Auguste Comte - Discurso Preliminar Sobre o Conjunto do Positivismo ÍNDICE Preâmbulo geral Primeira Parte - Espírito fundamental do positivismo Enfastia-se de pensar e até de agir, mas nunca de amar. NESTA SÉRIE de visões sistemáticas sobre o positivismo, caracterizarei seus elementos fundamentais, seus apoios necessários e, finalmente, seu complemento essencial. Apesar dessa tripla apreciação dever ser muito sumária, bastará, espero, para ultrapassar definitivamente prevenções desculpáveis, embora empíricas. Todo leitor bem preparado poderá constatar, assim, que a nova doutrina geral, que até agora parece só poder satisfazer à razão, não é, no fundo, menos favorável ao sentimento e até mesmo à imaginação. PREÂMBULO GERAL O positivismo se compõe essencialmente de uma filosofia e de uma política, necessariamente inseparáveis, uma constituindo a base, a outra a meta de um mesmo sistema universal, onde inteligência e sociabilidade se encontram intimamente combinados. De uma parte, a ciência social não é somente a mais importante de todas, mas fornece sobretudo o único elo, ao mesmo tempo lógico e científico, que de agora em diante comporta o conjunto de nossas contemplações reais. (O estabelecimento deste grande princípio constitui o resultado mais essencial de meu Sistema de filosofia positiva. Embora todos os seis volumes dessa obra já tenham aparecido de 1830 a 1842, sob o título de Curso (sugerido pela elaboração oral que, em 1826 e 1829, preparou esse tratado fundamental), sempre em seguida o qualifiquei de Sistema, para marcar melhor seu verdadeiro caráter. Na espera que uma segunda edição regularize essa retificação, este aviso especial prevenirá, assim o espero, toda má compreensão a esse respeito). Ora, a ciência final, ainda mais do que cada uma das ciências preliminares, não pode desenvolver seu verdadeiro caráter sem uma exata harmonia geral com a arte correspondente. Mas, por uma coincidência de nenhum modo fortuita, sua fundação teórica encontra logo imenso destino prático, a fim de presidir hoje toda a regeneração da Europa Ocidental. De outra parte, na medida em que o curso natural dos acontecimentos caracteriza a grande crise moderna, a reorganização política se apresenta cada vez mais como necessariamente impossível, sem a reconstrução prévia das opiniões e dos costumes. Uma sistematização real de todos os pensamentos humanos constitui pois nossa primeira necessidade social, igualmente quanto à ordem e ao progresso. A realização gradual desta ampla elaboração filosófica fará espontaneamente surgir, em todo o Ocidente, uma nova autoridade moral, cuja inevitável ascendência colocará a base direta da reorganização final, ligando as diversas populações avançadas através da mesma educação geral, que fornecerá para toda parte, para a vida pública como para a vida privada, princípios fixos de julgamento e de conduta. Desse modo, os movimentos intelectuais e de comoção sociais, cada vez mais solidários, conduzem de agora em diante a elite da humanidade ao advento decisivo de um verdadeiro poder espiritual, ao mesmo tempo mais consistente e mais progressivo do que aquele esboçado prematuramente, numa tentativa admirável, pela Idade Média. Tal é, pois, a missão fundamental do positivismo: generalizar a ciência real e sistematizar a arte social. Essas duas faces inseparáveis de uma mesma concepção serão sucessivamente caracterizadas pelas duas partes deste discurso, indicando, primeiro, o espírito geral da nova filosofia e, em seguida, sua conexidade necessária com o conjunto da grande revolução de que ela dirigirá o término orgânico. A essa dupla apreciação sucederá naturalmente a dos principais apoios adequados à doutrina regeneradora. Esta indispensável adesão não poderia hoje, salvo preciosas exceções individuais, provir de qualquer uma das classes dirigentes que, todas elas dominadas mais ou menos pelo empirismo metafísico e pelo egoísmo aristocrático, só podem tender, em sua cega agitação política, a prolongar indefinidamente a situação revolucionária, disputando entre si os restos vãos do regime teológico e militar, sem nunca conduzir a uma verdadeira renovação. A natureza intelectual do positivismo e sua destinação social somente lhe permite sucesso verdadeiramente decisivo, no meio em que o bom senso, preservado de uma cultura viciosa, deixa prevalecer melhor as visões do conjunto, onde os sentimentos gerais são menos reprimidos. A esse duplo titulo, proletários e mulheres constituem necessariamente os auxiliares essenciais de nova doutrina geral que, embora destinada a todas as classes modernas, só obterá ascendência verdadeira nas camadas superiores, quando surgir sob este irresistível patrocínio. A reorganização espiritual só pode começar com o concurso dos mesmos elementos sociais que em seguida devem secundar, do melhor modo, seu voo regular. Em virtude de sua menor participação no governo político, estão mais propícios a sentir a necessidade e as condições do governo moral, destinado sobretudo a garantir-lhes contra a opressão temporal. Farei, pois, que a terceira parte deste discurso caracterize sumariamente a coalizão fundamental entre os filósofos e os proletários, a qual, preparada de ambos os lados pelo conjunto do passado moderno, é a única a produzir hoje um impulso verdadeiramente decisivo. Perceber-se-á assim que, aplicando-se a retificar e a desenvolver as tendências populares, o positivismo aperfeiçoará e consolidará de muito sua própria natureza, ela mesma intelectual. No entanto, essa doutrina apenas mostrará toda sua potência orgânica e manifestará plenamente seu verdadeiro caráter, adquirindo o apoio menos previsto como prêmio de sua aptidão necessária a melhorar e a regularizar a condição social das mulheres, como indicará especialmente a quarta parte deste discurso. O ponto de vista feminino é o único a permitir à filosofia positiva abranger o autêntico conjunto da existência humana, ao mesmo tempo individual e coletiva. Pois essa existência não pode ser dignamente sistematizada a não ser tomando por base a subordinação contínua da inteligência à sociabilidade, diretamente representada pela verdadeira natureza pessoal e social da mulher. Embora este discurso deva simplesmente esboçar essas duas grandes explicações, fará, espero, com que se perceba suficientemente quanto o positivismo está mais apto do que o catolicismo a utilizar profundamente as tendências espontâneas do povo e das mulheres para a instituição final do poder espiritual. Ora, a nova doutrina só pode obter esse duplo apoio na base de sua aptidão exclusiva para dissipar radicalmente as diversas utopias anárquicas, que, cada vez mais, ameaçam toda existência doméstica e social. Ao mesmo tempo, de ambas as partes, muito enobrecerá o caráter fundamental e sancionará ativamente todos os votos legítimos. É assim que uma filosofia, provindo primeiramente das mais altas especulações, já se mostra capaz de abraçar, sem esforço, não somente a plenitude da vida ativa, mas também o conjunto da vida afetiva. No entanto, para manifestar inteiramente sua universalidade característica, deverei ainda assinalar um complemento indispensável, indicando enfim, apesar dos preconceitos muito plausíveis, sua profunda aptidão a fecundar também essas brilhantes faculdades que melhor representam a unidade humana, na medida em que, contemplativas por sua natureza, elas se vinculam ao sentimento, mediante seu principal domínio, e à atividade, mediante sua influência geral. Essa apreciação estética do positivismo será diretamente esboçada na quinta parte deste discurso, como consequência natural da explicação relativa às mulheres. Aí farei, espero, entrever como a nova doutrina, justamente por abarcar realmente o conjunto das relações humanas, é a única a poder preencher uma grande lacuna especulativa, logo constituindo uma verdadeira teoria geral das belas-artes, cujo princípio consiste em colocar a idealização poética entre a concepção filosófica e a realização política, na coordenação positiva das funções fundamentais da humanidade. Essa teoria explicará por que a eficácia estética do positivismo só poderá manifestar-se pelas produções características, quando a regeneração intelectual e moral se encontrar bastante avançada para já ter despertado as principais simpatias que lhe são próprias e sobre as quais deverá repousar o novo