Herbert Spencer - Da Liberdade à Escravidão PRÓLOGO DO TRADUTOR Apesar de sereno e desapaixonado como tudo o que Herbert Spencer escreveu, este lucido trabalho há de irritar profundamente os empreiteiros portugueses das queixas e reivindicações proletárias. Descobrindo as tendências regressivas do socialismo, cuja realização seria a troca do conquistado tipo civil pelo abandonado tipo militar das organizações coletivas e a passagem do regime atual de contrato, de que procederam a concorrência e as incessantes diferenciações naturais dos homens, ao velho regime da cooperação forçada, só possível sob o império de castas imutáveis, este pequeno livro desmascara implacavelmente a hipocrisia dos que se permitem invocar a, noção de liberdade em defesa de uma doutrina tão opressora na ordem temporal como na espiritual o foi durante séculos o cristianismo católico. Denunciando o profundo egoísmo e os instintos autoritários do operariado, uma vez unido e tornado forte pela associação, este opúsculo desbarata a lenda pueril que faz das últimas camadas as depositarias do desinteresse e da equidade, por isso que, analisado através dos regulamentos opressivos das suas Uniões, o proletário surge nestas páginas tal como é, com a sua alma dúplice de tirano e de escravo: - de tirano para perseguir, movido pelo mais feroz dos egoísmos, o companheiro não associado e indefeso; de escravo para abjetamente renunciar a própria personalidade em face das ordens ditatoriais dos chefes. Notando quanto os homens de hoje andam ainda afastados do sentimento de justiça, que é a base imprescindível de uma regular e harmônica organização social, e quanto neles são vivas as herdadas emoções selvagens de conquista e de represália; exteriorizadas em guerras incessantes e cada vez mais sangrentas, este curto livro sensatamente lembra que só por uma lenta evolução se pode atingir um estado coletivo em que as exigências de felicidade sejam, enfim, satisfeitas. Por último, assentando nos fatos a previsão de uma sociedade fundida nos moldes coletivistas, - vasto mecanismo em que a individualidade se perderia; imensa caserna em que um rancho e uma farda seriam para os simples soldados os únicos prêmios do trabalho executado e do dever cumprido, este livro do pensador inglês demonstra que não é no exclusivo interesse das classes proprietárias, mas ainda no das classes obreiras, que o socialismo deve ser combatido. Ora, evidentemente, nenhuma destas afirmações pode agradar aos líderes socialistas. Esses paladinos da plebe, que a psicologia contemporânea anda empenhada em estudar nas suas intimas anomalias degenerativas, precisam de falar em nome da liberdade para que os escutem, de manter a lenda cristã da bondade proletária para que os acompanhe o sentimentalismo fácil do burguês, de conservar o prestígio, romântico da ideia revolucionaria para que a desordem se não calme nas consciências, enfim, de esconder sob quiméricas promessas de felicidade um pavoroso futuro de escravidão. Simplistas e regressivos, esses homens inferiores, quando pensam voltar-se para o futuro, reproduzem o passado, e, quando julgam construir um novo ideal, é sempre um velho estágio evolutivo que estão subjetivamente ressuscitando, como o denunciam os seus estridentes programas radicais. Assim, para evitar as desigualdades econômicas do nosso tempo, o que propõem? Abolir a propriedade individual, voltando ao comunismo ingênuo dos primeiros homens, e destruir a concorrência, regressando á remota fase da cooperação obrigatória. Para remediar as imperfeições morais da família contemporânea, baseada no casamento, o que lembram? Regressar a promiscuidade sexual dos primitivos bandos humanos. Para evitar-que o produtor seja lesado pelo que auferem sobre a mão-de-obra o industrial e o negociante, como intermediários da venda, o que lhes ocorre? Acabar com o comércio, voltando ao inicial regime da troca direta dos produtos, e reduzir o patrão a um simples chefe de oficina, como nos remotos e titubeantes começos das industrias. De uma tremenda revolução universal esperam; confiados, estes futuros habitantes do reino do céu a execução dos seus planos. Entretanto, clamorosamente vão pedindo ao Estado, de joelhos ou de chapéu; na cabeça, segundo as circunstancias, que remedeie o pauperismo, criando asilos e impondo a taxa dos indigentes (o que nunca fez senão acrescentar o número dos ociosos e dos parasitas); que estabeleça creches para servir a proliferação desbordante do proletário (o que não consegue senão afrouxar progressivamente os laços de família pelo abandono temporário dos filhos); que multiplique as obras públicas para entreter os operários sem trabalho (do que apenas resulta uma despropositada carestia e uma péssima execução de todas as construções, como demais o sabem engenheiros e arquitetos); que diminua os inconvenientes ela concorrência, permitindo aos sindicatos operários restringir o número de braços pela recusa de aprendizes (o que, sendo uma forma odiosa de tirania, é também um regresso aos abolidos privilégios de classes); enfim, que à custa de todos providencie em favor exclusivo dos trabalhadores manuais, garantindo-os contra as vicissitudes da doença e da velhice (o que, de resto, por si mesmos eles deveriam fazer num regime que disso os não impede). É claro que estes líderes se não lembram de perguntar se a evolução natural não dispõe, ela própria, de remédios para os inconvenientes que criou numa determinada fase, necessariamente transitória. Perguntar, para que? Promover o ódio dos proletários contra os burgueses, que lhes pagam as escolas, os asilos, os albergues e os hospitais; injuriar os opulentos, que mantém com o seu luxo especiais industrias e dispendem uma considerável parte da própria riqueza em institutos de beneficência e de ensino; dividir, em nome de uma economia política de fantasia, a sociedade em bandos encarniçadamente inimigos, - tal é, em verdade, o exclusivo empenho destes perigosos degenerados. Apóstolos de uma confusa religião igualitária que na escória social recruta a grande massa dos seus fiéis, esses líderes simbolizam na sua mesma mediocridade, no seu ódio e nas suas invectivas contra toda a elite, a multidão de que procedem, e o seu sucesso, faltando ou escrevendo, vem-lhes daí. Deles se pode dizer, precisamente como Demostenes de um demagogo do seu tempo, que tem tudo o que é preciso para dominar a plebe: a voz terrível, o espirito perverso e a linguagem grosseira. De que outro modo poderiam, de resto, fazer-se escutar e compreender? A massa amorfa a que se dirigem e que é hoje, como nota Ângelo Mosso, a mesma que na velha Grécia aplaudia «a eloquência banal dos aduladores do povo contra os ricos e contra os inteligentes», não os ouviria, se eles lhe falassem com a voz baixa, a candura de ânimo e a elevação verbal dos homens educados. A sua força evangelizadora vem-lhes da sua esma inferioridade mental: com crânios menos estreitos e circunvoluções mais numerosas seriam incapazes de encontrar os conceitos e as frases que lisonjeiam a plebe. Com estes revoltosos de grosseira celebração colaboram na Europa, latina os fazedores dessa lamuriante e monótona literatura, que na vida dos ínfimos elementos sociais encontra o motivo sentimental das suas obras. Inspirando-se sobretudo em Tolstói, cuja propaganda religiosa e moral de cristão primitivo apenas se compreende no atrasado e bárbaro meio moscovita, estes aduladores literários da plebe não fazem senão entreter nos espíritos, pela mística apologia dos pobres e dos simples, uma atmosfera emotiva propicia às tendências regressivamente niveladoras do coletivismo. O que eles procuram tornar interessante, - o mendigo verminado, o cavador troglodita e devoto, o vagabundo, a prostituta, o criminoso, é precisamente a indiferenciada turba de que em todos os tempos saíram os fanáticos e os sectários, o indistinto rebanho, perpetuamente renovado e perpetuamente o mesmo, que em todos os séculos históricos formou a corte dos messias e dos déspotas, deixando-se morrer ou matando em nome e por motivo de uma quimera hipnotizante. É possível que num meio autocrata, em que o chicote é um símbolo de comando, a idealização de Tolstói, como a de Dostoievsky e a de quantos procuram aluir a muralha de preconceitos que divide a sociedade em senhores e escravos, em oprimidos e opressores, venha a produzir, com auxílio do tempo e de outros fatores, que não é difícil antever, um efeito redentor. Transplantada, porém, para as democracias latinas, ela apenas conseguirá radicar nos espíritos irrefletidos o equívoco grosseiro que faz do proletário uma vítima de condições econômicas inventadas pelo burguês; e, por muito paradoxal que isto se afigure, a sua derradeira consequência política será fomentar entre simples classes, mal definidas e de precários limites sociais, um ódio sangrento de castas fechadas e irredutíveis. Ora é nesta ressurreição de atávicos sentimentos dissociativos, festejada com entusiasmo selvagem por uma parte do recente Congresso Socialista de Amsterdam, que estão trabalhando, não sei se consciente se inconscientemente, os filantropos de pacotilha que nos cultos países de raça latino imaginaram elevar o sentimento cristão à altura de um agente da evolução social. É impossível prever os efeitos de um movimento social que, fazendo rutilar diante dos olhos supersticiosos dos humildes, dos incultos e dos improgressivos a quimera de um remoto mundo igualitário, os coloca em luta contra a minoria que hoje representa as acumuladas conquistas da civilização nos domínios das ciências, das letras, das artes, das industrias e da moral. De fato, se a lei de evolução nos garante que, contrariamente às pretensões do socialismo, a desigualdade entre os homens será cada vez mais acentuada e mais profunda, nada prova que não tenhamos de assistir ainda uma vez a temporários ensaios de nivelamento econômico, por isso que, segundo a observação judiciosa de G. Le Bon, não há disparate de que a história não consigne exemplos. Na ordem das superstições, a socialista não vale mais nem menos que as suas predecessoras. Mas quererá isto dizer que devamos esperar de braços cruzados os desastres de uma tentativa coletivista, só deles confiando a destruição de uma doutrina falsa e a cura de um estado mental aberrante? Não é esta a opinião dos escritores que em todos os países procuram contraminar a propaganda socialista; e a rapidez com que as sucessivas edições dos seus livros se esgotam, parece indicar que não trilham caminho errado. Sabendo que é facílimo fazer germinar o erro nos cérebros pouco desenvolvidos das massas populares, que são a força numérica nas sociedades contemporâneas, não consideram impossível prevenir contra uma grosseira ilusão os espíritos mais educados das classes dirigentes, que são ainda, mau grado todos os seus vícios e todos os seus defeitos, a força qualitativa. Pela nossa parte, não ignorando que as ideias exercem sobre as consciências do maior número um prestigio diretamente proporcional à sua mesma imprecisão e ao grau de emotividade que as acompanha, como o demonstra a história de todas as religiões, não nos resignamos, todavia, a crer na improficuidade dos esforços empenhados para sustar a corrente de barbarização coletivista. Demonstrar que o socialismo constitui um tremendo perigo para as nações modernas, porque todos os ideais e todas as aspirações dessa doutrina nos reconduziriam, uma vez realizados, a um passado inferior, de que só através de séculos de sofrimentos nos emancipamos, não pode ser indiferente. Lembrar ao bom senso dos que se não contentam com palavras que burgueses e proletários não formam classes necessariamente hostis, como com malévola insistência inculca a suada e bracejada propaganda socialista, mas apenas representam condições econômicas – mutáveis com as incertas correntes ela produção, do gosto público, da concorrência, e tributárias da desigualdade inevitável das aptidões individuais, não pode ser uma pura inutilidade. Por em relevo que as sociedades se não governam pelo capricho dos homens, mas por leis naturais, de tal sorte que a vontade é um fator de evolução ou um agente perturbador, segundo atua em conformidade ou em oposição com essas leis, não pode ser tempo perdido. Evidenciar que a solidariedade humana, contraditória e hipocritamente invocada pelos apóstolos da revolução social, longe de supor uma equivalência dos indivíduos, implica uma cooperação de esforços diversos, hierarquizados, e, portanto; uma diferenciação de funções e de órgãos coletivos, não pode ser um estéril trabalho. Afirma Rafael Garofalo que os progressos do socialismo se devem mais a ignorância, a indiferença ou á benévola expectativa das classes superiores que aos confusos livros dos cientistas da causa e a violenta propaganda dos seus sectários. Interessantes cartas recebidas logo depois de termos traduzido a SUPERSTIÇÃO SOCIALISTA do eminente pensador italiano, vieram provar-nos a justeza e segurança da sua afirmação: no fundo, com efeito, essa espontânea correspondência exprimia, toda ela, o agradecimento de espíritos a quem a leitura da obra permitira corrigir uma vaga tendência irrefletida quer para o coletivismo, quer para o socialismo de Estado. Denunciando-me do modo mais eloquente e mais direto que não foi perdido para a causa da evolução o meu obscuro trabalho de tradutor, essa inesperada correspondência determinou-me a publicação do sóbrio opúsculo, hoje esgotado, com que Herbert Spencer contribuiu para obra de propaganda antissocialista executada sob o título geral EM DEFESA DA LIBERDADE por economistas e sábios ingleses. A essa notável série de monografias em que o socialismo é examinado e combatido em todos os seus múltiplos aspectos, serve de introdução, mercê do seu caráter filosófico, o trabalho que Spencer sugestivamente denominou DA LIBERDADE A ESCRAVIDÃO. Neste escrito do grande pensador encontrarão os meus amáveis correspondentes perfeitamente definido aquele dos sentidos em que o termo liberdade traduz uma noção que, longe de excluir o universal determinismo, o supõe e o implica: - a possibilidade para o homem de subordinar-se às leis impessoais da natureza. Aceitar este sentido é, bem evidentemente, excluir toda a tendência socialista e ao mesmo tempo rejeitar a ilusão metafísica segundo a qual a liberdade humana seria, não uma conquistada condição social, mas um atributo psicológico do indivíduo, um livre arbítrio. Porto - Setembro ele 1904. Júlio De Mattos. DA LIBERDADE A ESCRAVIDÃO Nada mais vulgar em assuntos de ordem social que o desmentido absoluto dos fatos às previsões do senso comum. É o que se observa, por exemplo, quando as medidas adotadas contra a difusão de um livro não fazem senão aumentá-la; quando os esforços para evitar a usura conseguem apenas tornar mais onerosas as condições de quem recorre ao empréstimo; ou quando a compra de um artigo se realiza mais dificilmente nos centros da sua produção que em mercados remotos. Ora, um caso notável entre todos os da mesma categoria é este: - em vez de se esbaterem, as queixas contra a iniquidade dos tempos crescem na medida em que as condições humanas melhoram. A plebe, a que nos séculos passados era vedado o acesso aos cargos públicos, raramente se lamentava da sua situação; mas, desde que as instituições livres atingiram entre nós um progresso que as fez invejadas no continente, logo as acusações ao regime aristocrático se avolumaram até que um alargamento das franquias populares foi obtido. E nem por isso cessaram as queixas; novas e mais ásperas recriminações sobre a marcha dos negócios produziram ainda uma ulterior e mais vasta expansão da liberdade. Examinando a situação das mulheres nos dias da escravidão, quando, em troca dos mais rudes serviços, recebiam apenas os alimentos que sobravam aos homens; depois, na idade-média, quando eram elas quem os servia nas suas refeições; por último, nos nossos dias e sob os nossos costumes, que lhes concedem todas as preferencias, é fácil ver que ao pior tratamento correspondia uma menor consciência da sua desgraçada sorte. Hoje, mais apreciadas do que nunca, ensurdecem-nos com os lamentos sobre a sua inferioridade social; e os mais agudos gritos de dor partem da América, justamente chamada o paraíso das mulheres. Quando, não há mais de um século, seria difícil encontrar na Inglaterra um homem que de tempos a tempos não bebesse até cair, e era objeto do geral desprezo quem quer que se não sentisse capaz de ingerir duas garrafas de vinho seguidamente, ninguém se insurgia contra o vício da embriaguez. Hoje, porém, que cinquenta anos de esforços persistentes das sociedades de temperança, conjugados com causas de natureza mais geral, produziram uma relativa sobriedade, surgem de toda a parte clamorosos pedidos de leis que proíbam o comercio das bebidas alcoólicas. E o mesmo com a instrução. Não vai muito longe o tempo em que só os indivíduos das classes superior e média sabiam ler e escrever; sustentar então que aos operários se devesse fornecer uma rudimentar cultura, seria, pelo menos, ridículo. Mas quando, no tempo dos nossos avós e mercê de alguns filantropos, a criação de escolas dominicais, logo seguida pela de escolas quotidianas, deu em resultado uma considerável diminuição do analfabetismo entre o povo e um correlativo desejo de literatura barata, então de todos os lados um grito geral se elevou: - que a plebe se arruinava por falta de instrução: que ao Estado corria o dever, não só de fornecê-la, mas de torná-la obrigatória. O mesmo ainda com as condições gerais das classes inferiores relativamente a alimentos, vestidos, habitação e outras necessidades da vida. Pondo mesmo de parte o confronto do estado atual com o primitivo, somos forçados a reconhecer que um notável progresso se realizou entre o tempo em que o homem, não ainda civilizado, vivia de pão de centeio, de aveia ou de cevada, e o de hoje, em que é geral o consumo de pão branco de trigo; entre os dias em que ásperos tecidos primitivos mal chegavam a cobrir os joelhos, e os de hoje, em que os operários se vestem, precisamente como os patrões, de roupas brancas e de fatos abundantes; entre a época remota das cabanas sem chaminé ou entre o século XV, em que a casa do senhor era, essa mesma, de ordinário construída sem reboco e sem estuques, e o século atual, em que a mais humilde habitação consta de duas salas, pelo menos, e em que as casas de operários tem quase sempre umas poucas, e sempre o fogão, a chaminé, as janelas envidraça das e, muitas vezes, as paredes forradas a papel e as portas envernizadas. E este indiscutível progresso, este incessante melhoramento das condições gerais do povo acentuou-se ainda mais notavelmente em nossos dias. Quem quer que, recordando o extenso pauperismo e a mendicidade frequente de ha sessenta anos, confrontar essas penosas condições com as de hoje, notará com surpresa as dimensões e a construção das casas operarias, os vestidos dos camponeses, sobretudo nos dias de festa, as toilettes das criadas em perfeita rivalidade com as das senhoras, e uma vida mais complicada e fina exigindo uma alimentação melhor por parte das classes populares, - resultados estes que, seja dito de passagem, procedem de dois fatores: de um lado, o aumento de salários coincidindo com a barateza dos artigos de uso comum; do outro, um novo sistema distributivo das contribuições, colocando as classes inferiores a cargo das superiores. Mas um outro fato despertará ainda a atenção do observador: o contraste entre o modesto lugar que no espirito público ocupava então o bem-estar do povo e o vastíssimo que hoje lhe é consagrado dentro e fora do parlamento. Os projetos de verdadeiro interesse, aqueles que acaloradamente se discutem e para cuja realização se pede sempre o concurso dos filantropos são os que visam o benefício do maior numero. Pois bem; precisamente quando o nível intelectual e físico das massas mais do que nunca se eleva, e quando a diminuição da mortalidade prova que a vida se tornou, em média, menos penosa, é que mais alto e mais agudo soa o grito de que os sofrimentos do povo cresceram de modo que só uma revolução social conseguirá mitiga-los. Em face de progressos tão evidentes e tão intimamente ligados ao aumento da longe vida de que por si sós bastariam a demonstrar uma geral melhoria das condições humanas, afirma-se com veemência crescente que a sociedade chegou a um grau tal de injustiça que importa derrocá-la para a reconstruir em novas bases. Á medida que o mal decresce, aumentam as queixas contra ele; e quanto mais evidente se torna a eficácia da evolução natural tanto mais se tende a afirmar a sua impotência. Mas não se pense que eu julgo pequenos os males a remediar ou que, acentuando um paradoxo, esqueço os sofrimentos de uma grande parte dos homens. A sorte da maioria foi sempre, e decerto o é ainda, tristíssima. O tipo atual de organização coletiva não é de molde a satisfazer completamente o coração dos que se preocupam com a sorte dos seus semelhantes; e o modo por que dentro dele as atividades individuais se exteriorizam, está longe de provocar a admiração. As grandes divisões de castas e a disparidade imensa de fortunas contrastam com o ideal das relações humanas imaginado pelos afetivos; e a habitual conduta reciproca dos homens em meio das angustias e dos estímulos da vida contemporânea determina em muitos espíritos uma verdadeira e justificada repulsão. Conquanto muitos adversários da concorrência deixem de considerar os benefícios que dela resultam; conquanto esqueçam que uma grande parte dos trabalhos e dos produtos, que distinguem a civilização da barbaria e tornam possível a vida de uma vasta população dentro de um restrito espaço, nasceram e se desenvolveram precisamente em virtude da luta pela vida; conquanto não observem que o produtor, sofrendo pela baixa de preço a que o forçam os seus competidores, goza, em compensação, da imensa vantagem, como consumidor, da correspondente barateza de tudo o que adquire; conquanto persistam em avolumar os males da luta econômica sem, como lhes cumpria, indicarem os seus benefícios, - é inegável que os consideráveis defeitos da concorrência lhe atenuam muito sensivelmente as virtudes. Não serei eu quem o negue. O sistema em que vivemos alimenta a desonestidade e a mentira, sugerindo a adulteração de grande número de substancias, sendo o responsável das imitações a baixo preço, que muitas vezes afastam dos mercados os produtos genuínos, conduzindo ao emprego de pesos e medidas falsificados, enfim, difundindo a corrupção, nociva em todas as relações comerciais, desde as do industrial com o grande negociante até ás do lojista com a criada. Este sistema anima de tal modo o embuste que um caixeiro incapaz de mentir descaradamente a um freguês, não tem cotação no comercio; de resto, ele coloca muitas vezes o negociante honrado em face deste dilema: adotar as artimanhas dos concorrentes ou prejudicar pela quebra os próprios credores. A difusão das fraudes mercantis, constantemente revelada nos tribunais e na imprensa diária, é, sem contestação, em grande parte devida á opressiva concorrência das classes industriais e ainda às excessivas despesas a que os homens de negócio se entregam para sustentar o lustre e decoro aparentes das suas casas, - circunstancias que eles sabem ser importantes e, por vezes, decisivos fatores de sucesso na vida comercial. E a estes males secundários um outro, bem maior, deve acrescentar-se: no atual sistema distributivo cabe às classes dirigentes uma quota parte da produção geral muito superior à que recebem as classes operarias. Tendo denunciado e exposto ha trinta anos (Ensaios sobre o Progresso) os vícios orgânicos do sistema de concorrência, eu não poderia lembrar-me agora de ocultá-los. Mas não se trata de uma questão de males absolutos; é de males relativos que temos de ocupar-nos. Se a soma de dores que hoje nos afligem não aumentaria sob qualquer outro regime, ou, o que vale o mesmo, se os esforços para mitigá-las, tentados segundo os métodos até agora seguidos, não tem uma probabilidade maior de sucesso que os empenhados com métodos diametralmente opostos, - tal é o problema que se nos impõe. Dele vou ocupar-me, esperando ser perdoado de começar por estabelecer verdades, que para muitos são evidentes, antes de chegar às conclusões, que o não são tanto. I Em regra, o homem trabalha para evitar o sofrimento, quer o estimule a ideia tormentosa da fome, quer a antevisão de uma pena; os seus atos são determinados pela iminência de dores, ora procedentes de causas naturais, ora de castigos infringidos por agentes humanos. Não pode prescindir de um senhor; este, porém, é umas vezes a natureza, outras o seu semelhante. Quando atua sob o impessoal domínio daquela, dizemos que é livre; quando o governa alguém que lhe está superior, dizemos, segundo o grau de coerção sofrida, que é escravo, servo ou apenas vassalo. É evidente que eu não entro aqui em linha de conta com a pequena minoria dos que herdaram os meios de subsistência e que nas sociedades constituem um elemento incidental e fortuito; eu considero a maioria dos que, instruídos ou incultos, vivem da atividade mental ou muscular e tem de suportar fadigas, - quer conservem livre a própria vontade e obedeçam apenas a ideia dos benefícios ou danos que diretamente podem resultar-lhes da natureza, quer hajam de submeter-se ao trabalho, vinculando a vontade, estimulados pela ideia de prêmios ou de castigos criados por convenções sociais. É sempre sob uma destas duas fôrmas, muitas vezes associadas, mas opostas no fundo, que os homens trabalham coletivamente. Empregando a palavra cooperação no seu sentido mais amplo e não na acepção restrita que habitualmente se lhe dá, podemos afirmar que a vida social se realiza quer pela cooperação voluntaria, quer pela forçada, ou, para empregar os termos de Henry Maine, sob um sistema de contrato ou de estado. No sistema de contrato é concedida ao indivíduo liberdade amplíssima de dirigir os próprios esforços espontâneos como lhe aprouver, dependendo da eficácia deles o êxito ou insucesso finais da sua conduta; no sistema de estado, pelo contrário, o indivíduo tem um posto designado no grupo social, trabalha sob o império de leis e recebe a sua parte de alimentos, de vestuário e uma habitação determinada. Nas sociedades civilizadas as industrias funcionam segundo o sistema de cooperação voluntaria. Na sua forma mais simples e elementar encontramos este sistema em qualquer propriedade rural, em que os jornaleiros, pagos pelo agricultor e dele recebendo ordens diretamente, tem a liberdade de permanecer ou de abandonar o serviço; e em mais complicada forma o encontramos nas fabricas, em que aos patrões se seguem por sua ordem os diretores, os agentes, os fiscais, os mestres e, por último, os operários de diferentes categorias. Em ambos estes casos há evidentemente um trabalho coletivo ou cooperação voluntaria entre quem dá ou dirige uma tarefa e quem a executa, - no primeiro, para colher os frutos da terra, no segundo para obter produtos manufaturados. E na vasta sociedade humana mais extensa é ainda, embora inconsciente, a cooperação de trabalhadores de todas as ordens. Porque, enquanto chefes e subordinados separadamente se ocupam dos seus trabalhos especiais, outros estão fazendo coisas de que carece para sua integral expansão a vida de cada um. Ora, a cooperação voluntaria oferece desde a mais simples ás mais complexas formas este caráter comum: o mutuo acordo no trabalho. Verdade é que em muitos casos podem chefes e subordinados ordenar ou aceitar com relutância um trabalho, declarando-se « forçados pelas circunstâncias ». Mas o que são as circunstâncias? No caso do patrão haverá, por exemplo, encomendas que ele não pode satisfazer ou contratos que não pode cumprir sem dobrar-se e fazer concessões; no caso do operário, a necessidade de obter dinheiro para alimentar-se e aquecer-se pode obrigá-lo a aceitar num dado momento um salário inferior. Assim, a fórmula geral não é: «Executa este serviço ou eu te compelirei a executá-lo», mas: «Executa este serviço ou abandona o teu lugar e suporta as consequências». Em contraste com a cooperação voluntaria de que acabamos de falar, está a cooperação forçada, cujo tipo se encontra nos exércitos, - não tanto no inglês em que o serviço é voluntario e de curta duração, como nos continentais em que ele é obrigatório e a longo prazo. No exército as obrigações quotidianas em tempo de paz-limpeza, paradas, exercícios, guardas, outros ainda, e, em tempo de guerra, os trabalhos de acampamento e as operações ofensivas e defensivas, tudo se executa sob comando e sem possível liberdade de escolha. Do soldado aos oficiais a lei universal é a absoluta obediência do inferior ao superior; a esfera da: vontade individual subordina-se, pois, em todos os casos às ordens de quem, na hierarquia militar, ocupa um posto mais elevado. E as infrações da disciplina são castigadas com a restrição temporária de liberdade pessoal, com aumento de trabalho, com presidio, com varadas e, por último, com a morte. De sorte que a obediência não é neste caso uma, subordinação a certos deveres sob pena de abandono de lugar, como nas coletividades civis, mas um fatal constrangimento da vontade às ordens recebidas sob pena de sofrimentos corporais. Ora, esta forma de cooperação, de que o exército é exemplo, foi em séculos remotos a de todos os povos. Por toda a parte e em todos os tempos, com efeito, as guerras duradouras geram um tipo de organização militar, dominando não só os exércitos, mas a inteira comunidade. E assim, quando, os conflitos entre os povos se multiplicam e a guerra se considera a única ocupação viril, a sociedade torna-se um exército em repouso e o exército uma sociedade mobilizada em que a parte que não combate - escravos, servos, mulheres, velhos e crianças, constitui o corpo de serviços auxiliares. Nestas condições, dominando o corpo combatente e sendo o resto da comunidade incapaz de resistir-lhe, os chefes militares impõem a sua vontade a massa que não luta e a quem se aplica o regime coercitivo do exército, apenas modificado pela diferença de situações. Os prisioneiros de guerra tornam-se escravos; os que eram livres cultivadores antes da conquista do seu país tornam-se servos da gleba; os chefes menos importantes ficam sujeitos aos mais fortes, que, por seu turno, prestam vassalagem a senhores mais poderosos, e assim sucessivamente numa severa hierarquia. As classes e autoridades sociais criadas por este modo não diferem essencialmente das que se encontram nas organizações militares. Mas, ao passo que para os escravos a cooperação forçada é um bárbaro sistema em que o juramento de fidelidade ao senhor assume a fórmula: «Pertenço-vos», uma cooperação apenas em parte obrigatória insinua-se e estende-se nas classes superiores. Na Europa inteira e nomeadamente na Inglaterra o sistema de cooperação forçada foi diminuindo de rigor na lenta e gradual medida em que o substituía a cooperação voluntaria. E compreende-se porquê. Desde que a guerra deixou de ser uma preocupação absorvente na vida, o gênero de estrutura social, que ela produziu e lhe era apropriado, foi-se lentamente mitigando em face de uma nova estrutura provocada pela vida industrial e adequada a esta. Á medida que nas coletividades humanas diminuía o número dos que consumiam toda a atividade em operações ofensivas e defensivas, aumentava o daqueles que, ao contrário, se dedicavam a produção e a troca. Tornada cada vez mais numerosa, cada vez mais forte, e procurando refúgio nas cidades, onde justamente menos se sentia o poder da classe militar, essa população industrial passou a viver num regime de cooperação voluntaria. E, conquanto as municipalidades e as corporações, parcialmente impregnadas de usos e princípios derivados de um tipo social militar, fossem ainda até um certo ponto coercitivas, certo é que a produção e a troca se baseavam já, pela máxima parte, no conceito de mutuo acordo, quer entre compradores e vendedores, quer entre patrões e operários. E nem só nas populações urbanas, mas em toda a comunidade, se tornaram dominantes estas relações sociais; e a cooperação obrigatória declinou ainda pouco a pouco, mercê da troca de serviços civis e militares por dinheiro, ao mesmo tempo que se faziam menos profundas as divisões das castas e diminuía o poder das classes. Por fim, caídos em desuso certos vínculos e privilégios das corporações industriais, bem como o domínio de uma classe sobre outra, a cooperação voluntaria tornou-se universal; e desde então todas as trocas, quer de serviços, quer de objetos, se basearam na compra e venda. II Todos sabem que o continuado repouso numa mesma posição se torna penoso, e ninguém ha que por experiencia própria não conheça que a mais cômoda cadeira, ao princípio agradabilíssima, acaba por ser intolerável, de sorte que a mudança para um assento rustico, já ocupado e já abandonado, parece dar-nos por algum tempo um grande alivio. Alguma coisa de análogo sucede com a sociedade humana. Depois de ter-se emancipado, através de imensas lutas, da severa disciplina do antigo regime, reconhecendo que a ordem atual de coisas, em que se desenvolveu, embora relativamente cômoda, não é isenta de sofrimentos e dores, concebeu por ela uma intolerância que lhe faz desejar uma outra organização coletiva, - idêntica no fundo, senão na aparência, á que, no decorrer de gerações, abandonará com prazer. Facilmente se compreende que, posto de parte o sistema de mutuo acordo, necessariamente se adotará o regime de estado, e que a voluntaria sucederá, substituindo-a, a cooperação forçada. Com efeito, seja ela qual for, a organização do trabalho, se não resultar da mutua convenção e da livre concorrência, será imposta pela autoridade. E assim, o novo sistema desejado (constituído por uma rigorosa hierarquia, em que pequenos grupos de trabalhadores obedecem a chefes menores, estes a chefes, superiores, estes a diretores locais mais elevados, estes, ainda, a superiores distritais, que, por último, do governo central recebem diretamente as ordens), poderá parecer diferente, pelo nome e pela forma, do antigo regime de escravos e servos vergando sob o chicote dos patrões, subalternos eles mesmos de barões e de condes, por seu turno vassalos de duques e de reis, - mas ser-lhe-á idêntico na essência. Num caso, como no outro, deve haver esferas determinadas de autoridade e uma subordinação de cada esfera á imediatamente superior. Mas não reflete nisto o sectário coletivista. Inimigo da ordem atual, dentro de cuja orbita cada um tem de pensar em si, possuindo livre o próprio campo de ação, ele quereria que a sociedade provesse às necessidades individuais; esquiva-se, porém, a pensar no complicado mecanismo que para isso seria indispensável montar. As ideias de providencia e tutela sociais saro inseparáveis. O que a comunidade dará a cada um ha de ser tirado, evidentemente, da acumulada contribuição de todos, de sorte que ela deverá exigir ao indivíduo a sua quota proporcional de trabalho e prescrever-lhe o que ele tem de produzir e de lançar no depósito comum para, por seu turno, adquirir o direito de retirar um equivalente para as suas necessidades. Antes de obter a sua parte de provisões, o indivíduo terá de obedecer aos que lhe prescreverão a natureza, o lugar e as horas de trabalho, bem como a ração alimentar, os vestidos e a própria casa. Abolida a concorrência e com ela a compra-venda, cessará a troca voluntaria de um tanto de trabalho pelo produto equivalente; a avaliação de um e de outro será obra oficial de empregados especiais. E esta avaliação tem de ser obrigatória, imposta: sem direito de escolha há de ser executado o trabalho e aceite a remuneração, porque o operário não poderá abandonar voluntariamente o lugar que lhe foi marcado para oferecer em outra parte o seu braço, como não poderá ser, sem licença da autoridade, recebido em outro serviço. Evidentemente, decretos proibirão que num local se empreguem membros insubordinados de um outro, porque a nova organização seria impossível se os operários pudessem a seu arbítrio deslocar-se. Servindo-se de caporais e sargentos, os capitães da indústria deverão executar as ordens dos seus coronéis, estes as dos seus generais, e estes, por último, as do comandante em chefe. E assim, uma cega obediência, análoga à militar, se exigirá do exército industrial. «Cumpri os deveres que vos são prescritos e recebei o vosso rancho», - tal é, e não pode deixar de ser, a fórmula regulamentar da milícia; essa seria também a dos operários no regime socialista. Admitamos que assim seja, replica o sectário da nova doutrina. Mas os operários elegerão os seus chefes, que ficarão, por isso, sujeitos a fiscalização das massas que dirigem; receando a opinião pública, esses chefes procederão com justiça, sob pena de serem destituídos pelo voto popular, local ou central, segundo os casos. Pode acaso haver tirania da parte de quem depende da autoridade popular?» Nesta dourada visão confia o socialista. Vamos ver que ela não passa de uma quimera. III O ferro e o bronze são corpos muito mais simples que a carne e o sangue, como a fibra vegetal é mais simples que a fibra nervosa. A máquina construída com aqueles metais e movida pelo vapor ou pela água funciona de um modo menos complexo e mais determinado que os organismos vegetais e, por maioria da razão, que os organismos subordinados às forças vivas do sistema nervoso. Assim, calcular o trabalho da máquina é, evidentemente, mais fácil que calcular o de um organismo vivo e, sobretudo, pensante. E, todavia, são bem poucos os casos em que o inventor pode prever com segurança o funcionamento de um aparelho novo! Basta lançar os olhos sobre um catalogo de privilégios para reconhecer que um apenas de cinquenta inventos resulta de alguma utilidade. Quando o inventor pensa que o seu projeto vai cativar a admiração geral, uma dificuldade entrava as operações, conduzindo a um resultado muito diverso do que ele desejava. Que diremos então de projetos relativos, não a forças e matérias inanimadas, mas a complicados organismos vivos, em cujo trabalho, insusceptível de exata previsão, se implica o concurso de multidões de outros organismos semelhantes? As próprias unidades deste renovado corpo social são muitas vezes incompreensíveis: a cada passo, com efeito, nos surpreende a conduta dos outros, mesmo dos que mais de perto e mais intimamente conhecemos. Ora, se assim são precárias e incertas as previsões relativas aos atos de um indivíduo, como poderemos antever com segurança os movimentos de um grande corpo coletivo? O socialista parte do principio de que todos pensarão e atuarão com justiça e consciência, não tendo em conta a observação de todos os dias que demonstra o contrário, e esquecendo-se até de que as suas acusações contra a ordem atual revelam precisamente a crença de que o homem não possui na realidade nem a prudência, nem a retidão que o plano coletivista lhe exigiria. As constituições políticas e os sistemas sociais fazem sorrir os que lhes observaram os resultados ou de qualquer outro modo lhes estudaram a eficácia. Os homens que promoveram a revolução francesa e tornaram o principal papel no estabelecimento da nova forma de governo estavam muito longe de pensar que um dos primeiros atos do novo regime seria decapita-los. Os que proclamaram a independência da América e fundaram a sua republica, não previram, certamente, que ao fim de poucas gerações o poder legislativo cairia nas mãos de brasseurs d'affaires e de intrigantes, que a vida política por toda a parte se inquinaria de um elemento estrangeiro destinado a estabelecer, o equilíbrio entre os partidos, que os cidadãos, em vez de votarem livremente, iriam a uma arregimentados por empreiteiros eleitorais, enfim, que as mais notáveis individualidades seriam afastadas da vida pública pelos insultos e injurias dos politicantes de profissão. Nem previsões semelhantes conceberam, certamente, os que deram forma às constituições desses Estados da América espanhola, em que revoluções sem número demonstram com maravilhosa insistência o contraste entre o êxito esperado e o insucesso real das novas organizações políticas. E com os sistemas de reorganização social diz a experiencia que as coisas se têm passado até hoje analogamente. Excepção feita de uma ou outra associação de celibatários, a história das tentativas comunistas apenas regista dissolução e ruinas. A este propósito é edificante o que sobre a colônia de Cabet escreve em The Open Court M.me Fleury Robinson, que dela fez parte: - uma narrativa de continuas lutas e de cisões, terminadas por uma dissolução definitiva. Uma mesma causa geral determina o insucesso dos projetos de ordem social e de caráter político. IV A transformação é uma lei geral do universo. Visíveis em toda a parte, os seus exemplos são, todavia, mais apreciáveis no mundo orgânico e nomeadamente no reino animal. Excepção feita das estruturas mais simples e infinitamente pequenas, nenhum ser inicia a vida por uma das formas que revestirá mais tarde; e na maioria dos casos sucede mesmo que a dessemelhança entre as formas primitiva e última é tão grande que a afinidade entre elas se não aceitaria, se a observação quotidiana dos aviários e jardins nos não demonstrasse a indefinida extensão das metamorfoses orgânicas. Às vezes mesmo as transformações são múltiplas, representando cada uma delas uma evolução aparentemente acabada: ovo, larva e crisalida, por exemplo. Ora, visível em tudo o que germina á superfície da terra, esta universal transformação verifica-se também na sociedade, quer a consideremos, em globo, quer nas suas instituições. Nenhuma destas acaba como principiou; e a diferença entre a sua estrutura original e a atingida num dado momento histórico é por vezes tão profunda que ninguém, de começo, a julgaria possível. Nas tribos mais rudimentares o chefe, obedecido como general, perde a sua privilegiada posição desde que a batalha cessa; e mesmo quando a continuidade da guerra origina a autoridade permanente do chefe, é este quem constrói a própria cabana, quem procura para si os alimentos e quem fabrica os utensílios de que precisa, não diferindo dos outros membros da sua tribo a não ser por uma influência preponderante. Nesta alvorada social nada faz prever que um dia, mercê de conquistas, de uniões de tribos e de anexações de grupos até a formação de verdadeiras nacionalidades, surgirá desse chefe primitivo alguém que, imperador ou czar, ha de exercer por intermédio de centenas de milhares de soldados e oficiais um poder despótico sobre inumeráveis milhões de homens. Quando os primeiros missionários cristãos, humílimos de aspeto e levando uma vida de sacrifício, se espalharam sobre a Europa politeísta e pagã, aconselhando o perdão das injurias e pregando a troca do mal pelo bem, decerto ninguém pensaria que os seus representantes futuros haviam de constituir uma vasta hierarquia, por toda a parte senhora de consideráveis propriedades, caracterizada pela soberba dos seus membros, governada ás vezes por bispos guerreiros e dependente de um papa exercendo o seu supremo poder sobre imperadores e reis. E o mesmo sucedeu em relação ao sistema industrial, que tantos hoje desejam ver substituído. Ninguém, quando ele se iniciou, poderia prever as empresas atuais e as associações de operários. Então, ajudado de alguns aprendizes e oficiais, era o próprio patrão quem executava o trabalho, distinguindo-se apenas dos seus colaboradores pela qualidade de dono da casa; vivendo com eles sob o mesmo teto e a mesma mesa, ele próprio vendia os produtos da atividade comum. Mas a expansão industrial tornou necessário um número cada vez maior de cooperadores e forçou o patrão a dispensar-se de todo o serviço que não fosse a fiscalização da oficina. E assim, com o tempo, surgiram esses grandes estabelecimentos atuais em que o trabalho de centenas de milhares de homens salariados é dirigido por empregados de diferentes ordens, a seu turno pagos por um ou mais chefes supremos que os dirigem. Esses núcleos de produtores, originariamente pequenos e quase socialistas, certos grupos de famílias e as primeiras comunidades operarias foram lentamente desaparecendo, porque não podiam manter-se; e institutos mais vastos, mais poderosos, com uma divisão melhor de trabalho, lhes sucederam, porque podiam mais eficazmente corresponder às necessidades sociais. Mas não é preciso recuar tantos séculos para encontrar vestígios de grandes e inesperadas transformações. Quando pela primeira vez e a título de experiencia foi votado o subsidio anual de trinta mil libras para a instrução publica, seria considerado imbecil quem se lembrasse de profetizar que dentro de cinquenta anos a despesa atingiria, somadas as contribuições do Estado e as locais, a cifra de dez milhões esterlinos. De idiota seria tratado igualmente quem predissesse que as taxas para o ensino seriam seguidas de outras para alimentos e vestidos, ou que rapazes e pais seriam forçados, sob pena de prisão e de multa, mesmo quando indigentes, a receber o que o Estado pretenciosa e pomposamente denomina Instrução. Ninguém, decerto, sonharia que de um germe tão inocente na aparência havia de nascer o tirânico sistema tão mansamente suportado por homens que se imaginam livres. A transformação é inevitável nas organizações sociais, como em tudo. E é uma loucura supor que uma nova instituição pode conservar por longo tempo o caráter que lhe imprimiram os seus criadores; rápida ou lentamente ela transformar-se-á em outras instituições diferentes, - e tão diferentes que as não reconheceriam os que a idearam. E qual será a transformação no caso que discutimos? Até onde os exemplos e as analogias nos permitem fazer inferências, a resposta é manifesta. Um constante caráter peculiar de todas as organizações sociais em evolução é o incremento legislativo. Se as várias partes de um todo têm de atuar simultaneamente, certas disposições são necessárias para regular-lhes e dirigir-lhes os movimentos; e, à medida que o todo aumenta e se multiplica, e que ao maior número das suas funções deve corresponder um equivalente de forças vivas, o mecanismo dirigente vai-se tornando por seu turno mais extenso, mais complexo e mais forte. Este princípio, verificável nos organismos, é-o igualmente nas coletividades humanas. Ora, assim como nas sociedades atuais um aparelho regulador é necessário para provar a defesa nacional, a ordem pública e a segurança dos cidadãos, assim no regime socialista deve existir um qualquer mecanismo regulador que por toda a parte domine autoritariamente a produção e a distribuição. No atual regime de cooperação, baseado no contrato e na concorrência, a produção e o consumo não exigem a intervenção oficial. A oferta, a procura e o desejo que cada um tem de ganhar os meios de subsistência própria satisfazendo as necessidades de outrem, espontaneamente determinam o maravilhoso sistema que torna possível numa grande cidade a diária aquisição imediata dos alimentos, quer nos mercados, quer ás portas das casas, e que a todos permite obter prontamente os vestidos, o alojamento, a mobília, o combustível e até o pão do espirito, representado pelo jornal, que nas ruas e praças se vende por um soldo a toda a hora, pela publicação semanal do romance e pelos livros de instrução, menos abundantes, mas ainda numerosos e de baixo preço. Com um mínimo de vigilância para cada Estado, a produção e a distribuição exercem-se ativamente; de sorte que o fornecimento de quanto é necessário a vida se realiza sem o concurso de outro agente que não seja a prossecução do ganho. Para conseguir o que hoje depende apenas da gente de negócio - distribuir nas cidades, nas vilas e nas aldeias as coisas necessárias á vida das populações, que vasta administração não seria exigida! Faz vertigens pensar na complicada organização administrativa indispensável para obter todo o enorme trabalho que hoje executam os agricultores, os industriais e os comerciantes. Porque, naturalmente, haverá não só várias ordens de superintendentes locais, mas centros diversos, de maior ou menor importância, para o fornecimento oportuno de todos os objetos de consumo onde quer que eles sejam exigidos. E que diremos do Estado Maior encarregado da fiscalização dos trabalhos de minas, de caminhos de ferro, de estradas e de canais? do numeroso pessoal que deverá regular a importação e exportação, e administrar a marinha mercante? do pessoal preciso para fornecer às cidades não só o gás e a água, mas os tramways, os ônibus, a força motora, a eletricidade e o resto? Juntemos a isto as atuais administrações dos correios, telégrafos e telefones, e ainda as da polícia e da força armada, que terão de impor a obediência aos decretos deste colossal mecanismo regulador, e esforcemo-nos, depois, por conceber as condições dos operários de hoje. No continente, onde o mecanismo do Estado é muito mais complexo e coercitivo que entre nós, erguem-se já incessantes clamores contra a burocracia, a brutalidade e a arrogância dos seus membros. O que serão estas, quando a autoridade burocrática se estender não só aos públicos, mas a todos os atos dos cidadãos? Que acontecerá quando os contingentes deste vasto exército de empregados (unidos pelos interesses comuns da autoridade, que são os interesses de quem manda em oposição com os de quem obedece) tiverem a sua disposição a força precisa para reprimir insubordinações e salvar a sociedade? Qual será a sorte dos atuais cavadores, mineiros, fundidores e tecelões, quando os chefes oficiais, uma vez constituídas as diversas classes, tiverem ao fim de algumas gerações conseguido ligar-se a indivíduos de postos congêneres e obedecendo a sentimentos análogos aos das classes de hoje? quando por este processo eles formarem uma série de castas e, absorvido todo o poder, tiverem conseguido vantagens superiores na vida e formado uma nova aristocracia, mais complexa e melhor organizada que a antiga? Não é difícil imaginar o que seria nestas condições a vida de um operário descontente, que julgasse não receber uma quota proporcional ao seu trabalho, que se supusesse obrigado a uma tarefa superior às suas forças, que quisesse prestar serviços mais conformes com as suas aptidões, mas reputados inconvenientes pelos superiores, ou que, enfim, desejasse empreender uma carreira independente. Submeter-se ou desistir do trabalho, - eis o dilema posto diante desta unidade insatisfeita do imenso mecanismo, porque a mais benigna pena contra a desobediência deverá ser a excomunhão industrial. E se a forma socialista ha de ser a adotada na organização internacional do trabalho, a exclusão de um país implicará a exclusão de todos os outros e, portanto, a fome. Que as coisas terão de tomar este aspecto, é o que naturalmente se conclui não só dos exemplos do passado e das analogias fornecidas pelos organismos de toda a ordem, mas dos fatos que diariamente observamos. As organizações regulamentadas tendem constantemente a aumentar de poder, como o demonstra qualquer sociedade constituída, seja qual for o seu fim. O conselho diretor, permanente no todo ou em parte, é quem manda e opera realmente, sem receio de resistências sérias, mesmo quando a oposição parece numerosa: a repugnância por tudo o que representa uma rebelião basta, de ordinário, para dominar os dissidentes. É o que acontece nas sociedades por ações, nas dos caminhos de ferro, por exemplo. Os projetos do conselho administrativo são geralmente aprovados ao fim de uma curta discussão, se chegam mesmo a discutir-se; e, se alguma considerável oposição irrompe, os testas-de-ferro da administração encarregam-se de a dominar pelo número de votos. É preciso que os erros de gerencia excedam todos os limites para que os acionistas se decidam a destituir o conselho da sociedade. E não se passam as coisas de outro modo nas Trades Unions, associações operarias destinadas a tutelar os interesses do trabalho. Nelas, como em todas as sociedades, o elemento dirigente adquire cada vez mais força e mais poder. Mesmo dissentindo da linha de conduta dos chefes, que aliás elegeram, os sócios costumam dobrar-se a sua autoridade; não podendo separar-se dos companheiros sem se tornarem seus inimigos e sem perderem todas as probabilidades de ocupação, preferem submeter-se. O último congresso revela-nos que na organização geral das Trades Unions de recente formação se começa a deplorar a presença de intrigantes políticos e de empreiteiros exploradores, bem como a tendência aos corpos administrativos permanentes. Se a supremacia dos dirigentes é já tão manifesta em associações de origem moderníssima e formadas de homens que tem na sua maior parte o direito de afirmar a própria independência, que alturas não atingirá o poder dos chefes em sociedades antigas e aperfeiçoadas, quando a sua autoridade se estender a todos os atos, públicos e particulares, dos subordinados? V Replicar-se-á, porém: «Estaremos em guarda contra todas as eventualidades; uma boa educação e uma boa instrução gerais permitirão vigiar eficazmente o poder, prevenindo abusos». O fundamento destas esperanças, mesmo quando nos fosse impossível precisar as causas da desilusão que as espera, deveria considerar-se bem pouco solido, pensando que nas coisas humanas os mais dourados projetos acabam sempre de um modo tristemente imprevisto. Mas, no caso que nos ocupa, o insucesso resultará necessariamente de causas evidentíssimas. O modo por que funcionam as instituições depende do caráter dos homens; ora, como vamos demonstrar, eles não têm as qualidades morais que seriam indispensáveis para impedir o incremento de uma burocracia despótica. Provas indiretas do que avançamos, se fosse preciso apresentá-las, fornecê-las-ia abundantes o partido liberal inglês, hoje enfeudado a política pessoal de um chefe e tão esquecido dos seus princípios que condena como renegados aqueles dos seus membros que não abdicam da própria independência. Mas não são necessárias provas indiretas para evidenciar que a massa dos homens não tem qualidades para obstar a expansão de um autoritarismo tirânico; bastam-nos provas diretas fornecidas pelas classes em que mais predomina a ideia socialista e que mais interessadas se julgam em propaga-la: as classes operarias, que a nova organização social imprimiriam fisionomia pelo número e pela influência do próprio caráter. Examinemos, pois, o que se passa nas associações operarias já constituídas. Em vez do egoísmo dos proprietários e patrões, aguçado pela concorrência, deveria nelas dominar o altruísmo de um sistema baseado no socorro mutuo. Longe disso, porém, os seus regulamentos limitam o número ele braços a admitir em cada indústria e põem toda a sorte de obstáculos a passagem de operários de uma categoria a outra superior. Não há nesses documentos um só vestígio do espírito altruísta em cujo nome o socialismo deveria propagar-se; ao contrário, domina-os uma preocupação de interesses pessoais não menos viva que a dos homens de negócio. E assim, a não admitirmos que a natureza humana atinja uma súbita perfeição, o ensinamento dos fatos é que a prossecução egoísta dos próprios interesses caracterizará a conduta dos indivíduos em todas as classes da ideada sociedade futura. Mas há mais. Nas organizações operarias os direitos alheios não são apenas olhados com passiva indiferença: são ativamente violados. «Sê dos nossos ou tirar-te-emos os meios de viver», - tal é a habitual ameaça das Trades Unions aos companheiros que estão fora dos seus grêmios. Afirmando com insistência o direito de estabelecer e fixar as condições do trabalho (o que é perfeitamente justo), os membros dessas agremiações não toleram que um operário o exerça, a não ser segundo as prescrições societárias: neste assunto, um dissentimento é um crime. Os que pretendem livremente dispor da própria atividade, usando do direito de contrato, não passam para essa gente de trânsfugas e de traidores; e sabe-se bem que só o receio das penas e a intervenção da força pública os colocam ao abrigo de violências brutais. Mas há mais ainda. Não contentes de calcarem aos pés os direitos dos próprios companheiros, os unionistas tentam já peremptórias intimações às classes proprietárias: com efeito, eles pretendem não só que sejam respeitados os termos e as condições preestabelecidas do trabalho, mas que nenhum estranho a corporação possa ser empregado. Daqui, as greves nos casos em que os industriais se entendem com sociedades operarias que fornecem trabalho a indivíduos não filiados na União. Assim, as Trades Unions manifestam o deliberado propósito de impor os seus regulamentos, sem a mínima atenção pelos direitos dos que tem de suportar lhes os efeitos coercitivos. E tão completa é nelas a perversão de ideias e sentimentos que o respeito por esses direitos se considera censurável, e se reputa digna de louvor a sua violação. Paralelamente com este sistema agressivo manifesta-se, em outro sentido, uma abjeta submissão. Às medidas coercitivas dos unionistas contra os outros operários corresponde, com efeito, a cega disciplina com que obedecem aos chefes: para poderem vencer na luta, renunciam a liberdade de ação e ás próprias opiniões, nunca exteriorizando ressentimentos contra a despótica autoridade sobre eles exercida. Abandonam e retomam em massa o trabalho, segundo as ordens dos chefes, e, não só não opõem resistência às taxas que lhes são impostas para a manutenção de greves, com que podem não concordar, mas maltratam os membros recalcitrantes da classe que não querem subscrever. Estes traços característicos têm necessariamente de exercer uma ação direta sobre todas as novas organizações sociais; daqui, a natural pergunta: a que resultados chegarão elas, uma vez emancipadas de todo o freio? Hoje, as diversas corporações operarias desenvolvem-se num meio que em parte lhes é indiferente e em parte hostil, estão sujeitas a crítica e a censura de uma imprensa independente e tem de submeter-se a lei apoiada na força pública. Ora, se em tais condições elas percorrem o seu caminho esmagando a liberdade individual, o que acontecerá quando, em vez de serem apenas núcleos esparsos da comunidade, sob direções distintas, constituírem a coletividade inteira, governada por um sistema único de autoridades dirigentes? quando todos os funcionários, compreendidos os encarregados da imprensa, fizerem parte do poder executivo, e quando a própria lei dimanar de uma tal autoridade? Os fanáticos do socialismo estão dispostos a recorrer a todos os processos, ainda aos extremos, para a consecução dos seus ideais, sustentando, como o clero feroz de outros tempos, que os fins justificam os meios. Assim, quando uma organização socialista se constituir, devemos esperar que os seus dirigentes pratiquem sem o menor escrúpulo todos os atos coercitivos que julguem necessários aos interesses do sistema (leia-se: dos próprios interesses) e não vacilem um momento em impor uma férrea autoridade a todos os atuais operários até que definitivamente se forme uma oligarquia oficial de múltiplos graus, cujo despotismo será mais terrível e monstruoso que todas as tiranias até hoje vistas. VI Seja-me licito, insistindo, rejeitar uma falsa conclusão. Cai em gravíssimo erro quem supor que os precedentes raciocínios visam a demonstrar a minha satisfação pelo estado atual de coisas. A forma social de hoje é transitória, como o foram as passadas; e eu creio e espero que um novo estado coletivo ha de vir, tão diverso do contemporâneo quanto este o é do antigo com os seus cavaleiros couraçados e os seus servos inermes. Em trabalhos anteriores claramente manifestei o desejo de uma ordem de coisas capaz de conduzir melhor e mais depressa que a atual a felicidade humana. A minha oposição ao socialismo resulta do convencimento de que ele sustaria a civilização, fazendo-nos regressar ás mais longínquas origens. Só a lenta modificação da natureza humana, educada na vida social, poderá conduzir a resultados vantajosos e duradouros. Um erro muito espalhado e comum a quase todos os partidos políticos e sociais, é o que consiste em crêr que há contra os males humanos remédios radicais e imediatos. «Se tivésseis procedido deste modo, o mal teria sido evitado»; - adotai o meu plano, e os sofrimentos sociais desaparecerão»; «sem dúvida, a corrupção cessará desde que tal medida seja posta em pratica», - tais são as afirmações, manifestas ou implícitas, com que sempre deparamos. E, todavia, nada há menos fundado. É, decerto, possível remover as causas que exacerbam um mal ou dar uma nova forma a um sofrimento coletivo, como é possível e mesmo frequentíssimo agravar uma situação penosa pelos esforços empenhados para remedia-la; mas uma cura imediata é absolutamente impossível. Multiplicando-se, a humanidade conseguiu no curso de milhares de anos sair desse estado selvagem primitivo em que, pouco numerosa ainda, se nutria de alimentos diretamente fornecidos pela natureza, para chegar à civilização atual, em que só por um trabalho continuo se obtém o necessário a subsistência de grandes massas. O caráter natural exigido pela adaptação a este último gênero de vida é muito diverso do que possuía o homem primitivo; e um período extensíssimo de dores assinala a passagem de um para o outro. A infelicidade dos homens nasceu, sem dúvida, de uma desarmonia entre as suas condições nativas e as exigências de uma constituição social. Ora, herdado dos homens primitivos, o caráter ainda se não ajusta às condições sociais impostas aos homens de hoje; daqui, a impossibilidade radical de estabelecer subitamente um estado coletivo que satisfaça ás exigências humanas. Não é, decerto, essa barbara natureza humana que lançou sobre a Europa milhares de exércitos sedentos de conquistas ou de sangrentas desforras; que estimula as nações cristãs a guerrearem-se através do mundo inteiro em miseras empresas de flibusteiros, calcando o direito das gentes com a aquiescência complacente de milhares e milhares de sacerdotes da sua religião de amor; que, tratando com as raças inferiores, exorbita do axioma primitivo «vida por vida», pois por uma só exige muitas, - não é, seguramente essa natureza que pode submeter-se a uma vida comum de harmonia. Por isso dizíamos que é impossível estabelecer subitamente um estado social que satisfaça as exigências da felicidade. A base de uma sociedade bem organizada é o sentimento de justiça, que se reclama do princípio da liberdade de todos e de cada um; ora, um tal sentimento é ainda hoje excessivamente fraco. Daqui, a necessidade imperiosa de seguir por longo tempo uma disciplina social que exija de cada homem o desenvolvimento das próprias atividades com o respeito devido ao direito que os outros tem de expandir as suas, e que, garantindo-lhe os naturais benefícios da conduta seguida, lhe lembre também que os insucessos os deve ele suportar e não outrem. Daqui ainda, a convicção em que estou de que os esforços para iludir esta disciplina social, não só não serão eficazes, mas implicarão consequências piores que os males chamados a remediar. Assim, não é no interesse particular das classes proprietárias, mas no próprio interesse dos proletários que o socialismo deve ser combatido. Por um processo ou por outro a produção terá de ser sempre regulada; e os indivíduos encarregados disso constituirão necessariamente uma classe restrita em face da grande massa dos produtores. No sistema atual de cooperação voluntaria, as classes dirigentes, procurando o próprio interesse, guardam para si uma parte do produto geral, tão grande quanto lhes é possível; mas, como nos demonstram diariamente os sucessos das Trade Unions, são enfreadas na egoísta consecução dos seus fins. Ao contrário, no regime de cooperação forçada, que o socialismo inevitavelmente determinaria, os dirigentes, procurando o seu interesse com idêntico egoísmo, não encontrariam a resistência dos operários livres; e o seu poder, não limitado, como hoje o é, pela recusa de trabalho em condições inaceitáveis, cresceria a ponto de tornar-se irresistível. E, por fim, como já deixei antever, seriamos reduzidos a uma pavorosa sociedade como a do antigo Peru, em que a massa do povo, arregimentada em grupos de dez, de cinquenta, de cem, de quinhentos, de mil operários, comandados por chefes de graduação correspondente e vinculados ás suas ordens, era dirigida e vigiada em todos os seus atos, privados e sociais, - arrastando, para sustentar o peso da organização governativa, uma desesperançada existência de escravidão. NOTA: Nada mais estranho que as conclusões a que invariavelmente conduz o abandono do princípio segundo o qual a cada um cabe o direito do procurar-se os meios de subsistência sem outro limite quo não seja o respeito devido a análogo direito doutro. A geração que precedeu a nossa proclamou altamente o direito ao trabalho, sustentando, como muitos sustentam ainda hoje, que ao Estado incumbe garantir o emprego da atividade de cada um. Pois bem; na época do máximo esplendor da monarquia francesa a doutrina corrente era esta: o direito ao trabalho é uma prerrogativa que o príncipe pode vender e que os súditos devem adquirir! Há aqui um singular contraste, em verdade; mas não nos admiremos excessivamente, porque alguma coisa de semelhante se passa em nossos dias. Nós estamos assistindo a uma revivescência da despótica fórmula francesa, com a diferença apenas do quo as Trades Unions são agora os príncipes. Dado, com efeito, o crescente desenvolvimento destas associações em que os operários são forçados a filiar-se, pagando taxas prescritas, sob pena do não obterem emprego para a sua atividade, chegamos a situação em que o direito ao trabalho se tornou uma prerrogativa das Trades Unions, que elas podem vender e que os trabalhadores devem comprar.