Herbert Spencer – Educação Intelectual, Moral e Física Meglio sapere per meglio volere e meglio potere. Angioli. Prefácio No remate de um livro precioso - onde, graças a um talento de primeira plana, um critério poderoso, e um caráter inflexível e justo, a curva da evolução histórica portuguesa é traçada com uma fidelidade assombrosa - um eminente escritor nosso entoa, após o grito dolorido, inspirado pela miséria última, a nota suavíssima da esperança numa redenção futura. «Sob a nossa parda fisionomia coletiva, sob a nossa mudez patriótica», Oliveira Martins parece-lhe sentir «crepitar, latente e ignota, a chama de um pensamento indefinido ainda ». Aos desesperados por tanta calamidade, aos torturados por este meio sufocador que esteriliza o intelecto, anula as capacidades, deprava o caráter e destrói a dignidade, a profecia, embora dúbia, de quem penetrou com o senso histórico no viver das sociedades, é um lenitivo para as agruras do presente e um incitamento para sacrifícios obscuros em prol da obra da regeneração vindoura. Mas o espírito impacienta-se e vacila ainda, ao ver que desta crisálida repelente e tórpida, ora imobilizada, ora contorcendo-se em movimentos vagos, tanto tarda em emergir um novo ser, expandindo-se livremente ao ar puro e a luz vivíssima da civilização e do progresso. As leis universais da evolução, desde a geologia a história, afirmam que o lento acumular de ações modificadoras pode terminar por uma metamorfose súbita. Aclamam-se presentemente pensamentos novos, suscitam-se energias desconhecidas, despontam ideais vagos, e surgem aqui e além pequenos núcleos de força; tudo isso é indefinido, desconexo, desorientado mesmo, mas, sob o ponto de vista evolucionista, não será uma crise mental que progressivamente se acentua, a elaboração penosa de uma mutação profunda, a embriogênese de um novo organismo social e político? Foi por um processo análogo de sociogenia que o povo português se ergueu nas épocas passadas entre as nações da Europa, afirmando a sua individualidade possante; ora no período atual de tentativas e de esforços, de criação e conglomeração de forças não se desenrolará também um fenômeno de dinâmica social, que nos arraste mesmo a novas fases de vida, e ao nome obscuro e desprezado hoje o inscreva mais uma vez nas páginas amplíssimas da história? O movimento reorganizador em Portugal patenteia-se sob diversas formas; mas dentre esses sintomas de uma reação salutar, tão débil ainda, destaca-se a apresentação de um problema capital, base de toda a reconstituição social ou econômica, científica ou política - é a questão pedagógica. Ha anos que as normas de uma educação nacional se ventilam no jornal, no livro, na conferência, no parlamento. Ha anos que os governos despejam da magra cornucópia das suas providencias, decretos, regulamentos, programas e portarias, deixando adivinhar uns vagos desejos de reforma e aperfeiçoamento da instrução pública. Acodem ouvintes a conferências cientificas, leem-se livros de educação, tem uma extração crescente as obras destinadas a vulgarização de conhecimentos, instalam-se jardins de infância, celebra-se o centenário de Froebel, e fundam-se revistas escolares. Por outro lado, o parlamento abre um intervalo nas suas biliosas retóricas para ouvir a voz eloquente de Rodrigues de Freitas, o apostolo fervente das novas ideias, e gasta a discutir planos de instrução primaria e secundaria algumas sessões roubadas ao ramerrão inepto das suas objurgatórias favoritas. Não se assinalará em tudo isto para a pedagogia nacional o fermento de uma opinião pública e o esboço de uma formula política? É desgraçadamente incontrastável, todavia, que de todos os atos e resultados dessa cruzada, tentada pela iniciativa particular e governativa, bem pouco poderá passar pela fieira de uma crítica esclarecida e independente. Nas escolas, raras e mal instaladas, perpetuam-se os odiosos regimes do velho ensino tradicional, instrumentos implacáveis do nosso abastardamento intelectual e moral. A delicadíssima tarefa da educação mental das crianças é confiada por via de regra a homens inscientes e ineptos; e é sob a irresponsabilidade legal que se trucida a inteligência e se perpetram delitos execrandos contra o saber e contra o senso comum. O povo, naquela suprema inconsciência própria de um país de analfabetos, ignora que a educação integral faz parte intrínseca das instituições democráticas. A burguesia, essa que dá hoje o tom dominador à sociedade e à política, na máxima apatia pelos problemas pedagógicos, não cura dos males físicos e intelectuais que aos seus filhos infligem as escolas públicas, e preocupa-se tão somente com a profissão social ou o diploma que a frequência das aulas oficiais justa ou injustamente confere. Na tribuna das câmaras, os corifeus da eloquência e da técnica parlamentares soltam os últimos dislates em matéria de instrução nacional; eles, os vigilantes da segurança e do progresso, eles, os possuidores do paládio pátrio, não manifestam a menor compreensão racional e científica da escola como órgão social subordinador e enervador de toda a funcionalidade mental, econômica, profissional e política do país. Infiltrados por um burocratismo abominável, os representantes do poder executivo e legislativo concebem, gestam e dão a luz, a cada sessão, como produtos espúrios de coito maléfico, medidas sobre instrução nacional, cunhadas no mais boçal empirismo. Sob a influência do método dominante dos expedientes, não curam das causas intimas do mal, nem dos meios terapêuticos radicais; temporizando por conhecido hábito político, numa expectação inexplicável, adstringem-se a aplicação duns paliativos banais, editando regulamentos que duram a manhã das rosas, errando descontentamentos e incertezas, mecanizando e esterilizando a vida escolar. E quando algum membro da câmara, espírito lucido, digno e patriota - uma excepção rara de que podiam os apresentar alguns exemplos honrosos - se insurge contra estes processos mesquinhos oportunismo inane, e encara a questão dentro dos indeclináveis princípios científicos e sociológicos, coordenando todos os dados com as necessidades do presente e as aspirações do futuro, não desperta no cérebro pequeno da representação nacional outra ideia que não seja a de apelidá-lo um visionário acadêmico, um teórico vão, na profunda ignorância prática de que a instrução pública é uma dependência, como qualquer outra, ... das secretarias do estado. Tal é ainda a incongruência do momento atual em matéria pedagógica; desponta um mundo novo, amplamente aberto à ciência e ao progresso, mas predominam as crenças, os preconceitos, a ignorância do velho mundo que lentamente se dissolve; penetram no corpo social novos elementos repletos de vida e força, mas mantem-se a ação malfazeja de um passado obscuro, sombra teimosa e terrível que há de esvair-se pouco e pouco ao choque luminoso das novas formulas. Preparar-nos para a vida completa, para a vida no sentido mais lato da palavra, diz Spencer, este o fim da educação. Cultura harmônica e metodicamente aplicada ao desenvolvimento das faculdades naturais do homem, a educação cria ao indivíduo um verdadeiro meio interno, rico de normas de ação e de elementos de trabalho. Robustecer o corpo, enriquecer o espírito, formar o caráter, tais são os pontos capitais do seu complexo programa, da plena execução do qual tem de surgir a entidade social nas melhores condições de felicidade pessoal e dos seus semelhantes (J. Mil, Spencer), e de atingir o máximo grau de perfeição (S. Mil). O animal tem a sua direção no instinto, de um modo fatal e predeterminado; o homem esse tem de criar para si mesmo uma linha de conduta. Por isso Kant, o Copérnico da filosofia moderna, dizia que a educação converte a animalidade em humanidade; e, de acordo com o eminente organizador do criticismo, Siciliani assina a ciência pedagógica, como seu objeto especifico, estatuir os princípios e indagar dos meios pelos quais o ser humano de animal se eleve a homem, de homem in posse se torne homem in atu: Esta passagem da criança ao homem seja-me permitido mecanicamente exprimi-la, olhando-a como uma transformação de forças potenciais em forças vivas, que a educação regulariza e subordina de acordo com a máxima utilização individual e coletiva. Assim concebida, a função educativa nãos era a mais sagrada e a mais potente das funções sociais? O pensamento moderno guindou-a ao par das ciências capitais da sociologia dinâmica. Soberana inauguradora de uma nova era de organização social, em que todos os fatores coletivos se recomponham numa homogeneidade harmônica, é ela a disciplina do século por excelência. É ao problema educativo que intimamente se prendem as mais graves e as mais imperiosas das questões do dia. É a arena pedagógica que se acolhe a luta suprema da civilização. O grande campo de batalha, disse-o Litré, é o da educação e da escola. A crise que decorre, profunda como nenhuma outra, que transforma todas as concepções, todas as crenças e disciplina a mentalidade por novas normas, deve a pedagogia o seu triunfo atual no domínio teórico e no domínio prático, na esfera da ação científica e na esfera da ação política. Some-se progressivamente nos recôncavos da história aquele afrontoso servilismo da atividade humana a princípios dogmáticos, misteriosos e intangíveis, emanados de uma autoridade teocrática ou divina, de uma fonte extrínseca a consciência pessoal. A esses lemas supranaturais e preterindividuais se encadeavam o saber e a energia, a inteligência e a moral, as artes e as indústrias, o estado econômico e o estado social. Mas a investigação positiva, racional e livre, numa timidez decrescente, começou de criar um domínio seu, a que firmou forros de autonomia, e que emancipou de preconceitos; foi o domínio das ciências naturais. Emanação do próprio homem, cresceu e ampliou-se, fora da influência e a despeito da mesma autoridade supra-humana; e derramou de tal arte os seus beneficies por sobre os povos que o seu desenvolvimento majestoso, os seus trabalhos titânicos, as suas maravilhosas descobertas são a parte mais bela, mais profícua e mais nobre da história da humanidade. Havia, porém, um campo refratário ainda a estas explorações conquistadoras; era o das alcunhadas ciências morais, o da ciência do próprio homem nas suas mais altas manifestações. Cavara-se um abismo profundo entre os fenômenos naturais e os fenômenos psicológicos e sociais; circundara-se de fortes muralhas todo esse edifício pomposo de bagatelas de um apriorismo estéril, de uma metafísica vã e de uma mitologia fantasista. Mas a ciência positiva, num supremo esforço de libertação, transpôs o abismo que uma fé cega e tenaz julgara inexpugnável; e as suas mãos imoladoras rolaram no pó, com pasmo e escândalo dos crentes ingênuos, todos esses fetiches amontoados em série extravagante pelos sonhos e abstrações de séculos, todos esses ídolos elevados pelos interesses autoritários e teológicos sobre os pedestais da ficção e do terror. O gladio humano tinha quebrado o gladio divino. Dominadora exclusiva agora de toda a vida humana, ao lançar as novas bases da psicologia e da moral, da religião e da estética, da economia e do direito; da política e do governo, ao criar a sociologia em conexão intima com a biologia moderna, animando-a com o grande e fecundo impulso da doutrina evolucionista, a ciência afirmava-se para todo o sempre a universal soberana. Nesta transformação violenta, denegrida ainda pelos adoradores das concepções degradantes do passado que se esforçam por tolher-lhe a marcha triunfante, a pedagogia sentiu mais que nenhuma outra ciência social a influência reformadora. Ao contado mágico dos princípios científicos recém-adquiridos, a orientação poderosa imprimida pelo evolucionismo, a pedagogia sofria uma transmutação completa; eram outros agora os métodos, as normas, o objeto do ensino; era outro o seu lugar social, tão alto e tão nobre, como nunca o sonharam os mais geniais e os mais entusiastas dos velhos educadores. A psicologia abstrata e dualística, circunscrita a observação interna, fabrica de especulações infecundas sobre faculdades distintas, sobre a natureza e finalidade anímicas, não podia - com as suas entidades imóveis, esqueléticas e autônomas - prestar ao pedagogista o conceito real do aspeto físico, intelectual, e moral do homem; às formas substanciais e imanentes da alma tinham de corresponder a priori normas didáticas de uma importância formal e universal, falsas e estéreis, sem correspondência com as leis do desenvolvimento psíquico. Proclamado o grande princípio da unidade de composição do espírito e o da associação das ideias como base de todo o trabalho intelectual, criada a observação psicológica externa segundo fatos e leis verificáveis pelos processos gerais de toda a ciência experimental, traçada a gênese anímica nas suas relações forradas com o desenvolvimento do indivíduo, da espécie e da animalidade, a metodologia pedagógica era renovada ab imis fundamentais e assente doravante, não em esquemas secos e imutáveis, mas em princípios amplos, abrangendo todos os aspetos da formação biológica, estampando as formas da atividade humana nas suas variedades concretas, nas suas transformações fatais e nos estados sucessivos da sua evolução. Simultaneamente com a reforma dos métodos operava-se a do conteúdo do ensino; a instrução, mudando de normas, mudava de natureza e até de fins. Os credos feitos com todas as suas deduções e os seus vetos, proferidos por infalibilidades autoritárias, absolutamente mudas para toda a pergunta que encerrasse uma sombra qualquer de interpretação, tornaram-se incompatíveis com os direitos do livre exame. Essas máximas odiosas que assinavam, como meta exclusiva do ensino, o serviço da Igreja e do Rei, a liberdade do pensamento apagou-as da fachada da Escola. Preparar o homem para curvar a cerviz aos representantes do direito divino, e arrastá-lo pela vida terrena, sob a pressão do dogma, jogando com a ilusão da vida de além-túmulo e cegando-o, ora com as pavorosas perspectivas do inferno, ora com as delicias da mansão celeste, não pôde ser mais o lema pedagógico, ou a humanidade mente a si própria na sua dignidade, na sua consciência, no seu saber e no seu progresso. A finalidade educativa é, como diz eloquentemente Angiuli, fornecer ao indivíduo os meios indispensáveis para preparar e melhorar apropria existência no seio da natureza, da família e da sociedade. Ora, quais são os conhecimentos que habilitam o homem a converter as forças da natureza em utilidade própria, a conservar a saúde, a regular a vida de família no cumprimento das funções paternais, a cooperar na ação do organismo social e político, na consciência completa do mecanismo nacional, a disciplinar-se intelectual, moral e fisicamente? É a ciência e só a ciência. Toda a instrução deve ser essencialmente científica; e na demonstração rigorosa desta verdade gasta Spencer um longo e primoroso capitulo da sua obra. Dada a primeira valia a ciência, como a mais indispensável e útil preparação para todos os gêneros de atividade, os conhecimentos cósmicos, físicos, biológicos e sociais vieram tomar no ensino o lugar predominante que lhes era usurpado pelos estudos filológicos, humanistas e clássicos, e sobretudo por um saber de brilho falso, sem valor intrínseco, tarifado somente pela moda, pela vaidade e pela rotina. O dogma irracional e incompreensível foi levado de vencida pela lei científica, suscetível de demonstrar-se e de impor-se a inteligência humana: Aos preceitos iníquos de um catecismo embrutecedor substituíram-se os princípios legítimos de uma moral pura e independente, derivada das leis da consciência individual e social. E à escola inoculadora do vírus ortodoxo no organismo débil da criança contrapôs-se a escola civil e leiga, limpa de impurezas teológicas, que, desagrilhoada de uma seita, aponta como fim último, não a bem-aventurança celeste mas a felicidade terrena, que ensina, em vez de formulas propiciatórias e práticas supersticiosas, os direitos e os deveres do cidadão, que não erige como culto o amor divino e a obediência servil, mas sim os grandes sentimentos da família, da pátria e da liberdade. Ao atingir a plena posse das suas prerrogativas, em intimo amplexo com a ciência, a pedagogia conquistava ipso fato uma enorme importância social e política. Lavram ardentemente as lucras e as dissidências no seio dos povos modernos. Debatem-se as mais graves questões e surgem os mais profundos antagonismos. A crise é universal e sem restrições, invadiu todos os campos, o econômico, o político, o moral, o religioso e o jurídico. O termo deste gravíssimo conflito seria a reconstituição completa do organismo social inteiro. Sejam muito embora complexos e múltiplos os elementos para esta transformação progressiva, mas em última análise todos se reduzem essencialmente a apagar de um modo gradual a desigualdade de cultura, causa intima da desigualdade social, e a promover ativamente a reconstituição mental dos indivíduos. A reforma radical, que vivifica, fecunda e assegura a evolução pacifica da humanidade, qual é senão a reforma pedagogia? Dai-me a educação, dizia Leibniz, que eu mudarei a face da Europa em menos dum século. A frase é tão ousada como a da Archimedes sobre a alavanca. O que pode, porém, afirmar-se com Angiuli, é que, se há ao nosso alcance o poder de conseguir transformações e aperfeiçoamentos progressivos, adaptados às múltiplas atividades dos indivíduos e dos povos, esse poder só é dado pela ciência e pela educação científica. Só inspirada nos preceitos de uma educação racional é que a obra da regeneração universal satisfará às duas generosas e santas aspirações - prevenir o mal e promover o bem. Esses os dogmas da nova religião da escola, esses os mandamentos da pedagogia futura. Tarda em chegar aos homens esse reino de Deus propiciado pela educação; e se todos os países estão longe dessa promissão redentora, poucos como o nosso. Nos deveres capitais do Estado - função orgânica da própria sociedade - figura a da elaboração de um plano de cultura universal, nas suas relações com os progressos da vida coletiva. Nas modernas doutrinas políticas o Estado encara-se como o educador da sociedade, como um instituto de educação nacional. Quando atingirá ele a plenitude desta função suprema da sua existência? Só quando for o que ele deve ser, isto é, a própria sociedade organizada e organizando-se para um fim, a atividade de um povo que governa a própria vida. Como esperar à execução completa do plano pedagógico moderno de um pseudo-Estado, representante de direitos negáveis e de ideias absurdas? Enquanto a instrução nacional e oficial permanece eivada de preconceitos, rica de insuficiências, numa organização disparatada e incongruente, uma única salvação se oferece para esconjurar os malefícios dessa obra deplorável. É a vulgarização das obras de educação moderna; é o combate do ensino oral atrofiante das escolas públicas pelo são e livre ensino escrito. A aparição da obra de Spencer «Educação» no mercado literário português serve maravilhosamente estes elevados intuitos. Spencer é a individualidade filosófica mais portentosa da época. Espirito original, independente, e criador, enciclopédico, como nenhum outro, pela variedade e solidez dos seus conhecimentos, figura no limitado número dos eleitos, tipos ideais, quase divinos, bem distantes da fraqueza e mediocridade geral dos homens. As suas obras monumentais, que hão de marcar o período atual na evolução do pensamento, tem, como diz Siciliani, alguma coisa de miraculoso. Também nos tempos modernos ninguém exerceu nem exerce influência mais poderosa na alta orientação dos espíritos, ninguém tem conquistado nem disciplinado mais inteligências: é que o evolucionismo, alma das concepções spencerianas, é na frase expressiva de Schaefle, uma grandiosa pedagogia. A «Educação» é um dos seus mais belos livros de combate e propaganda, e foi um dos primeiros a assinalar-se em a nova catequese pedagógica. Oxalá que a sua leitura se difunda por todos os estratos sociais, e se derramem as suas doutrinas salubérrimas que bem compreendidas e executadas seriam a melhor cura do definhamento intelectual e até moral e físico da sociedade portuguesa. Janeiro de 1881. Ricardo Jorge EDUCAÇÃO INTELECTUAL, MORAL E FÍSICA CAPITULO I QUAIS SÃO OS CONHECIMENTOS DE MAIOR VALOR? Tem sido notado com verdade que, cronologicamente, o adorno precede o vestuário. Os povos que se submetem aos maiores sofrimentos físicos para se apresentarem belamente ornados, suportam também os máximos rigores da temperatura, pouco fazendo para mitiga-los. Humboldt diz-nos que o índio orenoque, posto que de modo algum se importe com o bem-estar do corpo, é capaz de trabalhar durante quinze dias para poder comprar vermelhão que o tome admirado; e que a mesma mulher que não hesita em sair da sua cabana sem o mais pequeno fragmento de vestuário, não tem suficiente ousio para quebrar o decoro, saindo por pintar de sua casa. Afirmam os viajantes que as contas de cor e as fitas tem muito mais valor para as tribos selvagens do que os tecidos de algodão e os panos finos. E as anedotas que possuímos dos meios que os selvagens empregam, quando se lhes dá camisas e vestidos, para as transformarem em qualquer exibição ridícula, dão-nos uma perfeita ideia do predomínio da decoração sobre a utilidade. Ha ainda exemplificações mais extremas, como o fato narrado pelo capitão Speke acerca dos africanos que o acompanhavam, que caminhavam todos anchos, cobertos pelas mantas de pele de cabra quando estava bom tempo, mas que, quando chovia, as tiravam, guardavam-nas e iam completamente nus, a tremer debaixo da água. Realmente, os fatos da vida aborígene parecem indicar que o vestuário nasce dos adornos. E quando nos lembramos que até entre nós mesmos se prefere muitas vezes a finura do tecido ao agasalho, e se olha mais a elegância do corte do que a comodidade - quando vemos que a função é ainda em grande parte subordinada a aparência - temos razão de sobejo para inferir uma tal origem. É curioso que as mesmas circunstâncias se deem com o espírito. Nas conquistas mentais, como nas do corpo, o ornamental vem antes do util. Não só nas eras passadas, mas até na época atual, os conhecimentos que produzem o bem-estar pessoal são postergados por aqueles que são mais aplaudidos. Nas escolas gregas, a música, a poesia, a retórica e uma filosofia que até ao ensino de Sócrates teve pouca influência sobre a vida real, constituíam os assuntos principais do estudo, enquanto que a ciência de utilidade para as artes da vida ocupava um lugar subalterno. Nas nossas universidades e escolas, até hoje, existe a mesma antítese. Podemos quase ser acusados de frivolidade, afirmando que durante a sua profissão, nove casos em dez, o estudante não aplica os seus conhecimentos de Latim e do Grego. É trivial a observação de que na loja ou na oficina, dirigindo os seus negócios ou a sua casa, representando o seu papel como diretor de um banco ou de um caminho de ferro, ele é bem pouco auxiliado por aqueles conhecimentos que tantos anos lhe custaram a adquirir - de tão pouco lhe servem na vida pratica que a maior parte deles já se lhe varreu da memória; e se, ocasionalmente, faz alguma citação latina, ou alude a qualquer mito grego, é mais por ostentar erudição do que por empenho em fazer a luz sobre o assunto em questão. Se inquirirmos o motivo real porque se dá a infância a educação clássica, chegaremos à conclusão de que isto se faz por simples condescendência com a opinião pública. Os pais educam o espirito dos filhos precisamente como os vestem, segundo a moda da ocasião. Como o índio orenoque não sai da cabana sem fazer a sua pintura prévia, não tendo em vista qualquer benefício direto, mas porque teria vergonha de ser visto sem ela; assim se insiste com um rapaz no exercício do Latim e do Grego, não pelo valor intrínseco destas matérias, mas porque não é bonito ignorá-las; porque deve ter «a educação de um cavalheiro», o cunho determinativo de uma certa posição social, atraindo, consequentemente, o respeito público. Esta analogia torna-se ainda mais patente se observarmos o que se dá com o outro sexo. Nas mulheres, ainda mais do que nos homens, o elemento decorativo continua a predominar em maior grau, quer se trate do adorno do corpo, quer das conquistas do espírito. Originariamente, o adorno pessoal ocupa a atenção de ambos os sexos em grau igual. Nestes últimos dias da civilização, porém, vemos que no tocante ao vestuário dos homens as condições de aparência têm cedido campo ás do conforto; ao mesmo tempo que na sua educação o útil tem ultimamente cortado no ornamental. Quanto às mulheres nenhuma mudança deste gênero se tem dado, quer numa quer na outra esfera. O uso de brincos, anéis, pulseiras; o trabalhoso arranjo dos penteados; a pintura; o imenso labor empregado no fabrico dos vestidos suficientemente atraentes, e os grandes incômodos a que se sujeitam no intuito de se fazerem elegantes, mostram quanto, no adorno das mulheres, o desejo de agradar sobreleva às necessidades do agasalho e do conforto. E similarmente na sua educação, a imensa preponderância das «prendas» prova quanto, neste caso também, a utilidade se subordina ao agrado. A dança, a etiqueta, o piano, o canto, o desenho - que largo espaço não ocupam! E se perguntardes por que razão elas aprendem o Italiano e o Alemão, vereis, sob as razões falsas que se vos apresentem, que a verdadeira razão é que o conhecimento daquelas línguas é considerado indispensável à educação de uma menina de bom tom. Não é porque seja útil a leitura dos livros escritos naqueles idiomas, realmente poucas vezes folheados; mas porque é necessário saber-se cantar as peças Italianas e Alemães, e porque a largueza daqueles conhecimentos vem a provocar murmúrios de aprovação. O nascimento, a morte e o casamento dos reis, e outras trivialidades históricas, são confiados a sua memória, não porque de tal ciência resulte qualquer benefício direto; mas porque a sociedade considera esses conhecimentos como fatos integrantes de uma boa educação; porque a ignorância desses fatos pode acarretar o desdém dos outros. Se citarmos a leitura, a escrita, a ortografia, a gramática, a aritmética e a costura, enumeramos quase todas as coisas que se ensinam a uma menina, sob o ponto de vista dos usos atuais da vida; e algumas delas têm em mais consideração a boa opinião dos outros do que o bem-estar pessoal. Para provarmos completamente a verdade de que, com o espírito como com o corpo, o ornamental precede o útil, é necessário lançarmos um golpe de vista sobre a razão de tal fato. Essa razão está em que, desde os tempos mais remotos até hoje, as necessidades sociais predominaram sobre as necessidades individuais, e de que a principal necessidade social tem sido a crítica dos indivíduos. Não existem, como geralmente se supõe, apenas como governos os monarcas, os parlamentos e as autoridades constituídas. Estes governos reconhecidos, são auxiliados por outros que se não conhecem, mas que vivem em todos os círculos, e nos quais todo o homem e toda a mulher se esforça por ser rei ou rainha, ou menor dignitário. Colocar-se acima de alguns e ser respeitado por eles, e tornar propícios aqueles que estão superiores a nós, é a luta universal em que se dispendem as principais energias da vida. Pela acumulação da riqueza, pela maneira de viver, pela beleza dos vestuários, pela influência da ciência ou da inteligência, cada qual trata de dominar os outros; assim, cada qual concorre para tecer a rede emaranhada das restrições que constituem a ordem social. Não é somente o chefe selvagem, que pintado formidavelmente para a guerra, com cabeleiras inimigas á cinta, pretende infundir respeito aos seus inferiores; não é somente a mulher formosa que pela elegância da sua toillete e maneiras distintas e numerosas prendas, se empenha «em fazer conquistas»; o estudante, o historiador, o filósofo empregam os seus dotes nesse mesmo intuito. Nenhum de nós se contenta em deixar desenvolver as nossas individualidades naturalmente em todas as direções; desejamos ardentemente impor aos outros a nossa personalidade, e até certo ponto subjugá-los. É isto o que determina o caráter da nossa educação. Os conhecimentos de maior valor não são os que mais consideração nos merecem; mas aqueles que nos trouxerem maior cópia de aplausos, de honras, de consideração, os que mais facilmente nos levarem a influência e a posição social, os que mais impuserem. Como o que nos importa não é aquilo que realmente somos, mas o que mostramos ser, assim, na educação, a questão não está no valor intrínseco dos nossos conhecimentos, mas nos seus efeitos extrínsecos sobre os outros. E como esta é a nossa ideia dominante, vê-se que temos menos em vista as coisas de utilidade direta, do que o selvagem quando aguça os dentes e pinta as unhas. Se necessária é mais larga prova do caráter rude e rudimentar da nossa educação, temo-la no fato de que os valores comparativos das diferentes espécies de conhecimentos têm sido escassamente discutidos - muito pouco discutidos com método tendo em vista os resultados. Não só não existe padrão algum da relatividade dos seus valores, mas também a existência de um tal padrão ainda não foi claramente concebida. Mas há mais: não só a existência de um tal padrão ainda não foi claramente concebida; mas parece até que a sua necessidade ainda não se fez suficientemente sentir. Os pais leem alguns volumes sobre tal assunto e ouvem opiniões diversas sobre aquele outro; decidem que os seus filhos estudarão certos ramos científicos e ignorarão outros; e todos, sob a guia exclusiva do hábito, do agrado ou dos preconceitos, sem se lembrarem da enorme importância que tem a determinação de um caminho racional a seguir no estudo das coisas realmente mais valiosas. Verdade é que em todos os círculos nós ouvimos observações ocasionais sobre a importância desta ou daquela ordem de conhecimentos. Mas se o grau da sua importância justifica o dispêndio de tempo necessário para obtê-los, ou se não há coisas de maior importância a que se deva aplicar de preferência tal tempo, são questões que, se por acaso se formulam, se apresentam sumariamente, segundo as predileções pessoais de cada um. Também é verdade, que de tempos a tempos, ouvimos reviver a ordinária controvérsia sobre os méritos comparativos do ensino clássico e do ensino matemático. Todavia, esta controvérsia é conduzida por uma forma empírica, sem referência alguma a qualquer critério provado; e a questão a final é insignificante se a compararmos com o problema geral de que faz parte. Imaginar que se decide a questão de saber qual é melhor educação, se a matemática se a clássica, decidindo qual é o ideal da educação, é a mesma coisa que supor que toda a ciência da dieta consiste em averiguar sé o pão é ou não mais nutritivo do que as batatas! A questão de que nos ocupamos é de importância transcendente; não consiste em saber se este ou aquele conhecimento tem algum valor, mas - qual é o seu valor relativo. Quando se enumeram certas vantagens, fornecidas por um dado tempo de estudo, julgamo-nos habilitados a concluir a sua justificação; esquecendo-nos completamente de que o ponto que estamos a julgar é precisamente a aplicação dessas vantagens. Não há, talvez, assunto que chame a atenção do homem que não tenha qualquer valor. Um ano, laboriosamente dispendido a fazer investigações sobre heráldica, é provável que dê alguns conhecimentos sobre os costumes e a vida moral dos velhos tempos. Se qualquer se dedicar a saber as distancias que há entre todas as cidades da Inglaterra, pode, no curso da sua vida, encontrar um ou dois fatos, entre os mil de que teve conhecimento, que lhe sirvam de alguma coisa quando fizer uma viagem. Reunindo todos os faladores de uma província, trabalho realmente inútil, pode-se ser ocasionalmente ajudado a estabelecer qualquer fato de utilidade, como um bom exemplo de transmissão hereditária. Mas nestes casos, não há ninguém que deixe de admitir que não existe proporção alguma entre o trabalho requerido e o resultado provável. Ninguém dará desculpa a qualquer pai que dedique alguns anos de estudo do filho a investigar um tal resultado, quando podia empregar esse tempo em adquirir mais uteis conhecimentos. E se para este caso se apela para o exame do valor relativo e se sustenta como concludente, então a mesma coisa se deve fazer para todos os outros casos. Se nós tivéssemos tempo para estudarmos todas as matérias, então não tínhamos necessidade de estudar especialmente qualquer delas. A velha canção diz: Se o homem fosse seguro Que como outrora vivia Mil anos, que sementeira De coisas que não sabia! Quanto fazer não podia Sem pressas e sem canseira! «Mas nós que apenas vivemos um momento» devemos ter sempre no espírito quão pouco tempo temos para o estudo. E se nos lembramos da estreiteza dó tempo, não só pela brevidade da vida, mas ainda pela multiplicidade dos negócios, devemos ser especialmente empenhados em empregar esse tempo com o máximo proveito. Em vez de malbaratarmos anos e anos em qualquer assunto, sugerido pela moda ou pela fantasia, é certamente mais avisado pesar com todo o cuidado mérito dos resultados, comparando-o com valor das várias alternativas que resultariam se nós os aplicássemos de outra maneira. Na educação, portanto, é esta a questão das questões, e já é tempo para a discutirmos com método. É problema de primeira ordem, posto que geralmente seja estudado em último lugar, decidir entre os diversos assuntos que chamam a nossa atenção. Antes de sabermos qual será o sistema racional, devemos estabelecer quais são as coisas que mais nos urge conhecer; ora, para empregarmos a palavra de Bacon, agora desgraçadamente caída em desuso - devemos determinar o valor relativo dos conhecimentos. Para conseguirmos um tal fim, é necessário primeiramente obter um padrão de valor. E felizmente, sobre a determinação da verdadeira medida do valor, expressa em termos gerais, não pó de haver discrepância alguma. Cada qual, examinando o valor de qualquer categoria particular de conhecimentos, fará a sua demonstração sob o ponto de vista da aplicação que ela pode ter nos negócios da vida. Respondendo à pergunta-isto para que serve? o matemático, o filólogo, o naturalista ou o filósofo mostra o modo como a sua ciência influi beneficamente na ação, como ela pode libertar-nos do mal, assegurar-nos o bem, conduzir-nos para a felicidade. Quando o mestre de escrita indicar que grande auxilio esta arte presta ao bom êxito dos negócios, o que ela é para a aquisição do sustento e para as urgências da vida; apresenta a prova da sua especialidade. E quando um colecionador dos fatos do passado, um numismático, se vir embaraçado em tornar patentes os efeitos apreciáveis que esses fatos podem produzir para a felicidade humana, terá de admitir que eles são comparativamente sem valor. Todos, portanto, quer diretamente, quer implicitamente, apelam para esta última prova. Como viveremos? tal é para nós a questão essencial. Não como viveremos no sentido material do termo somente, mas na sua mais larga acepção. O problema geral que compreende todos os problemas especiais é aquele que trata da maneira como havemos de proceder em todas as situações e circunstâncias da vida. De que maneira havemos de tratar o corpo; de que maneira havemos de tratar o espírito; de que maneira dirigiremos os nossos negócios, a nossa família, a nossa ação civil; de que maneira havemos de explorar as fontes de felicidade, fornecidas pela natureza; de que maneira devemos usar as nossas faculdades para máxima vantagem nossa e dos outros - como viveremos completamente? E sendo isto a coisa mais necessária que temos a aprender, é esta, portanto, a principal coisa que a educação nos deve ensinar. Preparar-nos para uma vida perfeita é a função de que se deve encarregar a educação; e o único meio racional de avaliarmos um curso de educação consiste em sabermos de que modo ele desempenha uma tal função. Este exame, posto que nunca feito completamente, mas até raras vezes parcialmente empregado e empregado por uma forma vaga semiconsciente, tem de ser aplicado conscienciosamente, metodicamente e para a generalidade dos casos. É necessário ter claro diante dos olhos que o fim proposto é a perfeição da existência; de modo que, instruindo os nossos filhos, nós possamos escolher os assuntos e métodos de instrução, com determinada referência para um tal fim. Não s devemos deixar de aceitar a corrente da moda sobre a educação, que não oferece melhor garantia do que qualquer outra moda; mas também devemos erguer-nos acima desse sistema rude e empírico de julgar as coisas, e que é empregado até pelas pessoas mais inteligentes que consagram alguns desvelos a cultura do espírito dos seus filhos. Não basta pensarmos que este ou aquele conhecimento pode ser de utilidade para as exigências da vida futura, ou que este gênero de ciência tem mais valor pratico do que aquele outro; mas devemos buscar qualquer processo de apreciar os seus respetivos valores, de modo que possamos saber positivamente qual é aquele que mais merece a nossa atenção. Indubitavelmente, a tarefa é difícil; talvez não possa ser executada senão aproximadamente; mas considerando a vastidão dos interesses em jogo, essas dificuldades não são razão suficiente para se evitar pusilanimemente o problema; pelo contrário, designam claramente quanta energia não se deve empregar na sua solução. E se nós procedermos sistematicamente, em breve obteremos resultados de não medíocre importância. Evidentemente o primeiro passo a dar está em classificarmos, por ordem de importâncias, os gêneros principais de atividade que constitui a vida do homem. Podem enunciar-se naturalmente pela forma seguinte: 1- atividades que diretamente contribuem para a conservação própria; 2 - atividades que, assegurando as coisas necessárias à vida, contribuem indiretamente para a conservação própria; 3 - atividades que tem por fim a educação e disciplina dos filhos; 4 - atividades relativas ao nosso procedimento social e ás nossas relações políticas; 5 - atividades que preenchem o resto da vida, consagradas a satisfação dos gostos e dos sentimentos. Não precisamos de longas considerações para demonstrarmos que é esta aproximadamente a ordem verdadeira por que devemos fazer aquela subordinação. As ações e precauções pelas quais, de momento para momento, asseguramos a nossa conservação pessoal, devem ocupar inegavelmente o primeiro lugar. Por mais ignorante que seja qualquer indivíduo, tão ignorante como uma criança sobre os movimentos e objetos que a cercam, ou sobre a maneira como se deve comportar no meio deles, esse homem não deixará de conhecer que pode perder a vida logo a primeira vez que desça a rua, independentemente de quaisquer conhecimentos que tenha sobre outros assuntos. E como a absoluta ignorância sobre quaisquer outras matérias pode ser menos fatal do que a absoluta ignorância sobre esta, podemos concluir que os conhecimentos imediatamente conducentes a conservação própria é de primeira importância. Depois da própria conservação direta vem a indireta que consiste na aquisição dos meios para viver; isto não oferece questão. É evidente que as funções de conservação própria devem ser consideradas anteriormente aquelas que dizem respeito aos filhos pela razão de que, falando em geral, o cumprimento das funções paternas só pode ter lugar depois do desempenho das concernentes ao indivíduo. A virtude da conservação própria necessariamente precede a da conservação da espécie, de onde se deduz que os conhecimentos necessários para a conservação própria clamam mais alto do que aqueles que são necessários a felicidade da família. É, pois, a segunda em valor na classificação dos conhecimentos necessários para a imediata conservação própria. Como cronologicamente a família precede o Estado, a instrução das crianças é possível efetuar-se antes do Estado existir, ou quando deixar de existir, visto que o Estado só é possível pela instrução das crianças; segue-se que os deveres paternos reclamam mais aturada atenção do que os deveres cívicos. Ora, para empregarmos um último argumento, como a excelência da sociedade depende das virtudes dos seus cidadãos; e como a natureza dos cidadãos se modifica mais facilmente por uma instrução prematura do que por qualquer outra causa, devemos concluir que o bem-estar da família sobreleva ao bem-estar da sociedade. E daqui se deduz que os conhecimentos que diretamente conduzem a realização do hem estar da família são preferíveis aqueles que diretamente levam ao bem-estar da sociedade. As variadas formas das ocupações agradáveis que preenchem as nossas horas de ócio, cedidas pelas ocupações mais graves, a música, a poesia, o desenho, etc., manifestamente implicam uma sociedade pré-existente. Não só é impossível dar-lhes um desenvolvimento importante sem uma união social por muito tempo estabelecida; mas até as suas matérias capitais consistem em grande parte em sentimentos e simpatias sociais. Não só a sociedade tem de fornecer as condições do seu desenvolvimento, mas até as ideias e os sentimentos que elas exprimem. Consequentemente, a parte do proceder humano que constitui a excelência dos deveres dos cidadãos é de maior importância do que aquela que leva a satisfação ou ao exercício dos nossos gostos; na educação, pois, a preparação para aquela deve ocupar legar preferível a preparação para esta. Assim, repetindo, temos que pouco mais ou menos é esta a ordem racional da classificação: - A educação que contribui diretamente para a conservação própria; aquela que para ela contribui indiretamente; aquela que concorre para a conservação da família; aquela que concorre para o bom cumprimento dos deveres do cidadão; aquela, finalmente, que concorre para os diversos prazeres da vida. Não queremos dizer com isto que estas divisões sejam definitivamente separáveis. Não podemos negar que elas existem intrincadamente enlaçadas umas nas outras, e a tal ponto que ninguém pode estudar umas sem estar habilitado a estuda-las todas. Também não fazemos questão de que em cada divisão haja pontos mais importantes do que outros nas divisões precedentes: de que, por exemplo, um indivíduo com muita habilidade para o comercio, mas de pouco desenvolvimento nas outras faculdades, possa estar muito mais afastado da perfectibilidade ideal da existência do que outro de muito menos habilidade em ganhar dinheiro, mas de muito mais juízo como chefe de família; e de que um conhecimento completo sobre a justa ação social, junto a completa carência de cultura sobre literatura e belas-artes, seja menos desejável do que um quinhão mais medíocre daquele com alguma porção desta cultura. Mas, apesar destas observações exatas, permanecerão do mesmo modo aquelas grandes divisões que fizemos; e continua a ser substancialmente verdadeiro que aquelas divisões se subordinam umas ás outras na ordem precedente, porque as divisões correspondentes da vida permitem a possibilidade das outras na mesma ordem. Necessariamente o ideal da educação é a preparação para todas aquelas divisões. Mas falhando este ideal, porque na fase da civilização em que vivemos cada qual contribui para ele por uma forma desigual, deve-se ter em vista manter uma justa proporção entre os graus de preparação em cada uma delas. Não devemos cultivar profundamente qualquer delas, por mais importante que isso nos pareça, nem dedicar uma atenção exclusiva a duas, três ou quatro divisões da maior importância; mas prestar atenção a todas; maiores aquelas que maior valor tiver; menor ás de somenos valor; mínimas ás de insignificante merecimento. Para o comum dos homens (não devemos esquecer os casos em que a aptidão peculiar para qualquer ramo especial dos conhecimentos, justamente se sujeita a ocupação de ganhar a vida), para o comum dos homens, dizemos, o desideratum é uma instrução que mais o aproxime das coisas que mais contribuírem para a perfeição da existência, afastando-se do que mais remota influencia pode ter sobre ela. Regulando por este padrão a educação, há algumas considerações gerais a fazer e que devem ser presentes desde já. O valor de cada espécie de cultura, como auxiliar da vida perfeita, pode. ser ou necessário ou mais ou menos contingente. Ha conhecimentos de valor intrínseco; conhecimentos de valor quase intrínseco, e conhecimentos de valor convencional. Fatos, como as sensações da prostração e dos zunidos que precedem geralmente a paralisia, como a resistência da água a um corpo que se move nela e que varia segundo o quadrado da velocidade, como o cloro considerada desinfetante, fatos desta ordem e, em geral, as verdades da ciência tem um valor intrínseco; influíam na vida humana de há dez mil anos como agora influem. O conhecimento superior da nossa própria linguagem, fornecido pelo estudo do Latim ou Grego pode ser considerado como tendo um valor quase intrínseco; porque existe realmente para nós e para as outras raças cujos idiomas nascem das mesmas fontes; mas que viverá somente o espaço de tempo que eles viverem. O gênero de conhecimentos que, nas nossas escolas, usurpa o nome de História - mero tecido de nomes, de datas e de sucessos que nada dizem - tem apenas um valor convencional: não tem nem a mais remota influência em nenhuma das nossas ações; e tem apenas a utilidade de nos livrar das desgraciosas críticas com que a opinião pública avalia aquilo que desconhece. Naturalmente, como os fatos que dizem respeito ao gênero humano através de todos os tempos devem ser considerados de muito maior importância do que aqueles que são relativos a uma certa classe num dado período histórico, e como são ainda menos importantes aqueles que se referem a um período em que foram moda, segue-se que numa apreciação racional, os conhecimentos de valor intrínseco, em igualdade de circunstâncias, devem preceder os conhecimentos de valor quase intrínseco ou de valor condicional. Mais um preliminar. A aquisição de cada espécie de conhecimentos tem dois valores - valor como ciência e valor como disciplina. Além da sua utilidade como guia da vida, a aquisição de cada ordem de fatos tem também merecimento como exercício mental; e os seus efeitos como preparação para a existência perfeita têm de ser considerados debaixo destes dois aspetos. São estas, portanto, as ideias que devemos estabelecer para discutirmos um sistema de educação: - A vida dividida em várias espécies de atividade, de importância sucessivamente descendente; o valor de cada ordem de fatos como regulador destas diferentes espécies de atividade, intrinsecamente, quase intrinsecamente e convencionalmente, e as suas influencias reguladoras, consideradas como ciência e como disciplina. Felizmente, a importantíssima parte da educação que tem por fim assegurar a nossa própria conservação, está em grande parte garantida. Como era demasiado grave para a nossa fraqueza, a Natureza encarregou-se dela. Quando a criança, ainda ao colo da ama, esconde o rosto e grita ao ver um estranho, patenteia o instinto rudimentar de se salvar, fugindo do que lhe é desconhecido e talvez perigoso; quando pode andar, o terror que ela manifesta quando se aproxima qualquer cão que não pertence à casa, ou quando chama e corre para o pé da mãe, depois de ver ou de ouvir qualquer espetáculo ou caso estranho, designa esse instinto que se desenvolverá ulteriormente. De mais disso, nos conhecimentos que diretamente concorrem para a própria conservação é que ela se emprega principalmente em todos os momentos. O que ela estuda sempre é a maneira como equilibrar o corpo, como regular os movimentos de modo que evite os choques; quais os objetos duros e que magoam quando tocados; quais são os que pesam e que podem ferir na sua queda; quais são as coisas que podem sustentar o peso do corpo, e quais aquelas que não podem com ele; os males ocasionados pelo fogo, pelos projeteis, pelos instrumentos cortantes, tais são os primeiros estudos das crianças, estes e outros conhecimentos que lhes ensinam a evitar a morte é os acidentes. E quando alguns anos mais tarde, as forças se vão desenvolvendo nas corridas, trepando, saltando, nos jogos de força e de destreza, vemos em todas estas ações com que se desenvolvem os músculos as percepções sutis, e o raciocínio pronto, os preparativos para a segurança do corpo entre os objetos e movimentos que o cercam e para o encontro dos grandes perigos que podem ocorrer na vida de todos. Sendo assim, como dizemos, tão atentamente vigiada pela Natureza, esta educação fundamental necessita comparativamente de pequeno cuidado da nossa parte. O que nós devemos ter principalmente em consideração é que precisamos de uma completa liberdade de ação para podermos adquirir essa experiencia e receber uma tal disciplina, pois não há coisa alguma mais contraria á Natureza do que, por exemplo, o proceder de certas mestras estupidas que obstam, no desempenho do seu mister, a que as meninas desenvolvam espontaneamente as suas atividades físicas, a que voluntariamente se entregariam, tornando-as por esta forma comparativamente incapazes de se acautelarem a si mesmas nas horas de perigo. Todavia, isto não é de modo algum tudo quanto contribui para a justa conservação própria. Além da guarda do corpo contra a destruição ou contra os males mecânicos, temos ainda a livra-lo das ofensas de outras causas - dos males e da morte ocasionados pela infração da lei fisiológica. Para gozar uma vida perfeita é necessário não só evitar aquilo que pode subitamente originar a aniquilação da vida; mas também os erros e a vagarosa aniquilação que os costumes desregrados sugerem. Assim como sem saúde e sem energia se tornam mais ou menos impossíveis as atividades industriais, familiares, sociais, etc.; assim, é evidente que esta espécie secundaria da conservação própria, direta, é pouco menos importante do que a primeira, ocupando ainda lugar muito alto os conhecimentos tendentes a fornecerem a sua segurança. Verdade é que aqui também, a Natureza prontamente nos fornece um guia. Nas variadas sensações físicas e nos apetites, estabeleceu uma notável conformidade entre eles e as nossas principais necessidades. Felizmente para nós, a necessidade de alimentação, o grande calor, o intenso frio produzem sugestões demasiado violentas para não serem imediatamente atendidas. E se os homens obedecessem habitualmente a sugestões do mesmo gênero, embora menos fortes, poucos males relativamente sofreriam. Se a fadiga do corpo ou do espírito fosse sempre seguida pelo descanso; se a opressão causada pela falta de ar fosse sempre remediada pela ventilação; se comêssemos só quando tivéssemos fome; se bebessem os apenas quando tivéssemos sede; então o nosso organismo raras vezes estaria fora da ordem do trabalho. Mas há uma ignorância tão profunda das leis da vida, que a gente desconhece que as nossas sensações são os nossos guias naturais, e (quando adoecemos pelas continuadas infrações que lhes fazemos) nossos fidedignos guias. Assim, teleologicamente falando, a Natureza deu-nos eficazes salvaguardas da saúde, mas a falta de juízo torna-os em grande parte inúteis. Posto que ninguém duvide da importância dos princípios da fisiologia, como meio de gozar uma vida perfeita, se olharmos ao redor de nós, quantas pessoas encontraremos, no meio ou no fim da vida, que se consideram felizes? Só mui raramente podemos encontrar um exemplo de saúde vigorosa, continuada até a velhice; enquanto que a todas as horas damos de face com exemplos de moléstias agudas, crônicas, debilidades gerais e precoces velhices. Dificilmente haverá alguém, se perguntarmos, que não tenha tido, durante o curso da vida, uma doença que facilmente teria evitado com o mais leve conhecimento fisiológico. Aqui vemos um caso fatal de moléstia de coração, proveniente de uma febre reumática, por sua vez, originada por uma negligencia de agasalho. Acolá um caso de vista perdida para toda a vida, ocasionado pelo excesso de estudo. Ontem narrava-se o fato dum indivíduo ter ficado coxo para sempre, por ter continuado, a despeito do incômodo, a empregar no trabalho um joelho que levemente tinha magoado. Hoje conta-nos um outro que foi obrigado a estar alguns anos na inação, porque ignorava que a palpitação de que sofria era resultado de um excesso cerebral. Agora temos conhecimento de uma moléstia irremediável proveniente de um emprego insensato da força; e, logo, de um organismo que nunca mais se pôde refazer dos efeitos de um trabalho excessivo, empreendido sem necessidade. Por toda a parte vemos, perpetuamente, os pequenos incômodos, resultantes da fraqueza. Não consideremos apenas os sofrimentos, lembremo-nos também do desânimo, da tristeza, do dispêndio de tempo e de dinheiro da influência perniciosa das doenças sobre o cumprimento de todos os deveres, que muitas vezes torna impossível os negócios e sempre os dificulta; que produz uma irritabilidade fatal para ajusta direção dos filhos; que põe fora da questão as funções cívicas; e transforma em tédio as diversões. Não é claro que as infrações das leis físicas, hereditárias ou próprias, produzem esta enfermidade, mais atentatória do que outra qualquer da perfeição da vida? - e que a maior parte das vezes faz a vida um suplício e um pesado fardo em vez de um benefício e dum prazer? Mas isto não é tudo. Além da vida ser assim imensamente prejudicada é também cortada muito mais cedo. É falso o asserto vulgar que entende que depois de convalescermos de qualquer irregularidade ou de qualquer doença ficamos como éramos antes. No curso normal das nossas atividades nenhum desarranjo possa sem deixar vestígios, deixando as coisas exatamente como eram. Fica uma perturbação permanente no nosso organismo, talvez não imediatamente apreciável, mas realmente existente; e adicionadas a outras parcelas do mesmo gênero, que a Natureza nunca despreza no seu balanço, leva-nos inevitavelmente a diminuição dos nossos dias. Em consequência da acumulação dos pequenos males é que os organismos são minados, e caem em ruinas muito antes do tempo. E se nos lembrarmos da distancia existente entre a vida média e a duração possível, veremos quão grande é a perda que sofremos. Quando às numerosas deduções parciais gravadas pelas doenças, adicionarmos está grande dedução filial, resultará averiguarmos que metade da vida é desperdiçada. Consequentemente, a ciência que concorrer diretamente para a conservação própria, prevenindo esta perda de saúde, é de primeira importância. Não queremos de modo algum dizer com isto que a posse de uma tal ciência remedeie completamente o mal. É evidente que na fase presente da nossa civilização, as necessidades humanas muitas vezes nos compelem a transgredi-la. E é também igualmente evidente que, mesmo na ausência de tais necessidades, as nossas inclinações nos levam, a despeito das nossas convicções, a sacrificar o bem futuro pelos gozos do momento. Mas sustentamos que a verdade da ciência aplicada com um método verdadeiro influi muitíssimo; e sustentamos em seguida que assim como as leis da saúde devem ser estabelecidas antes de plenamente aplicadas, também o ensino de tal ciência deve preceder uma vida mais racional, que virá a seu tempo. Assim como uma saúde vigorosa e as ideias saudáveis que a acompanham são mais largos elementos de felicidade do que quaisquer outras coisas, o ensino que trata da sua sustentação deve no momento ser preferido a qualquer outro. Asseveramos, portanto, que um curso de fisiologia, tão necessário para a compreensão destas verdades gerais e da sua aplicação na vida diária, constitui uma parte essencialíssima da educação racional. É extraordinário que nós precisemos ainda de fazer um tal asserto! Mais extraordinário é ainda que nos vejamos na necessidade de o defender! Todavia não é pequeno o número daqueles que receberão este princípio com qualquer coisa muito próxima da zombaria. Homens ha que corariam errando a pronuncia da palavra Ifigênia e que receberiam como insulto qualquer observação que se lhes fizesse sobre a sua ignorância a respeito dos fabulosos trabalhos de um fabuloso semideus, mas que não teriam o menor pejo em confessar que não sabiam que função exercia a trompa de Eustáquio, quais as ações da espinal medula, qual é o número normal das pulsações, ou como trabalham os pulmões. Cheios de cuidados por que os seus filhos conheçam perfeitamente as superstições de ha dois mil anos, não tem a menor curiosidade em saber qualquer coisa sobre a estrutura e funções do seu próprio corpo, nem desejam que lhes ensinem. Tão poderosa é ainda a influência da rotina estabelecida! Tão formidavelmente, na nossa educação, é preferido o ornamental ao útil! Não precisamos de insistir sobre o valor dos conhecimentos que auxiliam indiretamente a conservação própria, facilitando os meios de ganhar a vida. Isto é admitido por toda a gente; e, em verdade, considerado pelo maior número talvez como o fim exclusivo da educação. Mas em quanto cada qual se apressa em declarar de suma importância o princípio abstrato de que a instrução deve preparar a mocidade para os negócios da vida, poucas pessoas se dão ao trabalho de indagarem qual é essa instrução especial. É incontestável que a leitura, a escrita e a aritmética são ensinadas com inteligente apreciação para tais usos. Mas quando dizemos isto entendemos que temos dito tudo. Enquanto se ensina uma enorme cópia de coisas que não tem ação alguma sobre as atividades industriais, uma imensidade de conhecimentos que tem uma influência direta sobre essas atividades é completamente posta de parte. Porque, excetuando algumas pequeníssimas classes, em que se empregam geralmente todos os homens? Na produção, preparação e distribuição das mercadorias. E de que depende a eficácia da produção, preparação e distribuição das mercadorias? Depende do emprego dos processos adequados às respetivas naturezas dessas mercadorias; depende da justa relação existente entre elas e as propriedades físicas, químicas e vitais com que podem implicar, isto é, depende da ciência. A categoria de conhecimentos que em grande parte é ignorada nas nossas escolas é aquela que preside a justa realização dos processos que tornam possível a vida civilizada. Apesar de parecer indiscutível esta verdade, é certo que parece não possuirmos ativa consciência dela; a sua familiaridade faz com que nos passe despercebida. Para darmos ao nosso argumento a necessária força, precisamos de fazer bem patente ao leitor esta verdade por uma rápida revista dos fatos. Pondo de parto a mais abstrata das ciências, a Logica, de cujo estudo, todavia, o produtor ou o distribuidor faz depender, conscientemente ou inconscientemente, o sucesso das previdências, dos negócios, chegamos primeiramente às Matemáticas. Estas, na sua divisão mais geral, trabalhando com o número, presidem a todas as atividades industriais; são elas que ajustam os processos, que formulam os valores, que fazem o preço aos gêneros comprados ou vendidos. Ninguém precisa que insistamos sobre o valor desta divisão da ciência abstrata. Para as artes mais altas de construção, é indispensável o conhecimento da divisão especial das Matemáticas. O carpinteiro da aldeia, que trabalha segundo as regras empíricas, precisamente como o melhor construtor de pontes e calçadas, faz a toda a hora referências às leis que regem as relações das distancias. O agrimensor que mede os terrenos comprados; o arquiteto, marcando o chão onde se deve construir um edifício; o construtor lançando-lhe os alicerces; os pedreiros, cortando as pedras; e os diferentes artífices, preparando os materiais; todos eles são guiados pelas verdades geométricas. O lançamento de uma linha férrea é regulado, desde o princípio até o fim, pela geometria: a preparação dos planos e seções; o traçado; a medida das trincheiras e taludes; a marcação e construção das pontes, aquedutos, viadutos, tuneis e estações. O mesmo sucede na construção dos ancoradouros, docas, portos artificiais e com os diversos trabalhos de engenharia e arquitetura que guarnecem as costas e ocupam todo o país, bem como as minas que o cortam. Atualmente até o lavrador para o estanque das lagunas recorre ao nível, isto é, aos princípios geométricos. Vejamos agora as ciências Abstratas-concretas. Da aplicação da mais simples de todas elas, da Mecânica, depende o sucesso das manufatures modernas. As propriedades da alavanca, do cabrestante, etc., são conhecidas em todos as maquinas e é ao maquinismo que nós devemos modernamente todos os produtos. Veja-se a história do pão. O solo que produziu o cereal precisou de ser esgotado por meio de uma canalização feita a máquina; a superfície foi revolvida ainda por outra máquina; o trigo foi colhido, malhado, joeirado por máquinas; são ainda as máquinas que o moem e o peneiram; e se a farinha for mandada para Gosport será transformada em biscoitos, ainda por intermédio de uma máquina. Examine-se a sala onde estamos. Se é moderna, provavelmente os tijolos das paredes foram feitos a máquina; e á máquina a madeira do soalho foi serrada e aplainada; é ainda a máquina que serve para serrar e polir o pano da chaminé; que faz os papeis pintados e estampados. Os embutidos das mesas, as pernas torneadas das cadeiras, o tapete, as cortinas são produtos da mecânica. Os vossos vestidos - lisos, lavrados ou estampados - não são tecidos e até cosidos a máquina? E o livro que ledes não tem as folhas feitas por uma máquina e cobertas de palavras por outra? Adicione a estes serviços que devemos às máquinas aqueles que elas nos prestam, distribuindo por terra e por mar todos os produtos da indústria. E depois deveis observar que do bom ou mau senso com que são aplicados os conhecimentos da mecânica depende o bom ou mau êxito dos negócios. O engenheiro que se enganar na apreciação das forças dos materiais fará uma ponte que pode desmoronar-se pouco tempo depois. O industrial que usar um maquinismo mau não poderá concorrer com outro cujas máquinas menos se gastem na fricção e na inércia. O construtor de navios que seguir os antigos modelos verá as suas embarcações ficaram atrás daquelas que forem feitas segundo os princípios mecanicamente justificados pela arte de flutuação. E, como a política de um país, defendendo contra as outras nações a sua autonomia, depende da atividade sabia dos seus cidadãos, assim os conhecimentos da mecânica podem fazer mudar o destino de um país. Subindo das divisões da ciência Abstrata-concreta, que tratam das forças molares gerais, até aquelas que tratam das forças moleculares, entramos noutra vasta serie de aplicações. A este grupo de ciências, junto ao grupo precedente, devemos nós a máquina de vapor que faz o serviço de muitos milhões de operários. A parte da física que enuncia as leis do calor ensina-nos a poupar o combustível em várias industrias; a aumentar a produção dos fornos de fundição, substituindo a corrente de ar quente por uma de ar frio; a ventilar as minas; a prevenir as explosões, empregando as lâmpadas de segurança; e, com o termômetro, a regularizar os inumeráveis processos de fabrico. A parte que trata dos fenômenos da luz dá vista aos presbitias e aos míopes; com o auxílio do microscópio obsta às doenças provenientes das adulterações; e com os faróis previne os naufrágios. Os conhecimentos da eletricidade e do magnetismo tem salvado muitas vidas e são incalculáveis as aplicações do compasso; a eletrotipia auxilia muitas artes; e modernamente, o telégrafo fornece-nos um agente que virá a regularizar as transações mercantis e as interferências diplomáticas. Nas minudencias da vida doméstica, desde o fogão aperfeiçoado das cozinhas até ao estereoscópio da mesa do salão, as aplicações dos progressos da física contribuem para as nossas comodidades e para os nossos prazeres. Mais numerosas ainda são as aplicações da Química. A lavadeira, o tintureiro, o fabricante de chitas emprega-as muitas vezes em processos bons ou maus, segundo são ou não são conforme às leis da química. A fundição do cobre, do estanho, do zinco, do chumbo, da prata, do ferro deve ser guiada pela química. A refinação do açúcar, o fabrico do gás, do sabão, da pólvora são operações em parte químicas; do mesmo gênero são aquelas que produzem o gelo e a porcelana. O ponto em que a destilação se suspende na fermentação alcoólica ou passa para a fermentação acida é assunto de um problema químico de cuja solução depende o benefício ou prejuízo do fabricante; e o cervejeiro que tiver um grande negócio tirará resultado, tendo um químico nas suas oficinas. Poucas manufaturas haverão, efetivamente, em que não entre em qualquer ponto dos trabalhos a química. Hoje em dia até a agricultura, para ser verdadeiramente profícua, precisa de um guia semelhante. A análise dos estrumes e das terras; a descoberta das suas adaptações respetivas; o uso do sulfato de cal ou de outras substancias boas para fixarem o amoníaco; a utilização dos carpólitos; a produção dos adubos artificiais - tudo isto são benefícios da química que convém ser conhecida pelos lavradores. Na fabricação dos fósforos, na desinfeção da canalização, na fotografia, no pão feito sem fermentação e na perfumaria extraída das escorias, vemos que a química entra em todas essas indústrias; e que, portanto, o conhecimento dela é necessário a todo aquele que direta ou indiretamente está relacionado com as nossas indústrias. Nas ciências Concretas encontramos em primeiro legar a Astronomia. Dela nasceu a arte da navegação, que tornou possível o imenso comércio estrangeiro que alimenta grande parte dos povos, fornecendo-nos de muitas coisas necessárias à vida e ás exigências do luxo. O conhecimento da Geologia auxilia também muito os bons resultados da indústria. Agora que as minas de ferro são uma fonte tão copiosa de riqueza; agora que a duração do nosso tesouro carbonífero é assunto de um problema do mais alto interesse: agora que temos um Curso de Minas e uma corporação de estudos geológicos, é desnecessário exaltarmos a verdade de que é importante para o nosso bem-estar material o estudo da crosta da Terra. E então a ciência da vida - a Biologia, não concorre também ela, fundamentalmente, para os processos que tem por fim, indiretamente, a nossa conservação? A sua relação com o que em geral chamamos manufaturas é, em verdade, pequena; porém, está intimamente ligada à primeira das indústrias, á da alimentação. Como a agricultura deve conformar os seus processos aos fenômenos da vida vegetal e animal, segue-se que a ciência desses fenômenos é a base racional da agricultura. Realmente muitas verdades biológicas já são empiricamente conhecidas e aplicadas pelos lavradores, embora não tenham conhecimento delas como noções científicas; sabem que certos adubos são próprios para determinadas plantas; que certos gêneros de cultura são nocivos a outras; que os cavalos mal alimentados não podem trabalhar bem; que certas moléstias do gado e das ovelhas são ocasionadas em dadas circunstancias. Estes e os outros conhecimentos que diariamente a experiência fornece ao agricultor, acerca do trato das plantas e dos animais, constitui o seu tesouro de fatos biológicos, de cuja amplitude depende, em grande parte, o seu bom êxito. E, como estes fatos biológicos, apesar de indefinidos e rudimentares, lhe dão tão importante auxilio, lembremo-nos do valor que para ele teriam esses fatos se fossem conhecidos positivo, definitiva e profundamente. Agora mesmo podemos verificar os benefícios que a biologia racional lhes faculta. A verdade de que a produção do calor animal implica um dispêndio da substancia e, que, conseguintemente, prevenindo a perda de calor se obsta à necessidade de um aumento de alimentação - conclusão puramente teórica - já serve de guia ao criador de gado; sabe que conservando o gado quente mais forragem poupa. A mesma coisa sucede com a variedade da alimentação. As experiencias dos fisiologistas têm mostrado que não só é benéfica a mudança de alimentação, mas até a digestão se facilita pela mistura de ingredientes em cada repasto. A descoberta de que a moléstia conhecida com o nome de vertigem, que tem matado anualmente muitos milhares de ovelhas, era causada por um antozoário que invadia o cérebro, e de que, se o inseto fosse extraído do ponto mole do crâneo que denuncia a sua posição, a res ordinariamente vingaria, é outro benefício que a, agricultura deve a biologia. Todavia, temos a notar ainda uma outra ciência que concorre diretamente para o bom êxito industrial - a Ciência da Sociedade. Os indivíduos que observam diariamente a situação do mercado financeiro; que percorrem os preços correntes; que discutem as probabilidades das colheitas do trigo, do algodão, do açúcar, da lã, da seda; que pesam os azares da guerra e que destes dados deduzem as suas operações comerciais são estudantes da ciência social; e embora o sejam empírica e confusamente, ainda assim são estudantes que ganham os premies ou sofrem prejuízos, segundo deduzem ou não uma conclusão justa. Não só o industrial e o comerciante devem regular as suas transações pelos cálculos da oferta e da procura, baseados em numerosos fatos, e reconhecendo tacitamente muitos princípios gerais da ação social; mas também o pequeno negociante a retalho deve proceder da mesma forma; a sua prosperidade depende, na máxima parte, da justeza das suas previsões sobre os futuros preços das vendas por grosso e das futuras taxas de consumo. Inegavelmente, quem quer que tome parte nas embaraçosas atividades comerciais de uma sociedade, é vitalmente interessado em conhecer as leis, segundo as quais essas atividades variam. Assim o estudo da Ciência em qualquer dos seus ramos é de uma importância capital para todos aqueles que se ocupam da produção, troca ou distribuição dos produtos. Todo aquele que, imediata ou remotamente está ligado a qualquer ramo industrial (e poucos serão aqueles que o não são) tem neste ou naquele ponto de se relacionar com as propriedades matemáticas, físicas e químicas das coisas; umas vezes terá de tratar com a biologia; outras com a sociologia. O bom ou mau resultado para a própria conservação indireta, que nós dizemos fornecer uma boa existência, depende em grande parte dos conhecimentos que possuímos de uma ou mais destas ciências; não queremos dizer conhecimentos profundos, mas conhecimentos, embora empíricos. O que nós chamamos conhecer um negócio, implica realmente o conhecimento da ciência que lhe diz respeito; embora não o faça sob o nome de ciência. O estudo da ciência tem, portanto, uma grande importância por preparar para tudo isto, e porque os conhecimentos racionais têm uma superioridade imensa sobre os conhecimentos empíricos. Além disso, não só a cultura cientifica é necessária a todos os que querem saber os como e os porquê das coisas e os processos pelos quais serão considerados como produtores ou distribuidores; mas também lhes é muitas vezes necessário saber os como e os porquê de muitas outras coisas e processos. Neste século de empresas coletivas, quase toda a gente, exceto o lavrador, está interessada como capitalista em qualquer outro negócio que não é o seu; e, como interessado, o seu lucro ou o seu prejuízo depende dos conhecimentos que se tem da ciência que influem nesse ou outro negócio. Aqui está uma mina em cuja exploração se arruinaram os acionistas por não saberem que um certo fóssil pertence a camada de pedra vermelha sobre a qual nunca se encontra carvão. Tem-se feito numerosas tentativas para se construírem aparelhos eletromagnéticos que substituam o vapor; mas se aqueles que fornecem os capitais para essas empresas tivessem conhecimento da lei geral da correlação e equivalência dos preços, teriam também maior saldo na conta corrente com os seus banqueiros. Diariamente aparecem indivíduos que estão prontos a auxiliar experiências de invenções, cuja futilidade veriam logo se possuíssem a mais singela noção da ciência. Não há localidade alguma que não tenha a contar qualquer história de fortunas perdidas em projetos impossíveis. E se agora as perdas ocasionadas pela ignorância já são tão frequentes e tão grandes, maiores e mais frequentes serão para o futuro para aqueles que desconhecerem a ciência. A par e passo que os processos de produção se vão tornando cada vez mais científicos, como o exigem as leis da concorrência; a par e passo que se alonga a esfera das empresas coletivas, como será da vontade de todos, assim os conhecimentos científicos vão se tornando cada vez maiores. Aquilo que os cursos das nossas escolas desprezam quase completamente é precisamente aquilo que mais intimamente diz respeito aos negócios da vida. As nossas indústrias morreriam, se os homens não principiassem a adquirir conhecimentos, conforme podem, depois de se dar por acabada a sua educação. E tais indústrias jamais existiriam se não fossem as informações acumuladas e transmitidas de século em século por meios completamente alheios ao ensino oficial. A Inglaterra ainda agora seria o que foi nos tempos feudais se apenas se aprendesse o que se ensina nas nossas escolas públicas. O conhecimento progressivo das leis dos fenômenos, que, transmitido através dos séculos, nos faculta subjugarmos a Natureza as nossas necessidades, e que dá hoje regalias a um lavrador que há alguns séculos, os reis não podiam comprar, só mesquinhamente é devido aos meios oficiais com que se instrui a mocidade. A ciência vital - aquela que nos fez uma nação tal qual somos hoje e que preside a toda a nossa existência - essa fez-se conhecer de per si em todos os recantos e lugares obscuros, enquanto as agencias oficialmente organizadas para o ensino apenas murmuravam formulas vãs. Chegamos agora a terceira grande divisão das atividades humanas - aquela para a qual não se fez preparativo algum. Se, por qualquer acaso extraordinário, não ficasse da geração atual vestígio algum para o futuro remoto a não ser um certo número dos nossos livros de aulas, ou quaisquer papeis dos exames nos colégios, podemos imaginar quão embaraçado não se veria o antiquado no estudar a nossa época, não encontrando nesses documentos informação alguma de que os estudantes podiam vir a ser chefes de família. «Este deve ter sido o sistema de os fazer celibatários » imaginamos nós que ele concluirá. Vejo aqui uma trabalhosa preparação para diversas coisas; especialmente para a leitura de livros das noções extintas e das nações coexistentes (mas, em verdade, parece evidente, que estes povos davam pouco valor ao lê-los na sua própria língua); mas não vejo referência alguma sobre a maneira de educarem os filhos. Eles não podiam ser tão absurdos que omitissem tudo quanto prepara para a mais grave das responsabilidades. Portanto, é evidente que isto pertencia a aula de qualquer ordem monástica. Falando seriamente, não é um fato espantoso, sabendo-se que da educação dos filhos depende a sua vida ou a sua morte, a sua ventura ou a sua desventura, que não se diga uma única palavra sobre a educação daqueles que dentro em pouco serão chefes de família? Não é realmente monstruoso abandonar o destino de uma geração nova aos azares dos costumes desassisados, às paixões, a fantasia, adicionados às observações das amas ignorantes e aos prejuízos das avós? Se um negociante começasse os seus negócios sem possuir conhecimento algum de aritmética e de escrituração comercial, a sua loucura arrancar-nos-ia exclamações e preveríamos os desastres de tal necedade. Se víssemos algum indivíduo, sem o estudo prévio da anatomia, estabelecer-se como operador cirúrgico, ficaríamos admirados de tal audácia e compadecidos das suas vítimas. Às dezenas de milhar de indivíduos que morrem em consequência do fraqueza do sua constituição, adicione as centenas de milhar que sobrevivem com constituições fracas e os milhões deles que vegetam com constituições menos fortes do que poderiam ter, e tereis uma aproximada ideia do anátema lançado sobre o sua descendência pelos pais que ignoram as leis da vida. Considere-se ainda por um momento que o regime a que as crianças estão sujeitas, influi a todos os instantes sobre elas, produzindo o bem ou o mal de toda a sua vida; que há vinte caminhos que conduzem a desgraça enquanto só há um que leva a felicidade e tereis uma ideia do enorme desarranjo que por toda a parte produz a ignorância, o sistema desleixado que ordinariamente se usa. Será prudente vestir uma criança com roupas demasiadamente finas e curtas e deixa-las assim brincar, tendo os membros vermelhos de frio? tal imprudência far-se-á sentir em todo a sua existência futura já em doenças, já obstando ao seu desenvolvimento regular, já na falta de energia, já numa madureza menos vigorosa do que deveria ter sido, já nos consequentes obstáculos ao bom exilo e a felicidade. Condenais as crianças a uma dieta monótona, ou a uma alimentação insuficiente? Homens ou mulheres do futuro as suas faculdades físicas e a sua energia deverão forçosamente diminuir. Proibis-lhes os divertimentos alegres ou (estando suficientemente enroupadas para andarem expostas ao tempo) são retidas em casa durante o tempo frio? Podemos ter a certeza que elas não chegarão a medida de saúde e de força que por outra forma alcançariam. Quando os rapazes e as raparigas vão crescendo doentes e fracos, os pais ordinariamente consideram este fato como uma desgraça, como uma provação da Providencia. Raciocinando por esta forma caótica, entendem que os males se sucedem sem causas, ou que essas causas são sobrenaturais. Completo erro. Em muitos casos essas causas são indubitavelmente herdadas; mas no seu maior numero são provenientes dos métodos errados. Quase sempre os pais são os verdadeiros responsáveis de todos estes males, dessa fraqueza, dessa depressão, dessa miséria. Encarregaram-se de vigiar, hora a hora, a vida dos filhos; com um desleixo cruel não quiseram aprender coisa alguma respeitante aos processos vitais que eles estão falsamente representando a todos os momentos pelas suas ordens e proibições; pela absoluta ignorância das leis fisiológicas as mais simples, foram minando dia a dia as constituições dos filhos; condenando por esta maneira a doença e a morte prematura não só a eles, mas também a sua descendência. Igualmente grande é a ignorância e igualmente graves são as suas consequências quando, deixando a educação física, observamos o que se passa com a educação moral. Vejamos a jovem mãe e a sua legislação no quarto das amas. Poucos anos antes ainda ela ia ao colégio encher o cérebro com palavras e nomes e datas, exercendo o menos possível as suas faculdades refletivas; não recebendo uma única ideia que a orientasse sobre a educação inteligente dos filhos, e onde os seus estudos não lhe davam margem para pensar nos métodos a seguir na sua educação própria. O espaço de tempo, desde que ela largou o colégio, foi despendido no estudo da música, nos trabalhos de fantasia, na leitura das novelas e nos salões: nenhuma ideia recebeu sobre as graves responsabilidades da maternidade, nem qualquer sólida cultura intelectual que a preparasse para tais responsabilidades. Vejam-na agora encarregada na tarefa de criar um caráter humano; vejam-na profundamente ignorante dos fenômenos com que se vai ver de face, tentando fazer aquilo que mesmo com o auxílio dos mais profundos conhecimentos só imperfeitamente se pôde levar a cabo. Coisa alguma sabe da natureza das comoções, da ordem da sua evolução, das suas funções; do ponto onde termina o uso e onde principia o abuso. Vive sob o preconceito de que certos sentimentos são absolutamente maus, o que não é verdade de todos eles; e de que outros são bons por mais extremos que sejam as suas consequências, o que também é igualmente falso. Assim como ignora a estrutura do ente que tem a educar, ignora da mesma maneira os efeitos que sobre ele pode produzir este ou aquele sistema de educação. Haverá alguma coisa mais inevitável do que os desastrosos resultados que nós vemos ir crescendo de hora para hora? A interferência da ignorância nos fenômenos mentais, com as suas causas e os seus efeitos, é muito mais nocivo do que uma passividade absoluta. Perpetuamente embaraça as ações naturalmente normais e benéficas, diminuindo assim a felicidade e as vantagens das crianças; combate o temperamento delas e o seu próprio, alargando as distâncias entre ela e os filhos. As ações que ela entende dever excitar são por ela provocadas por ameaças ou por presentes, ou fazendo nascer o desejo de aplausos: importando-se pouco com a conformidade que deve existir entre os móbeis interiores e as ações exteriores, cultivando assim a hipocrisia, o medo e o egoísmo em vez dos bons sentimentos. Apregoando sempre a verdade, dá constante exemplo da mentira, ameaçando os filhos com castigos que não inflige. Ao mesmo tempo que lhes ensina a serenidade, a todos os momentos se entrega a excessos de cólera que o procedimento dos filhos não provocou. Não possui a mais leve ideia sobre esta verdade: que no quarto ela ama, como em todo o mundo, a única disciplina verdadeiramente salutar é aquela que influi em todos os procedimentos, bons ou maus, pelas consequências naturais, consequências agradáveis ou desagradáveis, aquelas que, pela natureza das coisas, as nossas ações originam. Sendo assim desprovida de qualquer guia teórico e absolutamente incapaz de se guiar a si mesma pela educação dos processos mentais dos seus filhos, a mãe desempenha um papel impulsivo, inconsistente, pernicioso; e ele seria geralmente funesto se não fosse a tendência omnipotente que tem os espíritos juvenis para se apropriarem do tipo da raça a que usualmente subordina todas as influências menores. E a cultura da inteligência não é igualmente mal dirigida? Suponhamos que os fenômenos da inteligência são conformes a certas leis; suponhamos que a evolução da inteligência numa criança é conforme a essas leis; segue-se fatalmente que a educação não pode ser retamente dirigida sem o conhecimento delas. Supor que poderemos regularizar justamente o processo da formação e da acumulação das ideias, sem compreendermos a natureza de tal processo, é um absurdo. Que grande distância vai, portanto, da educação que agora se dá aquela que se deveria ensinar, quando é tão raro encontrar pais ou tutores que saibam alguma coisa de psicologia! Como era de esperar, o sistema estabelecido é tão defeituoso no fundo, como na forma. Enquanto se recusa toda a ordem de fatos uteis, a serie dos fatos inúteis é subministrada insistentemente, da pior maneira e na pior ordem. Sob o império da acanhada ideia comum de que a educação se limita aos conhecimentos fornecidos pelos livros, os pais metem o alfabeto nas mãos das crianças alguns anos mais cedo do que deviam, o que lhes causa grande mal. Ignorando a verdade de que a função dos livros é uma função suplementar - que os livros constituem um meio indireto de adquirir conhecimentos para quando faltam os meios diretos - um meio para se ver segundo a opinião dos outros homens aquilo que não podemos ver pelos nossos próprios olhos, os mestres empenham-se em ensinar apenas os fatos de segunda ordem, em vez dos de primeira ordem. Não percebendo o valor enorme da educação espontânea que deve ser preferida nos primeiros anos; não percebendo que a curiosidade ativa das crianças em vez de ser aniquilada ou combatida deve ser ativamente coadjuvada, e feita tão viva e tão completa quanto ser possa; insistem em ocupar os olhos e as ideias das crianças com coisas que são, nessa época, incompreensíveis e repugnantes. Possui dos da superstição que presta culto aos símbolos do pensamento em vez de adorar o próprio pensamento, eles não veem que às crianças só se deve fornecer novas fontes de ciência, pelos livros, quando estiverem notavelmente esgotadas aquelas que a vida da casa, das ruas e dos campos faculta; e isto, não só porque a instrução imediata é muito mais valiosa de que a mediata; mas também, porque as palavras que os livros contém podem ser interpretadas somente na proporção das ideias antecedentemente adquiridas na experiencia das coisas. Observe-se ainda que esta instrução formal; começada demasiadamente cedo, tem uma relação muito diminuta com as leis do desenvolvimento mental. O progresso intelectual caminha necessariamente do concreto para o abstrato. Mas sem consideração alguma por esta verdade, os mestres fazem começar muito cedo os estudos mais abstratos, que, com a gramática, só devem ser ensinados muito mais tarde. A geografia política, matéria feia e de pouco interessa para as crianças, e que deve ser considerada como acessório dos estudos sociológicos, é também prematuramente ensinada, enquanto que a geografia física, compreensível e comparativamente atraente para a infância, é em grande parte omitida. Quase todas as matérias tratadas são dispostas nessa ordem anormal; as definições, as regras e os princípios são colocados em primeiro lugar, em vez de serem expostos, segundo a ordem natural, no estudo dos fatos. Desta forma, penetrando o erro em todo o conjunto da educação, vemos que a rotina constitui todo o seu vicioso sistema, sistema em que o espírito é sacrificado a letra. Vejam-se os resultados de tudo isto. Com as faculdades embutidas por prematuras contrariedades, e pela atenção obrigada sobre os livros; com a confusão mental, produzida pelo ensino de assuntos, feito antes de poderem ser compreendidos, e em todas as matérias recebendo generalizações antes da análise dos fatos de que são generalizações; fazendo o pupilo um mero recipiente passivo das ideias dos outros e não lhe permitindo exercer as suas faculdades ativas e ser o seu próprio mestre; sobrecarregando excessivamente o cérebro, a educação geralmente ministrada poucos espíritos deixa chegar ao grau de desenvolvimento a que deveriam chegar. Feitos os exames, os livros são postos de parte; e como o maior número deles, por falta de método, apenas passados pelo espírito são logo esquecidos, o que deles permanece é ordinariamente inerte; a arte de aplicar os conhecimentos obtidos não foi cultivada; porque não o foi também a faculdade de desenvolver uma observação ativa ou a independência das ideias. Acrescente-se a tudo isso que, enquanto os conhecimentos obtidos são relativamente de pequeno valor, se omite uma cópia imensa de conhecimentos do mais alto valor. Assim os fatos aparecem ao nosso espirito tais como os inferimos a priori. A educação física, moral e intelectual da mocidade é espantosamente deficiente. A maior parte da culpa pertence aos pais pela sua ignorância dos conhecimentos por meio de que a educação pode ser dirigida com verdade. Que devemos nós esperar, quando um dos problemas mais complexos é tratado por aqueles que desconhecem os princípios mais rudimentares de que a sua solução depende? Os sapateiros, os construtores, os armadores de navios, os fabricantes de uma locomotiva precisam de um longo aprendizado. A arte de desenvolver um ser humano, nas aptidões do corpo e do espírito, será relativamente tão simples que não careça de ser empreendida e regulada com qualquer aprendizado anterior? Se não, se tal arte é, sem excepção alguma, mais complexa do que qualquer outra da Natureza, e a tarefa de a subministrar é da mais momentosa dificuldade, não será uma loucura deixar de fazer provisão alguma para a desempenhar? Era melhor fazer o sacrifício da ciência do que esperar obtê-la sem essa essencialíssima instrução. Quando um pai, obrando em conformidade de falsos dogmas recebidos sem exame, chega a alienar o respeito dos filhos, que entram em rebelião contra ele por causa dos seus maus tratos, tornando-se ele próprio um miserável, então, pode ele refletir que o estudo da Moral seria do máximo proveito, embora a custa da mais absoluta ignorância sobre Esquilo. Quando uma mãe está mergulhada na dor de ter perdido o seu primeiro filho em consequência da febre escarlatina, e quando um médico honesto lhe confirma a suspeita de que ela não teria perdido o filho se o seu organismo não tivesse sido enfraquecido por um excesso de estudo, quando ela estiver prostrada sob as angustias da dor e do remorso, deve servir-lhe de pouca consolação a ideia de que ele teria podido ler Dante no original. Vemos, pois, que para regular a terceira grande divisão das atividades humanas, é imprescindível o conhecimento das leis da vida. Para a boa educação da mocidade são indispensáveis alguns conhecimentos dos primeiros princípios de fisiologia e das verdades elementares da psicologia. Bem sabemos que muitas pessoas hão de sorrir ao ler este asserto. Os pais, em geral, entenderão que será um absurdo esperar que eles percebam tão abstrusos assuntos. E, em verdade, esse absurdo seria evidente se nós quiséssemos que os pais e as mães adquirissem um conhecimento profundo de tais matérias. Mas nós não queremos isso. Bastam os princípios gerais, acompanhados pelas necessárias exemplificações para que sejam compreendidos. E isto deve ser rapidamente ensinado, senão racionalmente, ao menos dogmaticamente. Mas seja como for, os fatos indiscutíveis são estes: o desenvolvimento das ciências, material e espiritualmente, opera-se segundo certas leis; se os pais não se conformam de algum modo com essas leis a morte é inevitável; se eles não se conformam absolutamente com elas devem resultar sérios defeitos físicos e mentais; e só quando eles se conformarem completamente com essas leis é que se pode esperar uma vida perfeita. Julgue-se, pois, se aqueles que serão mais tarde pais se devem ou não esforçar, com ansiedade, em aprender o que são essas leis. Das funções paternas passemos agora para as do cidadão. Neste ponto devemos tratar de saber quais são os conhecimentos mais próprios para o homem as desempenhar. Não se pode dizer que faltem hoje completamente os conhecimentos adequados a essas funções; pois que os programas das nossas escolas contem certos estudos que, nominalmente a final, dizem respeito aos deveres políticos e sociais. Entre eles o que ocupa o lugar proeminente é a História. Mas, como já dissemos, as noções geralmente dadas sob aquela denominação não têm quase valor algum como guias. Dificilmente os fatos ensinados nos nossos cursos de histeria, bem como a maior parte das melhores obras escritas para adultos, ilustram o espírito sobre os justos princípios da ação política. As biografias dos monarcas (e a nossa mocidade não aprende outra coisa) lançam pequena luz sobre a ciência da sociedade. A familiaridade com as intrigas da corte, com as suas conspirações, com as suas usurpações, ou coisas semelhantes, e com todas as personalidades que as acompanham, pouca elucidação podem trazer sobre as causas do progresso nacional. Lemos as disputas do poder que originaram as batalhas encarniçadas; os nomes dos generais e dos seus principais subordinados; que eles tinham tantos mil homens de infantaria, tantos de cavalaria e tantos canhões; que dispuseram as suas forças nesta e naquela ordem; que manobraram, atacaram e recuaram em, tais e tais pontos; que a uma certa hora do dia havia tais perdas e tais vitorias; que num movimento particular foi morto tal chefe, em quanto que, em outro, certo regimento foi derrotado; que depois de varia fortuna a vitória foi ganha por este ou por aquele; que houve tantos mortos e tantos feridos de ambos os exércitos e tantos prisioneiros feitos pelos conquistadores. E agora, pondo de parte os pormenores minuciosos da narrativa, dizei que subsidio recebeis com estes conhecimentos para a regularização do vosso procedimento como cidadão. Supondo até que lestes cuidadosamente não só as «Quinze batalhas decisivas do Mundo», mas ainda a narrativa de todas as outras batalhas que a história romana menciona, que nova força judiciosa recebestes para votar na próxima eleição? Mas isso são fatos, fatos interessantes, dizeis vós. Indubitavelmente são fatos (se não são ficções maiores ou menores) fatos até interessantes para muita gente. Mas isso não quer de modo algum dizer que sejam valiosos. As opiniões factícias ou enfermiças prestam muitas vezes valor a coisas que tem diminuta importância. Um tulipomaníaco não cederia uma cebola rara nem que lhe dessem o peso dela em ouro. Ha homens para quem a posse de um pedaço insignificante de porcelana da China constitui a sua maior ambição. E há quem dê muito dinheiro por quaisquer objetos que tivessem pertencido a assassinos celebres. tais gostos darão a medida do valor das coisas adquiridas? Se não dão, é necessário admitir que simpatias semelhantes por certas classes de fatos históricos não provam o seu valor, que nós podemos verificar, como pesamos o valor dos outros fatos, perguntando para que é que eles servem. Se alguém vos disser que a gata do vizinho teve filhos na noite passada entendeis que a notícia pouco vos importa. Apesar de ser um fato podemos chamar-lhe um fato absolutamente sem utilidade, que não pode ter a mais leve influência nas ações da nossa vida, que por forma alguma nos dará auxilio no sentido de concorrer para a perfeição de nossa existência. Pois bem, aplicai a mesma análise a grande massa dos fatos históricos e obtereis idêntico resultado. Ha fatos de que não se pode tirar conclusão alguma, fatos inorganizáveis; isto é que nenhum serviço prestam a realização dos princípios de viver, pedra de toque da utilidade dos fatos. Podeis lê-los, se assim vos apraz, como passatempo; mas não lisonjeeis a vossa vaidade, afirmando que tal leitura é util. O que constitui a História propriamente dita, é na maior parte omitido, nas obras que dela dizem tratar. Só nestes últimos anos é que alguns historiadores nos começaram a dar, em pequenas doses, conhecimentos de valor real. Como nos séculos passados o rei era tudo e o povo coisa nenhuma, assim nas passadas histórias os feitos do rei enchiam toda a tela, de onde eram cuidadosamente varridas as manifestações da vida nacional. Só agora que a ideia da felicidade das nações sobreleva a vaidade dos seus dirigentes é que os escritores da histeria principiam a ocupar-se dos fenômenos do progresso social. A coisa que realmente mais nos importa saber é a história natural da sociedade. Precisamos de todos os fatos que nos elucidem sobre a maneira como uma nação nasce e se organiza pelas suas próprias forças. Entre eles temos de contar necessariamente com aqueles que dizem respeito ao seu governo; com os rumores propalados ao redor dos indivíduos que o constituíam, e, quanto possível seja, da estrutura, dos princípios, dos métodos, dos prejuízos, das corrupções, etc., que ele exibiu; estas informações não se devem referir unicamente a natureza e ás ações do governo central, mas também ás do governo local nas suas mais miúdas ramificações. Façamos também uma descrição paralela do governo eclesiástico, da sua organização, do seu procedimento, do seu poder, das suas relações com o Estado; acompanhando este estudo com a notícia do cerimonial, do credo e das ideias religiosas, não só aquelas oficialmente acreditadas, mas também aquelas realmente sentidas e executadas. Simultaneamente informemo-nos da autoridade que uma classe social exercia sobre as outras, patenteada nas observâncias sociais, nos títulos, nas saudações, no trato. Saibamos também quais eram todos os outros costumes que regulavam a vida popular interna e externa, incluindo aqueles que dizem respeito às relações entre os dois sexos, e às relações entre os pais e os filhos. Devemos estudar ainda as superstições, desde os mitos mais importantes até aos bruxedos mais rasteiros. Seguir-se-á depois um traçado geral do sistema industrial: mostrando até que ponto fora levada a divisão do trabalho, a maneira como se regulavam os assuntos comerciais, se por castas, corporações, ou por qualquer outra fôrma; quais eram as relações entre dirigentes e dirigidos; como se operava a distribuição dos produtos; quais eram os meios de comunicação; qual era o sinal representativo dos valores. Acompanhando-se isto com tudo quanto nos possa informar sobre as artes industriais, consideradas sob o ponto de vista técnico: registrando os processos em uso e a qualidade dos produtos. Seguidamente, a condição intelectual da nação nas suas diversas esferas deve ser consignada, não só com respeito ao gênero e valor da educação, mas com respeito ao progresso feito na ciência, e na maneira geral do ensino. Descrever-se-á o grau da cultura estética, nas suas aplicações a arquitetura, a escultura, a pintura, ao vestuário, a música, a poesia, às ficções. Não se deve omitir igualmente um escorço da vida diária dos povos - a sua alimentação, a sua vida doméstica, as suas diversões. E finalmente, para enfeixar este todo, estudar-se-á a moral teórica e pratica de todas as classes; manifestada nas suas leis, nos seus costumes, nos seus provérbios, nas suas ações. Estes fatos, estudados com a brevidade compatível com a clareza e com a exatidão, devem ser agrupados e dispostos de modo que possam ser compreendidos no seu ensemble, e observados como partes mutuamente dependentes de um grande todo. O fim a que se deve mirar consiste em apresenta-los de tal modo que a gente possa rapidamente traçar o consensus (a harmonia) existente entre eles, procurando estudar sempre que fenômenos sociais coexistem com outros. Depois, os planos correspondentes dos séculos sucessivos devem ser feitos de modo a mostrar quaisquer modificações operadas nas crenças, nas instituições, nos costumes, nas convenções; e como o consensus dos organismos e das funções sociais precedentes se desenvolvem no consensus dos seguintes. Tal é a espécie de conhecimentos relativos aos tempos passados que pode prestar serviços ao cidadão para regular o seu procedimento. A história que possui valor prático é aquela a que podemos chamar Sociologia Descritiva. E o serviço mais importante que o historiador pode fazer é narrar a vida das nações, formando materiais para a Sociologia comparada, e para a subsequente determinação das últimas leis relativas aos fenômenos sociais. Mas notai agora, que supondo mesmo que se tenha feito um pecúlio próprio destes conhecimentos de inquestionável valor histórico, a sua utilidade é comparativamente pouca sem a chave principal, que só pode ser encontrada na ciência. Sem as generalizações da biologia e da psicologia, é impossível a interpretação racional dos fenômenos sociais. A compreensão dos fatos, até os mais simples da vida social, como por exemplo, a relação entre a oferta e a procura, só pode dar-se na proporção dos conhecimentos que possuímos de certos fatos rudes e empíricos, concernentes á natureza humana. E se as verdades mais elementares da sociologia não podem ser investigadas sem o conhecimento prévio da maneira como os homens geralmente pensam, sentem e obram em dadas circunstâncias, é evidente que não se pode obter uma larga compreensão sociológica, sem um trato competente com o homem em todas as suas faculdades, corporais e mentais. Considerai a matéria abstratamente e esta conclusão evidenciar-se-á por si mesma. Assim: a Sociedade é constituída de indivíduos; tudo o que se faz na sociedade é feito pelas ações combinadas dos indivíduos; e, portanto, só nas ações individuais é que se podem encontrar as soluções dos fenômenos sociais. Mas as ações dos indivíduos dependem das leis da sua natureza e as suas ações não podem ser estudadas, sem a prévia compreensão dessas leis; quando as reduzimos às suas expressões mais simples, provam ser corolários das leis gerais do corpo e do espírito. Daqui se segue que a biologia e a psicologia são interpretes indispensáveis da sociologia. Ou, estabelecendo estas conclusões ainda mais simplesmente: todos os fenômenos sociais são fenômenos da vida, são as manifestações mais complexas da vida, devem conformar-se com as leis da vida, e só podem ser compreendidas quando já o são as leis da vida. Assim, pois, para regularmos a nossa quarta divisão das atividades humanas, encontramo-nos afinal dependentes da Ciência. Da ciência geralmente recebida em as nossas escolas de educação, pequeno é o serviço resultante para guiar o homem no seu proceder como cidadão. Só uma pequena parte da história que se aprende tem algum valor pratico, e desta pequena parte não estarmos suficientemente preparados para nos utilizarmos dela. Faltam-nos não só os materiais da sociologia descritiva, mas também uma verdadeira concepção do que essa ciência é; faltam-nos igualmente essas generalizações das ciências orgânicas, sem as quais a própria sociologia descritiva só poderá fornecer um auxilio insuficiente. E agora somos chegados á restante divisão da vida humana, que trata das diversões e recreios que ocupam as horas de ócio. Depois de considerarmos qual seria a educação mais competente para a conservação própria, para obter a subsistência, para desempenho dos deveres da família e para regularização do proceder social e político, temos agora a ver qual será a educação mais própria para os diversos fins não incluídos nestas categorias, para os prazeres da Natureza, da Literatura, das Belas Artes, nas suas diversas formas. Colocando-os depois das coisas que tem maior influência na felicidade humana, e, avaliando tudo, como fizemos, pela pedra de toque do seu valor positivo, talvez se infira desta disposição que consideramos estas coisas como menos essenciais. O engano não pode ser maior. Ninguém, mais do que nós, presta maior atenção à cultura estética e aos seus prazeres. Sem a pintura, a escultura, a música, a poesia, sem as sensações produzidas pelas belezas naturais de toda a espécie, a vida perderia metade dos seus encantos. Em vez de considerarmos a educação e a satisfação dos prazeres como pouco importantes, entendemos que na vida humana do futuro elas ocuparão um espaço mais largo. Quando as forças da Natureza forem completamente conquistadas para a utilidade do homem, quando os meios de produção tiverem atingido a sua perfeição, quando o trabalho tiver sido economizado ao máximo ponto, quando a educação estiver organizada de maneira que a preparação para as atividades mais essenciais seja feita com notável rapidez, e quando consequentemente, houver um grande aumento na economia do tempo, então o belo, quer na Arte, quer na Natureza, deverá ocupar justamente um largo espaço no espírito de todos. Mas uma coisa é aprovar a cultura estética como poderosamente conducente para a felicidade humana e outra é afirmar que ela seja uma condição fundamental para essa felicidade. Por mais importante que possa ser, deve ceder campo aos conhecimentos que direta e diariamente tenham influência no cumprimento dos nossos deveres. Como já dissemos, a literatura e as belas artes existem em virtude das atividades que fazem possível a vida social e individual; e é claro que aquilo que se tornou possível tem de ser considerado depois daquilo que lhe deu essa possibilidade. Um florista cultiva uma planta porque gosta das flores; considera valiosas as raízes e as folhas principalmente, porque são instrumentos na produção das fiares. Mas enquanto que a flor, como último produto, é a coisa a que todas as outras se subordinam, o florista aprende que a raiz e as folhas são intrinsecamente da maior importância; porque é da sua evolução que depende a flor. Emprega todos os seus cuidados em cultivar uma planta sã, e sabe que loucura não seria, na sua ansiedade de obter as flores, desprezar a planta. O mesmo sucede no caso que estamos examinando. A arquitetura, a escultura, a pintura, a música, a poesia, podem ser justamente chamadas as flores da vida civilizada. Mas, supondo mesmo que elas tenham um vaiar tão transcendente para subordinarem o mundo civilizado em que elas vivem (o que só por grande ousadia se pode afirmar), é necessário admitir que a produção da vida civilizada e sã é de primeira consideração; e que a cultura que lhe é especial deve ocupar o lugar mais alto. E aqui vemos nós mais distintamente o vício da nossa educação. Desejamos a flor, mas desprezamos a planta. Ansiosos de elegância esquecemos a substancia. Enquanto que a nossa educação não nos fornece conhecimento algum para a conservação própria, em quanto que dá apenas os rudimentos da ciência que facilita os meios de ganhar a vida e deixa a maior parte deles para serem recolhidos mais tarde pela experiencia do mundo, enquanto que não faz a menor provisão para o desenvolvimento dos deveres da família, e enquanto para os deveres do cidadão fornece a comunicação de uma massa de fatos, a maior parte das quais nada provam, e os restantes sem uma chave essencial; só é diligente no ensino do que diz respeito à elegância, a polidez das maneiras, ao brilho social. Par mais larga que seja a nossa aquiescência ao estudo das línguas modernas, que tem um inquestionável vaiar, porque a leitura, a conversação e as viagens são um poderoso auxilio para a conquista da vida; não se segue, de modo algum, que esse resultado deva ser obtido à custa do sacrifício dos mais importantes conhecimentos vitais. Supondo ser verdade que uma educação clássica dá elegância e correção ao estilo; não se pode dizer que a elegância e correção do estilo sejam comparáveis em importância a familiaridade dos princípios sobre os quais se baseia a educação da sociedade. Concedendo que o gosto pode ser educado pela leitura dos poetas antigos, todavia não se deve inferir que um tal progresso de gosto é equivalente em valor ao conhecimento das leis da saúde. Prendas, belas artes, belles-letres, e todas as coisas que, como dissemos, constituem as flores da civilização devem ser totalmente subordinadas a instrução e a disciplina daquilo em que se fundamenta a civilização. Assim como ocupam a parte do tempo vago da vida, assim devem ocupar o tempo vago da educação. Reconhecendo deste modo a verdadeira posição da estética, e, estabelecendo que a sua cultura deve formar parte da educação, desde o seu começo, mas de um modo subsidia rio, temos de indagar quais são os conhecimentos de maior utilidade para tal fim - quais são os conhecimentos mais próprios para esta última esfera das nossas atividades? A esta pergunta respondemos como até agora. Por mais estranha que pareça a nossa asserção, é certo que a mais alta das Artes é baseada na Ciência; sem a Ciência não pode haver trabalho perfeito nem apreciação justa. Segundo a opinião tacanha, muito em voga na sociedade, muitos artistas de grande reputação desconheceram a Ciência; mas por mais perspicazes observadores que tivessem sido esses artistas, eles deviam possuir um certo pecúlio dessas generalizações empíricas que constituem a ciência na sua fase mais rudimentar, e se muitas vezes estiveram longe da perfeição é porque as suas generalizações eram comparativamente poucas e descuradas. Que a ciência necessariamente domina as belas artes torna-se manifesto à priori quando nos lembramos de que os produtos da arte são mais ou menos representativos dos fenômenos objetivos ou subjetivos; que a sua excelência é proporcional à sua conformidade às leis desses fenômenos; e que antes de entrarem nessa conformidade, os artistas devem saber o que essas leis são. Que esta conclusão à priori se harmoniza com a experiencia, é o que nós vamos brevemente ver. Aqueles que se preparam para trabalhar em escultura, tem de conhecer os ossos e os músculos do corpo humano na sua distribuição, na ligação que tem uns com os outros e nos movimentos. Este é o quinhão da ciência, e o seu estudo foi julgado necessário para prevenção dos muitos erros, cometidos pelos escultores que o não possuíam. É igualmente necessário o conhecimento dos princípios da mecânica; porque são frequentes os erros cometidos por aqueles que os ignoram. Vejam um exemplo. Para a estabilidade de uma figura é necessário que a perpendicular do centro de gravidade - que é «a linha de direção», como se diz, caia dentro da base de suporte ; de onde se segue que quando um homem assume a atitude de «estar à vontade», em que uma perna tem de estar direita e a outra frouxa, a linha de direção cabe no pé da perna hirta. Mas os escultores que desconhecem a teoria do equilíbrio, representam muitas vezes esta atitude de modo que a linha de direção cabe entre os pés. A ignorância da lei do movimento leva a análogos defeitos, como sucede com a estatua tão admirada de Discóbolo, que, na posição em que está, devia necessariamente cair para diante logo que se lhe tirasse o disco. Na pintura, a necessidade das informações científicas, se não racionais pelo menos empíricas, ainda é mais visível. O que é que dá o caráter grutesco às pinturas Chinesas a não ser o seu completo desprezo pelas leis da verossimilhança, os seus absurdos de perspectiva linear e a sua falta de perspectiva aérea? Em que são os desenhos das crianças tão viciosos, senão pela ausência de verdade nas semelhanças, ausência em grande parte originada pela ignorância do modo como os aspetos das coisas variam segundo as circunstâncias? Recordai-vos dos livros e das leituras que instruem os estudantes; ou considere as críticas de Ruskin, ou as manifestações dos Pré-rafaelistas e vereis que o progresso na pintura implica o conhecimento progressivo do modo como se produzem os efeitos na Natureza. A observação mais diligente não sendo auxiliada pela ciência não nos livra de errar. Todos os pintores perfilharão a opinião de que sem ser conhecida a maneira como as aparências variam segundo dadas circunstâncias eles não as perceberiam muitas vezes; ora conhecer a maneira como as aparências devem existir é compreender a ciência das aparências. Por falta de ciência J. Lewis, apesar de ser um pintor tão cuidadoso, lança a sombra de uma gelosia em linhas rigorosamente traçadas sobre uma parede oposta; o que ele não teria feito se lhe fossem familiares os fenômenos da penumbra. Por falta de ciência, Roseti, lançando a vista sobre uma iridescência peculiar produzida por certas superfícies de cabelo sob certa luz (iridescência causada pela difração da luz passando pelos cabelos) comete o erro de mostrar essa iridescência sobre superfícies e em posições em que ela não se pode produzir. Talvez cause ainda maior surpresa o dizer-se que a música precisa também de ser auxiliada pela ciência. Todavia é certo que a música é uma idealização da linguagem natural das comoções é que consequentemente a música é boa ou má, segundo a sua conformidade às leis desta linguagem natural. As várias inflexões de voz que acompanham os sentimentos, de diferentes gêneros e intensidades, são os germens em que a música se desenvolve. Demonstra-se que essas inflexões e cadencias não são acidentais ou arbitrarias, mas determinadas por certos princípios gerais da ação vital de que depende a sua expressão. Daqui se conclui que as frases musicais e as melodias delas originadas só podem ser efetivas quando estão em harmonia com estes princípios gerais. É difícil apresentar aqui exemplos deste asserto, mas talvez baste lembrar a enorme multidão de baladas sem valor que infestam os salões, composições que a ciência proibiria. Pecam contra a ciência, metendo em música ideias que não são suficientemente impressionáveis para produzirem a expressão musical; e pecam ainda contra a ciência, empregando frases musicais que não tem nenhumas relações naturais com as ideias expressas, embora estas sejam impressionáveis. São más, porque são falsas. E dizer que elas são falsas é dizer que elas não são cientificas. Sucede a mesma coisa com a poesia. Como a música, a poesia tem a sua raiz nos modos naturais de expressão que acompanham os sentimentos profundos. O seu ritmo, as suas imagens fortes e numerosas, as suas hipérboles, as suas inversões violentas, são simplesmente exagerações dos traços de uma linguagem apaixonada. Tornando intensas e combinando os traços da linguagem apaixonada, a poesia deve ter em vista a proporção, não deve usar sem restrição as suas aplicações; nos pontos em que as ideias são menos impressionadoras tem de usar moderadamente as formas da expressão poética; tem de usa-las mais liberalmente nus com moções vivas; e tem de as levar a sua máxima extensão somente quando a comoção chega ao cumulo. A transgressão completa destes princípios origina o bombástico ou a versalhada. Na poesia didática vê-se o respeito insuficiente por eles. E é porque eles são tão raramente respeitados, que tantas poesias sem arte aparecem todos os dias. Não só o artista, seja qual for o ramo a que pertença, não pode produzir obra alguma verdadeira sem a compreensão das leis dos fenômenos que representa, mas também deve compreender a maneira como o espírito dos seus espetadores ou dos seus leitores é afetado pelas diversas particularidades da sua obra, o que constitui uma questão psicológica. A impressão que qualquer obra de arte origina, depende manifestamente da natureza mental daqueles a quem essa obra é apresentada; e como todas as naturezas mentais tem certas caraterísticas comuns segue-se que há certos princípios gerais, correspondentes, sobre os quais as obras de arte podem ser sucessivamente modeladas. Estes princípios gerais não podem ser perfeitamente compreendidos e aplicados sem que o artista veja a maneira como eles nascem das leis do espírito. Perguntar se uma tela é boa, é realmente perguntar como as percepções e os sentimentos dos observadores são por ela impressionados. Perguntar se um drama é bem construído, é perguntar se as situações estão dispostas de modo a chamarem a atenção de uma assembleia, e de modo a não sobrecarregar nenhuma classe de sentimentos. Igualmente no arranjo das divisões principais de um poema ou de uma fantasia e na combinação das palavras de uma simples sentença, a excelência do efeito depende da perícia com que são economizadas as energias mentais e as suscetibilidades do leitor. Todo o artista, no decurso da sua educação e durante a vida, vai fazendo um deposito de máximas pelas quais regula o seu proceder. Examinai essas máximas nas suas raízes e vereis que elas nascem forçosamente nos princípios da psicologia. E só quando o artista compreende esses princípios psicológicos e os seus diversos corolários é que pode trabalhar de harmonia com eles. Não devemos crer, todavia, nem um momento, que a ciência é que faz o artista. Por asseverarmos que as leis fundamentais dos fenômenos objetivos e subjetivos devem ser estudadas por ele, de modo algum podemos afirmar que o conhecimento dessas leis: poderá substituir a percepção natural. Não só o poeta, mas o artista de todos os tipos, nasce feito, não se faz. O que afirmamos é que essa faculdade inata não pode dispensar o auxílio da ciência organizada. A intuição faz muito, mas não faz tudo. Os grandes resultados só são obtidos quando o Gênio se casa com a Ciência. Como acima dissemos, a Ciência é necessária não só para as produções de maior êxito, mas também para a completa apreciação das belas-artes. Em que consiste a superioridade do homem sobre a criança na percepção das belezas da pintura, senão na maior extensão dos seus conhecimentos sobre as verdades da natureza e da vida que a tela representa? Porque razão o homem instruído encontra muito mais belezas num poema do que um rustico, se não é porque está muito mais familiarizada com os objetos e ações que o habilitam a ver no poema muito mais do que o rustico pode ver? E se é tão claro neste ponto que é necessário ter grande familiaridade com as coisas representadas, antes de ser feita a sua apreciação, do mesmo modo a representação só pode ser completamente apreciada quando as coisas representadas forem completamente compreendidas. O fato é, que cada verdade adicional, expressa pela obra de arte, dá um prazer adicional ao espírito culto, prazer que os ignorantes dessa verdade desconhecem. Quanto maior é o número das realidades que um artista indica numa dada obra, tanto maior é o número das faculdades para que ele tem de apelar; tanto maior é o número das ideias que ele tem a sugerir; tanto maior é a recompensa recebida. Mas para auferir tal recompensa o espetador, o auditor, ou o leitor precisa de conhecer as realidades indicadas pelo artista, e conhecer essas realidades é possuir ciência. E agora não deixemos de observar o seguinte fato capital; a ciência não só dirige a escultura, a pintura, a música, a poesia, mas ela própria é poética. A opinião geralmente em voga de que a ciência e a poesia são opostas, é um erro. É uma verdade incontroversa que, como estados da consciência, a ciência e a comoção tendem a excluir-se uma à outra. E é igualmente inquestionável que uma extrema atividade das faculdades intelectuais tende a enfraquecer os sentimentos, ao mesmo tempo que uma extrema atividade das faculdades sensitivas tende a enfraquecer o poder da reflexão: neste sentido, realmente, todas as ordens de atividade são antagonistas umas ás outras. Mas o que não é verdade é que os fatos da ciência sejam opostos à poesia; e que a cultura científica seja necessariamente inimiga do exercício da imaginação e do amor do belo. Bem pelo contrário, a ciência abre horizontes novos a poesia onde só existe o vago para os que a ignoram. Aqueles que se consagram às investigações cientificas estão-nos mostrando constantemente que realizam não menos vivamente, mas mais vivamente do que os outros, a poesia dos seus assuntos. Aqueles que lerem atentamente as obras de Hugh Miller sobre geologia, ou os Estudos sobre as costas marítimas de Lewes verão que a ciência excita a poesia em vez de a extinguir. Quem observar a vida de Goete deve ver que o poeta e o homem de ciência podem coexistir em igual atividade. Não será realmente um absurdo e quase um sacrilégio crer que quanto mais o homem estudar a Natureza menos ele a há de amar? Julgais que uma gota d'agua, que para a vista do vulgo não passa de uma gota d'agua, perderá aos olhos do físico por ele saber que os elementos que a compõem estão reunidos por uma força que se fosse repentinamente abandonada produziria uma centelha? Julgais que aquilo que os leigos entendem ser um simples floco de neve não deve sugerir as mais altas associações de ideias aquele que tem visto com o microscópio as formas maravilhosamente variadas e elegantes dos cristais da neve? Julgais que o redondo pedaço de granito, riscado de vincos paralelos, poderá despertar mais poesia nos espíritos ignorantes do que no espírito do geólogo que sabe que por cima desse rochedo escorregou uma geleira há alguns milhões de anhos? A verdade é que aqueles que nunca entraram em estudos científicos são cegos para o maior número de assuntos poéticos que os rodeiam. Aquele que na sua mocidade não colecionou plantas ou insetos não conhece nem metade da esfera do interesse que as veredas e os caminhos silvestres podem assumir. Aquele que nunca procurou fosseis pequena ideia pó de ter das associações poéticas que circundam os lugares onde se encontraram enterrados esses tesouros. Aquele que no estudo da costa não possui um microscópico e um aquário não pode compreender os prazeres que um tal estudo encerra. É triste, realmente, ver como os homens se ocupam de trivialidades e são indiferentes aos maiores fenômenos; uns que não podem compreender a arquitetura dos céus acham um profundo prazer em qualquer mesquinha controvérsia sobre Maria, rainha da Escócia! são críticos doutos de qualquer ode Grega, e passam sem lançar um golpe de vista sobre o grande poema épico, escrito pelo dedo de Deus, sobre as camadas da Terra! Vimos, portanto, que ainda para esta última divisão das atividades humanas, a cultura científica é preparação necessária. Vimos que os diversos ramos da Estética em geral, são necessariamente baseados sobre princípios científicos e só podem ser explorados com completo êxito com conhecimento desses princípios. Vimos que a crítica e justa apreciação das obras de arte requer o conhecimento da constituição das coisas, ou por outra, termos um conhecimento científico. E vimos que não só a ciência é a guia necessária de todas as formas da arte e da poesia, mas que, justamente considerada, a ciência ela própria é poética. Tratemos, pois, do valor do conhecimento deste ou daquele ramo científico como guia na vida. Temos agora a formar o nosso juízo sobre o valor relativo dos diversos ramos de conhecimentos considerados como disciplina. Somos obrigados a tratar esta divisão do nosso assunto com uma relativa brevidade; e felizmente ela não precisa de largo desenvolvimento. Tendo visto o que era melhor para aquele fim, implicitamente achamos o que é melhor para este outro. Podemos ter completa certeza de que o estudo das classes de fatos que são mais uteis para a regularização do nosso procedimento envolve o exercício mental mais próprio para o desenvolvimento das nossas faculdades. Seria absolutamente oposta à bela economia da Natureza que um certo gênero de cultura nos fosse necessário, como instrução e outro gênero, como ginastica mental. Nós vemos que, através de todas as coisas criadas, as faculdades se desenvolvem segundo as funções que elas têm a desempenhar, e não em virtude de exercícios artificiais imaginados para adaptar essas faculdades a essas funções, O Índio Pele Vermelha adquire a destreza e agilidade que o tornam um caçador feliz na perseguição dos animais; e nas diversas atividades da sua vida obtém um desenvolvimento de força física superior a qualquer outro que a ginástica lhe poderia dar. A perícia nas correrias ao inimigo e em busca de prezas, que adquiriu depois de uma longa pratica, implica uma subtileza de percepção muito maior do que a que produziria qualquer aprendizado artificial. E similarmente em todos os outros casos. Desde o Betchuana cujos olhos, habitualmente empregados na percepção dos objetos distantes, que devem ser perseguidos ou evitados e que por este fato adquirem, quase a força de um telescópio, até ao caixeiro cuja prática diária o habilita a adicionar muitas colunas de algarismos simultaneamente, nós vemos que o máximo poder de uma faculdade resulta do desempenho dos deveres exigido pelas condições da vida. E podemos estar certos a priori que a mesma lei impera na educação. A educação de maior valor como guia, deve simultaneamente ser a melhor educação como disciplina. Vejamos esta evidencia. Uma vantagem proclamada para justificação da alta consideração dada ao estudo das línguas, que constitui uma feição tão proeminente na nossa educação ordinária, é aquela que diz que esse estudo concorre para o desenvolvimento da memória. Isto é considerado como uma vantagem peculiar ao estudo das palavras. Mas a verdade é que as ciências abrem campos muito mais vastos ao exercício da memória. Não é medíocre tarefa recordar-se de tudo quanto constitui o nosso sistema solar; e muito maior é ainda o recordar-se de tudo quanto é concernente a estrutura da via láctea. O número das substancias compostas com que a química diariamente se enriquece é tamanho que poucas pessoas, exceto os professores, poderão enumera-las; e recordar as constituições atômicas e afinidades dessas substancias é quase impossível sem se fazer da química ocupação de toda a vida. Na massa enorme dos fenômenos que apresenta a crosta da Terra e os fosseis que ela contém, há matéria que exige muitos anos de aplicação aos que estudam geologia. Cada uma das partes principais da física, a acústica, o calórico, a ótica, a eletricidade comporta um tal número de fatos, capaz de assustar qualquer pessoa que se proponha estuda-la. E se passarmos às ciências orgânicas, o esforço de memória ainda precisa de ser maior. Só na anatomia do corpo humano, a quantidade de minudencias é tão grande que o estudante de cirurgia tem ordinariamente de as decorar uma meia dúzia de vezes antes de as fixar no espírito permanentemente. O número de espécies de plantas que os botânicos distinguem sobe a 320,000, e as variadas formas da vida animal estudadas pelos zoólogos são calculadas em 2,000,000. É tão vasta a acumulação dos fatos que os homens de ciência têm diante de si, que só dividindo e subdividindo os seus trabalhos é que eles vencem um tal estudo. Ao conhecimento singular de cada divisão, o homem de ciência adiciona um conhecimento geral das que lhe são aliadas, junta-lhe talvez um conhecimento rudimentar de algumas outras. É certo, pois, que ciência, embora estudada numa pequena extensão, contribui poderosamente para o exercício de memória. Para dizermos a verdade ela constitui pelo menos uma tão boa disciplina para esta faculdade como o estudo das línguas. Mas notai agora que enquanto, para o mero trabalho da memória, a ciência é tão boa, senão melhor, como o estudo das línguas, ela tem uma superioridade imensa no gênero de memória que educa. No estudo de uma língua, a relação das ideias a estabelecer no espirito corresponde a fatos que são em grande parte acidentais, enquanto que no estudo da ciência as relações das ideias a estabelecer no espírito correspondem a fatos que são ordinariamente necessárias. Verdade é que as relações das palavras com os seus significados existem num sentido natural; que o gênesis dessas relações pode ser investigado até uma certa distância, posto que raramente desde a sua origem, e que as leis desse gênesis constituem um ramo da ciência mental - a filologia. Mas já que não se pode afirmar que no estudo das línguas, como geralmente é feito, as relações naturais entre as palavras e os seus significados são geralmente traçadas, e explicadas as suas leis, é necessário admitir que elas são ordinariamente estudadas como relações fortuitas. Por outro lado, as relações que a ciência apresenta são relações causais, e, quando propriamente ensinadas, assim são compreendidas. Enquanto o estudo das línguas nos familiariza com relações não racionais, a ciência familiariza-nos com relações racionais. Enquanto uma só exercita a memória, a outra exercita simultaneamente a memória e a inteligência. Em seguida observa e que a grande superioridade da ciência sobre o estudo das línguas, como meio de disciplina, é que a ciência desenvolve o juízo. Como muito bem notou o professor Faraday, numa conferência sobre a educação mental feita no Instituto Real, o defeito intelectual mais comum é a falta de juízo. A Sociedade, falando em geral, disse ele, não ignora só a educação do juízo, mas ignora até essa ignorância. E a causa a que ele atribui esta situação é a carência de cultura científica. A verdade da sua conclusão é patente. Um juízo correto relativo aos objetos que nos cercam, aos acontecimentos e ás suas consequências só são possíveis com o conhecimento das relações que os fenômenos que nos rodeiam tem uns com os outros. O conhecimento mais largo das relações existentes entre os termos e os seus significados não pode garantir a justeza das nossas inferências relativas às causas e aos efeitos. Só o hábito de tirar conclusões de certos dados e depois a verificação dessas conclusões pela observação e pela experiencia, é que nos podem dar a faculdade de fazermos um juízo correto. A necessidade desse hábito é para nós uma das maiores-vantagens da ciência. A ciência não é só o que há de melhor para a disciplina intelectual; também o é para a disciplina moral. O estudo das línguas tende mais do que outra qualquer coisa a aumentar o já indevido respeito pela autoridade. Os significados deste termo são estes ou aqueles, diz o professor ou o dicionário. As regras para este caso são tais e tais, diz a gramática. Estas afirmações são aceitas sem discussão pelos estudantes. A constante atitude do seu espírito é a da submissão pelo ensino dogmático, de onde resulta necessariamente a tendência para aceitar sem análise tudo o que está estabelecido. A linguagem mental do ensino científico é absolutamente diversa. A ciência faz continuamente apelo para a razão individual. As suas verdades não se fundamentam exclusivamente na autoridade, mas todos ficam com a liberdade de as analisar, e em grande número de casos o estudante é obrigado a formular conclusões propriamente suas. Todos os passos da investigação científica estão sujeitos ao seu juízo. Ninguém lhe pede para admitir as coisas sem que ele veja a verdade delas. E a confiança, produzida por este fato, sobre as suas próprias faculdades, mais aumentada é ainda pela uniformidade com que a Natureza justifica as suas opiniões quando forem logicamente deduzidas. De tudo isto nasce a independência, que é o elemento mais valioso dos caráteres. Mas não é este o único benefício moral, legado pelo estudo da ciência. Quando é feito, como sempre deveria ser, tanto quanto possível, sob a forma de investigações originais esse estudo provoca a perseverança e a sinceridade. Como diz o professor Tyndall sobre a investigação indutiva, «ela requer um trabalho apurado, e uma aceitação humilde e conscienciosa do que a Natureza nos revela. A primeira condição do bom êxito é uma predisposição honesta para receber a verdade e uma tendência para abandonar todas as noções preconcebidas, embora caras, se elas nos parecem ir de encontro a verdade. Creiam-me, nas experiencias particulares, feitas pelo homem dedicado à ciência, muitas vezes se opera uma nobre renúncia de si mesmo, e que o mundo sempre ignora». Por fim somos a afirmar, e esta nossa asserção vai causar extrema surpresa, estamos certos disso, que a disciplina da ciência é superior à da educação ordinária por causa da religiosidade que ela fornece. Naturalmente não empregamos aqui as palavras ciência e religiosidade nas suas acepções ordinárias e restritas; mas na sua acepção mais larga e mais alta. Para as superstições que correm mundo com o nome de religião indubitavelmente a ciência é antagonista, mas não para a religião essencial que essas superstições mascaram. É também fora de dúvida que em muita ciência corrente existe um espírito penetrante de irreligião; mas não naquela ciência verdadeira que passou além do superficial e penetrou na essência das coisas. A verdadeira ciência e a verdadeira religião, diz o professor Huxley ao encerrar uma série recente de conferencias, são irmãs gêmeas, e a separação uma da outra provoca fatalmente a morte de ambas. A ciência progride precisamente na proporção da sua religiosidade; e a religião floresce na exata proporção da profundidade e da firmeza científica da sua base. Os grandes feitos dos filósofos tem sido menos o fruto das suas inteligências do que da direção dada a essas inteligências por uma orientação eminentemente religiosa do espírito. A verdade manifesta-se mais à sua paciência, ao seu amor, á singeleza do seu coração, e á abnegação de si mesmo do que a lógica penetração do seu espírito.» Em vez de ser irreligiosa a ciência, como o julgam muitos, o desprezo da ciência é que é irreligioso; irreligiosa é a negação pelo estudo da criação que nos rodeia. Fazei uma simples comparação. Suponhamos um escritor diariamente saudado com louva minhas, feitas em linguagem superlativa. Suponhamos que a sabedoria, a grandeza, a beleza das suas obras são os tópicos constantes dos elogios que lhe dirigem. Suponhamos que aqueles que incessantemente tecem esses louvores sobre as suas obras se contentam em examinar-lhes as capas; que nunca as abriram e muito menos trataram compreende-las. Que valor devemos conceder a tais louvores? Que juízo havemos de formular da sua sinceridade? Tal é, se nos é licito comparar as pequenas coisas com as grandes, o procedimento do gênero humano em geral, com relação ao Universo e a sua Causa. Mas é pior ainda. Não só desconhecem essas coisas cuja excelência eles diariamente proclamam, mas frequentemente condenam como frívolos aqueles que dedicam o seu tempo ao estudo da Natureza e até desprezam aqueles que patenteiam um interesse ativo por essas maravilhas. Repetimos, pois, que não é a ciência, mas o seu abandono, o que é irreligioso. A dedicação pela ciência é uma oração tácita um reconhecimento tácito do valor das coisas que se estudam e, implicitamente, da sua Causa. Não é uma pura homenagem dos lábios, mas um preito manifestado por ações, não é apenas um respeito professado, mas um respeito provado um sacrifício de tempo, de pensamento e de trabalho. Mas a verdadeira ciência não é só nisto essencialmente religiosa. É religiosa também, pelo seu profundo respeito e pela implícita fé que consagra a uniformidade das ações que se patenteia em todas as cousas. Por experiencias sucessivas o homem de ciência adquire uma plena confiança nas imutáveis relações dos fenômenos - na invariável ligação da causa com o efeito - na fatalidade dos resultados do bem e do mal. Em vez das recompensas e das penas da fé tradicional, que o vulgo vagamente espera obter ou evitar, a despeito das suas ações, ele sabe que há recompensas e penas na ordem constitutiva das coisas e que são inevitáveis as más consequências da desobediência às leis da Natureza. Sabe que as leis a que está sujeito são simultaneamente inexoráveis e beneficentes. Sabe que se conformando com elas, o processo das coisas caminha para a maior perfeição e para a mais alta felicidade. Por isso é que ele insiste constantemente nelas e se indigna quando as vê postergadas. Obrando assim, afirmando os eternos princípios das coisas e proclamando a necessidade de lhes obedecer, prova intrinsicamente a sua religiosidade. Só a feição religiosa da ciência é que nos pode dar as verdadeiras concepções de nós mesmos e das nossas relações com os mistérios da existência. Ao mesmo tempo que ela nos mostra tudo quanto deve ser conhecido, mostra-nos os limites além dos quais nós nada podemos conhecer. Não prova a impossibilidade de compreendermos as Últimas Causas das coisas por asserções dogmáticas, mas leva-nos a reconhecer claramente essa impossibilidade, apontando-nos os caminhos que levam a barreiras que não podemos vencer. Patenteai-nos de um modo, como nenhum outro poderia fazer, a pequenez da inteligência humana em face de tudo quanto transcende a humana inteligência. Se a sua atitude perante as tradições e a autoridade dos homens pode ser altiva, perante o impenetrável véu que esconde o Absoluto a sua altitude é humilde - o verdadeiro orgulho consiste na verdadeira humildade. Só o homem sincero de ciência (e por estes termos não queremos significar o mero calculador das distancias, o analista das substancias compostas ou o classificador das espécies, mas aquele que procura as grandes verdades através das mais pequenas e que mira por vezes até ás mais altas) só o homem sincero de ciência, dizemos, pode com verdade saber quanto além, não só da ciência humana mas até da concepção humana, está o Poder Universal de que são manifestações a Natureza, a Vida e o Pensamento. Podemos, portanto, concluir que para disciplina como para guia das nossas ações, a ciência tem um valor capital. Para todos os efeitos o estudo da interpretação das coisas é superior ao estudo da interpretação das palavras. Para a educação intelectual, moral e religiosa o estudo dos fenômenos que nos rodeiam é imensamente superior ao estudo das gramáticas e dos dicionários. Assim para a pergunta que formulamos - quais são os conhecimentos de maior valor? - há uma resposta uniforme - a Ciência. É o veredicto para todas as interrogações. Para a direta conservação própria, para a conservação da vida e da saúde, o conhecimento mais importante é a Ciência. Para a indireta conservação própria, o que se chama ganhar a vida, o conhecimento de maior valor é a Ciência. Para o justo desempenho das funções de família o guia mais próprio só se encontra na Ciência. Para a interpretação da vida nacional, no passado e no presente, sem a qual o cidadão não pode justamente regularizar o seu procedimento, a chave indispensável é a ciência. Para a produção mais perfeita e para os gozos da arte em todas as suas formas, a preparação imprescindível é ainda a Ciência, e para os fins da disciplina intelectual, moral e religiosa - o estudo mais eficaz é, ainda uma vez, a Ciência. A pergunta que a princípio nos pareceu tão embaraçosa tornou-se, depois da nossa investigação, relativamente simples. Se calculamos os graus de importância das diferentes ordens da atividade humana e o mérito dos diversos estudos que lhes dizem respeito, vemos que o estudo da Ciência, na sua significação mais clara, é a melhor preparação para todas essas ordens de atividade. Não temos a julgar entre as pretensões dos conhecimentos que tem maior valor, posto que convencional e os conhecimentos de menor valor, mas intrínseco; os conhecimentos que provam ter mais valor em todos os outros pontos de vista são aqueles que tem maior valor intrínseco; o seu mérito não depende da opinião, mas está fixado, como as relações que o homem tem com o mundo que o cerca. Necessárias e eternas como são as suas verdades, todas as Ciências interessam por certo tempo a toda a humanidade. No presente, como no futuro mais longínquo, deve ser da máxima importância para regularização do seu proceder, que os homens estudem a ciência da vida física, intelectual e social, e que considerem todas as outras ciências como a chave para a ciência da vida. Todavia, este estudo imensamente transcendente na sua importância é aquele que, num século em que tanto se exata a educação, menos atenção nos merece. Quando aquilo que chamamos civilização não se pode de modo algum obter sem a ciência, a ciência constitui apenas um elemento apreciável no ensino das nossas sociedades civilizadas. Embora seja no progresso da ciência que nós devamos encontrar alimento para milhões de indivíduos onde outrora havia apenas para alguns mil, desses milhões poucos mil prestam homenagem aquilo que lhes tornou possível a existência. Embora o conhecimento progressivo das propriedades e das relações das coisas não só facultasse às tribos errantes tornarem-se nações populosas, mas até desse a membros sem conta dessas populosas nações comodidades e prazeres, que os seus selvagens antepassados nem sonharam sequer, e em que nunca poderiam crer, este gênero de estudos só agora recebe um aplauso regateado nos nossos institutos da mais alta educação. Ao vagaroso o progressivo conhecimento com as coexistências uniformes e com as sequências dos fenômenos, ao estabelecimento das leis invariáveis, devemos a nossa emancipação das mais grosseiras superstições. Se não fosse a ciência ainda hoje adorávamos fetiches e, com hecatombes de vítimas, tornaríamos propicias as divindades diabólicas. E, todavia, essa ciência que em vez das mais degradantes concepções das coisas, nos deu largas vistas sobre as grandezas da criação, é considerada como inimiga pelas nossas teologias e fulminada do alto dos nossos púlpitos. Parafraseando uma fábula oriental, podemos dizer que na família dos conhecimentos, a Ciência é a gata borralheira que na obscuridade oculta perfeições ignoradas. A ela cometem-se todos os trabalhos; pela sua perícia, pela sua inteligência, pela sua dedicação é que se obtiveram todas as comodidades e todos os prazeres, e enquanto trabalha incessantemente por todas as outras, conserva-se no último plano, para que as suas irmãs possam ostentar os seus ouropéis aos olhos do mundo. O paralelo pode ser levado ainda mais longe. Porque à medida que caminhamos para o desenlace, as posições vão mudando; e enquanto essas irmãs altivas caem no merecido desprezo, a Ciência, proclamada como a mais alta em valor e em beleza, reinará suprema. CAPITULO II A EDUCAÇÃO INTELECTUAL Não pode deixar de haver uma certa relação entre os diversos sistemas de educação e os sucessivos estados sociais com que eles têm coexistido. Tendo uma origem comum no espírito nacional, as instituições de cada época, embora com funções especiais, devem ter uma semelhança de família. Quando os homens recebiam o seu credo e as suas interpretações de uma autoridade infalível que não entrava em explicações, era natural que o ensino das crianças devia ter sido dogmático. Na época em que o «crê e não faças perguntas» era a máxima da Igreja, essa era naturalmente a máxima da escola. Agora, porém, que o Protestantismo conquistou para os homens o direito de opinião individual e estabeleceu a pratica de apelar para a razão, dá-se a mesma harmonia na mudança que fez da instrução juvenil um processo de exposição dirigida, ao espírito. Durante o tempo do despotismo político, severo nas suas ordens, governando pela força do terror, castigando com a pena de morte pequenos crimes, e implacável na sua vingança contra a deslealdade, necessariamente devia existir uma disciplina acadêmica igualmente dura - disciplina de multiplicadas ordens e imperando em todos os seus ramos – disciplina de ilimitada autocracia, sustentada pelas chibatas, pelas férulas, pelos terrores do quarto escuro. Por outro lado, o aumento das liberdades políticas, a abolição das leis restritivas da ação individual, e o melhoramento do código penal, foram acompanhados por um progresso semelhante de educação livre: o estudante poucas restrições sofre, e outros meios se empregam para o dirigir que nada tem de comum com os outros castigos. Nesses tempos ascetas, quando os homens, regulando as suas ações pelo princípio da miséria extrema, entendiam que eram tanto mais virtuosos quanto maior fosse o número das suas privações, nesses tempos era natural que eles considerassem como a melhor: educação aquela que mais combatesse os desejos dos seus filhos, e cortassem rente na atividade espontânea, dizendo-lhes: «Não devem fazer isso.» Enquanto que agora, pelo contrário, que a felicidade é considerada como a aspiração justíssima do homem - agora que foram diminuídas as horas de trabalho e tiveram notável desenvolvimento as diversões populares, os pais e os preceptores começam a ver que é necessário desenvolverem inteligentemente as inclinações da mocidade, que devem ser animadas as duas distrações; porque as tendências do espirito que se desenvolve não são tão diabólicas como outrora se supunha. Os séculos em que se entendia que o comércio só se podia estabelecer com proteções e proibição, em que as manufaturas precisavam que fossem regulamentados os seus materiais, as suas qualidades, os seus preços, é em que o valor do dinheiro era determinado por lei, eram séculos em que inevitavelmente teria voga a opinião de que o espírito da criança devia ser feito para a sujeição, que as suas faculdades deviam-lhe ser comunicadas pelo mestre escola, que era um receptáculo em que se devia implantar a ideia, edificando depois sobre ela, segundo o ideal do mestre. Em a nossa era de livre cambio, quando sabemos que há muito mais inteligência nas coisas do que até agora se supunha, que o trabalho, o comércio, a agricultura, a navegação podem desenvolver-se muito melhor sem regulamentos do que com eles, que os governos políticos são mais eficazes criados dentro do país do que impostos pelo estrangeiro, sabe-se também que há um processo natural de evolução mental que não pode ser quebrado sem injuria, que não devemos forçar os espíritos rudimentares com as nossas formas artificiais, mas que a psicologia também fornece uma lei de procura e de oferta com a qual se não quisermos errar, nos devemos conformar. Assim, como no dogmatismo oracular, na disciplina severa, nas multíplices restrições, no professado ascetismo e na sua crença nos defeitos dos homens, a antiga educação andava de harmonia com os sistemas sociais do seu tempo, assim, dando-se o contrário destas circunstâncias, os nossos modernos modos de cultura correspondem às nossas instituições religiosas e políticas mais liberais. Mas há ainda paralelismos de que ainda não demos conta, nomeadamente aqueles que existem entre os processos que levaram a cabo essas transformações respetivas e os diversos estados de opinião heterogênea que eles produziram. Ha alguns séculos existia uma uniformidade de crenças religiosas, políticas e de educação. Todos os homens eram Romanistas, Monárquicos e discípulos de Aristóteles e nenhum se lembrava de pôr em dúvida a rotina da gramática escolar por que toda a gente tinha aprendido. A mesma causa, em todos os campos, substituiu essa uniformidade por uma diversidade constantemente progressiva: Esta tendência para a afirmação da individualidade, que depois de contribuir para a produção do grande movimento Protestante, teve de produzir um número sempre crescente de seitas - essa tendência que deu origem aos partidos políticos, e que dos dois partidos primários, fez nascer, nos tempos modernos, uma multiplicidade de seitas religiosas de ano para ano mais vasta - essa tendência que produziu a rebelião de Bacon contra as doutrinas da Escola e originou depois no reino e fora dele muitos novos sistemas de estudo - foi uma tendência que também na educação produziu divisões e acumulou métodos. Como consequências externas da mesma transformação interna, esses processos foram necessariamente mais ou menos simultâneos. A declinação da autoridade papal, filosófica, real ou tutorial é essencialmente um fenômeno; em cada um dos seus aspetos vê-se unia tendência para a liberdade de ficção, quer na própria gestação dessa transformação, quer nas novas formas da teoria e da pratica a que essa mudança deu origem. Enquanto muitas pessoas lamentarão está multiplicação de cismas da cultura juvenil, o observador católico verá nela um meio de assegurar o final estabelecimento de um sistema racional. Seja o que for que se pense dessa discussão teológica é claro que essa discussão na educação é resultante da facilidade de inquirir pela divisão do trabalho. Se nós estivéssemos de posse do verdadeiro método, esta divergência seria certamente prejudicial; mas como o verdadeiro método está ainda por encontrar, os esforços dos muitos trabalhadores independentes, prosseguindo as suas pesquisas em diferentes direções, constituem uma força de investigação muito melhor do que qualquer outra que possa ser lembrada. Qualquer deles será ferido por um novo pensamento que se deve basear mais ou menos em fatos, terá zelo na crença do seu plano, será fértil em expedientes para comprovar a sua exatidão, e, incansável nos seus esforços em fazer conhecidos os seus resultados, cada qual será desapiedado na sua crítica contra os outros; isto constituirá infalivelmente uma aproximação gradual de todos para o caminho da verdade. Qualquer parcela que se descobrir do método normal deve, pela exibição constante dos seus resultados, forçar a sua adopção; bem como quaisquer praticas viciosas que ela contiver serão, pelas repetidas experiencias que mostrem tais defeitos, postas de parte. E por esta agregação de verdades e eliminação de erros se virá a desenvolver eventualmente um corpo de doutrina correto e completo. Nas três fases porque passa a opinião humana, a unanimidade do ignorante, a divergência dos que estudam e a unanimidade do sábio - é claro que a segunda é a produtora da terceira. Não há só consequências no tempo, também as há na causalidade. Embora, pois, reconheçamos, na nossa impaciência, o atual conflito que se dá nos sistemas de educação, embora lamentemos os males que o acompanham, devemos reconhecer que ele constitui uma transição necessária que tem de ser passada, e que será benéfica nos seus efeitos principais. Contudo, não devemos nós registrar utilmente os progressos já feitos? Depois de cinquenta anos de discussão, de experiencia e de comparação de resultados não poderemos já contar alguns passos dados para o nosso fim? Alguns métodos velhos caíram já em desuso; alguns outros modernos já se firmaram, e muitos outros estão em litigio, sujeitando-se ao geral abandono ou a sua adoção completa. É provável que o leitor veja nestas diversas mudanças, quando as confrontar, caraterísticas similares, uma tendência comum, podendo encontrar uma orientação nova, fornecida pela experiencia, e que o deve levar a execução de ulteriores progressos. Como preliminar a considerações mais profundas, vejamos desde já que contrastes essenciais existem entre a educação do passado e a do presente. A supressão de um certo gênero de erros é geralmente seguida pela adopção dos erros que lhe são opostos, sucedendo assim que depois dos séculos em que se curava apenas do desenvolvimento físico sucederam aqueles que empregaram toda a solicitude na cultura do espírito - então as crianças de dois e três anos já tinham diante de si os livros da escola e a conquista da ciência era considerada a única coisa necessária. Assim como sucede ordinariamente que depois de uma dessas reações, o progresso seguinte é levado a cabo pela coordenação dos erros antagonistas, na crença de que são feições opostas da verdade, assim nós estamos agora na convicção de que o corpo e o espírito devem ser tratados pela mesma forma, desenvolvendo-se completamente o todo humano. O sistema que se baseara na força já foi por muitos abandonado e a precocidade nos estudos caiu em descrédito. O povo já começa a ver que a condição primeira para o bom êxito da vida é ser-se um bom animal. O melhor cérebro é considerado de pequena utilidade se não, tem energia vital suficiente para o trabalho, e obter este com sacrifício daquela é agora julgado uma loucura - loucura que a desilusão produzida pelos prodígios juvenis constantemente tem demonstrado. Por esta maneira vemos nós a sabedoria do ditado que afirma que o segredo da educação está «em saber perder inteligentemente o tempo». A pratica universal de aprender pela rotina vai caindo diariamente em descrédito. Todas as autoridades modernas condenam o velho sistema mecânico de se aprender o alfabeto. A tabuada ensina-se agora experimentalmente. No estudo das línguas, o programa gramatical das aulas foi substituído por outros, baseados no processo espontâneo pelo qual as crianças aprendem a língua materna. Descrevendo os métodos criados diz o Relatório sobre a escola normal de Battersea: «A instrução em todos os cursos preparatórios é principalmente oral, e exemplificada o mais possível com subsídios da natureza». E assim em tudo. O sistema da rotina, como todos os sistemas da sua época, tratava mais das formas e dos símbolos do que das coisas simbolizadas. Repetir as palavras corretamente era tudo; compreende-las era nada; assim o espirito era sacrificado a letra. Afinal vê-se que, neste como nos outros casos, estes resultados não são acidentais, mas necessários, porque quanto maior for a atenção que se prestar aos sinais tanto menor ela será para as coisas que eles significam; porque, como há muito disse Montaigne: Savoir par coeur n'est pas savoir (saber de cor não é saber). Assim como vai declinando o sistema da rotina, assim também vai declinando o sistema do ensino por preceitos que era estreitamente ligado aquele. Tratar primeiro dos fatos particulares, depois tratar das generalizações tal é o novo método, - método que, como disse o Relatório das Escolas de Battersea, «seguindo precisamente o inverso do método usualmente seguido, e que consiste em dar primeiro ao estudante o princípio», está provado pela experiencia que é o melhor. O ensino por preceitos está agora condenado como produzindo uma ciência meramente empírica, uma aparência de saber sem realidade positiva. Apresentar o produto liquido dos estudos, sem os estudos que o provocaram, é considerado como enervador e ineficaz. As verdades gerais precisam de ser conquistadas para que a seu uso seja permanente e de utilidade. «O que facilmente se ganha facilmente se perde» diz o ditado tão aplicável a inteligência como às riquezas. Enquanto que as regras jazendo isoladas no espírito, se não juntam às noções que lhes deram origem - são rapidamente esquecidas, os princípios que essas regras exprimem separadamente, tornam-se duradouros para o espírito quando se aproximam pelo estudo. Enquanto que a mocidade instruída por preceitos se submerge por detrás das suas regras, aquela que é instruída pelos princípios resolve tão facilmente um caso novo como um antigo. Entre um espírito cheio de definições, de regras, e um cheio de princípios existe uma diferença igual à que há entre um amontoado confuso de materiais, e os mesmos materiais organizados num todo, com todas as suas partes estreitamente unidas. De todos estes tipos de educação, este último tem não só a vantagem de que as partes que o constituem se retêm mais facilmente, mas a vantagem ainda muito maior de que forma um agente eficaz para o estudo, para a independência das ideias, para a descoberta - fins estes que o primeiro não pode obter. Não se suponha, que isto é apenas um exemplo; é a verdade literal. A união dos fatos com as generalizações constitui a organização da ciência, quer considerada nos seus fenômenos objetivos, quer nos seus fenômenos subjetivos; e a virtude mental pode ser medida pela amplitude a que é levada esta organização. Da substituição dos principies por definições, e da pratica que necessariamente lhe anda, junta, deixando ignoradas as abstrações até que o espírito se familiarize com os fatos, resultam o adiamento, para uma época ulterior, de estudos que outrora ocupavam os primeiros períodos da educação. É exemplo disto o abandono do costume fortemente estupido do ensino da gramática às crianças. Como diz M. Marcel: - «Pode afirmar-se sem hesitação que a gramática não é um degrau, mas um instrumento de aperfeiçoamento». Como muito bem argumenta Mr. Wyse: «A Gramatica e a Sintaxe são uma coleção de leis e de regras. As regras colhem-se na pratica; são o resultado da indução a que somos levados por uma observação demorada e pela comparação dos fatos, pela ciência e pela filosofia da linguagem. Seguindo o processo da natureza, vemos que nem os homens nem as nações chegam a ciência primeiramente. A linguagem foi falada e a poesia escrita muitos anos antes de se ter feito a gramatica ou a prosódia. A humanidade não precisou de esperar pela lógica de Aristóteles para raciocinar.» Numa palavra, como a gramática foi feita depois da linguagem é natural que o estudo da linguagem preceda o estudo da gramática, asserto este que não poderá ser contestado por todos aqueles que conhecem as relações existentes entre a evolução da raça e a evolução do indivíduo. Dos novos sistemas que surgiram a par e passo que os velhos sistemas iam desaparecendo, o mais importante é o que diz respeito ao desenvolvimento das forças de observação. Depois de muitos anos de cegueira, os homens vieram a perceber que a atividade espontânea das faculdades observadoras das crianças, tinha uma significação e um papel a desempenhar. O que outrora se considerava como uma ação sem fim, uma distração, uma malícia, como convinha para a explicação dos fatos, reconhece-se agora que é um processo de adquirir conhecimentos sobre o qual se baseia toda a ciência posteriormente adquirida. Nisto se fundamenta o bem concebido, mas mal executado sistema das lições das coisas. A afirmação de Bacon, dizendo que a física é a mãe das ciências veio a representar um papel importante na educação. Sem um trato assíduo com as propriedades visíveis e tangíveis das coisas as nossas ideias podem ser erradas, falazes as nossas deduções e ruinosas as nossas operações. «Se for desprezada a educação dos sentidos, toda a outra educação se ressentirá de uma letargia, de uma indolência, de uma insuficiência impossíveis de remediar», E, na verdade, se pensarmos bem neste fato devemos ver que a observação profunda é elemento essencial de todos os grandes sucessos. Não é necessária apenas aos artistas, aos naturalistas, aos homens de ciência; o médico precisa dela para a correção dos seus diagnosticas, e para o engenheiro é ela tão importante que lhe são exigidos alguns anos de tirocínio; o filósofo é fundamentalmente o homem que observa as relações das coisas presentes com outras já observadas, e o poeta é aquele que vê os belos efeitos na natureza, que todos vemos depois de apontados, mas que sem esse ensino da observação nos passariam despercebidos. Coisa alguma carece de maior insistência do que a extrema importância das impressões vivas e completas. Nenhuma fabrica sã de sabedoria pôde ser levantada com materiais apodrecidos ou verdes. Enquanto o velho método de apresentar as verdades abstratamente caía em desuso, ia-se operando a adopção correspondente do novo método que as apresentava concretamente. Os fatos rudimentares das ciências exatas são atualmente estudados pela intuição direta como se ensinam os tecidos, os gostos e as cores. Por exemplo, o uso de uma figura esférica no ensino da aritmética. O fato ainda fica melhor comprovado com o processo empregado pelo professor De Morgan para explicar o sistema decimal. M. Marcel, repudiando, com razão, o velho sistema das taboas, ensina os pesos e medidas referindo-os a atual jarda e pé, libra e onça, galão e quarto e deixa a descoberta das suas relações a experiência. O uso dos modelos geográficos e o de modelos de corpos regulares etc., como preliminares aos estudos da geografia e da geometria são fatos da mesma classe. Evidentemente, a feição comum destes métodos caracteriza a marcha do espírito das crianças através dós processos que o espírito da humanidade tem seguido. As verdades relativas aos números, á forma, às relações de posição foram todas originariamente tiradas dos objetos, e apresentar essas verdades às crianças sob uma forma concreta é facultar-lhes o estudo que a raça também seguiu. Dentro em pouco veremos, talvez, que lhes não é possível estuda-las por qualquer outra maneira; porque se tivessem de recebe-las como abstrações ficariam para elas sem significação até que vissem que eram confirmações daquilo que intuitivamente tinham descoberto. Mas se todas as mudanças que se efetuaram, a mais importante é o crescente desejo de tornar o estudo uma ocupação agradável e não enfadonha, desejo baseado na mais ou menos distinta percepção de que o trabalho intelectual que agrada a criança em cada ano da sua vida é precisamente aquele que mais convém à sua saúde e inversamente. É opinião já bastante aceite que o aparecimento do desejo de aprender qualquer gênero de conhecimentos implica a aptidão do espírito para a sua aquisição e carece dela para o seu progresso, e que, por outro lado, a repugnância sentida por outro qualquer gênero de informações é sinal de que este lhe foi prematuramente apresentado sob uma forma impropria. Este fato deu origem às tentativas de se tornar a educação um trabalho fácil e interessante, ao estudo sobre o valor das distrações na educação, a proibição das cantigas das amas e dos contos de fadas. Os nossos programas de educação vão diariamente amoldando-se a opinião das crianças. A criança prefere este ou aquele gênero de estudos? acha-lhe gosto? perguntamos nós constantemente. «Devemos condescender com o desejo natural de variedade que ela tem, diz M. Marcel, e a satisfação da sua curiosidade deve ser combinada com os seus progressos.» «As lições, nota ele ainda, devem ser suspensas logo que a criança mostre sintomas de cansaço.» E assim se deve proceder em todo o curso da educação. A mudança de educação efetuada nos tempos modernos manifesta-se ainda nas pequenas interrupções das horas da aula, nas excursões feitas pelo campo, nas leituras recreativas, em cantos corais e com aspetos semelhantes. O ascetismo desapareceu da educação como desapareceu da vida e o intuito geral da legislação política - a sua tendência para promover a felicidade dos cidadãos - tornou-se, em grande parte, o intuito da legislação para as escolas e para os quartos das crianças. Qual é agora a característica comum destas diversas mudanças? Não é uma conformidade progressiva com os métodos da Natureza? O abandono do estudo forçado prematuro contra o qual a Natureza se revela, deixando-se os primeiros anos da vida ao desenvolvimento dos membros e dos sentidos é uma prova disto. A supressão do ensino rotineiro, substituído pelas lições orais experimentalmente dadas, nos campos e nos terreiros, é outra prova. O desuso do ensino por regras e a adopção do ensino por princípios, que consiste em deixar as generalizações até que o espírito as possa formular, baseado na observação dos fatos particulares, é outra prova ainda. Demonstra-o igualmente a educação pela lição das coisas. Prova-o também o ensino dos rudimentos das ciências, concretamente, em vez de ser feito abstratamente. Provam-no principalmente os esforços variados e diversos em se apresentar a ciência sob as suas formas atraentes, tornando agradável o seu estudo. Porque, assim como sucede naturalmente em todas as criaturas que a satisfação que acompanha o cumprimento necessário das funções serve de estímulo a esse cumprimento, assim, durante a educação espontânea das crianças, o prazer que elas auferem, mordendo corais e quebrando brinquedos sem valor, é o mais vivo estimulo para as ações que lhes devem ensinar as propriedades da matéria; consequentemente, na escolha da série de assuntos e dos modos de instrução que mais interessam o aluno, nós devemos proceder de harmonia com as ordens da Natureza, adaptando os nossos métodos às leis da vida. Assim, pois, somos entrados na larga via da doutrina há muito enunciada por Pestalozzi, que semelhantemente a ordem e aos métodos da Natureza, a educação deve conformar-se com o processo natural da evolução do espírito; que há uma certa sequência para o desenvolvimento espontâneo das faculdades e um certo gênero de conhecimentos, requerido durante o desenvolvimento delas, e que a nós compete assegurar essa sequência e fornecer esses conhecimentos. Todos os progressos acima apontados são aplicações parciais daquele princípio geral. Já vai prevalecendo entre os professores uma ideia vaga desta verdade e cada vez mais se vai insistindo nela nas obras de educação. «O método da natureza é o arquétipo de todos os métodos» diz M. Marcel. «O princípio vital do ensino consiste em habilitar o pupilo a instruir-se a si mesmo» escreve Mr. Wyse. Quanto mais a ciência nos familiariza com a constituição das coisas, tanto mais vemos nelas uma inerente suficiência de virtudes. Quanto mais sobe a ciência tanto mais ela tende a limitar a nossa interferência nos processos da vida. Como na velha medicina o «tratamento heroico» foi substituído pelo tratamento brando, e por vezes apenas por um regímen normal, assim nós viemos a saber que não é necessário amoldar os corpos das crianças enfaixando-as à moda dos papuas ou doutros quaisquer; como no estudo do regime penitenciário se descobriu que nenhuma das disciplinas habilmente postas em pratica tem eficácia em produzir uma regeneração igual àquela disciplina natural do sustento próprio pelo trabalho produtivo, assim também, nas questões de educação nós vernos que os bons resultados só se obtém, submetendo os nossos processos aquela elaboração espontânea que todos os espíritos percorrem na sua marcha para a ciência. Consequentemente, este princípio fundamental de ensino, de que a disposição das matérias e dos métodos deve corresponder à ordem da evolução e ao modo de atividade das faculdades, princípio tão claramente verdadeiro que a sua evidencia se manifesta logo que é apresentado-nunca foi completamente postergado. Os professores fizeram inegavelmente coincidir com ele os seus programas escolares, até certo ponto, pela simples razão de que a educação só é possível sob esta condição. Os alunos, por exemplo, nunca aprendem a regra de três antes de acabarem a operação de somar. Nunca lhes ensinaram a fazer exercícios escritos antes de operarem com os trabalhos rudimentares das copias. As seções cônicas foram sempre precedidas pelos elementos de Euclides. Mas o erro dos métodos antigos consiste nisto, que não reconheciam nas coisas particulares aquilo que eles eram obrigados a reconhecer em geral. Todavia o princípio é sempre de aplicação geral. Se desde o tempo em que uma criança está apta para reconhecer a relação de posição de duas coisas se passam muitos anos até poder formar uma ideia verdadeira da terra como uma esfera constituída por terra e mar, coberta de montanhas, florestas, rios e cidades, girando no seu eixo, e gravitando ao redor do Sol - se só gradualmente ela pode caminhar de conceitos em conceitos, cada vez mais largos e consecutivamente mais complicados, não é evidente a existência de uma sucessão geral pela qual tem de passar, que cada conceito mais largo é constituído pela combinação dos mais pequenos e que os pressupõe; e apresentar qualquer desses conceitos compostos diante de uma criança antes de ela estar de posse daqueles que o compõem não é menos absurdo do que apresentar o conceito final das séries antes do conceito inicial? Para se assenhorear de qualquer assunto o estudante precisa de seguir qualquer curso de ideias, que se vão tornando sucessivamente mais complexas. A evolução das faculdades que lhes são correspondentes consiste na assimilação dessas ideias, que, realmente, é impossível sem que elas se apresentem ao espirito por uma ordem normal. Não se seguindo esta ordem resulta que elas são recebidas com enfado ou desgosto, e que se o pupilo não for bastante inteligente para encher os vácuos elas ficarão na sua memória como fatos mortos, próprios para serem interpretados erradamente ou para desaparecerem. « Mas, perguntar-se-á, para que nos incomodamos na pesquisa de um sistema de educação? Se é verdade que o espírito, como o corpo, tem um curso predeterminado de evolução, se ele se desenvolve espontaneamente, se as suas sucessivas tendências para este ou para aquele gênero de estudos aparecem quando são requeridas pela sua nutrição, se assim existe dentro de cada qual um despertador para os gêneros próprios no tempo próprio, para que interferiremos de qualquer modo? Porque não devemos abandonar as crianças absolutamente à disciplina da natureza? porque não as tornamos passivas, deixando-as receber os conhecimentos como melhor poderem? porque não havemos de ser completamente consequentes? A questão é aparentemente embaraçosa. Como implica plausivelmente que um sistema de completo laissez faire é a solução lógica das doutrinas que deixamos estabelecidas, parece fornecer uma prova contra elas pela redução ao absurdo. Todavia, realmente, elas não nos levam, se bem compreendidas, a uma posição tão insustentável. Um golpe de vista sobre as analogias físicas o mostrará claramente. É uma lei geral da vida que tanto mais complexo é um organismo tanto maior é a duração do período em que ele depende daquele que o tem de sustentar e proteger. A diferença entre o esporo de uma conferva, rapidamente formado e tendo vida própria, e a semente de uma arvore vagarosamente desenvolvida, com os seus multíplices invólucros e larga provisão de nutrição, conservada para alimentar o gérmen nos seus primeiros períodos de crescimento, dá-nos exemplo desta lei na sua aplicação ao mundo vegetal. No mundo animal podemos vê-la em uma serie de contrastes; na mônada cujas metades espontaneamente divididas se bastam a si mesmo logo depois de separadas como quanto estavam reunidas; no homem, cujo filho passa não só por uma gestação demorada mas também depende subsequentemente por muito tempo da lactação para se sustentar; que precisa depois que lhe administrem os alimentos artificialmente; que necessita que lhe forneçam pão, vestidos e abrigo até a idade em que saiba prover ás suas necessidades; e que não entra na completa posse de si mesmo senão numa época intermedia dos quinze aos vinte anos. Aplicai esta lei agora ao espírito como o fizestes ao corpo. Para a alimentação do espírito igualmente, todas as criaturas superiores, e especialmente o homem, dependem a princípio de um auxílio dos adultos. Pondo de parte a faculdade de se mover, a criança é tão impotente em procurar os materiais sobre que tem a exercitar os sentidos, como para suprir às exigências do estômago. Incapaz de preparar a sua própria alimentação ela é igualmente incapaz de reduzir diferentes espécies de conhecimentos a uma forma própria de assimilação. A linguagem, por meio da qual se conquistam as mais altas verdades, ela recebe-a totalmente daqueles que a cercam. Disto vemos nós um exemplo no rapaz selvagem de Aveyron, da suspensão do desenvolvimento intelectual que resulta do abandono dos pais e das amas. Assim, fornecendo dia a dia a necessária espécie de conhecimentos, preparados pela maneira mais conveniente, subministrados com a requerida abundancia em determinados espaços de tempo, há margem muito mais larga para a alimentação do espírito de uma criança do que para a alimentação do corpo. Em ambos os casos a principal função dos pais consiste em ver que estejam satisfeitas as condições necessárias para o desenvolvimento dos filhos. E, assim como fornecendo-lhes os alimentos, os vestidos e o agasalho eles devem executar esta função sem se entremeterem por forma alguma no desenvolvimento espontâneo dos membros e das vísceras, na sua ordem e gradação, assim devem fornecer-lhes sons para eles imitar, objetos para examinar, livros para ler, problemas para resolver, e não usando qualquer coação direta ou indireta, devem fazer tudo isto sem perturbar por modo algum o processo normal da evolução mental; bem pelo contrário, devem facilitar quanto possível esse processo. Portanto, a admissão das doutrinas que deixamos enunciadas não envolve, como poderia alguém arguir-nos, o abandono do ensino, mas abre largo campo para um curso educador ativo e laborioso. Passando das generalidades para considerações especiais, é para notar que na pratica, o sistema de Pestalozzi não tenha cabalmente satisfeito as promessas das suas teorias. Segundo ouvimos dizer, as crianças não tornam interesse pelas lições, antes as aborrecem, e, pelo menos, por toda a esfera das nossas indagações, as escolas Pestalozzi não tem fornecido uma notável proporção de homens distintos, se até a proporção media elas têm obtido. Não nos surpreende este resultado. O bom êxito de qualquer processo depende -principalmente da inteligência com que é posto em pratica. É do domínio comum que um artista inábil, embora possua os instrumentos mais escolhidos, vai estragar a sua obra, assim como os professores incompetentes farão gorar os melhores métodos. A excelência do método é que se torna em tais casos uma causa de mau êxito, como, prosseguindo na comparação, a perfeição do instrumento se transforma em mãos incompetentes em origem de imperfeição nos resultados. Um sistema de educação rotineiro, singelo, inalterável, quase mecânico pode ser levado a cabo pelas inteligências mais vulgares, dando os pequenos resultados benéficos que ele possa produzir; mas um sistema completo, sistema tão heterogêneo nas suas aplicações como o espírito nas suas faculdades, propondo meios especiais para os fins especiais, exige para a sua execução faculdades tais que poucos professores poderão possuir. A mestra de meninas pode ensina-las a soletrar, e qualquer mestre escola disciplina os rapazes nos exercícios da taboa de multiplicação. Mas ensina-las a soletrar perfeitamente, empregando as virtudes das letras em vez do som dos seus nomes, ou instruir nas combinações numéricas pela síntese experimental, isso reclama um certo grau de inteligência; e para prosseguir a aplicação de um tal sistema racional através de todo o curso dos estudos exige-se uma cópia de juízos, de invenções, de simpatia intelectual, de faculdade analítica que nós não veremos aplicar enquanto os deveres dos mestres forem tão mal desempenhados. A verdadeira educação só pode ser posta em pratica por um verdadeiro filósofo. Julgue-se agora,) pois, que resultado poderá esperar um método filosófico! Sabendo tão pouco, como sabemos, de psicologia e ignorantes como são os nossos mestres destas matérias, que probabilidades de sucesso terá um sistema baseado na psicologia? Outros obstáculos e desânimos se levantaram da confusão do princípio de Pestalozzi com as formas que lhe revestiram. Como os programas particulares não corresponderam a expectativa, lançou-se o descrédito sobre a doutrina que lhes andava associada, não se fazendo indagação alguma sobre a conformidade desses programas com a doutrina. Julgando geralmente pela sua feição concreta em vez da abstrata, a teoria foi condenada pejos erros da pratica. Como se da primeira tentativa infeliz da máquina a vapor se pudesse concluir que o vapor nunca poderia ser empregado como força motora! Fixe-se perpetuamente no espírito esta verdade: que embora exato nas suas ideias fundamentais, Pestalozzi nem sempre foi justo nas aplicações delas. Descrito até pelos seus admiradores, Pestalozzi foi um homem de vistas bastante parciais, que tinha relâmpagos intermitentes de luz; não um homem de ciência sistemática. O seu primeiro grande sucesso em Stantz deu-se quando ele ainda não tinha livros, nem aplicações do ensino ordinário, e quando «o único objeto da sua atenção era procurar a todos os momentos que instruções particularmente precisavam os seus filhos e qual era a melhor maneira de as adaptar aos conhecimentos que eles já possuíam.» Muita da sua força é devida, não a planos de educação serenamente elaborados, mas a profunda simpatia que lhe dava essa percepção viva das necessidades e dificuldades das crianças. Faltava-lhe a habilidade de coordenar e desenvolver logicamente as verdades que ele de tempos a tempos lobrigava, deixando grande parte desta tarefa aos seus assistentes Kruesi, Tobler, Buss, Niederer e Schmid. O resultado disto é que nas suas aplicações os seus próprios planos, e aqueles que foram oficiosamente traçados depois, contém muitos defeitos e fraquezas. O seu método de primeira educação denominado «O Manual da Mãe» principiando pela nomenclatura das diferentes partes do corpo, especificando em seguida as suas posições relativas e a sua conexão, não é de modo algum feito em harmonia com as etapas iniciais da evolução mental. O seu processo de ensinar a língua materna por exercícios formais sobre a significação das palavras na construção das frases é absolutamente inútil, fazendo perder a criança muito tempo, muito trabalho e muita alegria. Os programas do seu ensino geográfico são igualmente anti-pestalózzicos. Muitas vezes, onde os seus planos são considerados como bons, estão incompletos e viciados por qualquer resto dos velhos sistemas. Enquanto, pois, defendemos em toda a sua extensão a doutrina geral, inaugurada por Pestalozzi, entendemos que resultará um grande mal da aceitação incondicional dos seus métodos especiais. A tendência, constantemente mostrada pelo gênero humano, para exalçar as virtudes das formas e das práticas sob as quais qualquer grande verdade lhe foi transmitida, a tendência que ele tem para depor as suas faculdades diante dos profetas e a jurar pelas suas palavras, a inclinação que possui para tomar por ideias a forma das ideias, obrigam-nos a insistir energicamente sobre a distinção existente entre o princípio fundamental do sistema de Pestalozzi e a totalidade dos expedientes inventados na sua pratica, e a registrar que, enquanto o primeiro deve ser considerado como estabelecido, os outros são provavelmente apenas esboços do sistema normal. Efetivamente, observando o estado da ciência, nós podemos estar completamente certos de que o caso é tal como o deixamos enunciado. Antes que os métodos de educação se harmonizem em caráter e em arranjo com as faculdades nos seus modos e na ordem do seu desenvolvimento, é necessário primeiramente que nós saibamos com bastante exatidão como as faculdades se desenvolvem. Até agora apenas temos possuído, sobre este ponto, noções gerais. Essas noções gerais precisam de ser desenvolvidas nos seus casos especiais - precisam de ser transformadas numa multidão de proposições especificas, antes que possamos dizer que possuímos a ciência em que se baseia a arte de educação. Então, quando tivermos exposto definitivamente por que ordem e em que combinações as faculdades mentais se tornam ativas, teremos a escolher, entre os muitos caminhos possíveis para o exercício delas, aquele que for mais conforme aos seus modos naturais de ação. É, pois, evidente, que não devemos julgar que os nossos métodos de ensino mais avançados sejam o que eles devem ser ou se aproximam estreitamente desse ideal. Fazendo, portanto, no espírito esta distinção entre o princípio e a pratica de Pestalozzi, e inferindo das causas apontadas que essa pratica deve ser necessariamente defeituosa, o leitor poderá apreciar com justeza o valor da desilusão que tal sistema produziu em diversos espíritos, e verá que a realização da ideia de Pestalozzi está para ser feita ainda. Todavia, se se inferisse, pelo que acabamos de dizer, que coisa alguma nesse caminho se tem realizado até agora e que todos os esforços devem ser consagrados ás tentativas preliminares, teríamos a responder, que embora não seja possível executar um plano de educação, quer no fundo, quer na forma, sem o estudo prévio da psicologia racional, é possível, com o auxílio de certos princípios dirigentes, fazer aproximações empíricas para um sistema perfeito. No intuito de abrirmos caminho para ulteriores tentativas vamos agora especificar esses princípios. Alguns deles já foram apontados mais ou menos nas páginas antecedentes, mas é conveniente apresenta-los agora todos por uma ordem lógica. 1. Que na educação devemos proceder do simples para o composto, é uma verdade que sempre mais ou menos tem servido para o ensino, embora incientemente e ilogicamente. O espírito desenvolve-se. Como todas as coisas que se desenvolvem, ele vai marchando do homogêneo para o heterogêneo, e como um sistema regular de educação é a contrapartida objetiva desse processo subjetivo, ele deve apresentar uma progressão semelhante. De mais disso, compreendendo-o assim, vemos que esta formula tem aplicações muito mais largas do que parece à primeira vista. Porque a sua razão envolve não só que devemos proceder do simples para o composto, no ensino de cada ramo de conhecimentos, mas que o mesmo devemos fazer com a ciência considerada no seu conjunto. Como o espirito, consistindo a princípio num pequeno número de faculdades ativas, tem de pôr em ação as faculdades sucessivamente apuradas até que elas possam trabalhar simultaneamente, segue-se que o nosso ensino deve principiar por um pequeno número de assuntos, adicionando-se sucessivamente aqueles que se forem compreendendo, de modo que o espirito possa finalmente ataca-los todos de frente. A educação não deve proceder do simples para o composto só nas partes especiais, mas ainda no seu conjunto. 2. O desenvolvimento do espírito, como todo o desenvolvimento, caminha do indefinido para o definido. De resto, como todo o organismo, o cérebro obtém a sua estrutura completa na idade madura, e a falta de precisão nas suas ações é proporcional aos defeitos da sua estrutura. Assim, como os primeiros movimentos e como as primeiras tentativas para falar, os primeiros pensamentos e percepções são extremamente vagos. Assim como para os olhos rudimentares, que apenas distinguem a diferença entre a claridade e as trevas, o progresso está na distinção dos gêneros e graduações da cor, nos detalhes das formas, com a máxima exatidão; do mesmo modo, a inteligência em globo, ou considerada nas suas faculdades, começando pelas mais difíceis distinções entre os objetos e as ações, caminha para distinções de progressiva delicadeza e seleção. Os nossos métodos e sistemas de educação devem conformar-se n esta lei geral. Não é praticável, nem tal pratica se deve desejar, infundir ideias precisas em espíritos rudimentares. Podemos em qualquer idade comunicar as formas verbais que essas ideias revestem, e os mestres, que habitualmente o fazem, supõem que quando as formas verbais são corretamente aprendidas, as ideias que elas representam são possuídas pelo espírito. Mas uma breve análise hábil feita ao pupilo prova o contrário. Vemos que, ou as palavras entraram na sua memória sem que ele lhes perceba os significados, ou que essa percepção lhe é completamente obscura. Só a multiplicidade das experiencias fornece a matéria para as ideias definitivas - só a observação feita de ano em ano descobre os atributos menos patentes que diferenciam as coisas e os processos primitivamente confundidos - só recorrendo aos casos que as precedem é que se tornam familiares as classificações das coexistências e das consequências - só pela sua limitação mutua é que as diferentes classes de relações se oferecem claramente ao espírito, e só depois de efeituadas todas estas conquistas é que as definições exatas de uma ciência aclimatada se tornam verdadeiramente compreensíveis. Assim sucede na educação; devemos contentar-nos primeiramente com as noções grosseiras. Depois esforçar-nos por torna-las gradualmente mais claras, facilitando a aquisição de experiencias que possam corrigir em primeiro lugar os erros maiores e depois, sucessivamente, os erros menos importantes. A formula científica deve ser ensinada a proporção que as ideias se vão aperfeiçoando. 3. Dizer que as nossas lições devem começar pelo concreto e terminar no abstrato, deve ser talvez considerado como repetição do primeiro princípio que deixamos apontado: Todavia é uma máxima que deve ficar bem estabelecida: se não com qualquer outro intuito, pelo menos com o intuito de se mostrar em certos casos o que são em verdade o simples e o composto. Desgraçadamente ainda há muitas confusões sobre este ponto. Assim como as formulas gerais foram divididas para representarem grupos especiais, simplificando as concepções, sintetizando neles muitos fatos, assim se julgou necessário simplificar as concepções das crianças por essas mesmas fórmulas. Esqueceram-se os homens de que uma generalização é simples, somente em comparação de toda a massa de verdades que ela compreende - que essa generalização é muito mais complexa do que qualquer dessas verdades, considerada singularmente - que somente depois de serem sabidas essas verdades simples é que a generalização facilita a memória e auxilia a razão, e que para os espíritos que não possuem essas verdades simples a generalização fica sendo necessariamente um mistério. Confundindo assim os dois gêneros de simplificação, os mestres têm continuamente errado, começando pelos «primeiros princípios»: maneira de proceder essencialmente, embora não aparentemente, em divergência a regra principal, - fazer entrar o espírito na esfera dos princípios por intermédio dos exemplos, levando-o do particular para o geral, do concreto para o abstrato. 4. A educação das crianças deve harmonizar-se, quer no modo quer na ordem, com a educação do gênero humano considerado historicamente. Por outras palavras, o gênesis da inteligência no indivíduo, deve seguir o mesmo curso do gênesis da inteligência da raça. Logicamente, este princípio pó de ser considerado como já expresso por implicação, porque estes dois processos de evolução devem conformar-se às mesmas leis gerais da evolução acima descritas, e, portanto, concordar uma com a outra. Não obstante, este paralelismo particular é de valor pela sua importância como guia na espécie. A M. Comte, cremos nós, é que a sociedade deve a sua enunciação, devendo nós aceitar esse artigo da sua filosofia sem nos comprometermos de modo algum com o resto. Esta doutrina pode ser sustentada por duas razões absolutamente independentes de qualquer teoria abstrata e bastantes para o seu estabelecimento. Uma dessas razões deduz-se da lei da transmissão hereditária, considerada nas suas mais largas consequências. Porque se é verdade que os homens se assemelham aos seus antepassados, no aspeto e no caráter, se é verdade que certas manifestações mentais, como a loucura, aparecem nos membros sucessivos de uma família na mesma idade - se, passando dos casos individuais, em que as feições dos antepassados mortos há muito tempo, misturando-se com as feições dos que morreram há pouco em grande parte tornam obscura a lei, se observarmos os tipos nacionais e notarmos como são persistentes os contrastes existentes entre eles de século em século - se lembrarmos que esses tipos vem de uma origem comum, e que, por consequência, as diferenças atualmente notadas entre eles devem ter sido produzidas pela ação das circunstâncias modificadoras sobre as gerações sucessivas que transmitiram aos seus descendentes os efeitos acumulados - se virmos que as diferenças atuais são orgânicas, de tal modo que uma criança francesa virá a ser um homem francês, embora seja educada entre estrangeiros - e se o fato geral assim exemplificado é verdadeiro em toda a natureza, incluindo a inteligência, então segue-se, que, se há uma ordem em que a raça humana adquiriu os diferentes gêneros de conhecimentos, deve haver em cada criança uma aptidão para adquirir esses conhecimentos na mesma ordem. De modo que, ainda que essa ordem fosse intrinsecamente indiferente, devia facilitar a educação, levando o espírito individual através dos mesmos caminhos percorridos pelo espírito geral. Mas a ordem não é intrinsecamente indiferente; e daqui a razão fundamental porque a educação deve ser uma repetição, em ponto pequeno, da civilização. É provável que a sequência histórica, nos seus traços gerais, fosse necessária, e que as causas que a determinam se aplicassem tanto a criança como a raça. Para não especificar minuciosamente estas causas, basta apontar aqui que, como o espírito da humanidade, colocado no meio dos fenômenos e esforçando-se por compreende-los tem, depois de intermináveis comparações, especulações, experiências, e teorias, alcançado a ciência atual de cada assunto por um caminho especial, podemos racionalmente inferir que as relações entre o espírito e os fenômenos é de molde a proibir que essa ciência possa ser adquirida por outra qualquer via, e que, como cada espírito infantil está na mesma relação com os fenômenos, só pode chegar a ela pelo mesmo meio. Portanto, um estudo sobre o método da civilização pode ser-nos de grande auxilio na busca de um método próprio de educação. 5. Uma das conclusões a que nos leva uma tal investigação é esta - que em cada ramo de instrução nós temos de caminhar do empírico para o racional. Durante o progresso humano, cada ciência se levanta da arte que lhe é correspondente. Resulta da contingencia a que estamos sujeitos, como indivíduo e como raça, que temos de buscar o abstrato por via do concreto, que temos de gastar muita pratica e muita experiencia com as generalizações empíricas, antes do predomínio da ciência. A ciência é o conhecimento organizado e antes que o conhecimento se organize é necessário possuir-se alguma ciência. Todo o estudo, portanto, deve ter uma introdução puramente experimental e só depois de haver acumulado um certo fundo de observações é que principia o raciocínio. Como exemplificações ilustrativas desta regra, podemos lembrar os modernos cursos de instrução em que a gramática, é ensinada depois da língua e não antes dela, e o sistema geralmente adotado de ensinar trabalhos práticos de desenho antes dos estudos de perspectiva. Dentro em pouco indicaremos outras aplicações deste princípio. 6. Um segundo corolário do princípio geral que acabamos de enunciar, sobre o qual nunca se insistirá de mais, é que na educação o processo de desenvolvimento próprio deve ser instigado o mais possível. As crianças devem ser entregues às suas próprias investigações e fazerem elas mesmas as suas correlações. Devem ser ensinadas o menos possível e predispostas a descobrirem o mais possível. A humanidade caminhou somente instruindo-se a si própria, e que para obter os melhores resultados os espíritos devem proceder da mesma forma é continuamente provado pelos notáveis sucessos, obtidos pelos homens que instruíram a si mesmos. Aqueles que foram educados sob a disciplina ordinária das escolas, que trouxeram consigo a ideia de que a educação só é praticável por aquela forma, devem pensar que é impossível fazer das crianças os seus próprios mestres. Se, todavia, eles considerarem que o importantíssimo conhecimento dos objetos que nos rodeiam, que a criança recebe nos seus primeiros anos, se conquista sem auxilio - se eles se lembrarem de que a criança aprende por si mesma o uso da linguagem materna - se eles apreciaram a importância dessa experiência da vida, dessa sabedoria extraescolar, que todos os rapazes aprendem por si-mesmos - se eles notarem a inteligência não vulgar do garoto abandonado de Londres, patenteada em todas as direções para que são solicitadas as suas faculdades, se além disso, eles pensarem no imenso número dos espíritos que entram na luta da vida sem auxilio, não só ignorando os mistérios dos nossos sistemas de ensino, irracionalmente planejados, mas através de todo o gênero de obstáculos, então veriam que não é fora de razão concluir que, se os objetos fossem colocados diante dos pupilos numa ordem justa, nenhum deles, de ordinária capacidade, deixaria de vencer quase sem auxilio as sucessivas dificuldades que encontrasse. Em verdade, quem pode vigiar as observações incessantes, as investigações, os juízos que se passam no espírito de uma criança, ou quem pode escutar as suas observações tão vivas sobre os objetos que estão dentro da esfera das suas faculdades, sem perceber que as faculdades que ela manifesta, sendo aplicadas sistematicamente aos estudos que estão dentro da sua esfera, bem depressa a governariam sem outro auxilio? Esta necessidade de ensino perpetuo resulta da nossa estupidez e não das crianças. Arrancamo-las dos fatos que as interessam e que a sua atividade de per si assimilaria facilmente. Colocamos diante delas os fatos excessivamente complexos para que elas os compreendam e como lhes repugnam, e julgando que elas nunca poderão voluntariamente aprender tais fatos, queremos introduzi-los no espírito a força de ameaças e de castigos. Por esta forma, negando-lhes os conhecimentos que elas urgentemente pedem e enchendo-as com ideias que elas não podem digerir, produzimos a doença das suas faculdades e consequentemente o desgosto pelo estudo em geral. Quando, em virtude da estúpida indolência assim produzida, associada a perpétua falsidade dos seus estudos, as crianças não podem compreender coisa alguma sem largas explicações, e se tornam meros recipientes passivos da nossa instrução, nós concluímos que a sua instrução precisa de ser levada necessariamente daquela maneira. Tendo pelos nossos métodos originado a dependência, fazemos dessa dependência uma razão para os nossos métodos. É claro, pois, que a experiencia dos pedagogos não pode racionalmente ser apresentada contra o sistema que advogamos. E todo aquele que assim o entender verá que podemos logicamente seguir até ao fim a disciplina da Natureza - que podemos, por um ensino habilmente ministrado, conseguir que o espirito se desenvolva independentemente nos primeiros como nos últimos graus da educação; e que só procedendo desta forma podemos produzir a mais alta força e a mais alta atividade. 7. Como última pedra de toque pela qual podemos julgar de qualquer plano de ensino aparecerá a seguinte interrogação: Tal plano será agradavelmente recebido pelo discípulo? Quando houver dúvida sobre a harmonia de qualquer sistema ou combinação com os princípios antecedentemente expostos, ou sobre a sua melhor adaptação a outros quaisquer, podemos socorrer-nos daquele critério. Mesmo quando, teoricamente considerado, o plano proposto pareça o melhor, se ele não causar interesse algum, ou menos interesse que qualquer outro, devemos abandona-lo, porque os instintos intelectuais das crianças são de muito maior valor que todos os nossos arrazoados. A respeito dás faculdades de compreensão nós podemos confiadamente crer na lei geral que, em condições normais, toda a ação saudável é agradável e toda a ação que nos repugna é perniciosa. Embora até hoje esta lei seja mui incompletamente conforme a natureza emocional, a natureza intelectual, pelo menos nos pontos que as crianças manifestam é ela perfeitamente conforme. As repugnâncias por este ou por aquele gênero de estudos que ordinariamente exasperam o mestre, não são inatas, mas resultantes dos maus sistemas de ensino. Diz Felenberg: «A experiencia tem-nos ensinado que a indolência nas pessoas moças é tão diametralmente oposta à sua disposição natural para a atividade que, a não ser consequência de uma educação má, então é quase invariavelmente unida a qualquer defeito orgânico.» A atividade espontânea para que tendem as crianças é simplesmente uma busca dos prazeres que o exercício salutar das faculdades lhes fornece. É verdade que alguma das mais altas faculdades mentais, pouco desenvolvidas na raça e congenitamente possuídas num certo grau importante apenas pelas constituições superiores não desempenham toda a amplitude das funções que lhes competem; mas essas faculdades, em virtude da sua larga complexidade, virão, num curso normal de educação, a funcionar muito mais tarde e, portanto, não ha que exigir delas enquanto o discípulo não chega a uma idade em que entram em jogo outros motivos ulteriores, e em que um certo prazer indireto pode contrabalançar uma repugnância direta. Com as outras faculdades mais baixas do que estas, a gratificação imediata que a utilidade origina é o estimulo normal, e, com um bom regime, o único estimulo necessário. Quando tivermos de recuar até outro qualquer, podemos considerar tal fato como prova evidente de que vamos por mau caminho. A experiencia está mostrando todos os dias com a maior clareza que há sempre um método capaz de produzir interesse e até prazer, chegando-se sempre à conclusão de que esse método é considerado como o melhor por todas as outras provas. Para muitos, estes princípios dirigentes pouco valor tem senão apresentados sob uma forma abstrata. Portanto, em parte para darmos exemplos da sua aplicação e, em parte, tendo em vista fazer algumas sugestões especiais, propomo-nos agora passar da teoria da educação á pratica dela. Era opinião de Pestalozzi, e uma daquelas que foram ganhando campo até a sua época, que a educação de qualquer gênero deve principiar desde o berço. Quem quer que tenha observado com alguma atenção, o olhar vago e contemplativo da criança para os objetos que a cercam, sabe perfeitamente que a sua educação começa logo, quer a intentemos quer não e que aqueles movimentos dos dedos levando para a boca tudo quanto apanham e aquelas aberturas de boca quando escutam qualquer som, são os primeiros passos na série que termina com a descoberta dos planetas invisíveis, com a invenção dos aparelhos de cálculo, com a produção das grandes telas, com a composição das sinfonias e das óperas. Como esta atividade das faculdades desde o começo, é espontânea e inevitável, a nossa questão resume-se a fornecer a devida variedade de materiais em que as crianças a podem exercer. Posta assim a questão, a resposta a dar é só uma. Como já dissemos o nosso acordo com a teoria de Pestalozzi não envolve a nossa aquiescência a maneira como ela se pratica; e aqui ocorre a proposito um assunto. Tratando da maneira de aprender a ler diz ele: «O livro de soletrar deve, portanto, conter todos os sons da linguagem que devem ser ensinados na família, desde os mais tenros anos. A criança que estuda o seu livro primário deve repeti-los a criança que está no berço, antes que esta possa pronunciar qualquer dele para que impressionem profundamente o seu espírito pelas frequentes repetições». Adicionando a isto as sugestões para «o seu método de ensino das crianças ainda na amamentação» que ele expõe no seu «Manual da mãe» em que fez dos nomes, posições, relações, numeres, propriedades e usos dos membros as suas primeiras lições, torna-se claro que as noções de Pestalozzi quanto ao primário desenvolvimento mental eram suficientemente grosseiras para o impossibilitarem de traçar um plano judicioso. Ora vejamos o caminho ditado pela Psicologia. As primeiras impressões que o espírito pode assimilar são sensações indecomponíveis produzidas pela resistência, pela luz, pelo som etc. É manifesto que os estados decomponíveis de consciência não podem existir antes dos estados de consciência de que são compostos. Não pode haver ideia sobre a forma antes que se adquira alguma familiaridade com a luz nas suas gradações e qualidades, ou com a resistência nas suas diferentes intensidades, porque, é de há muito sabido, que só reconhecemos a forma visível pelas variedades da luz, e a forma tangível pelas variedades de resistência. Similarmente, nenhum som articulado é conhecido sem que sejam aprendidos os sons inarticulados que o vão compor. E assim sucede em todos os outros casos. Seguindo, portanto, a lei necessária de progressão do simples para o composto, devemos fornecer às crianças uma soma de objetos que lhes apresentem diferentes graus e espécies de resistência, objetos bastantes para refletirem diferentes quantidades e qualidades de luz e sons bastantes de intensidades diversas, tonalidades e timbre. Quanto esta conclusão a priori é confirmada pelos instintos infantis, podemos nós ver, lembrando-nos do prazer com que as crianças mordem nos seus brinquedos, palpam os botões brilhantes da jaqueta do irmão e puxam pelo bigode do pai, como elas se extasiam diante de qualquer objeto garridamente pintado, a que chamam «bonito» logo que podem pronunciar o termo, por causa das suas cores brilhantes, e como a boca se lhes abre num sorriso ao ouvir as tagarelices da ama, o estalido dos dedos de qualquer visita ou qualquer som que ainda não tenham ouvido. Felizmente, as amas costumam corresponder consideravelmente a estas primeiras exigências da educação. Todavia muito fica por fazer e é de muito mais importância do que parece a satisfação destas exigências logo que elas se manifestam. Durante essa atividade espontânea que acompanha a sua evolução, cada faculdade é capaz de receber impressões mais vivas do que em qualquer outro período. Além disso, como às crianças tem de ser ensinados os elementos mais simples e essa iniciação leva tempo a fazer, torna-se uma grande economia de tempo preencher este primeiro período da infância, durante o qual nenhuma outra ação intelectual é possível, conquistando-se uma familiaridade completa com eles em todas as suas modificações. Não devemos omitir o fato de que o caráter e a saúde progridem pela gratificação continua, resultante da devida satisfação das impressões que as crianças assimilam tão ardentemente. Seria aqui o lugar, embora estreito, de fazermos qualquer sugestão relativa à ministração mais sistemática das percepções mais simples. Mas basta só apontar que qualquer ministração deste gênero tem de reconhecer a lei geral da evolução do indefinido para o definido, para fazermos compreender que no desenvolvimento de toda a faculdade se distingue primeiramente as impressões frisantemente contrastadas; que os sons muito diferentes em intensidade, e tonalidade que as cores mais opostas umas ás outras e as substancias mais dessemelhantes em dureza e textura devem ser fornecidas em primeiro lugar, e que em cada caso a progressão deve caminhar lentamente para as impressões que lhes são mais estritamente aliadas. Passando às lições das coisas, que manifestamente formam a continuação natural da primeira cultura dos sentidos, é para notar que o sistema geralmente seguido está em divergência absoluta com o método da Natureza quer na infância, quer na adolescência, quer no decurso de civilização. «Á criança, diz M. Marcel, deve-se mostrar como todas as partes dum objeto estão unidas entre si, etc.» e os diversos manuais dessas lições das coisas, contém muitas listas de fatos que a criança se deve ensinar relativamente às coisas que se põem diante dela. Basta agora um golpe de vista sobre a vida diária da criança para vermos que todo o conhecimento das coisas que ela obtém antes da conquista da falia é por ela mesmo conquistado - que as qualidades de dureza e peso associadas a certas aparências, a posse de formas e de sons particulares por personalidades particulares, a produção de sons especiais por animais de aspetos especiais, são fenômenos que ela mesma observa. Na virilidade igualmente, quando não temos a mão meios mais completos de ensino, as observações e inferências hora a hora exigidas pelas necessidades da vida, são feitas por nós mesmos, e o bom êxito depende da profundidade e perfeição com que elas são feitas. É, pois, razoável que, em quanto o processo largamente aplicado pela evolução humana se repete, quer na criança, quer no homem, se deva seguir um processo contrário durante o período intermédio da infância e da virilidade? e então numa coisa tão simples, como é o estudo das propriedades dos objetos? Não é, pelo contrário, bem patente, que um mesmo método deve ser aplicado a generalidade dos fatos? E a Natureza não nos está mostrando, perpetuamente um método que nós deveríamos ver sempre e adotar com toda a humildade? O que poderá ser mais manifesto do que o desejo das crianças pelo estudo das coisas que agradam ao seu espírito? Notai a maneira como a criança sentada sobre os vossos joelhos coloca os brinquedos para que os examineis. Vede como ela se volta para vós e vos olha quando com o dedo molhado faz ranger o atrito da mesa; se conseguir fazer outra vez o mesmo ruído, outra vez vos encarará como fazendo-vos notar claramente aquele som novo para ela. Vede como as crianças já de mais idade entram a todos os instantes no quarto exclamando: Mamã, veja que coisa tão curiosa, Mamã veja isto, Mamã olhe aquilo, hábito este que elas conservariam ainda por muito tempo se a mamã ignorante não lhes dissesse que não a importunassem. Observai como, quando andam a passear com a ama, elas correm para ela com a flor que colheram, mostrando-lhe como é bonita e convidando-a a concordar com a opinião delas. Ouvi a viva volubilidade com que todos os pequerruchos descrevem qualquer novidade que tenham visto logo que encontrem alguém que por eles tome interesse. A indução não se pôde fazer claramente sobre estes fatos? Não é claro que devemos os nossos planos a uns instintos intelectuais, - que devemos sistematizar o processo natural, que devemos escutar tudo quanto as crianças tem a dizer-nos sobre cada objeto; que devemos induzi-las a dizer tudo quanto pensam sobre cada objeto; que devemos chamar a sua atenção oportunamente para os fatos que ainda não observaram, no intento de as predispor a observa-las por si mesmas logo que elas se apresentarem novamente, e que devemos seguidamente indicar-lhes ou fornecer-lhes novas series de coisas para que eles as examinem mais profundamente? Notai a maneira inteligente, neste método, como a mãe dirige as suas lições. Passo a passo vai familiarizando o filho com os nomes dos atributos mais simples - a dureza, a moleza, a cor, o gosto, o tamanho: praticando assim ela vê que a sua tarefa é fortemente auxiliada pela própria criança que lhe vai mostrando que isto é vermelho, que aquele outro objeto é duro, isto a par e passo que ela lhe vai fornecendo os termos designativos dessas propriedades. Ao mesmo tempo que chama a atenção do filho para as propriedades adicionais relativas a qualquer coisa nova que ele veja, ela tem cuidado em menciona-las juntamente com aquelas que ele já conhece, de modo que, pela tendência natural de imitação, se ponha no hábito de as repetir umas depois das outras. Gradualmente e a proporção que aparecem os casos em que omite uma ou mais das propriedades que ele já conheceu, a mãe vai introduzindo a pratica de lhe perguntar se não tem mais alguma coisa a dizer sobre aquele objeto. É provável que não a compreenda. Depois de o deixar perplexo durante um momento dir-lhe-á; gracejando talvez um pouco com o seu esquecimento. Algumas repetições deste assunto e ele perceberá o que tem a fazer. Quando em seguida a mãe lhe disser que sabe mais alguma coisa sobre o objeto do que o que ele lhe disse, o orgulho da criança é ferido; observa-o atentamente; pensa em tudo o que tiver ouvido e, como o problema é fácil, resolve-o então. Enche-se de alegria pela sua vitória e simpatiza com ela. Depois quer ganhar mais louros e entra na pesquisa de novas coisas para lhe dizer. À medida que as suas faculdades se vão desenvolvendo, a mãe vai adicionando novas propriedades à sua lista, progredindo da dureza e moleza para a aspereza ou lisura, da cor para o polido, dos corpos simples para os compostos - tornando os problemas sucessivamente mais complicados à medida que ele vai estando habilitado a resolve-los, chamando a sua atenção e a sua memória, constantemente para uma extensão maior, alimentando constantemente o interesse, facultando-lhe impressões novas e assimiláveis, e constantemente aplaudindo-o pelas conquistas por ele alcançadas sobre as suas pequenas dificuldades. Obrando desta sorte, a mãe não faz mais do que seguir o processo espontâneo seguido pela própria criança no primeiro período de vida - ajudando meramente a evolução própria - pela maneira que o procedimento instintivo da criança para com ela lhe sugere. É igualmente evidente que o plano adotado é o melhor combinado para estabelecer o hábito de profundar as coisas, que é o fim previsto de tais lições. Dizer isto a uma criança e mostrar-lhe aquilo, não é ensinar-lhe a observar, mas fazer dela um mero recipiente das observações de outrem, processo este que não fortalece antes torna fracas as faculdades da instrução própria - que a priva dos prazeres resultantes da atividade bem sucedida - que apresenta este estudo aliás atraente sob o aspeto de um ensino formal- e que assim produz a indiferença e até a repugnância, frequentemente experimentadas por este gênero de ensinamento. Por outro lado, seguir o curso acima descrito é simplesmente guiar a inteligência para a cultura que lhe é própria; adicionar aos apetites intelectuais os adjuntos naturais - o amor próprio e a necessidade de simpatia; incitar pela união de todos estes elementos uma intensidade de atenção que assegure percepções vivas e completas, e habituar o espírito desde o princípio, a entrar na pratica de contar só consigo mesmo, pratica que deve sustentar sempre. As lições das coisas não só deviam ser fornecidas por uma maneira absolutamente diferente daquela por que o são agora, mas dever-se-iam estender a uma esfera de coisas mais larga e continuadas durante um período muito mais longo do que o atual. Não se deveria limitar aos objetos da casa, mas alcançar os que são relativos aos campos e alamedas, pedreiras e costas marítimas. Não deveriam terminar com a infância, mas continuar durante a adolescência, predispondo o estudante para as investigações naturalistas e para os trabalhos das ciências. Neste ponto, como nos outros, não temos mais que seguir o ensinamento da Natureza. Em que terá a criança maior prazer do que colhendo novas flores, agarrando novos insetos, ou apanhando seixos e conchas? E quem não percebe que, simpatizando com esses objetos, as crianças são levadas a inquirir das qualidades e estruturas deles? Todo o botânico que tiver uma criança ao pé de si nos bosques e nos prados é testemunha do ardor com que elas se associam às suas pesquisas, do entusiasmo com que lhe vão procurar plantas, da atenção que prestam ao seu exame, da multidão de perguntas com que o perseguem. Um discípulo legitimo de Bacon «servo e interprete da natureza» verá que nós apenas adotamos, modestamente, o sistema de cultura assim indicado. Estando familiarizado com as propriedades mais simples das coisas inorgânicas, a criança deverá, pelo mesmo processo, ser levada ao exame profundo das coisas que encontra nos seus passeios diários - começar-se-á pelos fatos menos complexos: nas plantas, as cores, o número, as formas das pétalas, as formas das hastes e das folhas; nos insetos o número das asas, das pernas, das antenas, e as suas cores. Plenamente examinado isto é invariável observado, introduzir-se-á no estudo sucessivamente novos fatos; no primeiro caso, o número dos estames e pétalas, a forma das flores, se são de simetria radial ou bilateral, o arranjo e caráter das folhas, se são opostas ou atenuadas, pedunculadas ou acaules, lisas ou velosas, dentadas ou unidas; no segundo caso, as divisões do corpo, os segmentos do abdômen, as marcas das azas, o número de articulações nas pernas, e as formas dos órgãos mais pequenos, e sempre o sistema empregado deve ter em vista provocar a criança a dizer tudo quanto lhe é possível relativamente a todas as coisas que encontrar. Depois, quando ela chegar a idade mais própria, devesse-lhe ensinar, como um grande favor, os meios de conservar as plantas, que tanto a interessam em virtude do conhecimento que delas tem; e casualmente, como um favor maior ainda, ser-lhe-ão fornecidos os instrumentos necessários para a conservação das larvas das borboletas mais comuns e das traças através das suas transformações - este trabalho, como nós pessoalmente podemos testemunhar, é o mais agradável possível; deve ser continuado com ardor durante anos; junto a uma coleção entomológica dá um interesse imenso aos passeios do domingo e constitui uma admirável introdução ao estudo da fisiologia. Muitos indivíduos dir-nos-ão, com certeza, que tudo isto é perder tempo e energia e que as crianças preferirão ocupar-se em fazer os seus exercícios de escrita ou estudar a tabuada, preparando-se assim para os negócios da vida. Lamentamos que prevaleçam ainda ideias tão grosseiras sobre a educação e que haja uma concepção tão estreita do que é a utilidade. Sem falarmos da necessidade de uma cultura sistemática das percepções e do valor das práticas acima indicadas para satisfação dessa necessidade, estamos preparados para defende-las como valiosas por amor da ciência conquistada. Se os homens fossem destinados a ser meros mercadores, condenados a olhar só para o Razão, sem mais ideia alguma além dos seus negócios - se fosse justo considera-los como campônios, cuja concepção dos prazeres rurais não vai além de estar sentado numa bodega, fumando cachimbo e bebendo cerveja, ou como certos morgados, considerando os bosques apenas como lugares de caça, as plantas bravias como ervas daninhas, que fazem a classificação dos animais em caça, vermes e gado - então, certamente que não havia necessidade alguma de estudar qualquer coisa que não ajudasse diretamente a encher a bolsa e o celeiro. Mas se há para nós mais valiosos fins do que a gleba - se as coisas que nos rodeiam tem outras aplicações sem ser a faculdade de baterem moeda - se temos a exercer faculdades mais nobres do que ganhar e gozar - se os prazeres que nos dá a poesia, a arte, a ciência e a filosofia são de alguma importância - então é para desejar que se anime a tendência instintiva que as crianças patenteiam para observarem as belezas naturais e investigar os fenômenos naturais. Esse utilitarismo grosseiro que se contenta em vir ao mundo e a abandona-lo sem querer conhecer que espécie de mundo é este e o que ele encerra - precisa de ser posto no campo que lhe é próprio. Dentro em pouco se saberá que o conhecimento das leis da vida é muito mais importante do que qualquer conhecimento - que as leis da vida presidem não só a toda atividade do espírito e do corpo, mas implicam com todas as transações da casa e da rua, com todo o comercio, com toda a política, com toda a moral - e que, portanto, sem a sua compreensão não podem ser justamente regulados, nem o procedimento pessoal nem o procedimento social. Deve também saber-se que as leis da vida são essencialmente as mesmas por toda a esfera da criação orgânica; e além disso que elas não podem ser propriamente compreendidas nas suas complexas manifestações senão quando tiverem sido estudadas nas suas manifestações mais simples. Sabido isto, deve também saber-se que auxiliando-se a criança a adquirir as informações externas por que mostra tão grande avidez, e animando-se a aquisição de tais informações durante a adolescência - nós apenas a induzimos a acumular os materiais desaparelhados da organização futura - materiais que um dia darão edifício poderoso, grandes generalizações científicas que devem guiar as nossas ações com justiça. A opinião progressiva de que o desenho é um elemento de educação, é um dos muitos sinais de considerações mais racionais que agora começam a prevalecer sobre a cultura mental. Mais uma vez faremos notar que os professores estão adotando afinal o curso que a Natureza perpetuamente lhes ministra. As tentativas espontâneas feitas pelas crianças em desenharem homens, casas, arvores e animais que os cercam - numa lousa, se não podem obter coisa melhor - ou com um lápis sobre o papel se lhes fornecem, são familiares a todos eles. Um dos maiores prazeres das crianças é ver um livro de estampas e é frequente a sua tendência imitativa originar a vontade de fazer também pintura. Este esforço, empregado em pintar as coisas mais brilhantes que elas veem é também um exercício instintivo das percepções, um meio de se tornar maior a exatidão e mais completa a observação delas. Mostrando-nos interessados pelas suas descobertas sobre as propriedades sensíveis das coisas, e pelos seus esforços pelo desenho, satisfazemos justamente aquele gênero de cultura que nessa época mais lhes convém. Se os mestres se deixassem guiar pelos conselhos da Natureza, não só fazendo do desenho uma parte da educação, mas escolhendo os melhores processos do seu ensino, muito melhor teriam feito do que agora fazem. O que é que a criança tenta figurar primeiramente? Coisas de grande volume, coisas de bonita cor; objetos ao redor dos quais se amontoam os seus prazeres - seres humanos de quem tenha recebido comoções mais fortes; vacas e cães que os interessam pelos muitos fenômenos que apresentam; casas que elas veem a todos os momentos e que lhes ferem as vistas pela grandeza ou pela extravagancia da sua construção. E qual é o processo de representação que elas preferem? O colorido. À falta de melhor serve-lhes um bocado de papel e um lápis; mas, uma caixa de tintas e um pincel, isso são verdadeiros tesouros! O desenho dos contornos aparece logo depois do seu amor pelo colorido - e é feito principalmente para ser coberto a tintas, e, se lhes consentem que elas pintem as gravuras de qualquer livro - que grande favor! Ora, por mais ridícula que pareça uma tal situação aos mestres de desenho, que deixam para mais tarde o colorido e que ensinam o desenho pelo horrível processo de copiar linhas, somos de opinião que o curso de instrução assim indicado é precisamente o melhor. A prioridade da cor a forma, que, como já dissemos, tem uma base psicológica, deve ser reconhecida desde o princípio e desde o princípio as coisas imitadas devem ser reais. Esse grande amor pelo colorido que não é só próprio das crianças, mas que persiste em muitas pessoas durante a vida inteira, deve ser constantemente explorado como natural estimulo ao estudo da forma comparativamente difícil e sem atrativos: o prazer da futura pintura deve ser a recompensa que as crianças terão em perspectiva para os trabalhos de desenho. Igualmente devem ser animados os esforços que elas apresentam em representar atualidades interessantes, na certeza de que depois de mais larga experiencia, elas mais se interessarão pelos objetos simples e fáceis, tentando também reproduzi-los, de tal modo que se aproximarão gradualmente daquelas imitações que mais semelhança tiverem com a realidade. A extrema indefinibilidade que estas primeiras tentativas oferecem, em conformidade da lei da evolução, não é razão bastante para que elas não se façam. Pouco importa que as fôrmas sejam grotescas e empastadas, e garridas as tintas. A questão não é obter da criança boas pinturas. A questão é fazer desenvolver lhe as faculdades. Primeiramente tem a ganhar posse do trabalho dos dedos, algumas noções grosseiras de semelhança; e esta pratica é melhor do que outra qualquer para estes fins, porque é ao mesmo tempo espontânea e interessante. Durante a mais tenra infância não é possível dar quaisquer lições formais de desenho. Devemos nós reprimir ou deixar de ajudar esses esforços de educação própria? ou devemos anima-los e guia-los como exercícios normais das percepções e das faculdades de trabalho? Se, fornecendo às crianças gravuras baratas em madeira para elas pintarem, e simples contornos de mapas para cobrirem a tinta as suas linhas fronteiras, não lhes estimularmos apenas o amor pela cor, mas deixarmos produzir nelas incidentemente alguma familiaridade com as linhas gerais das coisas e dos países e alguma habilidade para moverem rapidamente o pincel; e se, fornecendo-lhes objetos atraentes para imitar, nós sustentarmos nas crianças o instinto que têm de fazer representações, embora grosseiras; pôde muito bem suceder que, chegando a idade própria para o estudo do desenho, elas possuam uma faculdade de que por outra qualquer fôrma seriam privadas. Aproveitar-se-á assim muito tempo; e afugentar-se-ão muitos desgostos quer para os mestres quer para os discípulos. Do que deixamos dito deve inferir-se facilmente que combatemos a pratica de estudar o desenho por copias; e mais ainda o acanhado sistema que consiste no traçado de linhas retas, de linhas curvas, de linhas mistas, adotado nos princípios por alguns mestres. Lamentamos que a Sociedade das Artes desse recentemente, na sua série de manuais sobre a Instrução artística rudimentar, aplauso a um livro elementar de desenho que é o mais vicioso, no seu princípio, que nós temos visto. Referimo-nos ao Esboço, segundo o esboço, ou segundo a superfície plana, pelo escultor John Bel. Como desenvolvimento no seu prefacio esta obra propõe «colocar diante do estudante um sistema de instrução simples, mas lógico» e termina por apresentar um certo número de definições como estas: Em desenho chama-se linha simples o traço tirado de um ponto para o outro; As linhas podem dividir-se, em desenho, naturalmente em duas classes; 1. Retas, que são as que marcam o mais curto caminho entre dois pontos, como A B. 2. Ou Curvas que são aquelas que não mostram o caminho mais curto entre dois pontos, como C D. E assim a introdução caminha por entre linhas horizontais, linhas perpendiculares, linhas obliquas, ângulos de diversos gêneros, e várias figuras formadas por ângulos e por linhas. A obra, é, numa palavra, uma gramática da forma, com exercícios. Por esta forma o sistema de começar o estudo por uma análise seca dos seus elementos, que deve ser posta de parte, como sucede com o estudo das línguas, vai ser novamente instituído no ensino do desenho. Partimos do definido, em vez de partirmos do indefinido. O abstrato torna-se em preliminar do concreto. As concepções científicas precedem as experiencias empíricas. Escusamos de dizer mais uma vez que isto é uma inversão da ordem normal. Já demonstramos claramente, quando tratamos do ensino da arte de falar qualquer língua, principiando pelo ensino das partes do discurso e das suas funções, que um tal exercício é muito semelhante a prefaciar a arte de andar, com um curso sobre os ossos, músculos e nervos das pernas; a mesma coisa deve dizer-se do sistema de ensinar a representação dos objetos pela nomenclatura e definição das linhas que entram na sua análise. Estas coisas técnicas são tão repulsivas como desnecessárias. Tornam o estudo insipido desde o princípio; e tudo isto é feito no intuito da criança aprender aquilo que, no decurso da pratica, ela aprenderá inconscientemente. Como a criança vai colhendo incidentemente o sentido das palavras vulgares na conversação que escuta sem o auxílio de dicionários, assim, pela observação dos objetos, das pinturas e dos seus próprios desenhos ela adquirirá, não só sem esforço, mas até com prazer, aqueles termos científicos, que ensinados muito cedo ficam sendo um mistério e um aborrecimento. Se alguma confiança merecem os princípios gerais de educação que deixamos expostos, o processo do ensino de desenho deve acompanhar os esforços que a criança patenteia cedo e que nós já dissemos acima serem dignos de incitamento. Quando a pratica voluntaria assim começada tiver dado alguma firmeza a mão, e feito germinar algumas ideias toleráveis de proporção, deve nascer no espírito uma noção vaga de corpo, apresentando as suas três dimensões na perspectiva. E quando, depois de muitos abortos e chinezices na tentativa de o copiar para o papel, tiver obtido uma percepção mais clara da coisa que tem a fazer, e tiver aumentado o desejo de a fazer, o mestre deve então dar-lhe uma primeira lição de perspectiva empírica, por intermédio do aparelho geralmente usado no desenvolvimento científico de perspectiva. Estas nossas palavras assustarão talvez; mas a sua execução experimental será simultaneamente fácil de compreender e interessante, quer para os rapazes, quer para as meninas de ordinária inteligência. Um pedaço de vidro, colocado perpendicularmente sobre e mesa deve ser posto entre o estudante e um livro, ou qualquer objeto simples e, dizendo-se lhe que não retire a vista daquela direção, pede-se para fazer marcas no vidro de modo a coincidirem com os pontos de mira os ângulos desse objeto. Que junte depois esses pontos por meio de linhas, e fazendo isto deve ver que essas linhas escondem ou coincidem com os contornos do objeto. Depois, pondo uma folha de papel pelo outro lado do vidro, ele verá que as linhas traçadas representam o objeto que observou. Não só vê que o objeto desenhado se parece com aquele que observou, mas percebeu que assim deve ser, pois que fez as linhas em harmonia com os seus contornos; retirado o papel pode efetivamente verificar que eles são em perfeita harmonia com aqueles contornos: O fato é vivo e frisante; e oferece-lhe uma demonstração experimental de que as linhas de umas certas dimensões traçadas em certas direções numa superfície, podem representar linhas e outras dimensões e de outras direções no espaço. Mudando gradualmente a posição do objeto, ele observará como certas linhas se encurtam, outras desaparecem, em quanto que outras saltam à vista e aumentam. A convergência de linhas paralelas, e, na verdade; todos os fados importantes da perspectiva, podem, de tempos a tempos, ser-lhe similarmente ensinados. Se foi acostumado desde o princípio a trabalhar por si mesmo, bem depressa e com jubilo tentará traçar esses contornos no papel, á simples vista, quando tal lhe sugerirem; e bem depressa lhe servirá de estimulo para produzir sem ajuda a representação de um objeto, tal como poder, para o comparar ao outro subsequentemente esboçado no vidro. Por esta forma, sem a pratica estupida e mecânica de copiar os desenhos dos outros, mas um método ao mesmo tempo simples e atrativo, variável, embora não abstrato, ele virá a familiarizar-se pouco a pouco com as aparências diversas das coisas e com as faculdades de as traduzir. A estas vantagens há outras a adicionar ainda, tais como: aprender, embora inconscientemente, a verdadeira, teoria da pintura (a saber, que ela é o traçado dos objetos como eles nos apareceriam se fossem projetados num plano colocado entre eles e a nossa vista); e que quando chegar a uma idade própria para começar o estudo científico da perspectiva, já está familiarizado com os fatos que formam a base lógica da arte. Como exemplo de um modo racional de ensinar as concepções primarias da geometria, nada podemos fazer de melhor do que copiar a seguinte passagem de Mr. Wyse: «A criança habituou-se a usar dos cubos no estudo da aritmética; deixem-na usar também deles para estudar os elementos de geometria. Ao contrário do plano usual ela deve principiar por sólidos. Livrem-na das dificuldades das definições absurdas, e das más explicações sobre pontos, linhas, e superfícies que são apenas abstrações... O cubo apresenta muitos dos elementos principais da geometria; patenteia ao mesmo tempo pontos, linhas retas, linhas paralelas, ângulos, paralelogramos, etc. Estes cubos são divisíveis em diversas partes. Logo que o discípulo esteja familiarizado com estas divisões como número, procederá à comparação das suas diversas partes e da relação dessas partes umas com as outras... Em seguida estudará a esfera, que lhe fornece as noções elementares do círculo e das curvas em geral. Depois de possuir bastantes conhecimentos dos sólidos, poderá substitui-los por planos. A transição far-se-á facilmente. Corte-se, por exemplo, o cubo em divisões estreitas e coloquem-se sobre o papel; o discipulo verá que possui tantos planos retângulos quantas as divisões; e assim com todos os outros sólidos. As esferas devem ser tratadas da mesma maneira: ele verá como se geram as superfícies, podendo depois abstrai-las com facilidade de qualquer sólido. Por esta maneira aprende ele o alfabeto e a leitura de geometria. Depois tratará de a escrever. A mais simples de todas as operações e, portanto, a primeira que ela deve aprender é colocar simplesmente esses planos sobre uma folha de papel e passar um lápis ao redor deles. Quando tiver feito isto repetidas vezes, o plano deve ser retirado para alguma distância e o discípulo deverá copia-lo, e assim em seguida.» Tendo-se adquirido um certo fundo de concepções geométricas, pela maneira recomendada por Mr. Wyse, pode dar-se mais um passo introduzindo a pratica de experimentar a exatidão das figuras desenhadas a olho; excitando por um lado o desejo de as fazer exatas e por outro mostrando-lhe continuamente as dificuldades de uma tal execução. Não podemos duvidar que a geometria tem a sua origem (como, em verdade, o termo o significa) nos métodos descobertos pelos artistas e pelos outros homens de fazerem medidas exatas para os alicerces dos edifícios, para traçarem as áreas dos recintos e obras semelhantes; e que as suas verdades começaram a ser colecionadas, principalmente em vista da sua utilidade imediata. Os mestres deveriam iniciar os discípulos em relações análogas. Cortando peças para os seus castelos de cartas, desenhando diagramas ornamentais para colorir, e nas variadas ocupações instrutivas que o mestre inventivo lhe fornecerá, pode-se, durante um certo tempo, deixa-lo com vantagem fazer, como o primitivo construtor, tentativas neste gênero; e assim ele aprenderá pela experiência as dificuldades de alcançar os seus fins só com o auxílio dos sentidos. Entretanto, tendo adquirido uma valiosa disciplina das percepções, e chegando a uma idade própria para fazer uso do compasso ele lhe apreciará as vantagens como meio de verificar as suas conjecturas escolares, mas continuará a ser importunado pelas imperfeições do método aproximativo. Nesta situação deve permanecer por algum tempo; em parte porque é demasiado criança para estudar qualquer coisa de mais alto; em parte porque convém que ele experimente cada vez com mais força a necessidade dos processos sistemáticos! Se a aquisição da ciência deve ser continuamente interessante para ele; e se, na primeira civilização da criança, como na primeira civilização da raça, a ciência só tem valor como auxilio da arte, é evidente que o estudo preliminar mais próprio para a geometria é uma pratica longa nesses exercícios de construção que a geometria facilitará. É para observar que aqui também a Natureza aponta o caminho a seguir. As crianças mostram uma forte propensão para cortarem coisas de papel, para fazerem casas, construções - propensão que, sendo excitada e dirigida, não só prepara o caminho das concepções científicas, mas também desenvolverá essas faculdades de manifestação de que tanto se carece geralmente. Quando as faculdades de observação e de invenção tiverem atingido a força necessária, o discípulo poderá ser iniciado na geometria empírica; isto é, a geometria relativa às soluções metódicas, mas não às demonstrações em si. Como todas as outras transições na educação, esta deve operar-se incidentemente e não formalmente, devendo ser mantida a sua relação com as artes de construção. Fazer com que o discípulo corte em um papelão um tetraedro semelhante ao modelo apresentado, é um problema que há de interessar-lhe e servir-lhe de ponto de partida. Tentando faze-lo, ele vê que é necessário traçar quatro triângulos equiláteros, dispostos em certas posições. Não o podendo fazer, visto faltar-lhe um método exato, verá, pondo os triângulos nas suas posições respetivas, que os seus lados não se ajustam e que os seus ângulos não se encontram no vértice. Pode-se então mostrar como, descrevendo dois círculos, uns triângulos podem ser traçados com perfeita correção e sem hesitação; ele dará o valor devido á lição, depois de conhecer a dificuldade da operação. Assim auxiliado na relação do primeiro problema, no intuito de se lhe mostrar a natureza dos métodos geométricos, deve no futuro deixar-se entregue a si mesmo na solução das questões propostas, do melhor modo que poder. Dividir uma linha em duas partes iguais, levantar uma perpendicular, descrever um quadrado, dividir um ângulo, tirar uma paralela a outra linha dada, traçar um hexágono, são problemas que com alguma paciência ele resolverá sem auxílio. E destes ele partirá de grau em grau para questões mais complexas, que ele se esforçará em resolver sob uma direção judiciosa. Sem dúvida, muitas pessoas educadas no velho sistema, hão de ter pouca fé nesta asserção. Todavia argumentamos com fatos; que nem são poucos, nem especiosos. Vimos uma aula de rapazes interessar-se tanto pela solução dos problemas, que esperavam a sua lição de geometria como um acontecimento capital da semana. Ainda a pouco tempo, ouvimos falar de uma escola de meninos, em que muitos deles se ocupavam com questões geométricas, fora das horas de aula; e de uma outra, na qual não só faziam isto, mas chegavam a pedir problemas para se entreterem na sua solução durante os dias santificados: estes fatos foram-nos atestados pelos próprios professores. Valentes provas estas da prática e da imensa vantagem do desenvolvimento próprio! Este ramo de conhecimentos que, pela maneira como geralmente se ensina, é árido e até repulsivo, toma-se assim, seguindo-se o método da Natureza, extremamente interessante e profundamente benéfico. Dissemos profundamente benéfico, porque os seus efeitos não se restringem a compreensão dos fatos geométricos, mas muitas vezes comovem todo o estado do espirito. Tem repetidas vezes sucedido que aqueles que se estupidificam com os métodos escolares ordinários - com as suas formulas abstratas, as suas tarefas fatigantes, os seus excessos de trabalho - tem subitamente reconquistado a sua inteligência quando deixam de fazer dos cérebros recipientes passivos, transformando-os em ativos descobridores. O desânimo causado pelo mau método de ensino, tendo diminuído por uma pequena simpatia e suficiente perseverança excitada por um primeiro sucesso, dá campo a uma resolução de sentimentos que afeta toda a natureza. Deixam de se considerar incompetentes; veem que podem fazer alguma coisa. E gradualmente, à medida que os bons êxitos se sucedem, o pesadelo do desânimo desaparece; atacam as dificuldades dos outros estudos com a coragem das conquistas seguras. Poucas semanas antes destas observações terem sido pela primeira vez publicadas, o Professor, Tyndall numa conferência no Real Instituto versando sobre a importância do estudo da Física como ramo de Educação, deu alguns exemplos concludentes sobre o mesmo efeito. O seu testemunho baseado em observações pessoais, é de tal valor que não podemos deixar de o transcrever. Ei-lo: Um dos deveres que me couberam durante o período a que me referi, foi o de lecionar numa aula o curso de matemáticas, e usualmente achei que Euclides e geralmente a geometria antiga, quando dirigidas ao espírito, formavam um estudo muito atrativo para a mocidade. Mas era costume habitual afastar os rapazes da rotina do livro e fazer apelo a própria força das suas faculdades na solução das questões não compreendidas nessa rotina. A princípio, a mudança do terreno batido excitou uma certa repugnância; os rapazes pareciam crianças entre estrangeiros; mas não tive exemplo algum de que essa aversão continuasse. Quando o aluno estava completamente descorçoado, animava-o com a anedota de Newton em que ele atribui a paciência principalmente a diferença existente entre ele e os outros homens; ou a de Mirabeau quando disse ao criado que não havia impossíveis, só para que não lhe repetisse esta estupida palavra. Assim animado, o discípulo voltava sorridente ao trabalho, duvidando ainda talvez, mas evidentemente com a resolução de tentar novamente. Vi brilhar os olhos da criança, e afinal com uma alegria de que o êxtase de Archimedes foi uma simples expansão, vi-o exclamar: Compreendo, senhor! A consciência do seu próprio poder, assim despertada, era de um valor imenso; por esta forma o progresso da aula foi verdadeiramente surpreendente. Tinha eu por costume dar muitas vezes a escolher as suas preposições nos livros, ou experimentar as suas forças sobre outras que não viessem neles. Nunca os vi, em ocasião alguma, recorrer aos livros, e, apesar de eu estar sempre pronto em os ajudar quando tal fosse preciso, eles geralmente recusavam os meus oferecimentos. Os rapazes gozavam as alegrias das conquistas intelectuais e buscavam ganhar vitorias que eles pudessem obter pelas suas próprias forças. Eu tinha visto os seus diagramas gravados nos muros, abertos nas taboas do soalho da aula de recreio e inumeráveis provas do vivo interesse que eles prestavam ao seu assunto. Quanto a mim, pelo tempo que tinha de ensinar, era um simples principiante: coisa alguma sabia das regras de pedagogia, como os alemães lhe chamam; mas aderia ao espirito indicado no começo deste discurso e esforçava-me por fazer da geométrica um meio e não um ramo de educação. A experiencia foi proveitosa e as horas mais agradáveis da minha existência foram aquelas que eu gastei provocando a expansão vigorosa e desejada das faculdades mentais, quando para elas apelava pela maneira já descrita. Esta geometria empírica que apresenta uma série interminável de problemas deve ser continuada por alguns anos com os outros estudos, e pode ser vantajosamente acompanhada por aplicações concretas dos princípios que lhe servem de preliminares. Depois do cubo, o octaedro e as variados formas da pirâmide e do prisma terem sido ensinadas, deve passar-se para o estudo dos corpos regulares mais complexos o dodecaedro e o isocaedro, cuja construção de simples peças de cartão exige considerável engenho. Daqui a transição faz-se naturalmente para as formas modificadas dos corpos regulares, tais como aparecem nas cristalizações - o cubo troncado, o cubo de ângulos troncados, o octaedro, os prismas e as suas variadas modificações; enquanto se imitam as formas numerosas dos diferentes metais e sais, adquire-se incidentalmente conhecimento com os principais fatos de mineralogia. Depois de repetidos exercícios sobre esta matéria, a geometria racional, como é de supor, não apresenta dificuldades. Habituado a observar as relações de forma e quantidade, e vendo vagamente, de tempos a tempos, a necessidade de certos resultados provocados por certos meios, o discípulo principia a considerar as demonstrações de Euclides como suplementos essenciais dos problemas que lhe são familiares. As suas faculdades bem disciplinadas habilitam-no facilmente a compreender as suas sucessivas proposições e a apreciar lhes o valor; e tem a recompensa ocasional de ver que alguns dos seus próprios métodos provam ser verdadeiros. Por esta forma acha satisfação naquilo que é uma dura tarefa para que não estão convenientemente preparados. Resta-nos acrescentar, que o espírito chega a condição própria do mais valioso de todos os exercícios para as faculdades refletivas - fazer demonstrações originais. Os teoremas do gênero daqueles que vem juntos aos livros de Euclides de Chambers são bem depressa praticáveis para as suas forças; e fazendo a sua demonstração, o processo do desenvolvimento próprio será não só intelectual, mas moral. Não é intento nosso levar mais longe estas sugestões, porque é da competência de um tratado completo de educação. Os traços gerais que deixamos descritos sobre um plano para exercício das percepções na primeira infância, para dirigir as lições das coisas, para ensinar o desenho e a geometria, devem ser considerados como simples exemplificações do método ditado pelos princípios gerais, previamente especificados. Cremos que, se foram observados, hão de ser vistos não só caminhando do simples para o composto, do indefinido para o definido, do concreto para o abstrato, do empírico para o racional; mas que satisfazem outros requisitos - que a educação será uma repetição da civilização em ponto pequeno, que será o mais possível um processo de evolução própria, e que deve ser recreativo. A reunião de todas estas condições num só tipo de método tende ao mesmo tempo para verificar lhe as condições e provar que aquele tipo de método é bom. Note-se também que este método é o resultado logico da tendência que caracteriza todos os progressos modernos no ensino - que é apenas uma adaptação geral do sistema natural que eles singularmente adotam, e que manifesta esta adopção completa do sistema natural, não só em conformidade dos princípios que expusemos, mas também pelas sugestões que oferece ao espírito das crianças, facilitando as suas atividades espontâneas e auxiliando os desenvolvimentos de que a Natureza se ocupa. Tudo isto, pois, é para nós razão bastante para concluirmos que o modo de processo acima exemplificado é o que mais estreitamente se aproxima da verdade. Devemos acrescentar ainda alguns parágrafos para insinuar mais profundamente os dois princípios gerais, que são ao mesmo tempo os mais importantes e os mais desprezados: primeiramente, o princípio da instrução própria, quer na infância, quer na adolescência, quer na virilidade; e em segundo lugar, o princípio incidente de que a seção mental produzida, deve ser sempre inteiramente agradável. Se a progressão do simples para o composto, do indefinido para o definido, do concreto para o abstrato é considerada como verdade essencial, ditada pela psicologia abstrata, então os requisitos desta ciência devem ser estudados independente e agradavelmente, sendo estas condições pedras de toque pelas quais podemos ajuizar, se os ditames da psicologia abstrata são ou não cumpridos. Se o primeiro princípio compreende as principais generalizações da ciência da educação, o ultimo contém as principais regras da arte de alimentar a educação. Porque manifestamente, se os diferentes graus do nosso curso são dispostos de maneira que podem ser sucessivamente transpostos pelo discípulo com pequeno ou nenhum auxilio, devem eles corresponder aos diferentes períodos de evolução nas suas faculdades; e manifestamente, se os sucessivos vencimentos desses graus lhe dão uma satisfação intrínseca segue-se que ele apenas requer um exercício normal das suas faculdades. Mas fazer da educação um processo de evolução própria, oferece mais vantagens do que a de dispor em boa ordem o curso das nossas lições. Em primeiro lugar, garante uma vivacidade e permanência de impressão que não podem ser produzidas pelos métodos usuais. Toda a espécie de conhecimentos adquiridos pelo discípulo - todos os problemas que ele mesmo tenha resolvido, tornam-se, por direito de conquista, muito mais seus do que o seriam por outra qualquer forma. A atividade preliminar do espírito que este sucesso implica, a concentração necessária e a excitação consequente do seu triunfo, conspiram para registrar os fatos na sua memória de modo que não pôde ser registrada nenhuma mera informação, dita pelo professor ou lida em qualquer livro. Mesmo dado o caso que ele não vença, a tensão que as suas faculdades foram obrigadas a fazer firma muito mais no espírito a solução que lhe foi ensinada do que o poderia fazer uma meia dúzia de repetições. Observa-se ainda que o discípulo ensinado desta maneira necessita de uma continua organização dos conhecimentos que vai adquirindo. É da verdadeira natureza desses fatos e das conclusões assim assimiladas pelo método normal que elas se vão tornando sucessivamente premissas de posteriores conclusões, meios de solver questões ulteriores. A soluçãodo problema de ontem auxilia o discípulo em resolver o de hoje. Assim o conhecimento adquirido transforma-se em faculdade logo que seja compreendido e auxilia a função geral de pensar; não fica apenas escrito nas páginas de uma livraria interna, como sucede quando é aprendido pela rotina. Note-se também a cultura moral que este constante socorro próprio implica. Coragem em atacar as dificuldades, concentração paciente de atenção, perseverança através das derrotas - tais são os elementos com que é necessário entrar-se na vida; e estes elementos são aqueles que o sistema de fazer trabalhar o espírito na sua alimentação própria produz. Nós mesmo podemos garantir que é praticável dirigir a instrução por esta maneira; porque foi assim que na nossa mocidade nos ensinaram a resolver os problemas relativamente complexos da perspectiva. E de que os principais professores tendem para este caminho, assim o indica o dito de Fellenberg, afirmando que a atividade individual e independente do pupilo é de muito maior importância do que aquele que lhe concedem ordinariamente os indivíduos que oficiosamente se dedicam ao mister de professores; e a opinião de Horácio Mann, dizendo que infelizmente a educação agora entre nós consiste mais em dizer do que em educar, e a observação de M. Marcel, dizendo que aquilo que o discípulo descobre pelo exercício do seu espírito é melhor sabido do que aquilo que se lhe ensina. Semelhantemente sucede com o que é relativo a condição exigida, - que o método de educação adotado deve produzir intrinsecamente uma atividade feliz, - não feliz por causa das recompensas intrínsecas que obtém, mas pela sua própria excelência. A conformidade com este requisito, além de nos preservar de lutar com o processo normal de evolução, assegura-nos incidentemente mais benefícios positivos e importantes. A não ser que tenhamos de volver a moralidade direta (ou melhor a in-moralidade) a sustentação da felicidade da mocidade deve considerada em si como um fim valioso. Sem nos demorarmos demasiadamente neste ponto, vamos, contudo, notar que um estado de sentimentalidade agradável é muito mais favorável aos trabalhos intelectuais do que uma situação de indiferença ou de desgosto. Toda a gente sabe que as coisas lidas, ouvidas, ou vistas com interesse ficam muito mais na memória do que aquelas que são lidas, ouvidas e vistas com repugnância. Num dos casos, as faculdades são chamadas a ocuparem-se ativamente do assunto presente; enquanto que no outro, elas ocupam-se dele inativamente, e a atenção é continuamente chamada para ideias mais atraentes. As impressões são respetivamente fortes ou fracas. Além disso, a distração que acompanha a falta de interesse de qualquer estudo para o discípulo deve adicionar-se o temor paralisante das consequências dessa distração Isto, distraindo a sua atenção, aumenta-lhe a dificuldade que encontrou ao encaminhar as faculdades sobre fatos que lhe eram repugnantes. É claro, pois, que a eficácia do ensino, em igualdade de circunstancias, será proporcional ao agrado com que se executam os trabalhos. É necessário também notar que graves consequências morais se originam do agrado ou da repugnância com que se recebem as lições diárias. Ninguém pôde comparar os aspetos e maneiras de dois rapazes - um satisfeito por compreender bem o seu estudo - e o outro triste pelo desgosto que ele lhe ocasiona com as suas dificuldades, as suas friezas, as suas ameaças, os seus castigos-sem ver que as tendências do primeiro são todas para o bem, enquanto que as do segundo são para o mal. Todo aquele que tiver observado as influências da vitória, ou da derrota do espírito, e o poder do espírito sobre o corpo, verá que em alguns casos, o caráter e a saúde são favoravelmente afetados, enquanto que em outros há perigo de morosidade permanente, de perpétua timidez e de perpétua depressão constitucional. Ha ainda outro resultado de não menos importância. As relações entre mestres e discípulos são, em igualdade de circunstancias, amigáveis e influentes, ou antagonistas e sem força, segundo o sistema de educação produz a felicidade ou o desgosto. Os homens são absolutamente influenciados pela associação das ideias. Aquele que diariamente se impõe pela força deve fatalmente ser considerado com desgosto, e se ele só produzir as sensações dolorosas será inevitavelmente odiado. Bem pelo contrário, aquele que auxiliar constantemente as crianças nos seus intentos dá-lhes a todas as horas a alegria da satisfação dos seus desejos, a todas as horas os anima a lutar com as dificuldades, e, simpatizando com as suas glorias, será certamente estimado; se o seu procedimento for sempre assim será certamente amado. E quando nos lembramos quão oficiosa e benigna é a direção de um mestre que é considerado um amigo, quando o comparamos com outro que é olhado com aversão ou pelo menos com indiferença, havemos de concluir que as vantagens indiretas de guiar a educação pelo princípio do agrado não são menores do que as diretas. A todos aqueles que põem em dúvida a possibilidade de se proceder pelo sistema aqui apontado, nós replicamos, como anteriormente, que esse sistema é não só considerado pela teoria, mas comprovado pela experiencia. Aos muitos testemunhos de professores distintos, que desde a época de Pestalozzi o tem assim asseverado, podemos adicionar aqui a opinião do Professor Pillans que afirma que «quando as crianças são ensinadas como o devem ser acham-se tão satisfeitas na escola como nos recreios, raras vezes menos satisfeitas, na maior parte muito mais satisfeitas com o exercício bem dirigido das suas forças mentais do que com o exercício das forças físicas.» Fazendo uma última observação para tornar a educação um processo de instrução própria e consequentemente um processo de instrução agradável, chamamos a atenção para o seguinte fato: quanto-mais agradável for essa instrução, tanto maior é a probabilidade de o aluno não faltar às aulas. Por quanto tempo o estudo se tornar habitualmente repugnante, por tanto prevalecerá a vontade de não continuar no estudo, logo que os rapazes possam furtar-se a coação dos pais e dos mestres. E quando o estudo da ciência for habitualmente agradável, então há de prevalecer a tendência para continuarem sem superintendência, nos estudos começados sob a direção dos mestres. Estes resultados são inevitáveis. Enquanto forem verdadeiras as leis da associação das ideias - enquanto os homens aborreceram as coisas, e os Jogares que lhe sugerem recordações desagradáveis, e acharem prazer naqueles que lhes trazem ao espírito passadas alegrias - o ensino áspero fará repulsiva a ciência, como o ensino agradável a fará atrativa. Os homens que na sua mocidade receberam a ciência em árduas tarefas e com ameaças de castigo e que nunca puderam adquirir o hábito de estudar independentes de auxilio, dificilmente se entregarão ao estudo na idade madura; enquanto que aqueles que a receberam pelas formas naturais, no tempo próprio, e que se lembram desses fatos não só como interessantes em si, mas como ocasião de longa série de belos êxitos, estão perfeitamente dispostos a continuar através da vida a instrução espontânea começada na sua mocidade. CAPITULO III A EDUCAÇÃO MORAL O maior defeito dos nossos programas de educação é completamente descurado. Enquanto se emprega muito cuidado nos progressos detalhados dos nossos sistemas com respeito ao fundo e a forma, o mais instante desideratum ainda não foi reconhecido como tal. Preparar a mocidade para os deveres da vida, é o fim que tacitamente os pais e os professores tem em vista; e felizmente, o valor das coisas ensinadas, e a excelência dos métodos seguidos no seu estudo, já são ostensivamente julgados pela apropriação a tal fim: A utilidade de substituir uma educação exclusivamente clássica, por uma educação em que entrem as línguas modernas, é chamada para este campo. A necessidade de aumentar o tesouro da ciência é considerada urgente pelas mesmas razões. Mas posto que se aplique algum cuidado em fazer as crianças dos dois sexos próprias para os deveres da sociedade e para os deveres civis, nenhum cuidado se dispende em apropria-las aos seus futuros papéis de chefes de família. Enquanto se vê que é necessária uma laboriosa preparação no intuito de se auxiliar a ganhar a vida, julga-se que a maneira de educar as crianças não precisa de preparação de espécie alguma. Enquanto um rapaz gasta muitos anos na aquisição de conhecimentos cujo valor principal é torna-lo «um perfeito cavalheiro», e enquanto uma menina dispende muitos anos nas conquistas de prendas que a habilitem para os saraus, nem uma hora dispende qualquer deles em se preparar para a mais grave de todas as responsabilidades - o governo de uma família. Será porque esta responsabilidade terá apenas uma contingencia remota? Bem pelo contrário, ela sucede nove vezes em dez. Será por ser muito fácil o seu cumprimento? De certo que não; é a mais difícil de todas as funções que um homem tem a executar. Será porque os deveres da família devem ser entregues a instrução própria, independente? Não: não só tal necessidade não é reconhecida, mas a complexidade do assunto faz com que ele seja aquele com que menos se pode contar para fazer a sua própria instrução. Não se pode apresentar razão alguma para que a Arte de Educação seja posta fora de um plano geral dos estudos. Quer consideremos a própria felicidade dos pais, quer os caráteres e as vidas dos filhos ou dos seus remotos descendentes, temos de admitir que o conhecimento dos verdadeiros métodos de cultura física, intelectual e moral é um conhecimento de extrema importância. Este assunto deveria ser o fim de um curso de instrução para ambos os sexos. Como a madureza física é caracterizada pela aptidão para produzir os filhos, assim a madureza mental é caracterizada pela aptidão de os educar. O assunto que compreende todos os outros assuntos, e portanto, o assunto em que domina a educação, é a Teoria e Pratica da Educação. Faltando esta preparação, a direção das crianças, e, mais especialmente, a educação moral das crianças é lamentavelmente má. Os pais não se importam com esta matéria, ou, quando muito, chegam a conclusões grosseiras e inconvenientes. Na maior parte dos casos, e especialmente quanto às mães, o procedimento adotado em qualquer ocasião é aquele que ocorre no momento; não é aconselhado pela convicção racional de fazer a felicidade dos filhos, mas pela mera expressão dos sentimentos maternos dominantes, bons ou maus, variando de hora em hora, como variam esses sentimentos., Se os ditames da paixão tem por suplemento qualquer doutrina ou quaisquer métodos definidos, são doutrinas e métodos oriundos do passado, ou sugestões das reminiscências da infância, contos de amas e criadas - métodos caracterizados não pela ilustração, mas pela ignorância da época. Comentando o estado caótico da opinião e da pratica relativa ao governo da família, escreve Richter o seguinte: « Se as variações secretas de uma grande classe de pais fossem postas à luz, dispostas como plano de estudos catalogados para uma educação moral, elas formariam qualquer coisa parecida com isto: - Na primeira hora a moral pura deve ser ensinada a criança por mim ou pelo tutor; na segunda à moralidade complexa, isto é aquela que deve ser executada para nosso próprio interesse; na terceira, pois tu não vês que o teu pai faz assim e assado? - na quarta, tu és ainda uma criança e isto é só próprio das pessoas grandes; na quinta, o essencial é que tu ganhes sempre no mundo e venhas a ser alguma coisa no estado; na sexta, não é o temporário, mas o eterno aquilo que marca o valor do homem; na sétima, portanto deves ser bondoso e sofreras injustiças; na oitava, mas se te atacarem defende-te valentemente; na nona, não faças barulho, querido filho; na decima, um rapaz não deve também estar assim calado; na undécima, deves primeiro que tudo obedecer a teus pais; na duodécima, e educar-te a ti mesmo. Assim o pai, de hora em hora, muda de princípios, patenteando o quanto eles têm de insustentável e de incompleto. Quanto à sua mulher, nem se parece com ele, nem com aquele arlequim que aparece na cena com um maço de papeis debaixo do braço, e que perguntando-se lhe o que ele tinha debaixo do braço direito, respondia - são ordens; e o que tinha debaixo do braço esquerdo - são contraordens. A mãe pode ser, com muito mais, justiça, comparada ao gigante Briareo, que tinha cem braços, e com um maço de papeis debaixo de cada um deles». Este estado de coisas não está para ser alterado brevemente. Ainda se hão de passar muitas gerações antes que se possa esperar uma melhora neste estado de coisas. Como as constituições políticas, os sistemas educadores não se fazem, mas surgem no momento próprio, e o seu desenvolvimento é insensível em pequenos períodos. Mas por mais vagarosa que seja qualquer evolução é necessário para que ela se dê empregar-lhe os meios; e entre esses meios há a discussão. Não somos daqueles que creem no dogma de Lord Palmerston que afirma que «as crianças nascem boas». Em geral, o dogma oposto, insustentável como é, parece, ainda assim, menos afastado da verdade. Não concordamos também com aqueles que pensam que, por uma disciplina hábil, as crianças podem vir a ser completamente o que deveriam ser. Bem pelo contrário, ficamos na opinião de que embora as imperfeições da natureza possam ser diminuídas por uma educação sabia, essas imperfeições não podem ser por ela destruídas. A noção de que um perfeito sistema de educação pode produzir uma humanidade ideal, anda muito próxima daquela que aparece nos poemas de Sheley, que entende que se o gênero humano abolisse todas as velhas instituições e todos os velhos prejuízos, todos os males do mundo desapareciam por uma vez; qualquer destas noções não pode ser aceita por todo aquele que estudar desapaixonadamente as coisas humanas. Não obstante, devemos simpatizar com aqueles que alimentam tão ardentes esperanças. O entusiasmo, mesmo quando toca a raia do fanatismo, é uma força motora útil - talvez indispensável. É evidente que o homem político ardente nunca se entregaria a grandes trabalhos, nem faria tantos sacrifícios se não entendesse que as reformas que defende são coisas de grande necessidade. Sem a convicção de que a embriaguez é a origem de todos os males sociais, o apóstolo da temperança não faria tão enérgica propaganda. Em filantropia, como em todas as outras coisas, resulta uma grande vantagem da divisão do trabalho; e para que se dê esta divisão de trabalho é necessário que cada classe de filantropos esteja mais ou menos subordinada às suas funções particulares, precisando, portanto, de uma fé exagerada na sua obra. Portanto, não são prejudiciais as falsas esperanças daqueles que entendem que a educação moral e intelectual é uma panaceia; e é talvez um quinhão da ordem benéfica das coisas que a sua confiança não possa ser abalada. Mesmo que fosse verdadeiro que, por qualquer sistema de observação moral, as crianças pudessem ser educadas na forma desejada; e mesmo que todos os pais fossem iniciados em tal sistema, ainda assim muito longe estaríamos de possuir o ideal que temos em vista. Esquecem-se que a apresentação de qualquer sistema deste gênero pressupõe, quanto aos adultos, um grau de inteligência, de bondade, e de próprio exame, que nenhum deles possui. O erro em que labora todo aquele que discute as questões de disciplina doméstica consiste na imputação de todas as faltas e de todas as dificuldades aos filhos, não imputando nenhumas delas aos pais. A opinião vulgar relativa ao governo da família, bem como a que é relativa ao governo da nação, é que as virtudes estão do lado dos que governam e os vícios do lado dos governados. Fazendo obra pelas teorias educadoras, os homens e as mulheres são completamente outros quando se trata das suas relações com os filhos. Os cidadãos com que nós temos relações comerciais, a gente que nós encontramos no mundo, bem vemos que são criaturas muito imperfeitas. Nos escândalos diários, nas disputas entre amigos, nas falências, nos processos, nos relatórios da polícia nós temos todos os dias diante de nós a prova do egoísmo, da desonestidade, da brutalidade. Todavia, quando fazemos a crítica da educação infantil e disputamos sob o procedimento dos adolescentes, nós tomamos habitualmente como coisa assente que as culposas pessoas que as educam estão isentas de qualquer defeito moral na maneira como tratam os rapazes ou as raparigas! Isto está tão longe da verdade que nós não hesitamos em censurar o procedimento paterno na maior parte das desordens domésticas, geralmente, atribuídas a perniciosidade dos filhos. Não fazemos esta afirmação com respeito a um pequeno e simpático grupo, a que, segundo esperamos, pertence a maioria dos nossos leitores, mas afirmamos com respeito à generalidade. Que espécie de cultura moral se deve esperar de uma mãe que, umas vezes atrás de outras, asperamente sacode o filho que não quer mamar, como nós tantas vezes temos visto? Que senso de justiça pode igualmente ensinar um pai que, ao ouvir gritar o filho porque entalou um dedo entre uma porta, começa por lhe bater em vez de lhe dar socorro? Pois deste fato e destes pais fomos nós informados por testemunhas presenciais. Ou, para lançarmos mão de um exemplo mais forte, também garantido por uma testemunha direta - a que sistema de educação está sujeita uma criança que entra em casa com uma coxa quebrada e que é recebida com castigo? Verdade é que isto são exemplos extremos - exemplos que mostram no gênero humano aquele instinto cego que impele os brutos a destruir os filhos quando são débeis ou defeituosos. Mas por mais extremos que eles sejam, inquestionavelmente representam os sentimentos e o proceder que diariamente se observa em muitas famílias. Quem não tem visto repetidas vezes as amas ou os pais baterem nas crianças por causa da sua rabugice, muitas vezes proveniente de qualquer desarranjo corpóreo? Quem, ao ver levantar o filho que caiu, não tem muitas vezes ouvido chamar-lhe - estupido! isto pela maneira mais brutal e mais severa, com um tom de irascibilidade prometedor de intermináveis repreensões no futuro? Na severidade do tom com que os pais ordenam aos filhos que estejam calados, não se patenteia a sua nenhuma vontade em os acompanhar nos seus sentimentos? Não são as constantes e inúteis ameaças, dirigidas ás crianças - as ordens para que elas estejam sentadas, a que as crianças espertas não podem obedecer sem sofrerem uma grande excitação nervosa, as ordens para não olharem pelas janelas quando viajam num caminho de ferro, que é para uma criança de alguma inteligência uma privação seria - não são tais ameaças, perguntamos nós, sinais de uma terrível falta de simpatia? A verdade é que as dificuldades da educação moral são necessariamente de uma dupla origem - resultam necessariamente das faltas dos pais e dos filhos. Se a transmissão hereditária é uma lei da natureza, como o sabem todos os naturalistas, e como as nossas observações diárias e os provérbios correntes o admitem, então, na média dos casos, os defeitos das crianças são espelhos dos defeitos dos pais; - na média dos casos, dizemos nós, porque complicados como são os resultados pelas feições transmitidas dos mais remotos antepassados, a transmissão não é especial, mas somente geral. E se na média dos casos, existe esta herança dos defeitos, então as más paixões que os pais têm a combater nos filhos, supõem neles mesmos também paixões ruins: estarão talvez ocultas à vista do público ou talvez mascaradas com outros sentimentos, mas é certo que eles existem. É, portanto, evidente que a prática geral de qualquer sistema ideal de disciplina não se pode de modo algum esperar: os pais não são suficientemente bons para tal. Demais disso, mesmo que existissem métodos por meio dos quais o fim desejado fosse por uma vez alcançado, e mesmo que os pais e as mães tivessem bastante previdência, simpatia, e força de vontade para empregarem aturadamente esses métodos, ainda se podia contestar a sua utilidade em reformar o governo da família mais depressa do que se reformam as outras coisas. Que desejamos nós obter? Não tem a educação, de qualquer espécie que seja, por fim próximo preparar a criança para os negócios da vida - produzir um cidadão que, enquanto proceder bem, esteja habilitado a seguir a sua carreira pelo mundo? E o seguir o seu caminho pelo mundo - (e por isto não queremos dizer a aquisição da riqueza, mas dos fundos necessários para educar a sua família) não implica uma certa apropriação para esse mundo tal como ele se acha agora? E se por qualquer sistema de cultura se pudesse produzir um ser humano ideal, seria fora de dúvida que ele fosse próprio para o mundo tal como ele é agora? Não devemos nós, pelo contrário, suspeitar que o seu perfeito espírito de justiça e o seu elevadíssimo proceder não lhe tornariam a vida intolerável, ou mesmo impossível? E por mais admirável que esse resultado pudesse ser considerado individualmente, não seria ele defeituoso com relação à sociedade e à posteridade? Ha razão de sobra para pensar que, quer na nação, quer na família, o espírito do governo é, no todo, tão bom como o estado geral da natureza humana o permite. Quer num, quer no outro caso nós podemos asseverar que o caráter médio do povo determina a qualidade da crítica exercida. Em ambos os casos se pode concluir que o aperfeiçoamento do caráter médio leva ao aperfeiçoamento do sistema; e que é impossível melhorar o sistema sem que o caráter médio seja primeiramente melhorado, a não ser que se espere ver nascer o mal em vez do bem. O grau de aspereza que as crianças sofrem dos pais e dos professores, pode ser considerado como preparativo da aspereza maior que eles encontrarão no átrio do mundo. E podem retorquir-nos que se os pais e professores tratassem as crianças com perfeita equidade e plena simpatia, isso apenas tornaria mais intensos os sofrimentos que o egoísmo dos homens mais tarde lhes infligiria. (Desta natureza é a desculpa que muita gente dá ao áspero tratamento sofrido pelos rapazes nas nossas escolas públicas, onde, como se diz, eles entram num pequeno mundo cujas durezas os preparam para as do mundo real. Devemos admitir que esta desculpa tem uma certa força, mas afinal é uma desculpa insuficiente. Porque as disciplinas domésticas e escolares, embora não fossem muito melhores do que a disciplina da vida adulta, deviam ser alguma coisa melhores: mas a disciplina que os rapazes encontram em Eton, Winchester, Harrow, etc. é pior do que a da vida adulta mais injusta e cruel. Em vez de ser um auxílio para o progresso humano, como toda a educação deve ser, a educação das nossas escolas públicas, para acostumar os rapazes a uma forma despótica de governo e a um trato regulado pela força bruta, tende a faze-los próprios para um estado mais baixo da sociedade do que aquele que existe. E, principalmente, como as nossas câmaras legislativas são compostas em grande parte de homens que pertenceram a essas escolas, segue-se que esta influência barbara é um embaraço para o progresso da nação) - Mas isto não provará demais? - perguntará alguém. Se nenhum sistema de educação moral pode fazer imediatamente das crianças aquilo que elas deveriam ser; se, mesmo que houvesse um sistema que pudesse produzir tal resultado os pais existentes são demasiado imperfeitos para poderem pô-lo em prática; e se, embora esse sistema fosse bem sucedido os seus resultados seriam desastrosamente desarmônicos com o estado presente da sociedade, não se seguirá que nem se deve praticar, nem se pode praticar a reforma do sistema atualmente em uso? Não. O que simplesmente se depreende do que deixamos dito é que a reforma do governo doméstico só pode ser operada, pari passu, com as outras reformas. O que simplesmente se segue é que os métodos disciplinares não podem, nem devem ser melhorados senão por períodos. O que simplesmente se segue é que os ditames da razão abstrata, na pratica, devem estar subordinados ao estado presente da natureza humana - às imperfeições das crianças, dos pais e da sociedade; e só podem ser melhor cumpridos à medida que se vai tornando melhor o caráter geral. - Em caso algum, portanto, pode acrescentar o nosso critico, se poderá fixar um padrão ideal de disciplina familiar. Não pode haver vantagem alguma em fazer e recomendar métodos que são mais adiantados do que a época. Defendemos ainda o contrário. Precisamente, como sucede no governo político, embora a plena justiça não seja por enquanto exequível, é necessário saber-se em que consiste o direito, de modo que as reformas que intentarmos se aproximem do direito em vez de se afastarem dele, assim, no governo doméstico, devemos ter em vista um ideal para o qual devemos ir caminhando pouco a pouco. Não devemos temer consequências desastrosas na sustentação de um ideal. Geralmente o espírito conservador constitucional da humanidade é demasiado forte para prevenir qualquer transformação rápida. As coisas estão organizadas de tal forma que, embora os homens caminhem para o nível de uma crença mais alta, eles nunca a podem alcançar; nominalmente podem possui-la, mas não virtualmente. E mesmo que se chegasse a reconhecer a verdade, os obstáculos à sua execução são tão persistentes que fariam perder a paciência dos filantropos e até dos filósofos. Podemos, portanto, ficar certos de que as dificuldades na busca de um sistema de direção infantil lançarão sempre uma oposição proporcional aos esforços com que se tentará realizá-lo. Com estas explicações preliminares, iremos agora fazer algumas considerações sobre os verdadeiros fins e métodos da educação moral. Depois ele algumas páginas dedicadas ao estabelecimento dos princípios gerais, para as quais fazemos apelo a paciência do leitor, chegaremos por meio de exemplificações a tornar patentes os verdadeiros métodos do proceder paterno na ocorrência, hora a hora, das dificuldades do governo da família. Quando uma criança cai, ou fere a cabeça contra uma mesa sofre uma dor, cuja lembrança a faz ser mais cautelosa; e pela repetição de tais experiencias vai-se oportunamente disciplinando na ordem dos seus movimentos. Se tocar na barra incandescente do fogão, se chegar com a mão à luz de uma vela ou derramar água a ferver em qualquer parte da pele, a queimadura resultante é para ela uma lição que dificilmente esquecerá. A impressão assim produzida por dois ou três casos deste gênero é tão profunda, que nenhuma persuasão poderá daí em diante fazer-lhe esquecer as leis da sua. constituição. Neste caso a Natureza ensina-nos pela maneira mais simples, a verdadeira teoria e pratica da disciplino moral, teoria e pratica que, embora muitos julguem superficialmente que são em geral seguidas, nós encontramos, no exame, ser tal afirmação profundamente diferente da verdade. Observe-se em primeiro lugar que para os incômodos do corpo, e as dores que lhes são inerentes, nós reduzimos o nosso erro e as suas consequências às formas mais simples. Posto que, segundo a acepção vulgar, o bem e o mal sejam termos dificilmente aplicáveis às ações que não tenham efeitos diretos sobre o corpo, aquele que prestar atenção ao assunto verá que estas ações podem ser apreciadas por estas denominações como nenhumas outras. De qualquer hipótese que se parta, todas as teorias de moralidade concordam em que são boas todas as ações de que resulte mediata ou imediatamente qualquer benefício; em quanto que são más todas aquelas cujos resultados totais, imediatos ou remotos, sejam prejudiciais. O padrão último pelo qual os homens julgam o procedimento dos outros é a felicidade ou a miséria que desse procedimento pode resultar. Consideramos a embriaguez como uma coisa má por causa da corrupção física e dos males morais que advém ao ébrio e aqueles que dele dependem. Se o roubo desse prazer ao ladrão e ao roubado simultaneamente, nós não o contaríamos no catalogo dos crimes. Se concebêssemos que as ações boas iam multiplicar os sofrimentos humanos - condená-las-íamos - não as poderíamos considerar boas. Basta lermos o primeiro jornal que apareça, ou ouvirmos qualquer conversação sobre os assuntos sociais, para vermos que as leis do parlamento, os movimentos políticos, as agitações filantrópicas, bem como as ações individuais, são julgadas pela cópia de prazeres ou de desgostos que delas podem resultar para a humanidade. E se na análise de todas as ideias secundarias e derivadas, nós vemos que são nossas pedras de toque o bem e o mal, não podemos deixar de classificar o estado do corpo em bom e mau, segundo o resultado das nossas ações é benéfico ou prejudicial. Note-se, em segundo lugar, o gênero de castigo com que essas transgressões das leis físicas são prevenidas. Chamamos-lhes castigos por falta de termo mais próprio, porque não são castigos no sentido literal da palavra. Não são inflições de penas artificiais e desnecessárias, mas simplesmente resistências benéficas a ações que estão em oposição completa com o bem-estar do corpo - resistências sem as quais a vida seda rapidamente aniquilada pelas injurias físicas. A particularidade destes castigos, se assim os podemos chamar, consiste em que são simplesmente consequências inevitáveis das ações que os precederam; são nada mais que reações inevitáveis das ações das crianças. Estabeleça-se também no espírito que estas reações são proporcionadas às transgressões feitas às leis físicas. Um acidente leve produz um leve castigo; um acidente mais sério produz uma pena mais severa. Não é regular que um travesso que cair no degrau da porta sofra mais do que é necessário para que seja mais cauteloso do que realmente precisa de ser. Mas deverá aprender pela experiencia diária que o ensina a conhecer quais são os erros maiores e quais os menores e, consequentemente, a precaver-se contra eles. Notem também, por último, que estas reações naturais que se seguem às más ações das crianças, são constantes, diretas, sem hesitação e sem se poderem evitar. Nada de ameaças; mas uma execução silenciosa e rigorosa. Se uma criança espetar um alfinete num dedo, magoar-se-á. Se repetir a operação, nova dor se seguirá a ela: e assim perpetuamente. Em todas as suas relações com a Natureza inorgânica ela encontrará esta persistência nunca desmentida, que não ouve escusas, e da qual não há apelação possível; de modo que a criança logo que reconheça esta disciplina severa, embora beneficente, tornar-se-á extremamente cuidadosa em não a transgredir. Estas verdades gerais aparecem-nos ainda mais significativas, quando nos lembramos que elas persistem durante toda a vida adulta, do mesmo modo que durante toda, a infância. É pela ciência das consequências naturais, experimentalmente adquirida, que toda a gente suspende a sua marcha quando vai por caminho errado. Depois de terminada a educação doméstica, e quando já não há pais e professores a proibirem esta ou aquela ordem de procedimento, entra em ação uma disciplina semelhante àquela que ensina às crianças a guiarem-se a si próprias. Se homem novo que entra nos negócios da vida perde o seu tempo na ociosidade, ou cumpre vagarosamente e sem perícia os deveres que estão a seu cargo, receberá pouco a pouco o castigo natural; arruína-se e sofrerá dentro de pouco tempo os males de uma pobreza relativa. Quem não é pontual, quem falta sempre às horas aprazadas dos negócios ou das distrações, sofre continuamente as inconveniências consequentes, as perdas, e as privações. O negociante que carrega uma taxa muito alta de lucro, perde os seus fregueses, encontrando assim uma oposição ao seu amor do lucro. A clientela que vai diminuindo ensina o médico negligente a prestar mais cuidados aos enfermos que lhe restam. O credor demasiado crédulo e o especulador demasiado esperançoso, aprenderão pelas dificuldades que a sua imprudência origina, a ser mais cautelosos nos seus contratos. E o mesmo sucede na vida toda. No ditado, tantas vezes repetido a proposito destes casos, «Criança queimada teme o fogo» nós vemos que não só a analogia entre esta disciplina social e a disciplina primeira da Natureza é reconhecido universalmente; mas também ficamos implicitamente convencidos de que esta disciplino é do gênero mais eficaz. Realmente, esta convicção é mais do que implícita, é distintamente estabelecida. Toda a gente tem ouvido dizer que «a experiencia custa caro» e que por ela é que os homens abandonam qualquer gênero de proceder mau ou tolo que até então tenham adotado. Toda a gente tem ouvido, quando se faz a crítica acerca da ação de prodigalidade ou de inflexão, a observação de que, para os que cometem tais delitos todos os conselhos foram inúteis e que só a «amarga experiência pôde produzir algum efeito; só o sofrimento das consequências inevitáveis. E se outra prova é necessária de que a reação natural é não só a penalidade mais eficaz, mas que não pode ser substituída por nenhuma outra de invenção humana, temo-la no notório mau êxito de vários sistemas penais. Dos muitos métodos de disciplina criminal que tem sido proposto e legalmente postos em execução, nenhum responde às expectativas dos seus defensores. Os castigos artificiais têm obstado a execução de muitas reformas e em muitos casos têm aumentado a criminalidade. As únicas reformas de bom exilo tem sido aquelas que, de iniciativa particular, mais se aproximam pelo seu regime do método da Natureza - que pouco mais fazem do que ministrar as consequências naturais do procedimento criminoso: diminuindo a liberdade de ação do criminoso tanto quanto é necessário para segurança da sociedade, e obrigando-o a ganhar o seu sustento sob esta restrição. Assim vemos nós, que a disciplina pela qual a criança é ensinada a regular os seus movimentos é a disciplina por que se conserva em ordem a grande massa humana, e por que mais ou menos se aperfeiçoa, e que a disciplina inventada pelos homens para os piores deles não prova bem quando diverge da disciplina ordenada por Deus, e que aquela só começa a ter bom êxito quando se aproxima desta. Não temos nós aqui, pois, o princípio diretor da educação moral? Não devemos nós concluir que o sistema tão beneficente nos seus resultados durante a infância e a idade madura deve ser aplicado durante a mocidade? Poderá alguém supor que um sistema que tão bem responde a primeira e a última divisão da vida, não corresponderá à divisão intermediaria? Não é claro que como «ministros e interpretes da Natureza» pertence aos pais vigiarem por que os filhos experimentem as verdadeiras consequências do seu procedimento - as reações naturais, sem as salvarem delas, sem as aumentar, sem as substituir por outras quaisquer consequências artificiais? Nenhum leitor sem prejuízos hesitará no seu aplauso a este asserto. Provavelmente, com tudo, muitas pessoas contestarão dizendo que é essa já a opinião de muitos pais; que os castigos que dão aos filhos são, na maioria dos casos, as consequências lógicas do seu mau procedimento; que a cólera paterna manifestada por palavras duras e por ações, é a consequência das transgressões dos filhos - e, que pelos sofrimentos físicos ou morais que eles experimentam, sujeitam-se a reação natural das suas loucuras. Entre muitos erros, esta asserção contém algumas verdades. É inquestionável que o mau procedimento da mocidade ocasiona os desgostos dos pais e das mães, e que a sua manifestação é uma pena imposta a esse mau procedimento. Os ralhos, as ameaças, as pancadas, com que os pais encolerizados castigam os filhos, são indubitavelmente resultados das ofensas que eles recebem, e assim são até certo ponto consideradas como reações naturais das suas más ações. Não pretendemos afirmar que com este proceder eles não sejam relativamente justos - justos, isto é, em relação às crianças que não podem ser criticadas por adultos que também o não foram; e justos em relação ao estado da sociedade na qual esses adultos sem educação constituem a massa populosa. Como já dissemos, os sistemas de educação, bem como os sistemas políticos e outras instituições, são geralmente tão bons quanto o permite o estado da natureza humana. As crianças bárbaras, filhas de pais bárbaros, tem de ser naturalmente reprimidas por métodos bárbaros, empregados espontaneamente pelos pais, enquanto a sujeição a esses métodos bárbaros for a melhor preparação que os filhos podem ter para a sociedade bárbara em que devem viver. Inversamente, os membros civilizados de uma sociedade civilizada devem manifestar espontaneamente o seu desgosto pelos meios menos violentos, usando espontaneamente as medidas mais brandas, medidas ainda assim demasiado fortes para os seus filhos, dotados de melhor caráter. Assim é puramente verdadeiro que, no tocante à expressão dos sentimentos paternos, o princípio da reação natural é sempre mais ou menos seguido. O sistema do governo doméstico gravita para a sua melhor forma. Mas observemos agora dois fatos importantes. O primeiro é que, nas épocas de transição rápida como a atual, que patenteiam uma continua batalha entre as novas e as velhas teorias, entre as novas e velhas usanças, os métodos de educação em uso podem ser considerados como em completa desarmonia com as épocas. Por deferência para com dogmas, que forem julgados bons nos séculos que os usaram, muitos pais infligem castigos que violentam os seus próprios sentimentos, e provocam assim para os seus filhos reações não naturais; outros pais, entusiastas nas suas esperanças pela perfeição imediata, caem no extremo oposto. O segundo fato é que a disciplina de maior valor não é a experiencia da aprovação ou da desaprovação paterna; mas a experiencia daqueles resultados que dimanam do procedimento dos filhos, logo que não estejam sujeitos à opinião ou a interferência paterna. As consequências verdadeiramente instrutivas e salutares não são as infligidas pelos pais quando investem o papel de representarem a Natureza; mas aquele que inflige a própria Natureza. Esforçamo-nos por tornar clara esta distinção por alguns exemplos, que, ao mesmo tempo que evidenciam o que nós entendemos por naturais reações, por contraposição com as reações artificiais, fornecerão algumas sugestões uteis. Em todas as famílias onde há crianças dão-se diariamente casos que as mães e as criadas chamam casos de desordem. Uma criança tira os brinquedos das caixas e deixa-os sobre o sobrado? Ou uma braçada de flores, trazidas do passeio matutino, é espalhada por cima das mesas e das cadeiras? Ou uma menina, para fazer vestidos para as bonecas, enxameia a sala com farrapos? Na maior parte dos casos o trabalho de apagar esta desordem recai sobre qualquer pessoa, menos sobre aquela que a provocou. Se o caso sucede no quarto das crianças, a ama depois de muito resmungar contra « aquelas criaturas maçadoras empreende a tarefa de pôr aquilo em ordem; se o caso sucede nas salas o trabalho recai quer sobre os irmãos mais velhos, quer sobre os criados; o transgressor quando muito sofre as exprobrações dos pais. Nestes casos muito simples, todavia, há muitos pais suficientemente sábios para adotarem, com mais ou menos insistência, o curso normal, mandando a criança apanhar os brinquedos ou os farrapos. O trabalho de pôr as coisas em ordem, é a consequência de as ter posto em desordem. Todo o negociante nos seus trabalhos, toda a dona de casa no seu governo doméstico, tem a experiencia diária deste fato. E se a educação é uma preparação para os negócios da vida, todas as crianças devem, desde os primeiros anos, ter a experiencia diária deste fato. Se o castigo natural encontrar um procedimento refratário (o que talvez suceda quando é mau o sistema de disciplina moral primeiramente adotado), então o melhor que há a fazer é deixar a criança sofrer a reação ulterior, causada pela sua desobediência. Recusando ou evitando apanhar e pôr em ordem as coisas que espalhou, e tendo dado a outrem o trabalho de fazer aquilo que lhe pertencia fazer, a criança, nas ocasiões subsequentes, não deve ter ao seu alcance os meios de causar este desarranjo. Quando de futuro pedir a caixa dos brinquedos, a mãe deve responder-lhe: «A última vez que estiveste com eles, espalhaste-os pelo chão, e Joana teve de os apanhar. Ora Joana tem muito que fazer para andar todos os dias a apanhar as coisas que tu espalhas; e eu também não posso ter esse trabalho. De modo que, como tu não queres arrumar os teus brinquedos depois de haveres brincado com eles, não os posso entregar». Isto é obviamente uma consequência natural, nem aumentada, nem diminuída; e que assim tem de ser considerada pela criança. O castigo aparece, portanto, precisamente na ocasião em que ela mais duramente o sente. O novo desejo é combatido exatamente no momento em que ela pensava que seria satisfeito e a forte impressão assim recebida raras vezes deixará de produzir efeito no seu futuro proceder, efeito que, pela sua frequente repetição, a obrigará a fazer tudo quanto for possível para se corrigir dessa falta. Acrescente-se a isto que, por este método, a criança recebe bem cedo uma lição que nunca deve receber tarde e é - que neste mundo, os nossos prazeres só se podem obter à custa de trabalho. Tomemos outro exemplo. Não há muito tempo que frequentemente ouvíamos repreender uma pequenita, porque raras vezes se achava pronta para sair ao seu passeio diário. De caráter muito vivo, com uma forte tendência para se preocupar com as coisas do momento, Constância nunca pensava em se arranjar antes que todas as outras estivessem prontas. A governante e as outras crianças tinham quase sempre de esperar; e da parte da mãe também invariavelmente vinha a mesma repreensão. Apesar deste sistema de correção não dar resultado algum, a mãe nunca se lembrou de deixar Constância, sujeita à correção natural. Nem mesmo a quis empregar quando lhe foi lembrada. No mundo, a demora traz consigo sempre a perda de qualquer vantagem que por outra forma seria conquistada: ou partiu o comboio, ou o paquete está a levantar ferro, ou já estão vendidas as melhores coisas do mercado, ou então já estão ocupados os melhores lugares na sala do espetáculo. E toda a gente pode ver, nos fatos diariamente sucedidos, que são as prováveis privações o que nos manda não ser dos últimos. Não é claro o exemplo? As privações prováveis não são as que devem corrigir o procedimento das crianças? Se Constância não estiver pronta no tempo marcado, a consequência natural é deixa-la em casa, perdendo o passeio. E depois de ter uma ou duas vezes ficado em casa, enquanto as outras se divertem pelos campos, depois de ter sentido que a perda de tão apreciável distração foi somente devida à falta de prontidão, há todas as probabilidades de que se corrigirá. Em todos os casos, esta medida será muito mais eficaz do que as perpétuas repreensões que só produzem a insensibilidade. Quando as crianças, com maior descuido do que o usual nessas idades, quebram ou perdem as coisas que se lhes dão, a correção natural - a correção que até as pessoas adultas torna mais cuidadosas - é a falta que resulta dessa incúria. O desarranjo, ocasionado pela perda ou pelo estrago dos objetos, e as despesas que implica a sua substituição são experiencias pelas quais toda a gente se disciplina nestas matérias; e as experiencias das crianças devem aproximar-se o mais possível daquelas. Não nos referimos ao período primitivo em que as crianças fazem pedaços os seus brinquedos para conhecerem as suas propriedades físicas, e na qual não podem ser compreendidos os resultados dos descuidos; mas a um período posterior, quando já são conhecidos os significados e as vantagens das coisas. Quando um rapaz já tem a idade suficiente para possuir um canivete e se serve dele tão desastrosamente que lhe quebra a folha, ou o deixa sobre a erva perto de qualquer sebe onde esteve a cortar uma vergasta, um pai pouco inteligente ou muito indulgente geralmente compra-lhe outro, não vendo que, fazendo isto, perde uma lição valiosa. Neste caso, o pai deve mostrar ao filho que os canivetes custam dinheiro e que para se ganhar dinheiro é necessário trabalhar; que ele não pode estar a comprar canivetes para substituir aqueles que o filho perde ou quebra, e que, até dar provas de ser mais cauteloso, ele não lhe poderá reparar aquela perda. Uma tal disciplina servirá para corrigir a prodigalidade. Estes exemplos familiares, escolhidos em virtude da simplicidade com que esclarecem o ponto que estamos tratando, devem ter feito clara a toda a gente a distinção entre as penalidades naturais que nós entendemos que são as eficazes e as artificiais que geralmente as substituem. Antes de passarmos a expor mais altas e mais sutis aplicações do princípio em questão, mostremos as suas muitas e grandes superioridades sobre o princípio, ou antes o costume, empregado por muitas famílias. Uma destas superioridades é que a sua adoção dá origem a justas concepções de causa e efeito, que pelas experiencias frequentes e persistentes se tornam definitivas e completas. O bom procedimento na vida é muito melhor garantido quando se compreendem as boas e as más consequências das seções, do que quando elas se fundamentam exclusivamente na autoridade. A criança que vir que a desordem traz consigo o trabalho de pôr as coisas em ordem, ou que perca um prazer por causa de demora, ou cuja incúria é seguida por qualquer privação valiosa, não só sofre profundamente a consequência do seu procedimento, mas adquire um conhecimento de causalidade; e ambas as coisas precisamente proporcionadas àquelas que ela vai encontrar na vida adulta. Enquanto que a criança que em tais casos recebe uma censura, ou qualquer penalidade factícia, não só experimenta uma consequência com que geralmente pouco se importa, mas também perde aquela instrução relativa às naturezas essenciais de um bom ou mau proceder, que ela adquiriria por outra forma. É um vício do sistema comum das penas e das gratificações artificiais, há muito tempo visto pelas pessoas ilustradas, a substituição dos resultados do mau comportamento por certas tarefas ou castigos, produzindo um critério moral radicalmente mau. Tendo, durante toda a infância e toda a adolescência, considerado sempre o desagrado dos pais ou dos tutores como o principal resultado das seções proibidas, a mocidade adquire uma determinada associação de ideias entre certas ações e certos desgostos, relacionados como causa e efeito. Daqui segue-se que quando os pais e tutores abdicam a sua autoridade, e deixa de ser temido o seu desgosto, as restrições às ações proibidas ficam em grande parte postas de parte: as verdadeiras restrições, as reações naturais ainda estão por aprender e serão ensinadas por uma dolorosa experiencia. Como escreve um autor que teve pessoal conhecimento deste tacanho sistema: «os rapazes logo que se veem livres das escolas, mormente aqueles cujos pais deixaram de pôr em pratica a sua influência, precipitam-se em todas as extravagancias; desconhecem toda a regra para as suas ações - e até que sejam severamente disciplinados pelo mundo - ficam sendo perigosíssimos membros da sociedade.» Outra grande vantagem desta disciplina natural é que é uma disciplina de pura justiça, e assim tem de ser considerada pelas crianças. Aquele que sofreu apenas o mal que na ordem da natureza resulta do seu mau comportamento, considera-se muito menos castigado do que aquele que sofrer qualquer castigo artificialmente aplicado; e isto tanto é pensado pelas crianças, como pelos homens. Tome-se o exemplo de um rapaz que é habitualmente negligente com o seu vestuário, que salta por cima dos silvados sem cuidado, ou que não se importa com a lama. Se lhe baterem ou o recolherem ao seu quarto entenderá que foi maltratado e fica mais disposto a ruminar o castigo recebido do que a arrepender-se das suas transgressões. Mas suponhamos que o obrigam a emendar quanto possível o mal que fez - a limpar a lama que deixou cair na roupa ou a coser o rasgão da melhor maneira que puder. Não verá ele que o mal suportado foi causado por ele próprio? Ao mesmo tempo que estiver cumprindo a sua pena não verá ele constantemente o laço existente entre aquele efeito e a sua causa? E, apesar da sua irritação, não reconhecerá mais ou menos claramente a justiça desta ordem de coisas? Se muitas lições deste gênero não produzirem emenda - se as roupas novas se estragarem muito depressa - se o pai, adaptando o mesmo sistema de disciplina, não quiser gastar dinheiro em roupas novas enquanto não passar o espaço de tempo ordinário - e se no entanto aparecer a oportunidade de que, não tendo roupa decente com que sair, o rapaz for privado de acompanhar o resto de família aos passeios dos dias feriados e de festa, é evidente que por todo o tempo que sofrer um tal castigo, ele não pode deixar de traçar a ordem da causalidade, e ver que a sua origem foi o seu próprio desmazelo. E vendo isto, não terá ideia de qualquer injustiça, sucedendo talvez o contrário, quando não lhe parecer obvia a conexão entre a transgressão e a sua faculdade. Ha mais ainda, o caráter dos pais e dos filhos está muito menos sujeito a perturbar-se sob este sistema do que sob o sistema ordinário. Quando em vez de deixarem os filhos sofrer as consequências que naturalmente se seguem às suas más ações, os pais lhes infligem outros castigos, dá-se um duplo erro. Obrando desta maneira multiplicam as leis da família e, identificando a sua própria supremacia e dignidade com a manutenção dessas leis, toda a transgressão é considerada como uma ofensa que lhes é feita, e uma causa de cólera da sua parte. Segue-se depois a baixeza que resulta de tomarem sob a sua responsabilidade, pelo trabalho ou por despesas, as más consequências que só deviam recair sobre aqueles que praticam o mal. O mesmo sucede com as crianças. Os castigos ocasionados pela reação necessária das coisas, infligidos por um agente impessoal, produzem uma irritação que é comparativamente curta e efêmera; enquanto que o castigo voluntariamente aplicado por um pai e, portanto, considerado como causado por ele, produz uma irritação cada vez maior e duradoura. Considerai atentamente quão desastroso seria o resultado, se este método empírico fosse aplicado desde o princípio da educação. Suponde que era possível aos pais suportarem os sofrimentos físicos em que os filhos incorrem pela sua. ignorância e incapacidade e que, enquanto sofriam essas más consequências, eles infligem aos filhos outros castigos no intuito de lhes fazerem ver a impropriedade do seu procedimento. Suponde que quando uma criança, apesar de ter sido proibida de tocar na caldeira, deixa cair água a ferver sobre um pé, a mãe pode tomar o seu lugar e receber em vez do filho a queimadura, dando-lhe pancada em compensação, e o mesmo em todos os outros casos. Estes acidentes diários não ocasionariam muito mais cólera do que agora? O mau humor não se tornará crônico de ambos os lados? todavia é precisamente uma regra igual a que se segue durante a vida. Um pai que bate no filho, que por falta de cuidado ou ruindade quebra um brinquedo da sua irmã, e que vai comprar outro brinquedo novo, faz precisamente a mesma coisa - inflige uma correção artificial ao transgressor e recebe ele mesmo a correção natural: e os seus sentimentos e os do transgressor são por igual modo exasperados. Se ele simplesmente obrigasse a fazer a restituição do objeto produziria muito menos exasperação. Se dissesse ao filho que tinha de comprar a sua custa outro brinquedo e que uma soma tinha de ser retirada da sua bolsa até refazer a quantia necessária, havia muito menor perturbação de caráter de ambos os lados; pelas privações que a falta daquela quantia lhe devia trazer, o rapaz experimentaria a consequência justa e salutar. Numa palavra, o sistema de disciplina pelas reações naturais é muito menos atentatório contra o caráter, não só porque todos o consideram como pura justiça, mas também porque ele substitui em grande parte a ação pessoal dos pais pela ação impessoal da Natureza. Daqui também se segue o manifesto corolário que, sob este sistema, as relações dos pais com os filhos, sendo mais amigáveis, são também muito mais influentes. Quer nos pais, quer nos filhos, a cólera, seja qual for a sua causa e seja qual for a forma por que ela se manifeste, é sempre prejudicial. Mas a cólera de um pai para com um filho, ou de um filho para com o pai, essa é mais que todas funesta, porque enfraquece aquele laço de simpatia que é essencial à sua direção beneficente. Pela lei da associação das ideias resulta fatalmente, nas crianças como nos velhos, que se olham sempre com desgosto as coisas que andam habitualmente unidas com sentimentos desagradáveis. Ora nos casos em que existe, originariamente, a afeição, esta diminui, ou se transforma em repugnância, segundo a quantidade de impressões desagradáveis que se recebem. A cólera dos pais, manifestada em repreensões e em castigos, não pode deixar de produzir o afastamento dos filhos, quando repetida; e o ressentimento e mau humor dos filhos não pode deixar de enfraquecer a amizade dos pais e até aniquila-la completamente. Daqui resultam muitos casos em que os pais (especialmente dá-se isto mais ainda entre irmãos, que são geralmente os encarregados de infligir os castigos) são vistos com indiferença, quando não com aversão; e igualmente os muitos casos em que as crianças são consideradas como algozes. Considerando-se, como todos devem considerar, que esta animosidade é fatal a uma cultura moral salutar, segue-se que os pais nunca empregam demasiado zelo em evitar as ocasiões de antagonismos diretos com os filhos. E, portanto, eles não podem entender que aproveitam de mais esta disciplina das consequências naturais, que, libertando-os das funções penais, previne as exasperações mutuas e os arrefecimentos de amizade. O método da cultura moral pela experiencia das reações normais, que é o método superiormente aconselhado, quer para a infância, quer para a vida adulta, é igualmente aplicável durante o período intermédio da infância a juventude. Entre as vantagens deste método vemos, pois, as seguintes: Primeira: que ele dá o conhecimento racional do bom ou mau proceder que resulta da experiencia pessoal das suas boas ou das suas más consequências. Segunda: a criança, sofrendo apenas os efeitos penosos das suas ações más, reconhece mais ou menos claramente a justiça das penalidades. Terceira: reconhecendo a justiça das penalidades, e recebendo-as fornecidas pelo trabalho das coisas e não das mãos dos indivíduos o seu caráter é menos magoado; enquanto os pais, limitando a sua ação ao dever comparativamente passivo de deixar obrar os castigos naturais, podem conservar uma relativa serenidade de espírito. Quarta: sendo por esta forma prevenidas as exasperações de uns e de outros, entre os pais e os filhos devem existir relações muito mais felizes e de muito maior influência. «Mas o que se deverá fazer nos casos de mais grave procedimento?» perguntará alguém. «Como poderá ser executado um tal programa quando, por exemplo, a criança praticar um furto? ou quando for apanhada em qualquer mentira? ou quando alguma irmã ou irmão menor for maltratado?» Antes de responder a estas perguntas, permitam-nos que examinemos alguns fatos ilustrativos. Vivendo com a família de um cunhado, um nosso amigo tornou a peito a educação de um sobrinho e de uma sobrinha, educação que ele quis praticar pelo método que acima expusemos, mais por uma simpatia natural pelos seus ditames do que pelo longo conhecimento que tivesse das suas conclusões. As crianças dentro de casa eram seus discípulos e fora dela seus companheiros. Acompanhavam-no sempre aos passeios e excursões botânicas, procurando-lhe com empenho plantas, olhando-o enquanto ele as examinava e reconhecia, e nestes e noutros entretenimentos as crianças iam gozando e instruindo-se. Numa palavra, moralmente considerado, ele fazia muito mais pelas crianças do que o pai ou a mãe. Contando-nos os resultados deste sistema forneceu-nos muitos exemplos, e entre eles o seguinte. Uma tarde, tendo necessidade de um objeto qualquer que se achava noutro ponto da casa, pediu ao sobrinho que o fosse buscar. Como o rapaz estava entretido com um divertimento, ao contrário do seu costume, mostrou uma certa má vontade, ou negou-se completamente a satisfazer o pedido, não nos recorda bem. O tio, como não perfilhava o sistema das correções, foi ele mesmo procurar o objeto de que carecia; manifestando apenas a seu modo o desgosto que uma tal recusa lhe causara. E quando mais tarde, o pequeno lhe propôs as distrações costumadas, o tio repeliu-as, manifestando assim a frieza de que naturalmente estava possuído, deixando o rapaz sentir as consequências necessárias do seu procedimento. Na manhã seguinte, a hora costumada de levantar, o nosso amigo ouviu uma voz diferente, fora da porta, e pelos passos reconheceu que era o sobrinho que lhe trazia a água quente. Olhando ao redor do quarto para ver o que mais haveria para fazer, o pequeno exclamou: Oh! o senhor não tem cá as botas, imediatamente desceu as escadas a procura-las. Por este e por outros meios, mostrou uma verdadeira penitencia pelo seu mau procedimento. Esforçava-se, por serviços não costumados, a compensar o serviço que tinha recusado. Os seus melhores sentimentos tinham alcançado uma real conquista sobre os maus e robustecido pela vitória. E, tendo sentido a falta que lhe fazia aquela amizade, maior valor lhe deu depois. Este cavalheiro, que é agora também pai, procede pela mesma forma e vê que ela corresponde perfeitamente às suas esperanças. Pratica o mesmo que praticava com os filhos do seu amigo. A noite é esperada com ansiedade por ele estar em casa; e gostam muito dos domingos principalmente, porque ele está com eles todo o dia. Assim possui todas as suas confidencias e toda a sua afeição, e sabe que uma simples aprovação ou reprovação sua lhe dá poder suficiente de governo. Se ao regressar a casa sabe que um dos seus rapazes se portou mal, procede para com ele com aquela frieza que a consciência do mau procedimento do rapaz produz, e entende que isto é castigo suficiente. A simples suspensão das caricias costumadas é origem de amarguras - produz muito mais angustia do que qualquer pancada. E o temor deste castigo puramente moral fica, disse ele, sempre presente durante a sua ausência: tanto assim que frequentemente, durante o dia os filhos perguntam a mãe como se portaram e se a sua informação ao pai será boa ou má. Recentemente o mais velho, rapazio muito vivo de cinco anos de idade, em uma dessas erupções espontâneas do espírito, vulgares nas crianças fortes, praticou diversas diabruras durante a ausência de sua mãe - cortou parte do cabelo do irmão e feriu-se a si mesmo com uma navalha, tirada do quarto de vestir do pai. Ouvindo estas ocorrências, no seu regresso, o pai não falou com o filho nessa noite, nem na manhã seguinte. Esta norma de proceder, além do imediato desgosto causado ao pequenito, produziu ainda o seguinte: quando, dias depois, a mãe se preparava para sair o filho pediu-lhe para que ela tal não fizesse, dizendo que tinha medo de praticar qualquer extravagancia na sua ausência. Aproveitamos estes fatos antes de respondermos à pergunta: «Que se deve fazer quando as crianças praticarem maiores ofensas?» no intuito de se patentearem as relações que podem e devem ser estabelecidas entre os pais e os filhos, porque da existência dessas relações depende o bom êxito do meio que deve tratar essas ofensas mais graves. Como último preliminar, somos a asseverar que o estabelecimento dessas relações deve resultar da adoção do sistema aqui advogado. Já mostramos que, deixando os filhos simplesmente entregues a experiencia das penosas reações das suas ações más, os pais evitam antagonismos e deixam de ser considerados como inimigos; mas está ainda por demonstrar que em toda a parte onde este sistema tem sido perseguido insistentemente, desde o princípio, dá origem a um sentimento de ativa amizade. Atualmente, as mães e os pais são geralmente considerados como amigos inimigos. Como as impressões das crianças são inevitavelmente determinadas pelo tratamento que recebem; e como essas impressões oscilam com esse tratamento entre promessas e contrariedades, entre afagos e ralhos, entre mimos e castigos, necessária mente os filhos adquirem opiniões diversas sobre o caráter dos pais. Ordinariamente a mãe entende que é bastante dizer ao filho que ela é o seu melhor amigo, e concluindo que ele deve acreditar nela, termina por lhe dizer: « É tudo para teu bem ». « Eu sei melhor do que tu o que te convém fazer». Não tens idade bastante para compreender isto agora, mas quando cresceres hás de agradecer-me por eu ter obrado como obrei». Estas e outras dissertações idênticas repetem-se todos os dias. No entanto o rapaz vai diariamente sofrendo castigos reais; a todos os momentos lhe proíbem que faça isto e aquilo que ele desejava fazer. As palavras dizem-lhe que tudo aquilo tem por alvo a sua felicidade; mas as ações que as acompanham causam-lhe sempre maior ou menor desgosto. Como é incompetente para perceber que futuro tem a mãe em vista, ou como é que tal tratamento pode conduzir à felicidade do futuro, ele julga pelos resultados que experimenta; e vendo que tais resultados nada tem de agradável, duvida de tais profissões de amizade. E não será loucura esperar outro resultado qualquer? A criança não tem de formar o seu raciocínio pela evidência que adquiriu? e essa evidência não parece dar força a essa conclusão? A mãe no lugar do filho teria raciocinado da mesma maneira. Se entre as pessoas das suas relações encontrar alguma que esteja constantemente a contrariar os seus desejos, a fazer-lhe ásperas censuras, a infligir-lhe a todos os momentos repreensões, pouco caso faria de qualquer profissão ardente pela sua felicidade, que acompanhasse esses atos. Então, para que supõe ela que o filho compreenderá as coisas doutra maneira? Mas observai agora, quão diferentes serão os resultados se o sistema que nós sustentamos for persistentemente aplicado - se a mãe não só evitar o ser instrumento de castigo, mas representar o papel de um amigo, advertindo o seu filho da punição que a Natureza lhe pode infligir. Tomemos um exemplo; e para que ele esclareça o modo pelo qual este sistema deve ser iniciado muito cedo, escolhamos um dos casos mais simples. Suponhamos que, excitado pelo espírito experimental tão conspícuo nas crianças, cujas ações instintivamente se conformam com o método indutivo de investigação - suponhamos que assim excitado, o rapaz se diverte queimando pedaços de papel à luz, vendo-os arder. A mãe, de caráter ordinariamente irrefletido, no intuito de o livrar- daquele mal ou receando que ele se queime, ordena-lhe que desista; e no caso de não cumprir esta ordem tirará o papel de ao pé dele. Mas, se for bastante feliz para ter uma mãe de algum juízo, que souber que o interesse com que ele assiste a queima do papel é resultante de uma curiosidade salutar, e que tem também a sabedoria para considerar os resultados da sua interferência, ela raciocinará desta maneira: «Se eu puser um termo a isto vou pôr obstáculos a aquisição de um certo número de conhecimentos. É verdade que eu livro a criança de se queimar; mas que fazer? Ele fica certo de que se pode queimar algumas vezes; e é absolutamente necessário para segurança da sua vida conhecer experimentalmente as propriedades da chama. Se eu fizer com que ele agora não corra aquele risco, certamente para futuro poderá correr o mesmo ou outro ainda maior, quando não estiver presente pessoa alguma para o socorrer; e se tem de sofrer qualquer acidente que seja agora que estou ao pé dele, porque posso salva-lo de qualquer coisa grave. Além disso, se eu fizer com que ele de tal desista, vou opor-me a que faça uma coisa que é em si mesma inocente, e que é realmente um Passa-Tempo instrutivo, e ficar-me-á vendo com mais ou menos má vontade. Desconhecendo, como desconhece, o mal de que eu o queria livrar, e sentindo apenas o desgosto de um desejo contrariado, não tardará em me considerar causa daquele desgosto. Salvando-o de um mal que não pode conceber, e que, portanto, não tem para ele existência alguma, vou feri-lo de um modo que já sente dolorosamente, tornando-me assim, a sua vista, uma causa de desgosto. O que tenho, pois, a fazer de melhor, é simplesmente pô-lo a salvo de qualquer perigo, e estar pronta para prevenir qualquer desgraça séria. E seguindo estas razões diz para o filho: - Receio bem que te queimes se continuares a fazer isso. Suponhamos agora que o rapaz continuando como é provável, termina por queimar-se na mão, quais são os resultados? Em primeiro lugar adquiriu acidentalmente uma experiencia que a sua segurança própria requer o mais cedo possível. E em segundo lugar, viu que a censura ou precaução de sua mãe fora feita para seu bem: teve uma prova positiva da sua amizade, uma razão a mais para depositar confiança no seu juízo e na sua bondade - uma razão a mais para a amar. Necessariamente, nos casos eventuais em que se corre o risco de quebrar os membros ou outro qualquer perigo sério, tem de se empregar mais fortes meios preventivos. Mas excetuando os casos extremos, o sistema conseguido deve ser, não livrar as crianças dos pequenos riscos que elas diariamente carecem, mas avisa-las e adverti-las contra eles. Continuando-se nesta norma, gerar-se-á uma afeição filial mais forte do que aquela que geralmente existe. Se neste ponto, como em qualquer outro, a disciplina das reações naturais for posta em ação - se nas correrias fora de casa e nas experiencias dentro dela, em que as crianças se arriscam a magoar-se por si mesmas, elas tiveram a faculdade de prosseguir nos seus desejos, sujeitas apenas a uma dissuasão maior ou menor, segundo a importância do perigo, hão de consagrar uma fé sempre crescente na amizade e na direção dos pais. A adopção deste sistema, como já mostrámos, não só faculta aos pais e ás mães evitaram o ódio que acompanha sempre a execução de qualquer castigo positivo; mas, como vimos, faculta-lhes também o evitarem o ódio que se liga às constantes contrariedades; e até a obstar aqueles incidentes que produzem ordinariamente questões, capazes de sufocarem a amizade mútua. Em vez de serem solicitadas por palavras, que quase sempre parecem desmentidas pelas ações, de que os pais são os seus melhores amigos, as crianças aprenderão essa verdade por uma experiencia diária consistente; e quando assim o conhecerem, adquirirão um grau de confiança e de afeição que outra qualquer coisa não pode dar. E agora que deixamos apontadas as mais simpáticas relações que devem resultar do uso habitual deste método, seja-nos permitido voltar à questão acima exposta: - Como se poderá aplicar este método a ofensas mais graves? Note-se, em primeiro lugar, que essas ofensas mais graves são menos frequentes e menos graves sob o regime que descrevemos do que sob o regime ordinário. O mau comportamento de muitas crianças é em si uma consequência da irritação crônica em que são tidos por uma direção má. O estado de isolação e antagonismo, produzido pelo castigo frequente, necessariamente embota as simpatias; abre, portanto, necessariamente, o caminho às transgressões que se opõem às simpatias. O tratamento áspero que os filhos de uma mesma família infligem uns aos outros, é muitas vezes, em grande parte, um reflexo do áspero tratamento que eles recebem dos adultos - em parte sugeridos por exemplo direto, e em parte, produzidos pelo mau caráter e pela tendência para as desforras equivalentes, que se seguem aos castigos e ás disputas. Não se pode questionar que a maior atividade das afeições e o estado mais feliz dos sentimentos, sustentados nas crianças pela disciplina que descrevemos, devem obstar a que cometam para com os outros faltas tão graves e tão frequentes. As culpas, ainda as mais repreensíveis, como as mentiras e os pequenos furtos devem, pelas mesmas razões, diminuir. A frieza nas relações domésticas é fruto perene de tais transgressões. É lei da natureza humana, bastante visível para todos aqueles que observam, que os indivíduos que são privados dos prazeres mais subidos, recuam sobre os mais baixos; aqueles que não gozam os prazeres simpáticos procuram os prazeres egoístas; e, portanto, reciprocamente, a alimentação das relações mais felizes entre os pais e os filhos deve diminuir o número dessas ofensas, originadas pelo egoísmo. Quando, todavia, essas ofensas fossem praticadas, como ocasionalmente o podem ser até sob o melhor regime, a disciplina das consequências deve ainda ser chamada a resolver; e, a existir o laço de confiança e de afeição acima descrito, essa disciplina será eficaz. Porque, quais são as consequências naturais de um furto? São de duas espécies-direta e indireta. A direta, ditada pela justiça, é a que obriga à restituição do objeto furtado. Um diretor justo (e todos os pais devem aspirar a sê-lo) quererá que, quando possível, uma ação má seja redimida por uma ação boa; e o caso do furto implica, quer a substituição da coisa roubada, quer, se ela foi gasta, a entrega de um equivalente, que no caso da criança, deve ser efetuado à custa do seu pecúlio. A consequência indireta, que é a mais séria, é o grau de desgosto dos pais - consequência que inevitavelmente aparece entre todos os povos suficientemente civilizados que consideram o roubo um crime. « Mas, dir-se-á, a manifestação do desagrado paterno, quer por palavras, quer por castigos é o que ordinariamente sucede nestes casos: esse método nada apresenta de novidade.» Perfeitamente. Já admitimos, que em alguns sentidos, este método é espontaneamente seguido. Já mostramos que todos os sistemas educadores têm uma tendência para gravitarem ao redor do verdadeiro sistema. E vem a ponto de se notar, como já fizemos, que a intensidade desta reação natural se adapta, na ordem benéfica das coisas, às necessidades - que este desagrado paterno deriva em medidas violentas nas épocas relativamente bárbaras, quando as crianças são também relativamente bárbaras; e se manifesta menos cruelmente nos estados sociais mais adiantados em que, consequentemente, as crianças podem ser dirigidas por tratamentos mais brandos. Más o que principalmente temos a observar aqui é, que a manifestação violenta do desagrado paterno, produzido por uma dessas ofensas mais graves, é poderosa para o bem, na justa proporção do grau de afeição existente entre os pais e os filhos. Na justa proporção em que a disciplina das consequências naturais for consistentemente seguida noutros casos, assim será eficaz neste caso. A prova disto está na experiência de nós todos, e basta que olhemos para ela. Porque, não conhece todo aquele que ofende outrem que a soma de desgosto que por isso sente (pomos de parte as considerações mundanas que não entram na nossa questão) varia com o grau de simpatia que possui pelo ofendido? Não é coisa sabida que quando a pessoa ofendida é um inimigo o haver-lhe causado desgosto nos causa mais uma secreta satisfação do que tristeza? Não se lembra que quando a ofensa é feita a uma pessoa completamente estranha sente um desgosto muito menor do que sendo essa ofensa recebida por uma pessoa com quem tem intimidade? Enquanto que, ao contrário, não é considerada a cólera de um amigo, considerado e querido, como uma séria infelicidade, por muito tempo e profundamente sentida? Muito bem, os efeitos do desagrado paterno para com os filhos devem similarmente variar com as relações preexistentes. Onde existe a indiferença, o sentimento que a criança experimenta por ter errado é meramente o medo egoísta dos castigos físicos ou das privações eminentes; depois de castigada, o antagonismo pela injúria e o desgosto que dala resulta vão se adicionar a essa indiferença. Pelo contrário, onde existe uma afeição filial ardente, produzida por uma continuada amizade paterna, o estado de espírito causado pelo desgosto dos pais não é somente um salutar obstáculo a futuros erros da mesma espécie, mas é intrinsecamente salutar. A dor moral que se sente pela perda, embora temporária, de um amigo tão querido substitui completamente os castigos físicos geralmente infligidos e prova igualmente, se não em maior grau, a eficácia deles. Enquanto que o medo e o espírito de vingança são exaltados por um dos meios, o outro provoca a simpatia pela tristeza paterna, um sincero remorso por havê-la causado, e o desejo, por qualquer expiação, de se reatar as relações de amizade. Em vez de se porem em jogo os sentimentos egoístas cujo predomínio é causa de atos criminosos, são postos em ação os sentimentos altruístas que se opõem a esses atos. Assim a disciplina das consequências naturais aplica-se tanto às faltas triviais como às graves; e a pratica dessa disciplina conduz não só a repressão, mas até a extirpação dessas faltas. Numa palavra, a verdade é que a selvageria produz selvageria, e a delicadeza produz delicadeza. As crianças que são tratadas sem simpatia tornam-se antipáticas; enquanto que as tratadas com simpatia se tornam simpáticas. Com os governos da família sucede o mesmo que com os governos políticos: um despotismo áspero gera uma grande soma dos crimes que pretendia reprimir; enquanto que, por outro lado, um regime suave e liberal evita muitas causas de dissensão, e melhora o grau dos sentimentos a ponto de diminuir a tendência para as transgressões. Como John Locke já observou há muito: «A grande severidade do castigo pouco bem produz, ou melhor, produz um grande mal na educação, e creio bem que, em iguais circunstancias, as crianças mais castigadas dão raras vezes os melhores homens.» Em confirmação desta verdade podemos citar o fato, não há muito publicado por Mr. Rogers, capelão da Prisão de Pentonvile - que os jovens criminosos que tinham sido açoutados eram os que mais frequentemente voltavam para a prisão. Bem pelo contrário, os benéficos efeitos de um tratamento mais brando, são bem ilustrados num fato que nos foi narrado por uma senhora francesa, em cuja casa recentemente estive em Paris. Desculpando os desarranjos causados por um rapazinho, intratável tanto em casa como na aula, exprimia o receio de que não houvesse outro remédio a empregar senão aquele que já tinha sido empregado com um seu irmão mais velho; e que era - manda-lo para uma escola inglesa. Acrescentou que, em várias escolas de Paris, o irmão mais velho fora sempre intratável, e que, desesperando, tinham seguido o conselho de o mandarem para Inglaterra e que no seu regresso estava tão bom como o fora antes de ser mau. Esta notável mudança atribuía-a ela completamente a relativa brandura da disciplina inglesa. Depois de feita a precedente exposição de princípios, o espaço que nos resta deve ser empregado em algumas das principais máximas e regras que deles se deduzem; tendo em vista a brevidade de espaço, colocamo-las em forma de exortação. Não espereis das crianças uma grande soma de bondade moral. Durante os primeiros anos todo o homem civilizado passa pelas fases de caráter, patenteadas pela raça bárbara de que descende. Como as feições da criança - o nariz chato, as narinas abertas, os beiços grossos, os olhos muito afastados, a ausência de sinus frontal, etc.-, se parecem, por certo tempo, com as feições do selvagem, assim se assemelham também os seus instintos. Daqui as tendências para a crueldade, para o roubo, para a mentira, tão gerais nas crianças - tendências que, mesmo sem o auxílio de disciplina, virão a ser mais ou menos modificadas, exatamente com as feições. A ideia popular de que as crianças são «inocentes», embora verdadeira com relação ao conhecimento do mal, é totalmente falsa com relação aos impulsos para o mal; meia hora de observação no quarto de crianças bastará para provar estas verdades a todo o observador. Os rapazes entregues a si mesmos, como nas aulas públicas, tratam-se uns aos outros com muita mais brutalidade do que os homens; e se fossem entregues a si mesmos numa idade mais tenra essa brutalidade ainda seria mais frisante. Não só é pouco sério estabelecer um alto padrão de bom procedimento às crianças, mas também é pouco sério o emprego de excitamento urgente para esse procedimento. Agora já muita gente reconhece os maus resultados da precocidade intelectual; mas o que ainda está para ser reconhecido é que a precocidade moral tem igualmente os seus maus resultados. As nossas faculdades morais mais altas, como as nossas mais altas faculdades intelectuais, são relativamente complexas. Consequentemente umas e outras são tardias na sua evolução. E com umas como com as outras, uma prematura atividade, produzida pela estimulação, só pode ser feita à custa do futuro caráter. Parte daqui a seguinte anomalia vulgar - aqueles que durante a criancice foram modelos de bondade juvenil, vão experimentando sucessivamente uma transformação para o mal, aparentemente inexplicável, e terminam por ficar não acima, mas abaixo do comum; enquanto que, relativamente, muitos homens exemplares tiveram uma meninice pouco prometedora. Contentai-vos, pois, com moderadas medidas e resultados moderados. Estabelecei no espírito - que uma moralidade muito alta, como uma inteligência muito alta, pode obter-se com um crescimento vagaroso; e então sofrereis com paciência aquelas imperfeições que os vossos filhos a todas as horas manifestam. Sereis menos propensos aos constantes ralhos, ameaças e proibições, com que muitos pais alimentam uma irritação doméstica crônica, na doida esperança de que farão das crianças aquilo que lhes aprouver. A forma liberal do governo doméstico, que não procura regular despoticamente todas as minudencias do procedimento das crianças, resulta necessariamente do sistema que advogamos. Satisfazei-vos em ver que os vossos filhos sofrem sempre as consequências naturais das suas ações, e evitareis o excesso de vigilância em que erram tantos pais. Deixai-os quanto ser possa entregues a disciplina da experiencia, e furtá-los-eis aquela virtude de estufa que a regularização excessiva produz nas naturezas brandas, ou aquele antagonismo desmoralizador que ela provoca às naturezas independentes. Esforçando-vos em todos os casos, por abandonar as ações dos vossos filhos às reações naturais, lançais um proveitoso obstáculo ao vosso próprio caráter. O método de educação moral, adotado por muitos, se não por muitíssimos pais, consiste em fazerem grande estendal da sua ira, logo às primeiras ocasiões que se apresentem. As bofetadas, os maus tratos, e as palavras ásperas, com que as mães vulgarmente castigam as mais pequenas ofensas dos filhos (ofensas que a maior parte das vezes não podem intrinsecamente ser consideradas tais) são geralmente manifestações dos seus sentimentos mal dominados - resultam mais da viveza desses sentimentos do que da intenção de beneficiar os filhos com esses excessos. Mas, se em qualquer caso de transgressão, esperardes pelas suas consequências naturais, e pela maneira como elas melhor castigarão o transgressor, algum tempo decorrerá facultando-vos o domínio sobre vós mesmo; o primeiro movimento cego de cólera cederá campo a um sentimento menos veemente, menos próprio para consentir no vosso extravio. Contudo, não procureis portar-vos como um instrumento indiferente. Lembrai-vos de que além das reações naturais contra as ações dos vossos filhos, reações que o trabalho das coisas tende a colocar ao redor dele, a vossa própria aprovação ou reprovação é também uma reação natural, e um dos agentes ordenados para os guiarem. O erro que vimos combatendo é aquele que substitui pelo desagrado paterno e pelas penalidades artificiais aquelas que a Natureza estabelece. Mas embora estas não devam ser substituídas por aquelas, nós não afirmamos que até certo ponto elas não devam acompanhar as correções naturais. Embora o gênero secundário de castigos não usurpe o gênero primário, pode, com moderação, auxiliar o gênero principal. A soma de tristeza ou de indignação que sentirdes tem de ser expressa por palavras ou maneiras, sujeitas necessariamente à aprovação do vosso juízo. O gênero e grau de sentimento que o mau procedimento dos vossos filhos pode produzir no vosso animo, deve necessariamente depender do vosso próprio caráter, e parece, portanto, inútil dizer que eles devem ser isto ou aquilo. Não obstante, precisais de empregar todo o esforço em modificar os sentimentos no sentido que entenderdes conveniente mantê-los. Evitai, todavia, os dois extremos; não só com relação à intensidade, mas com relação à duração do vosso desagrado. Por um lado, evitai aquela fragilidade que censura e perdoa às vezes dum momento para o outro, segundo o instinto da ocasião. Por outro lado, não continueis a mostrar indevidamente ausência de afeição, porque correis o risco de acostumar os filhos a passarem sem a vossa amizade, e, portanto, a perderdes a influência sobre eles. As reações morais que as ações dos vossos filhos vos reclamam devem assemelhar-se quanto possível aquelas que um pai perfeito deve fornecer. Dai poucas ordens. Mandai somente quando forem inaplicáveis outros meios, ou quando outros meios não produzirem resultado. «Nas ordens frequentes as vantagens são mais importantes para os pais do que para os filhos, diz Richter.» Como nas sociedades primitivas uma infração da lei é castigada, não tanto porque ela seja intrinsecamente má, mas porque é considerada como falta de respeito para com a autoridade do rei, como uma rebelião contra ele; assim em muitas famílias, o castigo infligido ao transgressor é pronto, menos como reprovação da ofensa do que pela cólera despertada pela desobediência. Escutai as frases mais em voga: «Como ousas tu desobedecer-me?» «Digo-vos que haveis de fazê-lo, senhor!» «Eu vos direi imediatamente quem é aqui que manda!» - e depois considere o que estas palavras, este tom e esta maneira significam. Encerram mais uma determinação de predomínio, do que um desejo pela felicidade dos filhos. Nessa ocasião, a atitude do espírito difere muito pouco da atitude que toma um déspota quando pretende castigar um vassalo recalcitrante. O amor paternal, todavia, como a filantropia do legislador, não se deve regozijar na coerção, mas em dispensar a coerção. Deve dispensar a lei quando podem ser vantajosamente empregadas outras maneiras de regular o procedimento dos transgressores; e deve lamentar o ter de recorrer à lei, quando for necessário o emprego dela. Como Richter observa: «A melhor regra na política consiste em não governar demais; o mesmo sucede com a educação.» Conformando-se espontaneamente com esta máxima, os pais, cuja ambição de domínio for limitada por uma sã compreensão do dever, conseguirão que os seus filhos sejam os seus próprios guardas e só apelarão para o absolutismo em última extremidade. Mas todas as vezes que tiverdes de dar ordens, então ordenai com decisão e consistência. Se o caso realmente não poder ser resolvido por outra qualquer fôrma, então manifestai energicamente as vossas ordens, e depois de as manifestardes, não vos afasteis delas. Considerai bem o que ides fazer; pesai todas as consequências; vede se tendes bastante firmeza de intuito; e então, se a final fizerdes a lei, fazei por serdes obedecidos a todo o custo. As vossas penas devem ser como aquelas que a Natureza inanimada inflige - inevitáveis. Um carvão ardente queima a criança que a primeira vez lhe tocar; queima-a a segunda; queima-a a terceira; queima-a todas as vezes que lhe chegar; e bem depressa aprenderá a não tocar no carvão ardente. Se fordes igualmente insistentes - se as consequências que disserdes aos vossos filhos se seguirem sempre a certos atos, com uma uniformidade semelhante, dentro em pouco eles respeitarão as vossas leis, como respeitam as leis da Natureza. Conquistado este respeito, terminarão infinitas perturbações domésticas. O pior de todos os erros de educação é a inconsistência. Como na sociedade em que os crimes se repetem quando não há a certeza do castigo; assim na família a hesitação, ou a aplicação irregular das correções produz um aumento imenso de transgressões. Uma mãe fraca, que ameace sempre, mas que nunca execute; que faça leis a pressa, mas que se arrependa delas com o vagar, que trate a mesma ofensa agora com severidade e logo com brandura, segundo os ditames do humor da ocasião, não pôde senão acumular misérias sobre ela e sobre os filhos. Faz-se desprezível aos seus próprios olhos; mostra-lhes o exemplo de uma pessoa que não se pode dominar, excita-os a transgredir pela possibilidade de não serem castigados; substitui o seu caráter e o caráter dos filhos pelas intermináveis disputas e pelos males que as acompanham; reduz o espírito deles a um caos moral, que mais tarde, nos anos da amarga experiencia dificilmente poderá entrar na ordem. Melhor fruto poderá produzir uma fôrma barbara de governo logicamente aplicada, do que uma forma humana, aplicada inconsistentemente. Repetimo-lo: evitai quanto possível as medidas coercivas; mas quando julgardes realmente necessário o despotismo, sede despótico seriamente. Lembrai-vos que o alvo da vossa disciplina deve ser produzir um ente que se possa governar a si mesmo; não produzir um ente que precise de ser governado pelos outros. Se os vossos filhos fossem destinados a viverem como escravos, por mais que fizésseis nunca os acostumareis demais a escravidão durante a sua meninice; mas como eles se devem tornar dentro em pouco homens livres, sem ninguém que fiscalize o seu procedimento diariamente, nunca será demais tudo quanto fizerdes para os acostumar a independência, em quanto eles estão debaixo das vossas vistas. Isto é o que faz o sistema da disciplina das consequências naturais, tão especialmente apropriado ao estado social a que nós chegamos na Inglaterra. Nos tempos feudais, quando um dos pejares males que os cidadãos tinham a temer era a cólera dos seus superiores, era natural que durante a infância a vingança paterna fosse um meio capital de governo. Mas agora que os cidadãos têm pouco que temer de quem quer que seja; agora que o bem ou o mal que sofrerem são principalmente aqueles que, na ordem das coisas, resultarem do seu próprio proceder, devem desde os seus primeiros anos principiar a conhecer, experimentalmente, as. boas ou más consequências que necessariamente se seguem a estas ou aquelas ações. Tende, pois, em vista diminuir o governo tanto quanto vos for possível, substituindo-o no espírito dos filhos por aquela independência que nasce da previdência dos resultados. Durante a infância é necessária uma grande soma do absolutismo. Um rapazinho travesso de três anos que ande a brincar com uma navalha aberta, não pode ser ensinado pela disciplina das consequências, porque essas consequências podem ser muito sérias. Mas a medida que a inteligência aumenta, o número das interferências despóticas pode e deve ser diminuído, tendo-se em vista ir eliminando-as gradualmente à medida que se vai aproximando a idade madura. Todas as transições são perigosas; e a mais perigosa delas todas é a transição do círculo apertado da família para a amplitude do mundo. Daqui a importância de se seguir o sistema que nós advogamos: cultivando um rapaz as faculdades de se dominar a si-próprio, aumentando continuamente o grau em que é deixado a sua ação própria, e conduzindo-o, passo a passo, a um estado de independência que não precisa de proteção, diminui-se a passagem ordinariamente rápida e perigosa da mocidade, exteriormente oprimida, para a virilidade internamente governada. A história da nossa regra domestica deve ser em ponto pequeno, a história da nossa evolução política: a princípio, uma vigilância autocrata quando essa vigilância for realmente necessária; depois um constitucionalismo incipiente, em que a liberdade do vassalo ganha algum reconhecimento expresso; sucessivas extensões dessa liberdade ao vassalo, terminando gradualmente na abdicação paterna. Não lamenteis o desenvolvimento enérgico da vontade nos vossos filhos. Corresponde á diminuição de coação tão eficaz na educação moderna. A maior tendência para afirmar a liberdade de ação num lado, corresponde a menor tendência para tiranizar no outro. Ambas indicam uma aproximação para o sistema da disciplina que nós sustentamos, pelo qual as crianças devem ser cada vez mais entregues ao seu próprio governo pela experiencia das consequências naturais; ambas são acompanhamentos do nosso estado social mais adiantado. O rapazinho inglês, independente de hoje é o pai do cidadão inglês de amanhã, e, sem o primeiro não poderemos ter o segundo. Dizem alguns professores alemães que preferem ter a seu cargo a educação de uma dúzia de rapazes alemães a terem um só inglês. Devemos nós por isso desejar que os nossos rapazes tenham a maleabilidade dos alemães, e com ela a submissão e servidão política dos homens alemães? Ou não será melhor tolerar aos nossos rapazes aqueles sentimentos que os fazem homens livres e modificar os nossos métodos nessa conformidade? Por último, lembrai-vos sempre que educar bem não é uma coisa simples e fácil, mas uma coisa complexa e extremamente difícil; a tarefa mais áspera que pertence à vida adulta. A forma rude e imperativa do governo doméstico é em verdade praticável até para os espíritos mais baixos e mais incultos. Bofetadas e grosserias são castigos que tanto podem ser sugeridos pela inteligência mais barbarizada, como pelo rustico mais inepto. Os próprios brutos podem empregar este método de disciplina, como podereis ver pelo rosnar e pelas mordeduras que a cadela dá em qualquer dos seus cachorros mais exigente. Mas se quereis levar por diante, com sucesso, um sistema racional e civilizado, deveis estar preparados por um considerável trabalho mental, - por algum estudo, - por alguma sinceridade, alguma paciência, e algum domínio sobre vós mesmos. Tendes habitualmente de considerar o que são os resultados que na vida adulta se seguem a certas ações; e então devereis empregar os métodos pelos quais resultados paralelos são produzidos pelas ações semelhantes de vossos filhos. É necessário que diariamente examineis os motivos do procedimento juvenil - para distinguir entre as ações que são realmente boas e aquelas que, embora o pareçam, procedem de impulsos inferiores; ao mesmo tempo tendes de estar sempre em guarda contra o cruel engano, bastante vulgar, de traduzir ações neutras por transgressões, ou assinalando-lhes piores sentimentos do que as crianças possuem. Deveis modificar mais ou menos o vosso método, segundo a disposição de cada criança; e deveis prepara-lo de modo a fazer-lhe posteriores modificações, segundo a disposição de cada criança entrar em nova fase. A vossa fé deve ser tal que possa comportar a necessária perseverança num curso que parece produzir pouco ou nenhum efeito. Especialmente, se tiverdes de cuidar de crianças que foram maltratadas, deveis preparar-vos para uma longa provação de paciência antes de tirar resultado dos melhores métodos; pois que se não é fácil tarefa, quando uma boa disposição de sentimentos se adquiriu desde o princípio, muito mais difícil é quando já está estabelecida uma disposição má. Não só tendes de analisar constantemente as tendências dos filhos, mas de analisar outras tendências - de descriminar entre as sugestões internas, oriundas de uma solicitude paternal verdadeira e as que nascem do vosso próprio egoísmo, do vosso amor de bem-estar, da vossa ambição de domínio. E então, fazendo ainda mais experiencias, tereis não só de descobrir, mas de frear os impulsos mais baixos. Numa palavra, tendes de dirigir a vossa educação mais alevantada, ao mesmo tempo que educais os vossos filhos. Intelectualmente, deveis cultivar para esse belo intuito o mais complexo dos assuntos - a natureza humana e as suas leis, manifestadas nos vossos filhos, em vós mesmos, e no mundo. Moralmente, deveis conservar sempre em constante exercício os mais altos sentimentos, e refrear os mais baixos. É uma verdade, que ainda não chegou ao domínio comum, que o último grau de desenvolvimento mental em cada homem e em cada mulher só pode ser conquistado no desempenho dos deveres paternais. Quando esta verdade for reconhecida, ver-se-á então quão admirável é a lei que obriga os seres humanos, pelas suas afeições mais fortes a sujeitar-se, eles mesmos, a uma disciplina que por qualquer outra forma evitariam. Enquanto alguns indivíduos encaram esta concepção da educação tal como ela deveria ser, com dúvidas e desalentos, outros, segundo creio, verão no alto ideal que ela supõe a evidencia das suas verdades. Não pôde ser realizada, pelas paixões, pela antipatia, pela curteza de vista; requer os mais altos atributos da natureza humana; ver-se-á patentemente que é própria para os estados mais adiantados da humanidade. Embora requeira muito trabalho e muitos sacrifícios, eles verão que promete abundante fruto de felicidade, imediata e remota. Eles verão que enquanto os maus efeitos, produzidos quer nos pais, quer nos filhos, por um mau sistema de educação são duplamente amaldiçoados, um bom sistema é duas vezes abençoado - porque constitui a felicidade do que educa e do que é educado. CAPITULO IV A EDUCAÇÃO FÍSICA À mesa dos cavalheiros depois da retirada das damas, na casa dos lavradores em dia de mercado, e nas tavernas da aldeia, o assunto principal de conversação, depois da questão política do dia, aquele que maior interesse excita, é o tratamento dos animais. Quando os caçadores voltam para casa, cavalgando, a conversação gravita ordinariamente sobre a criação de cavalos, sobre raças, e fazem-se comentários sobre esta ou aquela corrida; enquanto que um dia, passado à caça nos lamaçais; raras vezes acaba sem se dizer alguma coisa sobre o tratamento dos cães. Quando, no regresso da igreja, os rendeiros das próximas herdades vão atravessando os campos, passam facilmente da crítica do sermão para a crítica do tempo, falam das colheitas e dos gêneros em deposito; e depois derivam para as discussões sobre as variadas espécies de pastos e as suas qualidades nutritivas. Hodge e Giles, depois de compararem, os seus cortelhos, mostram, pelas suas observações que tiveram todo o cuidado com os porcos e com as ovelhas dos seus amos, e sobre os efeitos produzidos nos animais por este ou por aquele gênero de tratamento. Mas não é só nos campos que é assunto favorito o arranjo das casas de cães, das cavalariças, dos currais, e dos apriscos. Nas cidades também os numerosos artistas que tem cães, os rapazes que são bastante ricos para de tempos a tempos satisfazerem o seu gosto pela caça, e os homens mais graves que conversam sobre o progresso da agricultura ou leem os relatórios anuais de Mr. Meachi e as cartas de Mr. Cairol para o Times, formam, quando agrupados, uma grande porção dos seus habitantes. Observem os adultos de todo o reino e verão que a sua grande maioria se mostra interessada na genealogia, criação e educação dos animais desta ou daquela espécie. Mas, nas conversações de depois de jantar, ou em qualquer outra época de conversa, quem ouve falar da criação das crianças? Quando o fidalgo provinciano faz a sua visita a cavalariça, inspecionando pessoalmente as condições e tratamento dos cavalos; quando lança um golpe de vista pelo seu gado mais pequeno, e faz recomendações a seu respeito; quantas vezes vai ao quarto dos filhos examinar o seu regime alimentício, as horas em que ele é executado, e a ventilação do aposento? Nas prateleiras da sua livraria podem ver-se O Ferrador, de White, O Livro da Granja, de Stephens, e Da caça, por Nemrod; está mais ou menos familiarizado com a sua leitura; mas quantos livros rem lido sobre o tratamento da infância e da meninice? As propriedades nutritivas do pão de óleo, os valores relativos do feno e da palha serrada, os perigos do excesso de trevo, são assuntos de que todos os proprietários, rendeiros e lavradores tem algum conhecimento; mas qual é o número deles que quer saber se o alimento que dão aos seus filhos é adequado às necessidades constitucionais do desenvolvimento dos rapazes e das raparigas? Talvez se queira apresentar como explicação a esta anomalia que estas classes procedem assim em conformidade dos seus interesses. Mas uma tal explicação é imprópria, porque este contraste dá-se em todas as classes. Entre os habitantes de uma cidade poucos haverá que ignorem o fato de que não se deve deixar trabalhar os cavalos logo depois de comerem; pois, se todos esses cidadãos tivessem filhos provavelmente não se encontraria um que soubesse se o lapso de tempo decorrido entre o jantar dos filhos e a hora dos estudos seria suficiente. Realmente, se analisarmos profundamente os fatos, veremos que todos os homens manifestam a opinião de que o regime do que, se passa no quarto dos seus filhos não lhes diz respeito «Oh! eu deixo essas coisas às mulheres» respondem provavelmente eles. E na maior parte dos casos, o tom que eles empregam na resposta implica a ideia de que tais cuidados são incompatíveis com a dignidade masculina. Considerado debaixo de qualquer ponto de vista não convencional, parece estranho que enquanto a criação de novilhos puros é uma ocupação em que os homens ilustrados facilmente empregam muito tempo e muitas ideias, a criação de belos seres humanos seja uma ocupação que tacitamente se considera indigna da sua atenção. As mães que nunca aprenderam senão línguas, música e prendas, ajudadas pelas amas, cheias de velhos prejuízos, são consideradas como competentes reguladores da alimentação, do vestuário e dos exercícios dos filhos. No entanto os pais leem livros e periódicos, assistem aos meetings agrícolas, fazem experiencias, e entram em discussões, tudo no Intuito de descobrirem a maneira de engordarem porcos que ganhem prêmios nas exposições! Vemos os infinitos trabalhos envidados para se obter um belo cavalo de corridas que possa vencer o Derby; não vemos nenhum para produzir um atleta moderno. Se Gulliver contasse que os habitantes de Laputa rivalizavam uns com os outros para melhorar a descendência das outras criaturas, e que não tinham cuidado algum no aperfeiçoamento da sua própria descendência, teria metido este absurdo em paralelo com os outros absurdos que a seu respeito escreve. Contudo, o assunto é bastante sério. Ridícula como é a sua antítese, o fato que ela exprime nem por isso é menos desastroso. Como observa um judicioso escritor, a primeira condição de felicidade na vida não é ser um bom animal? pois ser uma nação de bons animais é a primeira condição para a prosperidade nacional. Não só acontece que as eventualidades de uma guerra muitas vezes dependem da força e da audácia dos soldados; mas até as contendas comerciais são em parte determinadas pela robustez física dos produtores. Ora nós não temos até aqui encontrado razões para temer as experiencias da força com as outras raças em qualquer desses campos. Mas isso não é sinal de que as nossas faculdades possam presentemente ser consideradas como extremas. A concorrência da vida moderna é tão viva, que poucas pessoas podem sair da luta sem feridas. Já muitos milhares de indivíduos morrem debaixo da alta pressão a que estão sujeitos. Se esta pressão continua a aumentar, como parece que sucederá, ela meterá a rudes provas até as constituições mais solidas. É, pois, da maior importância que a educação das crianças seja feita de tal ordem que não só as habilite intelectualmente para a luta, mas também para poderem fisicamente suportar todas as fadigas e trabalhos. Felizmente o assunto começa a despertar a atenção. Os escritos de Mr. Kingsley revelam uma reação contra o sistema da educação violenta, que, talvez como todas as reações, vae um pouco longe. De quando em quando algumas cartas e artigos publicados nos jornais mostram um progressivo interesse pela educação física. E a formação de uma escola, denominada «Cristianismo muscular», supõe a opinião crescente de que os nossos métodos de educar crianças não tem suficientemente em vista o bem-estar do corpo. O assunto está evidentemente maduro para a discussão. O ideal consiste em conformar o regime da primeira aprendizagem e da escola com as verdades estabelecidas pela ciência moderna. É mais que tempo para que os benefícios que resultam das investigações dos laboratórios para os carneiros e para os bois, sejam partilhados pelos nossos filhos. Sem querermos questionar a grande importância da criação de cavalos e da engorda dos porcos, entendemos que, como a criação de homens e mulheres perfeitos é também de alguma importância, as conclusões, que a teoria indica e a pratica confirma, devem ser postas em execução tanto no último caso como no primeiro. É provável que algumas pessoas, e não poucas, se espantem, e até se achem ofendidas, com este agrupamento de ideias. Mas é um fato que ninguém pode discutir, e com o qual temos de nos conformar, de que o homem está sujeito às mesmas leis orgânicas das criaturas inferiores. Nenhum anatomista, nenhum fisiologista, nenhum químico hesitará por um momento sequer em asseverar que os princípios gerais, que são verdadeiros como processos vitais nos animais, são igualmente verdadeiros nos processos vitais do homem. E a singela admissão deste fato não é desprovida de recompensa; mormente, porque es generalizações, estabelecidas pela observação e pelas experiencias feitas nos animais, tornam-se aproveitáveis para a vida do homem. Rudimentar como é a Ciência da Vida, já chegou a certos princípios fundamentais, relativos ao desenvolvimento de todos os organismos, incluindo o humano. O que agora se deve fazer, e o que nós até certo ponto nos esforçaremos por fazer, é traçar os principais princípios fundamentais da educação física da infância e da juventude. A tendência rítmica, saliente em muitos pontos da vida social- tendência que se manifesta no acesso do despotismo depois das revoluções, ou, mesmo na história da nossa terra, na alteração das épocas de reforma e das épocas conservadoras - que, depois de uma era dissoluta traz outra era de ascetismo, e enervamento, - que, no comercio, produz as exaltações da confiança depois dos pânicos das crises - que leva os fanáticos da moda de um extremo absurdo ao outro extremo; - esta tendência rítmica influi até nos costumes de nossa mesa, e consequentemente no regime alimentício das crianças. Depois de um período que se distinguiu por se beber e comer muito, veio o período de uma relativa sobriedade, que, na sua temperança e preferência pela alimentação de legumes, patenteou as formas extremas de protesto contra as libertinagens do passado. Com esta mudança paralela no regime dos adultos, veio uma mudança paralela no regime dos rapazes e das raparigas. Nas gerações passadas, a crença era que os pais se deviam esforçar por que os filhos comessem o mais possível; e mesmo agora, entre os lavradores das províncias mais remotas, onde as ideias tradicionais se conservam por mais tempo, ainda se encontram pais que obrigam os filhos a comerem até a saciedade. Mas entre as classes ilustradas, em que a reação para a abstinência se acusa mais, pôde-se observar a tendência para não se alimentar as crianças suficientemente. Em verdade o seu desgosto pelo animalismo do passado, ainda se patenteia mais claramente no tratamento dos filhos do que no seu próprio tratamento; porque, enquanto o seu falso ascetismo é conservado em cheque, tanto quanto a sua conduta pessoal o permite, tem o principal papel na legislação para as crianças. Afirmar que este excesso de alimentação e esta abstinência são ambos maus é uma banalidade. Mas dos dois, o segundo é o pior. Como uma alta autoridade escreve: os efeitos de uma alimentação excessiva casual são muito menos prejudiciais, e muito mais facilmente corrigidos, do que os da inanição. Além disso, não havendo alguma interferência pouco judiciosa, a indigestão raras vezes se dá. «O excesso é mais vicio de adultos do que da mocidade, que raras vezes é gastrônoma ou epicuriana, a não ser por culpa daqueles que a educam.» O sistema de restrição que muitos pais julgam tão necessário, é baseado em observações erradas e em errados raciocínios. Ha um excesso de regulamentação no quarto das crianças, precisamente como na alta legislação do Estado, e uma das formas mais prejudiciais desse excesso disciplinar está na limitação de quantidade de alimentos. «Mas devemos deixar as crianças encherem o estômago a seu bel-prazer? Devemos deixa-las saturar de docerias até ficarem doentes, como elas certamente fariam?» Posta assim a questão, só pôde ter uma resposta. Mas apresentada assim, resolve-se de per si. Sustentamos que, assim como o apetite é um bom guia para todos os indivíduos das classes mais baixas da criação - assim como é um bom guia para a criança na sua mais tenra idade - assim como é um bom guia para os doentes - como é um bom guia para todos os adultos que gozam saúde, assim se deve inferir que ele é um bom guia para a infância. Seria realmente extraordinário que só fosse inútil sobre este ponto. Talvez algumas pessoas leiam esta resposta com impaciência, julgando-se aptas, segundo pensam, a citar fatos totalmente opostos a este asserto. Poderia parecer absurdo se negássemos a apresentação desses fatos. E até o paradoxo se pôde defender perfeitamente. Mas a verdade é que os exemplos de excessos que certas pessoas têm no espírito, são geralmente as consequências do sistema restritivo que elas querem justificar. São as reações sensuais causadas pelo regime do ascetismo. Demonstram em pequena escala esta verdade vulgar, que aqueles que durante a juventude estiveram sujeitos à disciplina mais rigorosa são os que mais tarde caem mais facilmente nas maiores extravagancias. São análogos aqueles terríveis fenômenos, muito frequentes outrora nos conventos, em que as freiras passavam repentinamente das mais extremas austeridades á mais demasiada dissolução. Patenteiam apenas a veemência insustentável de desejos por muito tempo não saciados. Veja-se os gostos ordinários das crianças e a maneira como geralmente são satisfeitos. O amor das docerias é grande e quase universal entre elas. Provavelmente noventa e nove pessoas em cem presumem que nisto há apenas uma gratificação do paladar, e que, como todos os outros desejos sensuais, ele deve ser combatido. Todavia, o fisiologista cujas descobertas o levam a um respeito cada vez maior pela harmonia das coisas, encontra mais alguma coisa neste amor pelos doces de que geralmente se supõem; e a observação confirma a suspeita. Sabe que o açúcar representa um papel importante no processo vital. As matérias sacarinas e as matérias gordas são oxigenadas em nosso corpo, dando-se esta operação acompanhada de uma evolução de calor. O açúcar é a forma a que muitos outros compostos devem ser reduzidos antes de poderem formar o calor animal; e esta formação de açúcar efetua-se em o nosso próprio corpo. Não só o amido se transforma em açúcar durante a digestão, mas, como o prova M. Claude Bernard, o fígado é uma oficina em que os outros elementos constitutivos da alimentação se transformam em açúcar: a necessidade de açúcar é tão imperiosa que chega a ser produzido por substancias azotadas quando não há outras que o forneçam. Ora, se ao fato das crianças mostrarem um grande desejo por essa valiosa alimentação de calor, adicionarmos este outro fato que elas tem uma repugnância não menos pronunciada pelo alimento que dá o maior calórico durante a sua oxidação (pelas matérias gordas), teremos razão em pensar que o excesso de um compensa a falta do outro - que o organismo exige mais açúcar, porque não pode assimilar muitas gorduras. As crianças gostam também muito dos ácidos vegetais. Frutos de toda a casta são o seu maior deleite, e a falta de coisa melhor, devorarão até groselhas e maçãs verdes. Ora não só os ácidos vegetais são, bem como os ácidos minerais, excelentes tônicos e benéficos quando ingeridos moderadamente, mas tem, quando ministrados naturalmente, outras vantagens ainda. «Os frutos maduros, diz o Dr. Andrew Combe, são dados mais frequentemente no Continente do que na nossa terra, e, particularmente, quando os intestinos não funcionam perfeitamente, eles são muitas vezes uteis.» Veja-se, pois o desacordo entre as necessidades instintivas das crianças e a maneira como geralmente são tratadas. Há aqui dois desejos dominantes, que, com todas as probabilidades, exprimem certas necessidades da constituição das crianças; e não só são desconhecidos no regime da infância, mas há uma tendência geral para proibir a satisfação deles. Pão e leite pela manhã, chá, pão e manteiga á noite, ou outro qualquer insipido regime alimentício é rigorosamente cumprido, e qualquer satisfação do paladar é considerada como inútil, ou antes como prejudicial. Qual é a consequência? Quando em dias de festa, os bons pratos estão ao alcance de todos - quando algum presente de dinheiro permite às crianças comprar as lambarices, expostas nas vitrines, ou quando se lhes permite livre correria por algum pomar, então os desejos por tanto tempo insaciados e consequentemente intensos levam aos maiores excessos. E um carnaval improvisado e devido em parte a quebra de velhas peias, e em parte a longa quaresma que principiará no dia seguinte. E então, quando as indigestões aparecem, afirma-se que as crianças não se devem deixar aos seus apetites! Estes desastrosos resultados de restrições artificiais são citados como provando a necessidade de ulteriores restrições! Afirmamos, portanto, que os raciocínios geralmente empregados para justificar este sistema de interferência, são viciosos. Afirmamos que, se se permitir às crianças o gozo desses comestíveis mais saborosos, porque ha nisso uma requisição fisiológica, elas raras vezes se excederão, ao contrário, do que agora fazem quando podem: se os frutos, como recomenda o Dr. Combe, «constituíssem uma parte da alimentação regular» (fornecidos como ele aconselha, não entre os repastos, mas durante eles) as crianças não experimentariam aquela sofreguidão de devorar maçãs e ameixas. E similarmente em todos os outros casos. Não só há razão a priori para julgar que os apetites das crianças são fortes, e que as razões, apresentadas para os destruir são banais; mas dá-se o seguinte - é que nenhum outro guia pode merecer mais confiança. Que valor tem o raciocínio dos pais que se apresenta como alternativo regulador? Quando a «Oliver, que pede mais» a mãe ou a governanta responde «Não» sobre que fatos se fundamenta? Pensa que ele já teve bastante. Mas quais são as razões para tal pensar? Terá alguma inteligência secreta com o estômago do rapaz - algum poder vidente que a habilite a discernir as necessidades do corpo dele? Se o não tem, como pode decidir com segurança? Não sabe que a exigência do sistema alimentício é determinada por numerosas causas complexas - que varia com a temperatura, com o estado higrométrico do ar, com o estado elétrico do ar - que varia também segundo o exercício que se faz, segundo a qualidade e a quantidade da alimentação, ingerida no último repasto, e segundo a rapidez com que foi feita a última digestão? Como pode ela calcular o resultado da combinação destas causas? Como nós ouvimos dizer ao pai de uma criança de cinco anos, que tem mais a altura da cabeça acima dos rapazes da sua idade, e é proporcionalmente robusto, corado e ativo: - «Não posso encontrar meio artificial algum para saber a quantidade de alimentação que ele precisa. Se eu digo, isto é demais, é uma mera suposição; e a suposição tanto pode ser errada como justa. Consequentemente não posso ter fé alguma em hipóteses; deixo-o comer quanto ele tiver na vontade.» E, com certeza, se cada qual tem de julgar o seu procedimento pelo resultado obtido, terá de admitir a sua sabedoria. Em verdade, esta confiança, com que muitas «pessoas legislam para os estômagos dos filhos, prova a sua ignorância sobre fisiologia: se soubessem mais alguma coisa, seriam um pouco mais modestas.» «O orgulho da ciência é humilde quando se compara com o orgulho da ignorância.» Se toda a gente quisesse aprender quão pequena fé se deve depositar nos juízos humanos, e quão grande é aquela que devemos depositar na harmonia preestabelecida das coisas, compararia a temeridade do médico inexperto com a cautela do mais sábio; ou então deveria ler a obra de Sir John Forbes, Sobre a Natureza e Arte da Cura das Doenças, e veria que a proporção que os homens ganham ciência das leis da vida, menos confiança tem em si mesmos e mais na Natureza. Derivando da questão da quantidade da alimentação para a qualidade, veremos a mesma tendência ascética. Pensa-se que é conveniente tratar as crianças não só com uma dieta restrita, mas com uma alimentação relativamente ordinária. A opinião vulgar é que se lhes deve dar pouca alimentação animal. Nas classes menos ricas, parece que foi a economia o que ditou esta opinião - a necessidade do pai fez-lhe ver a justiça do asserto. Os pais que não podem comprar muita carne respondem ao pedido dos filhos, dizendo-lhes que a carne não é boa para a gente moça; e, o que provavelmente era a princípio um expediente, tornou-se mais tarde, pela repetição, um artigo de fé. As classes em que não se faz questão de preço, deixaram-se influenciar em parte pelo exemplo da maioria, em parte por influência das amas, que saíram das classes mais baixas, e até certo ponto pela reação ao animalismo do passado. Se, contudo, investigarmos o valor desta opinião pouco ou nada encontramos. É um dogma, repetido e recebido sem prova, como aquele que durante mais de mil anos insistiu no uso das faixas. É muito provável que para o estômago das crianças, ainda não experimentado no seu poder muscular, a carne que requer uma trituração considerável antes de ser transformada em chymo, seja um alimento impróprio. Mas esta objeção não prova contra a alimentação animal de que se extraísse a parte fibrosa; nem mesmo se pôde aplicar quando, depois de um período de dois ou três anos, a criança tenha adquirido um considerável vigor muscular. E enquanto que a prova em apoio deste dogma, parcialmente valiosa para os casos da mais tenra infância, não tem valor para os casos de crianças mais desenvolvidas, que, apesar de tudo são geralmente tratadas em conformidade dele, as provas em contrário são abundantes e concludentes. O vereditum da ciência opõe-se precisamente a opinião popular. Apresentamos o quesito a dois dos nossos principais médicos, e a diversos fisiologistas dos mais distintos e eles, uniformemente, concordaram nesta conclusão-que as crianças não devem ter um regime alimentício menos nutritivo senão mais nutritivo, do que os adultos. As bases desta opinião são patentes, e o raciocínio simples. Basta comparar o processo vital do homem com o de um rapaz para se ver que a necessidade de alimentação é relativamente maior no rapaz do que no homem. Para que fim é que o homem requer a nutrição? Todos os dias o corpo se gasta mais ou menos; no exercício muscular, no sistema nervoso pelas ações mentais, nas vísceras pelas funções da vida; e o tecido assim gasto tem de ser renovado. Todos os dias, pela radiação, o corpo perde grande soma de calor: e para esse fim certos elementos constitutivos do corpo sofrem uma oxidação continua. Os únicos fins, portanto, para que os adultos precisam de nutrição são - suprir a este gasto diário, e fornecer a despesa diária de calor. Considere-se agora o caso do rapaz. Também ele gasta a substancia do corpo pela ação; e basta que nos lembremos da sua constante atividade para ver que, relativamente ao seu volume, provavelmente dispende tanto como o homem. Também ele perde calor pela radiação; e, como o seu corpo expõe uma superfície maior em proporção a sua massa do que o do homem, perde, portanto, calor mais rapidamente; a quantidade de alimento-calor de que precisa, é, volume por volume, maior do que a necessitada pelo homem. De modo que, mesmo quando o rapaz não tivesse de fornecer outro processo vital diverso do homem, necessitaria, relativamente ao seu volume, um suplemento maior de alimentação. Mas, além de ter de reparar o corpo e de alimentar o calor, o rapaz tem ainda de fazer tecido novo - tem de crescer. Depois de separadas as despesas de substancia e de calor, o excedente de alimentação que fica, vai para a construção do corpo; e só em virtude deste excesso é que é possível o crescimento normal; o crescimento que muitas vezes se opera, sem esse excedente, causa uma prostração manifesta. É verdade que, em virtude de uma certa lei mecânica que não pode ser desenvolvida aqui, um organismo pequeno tem uma vantagem sobre um organismo maior, na razão existente entre as forças reparadoras e destruidoras - vantagem, verdade é, a que é devida a possibilidade de crescimento. Mas isto faz tornar mais patente o seguinte - embora se possa empregar um tratamento muito adverso, sem que este excesso de vitalidade possa ser completamente contrabalançado, qualquer tratamento adverso, diminuindo aquele excesso de vitalidade, diminui também a estatura e a perfeição do corpo. Quão peremptória é a exigência dos materiais, feita pelos organismos que se desenvolvem, vemos nós naquela «fome de escolar» que não aparece noutra qualquer época da vida, e no comparativamente rápido reaparecimento do apetite nas crianças. E se necessária é mais larga demonstração desta extrema necessidade de alimentação, temo-la no fato seguinte - durante as fomes que seguem os naufrágios e outros desastres, as crianças são os primeiros que morrem. Admitida, como tem de ser, esta necessidade relativamente grande de alimentação, a questão que nos resta é esta - devemos satisfaze-la, fornecendo uma quantidade excessiva do que se pode chamar alimentos diluídos, ou uma quantidade mais moderada de alimentos concentrados? A nutrição obtida de um certo peso de carne só se pode obter de um peso maior de pão, de uma quantidade ainda maior de batatas, e assim sucessivamente. Para satisfazer aquela exigência, a quantidade dos alimentos tem de ser aumentada à medida que diminuem as qualidades nutritivas desses alimentos. Devemos então responder às excessivas necessidades da criança que cresce, dando-lhe uma quantidade de alimentos iguais em qualidade aos que são dados aos adultos? Ou, sem atendermos ao fato de que o estômago das crianças digere uma quantidade relativamente maior desta boa alimentação, deveremos sobrecarrega-lo, dando-lhe alimentos inferiores em maior quantidade ainda? A resposta é suficientemente clara. Quanto mais trabalho de digestão se economiza, tanta mais energia se conserva para o crescimento e para a ação. As funções do estômago e dos intestinos não podem ser executadas sem um largo dispêndio de sangue e de força nervosa; e no cansaço que se segue geralmente a um repasto abundante, todos os adultos tem a prova de que este dispêndio de sangue e de força nervosa se opera à custa do sistema. Se a requisição de nutrição se satisfaz por maior cópia de alimentos pouco nutritivos, tanto maior trabalho têm as vísceras, do que se ela fosse satisfeita por meio de uma quantidade moderada de alimentos nutritivos. Este excesso de trabalho perde-se completamente, e esta perda manifesta-se nas crianças, quer por uma diminuição de energia, quer num atraso de crescimento, e por vezes de amibas as maneiras. A conclusão a que chegamos é, pois, que o seu regime alimentício deve combinar, tanto quanto possível, a nutrição com as qualidades digestivas. É indubitavelmente verdade que os rapazes e as meninas podem ser quase exclusivamente alimentados com vegetais. Nas classes superiores há crianças que comem relativamente muito pouca, carne, e que, apesar disso crescem e mostram boa saúde. A alimentação animal mal é provada pelos filhos do povo trabalhador, e com tudo chegam a uma virilidade cheia de saúde. Mas estes fatos que parecem contrários ao que deixamos exposto não tem por forma alguma o valor que se lhes quer atribuir. Em primeiro lugar, não é verdade que aqueles que em tenros anos se sustentam de pão e batatas cheguem eventualmente a um belo desenvolvimento; e se se fizer uma comparação entre os trabalhadores agrícolas e a população das cidades, na Inglaterra, ou entre as classes médias e as inferiores em França, ela não poderá ser de modo algum favorável aos que se alimentam de vegetais. Em segundo lugar, a questão não é apenas de corpulência, mas de qualidade. Uma carne branda e mole faz tão boa aparência como uma carne forte; mas se aos olhos superficiais uma criança de tecido frouxo e flácido pode parecer igual a uma outra que tenha boas fibras, uma experiencia de forças provará essa diferença. A obesidade nos adultos é por vezes um sinal de fraqueza. Os homens fisicamente educados perdem peso. Portanto, a aparência das crianças alimentadas com gêneros ordinários está longe de ser concludente. Em terceiro lugar, além da corpulência, temos a considerar a energia. Entre as crianças pertencentes às classes que se alimentam de carne e aquelas que se nutrem de pão e batatas há um contraste frisante a este respeito. Quer em vivacidade mental, quer em vivacidade física, o filho do homem dos campos é muito inferior ao filho de qualquer cidadão abastado. Se compararmos diferentes espécies de animais, ou diferentes raças de homens, ou mesmo animais ou homens quando diversamente sustentados, acharemos ainda provas mais claras de que o grau de energia depende essencialmente da qualidade da alimentação. Numa vaca, por exemplo, que se alimenta de matérias pouco nutritivas, como a erva, nós vemos que a imensa quantidade de alimentos necessita de um enorme sistema digestivo; que os membros, pequenos comparativamente ao corpo, são sobrecarregados com o seu peso; que dispende muita força não só em arrastar o peso do corpo, mas ainda em digerir essa excessiva quantidade de alimentos; e como tem pequena reserva de forças o animal torna-se inerte. Compare-se agora a vaca um cavalo - animal de estrutura muito aproximada, mas acostumado a um regime alimentar mais concentrado. O corpo, e mais especialmente a região abdominal, não tem tamanha desproporção com os membros; as forças não são sobrecarregadas com o peso de vísceras excessivamente maciças, nem dispendidas na digestão de tão copiosos alimentos; e, consequentemente, o cavalo tem uma energia locomotora muito maior, bem como uma vivacidade considerável. Se compararmos ainda a indolência estupida do carneiro que se alimenta de ervas com a viveza do cão, que se sustenta de carne ou de matérias farináceas, ou simultaneamente de ambas, veremos uma diferença similar na espécie, mas ainda em maior grau. E depois de um passeio através dos jardins zoológicos, e de se notar a agitação dos animais carnívoros saltando continuamente nas suas jaulas, bastará a gente lembrar-se, que habitualmente nenhum animal herbívoro desenvolverá essa excessiva energia, para ver quão patente não é a relação existente entre a concentração da alimentação e o grau de atividade. Podem dizer-nos que estas diferenças não são consequências diretas da diversidade das constituições; mas a verdade é que são consequências diretas da diversidade das alimentações, que os indivíduos exigem para sua subsistência; fato que se observa entre as diferentes divisões da mesma espécie. As variedades da raça cavalar apresentam exemplos novos. Compare-se o cavalo pesado, indolente, estupido do carroceiro com o cavalo de corrida ou de caça, pequeno de flancos, mas cheio de energia; e lembre-se quão pouco nutritiva é a alimentação de um comparada ao do outro. Recorde-se o caso da humanidade. Os Australianos, os Bushmen e outros selvagens de raças ainda mais baixas, que vivem de raízes e de frutos apodrecidos pelas larvas dos insetos, e outros alimentos vis, são comparativamente enfeados de estatura, tem grandes abdomens, músculos frouxos e por desenvolver, e absolutamente incapazes de lutar com os europeus, quer em combate, quer em exercícios prolongados. Observem-se as raças selvagens que são bem constituídas, fortes e ativas, como os Cafres, os Índios Norte-americanos e os Patagônios e ver-se-á que são grandes consumidores de carne. O Índio mal alimentado humilha-se diante do Inglês, sustentado por melhor alimentação; é relativamente a este um inferior, quer no desenvolvimento intelectual, quer na força, física. A história do mundo mostra-nos o seguinte - as raças bem alimentadas foram sempre as raças fortes e dominadoras. O argumento torna-se ainda mais forte quando nos lembramos que o mesmo animal é capaz de mais ou menos exercício, segundo a sua alimentação é mais ou menos nutritiva. Já fizemos a demonstração para o caso do cavalo. O cavalo sustentado nos prados pôde adquirir carnes, mas há de perder força; como se denunciará em qualquer trabalho rude. «A consequência de se mandar os cavalos para o pasto é a relaxação do sistema muscular.» « O pasto é uma preparação boa para qualquer touro que tenha de ir para o mercado de Smitfleld, mas muito má para um cavalo de caçador.» Isto já era conhecido nos antigos tempos, porque os cavalos de caça, depois de passarem o verão nos campos, eram sustentados por alguns meses na estrebaria, antes de estar prontos a seguir os cães e não eram considerados completamente restabelecidos senão na primavera seguinte. O que modernamente se pratica é em conformidade desta opinião de mr. Apperley: - Nunca se deve dar a um cavalo de caça o que se chama « um verão de estada nos prados», e, a não ser em circunstancias particulares e muito favoráveis, não o ter de modo algum fora da estrebaria. Isto é, nunca se lhe deve dar um sustento pobre: vigor e saúde só se podem obter pelo uso continuado de uma alimentação nutritiva. E tanto isto é verdade, que, como o prova mr. Apperley, uma boa alimentação prolongada torna um cavalo de mediana força igual a um cavalo de primeira ordem, sustentado com uma alimentação ordinária. A estes vários exemplos adicione-se o fato vulgar que, quando se quer que um cavalo faça trabalho dobrado, é da pratica dar-se lhe fava - que contém uma grande proporção de substancia azotada, que é alimento mais produtor de carne do que a aveia ordinária. Mais uma vez direi que, no caso relativo ao homem, a verdade já foi demonstrada com maior clareza. Não nos referimos aos homens que se educam para exercícios de força, cujo regime, todavia, é absolutamente conforme a esta doutrina. Referimo-nos ás experiencias feitas pelos empreiteiros de caminho de ferro e seus operários. É fato provado pela experiência de muitos anos que um sapador inglês, que come muita carne, suporta muito mais trabalho do que qualquer sapador do continente europeu que se alimente de farináceos; mas isto dá-se a tal ponto, que os empreiteiros ingleses de caminhos de ferro no continente preferem levar com eles os operários. Demonstra-se perfeitamente que esta superioridade não é resultante da diferença da raça, mas da diferença de regime alimentício. Porque está provado que, quando os sapadores do continente vivem à moda dos seus concorrentes ingleses, aproximam-se deles em eficácia, mais ou menos proximamente. A este fato, permitam-nos acrescentar outro bastante frequente, ao qual podemos dar o nosso testemunho pessoal: seis meses de experiência de alimentação vegetal, provaram-nos que a abstinência de carne diminui a energia quer do corpo, quer do espírito. Estes diversos exemplos não virão reforçar o nosso argumento a respeito da alimentação das crianças? Não demonstrarão eles que, embora a estatura e corpulência se possam alcançar quer por um regime nutritivo, quer por um regime não nutritivo, a qualidade do tecido é inferior? Não estabelecerão o princípio de que a energia e o crescimento só se poderão obter por um bom regime alimentício? Não confirmarão a priori a conclusão de que enquanto uma criança de quem se exigir pouco, quer física quer intelectualmente, se poderá alimentar razoavelmente de farináceos, outra qualquer de quem se espere não só um desenvolvimento físico diário, mas um dispêndio de grande ação muscular e um aturado exercício do cérebro, precisará de ingerir substancias que contenham mais larga proporção de matéria nutritiva! E não será um corolário claro que a recusa desta boa alimentação se fará a custa quer do crescimento, quer da atividade mental, segundo o determinarem as circunstâncias e a constituição? Cremos que nenhum espírito lógico o duvidará. Pensar diversamente é sustentar sob uma forma disfarçada o velho erro dos visionários do motu-continuou - de que é possível tirar forças do nada. Antes de deixar a questão da alimentação, é necessário dizermos algumas palavras sobre outro requisito - sobre a variedade. A este respeito o regime alimentício das crianças é muito defeituoso. Se os nossos filhos não são, como os soldados, condenados a vinte anos de carne cozida, suportam, contudo, um monótono regime alimentício, que, embora menos extremo e menos duradoiro, nem por isso deixa de estar em completa oposição às leis da saúde. Ao jantar, verdade é, usam alimentos mais ou menos misturados e que variam de dia para dia. Mas semana após semana, mês após mês, ano após ano, vem o almoço de pão e leite, ou, às vezes de sopa de farinha. E com a mesma persistência se fecha o dia, talvez com uma segunda dose de pão e leite, ou chá e pão com manteiga. Esta pratica é oposta aos ditames da fisiologia. A saciedade produzida por um prato sempre repetido, e a satisfação causada por outro de há muito estranho ao paladar, não são sem significação, como o povo afirma levianamente; mas incentivos para a variedade salutar, provocados pela natureza. É um fato, comprovado por numerosas experiencias, que mal pode haver um alimento, embora bom, que forneça em justas proporções, ou sob as formas necessárias, todos os elementos requeridos pelo processo vital; de onde se segue que uma mudança frequente de alimentação deve ser desejada para equilibrar as proporções de todos os elementos. É também um fato, conhecido pelos fisiologistas, que o prazer dado pelos bocados muito desejados, é um estimulo nervoso, que, aumentando o trabalho do coração e impelindo o sangue com maior vigor, auxilia a subsequente digestão. Estas verdades estão em harmonia com as máximas da moderna criação do gado, que estatuem a variedade de alimentação. Não só se deve desejar uma mudança periódica de alimentação, mas também, e pela mesma razão, essa variedade se deve desejar a cada repasto. O melhor equilíbrio dos ingredientes, e o maior estimulo nervoso, são vantagens que se encontram neste caso, como nos antecedentes. Se temos de apresentar fatos comprovativos, nomearemos um que é o seguinte - a facilidade com que o estômago digere um jantar feito pela cozinha francesa, enorme na quantidade, mas extremamente variado de pratos. Pouca gente poderá afirmar que a mesma quantidade de um gênero de alimentos possa ser digerida com igual facilidade, embora seja bem cozinhada. Se alguém desejar mais fatos pode encontra-los em qualquer livro moderno que trate da maneira de criar os animais. Os animais desenvolvem-se melhor quando cada ração é feita de diversas coisas. As experiencias de Goss e de Stark, fornecem a prova mais decisiva da vantagem, ou melhor, da necessidade, da mistura de substancias, para produzir o composto que melhor quadra à ação do estômago. Se alguém objetar, como é provável, que a variação da comida das crianças, a mistura de alimentos a cada repasto, pode dar muito trabalho, nós respondemos que nenhum trabalho é considerado demasiado quando visa ao desenvolvimento mental; pois, para o seu futuro bem-estar, um bom desenvolvimento físico é igualmente da maior importância. Principalmente, parece coisa verdadeiramente estranha e triste, que um trabalho que é de boa vontade executado para engordar porcos, seja considerado demasiado quando se trata de criar crianças. Mais um parágrafo de prevenção aqueles que se propuserem adotar o regime indicado. A mudança não se deve efetuar subitamente, porque uma alimentação má, prolongada, enfraquece tanto o sistema que ele não poderá suportar de repente uma alimentação forte. Uma alimentação mesquinha é também causa de dispepsias. Isto é até verdade com os animais. «Quando os bezerros são sustentados a leite coagulado, ou nata, ou outra qualquer alimentação pobre são propensos a indigestão» Daqui se conclui, portanto que, quando as forças são pequenas, a transição para um regime alimentício rico deve fazer-se gradualmente: a cada aumento de força conquistada deve seguir-se um novo suplemento de nutrição. Além disso deve estar sempre no espírito que a concentração dos alimentos nutritivos não pode ser levada muito longe. Um bom repasto deve satisfazer completamente o estômago, o que indica que a massa dos alimentos tenha um certo volume. Embora o tamanho dos órgãos digestivos seja menor nas raças civilizadas bem alimentadas, do que nas raças selvagens, e, embora o seu tamanho possa diminuir ainda para futuro, contudo, atualmente, o volume dos ingredientes ingeridos deve ser determinado pela capacidade do estômago, Mas, prestando a consideração devida a estas duas qualificações, as nossas conclusões são - que a alimentação das crianças precisa de ser altamente nutritiva; que deve variar a cada repasto e em repastos sucessivos; e que deve ser abundante. Com o vestuário, como com a alimentação, a tendência é para uma insuficiência perniciosa. Neste ponto também, manifesta-se o ascetismo. A teoria corrente, senão apresentada em formulas definitivas, pelo menos vagamente expressa estabelece, que não se deve prestar atenção às nossas sensações. Que elas não podem servir-nos de guia, mas de extravio, parece ser a crença vulgar, reduzida a sua forma mais nua. É um grave erro; porque nós somos constituídos muito mais inteligentemente. A causa habitual dos nossos males físicos não é a obediência às nossas sensações, mas a desobediência a elas. O que faz mal não é comer quando há fome, mas comer quando não a ha. O vicio não é beber quando há sede, mas continuar a beber depois de apagada a sede. O mal não está em respirar aquele ar fresco que tão agradável é às pessoas que gozam saúde; mas em respirar ar viciado, apesar do protesto dos pulmões. O mal não está em efetuar exercícios ativos para os quais, como se pode ver nas crianças, a natureza fortemente os impele; mas em desprezar continuamente os ditames da natureza. Não é prejudicial a atividade espontânea e deleitosa; mas aquela que é continuada a despeito da febre e dos incômodos de cabeça. O exercício físico que é agradável ou indiferente não é o que prejudica; mas aquele que é continuado quando o cansaço o proíbe. Verdade é que as sensações não são guias valiosas para as pessoas que vivem constantemente na doença; as pessoas que durante muitos anos tem vivido constantemente em casa, que exercem excessivamente o cérebro, mas coisa alguma o corpo, que para jantar nunca consultaram o estômago, mas o relógio, podem na verdade ser enganadas pelos seus viciados sentimentos. Mas o seu estado anormal já é o resultado das transgressões aos seus sentimentos. Se nunca, desde a infância, tivessem desobedecido ao que nós podemos chamar a consciência física, ela nunca falharia, mas continuaria a ser um monitor fiel. Entre as sensações que nos servem de guia há o calor e o frio; e qualquer vestuário feito para crianças sem se ter rigorosamente em vista estas sensações, está condenado. A noção vulgar de que é necessário «enrijar» é um prejudicial engano. Muitas crianças têm ido «enrijar» fora do mundo; e aquelas que sobrevivem a um tal regime hão de sofrer constantemente, quer no seu desenvolvimento, quer na sua constituição. «A sua aparência delicada indica de sobra o mal produzido, e os frequentes ataques das doenças devem ser um aviso para os pais frívolos» diz o doutor Combe. A base em que se fundamenta esta teoria é extremamente superficial. Os pais ricos, vendo os rapazes e as raparigas dos lavradores a brincar a todo o ar, apenas semivestidos, e, adicionando a este fato a geral saúde da população dos campos, tira a injustificada conclusão que a saúde é o resultado da exposição ao ar, e resolve que os seus próprios filhos andem pouco enroupados! Esquece que o rapazio que salta nos adros das aldeias é, a muitos respeitos, favorecido pelas circunstancias - que a sua vida se gasta em quase perpétuos divertimentos; que está todo o dia respirando o ar fresco; e que o seu sistema nunca é perturbado pelas sobre-excitações do cérebro. Embora pareça o contrário, o bom estado da sua saúde é mantido, não em consequência do seu pouco vestuário, mas a despeito da falta dele. Esta conclusão é a que nós consideramos ser a verdadeira; porque a perda de calor animal a que estão sujeitos os rapazes do campo é um prejuízo inevitável. Quando a constituição é bastante sã para poder suporta-la, a exposição que produz o enrijecimento só se opera à custa do desenvolvimento do corpo. Esta verdade é tão aplicável aos animais como aos homens. Os garranos das Shetland suportam muito mais inclemências do que os cavalos do Sul, mas são anãos. Os carneiros e ovelhas das montanhas da Escócia, que vivem num clima mais frio, são enfeitados em comparação dos da Inglaterra. Nas regiões ártica e antártica, a raça humana, quanto a estatura, cai muito abaixo do estalão ordinário: os Lapônios e Esquimós são muito baixos; e os habitantes da Terra de Fogo, que vivem nus numa terra fria, são descritos por Darwin tão raquíticos e feios que «dificilmente a gente os pode crer como pertencentes à raça humana.» A ciência explica este enfeiamento pela subtração do calor, e mostra que, a alimentação e as outras condições sendo iguais, o seu resultado é inevitável. Porque, como já dissemos, para compensação do resfriamento, causado pela irradiação que o corpo sempre sofre, é necessário que haja uma oxidação constante de certas matérias que fazem parte da alimentação. E em proporção da grandeza da perda do calor, tem de ser a quantidade dessas matérias requeridas para a oxidação. Mas o poder dos órgãos digestivos é limitado. Consequentemente, quando tem de preparar uma grande quantidade desse material necessário para a sustentação da temperatura, só podem preparar uma quantidade pequena do material que é necessário para a constituição do corpo. O dispêndio excessivo de combustível implica uma diminuição de meios para outros fins. De onde resulta já uma diminuição na estatura, já uma inferioridade de tecidos, já ambas as coisas simultaneamente. Daqui podemos inferir a grande importância do vestuário. Como diz Liebig: - « O nosso vestuário é, a respeito da temperatura do corpo, um mero equivalente de uma certa quantidade de alimentação.» Diminuindo a perda do calor, diminui a quantidade de combustível necessário para sustentar o calor; quando o estômago tem menos trabalho em preparar combustível pode trabalhar mais em preparar os outros materiais. Esta dedução é confirmada pela experiencia daqueles que criam animais. O frio só é suportado pelos animais a expensas da sua gordura, de músculo, ou de crescimento, segundo os casos. «Se o gado que está na engorda for exposto a uma temperatura baixa, ou o seu desenvolvimento se atrasa, ou é necessário um grande aumento de alimentação.» Aperley insiste fortemente em que, para conservar os cavalos de caça em boas condições, é necessário conservar a estrebaria sempre quente. E entre os indivíduos que criam cavalos de corrida é doutrina corrente que se deve evitar a exposição ao ar. Esta verdade científica, corroborada pela etnologia e reconhecida pelos agricultores, e criadores, aplica-se, com força dupla, às crianças. Quanto mais pequenas são e quanto mais rápido é o seu desenvolvimento tanto maior é a influência que o frio tem sobre elas. Em França, no inverno, morrem muitas crianças por terem de ser levadas a casa do maire para registrar. «Quételet afirma que na Bélgica morrem duas crianças em janeiro por uma que morre em julho». E na Rússia a mortalidade das crianças é por vezes enorme. Mesmo quando se aproxima a idade madura, o corpo que não está desenvolvido é relativamente incapaz de suportar a exposição ao frio; como o testemunha a rapidez com que os soldados novos morrem nas campanhas ásperas. A razão é óbvia. Nós já advertimos que, em consequência da variada relação existente entre a superfície e a massa do corpo, uma criança perde relativamente uma porção maior de calor do que o adulto; é aqui legar para dizermos que a desvantagem sobre a qual elabora a criança é muito grande. Diz Lehmann: (Se o ácido carbônico, exalado pelas crianças ou pelos animais novos, for calculado em comparação do peso do corpo, ver-se-á que as crianças produzem quase três vezes mais acido do que os adultos». Ora a quantidade de ácido carbônico exalado varia, com igual vivacidade, com a quantidade de calor produzido. E assim nós vemos que nas crianças o sistema, mesmo quando não desvantajosamente colocado, é chamado a produzir uma proporção quase dupla de materiais geradores de calor. Veja-se, pois, a extrema loucura de vestir escassamente as crianças. Qual é o pai que, em seu pleno desenvolvimento, perdendo, como perde, menos rapidamente o calor, e não tendo nenhuma necessidade fisiológica além de prover a despesa diária - qual é pai, repetimos, que pensará que é saudável andar com as pernas, os braços e o pescoço nus? Com tudo esta contribuição lançada sobre o sistema, e à qual se furta, inflige ele aos seus próprios filhos, que são muito menos atos a suporta-la! ou, se não é ele que a inflige, consente sem protesto que outrem a inflige. Que ele se lembre de que cada onça de nutrição, dispendida sem necessidade para sustento da temperatura, é quanto se rouba á nutrição destinada a edificação do corpo; e que, quando mesmo se escape aos frios, às congestões e aos outros desarranjos consequentes, é inevitável a diminuição do crescimento e a imperfeição de estrutura. «A regra é, portanto, de não se vestir em todos os casos da mesma maneira, mas de se enroupar em qualidade e em quantidade suficiente para proteger o corpo contra qualquer sensação do frio, embora leve.» Esta regra, cuja importância o doutor Combe quer tornar bem saliente pelo itálico, é uma daquelas em que estão em harmonia os homens de ciência e os homens práticos. Não encontramos pessoa alguma competente para dar o seu voto nesta matéria, que não combata fortemente a exposição ao ar dos membros das crianças. Se há costume que deve ser reprovado, este «costume fatal» deve-o ser mais que todos. É realmente lamentável ver as mães prejudicarem tão gravemente a constituição dos seus filhos, pela transigência com as modas absurdas. Já não é pouco o mal que elas a si mesmo fazem, conformando-se a todas as loucuras que os nossos vizinhos de França se lembram de inventar; mas que vistam os seus filhos de saltimbancos, segundo as indicações de Le petit Courier des Dames, sem curarem da insuficiência ou da impropriedade de tais vestidos, isso é monstruoso. Sofre-se um desconforto, maior ou menor; originam-se desordens frequentes; susta-se o crescimento ou mina-se a constituição; provocam-se vulgarmente mortes prematuras; tudo porque se entende que é necessário mandar cortar os vestidos pelos moldes e fazendas do capricho francês, Não só, por amor da moda, as mães castigam e apoquentam os filhos com a insuficiência de vestuário; mas por motivo idêntico impõem um gênero de vestuário que proíbe a atividade salutar. Para agradar à vista, escolhem cores e tecidos completamente impróprios para o uso áspero que os divertimentos livres reclamam; e, portanto, para que as roupas não se estraguem, são proibidos esses livres divertimentos. « Levanta-te, olha que vais estragar a tua jaqueta nova», tal é a ordem dada a qualquer rapazinho que se ponha a brincar no chão. Venha cá; vai sujar as meias, diz a governante para um dos seus pupilos que deixa o caminho trilhado para trepar a um terrapleno. Este é o mal duplicado. Para que as crianças andem vestidas segundo a ideia que as mães fazem da beleza, e para que sejam admiradas pelas visitas, elas não têm vestidos próprios nem em quantidade, nem em qualidade, e para que os vestidos muito sujeitos se conservem novos e sem estragos, restringe-se a atividade incessante das crianças que lhes é tão natural e necessária. O exercício que é duplamente necessário quando o vestuário é insuficiente, é cerceado por que pode estragar a roupa. Oxalá que a terrível crueldade deste sistema possa ser apreciada por aqueles que a sustentam! Não hesitamos em afirmar que em o número de saúdes enfraquecidas, de energias perdidas e de vidas inutilizadas pelas suas consequências, há milhares de criaturas que anualmente são condenadas a desventura por este amor sem escrúpulos pelas aparências; quando não são, pelas mortes prematuras completamente sacrificadas ao Moloch da vaidade materna. Custa-nos a aconselhar medidas extremas, mas na verdade os males são de tal importância que somos levados a pedir uma interferência imediata dos pais. As nossas conclusões são, portanto, estas - os vestidos das crianças não devem ser tão pesados que produzam um calor opressivo mas devem ser sempre suficientes (É necessário notar-se que as crianças que desde o princípio se acostumarem a andar com os braços e as pernas descobertos, deixam de se aperceber do frio nos pontos expostos, exatamente como a nós sucede, com o tempo, que não sentimos o frio no rosto mesmo ao ar livre. Mas porque nas crianças assim acostumadas as sensações não protestam, não se segue que o sistema escape á injuria; o mesmo sucede com os habitantes da Terra de Fogo que também não escapam ao tempo a que andam expostos, embora suportem com indiferença a queda da neve sobre o corpo nu) para prevenirem qualquer sensação do frio; em vez de serem feitos de algodão, de linho ou dos tecidos geralmente empregados, devem ser de qualquer fazenda má conduta de calórico, como as fazendas grossas de lã; devem ser suficientemente fortes para suportarem qualquer ataque, ocasionado pelos divertimentos; e a sua cor deve ser tal que não sofra com o uso e com o tempo. Para a importância dos exercias físicos quase todos os povos se despertaram até certo ponto. Talvez não seja necessário alargar-me neste requisito da educação física, mais do que em muitos outros, pelo menos, ao que diz respeito aos rapazes. As escolas públicas; bem como as escolas particulares já tem sofríveis lugares de recreio; e é usual dedicar-se um belo espaço de tempo aos jogos ao ar livre, porque se reconheceu a sua necessidade. Neste ponto, embora ainda não em outros, admitiu-se que as sugestões do instinto juvenil devem com vantagem ser seguidas; e, realmente, na moderna pratica de se cortar as longas horas de lição, de manhã e de tarde, com alguns minutos de recreio ao ar livre, vemos nós uma tendência progressiva para se conformar os regulamentos das escolas com as sensações físicas dos alunos. Sobre este ponto temos, portanto, pouco a censurar ou a lembrar. Esta aquiescência, porém, fizemo-la somente quanto ao que dizia respeito aos rapazes. Desgraçadamente a coisa passa-se diversamente quanto às meninas. Temos diariamente oportunidade eventual de fazermos a comparação. Temos a vista uma escola de rapazes e outra de meninas; o contraste que entre uma e outra existe é notável: Na primeira, quase a totalidade do jardim-é um espaço aberto e areado, dando largo campo aos jogos, e adornado de postes e barras horizontais para os exercícios de ginástica. Todos os dias antes do almoço, às onze horas, ao meio dia e á tarde a vizinhança é acordada por uma celeuma de gritos e gargalhadas que os rapazes fazem a brincar; e em quanto eles estão fora das aulas, os olhos e os ouvidos dos vizinhos podem dar seguro testemunho de que os rapazes se entregam aquela atividade alegre que fortifica os pulsos e garante a todos os órgãos uma considerável atividade. Quão diverso é o quadro fornecido pelo «Colégio de Meninas!» Até nos ser comunicada a existência de um colégio de meninas, tão perto de nós como o de rapazes, ignoramo-la completamente. O jardim, tão extenso como o outro, não manifesta o menor sinal de divertimento, mas é completamente ocupado de relvados, de caminhos de areia, de maciços e canteiros de flores, no gosto vulgar dos jardins suburbanos. Durante cinco meses a nossa atenção não foi despertada por um grito ou por uma gargalhada. Algumas vezes víamos as meninas passeando vagarosamente ao longo do caminho com o livro de estudo na mão, ou então caminhando duas a duas. Uma vez, verdade é, vimos correr uma menina atrás de outra ao redor do jardim; mas, feita esta excepção, nunca mais vimos outro qualquer exercício ativo. Por que razão se dá tão espantosa diferença? Será porque a constituição das meninas divergirá completamente da dos rapazes a ponto de não precisar de exercícios ativos? Será porque as meninas não se sentem naturalmente impelidas para os divertimentos ruidosos, como os rapazes? ou será porque nos rapazes esta tendência natural é considerada como estimulo para a atividade do corpo sem a qual não pode haver desenvolvimento regular, enquanto que a Natureza deu essa tendência às meninas apenas para causarem as inquietações dos mestres? Talvez, porém, não compreendamos o fim que tem em vista as pessoas que são encarregadas da educação das meninas. Suspeitamos vagamente que elas não desejam produzir um físico robusto; que consideram uma boa saúde e uma força abundante como o quer que seja de plebeu; que uma certa delicadeza, a força suficiente para um passeio de uma ou duas milhas, um apetite frouxo e facilmente satisfeito, juntos a uma certa timidez que geralmente acompanha a fraqueza, são considerados como o ideal da educação das meninas. Não esperamos que alguém venha confirmar em voz alta esta nossa suspeita; mas imaginamos que o espírito das mestras se ocupa com um ideal de dama, tendo semelhança não pequena com este tipo. Se assim for, temos de admitir que o sistema estabelecido está perfeitamente calculado para realizar este ideal. Mas supor que este ideal é aquele que o homem procura é um perfeito engano. É verdade inquestionável que os homens são pouco afeiçoados a mulheres rudes como o sexo feio; concordamos plenamente que uma certa fraqueza relativa, como pedindo proteção de força superior, é um elemento de atração; mas a diferença que assim corresponde aos sentimentos do homem, é natural, pré-estabelecida, que se afirmará de per si sem o auxílio de meios artificiais. E, quando por meios artificiais se aumenta o grau dessa diferença, ela torna-se um elemento de repulsão e não de atração. «Nesse caso, as meninas devem ser educadas nas correrias desordenadas, a tornarem-se tão rudes como os rapazes, a desenvolverem-se aos saltos e aos murros!» exclama qualquer defensor das conveniências. É este, segundo presumimos, o atual receio das mestras. Ao que nos informaram, parece que nos «colégios de meninas» os divertimentos alegres, como os que fazem diariamente os rapazes, são uma ofensa digna de castigo; e inferimos que eles são proibidos com medo de que as meninas se habituem às maneiras dos rapazes. Contudo, tal receio não tem o mínimo fundamento. Porque se a atividade dos jogos não obsta a que os rapazes sejam mais tarde uns perfeitos cavalheiros; porque razão essa mesma atividade não deixará que as meninas sejam mais tarde umas perfeitas senhoras? Por mais rudes que sejam os jogos na sala de recreio, os rapazes que saem da escola não andam às cambalhotas pela rua, ou aos pinchos nos salões de visitas. Ao deixar as suas jaquetas, abandonam ao mesmo tempo os seus divertimentos de rapazes; e mostram um desejo ardente - por vezes até um desejo ridículo - em evitar tudo o que não é próprio de um homem. Ora se, chegando a idade própria, este sentimento de dignidade máscula põe um termo tão concludente às rapaziadas, porque razão não há de o sentimento da modéstia feminina, sentimento que se vai robustecendo à medida que se aproxima a idade madura, pôr termo eficaz aos divertimentos infantis das meninas? As mulheres não terão um respeito ainda maior pelas aparências do que o homem? e não despertará ele, portanto, uma oposição ainda mais forte a tudo o que for rude e turbulento? Quão absurdo não é supor que os instintos da mulher não se afirmarão de per si sem que seja necessária a rigorosa disciplina das mestras? Neste, como em outros casos, para se evitar os males de um artifício foi necessário recorrer a outro artifício. Como o exercício natural, espontâneo foi proibido, e reconhecidas como são as más consequências da falta de exercício, adotou-se um sistema de exercícios fictícios - a ginastica. Admitimos que a ginástica é melhor do que a falta absoluta de exercício; mas contestamos que ela seja um substituto de igual valor aos jogos. Os defeitos da ginástica são de dois gêneros - positivos e negativos. Em primeiro lugar, aqueles movimentos musculares regrados, são necessariamente menos variados do que aqueles que acompanham os divertimentos juvenis; não garantem uma distribuição de ação tão equitativa por todas as partes do corpo; de onde resulta que o exercício, recaindo sobre pontos especiais, produz mais depressa o cansaço do que os jogos; diremos ainda de passagem que esse exercício, constantemente repetido produzirá um desenvolvimento desproporcionado nos membros sobre que recai. Acresce ainda a circunstância de que a quantidade de exercício assim obtida é deficiente não só em consequência da sua singular distribuição, mas também em consequência da falta de interesse. Quando não se tornam repulsivos, como algumas vezes sucede, tomando a forma de lições marcadas, esses movimentos monótonos tornam-se fatalmente prejudiciais por não serem agradáveis. A emulação, verdade é, é empregada como estimulo; mas não é um estimulo duradouro, como a satisfação que acompanha os jogos variados. A objeção mais forte ainda contra a ginástica é a que vamos fazer. Os exercícios ginásticos além de serem inferiores aos jogos como quantidade de exercício muscular, ainda são mais inferiores como qualidade. A falta de relativa satisfação que nós apontamos como causa de abandono em pouco tempo dos exercícios artificiais, é também causa de inferioridade nos efeitos que produz sobre o sistema. A presunção vulgar de que, contanto que a soma de ação corpórea seja a mesma, pouco importa que a ação seja agradável ou não, é um grave erro. Uma excitação mental agradável tem uma influência altamente fortificante. Veja-se o efeito que as boas novas ou a visita de um velho amigo produzem sobre os enfermos. Note-se o cuidado com os médicos recomendam aos débeis uma companhia alegre. Lembre-se quão benéfica á saúde é a mudança de vistas. A verdade é que a felicidade assim obtida é o melhor dos tônicos. Acelerando a circulação do sangue, facilita o comprimento de todas as funções, tendendo, portanto, não só a aumentar a saúde quando ela existe, mas também a restaura-la quando for perdida. Daqui a superioridade intrínseca dos jogos sobre a ginástica. O extremo interesse que as crianças tomam pelos jogos e a alegria sem peias com que se entregam ás mais rudes folganças são de tanta importância como os exercícios que as acompanham. E como os exercícios ginásticos não produzem estes estímulos mentais são necessariamente deficientes. Repetindo, pois, que os exercícios formais da ginástica são preferíveis à falta de exercício - estabelecendo, também, que eles podem ser usados com vantagem como a auxílios suplementares; contestamos, todavia, que eles possam substituir os exercícios designados pela Natureza. Para as meninas, como para os rapazes, a atividade dos jogos para que os nossos instintos nos impelem é essencial ao bem-estar do corpo. Aquele que o proíbe, proíbe os meios de desenvolvimento físico, superiormente fornecidos. Resta-nos um ponto a tratar, ponto que talvez reclame maior consideração do que os precedentes. Afirma muita gente que entre as classes ilustradas, os adultos e os que, se aproximam da idade madura não são tão desenvolvidos, nem tão fortes como os pais. Ouvindo pela primeira vez este assunto, fomos levados a classifica-lo como uma das muitas manifestações da velha tendência em exaltar o passado, deprimindo-se o presente. Lembrando-me do fato, verificado pela medida das armaduras antigas, de que a estatura média é atualmente maior do que a dos homens do passado, e de que as taboas de mortalidade mostram que a duração da vida não diminuiu, antes aumentou, prestamos pouca atenção ao que nos parecia ser um prejuízo sem fundamento. Uma observação um pouco mais demorada abalou a nossa opinião. Excetuando a comparação das classes agrícolas, verificamos que na maioria dos casos os filhos não chegam a estatura dos pais, e quanto á corpulência, tendo-se em vista ainda a diferença de idade, parece haver agora igual inferioridade. Dizem os médicos que atualmente quase ninguém poderia suportar tantas sangrias como outrora. A calvície prematura é agora muito mais frequente; e a perda dos dentes dá-se na geração atual com uma frequência notável. No vigor geral, o contraste manifesta-se igualmente frisante. Os homens das gerações passadas, vivendo, como viviam, extravagantemente, suportavam muito mais do que os homens da geração presente, apesar de viverem com sobriedade. Apesar de beberem muito, de comerem a horas irregulares, de não se importarem com a qualidade do ar respirável e de prestarem pouca atenção à limpeza, os nossos pais eram capazes de aplicação mais prolongada sem prejuízo da saúde, mesmo na idade mais avançada; como o testemunham os anais do tribunal e do foro. Enquanto que nós que prestamos muito maior atenção ao nosso bem-estar; que comemos com moderação, e que não bebemos com excesso; que atendemos às condições da ventilação e da limpeza; que fazemos excursões anuais e vivemos numa época mais avançada das ciências medicas; - estamos continuamente a vergar sob o peso do trabalho. Prestando grande atenção às leis da saúde, parecemos ser muito mais fracos do que os nossos avós, que, a muitos respeitos, desafiavam as leis da saúde. E, a julgar pela aparência e pelas indisposições frequentes da geração nascente, parece que os homens do futuro serão ainda menos robustos do que nós. O que significa isto? Será porque a muita alimentação do passado, quer dos adultos quer das crianças, era menos prejudicial do que a escassa alimentação que nós vimos ser agora tão gerais? Será ocasionada pela insuficiência do vestuário apregoada pela teoria do «enrijecimento?» Será pelas proibições maiores ou menores, postas aos jogos da infância, em consideração por um falso requinte de educação? Segundo a nossa opinião, parece-nos provável que cada um desses erros tem o seu quinhão de responsabilidade no mal. (Não temos a certeza de que a propagação das moléstias constitucionais, embora sob formas secundarias, não seja devida em parte ao uso da vacinação, Muitos fatos em patologia sugerem, que quando o sistema de uma criança vacinada expele o vírus vacínico por meio de pústulas, tende também a expelir através dessas pústulas outras matérias mórbidas; especialmente se essas matérias mórbidas são daquelas que ordinariamente estão na pele, como sucede com algumas das piores. É, pois, muito possível - e até provável - que uma criança que tenha um mal constitucional bastante ligeiro para se manifestar em moléstia visível, possa, por intermédio de uma vacina viciada, transmitir o mal constitucional a outras crianças, e estas a outras) Mas há ainda outra influência perniciosa em ação, talvez mais poderosa do que todas as outras; referimo-nos ao excesso de aplicação mental. Nos velhos como nos novos, a tensão da vida moderna exige um esforço cada vez maior. Em todos os negócios e profissões, uma concorrência mais intensa onera o esforço e o engenho de todos os indivíduos; e para apropriar os novos a sustentação dos seus lugares sob esta terrível concorrência, eles vivem sujeitos a uma disciplina mais severa do que outrora. O dano é, portanto, duplo. Os pais, que tem de lutar asperamente com os seus multíplices concorrentes, e que, mesmo labutando nestas condições desvantajosas, tem de sustentar um gênero de vida mais dispendioso, são todo o ano obrigados, desde madrugada até altas horas da noite, a fazer pouco exercício, gozando poucos feriados. A constituição, abalada por esta excessiva aplicação, é transmitida aos filhos. E, depois, os filhos relativamente fracos, predispostos a sucumbir até debaixo de esforços ordinários, são obrigados a seguir um curso de estudos muito mais extenso do que aquele que era prescrito às fortes crianças das gerações passadas. As consequências desastrosas, que se podem prever, manifestam-se de toda a parte. Vá a gente onde for, por toda a parte nos chegará a notícia de casos de crianças ou adolescentes, de ambos os sexos, mais ou menos debilitados pelo excesso do estudo. Aqui, julgou-se necessário que uma criança fosse passar um ano no campo para sair do estado de debilidade assim produzido. Além, encontraremos uma congestão crônica do cérebro que dura há muitos meses, e ameaça permanecer por muito tempo ainda. Umas vezes, ouvimos contar o caso de uma febre, proveniente de uma sobre excitação qualquer produzida na escola. Outras vezes, mostra-se o exemplo de um rapaz que já fora obrigado a abandonar os estudos, e que depois de voltar a eles é frequentemente retirado da aula em delíquio. Isto são fatos, que não procuramos para esta demonstração, mas que caíram sob a nossa observação durante estes dois últimos anos; e numa esfera muito limitada. Nem por forma alguma esgotamos a lista. Mui recentemente tivemos ocasião de observar até que ponto o mal se torna hereditário. Uma senhora, filha de pais robustos, teve a saúde completamente alterada pelo regime de um colégio da Escócia, onde o sistema de pouca alimentação e excessivo trabalho lhe causa contínuos sofrimentos de vertigens, ao levantar-se, de manhã. Os filhos herdaram este enfraquecimento do cérebro, de modo que alguns deles são incapazes de suportar até um pequeno estudo, sem dores de cabeça e vertigens. Agora temos diariamente sob a vista, uma jovem senhora cujo sistema ficou alterado por toda a vida em virtude do regime colegial por que passou. A tal ponto a sobrecarregavam de trabalho, que não lhe restavam forças algumas para qualquer exercício, e agora depois de terminada a sua educação, vive constantemente doente. Quase não tem apetite, e quando o tem, é muito caprichoso; a maior parte das vezes recusa carne: tem as extremidades constantemente frias, embora esteja calor; uma fraqueza que só lhe consente os passeios mais vagarosos e por muito pouco tempo; palpitações quando sobe degraus; a vista muito irregular - tais são, juntos a um desenvolvimento acanhado e a uma frouxidão geral dos tecidos, alguns dos resultados a que chegou. A este caso temos de adicionar outro, sucedido com uma sua amiga, companheira de colégio, que afinal teve de abandonar completamente os estudos, obrigada pelo seu médico assistente. Se os males que se conhecem são tão frequentes, quanto mais não serão os que se não conhecem! Para cada caso em que as moléstias se evidenciam pelo excesso de aplicação, há provavelmente meia dúzia de casos em que o mal não é tão patente e se vai acumulando pouco a pouco - casos em que há um desarranjo frequente das funções, atribuído a esta ou aquela causa, ou a debilidade constitucional; casos em que há atraso ou prematura suspensão do crescimento do corpo; casos de tendência latente para a consumpção; casos de predisposição para as desordens cerebrais, agora tão vulgares, provoca das pelo trabalho da vida adulta. O modo como a saúde é assim esquecida deve ser perfeitamente claro a todos aqueles que conhecem os frequentes incômodos das pessoas de profissões esperas ou mercantis; esses devem refletir nos péssimos efeitos que uma aplicação excessiva deve produzir no sistema mal desenvolvido das crianças. Os moços não podem suportar tanta dureza, nem tanto exercício físico, nem tanto exercício mental, como os homens já maduros. Julgue-se, pois, se os homens sofrem evidentemente do exercício mental excessivo que aqueles exigem, como não será superior o mal que o exercício intelectual, por vezes igualmente excessivo, que se inflige aos moços! Realmente quando examinamos a disciplina cruel de tantas escolas é para admirar a sua extrema dureza, mas que ela possa ser por algum modo aturada. Tome-se o exemplo fornecido por Sir John Forbes, que tem conhecimento experimental do fato; e que ele afirma, depois de muitas investigações, ser o sistema adotado nas escolas de meninas da classe média de toda a Inglaterra. Omitindo minuciosas divisões de tempo, podemos sumariar desta maneiro o emprego das vinte e quatro horas do dia: No leito – 9 horas (as mais novas 10). Na escola, estudo e tarefas – 9 horas. Na escola, ou em casa, as mais velhas ocupadas nos estudos ou nos trabalhos, e as mais novas brincando - 3 1/2 horas (as mais novas 2 1/2). Em refeições - 1 1/2 horas. Exercício ao ar livre, em passeio, muitas vezes com o livro de estudo na mão, mas só quando está bom tempo - 1 hora. Total – 24 horas. E quais são os resultados deste «regime espantoso» como lhe chama Sir John Forbes? Fatalmente - a fraqueza, a - palidez, a falta de espírito, a doença. Mas ele descreve mais alguma coisa ainda. Este completo desprezo pelo bem-estar físico, adquirido pela ânsia de cultivar o espírito - continuo trabalho do cérebro e deficiente trabalho dos membros - diz ele que é habitualmente seguido não só de funções desordenadas, mas até de deformidades. Diz ele: «Visitamos ultimamente, numa grande cidade, um colégio de meninas que tinha quarenta alunas; e soubemos, depois de uma sindicância cuidadosa, que não havia uma menina das que ali estavam há mais de dois anos (e a maioria estava havia esse tempo) que não estivesse mais ou menos corcovada! É provável que de 1833 para cá, que foi quando isto se escreveu, se tenha feito algum progresso. Assim o esperamos. Mas que este sistema é ainda vulgar, que é em alguns casos levado a maior extremo do que outrora - isso podemos nós garanti-lo. Ha pouco tempo entramos numa escola normal de rapazes, destas que ultimamente foram instituídas para fornecerem às escolas professores bem disciplinados. Nesta escola, debaixo da fiscalização oficial, onde se deve observar qualquer coisa melhor do que o juízo dos mestres particulares de meninas, encontramos que a norma diária era a seguinte: As 6 horas eram chamados os estudantes, Das 7 ás 8 horas estudar, 8 ás 9 ler as Escrituras, rezar e almoçar, 9 ás 12 estudar, 12 a 1 1/4, descansar, principalmente passeio ou outro qualquer exercício, muitas vezes - estudar, 11/4, ás 2 jantar, a refeição levando geralmente 30 minutos, 2 ás 5 estudar, 5 ás 6 tomar chá e descansar, 6 ás 8 1/2 estudar, 8 l/2 ás 9 1/2 estudar particularmente, preparando as lições para o dia seguinte, As 10 deitar. Assim, nas vinte e quatro horas, oito são dedicadas ao sono; quatro e um quarto para vestir, rezar, comer, e os pequenos períodos que geralmente acompanham estes serviços; dez e meia são consagradas ao estudo; e uma e um quarto para os exercícios facultativos e muitas vezes proibidos. Contudo, não só as dez horas e meia de estudo obrigatório são elevadas a onze e meia, dedicando-se aos livros o espaço de tempo marcado para o exercício; mas também alguns dos estudantes levantam-se às quatro horas da manhã para estudarem as suas lições; e são atualmente estimulados pelos seus professores para assim o praticarem! O curso dos estudos que num dado tempo se tem de aprender é de tal modo extenso, e os professores, cujos créditos estão fortemente empenhados em que os discípulos fiquem bem nos exames, são tão instantes, que os discípulos chegam às vezes a gastar doze e treze horas por dia em trabalhos intelectuais! Não é necessário ser profeta para ver que o transtorno físico assim produzido deve ser grande. A doença é frequente: há sempre alunos na lista dos enfermos. A falta de apetite e a indigestão são vulgares. A diarreia é um dos incômodos mais persistentes: muitas vezes uma terça parte dos alunos anda simultaneamente com este incômodo. Queixam-se geralmente de dores de cabeça, e alguns sofrem quase diariamente, durante meses. Enquanto que uma certa percentagem deles não pode suportar este regime e tem de abandonar a aula. Que seja este o regime do que até certo ponto é uma instituição modelo, estabelecida e vigiada pelos homens mais esclarecidos do século, é um fato espantoso. Os exames severos, juntos ao curto período consagrado á sua preparação, forçam a recorrer a um sistema que inevitavelmente enfraquece a saúde de todos aqueles que tiverem de se sujeitar a ele; são prova senão de crueldade, então de lamentável ignorância. Este caso será em grande parte excepcional - talvez só encontre paralelo nas outras instituições do mesmo gênero. Mas por mais raros que sejam estes casos, são bastantes para provar que o espírito da geração nova está muito sobrecarregado. As exigências dessas escolas normais, exprimindo as ideias das classes ilustradas, mesmo na falta de qualquer outra prova, indicariam uma tendência dominante para um sistema desnecessariamente instante de educação intelectual. Parece extraordinário que haja tão pouca consciência dos perigos da educação excessiva durante a mocidade, quando há uma consciência tão geral dos perigos dessa educação durante a infância. Muitos pais ha que ao menos conhecem parcialmente as más consequências que se seguem a precocidade Infantil. Em todas as conversações se pode ouvir a reprovação daqueles que excitam muito cedo o espirito dos seus filhos. E o medo desta estimulação prematura é proporcional ao conhecimento que se possui dos seus efeitos, como o testemunha a opinião de um dos nossos mais distintos professores de fisiologia, que nos disse que não tencionava dar lição alguma ao filho, antes de ele ter oito anos de idade. Mas apesar de para toda a gente ser uma verdade familiar que um desenvolvimento forçado da inteligência na infância traz consigo a fraqueza física, a fraqueza intelectual e até a morte, parece que não se quer compreender que esta mesma verdade impera ainda na juventude. Contudo, ela é inquestionável. As faculdades só se desenvolvem numa certa ordem e numa certa proporção. Se o curso da educação se conforma a essa ordem e a essa proporção vai muito bem; se não se conforma, se as mais altas faculdades são prematuramente sobrecarregadas com o estudo de uma ordem de conhecimentos mais complexos e abstratos do que nessa época o espírito pode facilmente assimilar, ou se, por excesso de estudo, a inteligência em geral se desenvolve num grau superior aquele que é natural à idade, a vantagem anormal que se conquista será inevitavelmente acompanhada por algum mal equivalente, ou por mais do que o equivalente. Por que a Natureza é um caixeiro exato, e se lhe pedirdes em qualquer verba mais do que ela pode dispender, o balanço terá de ser feito com uma dedução a qualquer outra. Se se deixar a Natureza seguir o seu processo regular, tendo-se apenas cuidado em lhe fornecer em quantidades e qualidades próprias, os materiais brutos que cada idade requer para desenvolvimento físico e espiritual, ela oportunamente produzirá um indivíduo mais ou menos perfeitamente desenvolvido. Mas se se insistir no desenvolvimento prematuro ou impróprio de qualquer parte, ela poderá, com mais ou menos protesto, fazer à vontade; mas para que ela possa satisfazer esse excesso de trabalho impróprio terá de pôr de lado outra qualquer tarefa importante. Nunca se deve olvidar que é limitada a soma de energia vital que o corpo possui num momento dado; ora como essa soma é limitada, é impossível extrair dela maior quantidade de resultados do que a quantidade fixada. Na infância e na adolescência as requisições feitas à energia são variadas e urgentes. Como já dissemos, é necessário suprir ao dispêndio que diariamente resulta do exercício físico; os gastos do cérebro, produzidos pelo estudo do dia, tem de ser reconstituídos; há a prover ao crescimento adicional do corpo, bem como a um certo desenvolvimento adicional do cérebro: a isto deve adicionar-se a soma de energia distraída na digestão dos muitos alimentos necessários para fazerem face a essas multíplices exigências. Dedicar, portanto, um excesso de energia para qualquer dessas aplicações é distrai-lo de qualquer outra, o que fica provado e manifesto a priori e à posteriori pelo raciocínio, e pela experiencia. Toda a gente sabe, por exemplo, que a digestão de alimentos pesados requer uma tal energia que produz cansaço de espírito e de corpo, terminando frequentemente pelo sono. Toda a gente sabe que um exercício excessivo do corpo diminui o vigor das ideias - que a prostração temporária que se segue a qualquer exercício violento, ou a fadiga produzida por um passeio de trinta milhas, são acompanhadas por um desequilíbrio de força mental; que, depois de uma jornada de um mês, feita a pé, a inercia do espírito é tal que são necessários alguns dias para se voltar ao antigo vigor; e que nos lavradores que dispendem toda a vida no trabalho muscular a atividade do espírito é muito pequena. É ainda uma verdade, por todos conhecida, que durante os excessos de um crescimento rápido, como muitas vezes se dá na infância, se manifesta essa exigência de energia por uma prostração certa, quer no corpo, quer no espírito. Mais uma vez: - os fatos de que um exercício muscular violento depois de comer pôde fazer parar a digestão; de que as crianças postas muito cedo a trabalhar se tornam estupidas, mostram similarmente o antagonismo, mostram similarmente que o excesso de atividade numa direção qualquer implica deficiência em outras direções. A lei que assim se manifesta em casos tão extremos impera em toda a série dos fenômenos. Estas exigências violentas de energia tanto se dão quando são feitas regular e constantemente, como quando se efetuam em grande escala e subitamente. Portanto, se durante a juventude, o dispêndio de trabalho mental excede aquele que à Natureza possui, o fornecimento destinado para outros fins torna-se menor do que deve ser, aparecerão inevitavelmente incômodos de uma ou de outra espécie. Examinemos rapidamente o que são estes males. Supondo que a ultratividade do cérebro excede em grau moderado a atividade normal, dar-se-á apenas uma ligeira reação no desenvolvimento do corpo; a estatura cairá abaixo do estalão a que deveria chegar; a corpulência será menor do que poderia ser, ou será pior a qualidade dos tecidos. Necessariamente ocorrerá um ou mais desses efeitos. A abundância de sangue, fornecida ao cérebro durante o exercício mental, e durante o período subsequente em que se reconstitui o dispêndio de substancia cerebral, é sangue que deveria ter ido circular nos membros e nas vísceras; e o crescimento ou reparação para que este sangue deveria levar os materiais, perde-se. Sendo certa, como é, esta reação física, a questão é saber se o ganho resultante desta cultura excessiva será equivalente à perda que produz, - se a falta de desenvolvimento físico, ou se a necessidade da perfeição de estrutura que dá o vigor e a robustez será compensada por esse adicional de ciência. Quando o excesso de exercício mental é maior, os resultados que se seguem são então mais sérios, porque neste caso não atacam somente a perfeição do corpo, mas também a perfeição do espírito. É uma lei fisiológica, pela primeira vez demonstrada por M. Isidore St. Hilaire, e para a qual Mr. Lewes chama a atenção no seu ensaio sobre «Anões e Gigantes» que há antagonismo entre o crescimento e o desenvolvimento. Por crescimento, empregado no sentido antitético, deve entender-se o aumento de estatura; e por desenvolvimento, o aumento de estrutura, E a lei é que uma grande atividade em qualquer destes processos envolve um atraso ou suspensão no outro. A lagarta e a crisalida fornecem um exemplo familiar. Na lagarta há um aumento extremamente rápido de volume; mas a estrutura é pouco mais complexa quando ela chega ao seu máximo desenvolvimento. Na crisalida o volume não aumenta; pelo contrário, durante esta fase da existência, o peso diminui, embora o trabalho de uma estrutura mais complexa se efetue com uma grande atividade. O antagonismo? tão claro neste exemplo, é menos manifesto nos indivíduos superiores, porque os dois processos se operam simultaneamente. Mas vemo-lo perfeitamente bem se a nossa observação recair sobre o confronto dos dois sexos. As meninas desenvolvem-se em corpo e em espírito rapidamente, e deixam de crescer relativamente cedo. O desenvolvimento físico e mental dos rapazes é vagaroso, mas o seu crescimento é maior. Na idade em que as meninas estão desenvolvidas, completas, tendo em jogo todas as suas faculdades, os rapazes, cuja energia vital foi dirigida de preferência para a estatura estão relativamente incompletos em estrutura, o que se mostra num acanhamento relativo, físico e mental. Ora esta lei é tão verdadeira em cada uma das partes do organismo, como no seu todo. O desenvolvimento anormalmente rápido de qualquer órgão, em relação à estrutura, envolve uma suspensão prematura do seu crescimento; e isto tanto acontece com o órgão do espírito, como com qualquer outro órgão. O cérebro, que durante os primeiros anos é relativamente grande na sua massa, mas imperfeito na sua estrutura, se for obrigado a executar as suas funções, com uma atividade impropria, chegará a uma estrutura mais adiantada do que é próprio da sua idade; mas o resultado será uma diminuição de volume e de energia que ele, por outra forma, deveria adquirir. E esta é uma das causas parciais - talvez a causa capital - porque as crianças precoces, e os adolescentes que, durante um certo tempo, levando tudo de vencida, tantas vezes estacam e quebram as altas esperanças que os pais nelas fundamentam. Mas estes resultados de excessiva educação espiritual, desastrosos como são, são talvez menos desastrosos do que os efeitos produzidos sobre a saúde: - a constituição combalida, as faculdades enfraquecidas, os sentimentos mórbidos. Recentes descobertas em fisiologia mostraram como é imensa a influência do cérebro sobre as outras funções do corpo. A digestão, a circulação, e todos os processos orgânicos são profundamente afetados pela excitação cerebral. Quem tem visto repetir, como nós, a experiência primeiramente feita por Weber, que mostra a consequência da irritação do nervo vagus, que prende o cérebro ás vísceras - quem tem visto a ação do coração subitamente suspensa pela irritação deste nervo; recomeçando as suas funções vagarosamente logo que essa irritação cessa; e novamente suspensas se ela é repetida - terá uma compreensão viva da influência deprimente que um cérebro sobre-excitado exerce sobre o corpo. Os efeitos assim explicados fisiologicamente são também patenteados nas experiências ordinárias. Não há pessoa que não tenha sentido a palpitação que acompanha a esperança, o medo, a cólera, a alegria; - que não tenha observado quão laboriosa se torna a ação do coração quando estes sentimentos são violentos. E apesar de haver poucas pessoas que tenham experimentado as sensações extremas que produzem a suspensão da ação do coração e o desfalecimento, ninguém desconhece estas causas e estes efeitos. É também um fato vulgar que uma excitação mental de certa intensidade pode produzir um desarranjo de estômago. A perda de apetite é igualmente uma consequência vulgar dos estados do espírito, quer excessivamente alegres, quer excessivamente magoados. Quando qualquer ocorrência, originando um estado de espírito deleitoso ou pesaroso, se dá pouco depois de qualquer refeição, sucede muitas vezes que o estômago rejeita o que tiver ingerido, ou digere com grande dificuldade e repugnância. E, como qualquer pessoa que sobrecarregue demasiadamente o espírito pode atestar, até uma ação puramente intelectual pode, quando excessiva, produzir efeitos análogos. Ora a relação entre o cérebro e o corpo que é tão manifesta nestes casos extremos, impera igualmente nos casos ordinários menos salientes. Como as excitações cerebrais violentas, mas temporárias produzem perturbações violentas, mas temporárias nas vísceras; assim as excitações cerebrais violentas, mas crônicas, produzem perturbações menos violentas, mas crônicas. Isto não é só uma simples inferência: - é uma verdade que pode ser confirmada por todos os médicos; e é daquelas sobre que uma longa e triste experiencia nos habilita a dar testemunho pessoal. Desta sobre-excitação do espírito resultam vários graus e formas de desarranjos físicos, que por vezes precisam de muitos anos de forçado repouso para se curarem parcialmente. Umas vezes o coração é principalmente afetado; palpitações habitualmente; o pulso fraco, e em geral diminuição no número das pulsações de setenta e duas a sessenta, ou até menos ainda: outras vezes a desordem dá-se no estômago: - a dispepsia que faz da vida um fardo e que não tem outro remédio a não ser o tempo. Em muitos casos são afetados simultaneamente o coração e o estômago. O sono é curto e interrompido. E há mais ou menos uma depressão mental. Considere-se, pois, quão grande não deve ser o mal infligido às crianças e aos adolescentes pelas improprias excitações mentais. Esta perturbação constitucional deve seguir-se em maior ou menor grau a um exercício de cérebro, superior à medida normal que ele comporta; e quando não é tão excessivo que possa produzir um mal absoluto, é certo que causará uma progressiva decadência do físico. Com pouco e fastiento apetite, digestão imperfeita, e uma circulação fraca, como poderá o corpo desenvolver-se? A execução perfeita de todo o processo vital depende de uma abundancia bastante de bom sangue. Sem bastante sangue rico nenhuma glândula pode segregar convenientemente, nenhuma víscera pode executar completamente as suas funções. Sem bastante sangue generoso, nenhum nervo, nenhum músculo, nenhuma membrana, nenhum tecido pode ser eficazmente reparado. Sem bastante sangue generoso, o crescimento não pode ser regular, nem suficiente. Julgue-se, pois, quais devem ser as consequências quando a um corpo que está crescendo, o estômago fraco fornece um sangue insuficiente na quantidade e pobre na qualidade; quando o coração debilitado impulsione este sangue pobre e mesquinho com uma lentidão desnaturar. E se a degeneração física é uma consequência do estudo excessivo, como todos os que observam este assunto podem ver, como não se deve condenar gravemente este sistema de excessos de que acima demos exemplo! É um terrível engano, de qualquer ponto de vista que se encare, um tal sistema. É um erro em toda a amplitude da nossa aquisição dos conhecimentos. Porque o espirito, como o corpo, não pôde assimilar mais do que uma certa porção; e se o sobrecarregarem com mais fatos do que aqueles que ele pôde assimilar, bem depressa serão rejeitados: em vez de contribuírem para a edificação da fábrica intelectual, são logo rejeitados pela memória depois de-passarem pelo exame a que foram submetidos. É um erro também porque tende a tornar odioso o estudo. Quer pela associação de ideias, alcançada com um grande trabalho, quer pelo estado do cérebro que deixa atrás de si, esse sistema faz nascer a aversão pelos livros; e, em vez daquela cultura espontânea e progressiva produzida por uma educação racional, ha um retrocesso continuo. É um erro também, porque supõe que a aquisição dos conhecimentos é tudo, e esquece que coisa ainda muito mais importante é a organização dos conhecimentos, que necessita de tempo e de elaboração intelectual própria. Como Humboldt nota a respeito do progresso da inteligência em geral, que «a interpretação da Natureza é obscura quando a descrição se enfraquece sob o peso de uma grande acumulação de fatos isolados » o mesmo há a notar a respeito do progresso da inteligência individual, porque o espírito é sobrecarregado e confundido por um excesso de mal digeridas informações. Não são os conhecimentos amontoados, como uma gordura intelectual, que tem valor; mas aqueles que se transformam em musculo intelectual. O erro é mais profundo ainda. Se esse sistema fosse ainda bom para produzir um desenvolvimento eficaz da inteligência, o que não é verdade, seria ainda mau, porque, como mostramos, ele é fatal àquele vigor do físico necessário para fazer com que a educação intelectual seja útil para a luta da vida. Aqueles que, na avidez de cultivarem o espírito dos seus discípulos, não tratam dos seus corpos, esquecem-se de que o bom êxito no mundo depende mais da energia do que do estudo; e de que um sistema de excessivas informações, mina a energia e produz a sua própria derrota. A vontade forte e a atividade indefessa, devidas a um vigor animal abundante, chegam a compensar até grandes defeitos de educação; e quando juntas aquela educação própria que se obtém sem sacrifício de saúde, tem certa uma vitória fácil sobre concorrentes enfraquecidos pelo excessivo estudo, ainda que eles sejam uns prodígios de ciência. Uma máquina relativamente menor e mais malfeita, mas trabalhando com alta pressão, pode fazer mais obra do que uma outra maior e mais perfeita, mas que trabalhe a baixa pressão. Que loucura não é, portanto, querer aperfeiçoar a máquina a ponto de danificar a caldeira, de modo que não possa produzir vapor! Mais uma vez; tal sistema é um erro, pretendendo basear-se numa falsa apreciação da felicidade da vida. Supondo mesmo que ele fosse um meio de sucesso mundano, em vez de ser, como é, uma frustração, ainda assim, provocando um mau estado de saúde, ocasionaria um mal sem compensação equivalente. Que vantagens haveria em se ganhar riquezas, se essas riquezas são acompanhadas por doenças incessantes? De que valem distinções, se elas trouxerem consigo a hipocondria? Com certeza que não é necessário dizer-se a pessoa alguma que uma boa digestão, um pulso forte, e um caráter alegre são elementos de felicidade que não podem ser substituídos por quaisquer vantagens externas. Um incômodo físico crônico lança tristeza sobre os projetos mais brilhantes, em quanto que a vivacidade de uma saúde forte alegra até os infortúnios. Afirmamos, pois, que o sistema educador pelos excessos de trabalho é vicioso em todos os sentidos - vicioso como processo de aquisição de conhecimentos, que bem depressa se varrem da memória; vicioso, porque faz considerar o estudo com repugnância; vicioso, porque desconhece que a organização dos conhecimentos é mais importante do que a aquisição deles; vicioso, porque enfraquece ou destrói aquela energia sem a qual uma inteligência culta é improdutiva; vicioso, porque provoca aquele mau estado de saúde que nenhuma vitória pode compensar, e que torna as derrotas duplamente amargas. Nas mulheres os defeitos deste sistema forçado são, se é possível, ainda mais nocivos do que nos homens. Privadas como são em grande escala dos exercícios vigorosos e alegres pelos quais os rapazes mitigam os inconvenientes dos estudos excessivos, as meninas sofrem todos os males na sua máxima intensidade. Daqui resulta o pequeno número delas que crescem bem proporcionalmente e saudáveis. Nessas meninas pálidas, angulosas, de peito chato, tão abundantes nos salões de Londres, nós vemos os efeitos de uma aplicação impiedosa sem o socorro dos brinquedos da mocidade; e essa degeneração física prejudica muito mais a sua felicidade do que valem todas as suas prendas. As mães, que só anseiam por ver atraentes as suas filhas, mal poderiam escolher um sistema mais fatal do que este, que sacrifica o corpo ao espírito. Ou elas não se importam com as apreciações dos homens, ou então é muito falsa a concepção que fazem das suas apreciações. Os homens pouco se importam com a erudição das mulheres; mas importam-se e muito com a sua beleza física, com o seu bom caráter, e com o seu bom senso. Quantas conquistas fará uma sabichona por causa dos seus extensos conhecimentos históricos? Qual é o homem que se apaixona por uma mulher por ela saber italiano? Onde está o Edwin que cai aos pés de Angelina porque ela fala o alemão? Mas as faces cor de rosa e os olhos risonhos são grandes atrativos. Um rosto belamente oval atrai olhares de admiração. A vivacidade e o bom humor que uma saúde florescente produz concorrem poderosamente para as perpetuas afeições. Toda a gente conhece muitos casos em que as perfeições físicas, na ausência de todas as outras recomendações, têm incitado paixões irresistíveis, mas pouca gente haverá que possa apontar um caso em que o desenvolvimento intelectual, desacompanhado de outros atributos morais ou físicos, despertasse um tal sentimento. A verdade é que de todos os elementos, que se unem em várias proporções para produzirem no coração do homem a complexa comoção que se chama o amor, os mais fortes são os que os atrativos físicos despertam; os segundos em gradação de força são os atrativos morais; os mais fracos são os atrativos intelectuais, ainda assim não são aqueles que resultam da ciência adquirida, porém, mui principalmente, os que são oriundos das faculdades naturais, tais como a vivacidade, o espírito, a perspicácia. Se alguém pensar que a nossa asserção é aviltante para o caráter dos homens porque se deixam dominar desta maneira, nós responder-lhe-emos que não sabe o que diz quando põe em questão as ordenações divinas; ainda que nesta ordem de coisas não houvesse uma inteligência manifesta, nós podemos estar certos de que a natureza teve em vista algum fim importante. Mas essa inteligência é perfeitamente patente a todos os que observam, Quando nos lembramos que um dos fins da Natureza, ou melhor que o seu fim supremo, é a felicidade da posteridade; e que, em toda a amplitude que lhe diz respeito, uma inteligência baseada num mau físico é de pouco valor, pois que os seus descendentes morrerão numa ou duas gerações; e inversamente que um bom físico, embora desacompanhado de dotes espirituais, merece ser conservado, porque) através das gerações futuras as faculdades intelectuais devem ser indefinidamente desenvolvidas, nós vemos quão importante é essa orientação dos instintos acima descritos. Mas, abstraindo desta verdade, como os nossos instintos estão assim orientados, é uma loucura persistir num sistema que tanto prejudica a constituição das crianças só para lhes sobrecarregar a memória. Eduquem tão distintamente quanto possível for - no melhor e no mais alto grau - contanto que não produzam qualquer incômodo físico (e observaremos de passagem, que se poderia alcançar um alto grau intelectual se fosse menos cultivada a memória de papagaio e mais as faculdades humanas, e se a disciplina se estendesse por aquele vasto período existente entre a escola e o casamento). Mas educar desta maneira, produzindo uma degeneração física, é perder o fim principal de todos os cuidados, de todas as despesas, de todas as ansiedades. Sujeitando as filhas a este sistema de alta pressão, os pais na maior parte das vezes aniquilam o futuro delas. Além de lhes infligirem uma saúde precária, com todos os seus trabalhos, incapacidades e tristezas, condenam-nas mui frequentemente ao celibato. Desta sorte, a educação das crianças é por diversas maneiras seriamente errada. Não dá alimentação suficiente; nem agasalho; nem exercício bastante (pelo menos no que diz respeito às meninas); mas sobrecarrega as crianças com demasiadas aplicações mentais. Considerando o regime no seu todo, a sua tendência é para as grandes exigências: pede muito e concede pouco. Pelo modo como ele oprime as energias vitais, faz a vida juvenil mais semelhante à vida adulta do que o deve fazer. Desconhece a verdade que - assim como no feto toda a vitalidade se gasta no crescimento - assim como na criança a despesa de vitalidade em crescimento é tamanha que não deixa senão uma parcela muito pequena para qualquer outra ação intelectual ou física; assim também durante a infância e a adolescência, o crescimento é a exigência dominante á qual todas as outras são subordinadas: exigência que ordena o emprego de muitas forças e não justifica a ausência de nenhuma; exigência, que, portanto, restringe a ação do corpo e do espirito proporcionalmente à rapidez do crescimento - exigência que permite ás atividades intelectuais e físicas aumentaram na razão inversa do grau de crescimento. A razão em que se baseia a educação de alta pressão é que ela é o resultado da fase passada da nossa civilização. Nos tempos primitivos, quando o ataque e a defesa constituíam as principais atividades sociais, o vigor físico com a sua coragem correspondente era o ideal; e então a educação era quase toda completamente física: a cultura do espírito descurava-se e até, como nas épocas feudais, era tratada com desprezo. Mas agora que o nosso século é relativamente pacifico - agora que a nossa força muscular tem pouca aplicação a não ser no trabalho manual, ao mesmo tempo que o sucesso da vida depende muito mais das atividades intelectuais, a nossa educação tornou-se quase exclusivamente mental. Ambos os extremos são maus. Ainda não demos corpo a esta verdade - assim como as faculdades físicas se antepõem às faculdades mentais, também as faculdades mentais não devem ser desenvolvidas à custa das faculdades físicas. As duas concepções da educação, a antiga e a moderno, devem ser combinadas. Talvez coisa alguma apressará mais a época em que o corpo e o espírito hão de ser cuidados adequadamente como a difusão da crença de que a conservação da saúde é um dever. Pouca gente parece saber que há uma coisa chamada a moralidade física. Geralmente as palavras e as ações dos homens supõem a ideia de que eles têm a liberdade de tratarem do corpo como lhes aprouver. Os males provocados pela desobediência aos ditames da Natureza, considera-os eles como simples acidentes: não como efeitos de um procedimento mais ou menos vicioso. Posto que as más consequências infligidas sobre aqueles que nelas incorrem e sobre as gerações futuras sejam por vezes tão grandes como as que resultam dum crime, eles não pensam que são por forma alguma criminosos. Verdade é que, por exemplo, no caso de embriaguez, o vício é reconhecido como uma transgressão física; mas parece que ninguém infere daqui que se esta transgressão é viciosa, também o é toda a transgressão física. O fato é que todas as infrações das leis da saúde são pecados físicos. Quando isto for visto por toda a gente, então, mas antes não de certo, receberá a educação física da mocidade a atenção que ela merece. FIM