Auguste Comte – Reorganizar a Sociedade Sumário Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade 1. Introdução 2. Exposição geral Primeira série de trabalhos PLANO DOS TRABALHOS CIENTÍFICOS NECESSÁRIOS PARA A REORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE. (MAIO DE 1822) INTRODUÇÃO Um sistema social em extinção: um novo sistema chegado à maturação, e que tende agora a constituir-se; eis o caráter fundamental destinado à época atual para a marcha geral da civilização. Em conformidade com este estado de coisas, dois movimentos de diferente natureza agitam hoje a sociedade: um de desorganização, outro de reorganização. No primeiro, considerado isoladamente, a sociedade é arrastada para uma profunda anarquia moral e política que parece ameaçá-la de uma próxima e inevitável dissolução. No segundo, a sociedade é conduzida para o estado definitivo da espécie humana, aquele que mais convém à sua natureza, aquele em que todos os seus meios de prosperidade devem merecer o mais inteiro desenvolvimento e a sua aplicação mais direta. É na coexistência destas duas tendências opostas que consiste a grande crise experimentada pelas nações mais civilizadas. É sob este duplo aspecto que a crise deve ser encarada para ser, afinal, compreendida. Desde o momento em que esta crise começou a manifestar-se até ao momento presente, a tendência para a desorganização do antigo sistema foi a dominante, ou melhor, é ela ainda a que se pronunciou com nitidez suficiente. Estava na natureza das coisas que a crise tivesse assim começado, o que foi útil, a fim de que o antigo sistema sofresse a reforma suficiente para permitir de processo direto a formação de um sistema novo. Mas agora, quando esta condição está plenamente satisfeita, agora que o sistema feudal e teológico está tão atenuado quanto possível para que o novo sistema comece a estabelecer-se, já a preponderância que ele ainda conserva vai sendo o maior obstáculo aos progressos da civilização, e até à própria destruição do antigo sistema. Tal preponderância é a causa primeira, e incessantemente renovada, dos primeiros sismos que acompanham a crise. A única maneira de pôr termo a esta situação tempestuosa, de travar o progresso da anarquia que invade diariamente a sociedade, enfim, e numa só palavra, de reduzir a crise a um simples movimento moral, é a de determinar as nações civilizadas a que deixem a direção crítica para que tomem a direção orgânica, a que conduzam seus esforços para a formação do novo sistema social, objeto definitivo da crise, e para o qual tudo quanto se fez até agora não passou de mera preparação. Tal é o primeiro dever da época presente. Tal é também, em esboço breve, o alvo principal dos meus trabalhos, e o fim especial deste escrito que pretende mobilizar as forças que devem impelir a sociedade na rota feliz do novo sistema. Um exame sumário das causas que outrora impediram, e ainda agora impedem, a sociedade de escolher francamente a direção orgânica, é tema que deve naturalmente preceder a exposição dos meios a usar para convencê-la da decisão necessária. Os esforços múltiplos e contínuos, feitos pelos povos e pelos reis, para reorganizar a sociedade, estão na história a provar que foi sempre e geralmente sentida a urgência de praticar a reorganização. De um lado ou de outro se verificou que a tentativa de aperfeiçoamento se realizava de modo vago e impreciso. Estas duas espécies de tentativas, se bem que opostas, revelaram-se igualmente viciosas nas suas relações recíprocas. Até agora nunca lograram, e de futuro nunca poderão lograr, qualquer resultado que se diga verdadeiramente orgânico. Em vez de porem termo à crise, contribuíram para demorá-la. Tal é a causa autêntica que, gastando inutilmente tantos esforços, retém a sociedade na direção crítica, encaminhando-a sucessivamente para as revoluções. Esta asserção é fundamental, e para estabelecê-la bastará apenas olhar de relance para a história dos ensaios de reorganização social que foram praticados pelos reis e pelos povos. O erro cometido pelos reis é o mais fácil de discernir e, portanto, de apreender. Para eles, a reorganização da sociedade equivale ao restabelecimento Puro e simples do sistema feudal e teológico na sua máxima, se não total amplitude. Aos olhos dos monarcas não há qualquer outro processo de travar, ou de impedir, a anarquia que resulta da decadência do sistema. Seria pouco filosófico interpretar tal cegueira como resultante de uma opinião principalmente ditada pelo interesse particular dos governantes. Por muito quimérica que a consideremos, ela apresentou-se naturalmente àqueles espíritos que de boa fé procuram remédio para a crise atual e que entendem ser indispensável uma reorganização, em toda a sua possível extensão, mas que nunca estudaram a marcha geral da civilização humana. Encarando o estado das coisas no presente, e vendo-o só pelo lado que lhes é oferecido, não percebem a tendência da sociedade para o estabelecimento de um sistema novo, mais consistente e mais perfeito do que o antigo. Diremos, numa palavra, que é natural ser este modo de ver o próprio dos governantes; efetivamente, do ponto de vista em que estão situados, devem perceber necessariamente, e melhor do que ninguém, o que houver de anárquico no estado da sociedade, como devem ficar perturbados com a evidência; compreende-se, assim, que sintam melhor do que ninguém o dever de procederem com força e rapidez nos meios de travar ou reprimir a desordem observada. Não é este o lugar de insistir sobre quão manifesto é o absurdo de tal opinião; de modo universal foi já reconhecida a verdade pela massa dos homens esclarecidos. Só os reis, ao procurarem reconstruir o antigo sistema, não compreenderam ainda a natureza da crise atual e estão longe de medir a extensão das suas empresas erradas. A queda do sistema feudal e teológico não é devida, como eles creem, a causas recentes, isoladas e de algum modo acidentais. A queda, em lugar de ser o efeito da crise, é pelo contrário o seu princípio. A decadência deste sistema efetuou-se de maneira contínua durante os séculos que nos precederam, em consequência de modificações, totalmente independentes da vontade humana, e para as quais todas as classes da sociedade concorreram, sendo até de notar que os primeiros agentes ou os mais ardentes promotores foram por vezes os próprios reis. Tal foi, numa palavra, a consequência necessária da civilização. Para restabelecer o sistema antigo, não bastaria, pois, fazer retrogradar a sociedade até à época em que a crise atual começou a desenhar-se. Admitindo a efetivação do regresso a tal ponto, o que é absolutamente impossível, não mais faríamos do que recolocar o corpo social na situação que necessitou a crise. Seria portanto indispensável, ao ascender pelos séculos, recuperar sucessivamente todas as perdas que o antigo sistema foi sofrendo há cerca de seiscentos anos, tempo ao lado do qual não tem importância o valor perdido nos três últimos decênios. Para alcançar tal fim, não haveria outro meio além de anular cada um dos progressos da civilização que, por desequilíbrio, causaram perdas e danos. Seria, por exemplo, inteiramente vão supor destruída a filosofia do século décimo oitavo, causa direta da queda do sistema antigo, sob o ponto de vista espiritual, o que suporia também a abolição da reforma protestante, já que a filosofia do último século é apenas sua consequência ou seu desenvolvimento. Mas como a reforma de Lutero não é, por sua vez, mais do que o resultado necessário do progresso das ciências de observação introduzidas na Europa pelos árabes, nada seria possível para assegurar a restauração do sistema antigo se previamente não se conseguisse abafar a voz das ciências positivas. Mas sob o ponto de vista temporal dar-se-ia o análogo do dito sob o ponto de vista espiritual. Seríamos conduzidos, de elo histórico para outro elo, até ao ponto de recolocar as classes industriais em estado de servidão, porque em última análise a libertação das comunas é a causa primeira e geral da decadência do sistema feudal. Enfim, para acabar de caracterizar tal empreendimento, após ter vencido tantas dificuldades, a menor das quais, considerada isoladamente, está acima de todo o poder humano, ainda assim não teríamos logrado algo mais do que adiar a queda definitiva do sistema antigo, obrigando a sociedade a recomeçar a destruição, porque não teríamos extinguido o princípio da civilização progressiva, inerente à natureza da espécie humana. Um projeto tão monstruoso, tão monstruoso por extenso como por absurdo, nunca poderia ter sido - certamente -, concebido em seu conjunto por qualquer cabeça humana. Ainda que contra a própria vontade, cada qual tem de ser homem do século em que vive. Os espíritos que imaginam lutar contra a marcha da civilização não fazem; mais, afinal, do que obedecer, inconscientemente à influência dela, que é irresistível, e portanto a colaborar e concorrer para o progresso social. Os reis, ao mesmo tempo em que projetassem reconstruir o sistema feudal e teológico, cairiam em contradições perpétuas, pois contribuiriam pelos próprios atos, quer a agravar cada vez mais a desorganização do sistema, quer a acelerar a formação daquele que há de suceder. Ao observador e ao historiador se oferece a multidão imensa de fatos deste gênero. Para indicar tão somente os fatos mais notáveis, vemos os reis terem muita honra em encorajar o aperfeiçoamento e a propagação das Ciências e das artes, e também em estimular o desenvolvimento das indústrias vêmo-lo criar, para tal efeito, numerosos e úteis estabelecimentos, ainda que, em última análise, ao progresso das ciências, das artes e das indústrias, deva ser atribuída dissolução e decadência do sistema antigo. Foi ainda nesta declinação que pelo tratado da santa aliança, os reis degradaram tanto quanto pudera o poder teológico, base principal do antigo sistema, quando formaram um conselho europeu supremo do qual foi até excluída a voz consultiva de proveniência eclesiástica. Enfim, a maneira por que estão hoje repartidas as opiniões, acerca da luta empenhada pelos Gregos, oferece um exemplo ainda mais sensível deste espírito de inconsequência. Vê-se, nesta ocasião, que os homens que pretendem restituir às ideias teológicas o antigo prestígio, são os primeiros a constatar que involuntariamente nos seus próprios espíritos tais ideias decaíram, a ponto de não terem receio de proferi-la a favor do maometismo um voto que lhes valeria a acusação de sacrilégio nos tempos esplendorosos do sistema antigo (Para ver o alcance máximo deste fato, convém rememorar que o próprio Papa se manifestou, no mesmo sentido, quando recusou formalmente à juventude de nobreza romana a licença de socorro militar aos Gregos.). Quem tiver seguido a série de observações que acaba de ser indicada, ficará habilitado a acrescentar facilmente novos fatos numa lista que vai crescendo diariamente. Os reis não fazem, por assim dizer, um só ato, uma só diligência, tendentes ao restabelecimento do sistema antigo, que não seja logo sucedido de outro ato dirigido em sentido contrário; acontece até, por vezes, que a mesma ordenação contém os dois contrários. Esta incoerência radical é o que há de mais próprio para expor à luz do dia o traçado absurdo de um plano que nem sequer é compreendido por aqueles que seguem a respectiva execução com maior ardor. Ele mostra claramente como a ruína do antigo sistema é completa e irrevogável. Não vale a pena entrar em pormenores acerca de um assunto já esclarecido. A maneira pela qual os povos conceberam ate ao presente a reorganização da sociedade não é menos viciosa, se bem que tenha outros aspectos, do que a escolhida pelos reis. Somente ha que dizer que o erro dela é mais desculpável, visto que os povos se despistam durante a procura do novo sistema para a qual são arrastados pela marcha da civilização, mas cuja natureza ainda não ficou claramente determinada, ao passo que os reis perseguem um empreendimento cujo estudo, ainda que pouco intenso, do passado, demonstra, com evidência plena, o absurdo total. Numa fórmula, os reis estão em contradição com os fatos, e os povos estão em contradição com os princípios, fórmula que nunca deveremos deixar de ter em vista. Mas o erro dos povos custa mais a desenraizar do que o dos reis, porque é por si só um obstáculo essencial à marcha da civilização, e porque o primeiro erro apenas confere alguma consistência ao segundo. A opinião dominante no espírito dos povos acerca da maneira por que a sociedade deverá ser reorganizada tem por traço característico uma ignorância profunda das condições fundamentais que um sistema social qualquer deve preencher para adquirir uma consistência verdadeira. Ela reduz-se a apresentar, como princípios orgânicos, os princípios críticos que servirão para destruir o sistema feudal e teológico, ou, noutros termos, a tomar simples modificações do sistema pelas bases daquele que será necessário estabelecer. Tomem-se, por exemplo, e com atenção, as doutrinas que hoje merecem maiores créditos aos povos, examinem-se nos discursos dos seus partidários mais capazes e nos escritos dos seus expositores mais metódicos; depois de terem sido consideradas cada uma por si própria, observe-se a sua formação sucessiva ao longo da história, logo surgirão construídas num espírito puramente crítico, que não poderia servir de base para uma reorganização. O governo que, na regularidade dispositiva das coisas, está à frente do corpo social, como guia e agente da ação geral, aparece nessas doutrinas como sistematicamente destituído de qualquer princípio de atividade. Privado de participação importante na vida do conjunto do corpo social, o seu papel fica reduzido a uma função absolutamente negativa. Chega-se até a ver que toda a ação do tronco social sobre os seus membros deve ficar estritamente limitada à função de manter a tranquilidade pública, exatamente o que nunca pôde ser, numa sociedade ativa, senão um objetivo tão subalterno que o desenvolvimento da civilização lhe atenuou singularmente a importância, tornando cada vez mais fácil a manutenção da ordem. O governo já não é concebido como a cabeça da sociedade, destinado a unir em feixe, e a dirigir para um fim comum, todas as atividades individuais. É agora representado como um inimigo natural, acampado no meio do sistema social, contra o qual a sociedade se deve fortalecer pelas garantias que conquistou, e manter-se perante ele num estado de desconfiança permanente e de hostilidade defensiva, pronta a explodir ao primeiro sinal de ataque. Se, do todo passarmos aos pormenores, o mesmo espírito se apresenta mas ainda mais claramente. É o que bastará mostrar aqui pelos pontos principais que se referem ao espiritual e ao temporal. O princípio desta doutrina, pelo que concerne o espiritual, é o dogma da liberdade ilimitada da consciência. Examinado no mesmo sentido em que foi primitivamente concebido, quer dizer, como tendo um destino de crítica, este dogma não passa da tradução de um grande fato geral, a decadência das crenças teológicas. Resultante dessa decadência, e sendo uma reação necessária, ele contribuiu poderosamente para acelerá-la e protegê-la; mas, pela própria natureza das coisas, a sua influência ficou limitada, não foi mais além. Está apenas na linha dos progressos do espírito humano, na medida em que seja considerado como meio de luta contra o sistema teológico. Sai dessa linha, e assim perde todo o seu valor, logo que queiram ver nele uma das bases da grande reorganização social, reservada para a época atual; acaba, afinal, por ser tão nocivo quanto foi útil, porque vem a ser um obstáculo a tal reorganização. Está na sua essência, com efeito, impedir o estabelecimento uniforme de qualquer sistema de ideias gerais, sem o qual não poderá haver sociedade, e assim procede quando proclama a soberania de cada razão individual. Qualquer que seja o grau de instrução a que possam ascender as massas humanas, é evidente que só poderão ser admitidas por mera confiança, e sem exigências de demonstração, a maior parte das ideias gerais que sejam destinadas a ser usuais. Deste modo vemos que aquele dogma, por natureza própria, nunca será aplicável senão às ideias que devam desaparecer, porque elas se tornam indiferentes; e, de fato, só a elas foi aplicado, no momento em que elas começavam a declinar, e na intenção de apressar a consequente queda. Aplicá-la ao novo sistema como ao antigo, e, com mais forte razão, considerá-la como um princípio orgânico, é cair na mais estranha das contradições; e se um erro tal pudesse ser duradouro, nunca mais seria possível a reorganização da sociedade. Não há liberdade de consciência, ou de pensamento, para quem estuda astronomia, física, química, fisiologia, quer dizer, toda a gente julga absurdo não acreditar fielmente nos princípios estabelecidos naquelas ciências pelos homens competentes. Já o mesmo não acontece perante a ciência política. Tal fato se explica porque caducaram os velhos princípios antes de se enunciarem princípios novos, o que equivale, a bem dizer, que neste intervalo ainda não se estabeleceram princípios fixos e definitivos. Mas converter esta situação provisória e transitória no dogma absoluto e eterno de que não há princípios, considerá-la como máxima fundamental, é evidentemente proclamar que a sociedade deve existir para sempre destituída de doutrinas gerais. Há que convir em que tal dogma merece, com efeito, as acusações de anarquia que lhe são inculpadas pelos melhores defensores do sistema teológico. O dogma da soberania do povo é aquele que corresponde, sob o ponto de vista temporal, ao dogma que acaba de ser examinado e que não passa senão da respectiva aplicação política. Tal dogma foi criado para combater o princípio do direito divino, base política geral do antigo sistema, pouco tempo após ter sido formulado o dogma da liberdade de consciência na intenção de destruir as ideias teológicas sobre as quais tal princípio estava fundado. O que ficou dito acerca do primeiro será portanto aplicável ao segundo, o dogma antifeudal, como o dogma antiteológico, cumpriu a sua missão crítica, logo que chegou ao termo final da sua carreira, o primeiro já não pode ser a base política da reorganização social, como o segundo não pode ser a respectiva base moral. Nascidos ambos para o destino, de demolir, são igualmente impróprios para fundar. Se um deles, para quem nele vê um princípio orgânico, não apresenta mais do que a infalibilidade individual a substituir a infalibilidade papal, o outro também não faz mais do que substituir o arbítrio dos reis pelo arbítrio dos povos, ou, melhor, pela arbitrariedade dos indivíduos. Este tende para o desmembramento geral do corpo político porque desloca o poder para as classes menos civilizadas, como aquele tende para o total isolamento dos espíritos, ao investir os homens menos esclarecidos de um direito de controlo absoluto sobre o sistema de ideias gerais, mantidas pelos espíritos superiores para servirem de diretriz e guia à sociedade humana. É fácil transferir para cada uma das ideias mais particulares de que se compõe a doutrina dos povos o exame que acaba de ser aplicado no que diz respeito aos dois dogmas fundamentais. Encontrar-se-á sempre, no fim da análise, um resultado semelhante ou igual. Verificar-se-á que todas as ideias, tal como as duas principais, não passam do enunciado dogmático de um fato histórico correspondente, relativo à decadência do sistema feudal e teológico. Reconhecer-se-á também que todas essas ideias sociais têm um destino puramente crítico - o que lhes confere valor -, mas que as torna absolutamente impróprias para a reorganização da sociedade. Assim, o exame aprofundado da doutrina dos povos confirma o que poderia ser previsto na consequência da intuição filosófica, isto é, de que máquinas adequadas à função bélica e destrutiva não poderiam transformar-se subitamente em máquinas de edificação, graças a uma estranha metamorfose. Esta doutrina, puramente crítica na totalidade e nos pormenores, foi certamente da máxima importância para secundar a marcha natural da civilização, enquanto a ação principal teve de ser a luta contra o antigo sistema. Mas concebida para presidir à reorganização social, mostra-se caracterizada por uma insuficiência absoluta. Ela coloca forçosamente a sociedade num estado de constituição anárquica, tanto no temporal como no espiritual. Desculpável é, sem dúvida, a fraqueza da inteligência humana quando os povos começaram, por adotar como orgânicos os princípios críticos com que estavam familiarizados após contínua aplicação aos fatos. Mas a contumácia em tal erro não deixou de ser o maior obstáculo à reconstrução e à reorganização da sociedade. Após haver considerado separadamente as duas maneiras diferentes pelas quais os povos e os reis conceberam esta reorganização, resta-nos comparar uma com a outra, para ver que cada uma delas, pelos vícios que lhes são próprios, se mostra igualmente impotente para situar a sociedade numa direção verdadeiramente orgânica, e também para evitar o regresso de tempestades tais como aquelas que até agora têm constantemente acompanhado a grande crise que caracteriza a época atual. Ambas as maneiras são anárquicas e no mesmo grau: uma por essência íntima, outra por consequências necessárias. A única diferença que existe entre ambas a tal respeito é que, na opinião dos reis, o governo se constitui intencionalmente em oposição direta e contínua com a sociedade; enquanto, na oposição dos povos, é a sociedade que se estabelece sistematicamente num estado de permanente hostilidade contra o governo. Estas duas opiniões opostas e igualmente viciosas tendem, pela natureza das coisas, a enfrentar-se e a fortificar-se mutuamente, e, em consequência, a alimentar indefinidamente a fonte das revoluções. Por um lado, as tentativas dos reis para reconstruir o sistema feudal e teológico provocam, necessariamente, da parte dos povos, a explosão dos princípios da doutrina crítica na sua mais temível energia. É até evidente que, se não fossem estas tentativas, já aquela doutrina teria perdido a sua máxima virulência, porque lhe faltaria o objeto de ataque, logo que a adesão solene dos reis ao seu princípio fundamental (o dogma da liberdade de consciência), e também a adesão às respectivas consequências, tiveram por efeito a constatação evidente da ruína irrevogável do sistema antigo. Mas os esforços desenvolvidos para ressuscitar o direito divino foram despertar a reivindicação da soberania do povo, que ressurge dotada de maior fervor doutrinal e de energia revolucionária. Por outro lado, na medida em que o antigo sistema se mostra suficientemente modificado para permitir o trabalho tendente à formação do novo sistema, a preponderância dada pelos povos aos princípios críticos impele naturalmente os reis a tentar afogar, pelo restabelecimento do antigo sistema, uma crise apresentada de modo tal que parece não oferecer outra saída senão a dissolução da ordem social. Esta prorrogação do reinado da doutrina crítica, numa época em que a sociedade necessita de uma doutrina orgânica, é o recurso único que ainda possa dar alguma força à opinião dos reis. Porque, se esta opinião não é, com efeito, mais realmente orgânica do que a dos povos, por causa da impossibilidade absoluta de se realizar, ela é, pelo menos em teoria, a que lhe dá uma relação incompleta com as exigências da sociedade, a qual nem pode absolutamente viver sem um sistema qualquer. Acrescente-se a este quadro exatíssimo a influência das diversas facções, aos projetos das quais é apresentado um campo tão vasto como favorável para semelhante estado de coisas; examinem-se os respectivos esforços para impedir o esclarecimento da questão, como também para dificultar que os reis e os povos se entendam e assim reconheçam as suas mútuas e recíprocas erronias; ter-se-á uma justa ideia da triste situação em que se encontra hoje a sociedade. Todas as considerações precedentemente expostas provam que o meio de sair por fim deste deplorável círculo vicioso, fonte inesgotável de revoluções, não consiste na vitória da opinião dos reis, nem na da opinião dos povos, tais como são hoje apresentadas. Não há outra solução possível além da formação e da adoção geral, para os povos e para os reis, da doutrina orgânica, pois só ela obriga os reis a deixarem a direção retrógrada, e os povos a deixarem a direção crítica. Só esta doutrina pode pôr fim à crise, integrando toda a sociedade na senda do novo sistema, na marcha da civilização que está desde a origem preparada para o triunfo definitivo, destinada como está a substituir o sistema feudal e teológico. Pela adoção unânime desta doutrina, ficará satisfeito o que as opiniões atuais dos povos e dos reis oferecem de razoável; ficará afastado o que elas encerram de vicioso e discordante. Dissipados os justos alarmes dos reis acerca da dissolução da sociedade, nenhum motivo legítimo será capaz de levá-los a oporem-se ao surto do espírito humano. Os povos, enveredando os seus votos para a formação do novo sistema, nunca mais se irritarão contra o sistema feudal e teológico, e deixá-lo-ão desaparecer pacificamente, segundo Q curso natural das coisas. Após haver constatado â necessidade de adoção de uma nova doutrina verdadeiramente orgânica, e também depois de examinar a oportunidade do respectivo estabelecimento, serão suficientes as considerações seguintes para demonstrar que chegou enfim o momento de começar a realizar imediatamente esta grande operação. Observando com precisão o estado atual das nações mais avançadas, é-se logo impressionado por este fato singular e quase contraditório: se bem que não existam mais do que duas ideias políticas, as que se referem à doutrina retrógrada e à doutrina crítica, certo é que nenhuma delas goza ainda de preponderância verdadeira quer entre os reis quer entre os povos; nenhuma delas tem ação suficientemente poderosa para dirigir a sociedade. Estas duas doutrinas que, sob o aspecto teórico, se alimentam uma da outra, como já estabelecemos nas regras antecedentes, estão agora a ser realmente aplicadas na função de se limitarem ou anularem mutuamente na condução geral dos negócios públicos. O grande movimento político, determinado há trinta anos e caracterizado pela atividade das ideias críticas, tem vindo a perder gradualmente a sua principal influência política. Por outro lado, quando feriu o golpe mortal no antigo sistema, chegou ao fim da sua carreira natural; destruiu quase completamente o motivo geral que lhe havia conferido o favor popular. Por outro lado, a aplicação das novas opiniões à tarefa de reorganizar a sociedade colocou em perfeita evidência o absurdo da sua qualificação anárquica. Feita esta experiência decisiva, já os povos não se encontram movidos por verdadeira paixão crítica. Em consequência, por contrárias que sejam as aparências, também já não pode haver verdadeira paixão retrógrada entre os reis; ficaram positivamente reconhecidas por eles a decadência do sistema feudal e teológico, mas também a necessidade imperiosa de o abandonar. A atividade real, quer em uma quer em outra direção, exerce-se agora tão fora do poder soberano como da sociedade constituída. Tanto o poder como a sociedade se servem, na prática, da opinião retrógrada ou da opinião crítica, como aparelho defensivo, isto é, de maneira essencialmente passiva. Tanto um como o outro empregam, alternadamente e quase no mesmo grau, os mesmos recursos opiniosos. Há, porém, uma só diferença natural a considerar, a qual é que, como meio de raciocínio, os povos ainda estão ligados à doutrina crítica, porque sentem com maior força a conveniência de derrubar o antigo sistema; e os reis estão ligados à doutrina retrógrada, porque sentem mais profundamente a necessidade de que se estabeleça uma ordem social qualquer. Esta observação pode ser facilmente verificada e esclarecida pelo simples fato da existência e do crédito de uma espécie de opinião bastarda, já que nem passa de uma mistura das ideias retrógradas com as ideias críticas. É evidente que esta opinião, sem influência alguma na origem da crise, tornou-se hoje dominante, tanto entre os governados como entre os governantes. Os dois partidos extremistas reconhecem sem equívoco o império da doutrina intermediária, porque se encontram hoje na estrita obrigação de adotar a nomenclatura situacionista e a consequente linguagem vulgar. O sucesso de tão medíocre opinião faculta-nos claramente a evidência de dois fatos muito essenciais para o conhecimento exato da época atual. Ela prova, em primeiro lugar, que a insuficiência da doutrina crítica para corresponder às grandes necessidades atuais da sociedade, está a ser tão profundamente e tão universalmente sentida como a incompatibilidade do sistema teológico e feudal com o estado presente da civilização. Em segundo lugar, ele garante que nem a opinião crítica, nem a opinião retrógrada, já não podem obter maior ascendente real na população. Quando uma das correntes de opinião extremista parece chegar ao ponto da máxima preponderância, logo a disposição geral dos espíritos começa a manifestar-se favoravelmente à outra; isto acontece até que esta, iludida pela aprovação aparente, começa a tornar-se tão ativa que suscita na população os mesmos alarmes, pelo que dá azo ao desapontamento semelhante ou análogo àquele que havia sido gerado pela doutrina rival. (O mérito da opinião intermediária, ou antes, contraditória, consiste em servir de órgão para esta disposição. É, aliás, evidente que nasce lesada de nulidade orgânica, visto que nada possui que lhe seja próprio, e porque se compõe de máximas opostas, que se anulam reciprocamente. Ele não consegue mais, o que foi já suficientemente confirmado pela experiência, do que forçar o andamento dos negócios públicos a uma oscilação necessária entre a tendência crítica e a tendência retrógrada, sem jamais lhe imprimir qualquer caráter determinado. Este comportamento indeciso é certamente indispensável na situação política atual, e há de existir até ao estabelecimento de uma doutrina verdadeiramente orgânica; pela razão de que serve para evitar as violentas desordens a que a sociedade ficaria sujeita pela preponderância do partido retrógrado ou do partido crítico. Bem se compreende que, por isso, todos os homens sensatos se apressem a secundar a doutrina intermediária e tranquilizadora. Mas se é certo que tal política torna menos tempestuosa a época revolucionária, não é menos incontestável que ela tende diretamente a prolongar o movimento da revolução. Porque, uma opinião que erige a inconsequência em sistema e que conduz a impedir minuciosamente a extinção total das duas doutrinas extremistas, porque lhe convém estar sempre a opor uma à outra, é opinião que forma necessariamente obstáculo à marcha do corpo social para o seu estado fixo e definitivo. Numa palavra, esta política é por enquanto razoável e útil, contanto que se considere provisória, mas tornar-se-á absurda e perigosa para quem a quiser considerar definitiva. Tais são os motivos pelos quais, no exame das opiniões existentes sobre a reorganização social, não conferi grande menção a este modo de ver). Estas oscilações sucessivas efetuam-se ora num sentido ora no outro, conforme a marcha natural dos acontecimentos manifestar especialmente ou a absurdez do antigo sistema ou o perigo da anarquia. Tal é, neste momento, o mecanismo da política prática, e assim será inevitavelmente enquanto não se fixarem as ideias sobre a maneira de reorganizar a sociedade; enquanto não vier a ser produzida uma opinião capaz de preencher ao mesmo tempo estas duas grandes condições que a nossa época prescreve, e que, até agora, pareceram contraditórias: a revogação do antigo sistema e o estabelecimento de uma ordem regular e estável. Esta anulação recíproca das duas doutrinas opostas, dominantes nas correntes de opinião, é, principalmente incontestável, perante a lição dos fatos. Examine-se, com efeito, todos os acontecimentos de qualquer importância que se desenvolveram de há dez anos a esta parte, quer com tendência crítica, quer com tendência retrógrada, verificar-se-á que jamais deles resultou progresso real para o sistema correspondente, e que tiveram sempre por único resultado o impedir a preponderância do sistema oposto. Assim, e em resumo, nem a opinião dos reis, nem a opinião dos povos, podem satisfazer de modo algum a necessidade fundamental de reorganizar a sociedade humana que caracteriza a época atual: o que equivale a formular a exigência de uma nova doutrina geral. Agora é igualmente impossível o triunfo de uma ou de outras opiniões litigantes; nem sequer, podem já exercer uma atividade autêntica e verdadeira; situação esta que significa que os espíritos estão enfim suficientemente preparados para receber a doutrina orgânica. O destino da sociedade que atinge a maturidade não é o residir para sempre na velha e inválida mansão que edificou na sua infância, como pensam os reis; nem o viver eternamente sem abrigo depois de tê-la abandonado, como pensam os povos; mas, com o auxílio da experiência adquirida, e com os materiais longamente acumulados, construir aquele edifício que venha a ser mais adequado aos seus fins superiores de trabalho, arte e jogo. Tal é o novo e grandioso empreendimento que está reservado para a geração atual. EXPOSIÇÃO GERAL Demonstrado, como ficou, que é inteiramente vicioso o espírito pelo qual a reorganização social tem sido até agora concebida pelos reis e pelos povos, deve necessariamente inferir-se que uns e outros procederam muito mal na formação do plano da reorganização; não há outra explicação possível que satisfaça ao exame de um fato indiscutível; mas importa concluir esta asserção de maneira direta, especial e precisa. A fraqueza da opinião dos reis e da opinião dos povos demonstrou a exigência de uma doutrina mais forte e verdadeiramente orgânica, doutrina capaz de pôr fim à crise terrível que atormenta a sociedade. Também o exame da maneira de proceder que conduziu, de parte a parte, a resultados tão imperfeitos, mostrará qual deva ser o método a adotar para a formação e o estabelecimento da nova doutrina, e quais as forças sociais que hão de ser chamadas a dirigir tão importante trabalho. O vício geral do método seguido, pelos povos e pelos reis, na pesquisa do plano de reorganização, consistiu em que uns e outros conceberam uma ideia extremamente falsa da natureza de tal trabalho, e, por conseguinte, confiaram esta importante missão a homens necessariamente incompetentes. Tal é a causa primeira das aberrações fundamentais constatadas no capítulo precedente. Se bem que a mesma causa haja sido tão real no caso dos reis como no caso dos povos, parece-nos inútil considerá-la especialmente em relação aos primeiros; porque os reis, que nada inventaram e que se aplicaram a imitar a doutrina do sistema antigo na aplicação às condições do novo estado social, demonstram sua impotência em receber uma verdadeira reorganização, fato que ficou suficientemente constatado. O seu procedimento teve de ser naturalmente mais metódico, porque já havia sido traçado outrora na totalidade e nos pormenores, se bem que o seu princípio fosse tão absurdo como aquele que depois foi adotado pelos povos. Estes foram efetivamente os produtores de uma espécie de doutrina nova, mas o modo por que procederam na aplicação merece ser acima de tudo examinado, a fim de que possamos discernir e descobrir a origem dos vícios da nova doutrina. Feito o exame, será fácil a qualquer pessoa transferir para o procedimento dos reis, mas com as modificações convenientes, as observações gerais que tiverem sido feitas acerca dos povos. A multiplicidade das pretensas constituições políticas, imaginadas pelos povos desde o começo da crise, e a excessiva minúcia na redação de artigos que avulta mais ou menos nesses documentos jurídicos, seriam características que só por si bastariam para mostrar, com perfeita evidência a todos os espíritos de juízo são, que a natureza e a dificuldade da formação de um plano de reorganização social estiveram escondidas ou ignoradas até ao nosso tempo! Motivo profundo de espanto para os vindouros, se a sociedade vier a ser verdadeiramente reorganizada, será o fato histórico de que, no intervalo de trinta anos, hajam sido produzidas dez constituições, todas proclamadas, umas após outras, de eternas e irrevogáveis, algumas das quais inserem mais de duzentos artigos minuciosos, sem contar as leis orgânicas a que se referem ou reportam. Tal palavrório seria a vergonha do espírito humano na realização da política, se, dado o progresso natural das ideias, ele não significasse mais do que uma transição inevitável para a verdadeira doutrina final. Não é assim que progride, nem pode progredir, a sociedade humana. A pretensão de construir, de um jato, em poucos meses, ou até em poucos anos, toda a estrutura de um sistema social, como também o seu desenvolvimento integral e definitivo, não passa de uma quimera extravagante, absolutamente incompatível com a debilidade do espírito humano. Observe-se, com razão, a maneira pela qual o espírito humano procede em casos análogos, mas infinitamente mais simples. Quando qualquer ciência se reconstitui segundo uma nova teoria, já suficientemente preparada, começa-se por formular, discutir e estabelecer o princípio fundamental; só depois, e após longo encadeamento de trabalhos que cobrem todas as partes da ciência, será possível formar uma coordenação que ninguém seria capaz de prever, nem sequer o inventor do princípio. Foi assim, por exemplo, que só após Newton haver descoberto a lei da gravitação universal, começaram a surgir os trabalhos muito difíceis com que os geômetras da Europa conseguiram dar à astronomia física a constituição que deveria resultar da grande lei. Este trabalho científico durou quase um século. O mesmo acontece nas técnicas. Daremos um só exemplo, o qual é dizer que a força elástica do vapor de água foi concebida como um motor novo de aplicação às máquinas industriais. Também neste caso foi indispensável decorrer quase um século, para compor a série das reformas industriais que eram, afinal, as consequências mais diretas de tão notável descobrimento. Se tal é, evidentemente, a marcha necessária e invariável do espírito humano nas revoluções que, apesar da sua importância e da sua dificuldade, não passam de meros casos particulares, como não há de parecer-nos frívola a pretensão doutrinária que até agora tem sustentado o método da revolução mais difícil, mais importante e mais geral de todas as possíveis: aquela que tem por objetivo a refundição completa do sistema social!... Destas comparações indiretas, mas decisivas, passemos agora às comparações diretas, e veremos que o resultado será o mesmo. Estude-se a fundação do sistema feudal e teológico, revolução absolutamente da mesma natureza que a da época atual. A constituição deste sistema não se produziu de um só ato decisivo, antes pelo contrário. Ele só adquiriu a sua forma própria e definitiva no século décimo primeiro, isto é, mais de cinco séculos depois do triunfo geral da doutrina cristã na Europa ocidental, e do estabelecimento completo dos povos do Norte sobre o império do Ocidente. Seria impossível conceber que, no século quinto, qualquer homem de gênio estivesse em condições de traçar, com alguma minúcia, o plano desta constituição, se bem que o princípio fundamental, de que ela foi apenas o desenvolvimento necessário, já estivesse fortemente estabelecido, tanto em relação ao temporal como ao espiritual. Alegar-se-á, sem dúvida, que por causa do progresso das luzes e da essência mais natural e mais simples do sistema que está hoje para estabelecer, a organização total do novo sistema há de proceder com muito maior rapidez. Mas, como a marcha da sociedade é no fundo sempre e necessariamente a mesma, com menor ou maior velocidade, porque depende da natureza permanente da constituição humana, a grande experiência medieval não deixa de provar que é absurdo querer improvisar, até à especialização mais minuciosa, um plano total de reorganização da sociedade. Se esta conclusão fosse precária, e tivesse de ser confirmada, teríamos uma prova mais ao observarmos no modo por que foi estabelecida a doutrina crítica adotada pelos povos. Esta doutrina provém, evidentemente, do desenvolvimento geral e da aplicação completa do direito individual de livre exame, alavancado a princípio teórico e prático pelo movimento do protestantismo. Ora foi indispensável o decurso de quase dois séculos, depois da proclamação daquele princípio, para que dela se deduzissem todas as consequências importantes até se formular e formar em teoria. É incontestável que a resistência do sistema feudal e teológico muito influiu para que fosse lenta a difusão do protestantismo; mas não é menos evidente que tal não foi a causa única da resistência, e que em grande parte se deve também à própria natureza do trabalho a lentidão verificada na história. Ora, o que é verdadeiro de uma doutrina puramente crítica, com mais forte razão o será da doutrina realmente orgânica. Importa, pois, concluir, desta primeira classe de considerações, que até agora os povos ainda não compreenderam qual seja o grande trabalho da reorganização social. Ao tentarmos precisar em como foi desconhecida a natureza desse trabalho, encontraremos a razão de que foi por haverem considerado como puramente prático um empreendimento que é essencialmente de ordem teórica. A formação de um plano qualquer de organização social compõe-se necessariamente de duas séries de trabalhos, totalmente distintos, quanto ao respectivo objeto, e, portanto, pelo gênero de capacidade que exigem de quem os realiza. Uma, teórica ou espiritual, tem por fim a ideia matriz do plano, ou seja, do novo princípio segundo o qual as relações sociais devem ser coordenadas, e a formação do sistema de ideias gerais destinado a servir de guia para a sociedade. A outra, prática ou temporal, determina o modo de repartição do poder e o conjunto das instituições administrativas mais conformes com o espírito do sistema, tal como ele ficou definido pelos trabalhos teóricos. Sendo a segunda série firmada sobre a primeira, porque aquela não é mais do que a consequência e a realização desta, logo se infere, necessariamente, por onde deve começar a generalidade do trabalho. É pela alma, pela parte mais importante e mais difícil, ainda que seja considerada somente preliminar. Foi por não haverem adotado esta divisão fundamental, ou, noutros termos, por terem fixado exclusivamente a sua atenção sobre a parte prática, que os povos foram naturalmente induzidos a conceber a reorganização social nos moldes da viciosa doutrina que ficou examinada no capítulo precedente. Todos os erros dos povos não foram mais do que a consequência desta grande desviação primitiva. Podemos facilmente deduzir esta filiação. Em primeiro lugar; resultou desta infração à lei natural do espírito humano que os povos, imaginando construir um novo sistema social, continuaram encerrados no antigo sistema. Isso era inevitável, porque ainda não estavam determinados o espírito e a finalidade do novo sistema. Há de continuar a acontecer sempre assim, enquanto esta condição indispensável não ficar previamente preenchida. Qualquer sistema social, pensado que seja para um partido de homens ou para vários milhões, terá por objetivo dirigir para um fim geral de atividade todas as forças particulares. Pois, a bem dizer, não há sociedade senão onde se exerce uma ação geral e combinada. Em qualquer outra hipótese, há somente aglomeração de certo número de indivíduos que residem no mesmo solo. Tal é o traço que distingue e separa a sociedade humana da sociedade dos outros animais, que vivem aglomerados. Segue-se desta consideração que a determinação nítida e precisa do fim da atividade é a primeira condição, e a mais importante, de uma ordem verdadeiramente social, visto que ela fixa o sentido em que todo o sistema social deve ser concebido. Por outro lado, não há mais do que dois fins de atividade possíveis para uma sociedade organizada, por muito numerosa que seja, como para um indivíduo isolado. São elas a ação violenta sobre o resto da espécie humana, ou conquista, e a ação sobre a natureza para modificá-la para vantagem do homem, ou produção. Toda a sociedade que não estiver nitidamente organizada para um ou para outro destes fins jamais passará de uma associação bastarda e sem caráter. A finalidade militar era a do antigo sistema; a finalidade industrial é a do novo. O primeiro passo que deveria ter sido dado para reorganizar a sociedade seria, portanto, a proclamação desta nova finalidade. Como tal passo não foi dado, continua-se a viver no antigo sistema, apesar de muito se acreditar no progresso realizado. Ora é claro que tão estranha lacuna das nossas pretensas constituições significa e mostra que houve a pretensão de organizar todos os pormenores da sociedade, mediante artigos de lei, antes de ter sido concebido e construído o conjunto do sistema. Noutros termos, tal lacuna resultou de que as atenções se dirigiram exclusivamente para a parte regulamentar da reorganização, sem que a parte teórica tivesse ficado perfeita, ou até mesmo sem que alguém tivesse pensado estabelecê-la. Por uma consequência necessária neste erro primordial, tomou-se por transformação radical do antigo sistema um amontoado de pequenas alterações. O fundo permaneceu essencialmente intato: as alterações todas não incidiram mais do que sobre as formas. Houve apenas a preocupação de fracionar os antigos poderes do Estado, e consequentemente de regular a oposição dos diferentes ramos da divisão. As discussões suscitadas acerca deste assunto foram consideradas, e assim continuam a ser de direito, como o suprassumo da política, quando elas de fato não passam de pormenores verdadeiramente subalternos. A direção da sociedade e a natureza dos poderes foram temas concebidos como sempre os mesmos, e portanto insusceptíveis de discussões valiosas. É, além disso, essencial observar que as discussões sobre as divisões dos poderes, as únicas de que alguém se ocupou, foram, por outra consequência da desviação primitiva, tão superficiais quanto possível. A razão é que logo se perdeu de vista a grande divisão em poder espiritual e poder temporal, exatamente o principal aperfeiçoamento que o antigo sistema havia introduzido na política geral. Tendo sido a atenção inteiramente dirigida para a parte prática da reorganização social, foi-se naturalmente conduzido para a monstruosidade de uma constituição sem poder espiritual, a qual, se tivesse condições de existência, resultaria em verdadeiro e imenso retrocesso para a barbaridade. Todos os olhares se dirigiram exclusivamente para o temporal. Viram apenas a divisão em poder legislativo e poder executivo, o que não passa, evidentemente, de uma subdivisão. Foi para aplicarem o seu espírito sobre as modificações do sistema feudal e teológico que os povos foram necessariamente ensinados a conceber como orgânicos os princípios críticos que lhes tinham servido para lutar contra o antigo sistema, logo que este começou a tornar sensível a sua decadência, princípios que por isso mesmo estavam destinados para modificar o dito sistema. Não deve deixar de observar-se a este respeito que, apesar de desconhecerem a divisão em série teórica e em série prática no trabalho geral da reorganização, os povos foram involuntariamente obrigados a constatar a necessidade desta lei, ditada pela imperiosa natureza das coisas, pois eles próprios lhe obedeceram nos empreendimentos de modificação do sistema antigo. Tal é o encadeamento rigoroso das consequências, derivado do erro fundamental que consiste em ter considerado como puramente prática a obra essencialmente teórica da reorganização social. Deste ponto de vista errado os povos chegaram gradualmente a encarar como um novo e verdadeiro sistema social, produto do aperfeiçoamento da civilização, aquilo que continua a ser o antigo sistema mais ou menos destituído pela crítica de tudo que constituía o seu rigor, e reduzido agora ao estado miserável de um esqueleto descarnado. Tal é a verdadeira gênese dos erros capitais que ficaram assinalados no capítulo precedente. Como a necessidade de uma verdadeira reorganização social se faz cada vez mais sentir, o que inevitavelmente há de acontecer quando essa necessidade estiver satisfeita e for imperiosa, os espíritos dos povos vão-se agitando, cansados inutilmente de procurar novas e novas combinações sociais. Mas encerrados por um destino inflexível no círculo estreito dentro do qual está traçada a marcha viciosa em que se movem desde que ali foram situados - apesar de a civilização lhes aconselhar que de tal se libertem já para sair -, cansam-se os povos a imaginar outras alterações do antigo sistema, isto é, aplicações ainda mais completas da doutrina crítica, convencidos de que se aproximam cada vez mais do termo em que objetivam os seus esforços. Assim, de modificação em modificação, quer dizer, destruindo cada vez mais o sistema feudal e teológico, que nunca chegam a substituir, os povos marcham a passos agigantados para uma completa anarquia, que é afinal o abismo para que tende a senda perfeita da doutrina crítica. Uma conclusão como esta se impõe para provar evidentemente a necessidade urgente e inevitável de adotar para o grande trabalho de reorganização social, a diretriz autêntica e saudável, que é a marcha até agora claramente ditada pelo progresso do espírito humano. É o único método capaz de evitar as desastrosas consequências a que estão ameaçados os povos que até agora seguiram a marcha diferente ou contrária. Esta asserção é fundamental. Mas como ela determina a verdadeira direção dos grandes trabalhos políticos que devem ser empreendidos a partir de hoje, nunca será demasiada a luz que possa ser sobre eles projetada. É portanto útil rememorar sumariamente as considerações filosóficas sobre que ela está fundamentada, já que não basta considerá-la como suficientemente demonstrada pela exposição, que acaba de ser descrita e narrada, da marcha viciosa até agora seguida pelos povos menos esclarecidos. É pouco honroso para a razão humana que nos vejamos obrigados a provar metodicamente, e no que diz respeito ao empreendimento mais difícil e mais generoso - a provar, repetimos -, a necessidade de uma divisão que está hoje universalmente reconhecida como indispensável nos casos menos complicados e menos obscuros. Admite-se como verdade elementar que a exploração de qualquer manufatura, o delineamento de uma estrada, a construção de uma ponte, a navegação de um barco a vapor devem ser dirigidas por pessoas habilitadas com preliminares conhecimentos teóricos; mas quer-se que a reorganização total da sociedade seja confiada a peritos ou práticos que estão apenas especializados nos atos de que tão somente conhecem a rotina quotidiana!... Toda a operação que seja completa, desde a mais simples à mais complicada, executada por um só indivíduo ou por muitos mais, compõe-se inevitavelmente de duas partes, ou, noutros termos, dá lugar a duas espécies de considerações: teórica uma, prática a outra; uma de concepção, outra de execução. Necessariamente se entenderá que a primeira precede a segunda, porque aquela dirige esta. Por outras palavras, nunca há ação antes de ter havido especulação preliminar. Até na operação que possa parecer-nos puramente rotineira pode ser observada esta distinção, ressalvando a diferença nos casos em que a teoria possa ser bem ou mal concebida. O homem que pretenda não deixar dirigir o seu espírito por teorias, sobre qualquer assunto que seja, não fará mais, como é sabido, do que recusar os progressos teóricos realizados pelos seus contemporâneos, e firmar-se conservador de doutrinas desatualizadas ou ultrapassadas, algumas já revogadas havia muitos anos. Exemplo frisante é o daqueles que, declarando estultamente que não acreditam na medicina moderna, chegados à hora crítica entregam-se ordinariamente, por vezes com credulidade estúpida, a uma das grosseiras formas de charlatanismo atávico. Na primeira infância do espírito humano, os trabalhos teóricos e os trabalhos práticos eram executados pelo mesmo indivíduo em todas as suas operações; o que não impede de dizer que, já nesse tempo, a distinção fosse tão real, se bem que menos perceptível. As duas ordens de trabalhos cedo começam a separar-se, porque exigem capacidades e culturas diferentes, e até, de certo modo, opostas. À medida que a inteligência coletiva e a individual da espécie humana se desenvolvem, acentua-se e generaliza-se cada vez mais esta divisão, da qual resultam novos progressos sociais. Poderemos verdadeiramente medir o grau de civilização de um povo, sob o aspecto filosófico, pelo ponto extremo a que levou a divisão entre teoria e prática, e também pela forma como realizou a harmonia entre uma e outra. Porque o grande motor da civilização oferece-nos duas fases: a separação dos trabalhos e a cooperação dos esforços. A divisão da teoria e da prática realizou o estabelecimento definitivo do cristianismo, pois foi concebida de maneira regular e completa tanto para os atos gerais da sociedade como para todas as operações particulares. A distinção foi verificada e consolidada pela criação de um poder espiritual, distinto e independente do poder temporal, estabelecida na relação natural de uma autoridade teórica com uma autoridade prática, modificada como ia sendo segundo as características especiais do sistema antigo. Esta grande e bela concepção foi a causa principal do vigor e da consistência admiráveis que distinguiram o sistema feudal e teológico nos seus tempos de esplendor. A queda inevitável deste sistema fez momentaneamente perder de vista esta importante divisão. A filosofia superficial e crítica do século passado desconheceu esse valor. Mas é evidente que tal distinção deve ser preciosamente conservada, com todas as outras conquistas que o espírito humano alcançou sob a influência do antigo sistema, e que não hão de perecer solidariamente com ele. Deve pois figurar na primeira fila do sistema que urge estabelecer desde já, a distinção e a separação entre os poderes espiritual e temporal, respeitando a natureza de um e de outro. É óbvio que a sociedade não pode ser reorganizada, de modo completo, se não se tiver em vista no século dezenove o que a história lhe mostra ter sido realizado no século décimo primeiro. Se é intelectualmente forçoso reconhecer a necessidade da divisão entre trabalhos teóricos e trabalhos práticos nas operações de rotina diária, com muito maior razão será indispensável manter análoga divisão na vasta reorganização total da sociedade, já que ela ampara a fraqueza do espírito humano. Tal é a primeira condição a quem se proponha tratar desta grande questão, porque só assim será calculado o modo proporcional à sua importância intelectiva. O que ficou indicado pela observação filosófica será confirmado pela experiência direta. Nenhuma inovação importante foi jamais introduzida na ordem social, sem que os trabalhos da respectiva concepção hajam precedido os do objeto mediato ou imediato para que tenda a ação, devendo ser também dito que as teorias e as doutrinas foram utilizadas pela ação como ponto de apoio ou alavanca motora. A história apresenta a tal respeito duas experiências decisivas. A primeira refere-se à formação do sistema teológico e feudal, acontecimento que deve ser hoje para nós uma fonte inesgotável de instrução. O conjunto de instituições pelo qual este sistema se constituiu completamente no século undécimo, tinha sido evidentemente preparado pelos trabalhos teóricos feitos nos séculos precedentes sobre o espírito deste sistema, e que datam da elaboração do cristianismo pela escola de Alexandria. O estabelecimento do poder pontifical, como autoridade europeia suprema, foi a sequência necessária deste desenvolvimento anterior da doutrina cristã. A instituição geral da feudalidade, fundada na proteção do fraco pelo forte, e na reciprocidade de obediência, era igualmente a aplicação desta doutrina ao regulamento das relações sociais no estado de civilização atingido nesse tempo. Quem não vê que uma e outra fundação nunca poderiam ter existido sem a expansão preliminar da doutrina cristã? A segunda experiência, ainda mais evidente, porque diríamos até palpável, porque continua a existir perante os nossos olhos, verifica-se na própria marcha das modificações trazidas pelos povos ao antigo sistema, desde o começo da crise atual. É claro que elas surgiram inteiramente do desenvolvimento e da composição sistemáticos que a filosofia do século dezoito facultou aos princípios críticos que justificavam as modificações. Estes trabalhos, se bem que do ponto de vista filosófico fossem um gênero de crítica subalterna, brilhavam tão bem pelo caráter teórico, eram tão distintos dos trabalhos práticos subsequentes, que nem um só dos escritores que para eles concorreram chegou sequer a suspeitar, ainda que de modo pouco nítido e pouco extenso, que haveria de produzir na geração seguinte as modificações deduzidas dos seus escritos. Esta reflexão deve ter impressionado quem tiver comparado o teor dos livros com as modificações sociais que lhes sucederam; e logo que, nos escritos e nos discursos dos homens mais ilustres entre quantos conduziram os trabalhos das nossas pretensas constituições, se tente suprimir as ideias recebidas dos filósofos do século décimo oitavo, ver-se-á o que poderá ficar. Ao examinar, sob o ponto de vista histórico a questão que nos ocupa, poderemos verificar que ela pode ser facilmente decidida pelas considerações seguintes que nos limitaremos a indicar aqui, deixando para outro lugar o respectivo desenvolvimento. A sociedade está hoje desorganizada, tanto no aspecto espiritual como no aspecto temporal. A anarquia espiritual precedeu e gerou a anarquia temporal. Ainda hoje se vê que o mal-estar social depende muito mais da primeira causa do que da segunda. Por outro lado, o estudo atento da marcha da civilização prova que a reorganização espiritual da sociedade já está mais preparada do que a sua reorganização temporal. Assim, a primeira série de esforços diretos para pôr fim à época revolucionária deve ter por objeto reorganizar o poder espiritual; infelizmente, porém, até agora nunca a atenção se fixou senão sobre a refundição do poder temporal. Convém evidentemente concluir, de todas as considerações precedentes, pela absoluta necessidade de separar os trabalhos teóricos da organização social, prescrita na época atual, dos trabalhos práticos; quer dizer, convém conceber e executar os trabalhos que se referem ao espírito da nova ordem social, ao sistema de ideias gerais que lhe deve corresponder, separadamente daquelas que tem por objeto o sistema de relações sociais e o modo administrativo que dele deve resultar. Nada de essencial e de sólido pode ser feito, quanto à parte prática, enquanto a parte teórica não ficar concluída ou, pelo menos, muito adiantada. Proceder de outra forma seria edificar sem bases, tratar do lineamento antes do fundamento; seria, numa palavra, perseverar no erro metodológico cometido pelos povos, aquele que acabamos de apresentar: a alta fonte de todas as aberrações, o obstáculo que importa destruir antes de mais para que possa, enfim, ser realizado o voto popular de ver a sociedade reorganizada de maneira proporcionada ao estado presente das luzes. Tendo estabelecido a natureza dos trabalhos preliminares que devem ser executados para que a organização do novo sistema social seja fundada sobre bases sólidas, é fácil determinar agora quais sejam as forças sociais destinadas a cumprir tão importante missão. É o que nos falta precisar, antes de expor o plano dos trabalhos a realizar. Se ficou efetivamente demonstrado que a maneira pela qual os povos até agora procederam na formação da reorganização social foi radicalmente viciosa, parece-nos sem dúvida supérfluo o trabalho de insistir na nossa tese, para chegar à conclusão de que os homens aos quais tão grande empreendimento foi confiado eram afinal absolutamente incompetentes para tão difícil façanha. É claro, com efeito, que uma das nossas proposições é a consequência inevitável da outra. Os povos desconheciam inteiramente a essência do trabalho que se propunham realizar; eram ignorantes ou estavam iludidos; não puderam deixar de se enganar, ou de ser enganados, na eleição dos homens chamados a executar tão grande empreendimento. Exatamente porque tais homens pareciam ser os mais indicados para os trabalhos de caráter executivo, tais como eram então concebidos pelos povos, os mesmos homens não podiam ser indicados e capazes de dirigir o trabalho filosófico segundo o qual tudo deve ser concebido. A incapacidade desses mandatários, ou, melhor dito, a sua incompetência, manifestou-se tal como deveria parecer, já que ninguém é perito em duas funções absolutamente opostas. Foi principalmente a classe dos legistas aquela de que surgiram os homens chamados a dirigir os trabalhos das pretensas constituições que foram estabelecidas pelos povos nestes últimos trinta anos. A natureza das coisas investiu-os necessariamente nesta função, que cumpriram de modo fiel à doutrina que havia sido previamente concebida. Isto é bem claro. Como até então o problema político se apresentava aos povos na urgência de modificar o sistema antigo, e como os princípios críticos, destinados a dirigir as modificações necessárias, já estavam plenamente definidos e estabelecidos, restava apenas à eloquência exibir-se como função ou faculdade intermediária na realização do trabalho próprio das assembleias, e todos sabemos que eram os legistas a classe social que habitualmente cultivava e desenvolvia a aptidão oratória. Sabemos que esta faculdade é intelectualmente subalterna, porque o seu serviço consiste no esforço para fazer triunfar uma opinião recebida, dispensado como foi de elaborar, criticar ou examinar a tese em questão; por sua liberdade e por sua facilidade, a eloquência é eminentemente adequada às obras de propaganda. Não foram os legistas quem estabeleceu os princípios da doutrina crítica; foram os metafísicos: sabido é, aliás, que estes formam, no plano espiritual, a classe correspondente à dos legistas no plano temporal. Mas foram os legistas que divulgaram os princípios críticos. Foram os legistas quem principalmente esteve na cena política, durante as vicissitudes de luta imediata contra o sistema feudal e teológico. A eles deveria necessariamente competir a direção das modificações a introduzir no corpo do velho sistema social, mediante os princípios da doutrina crítica, que só eles estavam perfeitamente habituados a manejar. É evidente que o mesmo não poderia acontecer quanto aos trabalhos verdadeiramente orgânicos, quer dizer, àqueles cuja necessidade acabamos de demonstrar. Nesses trabalhos já não é a eloquência, ou seja, a faculdade de persuasão, que verte utilidade e valor pela sua ação social; é o raciocínio, quer dizer, a faculdade de exame e de coordenação. Esta distinção de faculdades ou de aptidões explica o fato verificável de os legistas serem geralmente os homens mais capazes de persuadir, mas também os menos capazes de inteligir. Sendo da sua profissão o procurar meios de persuasão a favor de uma opinião qualquer, quanto mais adquirirem, por exercício contínuo, perícia e habilidade neste gênero de trabalhos, tanto mais incapazes e impróprios se manifestam para coordenar os elementos de uma teoria e para discernir os seus verdadeiros princípios. Não se trata agora de ofender o amor-próprio de quem quer que seja, porque tal seria uma questão deslocada e vã; estamo-nos referindo à relação necessária e exclusiva que existe entre cada espécie de capacidade, ou de aptidão, e cada natureza de trabalho. Os legistas dirigiram a formação do plano de reorganização social quando ela estava ainda a ser concebida segundo um espírito absolutamente vicioso. Fizeram o que deviam ter feito. Chamados a criticar e a modificar, modificaram e criticaram. Seria injusto acusá-los dos defeitos de uma direção que não lhes competia retificar. A sua influência foi útil, e até indispensável, na exata medida em que esta direção também o foi. Deve-se, contudo, reconhecer que tal influência deveria ter cessado logo que uma direção oposta começou a prevalecer. É sem dúvida muito absurdo pretender operar a reorganização da sociedade, observando tão somente os aspectos e as consequências da prática, sem cuidar de previamente proceder aos trabalhos teóricos necessários para a realização de tão grande empreendimento. Mas absurdo ainda maior seria a singular esperança de ver que uma assembleia de oradores, alheios a qualquer ideia teórica positiva, e escolhidos, sem nenhuma condição determinada de capacidade, ou votados por homens que, na maioria ou na multidão, são ainda mais incompetentes do que os eleitos - tal assembleia, repetimos -, chegasse a efetuar uma verdadeira reorganização social. (Das considerações precedentes estou longe de concluir que a classe dos legistas já não deva exercer atividade política. Quis somente estabelecer que deve mudar de caráter a sua ação social. Segundo os raciocínios que acabei de expor, o estado presente da sociedade exige que a suprema direção dos espíritos cesse de pertencer aos legistas; mas nem por isso hão de deixar de ser chamados, pela sua habilitação, a secundar, em assuntos muito importantes, a nova direção geral que será impressa à sociedade por outras classes. Pelos meios de persuasão e do hábito, de que estão dotados, porque nenhuma outra classe está em condições de se colocar acima dos assuntos políticos, eles, devem concorrer poderosamente para a adoção da doutrina orgânica; e esta é a nossa primeira razão. Em segundo lugar, os legistas, e sobretudo aqueles que praticaram estudo profundo do direito positivo, possuem exclusivamente a capacidade regulamentar, que é uma das grandes capacidades necessárias para a formação do novo sistema social, e que será posta à prova logo que a parte puramente espiritual do trabalho geral da reorganização estiver concluída, ou pelo menos suficientemente adiantada). A natureza dos trabalhos a executar é ela própria quem indica, do modo mais claro possível, a classe dos homens que os devem empreender. Como estes trabalhos são de caráter teórico, é claro que só os homens profissional e metodicamente habilitados a praticar combinações teóricas, ou seja, os sábios que se ocupam do estudo das ciências de observação, possuem o gênero de capacidade e de cultura intelectual que para tal lhes conferem as condições necessárias. Seria evidentemente monstruoso que, no momento em que a sociedade exige, e com urgência, um trabalho geral da primeira ordem de importância e de dificuldade, tal empreendimento não fosse dirigido pelas maiores forças intelectuais existentes - por aquelas cujo modo de proceder está universalmente reconhecido como o melhor. De certo que é possível encontrar, em outras camadas da sociedade, homens dotados de uma capacidade teórica igual, e até superior, à de grande número de sábios, porque a classificação social dos indivíduos está longe de ser em tudo conforme com a classificação natural ou fisiológica. Mas, num trabalho tão essencial, há que considerar apenas as classes, e não os indivíduos. Aliás, até mesmo quanto a estes, só a educação, quer dizer, o sistema de hábitos intelectuais que resulta do estudo das ciências de observação, é capaz de desenvolver de modo conveniente sua natural capacidade teórica. Numa palavra, todas as vezes que, em qualquer direção particular, a sociedade pede trabalhos teóricos, reconhece-se que é à correspondente classe de sábios que convém endereçar o pedido: será portanto o corpo científico, na sua totalidade, quem deverá ser chamado a dirigir os trabalhos teóricos gerais que se prove serem indispensáveis à reforma da sociedade. (Entendemos por sábios, neste contexto, em conformidade com o uso ordinário do termo, aqueles homens que, sem consagrar a vida ao cultivo especial de qualquer ciência de observação, se apresentam dotados de capacidade científica, e fizeram do conjunto dos conhecimentos positivos um estudo assaz profundo que lhes molde o espírito, rara os familiarizar com as principais leis dos fenômenos naturais. É sem dúvida, a esta classe de sábios, ainda hoje pouco numerosa, que está reservada a atividade essencial na formação de nova doutrina social. Os outros sábios estão muito absorvidos pelas suas ocupações particulares, e até mesmo demasiado afetados ainda por certos hábitos intelectuais viciosos, que resultam hoje do fenômeno da especialização, para que possam vir a ser verdadeiramente ativos na construção da ciência política. Nem por isso deixarão de preencher, no plano desta grande fundação, um lugar muito importante, se bem que passivo, que será o de juízes naturais do andamento dos trabalhos. Os resultados obtidos pelos homens que hão de seguir a nova direção filosófica, não lograrão valor nem influência enquanto não forem aprovados pelos sábios especialistas, ou equiparados aos seus trabalhos habituais. Julguei por bem dar esta explicação para responder a uma objeção que há de naturalmente apresentar-se ao espírito da maioria dos leitores. É, aliás, evidente que esta distinção entre a camada da classe científica que deve ser ativa e a camada que deve ser simplesmente passiva na elaboração da doutrina orgânica, é inteiramente secundária, pois em nada afeta a asserção fundamental estabelecida no texto). Aliás, a natureza das coisas, convenientemente interrogada, antecede a este respeito qualquer divagação; porque ela interdita absolutamente a liberdade de escolha, mostrando, sob vários pontos de vista distintos, que a classe dos sábios é a única verdadeiramente própria e adequada para executar o trabalho teórico da reorganização social. No sistema que há de ser constituído, o poder espiritual ficará na mão dos sábios, e o poder temporal competirá aos chefes dos trabalhos industriais. Estes dois poderes devem naturalmente proceder, na formação do novo sistema, como hão de proceder, quanto for estabelecido, na sua aplicação diária, contando também com a importância superior do trabalho que é indispensável executar nos dias de hoje. Há, neste trabalho, uma parte espiritual que deve ser tratada em primeiro lugar, e uma parte temporal que o será consecutivamente. Assim, é aos sábios que compete empreender a primeira série de trabalhos, e aos industriais mais importantes, organizar, nas bases que ficarem assim delineadas, o sistema administrativo. Tal é a marcha simples, indicada pela natureza das coisas, e ela nos ensina que as próprias classes que são elementos dos poderes do novo sistema, e que devem ser um dia colocadas na supremacia, ou na soberania; só elas podem construí-lo. Só essas classes são capazes de bem apreender o espírito da reorganização social; só elas são encaminhadas no sentido da verdade, graças ao impulso combinado dos seus hábitos e dos seus interesses. Outra consideração tornará ainda mais palpável a necessidade de confiar aos sábios positivos o trabalho teórico da reorganização social. Ficou observado, no capítulo precedente, que a doutrina crítica produziu na maior parte das cabeças, e tende a fortificar cada vez mais, o hábito de cada qual se arvorar em juiz das ideias políticas gerais. Este estado anárquico das inteligências, erguido à soberania de princípio fundamental, é evidentemente um obstáculo para a unidade indispensável à reorganização da sociedade. Seria em vão que capacidades realmente competentes tentassem formar a verdadeira doutrina orgânica que se destina a pôr fim à crise atual, se previamente não lhes fosse de direito reconhecida a situação que possuem de fato, isto é, não lhes fosse reconhecido o poder concomitante com a autoridade. Sem esta condição o trabalho dos sábios, submetido em cada momento à verificação arbitrária de políticos vaidosos, nunca poderia ser adotado objetiva e uniformemente. Bastará um relance sobre a sociedade complexa que é a do nosso tempo, para em contraste observar que só nas mãos e na mente dos sábios poderá localizar-se a benéfica inspiração espiritual. Só eles exercem, pelo menos em teoria, uma autoridade que ainda não foi contestada. Ao fato de só eles serem competentes para formar a nova doutrina orgânica, acresce o de só eles se encontrarem investidos com a força moral necessária e capaz de lhes abrir as portas da organização política. O prejuízo crítico da soberania moral, concebido com um direito inato e inalienável de todo e qualquer indivíduo, oferece obstáculos intransponíveis a quem não os limitar ou reduzir em nome da ciência. Está nas mãos e nas palavras dos sábios a única alavanca que seja capaz de derrubar o prejuízo crítico. Tal é o hábito contraído pouco a pouco pela sociedade, depois de terem sido fundadas as ciências positivas, o qual consiste em acatar as decisões dos sábios no que diz respeito a todas as ideias teóricas particulares, hábito de que os sábios poderão beneficiar quando se preocuparem com as ideias teóricas gerais, isto é, quando se derem à missão de coordená-las em sistema. Em resumo: os sábios possuem hoje, e só eles, os dois elementos fundamentais do governo moral, a capacidade e a autoridade teórica. Um último caráter essencial, não menos próprio do que os precedentes para definir a força científica, merece ser ainda por nós indicado. A crise atual é evidentemente comum a todos os povos da Europa ocidental, se bem que nem todos a sofram com a mesma intensidade e o mesmo grau. Certo é, porém, que cada povo a discute, diagnostica e trata, como se ela fosse simplesmente nacional. Mas é evidente que para uma crise europeia só convém um tratamento europeu. Este isolamento dos povos é uma consequência necessária da queda do sistema teológico e feudal, devida à qual foram dissolvidos os laços espirituais que o velho sistema havia estabelecido entre as nações da Europa. Em vão se tentou substituí-lo por um estado de recíproca oposição hostil, disfarçado com o nome de equilíbrio europeu. A doutrina crítica é incapaz de restabelecer a harmonia que destruiu, já que a lesou no seu antigo princípio fundamental; ela procede, aliás, em direção contrária, pois dele se afasta cada vez mais. Em primeiro lugar, a doutrina crítica, por sua própria natureza, tende para o isolamento; e, em segundo lugar, nem os povos se encontram capazes de se entenderem completamente quanto aos princípios dessa mesma doutrina, porque cada um deles pretende modificar, mas em graus diferentes, o sistema antigamente consagrado. Só a verdadeira doutrina orgânica pode produzir a união, tão imperiosamente reclamada pelo estado da civilização europeia. Tal doutrina será forçosamente determinada quando for possível propor, a todos os povos da Europa ocidental, o sistema da organização social que melhor lhes convém, e para o qual cada povo é chamado a obter os benefícios completos, na medida em que o tempo for evoluindo, ou melhor, segundo o progresso que realizarem na marcha para o espírito positivo e respectivas luzes. Convém observar, aliás, que esta união será muito mais perfeita do que aquela que havia sido produzida pelo antigo sistema, a qual só existia no domínio do poder espiritual; pela razão de que deve ter igualmente lugar no domínio temporal, pois só assim os povos europeus serão chamados a formar uma verdadeira sociedade das nações, completa e permanente. Se fosse este o lugar e o momento de examinar minuciosamente este assunto, fácil nos seria mostrar que cada um dos povos da Europa ocidental está situado, pelo matiz particular do seu estado de civilização, em condições favoráveis para uma ou outra partes em que se divide o sistema geral; provar-se-ia assim a utilidade imediata e recíproca no plano da cooperação. Concluir-se-ia a máxima de que os novos europeus devem igualmente trabalhar em comum para o estabelecimento do novo sistema. Ao considerarmos, sob este ponto de vista, a nova doutrina orgânica, tornar-se-á claro que a força destinada a formá-la e a estabelecê-la, devendo satisfazer a condição de determinar a combinação dos diferentes povos civilizados, deve ser uma força europeia. Ora tal é mais uma propriedade especial, e não menos exclusiva do que aquelas que foram precedentemente enumeradas, da força científica. É notável que só os sábios formam de verdade uma coligação, compacta, coesa e ativa, cujos membros se entendem e se correspondem, fácil e continuamente, de um extremo ao outro da Europa. Tal se deve a que só eles mantêm hoje ideias comuns, linguagem uniforme, obediência a um fim de atividade geral e permanente. Nenhuma outra classe possui tão importante qualificação, porque nenhuma outra preenche a integridade de todas as condições exigidas. Até mesmo os industriais, impelidos à união pela natureza imanente dos seus trabalhos e dos seus hábitos, estão ainda na fase de se deixarem dominar pelas inspirações hostis de um patriotismo competidor ou selvagem, pelo que da observação se infere a dificuldade de estabelecer entre eles uma verdadeira combinação europeia. Só a ação dos sábios nos reserva a esperança de que venha a ser produzida uma confederação europeia. Será sem dúvida supérfluo demonstrar que a comunicação atual dos sábios há de chegar a ter uma intensidade maior, quando forem eles chamados a dirigir as forças gerais que hão de formar a nova doutrina social. Esta asserção é evidente, sabido que a força de um laço social é necessariamente proporcional à importância da finalidade efetiva. Para bem apreciar, em toda a sua extensão, o valor desta força europeia que é particular aos sábios, convém comparar o comportamento dos reis, na relação intelectual que nos ocupa, ao comportamento dos povos. Já ficou observado que os reis, ainda que atuem segundo um plano que é absurdo no seu princípio, na execução procedem de um modo muito mais metódico do que o dos povos, porque a linha que eles seguem estava já traçada no passado, ou descrita de modo minucioso. Referindo-se ao ponto que estamos a estudar, diremos que os reis procuram combinar o seus esforços em toda a Europa, enquanto os povos se isolam. Já por este fato se vê que os reis gozam de vantagem relativa sobre os povos, contra a qual estes não podem lutar por nenhum outro meio, o que a torna de extrema importância. Os chefes da opinião dos povos não têm outro recurso além de protestar contra tal superioridade de posição, que nem por isso deixará de existir. Eles proclamam, em tese geral, que os diferentes Estados não têm direito algum de intervir nas reformas sociais dos outros. Ora este princípio não é mais do que a aplicação da doutrina crítica às relações exteriores, e é absolutamente falso como todos os outros dogmas que entram na mesma composição; como todos, não passa da generalização viciosa de um fato transitório, o qual se confina na dissolução dos laços que existiam, sob a influência do antigo sistema, entre as nações europeias. É claro que os povos da Europa ocidental, pela conformidade e pelo encadeamento da sua civilização, encarada esta, quer no seu desenvolvimento sucessivo, quer no seu estado atual, formam uma grande nação, cujos membros gozam reciprocamente de direitos, menos extensos, sem dúvida, mas de igual natureza, que os das diferentes porções de um Estado único. Vê-se, aliás, que esta ideia crítica, ainda que fosse verdadeira, não alcança o alvo, desvia-se até dele, porque tende a impedir a união dos povos. Como uma força não pode ser contida por outra, os povos hão de estar evidentemente, no que diz respeito à política internacional, em estado de inferioridade perante os reis, enquanto a força dos sábios, única força europeia, não encetar o grande trabalho da reorganização social. Só ela poderá ser, para os povos, o equivalente real da santa aliança, quanto à superioridade necessária de uma coligação espiritual o seja sobre uma coligação puramente temporal. Assim, e em última análise, a necessidade de confiar aos sábios os trabalhos teóricos preliminares reconhecidos por indispensáveis para reorganizar a sociedade, aparece solidamente fundada sobre quatro considerações distintas, quando uma só bastaria para estabelecê-la: 1º os sábios, pelo seu gênero de capacidade e de cultura intelectual, são as únicas pessoas competentes para executar esses trabalhos; 2º esta função é-lhes destinada pela natureza das coisas, como sendo o poder espiritual do sistema a organizar; 3º eles possuem exclusivamente a anterioridade hoje moralmente necessária para decretar a adoção da nova doutrina orgânica, logo que ela estiver formada; 4º enfim, de todas as forças sociais existentes, é a dos sábios a única merecedora de qualidade europeia. Tal conjunto de provas deve, sem dúvida, colocar a grande missão teórica dos sábios ao abrigo de todas as dúvidas e contestações. Resulta, portanto, de quanto dissemos, que os erros capitais, cometidos pelos povos, nos seus modos de conceber a reorganização social, têm, por causa primeira, a marcha viciosa pela qual procederam nesta reorganização; que o vício desta marcha consiste em que a reorganização social foi considerada como uma operação puramente prática; quando ela é essencialmente teórica; que a natureza das coisas e as experiências históricas mais convincentes provam a necessidade absoluta de dividir o trabalho total da reorganização em duas séries, uma teórica, outra prática, a primeira das quais deve ser executada para se destinar a servir de base à segunda; que a execução preliminar dos trabalhos teóricos exige a ativação de uma nova força social, distinta das que até agora têm aparecido em cena, isto é, absolutamente distinta das incompetentes; enfim, que, por várias razões muito decisivas, esta nova força é aquela que reside nos sábios mais dedicados ao estudo das ciências de observação. O conjunto destas ideias pode ser encarado como tendo por finalidade impelir gradualmente os espíritos meditativos a ascenderem ao ponto de vista supremo, aquele a partir do qual é possível ver de relance o imenso panorama no qual se lobrigam tanto os caminhos errados pelos quais os povos andaram até agora perdidos todas as vezes que pretenderam reorganizar a sociedade, e no qual se desenham os traços do verdadeiro método a seguir e a adotar para realização do fim em vista. Afinal de contas, tudo se reduz a estabelecer o equilíbrio político entre uma teoria positiva distinta da prática, e tendo por objetivo a concepção do novo sistema social correspondente ao estado presente das luzes, trabalho que depende das forças combinadas dos sábios europeus. Estarão eles já habilitados para essa missão superior? Ora, refletindo bem, a resposta a esta pergunta resume-se numa ideia muito simples: a partir de hoje, os sábios devem elevar a política à categoria de ciências de observação. Tal é o ponto de vista cimeiro e definitivo a que tende o nosso programa. Só deste ponto de vista será fácil condensar, após uma série de considerações aliás muito simples, a substância de tudo quanto até agora foi dito desde o começo deste opúsculo. Concluído aquele trabalho, falta-nos realizar esta importante generalização, pois só ela poderá facultar-nos os meios de prever e de prosseguir, porque só ela auxiliará o nosso pensamento a ser cada vez ais veloz. Estabelecida e conhecida a natureza do espírito humano, descobrimos que cada ramo dos nossos conhecimentos organizados em ciências, passa necessária e sucessivamente por três estados diferentes de teoria: o estado teológico, ou fictício; o estado metafísico, ou abstrato; enfim, o estado científico, ou positivo. No primeiro, entram as ideias sobrenaturais para servir de laços às poucas observações isoladas de que a ciência primitiva se compõe. Noutros termos: os fatos observados são explicados, mas através de fatos já inventados, ou, por assim dizer, vistos a priori. Este estado é necessariamente o de qualquer ciência que ainda esteja no berço. Por muito imperfeito que seja, o seu modo de relação das ideias é o único a aparecer na primeira fase. Ele faculta-nos, consequentemente, o único intermediário pelo qual possamos raciocinar acerca dos fatos, mas submete-lhe a autoridade do espírito, o qual não pode viver sem estar relacionado com um ponto que lhe seja superior. Numa palavra, este passo é indispensável para que o progresso seja possível. O segundo estado é unicamente destinado a servir de meio de transição do primeiro para o terceiro. É de caráter bastardo, liga os fatos com ideias que já não são inteiramente sobrenaturais, mas que também não são inteiramente naturais. Numa palavra, tais ideias são abstrações personificadas, nas quais o espírito poderá ver a vontade poética ou o nome místico de uma causa sobrenatural, ou o enunciado abstrato de uma simples série de fenômenos, conforme ele estiver já mais perto do estado teológico ou do estado científico. A abundância e a acumulação dos feitos, ao longo do espaço e do tempo, conduz ao postulado metafísico segundo o qual o aumento numérico permite admitir uma frequência e uma regularidade que se aproxima das analogias mais extensas. O terceiro estado é o modo definitivo a que pode chegar uma ciência qualquer; os dois estados antecedentes tiveram por destino, não o formular a verdade, mas o preparar gradualmente o terceiro. É então que os fatos aparecem ligados por ideias ou leis gerais, mas já de ordem inteiramente positiva, quer dizer, sugeridos ou confirmados por fatos da mesma ordem, e que por vezes nem são tão gerais que mereçam ser considerados como princípios. Há a tendência intelectual para reduzi-los ao menor número possível, mas não ao ponto de pretender ligá-los a qualquer hipótese que não possa chegar a ser verificada por observação; em todo o caso, há que observar os fatos como meios de expressão geral para cada ordem de fenômenos. Os homens que estudaram a história das ciências podem facilmente verificar a exatidão deste esquema geral, em relação às quatro ciências fundamentais que estão hoje positivas: a astronomia, a física, a química e a fisiologia; também o podem verificar quanto às ciências que com estas se relacionam. Até mesmo aqueles que, por falta de estudos históricos, não hajam considerado as ciências senão no estado presente, podem fazer esta verificação para a fisiologia, a qual, tendo chegado agora a ser tão positiva como as três antecedentes, ainda é cultivada nos estados pretéritos por espíritos diferentes e desatualizados fora do que caracteriza o método positivo em ciência. Este fato é particularmente observável porque se manifesta na secção desta ciência que se dedica aos fenômenos especialmente qualificados de morais, ou imorais. Para alguns sábios, tais fenômenos resultam de uma ação sobrenatural contínua; para muitos, são tidos por efeitos incompreensíveis da atividade de um ente abstrato: para outros, enfim, são dados por condições orgânicas susceptíveis de serem demonstradas, para além das quais não vale a pena inquirir. Ao considerar a política uma ciência, e honrando-a com a aplicação das observações precedentes, afirmamos felizmente que ela já passou pelos dois primeiros estados, e que está hoje apta a dar o passo para alcançar o terceiro: o estado positivo. A doutrina dos reis representa o estado teológico da política. É efetivamente sobre ideias teológicas que está fundada, como se pode ver da primeira à última análise. Ela apresenta as relações sociais como se estivessem dependentes da ideia sobrenatural do direito divino. Ela explica as transformações políticas por que a humanidade tem sucessivamente passado mediante uma direção sobrenatural imanente ou imediata, mas exercida de maneira contínua desde o nascimento do primeiro homem até ao último vivente. Foi esta a única política concebida pelos doutrinadores, sem competição notável, até ao momento em que o antigo sistema começou a declinar. A doutrina dos povos exprime o estado metafísico da política. Está fundada em totalidade na suposição abstrata e metafísica de um contrato social primitivo, anterior ao desenvolvimento das faculdades humanas pela civilização. Tal doutrina tem por meio habitual de raciocinar a invocação dos direitos, considerados como naturais e comuns a todos os homens de igual grau, direitos que hão de ser garantidos por contrato ou convenção. Tal é uma doutrina que foi primitivamente crítica, extraída da teologia, disposta para a luta contra o antigo sistema, mas que depois ficou a ser propagada como doutrina orgânica. Foi Rousseau principalmente quem a resumiu de um modo sistemático, num livro que serviu e ainda hoje serve de base para considerações errôneas sobre a organização social. Enfim, a doutrina científica da política considera o estado social, tal como a espécie humana foi sempre examinada pelos observadores, como a consequência necessária da sua organização. A política pensa que o fim deste estado social como determinado pela posição que o homem ocupa no sistema natural, tal como ele está fixado pelos fatos, e sem ser encarado como susceptível de explicação. A doutrina vê, com efeito, que a política resulta desta relação fundamental que está na tendência constante do homem para atuar sobre a natureza, para modificá-la de harmonia com o maior proveito humano. Ela considera enfim, a ordem social como tendo por objeto final desenvolver coletivamente esta tendência natural, regularizá-la e concertá-la para que a ação útil venha a ser a maior possível. Posto isso, ela tenta relacionar com as leis fundamentais da organização humana, por observações diretas sobre o desenvolvimento coletivo da espécie, a marcha que ela seguiu e os estados intermediários pelos quais ela foi obrigada a passar antes de alcançar este estado definitivo. Ao dirigir-se segundo esta série de observações, ela encara os aperfeiçoamentos reservados a cada época como se fossem ditados, ao •abrigo de qualquer hipótese, pelo ponto de desenvolvimento a que a espécie humana chegou. Ela concebe ainda, para cada grau de civilização, as combinações políticas que hão de facilitar os passos que a sociedade tende a dar logo que hajam sido determinados com precisão. Tal é o espírito da doutrina positiva, aquele que convém hoje estabelecer, e cuja aplicação deve ser feita ao estado presente da espécie humana civilizada, pelo que devem os estados anteriores ser considerados como necessários de trânsito para a fundação definitiva das leis fundamentais da ciência. É fácil explicar porque é que a política não chegou mais cedo a ser uma ciência positiva, e explicar concomitantemente porque é que só agora foi chamada a tal responsabilidade. Eram indispensáveis duas condições fundamentais, distintas se bem que inseparáveis, para chegar ao novo estado de fato. Em primeiro lugar, era indispensável que todas as ciências particulares chegassem por sua vez a serem ciências positivas; porque o sistema não poderia ser totalmente positivo enquanto os respectivos elementos não alcançassem a positividade. Esta condição está hoje perfeitamente realizada. As ciências tornaram-se positivas, uma após outra, e na ordem natural para esta revolução. Tal ordem é a do grau de menor ou maior complicação dos respectivos fenômenos, ou, noutros termos, da relação mais ou menos íntima do homem com a natureza. Nesta ordem, foram os fenômenos astronômicos tidos por mais simples, e sucessivamente os físicos, os químicos e os fisiológicos, reduzidos a leis e teorias positivas; os fisiológicos já só numa época recente. Reforma análoga só em último lugar poderia ser efetuada quanto aos fenômenos políticos, que são os mais complicados, visto que dependem de todos os outros. Mas é, evidentemente, necessário que a reforma se efetue agora, como era impossível que ela se realizasse antes. Em segundo lugar, era indispensável que o sistema social preparatório, aquele em que a ação sobre a natureza não era mais do que o fim indireto da sociedade, chegasse à sua época última e decisiva. Por um lado, com efeito, a teoria estava longe de poder ser estabelecida, porque antecederia de muito a respectiva prática. Destinada a dirigir, não poderia antecedê-la a ponto de perdê-la de vista. Por outro lado, não lhe foi dado ter mais cedo uma suficiente base experimental. Era indispensável o estabelecimento de um sistema de ordem social, admitido por uma população muito numerosa, e composta por várias e grandes nações, e uma divisão possível deste sistema, para que uma teoria pudesse fundar-se sobre esta vasta experiência. Esta segunda condição está hoje tão bem realizada como a primeira. O sistema teológico, destinado a preparar o espírito humano para o sistema científico, chegou ao termo da sua carreira. Isto é incontestável, visto que o sistema metafísico, cujo único objetivo era o de derrubar o sistema teológico, obteve geralmente grande preponderância entre os povos. A política científica deve portanto instaurar-se naturalmente, visto que, dada a impossibilidade absoluta de viver sem uma teoria, teríamos então de admitir a reconstituição e o regresso da política teológica, já que a política metafísica não é, a bem dizer, uma verdadeira teoria, mas uma doutrina crítica, válida apenas para um período intermediário ou de transição. Em resumo: nunca houve revolução moral ao mesmo tempo mais inevitável, mais madura e mais urgente do que aquela que deve erguer a política ao cimo das ciências de observação, ou seja, no concerto das mentes e das mãos dos sábios europeus. Só esta revolução será capaz de fazer intervir, na grande crise atual, uma força verdadeiramente preponderante, aquela que será capaz de regular e preservar das explosões terríveis e anárquicas que ameaçam a sociedade, colocando-a na verdadeira rota daquele sistema social aperfeiçoado que está sendo imperiosamente exigido pelo século das luzes. Para ativar, o mais prontamente possível, as forças científicas destinadas a cumprir esta missão salutar, faltava apresentar o prospecto geral dos trabalhos teóricos a executar para reorganizar a sociedade mediante o fato de situar a política na primeira fila das ciências de observação. Eu tive a ousadia de conceber tal plano, que proponho solenemente à apreciação de todos os sábios da Europa. Profundamente convencido de que, logo que for aberta a discussão, o meu plano, adotado ou rejeitado, provocará necessariamente a formação do trabalho definitivo, não receio convocar todos os sábios europeus - em nome da sociedade, ameaçada por uma longa e terrível agonia de que só por intervenção deles poderá ser evitada - a emitirem pública e livremente as suas opiniões motivadas pelas relações que tiverem com o quadro geral dos trabalhos orgânicos que lhes vou submeter. Este prospecto é composto de três séries de trabalhos. A primeira tem por fim a formação do sistema de observações históricas sobre a marcha geral do espírito humano, destinado a servir de base positiva para a política, e de modo tal que possa despojar esta ciência do seu caráter teológico e metafísico, que lhe dificulta o último aperfeiçoamento atual. A segunda pretende fundar o sistema completo de educação positiva que convém à sociedade regenerada, e constituí-lo de modo a exercer ação sobre a natureza humana; ou, noutros termos, propõe-se aperfeiçoar esta ação na medida em que ela depende das faculdades do agente. A terceira, enfim, consiste na exposição geral da ação coletiva que os homens civilizados, segundo estado atual de todos os seus conhecimentos, possam exercer sobre a natureza exterior, para a modificarem com vantagem, dirigindo todos os esforços para tal fim, e não encarando as combinações sociais senão como meios de atingi-lo. PRIMEIRA SÉRIE DE TRABALHOS A condição fundamental a preencher, para tratar a política de maneira positiva, consiste em determinar com precisão os limites dentro dos quais serão circunscritas, pela natureza das coisas, as combinações de ordem social. Noutros termos, importa que na política, tal-qualmente nas outras ciências, o papel da observação e o da investigação fiquem perfeitamente distintos, e que o segundo esteja subordinado ao primeiro. Para apresentar à plena luz do dia esta ideia capital, é necessário comparar o espírito geral da política positiva com o da política teológica e da política metafísica. A fim de simplificar este paralelo, envolveremos estas duas políticas na mesma consideração; o que não irá alterar os resultados, visto já no capítulo precedente, que a segunda é afinal de contas uma variante da primeira, de que difere apenas por um caráter menos pronunciado. O estado teológico e o estado metafísico de qualquer ciência têm por caráter comum o predomínio da imaginação sobre a observação. A única diferença que existe entre eles, sob este ponto de vista, é que a imaginação do primeiro mobiliza entes sobrenaturais, enquanto a do segundo incide já sobre abstrações personificadas. A consequência necessária e constante de tais estados é a de persuadir o homem de que ele é o centro do sistema natural, considerado sobre todos os aspectos, e que está, por conseguinte, dotado de uma potência de ação indefinida sobre os fenômenos. Esta persuasão resulta evidentemente, e de um modo direto, da supremacia exercida pela imaginação que se combina com a tendência orgânica em virtude da qual o homem é levado a formar, em geral, ideias exageradas acerca da sua própria importância e do seu próprio poder. Tal ilusão consolida o traço mais característico, e o mais observável, da infância da razão humana. Consideradas do ponto de vista filosófico, as revoluções que conseguiram levar as diferentes ciências até ao estado positivo, em que se encontram, tiveram por efeito geral estabelecer em sentido inverso, ou inverter, a ordem primitiva das nossas ideias. O caráter fundamental destas revoluções foi o de transpor para a observação a preponderância intelectual que era então exercida pela imaginação. Logicamente, ficaram igualmente invertidas as respectivas consequências, que veremos a seguir. O homem foi deslocado do centro da natureza, onde se imaginava, para ser localizado efetivamente onde se encontra a ser e a existir. O homem também age, mas a sua ação ficou agora cingida aos seus limites reais, e reduzem-se afinal a modificar, mais ou menos, uns pelos outros, certo número de fenômenos que pode, deve e sabe observar. Uma simples remissa para o antecedente lance histórico será suficiente, para quantos beneficiarem de noções claras verificarem imediatamente esta verdade relativa às ciências que estão hoje positivas. Assim, em astronomia, o homem começou a olhar para os fenômenos celestes, quer para se considerar submetido às influências deles, ou, pelo menos, como tendo relações diretas e íntimas, com muitos pormenores das existências superlunares; foi indispensável recorrer ao poderio de fones e múltiplas demonstrações para que o homem se resignasse a ocupar apenas um lugar subalterno e imperceptível no sistema geral do universo. Do mesmo modo na química, ele começou por imaginar que poderia modificar à medida dos seus desejos a natureza íntima dos corpos, e tarde se convenceu de que deveria reduzir as suas ambições a observar os efeitos da ação recíproca das diferentes substâncias terrestres. Igualmente, na medicina, só após ter esperado durante muito tempo o poder de retificar à sua vontade os desarranjos da organização fisiológica, e até de resistir indefinidamente às causas de destruição, é que o homem reconheceu enfim que a sua ação seria nula enquanto não concorresse com a geração e a regeneração biológicas; com mais fone razão, a sua atividade seria nula e até nociva, quando oposta às leis da nova ciência positiva. A política também não escapou, como não escaparam as outras ciências, a esta lei fundada sobre a natureza das coisas. O estado em que a ciência política se tem mantido até ao presente, e no qual ainda se encontra, corresponde com analogia perfeita ao que foi a astrologia para a astronomia, a alquimia para a química, e a busca da mezinha universal para a medicina. É, antes de mais, evidente, na sequência do capítulo anterior, que a política teológica e a política metafísica, consideradas nas suas metodologias, coincidem no processo de fazer dominar a imaginação sobre a observação. Ninguém está a dizer que até agora a observação nunca fora posta ao serviço da política teórica; sobre o concurso da observação não há dúvida; mas esta faculdade funcionou em lugar subalterno, sempre às ordens da imaginação, tal como foi, por exemplo, a química durante a época da alquimia. Tal preponderância da imaginação deveria ter necessariamente para a política análogas consequências àquelas que já foram descritas quanto às outras ciências. É o que se pode facilmente verificar por observações diretas sobre o espírito comum da política teológica e da política metafísica, consideradas do ponto de vista teórico. O homem acreditou, até ao presente, no poder ilimitado das combinações políticas quanto ao aperfeiçoamento de ordem social. Noutros termos, a espécie humana foi considerada até agora, em política, destituída de qualquer impulsão que lhe seja própria. Estaria condenada para sempre a receber passivamente qualquer impulso que lhe pudesse ser dado pelo legislador, se assim o quisesse, e se estivesse armado de autoridade suficiente para fazê-lo. Por uma consequência necessária, o absoluto reinou sempre, e ainda hoje reina, na política teórica, quer ela esteja ainda teológica quer já seja metafísica. Tal consequência resulta de que a mesma finalidade, que elas se propõem, é a de estabelecer, cada uma a seu modo, o tipo eterno da mais perfeita ordem social, sem que hajam em vista qualquer estado observável de civilização determinado. Uma e outra rivalizam na pretensão de terem encontrado exclusivamente um sistema de instituições que permita alcançar aquele fim. Uma só característica distingue estas duas políticas a tal respeito, a qual é ficar formalmente interdita na primeira qualquer modificação importante ao plano que já traçou, e na segunda a licença de examinar o plano, com a condição de não o desviar da direção prevista. Com leves diferenças, ambas são políticas absolutistas. Este absolutismo é ainda mais sensível nas suas aplicações à política prática. Cada uma das teorias opostas vê, no seu sistema de instituições, uma espécie de panaceia universal aplicável, com infalível segurança, a todos os males políticos, seja de que natureza forem, seja qual for o grau de civilização do povo ao qual o remédio for destinado. Ambas julgam também os regimes dos diferentes povos, nos diversos estados da respectiva civilização, pela pauta única do tipo invariável da perfeição que alcançaram, e graduam as sentenças conforme o grau de conformidade ou de oposição à teoria estabelecida. Assim, para citar um exemplo recente e sensível, os partidários da política teológica e os da política metafísica proclamaram, cada um por sua vez, mas com breve intervalo, que a reorganização social da Espanha era superior à das nações europeias mais avançadas, sem que nenhum dos partidos tivesse em conta a inferioridade atual dos Espanhóis perante os Franceses e os Ingleses, pelo menos em civilização, para se considerarem superiores quanto ao regime político. Juízos como esse, que poderíamos facilmente multiplicar, expõem à evidência como é próprio, tanto da política teológica como da política metafísica, operar com abstrações bem longínquas do estado da civilização. Importa observar a este respeito, para acabar de caracterizar as duas políticas, que elas concordam, em geral, por motivos diferentes, em confundir a perfeição da organização social com um estado de civilização muito imperfeito. Vê-se igualmente que os partidários mais consequentes da política metafísica, tais como Rousseau que a coordenou, foram levados ao ponto de considerar o estado de sociedade como degradação do estado de natureza, composto por imaginação; o que não é mais do que a analogia metafísica da ideia teológica, relativa à degradação da espécie humana pelo pecado original. Este resumo exato confirma que a preponderância da imaginação sobre a observação produziu, em política, resultados perfeitamente semelhantes àqueles que ela havia gerado nas outras ciências, antes de chegarem a ser positivas. A pesquisa absoluta do melhor dos governos possíveis, pensada após a abstração do estado de civilização do povo, ou dos povos, dá uma prática de ordem exatamente igual àquela que consiste em aplicar um tratamento geral a todas as doenças e a todos os temperamentos. Ao procurar reduzir à expressão mais simples o espírito geral da política teológica e metafísica, é-se levado a ver, de semelhança com o que procede, que ela se reduz a duas considerações essenciais. Relativamente à maneira de proceder, ela consiste no predomínio da imaginação sobre a observação. Relativamente às ideias gerais, destinadas a dirigir os trabalhos, ela consiste, por um lado, em encarar a organização social de um modo abstrato: quer dizer, como independente ou indiferente do estado da civilização; e, por outro lado, a encarar a marcha da civilização como se ela não estivesse sujeita a qualquer lei que devamos estudar, conhecer e formular. Invertendo a direção deste espírito, obtém-se o processo necessário para chegar à política positiva, visto que a mesma oposição se observa, conforme o que ficou acima estabelecido, entre o estado conjectural e o estado positivo de todas as outras ciências. Esta operação intelectual não é mais do que aplicar ao futuro a analogia observada no passado. Efetuando esta operação, poder-se-á ser conduzido aos resultados seguintes. Em primeiro lugar, para tornar positiva a ciência política, impõe-se introduzir-lhe, como nas outras ciências, a preponderância da observação sobre a imaginação, Em segundo lugar, para que esta condição fundamental possa ser satisfeita, importa conceber, por um lado, a organização social como intimamente ligada com o estado de civilização e determinada por ele; mas por outro lado importa considerar a marcha da civilização como submetida a uma lei invariável, fundada sobre a natureza das coisas. A política não poderá vir a ser positiva, ou, o que é o mesmo, a observação nunca prevalecerá sobre a imaginação, enquanto estas duas condições não forem completamente satisfeitas. Mas é claro, reciprocamente, que, se elas o chegarem a ser, se a teoria política for inteiramente estabelecida neste espírito, a imaginação encontrar-se-á, de fato, subordinada à observação, e a política será positiva. Em suma, é a estas duas condições que tudo se reduz em última análise. Tais são, pois, as duas ideias capitais que devem presidir aos trabalhos positivos sobre a política teórica. Demoremo-nos a considerá-las pormenorizadamente, já que nos parecem de extrema importância. Não se trata aqui de proceder à respectiva demonstração, porque tal será o resultado que virá após os trabalhos que vamos efetuar. Por agora, a questão é unicamente a de apresentar um enunciado assaz completo para que os espíritos capazes de julgá-lo possam proceder a uma espécie de verificação antecipada ao comparar fatos geralmente conhecidos; verificação suficiente para a convicção de que há possibilidade de tratar a política pelos métodos das ciências de observação. Teremos alcançado a nossa principal finalidade se facilitarmos o advento de tal convicção. A civilização consiste, a bem dizer, no desenvolvimento do espírito humano, por um lado, e, por outro, no desenvolvimento da ação do homem sobre a natureza, o que já é uma consequência. Noutros termos, os elementos de que se compõe a ideia da civilização são: as ciências, as belas-artes e a indústria, dando-se a esta última palavra a sua acepção mais extensa, como sempre nos meus escritos lhe atribuí. Ao considerar a civilização sob este ponto de vista preciso e elementar, é fácil reconhecer que o estado de organização social é essencialmente dependente do estado de civilização, dependente e consequente, ao passo que a política imaginária encara um e outro como isolados, ou até completamente independentes. O estado da civilização determina necessariamente o da organização social, quer espiritual, quer temporal, em seus dois aspectos reciprocamente mais importantes. Em primeiro lugar, determina-lhes a natureza própria, porque ele fixa o fim da atividade social; além disso, prescreve-lhes a forma essencial, porque ele cria e desenvolve as formas sociais, temporais e espirituais, que estão destinadas a dirigir esta atividade geral. É efetivamente claro que a atividade coletiva do corpo social, sendo apenas a resultante das atividades intelectuais de todos os seus membros, dirigidos para uma finalidade comum, nunca poderia ser de natureza diferente daquela que caracteriza os seus elementos, que são evidentemente determinados por um estado mais ou menos avançado das ciências, das belas-artes e da indústria. É ainda mais evidente que haveria impossibilidade de conceber a existência prolongada de um sistema político que não investisse no poder supremo as forças sociais preponderantes, as quais são de natureza invariavelmente prescrita pelo estado de civilização. O que está afirmado pelo raciocínio será confirmado pela experiência. Todas as variedades de organização social, que existiram até ao presente, não foram senão modificações mais ou menos extensas do sistema único, militar e teológico. A formação primitiva deste sistema foi uma consequência evidente e necessária do estado imperfeito da civilização da sua época. Como a indústria estava na sua infância, teve a sociedade de tomar naturalmente a guerra como fim da sua atividade, sobretudo se considerarmos que tal estado de coisas lhe facilitava esses meios, ao mesmo tempo em que lhe impunha a lei bélica pelos estimulantes mais enérgicos que podem atuar sobre os homens, o de exercer as suas faculdades agressivas e o de assegurar os meios de subsistência. É assim claro que o estado teológico, nó qual se encontravam então todas as teorias particulares, imprimia fortemente o mesmo caráter às ideias gerais, destinadas a servir de laço social. O terceiro elemento de civilização, as belas-artes, era então o predominante; e foi ele, com efeito, que principalmente fundou, de maneira regular, esta primeira organização social. Se tal elemento não tivesse sido desenvolvido, ser-nos-ia impossível imaginar como é que se poderia ter organizado a sociedade. Encontraremos o mesmo resultado do nosso raciocínio, ao observar seguidamente as modificações sucessivas que este sistema primitivo sofreu até aos nossos dias, modificações que os metafísicos tomaram por outros tantos sistemas diferentes. Ver-se-á em todas elas efeitos inevitáveis da extensão sempre crescente que foi sendo adquirida pelo elemento científico e pelo elemento industrial, quase nulos na origem. Foi assim que a transição do politeísmo para o monoteísmo, e, mais tarde, a reforma do protestantismo, resultaram principalmente de progressos contínuos, se bem que lentos, dos conhecimentos científicos, ou noutros termos, pela ação exercida sobre as antigas ideias gerais por aquelas ideias particulares que a pouco e pouco cessaram de ser da mesma ordem ou do mesmo grau. Tal aconteceu, no domínio temporal, com a passagem do direito romano para o direito feudal; com maior clareza se pode ver que a decadência do feudalismo perante a libertação das comunas, seguida das respectivas consequências, devem ser essencialmente referidas à importância progressiva do elemento industrial. Em suma, todos os fatos gerais confirmam a estreita dependência da organização social em relação ao estado de civilização. Os melhores espíritos, aqueles que mais se têm aproximado do método positivo na ciência política, já hoje começam a vislumbrar este princípio fundamental. Vão vendo que é absurdo conceber isoladamente, e à custa de abstrações, o sistema político; que é absurdo fazer derivar da nomenclatura do sistema as funções que atuam na sociedade, quando é destas que ele recebe a eficiência, sob pena de nulidade. Numa palavra, tais espíritos admitem já que a ordem política não é e não pode ser mais do que a expressão da ordem civil, o que significa, em outros termos, que as forças sociais preponderantes acabam, necessariamente, por ser forças dirigentes. Falta apenas dar um passo para chegar ao termo, que consiste em reconhecer a subordinação do sistema político ao estado de civilização. Porque, se é claro que a ordem política é a expressão da ordem civil, tão claro é pelo menos que a própria ordem civil não passa da expressão do estado da civilização. Não há dúvida de que a organização social por sua vez reage, de modo mais ou menos enérgico, mas inevitável sobre a civilização. Mas esta influência, que é de segunda ordem, apesar da sua grande importância, não deve fazer chegar a inverter a ordem natural da dependência. A prova de que esta ordem é realmente aquela que já ficou indicada, pode-se verificar até na reação, quando esta for encarada convenientemente. É de experiência constante que, se a organização social for constituída em sentido contrário ao da civilização, esta acaba sempre por tirar a desforra sobre aquela. Devemos, pois, admitir, como uma das duas ideias fundamentais que fixam o espírito da política positiva, que a organização social não deve ser considerada, quer no passado, quer no presente, isoladamente do estado da civilização, porque esta deve ser encarada como a matriz daquela. Se, para facilitar o estudo dos problemas, por vezes se torna útil examiná-los separadamente, esta abstração deverá ser concebida como simplesmente provisória, e nunca deixar de perder de vista a subordinação estabelecida pela natureza das coisas. A segunda ideia fundamental consiste em que os progressos da civilização se desenvolvem segundo uma lei necessária. A experiência do passado prova da maneira mais decisiva, que a civilização está sujeita no seu desenvolvimento progressivo à marcha natural e irrevogável, derivada das leis da organização humana, e que vem a ser, por sua vez, a lei suprema de todos os fenômenos políticos. Não podemos, como é óbvio, expor aqui e precisamente as características desta lei, nem a respectiva verificação pelos fatos históricos, por mais simples que sejam. Trata-se por agora apenas de apresentar algumas considerações sobre esta ideia fundamental. A primeira consideração tem por fim mostrar a necessidade de supor aquela lei, para com ela explicar os fenômenos políticos. Todos os homens que possuem certo conhecimento dos mais notáveis fatos históricos - quaisquer que sejam, aliás, as suas opiniões especulativas -, hão de concordar que o conjunto da espécie humana policiada tem feito progressos ininterruptos na civilização, desde os tempos mais recuados até aos nossos dias. Nesta proposição, a palavra civilização significa o que já foi explicado, e que compreende, ou inclui, por consequência, a organização social. Ninguém pode apresentar razoavelmente qualquer dúvida sobre um grande fato ocorrido na época que se estende desde o século onze até ao presente, isto é, desde a introdução das ciências de observação na Europa, por influência dos Árabes, e desde a libertação das comunas. Tal fato não é menos incontestável quando referido à época precedente. Os sábios já reconheceram muito bem que as pretensões dos eruditos acerca dos conhecimentos científicos muito avançados dos antigos carecem de fundamentação real. Está provado que os Árabes ultrapassaram os Antigos. O mesmo aconteceu, e ainda mais claramente, no campo da indústria, pelo menos em tudo quanto exige aptidão verdadeira, e que não é efeito de circunstâncias puramente acidentais. Ainda que excluíssemos as belas-artes, esta exclusão, explicável de um modo muito natural, deixaria à nossa proposição uma generalidade suficiente. Enfim, quanto à organização social, não há maior evidência de que ela beneficiou, no mesmo período, de progressos de primeira ordem, pela difusão do cristianismo, e pela formação do regime feudal, muito superior às instituições gregas e romanas. É portanto certo dizer-se que a civilização tem progredido continuamente, e sob todos os aspectos. Por outro lado, sem adotar, relativamente ao juízo do passado, aquele espírito de negação, tão cego como injusto, introduzido pela crítica metafísica, haveremos de reconhecer certamente que, em consequência do estado infantil em que a política tem persistido até agora, as combinações práticas, outrora dirigidas sobre a civilização, não foram sempre as mais adequadas para o progresso, e por vezes tendiam muito mais a dificultar do que a facilitar a marcha civilizadora. Épocas houve nas quais toda a ação política principal parecia combinada na intenção de manter indefinidamente uma direção estacionária; foram, em geral, épocas de decadência dos sistemas, por exemplo as do imperador Julião, de Filipe II e dos Jesuítas, e, por último, a de Bonaparte. Observe-se, aliás, e de harmonia com a discussão antecedente, que não é a organização social quem vai regular o andamento da civilização, porque aquela é o produto de que esta é o produtor. Lá porque a influência de certos tratamentos, evidentemente viciosos, realiza com frequência a possibilidade de curar doenças, ficaram os médicos a conhecer também a ação poderosa que todo o corpo vivo desenvolve para restabelecer o equilíbrio orgânico, ameaçado ou lesado por perturbações acidentais. Assim também, o adiantamento da civilização, através das combinações políticas desfavoráveis, prova claramente que há um ritmo natural a que a civilização se encontra submetida, independentemente de todas essas combinações, e portanto dominante. Se não admitíssemos esse princípio, para explicar a ordem dos fatos, e para compreender como é que a civilização aproveitou quase sempre a lição dos erros sem se deixar atrasar - se não admitíssemos esse princípio -, restar-nos-ia apenas o de recorrer a uma direção sobrenatural, imediata e contínua, como aquela que faz parte da política teológica. Convém, aliás, observar a tal respeito que por demais foram tidas por desfavoráveis à marcha da civilização algumas causas só o eram na aparência. A razão disso esteve em que, e principalmente, os melhores espíritos não prestaram suficiente atenção a uma das leis essenciais dos corpos organizados, que se aplica tão bem à espécie humana quando atua coletivamente como ao indivíduo isolado. Esta lei consiste na necessidade das resistências, ou das reações, até certo grau, para que todas as forças cheguem a ser plenamente desenvolvidas. Porque, se os obstáculos são necessários para que as forças se desenvolvam, não são eles que as produzem. A conclusão deduzida desta primeira consideração ficaria ainda muito mais fortalecida se tivéssemos em conta a identidade notável que foi observada no desenvolvimento da civilização de diversos povos, entre os quais não é racionalmente possível supor alguma comunicação política. Tal identidade não pôde ser produzida senão por obediência ao andamento natural da civilização, uniforme para todos os povos, porque ela deriva das leis fundamentais da organização humana, leis comuns a todos. Assim, por exemplo, os costumes dos primeiros tempos da Grécia, tais como Homero no-los descreveu, foram nos nossos dias observados, com semelhanças surpreendentes, nas nações selvagens da América setentrional; a feudalidade nos Malaios oferecia o mesmo caráter essencial que teve na Europa depois do século onze, etc., são exemplos de fatos que não podem ser explicados senão por meio da mesma lei. Uma segunda consideração tornará mais fácil do que na primeira a compreensão de que existe uma lei natural que preside ao desenvolvimento da civilização. Se admitirmos, em conformidade com o estudo já apresentado, que o estado de segurança social é um derivado necessário do estado da civilização, poderemos extrair, da observação da marcha, o seguinte elemento mais complicado, e o que for visto para outros não deixará de lhe ser aplicado como consequência. Reduzindo assim a questão aos seus termos mais simples, mais fácil será perceber que a civilização está submetida a um andamento determinado e inevitável. Uma filosofia superficial, que fez ver neste mundo um palco onde se representassem milagres, exagerou prodigiosamente a influência do acaso, quer dizer, das causas isoladas, nos acontecimentos humanos. Tal exagero foi sobretudo manifesto nas ciências e nas artes. Entre outros exemplos notáveis conhecemos nós a singular admiração que afeta muitos homens de espírito quando pensam na lei da gravitação universal, revelada a Newton, por ocasião da queda de uma maçã. Está hoje geralmente reconhecido, por todos os homens prudentes, que o acaso é um fator mínimo, infinitamente pequeno, dos descobrimentos científicos e industriais; o acaso é acidental, pelo que só representa um papel essencial nos descobrimentos sem importância alguma. Mas ao erro resultante da majoração do acaso, sucedeu outro que, muito menos irracional, exerce todavia os mesmos inconvenientes, ou maiores, que o primeiro. A função do acaso foi transferida para o gênio, sem perder a sua característica surpreendente. Esta deslocação não serve para melhor explicar os atos do espírito humano. A história dos conhecimentos humanos prova todavia, e da maneira mais evidente, como os espíritos mais doures acabaram por reconhecer, que todos os trabalhos se encadeiam ou engrenam nas ciências e nas artes, quer de uma geração para outra, quer nos sábios contemporâneos; tal permite pensar e escrever que os descobrimentos de uma geração preparam os da seguinte, como tinham já sido preparados pelos da precedente. Nesta panorâmica se viu enfim que a potência do gênio isolado é muito menor do que aquela que lhe havia sido atribuída. O homem que mais justamente se tornou ilustre pela atualização de grandes descobrimentos, deve quase sempre a maior parte dos seus êxitos aos precursores menos ilustres na carreira que percorreu. Em suma: o espírito humano segue, no desenvolvimento das ciências e das artes, a marcha já determinada, superior às maiores forças intelectuais, as quais não se manifestam senão como, por assim dizer, instrumentos destinados a proclamar nos tempos próprios os sucessivos descobrimentos. Limitando-nos a considerar aquelas ciências que poderemos seguir com maior facilidade desde recuados tempos até aos nossos dias, verificaremos, com efeito, que as grandes épocas históricas de cada uma delas, quer dizer, as épocas em que passaram do estado teológico para o estado metafísico, e, enfim, para o estado positivo, ficaram rigorosamente determinadas. Estes três estados sucedem-se necessariamente em conformidade com esta ordem, fundada sobre a natureza do espírito humano. A transição de um estado para outro estado faz-se segundo um progresso cujos passos são análogos para todas as ciências, e nenhum homem, por mais genial que seja, pôde ou poderá saltar sobre um intermediário essencial. Se, desta divisão geral, passarmos às subdivisões do estado científico, positivo ou definitivo, observaremos a permanência da mesma lei. Assim, por exemplo, o grande descobrimento da gravitação universal foi preparado pelos trabalhos dos astrônomos e dos geômetras dos séculos dezesseis e dezessete, principalmente pelos de Kepler e de Huyghens, sem os quais teria sido impossível tão importante fato científico, mas que necessariamente haveria de se produzir, mais cedo ou mais tarde. A quem houver entendido o que ficou escrito nas páginas antecedentes, não se apresentará a dúvida de que a marcha da civilização, considerada nos seus elementos, esteja sujeita a uma lei natural e constante, que domine todas as divergências humanas particulares. Como o estado da organização social segue necessariamente o da civilização, a mesma conclusão se aplica também à política, encarada ao mesmo tempo no seu conjunto e nos seus elementos. As duas considerações já apresentadas parecem suficientes, não para demonstrar completamente a marcha necessária da civilização, mas para fazer sentir a sua existência, para mostrar a possibilidade de determinar com precisão todos os seus atributos, o que se faz estudando-a pela observação aprofundada do passado, e para criar assim a política positiva. Trata-se, agora, de fixar exatamente a finalidade prática desta ciência, os seus pontos de contato gerais com as exigências da sociedade, e sobretudo com a grande reorganização que está sendo imperiosamente exigida pelo estado presente do corpo social. Para isso, importa antes de mais precisar os limites dentro dos quais nos parece encerrada toda a ação política real. A lei fundamental que rege a marcha natural da civilização prescreve rigorosamente todos os estados sucessivos pelos quais a espécie humana, no seu desenvolvimento geral, está sujeita a passar. Por outro lado, esta lei resulta necessariamente da tendência instintiva da espécie humana para se aperfeiçoar. Por conseguinte, ela está tanto acima da nossa dependência como os instintos individuais cuja combinação produz esta tendência permanente. Como nenhum fenômeno conhecido nos autoriza a pensar que a organização humana venha a estar sujeita a alguma transformação radical, a marcha da civilização que dela deriva deve ser portanto inalterável, quanto ao fundo. Em termos ainda mais precisos, nenhum dos graus intermediários que ela fixa pode ser ultrapassado, como também nenhum passo retrógrado pode ser definitivo e verdadeiro. Só entre menores ou maiores velocidades, dentro de certos limites, por várias causas físicas e morais, susceptíveis de apreciação, pode a marcha da civilização ser modificada. Entre essas causas poderemos contar as combinações políticas. Tal é o único meio dentro do qual será dado ao homem o influir sobre a marcha da sua própria civilização. Esta ação, relativamente à espécie, é completamente análoga àquela que nos é permitido ver quanto ao indivíduo, analogia que resulta da identidade de origem. É possível, por meios convenientes, acelerar ou retardar, até certo ponto limite, o desenvolvimento de um instinto individual; é impossível destruí-lo, ou desnaturá-lo. O mesmo acontece com o instinto da espécie, guardando a proporção, quanto aos limites, da vida da espécie comparada com a do indivíduo. A marcha natural da civilização determina, pois, para cada época, e independentemente de qualquer hipótese, os aperfeiçoamentos que devem ser praticados no estado social, quer considerado no seu conjunto, quer em qualquer dos seus elementos. Só estes podem ser exequíveis, e executam-se necessariamente, mediante combinações feitas pelos filósofos e pelos estadistas, ou até em contradição com elas. Todos os indivíduos que exerceram uma ação real e duradoura sobre a espécie humana, quer no temporal, quer no espiritual, foram guiados e sustentados por esta verdade fundamental, que o instinto ordinário do gênio lhes fez entrever, ainda que tal verdade não haja sido bem estabelecida sobre uma demonstração metódica. Os homens superiores previram, em cada época, quais eram as transformações que estavam para se operar, conforme o avanço da civilização, e proclamaram de algum modo essas transformações, propondo aos seus contemporâneos as doutrinas ou as instituições correspondentes. Quando a teoria era descrita em perfeita conformidade com o verdadeiro estado das coisas, as modificações foram esboçadas ou consolidadas quase imediatamente. Certas forças sociais que, havia já muito tempo, permaneciam escondidas no silêncio, obtiveram voz e apareceram na cena política com todo o viço da juventude. Se a história não tivesse sido até agora estudada e escrita por um espírito superficial, tais coincidências de efeitos tão poderosos, em vez de causarem admiração entre os homens, subordinar-se-iam às leis e contribuiriam, para a instrução política, como seria de esperar de uma verdadeira ciência positiva. Esses acontecimentos extraordinários, mal descritos na história, chegam até a contribuir para que se mantenham ainda a crença teológica e a crença metafísica no poder indefinido e criador dos legisladores sobre as condições da civilização. Parecendo assim fundada sobre a observação histórica, esta ideia supersticiosa mantém-se até nos espíritos que, por verdadeira educação científica, estariam já dispostos a expeli-la. Tão lamentável efeito doutrinário resulta de que, na descrição dos grandes acontecimentos, é conferido o primado a certas figuras de homens condutores, numa perspectiva que não deixa ver que também os dirigentes e executantes foram impelidos, pelas coisas que representam forças irresistíveis. Os homens previdentes aparecem como verdadeiros causadores dos aperfeiçoamentos que previram, quando estes apenas se operaram, por influência preponderante da civilização; os acontecimentos previsíveis operar-se-iam necessariamente, talvez um pouco mais tarde, sem a assistência nem a intervenção dos seus previsores. Não há em história desproporção maior entre a pretensa causa e o autêntico efeito, e a responsabilidade assim atribuída aos grandes homens romaria a explicação da narrativa dos fatos muito mais ininteligível do que os próprios fatos. Em suma, e adotando a engenhosa expressão de Madame de Stael, seria como atribuir aos atores a autoria da peça. Tal erro é absolutamente igual ao dos Indianos que atribuíram a Cristóvão Colombo um eclipse que ele havia previsto. Quando um homem parece exercer uma grande ação, tal não acontece em geral por causa das suas próprias forças, que são bem pequenas. São sempre as forças exteriores que atuam por ele, e segundo leis sobre as quais ele não tem poder algum. Todo o seu poder está, sim, na sua inteligência, porque ela o torna capaz de conhecer as leis perante a observação, de prever a tempo os efeitos, e, por seguinte, de os encadear de forma a que concorram para o fim que ele se propõe, mas com a condição de que utilize as forças em conformidade com a natureza delas. A ação resulta. Uma vez produzida, logo a ignorância das leis naturais, conduz o espectador, e às vezes o próprio ator, a atribuir à potência do homem o que não foi senão a sua previdência. Estas observações gerais aplicam-se tanto à ação filosófica, como, pelos mesmos modos e pelas mesmas razões, à ação física, química e fisiológica. A ação política continua-se num estado real e duradouro: sempre que se exerça no mesmo sentido da força propulsora da civilização, quer dizer, quando se propõe operar as transformações que tal força atualmente comanda. A ação será nula, fictícia, ou pelo menos efêmera, em qualquer outra hipótese. O caso mais vicioso é, sem dúvida, aquele em que o legislador, tanto o temporal, como o espiritual, atua, quer o deseje ou não, quer o saiba ou não, em sentido retrógrado; porque nesse caso é ele quem se constitui na oposição à força que o faria vencer, triunfar e dominar. A marcha da civilização é o regulador exato da ação política; tanto assim que esta ação pode ser nula, apesar da tendência progressiva que a favoreça, se pretender avançar mais do que o grau consentido e determinado. A experiência prova, com efeito, que o legislador, ainda quando revestido do poder máximo que é a soberania, falha necessariamente no uso da sua força, se pretende operar aperfeiçoamentos que estejam na linha dos progressos naturais da civilização, mas já muito acima do estado atual. Assim, por exemplo, as grandes tentativas de José II para civilizar a Áustria, exageradas perante as condições contemporâneas, foram tão completamente condenadas à nulidade, como os esforços imensos de Bonaparte para fazer regressar a França ao regime feudal, se bem que um e outro estadista estivessem armados com os mais extensos poderes de arbitrariedade. Das considerações previamente indicadas, segue-se que a verdadeira política, a política positiva, não deve ter a pretensão de governar os seus fenômenos, mas deve imitar as outras ciências que não se propõem governar os seus fenômenos respectivos. As ciências renunciaram às quimeras ambiciosas que lhes caracterizaram o período da infância, para depois se limitarem a observar os fenômenos e a ligá-los intelectualmente. A política deve fazer o mesmo. Deve ocupar-se unicamente de coordenar todos os fatos particulares, relativos à marcha da civilização, de os agrupar, classificar e reduzir ao menor número possível os fatos gerais, cuja sucessão deverá pôr em evidência a lei natural da referida marcha, para apreciar em seguida a influência das diversas causas que possam alterar-lhe a velocidade. A utilidade prática desta política teórica, política de observação, pode ser agora precisada com facilidade. A política verdadeiramente sã não pode ter o propósito de fazer marchar a espécie humana, que se move por um impulso próprio, segundo uma lei tão necessária, se bem que mais modificável, como a lei da gravitação. Ela deve ter por fim - o que é diferente -, facilitar essa marcha, iluminando-a e esclarecendo-a. É que há uma diferença muito grande entre obedecer à marcha da civilização, mas cegamente, e obedecer-lhe com conhecimento de causa. As transformações por que ela passa, tanto ocorrem no primeiro caso como no segundo; a diferença é que, quando por nós desconhecidas, levam mais tempo a operar-se, e só se operam depois de haverem produzido perturbações funestas, mais ou menos graves, proporcionalmente à respectiva importância e à respectiva natureza. Ora os atritos de toda a espécie que se observam na máquina social podem ser evitados, em grande parte, por meios fundados no conhecimento exato das leis que regulam as forças motoras. Esses meios consistem em prever os aperfeiçoamentos, e, previstos, se expliquem de maneira direta, em vez de esperar que eles venham à luz, pela irresistível força das coisas, e através de terríveis obstáculos que a ignorância costuma gerar. Noutros termos, o fim essencial da política prática é, propriamente, evitar as revoluções violentas que nascem sobre obstáculos imaginários de quem se opõe à marcha da civilização, e reduzi-los, tão depressa como seja possível, a um simples movimento moral, tão regular, se bem que mais vivo e mais veemente, do que aquele que impele suavemente para o progresso a sociedade norma nos tempos ordinários. Ora, para alcançar este fim, é evidentemente indispensável conhecer, com a máxima precisão possível, a tendência atual da civilização, a fim de lhe conformar a ação política. Seria, sem dúvida, quimérico esperar que movimentos, que comprometem mais ou menos as ambições e os interesses de classes inteiras, possam operar de uma maneira perfeitamente calma. Mas não é menos certo que, até hoje, tem sido dada a esta causa uma importância excessiva na explicação histórica das revoluções tumultuosas, cuja violência foi devida, em grande parte, à ignorância das leis naturais que regulam a marcha da civilização. Nada há tão ordinário como querer atribuir ao egoísmo o que está essencialmente ligado à ignorância; e este erro funesto é daqueles que mais contribuem para manter a irritação entre os homens, tanto nas relações privadas como nas relações públicas. Mas, no caso atual, não será evidente que homens até agora arrastados a colocarem-se de fato em oposição à marcha da civilização, nunca teriam assim procedido se lhes tivesse sido solidamente demonstrada a vanidade de tal oposição? Ninguém seria tão insensato que se situasse, conscientemente, como insurrecto perante a própria natureza das coisas. Ninguém se compraz em exercer uma ação que, a seu modo de ver, não tardará em parecer efêmera. As demonstrações da política de observação são, pois, susceptíveis de persuadir as classes privilegiadas e interessadas de que lhes é inútil e vão manter-se em luta contra o progresso necessário. Temos a certeza de que não é curial exagerar a influência da inteligência no comportamento dos homens. Mas é certo que a força da demonstração evidente tem uma importância muito superior àquela que até agora lhe tem sido atribuída. A história do espírito humano prova que muitas vezes essa força determinou, por si só, transformações que exigiam luta contra as maiores vontades humanas reunidas. Citaremos apenas o exemplo mais notável, o qual está no poder das demonstrações positivas que obrigam o mundo a adotar a teoria do movimento da terra, para o que foi indispensável vencer não só a resistência do poder teológico, que tão vigoroso era ainda naquela época da ciência, mas também o orgulho de toda a espécie humana, apoiado sobre os motivos mais verossímeis que uma ideia falsa jamais havia obtido a seu favor. Experiências tão decisivas como esta nos deveria esclarecer sobre a força preponderante que resulta das demonstrações verdadeiras. É principalmente por nunca na política terem aparecido demonstrações dessa ordem, que os homens de Estado se deixaram levar até às maiores aberrações práticas. Apareçam as demonstrações, tornem-se evidentes, que as aberrações começam a desaparecer. Ainda que afastemos as razões para só considerar os interesses, fácil será demonstrar que a política positiva pode facultar os meios de evitar as revoluções violentas. Com efeito, se os aperfeiçoamentos sociais, necessitados pela marcha da civilização, hão de combater certas ambições e certos interesses, outros existem que favorecem o mesmo movimento. Além disso, e pelo fato de aqueles aperfeiçoamentos alcançarem a maturidade, as forças reais que operam a favor deles hão de ser superiores às forças opostas, se bem que as aparências nem sempre mostrem a verdade. Ora, ainda que duvidássemos, relativamente a estas últimas forças, que o conhecimento positivo da marcha da civilização possa ser útil para convencê-las a resignarem-se com uma lei inevitável, a importância de tal conhecimento, relativamente às outras forças, é assunto que não pode evidentemente ser posto em questão. Guiadas por este conhecimento, as classes ascendentes, poderão perceber claramente o fim para que são chamadas, poderão progredir de maneira reta e direta, em vez de se cansarem ao longo de tentativas e de desvios. Elas combinarão com segurança os meios de antecipadamente anularem todas as resistências, e de facilitar aos seus adversários a transição para a nova ordem de coisas. Numa palavra, o triunfo da civilização operar-se-á de uma maneira ao mesmo tempo tão pronta e tão calma como aquela que a natureza das coisas permitiria. Em resumo, a marcha da civilização não se cumpre, a bem dizer, por uma linha reta. Ela compõe-se de uma série de oscilações progressivas, mais ou menos extensas e mais ou menos lentas, aquém e além da linha média, comparáveis àquelas que o mecanismo da locomoção nos apresenta. Ora, estas oscilações podem vir a ser mais curtas e mais rápidas mediante combinações políticas fundadas sobre o conhecimento do movimento médio, que tende sempre a predominar. Tal é a utilidade prática permanente deste conhecimento. Ela terá evidentemente tanto maior importância, quanto mais importantes forem as transformações necessitadas pela marcha da civilização. Tal utilidade é hoje do mais alto grau, porque a reorganização social, prestes a terminar a crise atual, é a mais completa de todas as revoluções que a espécie humana tem experimentado. O dado fundamental da política prática geral, o seu ponto de partida positivo, será pois a determinação da tendência da civilização para o seu fim, para lhe confirmar a ação política, isto é, para tornar mais curtas e mais suaves as crises a que a espécie humana está submetida nas passagens sucessivas pelos diferentes estados de civilização. Alguns espíritos bondosos, mas pouco familiarizados com a maneira de proceder que convém ao espírito humano, reconhecendo embora a necessidade de determinar esta tendência da civilização, para dar uma base sólida e positiva às combinações políticas, poderão ser levados a pensar que não é indispensável para estudar a marcha geral da civilização fixá-la no ponto de origem, traçar-lhe a consequente história, pois bastaria considerá-la na sua mobilização presente. Esta ideia é muito natural, porque resulta da maneira condensada por que a política tem sido encerrada até aos nossos dias. Mas é fácil demonstrar a falsidade de tal ideia. A experiência provou que o espírito do homem, enquanto estiver progredindo numa direção positiva, terá muitas vantagens e nenhuns inconvenientes em elevar-se ao máximo grau de generalidade possível, porque é infinitamente mais fácil descer do que subir. Na infância da fisiologia positiva, começou-se por acreditar que, para conhecer a organização humana, bastaria estudar unicamente o homem, o que era um erro inteiramente análogo àquele que está aqui em questão. Reconheceu-se depois que, para formar ideias bem nítidas e convenientemente extensas acerca da organização humana, era indispensável encarar o homem como um termo da série animal; e até mesmo, por generalização mais devida, como um ente que faz parte do conjunto dos corpos organizados. A fisiologia só se constituiu definitivamente depois de ter ficado largamente estabelecida a comparação das diferentes classes de seres vivos, e também depois de começar a ser regularmente aplicada ao estudo do homem. Existem, no estudo da ciência política, diversos estados de civilização, como existem organizações diversas em fisiologia. Há que compará-las. Somente, os motivos que obrigam a considerar as diferentes épocas de civilização são mais diretos do que aqueles que levaram os fisiologistas a estabelecer a comparação de todas as organizações. Sem dúvida, um estudo do estado presente da civilização, visto em absoluto, independentemente daqueles que o precederam, é próprio para fornecer materiais muito úteis para a constituição da política positiva, com a condição de que os fatos sejam observados segundo um critério filosófico. Temos até a certeza de que foi mediante estudos deste gênero que os verdadeiros homens de Estado puderam até agora modificar as doutrinas conjecturais que dirigiam os seus espíritos, de modo a torná-las menos discordantes das necessidade reais da sociedade. Mas não deixa de ser também evidente que tal estudo é de uma insuficiência total para formar uma verdadeira política positiva. É impossível querer ver nesse estudo mais do que uma simples recolha de materiais. Numa palavra a observação do estado presente da civilização, considerado isoladamente, não pode determinar a tendência atual da sociedade, como também não o poderia fazer o estudo parcial de qualquer outra época isolada. A razão é simples: para estabelecer uma lei, não nos basta um só termo, porque são exigidos pelo menos três, a fim de que a ligação, descoberta pela comparação dos dois primeiros e verificada pelo terceiro, possa servir para buscar o seguinte, o que é exatamente a definição e o fim de uma lei. Quando, ao historiarmos uma instituição e uma ideia social, ou então um sistema de instituições e uma doutrina inteira, desde a origem até à atualidade, chegarmos a ver que, a partir de certo momento, o respectivo império foi aumentando ou diminuindo, poderemos prever com perfeita certeza, facultada por uma série de observações, que destino lhe será reservado. No primeiro caso, discerniremos que o movimento se processou no sentido próprio da marcha da civilização, e concluir-se-á que acabará por dominar. No segundo caso, observaremos que as instituições ou as suas ideias estão destinadas a desaparecer, porque se moveram em sentido contrário ao da civilização. A época da queda ou a do triunfo poderão até ser calculadas aproximadamente pela extensão e pela velocidade das variações observadas. Tal estudo histórico é, pois, e evidentemente, uma fonte fecunda de instrução positiva. Mas que pode ensinar-nos a observação isolada de um só estado, no qual tudo é complexo e confundido, as ideias, as doutrinas, as instituições, as classes que descem, e as ideias, as doutrinas, as instituições, as classes que sobem, sem contar com a ação efêmera que depende apenas da rotina do momento? Num arranjo tão heterogêneo, quem será o homem sagaz que escape ao erro de confundir os elementos opostos, ou de tomar uns pelos outros? Como discernir as realidades, pouco ruidosas, entre os fantasmas que se agitam nos palcos? É óbvio que, perante a complexidade, a confusão e a desordem, o observador procederia como um cego, se não tivesse quem o esclarecesse e guiasse; mas tem a seu favor o estudo do passado, que lhe ensina a olhar de modo que possa ver e discernir as pessoas e as coisas, tais como elas são na realidade. A ordem cronológica das épocas não é uma ordem filosófica. Em vez de dizer: o passado, o presente e o porvir, será melhor dizer: o passado, o porvir e o presente. Efetivamente, só quando compararmos o passado com o porvir estaremos habilitados a observar útil e praticamente o presente, que é um instante no tempo, e a caracterizá-lo na sua efêmera realidade. Estas considerações, válidas para uma época qualquer, com mais forte razão valem para a época atual. Hoje, três sistemas diferentes coexistem no seio da nossa sociedade: o sistema teológico e feudal, o sistema científico e industrial, enfim o sistema bastardo e transitório dos metafísicos e dos legistas. Estaria absolutamente acima das forças do espírito humano estabelecer, no meio de tanta confusão, uma análise clara e exata, uma estatística real e precisa do corpo social, se não tivéssemos a luz de um facho que já vem do passado. Ser-nos-ia fácil demonstrar que excelentes espíritos, capazes de se elevarem a uma política verdadeiramente positiva, se as suas faculdades tivessem sido mais bem instruídas e mais bem dirigidas, permaneceram afundados na metafísica porque consideraram isoladamente o estado presente das coisas, ou porque não recorreram suficientemente à narrativa histórica dos acontecimentos. Eis, pois, o estudo tão aprofundado quanto possível, tão completo quanto possível, de todos os estados pelos quais a civilização atravessou desde a origem ao presente; a sua coordenação, o seu encadeamento sucessivo, a sua composição em fatos gerais mas próprios a enunciarem princípios, pondo em evidência as leis naturais do desenvolvimento da civilização; o quadro filosófico do futuro social, tal como ele deriva do passado, quer dizer a determinação do plano geral de reorganização destinado à época atual: enfim a aplicação destes resultados ao estado presente das coisas, de maneira a determinar a direção que deve imprimir-se à ação política para facilitar a transição definitiva para o novo estado social. Tal é o conjunto dos trabalhos próprios para facultar à atividade política uma teoria positiva que possa responder e corresponder às necessidades imensas e urgentes da sociedade. Tal é a primeira série de investigações teóricas que ouso propor às forças combinadas dos sábios europeus. Se todas as considerações expostas até aqui foram suficientes para indicar o espírito da política positiva, já a comparação dela com a política teológica e a metafísica poderá adquirir ainda maior precisão. Ao compará-las, em primeiro lugar, sob o ponto de vista mais importante, que é o das necessidades atuais da sociedade, explicar-se-á facilmente a superioridade da política positiva. Esta superioridade resulta de que ela descobre o que os outros inventam. A política teológica e a metafísica imaginam o sistema que convém ao estado presente da civilização, dada a condição absoluta de que ele seja também o melhor possível. A política positiva determina-o pela observação, porque pretende ter unicamente aquele que a marcha da civilização tende a revelar ou a produzir. Ante esta maneira diferente de proceder, duas coisas seriam igualmente impossíveis; que a política de imaginação encontrasse a verdadeira reorganização social, e que a política de observação não a encontrasse. Uma despende os mais altos esforços para inventar o remédio, sem considerar a doença. A outra, persuadida de que a principal causa do curativo está na força vital do doente, limita-se a prever, por observação, o termo natural da crise, a fim de facilitá-la pelo afastamento dos obstáculos suscitados pelo empirismo. Em segundo lugar, só a política científica pode propor aos homens uma teoria sobre a qual venha a ser possível alargar o que, em certo sentido, é apenas a condição mais importante. A política teológica e a política metafísica, que procuram teorizar o melhor governo possível, engalfinham-se em discussões que nunca mais concluem, porque o alvo a que atiram também se desloca, e a questão deixa de ter sentido ou juízo. O melhor regime político deve ser, e é necessariamente, aquele que melhor se adapta ao estado da civilização; para cada época, o melhor é aquele que com ela se conforma do modo melhor. Não há, pois, e nunca poderia haver regime político absolutamente preferível a todos os outros; há somente estados de civilização mais aperfeiçoados do que outros. Instituições há que, boas para determinada época, podem ser e chegam a ser, efetivamente, quase sempre más para outra época, e reciprocamente. Assim, por exemplo, a escravidão, tida hoje por monstruosidade, foi certamente, na origem, uma instituição de muito belas motivações, porque tinha por fim impedir que o forte degolasse o fraco; foi um estado intermediário no estatuto do trabalho, mas inevitável no desenvolvimento geral da civilização. Igualmente, mas em sentido inverso, a liberdade que, em proporção razoável, se torna útil para o indivíduo, e para um povo, que hajam atingido certo grau de instrução e contraído certos hábitos de previdência, porque lhes permite e lhes excita o desenvolvimento das suas faculdades superiores, é muito nociva para aqueles que ainda não obtiveram aquelas duas condições, o que significa terem de ser necessariamente mantidos em tutela, tanto para o bem deles como para o dos outros. É portanto evidente que ninguém se pode entender na discussão publica da questão absoluta do melhor dos governos possíveis. Para restabelecer a harmonia dos espíritos, não há outro expediente senão o de prescrever inteiramente qualquer exame do plano imaginado, tal como faz a política teológica, nisso mais consequente do que a política metafísica; porque durou séculos, ela sabe como cumpriu as condições da duração, e como há de mantê-las. Sabe-se que a metafísica, pelo contrário, faculta à imaginação a liberdade de altos voos, mas ao desviar-se do melhor caminho chega ao ponto de duvidar, e até ao de negar fundamentalmente, que o convívio social concorre para a felicidade humana, paradoxo que evidencia e oculta impossibilidade de discutir a sério tão graves questões. Na política científica, pelo contrário, a finalidade prática é a de determinar o sistema que a marcha da civilização, tal como a história nos permite ver, tende a produzir amanhã, e assim a questão enuncia-se de modo positivo como se resolve mediante a observação. Na política positiva, pode e deve ser concedida a máxima licença de exame, porque não há que temer as divagações. Ao fim de certo tempo, todos os espíritos competentes, e, por conseguinte, todos os outros acabam por se entender no enunciado das leis naturais da marcha de civilização, e sobre o sistema a que ela vai chegar, e a conclusão será independente das opiniões meramente especulativas que figuravam nas premissas da discussão; do mesmo modo procederam os sábios para chegarem a formular as leis do sistema solar, as do organismo humano, etc. Enfim, a política positiva é a única via pela qual a espécie humana possa sair do pensamento arbitrário, ao qual continuará presa enquanto dominarem ainda a política teológica e a política metafísica. O absoluto na teoria conduz ao arbitrário na prática. Enquanto a espécie humana for encarada como destituída de impulso próprio, e condenada a recebê-lo do governador ou do legislador, forçosamente que existirá na soberania o arbítrio, para o que é essencial à sociedade, a despeito das declamações mais razoáveis ou mais eloquentes. É a natureza das coisas que assim o exige. A espécie humana ficará à discrição do legislador, o qual definirá qual o melhor regime para ela, e assim o arbítrio, que possa ser circunscrito neste ou naquele pormenor, nunca será expulso do ponto central do sistema. Que o soberano, ou o legislador supremo, seja único ou múltiplo, hereditário ou coletivo, é condição que, por estabelecida, não alterará a essência nem a efetividade da doutrina. O mesmo aconteceria se a sociedade, no seu todo, tomasse o lugar e a função do legislador; mas isso não é possível. A sociedade, a decidir arbitrariamente sobre si própria, exibiria no extremo inconvenientes muito maiores do que os já descritos. Pelo contrário, a política científica exclui radicalmente o arbítrio, porque faz desaparecer o absoluto, como também o vago que o gerou e que o mantém. Nesta política, a espécie humana aparece considerada como sujeita a uma lei geral de desenvolvimento, a qual é susceptível de ser determinada pela observação, e que delimita, para cada época, de maneira menos equívoca, a ação política a exercer então. A arbitrariedade cessa necessariamente. A administração das coisas sucede ao governo dos homens. Haverá então leis, na verdadeira acepção filosófica e política, aquela que teve expressão nos livros do ilustre Montesquieu. Qualquer que seja a forma do governo, examinado até ao pormenor, o arbitrário já nem pode aparecer, pelo menos quanto ao fundo. Em política positiva tudo está fixado, segundo uma lei verdadeiramente soberana, reconhecida como suprema, superior a todas as forças humanas, visto que ela deriva, em última análise, da natureza da nossa organização, à qual não é possível levar uma transformação profunda. Numa palavra, esta lei exclui, com a mesma eficácia, tanto o arbítrio teológico, ou direito divino dos reis, como o arbítrio metafísico, ou soberania do povo. Se alguns espíritos pudessem ver, no império supremo de tal lei, uma variante do arbítrio existente, convidá-los-íamos a lamentarem-se também do despotismo inflexível exercido sobre toda a natureza pela lei da gravitação, e do despotismo não menos real, mais análogo, mais modificável, exercido pelas leis do organismo humano, leis de que a civilização é o último resultado. A aceitação do que precede conduz naturalmente a assinalar com exatidão os domínios respectivos da observação e da imaginação na política. Com esta determinação concluiremos o trabalho de delinear o espírito geral da nova política. Convém, efetivamente, distinguir duas ordens de trabalhos: uns, que compõem propriamente a ciência política, são relativos à transformação do sistema que convém à época atual; os outros se referem à sua propagação. Nos primeiros, é claro que a imaginação não representa um papel absolutamente subalterno, como nas outras ciências. Quanto ao estudo do passado, a imaginação pode e deve ser aplicada a inventar meios provisórios de ligar os fatos, esperando que as ligações definitivas resultem diretamente dos próprios fatos, fim que devemos ter sempre em vista. Tal emprego da imaginação deve incidir apenas sobre fatos de segunda ordem, para que não se torne evidentemente vicioso. Em segundo lugar, a determinação do sistema, segundo o qual a sociedade há de hoje reorganizar-se, deve ficar concluída quase totalmente pelos trabalhos de observação do passado. Este estudo determinará não somente o conjunto deste sistema, mas também as partes mais importantes, até um grau de precisão que há de causar espanto aos próprios sábios, quando meterem mãos à obra. E, todavia, certo que a precisão obtida por este método nunca poderá descer inteiramente até ao ponto em que o sistema possa ser facultado aos industriais, para que eles o ponham em prática segundo os seus conhecimentos, e conforme o plano indicado no capítulo precedente. Assim, e debaixo deste segundo aspecto, a imaginação poderá intervir, uma vez mais, na política científica, onde exercerá uma função secundária, a qual consistirá em levar até ao grau de precisão necessária o esboço do novo sistema, cuja observação terá determinado o plano geral e os traços característicos. Mas há outro gênero de trabalhos, igualmente indispensáveis ao sucesso definitivo do grande empreendimento de reorganização social, se bem que subordinados aos precedentes, e nos quais a imaginação reencontra o seu livre e pleno exercício. Na determinação do novo sistema, será necessário fazer abstração das vantagens ou dos inconvenientes deste sistema. A questão principal, a questão única, deverá ser: Qual será, segundo a observação do passado, o sistema social destinado a ser estabelecido pela marcha da civilização? Perguntar se o sistema será bom ou mau, ou dar preferência a esta questão seria confundir tudo e faltar necessariamente ao propósito. Teremos de nos habituar a conceber que, em tese geral, a ideia positiva de bondade e a de conformidade com o estado da civilização, se confundiam na origem, para termos a certeza de que, ao procurar qual é mais conforme com o estado da civilização, queremos dizer qual é o sistema mais praticável nos dias de hoje. Como a ideia de bondade não é por si positiva, e só poderá ser positiva na relação com a segunda, é portanto a esta que devemos atender unicamente como fim direto das nossas pesquisas, para que a política seja verdadeiramente positiva. A indicação das vantagens do novo sistema, da sua prosperidade sobre os precedentes quanto a esse aspecto, é uma consideração meramente secundária, sem influência alguma sobre o andamento dos trabalhos. É incontestável que, procedendo de tal maneira, teremos a certeza de fundar uma política verdadeiramente positiva, e verdadeiramente de harmonia com as grandes exigências da sociedade. Mas, se tal é o espírito com que será determinado o novo sistema - espírito que exclui os juízos de bem e mal -, também claro que não deve ser por essa forma que haveremos de apresentá-lo à sociedade para conseguir a sua adoção definitiva, porque tal forma está muito longe de ser a mais própria para obter a persuasão e a adesão dos espíritos inferiores. Para que um novo sistema social se estabeleça, não basta que ele haja sido convenientemente concebido; é indispensável também que a massa se apaixone por ele, a fim de constituí-lo. Esta condição não é somente indispensável para vencer as resistências mais ou menos fortes que este sistema deve encontrar nas classes decadentes. Ele é sobretudo indispensável para satisfazer a necessidade moral de exaltação, inerente ao homem, quando ele entra numa nova carreira; sem esta exaltação, nunca ele poderia vencer a sua inércia natural, nem sacudir o jugo tão poderoso dos velhos hábitos, o que, todavia, é necessário para deixar a todas as suas faculdades, que vão ser novamente aplicadas, um livre e pleno desenvolvimento. Tal necessidade, que se mostra sempre nos casos menos complicados, não poderia deixar de se apresentar nas transformações mais completas e mais importantes, que são aquelas que hão de modificar mais profundamente a existência humana. Tanto é assim que roda a história depõe a favor desta verdade. Posto isto, será claro que a maneira pela qual o novo sistema poderá e deverá ser conhecido e apresentado pela política científica não é a maneira própria e direta para satisfazer a condição indispensável da propaganda. Ninguém apaixonará jamais a massa humana a favor de um sistema qualquer, com o trabalho de lhe provar que é aquele que a civilização, desde a origem da sua marcha, preparou o estabelecimento atual, aquele que vai ser chamado a dirigir a sociedade. Verdade tão alta está ao alcance de reduzida minoria de espíritos livres, e exige-lhes até uma sequência demasiado longa de operações intelectuais; não é verdade capaz de excitar ou produzir a paixão ardente. Ela produzirá, sim, no espírito dos sábios, a convicção profunda e tenaz, que resulta necessariamente das demonstrações positivas; será portanto mais resistente, mas por isso mesmo menos operativa, do que a persuasão, a qual atua pelas ideias que movem as paixões contagiosas e eficazes. O único meio de obter este último efeito consiste em apresentar aos homens o quadro imaginado e animado dos melhoramentos que o novo sistema poderá trazer à condição humana, descrevê-lo sob diferentes pontos de vista, sem considerações acerca da necessidade e da oportunidade respectivas. Desta perspectiva, e só dela, será possível determinar os homens a tomarem a iniciativa daquela revolução moral que é a condição necessária para que o novo sistema possa ser estabelecido. Só a perspectiva moral poderá reprimir o egoísmo, tornado predominante nos tempos de dissolução do antigo sistema, vício que será também o grande obstáculo que há de opor-se ao sistema novo, quando as ideias já estiverem esclarecidas pelos trabalhos científicos. Só aquela perspectiva pode, enfim, retirar a sociedade da apatia em que se encontra, e imprimir-lhe, de repente e em conjunto, aquela atividade que deverá ser permanente numa ordem social que há de estimular a ação contínua de todas as faculdades do homem. Eis, pois, uma ordem de trabalhos na qual a imaginação deverá representar um papel preponderante. A sua ação será isenta de qualquer inconveniente, visto que há de exercer-se sob direção estabelecida pelos trabalhos científicos, visto também que há de ter por fim, não a invenção do novo sistema a constituir, mas a adoção que terá sido determinada pela política positiva: Lançada para este campo, a imaginação poderá ficar entregue a si própria. Quanto mais a sua atitude for livre ou franca, tanto mais será completa e salutar a ação indispensável que ela deverá exercer. Tal é a parte especial reservada para as belas-artes, no empreendimento geral da reorganização social. Deste modo concorrerão para tão vasto empreendimento rodas as forças positivas; a dos sábios, para determinar o plano do novo sistema; a dos artistas, para provocar a adoção universal deste plano; a dos industriais, para pôr o sistema em atividade imediata, mediante o estabelecimento das instituições práticas necessárias. Estas três grandes forças hão de combinar-se entre elas para constituição do novo sistema, como também para a respectiva aplicação diária, logo que ele estiver formado. Assim, em última análise, a política positiva investiu a observação na supremacia concedida à imaginação pela política conjectural, na determinação do sistema social conveniente para a época atual, Mas, ao mesmo tempo, ela confia à imaginação um novo papel, muito superior, hoje, àquele que ela teve na política teológica e metafísica, onde, se bem que soberano, ele esmorece desde que a espécie humana se aproximou do estado positivo, num círculo de ideias usadas e de quadros monótonos. Após ter esquissado o espírito geral da política positiva, é útil ver de relance quais foram as principais tentativas feitas até este momento na intenção de levar, ou elevar, a política ao plano das ciências de observação. Desse pensamento resultará a dupla vantagem de constatar, pelo fato, a maturidade de tal empreendimento, e também de esclarecer melhor o espírito da nova política, ao apresentá-lo debaixo de pontos de vista inteiramente distintos ou que ficaram precedentemente indicados. É a Montesquieu que deve ser referido o primeiro esforço direto para tratar a política como uma ciência de fatos e não de dogmas. Tal foi, evidentemente, a verdadeira intenção do Espírito das Leis, a qual aparecerá brilhante aos olhos de quem compreender esse livro. O admirável começo no qual a ideia geral da lei é apresentada, pela primeira vez, de uma maneira verdadeiramente filosófica, bastaria para convencer o leitor de qual foi o principal desígnio. É claro que Montesquieu propôs-se essencialmente relacionar, tanto quanto possível, sob certo número de títulos, ou capítulos, principais, todos os fatos políticos de que ele tivera conhecimento, mas também encadeá-los evidentemente segundo certas leis de desenvolvimento. Se tivéssemos o propósito de apreciar o mérito do trabalho seria racional julgá-lo tendo em atenção a época em que foi condicionado e realizado. Ver-se-ia imediatamente que ele demonstra, e da maneira mais formal, a superioridade de Montesquieu sobre todos os contemporâneos. Tornar-se independente do juízo crítico que exercia, naquele tempo, o império mais despótico, até sobre os espíritos fortes; ter visto profundamente o vazio da política metafísica e absoluta; ter sentido o desejo de lhe escapar, no momento em que ele atingia, nos escritos de Rousseau, a sua forma definitiva; tais são as provas decisivas desta superioridade. Mas, apesar da capacidade de primeira ordem de que Montesquieu deu provas, e que há de ser cada vez mais apreciada, é evidente que os trabalhos deste pensador ficaram ainda muito longe de ter elevado a política ao plano das ciências positivas. É que eles de forma nenhuma satisfizeram as condições fundamentais que são indispensáveis para realizar esse trabalho ou alcançar esse fim, as quais já foram por nós expostas nas páginas antecedentes. Montesquieu não percebeu o grande fato geral que domina todos os fenômenos políticos, o verdadeiro gerador e regulador, o desenvolvimento natural da civilização. Da falta resultou que as ideias gerais, que lhe serviram para ligar ou relacionar os fatos, não foram positivas; e ficaram assim os resultados das suas pesquisas como um amontoado de observações e de apreciações, simples materiais a utilizar talvez para a formação da política positiva. Montesquieu desenvolveu esforços evidentes para se libertar da metafísica, mas, apesar deles, não o conseguiu, e foi da metafísica, incontestavelmente, que deduziu a sua concepção principal. Esta concepção tem o duplo defeito de ser dogmática em vez de ser histórica, quer dizer, de não ter prestado atenção à sucessão necessária dos diversos estados políticos; quer dizer também que atribuiu importância exagerada a uma questão secundária, que é a forma de governo. Assim, o papel preponderante que Montesquieu distribuiu a esta ideia foi puramente de imaginação, e em contradição com o conjunto das observações já conhecidas e comuns. Numa palavra, os fatos políticos não foram autenticamente ligados por Montesquieu, do modo por que o devem ser em toda a ciência positiva. Não foram mais do que comparados e aproximados numa visão hipotética contrária, na maior parte das vezes, às relações verdadeiramente reais. A única parte importante dos trabalhos teóricos de Montesquieu que haja sido escrita numa direção positiva é a que tem por objeto determinar a influência política das circunstâncias físicas locais, que atuam de um modo contínuo, e cujo conjunto não pode ser designado pela palavra clima. Mas é fácil ver que, até mesmo a este respeito, as ideias produzidas por Montesquieu não podem ser utilizadas, senão depois de terem sido totalmente refundidas, porque sofrem do vício geral que caracteriza a sua maneira de proceder. Está hoje efetivamente reconhecido por todos os observadores que Montesquieu exagerou, em muitos aspectos, a influência do clima. Era inevitável. Não há dúvida de que o clima exerce uma ação muito real e muito importante sobre os fenômenos políticos, que convém conhecer. Mas tal ação é apenas indireta e secundária. Limita-se a acelerar ou a retardar, até certo ponto, a marcha natural da civilização, a qual não pode ser desviada por estas modificações. Esta marcha não pode ser muito alterada pelos climas, porque obedece a leis mais gerais, as da organização humana, que são essencialmente uniformes nas diversas localidades. Visto que a influência do clima sobre os fenômenos políticos não é tal que os modifique a ponto de lhes alterar a marcha natural que lhes é imposta pela civilização, que conserva o seu caráter de lei suprema, é agora claro que tal influência não poderia ser analisada de fato e convenientemente apreciada senão após a determinação daquela lei. Se, pelo contrário, quiséssemos considerar a causa indireta e subordinada antes da causa direta e principal, tal infração à natureza do espírito humano teria por consequência inevitável dar uma ideia absolutamente falsa da influência da primeira, ao confundi-la com a influência da segunda. Tal foi o que aconteceu a Montesquieu. A reflexão precedente sobre a influência do clima é, evidentemente, aplicável à de todas e quaisquer outras causas que possam modificar a velocidade da marcha da civilização, sem alterar o que é essencial. Esta influência não poderá ser determinada com exatidão senão quando estiverem perfeitamente estabelecidas as leis naturais da civilização, e enunciadas independentemente de quaisquer modificações. Os astrônomos começaram por estudar as leis dos movimentos planetários, independentemente de quaisquer perturbações. Depois de descobrirem as leis principais, observavam as modificações, as quais puderam ser determinadas com o princípio que já estava estabelecido quanto ao movimento principal. Se começassem por prestar demasiada atenção às irregularidades, e com elas se preocupassem na origem da ciência, os astrônomos nunca chegariam a formar e a formular uma teoria exata e coerente. Acontece absolutamente o mesmo no caso presente, que é a elaboração da ciência política. A insuficiência da ciência política de Montesquieu verifica-se praticamente nas suas aplicações às exigências da sociedade. A necessidade de uma reorganização social nos países mais civilizados era já tão premente na época de Montesquieu como está sendo em nossos dias. Porque o sistema feudal e teológico estava já destruído nas suas bases fundamentais. Depois, os acontecimentos que foram surgindo não formaram mais do que o desenvolvimento, ou o descobrimento, da necessidade, cada vez mais sensível, urgente e imperiosa de reorganizar a sociedade, pela completa destruição do antigo sistema. De notar é porém que Montesquieu não escreveu os seus trabalhos em obediência a uma finalidade prática, à intenção de conceber um novo sistema social. Como ele não havia ligado os fatos políticos numa teoria própria a pôr em evidência a necessidade de um sistema político para o estado novo que a sociedade havia alcançado no seu tempo, nem elaborou uma doutrina própria para determinar o caráter geral desse sistema, não pôde mais do que limitar-se, e efetivamente limitou-se, a minúcias de ordem prática, propor aperfeiçoamentos de pormenor, de acordo com a experiência, mas que não passavam de simples modificações, mais ou menos importantes, do antigo sistema teológico e feudal. Montesquieu deu-nos assim um sagaz exemplo de prudência, ao dispor as suas ideias práticas nos limites que lhe foram impostos pelos fatos, fatos que estudou imperfeitamente; ser-lhe-ia fácil, pelo contrário, proceder como outros fizeram, inventando utopias. Ao mesmo tempo acusou, de maneira decisiva, a insuficiência de uma teoria que não era susceptível de corresponder às exigências essenciais da doutrina prática. Assim, em resumo, Montesquieu sentiu a necessidade de fundar a ciência política a exemplo das ciências de observação; mas não se deu ao trabalho prévio de estudar a metodologia que confere a estas ciências a sua característica geral. As pesquisas do ilustre escritor nem por isso deixaram de ter a maior importância. Facultaram ao espírito humano os meios de combinar as ideias políticas, pois apresentaram-lhe uma grande massa de fatos agrupados numa teoria que, ainda muito afastada do estado positivo, já se aproximava dele, em progresso sobre todas as teorias precedentes. A concepção geral do trabalho próprio a elevar a política ao plano das ciências de observação foi descoberta por Condorcet. Este homem foi o primeiro a ver que a civilização se encontra submetida àquela marcha progressiva de passos rigorosamente sequentes e ordenados por leis naturais, de modo que a observação filosófica do passado nos pode revelar leis que determinam, para cada época, e de uma maneira inteiramente positiva, aqueles aperfeiçoamentos que o estado social tem de experimentar, quer nas partes quer no todo. Condorcet concebeu assim o meio de conferir à política uma verdadeira teoria positiva, mas não fez só isso; tentou estabelecer esta teoria ao elaborar o livro intitulado Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano, obra que só pelo título e pela introdução bastaria para assegurar ao autor a honra eterna de haver criado tão grande ideia filosófica. Se este descobrimento capital foi até agora absolutamente estéril, se dele não resultou ainda qualquer causação, se ninguém ousou caminhar na linha indicada por Condorcet, se, numa palavra, a política não chegou a ser positiva devemos explicar o insucesso, atribuindo-o, em grande parte, ao fato de que o esboço traçado por Condorcet foi executado segundo um método absolutamente contrário à finalidade do trabalho. O escritor ignorou as condições essenciais de execução, pelo que o trabalho está para refundir na totalidade. É isto que importa estabelecer. Em primeiro lugar, a distribuição das épocas é, em trabalho desta natureza, a parte mais importante do plano; ou melhor, constitui por si própria o plano, a considerar na sua maior generalidade, porque ela fixa o modo principal de coordenação dos fatos observados. Ora a distribuição adotada por Condorcet era absolutamente viciosa, absolutamente porque não satisfazia sequer à condição mais palpável, a de apresentar uma série homogênea. Vê-se que Condorcet nem sequer sentiu a importância de uma gradação filosófica das épocas da civilização. Não viu que esta disposição deve ser, em si própria, objeto do primeiro trabalho geral, o qual é, efetivamente, o mais difícil entre quantos se prestam à formação da política positiva. Ele julgou que tomando um acontecimento notável, ora industrial, ora científico, ora político, para determinar a origem de cada época, poderia coordenar convenientemente os fatos que ia colhendo como que por acaso. Ao proceder assim, imitava os historiadores mais ou menos literatos, de cujo círculo fazia parte. Era-lhe impossível formar uma verdadeira teoria, quer dizer, pensar e estabelecer entre os fatos um encadeamento real e objetivo, porque os traços de união que deviam servir para a inteligência estavam também separados uns dos outros. Os naturalistas, sendo de todos os sábios aqueles que formam as classificações mais extensas e mais difíceis, foram também aqueles que dominaram o método geral e que o aperfeiçoaram. O princípio fundamental deste método ficou estabelecido desde que existem, em botânica e em zoologia, classificações filosóficas, quer dizer, fundadas sobre relações reais, e não sobre aproximações fictícias. O método consiste em que a ordem de generalidade dos diferentes graus da divisão seja, tanto quanto possível, exatamente conforme com a ordem das relações observadas entre os fenômenos a classificar. Desta maneira, a hierarquia das famílias, dos gêneros, etc., não é mais do que o enunciado de uma série coordenada de fatos gerais, repartidos entre diferentes ordens de sequências, cada vez mais particulares. Numa palavra, a classificação não é mais do que a expressão filosófica da ciência, no momento do seu progresso. Conhecer a classificação é conhecer a ciência, ou, pelo menos, conhecê-la na parte mais importante. Este princípio é aplicável a uma ciência qualquer. Assim, como a ciência política se constituiu na época em que ele foi descoberto, aplicado e solidamente verificado, deve ela extrair o máximo proveito desta ideia filosófica mas proveniente de outras ciências, isto é, tomá-la por guia na distribuição das diversas idades da civilização. Os motivos que nos levam a dispor, na história geral da espécie humana, as diferentes épocas da civilização, atendendo às respectivas relações naturais, são absolutamente semelhantes àqueles a que os naturalistas obedecem quando dispõem segundo a mesma lei as organizações animais e vegetais. A diferença está apenas em que os naturalistas ainda têm mais força do que os historiadores. Se uma boa coordenação dos fatos é muito importante em qualquer ciência, como dissemos, muito mais o será na ciência política, onde a coordenação é tudo, porque, na falta desta condição, falhará inteiramente, não alcançará o seu fim prático. A finalidade da política é, como sabemos, determinar, pela observação do passado, o futuro sistema social que a marcha presente da civilização tende a elabora. Ora, esta determinação não pode resultar senão de uma coordenação dos fatos anteriores que seja capaz de fazer ressaltar a própria lei da marcha da civilização. É claro, portanto, que os fatos políticos, por muito importantes que possam ser, só alcançam real valor prático quando classificados e coordenados devidamente, enquanto nas outras ciências, mais elaboradas, o conhecimento dos fatos é, por si só, e na maior parte das vezes, de primeira utilidade, independente do lugar teórico que lhe está reservado. Assim, as diversas épocas da civilização, em vez de serem distribuídas sem ordem, ao acaso dos acontecimentos mais importantes - como praticou Condorcet - devem ser dispostas segundo aquele princípio filosófico que já foi reconhecido por todos os sábios como o que deve presidir a todas as classificações. A divisão principal das épocas deve representar o quadro geral da história da civilização. As divisões secundárias, até ao grau que seja conveniente descer, também devem oferecer sucessivamente retículos cada vez mais precisos da mesma história. Numa palavra, o quadro das épocas deve ser traçado de maneira capaz de apresentar, por si só, a expressão resumida do conjunto do trabalho humano. Faltando a este preceito, ter-se-á realizado um esforço meramente provisório, como o de acumular materiais, pois ainda que executado até à perfeição não terá outro valor. Dizer que a divisão não pode ser improvisada é já dizer muito; mas diremos também que, por mais elevado que seja o seu grau de generalidade, tal divisão não poderá resultar senão de um primeiro esboço de quadro, senão de um primeiro relance sobre a história geral da civilização. Sem dúvida, por muito importante, por muito indispensável que seja para a formação da política positiva, esta maneira de proceder, ela seria impraticável e teríamos de nos resignar a fazer primeiro um trabalho simplesmente provisório, se não encontrássemos esse trabalho já suficientemente preparado. Mas as histórias que foram escritas até estes dias, e sobretudo aquelas que foram publicadas há cerca de meio século, apresentam aproximadamente o equivalente de tal coleção preliminar de materiais, pelo que se encontram longe de ter sido concebidas segundo o espírito que convém. Já é tempo de nos ocuparmos diretamente de uma coordenação definitiva. Apresentei no capítulo precedente, mas somente sob o aspecto espiritual, um esboço geral do que me parece satisfazer as condições acima exigidas para a divisão principal do passado. Foi o resultado do nosso primeiro estudo filosófico sobre o conjunto de história da civilização. Creio que esta história pode ser dividida em três grandes épocas, ou estados de civilização, dotadas de características perfeitamente distintas, quanto ao temporal, como ao espiritual. Elas abrangem toda a civilização, considerada esta tanto nos seus elementos como no seu composto, o que é evidentemente, conforme foi dito e explicado, uma condição indispensável. A primeira é a época teológica e militar. Neste estado da sociedade, todas as ideias teóricas, tanto as gerais como as particulares, são ideias de ordem puramente sobrenatural. A imaginação domina franca e completamente sobre a observação, à qual é interdito todo o direito de livre exame. Nessa ordem, todas as relações sociais, quer gerais quer particulares, são franca e completamente militares. A atividade única e permanente da sociedade tem por fim a conquista. Não há indústria, fora daquela que é indispensável para a existência da espécie humana. Escravidão pura e simples dos produtores, tal é a principal instituição. Tal foi o primeiro grande sistema social que a marcha natural da civilização produziu. Surgiu elementarmente, a partir da primeira formação das sociedades regulares e permanentes. Desenvolveu-se e estabeleceu-se conjuntamente após uma longa série de gerações. A segunda época é a época metafísica e legista. O seu caráter geral é o de não possuir limites bem traçados. É intermediária e bastarda, opera uma transição. Sob o ponto de vista espiritual, já foi caracterizada no capítulo precedente. A observação está sempre dominada pela imaginação, mas, dentro de certos limites, a primeira é admitida a modificar a segunda; tais limites foram gradualmente alargados, até que a observação conquista enfim o direito de exame sobre todos os pontos. Ela obtém este direito, primeiramente sobre todas as ideias teóricas particulares, e, pouco a pouco, em consequência da aplicação, acaba por adquiri-Ia também sobre as ideias teóricas gerais, no termo natural da transição. É o tempo da crítica e da argumentação. Sob o ponto de vista temporal, a indústria adquiriu maior extensão, sem chegar a ser predominante. Correlativamente, a sociedade vai deixando de ser francamente militar, mas ainda não é francamente industrial, quer nos seus elementos quer no seu conjunto. As relações sociais particulares são modificadas. A escravidão individual já não é direta; o produtor, ainda escravo, começa a obter do militar mais alguns direitos. A indústria faz novos progressos os quais terminarão pela abolição total da escravidão individual. Após esta libertação, ficam ainda os produtores submetidos ao arbitrário coletivo. Todavia, as relações sociais gerais começam também a modificar-se. Os dois fins de atividade, a conquista e a produção, começam a defrontar-se. A indústria começa então a ser respeitada e protegida na medida em que parece ser um meio militar. Mais tarde a sua importância aumenta, e a guerra começa a ser concebida, por sua vez, e sistematicamente, como meio de favorecer a indústria; assim finda o último estado deste regime intermediário. Enfim, a terceira época é a época científica e industrial. Todas as ideias teóricas particulares se tornaram positivas, e as ideias gerais tendem para o mesmo estado. A observação dominou a imaginação, quanto as primeiras, e destronou-a, quanto às segundas, mas ainda não substituiu a sua rival. No temporal, a indústria tornou-se preponderante. Todas as relações particulares se estabeleceram pelo molde ou sobre a base das relações industriais. A sociedade, em seu aspecto coletivo, tende a organizar-se da mesma maneira, já que toma por fim único e permanente da sua atividade o aumento da produção. Numa palavra, esta última época foi já cumprida, quanto aos seus elementos, e está pronta a começar outra, quanto ao conjunto. O seu ponto de partida data da introdução direta das ciências positivas na Europa pelos Árabes, e pela libertação das comunas, o que data aproximadamente do século onze. Para evitar toda e qualquer obscuridade na aplicação deste esboço geral, nunca se deve deixar perder de vista que a civilização teve de marchar, pelos elementos espirituais e temporais do estado social, antes de fazê-lo relativamente ao conjunto. De aqui se deduz que as três grandes épocas sucessivas começaram necessariamente mais cedo no que diz respeito aos elementos do que no que diz respeito ao conjunto, doutrina que poderia ocasionar qualquer confusão se não estivéssemos já avisados desta distinção inevitável. Tais são, pois, os caracteres principais das três épocas pelas quais poderemos repartir toda a história da civilização, desde o tempo em que o estado social começou a tomar verdadeira consistência, até ao presente. Ouso propor aos sábios esta primeira divisão do passado, porque ela me parece cumprir as grandes condições de uma boa classificação do conjunto dos fatos políticos. Se ela for adotada, haverá de lhe conferir pelo menos uma subdivisão, para que seja possível executar convenientemente um primeiro esboço do grande quadro histórico. A divisão principal facilitará o descobrimento das outras divisões que lhe hão de ser submetidas porque lhe faculta os meios de considerar os fenômenos de um modo que seja ao mesmo tempo geral e positivo. É também claro que, segundo o princípio geral das classificações, estas subdivisões deverão ser inteiramente concebidas no mesmo espírito da divisão principal, e não apresentar mais do que um simples desenvolvimento. Após ter examinado o trabalho de Condorcet, quanto à distribuição das épocas, é necessário encará-lo em relação com o espírito que presidiu à sua execução. Condorcet não viu que o primeiro efeito direto de um trabalho para a formação da política positiva deveria ser, de toda a necessidade, fazer desaparecer irrevogavelmente a filosofia crítica do século dezoito, voltando-lhe as costas e aplicando todos os esforços dos pensadores para a reorganização da sociedade, que era a finalidade prática do seu trabalho. Não viu, por consequência, que a condição preliminar e indispensável a satisfazer, para quem quisesse lançar-se a tão importante empreendimento, era a de eliminar, tanto quanto possível, os juízos e prejuízos críticos que aquela filosofia introduziu na maioria das cabeças pensantes. Em vez disso, deixou-se dominar cegamente por tais prejuízos, um dos quais foi o de condenar o passado em vez de estudá-lo; e, por conseguinte, o seu livro acabou por ser uma longa e cansativa declamação, da qual nem sequer resulta uma instrução real e positiva. A admiração e a improbação destes fenômenos devem ser banidas com igual severidade de toda a ciência positiva, porque cada preocupação deste gênero tem por efeito direto e inevitável impedir ou alterar o exame. Os astrônomos, os físicos, os químicos e os biologistas não elogiam nem vituperam os respectivos fenômenos; observam; o que não quer dizer que tais fenômenos não possam nem devam dar matéria imensa para considerações opostas e contraditórias, de que poderíamos citar muitos exemplos. Os sábios deixam cair, e com razão, tais efeitos à consideração dos artistas, porque a estes pertence o domínio das palavras, das frases e dos discursos. Na política deve acontecer, a tal respeito, o mesmo que acontece em relação às outras ciências. Diremos até que a prudente reserva é ainda mais necessária na ciência que nos parece ser a mais difícil de rodas, aquela que mais susceptível nos parece de ser alterada e adulterada pela crítica. A razão é que os fenômenos da ciência política despertam muito mais as paixões, que turvam a inteligência, do que os fenômenos das outras ciências, que nos deixam indiferentes. Assim concluímos que, deste exame resulta que o espírito crítico, aquele que arrastou irremediavelmente Condorcet, é um espírito diretamente contrário àquele que deve reinar na política científica, até mesmo no caso de estarem devidamente fundadas as acusações que recaem sobre o passado. Mas há mais. Sem dúvida, segundo uma anotação já feita neste capítulo, as combinações práticas dos homens de Estado nem sempre foram concebidas de maneira conveniente, e por vezes foram até dirigidas em sentido contrário ao da civilização. Para tornar mais precisa esta observação, diremos até que ela se cinge, em todos os casos, a que os homens de Estado se esforçaram para prolongar, para além do termo natural, a duração de doutrinas e de instituições que já não estavam de harmonia com o estado da civilização; mas tal erro dos homens políticos há de parecer muito desculpável a quem souber que, até hoje, não houve maneira positiva de reconhecê-lo e de o evitar. Mas transportar a sistemas inteiros de instituições e de ideias o que se pode dizer apenas de fatos secundários; mostrar, por exemplo, como tendo sempre sido um obstáculo à civilização o sistema feudal e reológico, cujo estabelecimento foi, pelo contrário, o maior progresso provisório da sociedade, já que ela realizou muitas conquistas definitivas à luz desse sistema; representar, durante uma longa sequência de séculos, as classes que estavam colocadas à frente do movimento geral como ocupadas a tramar uma conspiração permanente contra a espécie humana: tal espírito, tão absurdo no seu princípio como revoltante nas suas consequências, foi um resultado insensato da filosofia do século dezoito, a qual exerceu forte império a que nem um homem superior como Condorcet escapou, o que foi deplorável. Este absurdo, explicável pela impotência de ver em cada um dos estados sucessivos da marcha da civilização o sinal de um encadeamento natural, deixa os fatos fora da explicação racional. Assim, o trabalho de Condorcet se nos apresenta como uma contradição geral e contínua. Por um lado, proclamou altivamente que o estado de civilização no século dezoito era infinitamente superior, sob muitos pontos de vista, ao estado primitivo ou originário. Mas este progresso total não poderia deixar de ser mais do que a soma dos progressos parciais, feitos pela civilização em todos os estados intermediários precedentes. Por outro lado, ao examinar sucessivamente estes diversos estados, Condorcet apresenta-os, quase sempre, como tendo sido, nos tópicos essenciais, como tempos de retrogradação. Houve portanto um milagre perpétuo, e a marcha progressiva da civilização vem a ser um efeito sem causa. Um espírito absolutamente oposto àquele é o que deve dominar a verdadeira política positiva. As constituições e as doutrinas devem ser encaradas como rendo sido, em rodas as épocas, tão perfeitas como era possível no respectivo estado de civilização; o que não poderá ser de outra maneira, pelo menos durante algum tempo, visto e sabido que são necessariamente determinadas por esse estado. Acresce dizer que, no seu período de máximo vigor, tiveram sempre um caráter progressivo e em caso nenhum tiveram caráter retrógrado, porque elas nunca poderiam resistir à marcha da civilização, na qual iam haurir todas as suas forças. Somente, nas suas épocas de decadência, tiveram elas ordinariamente o caráter estacionário, o que se explica por si só, em parte pela repugnância perante a destruição, tão natural aos sistemas políticos como aos indivíduos, e em parte pela fase de infância em que a política tem estado até agora. Dever-se-á considerar da mesma maneira as paixões desenvolvidas ou descobertas nas mesmas épocas pelas classes dirigentes. Nos tempos da sua virilidade, as forças sociais preponderantes são necessariamente generosas, porque já não têm mais que adquirir e ainda não temem perder. É unicamente no momento quando a decadência começa a manifestar-se que elas se tornam egoístas, porque todos os seus esforços convergem para conservar um poder cujas bases já foram destruídas. Estas diversas observações estão evidentemente conformes com as leis da natureza humana, e só elas permitem explicar de maneira satisfatória os fenômenos políticos. Assim, em última análise, em lugar de ver no passado um tecido de monstruosidades, será melhor adotar como preceito geral o de ver a sociedade como tendo sido, na maior parte dos casos, tão bem dirigida quanto lhe permitia a natureza das coisas. Se alguns fatos particulares parecerem estar a contradizer este fato geral, será mais filosófico pensar em estabelecer, ou restabelecer, a ligação, do que proclamar, à primeira vista e sem sequente reflexão, a realidade de uma oposição. A razão é simples. Seria afastar-se totalmente da verdadeira subordinação científica pretender que um fato secundário e pouco frequente venha a prevalecer e a dominar sobre o fato mais importante. É, aliás, evidente que convém evitar, quanto possível, o exagero no uso desta ideia geral, como no de quaisquer outras ideias. É possível que venha a encontrar-se qualquer semelhança entre o espírito da política positiva, encarado sob este ponto de vista, e o famoso dogma teológico e metafísico do otimismo. A analogia é, no fundo, real. Mas há a diferença incomensurável que vai de um fato geral, mas observado, a uma ideia hipotética e puramente de invenção. A distância é ainda muito mais sensível nas consequências. O dogma teológico e metafísico, ao proclamar, de maneira absoluta, que tudo corre tão bem como pode ser, tende a fixar como estacionária a espécie humana, quando lhe nega ou retira qualquer perspectiva de aperfeiçoamento real. A ideia positiva de que, por duradouro tempo, a organização social é tão perfeita quanto o estado da civilização o permita na respectiva época, é uma ideia que, longe de travar o desejo de melhoramentos, pelo contrário, está sempre a imprimir-lhe uma tendência prática mais eficaz, porque vai dirigindo para a sua verdadeira finalidade, que é o aperfeiçoamento da civilização, aqueles esforços de que não resultariam efeitos se não tivessem sido dirigidos imediatamente para a organização social. Aliás, como nessa ideia positiva nada há de absoluto ou de místico, ela convida o homem a restabelecer a harmonia entre o regime político e o estado da civilização, quando tal relação necessária estiver momentaneamente quebrada. Limita-se a esclarecer esta operação, advertindo de que nessa ligação não se toma o efeito pela causa. É útil observar quanto a esta analogia que não é esta a única vez que a filosofia positiva se apropria, mediante uma transformação conveniente, de uma ideia geral primitivamente inventada pela filosofia teológica e metafísica. As verdadeiras ideias gerais nunca perdem a sua virtude como meios de raciocínio, por mais viciosas que sejam as suas companheiras no decurso. A marcha ordinária do espírito humano vai até ao ato de apropriá-las aos seus diferentes estados, transformando-lhes porém as características. Tal é o que pode ser verificado em todas as revoluções que fizeram passar para o estado positivo os vários ramos dos nossos conhecimentos. Assim, por exemplo, a doutrina mística da influência dos números, oriunda da escola pitagórica, foi pelos geômetras reduzida a esta ideia simples e positiva; os fenômenos pouco complicados são susceptíveis de serem reduzidos a leis matemáticas. Do mesmo modo, a doutrina das causas finais foi convertida pelos fisiologistas no princípio das condições de existência. As duas ideias positivas diferem, sem dúvida, extremamente das duas ideias teológicas e metafísicas. Mas estas não deixaram por isso de ter sido os germes das outras. Uma operação filosófica bem dirigida bastou para conferir caráter positivo a duas observações hipotéticas, produtos do gênio da razão humana, quando estava na infância. Esta transformação em nada alterou, e até aumentou, o valor delas como meio ou processo de raciocínio. As mesmas reflexões se aplicam exatamente às duas ideias políticas gerais, uma positiva, outra fictícia, que foram comparadas mais acima. Antes de deixar o exame do trabalho de Condorcet, convém deduzir um terceiro ponto de vista em que deve ser apresentado o espírito da política positiva. Condorcet foi muitas vezes acusado de ter concluído o seu trabalho com um quadro do porvir. Tal ousadia de concepção representa, afinal e pelo contrário, a única visão filosófica de alta importância que Condorcet introduziu na execução do seu trabalho, pelo que deverá ser conservada precisamente na nova história da civilização, de que tal quadro é evidentemente a conclusão natural. Somente do que nós poderemos, e com razão, condenar Condorcet não é o ter querido determinar o porvir, mas o erro de o haver mal determinado. A frustração resultou de que naquela obra o estudo do passado estava absolutamente viciado, pelos motivos já anteriormente indicados. Coordenando mal o passado, Condorcet não poderia prever o futuro. Sua insuficiência de observação obrigou-o a compor o futuro apenas com os elementos da sua imaginação; e, por consequência necessária, mal o concebeu. Mas este insucesso, cuja causa está vista, não prova que, com a ajuda de um passado bem coordenado, não seja possível determinar com segurança o aspecto geral do futuro social. Tal ideia, como a predeterminação ou a previsão, parece estranha porque não estamos ainda habituados a considerar a política uma verdadeira ciência. Quando elevarmos a política ao plano de ciência, a determinação do futuro pela observação filosófica do passado, há de parecer-nos, pelo contrário, uma ideia muito natural e muito aceitável, como aquela com que todos os homens estão familiarizados relativamente às outras classes de fenômenos. Toda a ciência tem por fim a previdência. Porque a aplicação geral das leis estabelecidas segundo a observação dos fenômenos tem por fim prever a respectiva sucessão. Na realidade, todos os homens, por pouco instruídos que os julguemos, fazem verdadeiras previsões, fundadas sempre sobre o mesmo princípio, o conhecimento do futuro pelo passado. Todos conseguem predizer os efeitos gerais da atração terrestre, e uma série de outros fenômenos, tão simples e tão frequentes, cuja ordem de sucessão se torna evidente até ao espectador menos capaz ou menos atento. A faculdade de previdência, em cada indivíduo, tem por medida a ciência. A previdência do astrônomo que prediz, com precisão perfeita, e com a antecedência de muitos anos, o estado do sistema solar, é uma previdência de natureza absolutamente igual à do selvagem capaz de predizer quando se levantará o Sol. A diferença depende apenas da extensão dos respectivos conhecimentos. Está, portanto, evidentemente muito conforme com a natureza do espírito humano que a observação do passado possa facultar a predição do futuro, e que o possa fazer tanto em política como em astronomia, em física, em química e em fisiologia. Tal determinação deve ser tida como o fim direto da ciência política, segundo o exemplo das outras ciências positivas. É claro, com efeito, que a fixação daquele sistema social para o qual a marcha da civilização apela hoje a elite da espécie humana, fixação que constitui o verdadeiro objeto prático da política positiva, não é mais do que uma determinação geral do próximo futuro social, tal como ele resulta do passado. Em resumo, Condorcet foi o primeiro a conceber a verdadeira natureza do trabalho geral que deve elevar a política ao primeiro plano das ciências de observação; mas executou-o dentro de um espírito absolutamente vicioso, quanto aos aspectos mais essenciais. Não foi atingida a verdadeira finalidade, nem quanto à teoria, nem quanto à prática. É por isso que esse trabalho terá de ser novamente concebido na totalidade, e segundo ideias verdadeiramente filosóficas, já que a tentativa de Condorcet não fez mais do que apontar a finalidade real da política científica. A fim de completar o exame sumário dos esforços praticados até agora para elevar a política ao plano das ciências positivas, há ainda que considerar duas outras tentativas, que não estão, como as duas precedentes, na verdadeira linha dos progressos do espírito humano em política, mas que todavia é útil assinalar. A necessidade de tornar positiva a ciência social é hoje tão real, tão grande empreendimento atingiu de tal modo a maturidade, que muitos espíritos superiores tentaram já alcançar esse fim ao tratar a política como uma aplicação das outras ciências já positivas, no domínio das quais imaginam poder fazê-la entrar. Como essas tentativas eram, por natureza, inexecutáveis, elas foram muito mais projetadas do que seguidas. Bastará, portanto, encará-las, do ponto de vista mais geral. A primeira consistiu nos esforços feitos por aplicar à ciência social a análise matemática em geral, e especialmente aquele dos seus ramos que se relaciona com o cálculo das probabilidades. Esta direção foi aberta por Condorcet, e seguida principalmente por ele. Outros geômetras marcharam sobre estes traços, e partilharam das mesmas esperanças, sem acrescentarem nada de verdadeiramente essencial aos seus trabalhos, pelo menos sob o ponto de vista filosófico. (Tal projeto, proveniente de Condorcet, prova, em conformidade com o exame precedente, que ele estava longe de ter concebido, de maneira nítida, a importância capital da história da civilização; porque, se ele tivesse visto claramente, na observação filosófica do passado, o meio de tornar positiva a ciência social, não o teria ido procurar alhures). Muitos concordaram em ver esta maneira de proceder como a única capaz de imprimir à política um caráter positivo. As considerações expostas neste capítulo parecem-me estabelecer suficientemente que tal condição não é de modo algum necessária para que a política chegue a ser uma ciência positiva. Mas há mais: esta maneira de encarar a ciência social é puramente quimérica, e, por conseguinte, inteiramente viciosa como será fácil reconhecer. Se fosse agora questão de exarar um juízo minucioso sobre os trabalhos deste gênero executados até hoje, em breve se verificaria que realmente eles não acrescentaram sequer uma noção de mínima importância à massa das ideias já adquiridas. Ver-se-ia, por exemplo, que os esforços dos geômetras, para elevarem o cálculo das probabilidades acima das suas aplicações naturais, não conseguiram senão, na sua parte mais essencial e mais positiva, apresentar, em relação à teoria da certeza, como termo de um longo e penoso trabalho algébrico, algumas proposições quase triviais, cuja justeza se percebe logo ao primeiro relance como uma perfeita evidência para todo o homem de bom senso. Mas devemos limitar-nos a examinar o empreendimento em si, e na sua máxima generalidade. Em primeiro lugar, as considerações sobre as quais vários fisiologistas, e sobretudo Bichat, demonstraram, em geral, a impossibilidade radical de fazer uma aplicação real e importante da análise matemática aos fenômenos dos corpos organizados, aplicam-se também, de maneira direta e especial, aos fenômenos morais e políticos, os quais não passam de casos particulares daqueles. Estas considerações estão fundadas sobre o seguinte: que a mais indispensável condição preliminar para que os fenômenos sejam susceptíveis de estar subordinados a leis matemáticas é a de que sejam fixos os seus graus de quantidade. Ora, em todos os fenômenos fisiológicos, cada efeito, parcial ou total, está submetido a imensas variações de quantidade, que se sucedem muito rapidamente, e de maneira inteiramente irregular, sob a influência de uma multidão de causas que não comportam estimação precisa. Esta extrema variabilidade é um dos fenômenos próprios aos corpos organizados; ele constitui uma das diferenças que mais os distinguem dos fenômenos próprios dos corpos brutos. Ela interdita evidentemente toda a esperança de alguma vez os submeter a cálculos verdadeiros, tais, como por exemplo, os dos fenômenos astronômicos, que são os mais indicados para servirem de tipo em comparações deste gênero. Posto isto, concebe-se facilmente que esta perpétua variabilidade de fatos, dependendo da excessiva complicação das causas que concorrem para produzi-los, deve ser a maior possível para os fenômenos morais e políticos da espécie humana, que formam a classe mais complicada dos fenômenos fisiológicos. Estes são, com efeito, entre todos, aqueles cujos graus de quantidade apresentam as variações mais extensas, mais múltiplas e mais irregulares. Quem tiver em devida conta estas considerações não hesitará, segundo creio, em afirmar, sem receio de fazer uma ideia demasiado fraca do alcance do espírito humano, que não somente no estado presente dos nossos conhecimentos, mas até no grau mais alto de aperfeiçoamento que eles possam algum dia atingir, toda a pretensão de aplicar em grande escala o cálculo à ciência social é, e será, necessariamente impossível. Em segundo lugar, e ainda que se pudesse supor que tal esperança possa um dia vir a ser realizável, seria incontestável que, para lá chegar, a ciência política deve antes de mais ser estudada de modo direto, quer dizer, ocupando-se unicamente a coordenar a série dos respectivos fenômenos. Com efeito, por mais alta importância que atribuamos à análise matemática, considerada nos aspectos teóricos e práticos a que se destina, não podemos perder de vista que ela não é mais do que uma ciência puramente instrumental, ou de método. Por si própria ela nada nos ensina de verdadeiramente real; mas passa a ser uma auxiliar fecunda de descobrimentos positivos, quando se aplica aos fenômenos observados. Na esfera dos fenômenos que permitem esta aplicação, ela nunca poderá proceder imediatamente. Ela supõe sempre, na ciência correspondente, um grau preliminar de cultura e de aperfeiçoamento, cujo termo natural é o conhecimento de leis precisas, mas desnudadas, descobertas ou desenvolvidas pela observação atenta à quantidade dos fenômenos. Logo que tais leis sejam enunciadas, ainda que imperfeitamente, torna-se possível e aplicável a análise matemática. É então que, pelos seus poderosos meios de dedução, ela permite reduzir estas leis a um pequeno número, por vezes a uma só lei, para englobar, da maneira mais precisa, a grande quantidade de fenômenos que pareciam não poder ser desse modo compreendidos. Numa palavra, ela introduz na ciência uma coordenação perfeita, que nunca poderia ser obtida no mesmo grau por qualquer outro intermediário. Mas é evidente que toda a aplicação da análise matemática, que seja tentada antes desta condição preliminar do desenvolvimento de certas leis calculáveis, será absolutamente ilusória. Longe de poder tornar positivo qualquer ramo dos nossos conhecimentos, não faria mais do que mergulhar o estudo da natureza no domínio da metafísica, porque iria deslocar para as abstrações a função exclusiva das observações. Assim, por exemplo, concebe-se que a análise matemática haja sido aplicada com grande sucesso à astronomia, quer geométrica quer mecânica, à óptica, à acústica e recentemente à teoria do calor, depois de os progressos da observação conduzirem estas diversas partes da física a estabelecer entre os fenômenos algumas leis precisas de quantidade; ao passo que, antes destas descobertas, tal aplicação não teria base real, nem ponto de partida. Ainda hoje, os estudiosos da química que acreditam fortemente na possibilidade de vir a ser aplicada, de modo tão amplo como positivo, a análise matemática aos fenômenos físicos, nem por isso cessam de estudá-los diretamente, convencidos como estão de que só uma longa série de pesquisas, de observações e de experiências poderá desenvolver as leis numéricas sobre as quais esta aplicação deve ser fundada real e verdadeiramente. A condição indispensável que acaba de ser indicada é tanto mais difícil de satisfazer, exige tal grau de cultura prévia e de aperfeiçoamento intelectual, quanto os fenômenos forem mais complicados nas ciências correspondentes. Foi assim que a astronomia se tornou, pelo menos na sua parte geométrica, um ramo das matemáticas aplicadas, antes da óptica, como esta antes da acústica, e como a teoria do calor em último lugar. Mas a química encontra-se hoje ainda muito longe desse estado, se é que alguma vez o poderá alcançar. A julgar, segundo estes princípios incontestáveis, a aplicação do cálculo aos fenômenos fisiológicos em geral, e aos fenômenos sociais da espécie humana em particular, ver-se-á antes de mais que, admitindo mesmo a possibilidade dessa aplicação, nunca seria dispensável o estudo direto dos fenômenos, estudo que ela prescreve, pelo contrário, como condição prévia. Além disso, se considerarmos atentamente a natureza desta condição, reconhecer-se-á que ela exige, na física dos corpos organizados em geral, e sobretudo na física social, um grau de aperfeiçoamento que, ainda que não fosse quimérico, nunca poderia ser dirigido senão após muitos séculos de cultura. O descobrimento de leis precisas e calculáveis, em fisiologia, representaria um acontecimento superior àquele que os fisiologistas imaginam quando concedem as mais amplas esperanças quanto aos destinos futuros da sua ciência. Na realidade, e segundo os motivos acima indicados, tal estado de perfeição deve ser tido como absolutamente quimérico, incompatível com a natureza dos fenômenos, e inteiramente desproporcionado com o alcance verdadeiro do espírito humano. As mesmas razões se aplicam, evidentemente, e ainda com mais força, à ciência política, visto ser maior o grau de complicação dos seus fenômenos. Imaginar que seria possível descobrir um dia algumas leis de quantidade entre os fenômenos desta ciência, seria supô-la aperfeiçoada a um grau tal que, mesmo antes de ter chegado a esse ponto, tudo o que ela tem de interessante para encontrar já estaria completamente alcançado, numa proporção que ultrapassa em muito todos os desejos que possamos razoavelmente formar. Assim, a análise matemática só seria aplicável na época em que a sua aplicação já não pudesse ter nenhuma aplicação real. Das considerações precedentes resulta, de um lado, que a natureza dos fenômenos políticos interdiz absolutamente toda a esperança de jamais lhes aplicar a análise matemática, e, do outro, que esta aplicação, a supor-se possível, nunca poderia servir para elevar a política ao plano das ciências positivas, visto que ela exigiria, para ser praticável, que a ciência já estivesse feita. Os geômetras não prestaram até agora suficiente atenção à grande divisão fundamental dos nossos conhecimentos positivos, divisão que incide na distinção entre o estudo dos corpos brutos e o dos corpos organizados. Esta divisão, que o espírito humano deve aos fisiologistas, está hoje estabelecida sobre bases inabaláveis, e confirma-se cada vez mais na medida em que vai sendo profundamente meditada. Ela limita, de maneira precisa e irrevogável, as verdadeiras aplicações das matemáticas, na sua maior extensão possível. Poderemos até estabelecer como princípio que jamais a análise matemática poderá alargar o seu domínio para além da física dos corpos brutos, ciência única em que os fenômenos oferecem tal grau de simplicidade, e, por consequência, de fixidez necessária, para poderem ser subordinados às leis numéricas. Se considerarmos que, até nas suas aplicações mais simples, a análise matemática começa a embaraçar-se quando se propõe aproximar suficientemente o estado abstrato do estado concreto, poderemos imaginar quanto aumenta tal embaraço à medida que os fenômenos se complicam, e concluir que a esfera das suas atribuições reais é mais exagerada do que minorada pelo princípio precedente. O projeto de tratar a ciência social como uma aplicação da ciência matemática, ou um ramo desta, a fim de conferir à política um caráter positivo, provém de um velho prejuízo metafísico, segundo o qual fora das matemáticas não pode haver certeza verdadeira nem perfeita justeza. Este prejuízo era natural na época em que tudo quanto estava positivo parecia ser do domínio das matemáticas aplicadas e, por contraste, permanecia vago ou conjectural tudo quanto lhes era exterior ou estrangeiro. Mas depois da época em que se formaram duas grandes ciências positivas, a química e a fisiologia, na constituição das quais a análise matemática é meramente subsidiária, sem que elas deixem por isso de ser reconhecidas como tão certas, exatas e rigorosas como as outras, tal preconceito não tem razão nem lugar de ser. Também não é na qualidade de aplicações da análise matemática que a astronomia, a óptica, etc., merecem ser classificadas entre as ciências positivas e exatas. Tal caráter provém delas próprias, resulta de elas terem sido fundadas sobre fatos observados, e não poderiam resultar de outra razão, porque a análise matemática, isolada da observação da natureza, não tem senão um caráter metafísico. É certo que nas ciências às quais não são aplicadas as matemáticas cumpre-nos não deixar perder de vista a estrita observação direta: as deduções não podem ser prolongadas com tanta segurança, porque os meios empíricos de raciocínio são muito menos perfeitos. Posta esta restrição, poderemos dizer que a certeza é igualmente completa em uma e outra ciência, desde que o processo se encerre em limites convenientes. Obtém-se, sem dúvida, uma coordenação menos simples, mas suficiente para as exigências reais das aplicações da ciência. A pesquisa quimérica de uma perfeição impossível não traria outro resultado que o de retardar necessariamente os progressos do espírito humano, gastar perdulariamente todas as forças intelectuais, desviar os esforços dos sábios que seguiram na verdadeira direção da eficácia positiva. Tal é o juízo definitivo que eu creio poder exarar acerca dos ensaios já feitos, ou a fazer, para aplicar a análise matemática à física social. Uma segunda tentativa, infinitamente menos viciosa, mas igualmente inexecutável, é aquela que teve por fim tornar positiva a ciência social, mediante a recondução ao estado de simples consequência direta da fisiologia. Cabanis é o autor desta concepção, e foi ele quem lhe obedeceu fielmente. A sua obra célebre sobre a Relação do físico e do moral no homem, tal como se apresenta aos olhos de quem considerar a doutrina geral neste trabalho como essencialmente orgânica, em vez de acidentalmente crítica, mostra claramente o alvo filosófico do autor. As considerações apresentadas neste capítulo sobre o espírito da política positiva provam, quanto a este ensaio e ao precedente, que a execução fora necessariamente mal concebida. Mas o que importa atualmente é indicar o vício com precisão. O vício consiste em que tal modo de proceder anula a observação direta do passado social, que deve servir de base fundamental para a política positiva. A superioridade do homem sobre os outros animais, não podendo ter, e não tendo, efetivamente, outra causa senão a perfeição relativa do seu organismo, leva-nos a pensar que o aperfeiçoamento da espécie humana deve ser tido, em última análise, como uma consequência necessária da sua organização, modificada, nos seus efeitos, pelo estado do exterior. Neste sentido, a física social, quer dizer, o estudo do desenvolvimento coletivo da espécie humana, é realmente um ramo da fisiologia, quer dizer, do estudo do homem, concebido em toda a sua extensão. Noutros termos, a história da civilização não é mais do que a continuação e o complemento indispensável da história natural do homem. Mas, tanto quanto importa bem conceber e nunca perder de vista esta incontestável filiação, tanto importa evitar o mal entendido de concluir que não se deva estabelecer divisão nítida entre a física social e a fisiologia propriamente dita. Os fisiologistas, quando estudam a história natural de uma espécie animal dotada de sociabilidade, por exemplo, a dos castores, também incluem, e com razão, a história da ação coletiva exercida pela comunidade. Não julgam necessário estabelecer uma linha de demarcação entre o estudo dos fenômenos sociais da espécie e o dos fenômenos relativos ao indivíduo isolado. Tal defeito de precisão neste caso não tem inconveniente real algum, se bem que sejam distintas as duas ordens de fenômenos. A civilização das espécies animais mais inteligentes aparece como travada quase nas suas origens, principalmente pela imperfeição da sua organização, e secundariamente pela preponderância da espécie humana; compreende-se, portanto, que o espírito do estudioso, perante um encadeamento tão pouco prolongado, não tenha dificuldade alguma em relacionar todos os fenômenos coletivos com os fenômenos individuais. Não existe então o critério geral que manda estabelecer divisões para facilitar os estudos, perante a impossibilidade que a inteligência humana tem de seguir uma cadeia de deduções demasiado extensa. Suponhamos, pelo contrário, a espécie dos castores tornada mais inteligente, que a sua civilização possa desenvolver-se livremente, de tal maneira que haja encadeamento contínuo no progresso de uma geração para outra, sentir-se-á logo a necessidade de tratar separadamente a história dos fenômenos sociais da espécie. Quanto às primeiras gerações, ainda poderemos relacionar o estado dos fenômenos sociais com o estado dos fenômenos do indivíduo; mas, à medida que nos formos afastando da origem, esta dedução tornar-se-á cada vez mais difícil, por fim, haverá impossibilidade de segui-Ia. É exatamente o que acontece, no mais alto grau, em relação ao homem. Sem dúvida, os fenômenos coletivos da espécie humana reconhecem por última causa, como os fenômenos individuais, a natureza especial da sua organização. Mas o estado da civilização humana a cada geração não depende imediatamente senão do estado da geração precedente, e não produz imediatamente senão o da seguinte. É possível seguir, com toda a precisão suficiente, este encadeamento, a partir da origem, ligando, de uma maneira direta, cada termo com o precedente e com o sequente. Seria, pelo contrário, absolutamente contrário às forças do nosso espírito, ligar um termo qualquer da série ao ponto primitivo de partida, isto é, suprimindo todas as relações intermediárias. A temeridade de uma empresa tal, no estudo da espécie, poderia ser comparada, no estudo do indivíduo, à de um fisiologista que, por considerar que os diversos fenômenos das idades sucessivas são unicamente a consequência e o desenvolvimento necessários da organização primitiva, se esforçasse por reduzir a história de uma época qualquer da vida do estudo do indivíduo ao nascimento, determinado com uma grande precisão, e se julgasse por isso dispensado de examinar diretamente as diversas idades para conhecer com exatidão o desenvolvimento total. O erro seria ainda muito maior, em relação à espécie, do que o seria quanto ao indivíduo; porque, no primeiro caso, os termos sucessivos a coordenar são ao mesmo tempo muito mais complicados e muito mais numerosos do que no segundo. Obstinado a prosseguir nesta marcha inviável, nunca se poderia estudar de maneira satisfatória a história da civilização, e, além disso, incorrer-se-ia no perigo de cair em erros palmares. Porque, na impossibilidade absoluta de ligar diretamente os diversos estados da civilização ao ponto de partida, primitivo e geral, estabelecido pela natureza especial do homem, ser-se-ia depressa induzido a fazer depender imediatamente de circunstâncias orgânicas secundárias o que é uma consequência afastada das leis fundamentais da organização. É assim, por exemplo, que vários fisiologistas notáveis foram levados a atribuir aos caracteres nacionais importância evidentemente exagerada na explicação dos fenômenos políticos. Atribuíram-lhes diferenças de povo para povo, diferenças que, em quase todos os casos, dependem de desiguais épocas de civilização. Disso resultou o efeito lamentável de considerar invariável o que é estável, mas apenas durante limitado tempo. Tais divisões, de que facilmente poderíamos multiplicar os exemplos, porque todas derivam do mesmo vício primitivo na maneira de proceder, confirmam claramente a necessidade de separar o estudo dos fenômenos sociais e o estudo dos fenômenos fisiológicos ordinários. Os geômetras que ascenderam ao plano das ideias filosóficas, concebem, em tese geral, todos os fenômenos do universo, tanto os dos corpos organizados como os dos corpos brutos, como dependentes de um pequeno número de leis comuns, imutáveis. Os fisiologistas observam a este respeito, e com razão, que, ainda que todas essas leis do universo venham um dia a ser perfeitamente conhecidas, haverá a impossibilidade de deduzi-las de maneira contínua, o que obrigaria a conservar, entre o estudo dos corpos vivos e o dos corpos inertes, a mesma divisão que está hoje fundada sobre a diversidade das leis. Um motivo exatamente semelhante aplica-se diretamente à divisão entre a física social e a fisiologia propriamente dita, ou seja, entre a fisiologia da espécie e a do indivíduo. Esta distância é, sem dúvida, muito menor; porque neste caso se trata de uma divisão secundária, ao passo que a outra é principal. Mas a impossibilidade de deduzir é essencialmente igual, se bem que seja diferente em grau. A insuficiência total desta maneira de proceder verifica-se facilmente se, em vez de considerá-la somente pela sua relação com a teoria da política positiva, a encararmos relativamente à finalidade prática atual desta ciência, a saber, a determinação do sistema segundo o qual a sociedade deve ser hoje reorganizada. Podemos, sem dúvida, estabelecer, segundo as leis fisiológicas, qual seja, em geral, o estado da civilização mais conforme com a natureza da espécie humana. Mas, segundo o que já foi exposto, é claro que por este meio não poderíamos ir muito mais além. Ora tal noção, isolada, seria matéria de pura especulação, e não poderia conduzir-nos, na prática, a qualquer resultado real e positivo. Porque ela não dispõe, de modo nenhum ao alcance do conhecimento de maneira positiva, o que pretendemos saber, e que é a que distância deste estado se encontra atualmente a espécie humana; nem nos diz qual o caminho por que ela deve seguir para alcançar esse estado; nem nos ensina o plano geral da organização social correspondente. Estas determinações, que são indispensáveis, não podem evidentemente resultar senão de um estudo direto da história da civilização. Se, apesar disso, quisermos esforçar-nos por dar uma existência prática a este esboço especulativo mas necessariamente incompleto, ser-nos-á difícil evitar a queda imediata no absoluto; pela razão de que se faz logo consistir toda a aplicação real da ciência na formação de um tipo invariável de perfeição vaga, sem nenhuma distinção de épocas, como se procede na política meramente conjetural. As condições segundo as quais a excelência deste tipo se encontra fixada são certamente de uma ordem muito mais positiva do que aquelas que servem de guia à política teológica e metafísica. Mas esta modificação não altera o caráter absoluto que é inerente a tal questão, seja qual for o sentido em que venha a ser formulada. A política nunca poderia assim tornar-se verdadeiramente positiva por esta maneira de proceder. Assim, quer do ponto de vista teórico quer do ponto de vista prático, é igualmente vicioso conceber a ciência social como mera consequência da fisiologia. A verdadeira relação direta entre o conhecimento da organização humana e a ciência política, tal como este capítulo a caracterizou, consiste em que a primeira deve facultar à segunda apenas o seu ponto de partida. É à fisiologia que pertence exclusivamente estabelecer, de maneira positiva, as causas que tornam a espécie humana susceptível de uma civilização constantemente progressiva, pelo menos enquanto o estado do planeta que ele habita não lhe opuser um obstáculo insuperável. Só a fisiologia nos poderá traçar o verdadeiro caráter e a marcha geral necessária para esta civilização. Enfim, só ela permite esclarecer a formação das primeiras agregações humanas, e escrever a história da nossa espécie desde a infância até à época em que ela chegou a dar o impulso maior à sua civilização, pela criação da linguagem. Neste termo se detém naturalmente o papel das considerações fisiológicas diretas para a física social, a qual deve então ser unicamente fundada sobre a observação imediata dos progressos da espécie humana. Avançando, tornar-se-á muito maior a dificuldade de deduzir, porque, a partir desta época, a marcha da civilização acelera-se notavelmente, e os termos que convém coordenar multiplicam-se bruscamente. Por outro lado, as funções que a fisiologia deve exercer no estudo do passado social já não figuram como indispensáveis; a fisiologia já não é útil e nem tem por fim suprir a falta de observações diretas. