do Céu e da Terra que também podem servir para completar e caracterizar esse conceito de Universo em evolução. Podemos então compreender bem a série de fases por que passou o Universo até chegar à sua forma atual. Mas esse fato em nada se presta para transformar em conceito real o conceito simbólico da criação de per si, cuja transformação é e será sempre, no caso presente, completamente impossível. Com efeito, conceber a criação por si é conceber a existência potencial, passando à existência real por efeito de uma necessidade imanente, o que é inconcebível, pois equivale a distinguir a existência potencial do Universo de sua existência atual; isto porque se a existência potencial do Universo fosse imaginável, seria como "alguma coisa", isto é, como uma existência atual, pois a hipótese de que seria imaginável como "nada" é mais que uma negação, e que certo "nada" se distingue dos outros nadas por poder se desenvolver e converter-se em alguma coisa. E ainda mais: não está em nós um estado psíquico que corresponda a essa frase: uma necessidade imanente, em virtude da qual uma existência potencial chegou a ser existência atual. Isto supõe uma existência que por um tempo indefinido permaneceu sob uma forma e que passou a outra forma sem nenhum efeito externo, isto é, um efeito sem causa, o que é inconcebível em absoluto. Os termos dessa hipótese não representam, pois, coisas reais, mas apenas novos símbolos mais ou menos suscetíveis de interpretação. Mas mesmo que a existência potencial do Universo pudesse ser concebida como distinta de sua existência atual, e concebida também sua passagem de uma a outra, como um efeito causa de si mesmo, nada teríamos adiantado. O problema teria apenas retrocedido um passo, reduzindo-se a esse outro: qual é a origem da existência potencial? O que requereria a mesma explicação que o da existência atual, permanecendo em pé a dificuldade, pois não se poderiam levantar outras hipóteses sobre a origem dessa potência latente senão as três já indicadas: a existência por si, a criação por si e a criação por um agente externo. A existência por si de um universo em potencial não é mais concebível que a existência de um universo atual. A criação por si de um universo em potencial implica com maior razão nas dificuldades já expostas: necessitaria supor atrás desse universo em potencial uma virtualidade anterior, sucessiva e indefinidamente, sem progressões. Por fim, fixar como causa desse universo potencial uma força, um poder exterior, é introduzir gratuita e desnecessariamente a ideia desse universo, pois tal força poderia ter produzido o Universo atual. Examinemos, pois, essa última hipótese, do deísmo, ou da criação por um poder exterior, que é, como se sabe, a mais geralmente admitida. Tanto nas crenças mais vulgares como na cosmogonia de Moisés, corrente durante séculos, imagina-se a gênese do Céu e da Terra como a de um móvel que um carpinteiro confecciona. Essa hipótese é a aceita não só pelos teólogos, como também pelos filósofos presentes e passados, na sua maioria. Tanto os escritos de Platão quanto os de muitos sábios contemporâneos nos mostram que seus autores consideram como efetiva a analogia entre a obra da criação e a obra de um artesão. Pois bem: em primeiro lugar, esse conceito não só não é daqueles cuja correspondência com algo real possa ser demonstrado por ações intelectuais acumuladas ou pela comprovação de predições nele baseadas. E não apenas está ele ausente de toda evidência que diga respeito ao processo da criação, como nada prova correspondência entre esse conceito restrito e o fato também restrito que pretende significar, exceto que é um conceito inconsequente consigo mesmo. Não se pode mesmo concebê-lo aceitando todas as suas suposições. Ainda que o procedimento de um artesão possa simbolizar vagamente o método pelo qual teria sido criado o Universo, isso em nada nos ajuda na busca da solução do problema final: a origem dos materiais que compõem o Universo. O artesão não faz o ferro, nem a madeira e nem a pedra que emprega. Limita-se a trabalhá-los e combiná-los. Supondo que o Sol, os planetas e tudo que esses corpos contêm tenham sido formados de modo análogo pelo Grande Arquiteto, supomos apenas que ele dispôs na ordem atual certos elementos preexistentes. De onde vieram esses elementos? A analogia não pode esclarecer a questão, e não o fazendo, carece de valor. Produzir matéria do nada: eis o mistério. É inútil buscar tal ou qual analogia para conceber essa produção. Nada mais faremos que forjar um símbolo inconcebível. A insuficiência da teoria deísta da criação fica mais evidente quando passamos dos objetos materiais para o espaço que os contém. Mesmo que não existisse mais que um vazio incomensurável, nos depararíamos com a questão: de onde veio o vazio? E se a teoria da criação tem que ser completa, deveria responder que o espaço foi feito da mesma maneira que a matéria. Mas a impossibilidade de conceber a criação do espaço é tão manifesta, que ninguém se atreve a firmá-la, pois essa criação supõe a não existência anterior do espaço e não há esforço mental capaz de fazer imaginar a não existência do espaço, sendo como é uma das ideias mais vulgares e mais arraigadas no pensamento, aquela do espaço que nos rodeia por todas as partes e cuja ausência passada ou futura é impossível de ser concebida, sendo também, portanto também a ideia da criação do espaço. Finalmente, mesmo supondo que possa ser concebida a gênese do Universo como obra de um poder exterior, o mistério continuaria na mesma grandeza, porque viria a seguir a seguinte pergunta: qual é a origem desse poder? Problema que, como os anteriores, só admite como possível uma das três soluções: a existência por si, a criação por si ou a criação por um poder exterior. Esta última é inadmissível, pois nos levaria a recorrer a uma série infinita de potências exteriores, sem que nos movêssemos do ponto de partida. A segunda nos cria a mesma dificuldade, pois já vimos que necessita supor uma série infinita de existências em potencial. Fica, pois, a primeira, que é a comumente aceita e tida como satisfatória. Os que não podem conceber a existência por si do Universo, e por consequência admitem sua criação, não duvidam da possibilidade de conceber um criador existente por si mesmo. Reconhecem um mistério no grande feito que por todos os lados os rodeia e creem desvanecê-lo transportando-o à causa suposta desse feito. Lamentável cegueira! A existência por si é rigorosamente inconcebível, como mostramos no princípio dessa discussão, qualquer que seja a natureza do objeto de que tratamos. Todo aquele que reconhece a impossibilidade de compreender a teoria ateísta, porque encampa a ideia impossível da existência por si, deve também reconhecer a impossibilidade de conceber o deísmo, por encerrar a mesma impossibilidade. Vemos, pois, que as três diferentes suposições sobre a origem das coisas, ainda que inteligíveis verbalmente e ainda que cada uma pareça muito racional a seus adeptos, acabam por ser literalmente inconcebíveis quando submetidas à dissecção da crítica. Não se trata de examinar sua probabilidade ou plausibilidade, mas de saber se não são sequer concebíveis, e a experiência mostra que os elementos dessas hipóteses não podem ser reunidos no pensamento, e só podemos nelas pensar em termos de pseudoideias, como um quadrado fluido ou uma substância moral, isto é, não buscando transformá-las em ideias reais. Expressando-nos como no começo dessa discussão, diremos que as três hipóteses contêm conceitos simbólicos, ilegítimos e ilusórios. Embora pareçam tão distintas, as teorias ateísta, panteísta e deísta encerram o mesmo elemento fundamental. Não é possível evitar, em uma ou outra parte das três a necessidade de adotar a hipótese da existência por si, seja direta ou dissimuladamente, e essa hipótese é total e absolutamente inconcebível. Mesmo tratando-se de um pedaço de matéria, ou de uma forma material imaginada, ou ainda de uma forma longínqua e menos imaginável, não podemos conceber sua existência por si, a não ser imaginando-a infinita no tempo passado, e como é inconcebível essa duração infinita, o são também todas as ideias formais que compõe, e tanto mais inconcebíveis - permita-se a frase - quanto mais vagos e menos definidos sejam os elementos dessas ideias. Resulta então que, sendo impossível imaginar o Universo como existente por si, todos os nossos esforços para sua explicação não podem fazer mais que multiplicar o número de conceitos impossíveis. § 12. Se queremos conhecer a natureza do Universo, prescindindo de sua origem, apresentam-se as mesmas insuperáveis dificuldades, embora sob formas novas. Por um lado, vemo-nos obrigados a fazer certas suposições; por outro lado, verificamos que essas suposições não são concebíveis. Quando buscamos a significação de diversos efeitos produzidos sobre nossos sentidos; quando indagamos como se produzem em nós as sensações que denominamos cores, sons, sabores e outros atributos corporais, vemo-nos obrigados a considerá-los efeitos de alguma causa. Pois bem: podemos imaginar essa causa como existente na realidade, chamá-la matéria e dar-nos-emos por satisfeitos, ou podemos pensar que a matéria é apenas um modo particular da manifestação espiritual e que o espírito é, portanto, a única e verdadeira causa daqueles efeitos, ou ainda considerando matéria e espírito forças imediatas, podemos referir todas as modificações de nossa consciência à ação direta sobre ela, de uma potência divina. Porém, qualquer que seja a causa, estamos obrigados a adotar uma, e não somente uma causa, mas uma causa primária. Se o agente, matéria, espírito, ou o que for, ao qual atribuímos nossas impressões, é essa causa primária, tudo se encerra. Se não o é, deve existir atrás dele outra causa, e assim sucessivamente. Seja qual for o número de causas interpostas, não podemos pensar nas sensações que experimentamos via dos sentidos sem pensar em sua causa primária. Se queremos, porém, avançar mais, se desejamos saber qual é a natureza dessa Causa Primeira, a lógica nos leva, inexoravelmente, a duas novas questões. Essa Causa Primeira é finita ou infinita? Se for finita, existe algo exterior a ela, e esse algo exterior à Causa Primeira será, portanto, dela independente. Essa região exterior não tem causa, mas se algo pode existir sem causa, não existe razão para supor que tudo que acontece tem sua causa. Se fora da região finita, em que a Causa Primeira se estende, há outra região - necessariamente infinita - em que não reina aquela, se há um infinito sem causa, envolvendo o finito com ela, não é necessária realmente a hipótese da casualidade. É então impossível considerar a Causa Primeira como finita; deverá ser infinita. Mais ainda: há outra conclusão inevitável quando se pensa e discorre sobre a Causa Primeira. Deve ser independente, pois, se não fosse, não seria a Causa Primeira, mas o seria a outra, de que dependesse. E não basta dizer que é em parte dependente e em parte independente, pois isso implicaria em admitir uma necessidade que determinaria sua dependência parcial e essa necessidade, qualquer que fosse, seria uma causa superior, isto é, a Causa Primeira, o que seria contraditório. Mas imaginar que a Causa Primeira é de todo independente, é pensar que existe fora de toda existência, pois se requeresse a presença de alguma outra, dependeria parcialmente dela, e tampouco seria a Causa Primeira. E isso não é tudo: não só a Causa Primeira deve ter um modo de existir sem relação necessária com alguma outra forma de existência, como tampouco pode haver relação alguma exterior a ela. Nada pode nela haver que determine mudanças como nada pode haver que as impeça, porque se algo houvesse capaz de impor essas necessidades e restrições, esse algo teria que ser uma causa superior à Causa Primeira, o que seria absurdo. Assim, pois, a Causa Primeira deve ser absoluta e infinitamente perfeita, completa, total onipotente, superior a toda lei. A questão da natureza do Universo leva, pois, a estas conclusões. Os objetos e fenômenos do Cosmo e de nossa própria consciência nos obrigam a indagar de suas causas e uma vez começada a investigação não há possibilidade de parada até chegar à hipótese de uma Causa Primeira, e é inevitável também considerar essa Causa Primeira como infinita e absoluta. Contudo, quase me parece inútil dizer aos pacientes leitores que chegaram até aqui quanto de ilusório têm os raciocínios e resultados anteriores. Se não temêssemos abusar inutilmente de sua paciência, fácil nos seria provar que os elementos desses raciocínios, como suas conclusões, não são mais que conceitos simbólicos de ordem ilegítima. Mas em vez de repetir a refutação anteriormente feita, vamos seguir outro método, e provar os erros desses resultados, fazendo notar suas mútuas contradições. Para isso não acreditamos poder fazer nada de melhor do que aproveitar a demonstração que o senhor Mansel, (Henry Longueville Mansel (1820-1871), teólogo e filósofo inglês) seguindo ao pé da letra a doutrina de Sir W. Hamílton, (Sir William Hamilton (1788-1856), filósofo escocês) deu em sua obra The Limits of Religious Thought. E não apenas nos serviremos dessa obra porque é difícil tratar a questão em melhores termos do que o faz o autor, mas porque também o raciocínio de um autor consagrado à defesa da teologia ortodoxa será talvez mais bem recebido pela maioria dos leitores. § 13. Depois das indispensáveis definições preliminares da Causa Primeira, do Infinito e do Absoluto, o senhor Mansel acrescenta: "Mas esses três conceitos, a Causa, o Infinito, o Absoluto, todos indispensáveis - para integrar a ideia de Deus -, não implicam contradições mútuas desde o momento em que se consideram reunidos como atributos de um só e mesmo Ser? A Causa não pode, como tal, ser absoluta; o Absoluto, como tal, não pode ser causa; a Causa não existe como tal, mas apenas como efeito, pois este é daquela, como aquela é deste. Por outro lado, o conceito de Absoluto supõe uma existência possível fora de toda relação. Se se trata de salvar essa contradição aparente introduzindo a ideia de sucessão no tempo, dizendo: o Absoluto existe primeiro por si mesmo, e depois chega a ser uma causa, a ideia do Infinito vem ao nosso encontro e nos detém: como pode o Infinito chegar a ser o que não era? Isto seria ultrapassar certos limites, ou seja, estar sujeito a limites, deixar de ser infinito". "Se supomos que o Absoluto chega a ser causa, que não era, deve, para isso, agir livre e conscientemente. Porque uma causa necessária não pode ser absoluta e infinita, pois se o é - causa necessária - por algo exterior a ela, está de fato limitada por esse poder exterior, ou seja, não é infinita e se o é por si mesma, tem em sua própria natureza uma relação necessária com seu efeito, isto é, não é absoluta. É, pois, preciso que o ato de chegar a ser causa seja voluntário e a vontade só é possível em um ser consciente. Mas a consciência não é concebível a não ser como relação entre um sujeito consciente e um objeto, sem que possa conceber-se um sem o outro, não podendo, pois, ser um nem o outro o absoluto. É possível afastar um pouco a dificuldade por um instante, distinguindo entre o absoluto em relação com outro e em relação consigo mesmo, podendo ser dito que o Absoluto pode ser consciente de si mesmo. Mas esta alternativa é, em última análise, tão insustentável quanto a outra. Com efeito, o objeto da consciência, seja ou não um modo de ser do sujeito, é criado em e por um ato de consciência, ou então tem uma existência independente desta. No primeiro caso, o objeto depende do sujeito, e este é unicamente o verdadeiro absoluto; no outro caso, o sujeito depende do objeto, e este é o absoluto. Ou, por último, estabelecendo-se uma terceira hipótese, admitindo que sujeito e objeto de um fato de consciência existem ambos, simultânea e independentemente, nenhum dos dois seria o absoluto, os dois seriam relativos, pois a coexistência, presente ou não na consciência, é também uma relação." "O corolário desse raciocínio é evidente. Não apenas o Absoluto, tal como o imaginamos, não pode ter relação necessária alguma com algo exterior, seja o que for, como também, por sua natureza, pode compreender em si relação alguma como a que existe entre um todo e suas partes, uma substância e seus atributos, um sujeito consciente e seus objetos de consciência. Porque se no absoluto existe um princípio de unidade distinto do puro agregado de partes ou de atributos, esse só é o verdadeiro absoluto. Por outra parte, se não existe no absoluto esse princípio, não existe tal absoluto, mas apenas um grupo de relativos. É necessário reconhecer que a voz dos filósofos que proclamam quase por unanimidade que o absoluto é a um só tempo uno e simples é a voz da própria razão, tanto quanto possa a razão ter voz nesse assunto. Mas a unidade absoluta, indiferente e sem atributos, não pode distinguir-se da multiplicidade dos seres finitos por gestos característicos nem se identificar com eles em seu conjunto. Há, pois, com respeito ao absoluto, uma série de disjuntivas, todas negações. Não podemos concebê-lo nem consciente nem inconsciente; nem simples nem composto; nem com caracteres nem sem eles; nem idêntico nem distinto do Universo; nem uno, nem múltiplo." "Uma vez que os conceitos fundamentais da Teologia Racional se destroem mutuamente, o mesmo antagonismo existirá em suas aplicações especiais. Como, por exemplo, a Onipotência pode tudo e não pode obrar o mal, em virtude de sua infinita bondade? Como a justiça Infinita castiga inexoravelmente todo pecador e a Misericórdia Infinita perdoa o culpado? Como a Sabedoria Infinita conhece todo o futuro e a Liberdade Infinita pode fazer e evitar tudo? Como, enfim a existência do Mal é compatível com a de um Ser infinitamente perfeito? Porque se Deus quer o mal, não é infinitamente bom; se não o quer sua vontade é coibida e sua esfera de ação é limitada, uma vez que o mal se realiza”. "Suponhamos, contudo, que por um instante sejam vencidas essas dificuldades e que a existência do Absoluto esteja firme e racionalmente estabelecida. Não por isso, pode-se conciliar essa ideia com a de Causa. Nada adiantamos na explicação de como o absoluto pode originar o relativo, o infinito dar origem ao finito. Se a condição de atividade acidental é superior à de repouso, o absoluto, ao chegar a ser causa, seja voluntária, seja involuntariamente, passou de uma condição relativamente imperfeita para outra mais perfeita. Por conseguinte, não era perfeito na origem. Se o estado de atividade é inferior ao de repouso, o absoluto, ao chegar a ser causa, perdeu a perfeição primitiva. Fica ainda, é certo, outra hipótese: a de que esses dois estados são equivalentes e que a criação é um estado de indiferença. Mas essa hipótese ou destrói a unidade do absoluto ou se destrói por si mesma. Se o ato da criação é real, e, contudo, indiferente, temos que admitir a possibilidade de conceber dois absolutos: um produtor e um não produtor”. "Se o ato da criação não é real, desaparece a hipótese que discutimos. Por outro lado, como se pode conceber a origem do relativo? Se é uma realidade distinta do absoluto, é preciso conceber sua origem como passagem da não existência a existência. Mas conceber um objeto como não existente implica em contradição. Podemos pensar em um objeto. Mas se no pensamento ele deve estar presente, o está como existente; mas pensar no ato de nascer, ou na passagem do não ser ao ser, é pensar uma coisa que se desvanece no próprio pensamento”. "Resumamos brevemente esta parte de nossos argumentos. O conceito do Ser absoluto e infinito está cheio de contradições sob todos os aspectos. Há contradição em supor sua existência só ou com outros, e em supor que não existe. Há contradição em considerá-lo como um e em considerá-lo como múltiplo; em crê-lo pessoal e em crê-lo impessoal; em imaginá-lo ativo, ou inativo; em concebê-lo como a soma de toda a existência e concebê-lo como uma parte dessa soma ou como existência parcial”. § 14. Pois bem: qual o alcance desses resultados na questão à nossa frente? Examinamos as ideias fundamentais da Religião, com o fito de delas extrair uma verdade fundamental. Até agora nada obtivemos além de conclusões negativas. Submetendo a uma severa crítica os conceitos essenciais de todas as ordens e crenças, vimos que nenhum é logicamente sustentável. Deixando de lado a questão da fé e limitando-nos à razão, vimos que, analisados rigorosamente, o ateísmo, o panteísmo e o deísmo são, os três, igualmente inconcebíveis. Em vez de achar sua verdade fundamental no fundo de tais sistemas, parece resultar de nosso estudo que não há verdade fundamental alguma em nenhum deles. Contudo, manter essa dedução seria errôneo, como demonstraremos em poucas palavras. Deixando de lado o código moral que acompanha toda religião, e que não é em todas nada mais que um produto suplementar, uma crença religiosa pode ser definida como uma teoria a priori do Universo. Dados os fatos que nos rodeiam, se supõe um poder que, para os que nele creem, explica todos esses fatos. Mas tanto o fetichismo, que supõe atrás de cada fenômeno uma personalidade, distintas uma das outras; o politeísmo, em que essas personalidades sofrem um processo de generalização; o monoteísmo, em que essa generalização é completa, e o panteísmo, em que essa personalidade generalizada se identifica com os fenômenos, todas essas crenças ou formas religiosas nos facilitam hipóteses que, à primeira vista, explicam e fazem compreender o Universo. Ainda mais: o ateísmo, sistema que nega toda a Religião, entra na definição geral antes dada; pois o ateísmo, ao afirmar a existência por si do espaço, da matéria e do movimento, e ao considerá-los como causas de todos os fenômenos, propõe uma teoria a prior! pela qual se imagina poder explicar todos os fatos. Todas essas teorias sustentam, implicitamente; duas coisas: primeira, que há algo a explicar, e segunda, que a explicação é essa ou aquela. Vemos então que mesmo quando dão soluções diferentes do mesmo problema, os distintos pensadores tacitamente concordam em crer que o problema deve ser resolvido. Existe, pois, um elemento comum a todas; por opostos que sejam seus dogmas oficiais, reconhecem que o mundo, com tudo que nele existe, e tudo que o rodeia, é um mistério que exige ser explicado. Nisto, há completa unanimidade. Avistamos, por fim, o objeto que nos propusemos a encontrar. No capítulo anterior vimos as razões que existiam para pensar que as crenças humanas, de uma maneira geral, e as crenças fortes, em particular, sempre contêm algo de verdade, mesmo que contenham muitos erros, e chegamos, passo a passo, à verdade que jaz ainda no fundo da mais vulgar das superstições. Vimos, além disso, que esse algo de verdade deveria ser, muito provavelmente, um elemento comum nas opiniões contraditórias da mesma ordem, e acabamos por encontrar um elemento que todas as religiões admitem ou supõem, com maior ou menor clareza. Ali também dissemos que esse algo de verdade deveria ser mais abstrato que as próprias crenças que o continham e a verdade que descobrimos supera em abstração as mais abstratas crenças religiosas. A conclusão a que chegamos satisfaz, pois, sob todos os aspectos, as exigências mencionadas; tem todas as características que, segundo nosso raciocínio, deve ter a verdade fundamental, cuja expressão, sob formas distintas, são as diversas religiões. Além disso, o que prova que é o elemento vital de todas as religiões é que não apenas sobrevive a todas as mudanças, como se torna cada vez mais clara e distinta à medida que essas mudanças se processam. Assim, as crenças primitivas, mesmo dominadas pela ideia de que existiam potências pessoais que não se viam, representavam, todavia, essas potências sob formas concretas e vulgares, semelhantes às potências visíveis, homens e animais, dissimulando sob essas formas tão pouco misteriosas, a vaga ideia do mistério. As religiões politeístas, em suas fases avançadas, representam as personalidades diretrizes do Universo sob formas muito idealizadas, morando em uma região distante, operando por meios misteriosos e comunicando-se com os homens mediante augúrios e pessoas inspiradas; significa isso que, para o politeísmo, as causas primárias das coisas são menos familiares e menos inteligíveis do que para o fetichismo. O desenvolvimento da fé monoteísta acompanhado da negação das crenças que identificavam a natureza divina à humana, mesmo em suas ações mais ínfimas, foi um novo progresso em religião, e mesmo que essa elevada fé não tenha sido praticada a não ser imperfeitamente no princípio, vemos, contudo, nos altares consagrados ao "Deus" incógnito e incognoscível, e na adoração de um Deus que nada pode fazer encontrar, um explícito reconhecimento do insondável mistério da Criação. Os ulteriores progressos da teologia levam a afirmações mais avançadas. "Um Deus cognoscível não seria Deus." "Crer em Deus como o imaginamos é blasfemar." Assim, enquanto todos os outros elementos das crenças religiosas desaparecem uns atrás dos outros, este subsiste e se destaca cada vez mais, provando-se o elemento essencial de todas elas. Não termina aqui a evidência. Não apenas a ideia de onipresença de algo inacessível ao nosso entendimento é a mais abstrata das ideias comuns a todas as religiões; não apenas vai se tornando cada vez mais clara à medida em que vão se desenvolvendo as religiões e permanece quando os elementos contraditórios delas mutuamente se anulam, e ainda também essa ideia é que deixa em pé a crítica mais implacável de todas as religiões, ou melhor, a esclarece completamente. Nada tem a temer essa ideia da lógica mais inexorável; ao contrário, a lógica demonstra que essa crença é mais verdadeira do que supõem as próprias religiões. De fato, partindo da afirmação implícita de um mistério, todas as religiões se empenham na explicação desse mistério e ipso facto, afirmam que não é mistério e que não supera os limites do entendimento humano. Mas se analisamos as soluções propostas, vamos encontrá-las todas insustentáveis. O exame de todas as hipóteses possíveis demonstra não apenas que não há hipótese satisfatória como também que não há hipótese concebível. Assim, o mistério que todas as religiões reconhecem é mais transcendental do que elas supõem; não é um mistério relativo, é um mistério absoluto. Está posta, pois, uma verdade religiosa da maior evidência possível; uma verdade em que concordam entre si todas as religiões e com que concorda a Filosofia, que combate seus dogmas particulares. Essa verdade, sobre a qual todos os homens estão tacitamente de acordo, desde o fetichista até o mais severo crítico das religiões, deve ser a que buscamos. Se a Religião e a Ciência podem conciliar-se, a base da conciliação deve ser o mais profundo, amplo e acertado fato entre todos o de que o poder manifesto do Universo é completamente incognoscível para nós. III Ideias fundamentais da Ciência § 15. o que são o Espaço e o Tempo? Existem duas hipóteses correntes: uma, de que são entidades objetivas, e outra, de que são entidades subjetivas - uma de que são externos e de nós independentes. Outra, de que são internos, pertencentes à nossa consciência. Vejamos o que ocorre com essas hipóteses, devidamente analisadas. Dizer que Espaço e Tempo existem objetivamente é afirmar que são entidades. Afirmar o contrário é enunciar afirmação autodestrutiva: não entidades são não existências e alegar que não existências existem objetivamente é, em termos, uma contradição. Além disso, negar que Espaço e Tempo são coisas, e nesse caso seriam não coisas, envolve o absurdo de que existiriam duas classes de "nada". Tampouco podem eles ser vistos como atributos de alguma entidade; levando em consideração não apenas que é impossível na realidade conceber uma entidade da qual são eles atributos, mas acima de tudo levando em conta que não podemos pensar no seu desaparecimento, mesmo se tudo desaparecesse, pois atributos necessariamente desaparecem juntamente com as entidades a que pertencem. Assim, como Espaço e Tempo não podem ser nem não entidades e nem atributos de entidades, não temos opção senão a de considerá-los entidades. Contudo, se na hipótese de sua objetividade, Espaço e Tempo devem ser classificados como coisas, representá-los como tal na consciência nos resta impossível. A concepção de uma coisa está ligada a que ela possua atributos. Distinguimos alguma coisa de nenhuma coisa pelo poder que "alguma coisa" tem de atuar em nossa consciência; as várias impressões que ela produz em nossa consciência (ou mesmo uma sua causa hipotética), nós a atribuímos a aquela alguma coisa e os chamamos seus atributos; e a ausência desses atributos é a ausência dos termos em que essa alguma coisa é concebida, envolvendo a ausência da concepção. Perguntemos agora: quais são os atributos do Espaço? O único que nos ocorre no momento é o da extensão; o que nos leva a uma confusão conceitual. Pois extensão e espaço são termos equivalentes; extensão, quando nos referimos ao que envolve um objeto, significa o lugar que ele ocupa no espaço. Assim, dizer que o Espaço se estende, é como dizer que o Espaço ocupa o Espaço. De maneira similar, é escusado indicar, somos incapazes de associar qualquer atributo ao Tempo. Não apenas Tempo e Espaço são inimagináveis como entidades apenas pela ausência de atributos como também por uma peculiaridade familiar aos leitores de metafísica, que também os exclui da categoria. Todas as entidades atualmente tidas como tal são limitadas; e mesmo se supomos conhecer ou imaginar uma entidade ilimitada, a classificaremos verdadeira e inteiramente separada da classe de entidades limitadas. Sobre Espaço e Tempo não podemos afirmar que são limitados e não podemos dizer que são infinitos. Tanto nos é impossível imaginar o Espaço sem limites quanto pensar em limites além dos quais não haja espaço. Igualmente, passando do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, é impossível conceber um limite à divisibilidade do Espaço, como também o é concebê-lo infinitamente divisível. Também é fácil ver, sem que seja preciso enumerá-las, que há análogas impossibilidades relativas ao Tempo. Assim, não podemos conceber Espaço e Tempo como entidades e não podemos considerá-los não entidades, bem como tampouco podemos considerá-los atributos de entidades. Por um lado, somos compelidos a imaginá-los como coisas existentes, e por outro não podemos reduzi-los às condições de cognoscibilidade das verdadeiras existências. Diante desse fato, refugiar-nos-emos na doutrina de Kant? Diremos que o Espaço e o Tempo são formas do intelecto - "leis a priori ou condições do espírito consciente"? Fazê-lo seria fugir de grandes dificuldades e cair em outras maiores. A proposição que serve de base à filosofia de Kant, embora verbalmente inteligível, não pode realmente ser concebida, por maior que seja nosso esforço mental; não pode ser uma verdadeira ideia, mas apenas uma pseudoideia. Em primeiro lugar, afirmar que Espaço e Tempo, tal como os imaginamos, são condições subjetivas é afirmar implicitamente que não são realidades objetivas, que pertencem ao Eu, e não podem, assim, pertencer ao Não Eu, o que é de impossível concepção. O próprio fato sobre o qual se fixa a hipótese de Kant, qual seja, o de que nossa consciência do Espaço e do Tempo não pode ser suprimida, é uma prova, porque essa consciência de Espaço e Tempo é uma consciência da existência objetiva dessas entidades. E não há valor em dizer que essa impossibilidade de prescindir do Espaço e do Tempo é inevitável consequência de serem formas subjetivas, pois claramente podemos perguntar: o que afirma diretamente a consciência? A consciência afirma diretamente que Espaço e Tempo não estão em nós, em nossa mente, mas fora dela, e que não podem deixar de existir, ainda que desaparecesse a mente. A teoria de Kant é inconcebível no que nega implicitamente, como também o é no que explicitamente afirma. Não apenas são inconcebíveis Espaço e Tempo como formas subjetivas, pois não podemos combinar suas ideias com a de nossa personalidade e vê-las como propriedades dessa personalidade, como essa hipótese leva a si mesma, provando ser inconcebível. Com efeito, se Espaço e Tempo são formas do pensamento, não poderemos nunca os imaginar, pois algo não pode ser, de uma só vez, forma e matéria de um pensamento. Espaço e Tempo são objetos de conhecimento. Kant o afirma de forma peremptória, dizendo ser impossível suprimir a ideia de um e de outro. Como, então, sendo objetos do conhecimento, podem ser ao mesmo tempo condições do conhecer? Se Espaço e Tempo fazem parte das condições de todo pensamento, é necessário que, quando neles pensamos, o façamos de maneira incondicional, e se podem existir pensamentos incondicionais, o que ocorre com a teoria que discutimos? Resulta então que Espaço e Tempo são totalmente incompreensíveis. A noção imediata que acreditamos ter de um e outro se transforma, devidamente examinada, em completa ignorância. Se por um lado acreditamos de maneira irresistível em sua realidade objetiva, por outro nos encontramos incapazes de racionalmente dela dar conta. Por último, a outra hipótese, a da não realidade objetiva de Espaço e Tempo, é fácil de formular, mas impossível de imaginar, e nada mais faz do que aumentar inutilmente os absurdos. § 16. Não fosse pela necessidade de argumentos, seria indesculpável ocupar a atenção do leitor com a tão desgastada, e ainda não terminada, controvérsia da divisão da Matéria. É a Matéria infinitamente divisível ou não; não há terceira hipótese. Qual alternativa devemos aceitar? Se dissermos que a Matéria é infinitamente divisível, estaremos sendo conduzidos para uma suposição não concebível pela mente. Podemos dividir em duas partes um corpo e repetir essa operação continuamente até que as partes assim reduzidas não possam mais fisicamente ser separadas. Contudo, mentalmente, podemos dar sequência a esse processo, ilimitadamente. Fazê-lo, porém, não é realmente conceber a indefinida divisibilidade da Matéria, sendo apenas uma forma simbólica da concepção, incapaz de se trasladar para uma concepção real, e não admitindo outro tipo de verificação. Realmente, conceber a infinita divisibilidade da matéria seria seguir mentalmente a divisão até o infinito, o que requereria também uma infinidade de tempo. Inversamente, afirmar que a Matéria não é infinitamente divisível equivale a afirmar que ela pode ser reduzida a partes que nenhuma força imaginável possa subdividir em partes menores. Essa suposição verbal não pode ser representada mentalmente, como não pode, também, a anterior. Para cada uma dessas partes últimas, supondo-se que existam, corresponderão uma superfície superior e uma inferior, um lado direito, como um lado esquerdo, como ocorre com qualquer outro fragmento de matéria maior. Mas é impossível imaginar seus lados tão próximos que nenhum plano de separação possa ser imaginado entre esses lados e ainda que se imagine uma grande força de coesão, nos é também impossível afastar a ideia de uma força de separação ainda maior, capaz de superar essa coesão. Assim, para a inteligência humana uma hipótese não é mais aceitável do que a outra, ainda que concluamos que uma ou outra deveria coincidir, inevitavelmente, com os fatos. Deixando de lado tão insolúvel questão, vamos indagar se a substância tem, na realidade, algo da extensa solidez com que se apresenta à nossa percepção. A porção de espaço que ocupa uma peça de metal parece, aos nossos olhos e ao nosso tato, perfeitamente preenchida. Percebemos uma massa homogênea, resistente, que não apresenta brechas em sua continuidade. Podemos então afirmar que a Matéria é sólida como aparenta? Ou podemos dizer que consistindo de um elemento divisível infinitamente ou consistindo de partes justapostas, cada uma indivisível, essas partes estão em estreito contato? Afirmá-lo implica em insuperáveis dificuldades. Fosse a Matéria absolutamente sólida, seria também - o que não é - absolutamente incompressível. A compressibilidade implica em uma aproximação adicional de suas partes constituintes, o que seria impensável sem a existência de espaços vazios entre essas partes. Isso não é tudo. É uma lei mecânica firmada que um corpo, movendo-se a dada velocidade, ao se chocar com outro igual em repouso, provocará o movimento conjunto de ambos, a uma velocidade igual à metade da velocidade do primeiro corpo. É uma lei cuja negação não se pode conceber, a de que, passando de um grau de magnitude para outro, todos os graus intermediários devem ser experimentados, em continuidade. No caso presente, um corpo que se move a uma velocidade 4 não pode, por colisão, ser reduzido à velocidade 2, sem passar pelas velocidades intermediárias entre 2 e 4. Fosse a Matéria verdadeiramente sólida - sendo suas unidades incompressíveis e em absoluto contato - essa "lei da continuidade", como é chamada, seria quebrada em cada caso de colisão. Isto porque, consideradas as duas unidades elementares de que falamos, quando aquela massa móvel, com velocidade 4, se chocasse com a outra, em repouso, a massa móvel sofreria, instantaneamente, uma redução de velocidade para 2, sem passar pelas velocidades intermediárias, o que corresponde a afirmar que, no mesmo instante, o corpo tem duas velocidades, 4 e 2, o que resta, de todo, impossível. Inadmissível, pois, que a Matéria seja rígida, absolutamente incompressível. Admitamos então a hipótese newtoniana, segundo a qual a matéria se compõe de átomos sólidos, não em contato, mas em equilíbrio via de forças de atração e repulsão que variam com a distância. Contudo, essa hipótese apenas afasta a dificuldade, retirando-a das massas ou agregados de matéria, e transferindo-a para os átomos hipotéticos. De fato, se se admite que a Matéria esteja composta de átomos, ou unidades sólidas, rodeadas por uma atmosfera de força, surge a questão: como se constituem essas unidades? Não há dúvida de que constituem partículas de matéria. Vistas com o microscópio da imaginação, permita-se dizer, cada uma dessas unidades vem a ser uma massa, como a que consideramos no início dessa discussão. Pode-se, portanto, propor, em relação às partes componentes de cada átomo, as mesmas questões anteriormente propostas, e em cada solução surgirão as mesmas dificuldades, sendo evidente que, mesmo supondo os átomos formados por partes menores, a dificuldade não desaparece, a não ser para reaparecer mais adiante, dela não podendo nos livrar, mesmo que estabeleçamos uma série infinita de tais hipóteses. Fica ainda, para nosso exame, a questão de Boscovich (Rudjer Josip Boskovic (1711-1787), físico, matemático e astrônomo dálmata, nascido na Ragusa (hoje Dubrovnik, Croácia). Descreveu o primeiro método geométrico de determinação do equador de um planeta, assim como o cálculo de sua órbita, a partir de três observações de sua superfície. Foi um dos precursores da moderna teoria atômica). Visto que a Matéria não poderia, como sugeriu Leibniz, ser composta de mônadas sem dimensões, uma vez que justaposição de inextensões não poderia gerar a extensão que possuem as matérias, e levando em conta as objeções à teoria newtoniana, Boscovich propôs uma teoria mista, de modo a afastar as objeções e a reunir as vantagens das duas teorias. Segundo essa teoria, as partes constitutivas da Matéria são centros de força, adimensionais, que se atraem e repelem mutuamente, de forma a conservar entre si determinada distância. Boscovich afirma que as forças pertinentes a esses centros podem variar com as distâncias, de maneira a, em dadas condições, manter equilíbrio estável, a distâncias determinadas, distâncias essas que podem aumentar ou diminuir, variadas aquelas condições. O ponto de vista é bastante criativo, e afasta muitas dificuldades, mas se assenta numa proposição inconcebível, ainda que mobilizado todo o esforço mental: "centros de ação adimensionais". Se essa teoria evita as condições inconcebíveis das outras hipóteses, parte de um ponto mais inconcebível do que todas aquelas. Um centro de força absolutamente sem dimensões é algo inconcebível; com estas palavras nada podemos formar a não ser uma concepção simbólica de ordem ilegítima. A ideia de resistência não pode ser separada da ideia de um corpo, dotado de extensão, e que ofereça resistência. Supor que forças centrais possam residir em pontos não infinitamente pequenos, mas não ocupando lugar no espaço - pontos dotados apenas de posição, sem que algo fixe essa posição - pontos pois, indistinguíveis de pontos vizinhos que não são centros de força, é algo além da compreensão humana. Podemos agora afirmar que embora todas as hipóteses sobre a constituição da Matéria nos levem a conclusões inconcebíveis quando logicamente analisadas, mesmo assim temos razões para pensar que algumas delas possuem alguma correspondência com os fatos. Embora a concepção da Matéria como consistindo em densas e indivisíveis unidades seja simbólica, e incapaz de ser representada em nosso pensamento, ela pode, contudo, supostamente, encontrar uma verificação indireta nas verdades da Química. Esta, como se sabe, parte da crença de que a Matéria consiste de partículas de pesos específicos, e sendo assim, de tamanhos também específicos. A lei geral de proporções definidas parece impossível em qualquer outra condição que não a existência dos definitivos átomos; e assim, mesmo que os pesos combinados dos respectivos elementos sejam denominados pelos químicos de "equivalentes", para o propósito de afastar uma questionável suposição, não somos capazes de pensar na combinação de tais pesos definidos, como equivalentes, sem supor que a combinação tenha lugar entre números definidos de partículas. Assim, pareceria que a teoria newtoniana seria preferível à de Boscovich. Um discípulo deste último, contudo, poderia contestar que a teoria de seu mestre envolve a teoria newtoniana, não podendo assim ser descartada. Para comprová-lo argumentará: "Que força mantém unidas as partes dos átomos?" Responderá o newtoniano: "A força de coesão". "Então - dirá o primeiro - o que retém ainda juntas as partes de um fragmento que uma força suficiente faz com que se rompa em seus últimos átomos?" "A força de coesão", responderá outra vez o oponente. "E o que, dará" - poderia ele ainda indagar - "se o átomo definitivo for, como imaginamos, reduzido a partes proporcionalmente para ele tão pequenas quanto é ele pequeno para um fragmento perceptível de matéria, a cada uma dessas partes, a propriedade de se suster e ocupar espaço?" Ainda aqui a resposta é a força de coesão. Se levarmos avante o processo de dedução, tão longe quanto possamos, até que a extensão das partes seja menor que o imaginável, ainda assim não fugiremos da admissão das forças que a extensão também aponta; e não poderemos chegar a um limite enquanto não chegarmos à concepção de centros de força sem nenhuma extensão. A Matéria, então, na sua estrutura final, é tão absolutamente incompreensível, quanto o são Espaço e Tempo. Em quaisquer suposições que componhamos, encontraremos, no exame de suas implicações, apenas absurdos ou contradições. § 17. Se empurrarmos um corpo pequeno, veremos que ele se move na direção do impulso. E nos parece, à primeira vista, não existirem dúvidas sobre seu movimento ou sobre a direção em que segue. É fácil provar que podemos nos enganar nas duas coisas, como muitas vezes nos enganamos nesses juízos. Imaginemos um navio, e para simplicidade de nosso raciocínio, pensemos que ele se encontre sobre a linha do Equador, e aproado para o Oeste. Se alguém a bordo caminha da proa à popa, em que direção se move? Para Leste, seria a resposta, passável até, desde que o navio estivesse ancorado. Suponhamos agora que o navio se desloque para Oeste à mesma velocidade com que anda nosso passageiro. Em que direção estará ele, passageiro, se movendo? Ocorre agora que, enquanto ele caminha para Leste, o navio o leva para Oeste. Em relação ao ambiente, ele não se move, movendo-se apenas em relação ao que se encontra a bordo. E estamos seguros nesta conclusão? Está ele, efetivamente, no mesmo lugar? Se levarmos em conta o movimento de rotação terrestre, chegamos à conclusão de que nosso passageiro, na verdade, viaja para Leste a uma velocidade de mil milhas por hora. Assim, nem a percepção de alguém que olha o passageiro, nem a de quem atenta para o movimento do navio tem algo a ver com a verdade. E sem dúvida, indo além, podemos ainda melhor examinar essa conclusão. Pois nos esquecemos de atentar para o movimento da Terra em sua órbita solar, à velocidade de 68.000 milhas por hora, para Oeste. Nem assim teríamos descoberto a verdadeira velocidade e a verdadeira direção do movimento. Com a progressão da Terra em sua órbita, temos que juntar a de todo Sistema Solar na direção da constelação de Hércules, e quando o fazemos, percebemos que a trajetória do passageiro não é para Leste e nem para Oeste, mas segundo uma linha inclinada no plano da Eclíptica e a uma velocidade maior ou menor (dependendo do tempo decorrido no ano) que aquela mencionada. E podemos dizer ainda que, fosse a dinâmica do sistema sideral perfeitamente de nosso conhecimento, provavelmente descobriríamos que a velocidade e a direção do movimento de que tratamos diferiria consideravelmente das que mencionamos. Está, pois, patente como são enganosas nossas ideias de Movimento. O que estava se movendo, mostrou-se estacionário; o que estava estacionário mostra-se movendo, enquanto o que julgamos indo rapidamente em uma direção, mostra-se indo muito mais rapidamente na direção contrária. E assim somos levados a pensar que aquilo de que temos consciência não é o movimento real de qualquer objeto, bem como sua velocidade e direção, mas apenas seu movimento observado de uma determinada posição - a posição que ocupamos ou qualquer outra. Mesmo concluindo que os movimentos que percebemos não são reais, nós tacitamente imaginamos que eles existam como tais. Observando os juízos sucessivos do exemplo dado, imaginamos que existam uma velocidade e uma direção para um determinado movimento que sejam reais, ou seja, existem pontos absolutamente fixos no Espaço, e para um observador ali colocado todo e qualquer movimento seria absoluto; é uma ideia da qual é difícil nos desfazermos. Contudo, esse movimento absoluto não pode ser concebido ou observado. O movimento, imaginado fora das condições normais supostas, aquelas segundo nossas sensações, termina por ser de todo inconcebível. Com efeito, movimento é uma mudança de posição. Mas num espaço sem limites, a mudança de posição não se concebe, pois não há como conceber a posição. A posição não pode ser concebida a não ser relativamente a outras posições, e, faltando objetos de referência dispersos pelo espaço, não podemos conceber uma posição a não ser referindo-nos aos limites do espaço; então, no espaço ilimitado não há como conceber uma determinada posição, já que todas as posições devem estar a igual distância dos limites inexistentes. Assim, pois, se por um lado somos levados a pensar que existe um movimento absoluto, por outro vemos que não se pode compreender esse movimento absoluto. Outra dificuldade surge ante nós quando consideramos a transmissão do movimento. O uso nos impede de ver toda a maravilhosa verdade desse fenômeno. Familiarizados com ele desde a infância, não vemos nada de extraordinário no fato de em que algo em movimento venha a gerar movimento em algo que se encontrava em repouso. Contudo, é impossível compreender bem essa mudança. Qual é a diferença entre um corpo antes de sofrer uma colisão e depois de sofrê-la? O que lhe foi agregado, sem mudança sensível de suas propriedades, que o tornou capaz de atravessar o espaço? O corpo é o mesmo, em repouso ou em movimento. Contudo, no primeiro caso não existe a tendência a mudar de lugar, enquanto no segundo essa mudança se dá a cada momento. O que, enfim, é responsável por esse efeito inesgotável? Como permanece no corpo? Dizemos que comunicamos ao corpo o movimento. Mas que coisa foi comunicada? O corpo que colidiu não transferiu ao que foi colidido nenhuma substância ou atributo. O que então foi transferido? Estamos aqui em frente ao antigo enigma do movimento e do repouso. Vemos diariamente que objetos lançados com a mão ou de outro modo qualquer sofrem uma gradual frenagem e acabam por parar; vemos com frequência a passagem do repouso ao movimento por ação de alguma força. Mas vemos também que é impossível imaginar claramente essas transições, pois temos como necessária uma violação da lei da continuidade, impossível de conceber. Um corpo móvel a uma dada velocidade não pode ficar em repouso nem mudar sua velocidade sem passar por todas as velocidades intermediárias. Parece fácil, à primeira vista, imaginar a passagem de um a outro estado dinâmico, supondo que o movimento diminui insensivelmente até fazer-se infinitesimal, e muitos acreditarão possível passar mentalmente de um movimento infinitesimal a um movimento zero, mas nisto reside um erro. Seguindo com o tempo uma velocidade decrescente, sempre fica algo de velocidade. Tomando a metade da velocidade e assim sucessivamente até o infinito, sempre haverá um movimento: mesmo o mais lento dos movimentos estará separado do zero por um abismo. Do mesmo modo que uma coisa, por menor que seja, é infinitamente grande com respeito ao zero, o menor movimento concebível é infinito, relativamente ao repouso. Não será necessário descrever as dificuldades análogas da questão inversa - passagem do repouso ao movimento. Veríamos, como no outro caso, que mesmo quando obrigados a pensar nessas mudanças e em como se dão realmente, esbarramos com a impossibilidade da concepção. O resultado é que, como consideramos em relação ao repouso, com relação ao Espaço, com relação à Matéria, o movimento não é um objeto de conhecimento claro e distinto. Todos os esforços que fazemos para compreender sua natureza essencial nos levam apenas a escolher entre dois pensamentos igualmente impossíveis. § 18. Quando levantamos uma cadeira, desenvolvemos uma força que consideramos naturalmente antagônica à que chamamos peso da cadeira, e não podemos pensar na igualdade dessas duas forças sem pensar que são da mesma espécie, pois não se pode conceber igualdade a não ser entre entes da mesma natureza. O axioma "a ação é igual e contrária à reação", do qual é um exemplo o fato que acabamos de mencionar, da força muscular se opondo à da gravidade, não pode ser concebido de outro modo ou em outras condições. Contudo, por outro lado, não podemos conceber que a força que chamamos "peso" seja parecida à que fazemos para levantá-lo, presente em nosso pensamento. Sustentar a cadeira mencionada nos produz distintas sensações, segundo a levantemos com um dedo, com uma mão ou com uma perna, não havendo, pois, razão para supor que o peso se assemelha mais a uma que a outra dessas sensações, não havendo também razão para supor que se pareça com alguma delas. Basta também notar que sendo nossa força para nós uma impressão de nossa consciência, não podemos conceber de igual forma a força chamada peso, a não ser que atribuamos uma consciência à cadeira ou a qualquer corpo. É assim absurdo pensar que uma Força em si mesma pareça com a sensação que temos da nossa, e precisamos pensar se mentalmente desejamos representá-las. Como podemos compreender a conexão entre Força e Matéria? Esta nos é conhecida na realidade apenas pelas manifestações daquela; a última prova da existência da Matéria é sua capacidade de resistência; suprimida esta, não fica senão uma extensão vazia, e ao mesmo tempo é inconcebível a resistência isolada ou separada da Matéria, de algo dotado de extensão. Não só, como afirmamos páginas atrás, são inimagináveis centros inextensos de forças como tampouco podemos conceber que centros de forças, extensos ou não, se atraiam e se repilam mutuamente, sem interposição de algo material. Agora é ocasião de notar o que não nos era permitido fazer sem antecipar ideias, quando tratávamos da Matéria, a saber: que a hipótese newtoniana, como a de Boscovich, supõe que uma coisa possa agir sobre outra, através do espaço completamente vazio, suposição impossível de representar em pensamento. A essa objeção se responde com a suposição de um fluido especial entre os átomos ou centros, mas isso não resolve o problema; apenas o afasta, para que reapareça quando passamos ao exame da constituição desse fluido. Sobretudo quando se trata de forças astronômicas, é quando melhor se percebe quão impossível é afastar a dificuldade da transmissão da Força no Espaço. O Sol age sobre nós, produzindo as sensações de luz e calor, e sabemos que entre a geração causal no dito astro e o efeito produzido na Terra passam-se aproximadamente oito minutos; daí resultam em nós, inevitavelmente, os conceitos de força e de um movimento. Assim, para imaginarmos um éter luminífero, há a oposição de ser inconcebível a ação de uma força através de 95 milhões de milhas de absoluto vazio, e, além disso, ser impossível conceber um movimento sem algo que se mova. O próprio Newton declarava ser impossível pensar que a atração entre dois corpos, à distância, possa ser exerci da sem algo intermediário. Adiantamos algo com a hipótese do éter? Como está constituído esse fluido, cujas ondulações, segundo se supõe, constituem o calor e a luz, e que é também o veículo da gravitação? Segundo os físicos, devemos considerá-lo composto de átomos que se atraem e se repelem mutuamente, átomos infinitamente pequenos se comparados com os da matéria ponderável. Mas ao fim e ao cabo, sempre átomos. Recordemos que esse éter é imponderável, e por força teremos que admitir que a razão entre as distâncias que separam seus átomos e o tamanho destes é incomensuravelmente maior que a razão análoga na matéria ponderável, sem o que as densidades das duas classes de matéria não seriam incomensuráveis ou incomparáveis. Em vez, então, de ter que conceber a ação direta do Sol sobre a Terra sem intermediação de matéria alguma, temos que conceber essa ação através de um meio cujas moléculas seriam tão pequenas, em relação a suas distâncias mútuas como são Sol e Terra relativamente à distância que os separa. Seria mais fácil adquirir este conceito do que o anterior? Sempre teremos que imaginar a ação de um corpo à distância, sem meio material algum que transmita essa ação, não importando que a escala em que se verifique essa transmissão de forças seja grande ou pequena. Constatamos que a maneira de agir de uma Força é totalmente ininteligível para a compreensão humana. Só podemos imaginar essa ação através de um meio dotado de extensão e matéria, e ao estabelecer hipóteses sobre esse meio, vemos que as dificuldades, longe de desaparecerem, apenas se afastam. Assim, resta supor que a matéria, ponderável ou imponderável, atua sobre a matéria, em massas ou unidades hipotéticas, através do espaço absolutamente vazio, chegando a uma conclusão ainda inconcebível. Ainda, a Luz, o Calor, a Gravitação e todas as forças centrais variam em razão inversa do quadrado da distância, e os físicos, em suas investigações, supõem que as unidades de matéria atuam umas sobre as outras segundo as mesmas leis, devendo fazê-lo assim, pois essa lei não é simplesmente empírica, sendo matematicamente dedutível, de negação inconcebível. Mas o que deve acontecer em uma massa de matéria em equilíbrio interno? As atrações e repulsões dos átomos constituintes se neutralizam. Em virtude dessa neutralização, os átomos permanecem às mesmas distâncias e a massa não se contrai nem se expande. Mas se as forças de atração ou repulsão de dois átomos adjacentes variam, de uma só vez, na razão inversa do quadrado da distância, como deve acontecer, e se os átomos estão em equilíbrio às suas distâncias atuais, também o estarão, necessariamente, a todas as distâncias. Suponhamos, por exemplo, os átomos separados para um duplo intervalo; sua atração e repulsão se reduziriam à quarta parte de seu valor primitivo, enquanto quadruplicar-se-iam, se a distância se reduzisse à metade. Resulta que a matéria adquire todas as densidades com toda facilidade, e não deve, portanto, resistir às forças exteriores. Temos de pensar, pois, que as forças moleculares contrárias não variam ambas em razão do quadrado das distâncias ou que a matéria não possui esse atributo da impenetrabilidade ou resistência, em virtude do qual ela se distingue do espaço vazio, o que é absurdo. É então impossível formar-se uma ideia de Força em si mesma, como é, também, compreender seu modo de ação. § 19. Passemos agora do mundo exterior ao mundo interior e apreciemos não as forças a que atribuímos nossas modificações subjetivas, mas as próprias modificações. Formam uma série; mesmo quando tenhamos dificuldade em separar umas das outras, em individualizá-las, é inegável que nossos fenômenos psíquicos caminham um atrás do outro, sucessivamente. E essa cadeia de estados da consciência é finita ou infinita? - pergunta-se. Não podemos dizer que é infinita, não apenas porque chegamos indiretamente à conclusão de que teve um princípio, mas também porque toda infinidade não se concebe, inclusive a de uma série. E não podemos dizer finita, porque se mostra sem princípio nem fim. Por mais longe que se vá em nossa memória, percorrendo as lembranças de nossa vida passada, nos é sempre impossível fixar nossos primeiros estados de consciência; a perspectiva de nossos primeiros pensamentos se perde em uma densa escuridão, de que nada recordamos. O mesmo acontece no extremo oposto. Não temos conhecimento imediato do término futuro de nossas séries de conhecimento e não podemos estabelecer limite no tempo às que se modificam na atualidade. Com efeito, qualquer estado psíquico que considerarmos como último não o será realmente, pois no momento em que o conceituamos já formando parte da série, deixa de ser presente, e se torna passado. O estado verdadeiramente último é o que se verifica ao apreciar o que acaba de passar, isto é, o ato de pensar que um estado anterior era o último. De forma que, ao fim da cadeia, como em seu início, o pensamento escapa. Poder-se-ia dizer: se não podemos saber, diretamente, se a consciência é finita quanto à sua duração, porque não podemos fixar realmente limites ao passado e nem ao futuro, podemos ao menos conceber "o que é"? Não, tal não é verdade. Primeiramente, na realidade não podemos nem "conceber" nem "perceber" os limites de nossa própria consciência, única que conhecemos, pois esses "atos" não são na verdade mais que um. Em um e outros esses limites devem ser, como dissemos, "representados" e não "apresentados" como em produção. Pois bem: representar-se o limite atual do ato de consciência que está em produção em nós, como vimos, equivale a conceber-nos pensando no término do ato anterior, o que implica na continuidade dos atos depois do último, o que constitui um absurdo. Em segundo lugar, se queremos considerar o sujeito do ponto de vista objetivo - se estudamos esses fenômenos em outras consciências ou em abstrações, nada conseguimos. A consciência implica em uma evolução contínua e em correlação permanente entre suas sucessivas fases. Para que uma impressão psíquica seja conhecida é mister que o seja deste ou daquele modo, como semelhante ou diversa de outra anterior. Se não é pensada em conexão com outras, se não se distingue ou se identifica por cotejo com outras impressões, não é reconhecível, não é tal impressão. Um último estado de consciência, como qualquer outro, não pode ser conhecido se não se distinguem suas relações com outros estados anteriores. Mas a percepção dessas relações constitui já um estado posterior ao último, o que é contraditório. Mostremos a dificuldade de outro modo: se é condição de existência da consciência uma incessante mudança de estados, quando o que se supõe seja o último pelo fim dos precedentes, a mudança cessou; cessou, pois, também a consciência; então o estado não é mais de consciência; não existe, pois, o último estado de consciência. Do mesmo modo que apreciamos a impossibilidade real de conceber o repouso transmutando-se em movimento e vice-versa, vemos agora a impossibilidade de conceber tanto o princípio quanto o fim das mudanças constituintes da consciência. Donde resulta que, se por um lado somos incapazes de conhecer e conceber a duração infinita da consciência, por outro lado, conhecê-la e concebê-la como finita resulta também impossível. § 20. Não alcançamos maior sucesso quando, em lugar da duração, consideramos a substância mesma do estado consciente. A questão - o que é isso que pensa? Não admite melhor solução do que a questão para a qual nada encontramos a não ser soluções inconcebíveis. A humanidade em geral considerou sempre como a verdade mais incontroversa para cada indivíduo sua própria existência. Costuma-se dizer: "Estou tão certo disso quanto de que existo", como a mais enérgica expressão de certeza. O fato da existência pessoal, atestado pela consciência universal da humanidade, tem sido a base de muitos sistemas filosóficos; assim, essa crença é, para os pensadores, o mesmo que é para o vulgo, fora de toda dúvida e objeção. Com efeito, não há hipótese possível para evitar a crença em nossa própria realidade. Pois bem: partindo daí, que diremos das sensações e ideias sucessivas que compõem a consciência? Diremos que são modificações de algo chamado mente, e que é, então, o ego real, de cuja existência estamos convictos? Então admitimos que o ego é uma entidade. Afirmaremos que as sensações e as ideias não são apenas modificações ou mudanças da substância pensante, mas que constituem a própria essência dessa substância, não sendo outra coisa senão as diversas formas que assume de um momento a outro? Essa hipótese, como a anterior, implica que cada indivíduo existe como ser permanente e distinto, uma vez que modificações necessariamente supõem algo modificado. Diremos, com os céticos, que só conhecemos nossas ideias e sensações, que são para nós as únicas realidades e que a personalidade a que pretendemos referi-las é pura ficção? Não saímos das dificuldades, pois a proposição anterior, verbalmente inteligível, mas realmente inconcebível, supõe a mesma crença que pretende repelir. De fato, como a crença pode resolver-se completamente em sensações e em ideias se toda sensação necessariamente supõe algo que sente? Em outras palavras: como pode o cético, que decompôs completamente sua consciência em sensações e ideias, considerá-las suas sensações e suas ideias? Ou ainda: se como é natural, admite que tenha uma intuição de sua existência pessoal, qual é a razão para que repila essa intuição como falsa e admita as outras como verdadeiras? Se não tiver respostas satisfatórias para essas questões, o que acontece, é preciso que abandone suas conclusões e admita a realidade do espírito individual. Pois bem: por inevitável que seja essa crença, por mais solidamente que se tenha estabelecido, não apenas por um acordo geral da humanidade, adotado por tantos filósofos, e pelo suicídio dos argumentos dos céticos, não é, contudo, justificável perante a razão. Pois a razão, quando se vê obrigada a julgá-la, a condena. Um dos escritores mais modernos que tratam essa questão, o já citado senhor Mansel, sustenta que na consciência de si mesmo tem cada homem um conhecimento real, e sustenta que neste caso a validade da intuição imediata está fora de dúvida. "Digam o que quiserem os fundadores de sistemas" - escreve ele - "o sentimento não corrompido da humanidade recusa reconhecer que o espírito seja unicamente um conjunto de estados da consciência, do mesmo modo que a matéria seja (talvez) um conjunto de qualidades sensíveis." Deste ponto de vista, surge antes de mais nada uma objeção: a de que essa afirmação não é consequente para um kantiano que não concede senão um débil tributo de respeito ao "sentimento básico da humanidade", quando esse sentimento afirma a objetividade do espaço. Mas vamos prescindir disso, e provemos que a percepção de si mesmo, propriamente dita, é em absoluto incompatível com as leis do pensamento. A condição fundamental de todo conhecimento - escrevem Mansel, Sir William Hamilton e outros - é a antítese de sujeito e objeto. Sobre esse "dualismo primitivo da consciência", que "deve servir de ponto de partida para as explicações da Filosofia", baseia o senhor Mansel sua refutação dos absolutistas alemães. Pois bem: qual o corolário dessa doutrina com relação à consciência de si mesmo? O ato mental em que o ego é percebido implica, como todo ato mental, um sujeito que percebe e um objeto percebido. Se o objeto percebido é o ego, qual o sujeito que percebe? Ou, se este é o verdadeiro ego que pensa, qual o outro ego pensado? Evidentemente, um verdadeiro conhecimento do ego implica em um estado em que o que conhece e o que é conhecido se confundem em um só. Sujeito e objeto se identificam, e isso, como sustenta com razão o senhor Mansel, é a aniquilação de ambos. De sorte que a personalidade de que cada um tem consciência, e cuja existência é para todos o fato mais certo que concebe, é completamente incognoscível em sua essência; o conhecimento dessa personalidade proíbe-se pela própria natureza do pensamento. § 21. Podemos dizer que as ideias fundamentais da Ciência são representativas, todas elas, de realidades que não podem ser compreendidas. Não importando quão grandes sejam os progressos alcançados na coligação de fatos e no estabelecimento de generalizações cada vez mais amplas, ou quão longe se leve a passagem de verdades particulares e concretas a outras gerais e abstratas, as verdades fundamentais continuam e continuarão fora de nosso alcance. A explicação do que é explicável só faz provar mais claramente que é inexplicável o que jaz além. No mundo interno, como no mundo exterior, o homem de ciência se vê cercado de perenes mudanças, de que não pode desvendar nem o princípio e nem o fim. Se retrocede ao passado e segue o curso de evolução das coisas, adotando a hipótese segundo a qual o Universo uma vez existiu sob forma difusa, se vê ao fim na impossibilidade de imaginar como pôde ser assim. Se especula sobre o futuro, igualmente, não pode fixar limites à imensa sucessão de fenômenos que se desenvolvem à sua frente. Da mesma forma, se olha seu interior, reconhece fora de seu alcance os dois extremos da cadeia de sua consciência, ou vê que não é possível conceber que sua consciência tenha começado e tenha que terminar. Se, deixando a sucessão de fenômenos internos e externos, deseja conhecê-los na sua essência, ou natureza Íntima, se vê tanto ou mais impotente. Mesmo se todas as propriedades e todos os fenômenos do mundo exterior pudessem ser reduzidos a manifestações de Força no Espaço e no Tempo, veria que as ideias de Força, Espaço e Tempo ultrapassam todo entendimento. De maneira análoga, mesmo reduzindo em última análise todos os fenômenos de consciência a sensações, como materiais primitivos do mundo interno, nada adianta, porque não é possível explicar verdadeiramente nem as sensações em si mesmas, nem o que sente e tem consciência de que sente, resultando então que são impenetráveis as substâncias e as origens do mundo objetivo e do mundo subjetivo. Em toda a direção para a qual leve o homem de ciência suas investigações, elas o conduzem sempre a enigmas insolúveis, e cuja insolubilidade reconhece cada vez com mais clareza. Assim aprende a apreciar a grandeza e a pequenez do intelecto humano - seu poder em lidar com tudo que pertence ao campo da experiência e sua impotência fora dele; forma ideia exata da impossibilidade de compreensão do fato mais simples considerado em si mesmo. Ele, mais que ninguém, se convence iniludivelmente de que, na sua última essência, nada pode ser conhecido. IV Relatividade de todo conhecimento § 22. Chegamos assim à mesma conclusão, qualquer que seja nosso ponto de partida. Se, respeitando a origem e a natureza das coisas, fazemos algumas suposições, concluímos, via de uma lógica inexorável, que elas inevitavelmente nos levam a alternativas de impossível concepção. E isso é verdade para quaisquer suposições que possamos imaginar. Se, ao contrário, optamos por não fazer suposições, mas partimos das propriedades sensíveis dos objetos que nos cercam, e asseguramos suas leis especiais de dependência, agregamos essas leis em leis cada vez mais gerais, até trazê-las todas sob as mais gerais das leis, ainda nos encontraremos tão distantes como sempre de conhecer a essência do que revelam essas propriedades para nós. Claramente, quando parece que estamos prestes a conhecer essa essência, nosso conhecimento aparente mostra, se bem examinado, ser absolutamente irreconciliável consigo mesmo. As ideias religiosas fundamentais e as ideias científicas fundamentais, de maneira semelhante, tornam-se meramente símbolos do real, e não a expressão de seu conhecimento. À medida que a civilização progrediu, foi lentamente ganhando terreno a convicção de que a inteligência humana é incapaz de um conhecimento absoluto. Constatou-se que todas as novas teorias ontológicas que se impuseram nas diversas épocas às teorias mais antigas, foram alvo de novas críticas, que por sua vez produziram novos ceticismos. Todos os conceitos possíveis foram discutidos por sua vez, e neles encontradas falhas, esgotando por inteiro, pouco a pouco, o campo especulativo, sem que se obtivessem resultados positivos. Tudo o que se conseguiu foi chegar à negação que acabamos de formular: a realidade, oculta sob todas as aparências, nos é desconhecida, e sempre o será. Quase todos os grandes pensadores aderiram a esta conclusão. "Exceto" - escreve Sir W. Hamilton - "para alguns teóricos do absoluto, na Alemanha, essa verdade é talvez, entre todas, a que os filósofos das diversas escolas repetiram de maneira mais harmônica e mais unânime." Hamilton cita Protágoras, Aristóteles, Santo Agostinho, Boécio, Averróis, Alberto o Grande, Gerson, Léon o Hebreu, Melanchton, Scalígero, F. Piccolomini, Giordano Bruno, Campanella, Bacon, Spinoza, Newton e Kant. Fica por demonstrar como essa crença pode ser estabelecida, seja de maneira racional, seja empiricamente. Não apenas, como já advertiram os mais antigos dos pensadores, que acabamos de listar, nasce no homem uma vaga ideia da natureza impenetrável das coisas em si mesmas, desde o momento em que se descobre a natureza ilusória das sensações percebidas pelos sentidos; não apenas como vimos nos artigos precedentes, uma lógica vigorosa prova a impossibilidade dos conceitos fundamentais que pretendemos estabelecer, mas também se pode demonstrar direta e analiticamente a relatividade de todo conhecimento humano. A indução formada em virtude de experiências gerais e especiais pode ser confirmada por uma dedução fundada nas leis de nossa inteligência. Existem dois métodos, ou caminhos, para chegar a essa dedução: ou analisar os produtos do pensamento, ou analisar a própria operação de pensar. Sucessivamente, faremos essas duas análises. § 23. Se em um dia de setembro, ao passear por um campo, ouvimos um ruído a pouca distância e vemos mover-se a erva, provavelmente nos acercaremos para averiguar a razão do som e da movimentação, e ao fazê-lo, veremos voar uma perdiz. Satisfizemos, assim, nossa curiosidade, e obtivemos o que chamamos uma explicação para aquilo que nos despertou, num dado momento, a atenção. Mas o que é uma explicação? O que é um sinal? Durante nossa existência observamos, inúmeras vezes, que pequenos corpos em repouso se movem em consequência do movimento de outros corpos entre eles. Generalizamos a relação entre um e outro movimento e consideramos explicado um deles, se podemos referi-lo a esses casos generalizados. Suponhamos que, no caso citado, a perdiz não voa, e consigamos capturá-la; é natural investigar porque não levantou voo. A examinamos e encontramos um pouco de sangue entre suas penas. "É isso" - dizemos - "não alçou voo por ter sido ferida antes por um caçador"; e dizemos compreender o acontecido por conhecer muitos casos de aves feridas ou mortas por caçadores, sendo este mais um caso que incluiremos em nossa experiência. Mas há uma dificuldade: a perdiz só tem uma ferida, e não mortal. Suks asas estão intactas, como também os músculos destas; e a perdiz, que se esforça por libertar-se, demonstra muito vigor. Por que não voa? - nos indagamos. Se fizermos a pergunta a um veterinário, ele nos responderá, após examinar a ave. Dirá que a ferida, ainda que pequena, lesionou um nervo que anima uma das asas, impedindo que se coordenem os seus movimentos, o que anula a faculdade de voar etc. Termina nossa dificuldade, mas por que razão? O que ocorreu conosco, para que passássemos da ignorância à inteligência de um fato? Nada além de que este fato, agora conhecido, passará a fazer parte de um conjunto de fatos outros, anteriormente também conhecidos. A conexão entre a lesão nervosa e a paralisia dos membros já é nossa conhecida, e encontramos, no caso presente, uma relação de causa e efeito desse gênero. Suponhamos que continuemos estudando sobre as ações orgânicas, e nos proponhamos a questão: como se verifica a respiração? Por que entra e sai, periodicamente, o ar dos pulmões? A resposta imediata é a de que, nos vertebrados superiores, inclusive o homem, a entrada do ar é determinada por uma distensão da cavidade torácica, devida em parte à depressão do diafragma, e em parte à elevação das costelas. Mas como pode a elevação das costelas distender a cavidade? Para explicar, nota-se que o plano de cada costela forma, com a coluna vertebral um ângulo agudo; que esse ângulo se abre quando aquela se eleva, ficando fácil perceber a dilatação da cavidade, pois se sabe que a área de um paralelogramo cresce quando, sem variação de perímetro, seus ângulos se aproximam do ângulo reto. Compreendemos, pois, esse fato particular, pois o sabemos incluído entre outros, expressos por uma lei geométrica. Permanece, porém, outra questão: por que penetra o ar na cavidade torácica dilatada? Eis a resposta: quando a cavidade torácica se distende, o ar nela contido, sujeito então a menor pressão, se dilata, e perdendo também parte de sua pressão anterior, opõe menor resistência à pressão do ar exterior; e o ar, como todos os fluidos, por exercer igualmente sua pressão em todos os sentidos, move-se no sentido que opõe menor resistência, entrando então na cavidade torácica. Mais satisfeitos ficamos com essa explicação quando se trata de líquidos visíveis, como a água. Outro exemplo: quando chamam nossa atenção para o fato de serem nossos membros alavancas compostas, cujo modo de agir em muito se assemelha ao das alavancas de ferro ou madeira, acreditamos ter de pronto uma explicação, ainda que parcial, sobre o movimento dos animais. A contração de um músculo parece, à primeira vista, inexplicável; mas não o parecerá tanto, se observarmos como se desviam pedaços de ferro doce quando passamos junto a eles uma corrente elétrica que os transforma em imãs e faz com que mutuamente se atraiam. Essa analogia responde de uma maneira especial, ao fim de nossa investigação, pois, seja ela verdadeira ou imaginária, nos dá um exemplo dessa iluminação mental que resulta da descoberta de uma classe de casos em que se pode incluir um dado caso particular. Notar-se-á, também, que quanto melhor se compreende o fenômeno em questão, desde o momento em que se saiba que a ação exerci da pelos nervos sobre os músculos, se não é única e verdadeiramente elétrica, será uma forma de força muito semelhante à eletricidade. Da mesma forma, quando sabemos que o calor animal é originado, na sua maior parte, por combinações químicas do organismo, compreendemos que se desenvolve como em outras operações químicas. Quando dizemos que a absorção do quilo através das paredes intestinais é um caso de ação osmótica, e que as transformações sofridas pelos alimentos durante a digestão são semelhantes às mudanças artificiais que é possível criar em laboratórios, consideramos inegavelmente conhecida, em parte ao menos, a natureza desses fenômenos. Vejamos então o que tudo isso realmente vale. Voltemos à questão geral e balizemos os pontos a que nos conduziram essas sucessivas interpretações. Começamos com fatos particulares e concretos, explicando-os e depois explicando fatos mais gerais em que se incluem, chegando depois a fatos ainda mais gerais: a um princípio geométrico, que é uma propriedade do espaço, uma lei da mecânica; a uma lei de equilíbrio dos fluidos, às verdades da física, da química, da termologia, da eletricidade. Tomamos por pontos de partida fenômenos particulares, os referimos a grupos de fenômenos cada vez mais extensos, e em o fazendo obtivemos soluções que nos parecem tanto mais profundas quanto mais longe levamos a operação. Dar explicações ainda mais profundas seria apenas dar novos passos na mesma direção. Se se pergunta, por exemplo, por que a lei de equilíbrio das alavancas é o que é, ou por que o equilíbrio e o movimento dos fluidos obedecem às leis conhecidas, responderiam os matemáticos com um princípio que abrange todos esses casos: o das velocidades virtuais. De maneira análoga, o conhecimento profundo das combinações químicas de calor, de luz, de eletricidade etc. supõe que esses fenômenos têm sua razão de ser que, uma vez descoberta, inevitavelmente nos revelará como um fato geral relativo à constituição da matéria, do qual os fatos químicos, elétricos e termológicos nada mais são do que manifestações distintas. Pois bem: é essa operação limitada ou ilimitada? Podemos ir sempre em crescendo, para explicar as diferentes classes de fatos, passando a outras classes ainda mais gerais, ou chegaremos a uma última classe, a mais geral de todas? A suposição de que essa marcha será ilimitada, se alguém puder admiti-la, implica em que, para se obter uma explicação primária necessitaríamos um tempo infinito, não sendo assim possível tal explicação. A conclusão inevitável de que a operação é limitada (conclusão que prova, a um só tempo, ser limitado o campo de nossas observações e ser o decréscimo do número de generalizações acompanhado necessariamente do incremento de sua extensão), implica que o fato último não pode ser explicado, não pode ser compreendido. Com efeito, se as generalizações, cada vez mais extensas, que constituem o progresso das ciências não são mais que reduções sucessivas de verdades particulares a verdades gerais e destas a outras ainda mais gerais, e assim sucessivamente, resulta que, não podendo referir-se a outra mais geral, a que seja a mais geral de todas, será, portanto, inexplicável e incognoscível. Logo, toda explicação nos leva ao inexplicável, como deve ser a verdade mais extensa que possamos alcançar. A palavra compreender deve, pois, mudar de sentido, antes que o fato último possa chegar a ser compreendido. § 24. Essa conclusão que se nos impõe fatalmente, como vimos, quando analisamos o produto do pensamento, tal como objetivamente se apresenta nas generalizações científicas, se nos impõe também se analisamos a própria operação de pensar, tal como subjetivamente se apresenta à consciência. A demonstração do caráter obrigatoriamente relativo de nosso conhecimento, como consequência da natureza do entendimento, nos é dada, da forma mais rigorosa, por Sir William Hamilton. Não podemos fazer melhor que extrair de seu Philosophy of the Unconditioned a passagem que contém a substância de sua doutrina. "O espírito" - escreve - "pode conceber, e por consequência conhecer, apenas o limitado, e o condicionalmente limitado. O incondicionalmente ilimitado ou o Infinito e o incondicionalmente limitado, o Absoluto, na verdade não podem ser positivamente construídos pela mente. Não podem ser concebidos a não ser que se faça abstração das condicionantes sob as quais se realiza todo conhecimento. Por conseguinte, a noção do Incondicionado é puramente negativa, e negativa de ser sequer concebível. Por exemplo: por um lado não podemos imaginar um todo absoluto, ou seja, um todo tão grande que não possamos imaginar um maior, do qual seja ele uma parte, nem uma parte absoluta, isto é, uma parte tão pequena que não possamos considerá-la como um todo relativo, divisível em pequenas partes menores. Por outro lado, não podemos na verdade positivamente representar, imaginar ou construir na mente (no caso compreensão e imaginação são sinônimos) um todo infinito, pois apenas poderíamos fazê-lo realizando em nosso pensamento a síntese infinita de todos os finitos, o que demandaria um tempo infinito. O mesmo raciocínio nos impede de seguir com o pensamento uma divisibilidade infinita. E o mesmo resultado obtemos relativamente à finitude ou limitação seja no espaço, seja no tempo, seja no grau dos vários atributos físicos ou espirituais. A negação incondicional e a afirmação incondicional da limitação, ou em outras palavras, o Absoluto e o Infinito propriamente ditos, são, então, para nós inconcebíveis. "Uma vez que o condicionalmente limitado, que chamaremos, abreviando, de condicionado, é o único objeto possível de conhecimento e de pensamento positivo, o pensar supõe necessariamente condições. Pensar é então condicionar, e a limitação condicional é a lei primeira da possibilidade de pensamento. Pois do mesmo modo que um galgo não pode saltar sua sombra, ou, tomando um exemplo mais apropriado, como uma águia não pode voar fora da atmosfera que a sustenta, o espírito humano não pode abandonar a limitada esfera em que e por que é possível, exclusivamente, O pensamento se realizar. Isto não é senão o condicionado, pois como havíamos dito, pensar é condicionar. O Absoluto só é concebido como uma negação do concebível e tudo que conhecemos nos é concebido como Conquistado ao infinito imaterial e informe. (O autor toma esse verso de empréstimo ao Paraíso perdido (m.12), de John Milton: "Won from the void and formless infinite). "Não devemos nos admirar ao ser posto em dúvida que nosso pensamento só alcance o que é condicionado. Com efeito, o pensamento não pode atravessar a esfera da consciência. E essa não é possível a não ser pela antítese entre sujeito e objeto do pensamento, conhecidos apenas por sua correlação e limitação mútuas. Além disso, tudo que conhecemos de sujeito e objeto, espírito e matéria, nada é além do que cada um desses termos contém de particular, de múltiplo, de diferente, de modificado ou de fenomenal. Em nosso julgamento, a consequência dessa doutrina é que a Filosofia, se quer ver em si própria algo mais do que a ciência do condicionado, torna-se impossível. Acreditamos que, partindo do particular, jamais poderemos, mesmo em nossas mais altas generalizações, pairar-nos sobre o finito; que nosso conhecimento do espírito e da matéria não pode ultrapassar o conhecimento das manifestações relativas a uma existência inacessível em si mesma à Filosofia, como se reconhece tanto mais quanto mais conhecimento se adquire. É o que Santo Agostinho afirmava, quando dizia: Cognoscendo ignorari et ignorando cognosci (Conhecendo se ignora, ignorando se conhece). "O condicionado é um meio entre dois extremos, dois incondicionados que mutuamente se excluem, dos quais nenhum pode ser concebido como possível, mas um deve ser admitido como necessário, em virtude dos princípios de contradição e alternativa. Nesse sistema, se a razão é débil, ao menos não decepciona, não se diz que o entendimento imagine como igualmente possíveis duas proposições contraditórias; se diz que é incapaz de compreender a possibilidade de um nem de outro desses extremos. Contudo, a razão se vê obrigada a admitir a verdade de um deles, em virtude de sua mútua e mesma contradição. Com isto recebemos uma saudável lição, aprendendo que a capacidade de nosso pensamento não é a medida do existente e podendo preservar-nos do erro de acreditar que o domínio de nosso conhecimento se estende até o horizonte de nossa fé. Assim, desde o momento em que tomamos consciência de nossa incapacidade para conceber o absoluto e o infinito, uma revelação maravilhosa nos inspira a crença de que existe algo incondicionado fora da realidade compreensível." Mesmo que a demonstração anterior pareça clara e decisiva, se estudada detidamente, está exposta em termos tão abstratos, que o leitor seguramente terá dificuldade de entendê-la. O senhor Mansel deu, em sua já citada obra The Limits of Religious Thought, uma demonstração mais simples, acompanhada de exemplos e aplicações que facilitam sua compreensão. Vamos nos limitar a dela extrair os parágrafos seguintes, que bastam para o fim que buscamos: "A própria ideia de conscientização de qualquer maneira que se manifeste, necessariamente implica em distinção entre um objeto e outro. Ser consciente é sê-lo de alguma coisa, e essa alguma coisa não pode ser conhecida no que é senão distinguindo-a do que não é. Mas, distinção é o mesmo que limitação, pois para que um objeto se distinga de outro, é preciso que possua algum atributo que o outro não possua, ou vice-versa. Pois bem: o Infinito não pode se distinguir, como tal, do Finito, evidentemente, pois não se pode dizer que falta ao Infinito uma qualidade que o Finito possua. Essa ausência seria uma limitação. Não podemos também os distinguir por um atributo que o Finito não possua e que possua o Infinito, pois não pode um finito ser parte constituinte de um todo infinito, devendo os caracteres diferenciais ser infinitos, nada tendo em comum com o finito. Estamos desde já frente a uma primeira impossibilidade, pois essa segunda infinidade (de caracteres) distinguir-se-ia do finito pela ausência de propriedades que esse último possuí. O conceito de infinito implica necessariamente em contradição, pois supõe que o que não pode ser tomado senão como ilimitado e sem diferenças deve ser reconhecido por sua limitação e por suas diferenças. "Tal contradição, completamente inexplicável na hipótese de ser o infinito um objeto real cognoscível para o homem, se explica perfeitamente quando se considera o mesmo infinito como a negação de todo pensamento, pois se este é todo limitação, se tudo que conhecemos é, pelo mesmo fato de ser conhecido, finito, o infinito é para o homem apenas uma palavra que designa a ausência de condições para pensar; dizer que se tem um Conceito do Infinito é afirmar e negar, ao mesmo tempo, essas condições. A contradição que descobrimos nesse conceito não é outra senão a que nós mesmos impusemos, supondo a cognoscibilidade do incognoscível. A condição de todo ato de consciência é a distinção, e a condição de distinção é a finitude. Não podemos ter consciência de um Ser em geral que não seja algum ser em particular; uma Coisa pensada é uma coisa distinta de outras. Ao supor a possibilidade de um objeto de consciência infinito, supomos que ele seja a um só tempo finito e infinito, limitado e ilimitado, que é alguma coisa pois se não o fosse não poderia ser objeto do pensamento, e ao mesmo tempo é nada, pois já dissemos que o infinito é uma palavra vazia de sentido. "Um segundo caráter dos atos de pensamento é de que não são possíveis a não ser sob a forma de relação. São necessários um Sujeito, ou pessoa consciente, e um Objeto ou coisa de que o sujeito tenha consciência. Esta não pode existir sem a união desses dois fatores. E nessa união cada um existe apenas com relação ao outro. O sujeito o é, enquanto conhece o objeto, e este o é apenas quando conhecido pelo sujeito. A anulação de um ou outro significa o desaparecimento da própria consciência. Do mesmo modo, é evidente que a percepção (suposta) do Absoluto, implica em contradição, tal como acontece com o infinito. Para ter consciência do Absoluto, como tal, é preciso chegar a conhecer que um objeto dado em relação com nossa consciência é idêntico a outro objeto que, por sua própria natureza, existe sem relação com a consciência. Mas para conhecer essa identidade, faz-se mister poder comparar os dois objetos, e semelhante comparação é contraditória consigo mesma. Pois deveríamos fazer essa comparação entre dois objetos, um dos quais nos é conhecido e outro desconhecido, sendo que toda comparação supõe o conhecimento dos termos comparados. É, pois, evidente que, mesmo quando pudéssemos ter consciência do Absoluto, não poderíamos conhecê-lo em sua essência, e como não podemos ter consciência de um objeto senão conhecendo o que é, isso equivale a dizer que não podemos ter consciência do Absoluto. Como objeto de consciência, toda coisa é necessariamente relativa, e fora da consciência, não há possibilidade de saber o que uma coisa possa ser. "Essa contradição admite também a mesma explicação que a anterior. Nossa noção completa da existência é forçosamente relativa, porque é da existência tal e qual a concebemos. Mas a Existência, como concebida por nós, não é outra coisa senão o nome dos diversos modos ou formas sob as quais nos são dados a conhecer os objetos; um termo geral que engloba uma variedade de relações. Por outra parte, o Absoluto é uma palavra que não expressa um objeto de pensamento, mas a negação das relações que constituem o pensamento. Supor a existência absoluta como objeto de pensamento é supor que continua existindo uma relação cujos termos já não existem. Um objeto de pensamento existe como tal em e por suas relações com alguém que pensa, enquanto o Absoluto é, por sua essência mesma, independente de toda relação. O Conceito de Absoluto implica na presença e ausência simultaneamente da relação que constitui o pensamento, e todos os esforços que fazemos para compreendê-lo nada mais são que formas modificadas da contradição, já tantas vezes evidenciada. Isso não implica que o Absoluto não possa existir, mas sim que, em nossas condições atuais de pensamento, não nos é possível imaginá-lo como existente." Vamos evidenciar que se pode chegar à mesma conclusão geral partindo da condição fundamental do pensamento que Sir W. Hamilton omitiu, e que também o senhor Mansel não levou em conta. Uma condição que, desde outra perspectiva, já havíamos contemplado na última seção. Cada ato completo de conscientização, além de distinção e relação, também implica em semelhança. Antes que uma manifestação mental chegue a se constituir em ideia, um elemento de conhecimento, é preciso que a reconheçamos como diversa de manifestações anteriores, com as quais mantenha uma relação de sucessão, mas da mesma espécie que outras. Essa organização de mudanças que constituem o pensamento implica em uma contínua integração e uma diferenciação também contínua. Se cada nova impressão mental fosse apenas percebida como diferente das anteriores, se não houvesse algo mais que uma cadeia de impressões, onde cada uma fosse completamente distinta das demais, nossa consciência seria um caos. Para formar essa consciência bem ordenada, que denominamos inteligência, é preciso assimilar cada impressão a outras anteriores; é necessário classificar, ao mesmo tempo, os estados sucessivos do espírito e as relações entre eles. Então, toda classificação implica em não apenas separar o distinto, mas também em juntar o que seja semelhante. Dizendo de outro modo, não é possível um conhecimento completo que não seja acompanhado de um reconhecimento. Não se objete que se tal fosse certo não seria possível um primeiro conhecimento, nem por consequência qualquer outro, pois cabe afirmar que o conhecimento propriamente dito forma-se pouco a pouco; que durante o primeiro período da inteligência antes que as sensações produzidas pelo mundo exterior sobre nós tenham sido postas em ordem, não há conhecimentos propriamente ditos, pois como podemos observar nas crianças, os conhecimentos formam-se lentamente, desprendendo-se em desenvolvimento da primitiva confusão à consciência, à medida em que as experiências se agrupam, à medida que as sensações mais frequentes e suas mútuas relações se tornam familiares o suficiente para que possam ser reconhecidas cada vez que se manifestam. Em vão se objetará que se a cognição supõe recognição, não se pode ter conhecimento nem por um adulto, de um objeto que pela primeira vez impressiona, pois se pode responder que se esse objeto não é assimilável a outros já vistos, não é conhecido, e se o é, pode ser estabelecida tal assimilação, tal semelhança. Expliquemos esse paradoxo: um objeto pode ser classificado de diferentes maneiras com diferentes graus de exatidão. Tomemos, por exemplo, um animal desconhecido para nós; se não podemos referi-lo a uma espécie ou a um gênero conhecido, podemos talvez incluí-lo em uma ordem ou classe já estabelecidas, e se nem isso é possível, por ser muito anormal, saberemos ao menos se é vertebrado ou inverte brado, se é um organismo desses que dificilmente se pode dizer tratar-se de animal ou vegetal, se se trata ao menos de um ser vivo, e mesmo que não tenha bem marcados os caracteres da organização, não se deixará de conhecê-lo e reconhecê-lo como um ser material. Conclui-se que algo não é perfeitamente conhecido senão quando o é em todas as suas relações de semelhança com coisas já conhecidas, e que permanece desconhecido em proporção ao número de relações em que difira de algo já conhecido. Portanto, quando não houver qualquer atributo comum com as outras coisas, deve estar fora dos limites do conhecimento humano. Examinemos os corolários no que nos concerne. Todo conhecimento do Real, em sua diferenciação do Fenomenal, do aparente, deve acomodar-se às leis do conhecimento geral. A Causa Primeira, o Infinito, o Absoluto, devem ser classificados, para que possam ser conhecidos; devem ser pensados como tal ou qual espécie, se serão pensados positivamente. Podem ser de espécie semelhante à dos objetos que os sentidos nos revelam? É evidente que não. Entre o criador e a criatura é preciso que haja uma distinção superior às distinções ou diferenças que separam as diversas divisões da criatura. O incausado não pode ser parecido ao causado; há entre ambos, como indicam os nomes, uma radical oposição. O Infinito não pode ser incluído no mesmo grupo com algo finito, pois seria assim considerado como não infinito. Também é impossível colocar o Absoluto e algo relativo na mesma categoria, enquanto se defina o Absoluto como o que não tem nenhuma relação necessária. Diremos que o real, mesmo se inconcebível quando classificado como aparente, pode ser pensado como classificado como si próprio? Essa suposição é tão absurda como a outra. Supõe a pluralidade da Causa Primeira, do Infinito, do Absoluto, o que é uma contradição. Com efeito, só pode existir uma Causa Primeira, pois a existência de mais de uma implicaria na de alguma coisa que as duas ou mais necessitariam e essa alguma coisa seria então a Causa Primeira. A hipótese da existência de mais de um Infinito destrói-se por si, como se evidencia pela lembrança de que esses infinitos se limitariam, e assim não seriam infinitos. E por fim, um Absoluto que não existisse sozinho, mas com outros absolutos, não seria absoluto, mas relativo. Por conseguinte, o incondicionado, não podendo se classificar com outro incondicionado nem com formas do condicionado, é inclassificável, logo, será incognoscível. Existem, logo, três meios de deduzir a relatividade de nosso conhecimento, da mesma natureza do pensamento. A análise demonstra, e toda proposição mostra objetivamente que todo pensamento implica em relação, diferença, semelhança. Tudo aquilo que não nos apresenta essas três características não é suscetível de ser conhecido; por isso, não o é o incondicionado, que padece da falta dos três. § 25. De um outro ponto de vista, ainda, podemos discernir essa grande verdade. Se em vez de examinar diretamente nosso poder intelectual, tal como se manifesta no ato de pensar, ou indiretamente, tal como se manifesta no pensamento expresso em palavras, prestamos atenção à conexão entre a consciência e o mundo, chegamos à mesma conclusão. Na verdadeira definição da Vida, quando reduzida à sua forma mais abstrata, essa implicação definitiva torna-se evidente. Todas as ações vitais, consideradas não separadamente, mas em seu conjunto, têm o propósito final de equilibrar certos processos que nos são internos com outros, que nos são externos. Há forças exteriores, sempre ativas, que tendem a levar a matéria, constituinte dos corpos orgânicos, ao estado de equilíbrio estável em que se encontram os corpos inorgânicos; e existem as forças interiores, que se opõem a essa tendência das forças exteriores, e nada mais são as mudanças incessantes que constituem a Vida do que os efeitos necessários da existência desse antagonismo. Por exemplo: manter a postura ereta exige que se neutralizem certos pesos; os membros e demais órgãos, pelo efeito da gravidade, tendem a fazer cair o corpo, e há necessidade, para sua sustentação, da contração de certos músculos; em outras palavras, o grupo de forças que, se agisse sozinho, nos faria cair, deve ser equilibrado por outro grupo de forças. Outro exemplo: para que nossa temperatura se mantenha num patamar constante, o calor que perdemos pela radiação e troca com o meio ambiente deve ser substituído por igual quantidade, provido por operações internas, e à medida que as variações atmosféricas provoquem maior ou menor perda de calor, deve também a produção interna variar de igual maneira. E o mesmo acontece com todas as ações orgânicas em geral. Nos graus inferiores da escala animal vemos que esses atos de equilíbrio entre forças internas e externas são diretos e simples; em uma planta, a vitalidade consiste apenas em operações químicas e osmóticas, relacionadas com a existência do calor, da luz, da água e do gás carbônico ambiente. Já nos animais as operações vitais são mais complexas; os materiais necessários para o crescimento e as reposições não estão, como no caso das plantas, em todos os lugares; ao contrário, estão dispersos e sob as formas mais diversas, sendo necessário encontrá-los, colhê-los e prepará-los para a devida assimilação. Daí a necessidade da locomoção, dos sentidos, dos meios de apreensão e destruição e de um aparelho digestivo adequado. Advirta-se que essas sucessivas complicações fazem apenas ajudar a manter em equilíbrio a balança orgânica e se opor às forças físicas e químicas que tendem a desequilibrá-la. Advirta-se também que enquanto essas sucessivas complicações facilitam a adaptação fundamental das ações internas às externas, não são elas mesmas outra coisa senão novas adaptações das forças internas às externas. Pois os movimentos com que um animal carnívoro persegue sua presa e os que esta desenvolve para escapar, que são além de mudanças do organismo que luta contra outras mudanças do meio ambiente? Que é a operação complexa de degustar um alimento senão uma correlação particular das modificações nervosas com as propriedades físicas daquele alimento? O que é a operação pela qual o alimento, uma vez ingerido, é condicionado para sua assimilação, senão uma série de ações mecânicas e químicas em correlação com as propriedades análogas daquele alimento? Concluímos que se a Vida, em sua mais simples expressão, é a correspondência de certas ações físico-químicas internas, com outras análogas externas, cada grau que ascendemos para as regiões superiores da Vida consiste em uma garantia mais segura desta correspondência primitiva pelo estabelecimento de outras. Se despimos esse conceito de todo o supérfluo, se o reduzimos à sua expressão mais abstrata, vemos que a vida pode ser definida como uma adaptação contínua das relações internas às relações externas. Deste modo definida a Vida, estão inclusas na definição tanto a vida física quanto a psíquica. Compreendemos então que o que chamamos inteligência aparece quando as relações externas a que se acomodam as internas são já muito numerosas, complexas e separadas no tempo e no espaço. Compreendemos também que todo o progresso da inteligência consiste essencialmente no estabelecimento das adaptações mais variadas, mais completas e mais complexas, podendo todo progresso científico reduzir-se a relações mentais de coexistência e de consequência, coordenadas de modo que correspondam exatamente a certas relações análogas do exterior. Uma larva que se arrasta ao acaso e encontra o caminho que a leva a uma planta de certo odor e começa a comê-la, tem dentro de si uma relação orgânica entre uma impressão particular e uma série particular de ações correspondendo à reação externa entre odor e espécie da planta. O pardal, guiado por uma correlação mais complexa de impressões, sobre ele produzidas pela cor, forma e movimentos da larva; guiado ainda por outras correlações como as que medem a distância e a posição da larva, combina certos movimentos musculares correlativos para capturá-la. O falcão, que voa mais alto, é atraído a uma enorme distância pelas relações de forma e movimento do pardal, e, segundo estes, também ele combina séries muito mais complicadas de reações nervosas e musculares correlativas, a fim de capturar o pequeno pássaro, o que consegue se as séries estão bem combinadas. Para o caçador, o voo do falcão está relacionado à destruição de outros pássaros, segundo lhe dita a experiência. Conhece ele ainda outra correlação, entre suas impressões visuais e o alcance de sua espingarda, tendo ciência de que deverá apontar um pouco à frente do pássaro que voa, para que possa acertá-lo. Se imaginamos agora, mantendo-nos no assunto, sobre a fabricação da espingarda, surge uma variedade de relações. A relação entre cor e densidade de um mineral e suas jazidas nos dizem que contém ferro. Para extraí-lo devemos pôr em correlação certas ações com as afinidades do ferro, do carvão e da cal, a temperaturas elevadas etc. Se queremos que um químico nos explique sobre a queima da pólvora, que um matemático nos mostre a teoria dos projéteis, veremos também que as relações, tanto especiais quanto gerais de coexistência e sucessão entre as propriedades, movimentos e etc. da pólvora e do projétil serão as únicas que aqueles sábios poderão nos ensinar. Diremos por último que aquilo que denominamos verdade (os princípios a que devemos obedecer para conseguir nossos fins e conservar a vida) nada é senão a correspondência exata entre as relações objetivas e subjetivas, enquanto o erro, que leva à falta, e, por conseguinte à morte, nada mais é senão a ausência dessa exata correspondência. Assim, se a Vida em todas as suas manifestações, inclusive a inteligência sob suas formas mais sublimes consiste em adaptações contínuas das relações internas às relações externas, fica claro o caráter essencial e necessariamente relativo de todo conhecimento. Sendo a noção mais simples uma correlação entre certos estados subjetivos conexos e certos agentes objetivos também em mútua conexão, e as noções mais complicadas, correlações entre conexões mais complicadas de nossos estados e conexões mais complicadas dos agentes externos, fica claro que a ação de pensar por longe que seja levada, não pode submeter ao domínio da Inteligência senão os estados desta ou dos próprios agentes. Nunca conhecemos mais que coisas simultâneas e coisas consecutivas, e, portanto, ainda que levemos nossos conhecimentos até seus limites, nunca conhecemos mais que coexistência e sucessões. Se todo ato de conhecimento é de formação na consciência de uma relação paralela a outra relação externa, é evidente a relatividade do conhecimento. Se pensar é estabelecer relações, nenhum pensamento pode expressar mais que relações. Não devemos nos esquecer que o objeto ao qual está limitada nossa inteligência é também o único a que deve se dedicar; que o único conhecimento que podemos aplicar será o que possamos plenamente alcançar. Para conservar a correspondência entre as ações internas e as externas, correspondência que constitui em cada momento o viver, e o meio de sua continuação nos momentos seguintes, só nos é necessário conhecer os agentes que nos impressionam em sua coexistência e sucessão, e de nenhum modo conhecê-los em sua essência. Sejam x e Y duas propriedades constantemente unidas em um objeto externo, e A e B os efeitos que produzem em nossa consciência. Suponhamos que enquanto a propriedade x nos produz o estado mental indiferente A, a propriedade y nos origina o estado doloroso B (correspondendo a uma lesão orgânica). Tudo o que precisamos saber é que sendo x sempre unido a y no exterior, A irá também sempre unido a B em nosso interior, de maneira que ao produzir-se A pela presença de x, a ideia de B ocorrerá em seguida e determinará movimento para evitar, se possível, o efeito B de Y. A única coisa que necessitamos saber é que A e B e a relação que os une correspondem sempre à de x e Y e sua mútua relação. Não nos interessa saber se A e B são semelhantes a x e Y OU não. Nem sua identidade nos favorece e nem sua diferença nos prejudica. No mesmo fundo da vida encontramos a relatividade de todo conhecimento. Não apenas a análise das ações vitais em geral nos conduz a deduzir que as coisas em si não podem ser conhecidas, como também nos mostra a inutilidade desse conhecimento, ainda que fosse ele possível. § 26. Resta a questão final - o que devemos dizer no que concerne ao que está além do conhecimento? Devemos limitar-nos à consciência dos fenômenos? Nossas pesquisas devem ter como limite tudo que não seja relativo? Ou devemos acreditar em algo além? A estas questões a lógica responde: os limites de nossa inteligência nos confinam rigorosamente ao relativo; o que fica além, não pode ser imaginado a não ser como uma pura negação ou uma pura não existência. "O Absoluto não é concebido a não ser como uma negação do concebível", escreveu Sir W. Hamilton. "O Absoluto e o Infinito" - diz o senhor Mansel- "são como o são o Inconcebível e o Imperceptível, nomes que não designam um objeto de pensamento ou de consciência, mas a ausência de condições sob as quais a consciência é possível." Pode-se concluir de cada uma dessas afirmações que, uma vez que a razão não nos autoriza a afirmar a existência positiva do que só é cognoscível a título de negação; razoavelmente não podemos afirmar a existência positiva do que exista além dos fenômenos. Essa conclusão parece inevitável, mas acredito que envolve um grave erro. Uma vez admitida a premissa, torna-se inevitável a conclusão. Mas a premissa, tal como a apresentam Hamilton e Mansel, não é rigorosamente verdadeira. Citamos nas páginas precedentes, e os aceitamos, os argumentos com que os ditos autores demonstram que o Absoluto é incognoscível e os reforçamos com outros mais decisivos. Contudo, devemos fazer uma restrição que nos ponha a salvo do ceticismo, onde sem ela fatalmente cairíamos. Conquanto não abandonemos o aspecto puramente lógico da questão, somos forçados a aceitar na íntegra as proposições anteriormente citadas, nesse campo indiscutíveis. Mas se as consideramos de modo mais amplo, sob o aspecto psicológico, vemos que essas proposições só expressam imperfeitamente a verdade, omitindo, ou melhor, excluindo um fato da mais alta importância. falemos especificamente: ao lado de pensamentos completos, e de incompletos que são suscetíveis de serem completados, há pensamentos que não é possível completar, e que não são, por isso, menos reais, pois são afecções normais da inteligência. Assinalemos agora que todos os argumentos que nos serviram para demonstrar a relatividade de todo conhecimento supõem clara e distintamente a existência positiva de algo além do relativo. Dizer que não podemos conhecer o Absoluto é afirmar implicitamente sua existência. Quando negamos que se possa conhecer sua essência, admitimos tacitamente sua existência, o que prova sua presença no espírito, não como nada, mas como alguma coisa. Coisa similar acontece em toda a série de raciocínios que estabelecem a doutrina do relativo. O Real, o que é por si mesmo, designado por todas as partes como antítese do fenomenal, é sempre pensado, necessariamente, como Real. É rigorosamente impossível conceber que nosso conhecimento não tenha por objeto mais que aparências, e não conceber ao mesmo tempo uma realidade, da qual essas aparências sejam a representação. Com efeito, toda aparência é ininteligível sem a realidade. Eliminemos de nossos raciocínios as palavras Incondicionado, Infinito, Absoluto, e seus equivalentes, e coloquemos em seu lugar "negação do concebível" ou "ausência das condições necessárias para conhecer", e o raciocínio será ininteligível. Para que cada uma das proposições de que o raciocínio se completa seja concebível é preciso que o Incondicionado esteja nele representado como positivo e não como negativo. Mas então, como se pode deduzir legitimamente que nosso conceito do Incondicionado seja negativo? Um raciocínio que designa certo sentido a uma palavra e em seguida demonstra que essa palavra não tem sentido, é um raciocínio vicioso. É, pois, evidente que a demonstração da impossibilidade de uma representação definida do Absoluto supõe certamente sua representação indefinida. Talvez a melhor maneira de mostrar que pelas necessárias condições de pensamento, somos obrigados a formar uma ideia positiva, ainda que vaga, do que está fora dos limites da consciência seja analisando nosso conceito da antítese entre o Relativo e o Absoluto. Ninguém põe em dúvida que as antinomias do pensamento, no Todo ou na Parte, no Igualou no Desigual, no Singular e no Plural, são necessariamente concebidas como correlativas: a concepção de uma parte é impossível sem conceber o todo; não pode haver ideia de igualdade sem a ideia de desigualdade. Pois é fácil também reconhecer que o relativo não é concebido por sua vez senão como em oposição ao não relativo ou Absoluto. fiel à posição que havia adotado, e que já citamos, Sir W. Hamilton sustenta, contudo, em sua crítica afiada, e irrefutável na maior parte, do sistema Cousin, que um desses termos correlativos não é mais que a negação do outro. "Os termos correlativos" - diz ele - "se supõem certamente um ao outro, mas não são igualmente reais e positivos. No pensamento, os termos contraditórios se implicam necessária e mutuamente, pois seu conhecimento é uno. Mas longe de garantir a realidade de um deles, a do outro nada mais é que sua negação. Assim, toda noção positiva (o conceito de uma coisa que existe) supõe uma noção negativa (o conceito de uma coisa que não existe), e a mais elevada noção positiva, a do concebível, tem sua correlativa na do inconcebível. Mas ainda que se suponham reciprocamente, só a positiva é a real; a negativa é apenas a supressão da outra, e em sua maior generalidade, a supressão do próprio pensamento." Pois bem, essa afirmação que de dois termos contraditórios o negativo é apenas a supressão do outro, não é mais que sua negação; essa afirmação declaramos não ser verdadeira. Para os correlativos Igual e Desigual, é evidente que o conceito negativo contém algo mais que a negação do positivo, pois as coisas de que se nega a igualdade, nem por isso desaparecem da consciência. Sir W. Hamilton deixou de observar que o mesmo acontece para os correlativos cuja negação é inconcebível, no sentido estrito da palavra. Tomemos por exemplo o Limitado e o Ilimitado. Nossa noção do Limitado se compõe: primeiro, do conceito de algum ser; depois, dos limites do mesmo, tal e qual o conhecemos. Em sua antítese, a noção do Ilimitado, conceito dos limites desaparece, mas não o de algum ser. É verdade que faltando conceito de limites, tal noção não é um conceito propriamente dito, mas é também verdade que ela permanece como um modo de pensamento. Se neste caso o contraditório negativo não fosse, como se diz, mais que uma negativa do outro, ou seja, uma não entidade, resultaria que se poderiam empregar todos os contraditórios negativos, indistintamente, uns pelos outros. Dever-se-ia, por exemplo, poder pensar o Ilimitado como antítese do Divisível, e o Indivisível como antítese do Limitado. Ao contrário, a impossibilidade de fazer desses termos tal uso prova que na consciência o Ilimitado e o Indivisível são distintos de qualidade, sendo, portanto, positivos e reais, pois não pode haver distinção entre dois nadas. O erro (em que caem naturalmente os filósofos que se ocupam em demonstrar os limites e condições da consciência) consiste em supor que esta consciência só contém limites e condições, sem ter em conta as coisas limitadas e condicionadas. Também se esquece de que existe algo que forma como que a matéria-prima do pensamento definido, e que permanece depois de desaparecerem as qualidades definidas que aquele havia recebido da inteligência. Pois bem: mudando nomes, tudo isso se aplica à última e mais elevada das antinomias, a do Relativo e Absoluto. Temos consciência do Relativo como de uma existência sujeita a condições e limites; é impossível conhecer esses limites e essas condições, separadas de algo a que pertençam; a supressão desses limites e condições não é, de modo algum, do algo a que pertenciam. Deve haver, então, um resíduo, um conceito de algo indefinido e incondicionado, que constitui nosso conceito de não relativo, do Absoluto. Mesmo que seja impossível dar a esse conceito uma expressão quantitativa e qualitativa qualquer, nem por isso é menos certo que se nos impõe como um elemento positivo e indestrutível de nosso pensamento. Esta verdade fica mais evidente quando se observa que nosso conceito do Relativo desaparece se supõe o do Absoluto como uma pura e simples negação. Os autores já citados admitem, ou melhor, sustentam, que os contraditórios não podem ser conhecidos a não ser em sua mútua relação; que a Igualdade, por exemplo, não é concebida separada de seu correlativo, a Desigualdade, e, portanto, que o próprio Relativo não pode ser concebido a não ser em oposição ao não relativo; que o conceito de toda relação implica o conceito de seus dois termos. Pedir-nos o conceito da relação entre o Relativo e o Absoluto, sem ter consciência de ambos, é, citando as mesmas palavras do senhor Mansel, ainda que dando a elas distinta aplicação, pedir a comparação de algo conhecido com algo desconhecido, e sendo a comparação um ato de consciência, não será possível sem que tenhamos a consciência de ambos os termos comparados. Que foi feito, então da afirmação de que "o Absoluto não é concebido a não ser como uma pura negação do concebível ou como a ausência de todas as condições do pensamento"? Se o Absoluto não se oferece à consciência a não ser como pura negação, a relação entre ele e o Relativo é ininteligível, porque um dos termos da relação está ausente da consciência, e se a relação não é inteligível, o Relativo também não o é, pois falta sua antítese, resultando na anulação de todo o pensamento. Devemos agora salientar que os próprios Sir W. Hamilton e o senhor Mansel admitem claramente, em outras passagens, que nosso conceito do Absoluto, mesmo que indefinido, é positivo, e não negativo. O parágrafo já citado de Sir W. Hamilton, em que afirma que "o Absoluto não é concebido a não ser como uma negação do inconcebível", termina com a seguinte advertência: "Desde que temos consciência de nossa incapacidade para conceber nada fora do relativo, do finito, uma revelação extraordinária nos inspira uma invencível crença na existência de algo incondicionado que ultrapassa a esfera de toda a realidade compreensível". A última dessas duas afirmativas admite o fato que a primeira nega. Pela interpretação que deu às leis do pensamento, Sir W. Hamilton viu-se obrigado a concluir que nosso conceito do Absoluto é uma pura negação. Contudo, acha que existe na consciência uma convicção irresistível da "existência real" de "algo incondicionado". Se livra da inconsequência em que se coloca com essa declaração dizendo que "recebemos a inspiração de uma revelação extraordinária" querendo talvez dar a entender que essa inspiração nos vem de uma maneira sobrenatural ou de outro modo fora das leis do pensamento. O senhor Mansel se vê arrastado à mesma inconsequência. De fato, quando diz "pela constituição de nosso espírito nos vemos obrigados a crer na existência de um ser absoluto e infinito, que essa crença parece se impor sobre nós como complemento de nossos conceitos de relativo e finito" implicitamente declara que o conceito desse ser é positivo, não negativo; admite, de modo tácito, que estamos obrigados a considerar o Absoluto como algo mais que uma negação e que o conceito que dele temos não é "tão somente a ausência de condições necessárias para que seja possível o pensamento." Sirva-nos de desculpa a suprema importância dessa questão, se continuamos pedindo a atenção do leitor com o fito de esclarecer dificuldades que ainda se apresentam. Estudando a operação de pensar, compreender-se-á melhor o caráter essencialmente positivo de nosso conceito do Incondicionado que, como vimos, resulta de uma lei fundamental do pensamento. Para provar a relatividade de nosso conhecimento se diz "que não podemos conceber o Espaço e o Tempo como limitados nem como ilimitados". Isto porque desde o momento em que imaginamos um limite para o tempo ou o espaço, produz-se o conceito de um tempo ou espaço além desse limite. Esse espaço ou esse tempo mais distante, se não o consideramos definido, o consideramos, contudo, como real; se dele não formamos um conceito propriamente dito, posto que não podemos limitá-lo, temos, não obstante em nosso espírito, a informe substância desse conceito. O mesmo sucede com nosso conceito de Causa: não temos mais capacidade para adquirir a ideia completa, definida, de Causa, do que de Tempo e Espaço; por conseguinte, devemos pensar a Causa que excede os limites de nosso pensamento como positiva, ainda que indefinida. De igual maneira que quando pensamos em um espaço limitado se forma então o conceito rudimentar de um espaço além desses limites, quando pensamos em uma causa definida, se forma um conceito rudimentar da causa indefinida. Em um e outro caso, esse conceito rudimentar é semelhante, no fundo, a seu correlativo, mas é informe. O impulso do pensamento nos precipita certamente sobre o condicionado para o incondicionado, e isso fica em nós para sempre, como o fundo ou corpo de um pensamento ao qual não podemos dar forma. Daí nossa firme crença na realidade objetiva, crença que a crítica metafísica não pode fazer vacilar nem por um instante. Poder-se-ia dizer-nos que esse pedaço de matéria que contemplamos como existente não pode na verdade ser reconhecido fora de nós mesmos, que só podemos conhecer as impressões produzidas em nós, mas nos vemos obrigados, pela relatividade do pensamento, a pensar que essas impressões estão em relação com uma causa positiva, e então aparece a noção rudimentar de uma existência real que as produz. Se se prova que toda ideia de uma existência real implica uma contradição radical; que a matéria, de qualquer modo que a concebamos não pode ser a matéria tal e qual realmente é, nosso conceito se transforma, mas não se destrói; fica a ideia da realidade, isolada tanto quanto possível das formas especiais sob as quais primitivamente aparecia no pensamento. Mesmo que a Filosofia condene seguidamente os ensaios para conceber o Absoluto - mesmo que nos prove que o Absoluto não é isto nem aquilo, nem aquilo outro; mesmo que, para obedecê-la neguemos seguidamente todas as ideias, à medida que se produzem; como não podemos desprezar todo o conteúdo da consciência, fica sempre, lá no fundo, um elemento que passa por novas formas. Mas a negação contínua de toda forma e de todo limite particular não produz outro resultado senão o de suprimir, mais ou menos completamente, todas as formas e todos os limites e chegar a um conceito do informe e do ilimitado. E aqui tropeçamos com a principal dificuldade - como pode ser constituído um conceito do informe e do ilimitado, quando por sua mesma natureza o pensamento não é possível senão sob formas e limites? Se todo conceito de existência o é como existência condicionada, como pode restar algo depois da negação de condições? Se a supressão dessas condições não suprime diretamente a própria substância do conceito, não o faz ao menos implicitamente? Não deve desaparecer o conceito quando desaparecem as condições de sua existência? É evidente que deve existir uma solução para essa dificuldade, uma vez que os que a levantam admitem, como já vimos, que temos esse conceito; a solução parece ser a já antes indicada. Um conceito como esse não é e nem pode ser formado por um ato mental único, mas é produzido, por muitos atos mentais. Em todo conceito, há um elemento que persiste; é impossível que esse elemento desapareça da consciência e é impossível que ali esteja presente isolado, pois o primeiro seria desprovido de substância e o segundo desprovido de forma, e em um e outro caso, não haveria conceito. Mas a persistência desse elemento, ainda que mudem sucessivamente as condições, necessita sua percepção distinta de suas condições, e independente delas. O sentimento de algo condicionado em todo pensamento não pode ser desfeito, porque esse próprio algo não pode desfazer-se. Pois bem: como se percebe esse algo? Evidentemente, combinando sucessivos conceitos, privados de seus limites e de suas condições. Formamos essa ideia indefinida, como formamos muitas de nossas ideias definidas, fundindo uma série de ideias. Vejamos um exemplo: um objeto extenso, complicado, dotado de muitos atributos para que se possa representar de uma vez na imaginação, pode ser, contudo, concebido com bastante exatidão pela união de várias representações cada uma contendo uma parte dos atributos de que falamos. Quando se fala de um piano, o que primeiro aparece na imaginação é a imagem visual do instrumento, agregando-se em seguida (por outros atos mentais separados), a ideia do lado que não se vê e da substância sólida que o constitui. Com todo o conceito completo, estarão compreendidas as cordas, os martelos, os pedais, as surdinas; à medida que vão surgindo essas ideias, em nossa mente, as anteriores vão sendo apagadas, mas o conjunto de todas as imagens constitui a representação do piano. Dessa mesma maneira, formamos um conceito definido de uma existência especial, pondo limites e condições em atos sucessivos, à própria sorte. Assim, no caso falado, formamos uma noção indefinida de uma existência geral, afastando limites e condições em atos sucessivos. Sintetizando uma série de estados de consciência, em cada um dos quais à medida que se forma, abolimos as restrições e as condições, formamos o conceito de algo incondicionado. Falemos agora com mais rigor. Esse conceito não é a abstração de um grupo de pensamentos, ideias ou conceitos, mas a abstração de todos os pensamentos, ideias ou conceitos. O que lhes é comum a todos, aquilo de que já não podemos nos abstrair é o que designamos com o nome comum de existência. Isolada de seus atributos pela mudança permanente deles, persiste como um conceito indefinido, de algo que permanece invariável sob todas as mudanças, como um conceito indefinido da existência, isolada de seus atributos. A distinção que estabelecemos entre a existência especial e a existência geral, é a distinção entre o que pode mudar e o que não pode. O contraste entre o Absoluto e o Relativo em nosso espírito não é, no fundo, mais que o contraste entre o elemento mental, que existe absolutamente e os elementos que existem relativamente. Por sua própria essência, esse último elemento mental é, por sua vez, necessariamente indefinido e necessariamente indestrutível. Nosso conceito do incondicionado é, então, literalmente, a consciência incondicionada, ou a matéria-prima do pensamento à qual damos, pensando, distintas formas, e eis aí por que forma a base de nossa inteligência um sentimento sempre presente da existência real. Como podemos, em atos intelectuais sucessivos, desprender-nos de todas as condições particulares e substituí-las por outras, mas não podemos desprender-nos dessa substância indiferente da consciência, que recebe condições novas em cada pensamento, donde termos um íntimo convencimento da existência persistente dessa substância e de sua independência de condições. Assim, ao mesmo tempo em que as leis do pensamento nos impedem de formar o conceito de uma existência absoluta, nos impedem também de nos desprendermos desse conceito, uma vez que ele não é, como acabamos de ver, senão o reverso da própria consciência. Enfim, como a única medida da validade relativa de nossas crenças é sua resistência aos esforços que fazemos para mudá-la, resulta que aquilo que persiste em todos os tempos, em todas as circunstâncias, e não pode cessar sem que cesse o pensamento, tem o mais alto valor. Para resumir esse tão longamente elaborado argumento - vimos como na mesma afirmação de que todo conhecimento propriamente dito é Relativo, vai implícita a afirmação da existência do não relativo, do Absoluto. Vimos como a cada passo do raciocínio que estabelece aquela doutrina, faz-se a mesma suposição. Vimos como da própria necessidade de pensar em relações resulta que até o Relativo é inconcebível se não está em relação com o não relativo. Vimos que, a menos que um real não relativo ou Absoluto seja admitido, faz-se converter em Absoluto o próprio Relativo e o raciocínio entra em pura contradição. Analisando a operação de pensar, vimos, por último, como nos é impossível desprender-nos da ideia de uma realidade, oculta sob aparências ou fenômenos, e de como dessa impossibilidade resulta nossa indestrutível crença nessa realidade. V Reconciliação § 27. Como vemos, todas as linhas de argumentos convergem para a mesma conclusão. A consequência deduzida a priori no capítulo anterior confirma aquelas deduzidas a posteriori nos dois capítulos que lhe são precedentes. Quando tentamos responder às mais elevadas questões da ciência objetiva, o pensamento nos revela sua própria impotência, e a ciência subjetiva nos faz ver que essa impotência resulta necessariamente das leis do entendimento. Não apenas aprendemos, pela frustração de todos os nossos esforços, que a realidade escondida atrás dos fenômenos é e sempre será inconcebível para nós, como também aprendemos por que tal coisa é forçosa consequência da natureza de nossa inteligência. Descobrimos, por fim, que essa conclusão que em sua forma absoluta parece contrária às convicções instintivas da humanidade, se harmoniza com elas quando se estabelecem as restrições necessárias. Mesmo que não possamos conhecer o Absoluto, de nenhum modo e em nenhum grau, se tomamos a palavra conhecer em seu sentido estrito, vemos, porém, que a existência positiva do Absoluto é um dado necessário da consciência, indelével aliás, enquanto esta dure, e que, portanto, a crença que tem seu fundamento nesse dado nos deve ser mais evidente que todas as outras. Esse dado virá a ser, então, a base da concórdia que buscávamos. Essa conclusão que a ciência objetiva demonstra, e cuja necessidade prova por sua vez a ciência subjetiva; essa conclusão que por uma parte expressa a doutrina da escola inglesa de Filosofia, e por outra encontra seu fundamento de verdade na doutrina de seus adversários, os filósofos alemães; essa conclusão que põe os resultados da mais elevada especulação em harmonia com os do sentido comum, é também a que concilia Religião e Ciência. O senso comum afirma a existência de uma realidade; a ciência objetiva prova que essa realidade não pode ser o que pensamos que ela seja; a ciência Subjetiva mostra por que não nos é dado pensá-la tal como é, e nessa afirmação de uma Realidade cuja natureza ou essência Íntima nos é absolutamente insondável, a Religião reconhece um princípio essencialmente idêntico ao seu. Queiramos ou não, reconhecemo-nos obrigados a ver todos os fenômenos como manifestações de um Poder que atua sobre nós; e mesmo que a Onipotência seja ininteligível, como a experiência não revela limites à difusão dos fenômenos, também não podemos conceber limites à presença desse Poder, e por outra parte, a crítica científica nos mostra que esse Poder é incompreensível. Pois bem, essa ideia de um Poder Incompreensível, que chamamos Onipresente porque somos incapazes de fixar seus limites, é precisamente o que serve de base à Religião. Para compreender plenamente até que ponto é real a reconciliação assim alcançada, é necessário examinar a atitude que Religião e Ciência adotam, cada uma constantemente, em relação a essa conclusão. Será de bom alvitre assinalar que em todos os tempos as imperfeições de uma tiveram que sofrer as correções da outra, e que o objetivo final de seu mútuo criticar não pode ser nada mais que um acordo perfeito sobre esse princípio, o mais amplo e profundo de todos. § 28. Reconheça-se na Religião o grande mérito de ter desde o início claramente vislumbrado a última verdade, e não ter deixado jamais de proclamá-la. Já em suas formas primitivas, ela manifestava vagamente uma intenção que constitui o germe da crença suprema na qual todas as filosofias finalmente se unem. No mais primitivo fetichismo já se pode identificar a consciência de um mistério. Cada uma das crenças sucessivas, rejeitando as definitivas e simples interpretações da Natureza previamente estabelecidas, veio a se tornar mais religiosa. À medida que os agentes concretos e concebíveis, que se supunha serem a causa das coisas foram sendo substituídos por agentes menos concretos e concebíveis, o elemento misterioso foi se tornando necessariamente preponderante. Através de todas as suas sucessivas fases, o desaparecimento desses dogmas positivos que deixavam o mistério não misterioso, formou-se a mudança fundamental delineada na história religiosa. Assim, a Religião se aproximou cada vez mais do reconhecimento completo da existência desse mistério, seu objeto final e definitivo. Por essa crença, essencialmente válida, a Religião sempre combateu; por mais vulgares que fossem os disfarces sob os quais ela primariamente adotou esse credo, e guardando esse credo, como ainda faz, sob vestes que o desfiguram e escondem, ela jamais deixou de mantê-lo e defendê-lo. Proclamou e propaga ainda, sob diversas formas, a doutrina de que todas as coisas são manifestações de um Poder que extrapola nosso conhecimento. Pelos séculos, a Ciência venceu a Religião sempre que esta pretendeu obrigar aquela a abandonar alguma de suas posições; mas, a despeito desses reveses, a Religião defende as posições que ainda são suas com uma obstinação inquebrantável. Pode-se mostrar a inconsequência lógica de suas conclusões, pode-se provar o absurdo de cada um de seus dogmas particulares, mas não se pode dobrar sua fidelidade à verdade última que proclama. A crítica pulverizou todos os seus argumentos e a reduziu ao silêncio; mas a Religião conserva sempre o sentimento indestrutível de uma verdade que, apesar dos vícios dos dogmas que a expressam, nem por isso está menos fora de toda discussão. Sua adesão a essa crença tem sido essencialmente sincera e a humanidade deve a ela, como sempre deveu, o reconhecimento por tê-la conservado e propagado. Mas se a Religião teve desde o princípio a missão de impedir que os homens se absorvam completamente no relativo e no imediato, e de revelar-lhes a existência de um Ser superior, essa missão não foi cumprida quase sempre, e quando o foi, cumpriu-se de modo muito imperfeito. A Religião sempre foi um tanto irreligiosa, e ainda o é. Em primeiro lugar, pretendeu possuir um conhecimento superior a todo conhecimento, em confronto com sua própria doutrina. Enquanto afirma ser a Causa de tudo incompreensível, afirma também que ela possui tais e quais atributos, sendo então compreensível. Em segundo lugar, por uma parte foi sincera em sua fidelidade à grande verdade, que tinha como missão defender, mas por vezes não o foi, e; portanto, foi irreligiosa, afirmando doutrinas que ofuscavam e comprometiam essa verdade. Discutindo cada uma das afirmações da Religião sobre a essência, os atos e os motivos desse Poder que o Universo nos revela, vimos que estão em contradição umas com as outras, ou consigo mesmas. Contudo, pelos séculos, a Religião se serviu dessas afirmações, mesmo sabendo que não resistiriam a uma crítica mais severa. Parecendo ignorar que sua posição central é inexpugnável, a Religião defendeu obstinadamente todas as trincheiras exteriores, muito tempo depois de se mostrarem, com evidência, insustentáveis. Isso nos leva naturalmente à terceira e mais grave forma de irreligião que a Religião praticou, a saber: uma crença imperfeita no objeto em que particularmente professou seu credo. A religião nunca teve completa compreensão de sua inexpugnável posição central. Todos os dias contemplamos o fato de existir na mais fervorosa fé um fundo de ceticismo, e esse fundo é a causa do medo que a Ciência infunde à Religião. Obrigada esta por aquela a ir abandonando uma por uma suas superstições, que bravamente antes defendia, e vendo a cada dia suas mais caras crenças serem erodidas, a Religião teme que chegue o dia em que tudo se explique, demonstrando dessa maneira que no fundo, duvida da incompreensibilidade do que prega ser incompreensível. Não nos esqueçamos jamais que a Religião, apesar de seus inúmeros erros e corrupções, proclama e propaga uma verdade suprema. Desde o princípio, o reconhecimento dessa verdade, mesmo que concebida de forma imperfeita, tem sido seu elemento vital, e seus vícios, antes excessivos, mas em declínio, fizeram com que não se desse plenamente, mas em parte, esse reconhecimento. O elemento verdadeiramente religioso da Religião sempre foi bom; seus elementos irreligiosos são os únicos reconhecidamente insustentáveis na teoria e maus na prática, mas a Religião cada vez mais deles se purifica. § 29. Deixemos claro que o agente dessa purificação foi sempre a Ciência. Geralmente se leva pouco em conta esse aspecto das funções científicas. A Religião ignora ou despreza a dívida imensa que contraiu com a Ciência, e esta sabe apenas que é credora. Contudo, seria fácil provar que todos os degraus de desenvolvimento galgados pela Religião, desde suas crenças primitivas até as ideias elevadas que hoje professa, os percorreu graças à Ciência ou por ela obrigada. Mesmo nos tempos modernos, não a empurra a Ciência nesse sentido? Se damos à palavra "Ciência" seu verdadeiro sentido, isto é, se ela representa a soma dos conhecimentos positivos e definidos acerca da ordem que reina nos fenômenos que nos cercam, vemos claramente que, desde o princípio, o descobrimento de uma ordem estabelecida modificou a ideia de desordem ou de ordem indeterminada que se encontra na raiz de toda superstição. Quando a experiência mostrou que certas mudanças - as mais familiares - sucedem sempre na mesma ordem, o conceito de uma personalidade especial que regia essas mudanças caminhou na direção do desaparecimento do espírito humano. E quando, sucessivamente, a acumulação de fatos mostrou que o mesmo ocorria com as mudanças menos familiares, também foram se modificando as crenças correspondentes. Essa pressão da Ciência sobre a Religião parece antirreligiosa a quem a exerce, como a quem a experimenta, e, contudo, é exatamente o contrário. Ao agente específico inteligível que se supunha em primeiro lugar, sucedeu um agente menos específico e menos compreensível; num primeiro momento, o último, em virtude de sua oposição com o primeiro, não pode despertar o mesmo sentimento, mas pouco a pouco, por ser menos compreensível, deve produzi-lo mais perfeito. Tomemos um exemplo: antigamente, o Sol era visto como o carro de uma divindade, puxado por cavalos. Não precisamos examinar até que ponto se idealizava a ideia tão grosseiramente expressa. Basta observar que, explicando assim o movimento aparente do Sol, por um agente semelhante às forças terrestres e visíveis, rebaixamos uma maravilha de todos os dias ao nível da mais pobre das inteligências. Quando, muitos séculos depois, Kepler descobriu que os planetas giram em torno do Sol em órbitas elípticas, e que os raios vetores varrem áreas proporcionais aos tempos, deduzimos que em cada planeta deveria haver um espírito, para dirigir seu movimento. Vemos, por esse exemplo, como os progressos da Ciência fizeram desaparecer a ideia de uma tração material, como a primeira que se supôs dar movimento ao Sol; vemos também que quando se substituiu essa ideia atrasada pela ideia de uma força indefinida e menos fácil de conceber, acreditou-se necessário supor que um agente pessoal era a causa da irregularidade regular do movimento. Quando por último se provou que as revoluções planetárias com suas variações e perturbações obedecem a uma lei universal; quando os espíritos diretores concebidos por Kepler foram desfeitos e tomou seu lugar a força gravitacional, a mudança foi, realmente, a de um agente que se podia imaginar e a introdução de outro poder, este inimaginável. Isto porque se a Lei da gravitação penetra perfeitamente em nosso entendimento, o mesmo não ocorre com a ideia de força gravitacional. O próprio Newton confessava que essa força não se compreendia sem a intermediação de um éter; mas já vimos (§18) que a hipótese do éter não nos garante qualquer avanço. O mesmo sucede em geral; a Ciência avança agrupando relações particulares de fenômenos sob certas leis; depois, agrupando essas leis especiais sob outras cada vez mais gerais, e descobrindo causas cada vez mais abstratas. Mas as causas mais abstratas são causas menos concebíveis, pois a formação de um conceito abstrato supõe a supressão de certos elementos concretos do pensamento. Resulta então que o conceito mais abstrato, para o qual a Ciência gradualmente avança, é o que se confunde com o inconcebível e o ininteligível, como consequência da supressão de todos os elementos concretos do pensamento. É isso que nos dá direito de afirmar que as crenças impostas pela Ciência à Religião, são, no fundo, mais religiosas do que as que foram substituídas. Muitas vezes a Ciência, como a Religião, não cumpriu sua missão, a não ser de forma muito imperfeita. Do mesmo modo que a Religião se apresentou como inferior a suas funções, por ter sido irreligiosa, a Ciência também assim se apresentou, por ser anticientífica. Mostremos os pontos de semelhança. Quando a ciência começou, em sua origem, a mostrar as relações constantes entre os fenômenos, e como consequência desacreditou a crença nas personalidades distintas que eram vistas como sua causa, trocou as crenças por poderes causais, crenças essas que se não eram pessoais, ao menos eram concretas. Quando se falava do "horror da natureza ao vazio", quando se atribuíam as propriedades do ouro a uma entidade chamada de "ourismo", e quando os fenômenos da vida se atribuíam a um "princípio vital" se estabelecia uma maneira de interpretar os fatos que, se era antirreligiosa por atribuir esses fatos a agentes não divinos, era ao mesmo tempo anticientífica, porque supunha conhecer o que não conhecia minimamente. Por fim, a Ciência abandonou esses agentes metafísicos, reconheceu que não tinham existência independente, que não eram mais que combinações particulares de causas gerais; em consequência, atribuiu depois grandes grupos de fenômenos à eletricidade, à afinidade química e a outras forças gerais análogas. Mas, fazendo dessas forças entidades independentes, a Ciência conservou, em suma, a mesma atitude anterior. Explicando assim todos os fenômenos, os da Vida e do Pensamento inclusive, ela não apenas perseverou em seu antagonismo aparente com a Religião, como ainda, porque recorreu a agentes radicalmente distintos dos da mesma Ciência, continuou a ser anticientífica, pois supôs saber alguma coisa da natureza desses agentes. É verdade que atualmente os sábios mais ilustres abandonam essas últimas supostas entidades, como seus antecessores já haviam abandonado as primitivas. O magnetismo, o calor, a luz que eram vistos não faz muito tempo como outros tantos fluidos imponderáveis não são já, para os físicos, mais que manifestações diversas da força universal, a qual, ao mesmo tempo, deixa de ser vista como compreensível. Em cada fase de seu progresso, a Ciência deu muitas vezes soluções superficiais a problemas profundos. Infiel a seu método, descurou de inquirir a natureza dos agentes que invocava com tanta facilidade. Sem dúvida, em cada fase que sucessivamente percorreu, e ao avançar cada vez mais, absorveu os pretendidos poderes, que havia invocado em outras fases mais gerais e mais abstratas, mas incorreu na falta de contentar-se com estas últimas, como antes se contentava com as primeiras, e dá-las por realidades confirmadas. Isso foi o que formou sempre o caráter anticientífico da Ciência e foi também sempre, ao menos em parte, a causa de sua constante luta com a Religião. § 30. Vemos assim que desde a origem, tanto as falhas da Religião como as da Ciência, foram falhas de um desenvolvimento incompleto. Simples rudimento a princípio, cada uma das duas cresceu e tomou forma mais perfeita; mas sempre lhes faltou algo para a perfeição, e as consequências dessa falta foram todos os desacordos; assim vai se estabelecendo mais harmonia à medida que ambas se aproximam de seu estado definitivo. O progresso da inteligência sempre foi duplo. Cada passo à frente aproximou um pouco mais o natural do sobrenatural, mesmo quando os que deram esses passos não acreditavam que assim fosse. A explicação de um fenômeno se fez melhor quando por uma parte se desfez uma causa relativamente concebível em sua natureza, mas desconhecida quanto à ordem ou à lei de suas ações. E por outra parte, se admitiu uma causa conhecida quanto à ordem de suas ações, mas inconcebível relativamente à sua natureza. O primeiro passo que expulsou os homens do fetichismo universal implicava evidentemente o conceito de agentes menos assemelhados a agentes comuns, homens ou animais, e por consequência, menos compreensíveis. Mas ao mesmo tempo esses agentes novamente idealizados se distinguiam por efeitos uniformes, e eram mais bem compreendidos que os anteriores, que haviam sido agora substituídos. Todos os progressos subsequentes produziram o mesmo duplo resultado. As forças mais distantes e mais gerais que se chegava a considerar causas dos fenômenos, eram menos compreensíveis que as forças especiais substituídas; quer dizer, eram menos suscetíveis de ser claramente representadas no entendimento; mas ao mesmo tempo, eram mais compreensíveis, enquanto se podia, mais completamente, prever suas ações. O progresso resultou, pois, tanto na demonstração do desconhecido positivo quanto na do conhecido. À medida que a Ciência se eleva em seu apogeu, todos os fatos inexplicáveis, e aparentemente sobrenaturais tornam-se explicáveis e naturais. E ao mesmo tempo adquire-se a certeza de que todos os fatos explicáveis e naturais são na sua origem primeira, inexplicáveis e sobrenaturais. Desse modo nascem os estados antitéticos do espírito, correspondentes aos dois lados opostos dessa existência - objeto final de nosso pensamento -; um desses estados constitui a Ciência, o outro constitui a Religião. Considerando os fatos de outra maneira, cabe afirmar que a Religião e a Ciência progrediram sofrendo uma descoberta gradual, e que seus conflitos intermináveis não tiveram outra causa senão a incompleta separação de seus domínios e funções. Desde o princípio, a Religião fez grandes esforços para unir mais ou menos sua ignorância à Ciência; e a Ciência também quis reter mais ou menos ignorância, que tomava por ciência. Cada uma se viu, pouco a pouco, obrigada a abandonar o terreno que indevidamente ocupava, e que a outra reclamava em virtude de um direito real e legítimo. O antagonismo entre Religião e Ciência foi a sequela natural desse progresso. Vamos expor essas ideias de modo a torná-las mais claras. Desde o início, a Religião, quando afirmava um mistério, fazia muitas afirmações definidas sobre ele. Supunha conhecer sua natureza nos mínimos detalhes. Mas como isso significaria estar de posse de um conhecimento positivo, significaria também usurpar domínios à Ciência. Desde o tempo das mitologias primitivas, quando se acreditava conhecer a explicação do mistério, até nossos dias, em que não se conservam mais que um curto número de proposições vagas e abstratas, a Religião viu-se obrigada pela Ciência a ir abandonando seguidamente seus dogmas, ou seja, seus pretensos conhecimentos que não tinha como estabelecer com solidez. Durante esse tempo, a Ciência substituiu as personalidades que a Religião supunha para explicar os fenômenos por certas entidades metafísicas, usurpando o terreno da Religião, uma vez que classificava no compreensível formas do incompreensível. Sob as pressões da crítica religiosa, por um lado, que punha em dúvida, muitas vezes, suas hipóteses, e por outro lado, de seu próprio desenvolvimento, a Ciência teve que renunciar aos esforços que havia feito para encerrar o incognoscível nos limites do conhecimento positivo, devolvendo assim à Religião o que por direito lhe pertence. Enquanto não termina esse deslinde, existirá maior ou menor antagonismo entre essas duas esferas de nossa atividade; mas à medida em que os limites do conhecimento possível vão sendo bem balizados, as causas do conflito irão diminuindo gradualmente. Quando a Ciência estiver plenamente convencida de que suas explicações são próximas e relativas, e a Religião o esteja de que o mistério que contempla é absoluto, reinará entre ambas uma paz definitiva. Religião e Ciência são, pois, necessariamente correlatas. Como já afirmamos, representam dois estados de consciência em antítese, que não podem existir isolados. Não se pode pensar no conhecido sem pensar no desconhecido, nem pensar neste sem pensar naquele. Por conseguinte, nenhum dos dois pode fazer-se mais distinto sem que o outro o faça a par. Empregando uma metáfora já usada, diremos que são polo positivo e negativo do pensamento; não pode crescer num deles a intensidade da corrente, sem que ela também cresça no outro. § 31. Assim, como no passado a consciência de um Poder Insondável, que para nós se manifesta através de todos os fenômenos, foi-se tornando cada vez mais clara, no futuro far-se-á completamente perfeita. A certeza da existência desse Poder, por um lado e de que sua natureza se eleva acima de nossa razão e imaginação, por outro, tem sido sempre o fim a que se propôs atingir a inteligência. A Ciência chega forçosamente a essa conclusão quando atinge seus limites, e a Religião a adota como própria, obrigada pela crítica. Essa conclusão satisfaz à mais rigorosa lógica, e dá ao mesmo tempo ao sentimento religioso a sua mais vasta esfera de atividade; por isso, devemos admiti-la plenamente, sem restrições ou reservas. Diz-se que mesmo que a Causa Última de tudo não possa ser conhecida por nós como portadora de tais ou quais atributos, nem por isso deixamos de ser obrigados à afirmação desses atributos e mesmo que as formas de nossa consciência sejam tais que não se possa de maneira alguma introduzir nela o Absoluto, devemos conceber o Absoluto sob essas formas. "É nosso dever considerar Deus como pessoa; e é nosso dever acreditar que é infinito" - diz o senhor Mansel, na obra que aqui, por vezes, mencionamos. É inútil dizer que não reconhecemos esse dever. Se os argumentos acumulados anteriormente têm algum valor, resulta que não devemos afirmar e nem negar a personalidade divina. Nosso dever exige que nem nos submetamos humildemente aos limites de nossa inteligência nem nos rebelemos abertamente contra eles. Creia quem puder que entre nossas faculdades intelectuais e nossas obrigações morais exista uma guerra eterna; nós não admitimos esse vício radical na constituição das coisas. Parecerá irreligioso esse ponto de vista à maior parte dos homens, sendo, contudo, pelo contrário, profundamente religioso. Diremos mais: o único plenamente religioso, sendo os outros apenas relativamente religiosos. Na ideia de última Causa não temos que nos deter em alternativas embaraçosas; basta saltá-las. Os que se detêm supõem erradamente ter que escolher entre uma personalidade e algo menor, mas trata-se, ao contrário, de escolher entre uma personalidade e algo superior a toda personalidade. Não poderia haver um modo de existência tão superior à Inteligência e à vontade, quando esses mesmos modos são superiores ao movimento mecânico? Somos, é certo, incapazes de conceber esse modo de existência, mas nem por isso podemos pô-lo em dúvida, antes pelo contrário. Não constatamos quão impotentes são nossas faculdades para conceber o que está além dos fenômenos? Não provamos que essa impotência não é outra senão a do condicionado para conceber o incondicionado? Não resulta para nós que em "nada" nos é dada conhecer a Causa Suprema, que é superior em "tudo" ao que pode ser conhecido? E, portanto, não haverá razão para associar a ela atributos, posto que, sejam quais forem, teriam que rebaixá-la, como necessariamente derivados de nossa própria natureza? É na verdade bem estranho que o homem creia que o culto supremo seja fazer à sua imagem o objeto desse culto, e veja como elemento essencial de sua fé não afirmar uma diferença transcendente entre Deus e ele, mas afirmar uma semelhança. Sem dúvida, desde os tempos dos mais primitivos selvagens, que imaginavam seus deuses como figuras de carne e osso como eles, até agora, a pretendida semelhança diminuiu; mas se nas raças civilizadas deixou-se, há muito tempo, de atribuir à Causa Última forma e substância análogas às humanas; se parecem atributos pouco dignos dela os mais grosseiros desejos humanos; se até mesmo se hesita em atribuir-lhe os afetos superiores do homem, mesmo que muito idealizados, considera-se indispensável atribuir-lhe as qualidades inerentes à nossa natureza. Pessoas que consideram ímpio pensar que o poder criador é antropomórfico sob todos os seus aspectos, se creem, contudo, obrigadas a vê-lo como antropomórfico sob certas relações não atentando para que a ideia que admitem não é mais que uma forma atenuada daquela que repelem. E o que é mais chocante, essa opinião conta como defensores os mesmos que sustentam sermos completamente incapazes de formar algum conceito sobre o poder criador. Sabemos que toda suposição sobre a gênese do Universo nos força a escolher entre pensamentos impossíveis; que toda tentativa de conceber a existência real nos leva ao suicídio intelectual; e mais, que como a própria constituição de nosso espírito nos proíbe de conceber o Absoluto e logo nos dita que devemos pensar no Absoluto com tais ou quais atributos. Todos os caminhos nos levam a crer com certeza que não nos é dado nem conhecer e nem conceber a realidade oculta sob o véu das aparências e ao mesmo tempo em que devemos crer e conceber que essa realidade existe de uma maneira determinada. Consiste essa pretensão numa homenagem ou numa impertinência? Poderíamos escrever volumes sobre a impiedade de gente piedosa. Em quase todos os discursos e escritos dos sacerdotes descobrimos que pretendem eles conhecer intimamente o mistério fundamental de todas as coisas; pretensão que, para não dizer mais nada, combina bastante mal com as palavras de humildade que a acompanham. E, coisa surpreendente, os dogmas em que esse conhecimento íntimo é menos possível, são objeto de acentuada preferência; veem-se neles os elementos essenciais da crença religiosa. Não se pode representar melhor o papel dos teólogos do que por um exemplo, tomado das mesmas controvérsias religiosas: o do relógio. Se, partindo da suposição burlesca que o tique-taque e os movimentos de um relógio constituem uma espécie de consciência, admitimos que o relógio queira que as ações do relojoeiro estejam, como as suas, determinadas por molas e balanços, nada mais faremos que completar uma similitude, muito apreciada pelos ministros da Religião. Suponhamos também que o relógio explica a causa de sua origem em termos de mecânica, que sustenta que outros relógios estão obrigados, pelo respeito devido às coisas santas, a imaginar também essa causa, que ataca e chama de ateus os relógios que não ousam imaginá-la; nada mais faremos que revelar a presunção dos teólogos, exagerando um de seus argumentos. Algumas citações bastarão para demonstrar ao leitor a exatidão dessa comparação. Diz-nos, por exemplo, um dos pensadores religiosos mais afamados que "o Universo é a manifestação e a morada de um espírito livre como o nosso, que personifica suas ideias pessoais na ordem do Universo, que realiza seu próprio ideal nos fenômenos do Universo, exatamente como expressamos nossas faculdades e nosso caráter íntimo pela linguagem natural de nossos atos. Partindo dessas ideias interpretamos a Natureza pela humanidade, explicamos seus aspectos por desígnios e afetos como os que podemos conceber, buscamos por toda parte sinais físicos de uma vontade sempre viva, e decifrando o Universo, lemos a autobiografia de um espírito infinito, que se reproduz em miniatura em nosso espírito finito". (Excerto do artigo "Nature and God", do filósofo e teólogo unitarista inglês James Martineau (1805-1900), originalmente publicado na National Review de outubro de 1860. Detrator de Spencer, Martineau o acusava de inconsistência filosófica, ao admitir simultaneamente a existência de Deus e sua delimitação no domínio do Incognoscível). Este autor vai mais longe. Não se contenta em fazer semelhantes relojoeiro e relógio e pensar que a criatura pode "decifrar a biografia do criador"; afirma também que os limites necessários de um são os limites necessários de outro. "As qualidades primárias dos corpos" - diz - "pertencem eternamente ao dado material objetivo, para Deus, e limitam seus atos; enquanto as qualidades secundárias são produto da razão inventiva pura e da vontade determinante, constituindo o domínio da originalidade divina ... Nesse terreno secundário, seu espírito e o nosso se encontram, então, em oposição, enquanto concordam no primário, pois não há senão um caminho possível para todas as inteligências, no que respeita às operações dedutivas da razão; não existe vontade arbitrária que possa inverter o verdadeiro e o falso, ou fazer com que exista mais de uma geometria ou mais de um sistema físico para todos os mundos, e o Arquiteto onipotente, quando realiza a ideia cósmica, quando traça as órbitas na imensidão e desde a eternidade determina as estações, não pode menos que obedecer às leis de curvatura, de medida, de proporção". Isto quer dizer que a Causa Última é como um operário, não apenas porque "trabalha o dado material, objetivo para ela", como também porque está obrigada a obedecer às "propriedades necessárias desse dado". E há mais; em uma exposição da psicologia divina, que segue, o autor chega a dizer que "aprendemos o caráter de Deus, a ordem das impressões que se sucedem nele pela distribuição da autoridade na hierarquia de nossos pensamentos". Em outro parágrafo se diz que a Causa Última tem desejos superiores e inferiores, como os nossos. Todos já ouviram falar daquele rei que sentia não haver presenciado a Criação, pois poderia ter dado bons conselhos ao Criador; pois nesse rei era a humildade mesma, ao lado dos que têm a pretensão não só de compreender as relações do Criador com a criatura, como de saber como é o Criador. Se tem a audácia inaudita de pretender penetrar os segredos do Poder que se nos revela em todos os seres, faz ainda mais: colocando-se ao seu nível, se marcam as condições de todos os seus atos; e essa audácia passa, no entanto, por religiosidade! Não podemos afirmar, sem vacilação, que um sincero reconhecimento de que nossa existência e todas as demais são mistérios absoluta e eternamente superiores à nossa inteligência encerra mais religião que todos os livros de teologia dogmática? Reconheçamos, de passagem, tudo que há de útil nas contínuas tentativas de formação de um conceito do inconcebível. Desde as primeiras ideias religiosas nosso espírito pôde elevar-se gradualmente a outras cada vez mais altas graças ao choque de conceitos que não lhe satisfaziam; e não se duvide, as ideias hoje no auge são, como as passadas, transições indispensáveis. Não temos inconveniente em conhecer algo mais. É possível, e até provável, que sob formas mais abstratas, as ideias atuais ou outras análogas continuem ocupando sempre o fundo da consciência; também o é que se creia sempre necessário dar uma forma mais ou menos concreta a esse vago sentimento de uma existência última que forma a base de nosso pensamento, que tenhamos em considerá-la como "algum" modo de ser, imaginá-la sob "alguma forma", ainda que vaga; mas mesmo obedecendo a essa necessidade, não nos desviaremos enquanto não vejamos nas noções que formamos mais que meros símbolos, absolutamente desprovidos de semelhança com o que pretendem representar. Talvez a formação e abolição, renovando-se sempre, desses símbolos, serão, como foram até aqui, um meio de disciplina. Constituir, sem cessar, ideias que exigem os esforços mais enérgicos de nossas faculdades e descobrir eternamente que essas ideias são apenas vãs ilusões que devem ser abandonadas vem a ser, sem dúvida, um trabalho que mais que qualquer outro, nos faz compreender a grandeza do que inutilmente pretendemos alcançar. Esses esforços e essas alternativas podem servir para sustentar em nosso espírito uma cabal ideia do abismo incomensurável que separa o condicionado do incondicionado. Tentamos continuamente conhecer este último, e somos continuamente repelidos; essas repulsas criam a convicção íntima da impossibilidade de conhecê-lo e nos fazem compreender com clareza que o maior grau de sabedoria e nosso mais imperioso dever consistem em considerar a Causa Primária de todas as coisas como incognoscível. § 32. A imensa maioria dos homens repelirá com indignação uma crença que parece tão vaga e tão mal fundada. Personificou-se sempre a Causa Primária, posto que tal era necessário, para representá-la mentalmente; deve-se, portanto, contemplar com pena o advento de uma Causa Primária imaginável. Dir-se-ia: "Deram-nos uma abstração ininteligível, em lugar de um ser a cujo respeito podemos ter sentimentos definidos. Disseram-nos que o Absoluto é real; mas como somos proibidos de concebê-lo, o que nos é dado não é para nós nada além de pura negação. Quereis que em vez de voltar nossa vista para um Poder que, segundo nossa crença tem simpatia para conosco, dirijamos nossas preces a um outro Poder, que ignoramos se se emociona. Isso é arrancar-nos o próprio coração de nossa fé". Tais protestos acompanham sempre a passagem de uma crença inferior a outra superior. O homem sentiu-se sempre feliz em acreditar que a natureza é semelhante ao objeto de seu culto, e sempre recebeu com repulsa os conceitos menos concretos que lhe eram impostos. Não é duvidoso que, em todos os tempos e lugares o homem incivilizado que achava um grande consolo em pensar que a natureza de seus deuses se parecia com a sua, e que podia obter seus favores com alimentos e outras oferendas, tenha sentido uma grande pena ouvindo afirmar que não se subornam os deuses com oferendas, vendo-se privado de um modo cômodo de obter uma proteção sobrenatural. Evidentemente, os gregos cobravam valores, pensando que em certas circunstâncias, poderiam receber de seus oráculos avisos de seus deuses e ainda assegurar sua existência pessoal nos combates; foi muito natural a ira com que increparam aos filósofos, por terem posto em dúvida grosseiras ideias de sua mitologia. Uma religião que mostre ao indígena ser impossível ganhar a felicidade eterna arrojando-se sob as rodas do carro de Juggernaut (Força ou poderio destrutivo que não se pode sobrepujar nem refrear. O uso alegórico faz referência aos carros do templo de Jagannath, em Puri, importante centro de peregrinação hinduísta. Uma vez postos em marcha, esses carros gigantescos muitas vezes esmagavam os fiéis), lhe parecerá cruel, por retirar-lhe a crença consoladora de que pode, quando quiser, trocar suas misérias pela bem-aventurança. É também evidente que nossos avós católicos encontravam um grande consolo em crer que seus pecados lhe eram perdoados quando construíam igrejas; que os castigos seus e de seus parentes no purgatório eram abreviados quando se diziam missas em seus nomes e que se podia obter a graça ou o perdão de Deus mediante a interferência dos santos. O protestantismo, substituindo nessas crenças o conceito de um Deus tão pouco semelhante a nós que aquelas práticas não tinham sobre ele influência, deve ter parecido aos católicos frio e árido. E análoga resistência irá achar nos sentimentos desdenhados qualquer outro novo passo no mesmo sentido. Nenhuma revolução nas ideias se verifica sem violência. Quer se trate de uma mudança de costumes, quer se trate de uma mudança de convicções; se estas ou aquelas são fortes, será preciso violentar os sentimentos, que por sua vez irão resistir. Com efeito, será necessário substituir as fontes de consolo, há muito experimentadas e bem conhecidas, por outras ainda não experimentadas, e logo desconhecidas. Em lugar de um bem relativamente conhecido e real, quer-se alojar um bem relativamente desconhecido e ideal; a mudança não pode ocorrer sem lutas e sofrimentos. E sobretudo, no conceito tão vital que nos ocupa, é onde uma tentativa de mudança deve encontrar enérgicas resistências. É a base de todos os outros, e mudar algo nessa base é arriscar a ruína de todos os edifícios que nela se apoiam. Ou, seguindo outra ordem de ideias, é a raiz de nossas ideias de bem, de justiça, de dever, e parece impossível que possa transformar-se sem que essas ideias sejam feridas de morte. Tudo o que há de elevado na Natureza se subleva, digamos assim, contra uma mudança que, destruindo as associações mentais já aceitas, parece arrancar a moral pela raiz. Há algo mais a dizer em benefício desses protestos: têm significação mais profunda. É preciso ver neles não apenas a expressão da repugnância que inspira uma revolução de crenças, tornada mais intensa no caso da religião, pela vital importância da crença sob ataque, mas ainda pela expressão do instintivo afeto a uma crença que para seus partidários é melhor que todas. Acrescente-se que as imperfeições religiosas de que falamos, primeiro muito notáveis, e depois menores, não são imperfeições que dizem respeito a um modelo relativo, mas a um tipo absoluto de perfeição religiosa. Em geral, a Religião adotada, em um local e em uma época dados, sempre foi a expressão mais próxima da verdade que era então suscetível de ser aceita. As formas mais ou menos concretas que foram conferi das à verdade não foram senão meios de fazê-la inteligível, o que seria sem elas impossível. Registre-se que nos diversos tempos, foram agregados à verdade grandes meios de impressionar. Vejamos o que poderia ocorrer de outro modo. Os homens devem pensar com as ideias que possuem, em cada um dos degraus de sua evolução; todas as mudanças que primeiro chamam sua atenção e cujas origens e causas podem reconhecer, têm homens e animais por antecedentes; por conseguinte, são incapazes de imaginar as causas em geral sob outras formas, e dão essas formas ao Poder Criador. Se então se pretende livrá-los de suas ideias concretas para substituí-las por outras relativamente abstratas, seu espírito estará despido de ideias, pois as novas não poderão ser representadas em seu entendimento. O mesmo aconteceu em cada época da história religiosa, desde a primeira até a última. Mesmo que a acumulação de experiências modifique gradualmente as primeiras ideias formadas acerca das personalidades criadoras e origine ideias mais gerais e mais vagas, estas não podem, naturalmente, ser repentinamente substituídas por outras ainda mais gerais e vagas. É necessário que novos conhecimentos proporcionem as novas abstrações indispensáveis, antes que o vazio deixado no espírito pela destruição das ideias inferiores possa ser preenchido por ideias relativamente superiores. Recusar em nossos dias o abandono de uma noção relativamente concreta por uma noção relativamente abstrata implica na incapacidade de formá-la e mostra que a mudança seria prematura e perigosa. Vemos ainda mais claramente o perigo de uma mudança prematura das crenças se consideramos que a influência de uma crença sobre a conduta deve debilitar-se na mesma medida em que deixe de impressionar fortemente em nosso espírito o objeto da crença. Os males e os bens análogos aos que o selvagem pessoalmente experimentou, ou aos que foi dado conhecer pelos que experimentaram, são os únicos males e bens que ele pode compreender, e deve crer que se produzem sempre analogamente, como mostram as experiências. Deve imaginar que seus deuses têm paixões, motivos e modos de agir semelhantes aos dos seres que os rodeiam; pois sendo para eles desconhecidos e até ininteligíveis os motivos, paixões e procedimentos de categoria superior, não tem como formar deles uma ideia exata que possa influir em sua conduta. Durante cada período da civilização, os atos da realidade invisível, como os prêmios e castigos que dá, são inconcebíveis a não ser sob as formas mostradas pela experiência, resultando daí que se os substitui por formas superiores, antes que experiências mais amplas as tenham tornado concebíveis, é como se motivos determinados e influentes fossem substituídos por motivos vagos e sem influência. Mesmo nos tempos atuais sendo incapaz a grande maioria dos homens por falta de cultura intelectual, de ver com clareza suficiente as consequências boas ou más que um seu ato pode trazer para a ordem conhecida do incognoscível, é preciso, para influir em seus atos pintar com cotes as mais vivas um porvir de tormentos ou de alegrias, de prazeres ou de penas, e de uma espécie determinada para que possam compreender. Levemos ainda além as concessões. Poucas pessoas são capazes de abandonar as crenças religiosas recebidas na infância. Para conceber vigorosamente as mais elevadas abstrações, se necessita grande poder intelectual, e se não são concebidas vigorosamente, têm tão pouca influência sobre nossa conduta, que os efeitos de sua direção moral não se farão sentir em muito tempo, a não ser em uma insignificante minoria. Para ver com clareza como um ato bom ou mau gera consequências internas e externas que vão, com a passagem dos anos, estendendo-se cada vez mais, como os ramos de uma árvore, se necessita uma grande e, portanto, rara força de análise. Mesmo para a representação mental de uma só série dessas consequências, em um futuro remoto, se necessita um raro poder de imaginação. E para apreciar as consequências em seu conjunto, para ver multiplicar-se seu número, enquanto decresce sua intensidade, seria necessário um talento que ninguém possui. E, contudo, somente essa análise, essa imaginação, esse talento, podem, na falta de toda regra, dirigir bem nossa conduta; unicamente a ideia das recompensas ou castigos finais podem vencer a influência respectiva das penas ou prazeres imediatos que nossos atos produzem. Se os homens não tivessem formado pouco a pouco generalizações e princípios de moral em virtude dos progressos da espécie e da experiência adquirida acerca dos efeitos de tal ou qual conduta; se esses princípios não tivessem sido inculcados pelos pais a seus filhos de geração em geração, proclamados pela opinião pública, santificados pela religião e fortificados pelas ameaças de condenação eterna como castigo pela desobediência; se sob a influência desses meios poderosos não se houvessem modificado os costumes e os sentimentos correspondentes não tivessem se tornado instintivos; em uma palavra, se não tivéssemos nos tornado seres organicamente morais, sem dúvida a supressão dos motivos enérgicos e precisos inculcados pela crença adotada originaria consequências desastrosas. Mesmo com tudo isso, poderá muito bem acontecer e será o mais frequente, que os que abandonam a fé em que foram educados por outra mais abstrata, que reconcilie a Ciência com a Religião, não venham a ajustar sua conduta a suas convicções. Reduzidos a sua moralidade orgânica, unicamente reforçada por raciocínios abstratos mal preparados, difíceis de se ter sempre presentes na mente, seus defeitos naturais vão se manifestar mais energicamente do que sob suas crenças passadas. Um novo Credo não adquirirá bastante influência senão quando seja, como o que reina hoje, um elemento da primeira educação e se apoie em uma vigorosa sanção social. Os homens não estarão prontos a adotá-lo senão quando, por influência por longo tempo continuado de disciplina, que os fez acomodar-se em parte às condições da vida social, tenham sido suficientemente preparados para tal. Devemos pois reconhecer que a resistência a uma mudança de opinião teológica é grandemente saudável, e o é não apenas pelos enérgicos e profundamente arraigados sentimentos que terão necessariamente de entrar em luta; não apenas porque os sentimentos morais mais elevados se unem para condenar uma mudança que parece minar sua autoridade, como também porque existe uma adaptação real entre as crenças estabeleci das e a natureza do espírito dos que as defendem e a obstinação que se emprega na defesa da medida do grau dessa adaptação. É preciso que as formas de religião, como as formas de governo sejam adequadas aos indivíduos que vivem sob seu império e em um e outro caso, a forma mais apropriada é aquela que instintivamente se escolhe. Um povo bárbaro, que tem necessidade de uma lei terrestre dura, e que mostra inclinação para um poder despótico, capaz de exercer a autoridade com o rigor necessário, necessita também acreditar em uma lei celeste dura como a terrestre e só assim a obedecerá. Eis por que ao substituir instituições tirânicas por outras livres sempre surge uma reação. Do mesmo modo, quando uma crença que ameaça com penas terríveis e imaginárias é substituída por outra que não faça senão de penas ideais relativamente suaves, se produz forçosamente um retrocesso à antiga crença modificada. Nos períodos em que existe completa disparidade entre o melhor relativo e o melhor absoluto, as mudanças religiosas e políticas, quando se verificam, o que ocorre a grandes intervalos, são necessariamente violentas e produzem também reações violentas. Mas à medida que cai a disparidade entre o que é e o que deveria ser, as mudanças são mais suaves e as reações também, até que esses movimentos e contramovimentos decrescendo em intensidade e aumentando em frequência, se perdem, ao fim, em um desenvolver contínuo. A adesão a instituições primitivas e a antigas crenças, que em sociedades primitivas opunha uma barreira de ferro a todo progresso, e que depois da queda da barreira empurra todavia ainda mais para trás as instituições e as crenças, fazendo-as abandonar a posição avançada a que o impulso da mudança havia levado, e por esse retrocesso reproduz a adaptação de condições sociais ao caráter do povo, essa adesão é, em definitivo, o freio permanente que modera a marcha constante do progresso e impede que tome curso demasiado rapidamente. Existem, pois, crenças e formas religiosas como crenças e formas civis, e o sistema conservador em teologia, como em política, desempenha uma função da mais alta importância. § 33. O espírito de tolerância, verdadeiro caráter dos tempos modernos, e diariamente crescente, tem, pois, um sentido mais profundo do que se supõe. Onde, geralmente, não vemos mais que o respeito devido aos direitos da opinião individual, há, na verdade, uma condição necessária para o equilíbrio das tendências progressistas e conservadoras, uma maneira de conservar a adaptação entre as crenças dos homens e sua natureza. É um espírito (esse da tolerância) que é preciso sustentar, e o pensador de elevada visão, que distingue as funções de suas diversas crenças antagônicas, deve adotá-lo mais que os demais indivíduos. Sem dúvida, quem compreende a magnitude do erro em que incorrem seus contemporâneos, e a magnitude da verdade que rechaçam, achará difícil exercitar tanta paciência. É duro, para ele, ouvir com calma os vãos argumentos com que se defendem doutrinas irracionais e ver desfigurados os que ele opõe; é duro experimentar o orgulho da ignorância, mil vezes maior que o da Ciência. É natural que fique indignado ao ser acusado de irreligioso, por não admitir como melhor teoria da criação a que assemelha esse mistério ao trabalho de um carpinteiro. Pode julgar que é tão inútil quanto difícil ocultar sua antipatia por uma crença que atribui ao Incognoscível um regozijo pela baixa adulação que qualquer homem digno repeliria com desprezo. Convencido de que todo castigo não é, como vemos nas obras da natureza, senão um benefício disfarçado, condenará com desgosto a crença que faz dos castigos do Supremo Juiz uma vingança divina, supondo ainda tal vingança como eterna. Ver-se-á inclinado a manifestar seu desdém, ao ouvir que as ações inspiradas por uma simpatia sem egoísmo ou por puro amor ao bem, não são, no fundo, isentas de culpa, e que a conduta só é verdadeiramente virtuosa se guiada pela fé nas recompensas do outro mundo. Deve, porém, moderar esses sentimentos. Se não pode dominá-los no calor da discussão, ou quando no curso dos acontecimentos se encontre frente a frente com as superstições reinantes, necessário se torna que nos momentos de calma modere sua oposição, de forma a afastar de toda a violência a maturidade de seu juízo e a conduta naturalmente consequente. Para tanto é preciso ter em mente três fatos capitais. Já insistimos em dois deles, e fica por apontar o terceiro. O primeiro é o nosso ponto de partida: há uma verdade fundamental, por mais desfigurada que pareça, em todas as formas de religião; verdade que sempre se percebe de maneira clara ou obscura, segundo as religiões, através da tessitura de seus dogmas, tradições e ritos; verdade que dá vida até mesmo às crenças mais grosseiras, que sobrevive a todas as mudanças, e que devemos respeitar, mesmo condenando as formas pelas quais se apresenta. O segundo desses fatos capitais, o discutimos amplamente, no capítulo anterior. Vimos que se os elementos concretos com que cada crença encarna seu fundo de verdade são maus com respeito a um tipo absoluto, são bons com respeito a um tipo relativo; que, comparados a ideias mais elevadas, ocultam, como se atrás de um véu, a verdade abstrata; mas, comparados a ideias mais baixas, a mostram com maior clareza. Esses elementos concretos se prestam a dar realidade e influência perante os homens àquilo que, sem eles, não as teriam. Poderíamos chamá-los as coberturas protetoras sem as quais a verdade sucumbiria. O terceiro fato capital que ficou por discutir é o de que a diversidade de crenças forma parte, e não acessória, mas essencial, da ordem universal. Vendo como as crenças religiosas estão difundidas por todas as partes, e progridem continuamente, e se desaparecem, renascem com modificações apenas superficiais, é forçoso admitir que sejam elementos necessários à vida humana, e que cada uma delas é apropriada à sociedade em que se desenvolve espontaneamente. Da perspectiva em que nos colocamos, devemos reconhecer nessas crenças os elementos da grande evolução, cujo princípio e fim estão fora dos limites do conhecimento e mesmo da imaginação humana; ou seja, maneiras de manifestação do incognoscível. Nossa tolerância deveria ser a maior possível. Ou melhor, deveríamos tender para algo ainda melhor que a tolerância, tal como é comumente entendida; falando das crenças de outros, não apenas devemos procurar não cometer qualquer injustiça, seja por palavras, seja por obras, mas reconhecer nelas, francamente, um valor positivo. Devemos atenuar nosso ressentimento com nossas simpatias. § 34. Querer-se-á encontrar talvez, nessa maneira de ver, a opinião de que a teologia corrente deve ser aceita de uma maneira passiva, ou, ao menos, que a ela não se deva levantar qualquer oposição. "Por que" - perguntar-se-á -, "se as crenças são todas apropriadas aos tempos e lugares onde existem, não nos contentaríamos com aquela de nosso nascimento? Se a crença estabelecida possui uma verdade essencial, se as formas sob as quais ela apresenta essa verdade são, ainda que de maneira intrinsecamente inadequada, extrinsecamente boas, se a abolição dessas formas deve, por ora, ser perniciosa para a maioria das pessoas, e se existe ainda que só uma pessoa a quem a crença possa fornecer uma regra de conduta, seria com certeza mau, por ora, propagá-la?" A resposta é que, sem dúvida, as ideias religiosas, como as instituições políticas atuais, estão adaptadas ao caráter dos povos que sob elas vivem; contudo, como as características sociais mudam a todo instante, a adaptação se faz cada vez mais imperfeita, e aquelas ideias e instituições precisam ser reformadas com tanta frequência quanto velozes são as mudanças. De onde se deduz que, se é preciso deixar à ideia e à obra conservadora toda liberdade, também à liberdade têm direito a ideia e a obra do progresso. Sem o livre jogo dessas duas forças, não pode ser gerada a série contínua de readaptações necessárias para a regularidade do progresso. Se alguém hesita em proclamar o que acredita ser a verdade suprema por temor de que seja muito avançada a ideia para seu tempo, encontrará razões para contemplar seus atos como impessoais. Compreenda bem que a opinião é a força pela qual se modificam todas as instituições do foro externo; que sua opinião faz parte dessa força, é uma unidade de força, que com outras unidades da mesma ordem, constitui o poder geral que promove as mudanças sociais; verá então que pode legitimamente dar a público suas convicções íntimas, seja qual for o efeito produzido. Não será em vão que ele terá simpatia por certos princípios e repulsa por outros. Tenha presente que com todas as suas faculdades, aspirações e crenças ele não é um acidente fortuito, mas um produto natural de seu tempo; é filho do passado, mas pai do futuro; seus pensamentos são seus filhos e não deve, portanto, deixar que pereçam no abandono. Como todo homem, pode considerar-se como uma das miríades de forças que a Causa Desconhecida emprega, e que, quando produz em si uma determinada crença, não deve nada mais necessitar para proclamá-la, pois, dando aos versos do poeta seu mais nobre sentido: Mesmo que seja assim, a natureza Só melhora por meios produzidos pela própria natureza; sendo assim, Bem acima dessa arte que tu vês Competir com a Natura existe uma arte Que é por ela criada. (Fala do personagem Políxenes na peça O Conto do Inverno (4.4), de William Shakespeare) O verdadeiro sábio não considera sua fé como um acidente desimportante, manifesta sem medo a verdade suprema que concebe, e então sabe que, aconteça o que acontecer, cumpriu sua missão na Terra; se acontecer a mudança desejada, bem; se não, ainda bem, embora menos bem. SEGUNDA PARTE: O COGNOSCÍVEL I Definição da Filosofia § 35. Depois de concluirmos pela impossibilidade de conhecer a natureza íntima de qualquer coisa que para nós se manifesta, levantam-se as três seguintes questões: o que podemos conhecer? Em que sentido? Qual o grau mais alto de nosso conhecimento no que pode ser conhecido? Descartamos como impossível a Filosofia que pretende formular o Ser como distinto da Aparência; vemo-nos, pois, obrigados a dizer qual é o verdadeiro objeto da Filosofia, devendo não só traçar seus limites, como também descrever o caráter do que está contido dentro desses limites. Na esfera infranqueável dos domínios da inteligência devemos determinar o produto particular da mesma que pode denominar-se Filosofia. Para atingir este fim, podemos nos servir com vantagem do mesmo método que a princípio seguimos; podemos buscar isolar o elemento verdadeiro que sabemos existir em todos os conceitos parcial ou totalmente falsos. No capítulo consagrado à "Religião e Ciência", vimos que, por mais falsa que possa ser uma crença religiosa em sua forma particular, ela contém, contudo, uma verdade essencial, e esta verdade será muito provavelmente comum a todas as crenças. Veremos agora também que nenhuma das muitas ideias aceitas até hoje acerca da natureza da Filosofia é completamente falsa, e que o ponto em que essas ideias são verdadeiras é precisamente o ponto em que concordam todas elas. Haveremos, pois, de fazer, nessa segunda parte, o que na primeira fizemos: "compararemos todas as opiniões do mesmo gênero; deixaremos de lado, como mutuamente se destruindo, os elementos especiais e concretos em que essas opiniões discordam; observaremos o que resta após essa eliminação de objetos discordantes e encontraremos como resíduo uma expressão abstrata, verdadeira em todas as suas modificações divergentes". § 36. Vamos prescindir das especulações primitivas. Entre os gregos, antes que se houvesse destacado uma ideia geral da Filosofia das várias escolas filosóficas particulares, as doutrinas eram apenas hipóteses sobre o princípio universal que constituía a essência de todos os seres concretos. À pergunta: "qual é a existência invariável de que estes seres concretos são estados variáveis"? A resposta seca era: Água, Ar e Fogo. Uma vez propostas essas hipóteses, destinadas a explicar tudo, foi possível a Pitágoras conceber a Filosofia como um conhecimento sem aplicação prática, e defini-la: "O conhecimento das coisas imateriais e eternas". Para Pitágoras, "a causa da existência material das coisas" era o Número. Depois viu-se a Filosofia buscando uma interpretação definitiva do Universo, o que se acreditava ser possível, quer tenha sido alcançada ou não. Então foram dadas, ao longo dessa busca, para explicação de tudo, formulações tais como: "A Unidade é o princípio de tudo; A Unidade é Deus; A Unidade é finita; A Unidade é infinita; a inteligência é o princípio regulador das coisas", e outras. Todas essas fórmulas provam claramente que o conhecimento chamado Filosofia diferia dos demais por seu caráter transcendente e universal. Mais à frente, as especulações seguiram outro rumo, os céticos quebraram a fé dos homens, que se acreditavam destinados a conquistar essa ciência transcendente, resultando num conceito mais modesto de Filosofia. Com Sócrates, e ainda mais com os estoicos, a Filosofia pouco mais significava que a doutrina do viver corretamente; não se foi além de fornecer regras para as condutas privada e pública. Essas regras, porém, tais como as professavam os últimos filósofos gregos, não correspondiam àquilo que o vulgo entendia por regras de conduta. As prescrições de Zenão (Zenão de Cítio (333 a.C. - 263 a.c.), filósofo grego que fundou a escola estoica) não eram da mesma classe que as que dirigiram os homens, desde os primeiros tempos, em suas práticas e costumes diários, submetidas todas a uma sanção religiosa; eram princípios de ação, enunciados sem preferência de tempos, pessoas ou circunstâncias. Qual era, pois, o elemento comum que continham todas as ideias dessemelhantes que os antigos tinham da Filosofia? É claro que o caráter comum às últimas e às primeiras ideias é que, na esfera de suas investigações, a Filosofia busca verdades amplas e profundas, distintas das inumeráveis verdades de detalhe que aparecem na superfície das coisas e ações. Comparando as acepções da Filosofia, correntes na vida moderna, chegamos ao mesmo resultado. Os discípulos de Schelling, de Fichte e aparentados, se unem aos hegelianos para troçar da doutrina que leva aquele nome na Inglaterra. Não sem razão ridicularizam a locução "instrumento filosófico" e com algum fundamento poderiam recusar aos artigos de Philosophical Transactions todo direito ao uso desse título. Em represália, poderiam os ingleses taxar de absurda a Filosofia imaginária das escolas alemãs. Pois, não podendo ir o homem além de sua consciência, revele esta, ou não, a existência de algo fora dela, este algo nunca poderá ser compreendido, e, por conseguinte, toda Filosofia que pretenda ser ontologia é falsa. Essas duas escolas se destroem mutuamente em grande parte. Criticando os alemães, os ingleses deixam fora da Filosofia todo o conhecimento visto por aqueles como absoluto; criticando os ingleses, os alemães supõem, tacitamente, que se a Filosofia se reduz ao relativo, nada tem que ver, de certo modo, com os aspectos dos relativos, que expressam as fórmulas matemáticas, as experiências físicas, as análises químicas, as descrições de espécies naturais e as experiências fisiológicas. Pois bem: que há de comum entre o conceito por demais vasto dos alemães e o talvez por demais estreito dos ingleses, mas não tão estreito quanto se poderia supor pelo mau uso comum da palavra filosófico? Há de comum que nem uns e nem outros aplicam a palavra filosófico a um conhecimento desprovido de todo travamento sistemático, a um conhecimento não coordenado com outros. O sábio dedicado à mais minuciosa especialidade não chamará de filosófico um ensaio que, limitado exclusivamente aos detalhes, não revele ao seu autor o sentimento de que esses detalhes conduzem a verdades mais amplas. Pode-se precisar mais a ideia, ainda vaga, desse fundo comum, em que coincidem os diversos conceitos da Filosofia, comparando o sistema que leva na Inglaterra o nome de Filosofia Natural, com o desenvolvimento que recebeu na França com o nome de Filosofia Positiva. Mesmo que Augusto Comte admita que esses dois sistemas se compõem de conhecimentos essencialmente idênticos, bastou para ele, então, dar a esses conhecimentos uma forma mais coerente para imprimir ao sistema de que é autor um caráter mais filosófico. Sem julgar o sistema de coordenação que propôs, deve reconhecer-se que, pelo fato mesmo de havê-lo criado, deu mais direito para atribuir o título de Filosofia ao corpo de doutrina que organizou do que o que tem o conjunto de conhecimentos relativamente desorganizados que chamamos Filosofia Natural. Se comparados entre si, e com o conjunto que constituem, as subdivisões ou formas especiais da Filosofia, a mesma ideia se destaca. A Filosofia Moral e a Filosofia Política concordam com a Filosofia em geral no grau de alcance de seus argumentos e conclusões. Mesmo que sob o título de Filosofia Moral se trate das ações humanas consideradas como boas ou más, não se incluem, por exemplo, as regras especiais de conduta para com as crianças, na mesa ou nos negócios; e mesmo que a Filosofia Política tenha por objeto a conduta dos homens em suas relações públicas não se ocupa das maneiras de votar nem dos detalhes administrativos. Uma e outra consideram os casos particulares apenas como exemplos que põem em relevo verdades da mais vasta aplicação. § 37. Cada um desses conceitos implica, então, na crença de que existe provavelmente uma maneira de conhecer as coisas mais completa e perfeitamente do que conhecemos pelas simples experiências maquinalmente armazenadas na memória ou em uma enciclopédia. Se se discutiu e se discute ainda, largamente, acerca da extensão e limites da esfera preenchida pela Filosofia, existe uma conformidade real, embora não proclamada, de não dar esse nome senão a conhecimentos que superem o ordinário. O que fica como elemento comum entre os diversos conceitos de Filosofia, quando suprimidos os elementos discordantes é: conhecimento no maior grau de generalidade. Isso é o que se quer dizer quando incluímos no domínio da Filosofia: Deus, a Natureza e o Homem, ou melhor, quando se divide a Filosofia em teológica, física, ética etc. porque o caráter do gênero, cujas espécies são essas divisões, deve ser mais geral que os caracteres que distinguem uma das outras espécies. Que forma específica daremos a este conceito? A inteligência só alcança o relativo; conservando sempre a consciência de um Poder que se nos manifesta em todo o cognoscível, descartamos como inútil toda tentativa de conhecimento desse Poder, e, portanto, desalojamos a Filosofia da maior parte dos domínios que se acreditava serem sua propriedade. Resta a ela a parte que ocupa a Ciência. Esta tem por objeto as coexistências e subsequências dos fenômenos; primeiro as agrupa para formar generalizações simples de primeiro grau, e se eleva gradualmente até as mais altas e vastas generalizações. Mas, se assim for, o que fica para a Filosofia? Vamos responder. A Filosofia ainda pode servir de nome ao conhecimento do grau maior de generalidade. A Ciência significa simplesmente a família das ciências; não é mais que a soma dos conhecimentos formada pelos acervos de todas, e nada nos diz do conhecimento que resulta da fusão desses acervos em um todo. Tal como se costuma defini-la, a Ciência se compõe de verdades mais ou menos isoladas, e desconhece sua integração. Um exemplo esclarecerá melhor essa diferença. Quando atribuímos o escoamento da água de um rio à mesma força que produz a queda de uma pedra, formulamos uma proposição verdadeira para toda uma classe de fatos de uma seção da Ciência. Se, indo além, para explicar esse movimento quase horizontal, citamos a lei de que os fluidos submetidos a forças mecânicas reagem como forças iguais em todos os sentidos, formulamos um fato mais extenso, que contém a interpretação científica de muitos outros fenômenos, como os das fontes, a prensa hidráulica, as máquinas a vapor, a máquina pneumática etc. Assim, quando essa proposição, que apenas se estende à Mecânica dos Fluidos seja incluída em uma proposição de Mecânica Geral que compreenda as leis tanto dos movimentos dos sólidos como dos fluidos, ter-se-á um princípio superior, mas ainda inteiramente no domínio da Ciência. Quando consideramos apenas os mamíferos e as aves, supomos que os animais que respiram o ar têm sangue quente; mas se notamos que os répteis, que também respiram o ar não têm temperatura muito superior ao meio ambiente, diremos, com mais verdade, que os animais têm aproximadamente temperaturas proporcionais às quantidades de ar que respiram (com igual tamanho); mas, recordando alguns peixes que têm temperatura superior à da água em que vivem, corrigiremos a generalização anterior e diremos que a temperatura varia proporcionalmente ao grau de oxigenação do sangue; por último, modificando essa proposição em virtude de novas objeções, afirmaremos definitivamente que a quantidade de calor produzido está na razão direta da quantidade de mudanças moleculares do organismo. Fomos enunciando verdades científicas cada vez mais amplas, cada vez mais completas, mas não saímos, ao fim, de verdades puramente científicas. Se, levados por experiências comerciais, chegamos a deduzir que os preços sobem quando a demanda excede a oferta, que os produtos escoam dos lugares onde existem em abundância para os locais em que são raros, e que as indústrias das diversas localidades estão determinadas pelas facilidades que essas localidades oferecem; e se, estudando essas generalizações da Economia Política as referimos todas ao princípio de que cada homem procura satisfazer suas necessidades através dos meios que dele exijam menor dispêndio de esforços, princípio que rege as ações individuais e cujas resultantes são esses grandes fenômenos sociais, o valor, o comércio, a indústria; contudo, estaremos ainda tratando exclusivamente de proposições científicas. Como então constituir a Filosofia? Dando um passo a mais. Quando não se trata de nada mais que verdades científicas isoladas e independentes, não se pode, sem alterar o sentido estrito das palavras, chamar de filosófica a mais geral dessas verdades. Mas quando, após havê-las reduzido, uma a um simples axioma de mecânica, outra a um princípio de física molecular, a terceira a uma lei de ação social, as consideramos todas como corolários de uma verdade superior, então chegamos ao conhecimento do que constitui a Filosofia propriamente dita. As verdades filosóficas têm, pois, com as mais elevadas verdades científicas, a mesma relação que estas guardam com as verdades científicas inferiores. Da mesma forma com que cada generalização científica abarca e consolida as generalizações inferiores de sua seção, as generalizações da Filosofia abarcam e consolidam todas as generalizações científicas. Por conseguinte, a Filosofia é um conhecimento diametralmente oposto àquele que nos dá a experiência com a assimilação de fatos. É o produto da operação que começa por uma simples coleta de observações, que continua com a elaboração de proposições mais amplas e mais desligadas de casos particulares, e termina em proposições universais. Para dar à definição sua forma mais singela e clara, diremos: o conhecimento vulgar é o saber não unificado; a ciência é o saber parcialmente unificado; a Filosofia é o saber completamente unificado. § 38. Tal é, ao menos, o sentido que devemos aqui dar à palavra Filosofia, quando a usarmos. Com essa definição, aceitamos tudo que é comum aos diversos conceitos antigos e modernos da Filosofia, e nos desfazemos de tudo que é diferente e que excede os limites da inteligência humana. Em suma, nos limitamos a dar a essa palavra o sentido preciso que tende a prevalecer atualmente. Sob esse ponto de vista, a Filosofia apresenta duas formas distintas, que podem merecer tratamento em separado. Por uma parte, pode ter por objeto as verdades universais, não tratando as particulares senão como comprovações e elucidações daquelas. Por outra parte, partindo das verdades universais como princípios admitidos, pode-se abordar as verdades particulares interpretando-as por via das universais; em um e outro caso devemos estudar as verdades universais, mas no primeiro fazendo-as desempenhar um papel passivo, e no outro um papel ativo; num deles, são os produtos, e no outro, os instrumentos da Ciência; a primeira chamamos Filosofia Geral, e a segunda, Filosofia Especial. O restante desta obra conterá a Filosofia Geral. A Filosofia Especial, dividida em seções, segundo a natureza dos fenômenos que formam seu objeto, constituirá outras obras sucessivas. II Dados da Filosofia § 39. Todo pensamento implica em um sistema completo de pensamentos e cessa de existir a partir do momento em que se separa de seus correlativos. Assim como não podemos isolar um órgão de um corpo vivo e tratá-lo como se tivesse vida independente do restante do corpo, também não podemos separar do organismo de nossos conhecimentos um deles e estudá-lo como se sobrevivesse à separação. O desenvolvimento do protoplasma amorfo do embrião é uma especificação de partes que se fazem mais distintas à medida que se tornam mais complexas. Cada uma dessas partes não forma um órgão distinto se não estiver unida a outras partes, que também se transformam em outros órgãos, no devido tempo. Do mesmo modo, uma inteligência já completamente desenvolvida não pode organizar-se com os informes materiais da consciência, exceto por uma operação que, dando aos pensamentos caracteres definidos, venha a uni-los entre si com certos laços de mútua dependência, com certas conexões vitais, cuja destruição produziria também a daqueles pensamentos. Por ignorar esta importante verdade muitos pensadores tomaram comumente como ponto de partida um ou vários dados supostamente simples; acreditaram não admitir mais que esses dados e deles se serviram para provar ou refutar proposições que implicitamente eram já afirmadas inconscientemente, junto com outras, conscientemente proclamadas. Esse círculo vicioso provém de um mau uso das palavras; não aquele mau uso comumente exagerado, da aplicação indevida ou troca de sentido a que muitos erros são devidos, mas a um mau uso mais radical e menos óbvio. Consiste em considerar apenas a ideia significada por cada palavra, prescindindo das numerosas ideias aderentes, significadas quase sempre mais ou menos indiretamente. Se uma palavra falada ou escrita pode ser destacada das demais, supõe-se que a coisa que ela significa possa também ser isolada das outras coisas. Esse erro é da mesma natureza daquele que extraviou os gregos fazendo-os crer numa comunidade de essência entre o símbolo e a coisa simbolizada, mas é mais difícil de ser descoberto. Mesmo se admitindo hoje em dia que a comunidade de natureza não vá tão longe como antigamente se acreditava, se admite ainda que, como o símbolo é separável dos outros símbolos e pode ser considerado existência independente, o mesmo suceda à coisa simbolizada. Um exemplo será suficiente para provar até que ponto esse erro vicia as deduções de quem nele incorre. O metafísico cético, que deseja dar a seu raciocínio todo rigor possível, afirma: "admitirei tal coisa, mas nenhuma outra." Mas não existem suposições tácitas inseparáveis da que ele admite? Nessa própria afirmação não proclama ele, implicitamente, que há outra ou outras coisas que poderia e não quer admitir? Na verdade, é impossível pensar na unidade sem pensar em uma dualidade ou pluralidade correlativas. Mesmo que se imponha limites, o cético conserva, contudo, muitas coisas que crê abandonar. Além disso, antes de tudo, define o que admite; logo, tem ideia de algo que exclui essa definição, de outra existência que não a definida. Mais ainda: definir uma coisa ou limitá-la implica a ideia de limite, e esta, a de extensão, duração ou grau, e a definição é impossível sem as ideias de diferença e semelhança entre a coisa definida e outras. A diferença não só é inconcebível sem a existência de duas ou mais coisas que difiram como também sem a existência de outras diferenças, pois é impossível formar-se um conceito universal de diferença. A semelhança é indispensável (§24) para a aquisição de uma ideia, porque nenhuma coisa pode ser conhecida em absoluto como única, mas apenas como de tal ou qual espécie, como classificada com outras, em virtude de propriedades comuns. Em resumo, ao lado do único dado admitido pelo cético, encontramos muitos outros não admitidos explicitamente, mas por ele admitidos implícita ou tacitamente, a saber: "outra existência, além da suposta, a quantidade, o número, o limite, a diferença, a semelhança, o gênero, o atributo". Sem falar de muitos outros dados que a análise completa poderia descobrir, temos nesses postulados não reconhecidos o projeto de uma teoria geral que a argumentação do cético não pode provar ou refutar. Acrescentemos que ele interpretará seu símbolo a cada passo com seu pleno significado, com todas essas ideias complementares que implica, e ver-se-á reconhecido nas premissas o princípio que a conclusão deve afirmar ou negar. Que caminho deve então seguir a Filosofia? A inteligência, em seu pleno amadurecimento, se compõe de conceitos organizados e consolidados, dos quais não pode desprender-se e sem os quais não pode mover-se, como um corpo sem membros. Qual é a maneira pela qual a inteligência, em busca de uma filosofia, poderá dar-se conta de seus conceitos e demonstrar sua validade ou sua invalidade? Existe apenas uma: admitir como verdadeiras, provisoriamente, aquelas ideias vitais, ou que não podem ser isoladas sem produzir a dissolução mental. Aquelas intuições fundamentais, essenciais para o processo de pensar, devem ser temporariamente aceitas como inquestionáveis: deixando aos resultados a tarefa de justificar essa hipótese. § 40. Como seria essa justificativa pelos resultados? Como qualquer outra concepção é justificada - certificando-nos de que todas as conclusões dela dedutíveis têm correspondência com os fatos diretamente observados - mostrando a concordância entre as experiências cujo resultado ela nos leva a antecipar e as experiências já observadas. Não há outra maneira de estabelecer a validade de nenhuma crença a não ser mostrando sua total congruência com todas as outras crenças. Que fazemos, por exemplo, para provar que é ouro uma determinada massa que por sua cor e brilho suspeitamos que o seja? Recordar outras impressões que o ouro nos desperta e examinar se, nas mesmas condições, essa massa também as desperta. Por exemplo: o ouro tem considerável peso específico. Se sopesarmos essa massa que examinamos e verificarmos ser grande seu peso em relação ao seu volume, consideraremos esse fato como uma nova prova de que se trata de ouro. Se quisermos mais provas, e sabendo que o ouro, ao contrário da maioria dos metais é insolúvel no ácido nítrico, depositamos sobre a massa em exame uma gota daquele ácido. Se essa substância amarela, brilhante, pesada, não apresenta efervescência ou outra reação com o ácido, tomamos essa concordância entre o previsto e o acontecido como uma razão a mais para pensar ser ouro a substância em questão. Se ainda a grande maleabilidade do ouro nos parece igualada pela maleabilidade dessa substância, se ela se funde a 2.000 graus e se, em todas as condições sucede a ela o que ao ouro acontece nas mesmas circunstâncias, nossa convicção se eleva àquele grau máximo que chamamos certeza; sabemos já, na mais estrita e rigorosa acepção da palavra saber, que tal substância é ouro. De fato, tudo o que sabemos do ouro é: um grupo determinado de impressões que têm entre si relações determinadas e que se manifestam em certas condições; e se em um experimento presente as impressões, condições e relações são perfeitamente concordes com aquelas de experiências passadas, o conhecimento adquire toda a validade de que é suscetível. De maneira que, para generalizar a proposição diremos: que as hipóteses, mesmo as mais simples que a toda hora fazemos quando reconhecemos objetos, são comprovadas e confirmadas quando reconhecemos também inteira conformidade entre os estados de consciência que as constituem e outros estados dados na percepção, na reflexão ou em ambas, e não há para nós outro conhecimento possível que o constituído pela intuição dessas conformidades e desconformidades. Portanto, a Filosofia, obrigada a fazer essas suposições fundamentais, sem as quais é impossível o pensamento, pode justificá-las mostrando sua conformidade com todas as outras revelações da consciência. Impossibilitados como estamos de conhecer mais que o relativo, a verdade, mesmo em sua forma mais elevada, não pode ser para nós mais que a concordância perfeita em todo o campo da experiência entre as representações das coisas, que chamamos ideais, e as percepções, que chamamos de reais. Se quando descobrimos que uma proposição não é verdadeira queremos dizer simplesmente que descobrimos uma não concordância entre o que supúnhamos e o que comprovamos, quando não se apresentam essas diferenças podemos dizer que encontramos a verdade. Vejamos claramente que sempre que se parte dessas intuições fundamentais cuja verdade provisoriamente se admite, ou seja, se admite sua compatibilidade com as demais revelações da consciência, a demonstração ou a refutação dessa compatibilidade constitui o objeto da Filosofia, e a demonstração completa da compatibilidade é o mesmo que a unificação completa do conhecimento, objeto real da Filosofia. § 41. Qual é, então, esse dado, ou melhor, quais são esses dados necessários à Filosofia? A proposição que acabamos de formular implica necessariamente em um dado primordial. Temos suposto, implicitamente, e devemos continuar supondo, que as compatibilidades e incompatibilidades existem e que podemos conhecê-las. Não podemos deixar de admitir o veredicto da consciência quando nos diz que certas manifestações se parecem com certas outras ou não. Se a consciência não é juiz competente da semelhança ou dessemelhança de seus estados, não há possibilidade de estabelecer essa compatibilidade que se encontra em todos os nossos conhecimentos e que constitui a Filosofia, e não se pode outrossim estabelecer a incompatibilidade mediante a qual unicamente se pode provar a falsidade de uma hipótese filosófica ou de outra qualquer. Vemos mais claramente a impossibilidade de avançar, seja para a certeza, seja para o ceticismo, sem a suposição desses dados, se se observa como a cada passo dado no raciocínio os supomos sempre por toda parte. Dizer que todas as coisas de certa classe estão caracterizadas por determinados atributos, é dizer que todas as coisas conhecidas como semelhantes, pelos diversos atributos que seu nome comum abraça, são também semelhantes pelos atributos de que se fala. Dizer que um objeto determinado sobre o qual, em dado momento, se fixa nossa atenção, pertence a essa classe é dizer que é semelhante a todos os outros, nos diversos atributos conotados por seu nome comum. Dizer que esse objeto possui tal ou qual atributo particular é dizer que é semelhante aos outros também nesse aspecto. Pelo contrário, afirmar que o atributo que se supunha nesse objeto não lhe pertence, é afirmar que em vez da semelhança anunciada existe uma dessemelhança. Por conseguinte, não é possível nem a afirmação e nem a negação de um teorema racional ou de um elemento qualquer de um desses teoremas, se não se admite o testemunho da consciência, quando afirma que certos estados seus são semelhantes ou dessemelhantes. Portanto, depois de ter visto que o conhecimento unificado, que constitui uma filosofia completa, se compõe de partes universalmente compatíveis; depois de ter visto que a Filosofia tem por objeto demonstrar essa compatibilidade, vemos também que todas as partes da operação que estabelece essa compatibilidade universal, compreendidos os elementos de todo o raciocínio e toda observação, estribam na demonstração de uma compatibilidade. Por conseguinte, a hipótese de que existe uma compatibilidade ou uma incompatibilidade, quando a consciência o afirma, é uma hipótese ineludível. Não adianta dizer, como fez Hamilton, que "Deve-se presumir a veracidade da consciência, enquanto não se provou que ela nos engana", pois não se pode provar que ela é falaz nisso, que é seu ato primordial porque a prova implicaria na aceitação dupla desse ato primordial. Melhor ainda, o que deveríamos provar sequer pode ser enunciado, se não se admite a validade desse ato primordial; pois o falso e o verdadeiro são idênticos, se não admitimos o julgamento da consciência que afirma sua diferença. Sem essa hipótese desaparecem simultaneamente a operação de raciocinar e o produto do raciocínio. Pode-se sem dúvida às vezes provar que estados de consciência que se acredita semelhantes, mediante atento e minucioso cotejo, são, no entanto, dessemelhantes na realidade; ou vice-versa, que os julgados por negligência dessemelhantes venham a ser na realidade semelhantes. Mas como prová-lo? Por outra comparação mais atenta, seja direta, seja indireta. E o que supõe a aceitação da conclusão revisada? Simplesmente que um julgamento da consciência, via da reflexão, é preferível a um julgamento irrefletido: ou, falando com mais precisão, que uma intuição de semelhança ou diferença, resistente à crítica, é preferível a outra, que não resiste, sendo essa resistência o que constitui a preferência. Chegamos ao fim do assunto. A permanência de uma intuição de semelhança ou de diferença é a garantia fundamental para afirmar essa semelhança ou essa diferença, e de fato mais não sabemos de sua existência senão por essa intuição permanente. Dizer que uma compatibilidade ou incompatibilidade existe, é simplesmente a maneira usual de dizer que temos a intuição invariável de uma e outra, ao mesmo tempo que a temos das coisas comparadas. Da existência apenas conhecemos suas constantes manifestações. § 42. Mas a Filosofia pede um dado mais concreto. Não basta reconhecer como indiscutível um processo determinado do pensamento; é preciso reconhecer a mesma propriedade em algum produto obtido mediante esse processo. Se a Filosofia é o saber completamente unificado; se a unificação do conhecimento só pode ser efetuada demonstrando que uma proposição final envolve e consolida todos os resultados da experiência, é claro que essa última composição cuja compatibilidade com as demais é preciso demonstrar, deve representar um fragmento do conhecimento, e não a validade do ato de conhecer. Admitimos a veracidade da consciência; devemos admitir também a verdade de algum dado liberado da consciência. E qual deverá ser esse produto? Não deverá formular a distinção mais ampla e mais profunda que as coisas apresentem? Não deverá formular compatibilidades e incompatibilidades mais gerais que as outras? Um princípio primário que deverá dar unidade a toda experiência deverá ter a mesma extensão que ela, não poderá limitar-se a experiência de uma ou muitas ordens, devendo aplicar-se à experiência universal. O dado que a Filosofia toma por base deve ser a afirmação de alguma semelhança ou alguma diferença à qual todas as demais semelhanças ou todas as demais diferenças estejam subordinadas. Se conhecer é classificar ou agrupar o semelhante e separar o dessemelhante, e se a unificação do conhecimento se faz pela inclusão das classes menores de experiência em outras maiores, e assim sucessivamente, é preciso que a proposição que dá unidade ao conhecimento especifique a oposição das duas últimas classes de experiências, em que estejam incluídas todas as demais. Vejamos agora quais são essas classes. Traçando entre ambas uma linha de demarcação, não podemos evitar o uso de palavras que implicam indiretamente mais que seu sentido direto, não podemos evitar o surgimento de ideias que suponham implicitamente a própria distinção que a análise tenha por finalidade estabelecer. Não esqueçamos, tudo que podemos fazer é não levar em conta analogias de palavras e dirigir a atenção apenas para o que signifiquem clara e explicitamente. § 43. Se partimos do princípio já estabelecido de que todas as coisas que conhecemos são manifestações do Incognoscível, e se suprimimos, na medida do possível, toda hipótese sobre o que está oculto atrás de tal ou qual ordem de manifestações, vemos que estas, consideradas simplesmente como tais, podem ser divididas em duas grandes classes: impressões e ideias. O que estas palavras significam pode viciar o raciocínio de quem as emprega; e mesmo quando é possível não se servir delas a não ser para recordar os caracteres diferenciais que se quer indicar empregando-as, vale mais evitar o perigo de fazê-lo servindo-se delas, hipóteses ainda não reconhecidas. A palavra sensação comumente usada como sinônimo de impressão, implica também certas teorias psicológicas; e tácita senão explicitamente, supõe um organismo sensitivo e alguma coisa que age sobre esse organismo; não se pode, pois, empregá-la sem a inclusão de certos postulados nos pensamentos e sem sua introdução nas conclusões. Analogamente, a frase estados de consciência, por seu duplo significado, impressões ou ideias, dá armas à crítica. Como não podemos pensar em um desses estados sem pensar em algo a que pertence e que é suscetível de muitos estados, tais palavras implicam em uma conclusão antecipada, um sistema em embrião de metafísica. Adaptando o postulado iniludível de que toda manifestação implica em um manifestado, nosso fim é evitar todo outro postulado implícito. Sem dúvida, não podemos excluir de nossos pensamentos outras suposições implícitas nem raciocinar sem reconhecê-las tacitamente; mas podemos, até certo ponto, recusar reconhecê-las nos primeiros termos do raciocínio; isto conseguiremos classificando as manifestações em vívidas e débeis umas em relação às outras. Vejamos quais diferenças as separam. Digamos primeiro algo sobre a distinção mais evidente que essas palavras em antítese revelam. As manifestações que se nos apresentam sob a forma de percepções (devemos, tanto quanto possível, separar de toda hipótese essas formas e considerá-las apenas como formando um grupo determinado de manifestações) são comumente mais vivas, mais distintas que as que se apresentam sob a forma de juízos, recordações, imagens ou ideias. Às vezes, contudo, diferem muito pouco umas das outras. Por exemplo, quando está quase escuro, não podemos, em certas ocasiões, dizer se uma manifestação determinada pertence à ordem vívida ou débil, se efetivamente vemos alguma coisa ou se imaginamos vê-la. Analogamente, entre a sensação sonora muito débil e a figuração do som, é muitas vezes difícil decidir o estado real de consciência. Mas esses casos excepcionais são muito raros, se comparados ao grandíssimo número de casos em que as manifestações vívidas se distinguem das débeis, sem possibilidade de erro; inversamente, acontece às vezes (embora em condições que, para distingui-las bem, chamamos anômalas ou anormais) que as manifestações da ordem das débeis chegam a ser tão fortes que aparentemente se confundem com aquelas da ordem vívida. Em alguns alienados, por exemplo, fenômenos puramente ideais da vista ou do ouvido adquirem tal intensidade que são classificados como reais fenômenos visuais ou auditivos. Esses casos de ilusão, pois assim são chamados, se apresentam também em tão pequeno número em relação à grande massa de casos reais, que temos direito a desprezá-los e dizer que a debilidade relativa a essas manifestações de segunda ordem é tão marcada que não temos dúvida de que são de natureza distinta que as de primeira ordem. E se nos assalta a dúvida, por exceção, existem outros meios de averiguar a que ordem pertence uma manifestação determinada, se falha o critério da intensidade. As manifestações de ordem vívida precedem, em nossa experiência, às de ordem débil; ou, usando as palavras há pouco mencionadas, a ideia é uma fraca e imperfeita repetição da impressão original. Na ordem cronológica, há: primeiro uma manifestação presente de ordem vívida, e depois uma manifestação representada semelhante a primeira, menos em um ponto, a saber: é muito menos clara. A experiência universal nos prova que, depois de experimentar as manifestações vívidas, que chamamos tais ou quais lugares, pessoas, coisas etc., podemos ter as manifestações débeis, que chamamos de lembranças dos lugares, pessoas, coisas, que antes não poderíamos ter; e também que antes de provar certas substâncias ou cheirar certos perfumes, carecemos das manifestações débeis que chamamos ideias de seus sabores ou odores; sabemos por último que quando certas ordens de manifestações vívidas faltam (caso dos cegos, surdos etc.) as manifestações débeis correspondentes também não se produzem. É certo que, em alguns casos, as manifestações débeis precedem as vívidas. Assim, o que chamamos de invenção de uma máquina começa geralmente por uma ideia ou imagem que pode ser seguida da manifestação vívida correspondente, de uma verdadeira máquina. Mas em primeiro lugar, a produção de uma manifestação vívida depois da débil não tem analogia com a produção da débil depois da vívida e não a segue espontaneamente, como a ideia segue à impressão; e em segundo lugar, ainda que uma manifestação débil dessa espécie possa apresentar-se antes da vívida correspondente, assim não ocorre com seus elementos; sem manifestações prévias vívidas de rodas, varetas, tirantes etc., o inventor não poderia fazer nenhuma manifestação débil de sua nova máquina. Portanto, a produção de manifestações débeis só é possível pela produção prévia das vívidas, distinguindo-se ainda que as vívidas são independentes e as débeis são dependentes. Essas duas ordens de manifestações formam duas séries paralelas, ou melhor, pois a palavra série implica uma disposição linear, duas correntes ou processos heterogêneos que correm lado a lado, que se afastam e se aproximam alternativamente, e que tanto quanto um ameaça suprimir seu vizinho, está também ele exposto a desaparecer, sem que, contudo, um desaloje o outro de seu curso comum. Estudemos com cuidado as ações que os dois processos exercem mutuamente um sobre o outro. Durante o que chamamos nossos estados de atividade, as manifestações vívidas predominam; recebemos simultaneamente uma multidão de impressões diversas visuais, auditivas, olfativas, gustativas e táteis; certos grupos variam, outros permanecem fixos por algum tempo; mas variam quando nos movimentamos; e se comparamos em número e volume esse composto heterogêneo de manifestações vívidas com o composto paralelo de manifestações débeis, estas nos parecem insignificantes; contudo, não desaparecem: ao lado das manifestações vívidas, ainda que em sua maior preponderância, a análise descobre uma cadeia de ideias e interpretações constituídas pelas manifestações débeis. Se se pretende que uma explosão espantosa ou uma dor crucial podem, por um momento, suprimir toda ideia, é preciso admitir também que não se pode conhecer imediatamente tal solução de continuidade, uma vez que sem ideias o ato de conhecimento é impossível. Por outro lado, depois de certas manifestações vívidas que nos obrigam a fechar os olhos ou a tomar medidas para baixar a pressão, o nível sonoro etc., as manifestações de ordem débil adquirem um predomínio relativo; seu processo heterogêneo e variável, que não está determinado pelo processo das manifestações vívidas, aparece mais distinto e parece querer excluir o processo contrário, mas este também nunca desaparece no estado consciente, embora se reduza a proporções muito pequenas; a pressão e o tato nunca desaparecem completamente. Só no estado inconsciente chamado sonho as manifestações da ordem vívida cessam de ser percebidas como tais e as de ordem débil tomam o lugar daquelas e se impõem sobre nós. Nada percebemos dessa usurpação, até que, ao despertar, voltam as manifestações de ordem vívida, cuja ausência nunca podemos saber diretamente, somente o sabendo no momento em que reaparecem. As duas séries compostas e paralelas de manifestações conservam, pois, sua continuidade. Correndo uma ao lado da outra, se usurpam às vezes alternativamente suas funções, mas não se pode dizer que uma interrompeu a outra, em tal momento ou em tal lugar. Além dessa coesão longitudinal, existe outra lateral das manifestações vívidas com vívidas e das débeis com as débeis. Os elementos da série de impressões vívidas estão unidos por relações de coexistência e por relações de sucessão; o mesmo acontece aos elementos da série débil. Em ambos os casos, a união apresenta diferenças marcantes e muito significativas quanto a seu grau. Vamos estudá-las. Em um espaço, dentro do que se chama campo da visão, há um grupo de luzes, sombras, cores e contornos, que considerado como sinal de um objeto, recebe um nome; enquanto essas manifestações vívidas, unidas, estejam presentes, são elas inseparáveis. O mesmo acontece com todos os grupos coexistentes de manifestações; cada um persiste como um composto especial, e a maioria conserva relações fixas com os grupos em volta. Há os que não são suscetíveis do que se chama movimentos independentes, e outros há que o são; contudo, nos apresentando as manifestações que os compõem, unidos por uma conexão constante, apresentam então essas mesmas manifestações unidas a outras por uma conexão variável. Mesmo após certas manifestações vívidas, que chamamos mudanças nas condições de percepção, havendo uma mudança nas proporções das manifestações vívidas que constituem um grupo qualquer, sua coesão permanece; nem por isso se pode separar ou isolar uma ou muitas delas. Vemos também que as manifestações débeis apresentam coesões laterais entre si, mas muito menos extensas, e na maioria dos casos infinitamente menos intensas. Fechando os olhos, podemos representar um objeto que está à vista, em outro lugar ou ausente. Olhando um vaso azul, não podemos separar a manifestação vívida da cor azul, da manifestação vívida da forma do vaso; mas na ausência dessas manifestações vívidas, podemos separar a manifestação débil da cor azul da forma, e mesmo substituir aquela por manifestação vívida da cor vermelha, e assim em toda a analogia. As manifestações débeis têm conexões entre si; porém, não obstante, podem quase sempre entrar em novos arranjos ou coordenações. Pode-se também dizer que as conexões das manifestações débeis individuais não são indissolúveis como as das manifestações vívidas individuais. Mesmo unida a uma manifestação débil de pressão, existe sempre outra manifestação débil de extensão, e nenhuma manifestação débil particular está encadeada a outra manifestação débil particular de pressão. Na ordem vívida, as manifestações individuais contraem adesões mútuas indissolúveis, e comumente formam grandes grupos; mas na ordem débil, as manifestações individuais não contraem adesões indissolúveis e se unem fracamente quase sempre. As únicas conexões indissolúveis que costumam existir entre as manifestações débeis, são as que unem algumas de suas formas genéricas. Se os elementos de cada processo têm relações mútuas, elas não são menos fortes entre si. Ou mais exatamente, podemos dizer, que o processo vívido corre geralmente sem sofrer a menor perturbação pelo débil, e que o débil, mesmo que seja sempre influenciado e até certo ponto rebocado pelo vívido, pode, contudo, conservar uma independência real, e correr, por seu lado, sem que ambos se misturem. Consideremos suas recíprocas interferências. As sucessivas manifestações débeis que constituem o pensamento são impotentes para as mínimas modificações nas manifestações vívidas que se apresentam. Se prescindirmos de uma classe total de exceções, das quais em breve falaremos, as manifestações vívidas, fixas ou variáveis, não são modificadas diretamente pelas débeis. Por exemplo, as que percebemos como elementos de uma paisagem, o bramido do mar, o silvar do vento, o movimento das carruagens e das pessoas, não são, de nenhuma maneira, modificadas pelas manifestações débeis que as acompanham, e que percebemos como ideias. Por outra parte, a corrente das manifestações débeis é modificada, mesmo que pouco, geralmente pelas manifestações vivas. Às vezes se compõe, principalmente, de manifestações débeis, unidas fortemente a outras vívidas, e arrastadas por estas quando desaparecem. As recordações, as sugestões, unidas às manifestações vívidas, que as produzem, formam quase a totalidade das manifestações que percebemos. Em outros momentos, quando estamos, como dizemos, abstraídos em nossos pensamentos, a alteração da corrente débil é apenas superficial; as manifestações vívidas vão apenas acompanhadas de curto número de manifestações débeis, necessárias para seu reconhecimento; a cada impressão vão unidas certas ideias, que nos dizem o que é aquela e nos servem para interpretá-la. Contudo, às vezes a grande corrente de manifestações débeis corre completamente sem relação com as vívidas, como por exemplo, nos sonhos, nas alucinações ou numa operação de raciocínio puro; durante esses estados, e os chamados ensimesmamentos, o processo de manifestações débeis predomina, em termos, no que pode influenciar o processo das vívidas. Vê-se, pois, que essas duas séries paralelas de manifestações, das quais cada uma apresenta entre seus elementos íntimas conexões longitudinais e transversais, só têm uma com a outra conexões parciais. A série vívida é quase sempre insensível ao passo de sua vizinha; e embora a série débil seja quase sempre, até certo ponto, modificada e às vezes arrastada pela vívida, pode separar-se muito dela. Há ainda outro caráter diferencial de grande importância entre todas as séries, e que, portanto, convém conhecer. As condições em que se produzem ambas ordens de manifestação são distintas e as condições de produção de cada ordem são dessa mesma ordem. Sempre que se possa averiguar os antecedentes imediatos das manifestações vívidas, se verifica que são outras do mesmo gênero; e se não podemos dizer que os antecedentes das manifestações débeis são todos do seu mesmo processo, ao menos as essenciais pertencem também a ele. Essas proposições não pedem muitas explicações. Evidentemente as mudanças que sobrevivem entre as manifestações vívidas que observamos, os movimentos, os sons, as mudanças de aspecto nos objetos que nos cercam, são ou mudanças em razão de certas manifestações vívidas, ou então mudanças cujos antecedentes não se percebem. Contudo, há manifestações vívidas que apenas se produzem em condições que parecem pertencer à outra ordem. As que chamamos cores e ordens visíveis supõem olhos abertos. Mas o que significam olhos abertos na linguagem usual? Literalmente, a aparição de certas manifestações vívidas. A ideia de abrir os olhos consiste, sem dúvida, em manifestações débeis; mas o ato de abrir os olhos consiste em manifestações vívidas. É evidente que o mesmo acontece com os movimentos dos olhos e da cabeça, que são seguidos por novos grupos de sensações vívidas, e similarmente, com os antecedentes das manifestações vívidas que chamamos de sensações de tato e de pressão. Todas as que podem mudar têm por condição certas manifestações vívidas, que chamamos sensações de tensão muscular. É verdade que nas condições destas últimas são manifestações de ordem débil as ideias das ações musculares que precedem a estas. Estamos agora frente a uma complicação, oriunda de que o objeto que chamamos o corpo se nos apresenta como uma série de manifestações vívidas, relacionadas de um modo especial às manifestações débeis, única maneira pela qual estas podem produzir manifestações vívidas a não ser na outra exceção, da mesma natureza, que nos fornecem as emoções, e que não deixa de confirmar a regra. Com efeito, se não se pode deixar de ver nas emoções uma espécie de manifestações vívidas que podem ser produzidas pelas débeis que chamamos ideias, não nos é menos certo que as classificamos entre as débeis e não com as vívidas que chamamos cores, sons, pressões, odores etc., porque as condições de sua produção e delas mesmas pertencem à ordem das débeis. Se prescindimos das manifestações vívidas especiais, que chamamos tensões musculares e emoções, e que usualmente classificamos em separado, podemos dizer de todas as demais que as condições para sua existência como manifestações vívidas são manifestações de sua mesma classe. O mesmo ocorre na corrente paralela; mesmo que apenas na sua maioria, as manifestações de ordem débil serão em parte originadas por manifestações da ordem vívida que evocam lembranças e sugerem conclusões, com todos esses resultados dependendo principalmente de certos antecedentes pertencentes à ordem débil. Por exemplo: passa uma nuvem diante do Sol; algumas vezes produz um efeito, e outras não, sobre a corrente das ideias; umas vezes esta segue sua marcha e outras vezes nos ocorre que irá chover; esta diferença está evidentemente determinada por condições que sem dúvida são da ordem das ideias. A faculdade que tem uma manifestação vívida de produzir certas manifestações débeis depende da existência de outras manifestações débeis apropriadas. Se nunca ouvimos o pio do maçarico, o grito de um deles, invisível naquele momento, não produz em nós a ideia dessa ave. Não teremos mais que recordar as distintas e sucessivas reflexões que uma mesma sensação visual, por exemplo, vai produzindo, para reconhecer até que ponto cada manifestação débil depende essencialmente de outras sensações débeis que surgiram antes, ou juntamente com aquela. Chegamos, por fim, à mais notável e talvez mais importante das diferenças que separam as duas ordens de manifestações; tem relação com a que acabamos de indicar, mas convém examiná-la à parte. As condições de aparição não se distinguem apenas em que cada grupo pertença geralmente à sua mesma ordem de manifestações, como ainda com outro caráter, mais insignificante. As manifestações de caráter débil têm antecedentes que são passíveis de descoberta; podemos fazê-las surgir, criando suas condições de aparição; e suprimi-las, realizando outras condições. Ao contrário, as manifestações da ordem vivida ocorrem frequentemente sem antecedentes prévios e em muitos casos persistem ou cessam em condições conhecidas ou desconhecidas; o que demonstra que suas condições são muitas vezes completamente independentes de nossa vontade. A impressão chamada relâmpago atravessa a corrente de nossas ideias sem que nada a anuncie. Os sons de uma música que começa a se ouvir na rua, ou o ruído de louça quebrada em uma casa próxima não estão ligados a nenhuma das manifestações anteriores, nem vívida, nem débil. Às vezes essas manifestações vívidas que nascem de improviso persistem através da corrente das manifestações débeis, a qual não pode modificá-las direta ou indiretamente. Um golpe violento, recebido pelas costas, é uma manifestação vívida, cujas condições de aparição não estão nem entre as manifestações do mesmo gênero nem entre as débeis, e cujas condições de persistência estão ligadas às vívidas, de um modo não manifesto. De maneira que, se na ordem débil, as condições de aparição são sempre outras manifestações da mesma ordem, preexistentes ou coexistentes, na ordem vívida, as condições de produção estão muitas vezes ausentes. Acabamos de reconhecer os caracteres principais em que se parecem as manifestações de cada ordem e em que diferem entre si. Resumamos em poucas palavras esses caracteres. As manifestações de uma ordem são vívidas ou fortes, as da outra são débeis; as de uma são originais, as da outra são cópias; as primeiras, bem como as segundas, formam uma série ou corrente heterogênea jamais interrompida, ou mais exatamente, cuja interrupção não se conhece diretamente. Umas e outras têm conexões ou relações entre si, longitudinais e transversais, indissolúveis para as vívidas, mais fáceis de romper para as débeis; e ao passo que os termos de cada série, as partes de cada corrente têm essas conexões íntimas, as duas correntes deslizam paralelamente sem contrair conexões ou relações a não ser sucintas, superficiais; a grande corrente vívida resiste em absoluto à débil, e esta pode isolar-se daquela quase completamente. As condições em que se apresentam respectivamente as manifestações de cada ordem são também da mesma ordem; mas se na ordem débil essas condições estão sempre presentes, na ordem vívida muitas vezes não estão, ou estão de certa maneira fora da série. Sete caracteres distintos servem, pois, para distinguir uma da outra as duas ordens de manifestações. § 44. Que quer dizer isso? A análise precedente começou pela crença de que as proposições admitidas como postulados pela Filosofia devem afirmar semelhanças e dessemelhanças de última ordem em que todas as demais fiquem absorvidas, e acabamos de constatar que todas as manifestações do Incognoscível se dividem em duas classes dessa natureza. O que é essa divisão? É evidente que é uma divisão entre objeto e sujeito. Reconhecemos essa distinção, a mais profunda de todas que nos oferecem as manifestações do Incognoscível, agrupadas em um Eu e um Não Eu; em manifestações débeis, que formam um todo contínuo que chamamos o Eu, diferentes das outras, por quantidade, qualidade, coesão, condição de existência de suas partes e manifestações vívidas, unidas em massas relativamente enormes que chamamos Não Eu, por laços indissolúveis, e com condições de existência independentes. Melhor e mais verazmente, cada ordem de manifestações implica necessariamente em uma força que se manifesta, e usando as palavras Eu e Não Eu, queremos significar com a primeira a força que se manifesta nas formas débeis e com a segunda a que se manifesta nas formas vívidas ou fortes. Já se vê: esses conceitos, que têm certa consistência e receberam um nome apropriado, não têm sua origem impenetrável; sua origem se explica perfeitamente pela lei fundamental do pensamento, uma lei sem apelação. A intuição de semelhança e de diferença se impõe por sua persistência e desafia o ceticismo, uma vez que sem ela a própria dúvida é impossível. A divisão primordial do Eu e do Não Eu é o resultado da intuição persistente das semelhanças e dessemelhanças acumuladas que têm as diversas manifestações. Podemos até dizer que o pensamento só existe por essa espécie de ato que nos conduz, a cada momento, a referir certas manifestações à ordem com a qual tem atributos comuns. Repetindo-se milhares de vezes essas operações de classificação, produzem milhares de associações de cada manifestação com as da sua própria classe e daí a união dos elementos de cada classe e a desunião das duas classes. A rigor, a separação e a junção das manifestações em dois todos distintos são, em grande parte, espontâneas e precedem a todo juízo reflexo, embora estes, ao produzir-se, reconhecem a existência dos dois todos. Pois as manifestações de cada ordem não apenas apresentam essa espécie de união, que se reconhece implicitamente quando se agrupam como objetos individuais de uma mesma classe, como também, como vimos, apresentam outra união, muito mais íntima, devida à sua coesão atual. Essa coesão se mostra antes que se verifique qualquer ato consciente de classificação. De modo que, na realidade, as duas ordens de manifestação se separam e consolidam espontânea e naturalmente. Os elementos de cada ordem, unindo-se intimamente entre si e afastando-se de seus opostos formam por si os todos que chamamos respectivamente de objeto e sujeito, de Eu e Não Eu. Tal união espontânea é o que dá a esses todos, formados de manifestações, a individualidade que possuem como todos, e a diferença fundamental que os separa, diferença anterior e superior a todo juízo. Este nada faz além de afirmar a separação já efetuada, referindo a suas duas classes respectivas as manifestações não unidas clara e evidentemente com as demais de sua classe. Há também outro juízo que se repete perpetuamente, que fortifica essa antítese fundamental e dá grande extensão a um dos seus termos. Não deixamos de aprender que as condições de aparição das manifestações débeis devem sempre encontrar-se; que as das vívidas não se encontram muitas vezes, mas mesmo então são semelhantes essas manifestações vívidas anteriores sem antecedentes entre suas análogas às manifestações vívidas anteriores com antecedentes perceptíveis entre as de sua classe. Da combinação dessas duas experiências resulta a ideia iniludível de que há manifestações vívidas cujas condições de aparição existem fora da série dessa ordem, verdadeiras manifestações potenciais suscetíveis de chegar a ser atuais. E assim nos tornamos vagamente conscientes de uma região indefinidamente extensa de força ou de existência, não apenas separada da corrente de manifestações débeis que constituem o Eu, mas estendendo-se além da corrente de manifestações vívidas que constituem a porção imediatamente próxima do Não Eu. § 45. De maneira muito imperfeita (passando sobre objeções e omitindo explicações necessárias, para não extrapolarmos o pouco espaço disponível), indicamos a natureza essencial e a justificativa do dado primordial necessário à Filosofia como ponto de partida. Poderíamos admitir com toda segurança essa verdade primária, pois o senso comum a afirma, cada passo da Ciência a supõe e nenhum metafísico pode desalojá-la da consciência, nem por um instante. Partindo do postulado de que as manifestações do incognoscível se dividem em dois grupos que constituem: um, o mundo interno, da consciência, do Eu; o outro, o mundo externo, de fora da consciência, do Não Eu; poderíamos deixar este postulado como provado, por todos os resultados com ele conformes, da experiência direta ou indireta. Mas como tudo que se segue se baseia neste postulado, parece-nos conveniente expor, mesmo que brevemente, seus títulos, deixando-o abrigado da crítica. Nos parece preferível demonstrar que esse dado fundamental não é nem ilusório, como afirma o idealista, nem duvidoso, como diz o cético; nem inexplicável, como pretende o naturalista, mas que é um produto legítimo da consciência, ao elaborar seus materiais segundo as leis de seu funcionamento normal. Se, na ordem cronológica, essa distinção precede todo raciocínio, e se se apodera de nosso espírito de sorte que é impossível raciocinar sem admiti-la; a análise nos permite, além disso, justificar a afirmação de sua existência, mostrando que é o produto de uma classificação baseada na acumulação de semelhanças e de diferenças. Em outras palavras, o raciocínio, que não é mais que uma formação de coesões entre manifestações, fortifica pelas coesões que forma, aquelas que encontra preexistentes. Tais são os dados da Filosofia, a qual, como a Religião, admite esse fundo primordial que a consciência nos revela, o princípio que, como vimos, tem mais profundas suas bases, supõe a validade de um processo primordial da consciência, sem cuja validade não há dedução possível, nada se podendo afirmar nem negar; supõe, além disso, a validade de um produto primordial da consciência, que originado naquele processo é também, até certo ponto, seu produto, uma vez que recebe dele sua verificação e legitimidade. Em suma, nossos postulados são: uma Força incognoscível, a existência de semelhanças e diferenças cognoscíveis entre as manifestações dessa força, e, por conseguinte, a separação dessas manifestações em duas classes, uma pertencendo ao sujeito e outra ao objeto. Antes de passar ao objeto essencial da Filosofia - unificação completa do conhecimento, já em parte unificado pela Ciência - será preciso tratar de um assunto preliminar. As manifestações do incognoscível, divididas em duas classes, o Eu e o Não Eu, podem dividir-se também em certas formas gerais, cuja realidade admitem, a todo momento, a Ciência e o senso comum. São formas que, como demonstramos, no capítulo relativo às ideias fundamentais da Ciência não podemos conhecer em si mesmas. contudo, como nos é forçoso usar as palavras que lhe sirvam de significação, é preciso também dizer o significado que a elas emprestamos. III Espaço, tempo, matéria, movimento e força § 46. o estado mental cético, produto usual da crítica filosófica, deve sua origem sobretudo à falsa interpretação das palavras. A leitura de um livro de metafísica produz sempre um sentimento de ilusão universal, tanto mais forte quanto mais decisivo parece o raciocínio. Tal sentimento talvez jamais houvesse nascido se tivessem sido bem interpretados os termos da linguagem metafísica. Desafortunadamente, esses termos adquiriram por associação de ideias, significados totalmente distintos daqueles que estão nas discussões filosóficas; esses Significados vulgares se apresentam inevitavelmente ao espírito, resultando daí um idealismo que parece um sonho e que concorda bastante mal com nossas convicções instintivas. À palavra fenômeno e a sua equivalente aparência deve ser atribuída principalmente a causa original dessa ilusão. Na linguagem ordinária, essas palavras muito se usam para designar percepções visuais; o costume nos leva, quase sempre, a só pensar numa aparência como algo que se vê; e mesmo que a palavra fenômeno tenha um sentido mais geral, não podemos prescindir das associações com sua sinônima em linguagem usual, a palavra aparência. Assim, quando a Filosofia diz que nosso conhecimento do mundo exterior só pode ser fenomenal, quando conclui que as coisas que conhecemos são aparências, pensamos inevitavelmente em coisas análogas às que produzem nossas percepções visuais, comparáveis com as do tato. Por outro lado, vemos nas boas pinturas a simulação perfeita do aspecto e relevo dos objetos; ainda com maior evidência nos provam os espelhos até que ponto nos engana a vista, se não for corrigida pelo tato; e esses frequentes exemplos de interpretações falsas das impressões visuais debilitam muito nossa fé na visão, e nos fazem dar à palavra aparência o sentido ou o significado de incerteza. Em consequência, ao dar a Filosofia a essa palavra um sentido mais extenso, pensamos também que todos os nossos sentidos nos enganam como o faz o sentido da vista, e acreditamos viver em um mundo de fantasmas. Se as palavras fenômeno e aparência não tivessem contraído essas conexões falaciosas, apenas existiria essa confusão mental. O mesmo aconteceria se as tivéssemos substituído pela palavra efeito, igualmente a todas as impressões produzidas no Eu por meio dos sentidos, e que leva consigo, como correlativa no pensamento a palavra causa, ambas incapazes de nos levar às quimeras do idealismo. Esse perigo desapareceria, então, mediante uma simples correção verbal. A confusão resulta da falsa interpretação que acabamos de assinalar, e cresce ainda pela ideia de uma falsa antítese. Damos mais força à ideia da não realidade dessa existência fenomenal, a única que podemos conhecer, desde o instante em que a colocamos em oposição numenal que seria, segundo pensamos, muito mais real para nós, se pudéssemos conhecê-la. Mas essas são ilusões que forjamos com palavras. O que quer dizer a palavra real? Essa a questão capital que existe no fundo de toda metafísica, e por desdenhar sua solução, não se pode fazer desaparecer a causa primordial das mais antigas divisões entre os metafísicos. Na interpretação da palavra real, as discussões filosóficas apenas guardam um elemento do conceito vulgar das coisas e descartam todos os demais, criando com essa inconsequência, confusão nas ideias. O homem vulgar, quando examina um objeto, acredita que examina não algo que está em si, mas uma coisa exterior a si mesmo. Imagina que sua consciência se estende ao próprio lugar que o objeto ocupa; para ele, a aparência e a realidade são uma só e mesma coisa. Contudo, o metafísico está convencido de que a consciência não pode conhecer a realidade, mas apenas a aparência; deixa, pois, esta na consciência e a realidade fora dela, mas continua concebendo essa realidade que deixa fora da consciência da mesma maneira que o ignorante concebe a aparência. Afirma que a realidade está fora da consciência, mas não cessa de falar da realidade, dessa realidade como se fosse um conhecimento que pudesse adquirir fora da consciência. Parece ter esquecido que o conceito de realidade só pode ser um modo de consciência, e a questão está em saber que relação existe entre esse modo e os outros. Entendemos por realidade a persistência na consciência; uma persistência, seja ela incondicional, como a intuição do Espaço, ou condicional, como a intuição de um objeto que temos na mão. O verdadeiro caráter do real, segundo o concebemos, é a persistência; por ela o distinguimos do não real. Assim, distinguimos uma pessoa, postada diante de nós da ideia dessa pessoa, porque podemos separar a ideia da consciência, mas não podemos separar a pessoa, enquanto a vemos. Quando duvidamos de uma impressão que recebemos ao escurecer, resolvemos a dúvida, se a impressão persiste após uma observação mais exata, e afirmamos a realidade do objeto que a produz, se a persistência é completa. O que prova que a persistência é o que chamamos realidade, é que depois que a crítica comprovou que a realidade, tal como dela tomamos consciência, não é a realidade objetiva, a noção indefinida que formamos do real objetivo é a de uma coisa que persiste absolutamente sob todas as mudanças de modo, de forma ou de aparência. Este fato, de não podermos formar uma noção indefinida do absolutamente real, a não ser como absolutamente persistente, deixa bem claro que a persistência na consciência é o último critério da realidade para nós. Não sendo, pois, a realidade nada mais que persistência na consciência, esse critério não muda, quer se refira essa persistência ao Incognoscível, quer a um efeito, dos muitos produzidos invariavelmente sobre nós pelo Incognoscível. Se, nas condições constantes de nossa constituição, algum poder, cuja natureza supera a nossa mente, produz sempre um modo de consciência, se esse modo de consciência é tão persistente como seria esse poder se estivesse na consciência, a realidade para esta consciência, da existência desse poder, seria tão completa num caso como no outro. Se um ser incondicionado estivesse presente no pensamento, só poderia estar como persistente; e se em seu lugar há um ser condicionado pelas formas do pensamento, mas tão persistente como ele, deve ser tão real quanto, para nós. Do que tratamos, podemos tirar as seguintes conclusões: em primeiro lugar temos consciência, mesmo que indefinida, de uma realidade absoluta, superior a toda relação, cuja ideia indefinida é em nós produzida pela persistência absoluta de algo que sobrevive a todas as mudanças de relações. Em segundo lugar, temos consciência definida de uma realidade relativa que persiste em nós continuamente, sob diversas formas, e em cada forma tanto tempo quanto persistem as condições de sua apresentação; persistente assim, de contínuo, em nós, essa realidade relativa é tão real para nós como seria a realidade absoluta, se pudesse ser conhecida. Em terceiro lugar, não sendo possível o pensamento a não ser sob a forma de relação, a realidade relativa não pode ser concebida como tal, a não ser em conexão com uma realidade absoluta; e sendo a conexão dessas duas realidades persistente na consciência, ela é tão real como os termos em conexão. Portanto, podemos retomar, com inteira confiança, esses conceitos realistas que a Filosofia parece, à primeira vista, dissipar. Mesmo que a realidade apresentada sob as formas de nossa consciência seja apenas um efeito condicionado da realidade absoluta, esse efeito condicionado, unido à sua causa incondicionada por uma relação indissolúvel e persistente com ela por tanto tempo quanto as condições persistem, é, contudo, real, para a consciência que produz essas condições. Sendo as impressões persistentes resultados ou efeitos de uma causa persistente, são na prática, para nós, o mesmo que a causa produtora, e podem ser tratadas como equivalentes. O mesmo acontece com nossas percepções visuais, que são apenas símbolos, que julgamos equivalentes a nossas percepções táteis, com as quais se identificam nos termos em que imaginamos ver a solidez e a dureza, que apenas inferimos, e que concebemos como objetos coisas que são apenas símbolos de objetos; de maneira que acabamos por tratar essas realidades relativas como se fossem absolutas e não os efeitos de realidades absolutas. Não há inconveniente em continuar tratando-as assim, e é até legítimo, sempre que sabemos que as conclusões a que nos conduzem são realidades relativas e não realidades absolutas. (Na quarta edição, o autor acrescentou ao final do §46 o seguinte período: "Esta conclusão geral fica para ser interpretada especificamente, na sua aplicação, a cada uma das ideias fundamentais da Ciência".) § 47. Pensamos por meio de relações; a relação é na verdade a forma de todo pensamento, e se este se reveste alguma vez de outras formas, devem derivar-se daquela (As conclusões psicológicas expostas brevemente no presente capítulo e nos três subsequentes encontrarão sua justificativa nos meus Princípios de Psicologia). Vimos (parte I, capítulo m) que os diversos últimos modos de existência não podem ser conhecidos nem concebidos em si mesmos, isto é, fora de sua relação com nossa consciência. Vimos, analisando o produto do pensamento (§23), que este sempre se compõe de relações, e que nada pode compreender do que vai além das relações mais gerais. E analisando a operação de pensar, concluímos ser impossível o conhecimento do Absoluto, por não apresentar relação alguma e nem os elementos da relação, isto é, diferenças ou semelhanças. Anteriormente vimos que não apenas a Inteligência, mas a própria Vida consiste no estabelecimento de relações internas em correspondência com relações externas. Por último, vimos que mesmo quando a relatividade de nosso pensamento nos impede de conhecer ou conceber o Absoluto, devemos, não obstante e em virtude dessa mesma relatividade ter uma vaga consciência de um Ser Absoluto que nenhum efeito mental pode suprimir. A relação é a forma universal do pensamento; essa a verdade que todos os gêneros de demonstração se unem para provar. Os transcendentalistas admitem como formas do pensamento certos outros fenômenos psíquicos. Ao lado da relação, que consideram uma forma universal de pensamento, pretendem colocar outras duas, para eles tão universais quanto. Tal hipótese deveria ser descartada mesmo que fosse sustentável, uma vez que se podem explicar essas novas formas como geradas pela forma original. Se apenas pensamos em relações e se estas têm certas formas universais, é evidente que essas formas universais de relações chegarão a ser formas universais de nossa consciência, e se podem ser explicadas assim, é supérfluo, logo antifilosófico, atribuir-lhes origem independente. As relações são de duas ordens: de sucessão e de coexistência; umas são primitivas, derivadas as outras: a relação de sucessão se verifica em toda mudança de estado consciente; a de coexistência, que não pode encontrar-se originariamente na consciência, cujos estados são seriais ou sucessivos, só aparece quando se nota que os termos de certas relações de sucessão se apresentam à consciência tão facilmente em uma ordem como em outra, enquanto para outras relações os termos não se apresentam senão numa ordem determinada, numa só e mesma ordem. As relações cujos termos não nos é dado inverter, são chamadas sucessões propriamente ditas e aquelas cujos termos se apresentam indistintamente numa ordem ou em outra são chamadas coexistências. Numerosas experiências que a cada instante nos oferecem as duas ordens de relações definem perfeitamente sua distinção, e nos produzem um conceito abstrato de cada uma dessas ordens. O conceito abstrato de todas as sucessões é o Tempo, e o de todas as coexistências é o Espaço. Sendo que no pensamento o Tempo é inseparável da sucessão e o Espaço da coexistência, não devemos deduzir que Tempo e Espaço sejam condições primitivas da consciência, na qual conhecemos Tempo e Espaço, como conhecemos também que tais conceitos como todos os conceitos abstratos, são produzidos pelos concretos; a única diferença é que nesses dois casos a sistematização da: consciência abarca a evolução inteira da inteligência. A análise confirma a síntese. Quando temos consciência do espaço, temos consciência de posições coexistentes. Não nos é dado conceber uma porção limitada do espaço a não ser representando-se seus limites como coexistentes em certas posições relativas, e cada um desses limites imagináveis, seja uma linha, seja um plano, não pode ser concebido de outro modo senão como composto de posições coexistentes muito próximas. E como uma posição não é uma entidade, como os grupos de posições que constituem uma porção qualquer do espaço e marcam seus limites não são existências sensíveis, resulta que as posições coexistentes que compõem nossa intuição do espaço não são coexistências no verdadeiro sentido da palavra (que implica a realidade do coexistente) mas formas vazias da coexistência, que permanecem abandonadas quando as realidades estão ausentes, vale dizer, são abstrações de coexistência. Mas também ocorre que, como em outras circunstâncias as mesmas adaptações musculares não produzem o contato com posições resistentes, resultam os mesmos estados de consciência menos as resistências; vale dizer, as formas vazias das coexistências, de onde os objetos coexistentes, já revelados pela experiência, estão ausentes. Da elaboração dessas formas, demasiado complicada para ser exposta aqui com detalhes, resulta o conceito abstrato de todas as relações de coexistência, ao qual chamamos Espaço. Fica por indicar uma coisa que não se deve esquecer, e é que as experiências de que se origina a ideia de espaço são experiências de força. Certa correlação das forças musculares que exercemos é o indício de cada uma das posições que descobrimos, e a resistência que nos faz conhecer que existe alguma coisa nessa posição é um equivalente da pressão que conscientemente exercemos. Portanto, as experiências de força, em suas variadas relações, são os materiais de onde a abstração tira a ideia de Espaço. Sendo o que chamamos Espaço, como mostramos, por sua gênese e por sua definição, puramente relativo, o que diremos de sua causa? Existe um espaço absoluto, do qual é esse espaço relativo uma representação? O Espaço em si mesmo é uma forma ou uma condição da existência absoluta que produz em nossa mente uma forma ou uma condição da existência relativa? Tais questões não podem ter resposta. Nosso conceito do espaço é produzido por algum modo de ser do Incognoscível, e sua completa invariabilidade implica simplesmente uma uniformidade completa dos efeitos que produz em nós esse modo de ser do Incognoscível. Mas, nem por isso temos direito de nominá-lo um modo necessário do Incognoscível. Tudo o que podemos afirmar é: que o Espaço é uma realidade relativa, que nossa intuição dessa realidade relativa invariável implica em uma realidade absoluta, igualmente invariável para nós, e que podemos tomar sem vacilação essa realidade relativa por base sólida de todos os raciocínios que conduzam logicamente a outras verdades também relativas, únicas que para nós existem ou que podemos chegar a conhecer. Com respeito ao Tempo, relativo e absoluto, um argumento paralelo leva a paralelas conclusões. O que é por demais evidente para que seja preciso entrar em detalhes. § 48. Nosso conceito de Matéria, reduzido à sua forma mais simples, é aquele de posições coexistentes que opõem resistência; e contrasta, como se vê, com a ideia de Espaço, pois neste as posições coexistentes não oferecem resistência. Concebemos o Corpo como limitado por superfícies que resistem, e composto inteiramente de partes resistentes. Se nos abstrairmos mentalmente das resistências coexistentes, a intuição de Corpo desaparece, deixando no seu lugar a intuição de Espaço. Uma vez que o grupo de posições resistentes simultâneas, que constituem uma parte da Matéria pode dar-nos invariavelmente impressões de resistência, combinadas com diversas adaptações musculares, segundo toquemos um lado próximo ou distante, o lado direito ou esquerdo etc., resulta que, como distintas adaptações musculares indicam comumente distintas coexistências, estamos obrigados a conceber cada porção de matéria como contendo mais de uma porção resistente, ou seja, ocupando Espaço. Daí a necessidade de representar os últimos elementos da matéria como extensos e resistentes a uma só vez; tal é a forma universal de nossa experiência sensível da matéria, e o conceito desta não pode elevar-se acima dessa forma, mesmo que a imaginemos dividida em partes tão pequenas como queiramos. Desses dois elementos inseparáveis, um, a resistência, é primário; o outro, a extensão, é secundário, porque distinguindo-se na consciência a extensão ocupada, ou o Corpo, da extensão não ocupada, ou Espaço, pela resistência, esta deve, sem dúvida, ser anterior, na gênese das ideias. Tal conclusão não é, na verdade, senão um corolário de outra, que no capítulo precedente havíamos estabelecido. Se, como sustentamos, nossa intuição do espaço é produto de experiências acumuladas, em parte por nós mesmos, mas na maioria hereditárias; se, como indicamos, as experiências das quais tiramos por abstração nosso conceito de espaço não são mais que impressões de resistência produzidas sobre o organismo, resulta necessariamente que sendo as experiências de resistência as que originam o conceito de Espaço, o atributo da Matéria, chamado resistência, deve ser considerado primordial, e o atributo chamado Espaço como secundário ou derivado. Por isso, nossa experiência de força é o elemento de que se compõe a ideia de Matéria. A propriedade que possui a matéria de resistir à nossa ação muscular se apresenta imediatamente à consciência em função de Força e, pois, a propriedade de ocupar um espaço se infere por abstração dessas experiências dadas primitivamente em função de força, resulta daí que todo o conteúdo da ideia de Matéria se compõe de forças unidas por certas correlações. Se tal é nosso conhecimento da realidade relativa, que diremos da absoluta? Uma só coisa: que é um modo do Incognoscível unido à matéria pela relação de causa e efeito. Analogamente se demonstra a relatividade de nosso conhecimento da matéria pela análise que fizemos e pelas contradições que surgem quando se considera tal conhecimento como absoluto (§16). Mas, como vimos, embora só conheçamos a matéria sob a forma de relação, é tão real, no verdadeiro sentido da palavra, como se a conhecêssemos em absoluto, e mais, a realidade relativa que conhecemos pelo nome de matéria se apresenta necessariamente ao espírito em uma relação persistente ou real com a realidade absoluta. Podemos, pois, nos entregar sem vacilação a essas condições de pensamento que a Natureza organizou em nós. É desnecessário, em nossos estudos físicos, químicos etc., considerar a matéria como composta de átomos extensos e resistentes, porque tal conceito, resultado necessário de nossa experiência da matéria, não é menos legítimo do que o conceito de massas complexas extensas e resistentes. A hipótese atômica, como a de um éter universal, composto também de moléculas, é apenas um desenvolvimento necessário das formas universais que as ações do Incognoscível criaram em nós. As conclusões deduzi das logicamente com a ajuda dessas hipóteses não podem deixar de estar em harmonia com todas as demais implicitamente contidas nas mesmas formas e possuir uma verdade relativa tão completa. § 49. O conceito de Movimento, que se apresenta ou se representa na consciência desenvolvida, envolve os conceitos de Espaço, Tempo e Matéria, porque sem dúvida os elementos dessa ideia são algo que se move, uma série de posições sucessivamente ocupadas por esse algo e um grupo de posições coexistentes unidas no pensamento com as sucessivamente ocupadas. E posto que, como vimos, cada um desses elementos é o resultado de experiências de força, dadas em certas correlações, deduz-se que a ideia de Movimento nasce de uma síntese mais avançada dessas experiências. Há também outro elemento nessa ideia que é realmente fundamental (a necessidade que tem o corpo em movimento de mudar de posições); tal elemento resulta por modo direto de nossos primeiros elementos de força. Os movimentos das distintas partes do organismo, em relação mútua, são os primeiros que se oferecem à consciência. Produzidos por sua ação muscular, necessitam reações mentais sob a forma de tensão muscular. Em consequência, toda flexão, toda extensão de um membro, não é desde logo conhecida como uma série de tensões musculares que variam de intensidade à medida em que muda a tensão daquele membro. Esta intuição rudimentar de movimento, composta de uma série de impressões de Força, se une inseparavelmente à intuição de Espaço e à de Tempo, sempre que essas se desprendem, por abstração de novas impressões de Força. Melhor dizendo, desse primitivo conceito de Movimento, resulta o conceito acabado por um desenvolvimento simultâneo com os de Espaço e Tempo. Os três nascem das impressões cada vez mais numerosas e diversas de tensão muscular e de resistência objetiva. O movimento, tal como o conhecemos, pode referir-se, pois, como as outras ideias científicas primárias, à experiência de força. Que esta realidade relativa (o Movimento) responde a uma realidade absoluta, apenas é necessário dizer. O que dissemos sobre a causa desconhecida que produz em nós os efeitos chamados Matéria, Espaço e Tempo, se aplica, com uma mudança de nomes, ao Movimento. § 50. Chegamos, por último, à Força, princípio dos princípios. Embora os conceitos de Tempo, Espaço, Matéria e Movimento sejam todos, em aparência, dados necessários da inteligência, uma análise psicológica (de que só traçaremos aqui um ligeiro esboço) nos demonstra que são construções ou abstrações da experiência de Força. Matéria e Movimento, como os conhecemos, são manifestações de Força diversamente condicionadas. O Espaço e o Tempo, tais como os conhecemos, se mostram com essas manifestações diversas de força e como condições de sua verificação. A Matéria e o Movimento são seres concretos formados com o conteúdo de diversas relações mentais; enquanto o Espaço e o Tempo são as formas abstratas dessas mesmas relações. E indo mais fundo, se descobrem as primitivas experiências de Força, que ao se revelarem à consciência, em diversas combinações, fornecem por sua vez os materiais de onde saem, por generalização, as formas de relações, e com os quais são construídos os próprios objetos relacionados. Uma só impressão de força pode evidentemente ser percebida por um ser sensível desprovido de inteligência; que pode referir ao lugar presumido da sensação, uma força produtora do efeito nervoso sentido. Mesmo que nenhuma impressão isolada de força, assim percebida, possa por si mesma produzir a consciência (que implica em relações entre diversos estados), contudo várias dessas impressões, diferentes em grau e espécie, proporcionariam, repetindo-se, materiais para o estabelecimento de relações, ou seja, do pensamento. Se essas relações diferissem por sua forma, em vez de por seu fundo ou conteúdo, as impressões das formas organizar-se-iam, simultaneamente, com as do seu conteúdo. Assim, pois, todos os modos de consciência podem originar-se das experiências de força; mas estas não reconhecem outra origem. Não é preciso mais que lembrar que a consciência consiste em mudanças, para ver que seu dado fundamental deve ser o que se manifesta por mudanças, e que a força, pela qual produzimos essas mudanças, e que serve de símbolo à causa das mudanças em geral, é a última revelação da análise. É um truísmo dizer que a natureza desse elemento indecomponível de nosso conhecimento é insondável. Se, usando uma ilustração algébrica, representamos a matéria, o movimento e a força pelos símbolos x, Y, z, respectivamente, podemos expressar os valores de x e de Y em função de z, porém o valor de z nunca poderá ser encontrado; z é a incógnita que como tal deve sempre permanecer, pela simples razão de que nada existe em função do que pudéssemos expressá-la. Nossa inteligência pode simplificar mais e mais as equações de todos os fenômenos, até que os símbolos que os formulam se reduzam a certas funções desse último símbolo; mas feito isto, teremos chegado ao limite que separa e sempre separará a ciência da ignorância. Já demonstramos que esse modo de consciência que não pode ser decomposto, e no qual todos os outros podem resolver-se, não pode ser ele próprio o poder que se nos manifesta nos fenômenos (§18). Vimos que, no momento em que tentamos admitir a identidade da natureza entre a causa absoluta das mudanças ou fenômenos e a causa que conhecemos por nossos próprios esforços musculares, resultam antinomias insolúveis. A força, tal qual a conhecemos, só podemos considerá-la como certo efeito condicionado de uma causa incondicionada, como a realidade relativa que nos indica uma realidade absoluta produtora direta daquela. Isto nos faz ver mais claramente que antes quão inevitável é esse realismo transformado, a que a crítica cética nos conduz por fim. Deixando de lado todas as complicações, e considerando a Força pura, nos vemos irresistivelmente obrigados pela relatividade de nosso pensamento, a conceber vagamente que há uma força desconhecida correlativa à que conhecemos. O nômeno e o fenômeno se apresentam em sua relação primordial como dois lados de uma mesma mudança, e forçosamente temos que os ver ambos como igualmente reais. § 51. Ao fecharmos essa exposição de dados derivados, necessários à Filosofia como unificadora da Ciência, é oportuno dirigir um olhar sobre as relações que unem esses dados com os dados primordiais, expostos no capítulo anterior. Uma causa desconhecida, de efeitos conhecidos, chamados fenômenos, analogias e diferenças entre esses efeitos conhecidos e uma separação de efeitos entre sujeito e objeto, tais são os postulados sobre os quais não podemos pensar. Em cada um dos grupos distintos de manifestações, há também analogias e diferenças, implicando em divisões secundárias que são, por sua vez, novos postulados indispensáveis. As manifestações vívidas que constituem o Não Eu, não apenas simplesmente têm coesão entre si, mas suas coesões têm certas formas invariáveis; e entre as manifestações débeis que constituem o Eu, e que são produto das vívidas, há também modos correspondentes de coesão. Esses modos de coesão, com os quais se apresentam invariavelmente as manifestações, e, portanto, se representam também com eles, os chamamos, quando os consideramos em separado, Espaço e Tempo; e quando os consideramos unidos às próprias manifestações, Matéria e Movimento. O que são esses modos, em sua essência, é tão desconhecido quanto o é o Ser que manifestam. Mas a mesma razão que nos permite afirmar a coexistência de sujeito e objeto, nos autoriza a afirmar que as manifestações vívidas, chamadas objetivas, existem sob certas condições constantes, que são simbolizadas pelas condições constantes entre as manifestações chamadas subjetivas. IV Indestrutibilidade da matéria § 52. É necessário dizer algo sobre a indestrutibilidade da matéria, não porque não seja uma verdade comumente admitida, mas porque assim exige a simetria de nosso assunto, e também porque devemos examinar as provas em que se funda essa verdade. Se se pudesse provar, ou mesmo supor com alguns vislumbres de razão, que se pode aniquilar a matéria, seja em massa, seja em átomos, seria preciso: ou fazer constar sob que condições pode aniquilar-se a mesma matéria, ou confessar a incompetência da Filosofia e da Ciência. De fato, se em vez de ter que tratar com quantidades e pesos fixos, tivéssemos que nos referir a quantidades e pesos suscetíveis de serem aniquilados total ou parcialmente, entraria em nossos cálculos elemento incoercível, oposto a toda conclusão positiva. Se vê, pois, que merece ser estudada, detidamente, a questão da indestrutibilidade da matéria; que longe de ser admitida de saída como uma verdade evidente por si mesma, tem sido repelida, nos primeiros tempos e universalmente como um erro primário. Acreditava-se que as coisas podiam ser reduzidas a nada, como podiam criar-se do nada. Se analisarmos as superstições primitivas ou a crença na magia, que não faz muito tempo reinava ainda em quase todos os espíritos, e ainda hoje reina nos povos incultos, vemos que entre outros vários postulados, um supõe que, mediante um encanto poderoso, a matéria pode ser chamada do nada, como pode voltar ao nada. E se não se acredita precisamente nisso (porque acreditá-lo, no sentido estrito da palavra, implicaria que a criação e o aniquilamento eram claramente concebidos) se acredita admiti-lo: e se age de maneira que, nessa confusão de ideias, o resultado termine por ser o mesmo. Não apenas nas épocas de obscurantismo e em espíritos incultos encontramos traços dessa crença; ela domina também em teologia, quando se fala do princípio e do fim do mundo; e pode-se duvidar se Shakespeare estava ou não sob sua influência ao anunciar poeticamente um tempo em que "tudo desaparecerá sem que reste um talo de erva". A acumulação gradual e a mormente sistematização de fatos redundaram em apagar pouco a pouco essa convicção, até o ponto em que hoje é tida como verdade vulgar a indestrutibilidade da matéria. Seja o que for em si mesma, a matéria não nasce e nem morre, ao menos para nosso pensamento. Os fatos que haviam dado aparência de verdade à ilusão de que algo possa vir do nada, se desfizeram pouco a pouco, ante um conhecimento mais profundo. O cometa, que se vê numa noite aparecer e aumentar no céu, não é um corpo criado recentemente, mas oculto, até então, por estar fora do alcance de nossa visão. A nuvem, que se forma em poucos minutos, não se compõe de uma substância que começa então a existir, mas que já existia na atmosfera, em forma difusa e transparente. O mesmo ocorre com o cristal e o precipitado formado no fundo de um líquido. Inversamente, observações exatas fazem-nos ver que as destruições aparentes de matéria são apenas mudanças de estado. Assim a água evaporada, embora se tenha feito invisível, pode, por condensação, voltar a seu estado líquido anterior. Um disparo de arma de fogo nos prova que se a pólvora desapareceu, apareceram em seu lugar gases que ocupando maior volume, causaram a explosão. Está claro que apenas após o surgimento da química quantitativa puderam ser estabelecidas as conclusões que acabamos de citar e outras análogas. A prova foi completa desde o momento em que os químicos, não contentes em saber as combinações que podiam formar as diversas substâncias, encontraram as proporções definidas em que se combinam, e puderam explicar como uma matéria aparecia ou se tornava invisível. Quando se demonstrou que queimando uma vela se produzia, como resultado da combustão, água e ácido carbônico, cujos pesos somados equivaliam ao da vela, mais o oxigênio que se agregava aos elementos da mesma durante a combustão, se descartou a dúvida de que o hidrogênio e o carbono da vela existiam ainda e não haviam feito nada além de mudar de forma ou estado. A análise química quantitativa que segue uma massa de matéria através de todas as suas transformações e ao fim a isola, confirma plenamente a conclusão geral induzida dos exemplos citados e seus análogos. O efeito dessa prova específica, unido à prova que nos fornece diariamente a permanência dos objetos que nos são familiares, adquiriu tal poder que hoje em dia a indestrutibilidade da matéria é uma verdade de negação inconcebível. É pois um axioma científico, universalmente reconhecido, que a quantidade de matéria não varia, quaisquer que sejam as transformações que sofra; axioma este estabelecido desde o momento em que, longe de contradizer experiências comuns, outras experiências que pareciam contradizê-las vieram provar mais ainda que a Matéria é permanente, mesmo quando os sentidos às vezes não tenham discernimento para alcançar essa permanência e axioma, que admitem unânimes físicos, químicos e fisiólogos, os quais se julgam incapazes de conceber o contrário. § 53. O que dissemos sugere a questão: se temos como garantia dessa crença fundamental uma autoridade superior à de uma indução consciente. A experiência prova que, até onde alcança, a indestrutibilidade da matéria é uma lei absoluta. Mas as leis absolutas da experiência geram leis absolutas do pensamento. Não se conclui, então, que essa verdade última deve ser um dado cognitivo implícito em nosso organismo mental? Vejamos que é inevitável a resposta afirmativa a tal questão A incompressibilidade absoluta da matéria é uma lei evidente para nosso espírito. Mesmo se pudéssemos conceber um pedaço de matéria indefinidamente comprimido, não poderíamos conceber que seu volume, por menor que fosse, se reduzisse a zero, pois podemos imaginar as partículas materiais indefinidamente próximas, e o espaço que ocupa uma massa indefinidamente minorada; mas não podemos conceber diminuída a quantidade original de matéria, pois isso seria admitir o desaparecimento de partículas da mesma, reduzidas a nada, por compressão. Resulta então evidente que não se pode conceber diminuída nem aumentada a quantidade de matéria existente no Universo. Pois bem: essa incapacidade que temos de conceber o aniquilamento da matéria é consequência direta da natureza de nosso pensamento. Com efeito, ele é, como sabemos, um depósito de relações; não se pode estabelecer relação, nem por conseguinte pensar, se um dos termos relacionáveis está ausente da consciência. É, pois, impossível que nada chegue a ser algo, nem que algo chegue a ser nada, pois o nada não pode ser objeto de consciência. O aniquilamento e a criação da Matéria são inconcebíveis, por uma mesma razão; e sua indestrutibilidade é, pois, um conhecimento a priori de ordem mais elevada, não por ser resultado de uma larga série de experiências, organizadas gradualmente em um modo de pensar irrevogável, mas por ser dado obrigado de todas as formas possíveis de experiência. Estranhar-se-á que classifiquemos entre as verdades a priori esta, só agora nos tempos modernos e pelos homens da ciência posta fora de dúvida; mas é fora de dúvida que ela tem tanta ou maior evidência entre as verdades a priori. Parece absurdo dizer que uma proposição não pode ser concebida, quando a humanidade inteira professou concebê-la e mesmo hoje a grande maioria dos homens acredita fazê-lo. Mas, como já demonstramos no princípio, a maior parte de nossos conceitos são simbólicos; entre estes, existem os que, mesmo quando raramente chegam a ser conceitos reais, podem, contudo, chegar a sê-lo: e são válidos, pois se pode provar direta ou indiretamente que correspondem à realidade; mas existem também outros que jamais deixam o estado simbólico, que não se podem direta nem indiretamente realizar no pensamento e ainda menos demonstrar que correspondem a objetos reais na atualidade. Contudo, como habitualmente não se analisam os conceitos, se supõe que se pensa como real o que apenas se pensa simbolicamente, e se supõe acreditar em proposições cujos termos não podem unir-se na consciência. Daí, por exemplo, que se aceitem sobre a origem do Universo, hipóteses absolutamente inconcebíveis. Vimos já que a doutrina comumente admitida de que a matéria foi criada do nada, nunca foi concebida real, mas apenas simbolicamente. Do mesmo modo podemos dizer agora que o aniquilamento da matéria apenas foi concebido simbolicamente, e que se tomou um conceito simbólico, equivocadamente, por conceito real. Poder-se-ia, talvez, objetar que as palavras pensamento, essência, conceito são usadas aqui com novos significados, e não é próprio dizer que os homens não pensaram, realmente, no que, não obstante, tanto influenciou sua conduta. É preciso confessar que é incômodo restringir assim o sentido das palavras; mas não há como ser diferente: apenas com palavras de significado preciso se pode chegar a conclusões precisas. Não se pode discutir, com proveito, as questões tocantes à validade de nossos conhecimentos, se as palavras conhecer e pensar não têm uma acepção bem determinada. Não devemos aplicá-las, por exemplo, a todas essas operações confusas de nosso espírito, como faz o vulgo; deveríamos reservá-las para operações bem distintas ou claras. Se isto nos obriga a desdenhar uma parte dos chamados pensamentos humanos, por não serem pensamentos, mas pseudopensamentos, não há como remediá-lo. voltemos à questão geral. Achamos, resumindo, que temos uma experiência positiva da persistência contínua da matéria; que a forma do pensamento faz com que seja impossível conhecermos diretamente o aniquilamento da Matéria, pois esse conhecimento implicaria no conhecimento de uma relação com um dos termos não passível de conhecimento; que, por conseguinte, a indestrutibilidade da Matéria é, rigorosamente falando, uma verdade a priori; que se certas experiências enganosas sugerindo a ideia desse aniquilamento produziram nos espíritos incultos não apenas a suposição de que se poderia conceber a matéria aniquilada, como a ideia de que se aniquilava em certas condições, contudo, uma observação mais atenta, mostrando que os presumidos aniquilamentos nunca teriam acontecido, confirmou a posteriori o conhecimento a priori que, segundo a psicologia, resulta de uma lei de experiência contra a qual não pode haver outra experiência. § 54. Contudo, o fato que mais deve chamar nossa atenção diz respeito à natureza das percepções que nos fornecem perpetuamente exemplos da permanência da matéria, de onde tira a ciência a conclusão da indestrutibilidade desta. Essas percepções, sob todas as suas formas, se reduzem ao fato de que a força exercida por uma mesma quantidade de matéria é sempre a mesma. Não é outra a prova em que se baseiam, a uma só vez, o sentido mais comum e a ciência mais exata. Quando, por exemplo, dizemos que um indivíduo que existia há alguns anos ainda existe, porque acabamos de vê-lo, nossa afirmação equivale a dizer que um objeto, que faz algum tempo produziu em nosso espírito certas impressões, existe ainda, porque um grupo semelhante de impressões foi em nós novamente produzido; e consideramos a continuação de poder impressionar-nos como uma prova da continuidade do objeto. Se alguém supõe que possamos ter-nos enganado sobre a identidade do indivíduo, reconhece que demos provas decisivas de nossa afirmativa, se dizemos que não apenas o avistamos, mas que apertamos sua mão, reparando que lhe faltava o dedo indicador, sinal particular dessa pessoa. Tudo isso não é mais que admitir que um objeto que, por uma combinação especial de forças, produz impressões táteis especiais, existe enquanto as produz. Pela força medimos também a matéria, no caso de sua forma ter sofrido variação. Se entregamos a um ourives um pedaço de ouro para que faça uma joia, quando se faz a entrega, usa-se uma balança; se se faz o equilíbrio com um peso bem menor que o usado quando o ouro estava em bruto, se conclui que houve uma perda considerável, seja no feitio, seja por subtração. Isto prova que a quantidade de matéria pode, em suma, determinar-se pela quantidade de força gravitacional que assume. Essa é a prova principal em que a ciência fundamenta a indução experimental da indestrutibilidade da matéria. Sempre que uma massa qualquer, antes visível e tangível, se reduz a forma invisível e impalpável, e o peso do gás em que se transformou prova que ela ainda existe, se admite que a soma da matéria, mesmo que então inacessível a nossos sentidos, é a mesma, uma vez que pesa o mesmo. Analogamente, sempre que se determina o peso de um elemento de uma combinação, mediante outro elemento que a neutraliza, se expressa a quantidade de matéria em função da quantidade de força química que exerce, e se supõe que essa força química é correlativa, necessariamente, de uma força gravitacional determinada. Assim, então, por indestrutibilidade da matéria deve entender-se indestrutibilidade da força, pela qual a matéria nos produz impressões; porque do mesmo modo que não temos consciência da matéria, senão pela resistência maior ou menor que opõe à nossa atividade muscular, tampouco a temos da permanência da matéria, exceto pela da resistência que nos oferece direta ou indiretamente. Esta verdade se faz evidente, não apenas pela análise do conhecimento a posteriori como também pela análise do conhecimento a priori, pois não podemos conceber que diminua indefinidamente, pela compressão também indefinida da matéria, não seu volume, mas sua resistência. V Continuidade do movimento § 55. Vamos demonstrar neste capítulo, outra verdade geral, da mesma ordem da demonstrada no capítulo anterior. É uma verdade que, ainda que não seja tão vulgar e geralmente reconhecida, é conhecida, há tempos, pelos homens da ciência. A continuidade do movimento, como a indestrutibilidade da matéria, é evidentemente uma proposição de cuja verdade depende a possibilidade de uma ciência exata, e por consequência uma filosofia que unifique os resultados dessa ciência exata. Os movimentos de massas e moleculares, que se verificam tanto nos corpos inorgânicos quanto nos orgânicos, formam mais da metade dos fenômenos que se trata de interpretar e se fosse possível que esses movimentos se originassem ou terminassem no nada, não seria necessário interpretá-los cientificamente; poder-se-ia admitir que começavam e terminavam por si mesmos. Não se conhecia o caráter axiomático do princípio da continuidade do movimento, até que a disciplina das ciências exatas tenha dado precisão aos conceitos. Os homens primitivos, nossas populações incultas, e muitas pessoas que passam por instruídas, pensam de maneira muito pouco precisa; de observações inexatas passam, por raciocínios falhos, a conclusões cujas consequências não preveem e cuja dedução não comprovam logicamente. Admitindo, sem critério, dados de uma percepção irreflexiva, a qual revela que os corpos que nos rodeiam, ao serem postos em movimento, voltam breve ao repouso, a grande maioria admite que aquele movimento realmente se perdeu, se anulou. Não se pergunta se o fenômeno é suscetível de outra interpretação ou se aquela que se lhes dá é sequer concebível; atende-se apenas às aparências. O descobrimento da revolução dos planetas em torno do Sol com velocidade média constante levantou a suspeita de que um corpo abandonado a si mesmo continua movendo-se sem variação de velocidade, e sugeriu a ideia de que os corpos que perdem seu movimento, o fazem porque cedem em igual quantidade e no mesmo instante a outros corpos. Observou-se que uma bola se deslocava por mais tempo, lançada com a mesma força, por uma superfície lisa, como a do gelo, desprovida de pequenos corpos aos quais a bola pudesse ceder pelo choque, parte de seu movimento, do que sobre uma superfície que apresentasse esses obstáculos. observou-se que um projétil avança mais através de um meio menos denso, como o ar, do que através de um mais denso, como a água. Assim desapareceu a ideia de que os corpos têm uma tendência inata a perder gradualmente seu movimento, até a parada. Dessa ideia não puderam se desprender os filósofos gregos, e também Galileu. Foi também desmentida por Hooke, que provou que um pião gira muito mais tempo quando impedido de comunicar seu movimento a outros corpos próximos; essas experiências, repetidas com ajuda de procedimentos modernos, demonstraram que no vácuo o movimento de rotação do pião, que só sofre o retardo do atrito do eixo, continua por muito tempo. Destruídos assim sucessivamente todos os obstáculos que se opunham à primeira lei do movimento, pode enfim o grande Kepler formulá-la nos seguintes termos: "Todo corpo em movimento continua em trajetória retilínea e à mesma velocidade, se forças exteriores não atuarem sobre ele". Modernamente, esta lei está inclusa em outra mais geral: o movimento, como a matéria, é indestrutível, e tudo que é perdido por uma porção qualquer de matéria, é transmitido a outras porções. Mesmo que essa lei pareça em desacordo com os fatos, que nos mostram corpos subitamente parados por choque com outro imóvel, se concilia com esses fatos após saber que o movimento perdido em aparência continua sob novas formas, que não são, contudo, diretamente perceptíveis. § 56. Falando do Movimento, devemos fazer a mesma advertência que fizemos em relação à Matéria; sua indestrutibilidade não é só uma verdade indutiva, é uma necessidade de nosso pensamento; sua destrutibilidade não foi realmente nunca concebida, tendo sido sempre, como é hoje, uma pura forma verbal, uma pseudoideia. Não é impossível para nós dizer se a realidade absoluta que produz em nós a consciência do que chamamos Movimento é ou não um modo eterno do Incognoscível; mas a realidade relativa do que chamamos Movimento não pode jamais se aniquilar nem nascer do nada, sendo uma verdade implantada no mais fundo de nosso espírito. Dizer que o Movimento pode ser criado ou anulado, dizer que o nada chega a ser alguma coisa ou que alguma coisa pode converter-se em nada, é estabelecer na consciência relação entre dois termos, sendo que um deles está ausente da própria consciência, o que é absurdo. A própria natureza da nossa inteligência desmente a hipótese de que se possa conceber e ainda menos conhecer a cessação ou a criação do Movimento. § 57. Falta evidenciar que a continuidade do Movimento, como a indestrutibilidade da Matéria, nos é na realidade conhecida em termos de força. Que toda manifestação de força permanece sempre a mesma em quantidade; esta é a verdade definitiva nas questões do movimento, seja a adquirida a posteriori ou dada a priori. Tomemos por exemplo, na física terrestre, o caso da propagação das vibrações sonoras a grande distância. Sempre que temos diretamente consciência da produção de um som (como o que nós próprios venhamos a produzir) seu antecedente invariável é a força; sabemos que o que imediatamente se segue a essa força é o movimento, primeiro de nossos próprios órgãos e logo dos corpos que colocamos em vibração. Podemos distinguir essas vibrações com o ouvido ou com os dedos. As sensações percebidas pelo ouvido são o equivalente da força mecânica transmitida ao ar, que se comunica por esse meio com os corpos circunvizinhos, do que temos prova evidente quando esses objetos se quebram pela intensidade de um som forte, como os vidros que se quebram quando dispara um canhão, ou a taça de cristal pela intensidade de uma potente voz. Como pode acontecer que, em circunstâncias favoráveis, homens a bordo de um navio distante cem milhas da terra, ouçam os sinos das igrejas e perguntamos: como se sabe que as ondas atmosféricas atravessaram essa enorme distância? É evidente que quando dissemos que o movimento do badalo transformado em vibrações do sino e comunicado ao ar ambiente se transmitiu a essa distância em todos os sentidos, diminuindo de intensidade à medida que a massa de ar atravessada vai aumentando, nos baseamos em uma mudança sensitiva percebida por meio do ouvido. Quem escuta não tem consciência de movimento algum; tem apenas uma impressão sensitiva que implica em uma força como algo correlato e necessário. As impressões começam pela força, e por ela acabam; o movimento intermediário muitas vezes sequer é conhecido, a não ser por indução. Além disso, em mecânica celeste, se se prova quantitativamente a continuidade do movimento, a prova não é direta, mas indutiva, e os dados para indução são forças. Um planeta determinado não pode ser reconhecido a não ser pelo poder constante que tem de afetar nossa vista de maneira especial, de produzir sobre a retina um grupo de forças unidas por uma correlação característica. Além disso, o astrônomo não vê esse planeta mover-se, mas comparando suas posições presente e passadas deduz que ele se move. E, falando com todo rigor, essa comparação não é outra coisa senão uma comparação de impressões distintas produzidas no observador por adaptações distintas dos instrumentos de observação. Um passo mais e se vê que essa diferença carece de significado, enquanto não se prova que corresponde a uma posição determinada, dada pelo cálculo e na suposição de que não se perdeu algum movimento. Se, finalmente, examinamos o cálculo que aponta essa posição, descobrimos que está baseado em acelerações e atrasos devidos à natureza elíptica da órbita e às perturbações produzidas pelos planetas próximos. Chegamos, pois a concluir a indestrutibilidade do movimento do planeta, não por seu movimento uniforme, mas pela quantidade constante do movimento manifestado, exceto pelo comunicado aos outros corpos celestes, ou por eles transmitido. Quando perguntamos como se aprecia esse movimento transmitido, vemos que é com fundamento em certas leis de força, todas as que sem exceção implicam no postulado de que a força é indestrutível. Sem o axioma da igualdade e antagonismo da ação e da reação, a astronomia não poderia fazer predições exatas, e então perderíamos a rigorosa prova indutiva que nelas se baseia de que o movimento não pode jamais anular-se, podendo apenas transmitir-se. O mesmo sucede com respeito à conclusão a priori da continuidade do movimento. O que o pensamento não pode conceber que se anule é a força que o movimento indica. Pode-se sem dificuldade deixar de imaginar uma mudança constante de posição; isso sucede ao pensar no repouso; mas não é possível imaginar que a diminuição e cessação de um movimento se verifiquem, mesmo que produzidos por forças exteriores ao objeto móvel, se não se faz abstração da força desse movimento, a qual temos forçosamente de conceber, sob a forma de reação em tais corpos, tomando o movimento a eles comunicado como um produto da força comunicada, e não como diretamente comunicado. Mentalmente podemos diminuir a velocidade, o elemento espacial do movimento, repartindo o elemento força por maior massa de matéria; mas a quantidade desse elemento força, que consideramos causa do movimento é invariável em nosso raciocínio. VI Persistência da força (Dois anos atrás, manifestei a meu amigo professor Huxley como me parecia mal colocada a frase usual "conservação da força", porque supõe um conservador e um ato de conservar, e além disso não implica na existência da força antes da manifestação em que se revela pela primeira vez; Huxley, então, propôs a palavra "persistência" em vez de conservação. Essa nova palavra elimina a primeira objeção, e ainda que se lhe possa opor a segunda, não há outra melhor que a substitua; vamos usá-la, então, na falta de outra criada ad hoc para expressar essa ideia.) § 58. Antes de dar o primeiro passo na interpretação racional dos fenômenos, é necessário reconhecer não apenas os dois fatos de que a Matéria é indestrutível e o Movimento é contínuo, como ainda o de que a Força persiste. Absurdo seria querer estabelecer as leis a que obedecem as manifestações, em geral e em particular, se a força que as produz pudesse começar ou deixar de existir. A sucessão de fenômenos seria então arbitrária; Ciência e Filosofia seriam então impossíveis. A necessidade de admitir esses dois fatos é aqui mais imperiosa do que nas duas questões precedentes; porque a validade das provas dadas de que a Matéria é indestrutível e o Movimento contínuo, realmente repousa na validade da prova de que a Força persiste. A análise de nossos raciocínios nos demonstrou, nos dois casos, que a conclusão a posteriori implica a hipótese de que basta provar que as manifestações de força não mudam, para que fique provado que não mudaram as quantidades de matéria e de movimento, e constatamos também que esse fato constitui o elemento essencial do conhecimento a priori, e, por conseguinte, o princípio de que a quantidade de força permanece invariável é a ideia fundamental, sem a qual essas outras ideias derivadas não podem subsistir. § 59. Em que razões nos apoiamos para afirmar a persistência da Força? De maneira indutiva, só possuímos uma evidência, a que nos oferece o mundo dos fenômenos sensíveis. Contudo, não conhecemos imediata ou diretamente força alguma, a não ser as que desenvolvemos com nossos esforços musculares; as demais são conhecidas indiretamente pelas mudanças que a elas atribuímos. Mas uma vez que não podemos inferir a persistência da Força a partir da sensação que nos produz, que não é persistente, devemos inferi-la, se é que a inferimos, da continuidade do Movimento ou da atitude sempre igual da Matéria no produzir certos efeitos. Mas esse raciocínio implica num círculo vicioso; é ilógico afirmar a indestrutibilidade da Matéria, pois nos mostra a experiência que em todas as mudanças ou modificações que experimenta uma massa dada de matéria, ela apresenta a mesma gravitação, e afirmar em seguida que a gravitação é constante porque uma massa dada de matéria apresenta sempre a mesma quantidade, ou, o que é o mesmo, provar a continuidade do Movimento pela persistência da Força e provar reciprocamente a persistência da Força pela continuidade do Movimento. Sendo então necessários, para resolver esta questão - ideia da persistência da Força - os dados da Ciência, tanto objetiva como subjetiva, é conveniente examinar tal ideia com bastante atenção. Com o risco de cansar a paciência do leitor, devemos examinar outra vez o raciocínio que demonstra a indestrutibilidade da Matéria e a continuidade do Movimento, e veremos que é impossível chegar, por um raciocínio análogo, à persistência da Força. Nos três casos, a questão versa sobre quantidade; diminuem em quantidade de matéria o movimento ou a força? A Ciência quantitativa implica em medida, e a medida implica em unidade de medida. As unidades de medida, de que derivam todas demais medidas exatas, são unidades de extensão linear. Partindo dessas unidades com alavancas de braços iguais, ou balanças, se estabelecem unidades iguais de peso ou de força gravitacional que usamos, e por meio dessas unidades iguais de extensão e peso fazemos as comparações quantitativas que nos conduzem às verdades da ciência de precisão. Nas investigações que levam o químico a concluir que nenhuma parte do carbono desaparecido numa combustão se perdeu, e que no produto resultante, o ácido carbônico, se encontra todo aquele carbono, que prova sempre invocamos? A prova fornecida pela balança. E em função do que se expressa o veredicto fornecido pela balança? Em unidades de peso, ou força gravitacional. E qual é o veredicto? Que o carbono conserva ainda tantas unidades de força gravitacional como antes de ser queimado. Dizemos, então, que a quantidade de matéria é a mesma, se é o mesmo o número de unidades de força que a equilibram; por consequência, a validade da conclusão se estriba exclusivamente no número constante de unidades de força; de modo que, se varia a força com que a pesamos, que representa a unidade de peso, cai por terra a dedução da indestrutibilidade da matéria; é viciosa por ilegítima. Tudo se estriba no princípio ou hipótese de que a gravidade dos pesos é constante, mas dessa constância não temos nem podemos ter nenhuma prova. Os raciocínios dos astrônomos implicam em uma hipótese semelhante, da qual podemos tirar semelhante conclusão. Não há, em física celeste, nenhum problema que se possa resolver sem admitir alguma unidade de força; não é necessário que essa unidade seja como a libra ou a tonelada, das que podemos conhecer diretamente; basta tomar como unidade a atração mútua de dois corpos determinados a uma distância dada, de forma que as outras atrações de que se ocupa o problema possam ser expressas em função daquela. Adotada essa unidade, se calculam os momentos que cada massa isolada produz em cada uma das outras em um tempo dado, e combinando esses momentos com os que já possuem, são previstas as posições ao fim de um determinado tempo, vindo logo a observação a confirmar a predição, do que se podem deduzir duas conclusões: se as massas são constantes, prova-se que o movimento não se reduziu, e se o movimento não se reduziu, prova-se que as massas são constantes. Mas a validade de uma ou outra conclusão depende igualmente de que não haja variado também a unidade de força. E não apenas nas questões concretas os raciocínios da física terrestre e da astronomia supõem a persistência da Força; também o fazem no princípio abstrato que lhes serve de ponto de partida e que sempre invocam, para justificar cada passo que dão. Com efeito, esse princípio - igualdade e oposição direta da ação e da reação - equivale a dizer que não pode haver uma força isolada nascida do nada e que pode ser reduzida a nada, mas apenas uma força que se manifesta em toda parte, implicando em uma força antecedente, de que se deriva e contra a qual reage. Além disso, aquela força não pode desaparecer sem resultado; é preciso que se gaste em alguma outra manifestação de força, que uma vez produzida, constitui sua reação, e assim sucessivamente. É, pois, evidente que a persistência da força é uma verdade primária, que não admite prova indutiva. Sem necessidade da análise precedente, poderíamos assegurar dever existir um princípio - base da Ciência - e que, portanto, não pode ser estabelecido pela mesma Ciência. Com efeito, sabemos que todos os raciocínios se baseiam em algum postulado, e sabemos também (§23) que se referimos os princípios derivados àqueles cada vez mais abstratos e gerais de que por sua vez se derivam, não podemos deixar de chegar por fim a um princípio mais geral e abstrato que todos e que, portanto, não pode derivar-se nem deduzir-se de nenhum outro. Pois bem: esse princípio é, para a ciência em geral, segundo as relações que como vimos sustenta com todos os demais, a persistência da força. § 60. Qual é, então, a força cuja persistência afirmamos? Não é a força de que temos consciência em nossos esforços musculares, porque essa não persiste. Desde o momento em que um membro estendido se relaxa, desaparece a consciência da tensão. É verdade que dizemos que na pedra que lançamos ou no peso que levantamos se manifesta o efeito da tal tensão muscular, e que a força que deixou de estar presente em nosso espírito existe em outra parte. Mas não existe na forma que possamos vir a conhecê-la. Provou-se (§18) que se por um lado vemo-nos obrigados, no ato de levantar um objeto do solo, a pensar que sua pressão para baixo é igual à que aplicamos para cima, e que é impossível imaginar a igualdade dessas duas forças sem imaginar também sua igualdade de espécie, por outra parte, como essa igualdade de espécie implicaria no objeto uma sensação de tensão muscular que é absurdo atribuir, devemos concluir que a força, tal como existe fora de nossa consciência, não é como a que nela ou por ela conhecemos. Por conseguinte, a força cuja persistência afirmamos é a Força absoluta, da qual temos vagamente consciência como correlativa necessária da força que conhecemos. Assim, por persistência da força, entendemos: persistência de um poder que supera nosso conhecimento e nossa razão. As manifestações que em nós e fora de nós se verificam, não persistem, o que persiste é a causa incógnita dessas manifestações. Dito em outros termos, afirmar a persistência da força não é mais que outra maneira de afirmar uma realidade incondicionada sem princípio nem fim. Assim chegamos de novo, impensadamente, à verdade primária, laço de união entre a Religião e a Ciência. Examinando os dados que implicam em uma teoria racional dos fenômenos, constatamos que todos podem referir-se a um, sem o qual é impossível a consciência, a existência necessária de um incognoscível, correlativo necessário do cognoscível. Uma vez começada, a análise das verdades admitidas como base das investigações científicas nos leva ao princípio fundamental em que se reconciliam a Filosofia e o sentido comum. Os argumentos e conclusões contidos neste capítulo e nos três precedentes são um complemento dos argumentos e conclusões da primeira parte desta obra. Ali provamos, pelo exame de nossas últimas, ou melhor, primárias ideias religiosas e científicas, a impossibilidade de conhecer o Ser absoluto, e no capítulo seguinte provamos também, por uma análise subjetiva, que as próprias condições do pensamento nos impedem de conhecer nada além dos seres relativos, mas essas mesmas condições necessariamente supõem uma consciência ou conhecimento vago e indeterminado do Ser absoluto. Agora acabamos de encontrar, por uma análise objetiva, um resultado análogo, ou seja: que as verdades axiomáticas das ciências físicas supõem como base comum o Ser absoluto. Existe, pois, entre a Religião e a Ciência, uma conformidade mais profunda que a mostrada anteriormente; não apenas ambas confluem na proposição negativa de que não é possível conhecer o não relativo, como também o fazem na proposição positiva de que o não relativo tem existência real. Uma e outra se veem obrigadas, pela provada impossibilidade de seus pretensos conhecimentos, a confessar que a realidade última é incognoscível, vendo-se, contudo forçadas a admitir sua existência, uma vez que, sem ela, nem a religião tem um objeto, nem a ciência subjetiva e objetiva tem seu dado primordial e indispensável. Sem supor o Ser absoluto, não podemos estabelecer uma teoria dos fenômenos internos, nem uma teoria dos fenômenos externos. § 61. Partindo de diversos pontos de vista, consideramos a natureza dessa intuição fundamental; não será, pois, inútil resumir agora os resultados obtidos. Vimos no capítulo IV que o "poder incógnito", cujo princípio e fim são inconcebíveis, está presente em nosso pensamento como uma matéria informe que recebe uma forma nova em cada pensamento. Nossa incapacidade para conceber seus limites é simplesmente correlativa de nossa incapacidade de pôr fim ao sujeito pensante enquanto pensa. Nos dois capítulos precedentes, consideramos essa verdade fundamental sob outro aspecto. Vimos que a indestrutibilidade da matéria, e a continuidade do movimento são na realidade corolários da impossibilidade de estabelecer uma relação mental entre algo e nada, impossibilidade que deriva de que sendo o que chamamos estabelecer uma relação mental a passagem da substância pensante de uma forma a outra, pensar que algo se reduz a nada seria equivalente a que a substância pensante, depois de existir sob determinada forma, existisse sob forma alguma, ou deixasse de existir. A incapacidade de conceber a destruição da matéria e do movimento é a incapacidade de destruir a própria consciência. O que encontramos de certo com respeito à matéria e ao movimento nos dois capítulos precedentes é, a fortiori, da força, ou seja, do elemento que integra os conceitos de Matéria e de Movimento, pois, como vimos, o indestrutível na matéria e no movimento é a força que manifestam. E ultimamente, acabamos de ver que o princípio da indestrutibilidade da força é o correlativo do princípio da indestrutibilidade da causa incógnita das mudanças que se passam na consciência. De modo que a persistência da consciência é a experiência imediata que temos da persistência da força, e ao mesmo tempo nos impõe a necessidade de afirmar esta. § 62. Vemos, pois, que sob todos os conceitos estamos obrigados a reconhecer que há uma verdade fundamental, dada a priori em nossa constituição psíquica. Verdade esta que não é apenas um dado da ciência, mas também da ignorância, ou do sentido comum inculto. Qualquer pessoa que afirme que a incapacidade de conceber princípio e fim do Universo é um resultado negativo da estrutura de nosso pensamento não poderá negar que a intuição do Universo como persistente é um resultado positivo dessa mesma estrutura. A persistência do Universo é a persistência da causa incógnita - poder ou força - que se manifesta através de todos os fenômenos. Este princípio é o fundamento de toda ciência positiva, é anterior a toda demonstração e a todo conhecimento determinado; é enfim, tão antigo como nosso espírito; é também superior em autoridade a toda outra autoridade, não só porque está posto na constituição de nossa própria consciência, como também ser impossível imaginar uma consciência constituída de modo que não esteja nela presente aquele princípio. Posto que o pensamento implica só no estabelecimento de relações, facilmente se pode conceber que se exerça, mesmo quando as relações ainda não tenham sido sistematizadas nas noções ou ideias abstratas que chamamos Espaço e Tempo; é possível conceber uma espécie de consciência que não possua os princípios a prior! que supõe a organização dessas formas de relação; mas não se pode conceber que o pensamento se exerça sem certos elementos entre os que possam estabelecer tais relações; não é possível conceber uma consciência que não implique na existência contínua, como dado fundamental. A consciência é possível sem tal ou qual forma particular; mas é impossível sem matéria, sem conteúdo. O único princípio que supera, pois, a experiência - porque lhe serve de base - é a persistência da força, que não apenas é a base da experiência, como também deve sê-lo de toda organização científica de experiências. A esse princípio nos conduz a análise; sobre ele deve fundar-se, pois, toda síntese racional. VII Persistência das relações entre as forças § 63. A primeira dedução a ser estabelecida da verdade universal de que a força persiste, é a de que as relações entre forças persistem. Supondo-se que uma manifestação de força de formas e condições dadas seja precedida ou seguida de outra manifestação determinada, é necessário que sempre que sejam as mesmas a forma e as condições, o seja também a manifestação seguinte ou precedente. Cada modo do Incognoscível, considerado como antecedente deve ter invariável conexão quantitativa e qualitativa com o modo do Incognoscível que chamamos seu consequente. Dizer o contrário é negar a persistência da força. Se em dois casos determinados existe completa analogia, não só entre os antecedentes principais, que chamamos causas, mas também entre os antecedentes concomitantes, que chamamos condições, não nos é possível afirmar que os efeitos ou consequências diferirão, sem afirmar explícita e implicitamente ou que uma força deixou de existir, se anulando, ou que uma força passou a existir, saída do nada; porque sendo iguais em direção e intensidade as forças cooperadoras, cada uma à sua correlativa, nos dois casos é impossível conceber que o produto de sua ação combinada seja distinto em um do que em outro caso, sem conceber também que uma ou várias forças tenham ganhado ou perdido em quantidade, ou seja, sem pensar que a força não é persistente. Para dar a esse princípio sua forma mais abstrata, é conveniente mostrar alguns exemplos. § 64. Sejam dois projéteis de artilharia iguais, lançados com a mesma força; devem percorrer iguais distâncias no mesmo tempo. Se dizemos que um deverá percorrer um dado espaço mais que o outro, embora tenham o mesmo momento inicial e devam vencer as mesmas resistências (pois se as resistências são diferentes não são as mesmas as condições) é o mesmo que dizer que quantidades iguais de força não produziram a mesma quantidade de trabalho, o que é inconcebível sem admitir que uma força se anulou ou nasceu do nada. Suponhamos agora que em seu movimento, um dos dois projéteis desviou-se algumas polegadas de sua direção primitiva por força da atração terrestre; o outro, que percorreu igual distância no mesmo tempo, deve ter tido igual desvio, pois caso contrário, deveríamos supor que atrações iguais, em tempos e demais condições também iguais produziram efeitos desiguais, o que significaria criação ou anulação de trabalho mecânico, que, como já sabemos, não se concebe. Além disso, se um dos projéteis penetrou o alvo até certa profundidade, não se pode imaginar que o outro penetre mais ou menos, a não ser que a desigualdade vá ligada à forma do projétil ou a uma desigual densidade do alvo nos pontos alcançados pelos dois projéteis. Em geral, todas as modificações dos consequentes sem modificações dos antecedentes não podem ser concebidas sem supor que algo se reduziu a nada ou que nada chegou a ser algo, o que já sabemos inconcebível. Tudo isso pode ser dito não apenas das mudanças ou fenômenos sucessivos, como também dos simultâneos ou coexistentes. Sejam, por exemplo duas cargas de pólvora iguais em quantidade e qualidade, inflamadas por mechas da mesma estrutura, propelidas por canhões de também igual estrutura e projetando balas de pesos, volumes e formas idênticos, disparadas do mesmo modo; infere-se que os efeitos concomitantes produzidos por ambas explosões devem ser iguais em qualidade e quantidade; também o serão as respectivas quantidades dos produtos da combustão; as partes de ambas somas de força empregadas respectivamente em dar à bala sua velocidade, aos gases seu calor, à detonação seu ruído etc. etc. Com efeito, não é possível imaginar que haja diferenças de quantidades ou de relações quantitativas e qualitativas entre esses fenômenos concomitantes sem supor que essas diferenças nascem sem causa, por criação ou anulação de força. Claro está que a igualdade reconhecida nesses dois casos deve existir em todos os análogos, da mesma maneira que entre antecedentes e consequentes, até certo ponto simples, seja qual for a complicação daqueles. § 65. Assim, pois, o que chamamos uniformidade de uma lei, que não é outra coisa, como acabamos de ver, além da constância ou persistência das relações entre forças, é um corolário imediato da persistência da força. A conclusão geral de que há conexões constantes entre os fenômenos, conclusão que se considera comumente como indutiva, pode na realidade deduzir-se do dado primário da consciência. Poder-se-ia acreditar que deduzimos a conclusão ilegítima de que o que é verdadeiro com respeito ao Eu o é também com respeito ao Não Eu; mas neste caso, essa conclusão é legítima. Com efeito, o que afirmamos sobre o Eu e o Não Eu, é unicamente o que ambos, considerados apenas como seres, têm em comum. Afirmar uma existência fora do Eu, é afirmar que existe fora da consciência algo persistente, porque a persistência nada mais é que a existência continuada, e já vimos que não se pode conceber a existência sem concebê-la como contínua. Não podemos afirmar a persistência de algo fora do Eu sem afirmar que são persistentes as relações que o ligam entre si e suas manifestações. Veremos mais adiante ainda com maior evidência que a constância ou uniformidade da lei de cada fenômeno se infere também da persistência da força. O capítulo seguinte fornecerá de um modo indireto essas provas em muitos exemplos. VIII Transformação e equivalência das forças § 66. Desde que a Ciência passou a auxiliar os sentidos com instrumentos de precisão, que são como sentidos suplementares, começaram a ser percebidos diversos fenômenos que os olhos ou os dedos não haviam, até então, podido distinguir; puderam ser apreciadas manifestações mais delicadas das formas de força, já conhecidas, e novas formas, antes incógnitas, puderam ser estudadas e medidas. Mesmo nos casos em que se havia admitido, apressadamente, a aniquilação de certas forças, a observação, auxiliada por instrumentos, provou que essas forças produziam sempre alguns efeitos; e que, longe de se anularem, apareciam sob novas formas. Deste modo, chegou-se a colocar como questão geral se a força produtora de cada fenômeno se metamorfoseia, ou muda sempre em outra ou outras, quando aparenta gastar-se ou anular-se. A experiência deu a essa questão uma resposta afirmativa, que cada dia é mais firme. Meyer, joule, Grove e Helmholtz contribuíram, na primeira fila, para popularizar essa ideia; examinaremos detidamente as provas de sua demonstração. Em todos os casos em que podemos reconhecer diretamente a gênese de um movimento, vê-se que ele preexistia sob a forma de força. Nossos próprios atos voluntários têm sempre por antecedentes certas sensações de tensão muscular. Quando deixamos cair um membro, por seu próprio peso, temos consciência de um movimento corporal que não exigiu qualquer esforço, mas que se explica pelo esforço que fizemos ao elevar o membro à posição de que caiu. Neste caso, como no de um corpo inanimado que cai ao chão, a força acumulada pelo movimento de queda é exatamente igual àquela empregada para elevá-lo à altura de que cai. De maneira inversa, cada movimento que para, produz, segundo as circunstâncias, calor, eletricidade, magnetismo ou luz. Desde o simples aquecimento das mãos, esfregando-as até a ignição de um freio de trem, ao acioná-lo e fazê-lo sofrer o intenso atrito resultante; desde a ignição ou detonação da pólvora por percussão; até a inflamação da madeira por um curto número de sopros de um martelo a vapor, há uma infinidade de exemplos de que se produz calor ao cessar um movimento. Além disso, esse calor assim produzido cresce proporcionalmente à quantidade de movimento anulado, em aparência. E diminui ao diminuir o atrito ou choque que anula o dito movimento. Sabe-se que há produção de eletricidade com movimento no atrito do lacre ou resina na máquina elétrica ordinária, nas hidrelétricas etc.; geralmente, isso acontece em todo lugar onde se verifique o atrito entre corpos heterogêneos. O magnetismo pode resultar do movimento, seja imediatamente, pela percussão do ferro, seja indiretamente, pelas correntes elétricas, previamente produzidas, também, pelo movimento. Este pode produzir também luz, seja diretamente, como nas faíscas que fazem saltar os choques violentos, seja indiretamente, como nas faíscas elétricas. Por último, as forças engendradas por movimentos produzem também movimentos. Exemplos: a divergência das folhas do eletrômetro, a rotação da roda elétrica, o desvio da agulha imantada que, se resultam da eletricidade desenvolvida pelo atrito, são movimentos visíveis reproduzidos por meio invisível de força, gerados por sua vez por movimentos. A forma de força que chamamos calor é considerada, faz alguns anos, pelos físicos, como um movimento molecular, ou seja, um movimento interno e vibratório das unidades invisíveis que compõem as massas. Deixando de considerar o calor como a sensação particular que nos causam os corpos em certas condições, e estudando os outros fenômenos que esses corpos apresentam e produzem, não se observam em todos eles mais que movimentos. Salvo uma ou duas exceções inexplicáveis por todas as teorias do calor, os corpos aquecidos se dilatam, e a dilatação não pode sem dúvida interpretar-se senão como a soma dos movimentos das moléculas ou unidades de massa, distanciando-se umas das outras. O que se chama radiação, ou seja, a comunicação do calor à distância, é evidentemente um movimento, como o é também a prova que disso fornece o termômetro, a dilatação da coluna termométrica. Um exemplo já comum de como o movimento molecular chamado calor pode transformar-se em movimento visível oferece a máquina a vapor (na qual o êmbolo e todas as peças a ele unidas são postos em movimento pela dilatação do vapor de água). Mesmo nos casos em que o calor é absorvido sem produzir resultado aparente, as investigações modernas provaram a existência de mudanças bem notáveis, como por exemplo o vidro, cujo estado molecular se modifica pelo calor, até o ponto em que um raio de luz polarizada que o atravesse se faz visível, embora não o seja se o vidro está frio; ou nas superfícies metálicas polidas, cuja estrutura muda de tal modo pela radiação térmica recebida, que às vezes conserva permanentemente tal mudança. A transformação do calor em eletricidade se produz quando se aquece a superfície de união de dois metais em contato, ocasião em que se desenvolve uma corrente elétrica. Introduzindo uma substância sólida em um gás muito aquecido, por exemplo um pedaço de calcário na chama de oxi-hidrogênio, fica ele incandescente, mostrando a transformação do calor em luz. Se não é fácil mostrar a transformação direta do calor em magnetismo, certamente o é indiretamente por meio da eletricidade. O mesmo intermediário serve para estabelecer entre o calor e a afinidade química a correlação que fazia supor a influência do calor nas combinações e decomposições químicas. A passagem da eletricidade para outras formas de força e reciprocamente, se faz ainda com maior facilidade demonstrável; ou é uma corrente elétrica que produz magnetismo em uma barra de ferro doce, ou um imã em rotação que produz corrente elétrica, ou uma bateria em que reações químicas produzem uma corrente elétrica, ou correntes elétricas que determinam efeitos químicos. Nos fios elétricos se pode comprovar a transformação da eletricidade em calor; na faísca e no arco voltaico, sua transformação em luz. A disposição molecular sofre também alterações pelo efeito da eletricidade; por exemplo: o transporte da matéria entre os polos, as roturas que produzem as descargas elétricas, as cristalizações produzidas pela eletricidade. Inversamente, as disposições moleculares novas produzem, ao efetuar-se, seja direta, seja indiretamente, a eletricidade. Examinemos, ainda que brevemente, a passagem do magnetismo para outras forças físicas, e vejamos também brevemente porque a maioria dos exemplos que se seguem são inversos dos já citados. O magnetismo geralmente manifesta sua existência produzindo movimento na máquina eletromagnética. Um imã em rotação produz eletricidade, e esta pode gerar imediatamente luz, calor e afinidade química. A descoberta, por Faraday, dos efeitos do magnetismo sobre a luz polarizada, o mesmo do calor que acompanha as mudanças do estado magnético de um corpo, revelam novas conexões entre essas formas de força. Enfim, diversas experiências demonstram que a imantação de um corpo muda sua estrutura Íntima e inversamente, a mudança da estrutura de um corpo por ações mecânicas muda sua condição magnética. Todas essas forças podem também ser geradas pela luz, ainda que pareça improvável. De fato, os raios solares mudam a estrutura molecular de alguns cristais; gases em contato, que normalmente não se combinam, fazem-no à luz solar, e, contrariamente, em certos compostos, a luz causa decomposição. Desde que os trabalhos fotográficos chamaram a atenção para os efeitos da luz sobre os corpos, notou-se que "um grande número destes, tanto elementares como compostos, são notavelmente modificados por aquela, e mesmo alguns, como os metais, que parecem pouco suscetíveis de modificação". Quando se põe em comunicação uma placa de daguerreotipo exposta à luz com um galvanômetro, se obtém uma reação química na placa, eletricidade dinâmica nos fios, magnetismo no interior do circuito, calor na hélice e movimento nas agulhas. É quase desnecessário dizer que as ações químicas podem gerar todas as demais formas de força e que é bem sabido que a imensa maioria das combinações produzem calor, e se as afinidades são intensas e as condições adequadas, também se produz luz. As ações químicas que implicam em mudança de volume geram movimento tanto nos elementos que reagem como nos corpos próximos; um exemplo está na explosão da pólvora nas armas de fogo. A eletricidade das baterias é devida às ações químicas, e por meio daquela, estas produzem também magnetismo. Os exemplos antecedentes tomados na sua maioria do livro do senhor Grove On the Correlation of Physical Forces, nos provam que cada força pode transformar-se direta ou indiretamente nas outras. Em todo fenômeno, sofre a força uma metamorfose: da forma ou das formas novas que assume, pode resultar a forma precedente, como pode resultar outra qualquer, em infinita variedade de ordens e combinações. Facilmente se comprova que as forças físicas têm muitas correlações não apenas qualitativas, mas também quantitativas. Depois de haver provado que uma forma qualquer de força pode transformar-se em outra, demonstra-se também que de uma quantidade definida de uma força nascem também quantidades fixas e definidas das outras. Esta demonstração é quase sempre difícil, pois comumente uma força não se transforma simplesmente em outra, mas em várias, cujas proporções relativas vêm determinadas por circunstâncias que nem sempre são as mesmas. Contudo, em certos casos, foram obtidos resultados positivos. Assim, o senhor joule provou que a queda de um peso de 722 libras de uma altura de um pé eleva a temperatura de uma libra de água em um grau Fahrenheit. Estudos de Dulong, Petit e Neuman demonstraram que existe uma relação quantitativa entre as afinidades dos corpos que se combinam e o calor gerado durante a combinação e os de Faraday acusam que uma determinada quantidade de eletricidade voltaica é sempre produzida por uma quantidade correlativa de reação química. Nas máquinas a vapor há uma relação constante entre as quantidades de calor empregado e as de vapor produzido, ou melhor, de tensão ou força elástica manifestada. É então indubitável que existem relações quantitativas fixas entre as várias formas de força, fato pelo qual os físicos admitem que não apenas as ditas formas se metamorfoseiam ou mudam umas em outras, como também que uma quantidade determinada de cada força equivale constantemente a quantidades fixas das outras. § 67. O princípio que acabamos de estabelecer se manifesta no Cosmo em todos os lugares. Toda mudança sucessiva, ou grupo de mudanças que nele se operam, devem-se produzir por forças semelhantes ou diferentes daquelas previamente existentes; e derivadas ou transformadas de outras. E além de reconhecer o encadeamento das forças atuais com as precedentes e consequentes, devemos também reconhecer as quantidades dessas forças como determinadas, ou seja, necessariamente produzindo tais ou quais quantidades de resultados, e limitadas a essas quantidades. A unificação do conhecimento, que é o fim da Filosofia, não adianta pouco ao conceder toda sua generalidade à proposição contida no parágrafo anterior. As mudanças ou fenômenos e as transformações de forças que os acompanham seguem por toda parte um movimento progressivo, desde os movimentos estelares até o curso de nossas ideias e se queremos compreender inteiramente a grande lei da persistência quantitativa das forças em suas metamorfoses incessantes, é preciso que consideremos as diversas ordens de mudanças que se verificam ao nosso redor a fim de averiguar onde nascem e como se transformam as forças que as produzem. Questão tão ampla sem dúvida só pode receber uma solução muito deficiente, pois não será fácil estabelecer sempre a equivalência entre as várias manifestações sucessivas de força; o mais que conseguiremos será estabelecer uma relação qualitativa e vagamente quantitativa apenas no que implique em proporção entre as causas e efeitos. Vamos, tendo em vista a meta de fazê-lo, examinar sucessivamente as várias classes de fenômenos de que se ocupam as várias ciências concretas. § 68. Os antecedentes das forças liberadas por nosso Sistema Solar pertencem a um passado do qual jamais poderemos ter mais que um conhecimento provável, e até agora quase não podemos nos orgulhar de ter algum conhecimento que mereça esse nome. Por muitas e poderosas que sejam as razões em prol da hipótese nebular não podemos vê-la como algo além de uma hipótese. Contudo, se admitimos que a matéria que compõe o Sistema Solar existiu antes no estado difuso, basta a gravitação de suas diversas partes para produzir seu estado e movimentos atuais. Com efeito, massas de matéria cósmica precipitada, movendo-se para seu centro comum de gravidade através do meio em cujo seio se precipitaram, inevitavelmente produzirão uma rotação geral cuja velocidade irá aumentando à medida que aumenta a concentração. Em tudo o que alcança nossa experiência sobre essa classe de fenômenos, existe uma relação quantitativa entre os movimentos assim gerados e as forças gravitacionais que os produzem. Os planetas que a matéria formou e cuja distância ao centro comum de gravidade era mínima, têm também mínimas velocidades, fato perfeitamente explicado pela hipótese teleológica, posto que é uma condição de equilíbrio, uma lei estática; mas não é essa a questão, entre outras razões porque isso não é o bastante para explicar as rotações dos planetas, com todas as circunstâncias. Não há causa final que explique a rapidez do movimento rotatório de júpiter e Saturno e a lentidão de Mercúrio; mas sim, com ajuste à doutrina da transformação de forças buscamos os antecedentes das rotações planetárias, a hipótese nebular nos sugere uma explicação que é bastante aceitável quanto a essas relações quantitativas. De fato, os planetas cujo movimento rotatório é mais rápido, são os que têm maiores massas e órbitas; isto significa aqueles cujos elementos tenderam para seu centro de gravidade desde o estado difuso através de espaços enormes e adquiriram, por isso mesmo, enormes velocidades. Pelo contrário, os planetas que giram com velocidades menores são os formados pelos menores anéis nebulosos, como mostram principalmente seus satélites. Mas dir-se-á: que ocorreu com todo o movimento que efetuou a agregação daquela matéria difusa em corpos sólidos? Transformou-se em calor e luz, diz a Ciência, e a experiência confirma essa resposta. Os geólogos pensam que o calor do núcleo terrestre, ainda em fusão, não é senão um resíduo da massa inteira da Terra, antigamente em fusão. As superfícies montanhosas da Lua e de vênus (únicas cuja proximidade permite seu exame) apresentam uma crosta corrugada como a nossa, sem dúvida devido ao resfriamento. Enfim, o próprio Sol é um exemplo, segundo se acredita, da produção de calor e luz pela detenção da matéria difusa que se move para seu centro de gravidade, vendo-se nele também comprovada a relação quantitativa, pois sendo sua massa mil vezes maior que aquela do maior dos planetas, como se sabe, é enormemente mais considerável a quantidade de luz e de calor que produz a detenção de sua matéria em movimento, pelo qual conserva ainda a radiação que nos ilumina e vivifica; enquanto os planetas, cujas massas relativamente pequenas perderam já seu movimento centrípeto, e somam uma superfície radiante muito grande, em relação à massa total, perderam também a maior parte do calor que antes detinham. § 69. Buscando agora a origem das forças que deram à superfície de nosso planeta sua forma presente, veremos que podemos referi-las à origem primordial que acabamos de citar; pois supondo formado o Sistema Solar segundo a hipótese admitida, as mudanças geológicas são resultados naturais diretos ou indiretos do calor devido à condensação da nebulosa, e que ainda não se gastou totalmente. Essas mudanças podem ser divididas em ígneas e aquáticas, o que nos permite considerá-las mais comodamente. Todas as mudanças periódicas que chamamos terremotos, todas as elevações e depressões que eles produzem, os efeitos acumulados das elevações e depressão nas bacias variáveis dos mares, as ilhas, continentes, planaltos, cordilheiras e todas as formações que chamamos vulcânicas, são considerados pelos geólogos como alterações da crosta terrestre pela matéria ainda em fusão que ocupa seu interior. Por mais insustentáveis que sejam os detalhes da teoria do senhor Élie de Beaumont, existem poderosas razões para admitir que, em geral, as rupturas e desníveis manifestados às vezes na superfície terrestre sejam devidos à contração progressiva da camada sólida sobre um núcleo resfriado e contraído. Mesmo supondo que se possa dar uma explicação mais satisfatória, o que até agora não foi possível, das erupções vulcânicas, dos levantamentos de rochas ígneas e da formação das cadeias de montanhas, não poderiam ser explicadas, a não ser daquela maneira, as imensas elevações e depressões de que resultam os continentes e os mares. A conclusão geral a se tirar é de que as forças que se manifestam nos fenômenos geológicos ígneos são resultados positivos ou negativos do calor concentrado no núcleo ou centro do globo. Os fenômenos de fusão ou aglutinação de depósitos sedimentares, as águas termais, a sublimação dos metais nos veios onde os encontramos mineralizados, podem ser considerados como efeitos positivos do calor interior, e as rupturas dos terrenos e mudanças de nível são resultados negativos, ou do resfriamento, sendo a causa originária ou primitiva de todos esses efeitos a mesma do princípio, o movimento gravitacional da matéria terrestre para seu centro, já que a essa causa devemos atribuir o calor interno e a contração da superfície à medida que se processa a radiação para o espaço. Quanto aos fenômenos geológicos classificados como aquáticos ou plutônicos, não é tão evidente a forma em que preexistia a força que os produz. Os efeitos da chuva, dos rios, das ondas, dos ventos, das correntes marinhas, aparentemente não procedem de uma mesma origem; a análise prova, contudo, que procedem. De fato, se perguntamos: de onde provém a força da corrente fluvial que leva suas águas ao mar? Pode-se responder: da gravitação da água em todo espaço que percorre. E como se reuniu a água no leito do rio? Resposta: caiu em forma de chuva, juntando-se por gravidade na bacia correspondente. E como a chuva havia se posicionado onde caiu? Resposta: o vapor de água, cuja condensação são as nuvens, havia sido acumulado e condensado pelos ventos. Como esse vapor havia se formado e elevado tão alto? Resposta: pela força de evaporação do calor solar, sendo exatamente a mesma a quantidade de força gravitacional dos átomos de água elevados pela evaporação a que eles restituem, descendo sucessivamente até o nível de onde subiram. Resulta então que as correntes produzidas pela chuva e os rios durante o movimento de descida até o nível do mar do vapor condensado são indiretamente devidas ao calor solar. É a mesma a causa dos ventos que transportam esse vapor. De fato, as correntes atmosféricas são resultado das diferenças de temperaturas gerais, como entre as regiões polares e equatoriais, que ocasionam os ventos alísios, ou especiais, como entre as partes da superfície terrestre que têm diferente constituição física. E se tal é a origem dos ventos, a mesma é portanto, indiretamente, a das ondas que eles levantam na superfície do mar e de todas as mudanças que as ondas produzem, como o desgaste das barrancas, a destruição das rochas, que se desmontam para formar pedregulhos, areia, lama etc. À mesma origem obedecem também as correntes do oceano; as maiores, do excesso de calor que o oceano recebe do Sol nas regiões tropicais, e as menores das diferenças locais que oferece a quantidade de calor absorvida; portanto, ao calor solar devem-se indiretamente a distribuição de sedimentos e as demais operações geológicas que tais correntes produzem. O único fenômeno aquático cuja força produtora tem outra origem é o das marés, que podem ser atribuídos a forças astronômicos não gastas, ou ainda em atividade. Mas mesmo levando em conta o fenômeno das marés podemos deduzir que, contudo, a destruição lenta dos continentes, a alimentação contínua dos mares pelas chuvas e rios, os ventos, as ondas e as correntes oceânicas são efeitos indiretos do calor do Sol. Assim, as conclusões que nos impõe a teoria da transformação do movimento, isto é, que as forças que modelaram e alteraram a crosta terrestre devem ter preexistido sob alguma outra forma não oferecem dificuldades se se admite a gênese nebular uma vez que essa gênese supõe certas forças, que por sua vez são capazes de produzir resultados, e não podem dissipar-se sem produzi-los. Resumindo, as mudanças geológicas, ígneas provêm do movimento, ainda não concluído, da matéria terrestre para seu centro de gravidade, enquanto os fenômenos aquáticos nascem do movimento, também ainda existente, da matéria solar para seu centro de gravidade, movimento que, transformado e recebido em mínima parte pela Terra, sofre aqui novas transformações: diretamente em movimentos das substâncias gasosas e líquidas da superfície da Terra e indiretamente em movimentos da substância sólida. § 70. As forças que se manifestam nos corpos vivos, tanto vegetais quanto animais, derivam também do calor solar, como os leitores um tanto familiarizados com os fatos biológicos não deixarão de admitir. Examinemos em primeiro lugar as generalidades fisiológicas, e veremos após as que delas induzimos. A vida vegetal depende, direta ou indiretamente, do calor e da luz solares; diretamente, na imensa maioria das plantas, e indiretamente naquelas que, como os fungos, vivem na escuridão e se nutrem de matéria orgânica em decomposição. Toda planta deve o carbono e o hidrogênio de que se compõe, em sua maior parte, ao ácido carbônico e à água da Terra e da atmosfera, cujos elementos, naturalmente, têm que ser decompostos, para que seu carbono e hidrogênio se assimilem às plantas. Para efetuar essa decomposição, vencendo as grandes afinidades que unem aos elementos da água e do gás carbônico, é necessária uma grande força, e esta é fornecida pelo Sol. Como se efetua essa decomposição, não sabemos; mas sabemos que quando se expõem plantas aos raios solares em condições favoráveis, elas desprendem oxigênio e assimilam carbono e hidrogênio. Essa redução cessa na escuridão, e quando o calor e a luz solar diminuem consideravelmente, como no inverno; ativa-se, pelo contrário, quando aqueles são muito vivos, como na estiagem. Fica mais evidente essa relação quando se compara a exuberante vegetação intertropical com a já diminuta dos climas temperados e com a quase nula dos glaciais. De tudo isso é forçoso deduzir que as forças que fornecem às plantas os materiais de seus tecidos, tomando-os dos corpos inorgânicos ambientes, isto é, as forças pelas quais as plantas vivem e crescem, preexistiam sob a forma de calor e luz solares. Todos sabem que a vida animal depende, mediata e imediatamente, da vida vegetal, e os sábios admitem, desde muito tempo, que em geral as funções da vida animal são opostas à da vida vegetal. Desde o ponto de vista químico, a vida vegetal é principalmente uma redução ou desoxidação, e a vida animal uma oxidação; deve-se dizer principal, e não exclusivamente, porque quando os vegetais gastam força no exercício de suas funções, funcionam como aparatos de oxidação; exemplo: exalação de gás carbônico durante a noite, e os animais, em algumas de suas funções de menor importância, funcionam como aparatos de redução. Feita essa ressalva, o princípio geral é o de que a planta decompõe o ácido carbônico e a água, liberando o oxigênio, e retendo carbono e hidrogênio, para com eles elaborar, auxiliada por pequenas quantidades de alguns outros elementos, os ramos, as folhas, as sementes etc., enquanto o animal, consumindo esses ramos, folhas, sementes, e absorvendo oxigênio ao respirar, recompõe depois o ácido carbônico e a água, e os combina com outros compostos azotados para os assimilar, expelindo os resíduos. Na planta, a decomposição citada se verifica às expensas das forças solares, que vencem as afinidades do carbono e do hidrogênio com o oxigênio, a que estão unidos; mas a recomposição que o animal efetua se verifica às expensas das forças postas em liberdade ao se combinarem aqueles elementos. Os movimentos internos e externos do animal são a reintegração, sob novas formas, da força solar absorvida pela planta. No exemplo do parágrafo anterior vimos que a força solar empregada para levantar a água em vapor desde a superfície do mar é reintegrada na queda da chuva, na corrente dos rios que a devolvem à sua origem e no transporte da matéria sólida carreada pelas águas; uma coisa inteiramente análoga acontece no reino orgânico: as forças solares que na planta produziram entre certos elementos um equilíbrio instável, são restituídas nas funções do animal, que voltam tais elementos ao equilíbrio estável. Fica claro que, além da correlação qualitativa que expusemos entre as forças dessas duas grandes ordens de atividades orgânicas, assim como entre as de cada uma e as forças inorgânicas, existe também uma relação quantitativa comprovável apenas de maneira rudimentar. Nas regiões onde luz e calor são mais intensos, como nas regiões tórridas, a vegetação e a vida animal são abundantes, e à medida que avançamos para os polos pelas regiões temperadas e frias, a vida animal e a vida vegetal decrescem em paralelo. Em tese geral, os animais de todas as classes são maiores nos locais onde a vegetação é abundante do que naquelas em que é rara, existindo uma correlação bastante aparente entre a quantidade de força que cada animal gasta e a quantidade de força que o alimento que consome restitui, oxidando-se. Alguns fenômenos de desenvolvimento orgânico mostram mais diretamente o último princípio enunciado tanto nos animais como nos vegetais. Ampliando uma ideia emitida pelo senhor Grove na primeira edição de seu On the Correlation of Physical Forces de que existe provavelmente uma correlação entre as chamadas forças vitais e as forças físicas em geral, o senhor Carpenter (William Benjamin Carpenter (1813-1885), médico, fisiologista e zoologista inglês) mostrou que essa conexão é manifesta claramente na incubação. A transformação dos conteúdos, ainda não organizados, de um ovo em um frango, é simplesmente uma questão de calor; faltando este, a operação não começa; com ele, em grau suficiente, a incubação começa e prossegue, detendo-se se a temperatura abaixa; e não se completando se as mudanças que constituem o desenvolvimento ou formação do frango se não se mantém a temperatura aproximadamente uniforme por um tempo e graduação fixos, para cada espécie. De maneira análoga acontece nas metamorfoses dos insetos, pois a experiência mostra que a evolução da ninfa no casulo não se verifica, ou pode ser acelerada ou retardada segundo a temperatura ambiente. Por último, a germinação das plantas apresenta relações de causa e efeito tão semelhantes às que acabamos de indicar que nos parece inútil buscar mais detalhes. Assim, os diversos fenômenos que se realizam no reino orgânico, seja em sua totalidade, seja em suas duas grandes divisões, nos seus indivíduos, enfim, concordam, até onde podemos comprovar, com o princípio geral. Quando podemos, como na transformação do ovo em frango ou das ninfas em inseto, isolar o fenômeno de tudo aquilo que o complica, vemos com clareza que a força manifestada na organização implica no gasto de uma força já existente. Quando não se trata, como na crisálida ou no ovo, de uma quantidade fixa de matéria que toma nova forma, mas de incorporação de matéria exterior, como na germinação e na nutrição da planta e do animal, também se efetua o fenômeno às expensas de forças preexistentes. E quando por último, além das forças expendidas nos fenômenos orgânicos, ainda resta força, que se gasta em movimento, como acontece com a maioria dos animais, também esta tem sua origem nas forças exteriores preexistentes. § 71. Mesmo depois de tudo que foi dito na primeira parte desta obra, poucas pessoas lerão sem alarmar-se que também as forças psíquicas entram na mesma generalização, e sem dúvida, é inegável; os fatos que nos autorizam, ou melhor, que nos obrigam a formular essa proposição, são numerosos e evidentes. Apresentemos os principais: todas as impressões que nossos sentidos recebem estão em íntima correlação com forças físicas exteriores. Assim, as que chamamos pressão, movimento, som, luz, calor, são efeitos produzidos em nós por forças que poderiam, empregadas de outra maneira, fazer em pedaços ou em pó massas de matéria, produziriam vibrações em objetos vizinhos, operariam combinações químicas ou determinariam mudança de estado em corpos físicos. Se, pois, olhamos as mudanças de posição relativa, de constituição molecular ou de estado físico assim produzidos como manifestações transformadas das forças que os originam, devemos também ver as sensações que essas forças produzem em nós como formas novas dessas mesmas forças. E não se duvidará de que a correlação das forças físicas com nossas sensações é da mesma natureza daquelas entre si, observando que uma e outra são, não só qualitativas como também quantitativas. Assim, massas de matéria que diferem muito de peso segundo a balança ou o dinamômetro, diferem também consideravelmente pelas sensações de pressão que nos produzem. Quando paramos corpos em movimento, os esforços que exercemos são proporcionais aos movimentos dos ditos corpos, tais como os conhecemos por outros processos de medida. Em igualdade de condições, acontece que as impressões que nos produzem cordas em vibração, campainhas ou instrumentos de sopro, variam de intensidade com a força que as produz. Os corpos que oferecem temperaturas diferentes, segundo os termômetros, nos produzem também diferentes e correlativas sensações de calor. O mesmo acontece com respeito a nossas sensações de luz e as intensidades destas, medidas por fotômetros. Além da correlação e equivalência entre as forças físicas exteriores e as forças psíquicas geradas em nós por aquelas, sob a forma de sensações, existe também uma correlação e equivalência entre as forças psíquicas e as forças físicas que se manifestam sob a forma de ações fisiológicas. Assim, as sensações que chamamos luz, calor, som, cheiro, paladar, pressão, não desaparecem sem deixar resultados imediatos; são geralmente seguidas de outras manifestações de força; por exemplo: excitação dos órgãos de secreção, contrações musculares involuntárias ou voluntárias ou ambas, tendo sido demonstrado por recentes investigações fisiológicas que todas as sensações não apenas avivam os batimentos cardíacos proporcionalmente à sua intensidade, como também as de contrações de todas as fibras musculares do aparelho vascular, e às vezes dos músculos respiratórios. De fato, a respiração se acelera, como se pode ver e ouvir, pelas sensações agradáveis ou penosas que atingem certa intensidade. Até se comprovou recentemente que o movimento respiratório se faz mais frequente quando se passa da obscuridade à luz, o que provavelmente resulta de um incremento de estimulação nervosa direta ou indiretamente provocada. Quando é grande a quantidade de sensação, ela gera movimentos ou contrações musculares. Assim, uma sensação insólita dos nervos do tato, como as cócegas, se faz seguir de movimentos irresistíveis dos membros; dores intensas causam esforços violentos; o estremecimento que imediatamente sucede a um ruído intenso, o gesto produzido por algum sabor desagradável, a rápida sacudida com que retiramos o pé ou a mão quando tocamos água muito quente, são outros tantos exemplos da transformação de sensações em movimentos, sendo nesses casos, como em todos, proporcional a quantidade de ação fisiológica à quantidade de sensação. Mesmo nos casos em que a força de vontade suprime os gritos e lamentos que denotam uma grande dor (supressão que também é resultado de uma contração muscular) o apertar os punhos, o franzir sobrancelhas, o ranger de dentes, atestam que as ações corporais não são menores se não são tão visíveis. Se em lugar das sensações consideramos as emoções, a correlação e a equivalência são também patentes, de modo que não apenas as forças físicas, que nos provocam sensações podem voltar ao seu estado primitivo, sob a forma de movimentos musculares, como o mesmo acontece com certos fenômenos psíquicos que não são diretamente produzidos por forças físicas. As emoções pouco intensas, como as sensações análogas, não produzem nada além de um aumento de ação no sistema circulatório e talvez em algumas glândulas. Mas se as emoções são mais intensas, os músculos do rosto e às vezes de todo o corpo se movem. Assim, um homem em um acesso de raiva franze as sobrancelhas, dilata as narinas, golpeia o chão com os pés; o aflito por uma dor intensa contrai as sobrancelhas, retorce os braços; a alegria se expressa através de gargalhadas e saltos; o terror e o desespero por esforços violentos. Deixando de lado certas exceções aparentes, e só aparentes, existe em toda emoção uma relação manifesta entre sua intensidade e a da ação muscular que provoca, desde a marcha reta e alegre do regozijo até os saltos de uma alegria extrema, e desde a agitação da impaciência até os movimentos semiconvulsivos que quase sempre acompanham uma grande aflição da alma. A essas diversas ordens de provas temos que agregar uma outra, a seguinte: entre nossas sensações e os movimentos voluntários que correspondem a suas transformações há a tensão muscular, que está em correlação com ambos os termos, visivelmente quantitativa, uma vez que o sentido do esforço varia, mantidas as demais condições, na razão direta da quantidade de movimento gerado. Mas como incluir na lei de correlação a gênese desses pensamentos e sentimentos que em vez de seguir as impressões externas nascem espontaneamente? Entre a indignação causada por um insulto e os gritos e atos de violência que a seguem, podemos sem dúvida atestar conexão; mas de onde provém a multidão de ideias e de sentimentos que nascem por esse motivo? É indubitável que não são o equivalente da sensação produzida no ouvido pelas palavras do insulto, pois as mesmas, dispostas de outro modo, não produziriam o mesmo efeito. Pode-se comparar a relação que nesse caso têm as palavras com a revolução moral que produzem, com a relação que tem o golpe do gatilho sobre o fulminante de uma arma de fogo com a explosão subsequente; em ambos os casos a causa determinante não produz as forças que se manifestam, mas apenas dá-lhes liberdade. De onde provém, então, essa enorme atividade nervosa que às vezes deflagra um murmúrio ou uma olhadela? Eis a resposta: os correlativos imediatos desses fenômenos psíquicos e de muitos outros não têm raiz nas forças externas, mas nas internas. As forças vitais, cuja correlação com as físicas já examinamos, são as fontes de onde nascem diretamente esses sentimentos e pensamentos, e disso existem, entre outras, as seguintes comprovações: é um fato que a atividade mental depende da existência de um aparato nervoso e que há uma relação (dissimulada atrás do número e da complicação das condições, mas que pode ser seguida, mesmo que vagamente) entre as dimensões desse aparato e a quantidade de ação mental medida por seus resultados. Além disso, tal aparato tem uma constituição química da qual depende sua atividade, e sobretudo se encontra nele um elemento, o fósforo, cuja quantidade está em Íntima conexão com a quantidade de funções desempenhadas; está em proporção mínima na infância, na velhice e na idiotia, e em seu máximo na idade adulta. Ainda mais: a evolução do pensamento e do sentimento variam, mantidas as demais condições, com a irrigação cerebral. Uma parada cardíaca produz imediata perda de conhecimento, e um excesso de circulação cerebral, se não seguida de excesso de pressão, produz excitação e até delírios. E não apenas a quantidade, mas também a composição do sangue que atravessa o sistema nervoso influi nas manifestações mentais, devendo estar suficientemente oxigenado para que produza efeitos normais no cérebro, tanto assim que na asfixia há a supressão de ideias e de sentidos e a aspiração de protoxido de nitrogênio produz uma atividade nervosa excessiva e às vezes descoordenada. A par dessa conexão entre desenvolvimento das forças mentais e presença de uma quantidade suficiente de oxigênio no sangue das artérias cerebrais, existe também conexão entre o mencionado desenvolvimento e a presença de alguns outros elementos no sangue, pois os centros nervosos necessitam substâncias especiais para sua nutrição bem como para sua oxidação. Isto se observa na exaltação que produzem certas substâncias introduzi das no sangue, como o álcool ou alcaloides vegetais, no moderado prazer que dão café ou chá e nos delirantes efeitos de imaginação e vivíssimos sentimentos de felicidade produzidos pelo ópio ou haxixe, segundo testemunho dos que os experimentaram. Outra prova mais de que a produção de efeitos mentais depende diretamente de mudanças químicas é que a composição química urinária muda segundo a quantidade de trabalho cerebral; uma atividade excessiva faz-se seguir de uma grande quantidade de fosfatos alcalinos na urina, o que também ocorre depois de toda excitação nervosa anormal. O odor particular que exalam os alienados mentais, indicador da presença na transpiração de produtos anormais, revela a existência de uma relação entre a loucura e uma composição especial dos fluidos orgânicos, seja ela causa ou efeito da loucura; e essa composição acusa sem dúvida a correlação entre as forças físicas e mentais. Faremos constar, por último, que essa correlação é, enquanto podemos acompanhá-la, quantitativa. Sempre que as condições da ação nervosa não variam, existe uma relação constante entre os antecedentes e os consequentes; assim, dentro de certos limites, os estimulantes nervosos e os anestésicos produzem nos pensamentos e nos sentimentos efeitos proporcionais às quantidades aplicadas. Inversamente, quando os pensamentos e sentimentos são o primeiro termo da relação, o grau de reação sobre as forças corporais é proporcional à força daqueles; nos casos extremos, a reação termina numa prostração física completa. Vemos, assim, que diversas classes de fatos se aliam para provar que a lei da metamorfose que reina em todos os lugares entre as forças físicas, também reina entre estas e as mentais. As formas do incognoscível, que chamamos Movimento, Calor, Luz, Afinidade Química etc., são transformáveis umas nas outras e nas formas que chamamos emoção, sensação, pensamento, e estas por sua vez, graças a uma transformação inversa, mudam-se naquelas. Nenhuma ideia, nenhum sentimento se manifesta senão como resultado de uma força física que se dissipa para produzir esse resultado. Tal é o princípio que não tardará em ser uma verdade científica reconhecida, podendo apenas ser explicada sua não admissão pela de alguma teoria preconcebida. Como se verificam essas metamorfoses? Como uma força que existe sob a forma de movimento, calor, luz etc., pode chegar a ser um fenômeno psíquico? Como podem as vibrações aéreas produzir a sensação chamada som? Como as forças liberadas pelas mudanças químicas operadas no cérebro produzem uma emoção? Esses são mistérios insondáveis, mas não mais que as transformações das forças físicas umas nas outras; inacessíveis, sim, à inteligência, mas não mais que a natureza do espírito e a matéria. São simplesmente questões insolúveis, como todas as questões primárias; tudo que podemos saber sobre elas é que são leis do mundo fenomenal. § 72. Se a lei geral da transformação e equivalência prevalece nas forças físicas e psíquicas, deve também se estender às forças sociais. De fato, tudo o que acontece nas sociedades humanas é efeito dos agentes inorgânicos ou orgânicos, ou dessas duas ordens combinadas; é resultado ou das forças físicas ambientes submetidas ou não à direção humana ou das próprias forças humanas. Não pode haver nenhuma mudança na organização da sociedade, em seus modos de atividade ou nos efeitos que essa atividade produz na superfície terrestre que não provenha, direta ou indiretamente, de forças físicas. Vejamos primeiro a correlação entre os fenômenos sociais e os vitais. Em princípio, as forças sociais e vitais variam, mantidas invariáveis as demais circunstâncias, com a população. Existem, sem dúvida, raças que diferindo muito em aptidão para combinar seus esforços, nos mostram que as forças sociais não são, necessariamente proporcionais ao número de indivíduos que as constituem; mas vemos que em certas condições, essa proporcionalidade se realiza. Uma sociedade pouco numerosa, qualquer que seja a superioridade de caráter de seus indivíduos, não pode liberar a mesma soma de ação social que uma grande; a produção e distribuição de mercadorias devem ser feitas em escala relativamente pequena; não pode haver uma imprensa numerosa, nem uma literatura fecunda, nem uma grande agitação política, nem uma grande porção de obras de arte e de descobertas científicas. Mas a melhor demonstração da correlação de forças sociais com as físicas, por meio das vitais, é a diferença das quantidades de atividade liberadas pela mesma sociedade, com a disposição por seus membros de distintas quantidades de força, tiradas do mundo exterior. Todos os anos vemos comprovadas essas diferenças, segundo as boas ou más colheitas. Se são más, as fábricas fecham ou reduzem seu trabalho consideravelmente; diminui o movimento de viajantes e mercadorias nas estradas e vias férreas; o mesmo acontece com as transações comerciais, as edificações etc.; e se a escassez de grãos é de molde a produzir fome, diminui a população e, portanto, todas as atividades ou forças sociais. Ao contrário, uma colheita abundante, na ausência de outras condições desfavoráveis, aviva as forças produtoras e distribuidoras e cria outras novas; o excesso de energia social se manifesta em novas empresas, o capital em via de colocação se emprega, talvez em inventos até então abandonados ou considerados inúteis; abrem-se novas vias de comunicação; produzem-se mais objetos de luxo e obras de arte; efetuam-se mais matrimônios; a população cresce, naturalmente, em maior proporção; enfim, sob todos os pontos de vista, se faz mais extenso, mais complexo e mais ativo o organismo social. Quando, como ocorre nas nações civilizadas, os alimentos não são oriundos na sua totalidade da produção nacional, sendo em parte importados, a alimentação se efetua então às expensas das forças físicas e vitais empregadas em outras nações para a colheita. Nossos fiandeiros e tecelões de algodão oferecem um exemplo bem notável de uma fração que vive às expensas de mercadorias importadas. Mas mesmo quando as forças sociais de Lancashire são devidas em sua maioria a materiais não produzidos na Inglaterra, não é menos certo que essas matérias representam forças físicas acumuladas em outra nação sob formas convenientes e logo importadas. Se perguntarmos de onde procedem essas forças físicas que por intermédio das vitais dão origem às forças sociais, podemos assegurar, como fizemos antes, que vêm do Sol. De fato, a vida social depende dos produtos animais e vegetais, e esses produtos por sua vez dependem do calor e da luz solar, resultando que as mudanças efetuadas nas sociedades são efeitos de forças que têm a mesma origem que as produtoras de mudanças físicas e vitais. Não só as forças postas em jogo por uma cavalaria atrelada e por seu condutor têm a mesma origem primitiva que a catarata que se despenha e o furacão que brame, como ainda a essa mesma origem podemos atribuir às forças imediatas que produzem as mais delicadas e complexas manifestações do organismo social. É de certa forma surpreendente essa proposição, que talvez produza em algumas pessoas o efeito de uma brincadeira, mas é uma dedução inevitável e irrecusável. O mesmo se pode dizer das forças físicas que diretamente se transformam em forças sociais. As correntes de ar e água, que antes do uso do vapor eram juntamente com a força muscular os únicos agentes empregados na indústria, são, como vimos, originados pelo calor solar. George Stephenson foi um dos primeiros a reconhecer que a força que empurrava sua locomotiva procedia do Sol. De fato, subindo degrau por degrau, desde o movimento do embolo à evaporação da água; da evaporação ao calor que a produz; da oxidação do carvão, origem desse calor, à assimilação do carbono pelas plantas fósseis que compõem a hulha, chegamos finalmente à radiação solar, que produziu essa assimilação, decompondo o ácido carbônico de que tal carbono era parte. São, pois, forças solares dissipadas há milhares de anos na vegetação que então cobria a Terra e enterradas depois em suas profundezas, as forças que sob a forma de pressão do vapor de água põem em movimento as inumeráveis máquinas da indústria moderna. Por último, quando a economia do trabalho manual que produzem as máquinas provoca um excedente de atividade humana material, favorece naturalmente o desenvolvimento de outras formas dessa atividade. É, pois, evidente, que as forças sociais que estão em correlação direta com as forças físicas antigamente procedentes do Sol são um pouco menos importantes do que as correlativas às forças vitais recentemente nascidas da mesma origem. § 73. A doutrina contida neste capítulo encontrará mais de um incréu, se for considerada uma indução. Muitos dos que já admitem a transformação e equivalência das forças físicas entre si dirão talvez que não existem ainda investigações suficientes para que esteja estabelecido o direito de afirmar a transformação e a equivalência daquelas forças em outras vitais, mentais e sociais; não verão nos fatos que citamos nada que demonstre decisivamente a tal correlação. Mas cabe responder-lhes que o princípio geral, do qual apresentamos tantos exemplos para tornar compreensíveis todas as suas formas, é um corolário forçoso da persistência da força. Se partimos da proposição de que a força não pode ser criada nem anulada, as conclusões ultimamente desenvolvidas são naturalmente deduzi das, pois toda manifestação de força não pode ser concebida a não ser como efeito de uma força precedente, quer se trate de uma ação inorgânica, de um movimento animal, de um sentimento ou de uma ideia, sob pena de afirmar a espontaneidade desses fenômenos. Não há meio termo: ou se admite que as forças mentais, como as corporais, estão em correlação quantitativa com determinadas forças que se dissipam para produzi-las e com outras que elas produzem ou provocam, ou se admite sua criação ou anulação. Ou se nega a persistência da força ou ter-se-á que admitir que todo efeito físico ou psíquico é produto de forças antecedentes e em proporção exata à quantidade dessas forças, e uma vez que a persistência da força, como dado que é de nosso espírito, não pode ser negada, e o mesmo deve ocorrer com seu corolário, que não se fará mais evidente pela citação de mais exemplos pois a verdade demonstrada dedutivamente não necessita ser confirmada pela indução. Com efeito, cada um dos fatos citados não é senão uma consequência direta da hipótese mais ou menos indireta da persistência da força. A prova mais exata compatível com a experimentação da correlação e equivalência das forças é a que se funda na medida das forças dissipadas e produzidas. Mas como já vimos no capítulo anterior, toda medição supõe uma quantidade de força constante, e essa constância não tem outra razão ou prova senão a persistência da força, de que é um corolário. Como poderá, pois, um raciocínio fundado neste corolário provar um também corolário direto, rezando que quando uma dada quantidade de força cessa de existir sob uma determinada forma, uma igual quantidade deve passar a existir sob outra forma ou formas? claramente a verdade a priori expressa neste último corolário não pode mais firmemente ser estabelecida por nenhuma prova a posteriori deduzida do primeiro. Para que, então, pode ser perguntado, servem as investigações experimentais sobre a correlação de forças, se não se pode ser mais bem demonstrado o que está expresso a priori? Não diremos que são inúteis, por isso; têm seu valor próprio, porque desvendam as consequências particulares não enunciadas na verdade geral; porque nos mostram que quantidade de uma classe de forças equivale a outra, de outra classe; porque determinam as condições de cada transformação, e, finalmente, porque nos levam a investigar sob qual força desapareceu a força deficiente, quando os resultados aparentes não são equivalentes à causa. IX A direção do movimento § 74. A causa absoluta de todos os fenômenos do Universo é tão incompreensível do ponto de vista da unidade ou da dualidade de sua ação como todas as demais causas. Não é possível decidir-se plena e racionalmente entre as duas hipóteses: uma, a de que os fenômenos sejam os efeitos de uma causa única atuando em condições diversas, e outra, que sejam efeito do conflito de duas forças. É possível explicar todas as forças particulares por uma pressão universal, e nesse caso, o que chamaríamos de tensão resultaria de diferenças entre pressões desiguais ou opostas, por uma tensão universal cujas componentes opostas dariam por resultado o que se chama pressão ou, enfim, pela existência simultânea de ambas as forças universais? Estas questões são insolúveis como todas as primárias, uma vez que cada uma dessas hipóteses é inconcebível, ainda que bem sirva para explicar os fatos. Para admitir uma pressão universal é preciso, evidentemente, admitir um pleno absoluto, um espaço ilimitado cheio de alguma coisa, comprimido por algo exterior, o que é absurdo. Objeção análoga deve-se fazer à hipótese de uma tensão universal, e por último, se a hipótese da tensão e pressão simultâneas é inteligível verbalmente, mais inconcebível seria a da existência de unidades de matéria atraindo-se e repelindo-se ao mesmo tempo. Contudo, é forçoso admitir essa hipótese, pois para nosso espírito, o corpo material se distingue do corpo geométrico ou do espaço puro pela oposição que apresenta aquele à nossa força muscular, oposição que sentimos sob a dupla forma de uma coesão que exige nossos esforços para dividi-lo, e uma resistência que se opõe a nossos esforços para comprimi-lo. Sem resistência, só pode existir uma extensão vazia; sem coesão não pode haver resistência. É provável que esses conceitos antagônicos tenham em princípio nascido do antagonismo de nossos músculos extensores e flexores. Seja o que for, nos vemos obrigados a conceber todos os corpos como compostos de partes que mutuamente se atraem e se repelem, pois assim nos mostra a experiência. Uma abstração maior nos dá o conceito das forças atrativas e repulsivas que dominam o espaço, pois ainda que não possamos separar a força da extensão ocupada nem esta da força, porque não temos consciência imediata de uma nem de outra, contudo temos provas abundantes de que a força se exerce através de espaços vazios segundo nossos sentidos. Para nos representar mentalmente essa ação, tivemos que supor uma espécie de matéria - o éter - preenchendo aparentemente esses espaços vazios. Mas a constituição suposta para esse meio etéreo, como a que atribuímos à matéria sólida, não é mais que um resumo das impressões que recebemos dos corpos tangíveis. A resistência à compressão ou à distensão que apresentam os corpos se exerce em todas as direções, a partir de cada unidade material que supomos compô-los. Sejam, pois, essas unidades átomos de matéria ponderável ou de éter, as propriedades que supomos lhes pertencer não são outras senão essas propriedades perceptíveis, idealizadas. Centros de força em atração ou repulsão mútua em todas as direções não são senão partes imperceptíveis de matéria, dotadas das propriedades comuns e inseparáveis das partes perceptíveis. Essas propriedades são o volume, a forma, a qualidade etc., das quais nos servimos ainda para interpretar as manifestações de força que o tato não pode sentir, sequer como termos ideais ou abstratos de nossas sensações táteis. A verdade é que não temos outros termos de que nos servirmos. Partindo do precedente, é inútil dizer que essas forças de atração e repulsão universalmente coexistentes, não devem ser consideradas realidades, mas apenas símbolos, por meio das quais representamos a realidade; são as formas sob as quais se nos revela a ação do Incognoscível, as maneiras do Incondicionado, quando estão presentes as condições de nosso espírito. Mas como sabemos que as ideias assim produzidas em nós não têm uma verdade absoluta, e só podemos nelas confiar como verdades relativas, podemos obter uma série de deduções tendo uma verdade relativa de igual valor. § 75. Da coexistência universal das forças de atração e repulsão derivam certas leis de direção de todos os movimentos. Quando existem apenas forças atrativas, ou quando são as únicas apreciáveis, o movimento se verifica no sentido de sua resultante, que pode ser chamada linha de máxima atração. Quando só existem ou podem ser apreciadas forças de repulsão, o movimento se verifica no sentido que chamamos linha de mínima resistência. Quando ambas ordens de força são apreciáveis, o movimento se realiza na direção da resultante de todas as forças, de atração e repulsão, o único efetivo, por estarem atuando umas e outras forças. Acontece, muitas vezes uma das forças ser de tal intensidade, que se torna desprezível o efeito da outra. Podemos assim dizer que um corpo cai para a terra pela linha de máxima atração, embora a resistência do ar desvie um pouco os corpos leves (penas etc.). Analogamente, ainda que a direção do vapor de uma caldeira que se rompe difira algo da que seria se a gravidade não existisse, como essa força pode ser considerada desprezível, podemos afirmar que o vapor se move segundo a linha de mínima resistência. Podemos, pois, dizer que o movimento sempre segue a linha de mínima resistência, ou a linha de máxima atração, ou ainda a da resultante de ambas as forças, caso único verdadeiro, embora na prática outros sejam aceitáveis. O movimento efetuado em uma direção é por sua vez causa de outro movimento nessa mesma direção, uma vez que este não é senão a manifestação de um excesso de força nessa direção. O mesmo ocorre no transporte da matéria através do espaço, no transporte da matéria através da matéria e no transporte das vibrações através da matéria. Quando a matéria se move através do espaço, esse princípio se traduz na lei da inércia, fundamento geral de todos os cálculos astronômicos. Quando a matéria se move através da matéria, voltamos a encontrar o mesmo princípio como comprova a experiência diária da ruptura ou penetração de sólidos por outros, os canais formados pelos fluidos através dos sólidos, em cujas direções se verificam, mantidas iguais as outras circunstâncias, todos os movimentos subsequentes da mesma natureza. Por derradeiro, quando alguns movimentos atravessam a matéria sob a forma de impulsão comunicada de parte a parte, o estabelecimento de ondulações em sentido determinado favorece sua continuação no mesmo, como provam, por exemplo, os fenômenos magnéticos. Outra consequência dessas condições primordiais é que a direção do movimento não pode ser, senão rarissimamente, retilínea, pois se o fosse seria mister que as forças atrativas e repulsivas estivessem dispostas simetricamente em volta da direção inicial, e há infinitas probabilidades de que isso não venha a acontecer. Assim, é impossível fazer uma aresta perfeitamente reta em qualquer material que seja; tudo o que se consegue, recorrendo aos métodos mecânicos mais delicados, é reduzir as irregularidades da aresta a tal mínimo que não possam ser percebidas a não ser com a ajuda de aparelhos de ampliação. Esse exemplo basta para demonstrar o afirmado na cláusula anterior. Devemos acrescentar que a curva descrita por um corpo em movimento é forçosamente mais ou menos complexa em razão do número e variedade das forças que sobre ele atuam; um exemplo está no contraste entre o voo de uma flecha e as voltas e saltos que dá um pedaço de madeira arrastado por uma corrente de águas agitadas. Para dar um passo a mais na unificação do conhecimento temos que seguir essas leis gerais através das várias ordens de mudanças que oferece o Universo; temos que comprovar como cada movimento se verifica sempre ou segundo a linha de máxima atração ou segundo a de mínima resistência, ou segundo a resultante de ambas; como um movimento iniciado em certo sentido determina outros movimentos na mesma direção; como, ainda, a influência de forças exteriores faz mudar essa direção, aumentando o grau de desvio sempre que uma nova influência se junta às já existentes. § 76. Se admitimos como característica do primeiro período de condensação das nebulosas que a matéria densa, antes difusa, se precipitou em aglomerados (hipótese que os conhecimentos físicos legitimam e que concorda com algumas observações astronômicas), o movimento que então se operou nas nebulosas pode explicar-se como uma consequência das leis gerais que abordamos. Todas as partes dessa matéria gaseiforme devem ter-se movido para seu centro de gravidade comum. As forças atrativas que de per si fizeram que se verificasse de maneira retilínea esse movimento para seu centro de gravidade encontraram as forças resistentes do meio através do qual se efetua aquela atração; o movimento deve, pois, seguir a resultante dessas forças antagônicas, que, segundo a forma simétrica da aglomeração, deve ser uma linha dirigida, não para o centro de gravidade, mas para um lado, e se demonstra com facilidade que num grupo de aglomerados, cada um dos quais se movendo em separado, a composição de forças deve gerar em definitivo uma rotação de toda a nebulosa em um sentido determinado. Só recordamos essa hipótese para mostrar que a lei se aplica a esse caso. Suponhamos agora a nebulosa transformada, e estudemos os atuais fenômenos de nosso Sistema Solar. Nele se veem, continuamente, exemplos dos princípios gerais antes expostos. Cada planeta, cada satélite, tem um momento que se atuasse isolado o levaria na direção em que se move naquele instante; momento que, segundo isso, trabalha como uma força resistente ao movimento em outra direção. Além disso, tais corpos estão solicitados por forças que, se atuassem isoladas, uma sobre cada astro, os dirigiriam no sentido inverso de sua direção primitiva. A resultante dessas duas forças dá a linha que o astro descreve, resultado da distribuição assimétrica das forças em volta de sua trajetória. Estudando esta trajetória mais detidamente, encontramos novas comprovações. De fato, ela não é rigorosamente uma elipse (que seria se atuassem apenas as forças tangencial e centrípeta), porque as atrações dos astros mais próximos do sistema produzem o que se chama perturbações, ou seja, pequenos desvios em cada um dos elementos da elipse modelo, que produziriam as duas forças principais. Essas perturbações nos mostram como a trajetória do movimento se torna mais complicada à medida em que as forças se multiplicam. Se examinamos os movimentos das partes desses astros, os perceberemos ainda mais complexos. Cada partícula terrestre descreve uma trajetória resultado de uma multidão de forças, como: a resistência que a impede de se aproximar do centro, as forças tangencial e centrípeta do movimento de rotação, as de translação terrestre etc.; e se tratamos de água, devemos acrescentar as atrações solar e lunar, causas das marés, ou as forças que fazem correr os rios, córregos e etc. § 77. Consideremos as mudanças terrestres, tanto as presentes como as passadas, induzidas pelos geólogos. Comecemos pelas mudanças que continuamente se verificam na atmosfera terrestre; passaremos depois às mais lentas, da superfície, e depois às que se verificam, ainda com mais lentidão, no seu interior. As massas de ar inferiores, ou em contato com a terra, absorvendo parte do calor recebido do Sol por aquela, se dilatam, e em consequência se elevam, segundo a linha de menor pressão ou resistência, sendo substituídas pelas massas de ar adjacentes, que encontram a resistência lateral reduzida. Em consequência da ascensão das massas de ar aquecidas pelas vastas planuras da zona tórrida, se produz na parte superior da atmosfera uma protuberância que excede o limite do equilíbrio, e o ar que a forma escapa, portanto, para os polos lateralmente, pois nesse sentido diminui a resistência, enquanto a atração terrestre permanece aproximadamente constante. Em cada corrente da mesma origem, como em cada contracorrente que ocupa o vazio deixado pela primeira, a direção é sempre a resultante da força de atração terrestre e da resistência oposta pelas massas do ar ambiente, modificada apenas pelo choque com outras correntes e com as irregularidades da superfície terrestre, e pela rotação terrestre, de que a atmosfera participa. Os movimentos da água em seus dois estados, líquido e gasoso, nos fornecem outros exemplos. Pode-se demonstrar, segundo a teoria mecânica do calor, que a evaporação é a fuga das moléculas do líquido no sentido da mínima resistência, e que à medida que esta diminui, a evaporação aumenta. Reciprocamente, a precipitação de moléculas chamada condensação, que se verifica quando parte do vapor atmosférico se esfria o suficiente, pode ser interpretada como uma redução da tensão mútua das moléculas que se condensam, enquanto a pressão das moléculas do ambiente permanece a mesma. O movimento se faz, pois, no sentido da menor resistência. Na queda das gotas de chuva, que resultam dessa condensação, vemos um exemplo, dos mais simples, do efeito combinado das forças antagônicas. A atração terrestre e a resistência das correntes atmosféricas, que variam a cada instante em direção e intensidade, resultam em trajetórias em relação ao horizonte segundo todos os graus de inclinação e que sofrem perpétuas variações. Essas mesmas gotas de chuva fornecem exemplo ainda mais evidente da lei, depois que atingem a terra; correndo pela sua superfície em córregos e rios, cujo curso segue sempre uma linha tão reta quanto o permitem os obstáculos que se antepõem à água e sobre os quais ela corre, sendo afinal a direção seguida a resultante das linhas de máxima atração terrestre e de mínima resistência dos obstáculos. As cachoeiras, longe de representar uma exceção à lei, como à primeira vista pode parecer, são outra confirmação da mesma. De fato, mesmo quando, neste caso, estão apartados todos os obstáculos sólidos que poder-se-iam opor à queda vertical, fica, contudo um, o momento horizontal que, combinado com a gravidade cria a parábola segundo a qual a queda se verifica. Não esqueçamos a complicação produzida na trajetória dos fluidos da terra a pela multidão e pela variedade das forças que entram em jogo. As correntes atmosféricas, e mais evidentemente o curso das águas, incluindo as do oceano, obedecem a linhas curvas, representáveis por equações de variáveis com o tempo. As mudanças da crosta sólida terrestre são outro grupo de exemplos sujeitos à lei. O deslocamento de terras e seu depósito para formar novas camadas no fundo dos lagos e mares se verificam evidentemente da mesma maneira que o movimento das águas que as carrearam. Além disso, mesmo que não existam provas indutivas de que as forças ígneas atuem segundo as linhas de mínima resistência, o pouco que delas e de seus efeitos sabemos confirma a crença de que obedecem também à lei. Os terremotos se repetem próximo às mesmas regiões e há grandes áreas que experimentam, durante longos períodos, elevações e depressões lentas em suas camadas. Isto sugere que as partes da crosta terrestre, uma vez rompidas ou dobradas, estão mais propensas a ceder às pressões interiores ou a novas contrações. A distribuição dos vulcões em certas direções e a repetição das erupções pelas mesmas aberturas têm o mesmo significado. § 78. Foi exposto por Sir James Hinton, em The Medico-Chirurgical Review de outubro de 1858, que o crescimento dos seres organizados se dá sempre no sentido da mínima resistência. Depois de ter descrito detalhadamente algumas das primeiras observações que conduziram a essa generalização, ele assim a expõe: "A forma orgânica é resultado do movimento"; "O movimento segue a direção da mínima resistência"; "Por consequência, a forma orgânica é resultado do movimento na direção da mínima resistência". Depois de ter explicado e defendido sua proposição, Hinton a usa para explicar diversos fenômenos do desenvolvimento orgânico. Assim, falando dos vegetais, diz: "A formação da raiz é um belo exemplo da lei da menor resistência; de fato, a raiz cresce, introduzindo-se, célula após célula, nos interstícios do solo, e cresce por adições tão tênues, que remove ou contorna todos os obstáculos que encontra e se dirige para onde mais fácil e abundante é a absorção dos nutrientes. Quando olhamos as raízes de uma árvore vigorosa, parece-nos que foram plantadas na terra por uma força gigantesca. Mas isso não ocorreu; elas foram penetrando lenta e suavemente, célula após célula, à medida que a umidade baixava, e a terra, menos dura, lhes cedia passo. Sem dúvida, essas raízes, uma vez formadas, se estendem com uma força enorme; mas sua natureza esponjosa nos impede de acreditar que penetrem na terra à força viva. É até provável que certas radículas se alojem nas fendas formadas no terreno pelas partes duras e volumosas. "Em quase todo reino orgânico se desenha mais ou menos aparentemente a forma espiral. Pois bem: o movimento que sofre alguma resistência segue sempre essa direção como se vê num movimento de um corpo que sobe ou afunda na água. Uma bolha que sobe rapidamente na água descreve uma espiral muito semelhante à forma do saca-rolhas, e um corpo de peso específico moderado jogado na água, mergulhará com trajetória cuja tendência à espiral pode ser distintamente observada. A forma espiral que domina nos seres orgânicos parece ser, pois, uma presunção a mais em apoio da lei que buscamos provar. A forma espiral dos ramos de muitas árvores é muito aparente, e basta recordar que as folhas se colocam quase sempre em espiral em torno dos galhos. O coração começa por uma espira e em sua forma perfeita se nota uma espiral bem traçada através do ventrículo esquerdo, do direito, da aurícula direita, da esquerda. O que é a espiral em que aparece o coração primeiramente senão o resultado necessário do alargamento, forçosamente limitado da massa celular que então se compõe? Todos conhecem o encaracolado das folhas da samambaia comum, as quais parecem enroladas em si mesmas, não sendo, contudo, tal forma outra coisa senão o resultado do crescimento, também sujeito a limitações. O enrolamento ou imbricação das pétalas de muitas flores é um fenômeno análogo; a princípio vêm-se umas ao lado de outras, mas logo, crescido o botão, se enrolam umas sobre as outras. Se se abre, numa época precoce da floração, o botão de uma flor, os estames parecem moldados na cavidade compreendida entre os pistilos e a corola, cavidade que as anteras preenchem totalmente, formando-se depois os filamentos. Observa-se também que em alguns casos em que nessas flores as pétalas estão enroladas ou imbricadas, o pistilo se apresenta modelado como se crescesse entre as pétalas. Em outras flores cujas pétalas se colocam no botão em forma de cúpula (como o espinheiro) o pistilo está achatado em seu vértice e ocupa no botão um espaço exatamente limitado pelos estames, inferiormente, e as pétalas, lateral e superiormente. Contudo não se pode assegurar que tal forma exista em todos os casos." Sem endossar todos os exemplos expostos por Hinton, uma vez que a muitos cabe apontar exceções, podemos aceitar sua conclusão como verdadeira na sua maior parte. Contudo, é digno de ser notado no crescimento dos organismos, como em todos os demais casos, que a linha do movimento é rigorosamente a resultante das forças de atração e de resistência, e que as forças atrativas entram em uma escala tão considerável que a fórmula não é completa se não são levadas em conta. Assim, a direção de um galho não é o que teria sido sem a ação de atração da terra; cada flor, cada folha é um pouco mudada, no curso de seu desenvolvimento, pelo peso de suas partículas. Nos animais são menos apreciáveis os efeitos da gravidade; esta, contudo, exerce marcadamente sua ação, desviando de sua direção alguns órgãos flexíveis, o que nos permite afirmar que através de todo o organismo as formas são modificadas pela força da gravidade. Mas não temos que considerar apenas os movimentos orgânicos que resultam no crescimento como também os que estão presentes nas várias funções, os quais obedecem às mesmas leis gerais. Os vasos em que correm o sangue, a linfa, a bílis etc., são condutos em que a resistência é mínima; o fato é tão evidente que quase dispensa comentá-lo: mas há outro não tão evidente, que é a influência da atração terrestre que sofrem as correntes dos líquidos nos vasos que os contêm. São três os exemplos dessa influência: as veias varicosas, o alívio nas partes inflamadas quando se as sustêm; e a congestão da cabeça, imediatamente visível no rosto, se nos colocamos de cabeça para baixo. A infiltração ou edema das pernas aumenta de dia e diminui à noite, enquanto que, ao contrário, o inchaço das pálpebras, sintoma comum da debilidade, aumenta quando no leito e diminui se se levanta. Estes dois outros exemplos mostram que a exalação dos líquidos pela parede capilar varia quando uma mudança de posição altera o efeito da gravidade sobre as diferentes partes do corpo. É de bom alvitre destacar, ainda que de passagem, o alcance do princípio em questão no desenvolvimento das espécies. Do ponto de vista dinâmico, a seleção natural implica em mudanças no sentido das linhas de menor resistência. A multiplicação de uma espécie de planta ou animal nas localidades que lhe são favoráveis é um crescimento em um ponto em que as forças antagônicas são menores que em outra parte. A conservação das variedades que prevalecem melhor que suas companheiras na luta com as condições ambientes é a continuação do movimento vital nas direções em que os obstáculos são mais facilmente evitáveis ou superáveis. § 79. Já não é com a mesma facilidade que provamos que a lei geral do movimento rege também os fenômenos da mente. Sem dúvida, na maior parte desses fenômenos - os de sentimento e inteligência - não existe movimento apreciável, e mesmo nos de sensação e vontade que nos mostram em uma parte do corpo um objeto por uma força aplicada a outra parte, o movimento intermediário mais se infere do que se vê. As dificuldades são tais que apenas podemos indicar brevemente as provas que poder-se-iam dar se o espaço permitisse. Suponhamos antes de tudo em equilíbrio as diversas forças que reinam num organismo: se em uma parte desse organismo se junta ou se desenvolve uma nova força, ali, no sentido dessa força, começará um movimento, uma vez que nesse sentido será máxima a pressão e mínima a resistência; se ao mesmo tempo se produz em outra parte do ser orgânico um gasto ou diminuição de força, o movimento que se efetuará entre esses dois pontos será sem dúvida concorde com a lei já conhecida. Pois bem: uma sensação implica no aumento ou desenvolvimento de uma força no ponto pressionado do organismo e um movimento supõe um gasto, uma perda de força no órgão movido total ou parcialmente. Resulta então que se, como constantemente é provado, o movimento se propaga desde as partes do organismo em que o mundo exterior agrega forças, sob a forma de impressões nervosas, às partes que reagem ao mundo exterior por contrações musculares, nada faz senão obedecer à lei que tantas vezes enunciamos. Desta conclusão geral podemos passar a outra mais especial, ou seja: quando há na vida animal algo que implica em que uma sensação em determinada parte seja comumente seguida de uma contração em outra parte, se estabelece entre essas duas partes um movimento repetido com frequência, qual deve ser o resultado quanto à linha em cuja direção se verificam esses movimentos? O restabelecimento do equilíbrio entre os pontos em que as forças aumentaram ou diminuíram deve ser feito por alguma via, se esta via é afetada pela descarga; se a ação obstrutora dos tecidos atravessados produz uma reação sobre eles às expensas de seu poder obstrutor, um movimento entre os pontos encontrará menor resistência nessa mesma via do que a encontrada pelo primeiro, e por consequência a seguirá com muito maior facilidade. Do mesmo modo, cada repetição diminuirá para o futuro a resistência oposta nessa via, e, por conseguinte formar-se-á entre os dois pontos uma linha permanente de comunicação. Sempre, pois, que entre uma impressão particular e um movimento que a segue se estabelece a conexão que se chamou de ação reflexa, esta se explica facilmente pela lei de que o movimento segue a lei da mínima resistência, e de que, permanecendo constantes as condições, uma resistência em uma direção diminui por um movimento anterior nessa direção. Sem mais detalhes, ver-se-á manifestamente que se pode dar uma interpretação semelhante de todas as mudanças nervosas sucessivas ou consecutivas. Se no mundo interior há objetos, atributos, ações que comumente se apresentam juntos, os efeitos que produzirão no organismo se unirão pelas repetições que constituem a experiência, e serão também produzidos juntos. A força de conexão entre estados nervosos, que corresponde a uma conexão exterior entre os fenômenos, será proporcional à frequência com que essa conexão exterior se reproduza na experiência (para o mesmo indivíduo). Assim vão se formar entre os estados nervosos todos os graus de coesão, como há todos os graus de frequência entre os fenômenos coexistentes e sucessivos, que como tais originam tais estados nervosos; deve então resultar uma correspondência geral entre as ideias associadas e as ações associadas que se verificam no exterior. (Esse parágrafo é a repetição algo ampliada de uma ideia exposta na Medical-Chirurgical Review de janeiro de 1859 (pp. 189-190) e contém o embrião da pretensa quinta parte do Principies of Psycology, cuja publicação foi adiada pelas razões expostas no prefácio deste livro.) Do mesmo modo se pode interpretar a relação que une entre si as emoções e as ações. Vejamos primeiramente o que acontece com as emoções involuntárias. Estas, como os sentimentos em geral, produzem mudanças orgânicas, e, sobretudo contrações musculares, resultando, como mostramos no último capítulo, movimentos ora voluntários, ora involuntários, cuja intensidade varia em razão direta da força das emoções. Falta-nos mostrar que a ordem em que são afetados os músculos não é explicável a não ser pela lei geral da direção do movimento. Assim, um estado psíquico agradável ou desagradável, mas de pouca intensidade, pouco mais faz do que aumentar as batidas do sistema circulatório. Por quê? Porque sendo comum a quase todos os gêneros e espécies de sentimentos a relação entre a excitação nervosa e a contração vascular, é repetida mais frequentemente que as outras relações, e por isso apresenta menos resistência à descarga nervosa essa direção do que qualquer outra, bastando uma força muito débil para produzir movimento nesse sistema orgânico. Um sentimento mais forte ou uma paixão mais viva afeta, não só o coração, mas também os músculos da face, especialmente aqueles em volta da boca, seguindo manifesto o cumprimento da lei, pois esses músculos, em contínuo movimento na fala, apresentam menos resistência que outros músculos voluntários à força neuromotriz. Uma emoção ainda mais forte excita de maneira visível os músculos da respiração e da fala. Enfim, uma emoção ou paixão violentíssima produz contrações violentas em quase todos os músculos. Não afirmamos que tal interpretação se aplique a todos os detalhes dos vários fenômenos psicorgânicos (seriam necessários, para sabê-lo, dados impossíveis de se obter); mas podemos assegurar que se ordenássemos os músculos por grau de excitabilidade, estariam em primeiro lugar os mais débeis e mais frequentemente usados, e depois os mais fortes e menos frequentes em suas ações. O riso, descarga espontânea de sentimentos, que afeta primeiro os músculos em volta da boca, e depois os do aparelho vocal e respiratório, e por último os dos membros e os da coluna vertebral (Para mais detalhes, veja-se artigo sobre a "Fisiologia do riso", publicado em Macmillans Magazine de março de 1860, e reproduzido em Essays, de Herbert Spencer, I, 194), basta para provar que quando uma força nascida nos centros nervosos não tem já aberto um caminho especial, produz um movimento pelas vias que lhe oferecem menos resistência, e se é muito intensa para que lhe bastem essas vias, produz movimento em outras, que gradualmente lhe vão apresentando mais e mais resistência. Possivelmente julgar-se-á impossível estender a lei às volições. Contudo, não faltam testemunhos de que com ela se conforma a passagem dos desejos aos atos musculares correlativos. É fácil provar que os antecedentes mentais de um movimento voluntário são tais que a linha segundo a qual ele se dá é, ao menos temporalmente, a linha de mínima resistência. De fato, um pensamento sugerido, como é necessário, por um pensamento anterior e a ele ligado por associações que determinam a transição, é uma representação do movimento desejado e de suas consequências. Mas representar alguns de nossos próprios movimentos é, em parte, recordar as sensações que os acompanham, inclusive a tensão muscular, em parte excitar os nervos motores convenientes e todos os demais que terminam nos órgãos postos em jogo. Isto quer dizer que a volição é uma descarga inicial ao longo de uma linha que, por efeito de fenômenos anteriores, vem a ser a linha de menor resistência. A passagem da volição à ação não é senão o complemento da descarga. Antes de prosseguir, chamamos a atenção para um corolário desse fato, que é o seguinte: a série particular de movimentos musculares pelos quais se alcança um objeto de desejo se compõe de movimentos que implicam na menor soma possível de resistências a vencer. Como cada sentimento gera um movimento no sentido da mínima resistência, é claro que um grupo de sentimentos que constitua um desejo mais ou menos complexo gerará um movimento sobre uma série de linhas de menor resistência. Ou seja, o fim desejado será obtido pela soma mínima de esforços. Se se objeta que por falta de conhecimento ou de destreza um homem segue, às vezes, o mais difícil entre dois caminhos, e tem, por consequência, que vencer uma soma de forças antagônicas maior que a necessária, responderemos que relativamente ao seu estado mental o caminho que segue é o que lhe parece mais fácil; existe outro, sem dúvida, que o é mais, sob o ponto de vista abstrato, mas seu desconhecimento desse caminho, ou sua incapacidade de tomá-lo é tal, sob o ponto de vista físico, que impede insuperavelmente a descarga de suas forças nessa direção. A experiência adquirida, ou comunicada por terceiros, ainda não criou nele as vias de comunicação nervosa necessárias para que esse caminho, melhor para ele, seja o caminho verdadeiro da menor resistência. § 80. Uma vez que em todos os animais, no homem inclusive, o movimento segue as linhas de mínima resistência, o mesmo sucederá em quaisquer agrupamentos humanos; então, dependendo das mudanças sociais, das ações combinadas de seus membros, o curso dessas mudanças será determinado pelas mesmas leis que regem todas as mudanças que se verificam por composições de forças. Assim, quando se considera a sociedade como um organismo e se observa a direção de seu crescimento, se constata que é aquela em que a resultante das forças opostas é mínima. De fato, os indivíduos ou unidades sociais têm forças disponíveis para manter-se e se reproduzir; essas forças encontram outras, antagônicas, sejam geológicas e climatológicas, ou de animais ferozes, ou ainda outros homens inimigos ou competidores. As superfícies sobre as quais essa sociedade se reparte são aquelas em que a soma das forças antagônicas é mais débil. Para reduzir a questão à sua expressão mais simples, podemos dizer que as unidades sociais têm que consagrar suas forças, combinadas ou isoladas, a preservar-se, elas e suas descendentes, das forças inorgânicas e orgânicas que têm a tendência contínua de sua destruição (seja indiretamente por oxidação ou destruição térmica, seja diretamente por mutilação); que essas forças possam ser, seja neutralizadas por outras, em forma de alimentos, vestimentas, habitações, instrumentos de defesa etc., seja evitadas; enfim, que a população se estende em todas as direções em que encontra os meios de fugir a tais forças antagônicas mais facilmente, ou de empregar menos trabalho para obter os materiais necessários aos meios de resistência, ou as duas vantagens a uma só vez; por essas razões, os vales férteis em que existe abundância de água e de produtos vegetais foram os primeiros a ser habitados, assim como a beira-mar, que oferecia grande abundância de alimentos de fácil coleta. Um fato geral que tem o mesmo significado é que, tanto quanto podemos julgar pelos rastros deixados, as grandes sociedades se desenvolveram em primeiro lugar nas regiões intertropicais, em que os produtos terrestres se oferecem mais facilmente e onde também custa menos trabalho manter o calor animal. Podemos agregar a esses fatos outro que continuamente se nos apresenta: a emigração se dirige de modo constante para os lugares que oferecem menos obstáculos à conservação dos indivíduos, e, por conseguinte ao desenvolvimento das nações. O mesmo sucede na resistência que aos movimentos de uma sociedade opõem as sociedades vizinhas. Cada tribo ou nação que habita uma área cresce em população até que exaure seus meios de subsistência; existe nela uma força contínua de expansão para as áreas vizinhas, que encontra, como é natural, a resistência das tribos ou nações que as ocupam. As incessantes guerras que daí resultam, as conquistas sobre as tribos ou nações mais débeis, a devastação do território pelos vencedores, são movimentos sociais que se efetuam nas direções de mínima resistência. Os povos conquistados, quando escapam ao extermínio ou ao cativeiro, não deixam de oferecer também movimentos da mesma origem. Efetivamente, emigrando para regiões menos férteis, buscando refúgio nos desertos e nas montanhas, dirigindo-se a regiões onde a resistência ao desenvolvimento social é relativamente forte, não fazem mais que obedecer a uma pressão que os repele de suas habitações primeiras e que é maior do que a resistência que lhes opõem os obstáculos físicos da nova área à conservação e desenvolvimento sucessivos. Do mesmo modo se podem interpretar também os movimentos internos de uma sociedade. As localidades naturalmente adequadas para produzir certos gêneros naturais ou artificiais, ou seja, em que esses gêneros se obtêm com trabalho, ou onde o desejo de procurá-los encontra menor resistência, chegam a ser os centros consagrados especialmente à sua produção. Assim, em um país onde solo e clima concorrem para fazer do trigo um produto remunerador, isto é, que restitui a soma das forças de todas as classes empregadas no seu cultivo com uma soma maior, relativamente, de substância nutritiva, o cultivo do trigo chega a ser o trabalho dominante. Ao contrário, nos países em que não se pode obter trigo direta e economicamente, a aveia, o centeio, o milho, o arroz, as batatas são os principais produtos agrícolas. À beira-mar, a alimentação mais fácil é o pescado; assim, seus habitantes são na maioria pescadores. Nos países ricos em carvão e metais: a população na maioria é mineira, porque o trabalho empregado na atividade extrativa mineral representa maior soma de alimentos e vestuário que se fora empregado de outra forma. Este exemplo nos conduz a tratar do comércio, com nova prova da generalidade da lei em questão. De fato, o comércio começa no momento em que se facilita ao homem a satisfação de seus desejos diminuindo os esforços que precisaria efetuar para satisfazê-los. Quando em vez de cada família fazer para si a coleta dos grãos, o tecido e confecção das vestimentas etc., se destinaram uns a lavradores, outros a tecelões, alfaiates, sapateiros etc., foi porque souberam que era muito mais penoso fazer cada um tudo aquilo de que necessitava do que fabricar uma grande quantidade de uma só coisa e ficando com o necessário, trocar o restante. Mesmo nisso, ao decidir cada um a obter tal ou qual produto, foi e ainda o é, obedecendo à mesma lei referida. De fato, além das condições locais que determinam a frações inteiras de uma sociedade dedicar-se aos trabalhos que lhes são mais fáceis, existem também as aptidões e condições individuais que fazem com que cada um escolha uma determinada ocupação; de tal maneira que, escolhendo as formas de atividade impostas pelas circunstâncias presentes e por suas próprias faculdades, as unidades sociais se movem cada uma para os objetivos desejados, segundo as direções que menos obstáculos se lhes antepõem. Os transportes que o comércio ocupa seguem a mesma lei. Assim, enquanto as forças que é necessário vencer para obter os objetos necessários à vida na região em que serão consumidos são menores que as forças análogas para fazê-los vir de outra região, não existe comércio exterior; mas quando as regiões próximas os produzem com uma economia que não é anulada ainda pelos gastos de transporte, quando a distância é tão pequena e o caminho tão fácil que o trabalho do transporte, somado ao da produção dá uma soma menor que o trabalho da produção no país do consumo, se estabelece o transporte. Se observa também que as vias para as comunicações comerciais se abrem no sentido da menor resistência. No princípio, quando as mercadorias eram transportadas no lombo dos animais, escolhiam-se as trilhas que apresentassem a tripla vantagem de ser mais curtas, mais planas e com menos obstáculos; ou seja, as que pudessem ser percorridas com menos dispêndio de força. Depois, ao se ter que galgar encostas, se procurava que não desviassem da horizontal, a não ser o estritamente necessário para vencer os desvios verticais, economizando a tração. O menor número de obstáculos é o que determina a rota, mesmo nos casos que parecem excepcionais, como quando se faz uma volta para evitar a oposição de um proprietário territorial. Todos os aperfeiçoamentos aplicados sucessivamente à construção de vias de comunicação, até as estradas, canais e ferrovias, que reduzem ao mínimo as forças resistentes, gravidade e atrito, fornecem exemplos que confirmam o princípio geral em exame. Se podemos escolher a rota entre dois pontos, geralmente escolhemos a de menor custo, servindo nesse caso o preço como medida de resistência. Quando, levando em conta o tempo, se escolhe o caminho mais caro, é que a perda de tempo implica numa perda de força. Quando a divisão do trabalho foi levada mais longe e os meios de comunicação se fizeram mais fáceis, se implantaram as indústrias e por consequência, há que se explicar o incremento da população dedicada a cada indústria pelo mesmo princípio geral. A influência dos imigrantes em cada centro industrial e a multiplicação das famílias correspondentes são determinadas pelo preço do trabalho, isto é, pela quantidade de mercadorias que uma força dada pode produzir. Dizer que os operários se aglomeram nos lugares em que, por consequência das facilidades de produção pode dar-se por sob a forma de salário uma quantidade proporcionalmente maior de produto, é o mesmo que dizer que se aglomeram nos lugares em que existem menos obstáculos ao sustento de sua pessoa e sua família. Em consequência disto, o rápido crescimento do número de artesãos nesses lugares é um crescimento social nos pontos em que são menores as forças antagônicas. A aplicação da lei é também evidente nas transações diárias; por exemplo, o emprego de capitais nos negócios que dão mais lucro, o comprar mais barato e vender o mais caro possível, a introdução de processos de fabricação mais econômicos, o desenvolvimento de melhores meios de distribuição, e todas essas variações comerciais que os jornais publicam diariamente e os telegramas transmitem a cada hora, são outros tantos movimentos verificados na direção da menor resistência. De fato, se analisamos cada uma dessas mudanças, se em lugar dos interesses do capital consideramos a margem de preço dos produtos em relação ao custo da fabricação; se interpretamos um grande interesse ou um grande excesso dessa classe por um trabalho bem remunerado; se um trabalho bem remunerado quer dizer uma ação muscular dirigi da de modo que tropece com o menor número possível de obstáculos, temos que reconhecer que todos esses fenômenos comerciais nada são senão movimentos complicados que se efetuam segundo as linhas de mínima resistência. Poderão talvez ser feitas duas classes de objeções a esta aplicação sociológica da lei. Uns poderão dizer que a palavra força só tem aqui um sentido metafórico, que ao dizer que os homens são impulsionados por seus desejos em certas direções, estamos empregando linguagem em sentido figurado, não expressando de nenhum modo um fato físico. A isto pode-se responder que as operações mencionadas nos exemplos precedentes são fatos físicos, se corretamente interpretados e em sentido literal. A pressão da fome é uma força física, uma sensação que implica num certo estado de tensão nervosa, e a ação muscular que essa sensação provoca é uma descarga da sensação sob forma de movimento corporal; enfim, se se analisam os fatos mentais que ela compreende, ver-se-á que essa descarga segue as linhas de menor resistência. Por consequência, é necessário entender em sentido literal e não em sentido metafórico os movimentos sociais produzidos por tais ou quais desejos. Pode-se também fazer uma objeção em sentido contrário, dizendo que todos esses exemplos são inúteis, porque desde o momento em que se reconheceu a lei geral da direção do movimento, resulta necessariamente que os movimentos sociais, como todos os demais, devem estar com ela conformes; mas podemos replicar que, afirmando meramente, em abstração, a conformidade dos movimentos sociais à dita lei geral, não se leva convicção à maioria dos entendimentos, para o que é preciso mostrar o como dessa conformidade; pois para que os fenômenos sociais possam unificar-se com os de espécies mais simples, formando um mesmo sistema, é mister que as generalizações da economia política sejam reduzidas a proposições equivalentes, expressas em função de força e movimento. Os movimentos sociais se moldam também às leis derivadas ou secundárias, antes citadas. Em primeiro lugar, é evidente que uma vez começados em determinadas direções, esses movimentos, como todos os demais, tendem a persistir nessas mesmas direções. Uma loucura ou um pânico comercial, uma produção de mercadorias, um costume, uma agitação política, continuam seu curso muito tempo depois de cessada a força inicial produtora, o que acontece até que surjam forças antagônicas que detenham o movimento. Em segundo lugar, os movimentos sociais são tanto mais tortuosos quanto mais complexas as forças produtoras e suas antagônicas. As numerosas e complicadas contrações musculares que efetua um pobre jornaleiro para ganhar um pão provam quão tortuosa é a direção do movimento quando são muito numerosas as forças em ação; o mesmo que se observa na eleição para o parlamento de um homem que será rico até o fim de seus dias. § 81. Perguntaremos agora qual é a prova plena, a razão última do princípio geral exposto neste capítulo, como fizemos no capítulo anterior, com respeito ao princípio nele abordado. Devemos admiti-lo simplesmente como uma generalização empírica ou podemos formulá-lo como corolário de um princípio ainda mais fundamental? O leitor antecipará a resposta. Poderemos considerá-lo dedutível do dado de consciência que serve de fundamento a todas as ciências. Suponhamos várias forças atuando sobre um mesmo corpo, em diversos sentidos. Em virtude do princípio conhecido como princípio da composição de forças, pode-se substituir todo o conjunto de forças por uma apenas, ou ao menos por duas de igual intensidade e sentidos opostos; no primeiro caso haverá movimento no sentido dessa força única, pois se assim não fosse, haveria uma dissipação de força sem resultado ou efeito algum, sem gerar outra equivalente, o que significaria o aniquilamento, uma não persistência de uma força. No segundo caso, estando as duas forças atuando na mesma direção, isto é, sobre a mesma linha reta, mas em sentidos opostos, não há movimento, pois não há linha de máxima tração e nem de mínima resistência; e se atuam em direções paralelas provocam um movimento de giro ou rotação, o único que pode verificar-se sem faltar à lei geral da direção do movimento. Se reduzimos a lei a seus termos mais simples, veremos ainda mais claramente que é um corolário da persistência da força. Suponhamos dois pesos suspensos dos dois lados de uma polia fixa ou dos dois extremos de uma alavanca de braços iguais, ou ainda dois homens puxando nesses pontos. Dizemos que o peso maior baixará ou que o homem mais forte vencerá o mais débil. Mas se nos perguntarem como sabemos que há um peso maior ou um homem mais forte, tudo o que podemos dizer é que um dos pesos ou um dos homens produz um movimento no sentido de sua atração. A única prova desse excesso de força em um sentido é o movimento que produz. Mas se não podemos dizer qual das duas trações opostas é maior senão pelo movimento que produz em sua própria direção, cometemos um círculo vicioso ou uma petição de princípio, afirmando que o movimento se verifica no sentido da maior tração. Se damos agora um passo mais e perguntamos em que se baseia a hipótese de que entre duas forças opostas a maior é a que produz movimento em sua mesma direção, não achamos outra prova senão a intuitiva de que a parte da força maior, não equilibrada pela menor, deve produzir seu efeito; ou seja, a intuição de que essa força, resíduo da subtração das duas componentes não pode aniquilar-se, mas que deve produzir alguma mudança equivalente; isso equivale a afirmar, por último, a intuição da permanência da força. No caso que nos ocupa, como nos precedentes, os exemplos, por numerosos que sejam, não podem dar maior certeza do que a adquirida por dedução, partindo de um dado fundamental de nossa razão. De fato, em todos os casos, como no simplíssimo que acabamos de citar, não se pode conhecer a força maior, a não ser pelo movimento que resulta. É completamente impossível comprovar a produção de um movimento em outra direção que não aquela da força maior ou resultante, uma vez que nossa medida das forças só pode verificar-se por seus poderes relativos de produzir movimentos. Fica, pois, evidente que se desse modo determinamos a magnitude relativa das forças, não há multiplicação de exemplos que possa aumentar a certeza da lei de direção do movimento, lei imediatamente deduzida do princípio de persistência da força. Pode-se também deduzir dessa verdade primordial a lei de que o movimento, uma vez estabelecido em uma direção, se converte em uma causa de movimentos subsequentes nessa mesma direção. O axioma da mecânica segundo o qual a matéria em movimento em uma direção, abandonada a si própria, continua se movendo nessa mesma direção sem perder velocidade, outra coisa não é senão uma afirmação indireta da persistência da força. Uma vez que se afirma que a força manifestada num movimento de um corpo em direção, espaço e tempo determinados não pode desaparecer sem produzir um efeito igual que, em ausência de toda outra força, não pode ser senão um movimento com iguais direção e velocidade que o anterior, o mesmo acontece no movimento da matéria atravessando a matéria, sendo nesse caso mais complexas as ações. Um líquido que segue seu caminho por sobre um corpo sólido, como faz a água na superfície terrestre, perde uma parte de seu movimento sob a forma de calor, pelo atrito e o choque com as matérias que formam seu leito. Também pode perder uma parte de seu movimento em vencer forças que liberta; por exemplo, quando arrasta uma massa que se encontra em seu curso. Mas uma vez deduzi das essas subtrações de forças, transformadas em outros modos de força, existe ainda outra subtração, sob a forma de reação contra o leito, que diminui muito seu poder obstrutor, como mostram as matérias carreadas e as valas escavadas pelos rios. A complexidade é muito maior no caso do movimento que atravessa a matéria de parte a parte; por exemplo, uma descarga nervosa, durante a qual podem efetuar-se no caminho da corrente mudanças químicas que dificultem sua passagem, ou então o próprio movimento pode, seja qual for, transformar-se parcialmente em uma força obstrutora, como, por exemplo, nos metais cujo poder condutor elétrico diminui por efeito do calor que a passagem da eletricidade produz. A verdadeira questão reside em saber que modificação de estrutura se opera na matéria atravessada, deixando de lado as forças perturbadoras acidentais, e tudo o que não é a resistência necessária da matéria atravessada, vale dizer, a resistência resultante da inércia das moléculas. Se fixarmos nossa atenção na parte do movimento primitivo que prossegue seu curso sem transformar-se, podemos deduzir da persistência da força que a parte desse movimento gasta em mudar as posições das moléculas deve dar-se em um estado que facilite todo outro movimento na mesma direção. Assim, em todas as mudanças que o Sistema Solar experimentou até agora e ainda experimenta; em todas as mudanças passadas e presentes na Terra; em todas as ações psíquicas e seus efeitos materiais; em todas as modificações de estrutura e de atividade das sociedades, os movimentos produtores obedecem às leis gerais mencionadas. Onde quer que percebamos um movimento, sua direção será a da força resultante. Onde quer que conheçamos a direção da força máxima, ou melhor, da resultante, nessa direção haverá movimento. Estes princípios não são verdadeiros apenas para uma ou algumas classes de fenômenos; são princípios universais que servem para a unificação de todos os nossos conhecimentos sobre os fenômenos. X Ritmo do movimento § 82. Quando a bandeira de um navio, que pende imóvel, começa a sentir os primeiros efeitos da brisa, move-se em suaves e graciosas ondulações, desde seu lado fixo no mastro até a ponta. Ao mesmo tempo, as velas começam a sacudir os mastros com golpes cada vez mais rápidos, à medida que aumenta a força da brisa, e quando estão completamente tensas pela resistência das vergas e das cordas, seus bordos tremem, cada vez que uma rajada mais forte vem a tocá-las, e podemos sentir, tocando as cordas, que vibra todo o conjunto, junto com o silvar e bramir do vento, que também vibra mais ou menos fortemente. Em terra, o choque dos ventos com os diversos corpos produz uma ação rítmica. Assim, as folhas tremem, os ramos oscilam, as árvores menos grossas balançam, os talos das ervas e mais ainda os das gramíneas oscilam mais ou menos rápida ou fortemente, inclinando-se e endireitando-se alternadamente, e não faltam esses movimentos, ainda que não tão evidentes, nos objetos mais estáveis ou fixos; até as casas vibram sensivelmente, se sofrem os impulsos de violentas rajadas procelosas. As correntes de água, como também o fazem as aéreas, produzem efeitos análogos nos objetos que encontram na sua passagem. Os talos de erva que nascem no meio de um córrego ondulam de um extremo a outro. Os ramos abatidos ou desgarrados pela última tormenta, e que se encontram mais ou menos submersos na água em que a corrente é rápida, são agitados por um movimento de sobe e desce, que se retarda ou se acelera, segundo sejam maiores ou menores; nos rios muito caudalosos, como o Mississippi, árvores inteiras têm essa posição, e o nome de serradoras que se lhes dá expressa muito bem o movimento rítmico que experimentam. Detenhamo-nos no efeito do antagonismo entre a corrente e seu leito: nos lugares de pouca profundidade, em que se pode ver a ação do fundo sobre a água, esta se riça, isto é, apresenta uma série de ondulações. Se estudarmos a ação e a reação entre o rio ou córrego e suas margens, encontraremos também outro exemplo de ritmo, embora de outro modo. De fato, tanto nos menores córregos, quanto nos maiores e mais sinuosos rios, os ângulos da corrente, que fazem ao cruzar a água de um lado a outro constituem uma ondulação tão natural que mesmo num canal retilíneo não demora em serpentear a corrente. Fenômenos análogos se produzem quando a água está em repouso e nela se move um corpo sólido. Assim, quando se agita na água um bastão, ou um pedaço de madeira com bastante força, sente-se a vibração na mão. Mesmo nos corpos de massa avantajada se produz esse mesmo efeito; apenas precisamos de uma grande força para torná-lo observável. Por exemplo: a hélice de um navio faz com que este vibre, ao passar de um movimento lento a outro rápido. Os sons que produzem os instrumentos de corda são exemplos de vibrações produzidas em um sólido por outro. No torneamento e em outros atos mecânicos, quando a ferramenta tropeça em um nó, se produz uma violenta vibração em toda aparelhagem e no pedaço de madeira ou ferro que se está trabalhando. O garoto que risca uma linha no chão não tem como não fazê-la mais ou menos ondulada. Quando se faz rolar uma bola, mesmo que seja sobre o gelo, há sempre um movimento de ondulação vertical, mais ou menos apreciável, segundo a velocidade da bola seja maior ou menor, respectivamente. Por lisos que sejam os trilhos, por bem construídos que sejam os vagões, um trem em marcha vibra horizontal e verticalmente. Mesmo nos casos de súbita parada por choque, se cumpre igualmente a lei, pois os corpos que se chocam adquirem movimento vibratório. Mesmo que não costumemos observar tal fato, não há dúvida de que todos os impulsos, tanto voluntários quanto involuntários, que comunicamos aos objetos que nos cercam, se propagam através desses objetos sob a forma de vibrações. Basta olhar com um antolho de grande potência para comprovar que cada batida do coração faz vibrar toda a habitação em que nos encontramos. Se considerarmos movimentos de outra ordem, ou seja, os que operam no éter, veremos que também são rítmicos. De fato, todas as descobertas modernas confirmam que a luz e o calor são resultados de ondulações ou vibrações, não diferindo as que produzem um ou outro desses efeitos a não ser na amplitude e na velocidade respectivas. Os movimentos da eletricidade são também eles vibratórios, embora de outro gênero. Assim, veem-se quase sempre as auroras polares agitadas por ondas muito brilhantes e a descarga elétrica no vácuo nos prova, com seu aspecto estratificado que a corrente não é uniforme, mas que resulta de impulsos de maior ou menor intensidade. Se se objeta que há movimentos, como o dos projéteis, que não são rítmicos, podemos responder que tais exceções são apenas aparentes, pois esses movimentos seriam rítmicos se não fossem interrompidos. De fato, diz-se da trajetória de um projétil é uma parábola e é certo que (desprezando a resistência do ar) tal trajetória difere tão pouco de uma parábola, que na prática com ela se confunde, sem erro apreciável; mas, a rigor, trata-se de um arco de elipse muito excêntrica, cujo foco mais distante é o centro de atração terrestre; se o projétil não fosse detido pela mesma terra, ou por outros obstáculos que na sua trajetória encontrasse, percorreria o espaço ao redor desse foco, como cada astro em volta do seu, voltando ao ponto de partida para recomeço da mesma trajetória, de maneira rítmica. O disparo de um canhão, embora pareça à primeira vista provar o contrário, é um dos melhores exemplos do princípio em questão, pois, já de início, a explosão produz fortes vibrações no ar ambiente, e outras mais fracas produz a bala em sua trajetória, como bem demonstra seu silvo; e por último, o movimento ao redor do centro da Terra, que a bala começa a efetuar, ao ser parado pelo choque, se transforma em um ritmo de outro gênero, pelas vibrações que o choque comunica aos corpos circunvizinhos. (Após supor, anos a fio, estar isolado na crença de que todos os movimentos são rítmicos, descobri que meu caro amigo, Professor Tyndall, compartilha da mesma opinião) Regra geral, o ritmo não é simples, mas composto, pois quase sempre são muitas as forças que acionam e que produzem, respectivamente, ondulações de distintas amplitudes e velocidades; por isso existem sempre, lado a lado com os ritmos primários ou principais, outros secundários, produzidos pela coincidência e antagonismo periódicos dos primários, formando ritmos duplos, triplos, quádruplos etc. Um exemplo dos mais corriqueiros é o que em acústica chama-se pulsações, intervalos periódicos de som e de silêncio, que se percebe quando se executa de uma só vez duas notas de mesmo tom, e que são reproduzi das pela correspondência ou pelo antagonismo respectivo das ondas aéreas. O mesmo sucede nas interferências da luz e do calor, resultantes também do acordo ou desacordo periódicos das ondas do éter, que se reforçando ou se neutralizando, mutuamente, produzem intervalos de aumento ou diminuição do calor e da luz. Outro caso são as marés, que oferecem duas vezes por mês um incremento e uma baixa das subidas e baixas diárias, variações devidas respectivamente à coincidência e ao antagonismo das atrações solar e lunar. As ressacas marítimas são outro exemplo do acordo e desacordo rítmicos, pois todas as grandes ondas levam consigo outras pequenas, e estas outras ainda menores, resultando que cada onda de espuma com a capa de água que a sustém, sobe e baixa menos, depois de haver subido e baixado mais, respectiva e alternadamente. Por fim citaremos os córregos, que ao baixar a maré, correm pela areia, franqueando os bancos de cascalho. Quando o canal desses bancos é estreito, e a corrente forte, a areia do fundo forma cristas cada vez mais elevadas correspondendo aos riçados da água, e cada vez maiores, até que com o tempo a ação se faz bastante violenta, destruindo toda uma série de cristas, a água corre algum tempo sobre uma superfície unida, até que se repita a operação. Poderíamos citar outros exemplos de ritmos mais complicados, mas estarão melhores em seu lugar, entre as mudanças cósmicas de que nos ocuparemos. Resulta do conjunto de fatos que acabamos de citar que o ritmo se produz sempre e em todos os lugares onde há um sistema de forças que não se equilibram, pois se se equilibrassem não haveria movimento, e, portanto, não haveria ritmo. Mas se há um excesso de força em uma direção, na qual, portanto, começa um movimento, para que continue uniformemente nessa mesma direção é necessário que o móvel conserve relações fixas com as forças que produzem o movimento e com as que tendem a impedi-lo, o que resta impossível. Todo transporte no espaço deve alterar a proporção das forças em jogo, aumentar ou diminuir a preponderância de uma força sobre outra, impedir, enfim, a uniformidade do movimento. Se este não pode ser uniforme e nem contínua e indefinidamente acelerado ou retardado, por inconcebível, há que ser necessariamente rítmico. Há também outra conclusão secundária, que não deve ser esquecida. Vimos no capítulo anterior que o movimento nunca é absolutamente retilíneo; a consequência é que o ritmo sempre será incompleto. De fato, um ritmo, ou movimento rítmico retilíneo não poderia dar-se a não ser que todas as forças em ação estivessem na mesma reta, contra o que existem infinitas probabilidades. Para produzir um movimento exatamente circular seriam necessárias duas forças de magnitude constante, e continuamente formando ângulo reto, o que também encontra infinitas probabilidades de perturbação. Todas as demais combinações de duas forças produzirão movimentos elípticos mais ou menos excêntricos. Quando atuam mais de duas forças, como quase sempre acontece, é mais complicada a trajetória descrita, e não pode repetir-se com exatidão. De forma que, de fato, não se volta jamais, por completo, a um estado anterior nas ações e reações das forças naturais. Quanto aos movimentos muito complexos, e, sobretudo aos de massas cujas unidades são parcialmente independentes, não se pode traçar uma curva regular, e não se vê mais que um movimento geral de oscilação. Enfim, quando um movimento periódico termina seu período, a diferença que separa o estado de partida do estado de chegada está em íntima relação com o número de forças em jogo. § 83. A disposição em espiral tão frequente nas nebulosas difusas, isto é, a própria distribuição que deve tomar a matéria que se move para um centro de gravidade através de um meio resistente, nos mostra o progressivo estabelecimento da rotação, e por consequência do ritmo nas regiões distantes ocupadas pelas nebulosas. As estrelas duplas que se movem em volta de seu centro comum de gravidade durante períodos algo já conhecidos, são exemplos dos ritmos nas regiões mais apartadas do espaço sideral, podendo também citar, embora de ordem distinta, o fato das estrelas variáveis, que brilham e empalidecem alternadamente. A periodicidade dos movimentos dos planetas, satélites e cometas é já tão conhecida que basta recordá-la como um dos exemplos mais patentes do ritmo universal. Mas além das revoluções desses corpos em suas órbitas e das rotações sobre seus eixos, apresentam outros ritmos mais complexos e menos evidentes. Em cada planeta e em cada satélite há a revolução dos nós - mudança de posição do plano da órbita - que uma vez terminada, volta a começar. Há a alteração gradual da longitude do eixo maior e da excentricidade da órbita, ambas rítmicas do mesmo modo, isto é, que alternam entre um máximo e um mínimo, mudando também entre esses extremos sua velocidade de variação. E há a revolução da linha das absides, que não se move regularmente, mas por oscilações complexas. Há finalmente as variações de direção dos eixos planetários, chamada nutação, e um giro muito mais vasto, que na Terra causa a precisão dos equinócios. Esses ritmos, já compostos, se compõem ainda entre si, sendo um dos exemplos mais simples dessa composição o atraso e a aceleração seculares da Lua, em consequência das variações de excentricidade da órbita terrestre. Outro fato que tem consequências mais importantes é a mudança de direção dos eixos de rotação dos planetas cujas órbitas são decididamente excêntricas. Todo planeta apresenta ao Sol durante um longo período uma parte maior de seu hemisfério boreal do que do hemisfério austral quando está dele mais próximo, e depois, em outro período análogo, apresenta maior parte do hemisfério sul do que do hemisfério norte; a repetição periódica desses fatos, que em alguns planetas não redunda em alteração sensível do clima, compreende na Terra a um ciclo de 21.000 anos, durante os quais cada hemisfério tem sucessivamente estações temperadas e estações muito frias e muito quentes. E isso não é tudo; há variações nessa variação. De fato, os verões e invernos, de toda a Terra oferecem um contraste mais ou menos sensível, segundo as variações da excentricidade da órbita, resultando que enquanto essa excentricidade aumenta, as épocas de estações pouco distintas e as épocas de estações muito distintas que cada hemisfério atravessa alternativamente devem fazer-se cada vez mais diferentes pelo grau de seu contraste, sucedendo o contrário quando a excentricidade diminui. Assim a quantidade de luz e calor que recebe do Sol cada parte da Terra está sujeita a um quádruplo ritmo: inverno e verão, dia e noite, mudança de posição do eixo no periélio e no afélio, que demora 21.000 anos para completar-se, e a mudança de excentricidade da órbita, que por sua vez demora milhões de anos. § 84. As séries de fenômenos terrestres que dependem diretamente do calor solar apresentam naturalmente um ritmo que corresponde à quantidade periodicamente variável de calor que recebe do Sol cada parte da Terra. O caso mais simples, embora seja dos menos aparentes, é o das variações magnéticas. Nelas há acréscimos e decréscimos diurnos, anuais e decenais; estes últimos correspondem a um período durante o qual as manchas do Sol se mostram alternativamente abundantes e raras. Há além disso provavelmente outras variações que correspondem aos ciclos astronômicos anteriormente citados. Os movimentos do mar e da atmosfera são exemplos mais visíveis. As correntes marinhas, do Equador aos polos, na superfície e dos polos para o Equador na profundidade nos mostram um incessante movimento de vaivém em toda essa massa de água; esse movimento varia de intensidade segundo as estações, e se combina com movimentos análogos, ainda que mais fracos, com origem local. As correntes aéreas, devidas que são à mesma causa, têm também suas variações anuais análogas e da mesma maneira modificadas. Por irregulares que pareçam, os ventos, se examinados em detalhe, mostram, contudo, uma periodicidade bastante marcada, nas monções, nos alísios e em algumas outras correntes aéreas, como os ventos do Leste na primavera. Há também a alternativa de períodos, em que há predomínio ora da evaporação, ora da condensação; pode-se observá-lo entre os trópicos, onde se sucedem estações chuvosas e secas, de maneira bem marcada, e nas zonas temperadas, onde, embora menos claramente, ainda se nota o ritmo ou a periodicidade das mudanças em questão. Estas, a evaporação e a precipitação de água sobre a terra, apresentam, além desses períodos longos correspondentes às estações, outro ritmo mais rápido. Assim, quando um tempo úmido dura algumas semanas, ainda que a tendência à condensação seja maior que a tendência à evaporação, não chove geralmente por contínuo, sendo que tal período alterna dias chuvosos e dias secos, total ou parcialmente. E mesmo nos dias chuvosos, reconhece-se comumente um ritmo mais fraco, sobretudo quando as duas tendências, à evaporação e à condensação, estão aproximadamente equilibradas. Nas montanhas, observa-se melhor esse ritmo mais fraco; os ventos úmidos, que não precipitam toda a água que carregam quando passam pelas terras baixas relativamente quentes, perdem tanto calor ao chegar aos picos gelados das altas montanhas que em seguida se condensa todo o vapor que ainda levavam, mas essa condensação libera uma grande quantidade de calor; por isso, as nuvens que ali se formam estão mais quentes que o ar que as precipita e muito mais quentes que as rochas que vão tocar. Por isso, durante as tempestades, os cimos dos montes adquirem temperaturas mais elevadas, parte por radiação das nuvens em volta, parte pelo contato com a chuva; por isso, não resfriam tanto o ar que por elas passa, cessa a condensação da água que esse ar contém em estado de vapor, se fendem as nuvens e um raio de Sol parece augurar um bom dia. Mas perdida logo a quantidade de calor que receberam as encostas frias da montanha, sobretudo quando a ausência de nuvens permite a livre radiação para o espaço, essas superfícies altas voltam a se resfriar, voltam a condensar o vapor e assim sucessivamente. Nas regiões baixas é menor o contraste entre as duas temperaturas, do ar e da terra, e, portanto, essas ações e reações são também menos aparentes. Mas podem ainda ser descobertas, pois até nos dias de chuva contínua há intervalos de chuva densa ou forte, e de chuva miúda, o que, provavelmente, se deve às causas mencionadas. Naturalmente, esses ritmos meteorológicos implicam em outros correspondentes nas mudanças operadas pelo vento e pela água na superfície da Terra. As variações nas quantidades de sedimentos e demais materiais deixados pelos rios crescem e diminuem segundo as estações e produzem, portanto, variações de cor e qualidade nas camadas sucessivas deles resultantes. Os leitos formados pelos materiais das margens, arrastados pelas águas, devem apresentar também diferenças periódicas, correspondentes aos ventos também periódicos da localidade. Em todo lugar em que as geadas contribuam para a destruição, serão também elas, por sua repetição periódica, um fator do ritmo da sedimentação. As mudanças geológicas produzidas pelos depósitos e montanhas de gelo devem igualmente ter esses períodos alternativos de maior ou menor intensidade. Há também provas de que as modificações ígneas da crosta terrestre apresentam certa periodicidade. As erupções vulcânicas não são contínuas, mas intermitentes e segundo o que podemos apreciar pelos dados observados, se repetem a intervalos mais curtos nos períodos de grande atividade e mais longos nos períodos de aparente repouso. O mesmo acontece nos terremotos e com as elevações e depressões consequentes. Na embocadura do Mississippi os estratos alternados são uma prova dos desgastes sucessivos da superfície, produzidos a intervalos aproximadamente iguais. Em todo lugar, nos grupos extensos de extratos regulares que supõem pequenos afundamentos repetidos com uma frequência regular, se nota um ritmo na ação e reação que se verifica entre a crosta sólida da Terra e seu núcleo ainda em fusão, ritmo que se combina com outros mais lentos observáveis nas terminações de grupos de estratos e começo de outros de estrutura distinta, que constituem o que em geologia costuma-se chamar terrenos. Há também razões para suspeitar uma periodicidade geológica imensamente maior em seus ciclos e mais extensa em seus efeitos, qual seja: as vastas e alternadas elevações e depressões que convertem continentes em mares e estes, ou suas bacias, em continentes. De fato, suponhamos, como é lógico, que a crosta sólida terrestre tenha em todas as partes a mesma espessura. É claro que as porções mais comprimidas, como as que formam o fundo dos mares, devem ser as mais expostas, em sua face inferior, às correntes de matéria em fusão do núcleo interior, e por isso sofrem efeito maior do que poderíamos chamar destruição ígnea. Inversamente, nas cristas mais elevadas da crosta terrestre, a superfície inferior está menos sujeita à ação das correntes ígneas, compensando assim as perdas que produzem no exterior as correntes aquosas. Por conseguinte, as superfícies comprimidas, que servem de fundo aos mares se adelgaçam por efeito do desgaste interior, não compensado por sedimentos exteriores oferecendo menos resistência à pressão interior, se elevam gradualmente durante longos períodos até que os termos se invertam. Sejam ou não inteiramente exatas essas conclusões, não invalidam mesmo assim a lei geral, pois os exemplos anteriores são bastantes para afirmar o ritmo dos fenômenos geológicos. § 85. Não há talvez classe alguma de fenômenos em que tão numerosos e claros sejam os exemplos de ritmo, como os fenômenos da vida. As plantas verdadeiramente não oferecem outra periodicidade bem clara senão aquela que produzem o dia e a noite e as estações do ano. Mas nos animais há uma grande variedade de movimentos, alternando extremos opostos com todos os graus de rapidez. Os fenômenos mecânicos da digestão são todos essencialmente rítmicos desde os voluntários da mastigação e da deglutição até os peristálticos do esôfago, estômago e intestinos. O sangue é posto em movimento, não de maneira contínua, mas por impulsos sucessivos; é oxigenado no aparelho respiratório, por contrações e dilatações alternativas do mesmo, e sendo apenas o sangue recém-oxigenado e alimentado que se presta às demais funções, estas são também necessariamente alternativas, rítmicas, uma vez que são as que o fazem passar por cada órgão nessas condições. Toda locomoção é resultado de movimentos ondulatórios; mesmo nos seres pequenos em que ela aparenta continuidade, uma observação microscópica mostra que o suavíssimo movimento se deve às vibrações das pequenas patas na locomoção. Os ritmos primários das ações orgânicas se combinam com outros secundários de maior duração, produzindo em todas as formas de atividade aumentos e diminuições periódicos. Exemplos bem patentes são as necessidades de comer e dormir. Além disso, cada alimentação acelera a ação rítmica primeiro dos órgãos digestivos e depois as pulsações cardíacas e os movimentos do aparelho respiratório. Pelo contrário, durante o sono, todos esses movimentos se retardam, de sorte que no curso das vinte e quatro horas, as pequenas ondulações de que se compõem as diferentes espécies de ações orgânicas tomam a forma de uma onda prolongada de aumento e diminuição, composta por sua vez, também ela, de ondas menores. A experiência demonstrou que há aumentos e diminuições ainda mais lentas da atividade funcional orgânica. Assim, não se estabelece sempre após cada refeição o equilíbrio da assimilação e desassimilação, uma ou outra conservando, durante certo tempo uma supremacia, de modo que toda pessoa sã aumenta e diminui de peso alternadamente, a intervalos aproximadamente iguais. Além desses períodos regulares, existem outros, mais longos e relativamente irregulares, as alternativas de vigor e debilidade pelas quais mesmo as pessoas bem sãs passam geralmente. Essas oscilações são tão inevitáveis que mesmo os homens que se exercitam bastante não podem permanecer por muito tempo no grau máximo de tensão muscular, e logo começam a reduzi-lo, quando o atingem. Quase todos os movimentos vitais patológicos são também rítmicos; assim, muitas enfermidades recebem o nome de intermitentes por assim serem classificados seus sintomas e muitos destes ainda o são, mesmo que a enfermidade não tenha essa classificação ou que a periodicidade não seja muito clara. Em geral, é raro que as enfermidades se agravem ou se aliviem continuamente, uma vez que se observam agravamentos e seus alívios, e recaídas e progressos nas convalescenças. Os grupos de seres vivos apresentam, ainda que de outra ordem, um exemplo do mesmo princípio geral. De fato, se consideramos cada espécie daqueles seres como um todo, notam-se duas espécies de ritmo. Observa-se que a vida em todos os indivíduos de uma espécie é um movimento complicado e mais ou menos distinto dos movimentos que constituem a vida nas demais espécies. Em cada indivíduo esse movimento começa, aumenta, chega a um máximo, diminui, e cessa com a morte. Assim, cada geração forma uma onda da atividade que caracteriza a espécie considerada como um todo. A outra forma de ritmo se manifesta na variação do número de indivíduos que cada espécie de animal ou planta experimenta sem cessar; no conflito incessante entre a tendência da espécie a crescer e as tendências antagônicas nunca existe perfeito equilíbrio; predomina uma ou outra. Mesmo em se tratando de plantas e animais domésticos, para os quais se empregam meios artificiais para sustentar o número num nível aproximadamente constante, não é possível evitar as alternativas de abundância e escassez. Nos animais não cuidados pelo homem, essas mudanças comumente se efetuam muito mais rapidamente. Quando uma espécie foi muito diminuída por seus inimigos ou por falta de alimentos, os indivíduos que sobrevivem se encontram em situação melhor que antes, pois por uma parte a quantidade de alimentos se torna relativamente mais abundante e por outra os inimigos diminuem por falta de presa, de modo que as condições dessa espécie permanecem por algum tempo favoráveis a seu crescimento e multiplicação com rapidez. Então, volta o alimento a escassear e os inimigos a abundar, com o que a espécie volta de novo a declinar, e assim sucessivamente. Se consideramos a vida num conceito mais geral, podemos ainda descobrir em seu fenômeno outro ritmo, embora muito lento. Os estudos dos paleontólogos mostraram que as formas orgânicas experimentaram grandes mudanças durante longos períodos, do que são testemunhas as rochas e os terrenos sedimentares. Muitas espécies apareceram, tornaram-se numerosas e desapareceram. Os gêneros, famílias e demais grupos constaram primeiramente de um curto número de grupos inferiores, que se fizeram depois mais numerosos, e por último diminuto e algumas vezes desaparecido. Assim por exemplo, a crinoidea pediculada, muito abundante na época carbonífera, quase desapareceu. Uma família de moluscos numerosíssima em outros tempos, a dos braquiópodos, está hoje reduzida a um pequeno número de espécies. Os cefalópodes testáceos que dominavam os oceanos em outras épocas, pelo número de espécies e de indivíduos, quase estão extintos, na era presente. Depois de uma idade dos répteis, veio outra idade em que essa classe de animais foi suplantada pela dos mamíferos. Se, pois, esses incrementos e essas decadências colossais das diversas espécies de seres orgânicos tiveram e têm caráter periódico - proximamente em correlação com os grandes ciclos de elevações e depressões que produzem os mares e continentes, basta isso para provar que a vida não progrediu na Terra uniformemente, mas por grandes ondulações. § 86. Os fenômenos psicológicos não parecem rítmicos à primeira vista. Contudo, a análise mostra que o estado psíquico correspondente a um momento dado não é uniforme, podendo ser decomposto em rápidas oscilações; e também que os estados sucessivos atravessam longos períodos de intensidade crescente e decrescente. Quando dirigimos nossa atenção seja para uma sensação, seja para um sistema de sensações que constituem a percepção de um objeto, parece que permanecemos durante algum tempo em um estado psíquico homogêneo e persistente; contudo, um atento exame demonstra que esse estado aparentemente contínuo está na realidade interrompido por outros estados secundários, formados por outras sensações e percepções, que se apresentam e fogem rapidamente. Se, como admitimos, pensar é relacionar, resulta necessariamente que, se a consciência permanecesse num mesmo estado, com exclusão total de outros estados, não haveria pensamento. De modo que uma sensação, aparentemente contínua, por exemplo, da pressão, se compõe, na realidade, de elementos rapidamente renovados, entremeados por outros relativos ao lugar do corpo onde a sensação se percebe, ao objeto que a produz, às consequências que podem advir, e outra multidão de coisas sugeridas pela associação de ideias. Há também oscilações sumamente rápidas, que se desviam do estado psíquico que focamos como persistente, e que voltam a conduzir a ele. Além da prova direta do ritmo dos fenômenos psíquicos, que a análise nos fornece, existem outras, fundadas na correlação entre as sensações e os movimentos. De fato, as sensações e as emoções produzem contrações musculares. E, pois, se uma emoção ou sensação fosse rigorosamente contínua, haveria uma descarga contínua ao longo dos nervos motores postos em jogo; mas a experiência nos revela, até onde permite julgar o uso de estimulantes artificiais, que uma descarga contínua ao longo do nervo motor de um músculo não produz sua contração; para tanto se necessita uma descarga interrompida, uma sucessão rápida de descargas. A contração muscular então pressupõe esse mesmo estado rítmico da consciência que mostra a observação direta. Um ritmo mais evidente, de ondulações mais lentas, se manifesta nas emoções produzidas pelo baile, a poesia ou a música. A corrente de atividade psíquica que se revela por esses modos de ação corporal não é contínua, mas se decompõe em uma série de pulsações ou vibrações. O compasso do baile é o resultado da alternância de contrações musculares fortes com outras fracas, à exceção do compasso das danças mais simples, como a dos povos primitivos e das crianças, nas quais essas alternativas se resumem em elevações e depressões maiores no grau de contração muscular. A poesia é uma forma literária em que a energia reaparece periódica e regularmente; ou seja, onde o esforço muscular da fala apresenta períodos de maior e menor intensidade, que se mesclam com outros da mesma natureza, correspondendo à sucessão dos versos. A música nos dá uma grande variedade de efeitos da lei; sejam compassos repetidos, constando cada um de uma vibração primária e outra secundária; sejam esforços musculares alternativamente crescentes e decrescentes, para chegar às notas agudas e baixar às graves; duplo movimento, composto de ondas menores, que rompem com o movimento de elevação e descida das maiores, de uma maneira particular em cada melodia; ou seja, a alternância de trechos piano e trechos forte. Essas diversas espécies de ritmo que caracterizam a expressão estética não são, a rigor, artificiais; são formas mais intensas de um movimento ondulatório habitualmente gerado pelo sentimento quando se descarrega no corpo, e uma prova disso é que se encontram também na linguagem usual. De fato, esta apresenta em cada fase pontos de insistência primários e secundários e uma cadência composta de uma subida e uma descida principais, complicadas por outras secundárias ou subordinadas e acompanhadas, quando a emoção é forte, de um movimento oscilatório maior ou menor nos membros. Todos podem observar ondulações ainda mais amplas, em si e nos demais, em presença de um prazer ou uma dor muito intensa. Se a dor tem como causa uma desordem corporal, manifesta quase sempre um ritmo muito fácil de acompanhar; durante sua existência, tem suas variações de intensidade, seus acessos ou paroxismos e seus descansos ou períodos de bem-estar relativo. A dor moral também consta de ondas análogas, umas maiores, outras menores, pois mesmo que ela seja uma dor muito viva, quem a experimenta não soluça ou chora continuamente com igual intensidade, mas demonstra esses sinais de dor a intervalos, sucedendo aos períodos de emoção mais ou menos forte, outros de calma, como se a emoção estivesse adormecida e a estes outros, talvez, em que a dor chega ao paroxismo. O mesmo acontece quanto aos grandes prazeres, sobretudo nas crianças, menos donos de suas emoções; observamos neles variações claras da intensidade do sentimento: acessos de riso, de dança, separados por períodos de descanso e sorriso e outros sinais débeis de prazer, que são bastantes para desafogar uma excitação já debilitada. Existem também ondulações psíquicas mais lentas e que necessitam semanas e até meses e anos para se completarem. Tais são os períodos de bom ou mau humor, de vivacidade e de abatimento, de disposição e de preguiça para o trabalho, de gosto e de desinteresse por certos assuntos. Deve-se notar, contudo, relativamente a essas oscilações lentas, que, submetidas que estão à influência de uma grande diversidade de causas, mostram-se no geral bastante irregulares. § 87. Nas sociedades nômades, as mudanças de lugar, geralmente determinadas pelo esgotamento ou escassez de alimentos, são periódicas, e em muitos casos a periodicidade coincide com as estações. As tribos, fixadas no local de sua escolha, crescem até que a pressão dos desejos não satisfeitos origina uma emigração de parte da tribo para uma nova região, o que se reproduz a intervalos. Esse excesso de população, essas sucessivas ondas de emigração suscitam conflitos com outras tribos, que também crescem e tendem a dividir-se. Este antagonismo, como todos, se verifica não como um movimento contínuo, mas alternativo. Guerra, abatimento, derrota, paz, prosperidade, nova agressão, tais são alternativas mais ou menos apreciáveis que nos oferecem os feitos militares dos povos, civilizados ou selvagens. Por irregular que seja esse ritmo, não o é mais que o de variação da grandeza e poderio das nações, e as causas muito complexas que em um e outro influem impedem sua previsão. Se passamos dos fenômenos externos ou internacionais para os internos de cada nação, encontramos sob diversas formas esses movimentos alternativos de progresso e retrocesso. Nota-se sobretudo no comércio: durante o primeiro período, as trocas se reduzem quase em sua totalidade às que têm lugar nas feiras verificadas a grandes intervalos nos principais centros de população. O fluxo e refluxo de pessoas e mercadorias em cada feira se faz mais frequente à medida em que o desenvolvimento nacional gera uma atividade social maior. O ritmo mais rápido de mercados semanais substitui o ritmo mais lento das feiras e ocorre às vezes que as operações comerciais chegam a tal nível de atividade que pedem reuniões diárias de compradores e vendedores, espécie de onda cotidiana de acumulação e distribuição de mercadorias e capitais. Deixemos o comércio e consideremos a produção e o consumo; descobriremos também neles ondulações mais longas em seus períodos, sem dúvida, mas não menos evidentes. A oferta e a demanda nunca são iguais, sendo alternativamente maior uma ou outra. Os agricultores, contrariados depois de uma abundante colheita pelo baixo preço obtido, plantam menos no ano seguinte, redundando em escassez e carestia, e assim sucessivamente. O consumo oferece oscilações análogas, que acreditamos desnecessário mostrar. A balança dos pedidos entre diversos países determina também análogas oscilações. Assim, um país onde certos objetos necessários à existência são escassos, se converte em ponto de convergência onde veem descarregar esses objetos, oriundos dos lugares onde estão em abundância relativa; estas correntes formam na sua confluência uma onda de acumulação, um obstáculo, resultando imediatamente num movimento de refluxo nessas correntes. Nos preços se fazem notar, também, talvez melhor que nas demais, as oscilações que atingem todas as ações sociais. Se se reduzem os preços a medidas numéricas, organizadas em tabelas, vê-se de maneira muito clara como os movimentos comerciais se compõem de oscilações de magnitude variável; observa-se, por exemplo, que o preço do trigo sobe e baixa e que as máximas elevações e depressões só têm lugar ao cabo de certo número de anos; essas grandes ondas são cortadas por outras que se estendem por períodos de meses e estas por sua vez por outras ainda, que duram apenas uma ou duas semanas. Se observarmos com mais detalhe as mudanças, veremos oscilações de um dia para o outro, e ainda outras, mais delicadas a cada hora, nos telegramas dos corretores. A representação gráfica viria a ser um desenho bastante complexo, semelhante a uma grande onda do oceano, composta de outras médias, e estas de outras menores as quais, por fim, compor-se-iam de pequenos filetes. Desenhos análogos resultariam para nascimentos, casamentos, falecimentos, enfermidades, crimes, pobreza, mostrando os diversos movimentos rítmicos que se operam na sociedade, sob várias formas. Os mais complexos fenômenos sociais oferecem representações análogas. Na Inglaterra, como também nas nações continentais quase todas, são evidentes a ação e a reação do progresso político. A religião, deixando de lado suas variações acidentais de pouca extensão, tem longos períodos de exaltação e de indiferença, gerações de crentes, de puritanos, e logo outra de indiferentes e libertinos. Há épocas poéticas e outras em que parece adormecido o sentimento do belo. A Filosofia, depois de ter dominado por algum tempo - na Grécia Antiga - cai no esquecimento por um longo período, depois do qual volta, ainda que lentamente, a experimentar crescimento. Toda ciência tem época consagrada ao raciocínio dedutivo e época destinada a reunir e relacionar fatos. Mesmo em movimentos de mínima importância, como na moda, está presente o movimento rítmico. Como poder-se-ia prever, os ritmos sociais nos apresentam belos exemplos da irregularidade resultante da combinação de muitas causas. Quando as variações se referem apenas a um elemento da vida nacional, costumam voltar com bastante exatidão ao estado primitivo, depois de oscilações mais ou menos complexas. Mas nas ações que são produto de vários fatores, nunca se volta exatamente ao primeiro estágio. Uma reação política não faz com que tudo volte ao estado precedente. O racionalismo atual difere notavelmente daquele do século passado. Enfim, ainda que a moda faça reviver as mesmas formas de vestidos, sempre o faz com modificações bem destacadas. § 88. A universalidade desse princípio sugere uma questão análoga à dos capítulos precedentes. Manifestando-se o ritmo em todas as formas de movimento, há razão para pensar que está determinado por uma condição original, ou seja, desde a origem de todo o movimento. Tacitamente se supõe que se pode deduzir do princípio da persistência da força e veremos que na realidade assim é. Quando a haste de um diapasão é puxada para o lado por um dedo, um certo excesso de tensão surge entre suas partículas coerentes, que corresponde à resistência a qualquer força que a desloque de sua posição de equilíbrio, e tanto esforço exerce o dedo sobre a haste quanto resiste a mesma pela coesão de suas partículas. Então, quando a haste é liberada, ela é recuperada de volta por uma força igual à que provocou sua deflexão. Quando a haste, depois disso, volta à posição de equilíbrio, a força nela impressa durante o recuo gerou um correspondente aumento de momento, que é aproximadamente equivalente àquele nela impresso originalmente pelo dedo (aproximadamente, dizemos, por ter uma certa porção comunicado movimento ao ar ambiente e outra porção ter sido convertida em calor). Tal momento leva a haste além de sua posição de repouso deslocando-a também aproximadamente tanto quanto havia inicialmente sido deslocada, e na direção oposta; até que, usado esse momento na produção de tensão interna e contrária, termina por se dissipar; essa nova tensão provoca novo recuo, e assim continuadamente, com a vibração vindo a cessar apenas porque a cada movimento uma certa porção de força se esvai, criando vibração atmosférica e etérea, Basta observar esta ação e reação repetida para ver que, como em todas, é um corolário da persistência da força. De fato, a força dispendida pelo dedo para separar os braços do diapasão tende a não se anular e se transforma em tensão molecular naqueles braços; esta tensão não pode cessar de existir sem que se transforme em algo equivalente. Sob que forma então persistirá? Essa forma é o momento de inércia gerado ao chegarem os braços à sua primitiva posição de equilíbrio; esse momento não pode fazer outra coisa senão continuar e gerar pela tensão coesiva entre as partículas outra força correlativa de igual intensidade; e assim sucessivamente. E qual é o resultado equivalente? O momento gerado na haste quando se recupera para a posição de repouso. E esse momento, em que se transforma? Deve continuar como momento ou produzir alguma força correlativa de igual montante. Não podendo continuar como momento, pois a mudança de lugar encontra resistência na coesão entre as partes, gradualmente desaparece, transformado em tensão interna nessas partes; esta é retransformada em momento equivalente e assim continuamente. Se, em vez do movimento diretamente impedido pela coesão da matéria, consideramos o movimento através do espaço, descobriremos a mesma verdade sob outra forma. De fato, mesmo que não pareça nesse caso que exista outra força em jogo, nem, portanto causa eficaz de ritmo, com todo seu momento próprio acumulado, deve em definitivo levar o corpo móvel além de seu centro de atração e se converter assim em uma força distinta da inicial, resultando, como em todos os casos, a combinação de forças necessárias para que haja ritmo. A força representada pelo momento de um móvel em cada direção não pode ser destruída; se desaparece por cessar o movimento, inevitavelmente reaparece sob forma de reação sobre o corpo que a faz cessar, reação que começa de novo o movimento em sentido contrário ou próximo do móvel que foi detido. A única circunstância em que poderia não haver ritmo, isto é, verificar-se movimento contínuo e indefinido, em linha reta, seria não existir mais que um móvel em um vazio infinito o que não existe e nem sequer é concebível, pois não o é o infinito, como também não o é o movimento sem origem por outro movimento ou por uma força preexistente. Portanto, o ritmo é uma propriedade necessária de todo movimento, pois dada a coexistência universal de forças antagônicas, o ritmo é um corolário obrigatório da persistência da força. XI Recapitulação; problema final § 89. Detenhamo-nos um momento para constatar como os princípios que estabelecemos nos capítulos anteriores tendem a formar um corpo de doutrina, conforme a definição que demos à Filosofia. Do ponto de vista de sua generalidade, a proposição que enunciamos e acompanhamos com exemplos em cada um desses capítulos cumpre com a condição exigida (§37) para ser considerada como superando a condição de científica e merecendo o nome de filosófica. A indestrutibilidade da matéria é um princípio que não pertence à mecânica, por exemplo, como não pertence também à química e etc., uma vez que o admitem de comum acordo a física molecular, a mecânica física, a astronomia, a química e a biologia. A continuidade do movimento, ainda que tenha sua suposição inicial na ordem cronológica, origem na mecânica geral e na mecânica celeste, foi finalmente reconhecida pela física, pela química, pela biologia, pois sem ela não poderiam tais ciências explicar muitas de suas verdades. A persistência da força implicada em cada uma das proposições anteriores, como já sabemos, tem a mesma generalidade, como também a tem a persistência da relação entre as forças, corolário que é da proposição anterior. Não apenas têm uma grande generalidade esses dois últimos princípios, como são universais. Se consideramos agora as deduções que se podem tirar desses princípios, encontramos a mesma, ou análoga generalidade. A transformação e equivalência quantitativa das forças transformadas são leis primárias, que se cumprem, como vimos, em todos os fenômenos, de todas as ordens, inclusive os psíquicos e sociais. São também verdadeiramente universais, ainda que não seja fácil a prova dessa universalidade, os princípios da direção e do ritmo do movimento, pois o da direção já pode ser apreciado no movimento dos planetas em suas órbitas, nos corpos sólidos, líquidos e gasosos de cada planeta e em quase todos os movimentos orgânicos conhecidos; e o do ritmo, vimos também no capítulo anterior, que se impõe ao próprio movimento giratório lento das estrelas duplas e ao rapidíssimo das moléculas, que nos produzem as sensações de som, calor e luz, e também às mudanças geológicas e astronômicas, também lentas, que a Terra experimenta, como aos ventos, marés, e demais mudanças de períodos relativamente curtos, e finalmente aos movimentos funcionais dos seres vivos, desde as batidas do coração até o paroxismo das emoções. São, pois, tais princípios verdadeiramente filosóficos; devem formar parte da Filosofia, uma vez que unem fenômenos concretos, pertencentes a todas as seções da natureza, e, portanto, são elementos constituintes do conhecimento completo e unificado das coisas, que a Filosofia tem por finalidade formar. § 90. Mas que papel desempenham esses princípios na formação desse conceito? Há entre eles algum que por si só possa dar uma ideia do Cosmo, isto é, da totalidade de manifestações do incognoscível? Pode ao menos dar-nos essa ideia o conjunto de todos eles? Não, tais princípios, como quaisquer outros, considerados isolados ou em conjunto, não constituem esse conhecimento integral, objeto e finalidade da Filosofia. Algum pensador acreditou que se a Ciência chegasse a reduzir todas as leis mais ou menos complexas a uma mais simples, a de ação molecular, por exemplo, teria o conhecimento humano alcançado seus limites. Algum outro ousou afirmar que o princípio da persistência da força expressa a constituição do Universo, uma vez que nele estão compreendidos todos os demais princípios, e, portanto, todos os fenômenos do Universo. Mas ambas afirmações são falsas, porque são também falsas as ideias que seus enunciadores têm do problema. De fato, esses princípios são verdades analíticas, e nenhuma verdade analítica, ou conjunto de verdades analíticas pode constituir a síntese mental, interpretação fiel da síntese universal das coisas. A decomposição dos fenômenos em seus elementos não é senão uma preparação para compreender os fenômenos na admirável e harmônica composição com que se nos manifestam. Conhecer a lei dos fatores não é conhecer a lei de sua combinação. O problema não é saber como tal ou qual fator, matéria, movimento, força, age nas condições relativamente simples que se pode imaginar, nem tampouco nas condições complexas da existência atual, mas saber expressar o produto combinado de todos os fatores sob todos os aspectos. Somente sabendo formular a operação total teremos realizado o fim da Filosofia. Este ponto é de bastante importância para merecer nossa insistência sobre ele. § 91. Suponhamos que um químico, um geólogo, um astrônomo, deem as explicações mais aprofundadas, que suas ciências respectivas permitam, sobre a combustão de uma vela, sobre um terremoto, sobre o movimento de um planeta. Se dizemos que suas explicações deixam muito a desejar, nos dirão possivelmente: o que quer você mais? O que mais há para dizer sobre a combustão, quando seguimos a luz, o calor e a dispersão da matéria comburente e combustível, até evidenciar o movimento molecular, causa comum de todos esses fenômenos? Como seguir adiante na explicação de um terremoto uma vez explicadas todas as ações que o acompanham e seguem, como os efeitos do resfriamento interior da Terra? Que fica por explicar de um movimento planetário, levadas já em conta todas as forças que o produzem e podendo-se predizer a situação do astro em um dado instante, com qualquer antecipação desejada? Quer uma síntese? Está dizendo que o conhecimento não deve se contentar com resolver os problemas parciais, ou seja, os fenômenos resultantes das ações de tais ou quais fatores cujas leis de ação são conhecidas, mas que deve solucionar o problema geral, ou seja, mostrar como da ação combinada dos fatores resultam os fenômenos em toda sua complexidade? Porventura, partindo dos movimentos moleculares não se forma uma explicação sintética da luz, do calor, dos gases produzidos na combustão; assim como partindo da radiação contínua do calor terrestre, se edifica também a síntese explicativa, bastante clara e satisfatória, da contração do núcleo terrestre, do afundamento de sua crosta, da causa e efeito da lava ardente que rasga essa crosta? A tudo isso responderemos que o problema geral da Filosofia é edificar uma síntese universal que abrace e consolide todas essas sínteses parciais. As explicações sintéticas, mesmo as mais gerais, que dá a ciência, são mais ou menos independentes umas das outras; pode, é fato, haver entre elas elementos de semelhança, mas nunca chegará a semelhança até a sua estrutura essencial. Devemos, por isso, supor que entre a combustão, o terremoto e o movimento de um astro não existe coordenação e nem relações de nenhum gênero? Se cada um dos fatores dos fenômenos age conforme uma lei, acaso se pode pensar que todos combinados não obedecem a lei alguma em uma cooperação? Essas variadíssimas mudanças naturais e artificiais, orgânicas e inorgânicas, que separamos com nomes diversos para nossa comodidade em seu estudo e descoberta de suas leis, consideradas de um ponto de vista superior, do ponto de vista da Filosofia, não deveriam ser separadas, mas sim unificadas, como mudanças que se sucedem no mesmo Cosmo e que formam parte de uma vastíssima transformação? O jogo das forças obedece essencialmente ao mesmo princípio em toda a região explorada pela inteligência e ainda que, pela infinita variedade de suas proporções e de suas combinações aquelas produzam resultados mais ou menos diferentes, totalmente distintos mesmo, por vezes, na aparência, não é possível deixar de reconhecer uma unidade fundamental entre esses resultados. A questão que devemos nos propor a resolver é, então, a seguinte: qual é o elemento comum de todas as operações, ou de todos os fenômenos concretos? § 92. Resumindo, pois, devemos buscar uma lei de composição dos fenômenos que compreenda as leis de seus componentes, dadas a conhecer nos capítulos anteriores. Vimos que a matéria é indestrutível, que o movimento é contínuo, que a força é persistente, que as várias formas de força estão permanentemente se transformando umas nas outras, e por último, que o movimento sempre é rítmico e segue a direção da mínima resistência. Resta-nos agora encontrar a fórmula que, sendo também invariável, expressa as consequências ou resultados das ações combinadas que as fórmulas de que tratamos expressam em separado. Qual deve ser o caráter geral dessa fórmula? É preciso que expresse a série de mudanças experimentadas tanto pela matéria quanto pelo movimento. Toda transformação supõe a reordenação dos elementos por ela perturbados, e para defini-la não basta dizer o que sucedeu às partes apreciáveis e inapreciáveis da substância transformada; é necessário, também, dizer o que sucede aos momentos de força, que a nova ordenação ou colocação de tais elementos supõe. E, a menos que se verifique sempre no mesmo sentido e na mesma medida, quais são as condições em que a dita transformação começa, cessa ou se inverte. A lei que buscamos dever-se-á chamar, pois, lei da redistribuição contínua da matéria e do movimento. O repouso absoluto inexiste; cada ser (e o conjunto universal de todos os seres cognoscíveis) muda a cada momento, recebe ou perde movimento, rápida ou lentamente. A questão é, pois, a seguinte: que princípio dinâmico, verdadeiro no conjunto e nos detalhes de todas as metamorfoses que se verificam no Cosmo expressa essas relações sempre variantes, entre os seres que mudam? Este capítulo terá servido a seus propósitos se evidenciou a natureza do problema final. A discussão em que agora entraremos vai no-lo apresentar, adequadamente, sob nova face, e então veremos com evidência que uma filosofia que mereça este nome não pode constituir-se sem resolvê-lo. XII Evolução e dissolução § 93. A história completa de um ente deve considerá-lo desde sua saída do imperceptível até o seu desaparecimento no imperceptível. Quer se trate de um objeto, quer se trate de todo o Universo, toda explicação que tenha sua origem em uma forma concreta e termine considerando-o da mesma maneira, é incompleta, uma vez que uma parte da existência cognoscível do objeto fica sem descrição, sem explicação. Ao admitir, ou melhor, afirmar que o conhecimento está limitado aos fenômenos, implicitamente afirmamos que a esfera do conhecer abarca todos os fenômenos, todos os modos do Incognoscível que nos podem impressionar a consciência. Então, onde quer que encontremos o ente assim condicionado para agir sobre nossos sentidos, levantam-se duas indagações: como está, ou melhor, como chegou a estar nessas condições? E como cessará de estar nessas condições? Se não admitimos que ele tomasse uma forma sensível no momento mesmo da percepção para perdê-la um instante após, é forçoso acreditar que ele teve uma existência anterior, sob essa forma sensível, e que ainda a terá posteriormente. Essas existências, anterior e posterior, sob formas apreciáveis, são, pois, objetos suscetíveis de conhecimento, e o conhecimento de todo objeto não é evidentemente completo, se ele não é conhecido em seu passado, em seu presente e em seu futuro. As palavras e as ações da vida supõem mais ou menos esse conhecimento, atual ou possível, de estados que foram e de estados que serão, e a maioria de nossos conhecimentos implica nesses elementos. Conhecer um homem pessoalmente supõe tê-lo visto antes sob uma forma muito similar à forma atual, e conhecê-lo bem supõe tê-lo conhecido em seus primeiros anos, na sua juventude, em toda sua vida. Sem dúvida, não é conhecido em todos os detalhes o futuro do homem, mas é conhecido no geral; sabe-se que morrerá, que seu corpo vai se decompor, e esses fatos completam o plano de mudanças que ele há de experimentar. O mesmo se aplica aos objetos que nos cercam; assim, podemos retroceder um pouco na história dos tecidos de lã, de seda, de algodão etc., que usamos; estamos certos de que nossos móveis se compõem de madeira de certas árvores formadas não há muito tempo, assim como sabemos que as pedras usadas na construção de nossas casas formavam antes parte de uma das camadas estratificadas da crosta terrestre. Além disso, podemos também predizer o futuro de nossas roupas, de nossos móveis e de nossas paredes, pois sabemos que entrarão em decomposição, e dentro de um período mais ou menos longo, perderão sua coesão e sua forma atuais. Esse conhecimento, que têm quase todos os homens, relativo ao porvir e ao passado dos objetos que nos cercam, a Ciência o estendeu e o estende cada vez mais: à história do homem desde o nascimento junta a história intrauterina, podendo-se hoje dizer que se acompanha cada indivíduo desde estado microscópico de embrião até sua decomposição ou redução aos gases e demais substâncias dela resultantes. Ao historiar um tecido de lã ou de seda, a Ciência não estanca nem na pele do carneiro nem na larva do bicho da seda, mas descobre nessas primeiras matérias o nitrogênio e demais elementos que o carneiro e a larva tomaram das plantas, e estas do ar e da terra em que vivem, e assim sucessivamente. Uma busca sobre a localização da jazida de onde foi extraída a pedra que usamos na construção da casa mostra que ela foi outrora um sedimento depositado no delta de um rio ou no fundo do mar. Se, então, o passado e o futuro de cada objeto constituem uma esfera de conhecimento possível, e se o progresso intelectual consiste parcial ou mesmo principalmente em estender nossas posses sobre esses domínios do passado e do futuro, é evidente que não teremos adquirido todo conhecimento de que é capaz nosso intelecto enquanto não conheçamos todo o passado e todo o porvir de cada objeto e conjunto de objetos. Uma vez que sabemos como um objeto visível e tangível chegou a possuir sua forma e consistência atuais, estamos completamente convencidos de que, partindo bruscamente, como fazemos, de uma substância que detém já uma forma concreta, não fazemos mais que uma história incompleta, uma vez que o objeto tinha já uma história quando tomou essa forma. Não podemos, desde já, concluir que incumbe à Filosofia formular essa passagem do imperceptível ao perceptível, e vice-versa? Não é evidente que a lei geral da redistribuição da matéria e do movimento, necessária, segundo acabamos de ver, para unificar as diversas espécies de mudanças, deve ser a lei que unifique as mudanças sucessivas que experimentam em conjunto ou em separado as existências sensíveis? Somente uma forma que combine todos esses caracteres dará ao conhecimento humano toda sua coerência e toda sua unidade possível. § 94. Já vimos o esboço dessa fórmula nos parágrafos precedentes; neles vimos que a Ciência, seguindo no passado a genealogia de diversos objetos, descobre que seus componentes existiram antes em estado difuso, e que a este estado voltarão também com o tempo, o que significa que a fórmula em questão deve compreender esses dois atos de concentração e dissolução, ou difusão. Aproximamo-nos mais da expressão da dita fórmula ao descrever ou indicar suas características gerais. A passagem de um estado difuso imperceptível para um estado concreto perceptível é uma integração de matéria e uma dissipação correspondente de movimento; pelo contrário, a passagem de um estado concreto perceptível para um estado difuso imperceptível é uma desintegração de matéria, acompanhada da produção de movimento. Tais proposições são truísmos, pois está claro que as partes integrantes não podem agregar-se ou constituir o todo sem perder algo de seu movimento relativo, e não podem desintegrar-se ou separar-se sem receber mais movimento relativo. Não se trata aqui de movimento de uma massa em relação a outras massas, mas do movimento relativo, ou de uns com respeito a outros, dos elementos de uma mesma massa. Limitando-nos a considerar esse movimento interno e a matéria que o possui, é um axioma que toda consolidação progressiva daquela matéria implica na diminuição do movimento interno, e que todo incremento desse movimento implica na destruição ou difusão da matéria. O conjunto das duas operações opostas que acabamos de formular constitui a história completa de toda existência sensível, sob sua forma mais simples. Perda de movimento e integração consecutiva ou simultânea, seguida de aquisição de movimento e desintegração concomitante; está aqui enunciada a série inteira de mudanças de um ente, ou de um conjunto qualquer de entes relacionados entre si. Talvez pareça demasiado ambiciosa tal afirmação, mas a justificaremos nos parágrafos subsequentes. § 95. Com efeito, temos que sublinhar, prosseguindo, um novo fato de total importância: o de que toda mudança experimentada por uma substância apreciável se verifica numa ou noutra destas duas direções opostas. Aparentemente, muitos seres que passaram de um estado difuso para um estado concreto nele permanecem indefinidamente, sem prosseguir na sua integração nem principiar a sua desintegração. Contudo, não é real essa aparência; todos os seres ganham ou perdem movimento e substância, se integram ou se desintegram; todas as coisas variam em sua temperatura, se contraem ou se dilatam, se integram ou se desintegram. As quantidades de matéria e de movimento interno de uma massa qualquer crescem ou decrescem continuamente e esses incrementos e reduções são passos para a difusão ou para uma maior concentração. As perdas e ganhos de substância, por lentas que possam ser, implicam numa dissolução ou num incremento definitivo, e as perdas e ganhos do movimento invisível, que chamamos calor, irão produzir, por continuação, uma integração ou desintegração completa. Ao caírem os raios solares sobre uma massa fria, aumentando os movimentos moleculares que nela se verificam, e fazendo assim com que ocupe mais espaço, iniciam uma operação que, suficientemente prolongada, desintegrará a massa, fazendo com que passe ao estado líquido; e, se tem continuidade o processo, mais a desintegrará, fazendo com que passe ao estado gasoso. Inversamente, o volume de uma massa de gás diminui quando ele se resfria, ou perde movimento molecular, e se a perda continua o suficiente, tal diminuição de volume terminará em liquefação e até em solidificação. E, uma vez que não há em nenhuma massa uma temperatura absolutamente constante, temos à força que concluir que toda massa tende continuamente a uma maior concentração ou a uma maior difusão. Não apenas toda mudança consistente em adição ou subtração de matéria, em adição ou subtração de movimento molecular térmico entra nessa categoria ou classe geral: nela entram também todas as mudanças chamadas transformações e transposições. De fato, toda redistribuição interna que deixe as moléculas, ou, de uma maneira geral, as partes constituintes de uma massa, em posições relativas diferentes, tem que constituir uma etapa para a integração ou para a desintegração, com o fato de haver mudado para menos ou para mais o volume ocupado pela massa. Pois quando as partes são postas em movimento, umas em relação a outras, há infinitas probabilidades de que as distâncias médias que as separam do centro de gravidade de toda a massa não permaneçam as mesmas, do qual resulta que, seja qual for o caráter especial da redistribuição, sempre representará um passo para a integração ou desintegração. E será sempre assim, embora possa ao mesmo tempo ser algo além. § 96. Tendo fixado uma ideia geral dessas ações universais no seu aspecto mais simples, podemos agora examiná-las sob certos aspectos relativamente complexos. As mudanças que tendem para uma concentração ou para uma difusão maior, geralmente são mais complicadas do que o que acabamos de examinar. Até agora, nossa suposição era de que se verificava apenas uma ou outra das duas operações opostas; que uma massa ou perdia movimento e se integrava ou ganhava movimento e se desintegrava. Mas se é certo que toda mudança favorece a uma ou outra dessas duas operações, não o é que sejam as duas sempre independentes uma da outra. De fato, toda massa, todo conjunto de matéria, perde e ganha movimento de maneira contínua e simultânea. Todas as massas, desde o grão de areia até o astro, irradiam calor para outras massas, como absorvem o calor que elas irradiam; ao irradiar se contraem, se integram; ao absorver se dilatam, se desintegram. Em geral, essa ação dupla não produz efeitos apreciáveis nos corpos inorgânicos; apenas em alguns casos, como no das nuvens, por exemplo, produz rápidas e notáveis transformações, pois se dilatam e se desfazem, se a quantidade de movimento molecular que recebem do Sol e da Terra excede a que perdem por radiação para as superfícies próximas e para o espaço, e ao contrário, se tornam líquidas e caem sob forma de chuva, quando arrastadas para os altos e frios cumes das montanhas, irradiam sobre eles muito mais calor do que recebem, experimentando assim uma perda de movimento molecular e uma crescente integração do vapor de água que se liquidifica e até se solidifica se o resfriamento é suficientemente intenso. Assim, pois, a integração e a desintegração são sempre resultados de uma diferença de movimentos. Nos seres vivos, e mais marcadamente nos animais, essas operações opostas se verificam com a maior atividade, e sob diversas formas. Não apenas existe neles o que poderíamos chamar integração passiva da matéria, que resulta, nos seres inorgânicos de simples atrações moleculares, como há também uma integração ativa da matéria, sob a forma de alimentação. Analogamente à desintegração superficial passiva que experimentam os seres inanimados, se junta, nos animais, uma desintegração ativa, que eles próprios produzem, absorvendo em sua substância, certos agentes exteriores. Como os seres inorgânicos, os organizados comunicam e recebem passivamente movimentos; mas, além disso, absorvem e gastam ativamente o movimento latente dos alimentos. Mas apesar dessa complexidade nas duas operações e da imensa atividade de sua luta, há constantemente nos seres vivos um progresso diferente, seja para a integração, seja para a desintegração. Durante o primeiro período da vida de cada indivíduo, predomina a integração, ou o que chamamos crescimento. Segue depois uma época mediana, caracterizada não pelo equilíbrio das duas operações, mas pelo predomínio alternante de uma ou de outra. Termina o ciclo por um período em que começa a predominar a desintegração, até que impõe o término da integração e desfaz o que esta havia composto. Não há período em que a assimilação e as perdas se equilibrem e não exista crescimento nem decréscimo. Mesmo nos casos de crescimento de alguns órgãos enquanto há diminuição de outros, e em que diversas partes estão expostas de modo diferente às origens externas do movimento, de forma que umas se dilatam enquanto outras se contraem, a lei que por último enunciamos também se cumpre, pois há infinitas probabilidades para que essas mudanças opostas não se equilibrem, e não se equilibrando, como todas, o ser em questão se integra ou se desintegra. Sempre, e em todos os seres, as mudanças que se operam em um instante qualquer pertencem a uma ou a outra dessas duas operações. Assim, a história geral de todo ser pode ser sintetizada da seguinte forma: "Consiste na passagem de um estado imperceptível difuso a um estado perceptível concreto, e na volta a um estado difuso imperceptível", também podendo apresentar-se como uma arte de uma ou outra dessas mudanças cada parte da história de todo ser. Esse princípio deve ser, então, a lei universal da redistribuição da matéria e do movimento, que unifica por sua vez os grupos de mudanças distintas em aparência e a marcha de cada grupo. § 97. Essas operações, antagônicas em qualquer parte, que obtêm alternadamente sejam passageiros triunfos, sejam triunfos permanentes, as chamaremos evolução e dissolução. A evolução seria então, na sua forma mais geral e simples, integração da matéria, acompanhada da dissipação do movimento; a dissolução, pelo contrário, seria absorção de movimento e desintegração da matéria, por sua vez. Não preenchem completamente, tais denominações, todas as condições desejadas, ou melhor dizendo, se o último satisfaz bastante, o primeiro está sujeito a graves objeções. De fato, a palavra "evolução" tem outros significados, alguns incompatíveis e até em oposição ao que aqui lhe damos; em sentido vulgar significa desenvolvimento, expansão, manifestação externa etc.; aqui, mesmo que sempre implique no incremento de um todo, e por consequência expansão, desenvolvimento do mesmo, implicará também em que as partes desse todo passaram de um estado mais difuso a outro menos difuso, mais concentrado. A palavra em antítese, "involução" expressaria melhor a natureza da operação dos caracteres secundários de que vamos nos ocupar; mas vemo-nos obrigados a usar a palavra "evolução", apesar do que dissemos, para confrontá-la com a palavra "dissolução". Aquela é usada, na verdade, muito frequentemente, para designar, senão a operação geral que assim chamamos, para fazê-lo com muitas de suas variedades e circunstâncias secundárias, mas notáveis, que a acompanham; não devemos, então, usar outra palavra, bastando que tenhamos dado uma definição rigorosa do sentido ou significado que a ela atribuímos. Entenderemos, pois, por dissolução, como vulgarmente se entende, a absorção de movimento e a desintegração de matéria, e por evolução a operação inversa, ou seja, a integração de matéria e dissipação de movimento, pelo menos, podendo ser ainda alguma coisa mais, na maioria dos casos, como veremos a seguir. XIII Evolução simples e composta § 98. Quando as únicas forças em jogo são as que tendem a produzir a agregação ou a difusão, a história inteira de um agregado de matéria não engloba mais que os movimentos que aproximam ou separam os componentes do centro comum; não consistindo o processo da evolução, nesse caso, senão naquilo de que falamos no princípio do capítulo anterior, será ele simples. Além disso, no caso em que as forças produtoras dos movimentos para um centro comum excedam, de muito, a todas as demais, as mudanças que se juntam às de agregação serão relativamente insignificantes, e apenas será modificada a integração pelas outras espécies de redistribuição. Ou por ser muito pequena a massa que se integra, ou porque o movimento que recebe de fora, em troca do que perde, seja insignificante, a integração marcha com rapidez, e as forças incidentes, ainda que consideráveis, não produzirão efeitos apreciáveis na massa que se integra. Mas se, inversamente, é lenta a integração, seja porque o movimento interno da massa seja relativamente grande, seja porque, apesar da pequena quantidade de movimento de cada parte da massa, seu grande volume impeça a fácil dissipação desse movimento, seja, enfim, porque o movimento seja produzido mais rapidamente que absorvido, as outras forças originarão, na massa, efeitos bastante apreciáveis ao mesmo tempo em que as mudanças que constituem a integração serão acompanhadas de outras mudanças suplementares, e a evolução será composta. Tratemos de explicar as proposições que, com brevidade, acabamos de enunciar. § 99. Quando um corpo se move livremente no espaço, toda força que sobre ele venha a atuar produzirá uma mudança em seu movimento; por maior que seja sua velocidade, a menor tração ou a mais ligeira resistência lateral o fará desviar de sua trajetória, como se não houvesse possuído o movimento anterior, dirigindo-o para novo centro de atração ou distanciando-o do novo centro de repulsão ou resistência. O efeito de toda influência perturbadora se acumula em função direta do quadrado do tempo durante o qual exerce sua ação, suposta uniforme. Mas se o móvel está unido a outros corpos, cessará de poder ser posto em movimento por débeis forças incidentes; estas se gastam de outra maneira, como ocorre nos corpos sujeitos à gravitação e à coesão. O que acabamos de dizer das massas pode-se dizer com toda a verdade, salvo algumas restrições, das partes apreciáveis daquelas, e das partes inapreciáveis, ou moléculas. Como as partes sensíveis de uma massa e igualmente suas moléculas não estão, em virtude da coesão, perfeitamente livres, uma força qualquer não lhes imprimirá uma mudança de posição equivalente, como faria a um corpo móvel no espaço; uma parte dessa força será consumida em produzir outras mudanças. Mas ao passo que as partes, ou as moléculas vão estando mais fracamente ligadas entre si, as forças incidentes produzem naquelas reordenações mais e mais notáveis. Em um caso extremo, em que a integração esteja tão pouco adiantada que as partes apreciáveis e inapreciáveis são quase independentes, são elas quase por completo obedientes a toda nova ação, e, portanto, com o progresso da concentração, verificam-se novas redistribuições. Pelo contrário, onde as partes estão suficientemente próximas para que a atração ou a coesão sejam intensas, as ações externas, a menos que sejam muito fortes, carecem de potência para produzir reordenações secundárias. As partes firmemente unidas não mudam mais nem menos rapidamente suas posições relativas por obedecer a fracas influências perturbadoras; o mais que estas podem chegar a conseguir é modificar temporalmente os movimentos moleculares insensíveis ou diretamente inapreciáveis. Como poderíamos expressar essa diferença de um modo mais geral? Quando um conjunto de matéria está difuso ou debilmente integrado em uma grande extensão, é porque contém uma grande quantidade de movimento atual ou potencial, ou ambos de uma vez. Inversamente, quando uma massa está completamente integrada ou densa, é porque contém movimento interno muito escasso, pois a maior parte do que continha se dissipou ao verificar-se a integração. Por conseguinte, permanecendo iguais as demais circunstâncias, a quantidade secundária de mudança, na colocação das partes, que acompanha a mudança primária, que supõe essa colocação, será proporcional à quantidade de movimento que possua a totalidade dessas partes e a quantidade de redistribuição secundária que acompanhe a redistribuição primária será proporcional ao tempo durante o qual se conservou o movimento interno. E isso acontece, qualquer que seja a causa ou o modo de se verificarem tais condições: seja conservando-se o movimento interno porque as partes componentes sejam tais que demoram muito a se agregarem, seja porque as condições externas ou o volume total os impeça de comunicar seu movimento, seja porque direta ou indiretamente ganham mais movimento do que perdem; sempre será verdade que uma grande quantidade de movimento interno deve facilitar as redistribuições secundárias e que a conservação, durante muito tempo, de grande quantidade de movimento fará possível uma acumulação dessas redistribuições secundárias. Pelo contrário, se não existem essas condições, seja qual for a causa, serão opostos os resultados, seja por terem os componentes do agregado aptidão especial para integrar-se com rapidez, seja porque a pequenez do todo permite ou facilita a perda ou dissipação do movimento interno, seja, enfim, porque recebam pouco ou nada de movimento externo em troca do que comunicam; será também certo que a redistribuição primária que constitui sua reintegração não pode ir acompanhada de nada além de uma fraca redistribuição secundária. Para compreender bem essas proposições abstratas, será preciso torná-las concretas com exemplos; assim, antes de estudar a evolução simples e composta, determinada segundo o que acabamos de definir, examinemos alguns casos em que a quantidade de movimento interno muda artificialmente, observando os efeitos produzidos pela reordenação das partes. § 100. Convém começar por uma experiência familiar que comprove o princípio geral, sob uma forma fácil de ser compreendida. Quando se enche uma vasilha com pequenos objetos, e se agita, esses objetos se colocam de maneira a ocupar menos espaço; e se pode acrescentar: se entre esses objetos alguns existem cujo peso específico seja maior que o dos outros, irão ao fundo, em virtude das sacudidas. Qual o sentido geral desses resultados? Tínhamos um grupo de unidades solicitadas por uma força incidente, a atração terrestre; enquanto não agitadas, essa força nenhuma mudança provocou nas posições relativas das unidades; agitadas, perderam seu fraco agrupamento, para assumir outro mais forte, mais compacto, e as unidades mais pesadas começaram a se separar das demais. Ações mecânicas mais fortes, verificadas sobre partes de massa mais densas, produzem efeito análogo; assim, um pedaço de ferro que sai de uma fundição, cuja estrutura era então fibrosa, torna-se cristalina se submetida a uma série de vibrações. As forças polares exerci das pelos átomos, mutuamente, uns sobre os outros, não podem mudar uma colocação desordenada em outra ordenada enquanto aqueles estejam em repouso; mas chegam a operar essa mudança se os átomos entram em agitação interna. Analogamente se explica que uma barra de aço suspensa no plano do meridiano magnético, se repetidamente golpeada se imanta, atribuindo-se nova ordenação molecular produzida pela força magnética terrestre enquanto vibravam as moléculas. Há exemplos ainda mais surpreendentes, como aqueles em que, por adição ou subtração artificial desse movimento molecular que chamamos calor, damos a uma massa mais ou menos facilidade para reordenação de suas moléculas; como na têmpera do aço e no recozimento do vidro redistribuições internas são ajudadas por vibrações insensíveis, assim como as anteriormente citadas eram produzidas por vibrações sensíveis. Quando deixamos cair na água gotas de vidro fundido, como a parte externa de cada gota, bruscamente solidificada, não pode seguir o movimento de contração que o esfriamento contínuo do interior propicia, as moléculas adquirem tal estado de tensão que toda a massa se pulveriza, apenas fendido um trecho da superfície. Mas essa mesma massa, submetida durante um ou dois dias a um calor considerável, ainda que insuficiente para mudar sua forma e diminuir sensivelmente sua dureza, perde essa excessiva fragilidade, pois entrando as moléculas em maior agitação, as forças expansivas conseguem se equilibrar. Os efeitos do movimento invisível chamado calor se manifestam mais claramente quando o novo arranjo molecular é uma segregação visível. Isso ocorre nos precipitados químicos, que em geral se depositam muito lentamente nas soluções frias e um pouco mais rapidamente nas quentes, significando que quanto mais ativa é a vibração molecular em toda a massa, com maior facilidade se separam as partículas sólidas das líquidas. A influência do calor nas reações químicas é tão conhecida que chega e dispensar exemplos. Sejam sólidas, líquidas ou gasosas as substâncias em questão, não cabe dúvida de que a elevação de temperatura as ajuda a unir-se ou separar-se quimicamente, porque as afinidades, insuficientes para produzir a redistribuição dos átomos quando estão fracamente agitados, conseguem produzi-la quando a agitação atinge certa intensidade; bastará então aumentar esta, quando insuficiente para provocar a afinidade, fazendo as redistribuições atômicas mais facilitadas. Podem-se também tomar como exemplos alguns fatos de outra classe, que à primeira vista não parecem comprovar a lei geral. Sabe-se que a forma líquida, em igualdade de circunstâncias, implica em maior quantidade latente de movimento que a sólida, e é uma consequência dessa maior quantidade de movimento. Por conseguinte, um conjunto de matéria em parte sólida e em parte líquida contém maior quantidade de movimento que outro conjunto de igual massa de matéria apenas sólida. Logo, uma massa entre liquida e sólida, ou pastosa, será suscetível de uma redistribuição interna mais fácil, o que a experiência comprova. Uma mistura de substâncias dessemelhantes, diluída em água, permite enquanto a dissolução está patente, que se separem as substâncias pesadas das leves; essa separação se dificulta se a água se evapora e cessa completamente se a diluição se torna por demais concentrada. Mas mesmo tendo tomado o estado semissólido, no qual a gravidade sozinha não pode operar a separação de matérias, esta pode ser produzida por outras causas. Exemplo disso está no fato observado primeiramente pelo senhor Babbage, que é o seguinte: quando se guarda por um tempo, sem uso, a pasta de silício em pó e caulim, que se usa na indústria de porcelana, a mesma se espessa e não mais serve, pois as partículas de sílica se unem formando grãos maiores. Outro exemplo mais corriqueiro é o do sorvete de groselha, conservado por algum tempo, em que o açúcar se precipita em forma cristalina. Seja qual for a forma sob a qual exista um movimento latente de um agregado material, seja uma agitação total ou parcial puramente mecânica, sejam vibrações, como as produzidas pelo som, seja um movimento molecular absorvido do exterior, seja o movimento molecular constitutivo ou intrínseco de um componente líquido, o princípio ultimamente enunciado sempre se realiza; as forças incidentes operam redistribuições secundárias, facilmente quando o movimento latente é considerável e com mais dificuldade à medida que aquele diminui. § 101. Antes de prosseguir, convém revelar outra ordem de fatos que entram na mesma lei geral, mesmo quando parece não guardarem com ela parentesco algum. São os que nos oferecem certos contrastes de estabilidade química. Em geral, os componentes estáveis têm bastante fraco o movimento molecular, e vice-versa, a instabilidade é proporcional ao movimento latente, ou interno. O exemplo que, por ser conhecido, devemos citar primeiro, é o de crescimento da estabilidade química à medida que sobe a temperatura. Os compostos cujos elementos estão intimamente unidos, e aqueles cujos elementos estão fracamente unidos, se parecem no acontecer a elevação de sua temperatura, ou incremento das quantidades de movimento molecular que possuem; diminui a força de união dos seus elementos em tais termos que, a continuar crescendo o movimento molecular latente ou calorígero, chegará a decompor-se o composto químico considerado. Em outras palavras: a redistribuição de matéria, que constitui uma decomposição química simples, é tanto mais fácil quanto maior a quantidade de movimento latente do composto. O mesmo acontece nas decomposições duplas; dois compostos, AB e CD, misturados e conservados a uma baixa temperatura, podem não sofrer qualquer mudança, mesmo que seus elementos tenham afinidades cruzadas que tendem a produzir a dupla decomposição; mas esta se verificará, quase certamente, se se aquece a mistura o bastante ou se junta movimento molecular ao já existente, formando-se os compostos AC e BD, por exemplo, ou os AD e BC. Outro princípio químico, que supõe também a lei geral em questão, é o de que os elementos químicos que em seu estado livre e em temperatura normal conservam um movimento latente considerável, formam combinações menos estáveis que os elementos que, nas mesmas condições, possuem pouco movimento. Assim, sendo o estado gasoso o que contém mais movimento interno, e o sólido o que menos contém, a maioria dos compostos de elementos gasosos não podem resistir, sem se decompor, a temperaturas elevadas, ao contrário dos compostos de elementos sólidos, que costumam ser bastante estáveis, não se decompondo a não ser a temperaturas bastante altas, resistindo mesmo, em alguns casos, às mais altas temperaturas que somos capazes de produzir. Citemos também a relação entre a instabilidade e o número de elementos, que parece mostrar analogia com o anterior. Em geral, o calor molecular de um composto aumenta com a complexidade, ou seja, com o número de componentes. Portanto, devem os compostos mais complexos ser mais facilmente decomponíveis, o que de fato na prática se observa. De modo que as moléculas que contém muito movimento devido à sua complexidade, são as que mais facilmente experimentam a redistribuição de seus átomos, o que é exato, não só em relação à complexidade que resulta do número de elementos, como também em relação à união de muitos átomos dos mesmos, ainda que poucos elementos, ou de uma proporção atômica elevada, como se diz em linguagem química. A matéria tem dois estados sólidos, o cristaloide e o coloide; o primeiro, devido à união dos átomos ou moléculas individuais, e o segundo devido à união de grupos desses átomos ou moléculas individuais; por conseguinte, o primeiro é estável, sendo instável o segundo. Exemplos mais surpreendentes e notáveis nos dão os compostos do nitrogênio com outros simples, que têm bem marcados os caracteres de serem muito instáveis e possuir grande quantidade de movimento latente, pois se descobriu, não há muito tempo, que ao contrário de quase todos os demais simples, o nitrogênio absorve calor ao entrar em uma combinação, de modo que não só nela conserva o movimento interno considerável, próprio de seu estado gasoso natural, como ainda mais. Por isso mesmo, são tão instáveis os compostos do nitrogênio, muitos deles se decompondo com grande violência. Todas as substâncias explosivas são azotadas. A mais destrutiva talvez, o cloreto de nitrogênio, contém enorme quantidade de movimento molecular, soma daquelas de seus dois elementos gasosos, além da quantidade que, como dissemos, se junta ao nitrogênio qualquer que seja sua combinação. Evidentemente, esses princípios gerais de Química estão incluídos nos princípios muito mais gerais de Física que enunciamos; aqueles serviram para mostrar que estes são verdadeiros, não só com respeito às massas apreciáveis ou sensíveis como também com respeito às insensíveis, que chamamos moléculas, pois estas, como as massas que formam, se integram ou desintegram segundo o que ganham ou perdem de movimento, e são também mais ou menos suscetíveis de redistribuições secundárias, a par da primária, segundo contenham ou possuam mais ou menos movimento interno. § 102. Agora que esclarecemos suficientemente esse princípio, vejamos como, obedecendo a ele segundo as diversas condições, chega a ser a evolução simples ou composta. Se aquecermos uma porção de sal amoníaco ou de outro sólido volátil, ele se desintegra sob a ação do calor absorvido e passa ao estado de gás; este, porém, se em contato com uma superfície fria, por exemplo, perde o excesso de seu movimento molecular, volta a integrar-se e se deposita sobre essa superfície, sob a forma de pequenos cristais; temos aqui um caso de evolução simples. Nele, a concentração da matéria e a dissipação de movimento não se dão gradualmente durante períodos de grande duração, mas pela dissipação rápida do movimento que a reduziu ao estado gasoso, a massa em questão passa ao estado sólido. Resulta daí que, nesse caso, não se verifica redistribuição secundária nenhuma, paralela a essa redistribuição primária. No precipitado cristalino de uma solução, sucede aproximadamente o mesmo; há uma perda do movimento molecular, que impede, quando alcança certa intensidade, a integração ou solidificação, e quando essa perda chega a ser suficiente, verifica-se então a solidificação. Neste caso, como no anterior, não há período durante o qual as moléculas estejam livres e em vias de perder sua liberdade e não há também redistribuições secundárias. Pelo contrário, vemos o que acontece quando é lenta a concentração. Uma massa gasosa que perde seu calor e sofre em consequência uma diminuição de volume, está sujeita não apenas a essa mudança, que aproxima suas moléculas do centro comum, como também a outras mudanças simultâneas. De fato, a grande quantidade de movimento molecular que possui a dita massa gasosa, dando a cada molécula uma grande mobilidade, a coloca apta a obedecer facilmente a forças incidentes, sendo que as partes todas da massa têm diversos movimentos a mais além do que implica na integração progressiva; esses movimentos secundários, que chamaremos correntes, são às vezes tão importantes e notáveis, que chegam a relegar a segundo plano o movimento primário. Suponhamos que neste caso a perda de movimento molecular alcance o grau em que a condensação deve verificar-se, não sendo mais possível o estado gasoso. Mesmo ligadas mais fortemente as partes da massa já condensada, seguirão apresentando os mesmos fenômenos secundários que anteriormente. O movimento molecular e a mobilidade, próprios do estado líquido, permitem facilmente toda nova reordenação interna, e em consequência, junto com uma contração de volume, resultado de novas perdas de movimento, vão se verificar rápidas e notáveis mudanças nas posições relativas das partes, correntes locais produzidas por ligeiras forças perturbadoras. Suponhamos agora que a matéria em questão esteja formada de moléculas que não se cristalizam; o que acontecerá quando o movimento molecular novamente decrescer? O líquido vai se tornar mais denso, suas moléculas perderão a mobilidade grande que tinham e as transposições verificadas por forças incidentes fracas serão relativamente lentas e até podem cessar de todo. Mas a massa será ainda suscetível de ser modificada por forças incidentais mais intensas; assim, a gravidade a deformará se não estiver contida em todos os lados, será facilmente divisível etc. até que, suficientemente fria, se torne mais dura, isto é, menos suscetível de sofrer mudanças na posição relativa das partes, e estas não sejam capazes de nova redistribuição a não ser por efeito de ações violentas. Nas massas inorgânicas, as redistribuições secundárias acompanham a primária durante toda a concentração, se esta se efetua gradualmente. Nos corpos gasosos e líquidos, as redistribuições secundárias, rápidas e extensas que neles se operam, não deixam marcas, pois a excessiva mobilidade molecular impede a colocação fixa das moléculas, o que chamamos estrutura. Aproximando-se do estado sólido, se encontra o chamado estado plástico ou pastoso, no qual ainda podem efetuar-se as ditas redistribuições, embora com menos facilidade, e esta mesma dificuldade faz com que aquelas conservem certa persistência, que, contudo, não se fixa até que uma completa solidificação impossibilite nova redistribuição. Isto nos mostra, em primeiro lugar, as condições para que seja composta a evolução, e em segundo lugar, como sua composição não pode complicar-se a não ser em condições mais especiais do que aquelas abordadas até agora; pois, por uma parte, não é possível uma redistribuição secundária importante, a não ser que exista uma grande quantidade de movimento latente, e por outra parte, essas redistribuições só podem ser permanentes onde existam movimentos latentes muito fracos, donde surgindo essas condições opostas, parece impedida uma redistribuição secundária permanente em grande escala. § 103. Assim, estamos já em posição de examinar como essas condições aparentemente contraditórias se conciliam, e como, em consequência dessa conciliação, se verificam ou se tornam possíveis redistribuições secundárias permanentes de enorme extensão. Compreenderemos também a particularidade distintiva dos seres orgânicos, nos quais a evolução se efetua de forma enormemente complexa, e veremos que essa particularidade consiste em que a matéria neles se combina sob uma forma que possui uma enorme quantidade de movimento, ao mesmo tempo em que apresenta uma concentração muito avançada. De fato, não obstante sua consistência semissólida, a matéria orgânica contém movimento molecular feito latente por todos os meios que em separado examinamos. Consideremos seus diversos perfis constitutivos: três de seus quatro elementos principais são gasosos e cada um desses gases está provido de tão grande quantidade de movimento molecular que até há pouco tempo não podia ser liquefeito; por conseguinte, como as propriedades dos elementos, ainda que dissimuladas, não se perdem por completo nas combinações, é fora de dúvida que a molécula de proteína concentra uma grande quantidade de movimento em um pequeno espaço. E como muitos equivalentes desses elementos gasosos se unem para formar a molécula de proteína, será grande a quantidade de movimento relativo somada àquela dos átomos componentes. Outra característica da matéria orgânica é que suas moléculas se agregavam sob forma coloidal, e não sob a forma cristalina, para formar, segundo se acredita, como se fossem cachos animados de movimentos relativos mútuos, o que constitui um novo modo de fazer latente uma grande quantidade de movimento. Isso não é tudo: a maioria dos compostos que formam a matéria orgânica são azotados, e já sabemos que os compostos azotados, em vez de desprender calor ao se formarem, o absorvem; há neles, então, além de todo o calor que possuía o azoto gasoso, outra quantidade adicional, e todo esse calor está concentrado na proteína sólida. Sabemos também que os seres orgânicos possuem certa quantidade de calor livre ou sensível, e embora na maioria essa quantidade seja pouco considerável, em outros a temperatura corporal se conserva bastante superior à do meio em que vivem. Acrescentamos, por último, que existe uma grande quantidade latente de movimento na água embebida em toda matéria orgânica viva; tal movimento é o que, dando à água a grande mobilidade molecular que a distingue, dá também mobilidade às moléculas orgânicas nela em suspensão, e sustém o estado plástico, que facilita a redistribuição molecular. Estas proposições não permitem que se forme uma ideia completa do que distingue a substância orgânica viva de outras substâncias que têm análogas formas de agregação. Mas já se pode adquirir uma ideia mais aproximada, fazendo a comparação do volume ocupado por essa substância e aquele que ocupariam seus elementos, se não estivessem combinados, embora ainda não seja possível uma comparação rigorosa, no estado atual da Ciência, porque não é possível dizer que expansão produzir-se-ia se os compostos azotados pudessem se decompor sem adição de movimento externo. Só se pode dar solução satisfatória quanto aos elementos da água, que forma aproximadamente quatro quintos do peso de um animal. Se o oxigênio e o hidrogênio da água perdessem sua afinidade, ocupariam um volume vinte vezes maior do que a água de que provêm, supondo que não receberiam mais movimento molecular além daquele latente na água à temperatura do sangue. É atualmente impossível saber se a proteína em condições análogas se dilataria mais ou menos que a água; mas se se tem em conta a natureza gasosa de três de seus quatro elementos principais, a propriedade já mencionada dos compostos azotados, o grande número de átomos que há em cada elemento e a forma coloidal do composto, não se pode pensar que a expansão não seria considerável. Sem dúvida não estaremos muito longe da verdade se dissermos que se os elementos do corpo humano se separassem bruscamente, ocupariam mais de vinte vezes o espaço ocupado pelo mesmo. Assim, o caráter essencial da matéria orgânica viva, é o de possuir a uma só vez uma quantidade enorme de movimento latente e um grau de coesão que, por certo tempo, permite uma coordenação fixa. § 104. Comparando entre si os compostos orgânicos, encontraremos novas provas de que a possibilidade das redistribuições secundárias, que constituem a evolução composta, depende da conciliação dessas condições contrárias. Além do fato dos compostos orgânicos diferirem dos inorgânicos tanto pela quantidade latente de movimento quanto pela intensa coesão das partes que acompanha sua integração progressiva, as diferenças nas quantidades latentes de movimento em diversos compostos orgânicos vão sempre acompanhadas de diferenças na intensidade da redistribuição. O exemplo mais notável nos oferece o contraste da composição química de ambos os reinos orgânicos. Os animais se distinguem das plantas não apenas pela maior complicação de sua estrutura, como também pela maior rapidez com que neles se verificam as mudanças nessa mesma estrutura; e, sobretudo por conterem, em muito maior proporção compostos azotados - grandes depósitos, como sabemos, de movimento latente. Pode-se dizer o mesmo das diversas partes de um animal: se algumas delas, como as cartilagens, embora azotadas sejam quase inertes, outras há em que as redistribuições secundárias se operam ativamente, e são precisamente aquelas em que predominam as moléculas de composição mais complexa; pelo contrário, as partes que, como a gordura, por exemplo, estão compostas por moléculas relativamente simples, têm uma estrutura simples e não experimentam alterações importantes. Temos, pois, provas evidentes de que a continuação das redistribuições secundárias, que emprestam aos compostos orgânicos suas características mais notáveis, depende desse movimento latente na água que os compõe, e que em igualdade de circunstâncias, há uma relação direta entre a intensidade da redistribuição e a quantidade de água contida no tecido orgânico. Podemos classificar essas provas em três grupos. É sabido por todos que se detêm todas as mudanças que constituem a vida de uma planta privando-a de água; a redistribuição primária continua, uma vez que a plante se reduz, se resseca e cada vez mais se integra; a redistribuição secundária, contudo, cessa. O mesmo acontece com um animal, embora seja menos conhecido o fato, e certamente, como seria de se esperar, com muito menor diminuição de água. Alguns animais inferiores nos dão sobejas provas disso. Sabe-se também que dessecando os rotíferos, caem eles em um estado de morte aparente, e que os umedecendo como que ressuscitam. Quando os rios africanos habitados pelos Lepidosauria secam, esse animal permanece em estado letárgico no barro endurecido, até que o rio, na estação chuvosa, volte a correr. Humboldt relata que, durante a estiagem, os crocodilos dos Pampas jazem também como mortos debaixo da superfície calcinada do solo, abrindo através dela um caminho quando volta a umidade. O mesmo sucede, em geral, a todo organismo que se desenvolve; assim, a pequena planta recém-plantada tem muito mais seiva que a planta adulta, e a intensidade das transformações que nela se operam é muito mais considerável. Na parte do ovo onde começa a se manifestar a organização nos primeiros tempos da incubação, as mudanças do arranjo molecular são mais rápidas do que as que oferece uma parte igual do corpo do frango, quando fora do ovo. Como se deduz das respectivas predisposições para adotar hábitos e costumes, a estrutura de uma criança é mais suscetível de modificações que a de um adulto, e a deste mais que de um ancião; estes contrastes vão acompanhados de outros correspondentes nas densidades dos tecidos, uma vez que a proporção da água para a matéria sólida diminui à medida que cresce a idade. A mesma relação se revela nas diversas partes do mesmo ser orgânico. Em uma árvore, as mudanças mais rápidas de estrutura se verificam nos extremos dos ramos, onde a proporção de água sobre substâncias sólidas é maior, ao passo que as mudanças são muito lentas na substância densa e quase seca do tronco. Nos animais há um profundo contraste entre as mudanças rápidas que se verificam em um tecido brando, como o do cérebro, e as mudanças lentas nos tecidos secos, não vascularizados, como cabelos, unhas, chifres etc. Outros grupos de fatos provam também, com toda certeza, que a quantidade de redistribuição secundária varia em um organismo, coeteris paribus (Em latim, no original: em uma tradução livre, "mantidas as circunstâncias”), segundo a quantidade de movimentos latentes que chamamos calor. Para comprovar a proposição anterior, acorrem os contrastes dos diferentes organismos e dos diferentes estados de um mesmo organismo. De fato, regra geral, a complicação da estrutura e as proporções das mudanças de estrutura são menores no reino vegetal do que no reino animal, e em geral, o calor das plantas é também menor que o dos animais. A mesma relação aparece comparando os vários grupos do reino animal. Considerados em conjunto, os vertebrados têm temperatura mais elevada que os invertebrados, e têm maior complicação e atividades orgânicas. Nas subdivisões dos vertebrados, se observa que diferenças análogas no estado de vibração molecular correspondem a diferenças semelhantes no grau de evolução. Assim, os vertebrados de organização mais simples são os peixes, e sua temperatura não difere geralmente daquela do meio em que vivem; apenas um pequeno número a tem significativamente maior. Os répteis são também chamados animais de sangue frio, porque na realidade, como os peixes, não têm também poder para conservar uma temperatura superior ao seu meio ambiente; ocorre que, como esse meio, para a maioria dos répteis é o ar dos climas quentes, tem uma temperatura média superior à dos peixes, sendo também superior à daqueles, como também o é a complicação e a atividade de suas funções vitais. A mesma progressão ascendente prossegue entre os mamíferos e as aves, cuja maior complicação de estrutura e maior atividade vital que nos peixes e répteis correspondem fielmente a uma maior temperatura média, ou seja, maior agitação molecular interna. Contudo, os contrastes mais instrutivos são os que se observam em um mesmo ser orgânico a diferentes temperaturas. As plantas nos oferecem mudanças de estrutura cuja importância é função da temperatura. Se a luz é um agente principal das mudanças moleculares necessárias para a nutrição de um vegetal, não o é menos o calor, uma vez que no inverno há bastante luz, mas sendo insuficiente o calor, a vida vegetal fica como que suspensa, e, prova evidente de que a falta de calor constitui a única causa dessa suspensão, é a de que, na mesma estação as plantas cultivadas em estufa onde recebem menor quantidade de luz, dão apesar de tudo folhas e flores. As sementes, para as quais a luz do Sol é inútil, ou mesmo prejudicial, começam a germinar quando a volta das estações eleva o grau de agitação molecular, ou seja, a temperatura. Analogamente, é preciso dar mais ou menos calor aos ovos dos animais ovíparos, para que sofram as mudanças em virtude das quais se organizam. Os animais que hibernam são outra prova; a demasiada perda de calor atrasa extraordinariamente as transformações vitais, e mesmo entre os que não hibernam, como o homem, uma prolongada exposição ao frio produz sono, durante o qual, como se sabe, diminui a intensidade das transformações orgânicas, e se a diminuição de calor tem continuidade, esse sono conduz à morte, ou cessação daquelas. Está aí um conjunto de provas gerais e especiais. Os seres vivos se distinguem por fatos em mútua conexão: durante a integração experimentam mudanças secundárias notáveis, que outros seres não experimentam em tão grande escala, e possuem em igualdade de volume, imensamente mais quantidade de movimento, em vários modos latente. § 105. Terminamos o capítulo anterior dizendo que se a evolução é sempre uma integração de matéria e uma dissipação de movimento, na maioria dos casos é algo mais, e começamos esse comentário com uma sumária exposição das condições em que a evolução não é mais integrativa ou simples, e das condições em que é composta. Exemplificando esse contraste entre a evolução simples e a composta, e explicando como se produz, nos foi possível dar uma vaga ideia da evolução em geral, não podendo deixar de antecipar algumas ideias sobre seu exame completo, que faremos mais à frente. Mas sigamos adiante; uma ideia geral, preliminar, compreensiva, mesmo que vaga e incompleta é sempre útil e até necessária para servir de introdução esclarecedora ao desenvolvimento de um conceito completo. Não é fácil fazer compreender de chofre uma ideia complexa, expondo seguidamente suas partes constituintes nas suas formas precisas, pois se não existe de antemão o plano geral no espírito do ouvinte, não existirá a desejada combinação das várias partes constituintes. Essa combinação não é possível se não sabe o leitor ou ouvinte como ela se processa entre aquelas partes, e sabê-lo exige muito trabalho, se já não está presente uma ideia geral do objeto, cuja ideia complexa se deseja adquirir de maneira completa e exata. Assim, pois, tudo o que se falou nos capítulos anteriores sobre a natureza da evolução não é, sem dúvida, nada mais que um ligeiro esboço, ainda que venha a ser muito útil para compreensão das mútuas relações entre as diversas partes do imenso quadro em que este esboço irá se desenvolver. Não podemos esquecer que a história completa de toda existência apreciável está reduzida à sua evolução e à sua dissolução e que, sob qualquer aspecto considerado, a evolução é uma integração ou condensação de matéria e uma dissipação de movimento, acompanhada, no mais das vezes, de outras transformações acessórias de matéria e movimento. Portanto, devemos esperar contemplar em toda evolução a redistribuição primária, constituindo, se é rápida, agregados simples, e se é lenta, agregados compostos, porque essa lentidão permite a acumulação e a conversão em permanentes, dos efeitos das redistribuições secundárias. § 106. É muito difícil seguir com fidelidade transformações tão vastas, tão variadas e tão complexas como as que vamos estudar, pois além dos fenômenos concretos de todas as ordens, temos que nos ocupar de cada grupo de fenômenos sob vários aspectos, cada um dos quais, isolado dos outros, não tem como ser compreendido nem ser estudado ao mesmo tempo em que estudamos os demais. Já sabemos que durante a evolução se efetuam duas grandes classes de mudanças, e logo veremos que uma dessas classes pode sofrer divisões. Tal é o encadeamento de todas essas mudanças, que não pode ser explicada uma ordem ou uma classe de mudanças sem recurso direto ou indireto a outra classe ainda não explicada. Não existe, pois, outro remédio senão tirar o melhor partido possível dessa difícil posição. fixado esse ponto de vista, vamos consagrar o capítulo seguinte ao estudo detalhado da evolução sob seu aspecto principal, contentando-nos em reconhecer de maneira tácita seus aspectos secundários, quando a exposição assim o exigir. Por outro lado, os dois capítulos seguintes tratarão, cada um sob um aspecto, das redistribuições secundárias, não tratando da primária, a menos que tal seja inevitável. Em outro capítulo trataremos de um terceiro caráter das redistribuições secundárias, caráter esse mais notável que os outros dois. XIV A lei da evolução § 107. A dedução deve agora ser comprovada com a indução. Todas as existências sensíveis devem, de um ou de outro modo, como foi dito, e em tal ou qual instante, chegar a possuir suas formas concretas por um processo de concentração, e citamos fatos que comprovam essa necessidade. Mas não teremos obtido o conhecimento unificado que constitui a filosofia, até que saibamos como as existências de todas as ordens manifestam uma integração progressiva de matéria. Vamos então à busca da prova direta de que o Cosmo em geral obedece a essa lei, e para tal estudaremos tanto quanto permitam a observação e o raciocínio, os fenômenos que constituem o objeto da astronomia e da geologia, e os que formam a matéria de estudo da biologia, a psicologia e a sociologia. Ocupar-nos-emos, preferencialmente, das manifestações da lei da evolução, as mais complexas até aqui reveladas. Estudando sucessivamente as várias ordens de fenômenos, atentaremos menos ao princípio de que cada ser sofreu ou sofre ainda sua integração, do que ao princípio de que em cada parte mais ou menos distinta de cada ser a integração esteve ou está se processando. Em vez de seres simples e de seres cuja complexidade mentalmente se simplifica, de propósito, para efeito de estudo, vamos nos ocupar dos seres tal qual existem, compostos em sua maioria de numerosos e variados elementos combinados de muitas maneiras; seguiremos suas transformações sob cada uma de suas formas, observando a passagem da massa de um estado difuso para outro mais concreto, e a de todas e cada uma das partes da massa por uma transformação semelhante, durante a qual assume cada parte uma individualidade própria, e se individualizando, essas partes mais combinam entre si. § 108. O sistema sideral, por sua forma geral, por seus grupos de estrelas, que oferecem todos os graus de densidade, por suas nebulosas, nas quais se veem todos os graus de condensação, por qualquer aspecto com que se considere, nos faz pensar que em todo lugar se opera a concentração, no conjunto ou nas partes. Supondo que a matéria do sistema sideral tenha estado e ainda esteja submetida à gravitação, se explicam os grandes grupos de que está ele composto: desde as massas sólidas até os grupos de corpos rarefeitos que não se podem distinguir a não ser com os telescópios mais potentes; desde as estrelas duplas até os agregados mais complexos, como as nebulosas. Passemos ao Sistema Solar, sem mais insistir no sideral, para o qual basta a prova que já apresentamos. Admitir a teoria tão aceitável de que o Sistema Solar provém de uma nebulosa, é admitir que tenha se formado por integração de matéria e perda concomitante de movimento. A passagem do Sistema Solar de um estado incoerente e difuso em uma grande extensão a um estado sólido e coerente constitui um exemplo claro e simples do primeiro aspecto da evolução. Segundo a hipótese nebular, ao mesmo tempo em que se efetuava a concentração gradual do Sistema Solar em todo seu conjunto, tinha lugar também outra concentração, em cada um dos elementos parcialmente independentes. A matéria de cada planeta, metamorfoseando-se sucessivamente em anel nebuloso, esferoide gasoso, esferoide líquido e por último, até agora, em esferoide solidificado exteriormente, produziu os principais traços da integração do Sistema Solar. O mesmo acontece com cada satélite. Além disso, ao mesmo tempo em que a matéria do conjunto do sistema, como também a de cada um de seus elementos parcialmente independentes, se integrava, se efetuava também outra integração revelada pelo crescimento da complexidade de combinações entre as partes. Assim, os satélites de cada planeta formam com ele um grupo em equilíbrio, os planetas e seus satélites formam com o Sol um grupo mais complexo, cujas partes estão mais fortemente ligadas do que estavam na nebulosa de que vieram. Mesmo abrindo mão da hipótese nebular, o Sistema Solar nos proporciona atualmente provas de sua integração. Sem ter em conta a matéria cósmica meteórica que se precipita continuamente sobre a Terra e muito provavelmente sobre os outros planetas e sobre o Sol, em grande quantidade, há outros dois fatos já comprovados: um, o apreciável atraso dos cometas pelo éter e o atraso provável dos planetas, atrasos que, com o tempo, devem fazer cair sobre o Sol estes astros; e outro, a perda contínua do movimento solar sob a forma de calor radiante, perda que acompanha a permanente integração da sua massa. § 109. Passemos agora da que poderíamos chamar evolução astronômica para a evolução geológica. A história da Terra, como revelada pela estrutura de sua crosta sólida, nos leva a considerar esse estado de fusão de que fala a teoria nebular, e já vimos (§69) que os fenômenos geológicos ígneos são efeitos da consolidação progressiva da substância terrestre e da perda de movimento latente que a acompanha. Apresentemos alguns exemplos dos efeitos gerais e locais desses grandes fatos. Abster-nos-emos do exame do período durante o qual os elementos mais voláteis, atualmente sólidos, estavam, em virtude da grande temperatura, em estado gasoso, e começaremos pela época em que, sendo a temperatura da terra superior a cem graus centígrados, a massa imensa de água que hoje recobre 3/5 de sua superfície existia ainda em estado de vapor. Esse enorme volume de líquido desintegrado se integrou quando a dissipação do movimento latente da Terra fez baixar sua temperatura a menos de cem graus, deixando, contudo, uma parte ainda não integrada, parte bastante reduzida da massa primitiva e que seria ainda muito menor se não absorvesse parte do movimento molecular que o Sol nos comunica. A formação da crosta terrestre é outro exemplo de análogos efeitos e causas. Nela vemos uma delgada película sólida, fendida em muitos lugares e continuamente agitada pela matéria fundida e gasosa que recobre, ir-se fazendo tão forte e espessa que só pode ser rompida ou removida em um ou outro ponto, e em pequena escala, relativamente, pelas forças perturbadoras. Essa solidificação exterior ou superficial é um exemplo da concentração que acompanha a perda de movimento latente; a diminuição de volume, que atestam as rugas que a crosta terrestre exibe, é outro exemplo. Em paralelo a essa integração geral, outras parciais se verificaram. Um esferoide em fusão, recoberto simplesmente por poucas matérias sólidas, não poderia apresentar senão pequenas ilhas e pequenas massas de água; para que as diferenças de nível alcancem uma magnitude que permita a formação de vastas ilhas e de grandes mares, é necessária uma camada de alguma espessura e rigidez. Assim, apenas depois que a crosta sólida terrena se espessou suficientemente, se formaram os continentes separados pelos oceanos. O mesmo aconteceu às grandes montanhas: o colapso de uma crosta delgada sobre seu conteúdo, que prosseguia se resfriando e se contraindo, não poderia produzir senão cristas pouco elevadas; seria preciso uma crosta já de espessura e resistência relativamente grandes para que fosse possível a formação das grandes cadeias de montanhas. De modo semelhante também se formaram os terrenos chamados sedimentares: em épocas primitivas, a decomposição não atuava a não ser sobre superfícies pequenas, e, portanto, só produzia depósitos de extensão e espessura pouco consideráveis. A reunião dos depósitos em imensos estratos e destes em vastos terrenos implica na existência de mares e de continentes, como também na de extensas e profundas elevações e depressões; logo também as integrações dessa ordem devem ter se tornado mais pronunciadas à medida que se tornava mais espessa a crosta terrestre. § 110. Já sabemos que a evolução orgânica é, na sua essência, a formação de um agregado pela incorporação contínua de matéria, antes espalhada por um espaço bem maior. Basta recordar que cada planta cresce concentrando em si elementos difundidos em uma grande extensão, a maioria deles gasosa, e que todo animal se nutre assimilando esses elementos que encontra nas plantas ou em outros animais. Mas devemos completar essa ideia geral da vida, fazendo ver que as histórias da planta e do animal nos confirmam que neles se verifica a mesma operação fundamental, e com mais força ou intensidade nos primeiros do que nos últimos estágios. De fato, o embrião microscópico de cada organismo permanece muito tempo sem experimentar outras mudanças que não aquelas originadas pela absorção e a nutrição; as células implantadas no tecido do ovário não se convertem em óvulos a não ser crescendo a expensas das matérias adjacentes; mas depois da fecundação tem início uma evolução mais ativa, cujo caráter mais notável é a atração para o centro germinativo de toda a substância do óvulo. Mas neste caso, devemos dirigir nossa atenção para as integrações secundárias que habitualmente acompanham a primária; vamos notar que, em vez do crescimento das massas, verifica-se uma concentração e uma consolidação da matéria sob a forma de partes distintas umas das outras, e uma combinação cada vez mais íntima dessas partes. Por exemplo, no embrião dos mamíferos, o coração, que não é, no princípio, senão um grande vaso sanguíneo pulsante, torce pouco a pouco sobre si mesmo e se integra. As células da bílis, que constituem o fígado rudimentar não apenas logo se isolam da parede do intestino, onde se alojavam, como também, se acumulando, integram-se sob forma de um órgão novo. Os segmentos anteriores (superiores, no caso humano) do eixo cérebro-espinhal, que a princípio formavam com os outros um todo contínuo, dos quais não se distinguiam a não ser por seu maior volume, se unem gradualmente, e ao mesmo tempo a cabeça, produto dessa união, forma uma massa muito distinta do restante da coluna vertebral; uma coisa semelhante acontece nos demais órgãos e no corpo inteiro, que se integra de maneira parecida a um lenço que contém objetos, que dobramos e cujas pontas amarramos, para fazer uma trouxa com o que contém. Mudanças semelhantes se produzem desde o nascimento até a velhice. No homem se opera o endurecimento do tecido ósseo: na infância, pela reunião das partes de um mesmo osso, solidificadas em volta de vários centros, e na velhice, pela reunião de ossos diferentes na sua origem. Os apêndices vertebrais se unem com o corpo da vértebra respectiva, não terminando essa mudança antes dos trinta anos. Ao mesmo tempo, as apófises, formadas separadas dos ossos a que pertencem, a eles se unem por transformações ósseas das que antes as ligavam. As vértebras que compõem o sacro, separadas até os dezesseis anos, aproximadamente, começam então a unir-se, estando completamente unidas ao fim de outros dez ou doze anos. A união das vértebras do cóccix se dá ainda mais tarde, e outras soldaduras ósseas não se realizam até uma idade bem mais avançada. Digamos, finalmente, que o aumento da densidade e da dureza dos tecidos, que continua por toda a vida, nada mais é que a formação de uma substância no seu maior grau de integração. Podemos seguir, em todos os animais, as diversas espécies de mudanças que acabamos de mostrar como exemplo do desenvolvimento do corpo humano. Milne Edwards e outros cientistas descreveram o processo de desenvolvimento, que consiste na união das partes similares, primeiramente separadas, fazendo suas observações em vários invertebrados; mas não observaram um fato essencial no desenvolvimento orgânico, a integração local, que é, contudo, o fato de maior importância, e que examinaremos, não apenas nas fases sucessivas de um mesmo embrião, mas também na escala ascendente do reino animal. Será, pois, um estudo ao mesmo tempo longitudinal e transversal, o que faremos. O grupo dos articulados nos apresentam abundantes exemplos da integração longitudinal. Os seres mais inferiores desse grupo - os miriápodes e os vermes - estão caracterizados, em sua maioria, pelo grande número de segmentos de que estão formados, chegando em alguns casos a centenas. Mas nas classes superiores - insetos, crustáceos e aracnídeos - o número de segmentos desce para vinte e dois, treze e às vezes menos; e essa redução vai acompanhada de um encolhimento ou integração de todo o corpo, que alcança seu limite no caranguejo e na aranha. Quando se estuda o sentido dessas diferenças, se vê nelas a expressão geral da evolução, se atentamos para o fato de serem análogas às que apresentam as diversas idades do desenvolvimento de cada articulado. No caranguejo do mar, a cabeça e o tórax formam um todo composto de peças soldadas, separáveis no embrião. De maneira análoga, a mariposa apresenta segmentos mais intimamente unidos que a crisálida, tanto que, às vezes, fica difícil distingui-los. Os vertebrados, em suas diversas classes, oferecem também exemplos da integração longitudinal. Na maior parte dos peixes e nos répteis que carecem de extremidades, as vértebras não se soldam. Na maioria dos mamíferos e nas aves, um número variável de vértebras se solda para formar o sacro; nos macacos antropomorfos e no homem, as vértebras caudais perdem sua individualidade para formar o cóccix. O que chamamos integração transversal se manifesta claramente no desenvolvimento do sistema nervoso dos articulados. Deixando de lado os tipos inferiores, cujos indivíduos não apresentam gânglios distintos, e observando que os articulados inferiores e as larvas dos superiores têm uma dupla cadeia de gânglios que vai de um extremo a outro do corpo e que nos mais perfeitos essa dupla cadeia se reduz a uma única, o senhor Newport descreveu o curso dessa concentração nos insetos e Rathke a estendeu aos crustáceos. No Astacus fluviatilis (ou lagostim) existe na primeira idade um par de gânglios separados em cada anel; depois dos quatorze pares correspondentes à cabeça e ao tórax, os três pares situados diante da boca se soldam formando o encéfalo, ou gânglio cefálico. Nos seis primeiros pares seguintes, se unem os dois gânglios de cada par na linha média, continuando separados os dos cinco pares restantes. Dos seis gânglios duplos, formados por aquela união, os quatro anteriores se soldam em uma só massa e os outros dois em outra, para logo se unirem essas duas massas numa só. Em tudo isso vemos a marcha simultânea da integração longitudinal e transversal, sendo elas ainda mais notáveis nos crustáceos superiores. Os vertebrados nos proporcionam bons exemplos da integração transversal no desenvolvimento do aparelho reprodutor. Os mamíferos inferiores - os monotremados - estão providos, como as aves, com quem têm muitas analogias, de ovidutos, que se dilatam em seu extremo inferior para formar cavidades, das quais cada uma desempenha, ainda que de maneira imperfeita, as funções de um útero. Nos marsupiais há na linha média uma aproximação maior dos dois sistemas laterais de órgãos, pois os ovidutos se tocam sem soldar-se na linha média, de modo que as cavidades uterinas formam um verdadeiro útero duplo. Subindo na série de mamíferos monodelfos, observa-se cada vez mais completa essa integração lateral dos órgãos reprodutores. Assim, em muitos roedores o útero está dividido em duas metades laterais por um tabique, enquanto em outros forma um só e verdadeiro útero, como na mulher. Este órgão se desenvolve à custa das trompas laterais, nos herbívoros superiores e carnívoros, encontrando-se o útero ainda fendido no seu vértice em alguns quadrúmanos inferiores. (Ver Principies of Comparative Physiology, de W.B. Carpenter, p. 617) Para completar o estudo das integrações orgânicas, nos resta assinalar alguns casos que não se apresentam nos limites de um só organismo e que não implicam a não ser indiretamente em concentração de matéria e perda de movimento; aquelas integrações, enfim, em virtude das quais dependem os organismos uns de outros. Podemos classificar essas integrações em dois grupos: as que se verificam em uma só espécie e as que têm lugar entre espécies distintas. Os animais têm a tendência a viver associados, e quando essa tendência é muito marcante, não se limitam a juntar-se, vindo a formar diversos graus de combinação. As feras que caçam em conjunto usam sentinelas, obedecem a uma chefia, formam, em resumo, uma espécie de sociedade cooperativa. Nos mamíferos e aves polígamos, essa dependência, ou união, é mais íntima; algumas sociedades de insetos apresentam tal consolidação que seus indivíduos não têm como viver isolados, fora delas. Por último, para ver a mútua união e dependência de todos os organismos em geral, ou seja, a contínua integração do reino orgânico visto em seu conjunto, basta lembrar: primeiro, que todos os animais vivem direta ou indiretamente das plantas e estas absorvem o ácido carbônico que aqueles exalam; segundo, que os animais carnívoros não poderiam existir sem os herbívoros, e terceiro, que um grande número de vegetais não pode reproduzir-se sem o auxílio dos insetos. Não entraremos nos detalhes dessas belas conexões complexas, que Darwin apresentou; basta dizer que flora e fauna de cada região constituem um todo tão bem integrado, que muitas espécies perecem se trasladadas para outra região. Devemos ainda observar que essa integração também cresce ao mesmo tempo em que a evolução orgânica progride. § 111. Os fenômenos estudados no parágrafo anterior servem de introdução a outros de ordem superior, com os quais, a rigor, deveriam estar agrupados, e que chamaremos, na falta de nome mais apropriado, superorgânicos, uma vez que os corpos inorgânicos nos apresentam determinados fatos; os orgânicos oferecem outros, mais complicados, na maioria dos casos; mas há ainda outros fatos que nenhum ser organizado oferece isoladamente dos demais seres, mas que resultam das ações que esses seres, vivos e reunidos ou associados, exercem uns sobre os outros ou sobre seres inorgânicos. Mesmo que os fenômenos dessa ordem estejam já esboçados nos organismos inferiores, não se revelam plenamente a não ser nas sociedades humanas, e podemos então considerá-los como próprios da vida social. Os organismos sociais nos oferecem numerosos e claros exemplos de mudanças integrativas: nas sociedades selvagens a união de famílias errantes em numerosas tribos, como os bosquímanos; a sujeição das tribos fracas pelas fortes e a subordinação do chefe vencido ao chefe vencedor. As combinações resultantes das conquistas estão continuamente sendo feitas e desfeitas nas tribos primitivas, sendo mais permanentes, relativamente, nas raças civilizadas. Se estudarmos os períodos percorridos por nossa nação ou outras vizinhas, vemos que essa unificação se repete periodicamente cada vez em maior escala e ganha em estabilidade. Primitivamente, os agrupamentos de jovens e seus filhos sob os anciãos; e em consequência, dos vassalos sob seus senhores; depois a subordinação dos nobres inferiores aos duques e condes; depois a instituição do poder real sobre o poder daqueles - são exemplos de subordinação, de crescente integração. A operação de agregação das pequenas enfiteuses em feudos, estes em províncias, estas em reinos, e estes, se limítrofes, em impérios, se completa lentamente, pela destruição das linhas de limites antigas. Se consideramos as nações europeias como formando um todo, em sua tendência a contrair alianças mais ou menos duradouras, nas restrições postas às influências exercidas pelos governos uns sobre os outros, no sistema de submeter à decisão de um congresso os conflitos internacionais e na supressão das barreiras comerciais e facilitação das comunicações, vemos os princípios de uma federação europeia, ou seja, uma integração muito mais vasta que todas as existentes. Ocorre que a lei não se manifesta apenas nessas uniões de grupos com grupos, mas também nas reuniões que se localizam dentro de cada grupo, à medida que sobem à organização superior. Essas reuniões são de duas ordens, umas reguladoras e outras operativas. O que diferencia uma sociedade civilizada de outra bárbara é o estabelecimento das classes reguladoras: dos homens de Estado, administradores, eclesiásticos, militares, legisladores etc., que ao mesmo tempo em que formam esses grupos distintos, ou subclasses, constituem uma classe geral, certa comunidade de privilégios, de nascimento, de educação, de relações sociais. Em algumas sociedades completamente desenvolvidas, segundo certo padrão, a consolidação em castas e a união das castas superiores que se separam das inferiores chegaram a ser bem consolidadas e não podem deixar de sê-lo, a não ser pelas metamorfoses sociais produzidas pelo regime industrial. As integrações que acompanham a organização industrial ou operativa não apenas pertencem à classe das integrações indiretas como são também integrações diretas, acumulações físicas. Há integrações consecutivas, que provêm do simples crescimento das partes próximas desempenhando funções análogas, como, por exemplo, a união de Manchester com seus arrabaldes, que fabricam tela de algodão. Outro caso de integração se verifica quando, em vez de várias manufaturas de uma mesma mercadoria, uma só monopoliza a fabricação, atraindo a todos os operários e fazendo com que as outras, em decadência, fechem as portas; assim, os distritos de Yorkshire, onde se fabricam tecidos, se povoam às expensas daqueles do oeste inglês; assim também, Straffordshire absorve as manufaturas oleiras, tendo entrado em decadência aquelas que antes floresciam em Derby. Há integrações que se processam no seio de um mesmo povoado; por exemplo, a concentração das livrarias do Paternoster Row, dos cerealistas em Mark Lane, dos engenheiros civis em Great George Street, a dos banqueiros na City. Outras combinações industriais consistem não na aproximação ou fusão das partes, mas no estabelecimento de centros que servem de união a essas partes; exemplo: os escritórios de compensação dos bancos e das estradas de ferro. Há também outra espécie de concentração, a que consiste em associações de indivíduos da mesma profissão, como a bolsa para os comerciantes e os corpos de engenheiros civis, de agricultores etc. Parece que chegamos ao término. Seguimos a lei até chegar às sociedades humanas, e não parece possível seguir além. Não é assim, contudo: entre os fenômenos denominados superorgânicos, vários grupos existem que oferecem exemplos bem interessantes da lei. Não se pode dizer, sem dúvida, que a evolução dos vários produtos da atividade humana proporciona um exemplo direto da integração da matéria e da dissipação do movimento, mas podem fazê-lo alguns exemplos indiretos. De fato, os progressos da linguagem, das ciências, das belas-artes e das artes industriais constituem um registro objetivo de mudanças subjetivas. As mudanças de estrutura nos seres humanos e os concomitantes nas aglomerações humanas geram mudanças correlativas nas criações do homem. Da mesma maneira que no que é selado notamos a mudança do selo, na integração da linguagem, da Ciência e das Artes vemos o reflexo da integração progressiva de certos agrupamentos da estrutura humana, seja no indivíduo, seja na sociedade, consagremos um parágrafo a cada grupo. § 112. Nas raças menos civilizadas, os nomes polissilábicos usados para designar objetos corriqueiros, bem como o sentido descritivo dos nomes próprios, nos dizem que as palavras usadas para designar as coisas menos familiares estão compostas das palavras usadas para designar as coisas mais familiares. Observa-se alguma vez essa faculdade de combinação em seu primeiro período, quando as palavras componentes se unem temporalmente para designar um objeto sem nome, e não se unem para sempre, por não ser bastante frequente seu uso. Mas na maioria das línguas inferiores, a aglutinação, como é chamada essa operação, foi levada bastante longe, para dar estabilidade às palavras compostas; há, então, uma verdadeira integração. Para apreciarmos quão fraca é essa integração, comparada com a das línguas bem desenvolvidas, é necessário comparar o comprimento das palavras compostas, usadas para nomear coisas e atos frequentes, e a facilidade de separar seus elementos. Há na América do Norte idiomas que proporcionam belos exemplos. Em um vocabulário do idioma ricaree, composto de cinquenta nomes de objetos comuns, que em inglês são todos monossilábicos, não há nenhum que o seja. Na língua pawnee, cuja família é a mesma do ricaree, não há também senão duas palavras monossilábicas entre as correspondentes às cinquenta citadas. Assim, cão (dog) e arco (bow), chamam-se, em pawnee, ashakikisch e teeragish; a mão (hand) nomeia-se iksheere, olho (eye) keereekoo, dia (day), é shakoorooeeshairet, e diabo (devil) tsaheekshkokoomiwah; as palavras dissílabas a pentassílabas chegam a ter sete sílabas no idioma ricaree. A história da língua inglesa mostra que uma grande extensão das palavras familiares está associada a um grau de desenvolvimento inferior no idioma, e que quando uma língua imperfeita tende à perfeição, há uma verdadeira integração que converte as palavras polissílabas em bi e em monossílabas. A palavra anglo-saxã steorra se converte, com o passar do tempo em star, mona em moon e nama em name. O semissaxão nos permite seguir passo a passo a transição. Sunu se converte em semissaxão sune e em inglês son; o e final de sune é a forma pela qual se eliminou o u primitivo. Na passagem do plural anglo-saxão formado pela sílaba distinta as ao plural inglês formado pela união da consoante s, se observa também a operação que estudamos: smithas se transforma em smiths e endas passa a ser ends, mostrando a progressiva aglutinação. Analogamente, na supressão da terminação an do infinitivo dos verbos, como, por exemplo, a transição de cuman, anglo-saxão para cumme semissaxão, e o come inglês. Desde que se formou o idioma inglês, a integração prossegue lentamente. No tempo da rainha Elizabeth os verbos ainda tomavam, no plural a desinência -en, e dizia-se we tellen, em vez de we tell, como agora se fala, mas ainda se ouve aquela forma primitiva em alguns cantões rurais. Do mesmo modo, a terminação -ed, do tempo passado, uniu-se à palavra que modifica; burn-ed converteu-se em burnt; na pronunciação, e muitas vezes mesmo na escrita, o t final substituiu a sílaba ed, e não se vê conservada a flexão antiga, a não ser nos casos em que se conservam as formas tradicionais, como no serviço religioso. Também vemos que as vogais compostas se reduziram, em muitos casos, a vogais simples; assim, em bread (pão) o e e o a são de sons distintos, e a prova é que em distritos em que se conservam os costumes antigos se pronunciam distintamente essas duas vogais; o comum é, contudo, pronunciar-se bred, como ocorre em outras palavras usuais. Vemos, finalmente, que quando a frequência da repetição chega a seu máximo, a contração se faz mais pronunciada; por exemplo: lord (senhor), primitivamente laford, se converte em lud, no dizer dos advogados, e o que é mais notável, God be with you (Deus esteja convosco), se converte em Good bye. E não apenas se integram os idiomas pela abreviação das palavras, como também por sua coordenação sintática. As línguas inferiores, que apenas possuem substantivos e verbos sem inflexão, não permitem essa união íntima dos elementos de uma proposição, união verificada em outras línguas seja por inflexão, seja por palavras consecutivas; aquelas merecem o nome de línguas incoerentes; assim é a língua chinesa, cujos volteios podemos imitar, se em vez de dizer vou a Londres, os figos vêm da Turquia, o Sol brilha através do ar, dizemos vou fim Londres, os figos origem Turquia, o Sol brilha passagem ar. Há uma prova muito clara da transição por aglutinação dessa forma "aptótica" à forma em que as conexões das palavras se expressam pela adição de algumas palavras inflexíveis. "Na língua chinesa - escreve o senhor Latham - as palavras separadas mais usuais, que expressam relações, podem converter-se em afixos ou prefixos. As numerosas línguas inflexíveis podem dividir-se em duas classes: em uma as inflexões não parecem ter sido palavras separadas, e na outra se pode demonstrar que primitivamente o foram." Em consequência, as línguas analíticas chegam a ser, pelo uso cada vez mais constante dos adjuntos, essas línguas aglutinadas, em que se pode notar a separação primitiva das partes inflexionais; e dessas nascem, pelo uso ainda mais frequente das palavras, as línguas amalgamadas, em que as partes inflexionais não podem ser reconhecidas. Em socorro dessa conclusão vem um fato indiscutível: é pela reunião de palavras de línguas amalgamadas que se formaram as línguas sintéticas, de que o inglês é um exemplo. Nestas desapareceram as inflexões quase que totalmente, por efeito de uma nova consolidação, e se introduziram novas palavras para expressar as relações das primeiras (verbos auxiliares que modificam o sentido dos substantivos). Como as inflexões do anglo-saxão se perderam pouco a pouco, por contrações, no desenvolvimento da língua inglesa, as do latim desapareceram, ainda que não completamente, na língua francesa, e não podemos, pois, negar que a construção gramatical se modifica por integração; e quando vemos tão claramente, como tão bem explica a integração, os primeiros ensaios de estrutura gramatical, não podemos duvidar de que essa operação desempenhou importante papel, desde o início. Outra espécie de integração se efetua, ao mesmo tempo, e se regula pela que acabamos de estudar. Vimos que as línguas analíticas são por necessidade incoerentes, e que nelas não se podem ligar os elementos de uma proposição para formar um todo; mas à medida que em seu desenvolvimento se formam palavras com inflexão, torna-se mais possível uni-las para formar frases cujos elementos contraem uma dependência mútua tão íntima que não se pode mudar algo sem que se mude, também, o sentido da frase. Mas ainda existe um degrau no progredir dessa concentração. Depois da formação desses elementos gramaticais que tornam possíveis as proposições precisas, não se vê de pronto que sirvam para expressar outra coisa senão proposições simples: um sujeito, um atributo, alguns qualificativos; isso é tudo que pode expressar desse modo. Se comparamos, por exemplo, as escrituras hebraicas com nossos escritos modernos, ficaremos surpresos; há uma diferença notável de agregação entre os grupos de palavras: o número de proposições subordinadas que acompanham a principal, os diversos complementos dos sujeitos e dos atributos e as numerosas cláusulas qualificativas que se unem para formar um todo complexo. Muitas sentenças nas modernas composições exibem um grau de integração ausente nas antigas. § 113. A história da Ciência apresenta, a cada passo, fatos do mesmo significado. Pode-se dizer que a integração dos grupos de seres semelhantes e das relações semelhantes constitui a parte mais visível do progresso científico, basta um olhar sobre as ciências de classificação para fazer-nos compreender que as agregações confusas que faz o vulgo, agrupando os objetos da natureza, tornam-se mais completas e coerentes e se interligam em grupos e subgrupos, em tais ciências. Assim, em vez de considerar todos os animais marinhos, como peixes, mariscos e medusas, a zoologia estabelece divisões e subdivisões, com os nomes de vertebrados, articulados, moluscos etc.; em vez do conjunto vago ou imenso designado vulgarmente com o nome de vermes, a ciência instituiu as classes de Anelídeos, Miriápodes, Aracnídeos etc., e com isso adquire crescente consolidação. As várias ordens e os vários gêneros de que cada uma dessas classes se compõe, estão colocados segundo suas afinidades e ligados por definições comuns; uma vez que, pelos progressos da observação e de uma crítica rigorosa, as formas antes desconhecidas ou indeterminadas se integram com suas respectivas congêneres. Não se manifesta menos claramente a integração nas ciências que têm por objeto não seres classificados, mas relações classificadas. De um dos seus principais pontos de vista, o progresso científico é o progresso da generalização, e generalizar é unir em grupos todas as coexistências semelhantes e as consequências semelhantes dos fenômenos. A reunião de muitas relações concretas em uma generalização de ordem inferior é o exemplo mais simples e a reunião de generalizações inferiores em superiores, e assim sucessivamente, é o exemplo mais complexo. Cada ano se vê estabelecerem relações entre fenômenos e ordens de fenômenos que parecem não ter entre si relação alguma; essas relações, uma vez multiplicadas e confirmadas suficientemente, ligam com um laço comum todas essas ordens, à primeira vista estranhas umas às outras. Quando, por exemplo, Humboldt menciona o ditado suíço: "Vai chover, porque se ouve mais perto o ruído dos rios", é preciso evidenciar a relação que liga esse ditado com uma observação feita por ele, que é a seguinte: que se ouvem a maior distância as cataratas do Orinoco à noite, que durante o dia; quando mostra a analogia entre esses dois fatos com outro, a clareza insólita com que são vistos os objetos longínquos como também sinal de proximidade da chuva; e enfim, quando se assinala como causa comum dessas variações a resistência menor que a luz e o som experimentam quando atravessam meios relativamente homogêneos em temperatura ou estado higrométrico, está abarcando em uma única generalização os fenômenos de luz e som. Como a experiência demonstrou que essas duas ordens de fenômenos obedecem às mesmas leis de reflexão e refração, ganha probabilidade a hipótese de que ambos são produzidos por ondulações, e duas grandes ordens de fenômenos, antes sem conexão, começam a se integrar. Uma integração mais caracterizada se verifica entre as seções ou subciências, antes independentes, que respectivamente tratam da luz, da eletricidade e do magnetismo. A integração irá evidentemente além. As proposições formuladas nos capítulos precedentes com os nomes de Persistência da Força, Transformação e Equivalência das Forças, Direção do Movimento, e Ritmo do Movimento, unem em um só conjunto os fenômenos de todas as ordens. Enfim, se a Filosofia, tal como a concebemos, é possível, necessariamente chegar-se-á a uma integração universal. § 114. As artes industriais e as belas-artes não deixam de nos proporcionar provas igualmente decisivas da lei da integração. O progresso que substituiu a pequena e simples ferramenta dos primeiros tempos pelas grandes e complexas máquinas modernas é um progresso de integração. Entre as forças, ou melhor dizendo, entre as máquinas usadas em mecânica, a substituição da alavanca pelo torno foi um progresso, que se verificou quando se passou de um agente simples para um agente composto de vários agentes simples. Comparando o torno e outras máquinas empregadas nos primeiros tempos às que hoje se usam, vemos que cada máquina moderna se compõe de muitas máquinas primitivas combinadas em uma única. Uma oficina moderna de fiação, ou de tecelagem, ou de fazer bordado ou renda, se compõe não apenas de uma alavanca, de um parafuso, de um plano inclinado e de um torno, de certa maneira unidos, ou de várias dessas máquinas primitivas, integradas num organismo único. Levemos em conta que nos primeiros tempos, quando não se empregava nada além da força do homem ou do cavalo, o agente motor não estava ligado ao utensílio que punha em movimento; hoje, motor e utensílio estão frequentemente reunidos num só aparelho. O forno e a caldeira da locomotiva estão combinados com o mecanismo que o vapor faz mover; pode-se ver uma integração ainda mais abrangente ou de mais elementos em uma manufatura; ali se vê grande número de máquinas complexas, todas ligadas por meio de árvores e correias de transmissão à máquina a vapor, todas unidas em um só conjunto. Passemos às artes. Que contraste entre as decorações murais dos egípcios e assírios e nossas pinturas históricas! Prova manifesta do grande progresso verificado quanto à unidade de composição, à subordinação das partes ao todo. É verdade que entre esses afrescos antigos existem aqueles que estão compostos por pinturas que guardam alguma relação entre si; relações indicadas nas diversas figuras de cada grupo por suas atitudes, mas quase nunca por sua expressão; seria possível separar os grupos sem mudar o sentido da pintura; às vezes, o objeto capital ou centro de união de todas as partes apenas distinguível. O mesmo caráter se observa nas tapeçarias da Idade Média; se o objeto é uma cena de caça, os homens, os cavalos, os cães, as feras, os pássaros, as árvores, as flores estão espalhados sem ordem e sem combinação. Os seres vivos estão como distraídos e ignorando as demais presenças a seu lado. Nas pinturas posteriores, embora existam muitas defeituosas, existe ao menos uma coordenação maior ou menor das partes, uma ordenação das atitudes, das expressões, luzes e cores, fazendo do quadro um todo orgânico, e na habilidade com que o pintor extrai os elementos variados de sua obra, a unidade do efeito é primordial e o maior mérito. Na música, a integração progressiva tem um número maior de maneiras de se verificar. A cadência simples que abriga apenas um pequeno número de notas, reproduzidas como acontece nos cantos dos selvagens, com monotonia, se converte, nas raças civilizadas, em uma larga série de frases musicais, combinadas em um todo; a integração chega a ser tão completa que a melodia não pode ser interrompida pela metade, ou privada da nota final, sem deixar um sentimento desagradável de coisa inacabada ou defeituosa. Se à melodia se junta um baixo, um tenor, um barítono, se a harmonia de vozes se faz com um acompanhamento, se produz uma integração de outra ordem, cada vez mais complexa. Um grau a mais, e os solos complexos, as peças combinadas, os coros e os efeitos de orquestra se combinam e produzem o efeito grandioso de uma ópera, e não se pode esquecer que a perfeição artística de uma ópera consiste, sobretudo, na subordinação dos efeitos particulares ao efeito total. A literatura, tanto nas obras dramáticas quanto nas narrativas, nos apresenta exemplos de uma integração análoga. Os contos dos tempos primitivos, tais como ainda os apresentam os árabes do Oriente, estão compostos de acontecimentos sucessivos, que não apenas não são naturais, como também não têm conexão natural, sendo apenas aventuras contadas em uma ordem que nada tem de necessário e nem mesmo, às vezes, de verossímil. Mas agora, nos bons romances e obras dramáticas, os acontecimentos são produtos necessários dos personagens em dadas condições, não cabendo mudanças de ordem ou natureza, sob pena de mudar também o efeito geral, ou mesmo destruí-lo. Além disso, nas ficções primitivas, os personagens desempenhavam seu papel respectivo, sem mostrar que suas ideias e seus sentimentos fossem modificados pelos outros personagens ou pelos acontecimentos; agora, estão unidos por relações morais completas, agem e reagem mutuamente, uns sobre os outros. § 115. A evolução é, então, sob seu aspecto primário, a mudança de uma forma menos a outra mais coerente, como consequência de dissipação de movimento e integração de matéria. É o processo universal que seguem as existências sensíveis, individualmente e em seu conjunto, durante o período ascendente de sua história. Tais são as características das primeiras mudanças que o Universo teve que atravessar como também das últimas mudanças operadas na sociedade e nos produtos da vida social. Em todo lugar, a unificação segue sua marcha simultânea. Durante a evolução do Sistema Solar, de um planeta, de um organismo, de uma nação, verifica-se sempre uma agregação progressiva da massa como um todo. Isso é provado por dois fatos, quer os consideremos unidos, quer isolados: a densidade da matéria contida na massa cresce; além disso, nova quantidade de matéria é atraída ou incorporada. Mas, em todos os casos, a agregação implica em uma perda de movimento relativo; ao mesmo tempo, as partes procedentes da divisão da massa se consolidam todas da mesma maneira, como exemplifica a formação dos planetas e satélites, verificada durante a concentração da nebulosa que deu origem ao Sistema Solar; outro exemplo está no incremento dos órgãos distintos, que marcha paralelo ao do organismo como um todo; e outro, finalmente, no aparecimento dos centros industriais e das massas especiais de população que acompanham o surgimento de cada sociedade. Em geral, uma integração mais ou menos localizada acompanha a integração geral; e então, não apenas a justaposição dos elementos do conjunto se faz mais compacta, como também a dos componentes de cada parte, fazendo-se também mais íntima, a combinação que faz depender as partes umas das outras. Essa mútua dependência, esboçada debilmente nos seres inorgânicos celestes e terrestres, se faz mais distinta nos seres orgânicos e superorgânicos. Partindo das formas vivas inferiores e chegando às mais elevadas, o grau de desenvolvimento está marcado pelo grau de agregação das partes que constituem o todo. O progresso que se observa desde os seres que continuam com vida mesmo cortados em pedaços até os que morrem quando perdem parte importante de seu corpo, e sofrem grande perturbação em sua constituição e modo de viver, quando perdem parte que não seja essencial à vida, é um progresso em que, a cada passo, se observam seres que, mais integrados sob o ponto de vista de sua concentração, o estão também enquanto se compõem de partes que vivem todas para si e para as demais. Não temos necessidade de prosseguir, com tantos detalhes, mostrando os análogos contrastes entre sociedades civilizadas e não civilizadas; mas é evidente também neste caso, a coordenação sempre crescente das partes. Quanto aos produtos sociais, um exemplo será suficiente: a Ciência se integrou não apenas porque cada divisão se compõe de proposições mutuamente entrelaçadas, mas também porque esse mesmo mútuo entrelaçamento existe entre as várias divisões, de forma tal que nenhuma progrida em suas respectivas investigações sem o auxílio das outras. XV A lei da evolução (continuação) § 116. A par das mudanças que acabamos de examinar, existem outras de grande intensidade e diversidade, muito pouco conhecidas e às vezes mesmo totalmente desconhecidas até então. Dissemos que a integração de cada todo se verifica ao mesmo tempo em que se verifica a integração de cada uma de suas partes. Mas, como se divide cada todo em partes? Reside aí uma transformação mais notável do que a da passagem de um estado incoerente a outro coerente, e em tal grau, que uma fórmula que ignorasse essa transformação omitiria mais da metade do que deveria expressar. Ocupemo-nos, pois, dessa outra espécie de mudanças, das redistribuições secundárias de matéria e de movimento que acompanham a redistribuição primária. Vimos que, se em agregados muito incoerentes as redistribuições secundárias só produzem resultados efêmeros, o mesmo não acontece nos de mediana coerência; nestes, os resultados da redistribuição secundária são mais permanentes, são modificações de estrutura, cuja fórmula geral iremos investigar. O nome evolução composta já é uma resposta implícita à questão, pois tendo denominado evolução simples a que se resume à integração da matéria e dissipação do movimento, sem nenhuma redistribuição secundária, afirmamos implicitamente que a composta se verifica quando existem redistribuições secundárias. Evidentemente, se a par do processo de transformação do incoerente em coerente se verificam também outras transformações, a massa deve passar de uniforme a multiforme. É, pois, o mesmo: dizer que a redistribuição primária vai acompanhada de redistribuições secundárias, ou seja, que junto das mudanças de um estado difuso a um estado concreto se verificam mudanças que de um estado homogêneo levam a outro heterogêneo, ou dizer que os componentes da massa, enquanto se integram, se diversificam, ou se diferenciam uns dos outros. (Os termos aqui usados devem ser entendidos em sentido relativo. Como não conhecemos a difusão absoluta ou a absoluta concentração, a mudança só pode ser de um estado mais difuso para um menos difuso, de uma menor coerência para uma coerência maior; e, analogamente, como não conhecemos existências concretas absolutamente simples - uma vez que nada é perfeitamente uniforme, e logo completamente homogêneo - a transformação é sempre, literalmente, para uma maior complexidade, ou crescente multiformidade, ou ainda, mais heterogeneidade. Esta qualificação deve o leitor normalmente ter em mente) Esse é, como já dissemos, o segundo ponto de vista da evolução, e que agora estudaremos; ou seja, que assim como no capítulo anterior consideramos os seres de todas as ordens em sua integração progressiva, vamos neste capítulo considerá-los em sua diversificação ou diferenciação progressiva. § 117. A crescente variedade estrutural verificada através do Sistema Solar implica em contrastes que indicam um processo de agregação através do mesmo. Há nebulosas difusas ou irregulares, como as há em forma de espiral, anulares, esféricas etc. Há grupos de estrelas cujos membros se encontram espalhados, enquanto outros apresentam os mais variados graus de concentração, a ponto de formar grupos globulares muito condensados, que diferem pelo número de suas estrelas, desde os que têm muitos milhares até os que apenas têm duas (estrelas duplas). Há entre as magnitudes das estrelas enormes diferenças reais e aparentes, existindo também entre elas diferenças de cor, de espectro e, em consequência, de constituição física ou química, com toda a probabilidade. Além dessas diferenças de detalhes, outras existem, de caráter geral; por exemplo: em algumas regiões do céu existem muitas nebulosas, em outras apenas estrelas, e em outras existem grandes espaços vazios, sem estrelas ou nebulosas. A substância do Sistema Solar tornou-se mais multiforme durante sua concentração. O esferoide gasoso, em via de agregação, experimentou diversificações cada vez mais numerosas e marcantes, por efeito da dissipação de seu movimento latente, da diferença crescente entre a densidade e temperatura interiores e exteriores e, enfim, das repetidas perdas de substância que resultam do abandono, no espaço, de anéis de matéria, até o momento em que o grupo, organizado tal como agora existe, composto de Sol, planetas e satélites, constituiu-se em definitivo. A heterogeneidade desse grupo se manifesta por vários contrastes: contrastes imensos entre o Sol e os planetas, quanto a peso e volume; menores, mas também muito marcantes os contrastes entre os planetas e entre planetas e satélites. Há ainda outro contraste entre o Sol e os planetas quanto à temperatura; e possivelmente os planetas e seus satélites difiram também uns dos outros por seu calor próprio, e pelo calor que recebem do Sol. Recordemos, por fim, que os planetas diferem nos planos de suas órbitas, nas inclinações de seus eixos respectivos de rotação em relação a esses planos, em sua densidade etc. Teremos então ideia da complexidade que se processou no Sistema Solar, em virtude das redistribuições secundárias que acompanharam a redistribuição primária. § 118. Deixando de lado essa ilustração hipotética, que não deve ser apreciada além de seu justo valor, e sem que este valor diminua o da tese geral, passemos a outra ordem de provas, menos sujeitas a objeções. É sabido que para a imensa maioria dos geólogos, a Terra foi primordialmente uma massa em fusão, e que seu interior ainda se encontra nesse estado de fusão incandescente. Então, quando ainda em estado de fusão, a Terra tinha, sem dúvida, uma consistência bastante homogênea, bem como uma temperatura também quase uniforme, em virtude das correntes presentes nos fluidos aquecidos. Estaria envolvida por uma atmosfera, nessa época primeva, composta parcialmente pelos elementos do ar e da água, hoje nela presentes, e parcialmente por outros elementos, gasosos nas altas temperaturas de então, e que hoje fazem parte da crosta terrestre. O resfriamento por radiação, que era então muito mais rápido, mas nem por isso exigiu tempo menor que uma imensidade de anos para que alguma mudança fosse notável, terá produzido, em última análise, uma separação entre a massa ainda muito aqueci da e a parte mais suscetível de resfriamento, que era a superfície. Um novo resfriamento teria produzido então a precipitação, em primeiro lugar, de todos os elementos solidificáveis da atmosfera, e depois da grande massa de água que hoje forma os oceanos, redundando em uma segunda e bem distinta separação de partes. Como a condensação deve ter começado pelas partes mais frias da superfície - os polos -, resultaram daí as primeiras diferenças geográficas. A estes exemplos de uma heterogeneidade crescente, que mesmo deduzidos das leis do mundo físico podem ser considerados hipotéticos, a geologia agrega uma série numerosa de fatos, comprovados pela experiência e pela indução. A estrutura da Terra foi se constituindo sucessivamente pela multiplicação dos estratos que formam sua crosta, e se tornando cada vez mais complexa, pela multiplicidade de combinações que surgiram na composição desses estratos: os mais recentes, formados dos detritos dos antigos, são, na maioria, muito complexos, pela mistura de materiais componentes. Esta heterogeneidade aumentou consideravelmente pela ação do núcleo, ainda em fusão sobre a crosta, de cuja ação resultou não apenas uma grande diversidade de rochas ígneas, como também a colocação de estratos sedimentares formando variados ângulos, falhas, filões metálicos e uma variedade infinita de deslocamentos e irregularidades. Além disso, afirma também a Geologia: a superfície da Terra foi se tornando cada vez mais desigual; as montanhas mais antigas são as mais baixas, e as mais modernas, como os Andes e o Himalaia, mais altas, seguindo muito provavelmente a mesma lei das desigualdades do fundo do oceano. Essa incessante multiplicação de diferenças deu por resultado que não existam talvez dois trechos semelhantes da superfície terrestre em seu aspecto exterior, sua estrutura geológica e composição química. Ao mesmo tempo foram se diversificando os climas; à medida que se resfriava e sua crosta se solidificava, a temperatura se fazia desigual na superfície, entre as partes mais e menos expostas ao calor do Sol, estabelecendo-se os contrastes atuais entre as partes permanentemente cobertas de neve e gelo, as que têm verão e inverno variáveis em sua duração, segundo a latitude geográfica, e as que têm temperatura quase sempre elevada, sem grandes variações. Ainda mais: tendo produzido elevações e depressões, verificadas por toda parte na superfície terrestre, uma distribuição irregular dos continentes e mares, surgiram novas modificações climáticas além das dependentes da latitude e da altitude, podendo existir a poucas milhas de distância lugares com clima tropical, temperado e glacial, respectivamente, em virtude da acumulação dessas várias circunstâncias modificadoras. Como resultado geral dessas mudanças, cada região mais extensa tem condições meteorológicas que lhe são próprias, e as localidades de uma mesma região diferem, mais ou menos entre si por sua estrutura, seus contornos etc. Vemos então que existe um contraste muito marcado entre a Terra, tal como é hoje, com a sua imensa variedade de fenômenos, muitos ainda não descritos por geólogos, mineralogistas, geógrafos e meteorologistas, e o globo de matéria em fusão, de que provém por evolução. § 119. Os exemplos mais evidentes, mais numerosos e mais variados da crescente multiformidade que acompanha a integração, os encontramos nos corpos vivos organizados. Esses seres estão caracterizados, como já sabemos, pela grande quantidade de movimento latente que conservam, o que faz com que neles se processem, no mais alto grau, as redistribuições secundárias que aquele movimento facilita. A história de uma planta ou de um animal, encarada pelo seu crescimento, nos diz também como suas várias partes vão se constituindo e se tornando cada vez mais distintas umas das outras. Examinemos os diversos aspectos dessa transformação. A composição química é quase uniforme, primeiramente, no óvulo ou embrião animal ou vegetal; mas pouco a pouco deixa de sê-lo. Primeiramente se separam gradualmente os diversos compostos, nitrogenados ou não, e se acumulam em certos pontos, em proporções variadas, produzindo, por sua transformação ou modificação, novas combinações. Nas plantas, as substâncias amiláceas e albuminosas que constituem o embrião produzem em uma parte maior quantidade de celulose e em outra, quantidade maior de clorofila. Nas partes que estão se tornando superfícies das folhas, parte do material se metamorfoseia em cera. Por um lado, o amido se transforma em seu equivalente isomérico, o açúcar, ou em outro isômero, a goma. Mudanças secundárias transformam parte da celulose em madeira e outra parte em cortiça, ou casca. Os compostos mais numerosos, assim formados, ainda mais se diversificam, mesclando-se e se combinando em várias proporções. O óvulo animal, cujos elementos estão a princípio mesclados e difusos, se transforma quimicamente de modo análogo. A proteína, a gordura, os sais componentes se agrupam em várias proporções, em diversos pontos, e a multiplicação das formas isoméricas produz novas misturas e novas combinações, que vão constituir outras diferenças, ainda que menos importantes. Aqui, uma massa escurecida por uma acumulação de hematina se dissolve em sangue; além, a união de substâncias graxas albuminosas forma o tecido nervoso; acolá, certas substâncias nitrogenadas constituem as cartilagens, que endurecidas por sais de cálcio, se transformam em ossos. Todas essas e muitas outras diversificações químicas se verificam lenta e insensivelmente, cada vez mais perceptíveis e múltiplas. Ao mesmo tempo também se verificam análogas diversificações anatômicas ou orgânicas: surge a diversidade de tecidos onde não havia diferenças apreciáveis de estrutura; o protoplasma granuloso de germe vegetal e o que forma o centro evolutivo de cada broto produzem células semelhantes em seu princípio; destas, algumas se achatam ao crescer, unem-se pelas bordas e formam a cobertura exterior; outras se alargam e se unem lateralmente, constituindo fibras de madeira; outras, não se alargam, e cessando de receber nova matéria em seu interior formam, ao se prolongarem, anéis, retículos, espirais etc., outras, enfim, se soldam longitudinalmente formando vasos. Prosseguindo o desenvolvimento orgânico, cada um desses tecidos se diversifica novamente; por exemplo: na parte essencial da folha, a clorofila se une em grupos compactos na parte superior, enquanto a parte inferior assume uma consistência esponjosa. Transformações análogas verificam-se em um ovo fecundado: este é, no princípio, um conjunto de células semelhantes, que muito rapidamente se fazem dessemelhantes, primeiramente por ruptura repetida das células superficiais e sua união em seguida para formar a capa exterior ou membrana vitelina; depois, o meio dessa capa se separa do restante por uma operação análoga, mas mais ativa. Por modificações sucessivas e bastante numerosas para que caibam neste nosso estudo, formam-se as classes e subclasses de tecidos, que diversamente combinados irão formar os órgãos. As mudanças de configuração do organismo como um todo e dos vários órgãos seguem também a lei geral. Assim, todos os germes são primeiramente esferas, e todos os órgãos na sua origem são botões ou protuberâncias arredondadas. Do seio dessa uniformidade e dessa simplicidade primitiva parte a divergência, do todo e das partes, para a multiformidade e complexidade dos organismos já desenvolvidos. Quando se cortam as folhas tenras estreitamente unidas que encerram um broto, se vê que o núcleo é um botão central que sustenta outros laterais, dos quais cada um pode transformar-se em folha, em sépala, em pétala, em estame etc. Todas essas partes tão dessemelhantes foram, pois, de início, semelhantes. Os próprios brotos se separam, ao crescer, dessa uniformidade inicial de forma, e assim, enquanto os ramos se diversificam de mil maneiras, a parte aérea da planta se torna também muito distinta da parte imersa na terra. O mesmo acontece com os animais: um articulado tem, a princípio, seus membros confundidos, formando uma massa homogênea, que por efeito de sucessivas divergências vai processar as diferenças marcantes de forma e volume que se pode perceber em um inseto perfeito ou em outro articulado completamente desenvolvido. Os vertebrados, de maneira semelhante, apresentam numerosos exemplos dessa uniformidade primitiva e subsequente multiformidade; citemos como exemplo o fato das asas e patas de um pássaro terem a mesma forma quando aparecem no embrião. Assim, pois, em cada planta, em cada animal, numerosas e notáveis redistribuições secundárias acompanham a redistribuição primária. Aquelas começam por uma divisão em duas partes; seguem numerosas diferenças que vão se processando em cada uma das partes quando se subdividem; essas diferenças, poderíamos dizer, crescem em progressão geométrica, à medida que cresce e se desenvolve o indivíduo, até chegar à idade adulta, quando atinge o máximo de complexidade. Essa, em resumo, é a história de todo ser vivo. Wolf e Baer, na sequência de uma ideia de Harvey, demonstraram que todo organismo passa, na sua evolução, de um estado homogêneo a um estado heterogêneo, princípio este já admitido pelos biólogos de toda uma geração. § 120. Quando passamos das plantas e animais vivos para a vida em geral, ou indagamos se as suas manifestações obedecem, em seu conjunto, à mesma lei, ou seja, se as plantas e animais modernos são mais heterogêneos que os antigos, individualmente, e se a flora e a fauna atuais são mais heterogêneas que as passadas, não encontraremos, além de algumas provas soltas, ficando a questão, portanto, em dúvida. Atentando para o fato de dois terços da superfície terrestre estarem submersos, uma boa porção da terceira parte ser inacessível ou inexplorada geologicamente, a maioria da superfície restante ter sido objeto de muito pouca exploração, ou de exploração inadequada, isso mesmo nas partes mais bem conhecidas, como por exemplo, a Inglaterra, onde só há poucos anos se descobriram novas séries de placas; em virtude disso é impossível dizer com certeza que seres existiram ou não em um dado período geológico. Se, por outro lado observamos que muitas formas orgânicas inferiores se destroem facilmente, que muitos estratos sedimentares se metamorfosearam, e os que não, apresentam muitas falhas, teremos novos motivos para desconfiar de nossas deduções. Foram descobertos, depois de muitas investigações, restos de vertebrados em placas onde não se acreditava pudessem eles existir; restos de répteis foram achados onde se pensava encontrar apenas peixes, como restos de mamíferos foram encontrados onde não se acreditava pudessem jazer seres superiores aos répteis. Isso vem demonstrar o pouco valor daquelas provas negativas a que nos referimos. Por outro lado, perde totalmente seu valor a hipótese de terem sido descobertos restos orgânicos da primeira época da vida, ou dela próxima. Não se pode negar que as formações aquosas, conhecidas como as mais antigas, foram consideravelmente modificadas pela ação ígnea; talvez outras, ainda mais antigas, sofreram completa metamorfose. Pois bem: desde o momento em que admitimos a fusão de placas sedimentares mais antigas que as mais antigas conhecidas, é preciso admitir que é impossível determinar quanto tempo decorreu desde a destruição desses estratos sedimentares. Então, é evidente que dar o nome de paleozoicos aos estratos fossilíferos, conhecidos como mais antigos, é cometer uma "petição de princípio", quando, pelo contrário, deveríamos supor que só conhecemos os últimos capítulos da história biológica da Terra, e, portanto, concluir que de todos os fatos paleontológicos até agora colhidos não é possível tirar conclusões acertadas. Um partidário do desenvolvimento progressivo das formas animais pode, com fundamento nesses fatos, pensar que os restos mais antigos conhecidos de vertebrados são restos de peixes, os mais homogêneos dos vertebrados; que depois vieram os répteis, seguindo os peixes em homogeneidade, e por último mamíferos e aves, que são os vertebrados mais heterogêneos. Contudo, pode-se argumentar que os depósitos paleozoicos encontrados nas enseadas não encerram restos de vertebrados terrestres, embora estes já existissem naquela época. Igual resposta cabe também aos que sustentam que a fauna verte brada do período paleozoico, composta, segundo o que até agora se sabe, exclusivamente de peixes, era menos heterogênea que a atual, composta de um grande número de gêneros de peixes, répteis e mamíferos; podem os partidários da uniformidade dos tipos sustentar, com grande aparência de verdade, que se as últimas épocas geológicas apresentam mais complexas e variadas formas zoológicas, isso é devido às imigrações. Podem dizer que um continente elevado sobre o oceano longe dos preexistentes necessariamente povoar-se-ia às suas expensas, seguindo a ordem das placas geológicas. Os argumentos pró e contra são tão pouco concludentes uns quanto os outros. O partidário da uniformidade aponta as lacunas existentes na série de formas orgânicas necessárias para a evolução das mais homogêneas às mais heterogêneas; mas isso pode ser contestado dizendo que as mudanças geológicas atuais nos explicam a existência dessas lacunas como efeito das grandes elevações e depressões que cortaram de maneira brusca a gradual sucessão das eras geológicas. Se o adversário da teoria do desenvolvimento cita os fatos narrados por Huxley em sua lição sobre os tipos persistentes, observa que em mais de duzentas famílias de plantas hoje admitidas, nenhuma é exclusivamente fóssil; que nos animais existe tampouco uma classe totalmente extinta e ainda que nas ordens de animais fósseis apenas sete por cento não estão representados na fauna atual; afirma-se que existem entre essas ordens aquelas que duraram desde a época silúrica até o presente, sem alterações, e se disso se deduz que a semelhança entre as formas vivas passadas e as presentes é muito maior que do que a que pode resultar admitindo a hipótese do desenvolvimento, pode-se dar a ele a resposta vitoriosa com um fato sobre o qual insiste o senhor Huxley: que há provas de uma época pré-geológica de duração desconhecida. Quando falamos dos enormes movimentos do período silúrico, quando a crosta terrestre era tão espessa quanto o é hoje; quando se fala do tempo necessário para atingir essa espessura, que é imenso, comparado ao que transcorreu depois; quando se supõe, como deve ter sucedido, que durante esse imenso período as mudanças geológicas e biológicas se processaram com regularidade, podemos assegurar não apenas que os testemunhos paleontológicos encontrados não desmentem a teoria da evolução, como também que são tal e qual poderíamos imaginá-los. Além disso, é bom levar em conta: mesmo quando os fatos não autorizam nem a afirmação nem a negação, os mais notáveis conduzem, não obstante, a acreditar que os organismos e grupos de organismos mais heterogêneos são produto natural do desenvolvimento de outros mais homogêneos. Um desses fatos: os fósseis das camadas contíguas ou de mesma idade são aproximadamente do mesmo tipo; e, sobretudo, os últimos fósseis terciários são do mesmo tipo que os animais e plantas atuais. Outro fato: o descobrimento do Palaeotherium e Anoplotherium, que segundo Owen, têm um tipo de estrutura intermediária entre certos tipos atuais. Há, por último, um terceiro fato, ainda de maior significação, que é a aparição, relativamente recente, do homem. Podemos, pois, dizer que conhecemos muito pouco da história da Terra para apontar plenamente uma evolução do simples para o complexo, tanto nas formas individuais quanto nos grupos de formas semelhantes; o que sabemos, contudo, não apenas nos autoriza a acreditar que se deu essa evolução, como também que essa história melhor concorda com a hipótese evolutiva do que com qualquer outra. § 121. Manifeste ou não a história biológica terrestre um processo de passagem do homogêneo para o heterogêneo, o progresso da última criatura, a mais heterogênea de todas, o homem, é um exemplo surpreendente desse processo. É também certo que no período durante o qual a Terra se povoou, o organismo humano tornou-se mais heterogêneo, nas subdivisões civilizadas da espécie; e esta, vista como um conjunto, tornou-se mais heterogênea, pela multiplicação e diversificação de raças. Em socorro da primeira proposição, podemos citar o fato de que no desenvolvimento relativo de suas extremidades, o homem civilizado se separa mais do tipo geral dos mamíferos monodelfos, que o não civilizado. Os Papuas têm os corpos e braços bem desenvolvidos, mas têm as pernas muito curtas, assemelhando-se nesse particular aos quadrúmanos, cujas extremidades anteriores e posteriores são aproximadamente do mesmo comprimento. No europeu, pelo contrário, as extremidades inferiores tomaram um comprimento e diâmetro relativamente maiores, havendo então crescente heterogeneidade entre umas e outras extremidades. Progresso análogo revela-se na relação de magnitude dos ossos do crânio e do rosto, sendo fora de dúvida o aumento progressivo do volume daqueles e diminuição destes, à medida que se sobe na escala dos vertebrados. Essa característica, mais notável no homem do que em qualquer outro animal, desponta muito mais no europeu do que no selvagem. Além disso, a julgar pela maior extensão e variedade de funções que desempenham respectivamente, pode-se concluir que o homem civilizado tem um sistema nervoso mais complicado e heterogêneo que o selvagem; isto se comprova pelo tamanho do cérebro em relação às demais partes do encéfalo. As crianças fornecem novos exemplos do processo em estudo; a criança europeia tem mais semelhanças com as raças inferiores que os adultos, por exemplo: o achatamento das asas e a depressão do ápice do nariz, junto com a separação e alargamento das narinas; a forma dos lábios, a ausência dos seios frontais, a distância entre os olhos e o pequeno tamanho das pernas. O desenvolvimento que transforma esses caracteres nos do europeu adulto é uma continuação da mudança do homogêneo para o heterogêneo, que se verifica na evolução embrionária, como reconhecem os fisiologistas. Igualmente, pode-se dizer: o progresso que mudou as características do selvagem naquelas do homem civilizado é também uma continuação da passagem do homogêneo para o heterogêneo, no desenvolver da humanidade, cuja mudança, por demais evidente, dispensa maiores explicações. De fato, não há obra de etnologia que não evidencie essa heterogeneidade, em suas divisões e subdivisões. Mesmo admitindo a hipótese da multiplicidade de origem do gênero humano, não há dúvida de que povos ou tribos, hoje bastante distintos entre si, tiveram a mesma origem; e cada raça, em seu conjunto, é muito menos homogênea que era antigamente. Diga-se ainda, como exemplo, que os anglo-americanos são uma prova dessa nova variedade, formada em algumas gerações, e se acreditarmos em certos observadores, logo existirá outra, novíssima, na Austrália. § 122. Se da humanidade, considerada em suas formas individuais, passarmos às formas sociais, encontraremos exemplos ainda mais numerosos da lei geral. A passagem do homogêneo para o heterogêneo se manifesta tão evidente no progresso da humanidade considerada como um todo, como no de cada tribo ou nação; e se verifica, mesmo agora, com uma rapidez crescente. De fato, a sociedade, em sua forma primitiva ou inferior, como ainda hoje a apresentam alguns países, é um conjunto homogêneo de indivíduos que têm faculdades e funções semelhantes, sem diferenças que não as de sexo. Assim, todo homem é, a um só tempo, guerreiro, caçador, pescador, pedreiro, fabricante de ferramentas; todas as mulheres desempenham as mesmas tarefas, cada família basta a si mesma e poderia viver isolada das demais não fora pelo ataque ou defesa de outras tribos. Contudo, desde o princípio, se evidencia na evolução social uma distinção entre governantes e governados, pois parece que na primeira etapa da organização social, a que agrupou famílias errantes em tribos nômades, a autoridade dos mais fortes se impôs à tribo, como ocorre com os rebanhos animais. Essa autoridade primeiro é vaga, insegura; não implica em diferença nas ocupações ou modo de vida, e é, em geral, compartilhada com outros indivíduos que também exibem força. O primeiro chefe mata ele mesmo sua caça, fabrica suas armas, constrói sua choça, em nada diferindo, do ponto de vista econômico, dos demais membros da tribo. À medida que esta evolui para a civilização, no caminho do progresso, o contraste entre governantes e governados se faz mais evidente; o poder supremo torna-se hereditário, o chefe cessa de prover por si mesmo as suas necessidades, é servido por outros membros da tribo e passa a se ocupar apenas do governo. Ao mesmo tempo forma-se outra espécie de governo, coordenado com o primeiro, que é a Religião. Todas as tradições antigas provam que os primeiros chefes eram vistos como personagens divinos; as ordens e leis deles provenientes eram vistas como sagradas, mesmo após sua morte, e seus sucessores, olhados também como de origem celeste, davam a essas leis todo o apoio de seu poder; todos eram sepultados no mesmo panteão, para que pudessem receber as mesmas preces e adorações. O primeiro desses chefes-deuses foi o Deus supremo, os demais, dele sucessores, eram deuses subordinados. Durante muitos séculos, os dois poderes, religioso e civil, nascidos ao mesmo tempo, estiveram intimamente ligados; o Rei era ao mesmo tempo Sumo Pontífice, e o sacerdócio estava vinculado à família real; a lei religiosa abrangia mais ou menos os preceitos civis, e as leis civis eram mais ou menos sancionadas pela Religião. Por muito tempo, mesmo em países já bem civilizados, esses dois poderes que se apoiavam e controlavam mutuamente não se separaram totalmente. Ocorre que os títulos e honrarias que se tributavam anteriormente ao Rei-Deus, e depois ao Rei e a Deus, passaram a ser tributados às pessoas gradas, e por último, de homem a homem. Todas as formalidades pessoais, que hoje denominamos cumprimentos, foram nas primícias expressões de submissão dos prisioneiros aos vencedores e dos súditos ao senhor, divino e humano; logo, também foram rendidos às autoridades menores, sendo hoje usados entre quaisquer pessoas medianamente cultas. Todas as saudações eram, a princípio, inclinações ante os monarcas, como uma espécie de culto antes e depois de sua morte. Logo, se estenderam essas saudações aos membros da família do rei, e depois muitas dessas saudações pertenciam às relações entre pessoas comuns. Assim, pois, cada sociedade primitivamente homogênea, se dividiu primeiro entre governantes e governados; subdividindo-se depois aqueles em sacerdotes e seculares, cujas respectivas instituições - Igreja e Estado - ficaram assim constituídas, ao mesmo tempo em que surgia uma terceira espécie de governo, um cerimonial que regula nossos atos e relações diárias. Cada uma dessas espécies de governo experimentou, por sua vez diversificações sucessivas até constituir a atual organização política tão completa, como a da Inglaterra, por exemplo, composta de um monarca, ministros, lordes, deputados, departamentos administrativos, tribunais etc. Nas províncias, somam-se as administrações locais, dos condados, das paróquias etc. Paralelamente, estão as organizações religiosas, também muito complexas, com seus funcionários de todos os graus, desde os arcebispos até os sacristãos, e ainda seus colégios, congregações, seminários; sem esquecer as seitas, cada vez mais numerosas, todas com autoridades gerais e locais. Ao mesmo tempo desenvolveu-se um sistema muito complexo de costumes, de vestimentas, de modas temporárias impostas pela sociedade inteira, e que servem para ajustar as transações menos importantes entre os homens, fora das esferas religiosa e civil. Além disso, devemos notar que essa heterogeneidade, sempre crescente, nas funções governamentais de cada nação, é acompanhada de uma heterogeneidade também crescente, entre as formas de governo das diversas nações, todas as quais são mais ou menos diferentes por seu sistema político e legislativo, por suas crenças ou instituições religiosas e pelos trajes e cerimônias dessas mesmas instituições. Ao mesmo tempo verificou-se outra divisão, a da massa total da sociedade em classes ou ordens de trabalhadores. Enquanto a classe governante sofria o desenvolvimento complexo de que falamos, a classe governada experimentava outro, muito mais complexo, que resultava na minuciosa divisão do trabalho que se admira nas nações civilizadas. Não é necessário seguir esse progresso desde seus primeiros passos até o estabelecimento das castas do Oriente e das corporações da Europa, até a sábia repartição entre produtores e distribuidores. A economia política demonstrou, já há tempos, que o ponto de partida da evolução social é: uma tribo, cujos componentes efetuam sempre os mesmos atos, cada um para si; e o ponto de chegada, uma sociedade, ou melhor, uma comunidade em que todos os membros executam atos distintos, uns para os outros; onde também as mudanças, em virtude das quais o produtor isolado de uma mercadoria se transforma em um sistema de produtores que, unidos sob a direção de um chefe, toma cada um parte distinta na produção da mesma mercadoria. Mas esse progresso do homogêneo para o heterogêneo, na organização industrial da sociedade nos apresenta outras fases, de ainda maior interesse. Muito tempo depois da divisão do trabalho entre diversas classes de operários, ela ainda não existe entre as partes separadas de uma mesma nação, uma vez que em cada região são feitos aproximadamente os mesmos trabalhos e a nação permanece relativamente homogênea. Mas quando as estradas e demais vias de comunicação e transporte se multiplicam e se aperfeiçoam, as várias regiões começam a efetuar trabalhos diversos e a se ligar por mútuos e recíprocos laços de dependência. As manufaturas de algodão se localizam em uma região, as de lã em outras, a produção e o trabalho da seda se dão em outro local, e em outro ainda os bordados e as rendas etc. Em resumo, cada localidade se desenvolve mais ou menos, distinguindo-se das outras pela ocupação mais geral ou principal de seus habitantes. E não só em cada nação se processa essa divisão regional do trabalho, como também entre as várias nações. A troca de mercadorias que a liberdade de comércio promete acrescentar em tão grandes proporções fará com que se especialize, em definitivo, a indústria de cada nação. Assim é que, a partir das tribos bárbaras, homogêneas, ou quase, nas funções desempenhadas por todos os seus indivíduos, o progresso conduz, ou tende lentamente para uma integração econômica de toda a espécie humana, que se torna cada vez mais heterogênea: pelas funções distintas que desempenham ou tendem a desempenhar as diversas nações; pelas funções desempenhadas, dentro de uma nação pelas diferentes localidades ou regiões; pelas distintas funções adotadas pelas várias classes de fabricantes, comerciantes etc., de cada localidade; e pelas distintas funções, enfim, dos dependentes de cada fábrica, comércio etc. § 123. Não apenas na evolução do organismo social encontramos um belo exemplo da lei que vimos estudando; o encontramos também em todos os produtos do pensamento e da atividade humana, sejam eles abstratos ou concretos, reais ou ideais. Examinemos em primeiro lugar a linguagem. A forma mais primitiva ou inferior da linguagem é o grito, que expressa com um único som uma ideia. Na verdade, nada prova que a linguagem humana tenha sido composta, em sua origem, apenas por gritos, e tenha sido, então, inteiramente homogênea. Mas foi possível conhecer, na história, uma época em que a linguagem se compunha apenas de substantivos e verbos. Houve, então, uma mudança progressiva do homogêneo para o heterogêneo, na multiplicação gradual das partes de uma oração; na divisão dos verbos em ativos e passivos e dos substantivos em abstratos e concretos, na distinção de modos, tempos, pessoas e casos para a conjugação e a declinação, na formação dos verbos auxiliares, adjetivos, advérbios, pronomes, artigos, preposições e conjunções; nas inflexões, acentos e demais sinais ortográficos ou prosódicos com que as raças civilizadas expressam sua riquíssima variedade de afetos, pensamentos, desejos e até as menores diferenças de sentido ou significado das palavras, diferenças correspondentes, naturalmente, a outras análogas naqueles fenômenos da vida humana. Notemos, de passagem, que a língua inglesa deve suas vantagens ou superioridade, sobre muitas outras, à maior subdivisão de funções nas palavras de que consta. Há ainda outro ponto de vista, sob o qual se pode seguir também o desenvolvimento da linguagem, que é a diversificação de palavras de sentido congênere. A Filologia descobriu, há muito tempo, que em todas as línguas se podem agrupar as palavras em famílias derivadas da mesma origem; isto é, um substantivo primitivo, aplicado indistintamente a toda uma classe de objetos, coisas ou ações, sofre, logo, modificações que expressam as divisões principais da classe, e esses vários substantivos, originados na mesma raiz primitiva se convertem, por sua vez, em raízes de outros, ainda mais modificados; além disso, temos atualmente meios sistemáticos de formar palavras derivadas, e de combinar palavras para expressar as menores variações de ideias, afetos etc.; e em virtude dessa facilidades se formam famílias de palavras, sendo estas tão heterogêneas em cada família, às vezes, que, não sabendo sua família, dá trabalho acreditar que derivam todas da mesma palavra. Assim se formam, num mesmo idioma, cinco ou seis mil palavras, que designam outras tantas coisas, qualidades, ações e etc.; mas há, como sabemos, outro modo, na linguagem humana, de passar do homogêneo ao heterogêneo, pela diversificação de idiomas. Tenham todas as línguas um só e único começo, como opinam Max Müller e Bunsen, ou tenham dois ou três, como julgam outros filólogos, é fora de dúvida que grandes famílias de línguas, como as indo-europeias, procedem da mesma origem, e devem ter-se feito distintas por efeito de uma divergência progressiva e contínua. A dispersão de raças se produziu simultaneamente com uma diversificação nas respectivas línguas, do que ainda se encontram provas em todas as nações, nas particularidades dos vários dialetos. Vemos então que o progresso da linguagem obedece à lei geral, na evolução global das línguas, na evolução das famílias de palavras e na evolução das partes da oração. Passando agora da linguagem falada para a escrita, encontraremos muitas ordens de fatos que têm todos o mesmo sentido: a linguagem escrita é da mesma classe que a pintura e a escultura, sendo os três acessórios da arquitetura, e se referindo diretamente à forma primitiva de governo, a forma teocrática. Notemos de passagem que as raças selvagens, como os australianos e sul-africanos pintam personagens e fatos nos muros subterrâneos, que provavelmente são considerados lugares sagrados. Passando aos egípcios, estes, como os assírios, usavam as pinturas murais para decorar o templo de Deus e o palácio do Rei (que a princípio eram unidos) que eram funções governamentais, como o eram as festas religiosas e políticas. Além disso, eram ainda funções governamentais, pois representavam o culto a Deus, o triunfo do Rei-Deus, a submissão de seus súditos e o castigo dos rebeldes, e como eram produtos de arte reverenciados pelo povo, como um mistério sagrado. O uso dessas representações ilustradas deu origem ao hieróglifo, que nada mais é que uma modificação daquelas, e que ainda se usava entre os mexicanos, no tempo do descobrimento do México. Simplificaram-se, umas após as outras, as figuras mais familiares dessas pinturas, empregando abreviações análogas às que hoje se usam em nossas línguas faladas e escritas, tendo assim se formado um sistema de sinais cuja maioria não era nem remotamente semelhante às coisas que representavam ou significavam. O que prova serem estas as origens dos hieróglifos é o fato de que os hieróglifos mexicanos deram também origem a uma família análoga de formas ideográficas, e neles, como nos egípcios, essas formas se diversificaram para produzir escritura ciriológica (Spencer usa o termo kuriological para nominar a escrita hieroglífica figurada, isto é, aquela que utiliza figuras, por oposição a que utiliza apenas símbolos, ou simbólica, segundo uma divisão de São Clemente de Alexandria. Pelo Oxford English Dictionary, a grafia apropriada, respeitando o prefixo grego kurios ou kyrios, seria cyriologic. Daí adotarmos o vocábulo ciriológico, que aparece no texto. O dicionário Houaiss lista ciriológico como relativo a ciriologia, derivada do mesmo prefixo grego, significando linguagem correta) ou imitativa, e a escritura trópica, ou simbólica, empregadas ambas, às vezes, no mesmo quadro. No Egito, a escritura sofreu nova diversificação, da qual resultaram a escritura hierática e a epistolográfica, derivadas ambas dos hieróglifos primitivos. Na mesma época, encontram-se símbolos fonéticos para os nomes próprios, inexpressáveis de outra maneira, e embora se assegure que os egípcios não possuíam uma escritura alfabética completa, não se pode duvidar que os símbolos fonéticos, que às vezes usavam para auxiliar os símbolos ideográficos, foram embriões de uma escritura alfabética. Esta, uma vez já formada, sofreu numerosas modificações; os alfabetos se multiplicaram, podendo-se reconhecer entre os atuais algumas relações. Hoje, cada nação civilizada possui, para representar cada série de sons, muitas séries de sinais escritos, destinados a diversos usos. Por fim, uma diversificação ainda mais notável produziu a imprensa, que a princípio uniforme, prodigiosamente fez-se multiforme. § 124. Enquanto a linguagem escrita atravessava os primeiros períodos de seu desenvolvimento, a decoração mural, que havia sido sua origem, produzia a pintura e a escultura. Os deuses, os reis, os homens e os animais eram representados nas paredes por traços gravados e coloridos. Na maioria dos casos, esses traços tinham tal profundidade, e estavam tão suavemente contornados os objetos representados, que formavam uma espécie intermediária entre o gravado e o baixo relevo. Em outros casos observava-se outro tipo de progresso: as partes salientes que separavam as figuras eram deixadas pelo cinzel e as figuras eram coloridas com seus tons próprios, originando um baixo relevo pintado. Em Sydenham podem-se ver restaurações de arquitetura assíria em que esse estilo se elevou a grande perfeição: nelas estão geralmente objetos e pessoas muito mal pintados, mas muito bem entalhadas em todos os detalhes; leões e touros alados e ângulos de portais se aproximando muito de obras cinzeladas, mas ainda pintadas e formando um conjunto com o total da obra. Os assírios pouco ou nada procuraram produzir em termos de escultura; mas na arte egípcia pode-se acompanhar facilmente a gradação, em virtude da qual chegaram a separar-se das paredes figuras nelas talhadas primitivamente. Basta para essa constatação um passeio pelo Museu Britânico: nele veem-se as provas patentes de que as estátuas isoladas, independentes, são oriundas dos baixos-relevos. De fato, quase todas as estátuas apresentam a união de braços e pernas ao corpo, uma característica dos baixos-relevos, e estão unidas pelo torso, da cabeça aos pés, a um trecho efetivo ou figurado de parede em que se achava o baixo-relevo. A Grécia reproduziu largamente esses progressos. Nela, como no Egito e na Assíria, as artes gêmeas, pintura e escultura, estavam unidas entre si e com sua materna arquitetura, sendo as três auxiliares da religião e do governo. Sobre os frisos dos templos gregos podem ser vistos baixos-relevos pintados, representando sacrifícios, batalhas, procissões, jogos e demais atos religiosos e políticos. Nas fachadas há também figuras mais ou menos unidas às paredes, representando os triunfos dos deuses e dos heróis. Mesmo ao chegar às estátuas isoladas totalmente da parede a que pertenciam, as encontramos também pintadas, e só nos últimos tempos da civilização grega aparece já terminada a distinção ou diferenciação entre pintura e escultura. Uma evolução análoga se pode notar na arte cristã: todas as pinturas e esculturas na Europa inteira eram sobre assuntos religiosos. Cristo, virgens, sagradas famílias, apóstolos, santos, formavam parte integrante da arquitetura da igreja e serviam de meios para estimular o zelo religioso, como ainda hoje servem, nos países católicos. Junte-se o fato de que as primeiras esculturas de Cristo na cruz, de virgens, de santos, eram pintadas, e não precisamos lembrar mais que as madonas e os crucifixos pintados, tão numerosos que eram nas igrejas e ruas do continente, para compreender o significativo fato de que pintura e escultura estavam ainda estreitamente unidas à sua mãe, a arquitetura. Mesmo depois que a escultura cristã se diferenciou bem claramente da pintura, persistiu em seus assuntos religiosos e políticos; faziam-se mausoléus nos templos e estátuas para os reis; a pintura, por sua parte, quando não se consagrava aos serviços puramente religiosos, servia para a decoração dos palácios; e quando não representava pessoas reais, dedicava-se a assuntos sagrados. Só nos tempos modernos se secularizaram inteiramente a pintura e a escultura, dividindo-se a pintura em gêneros, chamados respectivamente de história, de paisagem, de marina, de gênero, de animais, de natureza morta etc. A escultura tornou-se também heterogênea, com respeito à variedade de assuntos reais ou imaginários que representa. Ainda que pareça raro, nem por isso é menos verdadeiro que todas as formas da linguagem escrita, da pintura e da escultura têm sua origem comum nas decorações político-religiosas dos templos e palácios antigos. O busto que hoje contemplamos sobre um console, a paisagem adicionada a uma parede, o número de jornal desdobrado sobre a mesa, não se parecem certamente, mas têm, sem dúvida, um longínquo parentesco de natureza e origem. A aldrava de bronze que o carteiro acaba de bater não só tem afinidade com a gravura do jornal que ele distribui, como também com os caracteres do bilhete amoroso que entrega. Os vitrais do templo e o livro de oração sobre o qual deixam filtrar a luz são da mesma família. Os bustos em nossas moedas, as vitrines das lojas, as vinhetas e lâminas de nossos livros, os brasões pintados nas carruagens, os anúncios fixos nas esquinas, são, como o são as bonecas, os papéis pintados etc., descendentes diretos das primitivas esculturas pintadas que os egípcios consagravam à glória e culto de seus reis-deuses. Não há, talvez, exemplo que mostre mais claramente a multiplicidade e heterogeneidade dos produtos que podem nascer com o tempo, e por efeito de diferenciações ou diversificações sucessivas, de uma origem comum. Antes de prosseguir, devemos observar que a passagem do homogêneo ao heterogêneo nas belas-artes se manifesta não só pela separação que destacou pintura e escultura da arquitetura, e depois uma de outra daquelas duas, e pela maior variedade de assuntos que representam, como também pela composição de cada obra. Qualquer pintura ou estátua moderna é mais heterogênea que as antigas. Um baixo-relevo pintado egípcio mostra todas as suas figuras em um mesmo plano, isto é, a igual distância dos olhos de quem o contempla, sendo, então, mais homogêneo do que uma pintura moderna, que apresenta as figuras a distâncias diferentes. Além disso, aquela apresenta os objetos todos sob a mesma iluminação, enquanto a pintura moderna confere aos distintos objetos, e mesmo a partes diferentes de um mesmo objeto, diversas quantidades de luz, o que é uma nova fase nessa passagem do homogêneo ao heterogêneo nas artes que examinamos. E ainda há mais: a pintura antiga só fazia uso das cores primitivas, em toda sua intensidade; era, pois, menos heterogênea que uma pintura moderna, que quando usa as cores primitivas o faz com certo cuidado, e emprega uma variedade infinita de matizes intermediários, numa composição heterogênea e diferenciada, em espécie e em intensidade. As obras de arte primitivas tinham todas uma grande uniformidade de composição: a mesma distribuição de figurantes se reproduzia indefinidamente, e nestes, as mesmas atitudes, as mesmas roupagens, os mesmos traços. No Egito, os modos de representação tinham tal fixidez, que era sacrílego introduzir uma novidade qualquer; e só assim, como consequência de um modo imutável de representação, era possível a escrita hieroglífica. Os baixos-relevos assírios apresentam características semelhantes: os deuses, os reis e seus séquitos, as figuras e animais alados aparecem sempre na mesma postura, com os mesmos instrumentos ou insígnias, ocupados com as mesmas coisas e com a mesma expressão ou falta de expressão em suas faces. Se o artista representou um grupo de palmeiras, por exemplo, todas têm a mesma altura, o mesmo número de folhas e se encontram espalhadas de maneira uniforme; se pintou o mar, todas as ondas são iguais; se há peixes, são idênticos e estão alinhados. As barbas dos deuses, dos reis, das figuras aladas são sempre iguais; as crinas dos leões todas se parecem, como também as dos cavalos. Os cabelos estão sempre penteados da mesma maneira, as barbas reais têm uma disposição quase arquitetônica: cada uma se compõe de cachos uniformes, alternados com mechas retorci das, dispostas transversalmente e com perfeita regularidade. A mecha de cabelo com que terminam as caudas dos touros e leões têm sempre representação idêntica. Sem que nos detenhamos em buscar na arte cristã primitiva fatos análogos, ainda que sejam visíveis, bastará, para deixar patente que no progresso reside a heterogeneidade, recordar que nas pinturas modernas a composição oferece variações infinitas; que as atitudes, fisionomias e suas expressões diferem prodigiosamente, que os objetos secundários têm volumes, formas, posições e distribuições diversas. E, enfim, que os detalhes apresentam contrastes mais ou menos marcantes. Veja-se uma estátua egípcia, sentada, rígida e direita, sobre um bloco da mesma matéria, as mãos sobre os joelhos, os dedos estendidos e paralelos, os olhos fixos à frente, os dois lados perfeitamente simétricos em todos os detalhes; compare-se com uma estátua moderna ou uma da boa época da arte grega, nas quais nada há disposto simetricamente, quer se trate de cabeça, corpo, membros, cabelos, vestimentas, acessórios, relações com objetos próximos, numa demonstração bem notável da passagem do homogêneo ao heterogêneo. § 125. A origem coordenada e a gradual diferenciação da poesia, da música e da dança, nos apresentam outra série de exemplos. O ritmo na linguagem, nos sons e no movimento era primitivamente partes de um mesmo conjunto, e não se separaram a não ser com a passagem do tempo; ainda hoje continuam unidos nas tribos bárbaras, nas quais as cerimônias políticas e religiosas são quase sempre acompanhadas de danças, de movimentos em conexão com cantos monótonos, bater de palmas e às vezes acompanhados de um instrumento de enorme simplicidade. Essas três formas de ação encontram-se também unidas nas festas religiosas mais antigas de que temos registros históricos. Assim, lemos nos livros hebreus que o hino triunfal composto por Moisés sobre a derrota dos egípcios era cantado pelos israelitas com acompanhamento de tambores e danças. Os mesmos cantaram e dançaram na inauguração do bezerro de ouro, cujo culto se admite ser a reprodução do culto do boi Ápis e seus mistérios; e é muito provável mesmo que a dança ante aquele fosse também a reprodução de danças egípcias ante Ápis e suas festas. Havia uma dança anual a Siloé na sua festa religiosa e Davi bailou ante a Arca da Aliança. Algo igual se verifica na Grécia, onde o culto a cada deus se reduzia muitas vezes a cantos e representações mímicas da vida do deus e seus feitos, sendo bastante provável que algo semelhante se passasse em outros países. As danças de Esparta eram acompanhadas de hinos e cantos e em geral os gregos não tinham festas e assembleias religiosas que não fossem acompanhadas de cantos e danças, formas de culto perante os altares. Os romanos tinham também suas formas de danças sagradas, como por exemplo as lupercais. Nos países cristãos, e mesmo em tempos modernos, como acontece em Limoges, o povo dança em um coro que homenageia um santo. Foi na Grécia que se separaram e perderam seu caráter religioso essas três artes, até então unidas e usadas exclusivamente com aquela característica. Muito provavelmente, das primitivas danças religiosas e guerreiras, de que eram exemplo as dos coribantes, vieram as danças guerreiras propriamente ditas, em suas várias classes, e por último, os bailes profanos, e danças nem religiosas e nem guerreiras. Ao mesmo tempo, a música e a poesia, até então unidas à dança, dela se separaram. Os primeiros poemas gregos eram religiosos, e não eram recitados, mas cantados: primeiramente, com um acompanhamento coral, e depois sem ele. A poesia dividiu-se depois em dois gêneros: épico e lírico, sendo chamados líricos os poemas cantados, e épicos os recitados. Nasceu então a poesia propriamente dita: ao mesmo tempo os instrumentos de música se multiplicaram, e pode-se presumir que também então a música se separou da poesia. Ambas começam então a tomar formas diferentes da religiosa. A história moderna mais uma vez nos apresenta fatos do mesmo significado: nossos antigos trovadores cantavam com a harpa ou com o alaúde versos heroicos ou amorosos que eles mesmos compunham e instrumentalizavam, unindo as funções, hoje separadas de poeta, compositor, cantor e músico instrumentista. Sem mais exemplos, podemos afirmar com toda certeza que a música, a poesia e a dança tiveram uma mesma origem e se separaram com o tempo, gradual e mutuamente. O progresso do homogêneo ao heterogêneo não se manifesta apenas pela separação que isola essas artes umas das outras da religião, mas também nas múltiplas diversificações que cada uma sofre sucessivamente. Não precisamos insistir sobre as inumeráveis espécies de danças usadas no correr dos séculos; prescindamos dos progressos da poesia, tais como se verificaram pelo desenvolvimento sucessivo das diversas formas de metrificação, das rimas, de sua organização geral e limitemo-nos a estudar os progressos da música como tipo deste grupo. Segundo afirma Burney, e nos revelam as tribos ainda em estado selvagem, os primeiros instrumentos musicais eram indubitavelmente de percussão, como cabaças e tantãs, apenas usados para compassar as danças; essa repetição constante do mesmo som constitui, indiscutivelmente, o estado mais homogêneo da música. Os egípcios já possuíam a lira de três cordas, os gregos uma de quatro - o tetracórdio - e ao fim de alguns séculos, esse instrumento já era de sete ou oito cordas. Foram necessários mil anos para chegar ao grande sistema da dupla oitava. Todas essas mudanças trouxeram naturalmente uma grande heterogeneidade na melodia; ao mesmo tempo se começaram a usar os distintos modos, o dórico, o jônico, o frígio, o eólico e o lídio, que correspondiam às nossas claves, e que chegaram a quinze. Até então, contudo, a música apresentava pouca heterogeneidade. A música instrumental era apenas acompanhamento da vocal e esta era totalmente subordinada às palavras. O cantor era também poeta; cantava suas composições e arranjava as notas da música de acordo com os versos; assim, resultava uma melodia cansativa e monótona que, no dizer de Burney, nenhum recurso artístico poderia melhorar, pois faltando o ritmo complexo, que hoje se usa, com medidas iguais e notas diferentes, resultado apenas da quantidade de sílabas, era e devia ser forçosamente monótono. Além disso, o canto não era mais que uma espécie de declamação e se diferenciava muito menos da linguagem falada do que do canto moderno. contudo, levando em conta a extensão das notas usadas, a variedade dos modos, as variações acidentais da medida que dependiam da mudança da metrificação e a multiplicação dos instrumentos, vê-se que no último período da civilização grega a música era já bastante heterogênea, não comparada, evidentemente, com a música moderna, mas em relação à precedente. Até essa época a harmonia era algo completamente desconhecido, conhecida que era apenas a melodia. Só quando a música religiosa cristã alcançou certo desenvolvimento se viu nascer a harmonia, por efeito de uma diferenciação cuja moda e forma são inapreciáveis. É difícil, certamente, conceber a priori essa passagem da melodia à harmonia, a não ser por um salto brusco, mas é indiscutível que essa passagem se verificou, de uma ou de outra maneira. Talvez tenha preparado essa passagem o emprego dos corais, cantando alternativamente a mesma ária, um começando seu canto antes que outro terminasse, o que, dados os cantos singelos de então, podem muito bem ter originado uma fuga, harmoniosa, ainda que em muito pequena parte, pois só assim agradava então aos ouvidos, como provam os exemplos conservados. Dada já a ideia, desenvolver-se-ia naturalmente a composição de trechos com harmonia de fugas, como estas haviam nascido de corais alternantes; e da fuga aos concertantes de duas, três e quatro partes, era fácil a transição. Sem descrever em detalhes o aumento de complexidade que resultou da introdução de notas de várias longitudes, da multiplicação das claves, do uso dos acessórios das variedades de tempo, modulação etc.; bastará recordar o que era a música primitiva e compará-la com a atual para deixar patente seu imenso progresso do homogêneo ao heterogêneo. Basta considerar a música em seu conjunto, enumerar seus vários gêneros e espécies: música vocal, instrumental e mista, e as subdivisões nas diversas vozes e instrumentos, observar as várias formas de música sagrada ou religiosa, desde o hino simples, o moteto, o canônico, a antífona até o oratório e a missa completa; e as formas de música profana, ainda mais variadas, desde a balada até a serenata, e desde o solo instrumental até a sinfonia. Analogamente, se reconhece também a lei do progresso comparando um trecho de música primitiva com um trecho de música moderna; esta é muito mais heterogênea não só pela variedade de longitude e altura das notas: o número de notas distintas que soam no piano, por exemplo, acompanhando por sua vez um trecho de canto e as variações de força em que de maneira alternada dominam seja a voz, seja o instrumento; considerando também as mudanças de claves, de tempos, de timbre de voz, e outras muitas modificações de expressão. Por outra parte, há tão imenso contraste entre a homogeneidade do antigo e monótono canto de baile e a heterogeneidade de uma ópera, que é quase incrível ser esta uma descendente daquele. § 126. Se necessário for, podem-se dar mais provas. Nos tempos primitivos, as ações do Rei-Deus eram cantadas e representadas em pantomimas, dançando em redor do altar; depois, se registravam nas paredes dos templos e dos palácios, criando assim uma espécie de literatura primitiva, cujo sucessivo desenvolver é fácil de ser seguido. Por exemplo, nas escrituras hebraicas estão reunidos a teologia, a cosmogonia, a história, a legislação, a moral e a poesia. Em outros livros - a Ilíada é um bom exemplo - se vê a mesma mistura de elementos religiosos, guerreiros, históricos, épicos, dramáticos e líricos. Em nossos dias, pelo contrário, o desenvolvimento heterogêneo da literatura, na sua mais completa acepção, apresenta divisões e subdivisões tão numerosas que desafiam toda classificação. Poderíamos seguir também o desenvolvimento da Ciência, desde a época em que ainda unida à Arte, sofriam ambas o jugo da Religião; passando logo ao período em que as ciências eram ainda tão poucas e rudimentares que podiam ser estudadas e dominadas pelos mesmos filósofos, até chegar aos tempos presentes em que os gêneros e espécies de ciência são tão numerosos que muito poucos saberão sequer enumerá-los e ninguém consegue dominar completamente todo um gênero. Igualmente poderíamos invocar, como testemunhas de nossa tese, o desenvolvimento da Arquitetura, do drama, das vestimentas, não estivesse o leitor já fatigado e julgando desnecessárias novas provas. Com aquelas que já demos acreditamos ter deixado fora de dúvida que o princípio descoberto pelos fisiólogos alemães como uma lei do desenvolvimento orgânico, é lei de todo o desenvolvimento e se manifesta nas primeiras mudanças do Universo, tanto induzi das quanto deduzidas hipoteticamente na evolução geológica e meteoro lógica da Terra; em cada um dos organismos que nela vivem; na evolução da humanidade, tanto em cada indivíduo civilizado como nas raças e seus grupos; na evolução da sociedade, sob o tríplice ponto de vista de suas instituições religiosas, políticas e econômicas; e enfim na evolução dos inúmeros produtos abstratos e concretos da atividade humana, mais ou menos necessários para a vida social. Desde o passado mais remoto que alcança a Ciência até as últimas novidades de todos os gêneros, a evolução, o desenvolvimento de todo ser tem como principal característica a passagem de um estado homogêneo para um heterogêneo. § 127. A fórmula dada no capítulo anterior tem, assim, necessidade de ser completada. É verdade que a evolução consiste na passagem de uma forma menos a outra mais coerente, consequência de uma dissipação de movimento e uma integração simultânea de matéria, mas isso é apenas uma parte da verdade. Ao lado da passagem do incoerente para o coerente, há outra, do homogêneo ao heterogêneo, do uniforme para o multiforme; ao menos na evolução composta, isto é, na imensa maioria dos casos, nos quais enquanto se verifica uma concentração progressiva, seja por uma maior condensação da mesma matéria, seja por uma agregação de mais matéria, seja por ambas as causas; o conjunto se divide e subdivide em partes, cada vez mais numerosas e dessemelhantes por seu volume e por sua forma, por sua estrutura, por sua composição ou por vários desses caracteres. A mesma operação dupla que se verifica no conjunto também se vê por toda parte; aquele se integra e se diferencia de outros conjuntos; cada parte se integra e se diferencia das outras partes do mesmo todo. O conceito da evolução composta deve, pois, reunir esses dois caracteres, e, portanto, podemos defini-la como a passagem de uma homogeneidade incoerente a uma heterogeneidade coerente, como consequência de uma dissipação de movimento e uma integração de matéria. XVI A lei da evolução (continuação) § 128. A generalização resumida no capítulo anterior expressa toda a verdade? Compreende todos os caracteres da evolução e nenhum mais? Abrange todos os fenômenos de redistribuição secundária, excluindo todos os demais fenômenos possíveis? Não, como nos vai provar um exame crítico de alguns fatos. Em toda enfermidade localizada, há mudanças do menos ao mais heterogêneo, que não entram, indiscutivelmente, nos fenômenos da evolução. De fato, quando uma parte do corpo é lugar de uma produção mórbida, sofre uma modificação. Pois bem: não importa saber se essa produção é ou não mais heterogênea que os tecidos em que se forma, mas saber se o organismo enfermo, considerado em seu todo tornou-se ou não mais heterogêneo pela adição de uma parte que não se parece com nenhuma das já existentes, em forma, em estrutura ou em ambas. A tal questão não há mais de uma resposta possível, e esta é a afirmativa. E ainda mais, os primeiros graus de decomposição de um corpo morto aumentam sua heterogeneidade; pois claro está que começando, como começam os fenômenos químicos da decomposição, numas partes, antes que em outras, e operando-se distintamente nos diversos tecidos, todo corpo morto, começando a se decompor é mais heterogêneo do que quando vivo. Se o resultado da decomposição cadavérica é uma homogeneidade, o resultado imediato é uma heterogeneidade ainda maior; e certamente esse resultado imediato não é um fenômeno de evolução. Exemplos análogos são encontrados nas desordens e agitações sociais; uma sublevação que, deixando tranquilas algumas províncias se manifesta em outras por associações secretas, seja por demonstrações públicas mais ou menos pacíficas, seja por luta armada, torna sem dúvida a sociedade mais heterogênea, mas também não é um fenômeno de evolução. Quando a penúria produz uma paralisação nos negócios comerciais, com seu cortejo de falências, fabricas fechadas, motins, incêndios, enquanto outra parte da sociedade segue em suas ocupações normais, é evidente que também nesse caso se aumenta a heterogeneidade, não como um fenômeno evolutivo, mas como uma dissolução, tal e qual ocorre nos outros exemplos citados. Vê-se, claramente, que a definição dada no final do capítulo anterior não é perfeita, uma vez que abrange mudanças como as que acabamos de citar, e que longe de serem evolutivos, são na verdade os primeiros passos da dissolução. Supramos a lacuna, estudando as diferenças que separam as mudanças da classe ultimamente citadas daquelas própria e genuinamente evolutivas. § 129. Além de ser uma passagem do homogêneo para o heterogêneo, a evolução é ainda uma passagem do indefinido para o definido. É um progresso a um só tempo do simples para o complexo e do confuso para o ordenado, do indeterminado para o determinado. Em todo desenvolvimento, ou processo evolutivo, há não apenas uma multiplicação de partes heterogêneas, como também uma crescente clareza na distinção dessas partes entre si. Essa é a característica que nos faltava emprestar à evolução, e para comprovar sua existência nos fenômenos dessa ordem e sua ausência nos demais. Examinemos primeiramente os casos antes citados. As mudanças que constituem uma enfermidade não têm, em geral, as características determinadas de lugar, extensão, configuração e etc., que apresentam os fenômenos fisiológicos, ou de desenvolvimento normal do organismo; ainda que alguns fenômenos enfermiços sejam mais frequentes em algumas partes do corpo do que em outras (como as verrugas nas mãos, o câncer de mamas, a tuberculose nos pulmões) não são exclusivos delas; além disso, as posições que ocupam não são tão determinadas como as dos órgãos e tecidos normais; suas extensões também costumam ser indeterminadas, não guardando relação fixa com o corpo; suas formas e estruturas são mais confusas, menos específicas: em resumo, são indeterminados na maioria de suas características ou atributos essenciais. O mesmo acontece com os primeiros produtos da decomposição cadavérica; o estado de indeterminação e de amorfismo a que chega finalmente um corpo morto, é aquele a que tendem desde o princípio todos os fenômenos de putrefação; a destruição progressiva de todos os compostos orgânicos produz outros corpos, de formas e estruturas menos distintas ou determinadas; das partes que mais sofreram decomposição se passa por transição às que menos sofreram; pouco a pouco desaparecem as características da organização, antes tão claras e evidentes. Analogamente, nas mudanças sociais de caráter anormal, o ponto de partida ou origem de um movimento revolucionário corresponde sempre a um relaxamento dos laços hierárquicos sociais; crescendo a agitação formam-se juntas revolucionárias, e as categorias, antes separadas, passam a se confundir; atos de insubordinação destroem os limites marcados pelos direitos e deveres recíprocos, confundindo chefes com subordinados; a paralisação dos negócios e trabalhos faz com que cesse, ainda que internamente, a distinção entre ofícios e profissões, e que todos, ou quase todos os cidadãos formem uma massa homogênea indeterminada; especialmente quando no seu auge, cessam todos os poderes constituídos, as distinções de classes, as diferenças profissionais; e a sociedade, antes organizada, apenas é um conjunto de unidades sociais, sem organização. O mesmo acontece quando guerras, fome ou epidemias transformam a ordem em desordem ou mudam uma ordem determinada ou definida em outra indeterminada ou indefinida. Assim, pois, as primeiras mudanças advindas da enfermidade ou da morte, tanto do indivíduo quanto da sociedade, aumentam a heterogeneidade preexistente, não aumentam as características definidas preexistentes; as quais, pelo contrário, tendem a se desfazer ou apagar, e dar por resultado uma heterogeneidade indeterminada, em vez de determinada; nisso se distingue o aumento de heterogeneidade que constitui a evolução daquele que a ela não pertence. Assim como uma cidade já multiforme por sua diversidade de estruturas arquitetônicas pode se fazer mais multiforme por um terremoto que, deixando de pé alguns edifícios arruíne os demais, de várias maneiras e em vários graus, passa evidentemente de uma situação ordenada a outra desordenada; também os corpos organizados, individuais ou sociais, podem fazer-se mais heterogêneos em virtude de fenômenos de dissolução ou desorganização; em um ou noutro caso a ausência de caracteres definidos é o que distingue a heterogeneidade não evolutiva da evolutiva. Se a passagem do indefinido ao definido é uma característica essencial da evolução, veremos que ela se manifesta em todos os lugares em que esteja presente um processo evolutivo, como vimos que se manifesta a passagem do homogêneo para o heterogêneo. Vamos recorrer às várias classes de fenômenos que já enumeramos. § 130. Cada época da evolução do Sistema Solar, supostamente formado de matéria difusa, ou nebulosa, foi um passo para uma estrutura mais bem definida. De fato, irregular e sem limites precisos, primeiramente, essa matéria difusa, origem do dito sistema, deve ter tomado a forma de um esferoide achatado e cada vez mais denso, à medida que a matéria se integrava e adquiria seu movimento rotatório; ou seja, deve ter sido marcada clara e distintamente a separação de seu contorno ou superfície do vazio à sua volta. Por sua vez, verificar-se-ia também uma mudança análoga: as distintas partes da nebulosa, que a princípio tinham movimentos independentes, em diversos planos e sentidos, para o centro comum de gravidade, logo se moveriam juntas, em planos e sentidos paralelos, ou seja, em movimentos mais definidos ou determinados. Seguindo a mesma hipótese, se deduz a ocorrência de mudanças análogas na formação dos planetas e satélites, e pode-se ir mais além, nessas deduções. Um esferoide gasoso tem um limite menos determinado que um esferoide líquido, uma vez que a superfície daquele está submetida a ondulações mais extensas e rápidas, e a deformações maiores do que este, o qual por sua vez é menos definido do que um esferoide sólido, pela mesma razão. A diminuição do achatamento que acompanha o aumento da integração dá também um caráter mais definido aos outros elementos astronômicos. Um planeta cujo eixo está inclinado em relação ao plano de sua órbita deve, se sua forma for muito achatada, estar mais sujeito a mudar seu plano de rotação, pela atração dos corpos circunvizinhos; mas se tem uma forma aproximadamente esférica, o que implica em um movimento de precessão muito débil, sofrerá menos variações na direção de seu eixo. Ao mesmo tempo em que as relações de espaço, também se estabelecem gradualmente as de força, hoje tão precisas, como comprovam a exatidão dos cálculos e previsões astronômicas; estando, pelo contrário, manifesto o caráter indefinido do primitivo estado nebular, impossibilitado de se submeter aos mesmos cálculos. § 131. O estado primitivo de fusão da Terra, como se induz dos dados geológicos, se explica pela hipótese nebular, não existindo outra que a substitua. Esse estado mudou pouco a pouco para o estado atual, passando por etapas cada vez mais definidas. Sabe-se que um esferoide líquido é menos definido que um sólido, não apenas porque seu contorno ou superfície é relativamente mais instável, como também porque suas partes têm mais mobilidade, menos fixidez; e se as correntes de matéria fundida estão sujeitas a circuitos, determinadas pelas condições de equilíbrio do esferoide, é claro que suas direções não podem se fixar de maneira permanente, enquanto não estejam confinadas por limites sólidos. Uma solidificação, ainda que parcial, da superfície, representa um passo para o estabelecimento de relações de posição mais fixas ou determinadas; contudo, com uma crosta delgada, frequentemente rompida por forças interiores e à mercê das ondulações das marés, a fixidez de posições relativas apenas pode ser temporal, até que adquirida por essa crosta mais espessura e resistência, se estabeleçam relações geográficas fixas e permanentes. Deve-se também notar que depois que a superfície se resfriou bastante, os depósitos aquosos, formados pela precipitação do vapor de água flutuante na atmosfera, não puderam guardar também posições determinadas; a água cai sobre uma crosta sólida que não é bastante espessa para conservar as deformações que implicam em grandes variações de nível, não podendo formar senão bolsões pouco profundos sobre as superfícies frias, em que se condensou. Estas devem ainda se aquecer, às vezes, o bastante para vaporizar outra vez a água que as cobre. Mas, à medida que o resfriamento progride, que a crosta se faz mais espessa, e se formam mais elevações e depressões, a água que se precipita forma posições mais estáveis, até chegar a constituir a atual distribuição de mares e terras; a qual não apenas se encontra determinada geograficamente, como apresenta, graças às costas rochosas, limites mais definidos que os existentes quando as superfícies não submersas eram terras baixas com encostas muito inclinadas, que o fluxo invadia a grandes distâncias e o refluxo abandonava. Induções análogas podem-se formar com relação às características geológicas da parte sólida terrestre; quando esta era delgada, as cordilheiras de montanhas eram impossíveis de se formar; não poderiam existir eixos de levantamento, grandes e definidos, com vertentes e bacias bem marcadas; os desgastes das pequenas ilhas pelos riachos e débeis correntes marinhas não podiam produzir placas sedimentares bem distintas, mas apenas massas confusas e variáveis de detritos, tais como as que ainda hoje se formam nas embocaduras dos pequenos rios; eram precisos os grandes continentes e oceanos, e os grandes rios, com suas grandes costas e margens, e imensas correntes marítimas, para a formação das extensas e bem definidas estratificações que hoje compõem a crosta terrestre. Quanto aos fenômenos meteorológicos, não há necessidade de entrar em muitos detalhes para compreender como foram se fazendo mais definidos com o progresso da evolução da Terra; as diferenças de climas e estações se fizeram evidentemente mais assinaladas quando o calor solar cessou de confundir seus efeitos com o do calor terrestre, e quando a situação já estabelecida, de terras e mares, favoreceu a produção das condições específicas de cada localidade. § 132. Examinemos agora a lei de que tratamos, no que respeita aos seres orgânicos. Para isso não necessitamos de exemplos hipotéticos, que sirvam de fundamento a raciocínios dedutivos; bastam-nos fatos bem comprovados e as induções subsequentes, tudo menos exposto a uma crítica fundada do que as hipóteses e raciocínios do parágrafo anterior. O desenvolvimento dos mamíferos, por exemplo, nos fornece bastantes provas, nos fenômenos já bem descritos por embriologistas e fisiólogos. A primeira mudança que o óvulo de um mamífero experimenta, depois que as primeiras divisões reduziram a gema, ou vitelo, a uma massa pastosa, é a aparição de um estado mais definido nas células periféricas da massa, cada uma das quais toma sua película ou parede própria. Essas células periféricas, ligeiramente distintas das internas por uma divisão mais fina e um estado mais completo, se soldam em seguida, para formar o blastoderma, ou membrana germinativa. Logo uma parte dessa membrana se diferencia do restante, pela acumulação de células, ainda mais subdivididas, que formam uma mancha arredondada, a área germinativa, a qual se funde insensivelmente com as partes próximas do blastoderma, e a área pelúcida, que se forma logo no meio daquela, logo que apresenta os contornos distintos. A linha primitiva que depois aparece no meio da área pelúcida, e que é o rudimento da coluna vertebral, ou seja, da característica fundamental do animal desenvolvido, não é, como seu nome indica, mais que uma linha, começando por um sulco superficial pouco a pouco mais profundo; logo seus contornos se elevam, se dobram e por fim se unem, formando assim, de um sulco vagamente definido, um tubo bem determinado - o conduto vertebral. Neste se distinguem pouco a pouco indícios das principais divisões encefálicas, sob a forma de pequenas protuberâncias; por outro lado, ligeiras modificações no tecido que limita o conduto, indicam o primeiro grau de formação das vértebras. Ao mesmo tempo, a parte externa do blastoderma se diferencia da interna, dividindo-se em duas folhas ou membranas, a mucosa e a serosa, divisão a princípio só perceptível ao redor da área germinativa, mas que logo se estende gradualmente a toda a membrana. Da folha mucosa nasce o tubo digestivo e da serosa o conduto vertebral. Aquele não é inicialmente senão um sulco simples na superfície inferior do embrião, cujos contornos se levantam, se dobram e se unem para formar o conduto. Analogamente, o embrião inteiro, implantado primeiramente na membrana vitelina, se separa dela, à qual não fica unido senão por um conduto fino - o cordão umbilical. As mudanças que dão à estrutura geral uma precisão crescente têm seus análogos na evolução de cada órgão. O coração não é de início mais que uma aglomeração de células, das quais as externas se transformam em paredes e as internas em sangue; nesse estado é muito vaga sua distinção do restante do organismo, não apenas porque não está limitado ainda por nenhuma membrana como também porque nada é mais que uma dilatação do vaso sanguíneo central. Pouco a pouco a parte da cavidade cardíaca que vai servir de depósito se distingue e se separa da que vai servir de órgão propulsor, e depois começam a formar-se as paredes divisórias em cada uma dessas duas cavidades em outras duas: primeiro a dos ventrículos, depois a das aurículas, que permanece incompleta durante toda a vida fetal, ou intrauterina. O fígado principia por um aglomerado de células na parede intestinal; essas células se multiplicam formando uma protuberância na parede externa do intestino, e enquanto se desenvolve e se separa, os canais que primeiramente o atravessam se transformam em condutos de paredes bem distintas. Analogamente, algumas células da túnica externa de outra porção do intestino se acumulam, formando pequenas protuberâncias, rudimentos dos rins, que também vão adquirindo gradualmente características mais diferenciadas, em forma e em estrutura. As mudanças dessa ordem continuam por muito tempo, mesmo após o nascimento; alguns órgãos não chegam ao seu completo desenvolvimento a não ser na metade da vida. Na juventude, a maior parte das superfícies articulares dos ossos estão rugosas e fendidas pela incrustação irregular, sobre as cartilagens, dos sais de cálcio; mas dos quinze aos trinta anos, no homem, tais superfícies articulares, já completamente desenvolvidas, apresentam-se lisas e duras, como se tivessem sido cortadas por um instrumento. Pode-se em geral dizer que essa característica, de passagem do menos definido ao mais definido, continua mesmo depois que cessa o crescimento da heterogeneidade. De fato, as modificações verificadas depois da idade viril, até a proximidade da morte, são da mesma natureza; os tecidos se fazem mais rígidos, tornando em consequência mais limitados os movimentos e as funções, mais precisa e menos variável a coordenação orgânica, e por isso menos adaptável às condições exteriores. § 133. Certamente, não podemos provar que a fauna e a flora da Terra, seja no conjunto, seja em cada uma das espécies, tomaram caráter cada vez mais definido, assim como provamos no capítulo anterior seu aumento em heterogeneidade. As lacunas que a paleontologia não pode ainda preencher impedem que se deduza aquela conclusão com tanto fundamento quanto há para se deduzir esta última. Mas, se nos é lícito raciocinar, na hipótese cada vez mais provável de que todas as espécies, até a mais complicada em sua organização, provêm de outras mais simples pela sucessiva acumulação de modificações, é fácil deduzir que deve haver um progresso do indeterminado para o determinado, tanto nas formas específicas quanto nos grupos de formas. Os organismos inferiores, análogos em sua estrutura aos germes dos organismos superiores, têm suas características tão vagas que é difícil, senão impossível, decidir se são animais ou se são plantas; fato muito significativo, e que podemos considerar um ponto de partida. Muitos desses organismos são ainda objetos de controvérsias entre os naturalistas, e já se chegou a propor formar com eles um reino à parte, uma base comum dos reinos vegetal e animal. Contudo, nos protozoários, são em geral vagas as formas: alguns rizópodes, sem conchas, têm uma forma tão irregular que não há como ser descrita; nunca é igual em dois indivíduos, e nem mesmo em um só indivíduo em momentos diferentes. A agregação desses seres produz outros corpos - as esponjas - indeterminados quer na sua forma, quer no seu volume, quer em sua estrutura. Para fixar bem como são indeterminados esses organismos primários, basta levar em conta que nos protozoários e protófitos há muitas formas, antes classificadas como espécies distintas e hoje admitidas como variedades da mesma espécie. Se, pelo contrário, lembramos como são precisas as características, como são distintos os contornos e como são determinadas as proporções métricas de seus diversos órgãos, e como é constante a estrutura dos organismos superiores, não podemos negar a lei que discutimos, no conjunto de seres orgânicos da Terra, considerados como uma fase da evolução universal. Mas devemos, contudo, resolver outra questão: as diferenças entre os vários grupos de seres de uma mesma categoria, espécies, gêneros, ordens etc., tornaram-se também maiores ou mais profundas ao longo dos séculos? Esta proposição não é mais suscetível de provas decisivas que a anterior. Deve, pois, segui-la ou cair com ela. Contudo, se as espécies ou gêneros são o resultado de uma seleção natural, faz-se necessário, como diz Darwin, que tenha existido uma tendência a separar-se, cada vez mais, cada grupo de seus grupos afins, o que deve ter-se realizado, principalmente, pelo desaparecimento de formas intermediárias, menos próprias para certas condições de existência que as formas extremas, a que essas formas intermediárias serviam como traço de união; assim passaram variedades vagamente distintas e pouco estáveis a espécies bem distintas e estáveis, dedução comprovada atualmente pelo que sabemos das raças humanas e animais domésticos. § 134. As fases sucessivas que as sociedades atravessam manifestam indiscutivelmente o progresso de uma coordenação indeterminada para uma determinada. Uma tribo nômade de selvagens é muito menos determinada nas posições relativas de seus elementos sociais do que uma nação já constituída; naquela, as diversas relações sociais estão parcialmente confundidas e mal dispostas, a autoridade política não tem características precisas, não está bem estabelecida, as distinções de classes não estão marcadas; não existem divisões industriais além das ocupações diferentes de um sexo e de outro; apenas nas tribos que escravizaram outras tribos existe uma divisão econômica bem marca da, de amos e escravos, servidos e servidores. Quando uma dessas sociedades primitivas começa a progredir, se faz gradualmente mais específica; primeiro, cessa seu nomadismo, estabelecendo-se e fixando seu território de maneira mais ou menos precisa, não sem ter enfrentado por vezes uma guerra de fronteiras. A distinção entre chefe e povo chega a consistir, para este, em uma diferença de natureza; a classe militar chega a separar-se completamente da classe obreira rural ou de outra qualquer vista como servil; forma-se uma casta sacerdotal, distinta pelo seu nível, funções e privilégios. As características distintivas das várias classes e funções sociais vão, então, fazendo-se mais marcadas à medida que as sociedades avançam em sua civilização, e alcançam sua máxima fixidez nas sociedades que, tendo chegado ao término de sua evolução, começam a declinar ou a se dissolver. No Egito antigo, até onde alcança a história, as divisões sociais eram muito profundas e os costumes imutáveis. As descobertas recentes demonstram cada vez mais que para os assírios e os povos deles próximos, as leis eram inalteráveis como também o eram os hábitos menos importantes, como as rotinas domésticas, que adquiriam um caráter sagrado, o que lhes assegurava a permanência. Na Índia, mesmo atualmente, as distinções invariáveis de casta e a persistência com que as populações continuam com os mesmos trajes, os mesmos procedimentos industriais, as mesmas cerimônias religiosas, nos mostram a fixidez das coordenações sociais de uma antiguidade já muito remota; sendo outro exemplo notável o da China com sua antiga e imutável organização política, suas precisas e sábias convenções e sua imóvel literatura. As sucessivas fases de nossa própria nação e das nações vizinhas apresentam fatos de uma espécie um tanto diferente, mas de igual significado: a princípio, a autoridade monárquica era mais baronial e a autoridade baronial mais monárquica que depois. Entre os sacerdotes atuais e os da Idade Média, que eram a uma só vez juízes, guerreiros, arquitetos etc., existe uma grande diferença; as funções sacerdotais se fizeram mais distintas, mais precisas. Analogamente, encontra-se essa crescente separação de funções nas demais classes sociais; a classe industrial, separada da classe militar, se dividiu e subdividiu cada vez mais, e mais marcadamente distinta. Os poderes dos reis, dos lordes e demais autoridades foram gradualmente se distinguindo. Seguindo a história da legislação, vamos encontrar inúmeros fatos, suscetíveis de idêntica interpretação; veríamos, por exemplo, que as leis foram se fazendo cada vez mais específicas em suas aplicações, sucessivamente, a casos mais particulares. Mesmo hoje, vemos que uma lei começa por uma proposição vaga que vai se dividindo e subdividindo em títulos, artigos e cláusulas; e ainda adquire mais precisão, pelas interpretações que lhes dão os tribunais. Também se nota o mesmo no desenvolvimento de algumas instituições menos importantes, sociedades literárias, religiosas, beneficentes etc., principalmente aquelas com fins e meios apenas vagamente esboçados e facilmente modificáveis; logo, pela acumulação de regras e precedentes, os fins e os meios de alcançá-los se tornam mais precisos e adquirem uma fixidez, já inaplicável em novas condições. Se objetamos que nas nações civilizadas há exemplos de um decréscimo na distinção de classes, pode-se responder que tal corresponde a um sintoma de uma transformação social: por exemplo, da passagem do regime militar ao industrial ou comercial, durante a qual as antigas linhas de separação desaparecem enquanto surgem outras novas e mais marcantes. § 135. Todos os resultados orgânicos e superorgânicos da ação social passam por fases paralelas àquelas que reconhecemos nos parágrafos anteriores; produtos objetivos de operações subjetivas, devem apresentar mudanças correlativas às destas: a linguagem, a Ciência e as artes o provam. Se apagamos de uma cláusula todas as palavras que não sejam verbos ou substantivos, vemos o caráter de imprecisão das línguas na sua infância. Mesmo com essas únicas duas classes de palavras podemos observar a maior precisão que dão à linguagem as conjugações e declinações; precisão que cresce depois com o uso de adjetivos, artigos, advérbios e demais partes da oração. O mesmo efeito produz a multiplicação das palavras de uma mesma classe; quando são poucas, a acepção de cada substantivo, verbo, adjetivo etc., é muito ampla, tendo por isso pouca precisão; assim, as línguas antigas precisam valer-se de alegorias e metáforas, para expressar indireta e vagamente o que não podem expressar de maneira clara e direta, por falta de palavras. Mesmo nas línguas modernas acontece o mesmo aos indivíduos de pouca instrução; por exemplo, compare-se a resposta de um homem do povo que interrogado sobre um medicamento que leva consigo, diz que "é um remédio do doutor para minha mulher que está mal", com a explicação dada pelo médico a pessoas esclarecidas como ele, da composição do medicamento, e da enfermidade para a qual o prescreveu, e ver-se-á comprovado quanto mais precisão dá à linguagem a multiplicação das palavras. Além disso, no curso de sua evolução, cada idioma adquire também maior precisão pelas operações que fixam as acepções de cada palavra e de cada frase; as gramáticas e os dicionários, e por fim, a linguagem das pessoas instruídas não permite a menor imprecisão, tanto nas acepções das palavras quanto em suas combinações gramaticais. Por último, as diversas línguas consideradas cada uma como um todo, se separam cada vez mais umas das outras e de sua mãe comum, como o provam, entre as antigas o latim e o grego, nascidas da mesma origem, e, contudo, tão distintas; entre as modernas, o espanhol, o francês e o italiano, oriundas as três do mesmo latim. § 136. Em seu livro History of lnductive Sciences, dr. Whewell afirma que os gregos não puderam constituir uma filosofia natural, porque suas ideias não eram bem claras, nem em consonância com os fatos. Não cito a proposição pelo seu brilho, pois poder-se-ia dizer que a imperfeição de sua filosofia natural foi a causa da falta de precisão e exatidão de suas ideias; cito essa passagem como prova do caráter indeterminado da ciência primitiva. A obra citada, e seu complemento Philosophy of Inductive Sciences, fornece outra multidão de provas da lei que estudamos. A Geometria nasceu de casos ou problemas concretos, e suas várias proposições abstratas não adquiriram a clareza e a precisão suficientes; até que Euclides as colocou em séries coordenadas. Progresso semelhante se observa na passagem do método dos indivisíveis e da exaustão, terminando no método dos limites, que é a ideia central do cálculo infinitesimal. Em Mecânica, o princípio da ação e reação, ainda que vagamente vislumbrado, não foi clara e distintamente formulado até Newton, nem o da inércia até Kepler. O conceito das forças estáticas ou em equilíbrio não havia sido claramente exposto até Arquimedes, e o das forças aceleradoras não era ainda perfeito até Kepler e seus contemporâneos, e não foi bastante claro para servir às necessidades de um bom raciocínio científico até o século seguinte. junte-se a esses fatos de que as palavras e as frases de acepção vaga, antes que fossem conhecidas as leis do movimento, vieram a adquirir depois um significado mais preciso. Se das ciências abstratas passamos às concretas, seguiremos observando a verificação da lei. As predições astronômicas, por exemplo, eram feitas antigamente com erros de dias quanto à produção de alguns fenômenos celestes, que hoje são previstos com uma precisão de alguns décimos de segundo. As órbitas planetárias, primeiramente supostas circulares, depois epicíclicas e depois elípticas, são hoje reconhecidas como curvas de dupla curvatura, que sofrem constantes mudanças. Mas o que melhor caracteriza o progresso da Ciência, em precisão, é o contraste entre os períodos qualitativo e quantitativo. Antigamente, apenas se sabia que entre tais e quais fenômenos havia conexão de coexistência ou de sucessão, mas não se sabia a natureza dessa conexão nem que quantidade do fenômeno A ou B acompanhava ou seguia o fenômeno c ou D. O progresso científico consistiu, em sua maior parte, na transformação dessas conexões vagas em relações precisas; foram classificadas em mecânicas, térmicas, químicas etc., e se aprendeu a deduzir exatamente, ou com grande aproximação, o valor dos antecedentes, dos consequentes, e vice-versa. Tendo já apresentado vários exemplos correspondentes à Física, examinaremos agora outros, das demais ciências. Em Química analisou-se, até quantitativamente, numerosos compostos que nossos pais não analisaram nem mesmo qualitativamente, e determinaram-se, com toda exatidão, os equivalentes dos elementos. Em Fisiologia, o progresso da previsão qualitativa à quantitativa se revela na determinação das quantidades de matérias produzidas e consumidas, e na medida da intensidade das funções com o esferômetro, o esfigmógrafo etc. Em Patologia, se manifesta esse mesmo progresso pelo emprego do método estatístico para determinar as origens das enfermidades e os efeitos de cada tratamento. Em Botânica e Zoologia, temos um exemplo, na fixação da origem das faunas e floras, por sua comparação numérica. E por último, em Sociologia, por mais discutíveis que sejam as conclusões induzi das nos censos oficiais de população, das tabelas do Board of Trade, dos processos criminais, e etc., é forçoso reconhecer que esses meios de fazer constar os fenômenos sociais são um progresso real para seu mais perfeito conhecimento. Notemos finalmente que se se entende por Ciência, como é lógico, o conhecimento definido, preciso, em oposição ao conhecimento indefinido, vago, que possui o vulgo, é uma trivialidade fazer consistir o progresso científico no crescimento da precisão. Se a Ciência foi, como não se pode negar, o desenvolvimento gradual, através dos séculos, do conhecimento vulgar, é natural que o caráter dominante de sua evolução tenha sido a conquista gradual dessa precisão que em tão alto grau já possui. § 137. As artes industriais e as belas-artes nos oferecem exemplos ainda mais notáveis. As ferramentas de sílex, descobertas há pouco em alguns depósitos geológicos modernos, demonstram que as primeiras obras da mão humana careciam totalmente de precisão; ainda que as armas e ferramentas dos selvagens contemporâneos representem já um grande avanço sobre as da idade da pedra, ainda são muito distintas daquelas dos povos civilizados, na sua forma e sua efetividade. Os produtos das nações já algo civilizadas apresentam as mesmas deficiências, embora em grau menor. Assim, um junco chinês, com todos os seus acessórios, não apresenta linhas retas e nem curvaturas uniformes. Até nos móveis de nossos antepassados pode-se notar essa inferioridade, em comparação com os nossos. Desde a invenção das máquinas ferramentas, é possível polir arestas e superfícies tão retas e planas, que podem coincidir perfeitamente umas com outras. As máquinas de cortar, os micrômetros, os microscópios micrométricos permitem medir comprimentos e ângulos com tal aproximação que sobrepuja tanto a de nossos bisavôs, quanto a destes sobrepujava a dos antigos celtas. Em belas-artes, partindo dos ídolos primitivos, encontramos esculturas em cujos membros não se destaca nenhum músculo, cujas roupas parecem de madeira, cujas fisionomias são semelhantes, e logo encontramos as belíssimas estátuas gregas ou mais modernas, com sua enorme precisão de linhas. Comparem-se as pinturas murais dos egípcios com as da Idade Média e com as pinturas modernas e ver-se-á também o aumento gradual da precisão. O mesmo acontece com as obras dramáticas e outras obras puramente literárias. Os maravilhosos contos do Oriente, as lendas românticas da Europa feudal, assim como os autos e mistérios que sucederam imediatamente aquelas lendas não correspondem à realidade da vida; são apenas uma mescla de acontecimentos sobrenaturais, de coincidências inacreditáveis, e de personagens de vaga definição. À medida que progrediu a sociedade, a representação e descrição de suas atitudes, ainda que não sejam ideais, são já mais naturais, mais próximas da realidade; assim, o êxito de um romance ou de uma obra dramática é, em geral, ditado pela fidelidade da ação e dos personagens; se desfazem as inverdades ou impossibilidades que preenchiam as obras antigas e também as ações muito complicadas de que há poucos exemplos na vida social, embora existam alguns. § 138. Ainda podemos acumular, facilmente, muitos exemplos de outras ordens: o progresso dos mitos e lendas inexatas, para as histórias críticas, cada vez mais exatas e precisas; a substituição dos métodos empíricos pelos racionais etc. A base é já suficientemente ampla para induzir que: na evolução há também uma passagem do indefinido ou indeterminado para o definido ou determinado; e não há certamente menos provas para essa indução do que as há para a do progresso, já reconhecido, do homogêneo para o heterogêneo. Contudo, poder-se-ia aduzir que aquele progresso não é um fenômeno primário, mas secundário, resultado acidental de outras mudanças. De fato, a transformação de um todo difuso e homogêneo em uma combinação concentrada de partes heterogêneas, implica numa separação progressiva do todo e do que o cerca, e das partes entre si. Enquanto a separação não se dá, não existem estados bem distintos nas partes e no todo. Só quando este cresce em densidade é que vai se distinguir claramente do espaço ou da matéria que lhe é exterior; e apenas quando, à medida que cada parte atraia e condense em sua volta a matéria periférica imperfeitamente aderida às partes vizinhas, é que irão se distinguir claramente as partes entre si. Ou, em outras palavras, o aumento de precisão acompanha sempre o aumento de consolidação total e parcial ou geral e local. Enquanto as redistribuições secundárias produzem aumento de heterogeneidade, a redistribuição primária, à medida que a integração aumenta, produz acessoriamente mais clareza na distinção entre as partes entre si e do todo em relação aos demais todos. Mesmo que esse novo caráter da evolução seja um corolário inevitável do que foi exposto nos capítulos precedentes, não está incluso nas afirmativas que nos serviram ultimamente para defini-la. Devemos, pois, modificar a fórmula (§127) e dizer que: a evolução é a mudança de uma homogeneidade incoerente e indefinida para uma heterogeneidade coerente e definida, em consequência de uma dissipação de movimento e de uma integração simultânea de matéria. XVII A lei da evolução (final) § 139. É, contudo, incompleto o conceito da evolução que acabamos de apresentar no último capítulo; não contém senão uma parte da verdade. Na verdade, consideramos sob três aspectos as transformações sofridas por todos os seres durante as fases ascendentes ou evolutivas de sua existência, dando uma ideia aproximada dessas transformações vistas sob esses três aspectos considerados sucessiva e simultaneamente; mas existem outras mudanças concomitantes que ainda não imaginamos, e que por serem menos conspícuas, são menos essenciais ou importantes. De fato, até o presente somente levamos em conta a redistribuição da matéria, omitindo a redistribuição concomitante do movimento. A esta temos apenas nos referido, explícita ou implicitamente, ao tratar daquela em todos os seus casos e detalhes, e fosse simples toda evolução, estaria completa e perfeitamente expressa pela fórmula "a matéria se integra à medida que seu movimento se dissipa"; mas na evolução composta, se falamos da redistribuição definitiva do movimento, nada dissemos das redistribuições intermediárias; se oportunamente imaginamos o movimento que se dissipa ou escapa da matéria em evolução, nada dissemos do que não se dissipa, mas se transforma no interior da mesma massa. Pois bem: em toda evolução composta, e proporcionalmente a seu grau de composição, e enquanto duram as redistribuições secundárias de matéria, verificadas em virtude do movimento interior não dissipado, há ou se efetuam também forçosamente redistribuições desse movimento conservado. À medida que as partes se transformam, transforma-se também o movimento sensível ou insensível que elas possuem; não podem aquelas integrar-se, seja individualmente, seja em conjunto, sem que se integrem a par seus movimentos individuais e combinados; não podem as partes de matéria se tornar mais heterogêneas em volume, em forma, em qualidade, sem que ao mesmo tempo seus movimentos, ou o de suas moléculas, ou todos, se tornem também mais heterogêneos em suas direções e velocidades. Além disso, o aumento em características definidas das partes implica também num aumento análogo de seus movimentos. Resumindo, as ações rítmicas que se operam em cada massa devem integrar-se e diferenciar-se ao mesmo tempo em que sua estrutura se integra e diferencia. É necessário, pois, que exponhamos, ainda que brevemente, a teoria geral dessa redistribuição do movimento conservado. Para completar nosso conceito da evolução, considerada até aqui apenas sob seu aspecto material com o conceito da mesma, considerado sob o aspecto dinâmico, devemos seguir desde sua origem os movimentos integrados que se produzem e deduzir a necessidade do aumento de sua precisão e de sua multiformidade. Se a evolução é a passagem de matéria de um estado difuso para um mais concentrado, se enquanto as unidades difusas perdem parte do movimento insensível que as mantém nesse estado, as massas coerentes dessas unidades adquirem movimentos sensíveis umas em relação às outras, é preciso que tais movimentos sensíveis tenham antes existido, sob forma desses movimentos insensíveis das unidades. Se a matéria concreta é o resultado da condensação da matéria difusa, o movimento concreto deve ser o resultado da agregação do movimento difuso: o que surge, como movimento de massas, corresponde a um movimento molecular equivalente que deixou de existir. Essa proposição, que como sua correlativa no tocante à matéria, não passa de uma hipótese quanto aos movimentos celestes, é uma indiscutível verdade no que diz respeito aos movimentos sensíveis verificados na Terra. Já foi visto (§69) que o desgaste das antigas e o depósito das novas placas terrestres são produzidos pela água em seu curso descendente para o mar e pelas ondas e marés desse mesmo mar; veremos agora que a elevação da água até a altura de onde cai e a origem dos ventos que a transportam em estado de vapor e a agitam nos mesmos mares, são devidos ao calor solar, ou seja, que a ação molecular do meio etéreo se transforma primeiro em movimento de gases, depois em movimento de líquidos, e por último em movimento de sólidos, perdendo-se, em cada transformação, certa quantidade de movimento molecular e ganhando outra equivalente de movimento de massas. O mesmo acontece com os movimentos orgânicos: os raios solares fazem com que as plantas assimilem, solidificando-os, certos elementos dos compostos gasosos ambientes, ou seja, que contribuem para o crescimento e demais funções orgânicas. O crescimento da planta e circulação da seiva são movimentos vitais ou sensíveis, mas os raios solares produtores daqueles são movimentos insensíveis ou moleculares, transformação de movimentos do gênero que estudamos. Os animais, derivados material e dinamicamente das plantas, levam ainda mais longe a transformação; os movimentos automáticos das vísceras, como os movimentos voluntários dos membros e da locomoção, são produzidos às expensas de certos movimentos moleculares que se efetuam nos tecidos nervoso e muscular; esses movimentos, transformações por sua vez dos que constituem a nutrição, têm, pois, como origem primitiva, os movimentos moleculares comunicados pelo Sol à Terra, e sem os quais a vida orgânica não seria possível. A mesma lei se verifica no que respeita aos conjuntos ou agregados de seres orgânicos. Assim, nas sociedades humanas, o progresso sempre se efetua no sentido da absorção dos movimentos individuais pelos movimentos sociais. Se durante a evolução o movimento que se dissipa se desintegra por efeito dessa mesma dissipação ou dispersão, em troca o movimento que se conserva se integra enquanto a matéria ou massa segue a evolução, e esta, portanto, considerada do ponto de vista dinâmico, é uma diminuição do movimento relativo dos todos, dando às palavras "parte" e "todo" seu mais amplo significado. O progresso se opera do movimento das moléculas simples ao das compostas, e do movimento destas ao de pequenas massas, ascendendo assim sucessiva e gradualmente. A mudança simultânea, que tende para uma uniformidade maior nos movimentos conservados, se efetua sob a forma de crescimento na variedade dos ritmos. Já vimos que todo movimento é rítmico, desde as vibrações infinitesimais das moléculas até as colossais vibrações dos astros ao percorrer suas órbitas. Pois bem: segundo faz suspeitar o contraste entre esses casos extremos e a prodigiosa multiplicidade de graus e modos de agregação material que medeiam desde a molécula até o astro, deve acompanhar uma multiplicidade correlativa das relações dessas massas agregadas com suas forças internas, e, portanto, uma multiplicidade nos respectivos ritmos. O grau ou modo de agregação não interfere na extensão ou duração do ritmo, quando as forças incidentes variam na mesma proporção que as massas; isso acontece, por exemplo, na gravitação, a qual não faz variar o ritmo, a não ser quando variam as relações de distância entre as massas, como se vê no pêndulo, cujas oscilações têm a mesma duração se apenas se muda o peso da extremidade, e variam de duração se o deslocamos para o Equador. Mas em todos os casos em que as forças incidentes não variam com as massas, toda nova ordem de agregação faz variar o ritmo; assim, as últimas investigações sobre a propagação do calor e da luz através dos gases, afirmam que todas as ondulações ou vibrações correspondentes têm durações distintas nos diversos gases; já se sabia há tempos que o mesmo ocorre com as vibrações sonoras. Assim, pois, todo aumento na multiformidade ou heterogeneidade da matéria vai necessariamente acompanhado de um crescimento de multiformidade no ritmo, tanto pelo aumento de variedade nos volumes e formas dos agregados quanto pelo aumento de variedade nas suas relações com as forças que os movem. Não temos necessidade de insistir, para demonstrar que esses movimentos devem fazer-se mais definidos ou determinados, à medida que vão se fazendo mais integrados e heterogêneos, porque é evidente que na mesma proporção em que cada parte de um todo em evolução se consolida e se separa das demais, perdendo, portanto, a mobilidade relativa de seus elementos, seu movimento total deve necessariamente fazer-se mais distinto, mais determinado. Devemos, pois, para completar nosso conceito da evolução, considerar em toda extensão do Cosmo, as metamorfoses do movimento conservado que acompanham as metamorfoses da matéria que o conserva; mas, como o leitor está habituado já ao método que seguimos nessa ordem de considerações, serão menos os exemplos necessários para a completa demonstração do tema, e mais breve, portanto, nossa tarefa, que ainda mais abreviamos considerando a uma só vez, ou simultaneamente, os vários aspectos das metamorfoses. § 140. A matéria diversa se move, como sabemos, em toda nebulosa espiral, para o centro comum de gravitação, desde todos os pontos e distâncias, e em prodigiosa variedade de trajetórias, deve introduzir na nebulosa definitiva inumeráveis momentos dinâmicos de intensidades e direções distintas e também opostas. À medida que a integração se processa, as partes desses momentos que são diretamente opostas se destroem ou neutralizam mutuamente e se dissipam em forma de calor; o movimento de rotação que subsiste apresenta, primeiro, velocidades angulares diferentes, a diversas distâncias do centro; pouco a pouco essas diferenças diminuem e se aproximam de um estado final, que o Sol, por exemplo, está próximo de atingir, em que toda a massa gira com a mesma velocidade angular, ou em que todo o movimento está definitivamente integrado. O mesmo acontece a cada um dos planetas e satélites. O progresso que conduz de um anel nebuloso, incoerente e com grande quantidade em sua massa de movimento relativo molecular ao movimento de um esferoide denso, é um progresso para um movimento integrado completamente, em que a rotação e a translação são cada uma um movimento total e simultâneo para todos os elementos ou unidades de massa. Durante esse tempo, se opera também a nova integração que liga entre si os movimentos das diversas partes do Sistema Solar. O Sol com seus planetas por um lado, e cada planeta com seus satélites, por outro, constituem então um sistema de ritmos simples e compostos, com variações periódicas e seculares, que formam um conjunto ou sistema integrado de movimentos. A matéria que, em seu estado difuso primitivo, tinha movimentos confusos ou indeterminados, sem distinção claramente marcada, adquiriu, durante a evolução do Sistema Solar, movimentos distintamente heterogêneos: os períodos de revolução de todos os planetas e dos satélites são diferentes, como também seus tempos de rotação respectivos; desses movimentos heterogêneos, mas ainda simples, nascem outros movimentos complexos, mas bem definidos; por exemplo, os que produzem as revoluções dos satélites combinadas com as de seus planetas e cujo resultado se chama precessão, as chamadas perturbações etc. Toda nova complexidade de estrutura produz uma nova complexidade de movimentos, mas complexidade definida ou determinada, uma vez que são previsíveis seus resultados. § 141. Quando a superfície terrestre ainda se encontrava em estado de fusão, as correntes da volumosa atmosfera que a rodeava, e principalmente as correntes gasosas quentes que subiam, e as de líquidos precipitados que caíam, deviam ser locais, numerosas, e muito pouco definidas ou distintas umas das outras. Mas, à medida que a superfície se resfriava, e a radiação solar ia produzindo diferenças apreciáveis de temperatura entre as regiões polares e equatoriais, deve ter-se estabelecido pouco a pouco uma circulação atmosférica determinada, dos polos ao equador e do equador aos polos; algumas outras correntes atmosféricas definidas devem então ter nascido também. Esses movimentos integrados, a princípio relativamente homogêneos, se fizeram heterogêneos ao formarem-se as grandes ilhas e os continentes que fizeram nascer outros ventos periódicos, pelo aquecimento variável de vastas extensões terrestres nas diferentes estações. Movimentos rítmicos de natureza constante e simples foram se diferenciando pela crescente multiformidade da superfície terrestre, na combinação de constantes e recorrentes movimentos rítmicos com outros movimentos menores, de caráter irregular. Mudanças análogas devem ter se verificado nos movimentos da água; sobre uma crosta delgada, com pequenas elevações e depressões, e em consequência com pequenos rios e mares, somente poderia existir uma circulação local; mas quando os grandes oceanos e continentes estavam já formados, originando-se também grandes correntes marinhas das latitudes quentes para as frias, e destas para aquelas, essas correntes se tornaram mais importantes, mais determinadas e mais variadas em sua distribuição geográfica, à medida que os caracteres físicos da superfície terrestre se fizeram mais constantes. O mesmo aconteceu, indubitavelmente, às águas de drenagem; córregos insignificantes, correndo mansamente sobre pequenas ilhas primitivas, seriam primeiramente os únicos movimentos dessas águas; mas quando as grandes superfícies de terra, com suas cordilheiras e bacias respectivas, se formaram, puderam se reunir vários afluentes para formar os grandes rios; em vez de movimentos dependentes e semelhantes, houve, pois, logo, movimentos integrados e dessemelhantes ou heterogêneos. Por último, não há a menor dúvida de que os movimentos da crosta sólida terrestre obedeceram à mesma lei, o mesmo progresso: débeis, numerosas e localizadas e muito semelhantes quando a crosta era ainda delgada, as elevações e depressões devem, enquanto a crosta se tornava mais espessa, estender-se a áreas mais vastas e se tornarem mais fortes, escassas e dessemelhantes, por efeito da maior solidez e mais variadas estruturas da mesma crosta nas diversas regiões. § 142. Nos organismos, o progresso para uma distribuição mais integrada, mais heterogênea, mais definida do movimento não dissipado, que acompanha o progresso análogo da matéria que os compõe, constitui precisamente o que chamamos desenvolvimento das funções orgânicas. Todas as funções ativas são ou movimentos perceptíveis, como os dos órgãos contráteis ou movimentos insensíveis, como os dos órgãos secretores, e a maioria dos movimentos dos órgãos de nutrição. Durante a evolução, tanto as funções quanto as estruturas se consolidam individualmente e se combinam mutuamente, enquanto se tornam mais multiformes e mais distintas. Nos animais inferiores os sucos nutritivos se movem irregularmente através dos tecidos, em função das forças e pressões solicitantes; como não possuem um sistema vascular, não existe uma circulação propriamente dita, uma circulação definida. Mas assim que se ascende na escala, forma-se um aparelho distinto para a distribuição sanguínea, se encontra a par uma evolução funcional que determina grandes e rápidos movimentos do sangue, definidos em seu curso e na distinção de aferentes e eferentes; esses movimentos são heterogêneos, não apenas em suas direções, como também em suas velocidades, pois um se verifica por impulsos alternativos, enquanto outro por corrente contínua. Outro exemplo bem notável é aquele da produção de diferenciações e integrações nos movimentos mecânicos e químicos da digestão, e sua localização no aparelho digestivo. Nos animais inferiores o tubo digestivo está formado, de um a outro extremo, dilatações e contrações bastante uniformes se verificam, refletindo-se nos movimentos correlativos. No homem e demais animais superiores, o conduto alimentar tem dilatações e contrações muito diferentes ao longo do seu curso, e são também muito diferentes os movimentos correspondentes, em aspecto, força e velocidade. Na boca os movimentos de prensagem e mastigação às vezes se processam com rapidez, e outras vezes cessam por horas inteiras. No esôfago, os movimentos peristálticos se verificam em curtos intervalos quando se alimenta, e cessa entre refeições; no estômago, são ainda mais variados os movimentos; há contrações musculares muito fortes e em todas as direções; duram todo o tempo em que o estômago contém alimento e talvez mesmo depois. Na primeira porção do intestino se manifesta uma nova diferença: os movimentos são ondulatórios e ininterruptos, mas débeis. Por último, no reto, a onda dinâmica se afasta muito mais do tipo comum: depois de muitas horas de repouso, se verifica uma série de constrições fortes. Ao mesmo tempo as ações concomitantes desses movimentos se fazem também mais heterogêneas e distintas: a secreção e a absorção, consideradas funções gerais auxiliares da digestão se subdividem em funções parciais subordinadas; os solventes e fermentos fornecidos pelas paredes do tubo digestivo e pelas glândulas auxiliares são muito distintos nas partes superior, média e inferior; isso implica em espécies ou maneiras diferentes nos movimentos moleculares respectivos; em umas partes predomina a ação de secreção, em outras a de absorção, e em outras ainda, como no esôfago, não existe secreção ou absorção apreciável. Enquanto esses movimentos moleculares ou inapreciáveis, e os sensíveis, ou apreciáveis, se fazem mais variáveis ou heterogêneos, e mais consolidados ou definidos, se verifica um progresso na integração que os une em grupos locais de movimentos e em sistemas combinados de movimentos. Ao mesmo tempo em que se subdivide a função da digestão, essas subdivisões se fazem mais coordenadas, de maneira tal que as ações musculares e de secreção se harmonizam e a excitação de uma parte do aparelho digestivo excita o restante. E além: a função digestiva inteira que fornece a matéria para as funções circulatória e respiratória se integra tão harmonicamente com elas, que não pode se isolar por um instante, e as três dependem, por sua vez, da enervação, e tanto mais quanto mais se sobe para o homem na escala zoológica. Consideremos agora as funções dos órgãos externos; os infusórios geralmente se movem no líquido em que vivem pelas vibrações de seus apêndices, e animais maiores, como os Turbellaria, se movem também de maneira análoga sobre superfícies sólidas; esses movimentos vibráteis são homogêneos, pouco extensos e muito vagos ou indeterminados, tanto individualmente como na ação total ou resultante, que na maioria das vezes é uma locomoção fortuita ou sem direção fixa previamente escolhida. Pelo contrário, nos animais que dispõem de órgãos locomotores bem desenvolvidos, há em vez de um grande número de movimentos pequenos ou desintegrados como os que acabamos de citar, um pequeno número de movimentos grandes e integrados, ou seja, ações muito semelhantes e debilmente coordenadas foram substituídas por outras dessemelhantes e com uma coordenação apropriada para dar precisão aos movimentos totais e parciais do animal. Contraste análogo, ainda que menos marcado, se observa ao passar dos animais inferiores providos de extremidades aos superiores de igual condição. As patas de uma centopeia se deslocam com movimentos numerosos, pequenos, homogêneos e tão pouco integrados, que se cortarmos transversalmente o animal em dois ou mais pedaços as patas de cada parte continuam levando-a adiante por certo tempo; mas em um inseto, as extremidades, já pouco numerosas, têm movimentos relativamente mais extensos, mais diferentes ou heterogêneos e mais integrados em movimentos compostos suficientemente definidos ou determinados. § 143. Os últimos exemplos nos levam por analogia aos chamados fenômenos psíquicos. Os fenômenos conhecidos subjetivamente como psicológicos são objetivamente conhecidos como excitações e descargas nervosas, que a Ciência agora explica por modos especiais de movimento. Por conseguinte, cabe racionalmente supor desde logo que o progresso de integração, heterogeneidade e determinação do movimento não dissipado se manifestará nas ações neuromusculares visíveis e nas mudanças psicológicas correlativas às várias espécies zoológicas e dos indivíduos de cada uma, seguindo a lei já comprovada nos demais casos da evolução orgânica. Comecemos, pois nos é vantajoso, por considerar os fenômenos da evolução individual antes dos fenômenos da evolução geral orgânica. Os primeiros gritos de uma criança são homogêneos em sua duração, tom e timbre, sobretudo relativamente aos sons que emitirá depois, se viver; são, além disso, descoordenados e simples, sem tendências a combinar sons simples para formar sons compostos, sendo por último, desarticulados, indefinidos, sem limites precisos de começo e fim que caracterizam os sons articulados, as sílabas e as palavras. Pois bem: o progresso se manifesta primeiro na multiplicação dos sons inarticulados; as vogais extremas se adicionam às vogais médias e as vogais compostas às vogais simples; logo, a criança articula já as consoantes, mas apenas o início de cada som, que termina vaga, indefinidamente; durante seu progresso para a precisão, também aumenta a heterogeneidade, pela combinação variadíssima das consoantes com as vogais e a precisão pelo uso das consoantes finais. As consoantes mais difíceis e as consoantes compostas, articuladas primeiramente de maneira imperfeita, vão, pouco a pouco, sendo articuladas com clareza e precisão, e uma multidão de sílabas diferentes e definidas, que exigem muitas espécies de movimentos nos órgãos vocais, são pronunciados com precisão e perfeitamente integrados em grupos, somando-se àqueles que a criança já dominava. O progresso subsequente, que a faz pronunciar as palavras dissílabas e polissílabas, bem como as combinações de palavras, revela o grau superior de integração e de heterogeneidade que alcançam finalmente os movimentos de fonação. Os atos psicológicos correlativos aos neuromusculares percorrem naturalmente fases paralelas; o progresso realizado desde a infância até a idade madura proporciona abundantes provas de que as mudanças do ponto de vista físico são operações nervosas e do ponto de vista psíquico são operações mentais, e vão se fazendo aos poucos mais variadas, mais definidas, mais coerentes. Primeiro, as funções são muito semelhantes ou homogêneas: lembranças, classificações, impressões e mais nada. Mas sucessivamente, tais funções tornam-se multiformes; aparece o raciocínio com seus dois ramos, indutivo e dedutivo; a recordação e a imaginação voluntárias se juntam à associação natural espontânea das ideias; nascem os vários modos específicos de ações mentais (matemáticos, músicos, poetas etc.), os quais vão se diversificando e cada vez mais se definindo. A criança faz suas observações com tão escasso cuidado, que muitas vezes se equivoca quando lê, quando estuda sua lição faz suas contas ou reconhece uma pessoa; o jovem ainda se engana muito, julga erroneamente sobre uma multidão de fatos e assuntos da vida; só na idade madura ou viril aparecerá essa coordenação precisa nas operações nervosas, que supõe uma boa adaptação dos pensamentos às coisas. Por último, o mesmo acontece com respeito à integração, que combina os atos mentais simples em atos mentais compostos: nas crianças é difícil a atenção manter-se por muito tempo; também não conseguem formar uma série coerente de impressões, quer sucessivas, quer simultâneas, ainda que sejam da mesma ordem; por exemplo, quando uma criança contempla uma pintura, fixa-se apenas em figuras isoladas e de nenhuma maneira no conjunto; mas a certa idade já compreende uma frase complicada; segue um longo raciocínio, reúne em uma única operação mental numerosas circunstâncias, e etc. A mesma integração progressiva se manifesta nas modificações psíquicas que chamamos sentimentos, que na criança apenas produzem impulsos e no adulto produzem atos reflexivos e equilibrados com todas as circunstâncias que influem na vida. Depois desses exemplos, relativos à vida individual, vamos apresentar rapidamente alguns relativos à evolução geral, e que, como veremos, são semelhantes àqueles. Um animal de inteligência rudimentar, ao perceber perto de si o movimento de uma grande massa, dá um salto instintivo, espasmódico, geralmente para frente; tal movimento supõe que o animal tenha percepções, ainda que relativamente simples, homogêneas e indefinidas, pois não distingue se a massa em movimento é ou não perigosa para ele, nem em que direção se move; assim, o movimento que faz para fugir ao perigo é sempre o mesmo, não tendo direção preconcebida, e tanto pode distanciar-se do perigo quanto dele se aproximar. Um passo adiante na série zoológica nos mostra que o salto instintivo em direção oposta àquela onde se acredita estar o perigo; os fenômenos nervosos se especificaram até dar como resultado a distinção de direções; isto indica uma variedade, uma coordenação, uma integração e uma precisão maiores em tais fenômenos. Nos animais superiores que distinguem seus inimigos dos que não o são; num pássaro, por exemplo, que foge do homem, mas não foge de uma vaca, os atos de percepção se uniram em todos mais complexos, uma vez que os movimentos determinados do pássaro supõem o conhecimento de certos atributos específicos; fizeram-se mais multiformes, uma vez que cada nova impressão componente aumenta o número de possíveis compostos; e por consequência, fizeram-se também mais específicos em suas correspondências com os objetos, tornando-se então em atos mais definidos. Nos animais, bastante inteligentes para conhecer de vista não só as espécies, como os indivíduos de uma espécie, as mudanças ou fenômenos mentais se fazem mais distintos, mesmo sob esses três aspectos. Finalmente, o curso da evolução psíquica humana na Terra confirma também a lei; os pensamentos do homem selvagem não são tão heterogêneos quanto os do homem civilizado; aqueles não têm, muitas vezes, ideias abstratas, cujos elementos seja capaz de integrar, e a não ser com relação a coisas muito simples, não pode adquirir essa precisão de ideias que conduz os homens civilizados à Ciência. Contrastes semelhantes surgem também na evolução das emoções, dos desejos etc. § 144. Depois de tudo o que dissemos nos capítulos precedentes, não é necessário insistir muito, agora, na maneira pela qual os movimentos ou funções sociais adquirem mais multiformidade, precisão e complexidade. Tomemos, contudo, uns poucos exemplos típicos, para cotejo com os que examinamos nas demais esferas da evolução. Consideremos os atos belicosos de ataque e defesa. Primeiramente, as funções militares não se diferenciavam das demais, em cada tribo ou sociedade primitiva, pois todos os homens eram guerreiros, como também eram caçadores etc.; essas funções eram, então, homogêneas, nada ou mal combinadas e definidas; mesmo hoje, os selvagens, no combate, batem-se cada um separado dos demais, e todos o fazem de igual maneira e desordenadamente. Mas, à medida que as sociedades se desenvolvem, e as funções militares se distinguem das demais, se tornam cada vez mais multiformes, complexas e definidas. Os movimentos de milhares de soldados, que tomaram o lugar de centenas de guerreiros se dividem e subdividem, em espécies e subespécies; há tropas de infantaria, cavalaria e artilharia; soldados, sargentos, oficiais, chefes; serviços de saúde, de administração, de estado maior; e a essa multiplicidade acompanha outra correlativa, nas funções dos diversos indivíduos ou grupo de indivíduos; essas funções, além de ser desempenhadas, desse modo, de formas mais heterogêneas no conjunto e nos detalhes, aumentam, ao mesmo tempo, em precisão, mediante os exercícios e simulações; de sorte que, em uma batalha, homens e regimentos determinados podem, a uma voz de comando, ocupar tais ou quais lugares, verificar esses ou aqueles atos, em momentos previamente fixados. Um grau mais de progresso e se obtém a integração completa de todos os movimentos de um grande exército para um objetivo ou fim único; cem, mil ou mais ações individuais convergem para ele, sob a direção de um único homem. Esse marcado progresso que acabamos de encontrar nas funções militares, é encontrado também nas demais funções sociais. Compare-se o governo de um chefe selvagem com o de um chefe de nação civilizada, ajudado este por todos os funcionários seus subordinados, e ver-se-á que, à medida que os homens progrediram desde o estado de uma tribo de uma dezena de pessoas, até o de nações de muitos milhões de almas, a função de governo se fez muito mais complexa, guiada por leis escritas, passou de um estado vago e irregular a outro de relativa precisão, além de se subdividir em subfunções de crescente multiformidade. Vê-se também quanto difere o comércio das tribos bárbaras do nosso, que diariamente distribui milhões de mercadorias, que ajusta o valor relativo de uma imensa variedade de artigos, segundo a relação entre oferta e procura, e que combina as diversas forças industriais, de forma que cada uma dependa das outras e as ajude, e concluir-se-á também que a ação ou movimento comercial foi se fazendo progressivamente mais vasta, mais variada, mais definida e mais integrada. § 145. Resulta, então, que o conceito completo da evolução compreende: a redistribuição do movimento conservado no mesmo tempo da redistribuição da matéria componente; e este novo elemento não é menos importante que o outro. Os movimentos do Sistema Solar têm para nós a mesma importância que têm volumes, formas e distâncias relativas dos astros que o compõem. As ações sensíveis ou insensíveis que compõem a vida de um organismo não são menos importantes do que sua forma, estrutura etc. É, pois, evidente que cada redistribuição de matéria se faz acompanhar de uma redistribuição de movimento, e que o conhecimento unificado que constitui a Filosofia deve abraçar esses dois ramos da transformação. Por conseguinte, considerando a matéria de um agregado em evolução como experimentando, não uma integração progressiva simplesmente, mas redistribuições secundárias diversas, nos é forçoso considerar o movimento de um agregado em evolução não só como se dissipando gradualmente, como passando por muitas redistribuições secundárias, antes de dissipar-se. Da mesma maneira que as combinações complexas de matéria, que se produzem durante a evolução composta são os acessórios do progresso da extrema difusão à extrema concentração, também as combinações complexas de movimentos, que acompanham as da matéria, são os acessórios do progresso da maior à menor quantidade de movimento interno correspondente. Tratando agora, como deve ser feito, de formular esses acessórios das duas ordens de transformação, a fórmula ultimamente apresentada (§138) da evolução deve ser acrescida, e invertida a ordem de algumas frases, para maior clareza da expressão, podendo então ser assim expressa: a evolução é uma integração de matéria acompanhada de uma dissipação de movimento, durante as quais tanto a matéria quanto o movimento ainda não dissipado passam de uma homogeneidade indefinida e incoerente a uma heterogeneidade definida e coerente. XVIII Interpretação da evolução § 146. A lei que acabamos de formular é primitiva ou derivada? Deve nos satisfazer completamente saber que em todas as ordens de fenômenos concretos as transformações seguem sempre essa lei, ou é possível ir além e saber por que a seguem? Podemos encontrar um princípio universal que explique essa operação universal? Podemos obter por dedução as induções expostas nos quatro capítulos anteriores? Sem dúvida, esses efeitos comuns implicam em uma causa comum, acerca da qual nada mais se consiga saber, a não ser que é a maneira geral de a nós revelar-se - ou manifestar-se - o Incognoscível; ou pode ser que essa maneira seja redutível a outra mais simples e geral, da qual sejam meras consequências todos esses efeitos complexos. A analogia nos leva a pensar que esta última suposição deve ser a verdadeira; pois assim como foram explicadas as generalizações empíricas chamadas leis de Kepler como simples corolários da lei da gravitação, talvez seja também possível explicar as generalizações empíricas dos capítulos anteriores como consequências necessárias de uma lei mais geral. É preciso, então, que busquemos a razão ou o porquê dessa metamorfose universal, sob pena de renunciar à constituição da Filosofia, do conhecimento completamente unificado. As conclusões a que fomos chegando sucessivamente até agora parecem independentes entre si; não há, até onde sabemos, conexão ou relação alguma entre a passagem do indefinido ao definido e do homogêneo ao heterogêneo; nem existe entre esses dois e a integração, ou passagem do incoerente ao coerente; ainda menos relação aparece entre essas leis de redistribuição da matéria e do movimento e as da direção e ritmo do movimento, expostas por nós antes daquelas. Contudo, enquanto não tivermos provado que todas essas leis são consequências de um só princípio, nosso conhecimento terá apenas uma coerência imperfeita. § 147. Nossa atual tarefa deve ser, pois, apresentar os fenômenos da evolução sinteticamente; demonstrar, partindo de um princípio evidente que o curso da evolução, em todos os seres, não pode ser outro senão aquele que vimos que é; que a redistribuição da matéria e do movimento deve acontecer em todos os lugares, como vimos que acontece com os fenômenos celestes, inorgânicos, orgânicos, sociais etc. e finalmente que essa universalidade da lei da evolução provém da própria necessidade que determina à nossa volta cada movimento, por simples que seja, como a queda acelerada de uma pedra ou o vibrar da corda de uma harpa. Em outras palavras, é preciso que o fenômeno da evolução se deduza da persistência da força; pois, como já dissemos (§62), a esse princípio deve nos conduzir toda análise profunda, e sobre ele deve-se fundar toda síntese racional. De fato, sendo esse princípio o único indemonstrável cientificamente, uma vez que é a base da Ciência e o fundamento de suas mais amplas generalizações, ficarão estas unificadas desde o momento em que se refiram a esse princípio como seu fundamento ou base comum. Já vimos (§73, §81, §88), que a transformação e a equivalência das forças, a direção e o ritmo dos movimentos, verdades manifestas em todas as ordens de fenômenos concretos, são consequências necessárias da persistência da força, princípio que, portanto, dá unidade e coerência a tais verdades a ele filiadas. Analogamente, vamos agora referir a um princípio superior as características gerais da evolução, demonstrando que, dada a persistência da força, devem forçosamente verificar-se com essas características as redistribuições da matéria e do movimento; cumprida essa tarefa uniremos essas características, que não aparecerão a não ser como aspectos diversos e correlativos de uma só lei, e uniremos ao mesmo tempo essa lei com as leis mais simples que precedem. § 148. Mas antes que continuemos, será de bom alvitre estabelecer alguns princípios gerais que, ao interpretar a evolução, temos que considerar sob formas especiais nas várias decomposições de forças que acompanham as redistribuições da matéria e do movimento. Vejamos essas decomposições em suas formas mais gerais. Toda força é divisível em uma parte efetiva e outra não efetiva. Por exemplo: em todo choque, a força ou quantidade de movimento do corpo chocante se divide, mesmo nas condições mais favoráveis, ou quando aquele perde todo seu movimento sensível; pois o corpo chocado não recebe na Íntegra a quantidade de movimento, pois uma parte dela fica no corpo chocante sob a forma de movimento molecular ou insensível, somado ao que já existia antes do choque. Da mesma forma, quando uma quantidade de luz ou de calor atinge um corpo, uma parte maior ou menor, segundo o caso, é refletida ou refratada, e apenas uma parte se transforma, no corpo, modificando-o ou nele produzindo mudanças moleculares. Deve-se também observar que a força efetiva é, por sua vez, divisível em força efetiva temporal e força efetiva permanente. De fato, as moléculas ou unidades de uma massa que recebe a ação de uma força podem experimentar essas mudanças rítmicas que constituem apenas aumento de vibrações, e podem, além disso, experimentar mudanças de posição relativa não vibratória, isto é, não neutralizadas, a cada instante, por mudanças em sentido contrário; as primeiras se dissipam sob a forma de ondulações radiantes e deixam o arranjo ou coordenação molecular como antes se encontrava; já as segundas produzem um novo arranjo molecular que caracteriza a evolução composta. Deve-se, contudo, fazer ainda uma distinção: as forças efetivas de um modo permanente operam mudanças de posição relativa de duas espécies, insensíveis e sensíveis. As transposições insensíveis que sobrevêm sobre as unidades de massa são as que constituem as mudanças moleculares, entre as quais estão as combinações e decomposições químicas, constituindo para nós numa diferença qualitativa na massa. As transposições sensíveis são as que se verificam quando algumas unidades, em vez de experimentar mudanças de relação com suas vizinhas, são delas separadas e levadas a outra parte. O notável em todas essas divisões e subdivisões da força atuante sobre uma massa, é que são mutuamente complementares. Assim, a força útil ou efetiva é o resto da subtração da força total menos a força não efetiva. As duas partes da força efetiva variam em ordem inversa: quando uma grande parte é efetiva temporal, apenas uma pequena parte será efetiva permanente e vice-versa. Enfim, se a força efetiva permanente produz, a um só tempo, as redistribuições moleculares insensíveis e sensíveis ou mudanças de estrutura, as duas classes de efeito estão em razão inversa em sua quantidade ou intensidade. XIX Instabilidade do homogêneo (A ideia desenvolvida neste capítulo fez parte originalmente de um artigo publicado na revista Transcendental Phisiology, em 1857. Ver Essays, pp. 279-290) § 149. Ao tratar de seguir as complicadíssimas transformações que todos os seres sofreram, e ainda sofrem, encontram-se tão grandes dificuldades, que parece quase impossível poder dar uma interpretação precisa e completa, por via dedutiva, de tais transformações; parece também quase impossível açambarcar, com uma vista de olhos, o processo total das redistribuições da matéria e do movimento, com todos os resultados necessários de sua atual mútua dependência. Contudo, existe um meio de chegar à formação de uma ideia do conjunto dessas operações; pois se por um lado a gênese da redistribuição que experimenta todo ser em evolução é una, por outro lado, consta de vários fatores; interpretando, pois, sucessiva e separadamente os efeitos de cada um desses fatores, a síntese dessas interpretações nos dará, pelo menos, uma ideia aproximada do conjunto. A ordem lógica nos diz, antes de tudo, que a homogeneidade é uma condição do equilíbrio instável, e, portanto, tende a desaparecer. Expliquem-se estas afirmativas. Em Mecânica entende-se por equilíbrio instável o de uma massa ou sistema de massas em equilíbrio, mas de tal forma que a introdução de uma nova força, por menor que seja, destrói a coordenação existente e produz outra distinta. Assim, um bastão, equilibrado sobre uma de suas extremidades, está em equilíbrio instável: desviado minimamente que seja da posição vertical, se inclina e cai rapidamente, tomando outra posição, esta de equilíbrio estável. Pelo contrário, suspenso pela extremidade superior, estará em equilíbrio estável; desviado dessa posição, a ela volta rapidamente. Nossa proposição do parágrafo anterior significa, então, que o estado de homogeneidade é instável, insustentável como o de um bastão equilibrado sobre uma extremidade. Tomemos mais exemplos. Um dos mais familiares é o da balança, a qual, se não está enferrujada, e se é bem construída e lubrificada, é difícil que permaneça em perfeito equilíbrio; guarda suaves e lentas oscilações, subindo e baixando alternativamente seus dois pratos. Se polvilharmos uma superfície líquida com pequenos corpos de igual volume, e que mutuamente se atraiam, eles vão se concentrar em pequenos grupos. Se fosse possível fazer com que uma massa de água ficasse em completo repouso, e perfeitamente homogênea em densidade, a radiação dos corpos próximos, influindo de maneira desigual nas várias partes da massa, produziria inevitavelmente desigualdades de densidade, e em consequência, correntes no seu interior; ou seja, heterogeneidade e movimento. Se aquecermos um pedaço de matéria até o vermelho, por exemplo, a temperatura adquirida será talvez a mesma em todo o pedaço; mas iniciado o resfriamento, cessa essa homogeneidade, pois o exterior vai se resfriar mais rápido que o interior, criando uma heterogeneidade de temperatura. Essa heterogeneidade, tão evidente no presente e extremo exemplo, ocorre de maneira semelhante em quase todas as ocasiões. As ações químicas são também uma boa fonte de exemplos. Se expusermos à intempérie ou mergulharmos em água um pedaço de ferro, veremos, ao fim de certo tempo, que ele se cobriu de uma camada de óxido, de carbonato etc. Isto significa que a parte exterior se fez diversa da parte interior. Normalmente, a heterogeneidade produzida pelas ações químicas na superfície das massas não chama a atenção, porque as partes alteradas são geralmente limpas; mas, impedidas de desaparecer, essas alterações de superfície adquirem estrutura relativamente complexa. As pedreiras basálticas nos mostram bons exemplos: não raro, se encontra um fragmento reduzido, pela ação do ar, a um conjunto de cascas ou capas parcamente aderidas, que se soltam como as camadas de uma cebola. Se esse fragmento foi abandonado a si mesmo, podemos seguir essa série de camadas: uma exterior, irregular, angulosa, e depois outras, cada vez mais arredondadas; e por último, um núcleo central esférico. Comparando a massa de pedra em seu estado primitivo com essa série de camadas concêntricas, diferentes umas das outras pela forma e por seu estado de decomposição, vemos um exemplo bem notável da multiformidade a que pode chegar um corpo primitivamente uniforme, pela ação continuada, por longo tempo, das forças químicas. Vê-se também a instabilidade do homogêneo, nas mudanças que se verificam no interior de uma massa, cujas unidades não estão intimamente ligadas entre si; os átomos de um precipitado não permanecem separados, nem distribuídos uniformemente no fluido em que fizeram sua aparição, mas se juntam, seja em grãos cristalinos, seja em flocos amorfos, e quando a massa líquida é grande e a operação prolongada, esses flocos ou grãos não permanecem separados e equidistantes, mas se agrupam por sua vez em massas maiores e desiguais. Existem soluções de substâncias não cristalinas, em líquidos voláteis, que sofrem em meia hora toda série de mudanças que acabamos de indicar. Por exemplo: se derramamos sobre uma folha de papel uma solução de goma laca em um verniz de azeite de nafta, ou seja, um verniz de goma laca, de uma consistência cremosa, rapidamente cobrir-se-á superfície do verniz de gretas poligonais, partindo das margens para o centro. Olhando-as com lente de aumento, esses polígonos irregulares de cinco ou mais lados aparecem limitados por linhas escuras, cujas margens se veem ligeiramente coloridas; essas margens se ampliam pouco a pouco, à custa das áreas dos polígonos, até que fique apenas uma mancha escura, no centro de cada um. Ao mesmo tempo, as margens dos polígonos se arredondam, e estes acabam por apresentar o aspecto de bolsas esféricas mutuamente comprimidas, assemelhando assim a um grupo de células com núcleo. Vemos, então, que nesse caso há uma rápida perda da homogeneidade, e de três maneiras distintas: primeiro, pela formação da película, que é o lugar das demais mudanças; depois, pela formação das seções poligonais; e finalmente, pelos contrastes entre as seções poligonais das margens, pequenas e formadas primeiramente, e as do centro, maiores e formadas por último. A instabilidade, de que acabamos de mostrar vários exemplos, é evidentemente consequência de que as várias partes de uma massa homogênea estão submetidas a forças diferentes, seja por sua espécie, seja por sua intensidade; e, portanto, aquelas devem ser também diferentemente modificadas. A parte externa e a parte interna, por exemplo, não podem experimentar ações iguais do meio ambiente, em quantidade ou em qualidade, ou nas duas de uma vez, e forçosamente serão distintas as mudanças de partes distintamente influídas. Por razões análogas, é evidente que a operação deve repetir-se em cada grupo subordinado de unidades diversificadas por forças modificadoras. Cada um desses grupos deve perder por sua vez, sob a influência das forças que sobre ele atuam, o equilíbrio de suas diversas partes, e passar de um estado uniforme a um multiforme, e assim sucessiva e continuamente enquanto dure a evolução. Resulta então que não apenas o homogêneo deve tender constantemente para a heterogeneidade, como o heterogêneo tender sempre a ser ainda mais heterogêneo; porque se um todo não é uniforme, mas composto de partes distintas umas das outras, cada uma destas é uniforme, homogênea em si mesma, e estará por isso em equilíbrio instável, devendo sofrer mudanças que a façam, por sua vez, heterogênea ou multiforme; o todo far-se-á por isso, mais heterogêneo. O princípio geral, que a seguir desenvolveremos, em todas as suas fases, é, pois, algo mais compreensivo que o que faz supor o título do capítulo. Na realidade não existe o perfeito homogêneo; mas nem por isso deixaremos de estudar a passagem de uma homogeneidade imperfeita ou relativa para uma heterogeneidade também relativa. § 150. A distribuição das estrelas apresenta uma tríplice irregularidade: primeiro, o contraste da Via Láctea com as demais partes do céu, com respeito ao número de estrelas contidas nos dois campos visuais; depois, contrastes secundários da mesma ordem na mesma Via Láctea, na qual as estrelas estão acumuladas enormemente em alguns lugares e muito mais claras e separadas em outros, acontecendo o mesmo por todo o céu; e por último existem os contrastes produzidos pela reunião de várias estrelas em pequenos grupos. Além dessa heterogeneidade na distribuição geral das estrelas, há outra com respeito às cores, que provavelmente corresponde à diferença de suas constituições físicas. Há em todas as regiões celestes estrelas amarelas, mas não azuis e vermelhas, as quais são muito raras em algumas regiões e mais ou menos abundantes em outras. Análoga irregularidade se observa nas nebulosas, essas aglomerações de matéria que, qualquer que seja sua natureza, pertencem sem dúvida a nosso sistema sideral. De fato, as nebulosas não estão distribuídas com uniformidade; são abundantes nos polos da Via Láctea e escassas nas proximidades dessa zona; ninguém poderá imaginar sequer um arroubo de interpretação precisa para essa disposição das nebulosas, seja pela teoria da evolução, seja por outra teoria qualquer; o máximo que se pode arriscar será uma razão para pensar se essas irregularidades, todas da mesma espécie provavelmente, se produziram no curso da evolução, na hipótese da existência desta. Pode-se dizer: se a matéria, de que essas estrelas e todos os astros são feitos, existiu primitivamente em estado difuso, em um espaço imensamente maior que o hoje ocupado pelo sistema sideral, a instabilidade do homogêneo o impediu de permanecer naquele estado. De fato, sendo evidentemente impossível um equilíbrio absoluto entre as forças com que essas partículas dispersas, mas encerradas em limites, exerciam umas sobre as outras, deveria se operar um movimento, e, portanto, algumas mudanças de distribuição subsequentes, para os centros locais e ao mesmo tempo para o centro comum de gravidade, como os átomos de um precipitado se agregam em pequenos grãos e ao mesmo tempo obedecem à atração terrestre. Em virtude da lei que exige que continue mais facilmente em uma direção o movimento já começado nela, pode-se afirmar que uma vez iniciada a heterogeneidade já dita na matéria cósmica, ela tenderia a se tornar cada vez mais pronunciada; e as leis dinâmicas nos autorizam a pensar que os movimentos dessas massas irregulares de matéria pouco agregada para seu centro comum de gravidade deve tê-las tornado curvilíneas, pela resistência do meio em que se moviam e pelas irregularidades na distribuição já efetuada; esses movimentos curvilíneos devem, por virtude de uma composição de forças, ter conduzido a um movimento geral de rotação do nascente sistema sideral. Compreende-se então facilmente que a força centrífuga desse movimento de rotação deve ter modificado a coordenação estelar, ao ponto de impedir a distribuição uniforme dos corpos já formados, os quais se acumulariam, naturalmente, nas regiões mais distantes do eixo de rotação, vindo daí o contraste entre a Via ou Zona Láctea e o restante do céu. Poderíamos também concluir, racionalmente, que as diferenças manifestadas no ato da concentração local são resultado das diferenças nas condições físicas entre as regiões próximas e distantes do eixo de rotação. Não há necessidade de continuarmos até nos perdermos em uma série indefinida de suposições; o que dissemos, já suficientemente nos mostra que uma massa finita de matéria difusa, mesmo sendo bastante grande para constituir o sistema sideral, não poderia manter um equilíbrio estável; que sua concentração ou condensação deve ter se verificado com uma crescente irregularidade, por falta de uma esfericidade perfeita, de uma homogeneidade absoluta de composição e uma simetria completa com relação às forças exteriores, e que, portanto, o aspecto atual do céu não é incompatível com a hipótese de uma evolução geral resultante da instabilidade do homogêneo. Se nos limitamos a considerar a parte da hipótese nebular, segundo a qual o Sistema Solar resultou de uma concentração gradual; se supomos agora essa concentração já bastante avançada para ter produzido um esferoide em rotação de matéria nebulosa ainda bastante homogênea, vamos observar as consequências da instabilidade do homogêneo. Uma vez em rotação, o esferoide se achata nos polos; tomam diferentes densidades o interior, ou seja, a parte mais próxima do centro e as mais próximas da superfície; movem-se com diferentes velocidades as várias partes, ao redor do eixo comum; não se pode dizer que essa massa seja homogênea; por conseguinte, todas as mudanças que experimentar poderão servir de exemplo à lei geral, mas apenas como passagem do menos ao mais heterogêneo; e se verificam ainda, interiormente, partes de massa homogênea. Pois bem, admitindo com Laplace que a parte equatorial desse esferoide em rotação e em vias de concentração deve ter adquirido, em períodos sucessivos, uma força centrífuga bastante grande para impedir essa parte da massa de aproximar-se do centro, em torno do qual girava, e, portanto, de separar-se das partes internas do esferoide que seguiam seu movimento de contração, veremos nesse anel desprendido do esferoide um novo exemplo do princípio em questão. Esse anel, composto de substância gasosa, pode muito bem ter sido homogêneo ao se desprender; mas, por isso mesmo, não deve ter se mantido nesse estado. De fato, para conservá-lo seria preciso que houvesse uma quase perfeita uniformidade na ação de todas as forças externas que atuavam sobre ele (quase, dizemos, porque a coesão, mesmo na matéria muito rarefeita, poderia bastar para neutralizar pequenas perturbações), e há imensas probabilidades contra essa combinação. Não sendo, então, iguais, ou melhor dizendo, não estando em equilíbrio as forças externas e internas que atuavam sobre o anel, este deve ter-se rompido em um ou vários pontos; Laplace supunha que apenas por um ponto deu-se o rompimento, dobrando-se ou enrolando-se em seguida sobre si mesmo; mas tal hipótese é muito improvável, segundo a opinião de um eminente cientista contemporâneo; um anel tão grande, tão pouco denso, deveria ter-se rompido em muitos pedaços; mas em virtude da instabilidade do homogêneo, o resultado definitivo anunciado por Laplace deve ter-se verificado. De fato, supondo que as massas de matéria nebulosa, resultantes do rompimento do anel fossem volumes iguais e estivessem a distâncias convenientes para se atraírem mutuamente com forças iguais, o que é muito improvável, esse equilíbrio deveria logo ser destruído pelas ações desiguais das forças perturbadoras externas, e, portanto, as massas contíguas começariam em seguida a separar-se; e uma vez começada a separação, produziria com velocidade crescente um agrupamento de massas, e o mesmo produzir-se-ia novamente nesses grupos, até que, finalmente, se juntassem todos numa massa única. Deixemos, porém a Astronomia hipotética e consideremos o Sistema Solar tal e qual agora se nos apresenta; mas examinemos antes um fato que nos parece contraditório com as condições que antecedem a existência atual dos anéis de Saturno e sobretudo do anel gasoso, há pouco descoberto, os quais se conservam inteiros e guardando seu equilíbrio relativo em relação ao planeta. Quanto aos primeiros, pode-se responder que a coesão das substâncias líquidas e sólidas de que constam basta para impedir sua ruptura; e o gasoso pode muito bem subsistir pela simetria das forças com que o atraem os outros dois anéis. E mais: se o sistema de Saturno e seus anéis parece, à primeira vista, em desacordo com o princípio da instabilidade do homogêneo, na realidade é mais um exemplo a confirmá-lo. De fato, Saturno não é concêntrico com seus anéis, e se o fosse, assim não poderia permanecer, o que está matematicamente provado; isto significa que essa relação homogênea tenderia para outra heterogênea. Pois bem: o mesmo acontece com todo o sistema solar: as órbitas, tanto dos planetas quanto de seus satélites são todas mais ou menos excêntricas, nenhuma sendo circular, e se alguma o fosse, logo se modificaria, pois, as perturbações gerariam uma excentricidade; ou, em outras palavras, as relações homogêneas transformar-se-iam em heterogêneas. § 151. Já tanto falamos da formação da crosta sólida da Terra que parecerá supérfluo ainda dizer alguma coisa. Contudo, será preciso considerá-la, do ponto de vista do princípio que agora discutimos. O resfriamento e a solidificação da superfície terrestre são, sem dúvida, dos casos mais simples e importantes da passagem de um estado uniforme a um multiforme, pelas distintas condições a que estiveram submetidas as diferentes partes da Terra. À diferenciação entre o interior e o exterior, produzida pelo resfriamento, juntou-se, pouco depois, a diferenciação passada na superfície pela desigual ação solar sobre ela, e à qual são devidas as modificações permanentes que ainda tanto distinguem as regiões polares das equatoriais. A par das diferenciações físicas de primeira ordem que se operavam no globo terrestre, em virtude da instabilidade do homogêneo, se verificavam também numerosas diferenciações químicas suscetíveis da mesma explicação. De fato, sem suscitar agora a questão de saber se, como creem alguns, os chamados corpos simples o são efetivamente, ou estão por sua vez compostos de elementos desconhecidos, elementos que não podemos isolar, talvez por insuficiência de calor artificial, mas que podem ter existido em isolamento quando o calor terrestre era ainda muito superior ao que temos hoje capacidade de artificialmente produzir, bastará ao nosso objetivo demonstrar: como em vez da homogeneidade relativa, sob o ponto de vista químico, que devia ter a crosta terrestre quando sua temperatura era muito elevada, se foi tornando cada vez mais heterogênea à medida que foi se resfriando. Então, sendo incapaz cada corpo, simples ou composto, dos que então constituíam a superfície terrestre, de conservar a homogeneidade em presença de tantas afinidades químicas ambientes, entraria em variadas e heterogêneas combinações; estudemos esses primeiros fenômenos químicos com alguma atenção. Há, como se sabe, poderosas razões para julgar que a uma temperatura muito elevada não se combinam os elementos, uma vez que mesmo a temperaturas produzidas artificialmente se decompõe a maioria das combinações conhecidas. É, portanto muito provável que, quando a Terra estava ainda em seu estado primitivo de fusão, não houvessem verdadeiras combinações químicas. Mesmo sem ir tão longe, nos basta partir de um fato indiscutível, o de que os compostos que resistem às mais altas temperaturas e por isso mesmo devem ter sido os primeiros a se formar, ao resfriar-se a Terra, são os mais simples. De fato, os protóxidos, como os álcalis e as terras raras são os compostos mais fixos conhecidos; a maioria resiste aos mais intensos aquecimentos artificiais e constam apenas de um átomo de cada elemento, ou seja, são as combinações mais simples, menos heterogêneas. Mais heterogêneos, porém facilmente decomponíveis pelo calor, e, portanto, mais recentes na formação do globo, são os dióxidos, trióxidos, peróxidos etc., nos quais há dois, três, ou mais átomos de oxigênio unidos a cada átomo de outro elemento. Os sais anidros são ainda mais facilmente descompostos pelo calor que a maioria dos óxidos e claro, também mais heterogêneos pelo número e espécie de átomos que formam sua molécula. Os sais hidratados, mais heterogêneos que os anidros, sofrem quase todos uma decomposição ao menos parcial, perdendo água a temperaturas relativamente baixas. Os compostos ainda mais complicados, como os sais duplos, sobressais e subsais, são também, regra geral menos estáveis e assim sucessivamente. A mesma lei seguem com poucas e não muito importantes exceções compostos orgânicos cuja estabilidade, nas mesmas circunstâncias, está na razão inversa de sua complicação. Uma molécula de albumina, por exemplo, se compõe de 482 átomos, de cinco elementos diferentes. A fibrina tem composição ainda mais complicada, pois consta de 298 átomos de carbono, 49 de nitrogênio, 2 de enxofre, 228 de hidrogênio e 92 de oxigênio, ou seja, 669 átomos de cinco espécies. E tanto a albumina quanto a fibrina se decompõem na temperatura de um forno de cozinha. Pode-se objetar talvez que existem compostos inorgânicos bem simples e mais facilmente decomponíveis que os mais complexos princípios orgânicos, como, por exemplo, o hidrogênio fosforado e o cloreto de nitrogênio. Embora verdade, isso não destrói nosso princípio, pois não afirmamos que todos os compostos simples são mais estáveis que todos os compostos complicados, mas apenas que, regra geral, as combinações simples podem resistir a temperaturas maiores que as combinações complicadas, o que é fora de dúvida. Assim, está provado que a heterogeneidade química da superfície ou crosta terrestre, tal como existe hoje, foi aumentando gradualmente à medida que permitia o resfriamento contínuo daquela superfície, e se manifesta hoje de três maneiras diferentes: na multiplicidade dos compostos químicos, no maior número de elementos presentes nos compostos mais modernos, e finalmente na maior complexidade das moléculas à medida que podiam se formar e subsistir, por menor nível de calor, com maior número de átomos. Sem descer a detalhes, tomemos como últimos exemplos da lei, relativos ainda à evolução geral de nosso planeta, os fenômenos meteorológicos da época atual, comparados com os das idades anteriores da Terra. São sem dúvida novos casos que comprovam a destruição do estado homogêneo, desigualmente sujeito a forças incidentes. § 152. Consideremos uma massa de matéria ainda não organizada, mas organizável, por exemplo, o corpo vivo de um dos seres vivos mais inferiores, ou o embrião de um dos superiores. Essa massa ou estará na água ou no ar, ou em outro organismo; mas qualquer que seja sua situação, é sem dúvida que seu interior e seu exterior terão distintas relações com os agentes externos, o alimento, o oxigênio e os diversos estimulantes. E ainda mais: as várias partes de sua superfície umas estarão mais expostas que outras ao meio ambiente, luz, calor, oxigênio e influência dos tecidos da mãe; resultará, pois, inevitavelmente, a ruptura do equilíbrio primitivo, que poderá verificar-se de uma dessas duas maneiras: ou as forças externas são capazes de vencer as afinidades dos elementos orgânicos e a massa organizável se decompõe, em vez de organizar-se, ou, pelo contrário, tais forças vão modificando, lenta e gradualmente a massa que vai se desenvolvendo ou organizando. Vejamos alguns exemplos. Assinalemos primeiramente algumas exceções aparentes. Há pequenos seres do reino animal que não oferecem variações apreciáveis no curso de sua organização rudimentar. Assim, a substância gelatinosa dos rizópodes permanece sem organização propriamente dita durante toda a vida daqueles seres, até o ponto de que não têm membrana externa que os limite, como prova o fato de que as prolongações filiformes que nascem da massa se soldam quando se tocam. Um animal afim dos rizópodes, a ameba, cujos membros menos numerosos e de maior volume não se soldam tenham ou não, como ainda se discute, uma espécie de membrana ou parede de célula e um núcleo, é claro que essa ligeira distinção de partes é insignificante, uma vez que as partículas alimentares passam para o interior do animal através de uma parte qualquer da periferia, e posto que, cortando o animal em pedaços, cada um tem as mesmas propriedades e funções que o animal inteiro. Nestes casos em que não existe contraste entre a estrutura interior e a exterior, ou ele é insignificante, e que parecem contradizer o princípio que discutimos, são, pelo contrário, provas muito significativas de sua validade. De fato, quais são as características dos protozoários? Sofrer contínuas e irregulares mudanças de forma; não guardar relações permanentes entre as várias partes de seu corpo; o que era interno, logo passa a ser externo e servindo de membro temporário, logo adere ao que acaba de tocar; o que formava parte da superfície externa é atraído para o interior com as partículas alimentares que lhe haviam aderido. Pois bem: segundo nossa hipótese, apenas por suas posições diferentes com respeito às forças modificadoras é que as partes primitivamente semelhantes de uma massa viva se convertem em dessemelhantes; mas se as posições são indeterminadas, se não existem diferenças permanentes entre elas, tampouco poderão ser influídas permanentemente pelas forças externas as partes da massa, e esse não poderá experimentar, portanto, senão débeis modificações, e isso é precisamente o que acontece nos protozoários, como evidenciamos. A essa prova negativa, vem juntar-se, como era de se esperar, uma prova positiva. Ao passar desses pontos proteiformes de matéria viva para organismos cuja estrutura não varia, constatamos que as diferenças de tecido correspondem às diferenças de posição relativa. Em todos os protozoários superiores, como também nos protófitos, se observa uma diferenciação fundamentalmente distinta nas membranas das células e no conteúdo das mesmas, correspondendo ao contraste fundamental de condições traduzido pelas palavras exterior e interior. Passando dos organismos ditos unicelulares para os compostos por uma aglomeração de células, observaremos também a relação íntima que une as diferenças de estrutura e as de circunstância ou condição. Do ponto de vista negativo, vemos que em uma esponja, atravessada em todos os sentidos pela água do mar, o vago da organização corresponde também ao vago nas diferenças de condição; as partes periféricas e as centrais se diferenciam tão pouco em sua estrutura como à exposição às influências do meio. E do ponto de vista positivo, em seres como os Thalassicolla, que mesmo pouco elevados na escala zoológica conservam diferenças permanentes entre o exterior e as partes internas, observaremos uma estrutura submetida evidentemente às relações entre centro e superfície, uma distribuição mais ou menos concêntrica das diversas partes. Depois dessa modificação primária, que introduz uma diferença entre os tecidos internos e externos, segue na ordem de persistência e de importância outra modificação que diferencia entre si as várias partes dos tecidos externos, e essa modificação corresponde a um fato quase universal, que essas várias partes estão distintamente expostas aos agentes ou influências exteriores. Neste caso, como nos outros, as exceções aparentes têm um grande valor. Há vegetais inferiores, como os Hematococcus e Protococcus, envoltos por igual em uma capa de muco ou dispersos na neve dos polos, que não oferecem diferença alguma entre as várias partes de sua superfície, sendo natural esse fato, pois essas várias partes não estão submetidas a condições diversas. As esferas animadas, tais como os Volvox, não têm em sua periferia nenhuma parte que se distinga das outras, e nada mais natural, pois rolando na água em todas as direções não expõem a condições especiais nenhuma parte de sua superfície. Mas os organismos que conservam em seus movimentos atitudes e posições determinadas não apresentam superfícies uniformes. O fato mais geral que se pode apresentar sobre a estrutura animal e a estrutura vegetal é que, por maior que seja a princípio a semelhança de forma e de textura das diversas partes exteriores, adquirirão dessemelhanças sucessivas, correspondentes a suas distintas relações com as forças exteriores. No germe ciliar de um zoófito, que durante seu período de locomoção não apresenta mais diferenças que as dos tecidos externos e internos, imediatamente após sua fixação sua parte superior começa a se diferenciar da inferior. As gemas discoides dos Marchantia, primeiro semelhantes por suas duas faces começam em seguida a deitar pequenas raízes por sua face inferior e estomas pela parte superior; isso prova, indiscutivelmente, que essa diferenciação primária é produzida pela diferença fundamental de condições. Nos embriões dos organismos superiores, as metamorfoses devidas imediatamente à instabilidade do homogêneo são natural e prontamente ocultadas pelas devidas à lei da hereditariedade. Contudo, há mudanças primitivas, comuns a todos os organismos, e que, portanto, não se podem atribuir à hereditariedade, mas à lei que vimos estudando. Um germe, que ainda não começou a se desenvolver, consta de um grupo esferoidal de células homogêneas; o primeiro grau de sua evolução, em todo o reino orgânico, consiste no estabelecimento de uma diferença entre as células periféricas e as interiores; algumas daquelas, depois de ter-se fendido em muitos lugares, se soldam, formando uma película ou membrana, a qual ou se estende e recobre, pouco a pouco a massa toda, como nos mamíferos, ou se detém por algum tempo no desenvolver, como nas aves. Estão aí presentes dois fatos significativos: o primeiro, que a dessemelhança primitiva se estabelece entre o interior e o exterior; e o segundo, que a mudança que dá impulso ao desenvolvimento não se verifica simultaneamente em toda a parte externa, mas que começa em um lugar e se estende pouco a pouco a todos os demais. Ambos os fatos são corolários evidentes da instabilidade do homogêneo; a superfície deve, melhor que qualquer outra parte, se diferenciar prontamente do centro, porque está submetida a condições mais diferentes do centro do que de qualquer outra parte; e todas as partes da superfície não devem diferenciar-se simultaneamente das interiores, pois não estão todas igualmente expostas às forças exteriores. Recordemos ainda outro fato geral de análogo significado; qualquer que seja a extensão dessa capa periférica de células ou do blastoderme, como é chamado, se divide por sua vez em duas folhas, ou membranas: a mucosa exterior, ou exoderme, e a serosa, interior, ou endoderme; a primeira está formada da parte do blastoderme que está em contato com o exterior e a segunda da parte que toca a massa celular interior; isso significa que depois da diferenciação primária entre a superfície e o centro, a parte superficial restante se desdobra, sofrendo uma diferenciação secundária, em parte folha externa, e em parte interna; é evidente que essa diferenciação secundária é da mesma ordem que a primária, que corresponde também ao contraste de condições tantas vezes lembrado. Mas, como já mostramos, esse princípio da instabilidade do homogêneo não apresenta por si só a chave do desenvolvimento orgânico; é insuficiente para explicar particularidades genéricas e específicas, e muito mais, as correspondentes a ordens, famílias etc.; nem pode, de maneira alguma, explicar-nos porque dois ovos, depositados no mesmo tanque, produzirão um, um peixe e o outro, um réptil; porque outros dois, chocados pela mesma galinha dão um, um pintinho, e o outro, um patinho. Para tanto não há outra explicação senão aquela do princípio inexplicado da transmissão hereditária; essa capacidade inexplicável de cada germe para se desenvolver, reproduzindo as formas e traços dos seus antepassados em seus menores detalhes, nas suas enfermidades inclusive. Que uma parte microscópica de substância aparentemente homogênea encerre ou conduza em si tal influência, que o homem que dela saia será aos vinte, trinta, cinquenta anos tísico, gotoso, louco etc. seria uma coisa incrível se não a estivéssemos vendo confirmada em inúmeros casos. Se, voltando sobre nossos passos provássemos que essas diferenciações tão complicadas, que um adulto apresenta, são resultados gradualmente acumulados e transmitidos pela hereditariedade, de um processo análogo ao que já descrevemos, do germe, resultaria que mesmo as mudanças manifestas desde o embrião até o adulto, e devidas à influência específica ou hereditária, são consequências distantes da instabilidade do homogêneo. Se patenteássemos que as ligeiras modificações verificadas durante a vida de cada adulto e legadas aos descendentes com todas as modificações anteriores não são senão dessemelhanças de partes, produzidas por dessemelhanças de condições, resultaria que as modificações havidas durante a vida embrionária são consequências em parte diretas e em parte indiretas da instabilidade do homogêneo. Mas as condições da presente obra não permitem que desçamos a expor as razões que há em prol dessa hipótese. Basta haver feito constar que as diferenciações mais notáveis que manifestam universalmente os organismos, ao começar seu desenvolvimento, correspondem às diferenças mais marcadas das condições a que estão expostas suas partes distintas; e basta que o contraste habitual entre o interior e o exterior, que sabemos ser produzido nas massas inorgânicas pela distinta exposição às forças incidentes, seja inteiramente análogo, em sua causa e processo, ao primeiro contraste que se verifica em todas as massas organizáveis ao começarem a se organizar. Resta-nos provar que no conjunto de organismos que constituem uma espécie, se pode também ver uma prova da instabilidade do homogêneo. Há, com efeito, fatos bastante numerosos para induzir que cada espécie não subsiste invariável e uniforme, mas que tende a variar, e se heterogeneizar até certo ponto; há também razões para julgar que essa passagem do homogêneo para o heterogêneo deve-se a que os distintos indivíduos de cada espécie estão respectivamente submetidos a diferentes conjuntos ou sistemas de circunstâncias exteriores ou ambientes. Como base de indução, que acreditamos suficiente, notaremos esses dois fatos: primeiro, em nenhuma espécie, vegetal ou animal, são totalmente semelhantes os indivíduos; e segundo, há em toda espécie uma tendência a produzir diferenças bastante assinaladas para constituir variedades. Por outro lado, a experiência confirma com fatos o princípio geral, uma vez que as variedades são mais numerosas e distintas nas plantas cultivadas e nos animais domésticos, cujas condições de vida se apartam mais e em maior número de pontos de suas condições primitivas. Olhemos a seleção natural como o agente que produz a totalidade, ou somente uma parte das variedades, isto em nada muda nossas deduções. De fato, como a persistência de uma variedade prova que está em harmonia com o conjunto das forças ambientes, como a multiplicação de uma variedade e seu estabelecimento sobre um terreno ocupado antes por outra fração já extinta da espécie implica que esse conjunto de forças produza, sobre ambas as variedades, efeitos diferentes, é evidente que esse conjunto de forças é a causa efetiva da diferenciação; é claro que se a variedade substitui a espécie original em algumas localidades e não em outras, é porque o sistema de forças de uma localidade não é igual ao de outra; e é por último evidente que a passagem da espécie de uma homogeneidade relativa a uma heterogeneidade de raças, variedades etc., é pelo efeito de que seus distintos indivíduos estiveram expostos a distintas condições ambientes, a distintos sistemas de forças. § 153. Para demonstrar que a lei se verifica também nos fenômenos psíquicos, deveríamos fazer uma análise muito detida desses fenômenos; deveríamos seguir com minucioso rigor a organização das primeiras experiências mentais, para poder demonstrar como os estados psíquicos primitivamente homogêneos se fazem heterogêneos como consequência das diferentes mudanças provocadas por diferentes sistemas de forças. Uma vez provado isso, ficaria evidente que o que constitui o desenvolvimento da inteligência sob um de seus principais aspectos é uma repartição em classes distintas de coisas dessemelhantes, que primitivamente estavam confundidas em uma só classe; é uma formação de grupos e subgrupos, até que o conjunto de objetos conhecidos reúna a extrema heterogeneidade dos distintos grupos que o compõem à completa homogeneidade entre os membros de cada grupo. Se, por exemplo, seguimos na escala zoológica a gênese do sem número de conhecimentos que adquirimos pela visão, observaremos que no primeiro escalão, em que os olhos apenas servem para distinguir a luz das trevas, a única classificação possível dos objetos visíveis deve estar fundada na maneira e grau de produzir sombra ou interceptar a luz. Nesses órgãos visuais rudimentares, as imagens formadas na retina devem classificar-se apenas em dois grupos: um, dos objetos em repouso, diante dos quais passa o animal em movimento; outro, dos objetos móveis, ou que passam ante o animal em repouso; objetos estacionários e objetos móveis devem ser, pois, a primeira e mais geral classificação dos objetos visíveis. Logo vem a divisão entre objetos próximos e distantes, que nem todos os animais podem apreciar, pois os de olhos muito simples não distinguem um objeto pequeno, mas próximo, de um grande, porém distante. Os aperfeiçoamentos sucessivos da visão, que tornam possível uma avaliação mais exata das distâncias, pela comparação dos ângulos ópticos; e os que fazem possível a distinção de formas, por crescimento e subdivisão da retina, dão mais precisão às classes já formadas, e as subdividem em classes menores, compostas de objetos menos dessemelhantes. Enfim, todos os aperfeiçoamentos sucessivos dos órgãos de percepção externa devem conduzir, como conduzem, como mostra a experiência, a uma multiplicação das divisões ou classes de objetos percebidos e a um aumento da precisão nos limites de cada classe. Nas crianças se vê também que o confuso conjunto de suas primeiras impressões, quando os objetos ambientes se lhes apresentam sem distâncias, volumes ou formas, isto é, sem distinção ou diferença uns em relação aos outros se transforma, pouco a pouco, em classes de objetos dessemelhantes por tais ou quais atributos. Em ambos os casos, se pode comprovar através de um detido estudo, aqui já incompatível com a extensão deste livro, que essa consciência primitiva, indefinida, incoerente e homogênea, transformou-se em uma consciência definida, coerente, heterogênea, por influência das diversas ações das forças externas sobre o organismo. Bastam essas indicações sumárias, que como balizas poderão guiar o leitor reflexivo e ajudá-lo a se convencer de que a evolução dos fenômenos psíquicos não oferece exceção alguma à lei da instabilidade do homogêneo. Para facilitar essa tarefa, acrescentaremos um exemplo, que pode ser entendido isoladamente, fora da evolução mental, ainda que, sem dúvida, dela seja parte integrante. Já se observou que, à medida que progride a formação de um idioma (a observação é de S.T. coleridge, em obra que não pudemos determinar), as palavras que primitivamente tinham significados parecidos, vão adquirindo significados mais distintos; fenômeno que poderíamos chamar de desinonimização. Não é fácil demonstrar com clareza essa mudança nas palavras indígenas ou primitivas em cada idioma, porque falta escrita onde observá-la, pois tais divergências de sentido das palavras precederam o nascer da literatura. Mas nas palavras criadas ou tomadas de outras línguas quando já existiam livros, é muito fácil seguir esse movimento. Entre os antigos teólogos, a palavra "desacreditado" (miscreant) era exclusivamente usada em um sentido etimológico como sinônima de incrédulo (unbeliever), mas na linguagem moderna estendeu mais além seu significado. Analogamente, "malvado" (evil-doer) ou "malfeitor" (malefactor), sinônimos etimológicos em inglês, não o são mais por completo, "malfeitor" significando "criminoso", algo mais forte que a qualificação de "malvado". O verbo "produzir" (produce) significa em Euclides prolongar ou estender, diferente do significado atual, de gerar ou confeccionar. Na liturgia religiosa da Inglaterra, um estranho efeito resulta do uso do verbo "prevenir" (prevent) no seu sentido original (chegar antes) em vez de seu sentido moderno (impedir). As palavras mais demonstrativas da lei são as compostas das mesmas partes distintamente combinadas: assim, dizemos "passamos" (go under) sob uma árvore e "sofremos" (undergo) uma aflição; analisadas essas duas frases, como muitas outras, encontra-se o mesmo sentido literal, mas o uso modificou de tal modo seus respectivos significados, que não se pode dizer, sem cair no ridículo, sofremos uma árvore, passamos por baixo de uma aflição. Todos esses exemplos, e outros inúmeros que poderíamos buscar, provam que não pode sustentar-se o completo equilíbrio, uniformidade ou sinonímia entre duas ou mais palavras, formando-se bem rápido o hábito de referirmo-nos a uma com preferência a outra, quando designamos tais ou quais objetos ou atos. Cada pessoa tem o costume de usar tais ou quais frases para expressar o que outra pessoa expressará com frases diferentes, e essa impossibilidade de conservar um perfeito equilíbrio linguístico, uma perfeita homogeneidade no uso dos sinais verbais que caracteriza cada um, ou o distingue dos demais do ponto de vista da linguagem, e, por conseguinte caracteriza também cada grupo de homens, tem por resultado definitivo a desinonimização de palavras e frases. Se houvesse dificuldade em compreender como essas mudanças intelectuais podem servir de exemplo para uma lei de transformações físicas, operadas por forças físicas, teríamos que levar em conta que todos os atos psicológicos podem ser considerados funções nervosas; que as perdas de equilíbrio que acabamos de mencionar são perdas de igualdade funcional entre dois elementos do sistema nervoso, e que, como nos exemplos anteriormente expostos, essa perda de igualdade funcional é devida a diferenças na maneira de atuar das forças ambientes. § 154. As massas humanas, como todas as massas, têm a mesma tendência que vimos estudando, e que é ocasionada e produzida pelas mesmas ou análogas causas já tantas vezes reconhecidas nas séries de exemplos anteriormente apresentados. As diversificações governamentais, profissionais etc., tanto nas pequenas quanto nas grandes sociedades, reconhecem a mesma origem, ou melhor, as mesmas causas originais - diferença da influência externa sobre as massas, totais ou parciais, relativamente homogêneas. Analisemos, mesmo que de passagem, as duas classes de diversificações que acabamos de citar. Em uma sociedade mercantil, a autoridade de todos os sócios pode muito bem ser igual em teoria, mas na prática, sempre predomina a autoridade de uns sobre a de outro ou outros, e se, como costuma acontecer, os sócios delegam quase todos os seus poderes aos diretores, e estes têm, portanto, as mesmas atribuições, logo um deles vai se impor aos demais, e suas decisões serão aquelas que na companhia vão prevalecer. Analogamente ocorre nas sociedades políticas, beneficentes, religiosas, literárias etc.; há sempre uma divisão semelhante, em partidos dominantes e subordinados, e cada partido tem seus chefes ou indivíduos mais influentes, ou menos influentes, ou mesmo sem influência nenhuma. Nesses exemplos secundários podemos ver grupos de homens sem organização, unidos por relações homogêneas, passar gradualmente ao estado de grupos organizados, unidos por relações heterogêneas, e não é outra a chave de todas as desigualdades sociais. De fato, as sociedades, bárbaras ou civilizadas, estão divididas em classes, havendo em cada classe indivíduos mais ou menos importantes; essa estrutura social é sem dúvida o resultado de uma operação análoga à que indicamos e vemos frequentemente realizada nas pequenas sociedades citadas. Enquanto estejam os homens constituídos para influir uns sobre os outros, seja pela força física, seja pela força moral, haverá luta pela dominação, luta que terminará, necessariamente pelo triunfo de um deles, e que, marcada a diferença, tende a se acentuar cada vez mais, pois terá sido destruído o equilíbrio instável, o uniforme deve gravitar com movimento acelerado para o multiforme. A supremacia e a subordinação devem estabelecer-se, como vemos realizar-se diariamente em todas as partes do edifício social, desde as grandes classes, que se estendem por toda a sociedade, até as quadrilhas de aldeia ou os bandos de escolares. Talvez surja a objeção de que essas mudanças resultam não da homogeneidade, mas da heterogeneidade dos agrupamentos primitivos, cujas unidades ofereciam, já então, ligeiras diferenças. Sem dúvida, essa é a causa próxima, e, a rigor, devemos considerar essas mudanças como passagem de um estado relativamente homogêneo a um relativamente heterogêneo. Mas é também fora de dúvida que um aglomerado de homens completamente semelhantes em todas as suas qualidades sofreria análogas transformações. De fato, se não a uniformidade perfeita de vida, ocupações, condições físicas, ao menos as relações domésticas e a ilação de ideias e sentimentos de cada homem deveriam neles originar diferenças individuais e estas conduzir a diferenças sociais. Até desigualdades de saúde, determinando necessariamente desigualdades nas faculdades físicas e mentais, deveriam romper o suposto equilíbrio existente entre as mútuas influências de uns homens sobre outros. Vemos, pois, que um agrupamento humano cujos indivíduos fossem completamente iguais em autoridade deveria, como todo homogêneo, fazer-se heterogêneo, e que essa heterogeneidade é efeito da mesma causa originária: a desigual exposição das partes a ações externas. Ainda com maior clareza se reconhece essa mesma causa nas primeiras divisões profissionais dos homens, as quais faltam, enquanto são iguais as influências exteriores. Assim, as tribos nômades não expõem permanentemente grupos de seus indivíduos a condições locais particulares; uma tribo sedentária que ocupa um território reduzido conserva durante muito tempo as diferenças marcadas que distinguem seus vários indivíduos, e nessas tribos não há diferenciações econômicas propriamente ditas. Mas quando um grupamento humano bastante numeroso ocupa um grande território e seus indivíduos vivem e morrem em seus distritos respectivos, subsistem suas várias seções em distintas circunstâncias físicas e, por conseguinte, têm que se diferenciar também por suas ocupações. Então, os que vivem ainda dispersos seguem caçando e cultivando a terra; os que habitam à beira-mar se dedicam a trabalhos marinhos; os habitantes dos lugares escolhidos, talvez por sua posição central, para reuniões periódicas, se fazem comerciantes e fundam povoados; cada uma dessas classes sofre uma mudança em suas características, resultante de sua ocupação, o que a faz mais apta para seu desempenho. As adaptações locais mais recentes na marcha da evolução social se multiplicam mais e mais; uma diferença no solo, ou no clima, ou em ambos, faz com que os habitantes das diversas regiões de um país se diferenciem em suas ocupações; uns se tornam vaqueiros, outros pastores de ovelhas etc., segundo as condições; outros serão lavradores de trigo, milho, aveia, sob análoga influência; os distritos abundantes em minérios logo atraem os mineiros, as fundições, as ferrarias, se as minas são metálicas ou de ferro. Em suma, a causa principal originária ou continuada tanto das grandes como das pequenas divisões sociais é a diferença de circunstâncias externas ou ambientes, e esta explicação é perfeitamente compatível cem a que demos sobre outro ponto de vista (§80) como corolário da lei de direção do movimento, uma vez que a distribuição das forças ambientes é o que determina o sentido da mínima resistência e, portanto, a diferença de distribuição em diversas localidades há de originar, necessariamente, diferentes ações humanas, individuais e sociais de profissão. § 155. Falta demonstrar que o princípio da instabilidade do homogêneo é demonstrável a priori como corolário do princípio da persistência da força, o que, implicitamente, já havíamos admitido, explicando a passagem do uniforme ao multiforme pela diferença de exposição de umas e outras partes do ser às forças ambientes; mas é conveniente dar a esse reconhecimento implícito a forma de prova definitiva. Quando se golpeia uma porção de matéria com força suficiente para rompê-la, se observa que o golpe produz diferentes efeitos nas diversas partes da massa, como consequência das distintas relações dessas partes com a força desferi da; a parte que se põe em contato imediato com o corpo chocante, e que, portanto, recebe a totalidade do movimento comunicado, é impelida para o interior da massa, empurrando as partes próximas, que por sua vez empurram a outras e assim sucessivamente. Quando o golpe tem bastante força para fazer a massa em pedaços, vemos, pela dispersão dos fragmentos, desiguais em direções radiais, que o momento total se dividiu em momentos parciais distintos, por seus valores e direções; vemos também que essas direções estão determinadas pelas posições das partes da massa, umas com respeito a outras e com respeito ao ponto de aplicação da força de choque, e vemos, por último, que as partes são impulsionadas de maneira distinta pela força disruptiva, porque têm relações diferentes com essa força, quanto a sua direção e seus efeitos, pois sendo os efeitos sobre as distintas partes produtos combinados das condições destas e da força, não podem aqueles ser semelhantes em partes submetidas a diferentes condições. A absorção ou recepção de calor é outro exemplo. Analisemos o caso mais simples de uma esfera que recebe raios térmicos do Sol ou de um foco bastante distante; estes raios cairão sobre as várias partes do hemisfério voltado para o foco, sob todos os ângulos, de O a 90 graus; além disso, as vibrações moleculares através da massa, propagadas partindo dos pontos que recebem o calor, devem também se propagar em todas as direções; por conseguinte, as partes interiores da esfera devem vibrar ou aquecer diferentemente, segundo suas posições em relação à parte que recebe os raios incidentes, e todas as moléculas interiores e exteriores vão diferir umas das outras, mais ou menos, em suas vibrações térmicas, pois diferem em suas relações com o foco que as aquece. O que significa, pois, no fundo, a proposição: "Uma força constante produz mudanças diferentes através de uma massa homogênea porque as várias partes dessa massa têm relações diferentes com essa força"? Para bem compreender isto, devemos considerar cada parte como simultaneamente submetida a outras forças: gravitação, coesão, movimento molecular etc.; os efeitos produzidos por uma nova força devem ser resultantes desta e de todas as forças anteriores. Se as forças que já atuavam sobre duas partes de uma massa diferiam por sua direção, os efeitos produzidos sobre essas duas partes por duas forças iguais diferirão por sua direção, pois mesmo quando essas componentes forem iguais, não o eram as anteriores; portanto, as resultantes e os resultados não podem ser iguais. Vai nos parecer ainda mais claro se dissermos que as partes de uma massa diferentemente dispostas devem ser modificadas de modos distintos por uma mesma força exterior, se observarmos que não são iguais as quantidades da força total que vão corresponder às distintas partes. Assim, as forças químicas só exercem sua ação sobre as partes externas de uma massa, e desigualmente sobre elas, uma vez que, geralmente, se estabelecem correntes no meio em que se verifica uma reação e em virtude disso se aplicam às várias partes da superfície atacada diferentes quantidades do agente reativo. Analogamente, as quantidades de uma força radiante exterior, que recebem as diversas partes de uma massa, variam por muitos conceitos; primeiro, existe o contraste entre a quantidade de força incidente sobre a parte situada em frente ao centro radiante, e a incidente na parte oposta, que é, no caso, nula; depois, as distintas quantidades que recebem as partes diferentemente situadas do lado da radiação, e por último, as inumeráveis diferenças entre as quantidades recebidas pelas diversas partes interiores. Quando uma força mecânica atua sobre um agregado material, seja por choque, por pressão contínua ou por tensão, as quantidades de força entre partes iguais da massa distribuída são sem dúvida distintas para partes distintamente situadas, e se estas recebem diferentes quantidades de força, serão de diversas maneiras modificadas por ela, isto é, se eram relativamente homogêneas em suas relações, devem fazer-se heterogêneas, pois em virtude do princípio da persistência da força, havendo igualdade de massas, forças desiguais devem produzir efeitos desiguais. Por um raciocínio análogo, podemos chegar também à conclusão de que, mesmo fora das ações exteriores, o equilíbrio de um modo homogêneo deve ser destruído pelas ações desiguais que suas diversas partes exercem umas sobre as outras. A influência mútua que a agregação produz - prescindindo agora das demais influências mútuas - deve originar efeitos diferentes sobre as diversas partes, uma vez que estas recebem a ação daquela força com variadas intensidades e direções. Compreender-se-á isto mais facilmente levando em conta que as partes de um todo podem ser consideradas por sua vez como entes menores, ou todos menores: com respeito aos quais as ações ou influências dos outros são forças exteriores que, segundo já anteriormente explicado, devem operar mudanças distintas sobre as partículas diversas desses todos, e, portanto, cada um deles deve fazer-se heterogêneo, e o todo maior ou principal resultará, por conseguinte heterogêneo. É, pois, logicamente dedutível a instabilidade do homogêneo do princípio primordial que serve de fundamento a nossa inteligência. Somente é concebível a estabilidade no caso de uma absoluta homogeneidade, única e infinita em extensão. De fato, se centros de força absolutamente iguais em sua potência estivessem distribuídos em absoluta e simétrica uniformidade em todo espaço infinito, estariam eternamente em equilíbrio. Mas essa hipótese, ainda que inteligível verbalmente, é inimaginável e ininteligível realmente, uma vez que o é o espaço infinito. Todas as formas finitas do homogêneo, únicas que podemos conhecer e conceber, devem forçosamente fazer-se heterogêneas. Deduz-se essa necessidade por três pontos de vista da persistência da força. Prescindamos primeiramente das forças externas; cada unidade de um todo homogêneo deve ser solicitada de maneira distinta que qualquer outra do mesmo, pela resultante das ações respectivas das demais unidades. Em segundo lugar, nunca sendo iguais as ações que sobre duas unidades quaisquer da massa exerce o conjunto de todas as demais, cada força externa ou incidente, mesmo que seja constante em sua intensidade e direção, deve produzir também efeitos diferentes sobre as duas ditas unidades da massa. E por último, como necessariamente são distintas as posições das diversas partes do todo em relação à direção e ao ponto de aplicação de cada força incidente, devem também por esse conceito ser distintos os efeitos desta sobre aquelas. Para concluir, faremos observar, não apenas que devem começar as mudanças que iniciem a evolução como consequência necessária da persistência da força, como pela mesma razão devem continuar; o absolutamente homogêneo deve perder seu equilíbrio, e o relativamente homogêneo deve se fazer cada vez menos homogêneo, uma vez que o que se verifica nesse ponto com relação a uma massa total deve seguir se efetuando com relação às partes em que ela se divida, cada uma das quais, pela mesma razão, deve perder sua homogeneidade absoluta ou relativa. Vemos, pois, que as mudanças contínuas que caracterizam a evolução, quanto à passagem do homogêneo para o heterogêneo, ou do menos ao mais heterogêneo, são consequências necessárias da persistência da força. XX A multiplicação dos efeitos § 156. No último capítulo, demos a conhecer uma causa do aumento da heterogeneidade; neste capítulo, daremos a conhecer outra causa, que se é secundária cronologicamente, não o será em importância, pois mesmo quando falta à causa anteriormente estudada, esta outra basta para a passagem do homogêneo ao heterogêneo; na realidade, o que acontece é que se combinando ambas fazem essa passagem mais rápida e mais complicada. Para descobrir essa nova causa devemos apenas dar um passo mais em nosso estudo, já iniciado, do conflito entre força e matéria. Vimos que quando um todo uniforme está submetido a uma força constante, suas várias partes se modificam diversamente, por se encontrarem em diferentes condições no que respeita a essa força. Mas, ao nos ocuparmos das diversas modificações que experimentam as diversas partes da massa, não estudamos as diferentes e correlatas variações que experimentam, por sua vez, as partes em que se divide, necessariamente, a força total, e que não devem ser menos numerosas e importantes que as outras. Sendo, como sabemos, iguais e contrárias ação e reação, é claro que a força incidente, ao diversificar as partes da massa sobre a qual atua, deve também diversificar-se de maneira correlata: em vez de ser, como antes, uma força constante ou uniforme, deve fazer-se multiforme, decompondo-se em um sistema de forças desiguais. Alguns exemplos demonstrarão essa verdade. No caso antes citado, do corpo feito em pedaços por um choque violento, além da mudança da massa homogênea em um grupo heterogêneo de partes dispersas, há, simultaneamente, uma mudança da força única do choque em várias forças, distintas por sua vez em sua intensidade e direção. O mesmo acontece com as forças que chamamos calor e luz: depois de dispersadas em todos os sentidos por um corpo radiante, são novamente dispersadas pelos corpos sobre os quais caem. Por exemplo: dos inumeráveis raios de Sol que divergem em todos os sentidos, uma pequena porção cai sobre a Lua, sendo em parte absorvida e em parte refletida em todas as direções; dessa parte refletida, uma pequena parte cai sobre a Terra, que por sua vez volta a difundir no meio ambiente a parte não absorvida. Mas não só a reação da matéria transforma toda força em outras de direções distintas, como também de distintas espécies. Quando dois corpos se chocam, o que chamamos efeito do choque é a passagem em que um dos corpos, ou ambos, mudam de posição ou movimento; mas isso não é tudo; além desse efeito mecânico visível, produz-se um som, ou vibrações sonoras, em um dos corpos, ou em ambos, e no meio ambiente; e às vezes, dizemos que essas vibrações são o efeito do choque; o meio ambiente não só é posto em vibração, como também nele se produzem correntes, devido ao movimento dos corpos chocados, antes e talvez depois do choque; por outro lado, se não há fratura, há pelo menos deslocamento das moléculas desses corpos, no lugar do choque, deslocamento que chega, às vezes, até a produzir uma compressão permanente, visível e acompanhada de calor; por último, também é algumas vezes efeito do choque uma centelha de luz, resultado da incandescência de alguma partícula arrancada na colisão e talvez acompanhada de uma ação química; pode suceder, pois, e sucede frequentemente que a força mecânica de um choque se divida e transforme em cinco ou mais espécies de forças distintas. Tomemos uma vela acesa, como segundo exemplo; nela encontramos, de saída, um fenômeno químico, junto a uma mudança de temperatura; uma vez começada a combinação por efeito do calor exterior, verifica-se uma produção e um desprendimento contínuos de ácido carbônico, de água etc.; ou seja, um resultado já mais complexo que sua causa originária, o calor; mas a par desses fenômenos químicos, há também nova produção de calor e luz; e aquecendo-se a coluna de ar e dos gases recém-formados determinam-se correntes ou movimentos no ar circunvizinho. E não para aí a decomposição de uma força em outras, pois cada uma dessas novas forças gera por sua vez muitas outras; assim, o ácido carbônico, pouco a pouco, vai se combinar com alguma base, ou vai se decompor sob ação da luz solar, deixando seu carbono na folha de alguma planta; a água modificará o estado higrométrico do meio ambiente, ou, se tocar um corpo frio, condensar-se-á, mudando a temperatura e talvez mesmo o estado químico da superfície que recobrir. Além disso, o calor da combustão funde a matéria da vela e dilata todos os corpos aonde chega ao redor; a luz, ao incidir sobre distintas substâncias, as modifica diferentemente, e daí as cores diversas. Enfim, universalmente o efeito de uma força é mais complicado que a causa; seja ou não homogênea a massa sobre a qual atua, toda força incidente se transforma ou decompõe em outras muitas, diferentes por sua intensidade, direção, espécie, ou por todas essas relações simultaneamente; cada uma dessas forças sofre depois análoga decomposição e assim sucessivamente. Mostremos agora quanto adianta a evolução com essa multiplicação de efeitos. Toda força incidente, decomposta pelas reações dos corpos sobre os quais atua em várias forças diferentes, ou seja, uma força que de uniforme se faz multiforme e se torna, também, causa de um aumento secundário de multiformidade no corpo que a decompõe. Vimos no capítulo anterior que as várias partes de um todo são diversamente modificadas por uma mesma força incidente; e acabamos de ver que, em consequência das reações das partes diversamente modificadas, a força inicial deve também dividir-se e subdividir-se em frações, diversas por um ou vários conceitos. Está, contudo, ainda por demonstrar: que cada parte da massa diversificada se converte em um centro, do qual cada parte da força, também dividida, é também difundida. Por fim, como forças iguais devem produzir resultados diversos, cada uma dessas forças parciais deve produzir na massa total novas diferenciações. E é evidente que esta causa secundária da passagem do homogêneo ao heterogêneo, se torna mais poderosa à medida que aumenta a heterogeneidade; pois quando as partes, que resultam da desagregação de um todo em evolução, tomaram já diversos estados, devem reagir distintamente sobre a força inicial, devendo dividi-la em grupos de forças muito variadas ou diferentes, convertendo-se cada uma dessas partes em centro de uma série de influências distintas, e agregando mudanças secundárias distintas às já operadas na massa total. Deve-se ter presente, além disso, que o número de partes dessemelhantes constantes de um todo e o grau de sua dessemelhança são importantes fatores da operação que estudamos; toda nova divisão específica é um novo centro de forças especificadas; se um todo uniforme feito multiforme sob a ação de uma força incidente converte por sua vez em multiforme essa força; se um todo uniforme composto de duas partes desiguais divide uma força incidente em dois grupos de forças multiformes, está claro que cada nova e distinta parte desse todo deve ser uma origem nova de complicações para as forças distribuídas na massa, ou seja, uma nova fonte de heterogeneidade. A multiplicação dos efeitos deve aumentar, pois, em progressão geométrica; cada grau da evolução deve ser o prelúdio de outro grau mais avançado. § 157. Atuando a força de agregação primitiva que iniciou a formação das nebulosas sobre massas irregulares de matéria rarefeita, difundida em um meio resistente, não pôde imprimir a essas massas movimentos retilíneos para seu centro comum de gravidade, mas cada massa devendo ter seguido uma trajetória curvilínea dirigida para um ou outro lado do tal centro, e sendo distintas as condições das várias massas, a gravitação lhes terá imprimido movimentos diferentes em direção, velocidade, curvatura da trajetória etc., ou seja, uma força primitivamente uniforme, terá se diversificado em muitas diferentes, sob um ou vários aspectos. A operação assim iniciada deve ter prosseguido até produzir uma única massa de matéria nebulosa, girando em torno de um eixo, com condensação e rotação simultâneas, mostrando como dois efeitos da força primitiva primeiro apenas divergentes, adquirem definitivamente diferenças muito marcadas. À medida que a condensação e a velocidade de rotação aumentavam, aumentava também, pela ação combinada das duas forças (agregativa e centrífuga), o achatamento do esferoide nebuloso, num terceiro efeito. Ao mesmo tempo, a condensação em distintos graus nas diversas partes da massa deve ter produzido quantidades enormes de calor, mas também distintas, pois assim o eram as forças produtoras, e nessa produção se revela um quarto efeito. Atuando as forças de agregação e de rotação sobre essas massas gasosas, desigualmente aquecidas, produziram correntes gerais e locais, e tendo o calor alcançado certa elevação, também terá se produzido luz. Assim, então, mesmo prescindindo das ações químicas, elétricas etc., vê-se bem claramente que se a matéria existiu em princípio no estado difuso, a força primitiva que começou sua condensação deve ter se dividido e subdividido ao mesmo tempo em que na massa, gerando-se pela série mútua de ações e reações de uma sobre a outra, dava-se uma multiplicação crescente de efeitos, que aumentava cada vez mais a heterogeneidade então existente. A parte de nossa tese relativa ao Sistema Solar é facilmente demonstrável, sem necessidade de hipóteses; basta estudar com atenção os atributos astronômicos da Terra ou de outro planeta qualquer. Em primeiro lugar o movimento de rotação produz direta ou indiretamente o achatamento polar, a alternância de dias e noites, correntes marítimas e atmosféricas. Em segundo lugar, a inclinação do eixo de rotação sobre a Eclíptica origina as diferentes estações. Em terceiro e último lugar, a atração dos demais corpos do sistema sobre este esferoide achatado e girando em torno de um eixo inclinado determina as marés e os movimentos de precessão e de nutação. O modo mais simples de descobrir a multiplicação dos efeitos nos fenômenos do Sistema Solar seria descrever a influência de cada elemento deste sistema sobre todos os demais. Cada planeta origina sobre os planetas próximos perturbações apreciáveis, que complicam as geradas por outras causas, e produzem também sobre os planetas afastados perturbações menos visíveis; reside aí uma primeira série de efeitos. Mas as perturbações de cada planeta são, por sua vez, nova causa de outras; por exemplo: tendo o planeta A desviado o planeta B do lugar que ocuparia se A não existisse, as perturbações motivadas por B seriam distintas daquelas das que seriam sem a existência de A, e o mesmo pode-se dizer de cada um dos astros do sistema em relação aos demais; residem aí uns efeitos muito menos intensos, embora mais numerosos. Como essas perturbações indiretas ou de segunda ordem modificam de novo os movimentos dos planetas, produzem uma série terciária de perturbações, e assim sucessivamente: a força exercida por cada planeta produz um efeito distinto sobre cada um dos outros; esse efeito se reflete a partir de cada um deles, com centro sobre todos os demais, mas muito debilitado, produzindo efeitos muito menores, e assim, como ondas que se propagam e se refletem em todas as direções, mas enfraquecendo-se, como é natural. § 158. Se a Terra se formou pela concentração de uma matéria difusa, seria necessário que estivesse antes fundida e incandescente, estado que se deve considerar hoje como indutivamente demonstrado, aceita ou rechaçada a hipótese nebular para sua explicação. Falamos de muitos resultados do resfriamento gradual da Terra, tais como a formação da crosta, a solidificação dos elementos sublimados, a precipitação da água etc., efeitos todos de uma só causa: a diminuição do calor. Estudemos, contudo, os múltiplos fenômenos que a continuidade dessa causa por si só provoca. A Terra, como todo corpo ao resfriar-se sem dúvida experimentou uma contração; como consequência, a primitiva crosta sólida, muito grande para um núcleo que seguia se contraindo, e ao qual se achava ligada, e sem suficiente espessura para se autossustentar, e não podendo sem rompimento ou enrugamento manter-se aderida ao núcleo, tal como ocorre com os frutos de casca delgada, no diminuir seu volume pela evaporação de seus líquidos, essa crosta acabou então por enrugar-se ao continuar o resfriamento, vindo daí as desigualdades da superfície terrestre, cada vez maiores à medida em que se tornara mais espessa essa crosta pela perda de calor. Sem falar de outras causas modificadoras, vemos quão heterogênea se fez a superfície de nosso planeta apenas por uma causa: o resfriamento. Os telescópios nos provam que análoga heterogeneidade se produziu na Lua, em que não há água nem atmosfera. Mostremos ainda outra causa da heterogeneidade, simultânea e semelhante à que estudamos. Quando a crosta sólida terrestre era ainda delgada, os enrugamentos produzidos pela contração deviam não apenas ser pequenos, como também deixar entre eles reduzidos espaços baixos, aplicados suavemente ao esferoide líquido interior, e a água, que primeiro se condensaria nas regiões polares, distribuir-se-ia com certa regularidade. Mas à medida que a crosta se espessava, e adquiria mais resistência, as rugas faziam-se maiores e mais separadas, as superfícies intermediárias seguiam o núcleo com menor exatidão, e formavam-se as grandes extensões hoje existentes, de terra e água. Analogamente, quando se envolve uma laranja com papel de seda úmido, se vê quão pequenos e quão espessos são os enrugamentos, e mesmo os espaços que os separam. Se o envolvimento se faz com papel mais grosso, notar-se-á maior altura e separação. Essa dupla mudança, na altura e separação das cordilheiras terrestres e suas bacias respectivas, implica em outra heterogeneidade, a das linhas costeiras. Uma superfície elevada, próxima ao oceano, normalmente deveria ter linha de costa regular; mas uma superfície diversificada por planícies e cordilheiras, deve apresentar fora da água contornos muito irregulares. Veja-se quão variada e indefinida multiplicação de efeitos geológicos e geográficos produziu direta e indiretamente, através dos séculos, uma só causa: o resfriamento sucessivo da Terra. Se passamos dos agentes que os geólogos chamam de ígneos aos aquáticos e atmosféricos, veremos também em progressão crescente a multiplicação dos efeitos; o ar e a água, desgastando as superfícies que atritam, não cessaram de modificá-las desde o princípio, e de produzir, em todos os lugares, muitas e distintas mudanças. Pois bem: como sabemos (§69) a origem desses movimentos dos fluidos exteriores terrenos é o calor solar. A transformação do calor solar em várias modalidades de força, segundo a matéria em que incide, é, pois, o primeiro grau da complicação que vamos estudar. Os raios solares caem com grande variedade de inclinações sobre o esferoide terrestre, que, em virtude de seu duplo movimento, apresenta e oculta o Sol, alternativamente, às diversas partes de sua superfície; isto, apenas, bastaria já para uma grande variedade de efeitos, mesmo se fosse uniforme a superfície receptora. Mas sendo esta, então tão acidentada, com mares, neves, planícies, montanhas, tudo envolvido por uma atmosfera em que flutuam nuvens, muitas vezes extensas, muito mais variados serão então os efeitos. Serão geradas correntes marinhas e atmosféricas, com diversidade de direções, velocidades e temperaturas; evaporar-se-ão enormes quantidades de água que dissipadas, primeiro na atmosfera, vão se precipitar em forma de orvalho, chuva, neve etc., dando por sua vez origem a córregos, riachos, rios e lagos; é nos lugares frios formando grande quantidade de gelo, fragmentando talvez alguma rocha gelada, cujas frações o degelo encarregar-se-á de arrastar. Em um segundo grau de complicações, cada um dos diversos movimentos produzidos direta ou indiretamente pelo Sol, produz, por sua vez, uma multidão de resultados variáveis segundo as condições; a oxidação, a seca, a umidade, os ventos, as chuvas, as neves, os gelos, os rios, as ondas e tantas outras causas operam desintegrações, cujas intensidades e espécies estão determinadas pelas condições e circunstâncias locais. Assim, quando esses agentes operam sobre massas de granito, em algumas partes não produzem efeito apreciável; em outras produzem esfoliações e rupturas, de que resultam seixos e penedos; em outras ainda, depois de haver decomposto o feldspato em caulim, o arrastam, com o quartzo e a mica que o acompanhavam, e os depositam em camadas no fundo dos rios e dos mares. Quando a superfície, submetida a essas causas, se compõe de partes ígneas e partes sedimentares, as mudanças verificadas são ainda heterogêneas; pois sendo muito distintos os graus de destruição de que são suscetíveis ambas as espécies de formações, a superfície em questão se desintegrará mais irregularmente. As várias correntes de água, ao banhar as superfícies de distinta composição, arrastam diversas combinações, logo depositadas em novas camadas; exemplo simples, que comprova uma vez mais como a heterogeneidade dos efeitos cresce em progressão geométrica com a heterogeneidade dos objetos que sofrem a ação das massas. Um continente, com toda sua complexa estrutura, com tantas placas de tão variadas composições, irregularmente distribuídas, elevadas a distintos níveis, inclinadas sob todos os ângulos, deve, submetido aos mesmos agentes de destruição, originar efeitos imensamente multiformes ou heterogêneos; cada distrito se modificará de uma maneira especial; cada rio arrastará distinta espécie de detritos; cada depósito estará diferentemente situado e distribuído pela variedade de correntes e sinuosidade dos rios etc. Consideremos, para terminar, o estudo da lei no reino inorgânico terrestre, o que sucederia em consequência de uma grande revolução geológica, como por exemplo, a submersão da América Central. Os resultados imediatos do deslocamento seriam já por si bastante complicados; inumeráveis placas terrestres se romperiam; imensos terremotos acompanhados talvez de enormes erupções vulcânicas propagar-se-iam a milhares de milhas; Atlântico e Pacífico se precipitariam a preencher o vazio deixado pela submersão; gigantesco choque de dois oceanos produziria profundas e numerosas mudanças em suas antigas e novas costas; furiosas e enormes ventanias varreriam a superfície da Terra, complicadas com as correntes gasosas dos vulcões, somadas a deslumbrantes e atroadoras descargas elétricas. A todos esses efeitos temporais seguir-se-iam outros, muito permanentes: mudariam suas direções e intensidades as correntes de ambos os oceanos, e em consequência, a distribuição de calor de que são agentes principais; as linhas isotermas modificar-se-iam; mudariam seu curso as marés; os ventos sofreriam, mais ou menos, variações em seus períodos, direções, velocidades e temperaturas; variaria a quantidade média de chuva em cada país; enfim, as condições físicas de quase toda a superfície terrestre seriam outras. Cada uma dessas mudanças compreende outras muitas secundárias; veja-se então a imensa heterogeneidade de efeitos operados por uma força única, quando essa força age sobre uma vasta e complicada superfície terrestre, e não se vacilará em supor que, desde o início as modificações de nosso planeta seguiram, em sua complicação e multiplicidade, uma progressão crescente. § 159. Vamos agora seguir o mesmo princípio universal na evolução orgânica. Já vimos nela a passagem do homogêneo ao heterogêneo, mas não é tão fácil fazer ver a produção de muitos efeitos por uma só causa; pois as mudanças orgânicas são, desde o desenvolvimento do embrião até a morte, tão lentas e graduais, e as forças que as produzem tão complicadas e ocultas, que se torna muito difícil descobrir a multiplicação de efeitos, tão patente no reino ou império inorgânico. Todavia, ainda que não diretamente, poderemos comprovar, ao menos indiretamente o princípio em questão. Vejamos quantos efeitos produz um só estímulo em uma organização bem desenvolvida, como um homem adulto, por exemplo. Um ruído alarmante, a vista de um objeto assustador, além das impressões imediatas produzidas sobre os sentidos e os nervos, podem produzir ainda um grito, um sobressalto, uma mudança fisionômica, tremor, suores, palpitações, ruborizações, síncope e até início de uma longa doença, com seus vários e complicados sintomas. Uma pequena quantidade de vírus de varíola inoculado produzirá num caso grave no primeiro período calafrios, febre, língua saburrosa, inapetência, sede, dor epigástrica, dor de cabeça, tronco e membros, vômitos, debilidade muscular, convulsões, delírio etc.; num segundo tempo, erupção cutânea, prurido, zumbido nos ouvidos, dor e inchaço na garganta, salivação, tosse, rouquidão, dispneia etc.; e num terceiro, inflamações edematosas, pneumonia, pleurisia, diarreia, inflamação cerebral, oftalmia, erisipela etc.; cada um desses fenômenos é, por sua vez, mais ou menos complexo. Analogamente se vê que um medicamento, um alimento especial, uma mudança de clima produzem, às vezes, múltiplos e heterogêneos resultados. Então, basta considerar que os numerosos resultados produzidos por uma só força sobre um organismo adulto devem ter seus análogos ou correlativos em um organismo embrionário, para compreender como nesses pequenos seres, a produção de numerosos efeitos por uma única causa, dá origem a sua crescente heterogeneidade, O calor exterior e outros agentes que determinam as primeiras complicações do embrião provocam, reagindo sobre elas, novas complicações, e assim sucessivamente, cada órgão, enquanto se desenvolve, aumenta por suas ações e reações sobre os demais, a heterogeneidade do conjunto. As primeiras batidas do coração de um feto devem ajudar simultaneamente o desenvolvimento de todos os órgãos; tomando cada tecido, do sangue, os elementos necessários para sua nutrição, modifica a composição do mesmo, e, portanto, a nutrição dos demais tecidos; esta implica, além da assimilação, em certas perdas, ou seja, um desgaste de matéria que arrastada, por sua vez, pelo sangue, deve influir no restante do organismo e formar talvez, como alguns defendem, os órgãos excretores. As conexões nervosas entre as vísceras devem multiplicar ainda mais suas mútuas influências; o mesmo acontece com toda modificação de estrutura, a toda parte nova e a toda mudança nas relações entre as partes, e uma prova bem clara disso reside no fato de poder um mesmo embrião desenvolver-se de formas distintas, segundo as circunstâncias. Assim, no princípio de seu desenvolvimento, todo embrião está desprovido de sexo, resultando em macho ou fêmea segundo as forças que concorrem para esse desenvolvimento; é sabido que as larvas das abelhas rainha e operárias são idênticas, resultando numa ou nas outras, dependendo da alimentação e condições ambientes. Alguns entozoários oferecem exemplos ainda mais surpreendentes: um ovo de tênia, se chega ao intestino de um animal de determinada espécie, se desenvolve sob a forma do verme de sua procedência; contudo, em outra parte do organismo da mesma espécie ou em outra espécie de animal, resulta num verme utricular, os denominados cisticercos, equinococos etc., tão diferentes da tênia em forma e estrutura, que somente após muito minuciosas investigações chegou-se a concluir terem a mesma origem. Esses casos mostram que toda nova complicação de um embrião em desenvolvimento resulta da ação de forças incidentes sobre a complicação anterior. A hipótese da epigênese, hoje admitida, nos obriga a aceitar também que a evolução orgânica se verifica como acabamos de apontar. De fato, como está demonstrado que nenhum germe animal ou vegetal porta o menor rudimento, a menor pista, o mais ligeiro indício do organismo que dele sairá, posto que o microscópio nos revela que a primeira operação que tem lugar em um germe fecundado é uma divisão espontânea que produz uma formação de células sem nenhum caráter específico, não podemos deixar de concluir que a organização parcial existente em cada momento em um embrião que se desenvolve, se transforma por efeito das forças que atuam sobre ele, fazendo com que passe a outra fase ou outro grau mais avançado de organização, e desse a outro, e assim sucessivamente, até chegar à forma e à estrutura definitivas. Assim, pois, ainda que a pequenez das forças e a lentidão das metamorfoses nos impeçam de seguir de um modo direto a gênese dos diversos movimentos produzidos por cada força nas fases sucessivas da evolução embrionária, temos provas indiretas de que essa multiplicação de efeitos se verifica e é uma das causas produtoras da heterogeneidade orgânica. Apontamos a multidão de efeitos que pode produzir uma única força em um organismo adulto; deduzimos de certos fatos muito notáveis que um organismo embrionário pode ser também teatro de uma multiplicação de efeitos; mostramos que a aptidão de certos germes para desenvolver-se com variadas formas implica em que as transformações sucessivas resultam de novas mudanças provocadas pelas precedentes, e por último, observamos que, sendo todos os germes primitivamente homogêneos, não é possível explicar de outro modo seu desenvolvimento. Sem dúvida, não explicamos por que o germe, ao experimentar certas influências, sofre as mudanças especiais que iniciam a série de suas transformações; tudo o que podemos afirmar é que a evolução que produz um organismo determinado a partir de um germe, em virtude de propriedades misteriosas deste, depende também em parte da multiplicação de efeitos que reconhecemos como causa adicional da evolução em geral até onde a acompanhamos. Passemos então do desenvolvimento de uma planta ou animal ao da fauna e flora terrestre, que se prestam a uma demonstração mais simples e clara. Sem dúvida, como já nos inteiramos, a paleontologia não nos autoriza a afirmar em absoluto que, desde os tempos primitivos da vida orgânica até o presente, os grupos de seres organizados têm sido, em cada época, mais heterogêneos do que os da época anterior; mas já veremos que se pode concluir como muito provável sua contínua tendência à heterogeneidade, pela multiplicação dos efeitos devidos a cada causa terrestre e como consequência, das faunas e floras parciais e totais. Um exemplo esclarecerá o que afirmamos: suponhamos que por uma série de elevações efetuadas a grandes intervalos, a parte oriental do arquipélago indonésio se elevasse e formasse um continente sulcado por uma cordilheira ao longo do eixo de elevação; a primeira elevação da série modificaria ligeiramente as condições de existência dos animais e plantas de Bornéu, Sumatra, Nova Guiné e outras ilhas, pois modificar-se-iam a temperatura, a umidade e suas variações periódicas gerais, multiplicando-se também as diferenças locais. Essas modificações produziriam, como natural consequência, as da fauna e flora da região, ainda que fosse ligeiramente, e em relação com as distâncias das espécies e dos indivíduos de cada espécie, ao eixo de elevação. As plantas que só podem viver na beira dos oceanos, deixariam provavelmente de existir, ao menos em alguns lugares; outras que vivem apenas nos lugares pantanosos, experimentariam, aquelas que sobrevivessem, mudanças visíveis de aspecto; e mudanças ainda mais notáveis experimentariam as plantas marinhas das terras emergentes. Os animais que se alimentam dessas plantas seriam duplamente modificados, pela mudança de alimento e pela mudança de clima, sobretudo os que se vissem obrigados a se alimentar de outras plantas, diante do desaparecimento daquelas que antes constituíam seu sustento. Durante a vida das numerosas gerações sucessivas que passaram entre o primeiro e a segunda elevação, as alterações, apreciáveis ou não, que havia experimentado cada espécie, organizar-se-iam e estabelecer-se-ia uma adaptação mais ou menos completa às novas condições de existência. A elevação seguinte produziria novas mudanças orgânicas que distanciariam ainda mais as novas formas e estruturas das primitivas e assim sucessivamente. Mas deve-se notar bem que essa transformação não ficaria reduzida à mudança de um milhar de espécies primitivas em um milhar de espécies modificadas, mas que se formariam muitos milhares de espécies, variedades e raças modificadas. De fato, distribuindo-se cada espécie e tendendo naturalmente a ocupar as novas superfícies emergentes, seus vários indivíduos passariam por diversas séries de mudanças: os que se aproximassem do Equador seriam modificados de maneira distinta daqueles que dele se afastassem; os que ocupassem as novas costas ou zonas ribeirinhas experimentariam modificações diferentes daqueles que habitassem as montanhas; desse modo, cada espécie primitiva seria um tronco de onde divergiriam outras muitas, mais ou menos diferentes daquela e entre si mesmas. Se algumas espécies desaparecessem, outras passariam ao período geológico seguinte, e a sua maior dispersão viria a favorecer sua diversificação. E não apenas por mudança de alimentação e clima verificar-se-iam mudanças orgânicas; isso ocorreria também pelos novos costumes; a fauna de cada ilha agora estaria em contato com as faunas das outras ilhas, provavelmente distintas entre si; os fitófagos teriam que desenvolver novos mecanismos de fuga e defesa, enquanto os zoófagos teriam que alterar suas táticas de ataque e captura; sabemos que, quando o exigem as circunstâncias, não deixam de surgir essas mudanças entre os animais; e que, quando chegam a dominar novos costumes, mudam até certo ponto a organização. Vamos a um novo corolário. Não apenas deve nascer, das influências externas uma tendência à diversificação de cada grupo de organismos em vários grupos, mas também, em circunstâncias favoráveis, uma tendência à aparição de organismos mais complicados. Em geral, essas variedades divergentes, produzidas por novas condições e novos costumes, apresentarão mudanças indeterminadas em grau e espécie, e muitas não serão progressivas; ou seja, não serão muitos dos tipos modificados mais heterogêneos que o grupo original. Mas deve sem dúvida acontecer que tal ou qual divisão de uma dada espécie, tendo que viver em condições ambientes mais complexas, e que, por conseguinte exigirão maior complexidade de atos vitais, venha a sofrer gradualmente as mudanças orgânicas correlativas; ou seja, vá se fazer, pouco a pouco, mais heterogênea. Em consequência, vão se fazer cada vez mais heterogêneas tanto a fauna quanto a flora da Terra. Sem buscar detalhes aqui improcedentes, é indubitável que as mudanças geológicas tenderam sempre a tornar mais complicadas as formas de vida, quando consideradas em conjunto ou quando em separado; a multiplicação dos efeitos, que foi, em grande parte, a causa que fez passar a crosta terrestre de um estado simples a um complexo, produziu, ao mesmo tempo e secundariamente, análoga transformação nos organismos terrestres. (O presente parágrafo foi originalmente publicado na Westminster Review em 1857; se tivesse sido escrito após a publicação do livro A origem das espécies, do senhor Darwin, teríamos dado a ele outra redação, teríamos mencionado o processo da "seleção natural", que muito facilita a diferenciação de que falamos. Preferimos, contudo, manter sua forma original, seja por acreditarmos que essas sucessivas mudanças de condições devem suscitar nas espécies variedades divergentes, fora da influência da seleção natural, ainda que menos numerosas e rápidas, seja por julgarmos que na falta de toda mudança de condições externas a seleção natural produziria relativamente pouco efeito. Devemos acrescentar que estas proposições, se não estão enunciadas explicitamente na obra citada, são admitidas pelo senhor Darwin, se é que não as considera até implicitamente incluídas na dita obra) Esta dedução, tirada dos princípios da geologia e das leis gerais da vida, aumenta em valor desde que se vê comprovada por induções derivadas da experiência. Assim, a divergência de raças oriundas de uma única que, segundo as conclusões anteriores, deve ter-se verificado sem interrupção durante as diversas épocas geológicas, produziu-se efetivamente desde os tempos pré-históricos, no homem e nos animais domésticos. Assim também, a multiplicação de efeitos que, segundo nossas deduções, deve ter sido a causa principal das transformações orgânicas nos antigos períodos geológicos, tem também sido e ainda o é, visivelmente, nos tempos modernos. Causas únicas, tais como a fome, o aumento excessivo de população, a guerra etc. motivaram periodicamente novas dispersões dos homens e dos seres seus dependentes; cada uma dessas dispersões foi o ponto de partida de novas modificações e de novas variedades típicas. Tenham ou não origem num mesmo tronco todas as raças humanas, a filologia faz considerar como muito provável que grupos inteiros de variedades hoje muito distintas não formavam em outros tempos mais que uma raça, cuja dispersão em diferentes climas e com diversas condições de existência originou todas essas variedades. O mesmo se observa nos animais domésticos, pois se em alguns casos, o dos cães, por exemplo, a comunidade de origem pode ser muito discutida, em outros, como o do gado lanar, não se pode negar que as diferenças locais de clima, de alimentação e de cuidados transformaram uma única raça em várias outras, tão distintas que produzem híbridos instáveis. E em meio a essa complicação, de efeitos de uma causa única, se observa o que deduzimos a priori, ou seja: não apenas aumento da heterogeneidade geral como também da heterogeneidade especial. Na espécie humana, por exemplo, se algumas raças sofreram mudanças que não constituem em progresso, outras sem dúvida se fizeram mais heterogêneas; os europeus civilizados diferem mais do tipo geral dos vertebrados do que os povos selvagens. § 160. Passemos aos fenômenos psíquicos. Uma impressão sensorial não se limita a produzir um único estado de consciência, mas vários, unidos por laços de coexistência ou sucessão, e até podemos afirmar que o número de ideias geradas ou despertadas por uma mesma impressão está em razão direta do grau de inteligência ou de cultivo intelectual do ser impressionado, e da extensão da superfície impressionada. Se algum pássaro desconhecido, migrado do norte remoto por uma vicissitude atmosférica qualquer chegasse a nosso país, não provocaria nenhuma reflexão no gado em meio ao qual suponhamos tenha pousado: as reses veriam nele apenas um ser parecido aos que comumente voavam ao seu redor, e essa percepção seria a única a interromper nelas a corrente mental rudimentar que deve acompanhar seus atos de pastagem e ruminação. Se a pessoa que estivesse apascentando esse gado capturasse o pássaro, já o faria com alguma curiosidade; veria que é diferente daqueles que se acostumou a encontrar e perguntaria: "De onde veio? Por que chegou até aqui?". Quem o dissecasse para sua conservação, recordaria as espécies assemelhadas, observaria sua plumagem e estrutura; talvez recordasse outros pássaros vindos do estrangeiro e seus compradores etc. Se algum naturalista da antiga escola, acostumado a exames apenas das características exteriores o estudasse, examinaria detidamente as penas, anotando todos os detalhes que as distinguiam, identificaria ordem, família e gênero a que pertencesse o dito pássaro e possivelmente comunicaria a sociedades naturalistas e revistas científicas a descrição da nova espécie. Se examinado esse pássaro por um biólogo especializado, talvez ele descobrisse em sua anatomia alguma particularidade notável, e daí novas relações entre a divisão zoológica a que pertencesse e as demais, novas homologias e diferenças orgânicas, e talvez novas ideias sobre a origem das formas orgânicas. Passemos das ideias às emoções. Nas crianças, uma manifestação de contrariedade paterna produz apenas um vago temor, a impressão penosa de um mal que a ameaça sob forma de uma dor física ou privação de algum prazer. Num adolescente, as mesmas palavras de severidade determinarão outra classe de sentimentos: seja vergonha, arrependimento e pesar por ter ofendido seu pai, seja um sentimento de injustiça, logo de ira, muitas vezes não reprimida. Em uma esposa também pode produzir sentimentos os mais diversos uma repreensão marital: pena por tê-la merecido, ou ira e desprezo, se a repreensão é injusta, ou ainda simpatia pelo sofrimento conjugal que a repreensão significa, talvez dúvidas sobre o cabimento da mesma. Nos adultos se observam as mesmas diferenças no número e intensidade dos efeitos que se produzem simultaneamente ou em rápida sucessão por uma mesma causa; assim, nos de natureza inferior se manifesta prontamente a impulsividade e o choque de um pequeno número de sentimentos sem mútua compensação, enquanto nos de natureza superior se produz uma série de afetos secundários que modifica os primitivamente despertados pela mesma causa. Talvez se contraponha que esses exemplos revelam mudanças funcionais do sistema nervoso, mas não mudanças de estruturas e que estes não são consequência necessária daqueles. E é verdade; mas se admitirmos que as mudanças de estrutura são o resultado das mudanças funcionais lentamente acumuladas, vamos deduzir que a multiplicação dos efeitos, que cresce enquanto se processa o desenvolvimento orgânico, é uma causa auxiliar da evolução do sistema nervoso, como o é de toda evolução. § 161. Se é possível ligar o progresso individual humano, tanto do corpo quanto do espírito, à produção de muitos efeitos por uma única causa, com maior razão poderemos explicar por essa mesma lei o progresso social em seu conjunto e em cada uma de suas esferas. Examinemos o desenvolvimento de uma sociedade industrial. Quando alguns indivíduos de uma tribo revelam uma aptidão especial para fabricar certos utensílios, armas, por exemplo, que antes todos fabricavam, esses indivíduos tendem a diferenciar-se dos demais e tornar-se fabricantes de armas; seus companheiros, na maioria guerreiros ou caçadores querem possuir, como é natural, as melhores armas possíveis, e as encomendam a esses artesãos; estes, por sua vez, que reúnem quase sempre habilidade especial e gosto por esta classe de trabalho, executam essas encomendas em troca de recompensas. Uma vez começada a especialização de funções, ela tende a crescer e se fazer mais marcada. No fabricante de armas, a prática aumenta sua habilidade e faz seus produtos superiores; em seus clientes cessa a prática, e, portanto, a habilidade para essa classe de tarefa, começando talvez a interessar-se por outra. Esse movimento social que tende à divisão do trabalho se acentua cada vez mais na direção em que começou e a heterogeneidade assim iniciada far-se-á permanente para essa geração, ou por mais tempo. Além dessa divisão primária, que separa a massa social em duas partes, uma que monopoliza certa função ou indústria, e outra que esqueceu ou abdicou de sua prática, produz, secundariamente, muitas outras divisões. Esse progresso iniciado implica, por sua vez, no começo do comércio, uma vez que é preciso remunerar o fabricante de armas com o que ele vier a pedir, e ele não quererá, evidentemente sempre uma mesma classe de artigos, mas várias delas, pois não necessita somente esteiras, ou peles ou utensílios de pesca, mas todos esses artigos, e em cada ocasião quererá o que mais falta lhe faça. O que resultará disso? Se, como é certo, há também habilidades para confecção de cada um desses artigos, nos diversos indivíduos da tribo, o fabricante de armas irá exigir de cada um o que de melhor fabrique, em troca das armas que fornecer. Por sua vez, cada um desses fabricantes de esteiras, redes etc., tendo feito as suas e as que usará nas trocas, tornar-se-á mais hábil nesse mister; assim vão ficando cada vez mais marcadas as várias aptidões dos distintos indivíduos. A causa original única produziu não apenas um duplo efeito primário, mas ainda uma série de efeitos secundários. Tais diferenciações, cujas causas e efeitos se manifestam até em grupos de alunos, não podem produzir uma distribuição duradoura das funções industriais numa tribo nômade; mas em povo sedentário, que se multiplica sem variar de localidade, essas divisões se fazem permanentes e crescem a cada geração. De fato, o aumento de população implica em um aumento correlativo na produção industrial; este aumenta, por sua vez, na atividade funcional de cada indivíduo e de cada classe de produtores, o que faz mais marcada a especialização, se esta estava já estabeleci da, e a estabelece, se estava apenas iniciada. Aumentando, ao mesmo tempo, a demanda de meios de subsistência, cada indivíduo se vê, e cada vez mais, obrigado a limitar-se àqueles produtos que faz melhor, e que, portanto, serão mais facilmente trocados ou vendidos, proporcionando maior ganho. Isto, por sua vez, favorece o aumento populacional, que reage da mesma maneira etc. Desses mesmos estímulos nascem novas divisões e subdivisões profissionais: operários que querem competir na qualidade ou facilidade de fabricação de seus produtos do mesmo gênero inventam materiais e procedimentos melhores. A substituição, por exemplo, da pedra pelo bronze na fabricação de armas e ferramentas deve ter produzido, para quem introduziu o invento, um grande acréscimo de pedidos, até o ponto em que necessitava de todo seu tempo para processar o bronze, tendo que passar a outros a fabricação dos utensílios. Mas sigamos os múltiplos exemplos dessa mudança. O bronze substitui, por todos os lugares, a pedra nos artigos em que era usada, passando, além disso, a compor outros novos artigos. Em consequência, resultam modificações nos objetos e nos modos de fabricá-los; mudam a construção de casas, a escultura, as vestimentas, os adornos etc., manufaturas se estabelecem, que antes eram impossíveis por falta de materiais e ferramentas, e enfim, todas essas mudanças reagem sobre as pessoas, multiplicando suas habilidades e suas aptidões, aumentando seu bem-estar, reformando seus costumes e gostos. Não precisamos acompanhar a crescente heterogeneidade social que resulta da produção de muitos efeitos por uma causa, através de todas as suas múltiplas e sucessivas complicações; deixemos de lado as fases intermediárias desse desenvolvimento social. E tomemos um exemplo da última fase, ou fase atual. Se quiséssemos seguir os efeitos da força do vapor nas suas aplicações à mineração, à navegação, à industrialização etc., ainda nos perderíamos em um mundo de detalhes; limitemo-nos a considerar a última aplicação dessa força, a locomotiva. Essa máquina foi a causa imediata de toda a rede de caminhos de ferro, tendo mudado, portanto, a face dos países civilizados, os costumes e os negócios de quase todos os seus habitantes. Examinemos primeiramente a complicada série de fenômenos que antecedem a construção de uma estrada de ferro: os estudos prévios, a concessão, a constituição da empresa, as desapropriações, os projetos e memórias descritivas, tudo isso supondo numerosas transações, desenvolvimento ou criação de novas profissões etc. Vejamos então as mudanças em que implica a construção da via: desmonte, terraplanagem, túneis, pontes, estações, travessias, trilhos, locomotivas, vagões, tudo isso incentivando várias transações comerciais: de madeira, pedra, carvão de pedra etc.; cria ocupações novas: condutores, foguistas, maquinistas, assentadores de trilhos etc.; e uma vez pronta e em exploração a nova via férrea, as variadíssimas e novas mudanças que todos conhecemos, no transporte de mercadorias e passageiros e suas consequências: a organização de muitos novos negócios se diversifica de mil maneiras, a facilidade de comunicação permite que as pessoas façam por si mesmas algo que antes deveriam encomendar a terceiros, estabelecem-se unidades comerciais onde antes não poderiam existir, mais mercadorias e em maior volume são transportadas, e a maiores distâncias, de maneira que seria impraticável sem a via férrea. A rapidez e a facilidade do transporte tendem a aumentar a competitividade das indústrias atendidas, contribuindo para a especialização de cada estabelecimento nos produtos que na região fiquem mais em conta. A distribuição econômica torna mais baratos, geralmente, os produtos, colocando-os ao alcance de quem, antes, a eles não tinha acesso, melhorando bem-estar e costumes. Ao mesmo tempo, as viagens se multiplicam: muitas pessoas, antes disso impossibilitadas, viajam às praias, visitam parentes e amigos distantes; possivelmente, essas viagens melhoram a saúde, elevam os sentimentos, desenvolvem as inteligências. Cartas e notícias chegam com mais rapidez ao destino, e até a literatura encontra sua porta nas bibliotecas de estrada de ferro; o comércio encontra nova via de anúncios, nos vagões e nos guias da estrada de ferro. Todas essas incontáveis mudanças, de que acabamos de apresentar uma resumida enumeração, são, sem dúvida, consequência da invenção da locomotiva. O organismo social tornou-se mais heterogêneo em consequência das novas profissões e da maior especialização das já existentes; preços de mercadoria e mão de obra sofreram variações; o comércio sofreu transformação na forma de suas transações; as pessoas sofreram mudanças em suas ações, pensamentos, emoções e etc. Faremos ainda uma observação: agora vemos também mais claramente um fato já apontado, ou seja: quanto mais heterogênea é a massa sobre a qual se exerce uma influência qualquer, mais numerosos e variados são os efeitos produzidos. Por exemplo: nas tribos primitivas onde era conhecida, a borracha, ou goma elástica, poucas mudanças produziu. Entre nós, seria preciso um enorme compêndio para descrever em toda a extensão as mudanças por ela provocadas. O telégrafo seria quase inútil para os habitantes de uma pequena ilha isolada do resto do mundo; mas todos sabemos dos benefícios que proporciona às nações civilizadas. Se o espaço permitisse, seguiríamos com essa síntese sobre as relações despertadas pelos produtos da vida social; veríamos como, nas ciências, o progresso de uma área faz avançar as demais; os progressos dos instrumentos de óptica, cada vez mais perfeitos, produziram em astronomia, anatomia, fisiologia, patologia etc., como a química influiu nos progressos da eletrotécnica, da biologia, da geologia etc., e reciprocamente, a eletrotécnica sobre a química, a termologia, a óptica, a fisiologia e a terapêutica. Observaríamos a verificação do mesmo princípio em literatura: seja nas numerosas e variadas publicações periódicas derivadas das primitivas gazetas, que influíram em outras formas de literatura, e mutuamente entre si; seja na influência que os livros de um famoso escritor exercem sobre os escritores contemporâneos e sucessivos etc. Em pintura, citemos a influência que uma nova escola exerce sobre as anteriores; os sinais que induzem a pensar que todas as formas dessa arte derivam da fotografia, os resultados complexos das novas doutrinas críticas, são outros tantos exemplos da multiplicação dos efeitos, cujas complicadas e numerosas mudanças não pretendemos seguir, para não mais cansar a paciência do leitor. § 162. Depois das razões apresentadas ao final do capítulo anterior, não há necessidade de insistir muito, no presente, para deduzir o princípio da multiplicação dos efeitos do princípio da persistência da força, como deste deduzimos o da instabilidade do homogêneo. Mas, por simetria ou semelhança dos dois capítulos, faremos aqui alguns raciocínios, ainda que breves. Chamamos coisas distintas ou diferentes às que nos produzem distintas sensações, e não podemos conhecê-las como distintas senão pelas diferentes ações e reações reveladas pela nossa consciência. Quando distinguimos os corpos em ásperos ou lisos, queremos dizer apenas que para forças musculares semelhantes empregadas no tocar esses corpos correspondem sensações, forças de reação dessemelhantes. Os objetos que chamamos vermelhos, azuis, amarelos etc., são objetos que decompõem a luz de maneiras diversas, ou seja, que conhecemos os contrastes das cores, como contrastes de mudanças produzidas por uma mesma força. Evidentemente, duas coisas quaisquer que não produzam efeitos desiguais no Eu não podem ser conhecidas como distintas; e o serão, se os produzem: seja porque impressionem nossos sentidos com forças desigualmente modificadas por causas externas, seja porque nossos órgãos oponham desigual resistência. Quando se diz que as diversas partes de um todo devem reagir diferentemente sob uma mesma força que atue sobre elas, afirma-se uma trivialidade, a qual vamos reduzir à sua expressão mais simples. Ao afirmar a dessemelhança de dois objetos, pela diferença dos efeitos ou impressões que produzem em nós, qual nossa autoridade, ou o que entendemos por dessemelhança, do ponto de vista objetivo? A autoridade de nossa afirmação tem por fundamento a persistência da força. Uma modificação de certo gênero e de certa intensidade se produziu em nós por um dos objetos, mas não pelo outro; essa modificação, a atribuímos a uma força que um dos objetos exerceu, enquanto o outro não; porque, a não ser assim, temos que afirmar que a modificação não teve causa eficiente, ou seja, negar a persistência da força. Isto deixa patente que o que consideramos diferença objetiva é a presença, em um dos objetos, de alguma força, ou série de forças, que o outro não possui; é alguma diferença de espécie, direção, intensidade das forças constituintes dos dois objetos. Mas se os objetos, ou parte de um objeto, que chamamos diferentes são unicamente aqueles cujas forças constitutivas diferem em um ou vários atributos, que deverá acontecer a uma força ou a forças iguais que atuem sobre esses objetos? Deverão ser modificadas diferentemente, pois encontram diferentes forças modificadoras antagônicas, ou de reação, e não produzindo estas distintas modificações na força única, ou nas forças iguais incidentes, resultaria que a força diferencial não produziria nenhum efeito, seria não persistente. Acreditamos inútil desenvolver ainda mais esse corolário, bastando o já dito para ver com toda evidência que uma força constante, ao atuar sobre um todo uniforme, deve sofrer uma dispersão, e que se atua sobre um todo heterogêneo, além da dispersão, deve experimentar uma diversificação qualitativa, tanto mais múltipla e marcada quanto mais distintas e numerosas sejam entre si as partes do todo; que as forças secundárias, que resultam dessas modificações das primitivas, devem sofrer novas transformações e operá-las também sobre as partes que as modificam, e assim, recíproca e sucessivamente, devem ir-se multiplicando os efeitos da força inicial, por uma série de ações e reações, consequências todas da persistência da força. Fica então provado, dedutiva e indutivamente: não apenas que a multiplicação de efeitos é uma das causas combinadas da evolução, como também que essa mesma multiplicação cresce em progressão geométrica enquanto aumenta a heterogeneidade do ser em evolução. XXI A segregação § 163. Não termina, nos capítulos anteriores, a descrição da evolução. É necessário examinar, sob outro prisma, os fenômenos que a constituem, para poder chegar a um conceito preciso, claro e completo de tão notável quanto completa operação. As leis até agora estabelecidas explicam bem a redistribuição que se processa na passagem do uniforme ao multiforme, mas não a do indefinido ao definido. O estudo das ações e reações, presentes em toda parte, nos revela que são consequências necessárias de um princípio primordial: o homogêneo deve passar a heterogêneo, e o menos a mais heterogêneo; mas não nos explica porque as várias partes de um todo tomam, ao ser modificadas distintamente, características cada vez mais diferentes e assinaladas. Não encontramos ainda a razão em virtude da qual se produz uma heterogeneidade vaga e caótica em vez da heterogeneidade harmônica a que leva a evolução. Devemos então buscar a causa imediata dessa integração local que acompanha a diversificação, ou seja, a segregação gradualmente completada de unidades semelhantes para formar um grupo, distinto por características bem marcadas dos grupos imediatos, compostos por sua vez de outras espécies de unidades. Essa causa, essa razão da heterogeneidade harmônica, vamos encontrá-la analisando alguns fatos, nos quais se pode seguir as pegadas da segregação. Quando, no fim de setembro, as árvores começam a perder suas cores estivais e esperamos ver, dia após dia, mudar o aspecto da paisagem, não raro somos desagradavelmente surpreendidos por uma brusca rajada de vento, que arrastando as folhas já bastante secas, deixa nos ramos algumas folhas verdes. Estas últimas, enrugadas e ressecadas pelos choques contínuos e repetidos de umas contra as outras, ou contra os ramos, dão ao bosque uma cor sombria, enquanto aquelas que caíram, agora em várias tonalidades de vermelho, amarelo, alaranjado etc., se amontoam nos buracos ou junto às paredes, onde estão mais resguardadas dos ventos. O que aconteceu, então? A força do vento, atuando sobre as duas classes de folhas, separou as moribundas das vivas e as amontoou. O mesmo vento, o de março, principalmente, mais forte e contínuo, amontoa também partículas terrestres de diversos tamanhos, de pó, de areia, de cascalho. Desde os tempos mais remotos se utilizou essa propriedade que tem as correntes de ar, naturais ou artificiais, de separar as partículas de diferentes densidades, para separar os grãos da palha. Em todos os rios os materiais misturados que são carreados se depositam separadamente; nos rápidos, o fundo apenas conserva os grandes e pesados pedregulhos; onde não é tão forte a corrente, se deposita a areia; por fim, onde a corrente é mansa e tranquila, se forma barro ou lama. Também se usa essa propriedade eletiva da água em movimento para recolher em separado partículas de vários tamanhos, como na fabricação do esmeril; depois de britada a pedra, lavam-se as partículas com uma corrente lenta, que cai de uns a outros receptáculos sucessivos; os grãos mais grossos se detêm no primeiro receptáculo; os que lhes seguem em tamanho, no segundo, e assim sucessivamente, até que, no último recipiente, só cai com a água o pó finíssimo, usado para polimento de metais e algumas pedras. A água pode exercer também sua ação separadora de outra maneira: dissolvendo as matérias solúveis mescladas que estivessem com outras insolúveis, como acostuma acontecer nos laboratórios. Efeitos análogos de segregação efetuam, de várias maneiras, as forças mecânicas ou químicas, e as do ar e da água se produzem também por outras forças. Assim, as atrações e repulsões elétricas separam os corpos pequenos dos maiores, os leves dos pesados. A atração magnética permite separar as partículas de ferro e aço de outras, com que estejam misturadas; assim separam os afiadores de Sheffield, com um filtro de gaze imantada, o pó de aço do pó de pedra, que caem misturados na afiação dos instrumentos ali fabricados. Não há fenômeno químico de decomposição que não deixe patente como a diversa afinidade de um corpo para com os componentes de outro permite separá-los. Qual é, então, o princípio demonstrado por esses fenômenos? Como expressar numa fórmula, que os abranja a todos, os inumeráveis fatos análogos a estes citados? Em cada um desses casos vemos em ação uma força, que podemos considerar como simples; ora é um movimento de um líquido com determinada direção e velocidade, ora uma atração elétrica ou magnética de certa magnitude, ora uma afinidade química; ou para ser mais exatos, a força em ação é a resultante de cada uma das citadas e de outras forças contínuas, como a gravitação, a coesão etc. Em cada caso há um agregado de partículas dessemelhantes, ou de átomos de espécies distintas, combinados ou mesclados intimamente, ou ainda fragmentos de uma mesma matéria, mas distintos em seus volumes médios, densidades ou formas etc., e que se separam uns dos outros pela ação de uma força que atua sobre todos, separando-se por grupos ou agregados menores, compostos cada um desses agregados de unidades semelhantes entre si e dessemelhantes das dos demais agregados parciais. Sendo isso o que se passa em todas essas mudanças, procuraremos interpretar e explicar esse fato geral. No capítulo intitulado "Instabilidade do homogêneo" vimos que uma mesma força, atuando sobre as diferentes partes de um todo, produz efeitos diversos: faz do homogêneo heterogêneo, e deste ainda mais heterogêneo. Estas transformações consistem seja em mudanças sensíveis e apreciáveis, seja em mudanças insensíveis, seja em mudanças de ambas as classes, das posições relativas das partes, ou unidades do todo; ou seja, nessas redistribuições moleculares que chamamos químicas ou físico-moleculares, ou nas transposições mais extensas, de partículas visíveis, que chamamos mecânicas, ou em ambas as classes de transposições combinadas. A porção de força que age sobre cada uma das partes do todo, pode efetivamente gastar-se: ou em apenas modificar as relações mútuas de suas moléculas constituintes, ou em mudar de lugar toda a parte, ou nas duas coisas conjuntamente; por conseguinte, a porção de força que não se gasta na produção de um desses efeitos, deve empregar-se em produzir o outro; e é evidente que, se uma parte pequena da força efetiva que atue sobre uma unidade composta de um agregado se gasta em reordenar os elementos irredutíveis dessa unidade composta, o resto, ou seja, a maior parte da força, deve produzir o movimento dessa unidade até outro ponto do agregado, e reciprocamente, se pouco ou nada da força total que atua sobre a unidade da massa em questão, se emprega em movê-la, em produzir uma mudança visível, a maior parte ou a totalidade da força produzirá mudanças moleculares. Que resulta disso? No caso em que nada, ou tão somente uma parte da força incidente gere redistribuições químicas, quais redistribuições físicas se verificam? As partes semelhantes entre si serão modificadas semelhantemente pela força e sobre ela reagirão de maneira semelhante; as partes diferentes serão modificadas diferentemente e reagirão diferentemente. Por conseguinte, a força efetiva, uma vez transformada total ou parcialmente em movimento mecânico das unidades de massa, produzirá movimentos semelhantes nas unidades semelhantes e movimentos diferentes nas unidades diferentes. Se, pois, em um agregado composto de unidades de várias classes, as de mesma classe são postas em movimento no mesmo sentido e com a mesma velocidade, em diferente sentido, com diferente velocidade ou as duas coisas, as unidades de outra classe, com efeito, serão separadas ou segregadas das várias classes de unidades. Antes de finalizar estas preliminares ou generalidades, devemos estabelecer um princípio complementar, o de que as forças mescladas são separadas pela reação das substâncias uniformes, analogamente, como a separação das substâncias mescladas se dá pela ação das forças uniformes. A dispersão da luz refratada nos oferece um exemplo completo desse princípio: um feixe de luz, formado por ondulações etéreas de ordens diversas, não é refratado uniformemente por um corpo refringente homogêneo, mas as várias ordens de ondulação são desviadas sob ângulos distintos, formando assim separados ou integrados, o que chamamos cores do espectro. Outro gênero de separação se verifica quando os raios luminosos atravessam meios que lhes são resistentes: os raios formados de ondulações relativamente curtas são absorvidos antes dos demais, e apenas os raios vermelhos, que correspondem às ondulações mais longas, atravessam todo o meio, se ele é bastante espesso. § 164. Na hipótese nebular, a origem das estrelas e dos planetas se explica por uma segregação material, como as que acabamos de citar, produzidas pela ação de forças diferentes sobre massas semelhantes. De fato, vimos em um dos parágrafos anteriores (§150) que se a matéria existiu em algum tempo em estado difuso, sem dúvida não pôde permanecer homogênea, mas teve que se fracionar em massas distintas, dada a impossibilidade de equilíbrio perfeito entre as atrações mútuas de átomos dispersos em um espaço infinito, e devem ter-se formado centros de atração preponderantes, em torno dos quais se agruparam os átomos, nas ditas massas. Essa primeira segregação ou integração de massas materiais foi, pois, devida à desigualdade das forças que atuavam sobre os diversos átomos primitivos. A formação e separação de um anel nebuloso são dois exemplos da mesma lei: pois admitir, com Laplace, que a zona equatorial de um esferoide nebuloso em rotação deve, durante o período de concentração, adquirir suficiente força centrífuga para não poder seguir a concentração da massa restante, é supor que essa zona deve separar-se do esferoide, por estar submetida a uma força distinta. A divisão far-se-ia sem dúvida pelo limite que separaria os pontos em que a força centrífuga excedesse a força de agregação ou concentração, dos pontos em que as forças de concentração excedessem a centrífuga. Essa operação obedeceu evidentemente (segundo a hipótese) à lei em virtude da qual, quando massas semelhantes estão sujeitas a forças desiguais, as que estão submetidas às mesmas condições se agrupam e se separam das que estão submetidas a condições diferentes. Para fazer compreender melhor essa operação é conveniente examinar alguns exemplos comprovantes de que, em igualdade de condições, a separação é tanto mais profunda quanto mais distintas as unidades separadas. Tomemos um punhado de uma substância moída, com partículas de diferentes granulometrias, e deixemo-la cair, em meio a um vento suave: os fragmentos mais grossos cairão verticalmente, ou quase, agrupando-se sob o lugar de nosso punho. Os demais irão caindo sucessivamente tanto mais longe quanto mais tênues sejam. Se fizermos passar água, lentamente, por uma mistura de substâncias solúveis e insolúveis; far-se-á primeiro a separação das substâncias mais distintas no que respeita à ação da força incidente; as substâncias solúveis serão dissolvidas e levadas pela corrente e as insolúveis permanecerão; umas e outras sofrerão novas segregações; das solúveis, se existirem em vários graus, irão primeiro as mais solúveis e logo as demais por ordem de solubilidade; e das insolúveis, a água arrastará também, e ao mesmo tempo em que as solúveis, primeiramente as mais tênues, e depois as demais, por ordem de volume, depositando-as em seu trajeto, primeiro as mais densas, e logo, as outras, em ordem descendente de tamanhos e densidades. Acrescentemos, para completar essa explicação, um fato que combina com os que acabamos de mostrar. As unidades de massa ou partículas misturadas podem não apresentar entre si senão ligeiras diferenças; em consequência, quando atuarem sobre elas forças incidentes, pode acontecer que apenas experimentem pequenos movimentos, separações insignificantes, sendo preciso para separá-las combinações de forças susceptíveis de aumentar essas ligeiras diferenças; e de fazer, portanto, mais assinalada, mais profunda, a segregação. Tal princípio foi patenteado, por antítese, nos exemplos precedentes, mas pode ainda ser esclarecido com outros exemplos tomados da análise química. Um dos melhores é a separação entre água e álcool por destilação. Aquela consta, como sabemos, de oxigênio e hidrogênio, e este destes dois elementos mais o carbono; ambos conservam o estado líquido até temperaturas não muito diferentes; de modo que se aquecemos a mistura mais que o necessário, passa muita água com o álcool na destilação e, portanto, só entre temperaturas muito próximas se separam, e ainda assim sempre arrasta moléculas do outro, o que primeiro se volatiliza. Mas o exemplo talvez mais notável ou instrutivo é o da cristalização por via úmida quando vários sais que têm pouca analogia de constituição estão dissolvidos na mesma massa de água; é fácil separá-los por cristalização, pois as moléculas de cada um desses sais se movem umas para as outras em virtude de forças polares, segundo supõem os físicos, e se separam das moléculas dos demais, formando cristais de espécies distintas. É verdade que os cristais de cada sal contêm, quase sempre, pequenas quantidades dos outros sais, principalmente se foi rápida a cristalização; mas, vão se purificando mais, pela redis solução e nova cristalização, várias vezes se necessário. Ocorre que, se os sais dissolvidos na mistura são quimicamente homólogos, a separação por cristalização mostra-se impossível, pois esses sais são também isomorfos em geral, se cristalizando juntos, por mais tentativas que se faça. Residem aqui, pois, exemplos manifestos de que moléculas de espécies diferentes são escolhidas e separadas pelas forças moleculares com uma precisão proporcionada pelo grau de sua dessemelhança: em primeiro lugar as moléculas dessemelhantes por sua forma, ainda que semelhantes na solubilidade se separam, mesmo que imperfeitamente, ao recobrar as formas próprias de seu estado sólido; em segundo, como as moléculas são semelhantes não apenas pela solubilidade no mesmo solvente, mas também por sua estrutura ou constituição atômica, não se separam ao solidificar-se, a não ser muito imperfeitamente, e em condições muito especiais. Em outras palavras, a força de polaridade mútua imprime às moléculas misturadas movimentos cuja diferença de direções, velocidades etc., é proporcional à dessemelhança daquelas e, portanto, tende a separá-las, ou segregá-las umas das outras, proporcionalmente, também, a essa dessemelhança. Há outra causa de separação mútua das partes de um todo, que não precisamos considerar com tantos detalhes. Se unidades de massa diferentes sob um ou vários aspectos devem tomar diferentes movimentos, submetidas à mesma força, unidades iguais devem tomar movimentos distintos, sob a ação de forças diferentes. Suponhamos que um grupo de moléculas de um agregado homogêneo esteja submetido à ação de uma força, diferente em sua intensidade ou direção, ou em ambas as coisas, da que atua sobre o restante do agregado; esse grupo de moléculas vai se separar do restante, sempre que essa força que atua sobre ele não se gaste unicamente em produzir vibrações ou redistribuições moleculares, e isto é evidente, sem mais provas que as condições gerais feitas há pouco. § 165. As mudanças geológicas chamadas comumente de aquosas apresentam numerosos exemplos de segregação de massas distintas por uma mesma força incidente. As ondas do mar desagregam e separam continuamente os materiais das costas; o fluxo e o refluxo arrastam partículas das rochas submersas, das quais as menores permanecem algum tempo em suspensão na água, até se depositarem a menor ou maior distância da costa, sob a forma de um sedimento mais fino; as partículas um pouco maiores caindo ou precipitando mais rapidamente que as pequenas, formam as praias arenosas, secas no refluxo, e submersas no fluxo; as mais grossas, tais como o cascalho ou os pedregulhos, se acumulam nas encostas que as ondas batem, e etc. Ainda se podem observar segregações mais específicas; aqui, uma pequena enseada, formada exclusivamente de pedregulhos planos; ali, outra de barro; acolá, uma de areia: às vezes, uma mesma baía, arredondada, de cujos extremos um está mais descoberto que o outro, apresenta seu fundo coberto de seixos, cujos tamanhos vão sendo gradualmente maiores da extremidade menos descoberta para a mais descoberta. Sigamos a história de cada formação geológica e reconheceremos facilmente que fragmentos de distintos volumes, pesos e formas, misturados primitivamente, foram selecionados, separados e reunidos em grupos relativamente homogêneos graças à ação de deslocamento das águas, combinada com a atração terrestre; e a separação é tanto mais marcada quanto mais distintos os fragmentos. As camadas sedimentares apresentam, ainda depois de sua formação, segregações de outra ordem: os fragmentos de pederneira e de pirita que se encontram nas rochas calcárias só podem se explicar pela agregação das moléculas de sílica e sulfato de ferro, primitivamente repartidas quase uniformemente em toda a massa que lhes serve de ganga, e agrupadas gradualmente em volta de certos centros, apesar do estado semissólido da matéria ambiente. A limonita é um exemplo patente desses resultados, e de suas condições. Entre os fenômenos ígneos, não há tantos exemplos da operação que estudamos. E ao distinguir a evolução simples da composta, indicamos (§102) que uma quantidade muito grande de movimento molecular latente se opõe à permanência das redistribuições secundárias que constituem a evolução composta. Contudo, os fenômenos geológicos ígneos não estão totalmente desprovidos de exemplos de segregação. Quando as matérias mescladas que compõem a crosta terrestre alcançaram sua temperatura máxima, a segregação começou desde o momento em que baixou a temperatura. Algumas substâncias lançadas dos vulcões, em estado gasoso, se sublimaram e cristalizaram nas superfícies frias que encontraram; e como se solidificam a diferentes temperaturas, se depositam também a distintas alturas, nas cavidades que atravessam. Mas o melhor exemplo é o das mudanças que sobrevêm no esfriamento lento de uma rocha ígnea, quando uma parte do núcleo fundido da Terra é lançada no exterior por uma das rupturas verificadas na crosta. Quando essa matéria se resfria bastante depressa por efeito da radiação e do contato com massas frias forma um corpo chamado basalto, de estrutura homogênea, ainda que composto de vários elementos. Mas quando essa parte do núcleo em fusão não escapa através dos estratos superficiais, se resfria lentamente e resulta no que chamamos granito. As partes de quartzo, feldspato e mica, que contém no estado de mistura, tendo permanecido muito tempo fluidos ou semifluidos, isto é, com uma mobilidade relativamente considerável, experimentaram mudanças de posição exigidas pelas forças a que estavam submetidas. As forças diferenciais, que nascem de uma polaridade mútua, tiveram tempo de produzir os movimentos necessários nas moléculas, e separaram o quartzo, o feldspato e a mica, que cristalizaram. E a prova de que essa separação depende totalmente da agitação, continuada por muito tempo, das partículas misturadas e da mobilidade das forças diferenciais é que os cristais que ocupam os centros dos veios de granito em que a fluidez e semifluidez duraram mais são muito mais grossos que os das partes que, próximas à superfície, se resfriaram e se solidificaram mais rapidamente. § 166. São tão complexas e delicadas as segregações que se verificam em um organismo, que não é fácil fazer constar as forças particulares que as efetuam. Entre os poucos casos suscetíveis de uma interpretação bastante exata, os melhores são aqueles que em que se podem reconhecer os efeitos de pressões e tensões mecânicas, dos quais encontraremos alguns estudando a estrutura óssea dos animais superiores. A coluna vertebral de um homem está submetida em seu conjunto a certos esforços, a saber: o peso do corpo, combinado com as reações que supõem todos os esforços musculares, pois obedecendo a esses esforços foi como se formou por segregação. Ao mesmo tempo, como permanece submetida a forças diferentes enquanto se curva lateralmente sob a influência dos movimentos, suas partes permanecem separadas até certo ponto. Se seguimos o desenvolvimento da coluna vertebral desde sua forma primitiva, o cordão cartilaginoso dos peixes inferiores, veremos que há nela uma integração contínua, que corresponde à unidade das forças incidentes, combinada com a divisão em segmentos, que corresponde à variedade das mesmas forças. Cada segmento, considerado à parte, nos faz compreender, ainda mais simplesmente, o mesmo princípio: uma vértebra não é um osso único, se compõe de uma massa central dotada de apêndices e proeminências; nos tipos rudimentares, esses apêndices estão separados da massa central, e ainda existem antes dela, mas esses diversos ossos independentes, que constituem um segmento espinal primitivo, estão submetidos a um sistema de forças mais semelhantes que diferentes; como formam a alavanca de um grupo de músculos que atuam conjuntamente, sofrem também um sistema de reações em conjunto, e, por conseguinte se soldam pouco a pouco até formar um só osso. Outro exemplo, ainda mais notável, apresentam as vértebras que se soldam em uma só massa, quando estão submetidas a esforços preponderantes e continuados: o sacro, por exemplo, que no avestruz e em algumas outras aves do mesmo gênero consta de 17 a 20 vértebras soldadas, não apenas entre si, mas com os ossos ilíacos de ambos os lados. Se consideramos que essas vértebras estiveram separadas em sua origem, como o estão no embrião, e considerarmos também as condições mecânicas a que estão submetidas, facilmente inferiremos que sua união é o resultado dessas condições. De fato, por meio dessas vértebras se transmite às pernas o peso total do corpo toda vez que estas sustentam a pélvis, e esta, por intermédio do sacro, sustenta a espinha dorsal, com a qual estão articulados quase todos os demais ossos; por conseguinte, se as vértebras sacras não estivessem soldadas, deveriam estar mantidas juntas por músculos poderosos, fortemente contraídos, que as impediriam de tomar os movimentos laterais a que estão sujeitas todas as demais vértebras; deveriam estar submetidas a um esforço comum, e preservadas de esforços parciais que as afetariam diversamente; só assim preencheriam as condições sob as quais se verifica a segregação. Mas onde as relações entre causa e efeito aparecem mais patentes, é nas extremidades; os ossos do metacarpo que no homem sustentam unidos a palma da mão, estão separados na maioria dos mamíferos, em virtude dos movimentos separados dos dedos; mas não estão nos solípedes e bifendidos, tais como os cavalos e bois. Nestes, apenas estão desenvolvidos o terceiro e o quarto metacarpos, que alcançam um tamanho considerável e se soldam para constituir o osso da canela. Nos cavalos, a segregação tem uma característica, que poderíamos chamar indireta; o segundo e o quarto metacarpos em estado rudimentar estão unidos lateralmente ao terceiro, muito desenvolvido, que forma sozinho a canela, distinta daquela dos bois, que consta de dois ossos soldados, como dissemos. O metatarso apresenta mudanças análogas nesses quadrúpedes. Pois bem: esses agrupamentos de ossos se manifestam apenas onde os ossos agrupados não desempenham funções distintas, mas uma mesma e única: os pés e as mãos dos cavalos e bois e dos mamíferos ungulados, em geral, se prestam apenas à locomoção, que supõe movimentos relativos do metatarso e metacarpos; vemos, pois, que onde a força incidente é única se forma uma massa óssea única, e inferimos que esses fatos têm uma relação de causa e efeito, e achamos uma nova confirmação dessa hipótese em toda a classe das aves, em cujas patas e asas vemos análogas segregações, produzidas por análogas circunstâncias. Recentemente, Huxley deu a conhecer um fato que demonstra ainda mais claramente esse princípio geral: o gliptodonte, mamífero extinto, encontrado fossilizado na América do Sul, passou, durante muito tempo, por um grande animal com afinidade ao tatu, com um dermatoesqueleto composto de placas poligonais, intimamente unidas, formando uma armadura maciça, aprisionando o corpo, sem poder efetuar flexões laterais ou verticais. Essa armação, que devia ser muito pesada, estava sustentada pelas apófises espinhosas das vértebras, e pelos ossos próximos do tórax e da pélvis. Pois bem: o fato importante, para nosso objetivo, que devemos evidenciar é o de que: nos lugares em que várias vértebras estavam submetidas simultaneamente à pressão dessa enorme armadura cutânea, cuja rigidez as impedia de efetuar movimentos relativos, a série inteira dessas vértebras se soldava em um osso único. Interpretação análoga também pode ser dada para o modo de formação e conservação de uma espécie, considerada como um conjunto de indivíduos semelhantes. Vimos que os membros de uma espécie homogênea se subdividem, ou melhor, se agrupam em variedades, uma vez submetidos a ações de distintos sistemas de forças incidentes, restando-nos mostrar que, inversamente, se todas as variedades formadas e conservadas por segregação se encontram submetidas, por muito tempo, à ação de um mesmo sistema, ou de sistemas análogos de forças exteriores, formarão e conservar-se-ão em um grupo homogêneo e único. De fato, mediante a seleção natural, cada espécie se desprende incessantemente dos indivíduos que se apartam do tipo comum por deformações que os tornam impotentes para acomodar-se às condições de sua existência; ficam, pois, apenas os aptos para essa acomodação, ou seja, os indivíduos mais semelhantes entre si. Reduzindo-se, como já sabemos, todas as circunstâncias a que está submetida cada espécie a uma combinação mais ou menos complexa de forças incidentes, e havendo, entre todos os indivíduos da espécie alguns que diferem da estrutura média além do necessário para suportar a ação de tais forças, estas separam continuamente do total da espécie tais indivíduos demasiado divergentes do tipo médio, conservando mediante tal eleição ou seleção a uniformidade ou integridade da espécie. Assim como os ventos de outono arrancam as folhas já secas de entre as folhas verdes, ou usando o similar que usa Huxley, assim como os grãos pequenos passam através de uma peneira, enquanto os grandes ficam retidos, assim as forças exteriores quando atuam uniformemente sobre todos os indivíduos de um grupo orgânico agem semelhantemente sobre os semelhantes e distintamente sobre os distintos, com exata proporcionalidade aos graus de semelhança e de diferença, e conservando os indivíduos mais análogos entre si, eliminam os mais distintos daqueles, ou do tipo médio de todos os da espécie. Que esses indivíduos eliminados pereçam, como é o mais frequente, ou que sobrevivam e se multipliquem, formando uma variedade ou uma espécie distinta, mediante sua adaptação a condições também distintas, é indiferente a nosso objetivo, pois o primeiro caso obedece à lei de que as unidades dessemelhantes de um agregado se agrupam com suas análogas e se separam do agregado, quando estão todas submetidas às mesmas forças incidentes, e o segundo caso obedece à lei correlativa de que as unidades semelhantes de um agregado se separam e se agrupam à parte, quando estão submetidas a forças diferentes. Se consultarmos as observações de Darwin sobre a divergência de características, veremos que as segregações devidas à influência dessas leis tendem a ser cada vez mais definidas ou marcadas. § 167. Vimos que a evolução mental, considerada sob um de seus principais pontos de vista, consiste na formação de grupos de objetos semelhantes e de relações semelhantes, ou seja, uma distinção ou diferenciação das diversas coisas confundidas em um só conjunto; e uma integração de cada ordem de coisas análogas em um só grupo (§153). Resta-nos agora provar que se a dessemelhança das forças incidentes é a causa dessas diferenciações, a semelhança das forças incidentes é a causa dessas integrações. De fato, em que consiste a operação de classificar? A princípio os botânicos, seguindo o vulgo, não conheceram mais divisões de plantas do que as adaptadas pela agricultura: cereais, legumes e plantas selvagens. Como formaram as ordens, gêneros, espécies e etc.? Cada planta examinada lhes produzia certas impressões complexas, e examinando muitas, se produziam grupos de sensações análogas, correspondentes a grupos de atributos análogos; ou, em outras palavras, verificavam-se nos nervos séries coordenadas de mudanças, semelhantes a outras séries anteriormente produzidas. Analisada cada uma dessa série de mudanças, ela é apenas uma série de modificações moleculares na parte impressionada do organismo; cada vez que se repete a impressão, uma nova série de coordenadas de modificações moleculares se sobrepõe às precedentes, e análogas, e as reforça, produzindo, assim, a ideia da semelhança das causas externas de tais impressões. Pelo contrário, outra espécie de plantas produzia no cérebro do botânico outros grupos de mudança, combinadas, ou de modificações moleculares não semelhantes, mas diferentes das anteriormente consideradas, mas que, repetidas também, e reforçadas, geravam uma ideia diferente correlativa a uma espécie distinta. Como expressaremos, em termos gerais, a natureza dessa operação? Por um lado, temos as coisas semelhantes e as dessemelhantes, das quais emanam os sistemas, ou grupos de forças que nos fazem perceber aquelas. Por outro lado, existem os órgãos dos sentidos e centros de percepção, que transmitem esses grupos de forças durante a observação; e nessas transmissões, os sistemas semelhantes de forças são isolados ou separados dos dessemelhantes e cada uma dessas séries de grupos de forças separadas das demais e correspondente a um grupo de objetos exteriores constitui um estado psíquico, a que chamamos a ideia desse grupo, gênero, espécie etc. Já havíamos visto que se por um lado uma mesma força produz a separação de matérias mescladas, por outro uma mesma matéria produz a separação de forças mescladas; e vemos agora, além disso, que forças dessemelhantes, uma vez separadas, produzem diferentes mudanças estruturais nos agregados que as separam, das quais cada uma representa e equivale à série integrada dos movimentos que a produziram. Uma operação análoga separa as relações de coexistência e de sucessão para formar espécies e ao mesmo tempo as agrupa com as impressões que as revelaram. Quando dois fenômenos que foram observados em certa ordem se repetem da mesma maneira, os nervos que foram modificados pela passagem de uma impressão ou outra, o são novamente; e as modificações moleculares que experimentaram, ao propagar-se o primeiro movimento, crescem, ao ser propagado o segundo análogo ao primeiro; cada um desses movimentos produz uma alternativa de estrutura, que conforme a lei geral enunciada no capítulo IX, implica na diminuição da resistência oposta a todos os movimentos análogos sucessivos. A segregação destes, ou melhor, da parte eficaz deles, empregadas em vencer tais resistências, vem a ser a causa e a medida da conexão mental que liga entre si as impressões produzidas pelos fenômenos. Durante esse tempo, as conexões dos fenômenos que reconhecemos como diferentes daqueles, ou seja, que afetam a distintos elementos nervosos, estarão representadas por movimentos efetuados em distintas rotas, em cada uma das quais a descarga nervosa far-se-á com uma facilidade e uma rapidez proporcionais à frequência com que se produz a conexão dos fenômenos. A classificação das relações deve, pois, ocorrer a par da dos objetos que constituem seus termos. As relações mescladas, que apresenta o mundo exterior, têm com as sensações mescladas, que produz, um caráter comum, que é o de não poder se fixar no organismo sem experimentar uma segregação mais ou menos completa. E por essa contínua e dupla operação de segregar e agrupar mudanças e movimentos, que constitui a essência da inervação, se efetuam, pouco a pouco, a segregação e o agrupamento de matéria que constitui a estrutura nervosa. § 168. No princípio da evolução social, os indivíduos semelhantes se reuniram em um grupo, e os dessemelhantes se separaram, sob a ação de forças incidentes, de modo análogo àquele pelo qual se agrupam e se separam os seres inferiores. As raças humanas tendem a integrar-se ou separar-se como os outros seres vivos. Entre as forças que operam e conservam as segregações humanas, podemos considerar em primeiro lugar, as forças exteriores, chamadas físicas. O clima e os alimentos de um país são mais ou menos favoráveis aos indígenas, e mais ou menos prejudiciais aos forasteiros das regiões distantes. As raças do Norte não podem perpetuar-se nos climas tropicais, e se não perecem na primeira geração, sucumbem na segunda, e como acontece na Índia, não podem conservar-se a não ser artificialmente, via das imigrações e emigrações incessantes. Isto quer dizer que as forças exteriores, atuando igualmente sobre todos os habitantes de uma localidade, tendem a eliminar os que não se assemelham a um certo tipo, e a conservar, por esse meio, a integração dos que o são. Se na Europa vemos uma espécie de mistura permanente, devida a outras causas, observamos, contudo, que as variedades misturadas correspondem a tipos pouco distintos, e se hão formado em condições pouco diferentes. As outras forças que concorrem para formar ou produzir as segregações étnicas são as forças psíquicas, reveladas nas afinidades que reúnem os homens semelhantes nos seus afetos, ideias e desejos. Geralmente os emigrados e emigrantes têm desejos de voltar a seu país, e se não o realizam, é porque são detidos por causas bastante poderosas. Os indivíduos de uma sociedade necessitados de residir em outra, formam colônias, pequenas sociedades, semelhantes às das localidades de onde vieram. As raças que se dividiram artificialmente têm uma forte tendência a uma nova união. Pois bem, ainda que as segregações que resultam das afinidades naturais dos homens de uma mesma variedade, não parece poderem se explicar pelo princípio geral que discutimos, são, contudo, bons exemplos exatamente desse princípio. Ao falar da direção do movimento (§80) vimos que os atos executados pelos homens, para satisfação de suas necessidades, eram sempre movimentos no sentido oposto ao da mínima resistência; os sentimentos e desejos que caracterizam os indivíduos de uma raça ou variedade são tais que não podem achar sua completa satisfação, senão entre os demais membros ou indivíduos daquelas; essa satisfação procede, em parte, da simpatia aos que têm sentimentos semelhantes e, sobretudo, das condições sociais correlativas que se desenvolvem por toda parte onde reinam os mesmos sentimentos. Logo, quando um indivíduo de uma nação é, como acontece frequentemente, atraído pelos de outra nação, é porque certas forças, que chamamos desejos, o empurram na direção da mínima resistência. Movimentos humanos, como todos os demais, são determinados pela distribuição das forças que os produzem, e, portanto, é preciso que as segregações de raças, que não são resultados de forças exteriores, sejam produzidas pelas forças interiores ou que os indivíduos dessa raça exercem uns sobre os outros. Análogas segregações se operam sob a influência de causas análogas, no desenvolver da cada sociedade; algumas resultam de afinidades naturais menos importantes, mas as segregações principais, que constituem a organização política ou industrial, resultam da união de indivíduos, cujas analogias são efeito da educação, tomando essa palavra em sua mais lata acepção, a saber: o conjunto de todos os procedimentos que formam os cidadãos para exercer funções especiais. Os homens dedicados ao trabalho corporal têm todos certa semelhança que apaga ou dissimula as diferenças naturais entre suas restantes faculdades ativas. Os dedicados ao trabalho intelectual têm, por sua vez, certas características comuns que os fazem mais semelhantes entre si que os ocupados dos trabalhos manuais. Verificam-se, pois, segregações, e se estabelecem classes correspondentes a essas analogias e diferenças. Mas ainda se estabelecem outras mais marcadas entre os indivíduos dedicados à mesma profissão, pois ainda aqueles a quem a índole de seu trabalho lhes impede de concentrar-se em uma mesma localidade, como os pedreiros, médicos etc., formam associações, isto é, se integram o melhor possível. E os que não estão obrigados a certo grau de dispersão, como nas classes manufatureiras, se agrupam, tanto quanto possível, em localidades especiais. Se agora buscamos as causas dessas segregações, consideradas como resultados da força e do movimento, chegaremos ao princípio geral que discutimos. A semelhança que a educação produz em uma classe de cidadãos é uma aptidão especial que adquiriram para satisfazer suas necessidades pelos mesmos meios. Ou seja, que a ocupação para a qual foi educado um indivíduo é, evidentemente, para ele, como para todos os educados como ele, a linha de mínima resistência. Segue daí que, sob a pressão que obriga a maioria dos homens a trabalhar, a ser ativos, os que são modificados de maneira semelhante tendem a seguir a mesma profissão. Se, pois, uma localidade chega a ser o lugar de menor resistência para uma determinada indústria, seja por circunstâncias físicas, seja por aquelas que se desenvolvem durante a evolução social, as leis da direção do movimento exigem que os indivíduos dedicados a essa indústria se dirijam a essa localidade e se agrupem ou integrem. Assim, por exemplo, Glasgow conquistou uma grande superioridade na construção de navios de ferro, porque estando já na embocadura de um rio navegável, em cujas imediações há minas de ferro, e de carvão de pedra, o trabalho total requerido para a construção do mesmo navio e para a aquisição do equivalente desse trabalho em alimentação e vestimenta, é menor que em outro lugar; e em consequência, os operários construtores de navios de ferro se concentraram em Glasgow. Tal concentração seria ainda mais marcada, se houvesse outro distrito com algumas vantagens capazes de competir com Glasgow. O princípio é também verdadeiro para as profissões comerciais: os agentes de câmbio se concentram na City, porque a soma de esforços que cada um deve exercer para cumprir suas funções e colher os benefícios é menor que em outras localidades; e a mesma lei obedece a criação das bolsas de valores. Com tantas e tão complexas unidades e forças que constituem uma sociedade, há motivos para pensar que devem estabelecer-se seleções e segregações mais complicadas e menos claras do que as que acabamos de mostrar. Pode-se talvez apontar anomalias que, à primeira vista, poderiam parecer em contradição com a lei que questionamos; mas, se estudamos melhor, veremos que são apenas casos particulares, não menos notáveis. De fato, existindo entre os homens tantas espécies de semelhanças, devem existir também muitas espécies de segregações: há semelhanças de pensamento, de gostos, de preferências intelectuais, de sentimentos religiosos e políticos, e cada uma delas origina agrupamentos e associações dos indivíduos correspondentes. Acontece algumas vezes que as segregações se cruzam, anulam mutuamente seus efeitos total ou parcialmente, e se opõem a que uma classe se integre por completo: são essas as anomalias de que falamos. Mas se estudamos convenientemente essa causa de imperfeição, veremos que essas segregações aparentemente anormais, estão conformes com a mesma lei tanto quanto as demais; reconheceremos, por uma análise conveniente, que, seja por efeito de forças exteriores, seja por efeito de uma espécie de mútua polaridade, se produzem na sociedade segregações ou classes cujos membros têm uma semelhança natural ou uma semelhança produzida pela educação. § 169. Pode-se também deduzir da persistência da força, a lei geral de que acabamos de mostrar tantos exemplos? Acreditamos que a exposição preliminar feita no início do capítulo anterior bastará, com razão, para responder afirmativamente. Com efeito, todos os fatos ultimamente enumerados se resumem em três proposições abstratas: primeira, unidades iguais, submetidas a uma força única e constante em direção e magnitude e capaz de movê-las, se deslocam na mesma direção e todas com a mesma velocidade; segunda, unidades iguais, submetidas a forças desiguais e capazes de movê-las, se movem diferentemente, seja em direção, seja em velocidade, seja em ambas as coisas; terceira, unidades desiguais, submetidas a uma força uniforme, ou constante em direção e velocidade, mover-se-ão com direção, velocidade ou ambas as coisas diferentes. Por último, as forças incidentes devem ser também modificadas analogamente: forças iguais, que atuem sobre unidades iguais receberão modificações iguais; forças desiguais, atuando sobre unidades iguais serão modificadas diversamente; forças iguais que atuem sobre unidades desiguais serão afetadas também diversamente. Podem ainda essas proposições ser reduzidas a formas mais abstratas, pois todas equivalem a esta: em todas ações e reações da força e da matéria, uma desigualdade em um ou outro desses dois fatores implica em uma desigualdade nos efeitos; e estes são, pelo contrário, idênticos, sendo-o também ambos os elementos. Neste grau de generalização, é muito fácil inferir a subordinação dessas proposições, ultimamente enunciadas, ao princípio da persistência da força. Quando duas forças quaisquer não são idênticas, diferindo por sua intensidade, direção, ou ambas características, se pode provar pelos princípios da mecânica que essa diferença se deve à existência em uma delas de um elemento ou porção de força que não existe na outra. Analogamente, dois fragmentos de matéria desiguais em volume, peso, forma, ou outro qualquer atributo, não podem nos parecer desiguais senão pelas diferentes forças com que nos impressionam; logo essa diferença é também devida à presença, em uma ou outra porção, de uma ou várias forças que não estão presentes na outra. Qual é, pois, a consequência inevitável dessa característica comum das desigualdades dinâmicas e materiais? Toda desigualdade nas forças incidentes deve produzir efeitos distintos em unidades iguais de matéria, posto que, se assim não fosse, a força resíduo, ou diferença, daquelas, não produziria efeito algum, e, portanto, a persistência da força não seria uma verdade universal. Toda desigualdade nas massas submetidas à ação de uma mesma força ou de forças idênticas deve produzir efeitos diversos, porque se assim não fosse, a força que para nós constitui a diferença dessas massas não produziria efeito algum, e seria falsa, nesse caso, a persistência da força. Por último, reciprocamente, se as forças que exercem uma ação e as massas sobre as quais atuam são iguais, os efeitos serão iguais, pois se assim não fosse, haveria uma diferença de efeitos produzida sem diferença de causas, numa patente contradição com o princípio da persistência da força. Pois bem: se essas verdades gerais estão implícitas na lei universal da persistência da força, todas as redistribuições que estudamos até agora no investigar as características das diversas fases da evolução estão também implícitas nesta lei universal. As forças efetivas e permanentes que atuam sobre um agregado material e produzem nele movimentos sensíveis, produzem as segregações que resultam, como vimos, entre as partes desse agregado; e se este se compõe de unidades mescladas de diversas espécies, as de cada espécie receberão movimentos semelhantes de uma força incidente, enquanto as de outra espécie receberão movimentos mais ou menos distintos daqueles, ainda que semelhantes entre si; as duas espécies, pois, se separam e se integrarão separadamente, ou cada uma de per si. Se as unidades são semelhantes e as forças diferentes, verificar-se-á também a separação e a integração daquelas, pelas mesmas razões já repetidas. Assim se produz certamente a segregação e o agrupamento concomitantes que contemplamos em toda parte, e em virtude disso, a mudança do uniforme para o multiforme, acompanhada da mudança do indefinido ou indeterminado para o definido ou determinado. Assim, então, a passagem de uma homogeneidade indefinida a uma heterogeneidade definida, se deduz do princípio dos princípios - o da persistência da força - tão facilmente quanto a passagem do homogêneo para o heterogêneo. XXII O equilíbrio § 170. Para que fim tendem as mudanças que estudamos? Verificar-se-ão contínua ou indefinidamente? Pode existir um processo indefinido de passagem do menos ao mais heterogêneo? Existe um grau limite que não pode a integração da matéria e do movimento atingir? É possível que essa metamorfose universal siga o mesmo curso indefinidamente, ou tende a produzir um estado definitivo, não susceptível de novas modificações? Esta última conclusão é a que se deduz logicamente de tudo que expusemos, como ver-se-á em seguida. De fato, quer examinemos uma operação concreta, quer consideremos a questão do ponto de vista abstrato, veremos que a evolução tem um limite infranqueável, que as redistribuições de matéria, em todas as esferas de nosso conhecimento, têm um fim determinado pela dissipação do movimento que as efetua. A pedra que impulsiona comunica seu movimento aos corpos com que se choca, e acaba por parar; com os objetos com que se chocou, e que fez movimentar-se, acontece o mesmo. Da mesma maneira, a água que, em função da gravidade, corre constantemente para as regiões mais baixas, primeiramente precipitando-se das nuvens, depois correndo sobre a terra para formar córregos e rios, para também, ante a resistência oposta pela água dos mares e dos lagos. Nesta se dissipa também, comunicando-se à atmosfera e aos corpos das margens o movimento que produzem os ventos ou a imersão dos corpos sólidos, que se propaga em ondas, que por sua vez vão diminuindo em altura, à medida que crescem em amplitude. A impulsão que os dedos comunicam à corda de uma harpa se espalha em todos os sentidos, debilitando-se quando se estende, e acaba por se extinguir, gerando ondas de calor e outros movimentos. Na brasa retirada do fogo, como na lava que expele o vulcão, vemos que a vibração molecular chamada calor se dissipa por radiação e talvez por contato com corpos vizinhos, de maneira que em definitivo, por maior que seja o calor inicial, equilibrar-se-á, mais ou menos rapidamente, com o ambiente. A mesma coisa acontece a todas as demais formas de força e movimento, pois como já mostramos no capítulo da multiplicação dos efeitos, os movimentos vão se decompondo em outros mais e mais divergentes. Assim, a pedra que impulsiona em direções mais ou menos divergentes da sua as outras pedras com que se choca, e estas fazem o mesmo, por sua vez, com as que se encontram em seu caminho. O movimento do ar e da água, qualquer que seja sua forma primitiva, sempre se decompõe em movimentos radiantes. O calor produzido pela pressão em uma direção determinada se irradia ou espalha em ondulações em todos os sentidos; o mesmo acontece no gerar da luz e da eletricidade; isto significa que esses movimentos, como todos os outros, se dividem e subdividem, reduzindo-se em virtude dessa operação continuada indefinidamente a movimentos insensíveis, mas nunca anulados. Achamos, pois, em todas as partes, uma tendência ao equilíbrio. A coexistência universal de forças antagônicas que exige a universalidade do ritmo e a decomposição de toda força em forças divergentes tendem juntas para um equilíbrio completo e definitivo. Estando todo movimento submetido à resistência, sofre continuamente subtrações que terminam com a cessação do movimento. Surge aqui o princípio em sua mais simples expressão: vamos então examiná-lo nos complexos aspectos sob os quais se apresenta na natureza. Em quase todos os casos o movimento de uma massa é composto, e efetuando-se isoladamente o equilíbrio de cada um de seus componentes, não há influência no restante. A campainha de um navio, que parou de vibrar, está ainda agitada por oscilações horizontais e verticais produzidas pelas águas do mar. A superfície unida de uma água corrente, riscada momentaneamente pelas ondulações que um peixe produziu nem por isso deixa de correr tranquilamente para o mar, uma vez terminadas tais oscilações acidentais. A bala de canhão que para, segue movendo-se com a rotação da Terra; mesmo que cessasse esse movimento, a Terra continuaria a se mover em torno do Sol e relativamente aos demais corpos celestes. Assim, o considerado equilíbrio é, em todos os casos, o desaparecimento de um ou vários dos movimentos que animam um corpo, enquanto outros continuam como antes. Para compreendermos bem essa operação, e perceber o estado de coisas de sua tendência, será conveniente citar um caso em que possamos ver mais clara e completamente que nos exemplos recém-citados essa combinação de equilíbrio e movimentos; e para isso será melhor não um exemplo raro e surpreendente, mas um familiar, conhecido por todos. Tomemos o exemplo do pião: este apresenta, ao soltar-se do cordão que o envolvia, três movimentos: o de rotação, o de translação sobre o terreno e o de balanço, ou cabeceio. Estes dois últimos movimentos, subordinados, que trocam suas relações mútuas e com o movimento principal, de rotação, são destruídos ou reduzidos ao equilíbrio por distintas razões ou causas. O movimento de translação encontra um pouco de resistência no ar e muita resistência nas irregularidades do terreno; é assim o primeiro a se extinguir, ficando os outros dois. Em seguida, em consequência da resistência que o movimento de todo corpo em rotação apresenta a qualquer mudança no plano de rotação (como se vê claramente no giroscópio), o cabeceio também diminui e cessa, ao cabo de pouco tempo. Depois de cessados estes dois movimentos, o de rotação tendo apenas que vencer a resistência do ar e o atrito da ponta, continua o pião a girar, agora com tal uniformidade que parece em equilíbrio estático, em equilíbrio móvel, como geralmente se fala. Na verdade, quando decresce bastante a velocidade de rotação, aparecem novos movimentos, que crescem, até que o pião cai, mas esses movimentos só se apresentam se o centro de gravidade não está bem sobre o ponto de apoio. Se o pião tivesse ponta de aço e girasse suspenso de uma superfície suficientemente imantada, o fenômeno dar-se-ia como a teoria, e uma vez estabelecido o equilíbrio móvel, este continuaria até que o pião parasse, sem mudar de posição. Resumamos então os fatos patenteados por esse exemplo: em primeiro lugar, os diversos movimentos que uma massa possui se equilibram em separado: os mais débeis ou que encontram maior resistência, ou ainda antes, os que reúnem as duas condições, cessam primeiro, continuando os que têm características opostas. Em segundo lugar, quando as várias partes da massa se acham animadas de movimentos relativos de umas em relação a outras e que não encontram senão débeis resistências exteriores, aquela é suscetível de permanecer mais ou menos tempo em equilíbrio móvel. Em terceiro lugar, o equilíbrio móvel acaba finalmente em um equilíbrio completo. Não é fácil abraçar completamente a operação do estabelecimento do equilíbrio, uma vez que suas diversas fases se apresentam a um só tempo. O que se pode fazer é decompô-la, para maior facilidade, em quatro ordens diferentes de fatos, e estudá-los à parte. A primeira ordem compreende fenômenos relativamente simples, como o dos projéteis, cujo movimento não dura o bastante para manifestar seu ritmo, uma vez que dividido e subdividido rapidamente em movimentos comunicados a outras partes materiais, se dissipa no ritmo das ondulações etéreas. Na segunda ordem se encontram as diversas espécies de vibrações e oscilações, das quais se pode dizer: nelas se consome o movimento produzindo uma tensão que, equilibrada por ele, produz em seguida um movimento em sentido inverso, o qual, por sua vez, é destruído, produzindo-se um ritmo visível, logo dissipado em ritmos invisíveis. A terceira ordem de equilíbrio, da qual ainda não falamos, se manifesta nos corpos que gastam tanto movimento quanto recebem: tais são as máquinas a vapor, sobretudo as que alimentam elas mesmas suas caldeiras e fornos; nelas a força gasta para vencer as resistências do mecanismo posto em jogo, se repara a cada momento, a expensas do combustível, e se mantém o equilíbrio entre essas duas forças, elevando ou baixando o gasto de combustível, segundo a quantidade de força que se necessita e consome. Cada aumento, cada diminuição da quantidade de vapor implica num aumento ou diminuição do movimento da máquina, capaz de equilibrar-se com as variações análogas de resistência. Esse equilíbrio, que poderíamos chamar equilíbrio móvel dependente, deve ser especialmente notado, pois é um dos que se encontram comumente nas diversas fases da evolução. Podemos admitir ainda uma quarta ordem de equilíbrio: o equilíbrio independente, o equilíbrio móvel perfeito, do qual temos exemplo nos movimentos rítmicos do Sistema Solar que não encontrando outra resistência senão a de um meio, de densidade inapreciável, não experimentam diminuição sensível no tempo que podemos medir. Contudo, todas essas espécies de equilíbrio podem ser consideradas diferentes modos de uma só espécie, olhando a questão de um ponto de vista superior. De fato, em todos os casos, o equilíbrio que se estabelece é relativo, não absoluto; é o movimento que cessa, de alguns pontos ou corpos, com respeito a outros, o qual não implica no desaparecimento do movimento relativo perdido, que não faz outra coisa senão transformar-se em outros movimentos, nem uma diminuição dos movimentos em relação a outros pontos. Esse modo de compreender o equilíbrio inclui evidentemente o equilíbrio móvel, que, à primeira vista, parece ser de natureza diversa. De fato, todo sistema de corpos que apresenta, como o sistema solar, uma combinação de ritmos mutuamente equilibrados, possui a propriedade de não variar seu centro de gravidade, sejam quais forem os movimentos relativos de seus componentes; isto acontece porque a cada movimento de um elemento do sistema numa direção, há um movimento de outro elemento do sistema na direção oposta, fazendo com que a massa total do sistema permaneça em um repouso relativo. Resulta, pois, que o equilíbrio móvel é a supressão de algum movimento que uma massa móvel executava com respeito aos efeitos exteriores e a continuação dos movimentos que as diversas partes da dita massa verificam umas em relação às outras. Assim, em geral, é evidente que todas as formas de equilíbrio são intrinsecamente as mesmas, uma vez que em todo agregado somente o centro de gravidade é o que perde o movimento; os elementos conservam sempre algum movimento uns em relação aos outros; assim é o movimento molecular que constitui a luz, o calor etc. Todo equilíbrio, mesmo os considerados comumente como absolutos, não são senão equilíbrios móveis, uma vez que, se a massa total não se move, sempre há movimentos relativos entre seus elementos. Inversamente, todo equilíbrio móvel pode ser considerado como absoluto, sob certo ponto de vista, pois os movimentos relativos das partes vão acompanhados da imobilidade do todo. Temos ainda algo a acrescentar a estes já extensos preliminares. Do exposto podemos deduzir, desde já, dois princípios principais: um relativo ao último, ou melhor, ao penúltimo estado de movimento, que tende a produzir a operação que estamos estudando, e o outro relativo à distribuição concomitante de matéria. Esse penúltimo estado de equilíbrio é o equilíbrio móvel, o qual, como já sabemos, tende a produzir-se em toda massa animada de movimentos compostos e servir de estado transitório para o equilíbrio completo. Em toda evolução vemos constantemente a tendência a produzir-se e conservar-se esse equilíbrio móvel. Assim como no Sistema Solar se estabelece um equilíbrio móvel independente, e tal que os movimentos relativos das partes constituintes do sistema estão continuamente equilibradas por movimentos opostos, e que o estado médio da massa total não varia; assim vemos se estabelecerem relações análogas, ainda que menos distintas talvez, em todas as formas de equilíbrio móvel dependente. O estado de coisas, de que há exemplos nos ciclos de mudanças terrestres, nas funções dos seres orgânicos adultos, nas ações e reações das sociedades já civilizadas, é um estado que tem também por principal característica a compensação de uns e outros movimentos oscilatórios. A combinação complexa de ritmos que se nota em cada uma das ações e reações sociais, tem um estado médio que permanece constante sob o ponto de vista prático, durante os desvios num e noutro sentido O fato que devemos principalmente observar é que, como consequência da lei do equilíbrio já enunciada, toda evolução deve prosseguir até que haja o equilíbrio móvel; depois do que, como vimos, o excesso de força que uma massa possui, em uma direção, deve gastar-se em vencer as resistências que existam nessa direção, não ficando em definitivo senão os movimentos que se compensam mutuamente, constituindo um equilíbrio móvel. Quanto à estrutura que a massa adquire ao mesmo tempo, se necessita, é evidente, que apresente uma combinação de forças que equilibre todas as demais que solicitem a massa total. Enquanto prevaleça um excesso de força em qualquer sentido, não pode existir equilíbrio, e, portanto, deve continuar a redistribuição de matéria. Resulta, pois, que o limite da heterogeneidade para o qual progride toda massa em evolução é a formação de tantas partes especiais e combinações delas, quantas forças especiais e combinadas há que equilibrar. § 171. As formas sucessivamente modificadas, que segundo a hipótese nebular devem ter-se originado durante a evolução do Sistema Solar, são outras tantas espécies transitórias de equilíbrio móvel, etapas do processo que conduz ao equilíbrio completo. Assim, quando a matéria nebulosa que se condensa toma a forma de um esferoide achatado, entra em equilíbrio móvel transitório e parcial, mas que deve assegurar-se cada vez mais, à medida que se dissipam os movimentos locais antagônicos. A formação e o desprendimento de anéis nebulosos que, segundo a hipótese, surgem de vez em quando, nos apresentam casos do estabelecimento do equilíbrio progressivo que termina em um equilíbrio móvel completo. De fato, a gênese desses anéis implica numa compensação perfeita entre a força de atração que o esferoide inteiro exerce sobre sua parte equatorial e a força centrífuga que esta parte equatorial adquiriu durante a concentração de toda a massa; enquanto essas duas forças não forem iguais, sendo naturalmente maior a de atração, a parte equatorial segue o movimento geral de concentração da massa; mas assim que se equilibram, a porção equatorial não segue o restante da massa, e se atrasando, se separa. Contudo, quando o anel que resulta desse equilíbrio, considerado como um todo relacionado por meio de certas forças com outros todos exteriores, alcançou um equilíbrio móvel, suas partes não estão em equilíbrio umas em relação a outras. Assim, pois, como já vimos (§150), as probabilidades contra a persistência de um anel formado de matéria nebulosa são imensas; pois da instabilidade do homogêneo se deduz que a matéria nebulosa de um anel deve fragmentar-se em várias partes ou integrar-se em seguida em uma só massa. Isso quer dizer que o anel deve progredir para um equilíbrio móvel mais completo, durante a dissipação de movimento que dava a suas partes a forma difusa, dando por resultado um planeta, acompanhado talvez de um grupo de corpos menores, cada um dos quais tem movimentos relativos aos quais não se opõe a resistência dos meios sensíveis, constituindo-se assim um equilíbrio móvel quase perfeito. (Sir David Brewster acaba de publicar, concordando com ele, um cálculo do senhor Babinet, buscando provar que, na hipótese nebular, quando a matéria do Sol chegasse à órbita terrestre, deveria demorar 3.181 anos em sua rotação, sendo, em consequência, inválida a hipótese. Esse cálculo de Babinet, comparável a outro, de Comte, que, ao contrário, encontrou concordância entre o tempo de rotação calculado e o atual período de revolução da Terra em volta do Sol, e se este se funda em um princípio, o de Babinet se funda em duas hipóteses gratuitas, uma delas mesmo incompatível com o que se quer comprovar; pois tendo partido da suposta densidade interna do Sol, grandeza não bem conhecida, e da suposição de que todas as partes da nebulosa solar tinham a mesma velocidade angular, o que não é compatível com o desprendimento sucessivo de anéis ou partes da massa total, fica claro que padecem de falta de base os raciocínios e cálculos do dito sábio) Deixando de lado a hipótese, o princípio do equilíbrio se manifesta perpetuamente nas mudanças de menor importância que apresenta o Sistema Solar: cada planeta, cada satélite, cada cometa, nos mostra no seu afélio um equilíbrio momentâneo entre a força que o afasta de seu centro gravitacional e a que retarda seu afastamento, pois este distanciamento dura enquanto não se equilibram essas duas forças. Analogamente, no periélio, se estabelece também um equilíbrio momentâneo, no sentido inverso. A variação das dimensões da excentricidade e da posição do plano de cada órbita tem também dois limites determinados pelos casos em que as forças que produzem cada uma dessas mudanças em uma direção, são equilibradas pelas que atuam em sentido contrário. Ao mesmo tempo, cada uma dessas perturbações simples, da mesma maneira que cada uma das complexas que resultam de sua combinação, apresenta além do equilíbrio temporal de seus pontos extremos, um equilíbrio geral de desvios mutuamente compensados, de um estado médio. O equilíbrio móvel daí resultante tende, no curso indefinido do tempo, a ser um equilíbrio completo, em consequência da diminuição gradual dos movimentos planetários e da integração definitiva de todas as massas separadas que constituem o Sistema Solar. Isto é o que sugerem os atrasos de alguns cometas e o que julgam muito provável grandes autoridades no assunto. Desde o momento em que se admite que o atraso apreciável do período do cometa de Enke implica numa perda de movimento causada pela resistência do meio etéreo, se supõe também que essa resistência deve causar também aos planetas uma perda de movimento que, embora infinitesimal nos períodos que podemos medir, dará fim aos seus movimentos, se continuar indefinidamente. Mesmo se existisse, como supõe Sir John Herschell, uma rotação do meio etéreo na mesma direção dos planetas, essa cessação de movimentos não poderia ser totalmente impedida. Contudo, essa eventualidade está tão afastada de nossos tempos que apenas nos desperta um interesse especulativo: o de fazer compreender melhor essa tendência permanente para um equilíbrio completo, que se manifesta por uma dissipação de movimento sensível ou por sua transformação em movimento insensível ou molecular. Mas existe outra espécie de equilíbrio no Sistema Solar, que nos interessa mais: o equilíbrio do movimento molecular chamado calor. Até agora se admitiu implicitamente que o Sol pode continuar a nos fornecer indefinidamente a mesma quantidade de luz e calor que hoje nos fornece; mas, sem dúvida, isso é impossível, pois implica numa força nascida do nada, e não vale mais, na realidade, essa hipótese que a dos iludidos que pretendem descobrir o movimento contínuo. Outra ideia já prevalece: sabemos que a força é persistente e, em consequência, toda força que se nos revela sob uma forma deve ter existido antes, sob outra forma; e essa noção nos induz a pensar que a força manifestada nos raios solares nada mais é que a transformação de alguma outra força, existente no Sol, e por consequência da dissipação gradual dos mencionados raios no espaço, a força de que falamos acabará por se esgotar. A força agregadora solar, em virtude da qual a matéria do dito astro se concentra em torno de seu centro de gravidade, é a única que as leis da física nos autorizam a relacionar com as que emanam do mesmo astro; e, portanto, a única origem cognoscível que se pode racionalmente atribuir aos movimentos insensíveis que constituem a luz e o calor solares, é o movimento sensível que desaparece durante a concentração progressiva da substância ou matéria solar. Já vimos que essa concentração progressiva era um corolário da hipótese nebular; e agora devemos acrescentar ainda: que assim como nos membros menores do Sistema Solar o calor gerado pela concentração se dissipou em grande parte e há muito tempo, pela radiação espacial, deixando um resíduo central que continua a dissipação, mas com grande lentidão, assim também, na massa solar, imensamente maior, a quantidade também imensamente maior de calor gerado, ainda em processo de difusão, deve, à medida que a concentração caminha para o fim, diminuir, deixando apenas um resíduo insignificante. Quer se admita, quer se rechace a hipótese da condensação da matéria nebulosa de que é proveniente o Sol, a ideia de que ele perde gradualmente seu calor é hoje muito aceita. Calculou-se a quantidade de luz e calor já irradiada, a que fica por irradiar, e o período provável de duração dessa irradiação. Helmholtz calcula que, segundo a hipótese nebular, desde que a matéria do Sistema Solar se estendia só até a órbita de Netuno, até agora, se desenvolveu e difundiu uma quantidade de calor 454 vezes maior do que a que resta, e que a diminuição de um décimo de milésimo no diâmetro solar irá produzir, a partir do estado atual, calor para mais de 2.000 anos; em outras palavras, isso significa que será preciso um milhão de anos para que o diâmetro do Sol se reduza a 1/20 de seu diâmetro atual (Veja-se o artigo "On the Inter-Action of Natural Forces", no Philosophícal Magazine, suplemento ao tomo XI, 4ª série, tradução do texto alemão de Helmholtz pelo senhor Tyndall). Naturalmente, devem-se levar em conta esses dados apenas como aproximados, pois até a pouco se ignorava completamente a composição física do Sol, da qual, mesmo hoje, apenas temos um conhecimento superficial; nada sabemos de sua estrutura interna, sendo possível e mesmo provável que as hipóteses sobre a densidade de seu núcleo sejam falsas. Mas todas as inexatidões, todos os erros que servem de base para esses cálculos, não impedem que afirmemos, apoditicamente, que as forças solares se gastam, e, portanto, devem esgotar-se ao cabo de um tempo mais ou menos longo. O resíduo de movimento ainda não dissipado que atualmente o Sol conserva, poderá, talvez, ser maior do que a suposição de Helmholtz; a radiação futura irá muito provavelmente decrescer lenta e gradualmente, e não uniformemente, como supõe o sábio, e a época em que o Sol cessará sua irradiação de calor e luz suficientes para a vida orgânica estará talvez ainda mais distante do que se prevê nos cálculos citados; contudo, tal época virá, inevitavelmente, e esta certeza basta para nossos objetivos. Assim, pois, enquanto o Sistema Solar, se de fato provém da matéria cósmica difusa, é um exemplo da lei do equilíbrio, uma vez que constitui um equilíbrio móvel completo, e enquanto, constituído como está atualmente, nos oferece um exemplo dessa mesma lei pela compensação de todos os seus movimentos, é também outro exemplo, pelas operações que continuam se efetuando, segundo os astrônomos e os físicos. O movimento de massas produzido durante a evolução está em vias de refundir-se em movimento molecular do meio etéreo, tanto pela integração progressiva da matéria de cada massa, quanto pela resistência a seu movimento através desse meio. O momento em que todos os movimentos totais ou de massas se transformem em movimentos moleculares pode estar talvez muito distante; mas é fora de dúvida que tendem para ele, indubitavelmente, todos os fenômenos atuais do Sistema Solar, ou seja, para uma integração completa e um equilíbrio móvel perfeito. § 172. A forma esférica é a única capaz de equilibrar as forças mútuas de gravitação dos átomos. Se a massa formada por eles tem um movimento de rotação, a forma de equilíbrio é um esferoide mais ou menos achatado, segundo a velocidade de rotação, e está provado que a Terra é um esferoide cujo achatamento é justamente o necessário e suficiente para equilibrar a força centrífuga resultante da velocidade do movimento diário ou de rotação. Isso corresponde a dizer que durante a evolução terrestre se equilibraram perfeitamente as forças atuantes. sobre seu contorno ou superfície. A única operação nova de equilíbrio que a Terra pode ainda oferecer é a perda de seu movimento de rotação, embora nada indique uma tendência de cessação próxima ou remota. Contudo, Helmholtz sustenta que o atrito das marés com o fundo submerso deve diminuir lentamente o movimento de rotação terrestre e acabar por cessá-lo completamente. Sem dúvida, parece morar um erro nessa afirmação, pois o limite do decréscimo da velocidade de rotação terrestre deve ser o aumento do dia, até durar um período lunar; mas sem dúvida essa causa atrasa a rotação do globo, sendo, por conseguinte, um novo exemplo do progresso universal para o equilíbrio. Seria inútil entrar em mais detalhes para mostrar como esses movimentos que os raios solares geram no ar, na água e na substância sólida da Terra (Consultando os Outlines of Astronomy de Sir john Herschel por outra questão, vimos que em 1833 o eminente astrônomo havia exposta a ideia de que "os raios solares são a origem primária de todos os movimentos que se efetuam na superfície terrestre". E em seguida, refere expressamente a essa origem as ações geológicas, meteorológicas e vitais, e ainda as de combustão. É então injusto atribuir a Stephenson a originalidade dessa última ideia), depois de ter atravessado o ar e a água, confirmam todos a um só tempo o mesmo princípio. Evidentemente, os ventos, as ondas, as correntes e os desgastes que ocasionam, manifestam continuamente, em grande escala e de infinitas maneiras, essa dissipação de movimentos de que falamos na primeira seção, e a tendência para uma distribuição equilibrada das forças, como corolário dessa dissipação. Cada um dos movimentos sensíveis direta ou indiretamente produzidos pela integração dos movimentos insensíveis comunicados pelo Sol se divide e subdivide em movimentos cada vez menos sensíveis, até converter-se outra vez em movimentos insensíveis irradiados pela Terra sob a forma de ondas térmicas ou vibrações caloríficas. Os movimentos complexos das substâncias sólidas, líquidas e gasosas da crosta terrestre constituem em sua totalidade um equilíbrio móvel dependente, no qual, como vimos, pode-se descobrir uma organização complexa de ritmos. A água, na circulação incessante que a arrasta do oceano para os continentes e destes para o oceano, nos mostra um tipo dessas ações compensadoras, que em meio a todas as irregularidades produzidas por suas mútuas intervenções conservam um estado médio. Aqui, como nos outros casos de equilíbrio de terceira ordem, vemos a força dissipar-se continuamente e também de maneira contínua renovar-se com outras exteriores, sendo constantemente compensada a alta e a baixa do gasto pela baixa e alta da renovação, como pode testemunhar, por exemplo, a correspondência entre as variações magnéticas e as manchas solares. Mas o fato que é mais importante considerar é o de que essa operação tende a estabelecer o repouso completo. Os movimentos mecânicos, meteoro lógicos e geológicos que estão continuamente tendendo para o equilíbrio, tanto temporalmente por meio de movimentos contrários, quanto permanentemente pela dissipação de uns e outros, diminuirão pouco a pouco enquanto diminui a quantidade de força recebida do Sol. É indiscutível: à medida que os movimentos insensíveis propagados até nós pelo centro de nosso sistema se debilitam, decrescerão também os movimentos sensíveis que produzem, e na época distante em que o calor solar seja inapreciável, não haverá redistribuição de matéria na superfície terrestre. Vistos de uma perspectiva mais elevada, os fenômenos terrestres aparecem como detalhes do estabelecimento do equilíbrio cósmico. Já demonstramos (§69) que entre as incessantes alterações sofridas pela crosta terrestre e pela atmosfera, as que não são devidas ao movimento de concentração da substância terrestre para seu centro de gravidade são devidas ao movimento análogo da substância solar para seu centro de gravidade. Observemos que a continuidade da integração da Terra e do Sol é a continuidade da transformação do movimento sensível em insensível, que como vimos tende ao equilíbrio, e que o ponto extremo da integração é um estado em que não resta movimento sensível passível de transformação em insensível, ou seja, um estado em que se igualam as forças de integração e as forças de desintegração. § 173. Todo corpo vivo nos apresenta, sob quádruplo aspecto, a operação que estamos seguindo: a cada momento, no jogo das forças mecânicas; a cada hora, no das funções orgânicas; a cada ano, nas mudanças de estado compensatórias das mudanças climatológicas e por último, na cessação completa do movimento vital ou a morte. Expliquemos os fatos a partir desses quatro pontos de vista. O movimento sensível que constitui toda ação orgânica visível se anula mais ou menos rapidamente por uma força oposta procedente do interior ou do exterior do organismo. Assim, por exemplo, quando se levanta um braço, o movimento a ele comunicado tem como antagonista a força da gravidade ou o peso do braço e talvez outro peso que ele sustenha, e as resistências internas resultantes da estrutura, e termina o movimento quando o braço chega a uma posição em que todas essas forças se equilibram. Os limites de cada sístole e cada diástole cardíacas constituem outro exemplo de equilíbrio instantâneo entre os esforços musculares antagônicos ou que produzem movimentos opostos, e cada pulsação cardíaca deve ser acompanhada de outras, porque se assim não fosse, a rápida dissipação de seu movimento bem rapidamente produziria o equilíbrio de toda a massa sanguínea. Assim também, tanto nas ações e reações que se operam entre os órgãos internos como no jogo mecânico do corpo inteiro, a cada momento se estabelece um equilíbrio progressivo dos movimentos produzidos. Consideradas em conjunto, como formando uma série, as funções orgânicas constituem um equilíbrio móvel dependente, um equilíbrio móvel cujo poder motor está sempre se gastando em produzir os vários equilíbrios especiais que acabamos de apontar, e sempre se renovando, a expensas de outras forças exteriores. O alimento é um armazém de força, que repõe a cada momento o que as forças vitais despendem para vencer ou equilibrar suas antagônicas. Todos os movimentos funcionais do organismo são, como sabemos, rítmicos (§85); e suas combinações, ritmos compostos de várias amplitudes e complexidades. Nestes ritmos simples e compostos, o estabelecimento do equilíbrio não se manifesta apenas em cada extremo, mas também na conservação de um termo médio constante; em seu restabelecimento, quando causas acidentais produziram um seu desvio. Quando, por exemplo, há um grande gasto de movimento muscular, ele se dá, em parte, às expensas das reservas de movimento latente, depositados no interior dos tecidos, sob a forma de matéria combustível. O aumento das atividades respiratória e circulatória é o meio de que se vale o organismo quase sempre para produzir novas forças que restaurem as gastas ou dissipadas com rapidez. Essa transformação extraordinária de movimento insensível ou molecular em movimento sensível ou mecânico é seguida, de perto, por uma absorção proporcionada de alimentos, ou seja, de matéria que tem armazenada grande quantidade de movimento molecular. Quanto mais se tenha gasto do capital dinâmico acumulado nos sistemas orgânicos, circulatório, nervoso etc. mais tendência existe a um repouso prolongado, durante o qual se reponha a perda desse capital. Se o desvio do curso ordinário das funções foi bastante grande para turvar seu ritmo, como quando um exercício violento ocasiona perda de apetite e de sono; mesmo que mais tarde se estabeleça, por fim, em definitivo, o equilíbrio orgânico; sempre que a perturbação não seja de molde a destruir o jogo das funções, isto é, a vida, em cuja situação o equilíbrio completo se estabelece bruscamente, nos demais casos se restabelece pouco a pouco o equilíbrio móvel; o apetite volta, e se mostra tanto mais vivo quanto maior tenha sido a perda de tecidos; um sono tranquilo e prolongado repara os efeitos da longa vigília etc. Não há exceção à lei geral, nem mesmo nos casos extremos em que algum excesso tenha ocasionado um desarranjo irreparável, porque mesmo então o ciclo das funções encontra, depois de certo tempo, seu equilíbrio em torno de um novo estado médio, que, desde esse momento, vem a ser o estado normal do indivíduo. Assim, quando em meio às mudanças rítmicas que constituem a vida orgânica, uma força perturbadora vem a efetuar um excesso de mudança em uma direção, é gradualmente diminuída, e em definitivo neutralizada, por forças antagônicas as quais efetuam uma mudança compensadora em direção oposta e restabelecem, depois de um número maior ou menor de oscilações, o estado médio. Essa operação é a que os médicos chamam vis medicatrix naturae (Em latim, no original: "o poder curativo da natureza", ou a suposta capacidade inata de um organismo regenerar-se. Proposição erroneamente atribuída a Hipócrates). A terceira forma de equilíbrio manifestada pelos corpos orgânicos é uma consequência necessária do que acabamos de expor. Quando, por uma mudança de costumes ou circunstâncias, um organismo está submetido a novas e permanentes influências, ou a uma antiga influência, com intensidade diferente, os ritmos orgânicos são mais ou menos perturbados, mas se estabelece entre eles um novo equilíbrio em torno de uma condição média produzida pela nova influência. Da mesma maneira que as divergências temporais dos ritmos orgânicos são compensadas por outras de espécie oposta, também as divergências permanentes são compensadas por outras, opostas e permanentes. Se a quantidade de movimento que deve ser gerada por um músculo é maior que a ordinária, a nutrição do músculo cresce e se o excesso de nutrição é suficiente, o músculo cresce, cessando o aumento quando se equilibram perdas e reposições, gasto de força e quantidade de força latente que se acrescenta a cada dia. O mesmo acontece, evidentemente, em todas as modificações orgânicas que dependem de uma mudança de clima ou de alimento. E essa conclusão pode-se deduzir sem conhecer as reordenações especiais que conduzem ao equilíbrio. Se vemos estabelecer-se um novo modo de vida depois de uma perturbação funcional de alguma duração, produzida por alguma mudança nas condições do organismo, se vemos que essas condições alteradas permanecem no novo estado, sem novas mudanças, não temos outra alternativa senão supor que as novas forças introduzidas no sistema foram compensadas por forças opostas, numa operação chamada adaptação às condições de existência. Finalmente, todo organismo, considerado no conjunto de sua vida, é outro exemplo da lei: no princípio absorve, a cada dia, sob forma de alimento, uma quantidade de força maior do que a despendida; o excesso se equilibra pelo crescimento. Na idade madura, esse excesso diminui; no organismo plenamente desenvolvido a absorção diária de movimento potencial está proximamente compensada ou equilibrada pelo gasto diário de movimento atual; ou seja, no ente orgânico adulto há um constante equilíbrio de terceira ordem. Por último, vem uma idade em que as perdas diárias sobrepujam os ganhos e começa uma diminuição progressiva da ação funcional: os ritmos orgânicos se estendem de maneira mais ou menos ampla para um ou outro lado do estado médio, e ao fim se estabelece o equilíbrio completo e definitivo que chamamos morte. O último estado de estrutura que acompanha o último estado funcional, para o qual tende um organismo, tanto individual quanto especificamente, pode deduzir-se de uma proposição que deixamos assentada já na primeira seção deste capítulo. Vimos que a heterogeneidade alcança seu limite quando o equilíbrio de um agregado chega a ser completo; que a redistribuição da matéria não pode continuar, a não ser enquanto persiste seu movimento não equilibrado; e que, portanto, as condições terminais de estrutura devem ser tais que possam opor forças antagônicas equivalentes a todas as forças que atuam sobre o agregado. Pois bem; suponhamos um organismo cujo equilíbrio seja dos que chamamos móveis. Vimos que a conservação de um equilíbrio móvel exige a produção normal de forças internas, correlativas em número, intensidade e direção às forças externas incidentes; ou seja, tanto funções internas isoladas ou combinadas quanto ações externas devem ser equilibradas. Mas as funções são, por sua vez, correlativas dos órgãos; a intensidade daquelas é, mantidas as demais circunstâncias, correlativa ao volume destes, e as combinações das funções são correlativas às conexões dos órgãos. Daí resulta que a complexidade de estrutura que acompanha o equilíbrio funcional pode ser definida como um estado em que existem tantas partes específicas quantas são necessárias para que possam conjunta ou separadamente equilibrar as forças combinadas ou isoladas em meio às quais o organismo existe. Tal é o limite da heterogeneidade orgânica, do qual o homem está mais próximo do que qualquer outro ser orgânico. Os grupos de organismos manifestam com bastante clareza a tendência universal para o equilíbrio. Já mostramos (§85) que toda espécie de planta ou animal está perpetuamente submetida a uma variação rítmica no número de indivíduos; tão logo, pelo efeito da abundância de alimentos e da escassez de inimigos, o número excede mais ou menos o termo médio, dá-se que, por escassez de subsistência e aumento de inimigos, o número de indivíduos cai abaixo do termo médio. É assim que se estabelece o equilíbrio entre a soma das forças que ajudam no aumento da espécie e as que conspiram para sua redução. Os limites dessas variações são os pontos em que uma série de forças, antes no auge ou em excesso sobre outras, chega a ser equilibrada por estas. Em meio às oscilações geradas por esse conflito de forças se sustém o termo, ou número médio de indivíduos da espécie, ou seja, o ponto em que a tendência que esta tem de estender-se se equilibra com a tendência do meio em restringir esse desenvolvimento, essa extensão. Não se pode negar que esse balanço das forças conservadoras e destrutivas que tende a se estabelecer em todas as espécies deve final e necessariamente ocorrer, uma vez que o aumento do número não pode continuar senão até que exceda o aumento da mortalidade, e a diminuição do número de indivíduos possa ser detida pelo excesso de fertilidade ou pela extinção total da raça ou espécie. § 174. Podemos aplicar aos equilíbrios das ações nervosas que constituem a vida psíquica a mesma classificação que aplicamos aos da vida orgânica ou corporal. Vamos estudá-los na mesma ordem. Toda pulsação de força nervosa (já sabemos que as correntes nervosas não são contínuas, mas rítmicas) (§86) encontra forças resistentes ou opostas; para vencê-las, se dispersa ou difunde. Estudando a correlação e equivalência das forças, vimos que cada sensação, cada emoção, ou melhor, o resíduo dos fenômenos orgânicos da excitação das ideias e dos sentimentos associados, se gasta em produzir outros fenômenos orgânicos, como contrações musculares voluntárias e involuntárias, aumento de secreções etc. Vimos também que os movimentos devidos a essas causas são sempre finalizados pela oposição das forças provocadas por eles mesmos. Mas o que devemos observar, principalmente, é que o mesmo acontece com as mudanças nervosas, devido às mesmas causas. Diversos fatos provam que a produção de todo pensamento ou sentimento deve sempre vencer alguma resistência, por exemplo, quando a associação de certos estados mentais não foi frequente, é preciso um esforço apreciável para evocá-los um depois do outro; durante toda prostração nervosa, há uma incapacidade relativa de pensar; as ideias não se encadeiam com a rapidez e a facilidade habituais; por último, o fato de que durante um aumento insólito de força nervosa, natural ou artificial, diminui a resistência a se produzir pensamentos e se produzem facilmente as mais complexas, numerosas e difíceis combinações de ideias. Ou seja, que a onda de atividade nervosa a cada momento gerada se propaga no corpo e no cérebro pelos fios em que a resistência é mínima, ao menos naquelas condições, e difundindo-se depois proporcionalmente à sua intensidade, não acaba até que se equilibra com a resistência que encontra por todas as partes. Se examinamos nossas ações mentais quotidianas, vemos nelas equilíbrios análogos aos que se estabelecem também, quotidianamente, nas demais funções do corpo. Em um e outro caso há ritmos que apresentam uma composição de forças opostas em seus extremos, além da conservação de um equilíbrio geral, o que se vê na alternativa quotidiana de períodos de atividade e de descanso mental; as forças gastas durante aquela são compensadas ou restauradas pelas adquiridas durante o sono; vê-se também que nas alternativas de ardor e de calma de cada desejo, todas chegam a certa intensidade e são equilibradas, seja pelo gasto de força em satisfazer o desejo, seja, ainda que menos completamente, em idealizar a tal satisfação, pois em ambos os casos a atividade chega a seu máximo, ou seja, a um repouso relativo, que constitui um dos extremos da onda rítmica. O equilíbrio se produz também sob uma dupla forma nos casos de dor ou alegria; todo acesso de paixão expressado por gestos veementes chega a um máximo, a partir do qual as forças contrárias o devolvem a um termo médio, e diminuindo sucessivamente em intensidade os acessos, se chega a um equilíbrio mental semelhante ou pouco diferente ao estado anterior ao de alegria ou dor atual. Mas a espécie mais notável de equilíbrio mental é a que estabelece uma correspondência entre as relações que unem nossos estados de consciência e as relações do mundo exterior. Toda conexão externa dos fenômenos que somos capazes de perceber gera por efeito das experiências acumuladas, uma conexão interna de estados mentais, e o resultado para que tende é o de formar uma conexão relativa de estados mentais de uma força proporcional à constância relativa da conexão física à consciência representada. Sabemos que todo movimento segue a linha de menor resistência e que, em igualdade de condições, uma vez iniciada uma via por um movimento, essa rota é mais fácil para todo movimento futuro, e, portanto, a facilidade com que se comunicam as impressões nervosas é, mantidas as demais circunstâncias, tanto maior quanto mais repetidas tenham sido anteriormente pela mesma via. Dessa maneira se estabelece na consciência uma conexão indissolúvel correspondente a uma relação invariável que une, por exemplo, a resistência de um objeto e a extensão e coesão do mesmo, e quando essa conexão interna é tão firme quanto pode sê-lo a externa correlativa, já não muda, e ambas as conexões ou relações se equilibram perfeitamente. Inversamente, relações variáveis entre fenômenos, como as que unem nuvens e chuva, têm por correlativas ou correspondentes relações de ideias, também variáveis ou inseguras, e se, não obstante, alguns aspectos da atmosfera que nos fazem prever bom ou mau tempo correspondem efetivamente o mais das vezes a esses fenômenos, é porque repetidas experiências estabeleceram certo equilíbrio entre a relação mental e a relação física correspondente. Se se observa que entre esses casos extremos existem inúmeras ordens de conexões externas com diferentes graus de constância, e que durante a evolução da inteligência se formam conexões internas, correspondentes a esses diversos graus de coesão das externas, se vê também patente a tendência a se equilibrarem as relações de ideias ou subjetivas com as relações de coisas, ou objetivas. Esse equilíbrio chegaria a se estabelecer em definitivo, quando cada relação de coisas gerasse em nós uma relação de ideias tal que, nas condições convenientes, a relação mental se reproduzisse tão seguramente quanto a relação física. Suponhamos que tenhamos chegado a esse ponto, o que não poderá suceder a não ser em um tempo infinito; a experiência cessaria de produzir novas evoluções mentais, haveria exata correspondência entre fatos e ideias, a adaptação intelectual humana às condições externas seria completa. As mesmas verdades gerais se manifestam na adaptação moral, que é uma espécie de equilíbrio ou algo próximo ao equilíbrio entre os sentimentos, ideias e as regras de conduta correspondentes. As relações dos sentimentos e dos atos entre si, estão determinadas do mesmo modo que as conexões entre as ideias; pois assim como a repetição de séries de ideias associadas facilita a evocação de umas por outras, assim também a descarga nervosa, excitada por tal ou qual sentimento, para chegar a produzir tal ou qual ação, facilita a descarga seguinte de outro sentimento igual em outra ação igual. Resulta daí que se um indivíduo está colocado em condições permanentes que exijam maior quantidade de certa espécie de ação do que antes era exigi da, ou quantidade maior que aquela possível de executar naturalmente - se a pressão dos sentimentos desagradáveis que essas condições produzem ao não se satisfazerem, não o forçasse a executar a dita ação em maior escala - se a execução repetida e prolongada dessa ação sob a influência dessa pressão diminui em alguma coisa a resistência para repeti-la novamente, é indiscutível que tal diminuição é um progresso para o equilíbrio entre a demanda dessa espécie de ação e a oferta do organismo para executá-la. Seja nesse mesmo indivíduo, seja em seus descendentes que continuem vivendo nas mesmas condições, uma repetição continuada e enérgica deve sem dúvida conduzir a um estado em que a maneira de dirigir as ações não ofereça mais dificuldade que as outras várias maneiras já naturais na espécie. Segundo isso, o limite para o qual tende a evolução psíquica, e de que pode aproximar-se assintoticamente, ou seja, cada vez mais, mas sem nele tocar a não ser em um tempo infinito, é uma combinação de desejos que corresponde a todas as diversas ordens de atividades que as circunstâncias da vida fazem nascer, desejos todos proporcionais em intensidade, às necessidades dessas diversas ordens, e todos solidariamente satisfeitos pela satisfação dessas mesmas necessidades. As características que chamamos de hábitos adquiridos, e as diferenças morais entre as raças e nações, produzidas por hábitos que persistem durante várias gerações, nos oferecem inúmeros exemplos dessa adaptação progressiva, que não pode cessar a não ser com o estabelecimento de um completo equilíbrio entre a constituição da raça e suas condições de existência. Duvidar-se-á, talvez, que os equilíbrios descritos nessa seção, possam ser classificados juntamente com os citados no parágrafo anterior; dir-se-á talvez que tomamos analogias por fatos. É, contudo, certo, que ambas as ordens de equilíbrio são puramente físicas. Para demonstrá-lo, seria preciso uma análise muito detalhada, que não cabe neste livro. Bastará apontar, como já fizemos (§71), que os fenômenos que chamamos subjetivamente de estados da consciência, são, objetivamente, modos de força; que a tal ou qual quantidade de sentimento, corresponde tal ou qual quantidade de movimento; que a verificação de um ato corporal qualquer é a transformação de certa quantidade de sentimento ou de desejo na quantidade equivalente de movimento; que esta ação corporal combate contra outras forças, e se gasta no vencê-las; e enfim, que se é necessária a repetição frequente dessa ação, tal se deve à repetição frequente das forças que essa ação deve vencer. Por conseguinte, a existência em um indivíduo de um estímulo psíquico que equilibre ou vença certas condições externas é, literalmente, a produção habitual de alguma parte de força nervosa equivalente em intensidade a essas condições. Assim, pois, o último estado, o limite para o qual tende a evolução psíquica, é um estado em que as espécies e quantidades de forças mentais, produzidas e transformadas em movimentos, sejam equivalentes às diversas ordens e aos diversos graus de forças ambientes que lutam com esses movimentos e os equilibram. § 175. Toda sociedade, considerada em seu conjunto, apresenta uma condição de equilíbrio na adaptação do número de seus indivíduos às condições ou meios de subsistência. Uma tribo humana que viva exclusivamente da caça, da pesca, dos frutos e dos legumes está, como outro grupamento qualquer de animais inferiores, sujeita a oscilações em torno do número médio de indivíduos que a localidade pode alimentar. Uma raça superior pode muito bem, artificialmente e por sucessivos aperfeiçoamentos, ampliar os limites impostos pelas circunstâncias exteriores à sua população; mas sempre dar-se-á uma frenagem no aumento da população quando se chega ao limite temporal correspondente. É verdade que quando o limite varia tão rapidamente quanto acontece hoje entre nós, não se dá realmente uma alta no crescimento; há apenas uma variação rítmica de intensidade. Mas se observamos as causas dessa variação rítmica, se seguimos com atenção o aumento durante os períodos de abundância e a diminuição nos de escassez do número de casamentos, ver-se-á que a força expansiva produz um progresso insólito sempre que a força repressiva diminui, e vice-versa; assim, é como se estabelece entre as duas forças um estado tão próximo do equilíbrio quanto o permitem as condições. As ações internas que constituem as funções sociais fornecem exemplos tão claros como os citados do princípio geral. A oferta e a demanda tendem continuamente a se equilibrar em todas as transações industriais e comerciais, e esse equilíbrio pode ser interpretado do mesmo modo que os precedentes. A produção e a distribuição de um produto industrial resultam de várias forças que produzem movimentos de diversas espécies e intensidades. O preço desse produto é a medida de outro sistema de forças, de outras espécies e intensidades, desenvolvidas e gastas pelo trabalhador que o compra, em outras espécies e quantidades de movimento. As variações de preços representam um balanço rítmico dessas forças. Todas as altas e baixas no rendimento de um capital, e toda mudança no valor de um produto representam um conflito de forças, em que alguma força que predomina temporariamente produz um movimento, equilibrado logo por forças opostas; entre essas oscilações horárias ou diurnas se encontra um ponto médio, que varia mais lentamente, no qual tende a fixar-se o valor, e que na realidade se fixaria, se não se somassem continuamente novas influências às já existentes. Como no organismo de cada indivíduo, no organismo social também são gerados os equilíbrios de estrutura por equilíbrios funcionais. Quando os operários de uma indústria recebem uma demanda maior, e logo, em retribuição a uma remessa maior, recebem também uma maior quantidade de benefícios do que o normal; quando, por conseguinte, as resistências que têm que vencer para subsistir são menores do que as de outros operários, estes mais ou menos invadem a indústria daqueles. Tal invasão continua até que o excesso de demanda desaparece; então, verifica-se uma baixa de salários, até que a resistência total que se necessita vencer para ganhar uma quantidade determinada de subsistência é tão grande no novo trabalho, como o era naqueles de onde veio o reforço de operários. Já vimos que o princípio do movimento pela linha de menor resistência exige que a população se acumule nos lugares em que o trabalho necessário para a subsistência é menor; vemos também agora que os operários fixados em uma localidade vantajosa ou em um trabalho lucrativo devem multiplicar-se até que se estabeleça um equilíbrio aproximado entre essa localidade ou esse trabalho e outras localidades ou trabalhos accessíveis aos mesmos indivíduos. Quando os pais escolhem profissões para seus filhos, discutem as vantagens respectivas de todas possíveis, e escolhem as que acreditam mais lucrativas ou mais condizentes com os fins propostos. A consequência da invasão de algumas indústrias, então mais rentáveis, pelos operários de outras, que estejam superestocadas, é que estas sofrem uma diminuição de pessoal, o que produz um equilíbrio entre a força de cada órgão social e a função que deve desempenhar. As diversas ações e reações industriais, continuamente oscilantes, constituem um equilíbrio móvel dependente, semelhante ao que reina nas funções de um organismo individual, por sua tendência a se fazer mais completo. Durante as primeiras épocas da evolução social, enquanto os recursos da localidade habitada são ainda desconhecidos parcialmente e as artes produtoras se encontram em sua infância, não há senão um balanço temporário e parcial dessas ações, sob a forma de aceleração e desaceleração do progresso ou desenvolvimento social. Mas, quando uma sociedade se aproxima da maturidade do tipo de sua organização, suas várias espécies de atividades industriais, comerciais etc. são quase constantes. Além disso, pode-se observar que o progresso na organização, como no desenvolvimento, conduz a um equilíbrio mais bem estabelecido das funções industriais. Quando a difusão do comércio é lenta e faltam os meios de transporte, o equilíbrio entre oferta e demanda é muito imperfeito: a uma grande superabundância sucede uma grande escassez, formando assim um ritmo, cujos pontos extremos se distanciam muito da média em que se realiza o equilíbrio entre oferta e demanda. Mas quando existem boas estradas, quando os anúncios impressos e documentos se repartem fácil e profusamente, e, sobretudo, quando funcionam as estradas de ferro e telégrafos; quando as feiras periódicas dos primeiros tempos deram lugar deram lugar aos mercados semanais e estes aos diários, encontrou-se um equilíbrio mais perfeito entre o consumo e a produção. Um excesso na demanda é seguido muito mais rapidamente de um aumento na oferta, e as oscilações rápidas de preços entre limites próximos, acima e abaixo do preço médio, são sinais seguros de um equilíbrio perfeito e próximo. Evidentemente esse progresso industrial tem por limite o que Stuart Mill chamou estado estacionário. Quando a população tiver se adensado em todos os lugares habitáveis da Terra, quando os recursos de todas as regiões tiverem sido devidamente explorados, quando as capacidades produtoras estiverem completamente aperfeiçoadas, haverá um equilíbrio quase perfeito entre a fecundidade e a mortalidade e entre a produção e o consumo humanos; cada sociedade não se apartará muito de um determinado número de indivíduos e os ritmos diário e anual de suas funções industriais verificar-se-á com insignificantes perturbações. Contudo, mesmo que estejamos avançando para tal limite, ele se encontra infinitamente distante e não poderemos alcançá-lo completamente. O povoamento da Terra nesse extremo não poderá ser feito simplesmente por reprodução. No futuro, como no passado, existirão ondas rítmicas de emigração, radiando dos povos menos para os mais civilizados; essa operação tem que ser muito lenta e não é fácil que produza uma civilização superior, como pensa Mill. É muito mais crível que a aproximação a ela será simultânea com a aproximação ao equilíbrio completo entre natureza ou constituição e condições de existência do homem. Há ainda outra espécie de equilíbrio social, o que dá por resultado o estabelecimento das instituições governamentais, o qual se aproxima da perfeição, à medida que aquelas se harmonizam com os desejos e as necessidades dos povos. Em política, como na indústria, há uma demanda e uma oferta, em um e outro caso as forças antagônicas produzem um ritmo que oscila primeiramente entre pontos muito distantes, acabando por um equilíbrio móvel de relativa regularidade. Os impulsos agressivos que o homem executa no estado pré-social, as tendências a satisfazer seus desejos sem contemplar os direitos dos demais seres - característica dos animais ferozes - constituem uma força antissocial que tende sempre a dividir e fazer os seres humanos lutar uns contra os outros. Pelo contrário, os desejos que não podem ser satisfeitos a não ser mediante a união ou associação de uns homens contra outros são forças que tendem a uni-los com laços mais ou menos fortes e duradouros. Por uma parte, há mais ou menos resistência em cada homem às restrições que todos os demais põem às suas ações, resistência que tende a estender-se à esfera de ação de cada indivíduo e a limitar as dos demais, e que é evidentemente uma força repulsiva entre os diversos membros de uma sociedade. Por outra parte, a simpatia geral do homem pelo homem, e a especial dos indivíduos de cada raça ou variedade uns pelos outros, unidas a outros sentimentos da mesma ordem que produz e desenvolve o estado social, atuam como forças atrativas para unir e conservar a união entre os indivíduos da mesma origem. Uma vez que as resistências que têm que superar para satisfazer todos os seus desejos, quando vivem isolados, são maiores que as que encontram para o mesmo fim, quando estão associados, fica um excesso de força que impede sua separação. Como todas as forças antagônicas, as exercidas pelos homens uns contra os outros produzem sempre movimentos alternativos que, primeiramente extremados, sofrem uma transformação gradual e se aproximam lentamente de um equilíbrio móvel. Nas pequenas sociedades não desenvolvidas essas tendências antagônicas produzem ritmos mais ou menos marcados. Uma tribo cujos indivíduos viveram juntos por uma ou duas gerações, alcança uma magnitude que não permite a continuidade da união, e ao menor motivo surge um antagonismo suficiente para provocar uma divisão ou separação. Em todas as nações primitivas a união depende muito do caráter do chefe; assim os vemos oscilar entre dois extremos: um despotismo que constrange ou uma desordenada anarquia. Nas nações mais adiantadas do mesmo tipo, encontram-se ações e reações violentas que são, no fundo, da mesma natureza. O despotismo contrariado pelo assassinato é o caráter de todo estado político em que uma repressão intolerável obriga os súditos a romper todo freio social. Todo período de tirania é seguido por outro de anarquia e vice-versa: e esta alternativa nos mostra como as forças antagônicas se equilibram mutuamente; e nesses movimentos e contramovimentos que tendem a se fazer mais moderados, o equilíbrio se aproxima de sua perfeição. Os conflitos entre os conservadores, que acreditam que a sociedade deve conter o indivíduo, e os reformistas, que querem a plena liberdade do indivíduo, dentro da sociedade, têm limites cada vez mais estreitos, de sorte que o predomínio temporal de uma ou outra teoria produz um desvio menos marcado do estado médio. Esse equilíbrio está tão aperfeiçoado entre nós, que as oscilações são relativamente insignificantes, e continuará até que o balanço entre as forças antagônicas não se separe do estado de equilíbrio perfeito, a não ser por diferenças insignificantes. De fato, já vimos que a adaptação da natureza humana às condições de sua existência não pode se deter até que as forças internas que se chamam sentimentos se equilibrem com as forças externas com que lutam. O que caracteriza o estabelecimento desse equilíbrio é um estado da natureza humana e da organização social tais que o indivíduo não tenha desejo algum que não possa ser satisfeito sem sair de sua esfera ordinária de ação, enquanto a sociedade não imponha mais limites à liberdade individual além daqueles que o indivíduo respeite livremente. A extensão progressiva da liberdade dos cidadãos e a revogação conseguinte das restrições políticas; tais são os graus por que nos elevamos a esse estado. Enfim, a abolição de todas as restrições impostas à liberdade de cada um, à exceção das que se referem à liberdade dos demais, é o resultado do equilíbrio completo entre os desejos do homem e a conduta que impõem as condições ambientes. Naturalmente, neste caso, como nos anteriores, há um crescimento da heterogeneidade. Há pouco deduzimos que cada passo da evolução mental consiste no estabelecimento de alguma nova ação interna correlativa com alguma outra externa, de alguma conexão adicional de ideias e sentimentos correspondente a uma conexão de fenômenos ainda incógnita ou sem antagonista. Deduzimos também que implicando cada nova função mental numa nova modificação de estrutura, com aumento subsequente de heterogeneidade, a qual, em função disso, deve seguir aumentando enquanto as relações externas, que impressionam o organismo, não são equilibradas por relações internas correlativas. De onde se deduz que o aumento da heterogeneidade não pode cessar, senão quando o equilíbrio seja completo. Evidentemente, o mesmo deve suceder na sociedade: todo aumento de heterogeneidade no indivíduo deve implicar direta ou indiretamente, como causa ou consequência, em algum aumento de heterogeneidade no arranjo ou coordenação das sociedades. Enfim, não se pode chegar ao limite da complexidade social senão quando se estabeleça o equilíbrio completo e definitivo entre as forças sociais e as individuais. § 176. Chegamos, por fim, a uma última questão que talvez esteja já formulada mais ou menos claramente na consciência do leitor, quando percorre este capítulo. "Se a evolução, em todas as suas formas corresponde a um aumento de complexidade, em estrutura e funções, acessório da operação universal do estabelecimento do equilíbrio, e se o equilíbrio deve terminar no repouso completo, para que fim tendem todas as coisas? Se o Sistema Solar perde lentamente suas forças, se o Sol perde seu calor, ainda que tão lentamente que possivelmente durará milhões de anos, se a diminuição da radiação solar traz consigo uma diminuição da atividade nas operações geológicas e meteoro lógicas, como também na quantidade de vida animal e vegetal; se a sociedade e seus indivíduos dependem dessas forças que tendem gradualmente a se extinguir, não fica evidente que tudo quanto vive tende a uma morte universal?" Parece fora de dúvida que esse estado de morte universal seja o limite da operação que por toda parte se efetua; mas, não haverá depois uma operação ulterior que ressuscite essas mudanças e inaugure uma nova vida? Essa questão merecerá discussão mais adiante. Por hora, basta que contemplemos o fim mais próximo de todas as transformações que descrevemos como sendo um estado de repouso, o qual, como os demais princípios, pode deduzir-se a priori do primeiro de todos, o da persistência da força. Vimos (§74) que os fenômenos de todas as ordens só podem ser explicados como efeitos de forças de atração ou repulsão universalmente coexistentes. Essas forças são sem dúvida modos complementares da Força - último dado da consciência. Assim como a igualdade da ação e reação é um corolário da persistência da força, porque sua desigualdade implicaria em que a força-diferença fosse nula ou tivesse origem no nada; assim também não podemos conceber uma força de atração sem ter ao mesmo tempo uma força de repulsão igual e oposta; porque toda experiência de uma tensão muscular (única forma cognoscível imediata de uma força de atração) pressupõe uma resistência equivalente que se revela ou na pressão de nosso corpo contra objetos vizinhos ou na absorção da força que lhe comunica movimento, ou em ambos; resistência que só podemos conceber como sendo igual à tensão, a menos que queiramos negar a persistência da força. Dessa correlação necessária resulta a incapacidade em que nos encontramos de interpretar quaisquer fenômenos a não ser em função desses fenômenos correlativos, incapacidade igualmente revelada na necessidade que temos de conceber forças estáticas, que manifesta a matéria tangível, como devidas à atração e repulsão de seus átomos; e na necessidade, para conceber as forças dinâmicas, que se exercem através do espaço, de considerá-lo cheio de átomos ligados por forças análogas. Assim, pois, da existência de uma força, cuja quantidade não pode ser alterada, se segue, como corolário, a existência coextensiva de duas formas opostas de força, formas sob as quais nos obrigam as condições de nossa mente a representar-nos a força absoluta ou incognoscível. Mas se as forças de atração e repulsão coexistem universalmente, por toda a parte, segue-se, como já vimos, que todo movimento encontra, inevitavelmente, uma resistência. As unidades de matéria sólida, líquida, gasosa ou etérea que infalivelmente existirão no espaço que atravessam os corpos em movimento, apresentam a estes uma resistência, função da inércia ou da coesão, ou de ambas. Em outras palavras: devendo ser mais ou menos desviado o meio que ocupa os lugares atravessados por todo corpo em movimento, perde esse corpo tanta quantidade de movimento, quanto recebe o meio desviado ou removido. De tal condição, em que se verifica todo movimento, se deduzem dois corolários: o primeiro, que essas subtrações contínuas, produzidas pela comunicação do movimento de um corpo ao meio resistente em que se move, devem necessariamente fazer cessar este movimento ao fim de mais ou menos tempo; e o segundo, que esse movimento não cessará até que essas subtrações não anulem ou destruam o mesmo; ou em outras palavras: o movimento terá continuidade até que se estabeleça o equilíbrio entre as forças que atuam sobre o móvel; e sempre se estabelecerá esse equilíbrio. Esses dois princípios, por sua vez, são corolários da persistência da força. De fato, se todo ou parte de um movimento pudesse desaparecer de outra maneira que não fosse comunicando-se aos que, mais ou menos, se lhe resistem ou opõem, desapareceria, reduzindo-se a nada, sem produzir efeito algum, o que negaria a persistência da força. Reciprocamente, dizer que o meio atravessado pode ser posto em movimento, deslocado de sua posição pelo móvel, sem que este perca movimento, seria dizer que o movimento naquele meio poderia nascer do nada, o que também contradiz a persistência da força. Logo, essa verdade primordial é também garantia imediata de que as mudanças em que consiste a evolução não podem ter fim a não ser quando se chegue a um equilíbrio completo, e de que esse equilíbrio efetivamente se estabelecerá. As proposições que há pouco formulamos, relativas ao estabelecimento e à conservação dos equilíbrios móveis, sob seus diversos pontos de vista, são também apodíticas ou necessárias, pois são também dedutíveis desse princípio supremo do Universo. É um corolário da persistência da força, que os vários movimentos de uma massa e de todas as suas partes devem ser dissipados pelas resistências que hão de vencer e por isso aqueles de menor intensidade ou que encontrem maior resistência, ou ainda reúnam ambas as condições, devem cessar primeiro, enquanto os demais devem continuar. Logo, em toda massa animada de vários movimentos, os mais débeis e os que encontrem maior resistência devem cessar primeiro e os mais fortes e que encontrem menor resistência devem continuar por longo tempo; assim se estabelecem os equilíbrios móveis dependentes e independentes; e, como corolário, a tendência à conservação desses equilíbrios móveis: porque os novos movimentos, comunicados por uma força perturbadora aos elementos de um equilíbrio móvel, devem ser de intensidade e espécie tais que não possam ser dissipados ante os movimentos preexistentes, em cujo caso dariam fim ao equilíbrio móvel; ou vice versa, de intensidade e espécie tais que possam ser dissipados pelos movimentos anteriores, e então o equilíbrio móvel perturbado logo se restabelece. Assim, pois, da persistência da força se deduzem, não apenas os equilíbrios diretos e indiretos, que se estabelecem em todos os lugares em que se acabam as várias formas de evolução, como também os equilíbrios móveis menos apreciáveis, restabelecidos após sua perturbação. Esse último princípio explica a tendência de todo organismo - vix medicatrix - alterado por alguma força anormal, a voltar a seu equilíbrio; e a adaptação dos indivíduos e das espécies a novas condições de existência. Outro exemplo comprova tal princípio: o progresso gradual do homem para a harmonia entre suas condições de existência e suas necessidades psíquicas; pois se são corolários desse princípio todas as características da evolução, esta não pode terminar no mundo psíquico, a não ser pelo estabelecimento das máximas perfeição e felicidade. XXIII A dissolução § 177. Quando, no capítulo XII, percorremos rapidamente o ciclo de fenômenos que cumpre todo ser na sua passagem do imperceptível para o perceptível e vice-versa, demos nomes bem distintos a esses dois modos opostos de redistribuição da matéria e do movimento, evolução e dissolução, e descrevemos, de maneira geral, a natureza dessas duas operações e as respectivas condições de sua verificação. Examinamos depois, em todos os seus detalhes, os fenômenos da evolução nas suas formas principais, seguindo-os até o equilíbrio em que todos terminam. Para atingir nossa meta, devemos, pois, examinar agora com alguma detenção, os fenômenos da dissolução. Não se trata de dizer que devemos insistir longamente no estudo da dissolução, a qual não apresenta, de maneira alguma, tão variados e interessantes fenômenos como a evolução; mas devemos sem dúvida dizer algo mais, além das generalidades já citadas. Sabemos que nenhuma dessas duas operações opostas ou antagônicas se processa com total independência da outra, e que toda mudança no sentido de uma delas é um resultado - diferença de seu mútuo conflito. Toda massa em evolução, mesmo que, em resumo, perca movimento e se integre, sempre recebe também movimento em um ou outro sentido, e, por conseguinte, enquanto se integra, também se desintegra, e a partir do momento em que deixam de predominar os movimentos de integração, o movimento recebido, mesmo que destruído parcialmente pela dissipação, tende a produzir, e produz finalmente, a transformação inversa, a dissolução. Quando termina a evolução; quando a massa perdeu seu excesso de movimento e recebe do meio ambiente tanto movimento quanto dissipa; quando chega ao equilíbrio em que terminam todas as mudanças ou fenômenos, fica sujeita a todas as ações externas que podem aumentar seu movimento (o da massa), e que com o tempo darão às diversas partículas, paulatina ou repentinamente, um excesso de movimento capaz de produzir a desintegração. Conforme o equilíbrio da massa e suas várias partes seja mais ou menos instável, sua dissolução dar-se-á mais ou menos rapidamente, em poucos dias ou minutos, ou se estendendo por milhares ou por milhões de anos. Mas todo agregado, exposto como está a todos os movimentos a ele comunicados, não só dos outros agregados próximos, como de todo o Universo - toda a vida e movimento - perecerá, isolado ou em conjunto com os agregados que estão próximos. Está aí a causa geral de toda dissolução; vejamos agora como ela se efetua nos agregados de diversas ordens, e sendo inverso o curso das mudanças de dissolução ao daquelas de evolução, podemos também seguir em seu estudo um método inverso àquele seguido nas diversas ordens sucessivas da operação progressiva, no sentido do mais complexo para o mais simples. § 178. Se considerarmos a evolução de uma sociedade como sendo a uma só vez um incremento no número de indivíduos integrantes de um corpo político constituído de tal ou qual modo, um incremento nas massas e variedades de partes constituintes das divisões ou subdivisões desse corpo social, um incremento no número e variedade de funções ou ações sociais e um incremento no grau de combinações dessas massas e suas funções, veremos que a dissolução social obedece à lei geral enquanto é, do ponto de vista material, uma desintegração, e do ponto de vista dinâmico um decréscimo dos movimentos totais ou de massas e um incremento dos movimentos parciais ou moleculares, e obedece também à lei, enquanto sua causa (da dissolução social) é um excesso de movimento recebido do exterior seja em um ou outro sentido. Em consequência, pode-se ver claramente que a dissolução social que resulta da invasão de uma nação por outra, e que, como mostra a história, é suscetível de se verificar quando a evolução social terminou naquela e começou sua decadência, não é, do ponto de vista mais geral, senão a introdução de um novo movimento externo. Quando, como muitas vezes aconteceu, a sociedade vencida é dissolvida ou dispersada, essa dissolução é materialmente a cessação dos movimentos combinados que executavam seus diversos elementos militares, civis etc., e a queda em um estado no qual não se verificam mais que movimentos individuais isolados, ou seja, que o movimento das unidades substituiu o movimento das massas. Não se pode negar igualmente que quando uma praga ou uma fome interna, ou uma revolução, transmite à sociedade um choque não usual que causa desordem ou produz um princípio de dissolução, há como resultado um incremento nos movimentos desintegradores e um decréscimo nos de integração. À medida que cresce a desordem, os atos políticos, primeiro combinados sob a ação de governo, se descombinam, e fazendo-se antagônicos uns de outros, produzem motins e revoltas. Simultaneamente, as operações industriais e comerciais, coordenadas na totalidade do corpo político, se interrompem, e as únicas dessas transações que continuam são as locais e as pequenas. Toda nova mudança desorganizadora diminui as operações combinadas, convenientes para satisfazer as necessidades humanas, e deixa que as satisfaçam no possível por operações isoladas. O Japão nos fornece um bom exemplo da maneira pela qual se efetuam essas desintegrações em uma sociedade que chegou ao limite do desenvolvimento do tipo a que pertence, e portanto, a um estado de equilíbrio móvel. O edifício social desse povo permaneceu durante longo tempo no mesmo estado, até que recebeu o choque da civilização europeia, em parte por uma agressão armada, em parte pela influência das ideias; desde aquele momento histórico, o edifício social japonês começou a desmoronar e está realmente em um estado de dissolução política ao qual indubitavelmente seguirá uma reorganização; mas mesmo que assim aconteça, o primeiro efeito que a nova força exterior terá produzido na dita sociedade terá sido um começo de dissolução, uma mudança de movimentos integrados em movimentos desintegrados. Da mesma natureza é também a causa da dissolução que se manifesta em uma sociedade em que começa a decadência, depois de chegar ao apogeu do desenvolvimento de que era suscetível. A diminuição do número de seus membros é em parte resultado da emigração, pois uma sociedade constituída sob o plano definitivo de sua evolução não pode ceder e modificar-se sob a influência do crescimento populacional, pois enquanto pode modificar-se está ainda em evolução. Não sendo contido o excesso populacional continuamente produzido por uma organização que a ele se adapte, ele se dispersa, e as influências que exercem sobre essa população em excesso as sociedades vizinhas auxiliam a emigração, ou seja, determina-se um acréscimo de movimentos não combinados, em vez de um aumento de movimentos combinados. À medida que a sociedade adquire uma forma mais rígida e se faz menos capaz de refundir-se e tomar a forma que torna possível o êxito na luta com as sociedades vizinhas, o número de cidadãos que podem viver nesse quadro inextensível diminui, tanto pela emigração quanto pela falta de reprodução que acompanha a carência de subsistência. Outra nova forma de decadência ou dissolução motivada pelo excesso do número de mortes prematuras sobre o número de sobreviventes que chegam à idade reprodutiva, é também um decréscimo da quantidade total de movimentos combinados, a par de um crescimento na quantidade de movimentos isolados ou não combinados, o que veremos comprovado ao tratar da dissolução de cada indivíduo. Tendo-se, pois, em conta as diferenças que separam as massas sociais daquelas das outras espécies; se consideramos que aquelas estão formadas de unidades, fraca ou indiretamente unidas por forças muito complexas e de diversas maneiras, concluir-se-á também que a dissolução das sociedades obedece à lei geral com tanta precisão quanto razoavelmente poder-se-ia supor. § 179. Passando agora desses agregados superorgânicos aos orgânicos, veremos que a dissolução se deve também a uma desagregação de matéria, produzida por um movimento adicional procedente do exterior. Examinemos primeiro a transformação, e após estudaremos sua causa. A morte, ou o equilíbrio final que precede a dissolução, é o ponto de parada de todos os movimentos integrados que nascem durante a evolução. Cessam primeiro os movimentos totais ou de locomoção; depois os parciais voluntários, como os dos membros, e por fim os involuntários, como os dos aparelhos digestivo, respiratório e circulatório. Cessa, em resumo toda transformação de movimento molecular em movimento de massas, e ao contrário, todos os movimentos de massas se transformam em movimentos moleculares. Que acontece, então? Não podemos dizer que há uma nova transformação de movimento sensível em movimento insensível, pois aquele já não existe. Contudo, a dissolução implica em um crescimento de movimentos insensíveis, uma vez que esses são maiores nos gases que durante a dissolução se desprendem, do que nos líquidos e sólidos de que provêm. Todas as unidades químicas complexas que constituem um corpo orgânico possuem um movimento rítmico, do qual participam as unidades componentes simples. Quando a decomposição cadavérica desagrega essas moléculas compostas e seus elementos adquirem forma gasosa, não apenas cresce o movimento implícito na difusão, como os movimentos que as moléculas compostas possuem se dissolvem em movimentos de suas moléculas elementares. De forma que a dissolução orgânica nos apresenta primeiro o fim da transformação de movimentos moleculares em movimentos de massas, o que constitui a evolução do ponto de vista dinâmico, e em seguida a transformação do movimento de massas em movimentos moleculares. Até agora não vemos que a dissolução orgânica satisfaça plenamente a definição geral da dissolução, ou seja, "uma absorção de movimento acompanhada de uma desintegração de matéria"; esta última operação é sem dúvida evidente, mas nem tanto o é a absorção de movimento na dissolução especial de que tratamos. Pode-se, certamente, inferir essa absorção no fato de que as partículas integradas antes em uma massa sólida que ocupava um espaço reduzido se separaram umas das outras e ocupam muitíssimo mais espaço, uma vez que o movimento necessário para essa transformação deverá ser proveniente de algum lugar, mas essa origem não é visível a priori; contudo, chegaremos a descobri-la sem maiores esforços. Inicialmente, a temperaturas abaixo da temperatura de fusão do gelo, não há decomposição de matéria orgânica. Os movimentos integrados das moléculas integradas até um grau elevado não se transformam, a essa baixa temperatura, em movimentos das moléculas elementares. Os corpos mortos, conservados a essas baixas temperaturas não se decompõem, por longo que seja o período de sua conservação; são testemunhas os mamutes, elefantes fósseis de uma espécie extinta há muito, encontrados nos gelos da Sibéria, os quais, embora mortos há milhares de anos, tinham a carne tão fresca, ao serem descobertos, que os lobos a devoraram em seguida. Como explicar essas conservações excepcionais? Um corpo conservado a uma temperatura abaixo de 0º C não recebe senão quantidades insignificantes de calor ou movimento molecular, ou em outras palavras, um corpo orgânico que não recebe do meio ambiente uma quantidade de movimento molecular superior a um certo limite não entra em dissolução. Comprovam essa lei as variações na intensidade da dissolução que acompanham as variações de temperatura; é sabido que todas as substâncias putrescíveis empregadas em nossa alimentação se conservam mais no tempo frio do que no calor. Certo é também, embora não tão divulgado, que na zona tórrida a decomposição orgânica é mais rápida do que nas zonas temperadas, e nestas mais que nas glaciais. Assim, então, todo organismo morto recebe mais ou menos movimento para substituir o absorvido pelas moléculas dispersas dos gases desprendidos, segundo o meio ambiente apresente maior ou menor temperatura, ou seja, mais ou menos movimento molecular. Também são provas evidentes da lei as decomposições rapidíssimas produzidas por altas temperaturas artificiais, mediante as quais preparamos nossos alimentos: as suas superfícies, carbonizadas algumas vezes, nos provam que o movimento molecular comunicado pelo fogo dissipou os elementos gasosos do alimento, oxigênio, hidrogênio e nitrogênio, deixando apenas o elemento sólido, o carbono. As massas que mais claramente põem em evidência a natureza e as causas da evolução revelam também de um modo análogo a natureza e as causas da dissolução. Nas massas em cuja composição entra essa matéria particular, à qual uma grande quantidade de movimento molecular próprio confere uma grande plasticidade ou aptidão para que se desenvolva em formas de composição muito complexa (§103), basta uma pequena quantidade de movimento molecular adicionada à quantidade já existente para operar sua dissolução. Mesmo quando a morte produz um equilíbrio estável nas massas sensíveis ou órgãos de um corpo, como o equilíbrio das unidades insensíveis ou moléculas dos humores e tecidos é instável, uma débil força incidente basta para destruí-lo e iniciar a desintegração. § 180. A maioria dos agregados inorgânicos, tendo tomado essas formas densas nas quais há relativamente pouco movimento molecular conservado, durante muito tempo permanecem sem passar por nenhuma mudança sensível. Cada qual perdeu tanto movimento ao passar do estado difuso para o estado integrado quanto seria necessário para a passagem inversa; pode, então, transcorrer imenso tempo antes que encontrem no ambiente condições de receber a quantidade de movimento necessária para sua desintegração. Examinemos primeiramente os agregados inorgânicos que conservam bastante movimento molecular para experimentar facilmente a dissolução. Pertencem a essa classe os líquidos e os sólidos que se volatilizam sob condições ordinárias - água que se evapora, carbonato de amônia que se espalha pela dispersão de suas moléculas. Em todos esses casos há movimento absorvido, e a dissolução se processa com uma rapidez proporcional à quantidade de calor ou movimento absorvida do meio ambiente pela massa. Outro caso é o das moléculas de um agregado sólido ou de integração mais adiantada, difundidas ou dispersas entre as de outro corpo líquido ou menos integrado, como nas soluções aquosas. Uma evidência de que neste caso a desintegração da matéria também vai acompanhada de absorção de movimento é que as substâncias solúveis se dissolvem com tanto maior rapidez, em geral, quanto mais alta é a temperatura da água, em igualdade de todas as demais condições. Uma outra prova, e ainda mais decisiva, é a de que se se dissolvem cristais em um líquido, a igual temperatura, esta baixa, e às vezes muito, durante a dissolução, o que significa que o movimento que dispersa as moléculas do sal entre as da água é gerado a expensas do que esta possui, ressalvados os casos em que entre esses dois corpos exista uma verdadeira reação química. As massas sedimentares, acumuladas em estratos, comprimidos depois por camadas sobrepostas, de milhares de pés de espessura, e solidificadas através do tempo, podem talvez permanecer inalteradas por milhões de anos, sendo nos milhões de anos subsequentes inevitavelmente expostas a ações de desintegração. Levantadas com outras massas semelhantes em um continente, desnudadas e expostas à chuva, às geadas e às condições desgastantes das geleiras, experimentam suas partículas gradual separação, transporte e completa dispersão. Ou então, como costuma acontecer, alcançados pelas marés, os penhascos que formam, erodidos pela base, desmoronam de tempos em tempos, partindo-se em fragmentos de todos os tamanhos; os maiores, por sua vez, sofrendo a ação das ondas e das tempestades se transformam em seixos e cascalho e finalmente em areia e lama. Mesmo se porções dessas camadas desintegradas se acumularem em conglomerados de sedimentos logo solidificados, a operação de dissolução, ainda que paralisada durante um grande período geológico, acaba por ser retomada. Como mais de uma costa nos mostra, o próprio conglomerado, cedo ou tarde vai experimentar a mesma desagregação, e suas massas cimentadas, feitas de componentes heterogêneos, jazendo nas praias, são rompidas e sujeitas a choques e esmagamentos, ou seja, aos movimentos mecânicos que lhes são comunicados. Quando não se efetua assim, a desintegração se processa pela comunicação do movimento molecular. Uma camada consolidada, situada numa área de abatimento de terreno, e se aproximando mais e mais das regiões ocupadas pela matéria fundida, tem suas partes reduzidas pelo calor ao estado plástico e finalmente fundidas na lava. Quaisquer que sejam as transformações subsequentes, a que ela experimenta agora é uma absorção de movimento e uma desintegração de matéria. Toda massa inorgânica, simples ou composta, pequena ou grande, seja um cristal ou cadeia de montanhas, experimentará, cedo ou tarde, mas inevitavelmente, mudanças contrárias às que experimentou durante sua evolução. Isso não quer dizer que voltará por completo e em seguida ao estado imperceptível como volta a imensa maioria, senão a totalidade dos seres orgânicos; mas sem dúvida, todo passo na desintegração é um passo no sentido do imperceptível, e nada impede a crença em que chegará a esse estado a matéria inorgânica ao fim de um tempo indefinido, e depois de oscilações maiores ou menores de integração e desintegração. É, pelo contrário, muito provável que em época futura, imensamente remota, todos os agregados inorgânicos, com todos os despojos ainda não dissipados dos organismos se reduzam ao estado de máxima difusão gasosa, completando assim o ciclo de suas mudanças. § 181. Depois que a Terra, considerada como um todo, tiver atravessado toda a série de suas transformações ascendentes ou evolutivas, encontrar-se-á, como todos os seres, sujeita às influências do meio ambiente, e no curso das incessantes e inúmeras mudanças que se processam no Universo, sempre em movimento, deve sofrer nosso globo a ação de forças bastante poderosas para desintegrá-lo, mesmo que isso ocorra em uma época que não é possível prever. Vejamos que forças são essas. Em seu ensaio sobre a ação recíproca das forças naturais, o professor Helmholtz estabelece o equivalente calorífico do movimento de translação da Terra, tal como se pode calcular com fundamento nos dados admitidos por joule. Esse equivalente é, segundo o referido cálculo, igual à quantidade de calor que produziria a combustão de quatorze globos de carvão do mesmo tamanho, cada um, da Terra. Supondo para esta uma capacidade calorífica igual à da água, a massa terrestre se elevaria a uma temperatura de 11.200º C, se por qualquer causa fosse bruscamente parada em seu movimento de translação. A essa temperatura, é evidente que a maior parte de sua massa estaria em estado líquido ou gasoso. Se uma vez em repouso a Terra caísse sobreo Sol, como seria natural, não existindo já então a força centrífuga, esse choque geraria uma quantidade de calor 400 vezes maior do que a que antes citamos. Pois bem: embora esse cálculo pareça inútil para nosso atual objetivo, pois não é provável a súbita parada da Terra, como também não o é sua queda sobre o Sol, há, não obstante, como já indicamos (§171), uma força contínua que tende a levar a Terra e todos os planetas para o Sol. Essa força é a resistência do éter, que segundo muitos astrônomos já se revela, aproximando umas das outras, nas órbitas dos antigos planetas. Se, então, esse efeito se verifica, chegará um tempo, ainda que longínquo, que a órbita terrestre se confundirá com o Sol, e mesmo que a quantidade de movimento total, transformável então em movimento molecular, não seja tão grande quanto a calculada por Helmholtz, bastará muito provavelmente para volatilizar a Terra. A dissolução da Terra e demais planetas não significa a dissolução do Sistema Solar. Em seu conjunto, todas essas mudanças no Sistema Solar nada mais são do que incidentes concomitantes da integração da massa total do sistema. Depois de ter percorrido seu processo evolutivo e chegado a um estado de equilíbrio móvel, cada massa secundária nele permanece até que em virtude da integração geral do sistema, esta massa se incorpora à massa central; implica essa união na transformação de movimento de massas em movimento molecular; e determina certamente um aumento na quantidade de movimento dispersado sob a forma de luz e calor; mas não pode dilatar indefinidamente a época da integração completa da massa total do sistema, cuja integração dar-se-á quando se haja difundido no espaço o excesso de movimento latente que hoje possui tal massa. § 182. Chegamos então à questão levantada no fim do capítulo anterior. (Embora este capítulo seja novo, a presente seção, bem como a que lhe segue, não são novas. Na primeira edição haviam sido incluídas na seção final do capítulo anterior. Embora substancialmente a mesma daquela edição, a argumentação foi em alguns pontos abreviada e em outros reforçada com matéria adicional) A evolução, em seu conjunto e em seus detalhes tende ao repouso completo ou absoluto? É esse estado de repouso chamado morte, que termina a evolução dos seres orgânicos, típico da morte universal na qual a evolução deve terminar? Devemos imaginar como fim do Universo o espaço infinito, povoado por inumeráveis sóis imóveis eternamente no futuro? A essa pergunta puramente especulativa só se pode dar uma resposta especulativa, e que, menos que como uma resposta positiva, deve ser considerada como uma objeção à hipótese de que o estado imediato é o estado definitivo. Se extremamos o argumento de que a evolução deve terminar em um equilíbrio ou repouso completo, deduz-se que, aconteça o que acontecer em contrário, a morte universal continuará indefinidamente, será lícito indicar como, extremando ainda mais o raciocínio, devemos inferir uma nova vida universal após a morte universal. Vejamos os fundamentos ou razões para essa inferência. Já vimos que o estabelecimento do equilíbrio, por longe que queiramos segui-lo, não é mais que um resultado relativo. A dissipação do movimento em um corpo, por sua comunicação à matéria sólida, líquida, gasosa ou etérea, dá a esse corpo uma posição fixa com respeito a essa matéria à qual comunica seu movimento; mas os demais movimentos internos continuam. Além disso, esse movimento, cujo desaparecimento produz o equilíbrio relativo, não foi realmente perdido, mas apenas transferido. Seja se transformando direta e imediatamente em movimento molecular, como sucede com o Sol, seja, como acontece na maioria dos casos que contemplamos ao nosso redor, se transformando diretamente em movimentos sensíveis menores, e estes por sua vez em outros ainda menores até que se tornem insensíveis, pouco importa. Em todos os casos o resultado é que, qualquer que seja o movimento da massa dissipado, ele reaparece como movimento molecular através do espaço. As questões que devemos considerar são, pois, as seguintes: uma vez estabelecidos os equilíbrios que põem fim à evolução, ficam outros ainda por se estabelecer? Há outros movimentos de massas ainda transformáveis em moleculares? E se os há, o que deve acontecer quando o movimento molecular gerado pela sua transformação (a desses novos movimentos totais) se soma aos movimentos moleculares já existentes? À primeira pergunta pode-se responder que, efetivamente, existem movimentos ainda não alterados por todos os equilíbrios até agora considerados, ou seja: os movimentos de translação das estrelas, sóis imensos rodeados provavelmente como o nosso de planetas. Faz já muito tempo que se abandonou a crença na fixidez das estrelas, pois as observações demonstraram que muitas delas têm movimentos próprios; o próprio Sol viaja para a constelação Hércules com uma velocidade de um milhão de milhas diárias aproximadamente, e também, como é provável, as demais estrelas, ou ao menos as mais próximas, se movem na mesma direção que o nosso Sol, e sua velocidade absoluta pode ser, e muito provavelmente será, muito maior que a relativa ou aparente do Sol. Pois bem: de todas as mudanças que podem ocorrer no Sistema Solar, mesmo quando cheguem a integrar uma mesma massa todos os componentes do mesmo sistema, e difundir no espaço todos os seus movimentos relativos sob a forma de movimento insensível, nenhum pode influir nas translações siderais; forçoso é, pois, pensar que se há tendência ao equilíbrio, será por operações subsequentes. À outra questão, isto é, a que lei obedecem os movimentos das estrelas, responde a astronomia: à lei da gravitação, segundo já foi comprovado nos movimentos das estrelas duplas, que calculados segundo essa lei, e observados com instrumentos, demonstraram concordância entre cálculo e observação. Se, então, esses corpos longínquos que chamamos estrelas são centros de gravitação, é lógico que gravitem todas, com mais ou menos força, individual e coletivamente, umas para as outras. Mas então, o que deverá acontecer, ainda que seja ao cabo de milhões de séculos, a essas massas que se movem em um espaço imenso, gravitando umas para as outras? Só existe uma resposta possível: não podem conservar sua distribuição atual, que é incompatível até com um equilíbrio móvel temporal. Então, não há outra hipótese mais lógica a ser adotada que não aquela resumida nas três proposições seguintes: 1ª, que as estrelas se movem; 2ª, que se movem em obediência à lei gravitacional; e 3ª, que atendendo à sua atual distribuição ou coordenação, não podem mover-se de acordo com a lei gravitacional sem experimentar uma redistribuição. Se desejamos saber de que espécie será essa redistribuição, será lógico inferir que será também uma concentração progressiva. Estrelas atualmente dispersas devem aglomerar-se; as aglomerações atualmente existentes (exceto talvez as globulares) devem se tornar mais densas e fundirem-se depois umas com as outras. A estrutura dos céus, tanto no conjunto quanto nos detalhes, nos indica que sua integração progrediu, e as nuvens de Magalhães são um exemplo bem marcante do grau máximo a que parece ter chegado. São essas nuvens dois grupos compostos não só de estrelas isoladas, mas também de outros grupos regulares e irregulares de nebulosas e nebulosidades difundidas, e fornecem boa prova de que se formaram pela gravitação mútua de massas ou partículas antes difundidas em imenso espaço, pois os espaços celestes em volta estão completamente vazios; a menor dessas duas nuvens está, como disse Humboldt, em uma espécie de "deserto despovoado de estrelas". Qual deverá ser o limite dessas concentrações? Quando a atração mútua de duas estrelas predomina o bastante para aproximá-las, forma-se uma estrela dupla, porque as atrações das outras impedem que elas se movam em linha reta para seu centro comum de gravidade. A atração mútua de pequenos grupos estelares, cada qual animado de movimentos próprios, pode chegar a produzir grupos binários. Com a continuação do processo, contudo, esses grupos estelares se tornam maiores e devem se mover diretamente na direção uns dos outros, formando grupos de densidades crescentes. Para tanto, se nas primeiras épocas de concentração há uma grande probabilidade de que estas massas, embora gravitem mutuamente umas sobre as outras, não cheguem a se unir em apenas uma, é evidente também que essa união vai se verificar conforme progrida a concentração. Esta conclusão tem a seu favor uma grande autoridade, a de Sir John Herschel, que falando dos numerosos e diversamente agregados grupos de estrelas, cuja existência nos é revelada pelo telescópio, e citando a opinião emitida por seu pai de que os grupos mais difusos e mais irregulares são os grupos "globulares em estado de condensação menos avançada", observa seguidamente que "em todo conjunto de corpos sólidos animados de movimentos independentes, os de sentidos opostos devem experimentar choques e colisões, ou pelo menos destruição de velocidade, aproximação do centro de atração preponderante, enquanto os dirigidos no mesmo sentido ou em sentidos convergentes devem tomar um movimento circular de caráter permanente". Pois bem: o que Herschel diz dos grupos pequenos não pode ser estranho aos grupos grandes, e em consequência, a condensação ou concentração que acabamos de inferir deve seguramente conduzir a uma integração cada vez mais frequente. Resta-nos considerar as consequências da perda de velocidade que acompanha essa integração. O movimento sensível que desaparece não pode ser destruído, como sabemos; deve transformar-se em movimento insensível. Que efeito produzirá então este? Já vimos que se a Terra se detivesse e caísse sobre o Sol, se volatizaria provavelmente toda sua massa. E se essa quantidade de movimento, relativamente tão débil, equivale ao movimento molecular suficiente para reduzir ao estado de gás muito rarefeito toda a massa terrestre, qual será a quantidade de movimento molecular equivalente ao movimento de duas estrelas que se aproximam com enormes velocidades quando finalmente chegam a parar por seu choque ou união? Parece fora de dúvida que semelhante colisão deverá reduzir a matéria de tais estrelas a uma tenuidade quase inconcebível, análoga à que atualmente nos apresentam as nebulosas. E se esse é o efeito imediato, qual será ou deverá ser o efeito posterior? Sir John Herschel, na passagem já citada, diz que "as estrelas cujos movimentos estejam dirigidos no mesmo sentido ou em sentidos convergentes devem tomar um movimento circular de caráter permanente". Contudo, até agora não consideramos o problema a não ser do ponto de vista mecânico, supondo que as massas que mutuamente se param continuam sendo tais massas, e quando John Herschel escrevia essa passagem não se elevava nenhuma objeção contra ele, por não ser ainda conhecida a correlação das forças. Mas agora, sabendo que em razão das enormes velocidades com que se movem as estrelas, sua mútua detenção as volatizaria e dispersaria sua matéria, o problema se transforma em outro, que exige, portanto, outra solução. Com efeito, a matéria difusa produzida por esses conflitos deve formar um meio resistente na região central do grupo cujos outros membros, ainda não difusos, atravessarão tal região, ao mover-se em suas órbitas, e ao atravessá-la perderão velocidade; aumentando toda nova colisão, como é natural, esse meio resistente, e diminuindo cada vez mais as velocidades dos astros que ainda se movem nas suas órbitas, deve dificultar o estabelecimento do equilíbrio no sistema e tender portanto a produzir colisões mais frequentes. A matéria nebulosa nascida dessa dispersão logo envolverá todo o grupo e diminuirá continuamente as órbitas das massas ainda em movimento, provocando primeiro uma integração, e depois, uma desintegração, cada vez mais ativas, dessas massas, até que todas tenham sido totalmente dissipadas. Não há que se discutir a questão de saber se essa operação se efetua e se completa de maneira independente nas distintas partes de nosso sistema sideral ou se tão somente se completará agregando toda a massa do sistema, ou ainda se, como parece mais provável, as integrações e desintegrações parciais seguem seu curso enquanto segue o seu a integração geral, até que as condições que criam a desintegração se reúnam e uma difusão nova destrua a concentração anterior. Tal é a conclusão que se deduz com respeito a nossa atual questão, como corolário da persistência da força. Se concentrando-se através de espaços e tempos imensos para seu centro comum de gravidade algumas estrelas chegam a se reunir nele, as quantidades de movimento que adquiriram devem bastar para fazê-las voltar ao estado difuso até o fundo das regiões longínquas de onde partiram. Pois como ação e reação são iguais e opostas, o movimento que a dispersão produz deve ser de igual intensidade que o adquirido pela agregação, e repartindo-se pela mesma quantidade de matéria deve originar uma distribuição equivalente no espaço, qualquer que seja a forma dessa matéria. Contudo, é preciso chamar atenção para uma condição essencial na completa verificação desse resultado, que é a seguinte: que a quantidade de movimento molecular irradiada no espaço por cada estrela, enquanto se forma no seio da matéria difusa, ou não deve difundir-se fora do sistema ou se se difunde deve ser compensada por outra quantidade equivalente irradiada para o sistema de outras regiões espaciais. Em outros termos: se nosso ponto de partida é a quantidade de movimento molecular que supõe o estado nebuloso da matéria de nosso sistema sideral, resulta da persistência da força que se essa matéria experimenta a redistribuição que constitui a evolução, a quantidade de movimento molecular durante cada integração de cada massa dispersadora, mais a dispersada na integração total do sistema, deve bastar para reduzi-la de novo à mesma forma nebulosa. Aqui terminam forçosamente nossos raciocínios, uma vez que não podemos saber se se verificam ou não aquelas condições. Se no éter que preenche os espaços interestelares além das mais distantes estrelas, o movimento molecular por elas difundido não atravessará esse limite, não se perderá e a matéria sideral, uma vez integrada, poderá voltar ao seu antigo estado de difusão. Se supomos indefinido esse meio etéreo, e povoado de outros sistemas siderais, pode ainda acontecer que a quantidade de movimento molecular irradiado por esses sistemas para a região que ocupa o nosso seja aproximadamente igual à que ele irradia, e nesse caso a quantidade de movimento não variará, podendo o sistema repetir indefinidamente seus ritmos de condensações e difusões alternadas. Porém se no espaço infinito ocupado pelo éter não há outro sistema sideral, ou se os há, estão tão distantes que não podem influir no nosso, parece fora de dúvida que a quantidade de movimento deste deve diminuir por radiação, e, portanto, a cada nova difusão, ocupará menos espaço, até que chegue a um estado de agregação ou de condensação e de repouso absolutos. Contudo, como não dispomos de prova alguma da existência ou não existência de outros sistemas siderais, e mesmo que as tivéssemos, como não poderíamos tirar conclusões legítimas de premissas que encerram final inconcebível - o espaço infinito - nunca haverá resposta satisfatória para tão transcendental questão. Mas se nos limitamos à questão imediata, que não é tão insolúvel, existem bastantes razões para pensar que depois das várias formas de equilíbrio a que levam as correlativas de evolução que estudamos, estabelecer-se-á um novo equilíbrio mais extenso e duradouro. Quando a integração que ora se processa em nosso Sistema Solar tiver atingido seu máximo, seguirá a integração imensamente maior de tal sistema com outros, e então deverá reaparecer sob a forma de movimento molecular todo aquele que cessou como movimento de massas, voltando, portanto à forma nebulosa. § 183. Chegamos assim a deduzir que o processo total do universo visível é análogo ao dos agregados menores que o integram. Sendo constantes naquele as quantidades, tanto de matéria quanto de movimento, e tendo em vista que as redistribuições de matéria que o movimento processa têm limites em todos os sentidos, o movimento indestrutível necessita, então, redistribuições inversas. Na aparência, as forças universalmente coexistentes de atração e repulsão, que como vimos imprimem um ritmo a cada um dos fenômenos do Universo, o imprimem também à totalidade deles; ou seja, produzem imensos e alternados períodos de evolução e dissolução, segundo predominam as forças de atração e causam uma contração universal ou predominam as de repulsão, e produzem uma universal difusão. É então inevitável pensar em um passado durante o qual existiram evoluções sucessivas análogas à atual, e em um futuro durante o qual seguirão processando-se mais evoluções, análogas em princípio, mas algo distintas em seus resultados. XXIV Resumo e conclusão § 184. Ao terminar um trabalho como o presente, acreditamos necessário, e talvez mais que em outra ocasião qualquer, contemplar como uma síntese ou um todo, o vasto conjunto que em sucessivos capítulos anteriores foi apresentado por partes. Um conhecimento coerente implica em algo mais do que estabelecer conexões; nem tudo está reduzido em saber como cada grupo secundário de princípios faz parte de um grupo principal e como se coordenam os grupos principais. Devemos colocar-nos a tal distância que os detalhes desapareçam e possamos estudar o caráter geral, o conjunto arquitetônico do trabalho. Este capítulo será, pois, algo mais que uma recapitulação, algo mais que uma nova exposição sistemática do mesmo assunto; será uma demonstração de que os princípios que até agora estabelecemos revelam em seu conjunto, e sob certos aspectos, um novo princípio, por nós ainda não mencionado. Há também uma razão especial para notar como as várias divisões e subdivisões do objeto se auxiliam, encontrando nova e definitiva confirmação ou comprovação para a teoria geral. Por outro lado, a síntese de nossas generalizações anteriores, ou sua completa integração, nos oferece um novo exemplo de evolução e empresta nova força ao sistema geral de nossas conclusões. § 185. Encontramo-nos, pois, em uma volta tão imprevista quanto significativa, ao princípio de onde partimos, e do qual começaremos agora, outra vez, nosso estudo. De fato, mesmo dispensando a teoria da evolução, essa forma integrada do conhecimento é, sem dúvida, a mais elevada. Quando investigamos o que constitui, ou deve constituir a Filosofia, quando comparamos as diversas ideias reinantes, segundo tempos e países, sobre essa Ciência das ciências, e eliminamos os elementos em que aquelas ideias diferem, conservando os elementos comuns e concordantes, vemos que, implícita ou explicitamente, todas as definições consideram a Filosofia como a síntese de todos os nossos conhecimentos, como o conhecimento plena e completamente unificado. Sobre cada sistema filosófico ou de conhecimentos unificados, sobre os métodos seguidos ou propostos para verificar essa unificação, constatamos, em todo lugar, a crença de que tal unificação é possível e alcançá-la é o fim da Filosofia. Admitindo essa conclusão, examinamos os dados, ou pontos de partida da Filosofia, e como não é possível estabelecer proposições fundamentais, proposições que não sejam consequência lógica de outras mais gerais, mas apenas mostrando que, uma vez admitidas aquelas, suas consequências lógicas estão de acordo com a experiência, admitimos hipoteticamente como dados, até poder estabelecê-los com pleno fundamento, aqueles elementos orgânicos de nossa inteligência sem os quais não poderiam efetuar-se as operações mentais necessárias para a constituição da Filosofia. Especificados esses dados, estudamos os princípios fundamentais: "indestrutibilidade da matéria, continuidade do movimento e persistência da força". Os dois primeiros, corolários do último, que é o princípio verdadeiramente primário, o princípio dos princípios, pois depois de ver que nossas experiências de matéria e de movimento se reduzem afinal a experiências de força, vimos que os princípios da invariabilidade das quantidades de matéria e de movimento implicam no da invariabilidade da quantidade de força, do qual podem aqueles e todos deduzir-se de maneira lógica. O primeiro novo princípio que deduzimos foi o da "persistência das relações entre as forças", que nada mais é senão o chamado comumente de "uniformidade ou constância das leis naturais", e que como vimos é uma forçosa consequência de que a força não pode sair do nada e nem se reduzir a nada. Deduzimos posteriormente que as forças aparentemente perdidas, na verdade se transformaram em outras equivalentes, e vice-versa, todas as forças que começam a se manifestar num dado momento provêm necessariamente de forças equivalentes preexistentes que desapareceram, e encontramos exemplos comprobatórios de todos esses princípios nos movimentos dos astros e em todos os fenômenos inorgânicos, orgânicos e superorgânicos até agora observados na Terra. O mesmo aconteceu com os princípios relativos à "direção e ao ritmo do movimento", pois comprovamos que a direção segue sempre a linha de máxima tração ou de mínima resistência, tanto nos movimentos celestes como nas descargas nervosas e fenômenos sociais, e que todo movimento é alternado ou rítmico, assim sendo os dos planetas em suas órbitas, como os do éter em suas vibrações luminosas, as inflexões de voz em um discurso, os preços das mercadorias etc., deduzindo também logicamente ambos estes princípios do primário de todos. § 186. Sendo então verdadeiros esses princípios em todos os seres que conhecemos, têm eles a condição necessária e suficiente para constituir o que chamamos Filosofia; mas examinando-os detidamente, vimos que não a constituem, porque um número qualquer de princípios isolados, por verdadeiros e universais que sejam, não podem constituir uma filosofia. Cada um desses princípios expressa a lei geral de um dos fatores que, segundo nossa experiência, produzem os fenômenos, ou quando muito, a lei de cooperação de dois fatores. Mas conhecer os elementos de uma operação não é saber como esses elementos se combinam para efetuá-la, e a única coisa que pode unificar todos os nossos conhecimentos é conhecer a lei de cooperação de todos esses fatores, a lei que expressa a um só tempo os antecedentes e os consequentes complexos que um fenômeno qualquer apresenta, considerado em sua totalidade. Também deduzimos outra conclusão, a de que a Filosofia, tal e qual a entendemos, não deve contentar-se em unificar fenômenos concretos isolados, nem classes separadas de tais fenômenos: deve unificar todos os fenômenos concretos. Se for verdadeira em todo o Cosmo a lei segundo a qual cada fator opera, também deve sê-lo a lei de cooperação de todos os fatores. Por conseguinte, a lei de unificação suprema que a Filosofia busca deve consistir nessa lei de cooperação de todos os fatores do Cosmo. Partindo dessa proposição abstrata para uma proposição concreta, vimos que essa lei suprema buscada era a lei de redistribuição contínua da matéria e do movimento, uma vez que todas as mudanças ou fenômenos, desde os que lentamente alteram a estrutura de nossa galáxia, até os que constituem uma decomposição química, nada mais são do que mudanças nas posições relativas das partes integrantes, e implicam necessariamente, a par de um novo arranjo da matéria, num novo arranjo do movimento. Por conseguinte, podemos estar certos, a priori, de que deverá existir uma lei de redistribuição concomitante da matéria e do movimento, verdadeira para todos os fenômenos do Cosmo, e que os unificando a todos deve ser a base da Filosofia. Começando a investigação dessa lei universal de redistribuição, consideramos de outro ponto de vista o problema da Filosofia, e vimos que a solução era, e não podia ser outra, a que havíamos indicado, e que a Filosofia fica condenada à insuficiência se não formula toda a série mudanças de cada ser ao passar de seu estado imperceptível ao perceptível e vice-versa, pois não agindo assim haveria uma história passada ou uma futura, ou ambas, do ser em questão, e das quais a Filosofia não dava conta, pecando em não alcançar a requerida unificação. De onde se deduz que a fórmula buscada deve ser aplicada à história inteira de todos os seres isoladamente considerados, e em sua totalidade. Tais considerações nos conduziram à fórmula, ou princípio, de que a concentração de matéria implica na dissipação de movimento, e inversamente, a absorção de movimento implica na difusão da matéria, uma vez que devendo expressar a redistribuição contínua da matéria e do movimento, não pode ser senão uma fórmula que defina as operações opostas, concentração e difusão, em função de matéria e de movimento. Esta é, de fato, a lei do ciclo total de mudanças que todo ser experimenta, perda de movimento e integração consecutiva ou concomitante, e vimos que essa lei se aplica não apenas à história completa de cada ser, como também a cada um de seus detalhes, e que ambos os processos marcham paralela e continuamente, havendo sempre um resultado-diferença para um ou para outro. As palavras evolução e dissolução, nomes dessas transformações opostas, as definem bem em suas características gerais, mas ainda incompletamente em seus detalhes, pois embora a palavra "dissolução" seja apropriada, a palavra "evolução" não expressa tudo o que deveria significar, uma vez que esse processo progressivo, se é sempre uma integração de matéria e uma dissipação de movimento, na maioria dos casos é ainda algo mais que a redistribuição primária de matéria e movimento, que se faz acompanhar de redistribuições secundárias, razão da classificação das diversas espécies de evolução em simples e compostas. Estudando depois as condições que presidem a verificação das redistribuições que constituem a evolução composta, vimos que todo agregado material que ao se condensar ou se integrar perde com muita rapidez seu movimento molecular, ou se integra muito rapidamente, não efetua mais que uma evolução simples; mas todo agregado que, por seu tamanho ou pela constituição de suas partes ou elementos integrantes encontra dificuldades para uma integração rápida, além da redistribuição primária, que conduz à integração, experimenta também as redistribuições secundárias, com maior ou menor grau de complexidade, que com a primária constituem a evolução composta. § 187. Estabelecidos esses conceitos de evolução e dissolução, operações cujo conjunto forma a história completa de cada ser, e a divisão da evolução em simples e composta, passamos a considerar a evolução como um processo comum a todas as ordens de seres em geral e em detalhe. Seguimos a integração da matéria e a dissipação concomitante do movimento ou de sua força geradora, não apenas em cada ser considerado como um todo, como também em suas partes componentes. Assim, o Sistema Solar em seu conjunto e cada um de seus planetas e satélites, o reino ou império orgânico e cada organismo e órgão, a sociedade humana em geral, e seus diversos elementos componentes, foram exemplos sucessivos em que comprovamos, em todas as suas fases, a lei da evolução. De fato, atendendo primeira e unicamente à redistribuição primária, o Sistema Solar, bem como cada um de seus elementos, esteve e está em vias de integração, de concentração de sua matéria e de difusão ou dissipação de seu calor, de seu movimento molecular; em cada organismo, a incorporação geral de matéria que o incremento produz é acompanhada das assimilações parciais que formam os órgãos; cada sociedade se integra a uma só vez pelo crescimento total de sua população e pelo aumento da densidade da mesma em tal ou qual localidade. Em todos os casos, então, existe, a par das integrações diretas e totais, integrações parciais e indiretas que aumentam a dependência mútua das partes. Passando às redistribuições secundárias, perguntamos como se formam as partes, ao mesmo tempo em que vão se integrando os todos pela redistribuição primária, e constatamos que existe, na imensa maioria dos casos, um trânsito do homogêneo para o heterogêneo, do difuso e incoerente para o concentrado e coerente, tendo comprovado essa nova lei na evolução do Sistema Solar, de nosso planeta, em cada ser orgânico animal ou vegetal, nas sociedades e em suas várias esferas de atividade: linguagem, ciência, arte, literatura etc. Mas vimos que ainda não está completa a fórmula da evolução composta, que não estão expressas todas as redistribuições secundárias na dupla passagem do homogêneo e difuso para o heterogêneo e concentrado, e que as partes que compõem cada todo enquanto mais dessemelhantes ou heterogêneas, se fazem mais definidas e claramente distintas. O resultado das redistribuições secundárias é, então, transformar uma homogeneidade vaga em uma heterogeneidade clara e distinta, e encontramos exemplos desse novo caráter da evolução nas diversas ordens de seres. Contudo, levando mais além nosso exame, vimos que o aumento de distinção ou de sinais distintivos que se estabelece, a par do aumento de heterogeneidade, não é um caráter independente, mas resultado do simultâneo progresso da integração nas partes e no todo. Ainda mais, mostramos que tanto nas evoluções inorgânicas como nas orgânicas e superorgânicas, a mudança na coordenação da matéria se faz acompanhar de uma mudança simultânea na coordenação do movimento; uma vez que todo incremento na complexidade da estrutura implica num incremento correlativo na complexidade de funções, toda integração de moléculas em massas é acompanhada de uma integração de movimentos moleculares em movimentos de massas, e sempre que há variações nas formas e tamanhos dos agregados materiais e em suas relações com as forças exteriores, há variações correlativas em seus movimentos. Por último, não sendo senão uma, essencialmente, a transformação que estudamos sob tão diversos aspectos, unimos esses aspectos em um só conceito, vendo as redistribuições primária e secundárias como se verificando simultaneamente. Onde quer que seja, a mudança de uma simplicidade confusa em uma complexidade distinta, na dupla distribuição da matéria e do movimento, é a uma só vez uma concentração da matéria e uma dissipação do movimento; por conseguinte, a evolução, ou seja, a redistribuição de matéria e de movimento não dissipado leva de uma coordenação difusa, homogênea e indeterminada a uma coordenação concentrada, heterogênea e determinada. § 188. Estamos já em condições de fazer uma adição importante ao resumo de nossa tese, de observar nas induções precedentes um grau de unidade superior àquele até aqui observado. De fato, vimos até agora a lei da evolução como verdadeira para todas as ordens de seres considerados como distintos e independentes uns dos outros. Mas a indução, sob essa forma, carece da universalidade que pode ter, considerando todas essas diversas ordens como formando naturalmente o grande todo que chamamos de Universo. Ao dividir a evolução em astronômica, geológica, biológica, psicológica, sociológica etc., pode-se até certo ponto acreditar que se trata de uma casual coincidência a uniformidade da lei nessas várias ordens de evolução; mas se reconhecemos que tais ordens e divisões são puramente artificiais, embora necessárias para aquisição de conhecimentos por nossas limitadas faculdades intelectuais, se consideramos todas as ordens de seres como partes integrantes do Cosmo, veremos também que não há diversas evoluções com certas características comuns, mas apenas uma só e mesma evolução que se verifica uniformemente, em todos os lugares. Na verdade, reiteradamente verificamos que enquanto em um todo se desenvolve ou se processa sua evolução, ao mesmo tempo, ela se processa em suas partes; mas não fizemos notar que essa lei alcança todo o Universo, do qual são partes integrantes as várias ordens de todos que separadamente estudamos. Sabemos que enquanto uma massa coerente qualquer - o corpo humano, por exemplo - cresce e toma sua forma geral, o mesmo acontece com cada um de seus órgãos, e ainda com seus tecidos e elementos orgânicos, os quais - órgãos, tecidos e elementos - ao mesmo tempo em que cada um de per si cresce, se desenvolve e integra, se diferencia e se distingue cada vez mais claramente dos outros. Mas não estendemos essa maravilhosa e simultânea transformação de todos e partes até onde é possível; não mostramos a sublime e universal harmonia em virtude da qual, enquanto cada indivíduo se desenvolve, também se desenvolve a sociedade de que ele é uma unidade e a também a Terra, de que essa sociedade é parte quase imperceptível, bem como o Sistema Solar, em presença de cujo volume o da Terra é desprezível, e o sistema sideral, composto talvez de muitos milhões de sistemas solares e etc. Assim compreendida, a evolução não é uma só em princípio, o é de fato. Não há muitas metamorfoses evolutivas que se verificam simultânea e uniformemente, não há mais que uma só, que se verifica em todos os lugares onde não se verifique ou predomine a metamorfose contrária. Em todo lugar pequeno ou grande do Espaço, em que a matéria adquira individualidade, ou seja, características distintivas de outra matéria, ali existe evolução; melhor dizendo, a aquisição dessa individualidade é o princípio da evolução, independente do volume considerado, de sua inclusão em outros maiores e das evoluções mais amplas em que está compreendida a massa em questão. § 189. Depois das induções, cujo resumo acabamos de fazer, é fácil observar que se seu conjunto serve para estabelecer a lei da evolução, não serve para constituir por completo, enquanto não passam de induções, o que convencionamos chamar de Filosofia. Nem mesmo basta para tanto o passar nessas induções da simples analogia à identidade; é necessário, como vimos oportunamente, deduzir da persistência da força esses princípios obtidos primeiro pela indução, para poder unificá-los, como a Filosofia exige. Dando mais esse passo, demonstramos que as transformações em que consiste a evolução são consequências necessárias do princípio da persistência da força. A primeira dessas consequências foi a de que todo agregado homogêneo deve necessariamente perder sua homogeneidade, pela desigual exposição de suas diversas partes às forças incidentes. A instabilidade do homogêneo, ou mais geralmente a tendência do todo a passar do menos ao mais heterogêneo, nós a vimos comprovada; nas evoluções astronômicas, geológicas, orgânicas e superorgânicas, todas as quais revelam a desigualdade de estruturas, correlativa à desigualdade de relações das diversas partes do todo em evolução com as forças ambientes. Outro passo no caminho das deduções nos levou a descobrir uma causa secundária do progressivo incremento da heterogeneidade em todo processo evolutivo: cada parte mais ou menos diversificada das demais em um todo, é, não apenas um centro, mas também uma causa de novas diversificações, pois ao se distinguir das demais, se converte necessariamente em centro de reações distintas sobre as forças incidentes, e assim, aumentando a diversidade das forças aumenta em consequência a dos efeitos produzidos. Seguimos essa multiplicação de efeitos nas ações e reações mútuas dos elementos do Sistema Solar, nas incessantes complicações da evolução geológica, nos complexos sintomas que produzem nos seres vivos as influências perturbadores, nas numerosas ideias e sentimentos gerados ou despertados por uma só impressão e nos múltiplos como ramificados efeitos que produz cada nova força em uma sociedade, evidenciando como corolário que a multiplicação dos efeitos cresce em progressão geométrica à medida que cresce a heterogeneidade. Para interpretar completamente as mudanças de estrutura que constituem a evolução, restava-nos descobrir a causa ou razão suficiente do incremento de características distintivas que acompanha o incremento de heterogeneidade, ou seja, do número de partes distintas, e achamos que essa causa e razão é a segregação das unidades mescladas mercê da influência de forças capazes de colocá-las em movimento. De fato, vimos que quando forças incidentes desiguais geram uma desigualdade correlativa nas unidades componentes das diversas partes de uma massa, há logo uma tendência à separação das unidades desiguais ou dessemelhantes, e ao agrupamento das unidades iguais ou semelhantes. Essa causa das integrações locais que acompanham as diferenças locais a vimos comprovada também em todas as ordens da evolução, vale dizer, na formação dos corpos celestes, na formação da crosta terrestre, nas modificações orgânicas, nos fenômenos psicológicos e nas várias esferas ou divisões sociais. Por último, à questão de saber se todas essas evoluções têm ou não um limite, encontramos a resposta de que todas tendem ao equilíbrio, pois a contínua divisão e subdivisão de forças determina sua dissipação ou transmissão ao meio ambiente, e acabará, então, por reduzir ao repouso cada ser em evolução. De fato, vimos que quando vários movimentos se efetuam simultaneamente, como acontece em todas as ordens de seres, como consequência da dispersão ou dissipação dos movimentos mais débeis ou menos contrariados, se estabelecem equilíbrios móveis diversos, sob forma de degraus ou etapas na via do equilíbrio completo. Seguindo nesse estudo, vimos que por razão idêntica esses equilíbrios móveis guardam certo poder de conservação, que se manifesta na neutralização de algumas influências perturbadoras e na adaptação a novas condições de existência. Esse princípio geral da tendência ao equilíbrio foi, como os outros, reconhecido em todas as formas da evolução, e, quanto às mais importantes e complexas, a evolução psíquica e a social, concluímos que sua penúltima etapa, ou seja, a imediatamente anterior ao equilíbrio, deve ser o estado mais perfeito e feliz em que é possível conceber a humanidade. Mas o mais importante a lembrar agora, é que cada uma dessas leis de redistribuição da matéria e do movimento é uma lei derivada e dedutível da lei fundamental, pois dada a persistência da força, são corolários obrigatórios a instabilidade do homogêneo, a multiplicação dos efeitos, a segregação e o equilíbrio. Ao descobrir que os fenômenos formulados nessas frases não são senão aspectos diversos de uma só transformação, chegamos à completa unificação desses aspectos, à síntese, segundo a qual a evolução em seu conjunto e em seus detalhes é simplesmente um corolário dessa lei indemonstrável, base e fundamento de todas as outras. Além disso, unificando-se assim umas com as outras as verdades complexas que formulam a evolução, se unificam também espontaneamente com as verdades mais simples que se derivam do mesmo princípio, a transformação e equivalência das forças, a direção e o ritmo de todo o movimento. Essa nova unificação nos leva a considerar o sistema inteiro de fases como de cada fenômeno e do conjunto de todos eles como manifestação de uma lei universal, lei que se verifica em cada uma das fases da evolução, bem como na total evolução do Universo. § 190. Para concluir, estudamos também, tal como se processa na natureza, a operação contrária à evolução, a dissolução, que inevitavelmente, e mais cedo ou mais tarde, desfaz o que antes fez a evolução. Seguindo rapidamente o curso e o fim da evolução nas várias ordens de seres, vimos que deve chegar para todos o fatal vencimento, última fase daquele processo e primeira da dissolução, a qual estudamos rapidamente nas várias ordens, ainda que em sentido inverso àquele em que fizemos o estudo análogo da evolução. Assim, reconhecemos primeiro, tanto nas diversas classes de seres terrestres como na própria Terra, as condições que revelam sua futura dissolução, em maior ou menor prazo. E progredindo ainda mais, na via das generalizações e das induções, inferimos também a mesma operação nas imensas massas que constituem nosso sistema planetário e o sistema sideral, ou seja, o inumerável conjunto de estrelas, sendo o Sol uma delas, talvez das menores, concluindo como muito provável uma dissolução universal uma vez terminada a evolução universal, que dura e durará um período de tempo incalculável, sem dúvida imensamente grande. Tal conclusão é também um corolário da persistência da força, e esta suprema unificação dos fenômenos, tanto evolutivos como dissolutivos, considerados como a manifestação de uma mesma lei em condições opostas, unifica também, no possível de nossas limitadas inteligências, os fenômenos atuais do Universo com os análogos passados e futuros, porque se há, como temos razões para acreditar, uma alternativa de evolução e dissolução no Universo inteiro, como há em cada uma de suas partes, mínimas ou máximas; se, como é uma consequência lógica da persistência da força, ao fim de cada uma dessas fases opostas do ritmo universal, surgem por si sós as condições para o começo da outra fase; se, portanto, vemo-nos obrigados a pensar em uma série de evoluções e dissoluções em um passado e em um futuro indefinidos, não podemos pensar em um princípio e nem em um fim únicos para o Universo; não podemos deixar de imaginar a Força que o Universo nos revela como infinita no Tempo e no Espaço, infinitos também para nosso pensamento. § 191. Já chegamos, ainda que por caminho bem distinto, à mesma conclusão da primeira parte, quando tratamos diretamente, ou seja, sem recorrer aos longos e profundos estudos há pouco terminados, as relações entre o cognoscível e o incognoscível. Deduzimos então, pela análise de nossas ideias religiosas e científicas primárias, que se é impossível o conhecimento da Causa de todos os fenômenos do Universo, é, contudo, um dado inegável de nossa mente a existência dessa Causa única e suprema. Vimos que a crença nesse poder, para o qual não há como conceber limites, seja no Tempo, seja no Espaço, é o elemento fundamental de toda Religião, elemento que sobrevive a todas as mudanças de forma de que se reveste aquela, e vimos também que todas as filosofias reconhecem tácita ou expressamente esse princípio supremo, pois ainda que o relativista negue com razão as categóricas assertivas do absolutista com respeito a toda existência não percebida, definitivamente tem que a ele se unir para afirmar tal existência. Este dado inseparável de toda consciência, em que concordam a Religião, a Filosofia e o senso comum, é também, como demonstramos, oportunamente, a base da Ciência, a qual não pode explicar subjetivamente os infinitos modos relativos ou condicionados que constituem nossa consciência, sem supor a existência do Ser absoluto ou incondicionado, nem pode explicar objetivamente o que chamamos mundo exterior, sem contemplar essas mudanças de forma como manifestações de algo invariável e superior a todas as mudanças e formas. Pois bem: a esse mesmo postulado nos conduz também a síntese que acabamos de esboçar. O reconhecimento de uma força persistente, que em todo lugar e continuamente varia em suas manifestações, mas que conserva a mesma quantidade, no passado ou no futuro, é o único que nos permite interpretar cada fato; e em definitivo unificar todas as interpretações concretas. Não se acredite, contudo, que essa coincidência agrega força à verdade do princípio em questão, pois tendo formado nossa síntese, supondo já a verdade desse princípio, seria errôneo pretender deduzi-la daquela operação lógica, mas ao menos tal coincidência serve de comprovação da verdade do mesmo princípio. De fato, quando examinamos os dados da Filosofia, dissemos que não poderíamos adiantar um passo em nosso estudo sem certas hipóteses, que era preciso admitir só como tais, até que suas verdades fossem provadas pela verdade de seus resultados, logicamente deduzidos e confirmados pela experiência; e como descobrimos aqui uma perfeita concordância ou conformidade entre esse corpo de relações que chamamos conhecimento e a hipótese dessa existência suprema e superior, portanto, a toda relação, fica assim comprovada sua verdade, que forma a essência da Religião. § 192. Para um resultado semelhante, isto é, para uma unificação que vimos realizada já em muitos casos, tendem desde a sua origem a Teologia, a Metafísica e a Ciência da natureza. De fato, o trânsito das crenças religiosas politeístas às monoteístas e a redução destas a uma forma cada vez mais geral em que a personalidade e a providência divinas desaparecem na imanência universal, são as manifestações desse progresso em Teologia. O são na metafísica a decadência das teorias sobre a "essência", as "potencialidades", as "qualidades ocultas". As "ideias de Platão", a "harmonia preestabelecida" e outras análogas, bem como a tendência a identificar o ser que nos revela nossa consciência com o que é condição ou causa de tudo que existe fora dela. Finalmente, onde mais claro aparece esse progresso é nas conquistas da Ciência; ela agrupou desde o princípio, fatos isolados em leis, depois, as leis especiais em leis gerais, e hoje já são reconhecidas por todos os cientistas algumas leis verdadeiramente universais. Uma vez que a tendência à unificação é o caráter principal do desenvolvimento de todas as formas de pensamento, e uma vez que existem muitos motivos fundados para acreditar na futura realização dessa unificação, temos um novo argumento a favor de nossa tese. De fato, a não admitir outra unidade superior, a que induzimos deve ser o fim a que tende o desenvolvimento do pensamento, e apenas é possível imaginar que exista outra superior. Uma vez agrupados em induções os fenômenos que têm lugar em diversas ordens de existência, fundidas ou reunidas essas induções então em uma única, dedutivamente interpretada ela, e levando em conta que o princípio de onde ela se deduz é indemonstrável, parece muito pouco provável que se possa chegar, por um caminho essencialmente distinto, a unificar de outra maneira esse processo universal, que a Filosofia tem por finalidade explicar; não é fácil conceber que as numerosas comprovações a que submetemos o princípio universal adotado sejam simples ilusões e que outro princípio seja verdadeiro e se veja comprovado em maior número de casos que aquele. Não se acredite, por isso, que estamos pedindo igual grau de probabilidade para os princípios secundários que sucessivamente expusemos neste trabalho. A verdade do conjunto de nossa tese não se prejudica por erros de detalhes que possam ocorrer. Enquanto não se prova que a persistência da força não é um dado de nossa consciência, ou que as várias leis dinâmicas que reconhecemos não são corolários daquele dado primário, ou enfim, que ainda dadas essas leis, a redistribuição da matéria e do movimento não se opera como mostramos, não podemos exigir para a teoria da evolução nada menos que a certeza que a ela atribuímos. § 193. Aceitas essas conclusões, e admitindo que os fenômenos façam parte da evolução geral, a menos que façam parte da dissolução, podemos concluir que nenhum fenômeno foi fiel e completamente interpretado ou explicado se não lhe foi designado o lugar correspondente em um ou outro desses dois processos inversos. Por conseguinte, o limite de perfeição de nossos conhecimentos será o caso, ainda infinitamente distante, em que seja possível interpretar completamente, ou em sua integridade, como parte da evolução ou da dissolução universal, todos os fenômenos gerais e especiais. O conhecimento parcialmente unificado que chamamos Ciência não pode dar, contudo, essa total interpretação. Ou, como sucede nas ciências mais complexas, o progresso é unicamente indutivo, ou então, como ocorre nas mais simples, as deduções se referem exclusivamente aos fenômenos elementares ou componentes, quando já ninguém duvida que o objeto final deve ser interpretar dedutivamente as leis de composição ou combinação de uns fenômenos com outros. As ciências abstratas que estudam as formas gerais que revestem os fenômenos, e as abstrato concretas que estudam os fatores pelos quais os fenômenos se produzem, estão, do ponto de vista filosófico, a serviço das ciências concretas, que se ocupam dos fenômenos em toda sua natural complexidade. Conhecidas as leis das formas e as leis dos fatores, resta-nos averiguar as leis dos produtos, ou resultados da ação recíproca dos fatores cooperativos. Dadas a persistência da força e as leis dinâmicas que daí derivam, deve-se perguntar não apenas como os seres inorgânicos apresentam as propriedades que lhes são características, como também como se formam os caracteres mais numerosos e complexos dos seres orgânicos e superorgânicos, como se formam e desenvolvem os organismos, qual a gênese da inteligência humana e como se desenvolve o progresso social. É evidente, como há pouco dissemos, que esse completo desenvolvimento do conhecimento humano em um sistema perfeitamente organizado de deduções diretas e indiretas partidas da persistência da força, não pode realizar-se a não ser em uma época indefinidamente remota. O progresso científico é um progresso para o equilíbrio do pensamento, equilíbrio que, como sabemos, está em vias de estabelecimento, mas que não pode chegar à perfeição em um período finito; mas, mesmo assim sendo, a Ciência pode avançar muitíssimo nesse caminho, e muito já avançou no presente século. Sem dúvida que ainda em seu estado imperfeito, a Ciência não pode ser dominada por um único indivíduo; contudo, como o progresso se efetua por crescimento, como toda organização começa por traços apenas esboçados e definidos e logo se desenvolve e completa por modificações e adições sucessivas, pode-se obter alguma vantagem de um ensaio de coordenação dos fatos hoje conhecidos, ou melhor, de algumas classes de fatos. Tal deve ser o objeto dos volumes que irão se seguir ao presente trabalho, objeto do que chamamos Filosofia Especial. § 194. Resta-nos dizer algumas palavras finais sobre a parte geral da doutrina que acabamos de expor. Antes de começar a interpretação especial dos fenômenos da vida, do espírito e da sociedade pela matéria, pelo movimento e pela força, será de bom alvitre recordar que sentido devemos dar a essas interpretações. Já com frequência repetimos que todas elas têm um caráter puramente relativo; mas é tão fácil incorrer em erro que, apesar das muitas evidências em contrário, muitas pessoas estarão já persuadidas de que as soluções que demos, e as que, nos volumes sucessivos daremos à explicação de todos os fenômenos, são e serão essencialmente materialistas. Tendo a maioria dos homens ouvido acusarem de materialistas os que atribuem os fenômenos mais complicados a causas semelhantes às que produzem os fenômenos mais simples, sentem eles repugnância por essas interpretações. Mesmo estando prevenidos de que essas soluções são puramente relativas, se ressentem sempre das preocupações adquiridas ao ver fazer universal aplicação dos mesmos modos de interpretação. Esse estado intelectual expressa nem tanto, na maioria das vezes, respeito à Causa desconhecida, mas desprezo às formas familiares sob as quais se nos revela ou se manifesta esta dita Causa. Os que ainda não se libertaram do conceito vulgar que conceitua a matéria como bruta e grosseira, podem se assombrar ao ver que se intenta reduzir os fenômenos da vida, do espírito e da sociedade a um nível tão baixo e ignóbil a seus olhos. Mas refletindo que essas maneiras de ser geralmente tão depreciadas, são tanto mais maravilhosas em seus atributos para o homem de ciência quanto mais ele as estuda, e ainda tão incompreensíveis em sua essência como as sensações que nos produzem e como o espírito, alma, consciência ou o que quer que sinta e perceba essas sensações; não deixará de reconhecer que a interpretação que propusemos não degrada o superior, mas antes eleva o inferior; que a contínua luta entre materialistas e espiritualistas é apenas uma questão de palavras, em que ambos os partidos igualmente se enganam, pois acreditam compreender e conhecer o que é incompreensível e incognoscível, e não deixará de reconhecer, enfim, que o temor à pecha de materialismo é infundado. Uma vez provado que, sejam quais forem as palavras usadas, a essência ou natureza íntima das coisas é e sempre será um mistério impenetrável, como o é a formulação ou explicação de todos os fenômenos, valendo-se das palavras Matéria, Movimento e Força, ou de outras quaisquer, ainda se pode afirmar, adiantando mais um passo, que a doutrina que encontra a Causa Suprema e Incognoscível em todas as ordens de fenômenos é a única que pode constituir ampla e firme base de uma Religião e de uma Filosofia invariáveis e duradouras. Mesmo que seja impossível evitar as falsas interpretações, sobretudo em questões que tantas animosidades despertam, será bom que resumamos novamente a doutrina filosófica religiosa expressa neste trabalho, a fim de preservá-la, tanto quanto possível, dessas interpretações torcidas, avisada ou desavisadamente. Até a saciedade provamos, e em todos os sentidos, que as verdades mais elevadas a que podemos chegar não são senão fórmulas das leis mais gerais que a experiência nos revela acerca das relações entre Matéria, Movimento e Força. E que estas três entidades nada são senão símbolos da Realidade Incognoscível. Uma Potência cuja essência ou natureza íntima nos é inconcebível como o é supor limites no tempo e no espaço, origina em nós certos efeitos. Muitos desses efeitos têm muitas analogias e semelhanças que permitem reuni-los e classificá-los sob os nomes de Matéria, Movimento, Força e têm também relações ou conexões que permitem atribuir-lhes leis de uma verdade indubitável. Uma análise detida e minuciosa reduz essas diversas ordens de efeitos a um só e a uma só essas múltiplas e variadas leis. A suprema perfeição científica será a interpretação de todas as ordens de fenômenos como fases diversificadas pelas várias condições desse único fenômeno geral, modificado pelas distintas formas de que se reveste a lei universal e única. Mas em tudo isso a Ciência nada mais faz que sistematizar a experiência, cujos limites de nenhum modo ultrapassa. Assim, nunca nos será dado saber se essas leis são em si tão absolutamente necessárias como relativamente o são para nosso pensamento. Tudo quanto podemos fazer é interpretar o processo universal dos seres e os processos especiais, tais como se revelam às nossas limitadas faculdades psíquicas; mas somos e seremos sempre incapazes, não só de compreender, mas também de conceber o processo real. Não apenas a conexão entre a ordem fenomenal e a ordem ontológica ou real é absoluta e perpetuamente impenetrável, como o é também a conexão entre as formas relativas ou condicionadas e a forma incondicionada ou absoluta do ser. A interpretação de todos os fenômenos em função de Matéria, Movimento e Força não é mais que a redução de nossas ideias simbólicas complexas a símbolos mais simples, que não deixam de sê-lo apesar dessas reduções. Portanto, os raciocínios e as conclusões precedentes não facilitam qualquer apoio a nenhuma das hipóteses rivais sobre a essência das coisas; não são mais espiritualistas que materialistas nem mais materialistas que espiritualistas, pois todo argumento que a uma dessas hipóteses pareça favorável, pode ser neutralizado por outro de igual força, em favor da outra. O materialista, vendo que todo pensamento, sentimento ou desejo, segundo a lei de correlação e equivalência das forças, pode transformar-se em um equivalente de movimento mecânico, e, por conseguinte, em todas as demais formas de força manifestadas pela Matéria, pode acreditar demonstrada a materialidade dos fenômenos psíquicos; mas o espiritualista, partindo dos próprios dados, e vendo que as forças livradas pela Matéria não são cognoscíveis senão sob a forma dos equivalentes de forças psíquicas geradas por aquelas, pode imaginar que essas forças físicas exteriores ao Eu são da mesma natureza que as forças mentais ou psíquicas a ele interiores, e que por isso o mundo exterior, ou Natureza, é idêntico ao mundo interior, ou Espírito. Mas aqueles que compreenderam bem a doutrina do presente trabalho, reconhecerão que não se deve dar preferência a nenhuma das duas hipóteses, pois ainda que a relação entre objeto e sujeito nos leve a esses conceitos em antítese de Matéria e Espírito, um e outro são igualmente manifestações da Realidade Incognoscível única e absoluta.