florescimento da arte. Mas, depois dessa primeira comoção mental e social, a poesia moderna, investida enfim de sua verdadeira dignidade, virá, por sua vez, conduzir a humanidade para um futuro que não será mais nem vago nem quimérico, tornando ainda familiar a sã apreciação dos diversos estados anteriores. Um sistema, que erige diretamente o aperfeiçoamento universal em meta fundamental de toda a nossa existência pessoal e social, determina necessariamente um ofício capital às faculdades destinadas sobretudo a cultivar em nós o instinto da perfeição em todos os gêneros. Os estreitos limites deste discurso não me impedirão, ademais, de indicar que, embora abrindo à arte moderna uma imensa carreira, o positivismo lhe fornecerá, não menos espontaneamente, novos meios gerais. Terei assim esboçado plenamente o verdadeiro caráter da doutrina regeneradora, sucessivamente apreciada sob todos os aspectos principais, passando, conforme um encadeamento sempre natural, primeiro, de sua fundação filosófica à sua destinação política, daí à sua eficácia popular, em seguida, à sua influência feminina, terminando em sua aptidão estética. Para concluir este longo discurso, simples prelúdio de um grande tratado, só me restará indicar como todas essas diversas apreciações, espontaneamente resumidas por uma divisa decisiva, vêm condensar-se ativamente na concepção real da humanidade que, dignamente sistematizada, constitui finalmente a total unidade do positivismo. Formulando essas conclusões características, serei naturalmente conduzido também a assinalar, em geral, conforme ao conjunto do passado, a marcha anterior da regeneração humana que, limitada de início, sob a iniciativa francesa, à grande família ocidental, deverá estender-se, em seguida, segundo as leis indicáveis, a todo o resto da raça branca, e até mesmo, enfim, às duas outras raças principais. PRIMEIRA PARTE Espírito fundamental do positivismo A VERDADEIRA filosofia se propõe a sistematizar, tanto quanto possível, toda a existência humana, individual e sobretudo coletiva, contemplada ao mesmo tempo nas três ordens de fenômenos que a caracterizam, pensamentos, sentimentos e atos. Sob todos esses aspectos, a evolução fundamental da humanidade é necessariamente espontânea, e a exata apreciação de sua marcha natural é a única a nos fornecer a base geral de uma sábia intervenção. Mas as modificações sistemáticas, que aí podemos introduzir, possuem, entretanto, extrema importância para muito diminuir os desvios parciais, os atrasos funestos e as graves incoerências, próprias a um voo tão complexo, se permanecesse inteiramente abandonado a si próprio. A realização contínua dessa indispensável intervenção constitui o domínio essencial da política. No entanto, sua verdadeira concepção só pode provir da filosofia, que aperfeiçoa sem cessar sua determinação geral. Para essa comum destinação fundamental, o ofício próprio da filosofia consiste em coordenar entre elas todas as partes da existência humana, a fim de conduzir a noção teórica a uma completa unidade. Tal síntese não poderia ser real a não ser que representasse exatamente o conjunto das relações naturais, cujo estudo judicioso vem a ser a condição prévia dessa construção. Se a filosofia tentasse influenciar diretamente a vida ativa, a não ser mediante essa sistematização, usurparia viciosamente a missão necessária da política, o único arbítrio legítimo de toda evolução prática. Entre essas duas funções principais do grande organismo, o elo contínuo e a separação normal residem, ao mesmo tempo, na moral sistemática, que constitui naturalmente a aplicação característica da filosofia e o guia geral da política. Explicarei, ademais, como a moral espontânea, isto é, o conjunto dos sentimentos que a inspiram, deve sempre dominar as investigações de uma e as empresas de outra, como indiquei em minha obra fundamental. Essa grande coordenação, que caracteriza o ofício social da filosofia, só poderia ser real e durável abarcando o conjunto de seu triplo domínio, especulativo, afetivo e ativo. Conforme as reações naturais que unem intimamente essas três ordens de fenômenos, toda sistematização parcial seria necessariamente quimérica e insuficiente. No entanto, somente hoje a filosofia, atingindo o estado positivo, pode enfim conceber dignamente a verdadeira plenitude de sua missão fundamental. A sistematização teológica proveio espontaneamente da vida afetiva, devendo igualmente a essa única origem sua preponderância inicial e sua dissolução final. Dominou, por muito tempo, as principais especulações, sobretudo durante a idade politéica, quando o raciocínio restringia ainda muito pouco o primitivo império da imaginação e do sentimento. Mas, mesmo nessa época de sua grande força mental e social, a vida ativa escapou-lhe essencialmente, salvo inevitáveis reações, em geral mais relativas à forma do que ao conteúdo. Essa cisão natural, embora no início insensível, tendeu em seguida, graças a seu crescimento contínuo, a dissolver radicalmente a construção inicial. Uma coordenação puramente subjetiva não poderia acordar com a destinação necessariamente objetiva, que caracteriza a existência prática, conforme sua invencível realidade. Enquanto uma representava todos os fenômenos como regidos por vontades mais ou menos arbitrárias, a outra cada vez mais levava a concebê-los sujeitos a leis invariáveis, sem as quais nossa atividade contínua não poderia comportar regra alguma. Segundo essa impotência radical de abarcar realmente a vida ativa, a sistematização teológica teve também de permanecer sempre muito incompleta quanto à vida especulativa e até mesmo afetiva, cujo florescimento geral se subordina necessariamente às principais exigências práticas. A existência humana não podia, pois, sistematizar-se plenamente, enquanto o regime teológico prevalecesse, porque nossos sentimentos e nossos atos imprimiam então a nossos pensamentos dois impulsos essencialmente inconciliáveis. Seria ademais supérfluo apreciar aqui a inanidade necessária da coordenação metafísica que, a despeito de suas pretensões absolutas, nunca pôde retirar da teologia o domínio afetivo, sendo sempre menos própria a abarcar a vida ativa. No tempo de seu maior esplendor escolástico, a sistematização ontológica não saiu do domínio especulativo, reduzido aliás à vã contemplação abstrata de uma evolução puramente individual. O espírito metafísico é radicalmente incompatível com o ponto de vista social. Demonstrei suficientemente, em minha obra fundamental, que este espírito transitório nunca foi capaz de realmente construir algo. Sua dominação excepcional comportava somente um destino revolucionário, para secundar a evolução preliminar da humanidade, decompondo pouco a pouco o regime teológico que, depois de ter dirigido sozinho o crescimento inicial, haveria de converter-se, sob todos os aspectos, em retrógrado de modo irrevogável. Por isso mesmo, todas as especulações positivas provieram, primeiro, da vida ativa, manifestaram sempre mais ou menos sua aptidão característica para sistematizar a existência prática, que a coordenação primitiva não podia abraçar. Embora seu defeito de generalidade e de ligação ainda entrave muito o desenvolvimento dessa propriedade, não impediu seu sentimento universal. Teorias, diretamente relativas às leis dos fenômenos e destinadas a fornecer previsões reais, são hoje apreciadas sobretudo como as únicas capazes de regularizar nossa ação espontânea sobre o mundo exterior. É porque o espírito positivo pode vir a ser cada vez mais teórico e tender a conquistar paulatinamente todo o domínio especulativo, sem nunca perder a aptidão prática inerente à sua origem, mesmo quando perseguia investigações verdadeiramente ociosas, desculpáveis somente a título de exercícios lógicos. Desde seu primeiro florescimento matemático e astronômico, mostrou sua tendência a sistematizar o conjunto de nossas concepções, segundo a extensão contínua de seu princípio fundamental. Esse novo princípio filosófico, depois de ter muito tempo modificado cada vez mais o princípio teológico metafísico, esforça-se evidentemente, desde Descartes e Bacon, por substituí-lo irrevogavelmente. Tendo assim tomado gradualmente posse de todos os estudos preliminares, de agora em diante liberados do antigo regime, faltava-lhe completar sua generalização apossando-se também do estudo final dos fenômenos sociais. Interditado ao espírito metafísico, este estudo nunca foi apreendido pelo espírito teológico a não ser de uma maneira indireta e empírica, como condição de governo. Ora, esse complemento decisivo foi, ouso dizer, suficientemente realizado, em minha elaboração fundamental, para já tornar incontestável a aptidão do princípio positivo em coordenar toda existência especulativa, sem parar de desenvolver e até mesmo de fortalecer sua tendência inicial em também regularizar a vida ativa. A coordenação positiva de todo o domínio intelectual se encontra assim tanto melhor assegurada quanto essa criação da ciência social, completando o florescimento de nossas contemplações reais, imprime-lhe logo o caráter sistemático que lhe faltava ainda, oferecendo necessariamente o único elo universal que comportam. Essa concepção está suficientemente dotada para que algum verdadeiro pensador desconheça agora a tendência necessária do espírito positivo para uma sistematização durável, compreendendo ao mesmo tempo existência especulativa e ativa. Mas tal coordenação estaria ainda longe de apresentar a total universalidade, sem a qual o positivismo permaneceria impróprio para substituir inteiramente o teologismo no governo espiritual da humanidade; se não abarcasse a parte verdadeiramente preponderante de toda existência humana, a vida afetiva. Só esta fornece às duas outras impulso e direção contínuos, sem os quais seu próprio nascimento logo se consumiria em contemplações viciosas ou ao menos ociosas, numa agitação estéril ou até mesmo perturbadora. A persistência dessa imensa lacuna tornaria de resto ilusória a dupla coordenação teórica e prática, privando-a do único princípio que lhe possa trazer uma consistência real e durável. Tal impotência seria ainda mais grave do que a insuficiência necessária do regime teológico em relação à vida ativa, pois nem a razão nem mesmo a atividade podem constituir a verdadeira unidade humana. Na economia individual e sobretudo coletiva, a harmonia nunca repousará a não ser no sentimento, como indicará especialmente a quarta parte deste discurso. É à sua fonte espontaneamente afetiva que a teologia sempre deveu seu império essencial. A despeito de sua evidente caducidade, conservará ainda, ao menos em princípio, algumas legítimas pretensões à preponderância social, enquanto a nova filosofia não a tiver despojado deste privilégio fundamental. Tal é, pois, a condição final que a evolução moderna não pode em nada dispensar. A coordenação positiva, sem deixar de ser teórica e prática, deve também tornar-se moral e colher no sentimento seu verdadeiro princípio de universalidade. Somente então poderá enfim afastar todas as pretensões teológicas, realizando melhor do que o antigo regime a destinação decisiva de toda doutrina geral. Pois terá assim coordenado, pela primeira vez desde o início do crescimento humano, todos os aspectos fundamentais de nossa tripla existência. Se o positivismo não puder preencher essa inevitável condição, nenhuma sistematização seria de agora em diante possível; o princípio positivo encontrando-se, de um lado, suficientemente desenvolvido para neutralizar o princípio teológico; de outro lado, permanecendo sempre incapaz de uma supremacia equivalente. É porque tantos observadores conscienciosos são levados hoje a desesperar do futuro social, reconhecendo a impotência final dos antigos princípios do governo humano, sem perceber o advento gradual das novas bases morais, por falta de uma teoria suficientemente real e completa que lhes revele a tendência definitiva da situação moderna. O caráter atual do princípio positivo parece justificar tal opinião, pois sua inaptidão para jamais se apossar do domínio afetivo deve parecer tão constatada quanto sua próxima preponderância na ordem ativa e na ordem especulativa. Mas um exame mais aprofundado retificará plenamente essa primeira apreciação, mostrando que a aridez, que justamente se censura até agora às inspirações positivas, provém somente da especialidade empírica de seu desenvolvimento preliminar, sem participar de modo inerente de sua verdadeira natureza. Surgindo primeiramente de impulsos materiais e por muito tempo limitando-se aos estudos inorgânicos, a positividade só permanece antipática, em geral, ao sentimento, por não ter se tornado suficientemente completa e sistemática. Estendendo-se às especulações sociais, que devem formar seu principal domínio, perde necessariamente os diversos vícios peculiares à sua longa infância. Em virtude de sua própria realidade característica, a nova filosofia se encontra conduzida a vir a ser mais moral do que intelectual, colocando na vida afetiva o centro de sua própria sistematização, para representar exatamente os direitos respectivos do espírito e do coração na verdadeira economia da natureza humana, individual ou coletiva. A elaboração de questões sociais a leva hoje a dissipar radicalmente as orgulhosas ilusões inerentes à sua preparação científica, quanto à pretensa supremacia da inteligência. Sancionando a experiência universal, melhor do que o pôde fazer o catolicismo, o positivismo explica por que a felicidade privada e o bem público dependem mais do coração do que do espírito. Mas, além disso, o exame direto da questão de sistematização o conduz a proclamar que a unidade humana só pode resultar de uma justa preponderância do sentimento sobre a razão e até mesmo sobre a atividade. Caracterizando-se nossa natureza ao mesmo tempo pela inteligência e pela sociabilidade, sua unidade parece primeiramente poder estabelecer-se segundo dois modos diferentes, conforme a supremacia pertença a um ou a outro desses atributos. No entanto, existe apenas um só modo de sistematização, já que os dois atributos não possuem, sob quase todos os aspectos, a mesma capacidade de prevalecer. Que se considere a natureza própria de cada um deles ou que se compare suas energias respectivas, pode-se claramente reconhecer que a inteligência somente comporta de fato o destino durável de servir à sociabilidade. Quando, em vez de se constituir dignamente como seu principal ministro, aspira à dominação, nunca chega a realizar essas orgulhosas pretensões, o que só pode desembocar numa anarquia desastrosa. Mesmo na vida privada, é possível reinar entre nossas diversas tendências uma harmonia contínua somente por causa da preponderância universal do sentimento, que nos inspira a vontade sincera e habitual de fazer o bem. Essa tendência, como todas as outras, é sem dúvida essencialmente cega, precisa do socorro da razão para conhecer os verdadeiros meios de satisfazer-se, do mesmo modo que a atividade se lhe torna indispensável para aplicá-los. Mas a experiência cotidiana prova, entretanto, que tal impulso constitui a principal condição do bem, posto que, conforme o grau ordinário de inteligência e de energia que nossa natureza apresenta, esta estimulação continuada basta para dirigir, com frutos, as investigações de uma e as empresas da outra. Privadas de tal móvel habitual, ambas se esgotam necessariamente em tentativas estéreis ou incoerentes, recaindo logo em seu torpor inicial. Nossa existência moral só comporta, pois, verdadeira unidade enquanto a afeição dominar concomitantemente a especulação e a ação. A despeito desse princípio fundamental convir de muito à vida individual, é na vida pública que melhor manifesta sua irrecusável necessidade. Isto não é porque nela a dificuldade muda realmente de natureza, nem que exija novas soluções, mas atinge grau muito mais apreciável, que não permite qualquer incerteza sobre os meios. A independência mútua dos diversos seres que é preciso então ligar mostra claramente que a primeira condição de seu concurso habitual consiste em sua própria disposição ao amor universal. Não há cálculos pessoais que possam de ordinário substituir esse instinto social, nem em virtude da instantaneidade e extensão das aspirações, nem pela ousadia e persistência das resoluções. Na verdade, essas afeições benevolentes devem ser muitas vezes menos enérgicas nelas próprias do que as afeições egoístas. Mas possuem necessariamente essa admirável propriedade que a existência social permite e provoca seu florescimento quase ilimitado, enquanto comprime incessantemente seus adversários. É assim que, antes de tudo, conforme a tendência crescente das primeiras em prevalecer sobre as segundas, se deve medir o principal progresso da humanidade. Sua ascendência espontânea pode muito ser secundada pela inteligência, quando se aplica a consolidar a sociabilidade, apreciando melhor as verdadeiras relações naturais, e a desenvolvê-la, esclarecendo seu exercício, com o auxílio das indicações do passado sobre o futuro. Neste nobre serviço, a nova filosofia concentra o principal destino do espírito, a que fornece, assim, ao mesmo tempo, incomparável consagração e campo inesgotável, muito mais adequado a satisfazê-lo profundamente do que os vãos triunfos acadêmicos e suas pueris investigações atuais. No fundo, as soberbas aspirações de inteligência em vista do domínio universal, desde que a grande unidade teológica rompeu-se irrevogavelmente, nunca puderam comportar qualquer realização, sendo somente suscetíveis de uma eficácia insurrecional contra um regime que se tornara retrógrado. O espírito não se destina a reinar, mas a servir; quando crê dominar, entra a serviço da personalidade, em lugar de secundar a sociabilidade, sem que possa de modo algum dispensar-se de assistir a uma paixão qualquer. O comando real exige, com efeito, a força antes de tudo; a razão, não possuindo mais do que a luz, precisa de um impulso de fora. As utopias metafísicas, muito bem acolhidas pelos cientistas modernos, a respeito de uma pretensa perfeição de uma vida puramente contemplativa, não são mais do que ilusões orgulhosas, quando não cobrem artifícios culpáveis. A despeito de ser, sem dúvida, real a satisfação ligada somente à descoberta da verdade, nunca possuiu bastante intensidade para dirigir a conduta habitual. O impulso de uma paixão qualquer é indispensável à nossa raquítica inteligência, para determinar e sustentar quase todos os seus esforços. Se essa inspiração emana de uma afeição benévola, nós a tomamos como sendo ao mesmo tempo mais rara e mais estimável; sua vulgaridade impede, ao contrário, de distingui-la quando nasce de motivos pessoais de glória, ambição ou cupidez; tal é, no fundo, a única diferença ordinária. Ainda que o impulso mental resultasse de uma espécie de paixão excepcional pela verdade pura, sem qualquer mistura de orgulho e de vaidade, esse exercício ideal, desprendido de todo destino social, não deixaria de ser profundamente egoísta. Terei logo ocasião de indicar como o positivismo, ainda mais severo do que o catolicismo, imprime necessariamente uma marca de ignomínia sobre tal tipo metafísico ou científico, no qual o verdadeiro ponto de vista filosófico leva a reconhecer um abuso culpável das facilidades que traz a civilização, com fito totalmente diferente, para a existência contemplativa. E assim que o princípio positivo, espontaneamente provindo da vida ativa, e sucessivamente estendido a todas as partes essenciais do domínio especulativo, encontra-se, em sua plena maturidade, inevitavelmente conduzido, em consequência natural de sua realidade característica, a abraçar também o conjunto da vida afetiva, onde logo coloca o único centro de sua sistematização final. De agora em diante, o positivismo erige, pois, em dogma fundamental, ao mesmo tempo filosófico e político, a preponderância contínua do coração sobre o espírito. Sem dúvida, essa indispensável subordinação, a única base possível da unidade humana, já tinha sido organizada, embora empiricamente, pelo regime teológico, como notei acima. Mas, por causa de uma fatalidade peculiar do estudo inicial, essa primeira organização se encontrava necessariamente afetada de um vício radical, que só lhe permitia um destino provisório. Pois devia logo se tornar profundamente opressiva para a inteligência, que só veio à luz mediante a dissolução dela, modificando-a progressivamente até a dissolver, como resultado geral dessa inevitável insurreição de vinte séculos, que de resto desenvolveu naturalmente anárquicas utopias de orgulho metafísico e científico. Se o coração deve sempre colocar questões, cabe sempre ao espírito resolvê-las. Tal é o verdadeiro sentido que o positivismo acaba de estabelecer, sistematizando para sempre o princípio necessário de toda economia individual ou coletiva. Ora, a impotência primitiva do espírito, que só podia cumprir dignamente seu ofício depois de uma longa e difícil preparação, obrigou primeiramente o coração a substituí-lo, suplementando a falta de noções objetivas pelo florescimento espontâneo de inspirações sucessivas, •sem as quais toda evolução humana, tanto mental como social, teria permanecido indefinidamente impossível, como explica meu Sistema de filosofia positiva. Mas este império absoluto, por muito tempo indispensável, não podia em seguida evitar tornar-se hostil ao próprio desenvolvimento da razão, na medida em que esta chegasse a esboçar concepções, fundadas sobre uma apreciação mais ou menos real do mundo exterior. Tal é, em geral, a principal fonte direta das grandes modificações sucessivas ocorridas no conjunto das crenças teológicas. Desde que esse sistema sofreu as correções compatíveis com sua natureza fundamental, o conflito intelectual, tomando-se mais grave e mais rápido por causa do florescimento decisivo dos conhecimentos positivos, tomou caráter progressivamente mais retrógrado, de um lado, e revolucionário, de outro, conforme a impossibilidade, cada vez mais sentida, de conciliar dois regimes tão opostos. Tal é antes de tudo o caráter da situação atual, em que a antiga dominação da teologia, se fosse suscetível de restauração, constituiria diretamente uma profunda degradação intelectual e, por conseguinte, moral, ajustando, unicamente mediante nossos desejos e nossas conveniências, todas as nossas opiniões sobre a verdade exterior. Também a humanidade não pode mais dar qualquer passo decisivo sem renunciar totalmente ao princípio teológico, que no Ocidente já não conserva outra eficácia essencial além de manter, por sua resistência necessária, a verdadeira posição da questão principal. Obriga a nova sistematização a concentrar-se enfim na vida afetiva, a despeito dos prejuízos e dos hábitos próprios à imensa transição revolucionária, que já dura desde o fim da Idade Média. Mas o positivismo, preenchendo ainda melhor do que qualquer teologismo essa condição fundamental de toda organização, termina necessariamente a longa insurreição do espírito contra o coração. Porquanto, por uma decisão ao mesmo tempo espontânea e sistemática, atribui à inteligência a livre participação total que lhe pertence no conjunto da vida humana. Conforme a interpretação positiva do grande princípio orgânico, o espírito só deve essencialmente tratar as questões propostas pelo coração para a justa satisfação final de nossas diversas necessidades. A experiência já mostrou demasiadamente que, sem esta regra indispensável, o espírito seguiria quase sempre sua inclinação involuntária para especulações ociosas ou quiméricas, que são ao mesmo tempo as mais numerosas e as mais fáceis. Mas em qualquer elaboração do assunto assim proposto, o espírito deve permanecer o único juiz, seja da conveniência dos meios, seja da realidade dos resultados. Cabe unicamente a ele apreciar o que há de ser previsto como acontecendo no futuro, e descobrir os processos de melhoramento. Numa palavra, o espírito deve sempre ser o ministro do coração, nunca seu escravo. Tais são as condições correlativas da harmonia final instituída pelo princípio positivo. Pouco se deve temer que sejam gravemente perturbadas, porque os dois elementos desse grande equilíbrio logo se encontrarão dispostos naturalmente a mantê-lo, como igualmente favoráveis a cada um deles. Os hábitos insurrecionais da razão moderna não lhe autorizam supor um caráter indefinidamente revolucionário, uma vez que suas legítimas reclamações se encontrem largamente satisfeitas. Além do mais, conforme as necessidades, meios não faltariam ao novo regime para reprimir de modo suficiente as pretensões subversivas, como terei logo ocasião de fazer perceber. De outro lado, o novo domínio do coração nunca poderia vir a ser, como o antigo, seriamente hostil ao espírito. Pois o verdadeiro amor demanda sempre ser esclarecido sobre os meios reais de atingir o fim que persegue. O reino do verdadeiro sentimento deve ser habitualmente favorável tanto à sã razão quanto à sábia atividade. Eis como uma doutrina, que não comporta mais hipocrisia do que opressão, vem hoje, como resultado geral das diversas evoluções anteriores, regenerar ao mesmo tempo a ordem pública e a ordem privada, cada vez mais comprometidas por uma situação radicalmente anárquica. Vincula para sempre a verdadeira filosofia à sã política, sob o mesmo princípio fundamental, não menos suscetível de ser sentido do que de ser demonstrado, igualmente capaz de tudo sistematizar e tudo reger. Esse grande dogma positivo da preponderância universal do coração sobre o espírito será de resto configurado, na quinta parte deste discurso, como também capaz de aptidão estética, potência filosófica e eficácia social. Terminar-se-á assim de compreender a possibilidade de tudo concentrar, de agora em diante, em torno de um princípio único, ao mesmo tempo moral, racional e poético, somente ele sendo capaz de terminar realmente a mais profunda revolução da humanidade. Já se pode constatar aqui que a força, essencialmente moderna, da demonstração, que sob tantos aspectos permanece ainda dissolvente, santifica-se necessariamente, quando de sua plena maturidade, ao receber irrevogavelmente, do novo impulso geral, uma importante destinação orgânica, que em futuro próximo muito desenvolverá. Posso, pois, sem qualquer exagero, concluir do conjunto das indicações precedentes que, a despeito de sua origem puramente teórica, o positivismo de agora em diante convém tanto às almas ternas quanto aos espíritos meditativos e aos caracteres enérgicos. Tendo assim determinado a natureza e o espírito da sistematização total que os verdadeiros filósofos devem agora construir, resta-me caracterizar sua marcha necessária e, em seguida, seu núcleo fundamental. Apesar dessa construção só poder convir a seu destino abarcando o conjunto de seu triplo domínio, especulativo, afetivo e ativo, suas três partes essenciais não poderiam realizar-se ao mesmo tempo, sem que sua inevitável sucessão altere de algum modo sua solidariedade espontânea, pois ela resulta, ao contrário, de uma justa apreciação de sua mútua dependência. Importa reconhecer, com efeito, que os pensamentos devem sistematizar-se antes dos sentimentos e estes, antes dos atos. É sem dúvida pelo instinto confuso dessa ordem necessária que os filósofos tinham até aqui limitado unicamente à existência contemplativa o domínio geral da sistematização humana. A inevitável obrigação de coordenar antes de tudo as ideias não resulta apenas de que sua ligação é mais fácil e comporta maior perfeição, de maneira a construir uma útil preparação lógica para o resto da grande síntese. Aprofundando ainda mais esse tema, descobre-se o motivo mais decisivo e menos saliente, que configura este preâmbulo, desde que seja completo, como base necessária do conjunto da construção, que felizmente não lhe pode mais oferecer em seguida qualquer dificuldade de primeira ordem, ao menos se limitar, com sabedoria, ao grau de coordenação que sua destinação final realmente exige. Essa importante preponderância da simples sistematização intelectual parece, primeiramente, contrariar a fraca energia das funções correspondentes na economia total de nossa verdadeira natureza, onde o sentimento e a atividade contribuem, por certo, mais do que a razão para cada resultado habitual. Se tentarmos resolver esta espécie de paradoxo, somos conduzidos a discernir enfim no que consiste o núcleo fundamental do grande problema da unidade humana. Tal unidade exige de início um princípio necessariamente subjetivo, como foi posto acima; a preponderância contínua do coração sobre o espírito. Sem ela nem a existência coletiva, nem mesmo a simples existência individual comportariam qualquer harmonia durável, por falta do impulso bastante enérgico para fazer habitualmente convergir as numerosas tendências, heterogêneas e muitas vezes opostas, de um organismo tão complexo. Mas essa indispensável condição interior estaria longe de bastar, se ao mesmo tempo o mundo exterior não nos oferecesse espontaneamente uma base objetiva, independente de nós, na ordem geral dos diversos fenômenos que regem a humanidade, e cuja preponderância evidente pode permitir ao sentimento de amor disciplinar as inclinações discordantes, quando a inteligência nos desvendou o verdadeiro conjunto de nosso destino. Tal é a principal missão do espírito, dignamente consagrado de agora em diante ao serviço do coração, mediante a teoria positiva da sistematização humana. Se, no início deste discurso, apresentei essa construção como inevitavelmente insuficiente e até mesmo quimérica, enquanto permanecesse parcial, devo agora acrescentar, para completar o grande programa filosófico, que não deve mais permanecer isolada. Ademais, a harmonia subjetiva seria impossível sem um vínculo objetivo. Em primeiro lugar, essa coordenação puramente interior, se à parte a supusermos já realizada, não comportaria evidentemente quase nenhuma eficácia habitual em relação à nossa felicidade privada ou pública, que muito depende do relacionamento de cada um de nós com o conjunto dos seres reais. Mas, além disso, em virtude da extrema imperfeição de nossa natureza, as tendências discordantes do egoísmo fundamental são de tal modo superiores às disposições simpáticas da sociabilidade que estas nunca poderiam prevalecer sem o ponto de apoio da economia exterior, que necessariamente provoca seu desenvolvimento contínuo, enquanto reprime a ascendência de seus adversários. Para apreciar suficientemente essa reação indispensável, é preciso conceber essa ordem exterior como abarcando, além do mundo propriamente dito, o conjunto de nossos fenômenos que, apesar de serem os mais modificáveis de todos, também se sujeitam a leis naturais invariáveis, principal objetivo de nossas contemplações positivas. Ora, nossas afeições benévolas se encontram espontaneamente conforme àquelas leis, que regem diretamente a sociabilidade, e nos dispõem, de resto, a respeitar todas as outras, logo que nossa inteligência descubra seu império. A harmonia afetiva, mesmo privada e, sobretudo pública, somente é possível mediante a evidente necessidade de subordinar a existência humana a essa ascendência exterior, única a tomar disciplináveis nossos instintos egoístas. A preponderância destes neutralizaria facilmente nossos impulsos simpáticos, se estes não encontrassem no exterior este apoio fundamental, que só a razão pode colocar a serviço do sentimento para regular a atividade. É assim que a sistematização intelectual, essencialmente relativa a esse grande espetáculo natural, adquire necessariamente uma importância muito superior a suas próprias exigências teóricas, de ordinário tão fracas, mesmo dentre os mais contemplativos. Neste sentido, a síntese especulativa logo resolve a principal dificuldade apresentada pela síntese afetiva, associando a nossos melhores impulsos interiores uma poderosa estimulação exterior, que lhe permite conter de modo suficiente nossas inclinações discordantes, para estabelecer a harmonia habitual que sempre perseguem, mas nunca poderiam realizar sem tal contínuo socorro. Sabe-se, ademais, que essa concepção geral da ordem natural constitui diretamente a base indispensável de toda sistematização real dos atos humanos, que só comportam eficácia, em virtude de sua conformidade permanente ao conjunto dessa irresistível economia. Essa parte de nossa grande demonstração se encontra hoje de tal modo familiar que me dispenso indicá-la. Se a síntese especulativa permitir realizar a síntese afetiva, é claro que a síntese ativa não mais poderá oferecer dificuldades maiores, porquanto a unidade de impulso terminará por instituir uma unidade de ação já preparada pela unidade de concepção. Desse modo, toda a sistematização humana depende finalmente da simples coordenação mental, que no início deve parecer tão pouco decisiva. A seu princípio subjetivo, a preponderância do sentimento, o positivismo associa pois uma base objetiva, a imutável necessidade exterior, a única a permitir realmente subordinar a sociabilidade ao conjunto de nossa existência. A superioridade da nova sistematização sobre a antiga é mais evidente deste segundo aspecto do que do primeiro. Porquanto, este elo objetivo resultava, no teologismo, da crença espontânea nas vontades sobrenaturais. Ora, seja qual for a realidade que se atribua a essa ficção, a fonte permanecia subjetiva, o que devia tornar confusa e muito móvel sua eficácia habitual. A disciplina correspondente não podia ser comparável, nem em evidência nem em energia, nem mesmo em estabilidade, com a que comporta a noção contínua de uma ordem verdadeiramente exterior, confirmada, apesar de nós mesmos, por toda nossa existência. Esse dogma fundamental do positivismo deve ser concebido não como o produto instantâneo de uma inspiração geral, mas como resultado gradual de uma imensa elaboração especial, que começou com o primeiro exercício da razão humana e que apenas terminou hoje em seus órgãos mais avançados. Constitui a mais preciosa aquisição intelectual do conjunto da humanidade, preparando com esforço, durante sua longa infância, o único regime que convém finalmente à sua verdadeira natureza. Em todos os casos fundamentais, só é realmente demonstrável pela observação, salvo a extensão pela analogia. Jamais comporta provas dedutivas, a não ser em relação a fenômenos evidentemente compostos por aqueles em que já foi constatado. Assim, por exemplo, somos logicamente autorizados a admitir, em geral, leis meteorológicas, embora a maior parte ainda seja ignorada e talvez deva permanecer desconhecida, pois tais acontecimentos resultam por certo do concurso de influências naturais, astronômicas, físicas, químicas etc., cada uma sendo reconhecida como sujeita a uma ordem invariável. Mas em relação a todos os fenômenos verdadeiramente irredutíveis a outros, somente uma indução especial pode determinar, a esse respeito, nossa convicção. Como poderia ser deduzido um princípio necessariamente destinado a fornecer a base tácita de toda dedução real? Eis por que esse dogma, tão estranho a nosso regime inicial, exigiu uma preparação tão longa que os mais eminentes pensadores não podiam dispensar. Quando as concepções metafísicas pareceram antecipar, a esse respeito, as verificações indispensáveis, sua eficácia resultou no fundo de sua aptidão provisória em generalizar, de maneira mais ou menos confusa, as analogias espontâneas suscitadas pela descoberta efetiva das leis naturais dos fenômenos mais simples. Essas antecipações dogmáticas permaneceram sempre equívocas, e, sobretudo, muito estéreis, enquanto não puderam vincular-se a um esboço especial de teoria verdadeiramente positiva. Assim, apesar da potência aparente de tais argumentações, tão familiares à razão moderna, o verdadeiro sentimento de ordem exterior encontra-se ainda profundamente insuficiente para os melhores espíritos, por falta de uma verificação conveniente junto aos fenômenos mais complicados e mais importantes, salvo o pequeno número de pensadores que já admitem como definitiva minha descoberta fundamental das principais leis sociológicas. A incerteza que subsiste assim num estudo intimamente ligado a todos os outros exerce ademais sobre estes tenebrosa reação, que altera gravemente a noção de invariabilidade até em seus mais simples temas; como o testemunha, por exemplo, a aberração radical de quase todos os geômetras atuais quanto ao pretenso cálculo do acaso, em que se supõe necessariamente que os fatos correspondentes não seguem lei alguma. Esse grande dogma não poderia ser, pois, em caso algum, solidamente estabelecido a não ser que sua verificação especial se estendesse a todas as categorias essenciais de fenômenos elementares. Mas já que essa difícil condição se encontra suficientemente preenchida hoje, entre os pensadores verdadeiramente ao nível de seu século, podemos enfim constituir diretamente a unidade humana, sobre esta base objetiva, de agora em diante, inabalável: todos os acontecimentos reais, compreendendo os de nossa própria existência individual e coletiva, estão sempre sujeitos a relações naturais de sucessão e de similitude, essencialmente independentes de nossa intervenção. Tal é, pois, o fundamento exterior da grande síntese, tanto afetiva e ativa como puramente especulativa, constantemente relativa a essa ordem imutável. Sua apreciação real constitui o principal objeto de nossas contemplações; sua preponderância necessária regula o florescimento geral de nossos sentimentos; seu aperfeiçoamento gradual determina a finalidade contínua de nossas ações. Para melhor apreender sua influência, bastaria supor, por um momento, sua inexistência afetiva: então nossa inteligência se consumiria em divagações desenfreadas, logo seguidas de um torpor incurável; nossas melhores inclinações não mais conteriam a ascendência espontânea- sobre os instintos menos nobres; e nossa atividade só chegaria a uma agitação incoerente. Embora essa ordem tenha sido ignorada por muito tempo, seu império inevitável nem por isso deixou de tender a regular, sem que quiséssemos, toda nossa existência, primeiro, ativa, e, em seguida, contemplativa ou mesmo afetiva. Na medida em que a conhecemos, nossas concepções se tornaram menos vagas, nossas inclinações menos caprichosas, nossa conduta menos arbitrária. Desde que apreendemos seu conjunto, tende a regularizar, em todos os gêneros, a sabedoria humana, apresentando sempre nossa economia artificial como um judicioso prolongamento dessa irresistível economia natural. Esta é preciso estudar e respeitar, para chegar a aperfeiçoá-la. Mesmo naquilo que nos oferece de verdadeiramente fatal, isto é, de não modificável, essa ordem exterior é indispensável para a direção de nossa existência, a despeito das recriminações artificiais de tantas inteligências orgulhosas. Se, por exemplo, supusermos o homem subtraído da necessidade de habitar a Terra e livre de mudar à vontade sua residência planetária, toda noção de sociedade se encontraria logo destruída, em virtude das tendências vagabundas e inconciliáveis a que se entregariam assim as diversas individualidades. A irresolução e a inconsequência, inerentes à multiplicidade e à mediocridade de nossas inclinações, não nos permitem uma conduta contínua e unânime, a não ser por causa dessas exigências insuperáveis, sem as quais nossa razão raquítica, a despeito de seus vãos murmúrios, nunca chegaria a terminar suas confusas deliberações. Incapazes de criar, só sabemos modificar, em nosso proveito, uma ordem essencialmente superior à nossa influência. Supondo possível a independência absoluta, sonhada pelo orgulho metafísico, percebemos logo que, longe de melhorar nosso destino, ela impediria todo florescimento real de nossa existência, até mesmo privada. O principal artifício do aperfeiçoamento humano consiste, ao contrário, em diminuir a indecisão, a inconsequência e a divergência de quaisquer de nossos desígnios, vinculando-os a motivos exteriores, àqueles hábitos intelectuais, morais e práticos que emanam no início de fontes puramente interiores. Pois todos os vínculos mútuos de nossas diversas tendências são incapazes de assegurar sua fixidez, até que encontrem fora um ponto de apoio inacessível a nossas variações espontâneas. Seja qual for, porém, a feliz eficácia do dogma positivo, precisamente no que a ordem natural nos oferece de imutável, devemos sobremaneira considerar as modificações artificiais de que essa economia é suscetível sob tantos aspectos, porquanto fornecem a principal destinação de nossa atividade. Os mais simples de todos os fenômenos, os de nossa existência planetária, são, com efeito, os únicos que não podemos modificar de modo algum. Embora, desde que conheçamos suas leis, possamos facilmente conceber diversos melhoramentos. Mas nossa potência física, seja qual for a extensão que chegue um dia, permanecerá sempre incapaz de mudar algo. Cabe a nós, ao contrário, dispor nossa existência para sofrer, da melhor forma possível, essas irresistíveis condições gerais, cuja simplicidade superior nos permite previsões mais preciosas e mais longínquas. Sua apreciação positiva, de que dependeu notadamente a longa evolução preparatória de nossa inteligência, nos fornecerá sempre a fonte mais nítida e mais decisiva do verdadeiro sentimento da imutabilidade. Se seu estudo demasiadamente exclusivo tende ainda a nos conduzir ao fatalismo, essa influência, de agora em diante regulada por uma educação mais filosófica, pode facilmente concorrer para nosso melhoramento moral, predispondo-nos melhor à sábia resignação a respeito de todos os males verdadeiramente insuperáveis. Em todo o resto da ordem exterior, sua invariabilidade fundamental sempre se concilia com suas modificações secundárias. Tornam-se mais profundas e mais variadas na medida em que a complicação crescente dos fenômenos permite, à nossa fraca intervenção, melhor alterar os resultados provenientes do concurso das mais diversas e mais acessíveis influências, como insisti em meu Sistema de filosofia positiva. Seguindo o espírito desta obra, nossa intervenção adquire assim tanto mais eficácia quanto as leis naturais mais se reportam à nossa existência, seja individual, seja coletiva. Em relação a esta, sobretudo, as modificações comportam tal extensão que muito contribuem para ainda manter o erro vulgar, que apresenta esses fenômenos como libertos de toda regra imutável. Para completar tal apreciação geral do dogma positivista, importa acrescentar que essa aptidão crescente da ordem exterior a sofrer a intervenção humana combina-se necessariamente com sua imperfeição maior, do que constitui assim uma espécie de compensação espontânea, muito preciosa embora insuficiente. Pois esses dois caracteres resultam igualmente da complicação gradual da economia natural. O próprio regime astronômico é muito imperfeito, a despeito de sua simplicidade superior, o que de resto torna para nós mais irrecusáveis suas diversas inconveniências, cuja sumária consideração merece uma séria atenção. Embora não possamos remediar, essa visão nos preserva de uma estúpida admiração, podendo utilmente concorrer para fixar a atitude definitiva da humanidade em presença das dificuldades de todos os gêneros, que caracterizam seu verdadeiro destino. Sobretudo tende a afastar radicalmente a vã pesquisa do bem absoluto, que tanto entrava a sábia procura de melhorias reais. Quanto a todos os outros fenômenos, a imperfeição crescente da economia natural determina incessantemente uma ativa estimulação de toda nossa existência positiva, tanto moral e mental quanto puramente prática, chamando-nos sempre a aliviar os males capazes de serem contidos pelo judicioso concurso de nossos esforços contínuos. É sobretudo assim que a humanidade pode desenvolver um caráter de firmeza e de dignidade sempre estranho à sua longa infância teológica. Para quem quer que se eleve hoje ao verdadeiro ponto de vista do futuro social, a concepção do homem, tomada sem escrúpulo e sem jactância como o único arbítrio, dentro de certos limites, do conjunto de seu destino, constitui por certo uma noção muito mais satisfatória, sob todos os aspectos, do que a antiga ficção providencial, que nos supunha sempre passivos. Tal apreciação habitual tende diretamente a fortificar o vínculo social, em que cada um é levado a ver seu principal recurso privado a seu dispor contra as misérias gerais da condição humana. Despertando nossos mais nobres sentimentos, nos faz assim melhor apreender a importância da principal cultura intelectual, dirigida então a seu verdadeiro destino. Embora essa feliz influência sempre tenha aumentado entre os modernos, foi até agora muito restrita e empírica para que se possa formar dela uma ideia justa, a não ser antecipando a propósito do futuro humano, segundo uma teoria histórica sadia. Pois nossa arte sistemática não compreende ainda esta parte da economia fundamental que, sendo ao mesmo tempo a mais modificável e imperfeita além da mais importante, deve constituir, sob todos os aspectos, o principal objeto de nossa permanente solicitude. A arte médica propriamente dita começa apenas a sair de sua rotina inicial. Quanto à arte social, moral ou política, permanece de tal modo mergulhada nessa rotina que a maioria dos homens de Estado até mesmo contesta a possibilidade de um dia sairmos dela. E este é o único recurso para racionalizar todo o resto de nossa existência prática. Mas tais visões limitadas só existem hoje graças ao sentimento demasiadamente incompleto da realidade das leis naturais relativas aos fenômenos mais eminentes. Quando a ordem fundamental é dignamente reconhecida em seu verdadeiro conjunto, a concepção habitual da arte torna-se necessariamente tão extensa e homogênea quanto a da ciência; nenhum bom espírito pode então contestar que nossa existência social constitua agora o principal domínio de ambas. O serviço geral da inteligência em relação à sociabilidade não se limita, pois, a fazer com que esta conheça a economia natural, de que deve aceitar o império inevitável. Para que essa determinação teórica possa guiar nossa atividade, é preciso a ela acrescentar a exata apreciação dos diversos limites de variação peculiares a essa ordem exterior e também os limites de suas principais imperfeições. Esses dois dados gerais são os únicos a permitir caracterizar e circunscrever nossa sábia intervenção. A crítica positiva da natureza sempre constituirá pois importante atributo da sã filosofia, embora a intenção antiteológica, que a inspirou no início, tenha deixado de oferecer um interesse maior, em consequência de sua irrevogável eficácia. Sem se ocupar de qualquer luta, conceber-se-á de agora em diante tal exame como destinado a melhor colocar o conjunto da questão humana. Liga-se diretamente à finalidade contínua de toda nossa existência no regime positivo, porquanto o aperfeiçoamento supõe primeiramente a imperfeição. Essa conexidade geral torna-se antes de tudo necessária em relação à nossa própria natureza, pois a verdadeira moralidade exige profundo sentimento habitual de nossos vícios espontâneos. Todas essas indicações bastam para caracterizar a condição fundamental, segundo a qual a grande sistematização humana, sem deixar de ser essencialmente afetiva por seu princípio subjetivo, deve finalmente depender de uma operação especulativa, a única capaz de fornecer-lhe uma base objetiva, ligando-a ao conjunto da economia exterior, de que a humanidade sofre e modifica o império. A despeito das dificuldades próprias a tal explicação, esta é suficiente para o fim deste discurso, simples prelúdio de um tratado completo. Faz diretamente apreciar o núcleo essencial da síntese positiva, como consistindo em descobrir a verdadeira teoria da evolução humana, ao mesmo tempo individual e coletiva. Porquanto, todo esboço decisivo sobre o tema final logo completa a noção geral da ordem natural e, necessariamente, a erige em dogma fundamental de uma sistematização universal, gradualmente preparada pelo conjunto do movimento moderno. O concurso espontâneo dos trabalhos científicos, peculiares aos três últimos séculos, só deixa, a esse respeito, lacuna capital em relação aos fenômenos morais e notadamente sociais. Demonstrando também a existência de leis invariáveis, graças a uma primeira coordenação total do passado humano, a razão moderna termina sua laboriosa iniciação; construindo então seu regime final, eleva-se ao único ponto de vista donde tudo pode abraçar. Esta foi a dupla finalidade da elaboração fundamental pela qual, conforme afirmam os principais pensadores atuais, completei e coordenei o conjunto da filosofia natural, estabelecendo a lei geral da evolução humana, social e intelectual. Não deve voltar aqui essa grande lei, não mais contestada atualmente, e que de resto encontrará seu lugar dogmático no terceiro volume deste novo tratado. Proclama, como se sabe, a passagem necessária de todas as nossas especulações por três estados sucessivos; primeiro, o teológico, em que dominam francamente as ficções espontâneas, desprovidas de qualquer prova; depois, o estado metafísico, caracterizado sobretudo pela preponderância habitual das abstrações personificadas ou entidades; por fim, o estado positivo, sempre fundado numa exata apreciação da realidade exterior. O primeiro regime, embora puramente provisório, constitui em toda parte nosso único ponto de partida; o terceiro, o único definitivo, representa nossa existência normal; quanto ao segundo, comporta apenas influência modificadora, ou melhor, dissolvente, que o destina somente a dirigir a transição de uma à outra constituição. Tudo começa, com efeito, sob inspiração teológica, para desembocar na demonstração positiva, passando pela argumentação metafísica. Desse modo, uma mesma lei geral nos permite de agora em diante abarcar ao mesmo tempo o passado, o presente e o futuro da humanidade. A esta lei de filiação meu Sistema de filosofia positiva sempre associou a lei de classificação, cuja aplicação dinâmica fornece o segundo elemento indispensável à minha teoria da evolução, determinando a ordem necessária, segundo a qual nossas diversas concepções participam de cada fase sucessiva. Sabe-se que essa ordem está regulada pela generalidade decrescente dos fenômenos correspondentes, ou, o que implica o mesmo, por sua complicação crescente. Daí resulta sua dependência espontânea em relação a todos aqueles que são mais simples e menos especiais. A hierarquia fundamental de nossas especulações reais consiste assim em sua classificação natural em seis categorias elementares: matemática, astronômica, física, química, biológica e, enfim, sociológica; cada uma sofrendo antes da seguinte os diferentes graus essenciais da evolução total, que só poderia oferecer um caráter vago e confuso, sem o uso contínuo de tal classificação. Uma teoria formada pela íntima combinação dessa lei estática com a lei dinâmica parece primeiramente concernir apenas ao movimento intelectual da humanidade. Mas as explicações indicadas acima nos garantem previamente sua aptidão necessária a também abarcar o desenvolvimento social, cuja marcha geral necessitou sempre depender da marcha de nossas concepções elementares sobre o conjunto da economia natural. A parte histórica de minha grande obra demonstra a correspondência contínua entre a evolução ativa e a evolução especulativa, cujo concurso natural deveria regular a evolução afetiva. Essa extensão decisiva da teoria fundamental exige unicamente que se lhe acrescente um último complemento essencial, diretamente relativo ao crescimento temporal da humanidade. Consiste, como se sabe, na sucessão necessária dos diversos caracteres principais da atividade humana, primeiro, conquistadora, depois, defensiva e, finalmente, industrial. Sua solidariedade natural com a preponderância respectiva do espírito teológico, do espírito metafísico e do espírito positivo, logo explica o conjunto do passado, sistematizando sem esforço a única concepção histórica que seja espontaneamente sancionada pela razão pública, isto é, a distinção geral entre a Antiguidade, a Idade Média e o Estado moderno. Para fundar enfim a verdadeira ciência social bastava pois estabelecer irrevogavelmente essa teoria da evolução, combinando, com a lei dinâmica que a caracteriza, primeiro, o princípio estático que a consolida, depois, a extensão temporal que a completa. Essa fundação decisiva termina por constituir o conjunto da filosofia natural, afastando para sempre a distinção provisória que, desde Aristóteles e Platão, a separava profundamente da filosofia moral. O espírito positivo, por tanto tempo limitado aos mais simples fenômenos inorgânicos, finaliza então sua difícil iniciação, estendendo-se até as especulações mais complicadas e importantes, de agora em diante liberadas de todo regime teológico ou metafísico. Tornando-se assim homogêneas todas as nossas concepções reais, a unidade especulativa tende logo a estabelecer-se espontaneamente, de maneira a fornecer uma sólida base objetiva para a sistematização total, que constitui a finalidade característica da verdadeira filosofia, que permaneceu até agora impossível, por falta de elementos suficientes. Perceber-se-á como a principal dificuldade desta síntese definitiva consistia, ouso dizer, na descoberta de minha teoria fundamental da evolução humana, se considerarmos que tal teoria, ao mesmo tempo em que completa e coordena essa base objetiva, subordina-a espontaneamente ao princípio subjetivo, que sempre deve dirigir o conjunto da construção filosófica. Apreciando assim a ordem universal, a inteligência, orgulhosa de um ofício indispensável que somente ela pode cumprir, está muitas vezes disposta a desconhecer sua destinação necessária ao serviço contínuo da sociabilidade. Tende a seguir livremente sua inclinação natural para divulgações especulativas, de tal modo fortalecidas hoje por hábitos empíricos peculiares ao florescimento preliminar das especialidades positivas. É preciso pois que a inspiração subjetiva a reconduza incessantemente à sua verdadeira vocação, impedindo suas contemplações de tomar um caráter absoluto e uma expansão ilimitada, que reproduzissem, sob a forma científica, os principais inconvenientes do regime teológico-metafísico. O universo deve ser estudado não por si mesmo, mas para o homem, ou melhor, para a humanidade. Qualquer outro desígnio seria no fundo tão pouco racional quanto moral. Pois é somente como subjetivas, nunca como puramente objetivas, que nossas especulações reais podem ser verdadeiramente satisfatórias, quando se limitam a descobrir na economia natural as leis que, de uma maneira mais ou menos direta, influenciam com efeito nossos destinos. Fora desse domínio, determinado pela sociabilidade, nossos conhecimentos sempre permanecerão imperfeitos e ociosos, mesmo em relação aos mais simples fenômenos, como testemunha a astronomia. Sem essa constante preponderância do sentimento, o espírito positivo logo retornaria às predileções, espontâneas de sua longa infância, para as contemplações mais afastadas do homem, que também são as mais fáceis. Enquanto sua iniciação permaneceu incompleta, essa tendência natural de dar prosseguimento indistintamente a todas as investigações verdadeiramente acessíveis só se pôde justificar pela eficácia lógica que a maior parte daquelas desprovidas de toda utilidade científica comportava. Mas desde que o método positivo desenvolveu-se suficientemente para, diretamente, dirigir-se à sua verdadeira destinação, esses exercícios ociosos prolongaram viciosamente o regime preliminar. Essa vaga anarquia especulativa toma ainda um caráter cada vez mais retrógrado, tendendo a destruir os principais resultados obtidos pelo espírito de pormenor, enquanto permaneceu verdadeiramente positivo. A construção de base objetiva indispensável à grande síntese humana suscita pois uma dificuldade muito grave em conciliar a liberdade habitual, sem o qual a inteligência não poderia proceder convenientemente, com a disciplina contínua que exige sua tendência espontânea às divulgações indefinidas. Essa conciliação seria essencialmente impossível, enquanto o estudo da ordem natural não se estender até as leis sociológicas. Mas logo que o espírito positivo abrace realmente esta atribuição final, a supremacia necessária de tais especulações o submete, sem esforço, ao jugo legítimo do sentimento. Em sua marcha geral do exterior para o interior, a apreciação objetiva vem então vincular-se espontaneamente ao impulso subjetivo, de que havia por muito tempo entravado o império fundamental. Nenhum verdadeiro pensador pode mais recusar admitir as demonstrações decisivas que, ainda sob o simples aspecto especulativo, estabelecem, de agora em diante, a preponderância lógica e científica do ponto de vista social, como único elo possível de todas nossas contemplações reais. Sua ascendência necessária nunca poderia tornar-se opressiva em relação aos diversos estudos positivos que constituirão sempre, quer para o método, quer para a doutrina, o preâmbulo indispensável dessa ciência final. Este regime definitivo imprime, ao contrário, a cada ciência preparatória, ao mesmo tempo uma consagração preciosa e uma fecunda estimulação, ligando-a diretamente ao conjunto da humanidade. Tal é o modo natural por meio de que, como anunciava no início deste curso, o espírito positivo, graças à fundação da sociologia, vem se colocar para sempre sob a justa dominação do coração, de maneira a permitir, enfim, a total sistematização, conforme à subordinação contínua da base objetiva em relação ao princípio subjetivo. Dissipando definitivamente o antagonismo excepcional que, desde o fim da Idade Média, necessitou desenvolver-se entre a razão e o sentimento, essa operação filosófica chama de imediato a humanidade para penetrar no regime, individual ou coletivo, que convém plenamente à sua natureza. Enquanto permaneceram contrarias entre si essas duas nobres influências, a sociabilidade não podia chegar a modificar profundamente o império prático da personalidade. No entanto, a despeito de sua fraca energia espontânea em nossa imperfeita organização, seu concurso íntimo e contínuo, suscetível de imensa expansão, poderá, de agora em diante, sem alterar o caráter essencialmente egoísta da vida ativa, imprimir-lhe um grau habitual de moralidade, de cujo passado não poderia formar ideia alguma, tendo em vista a harmonia insuficiente que estes dois moderadores necessários de todos os nossos instintos preponderantes comportavam até agora.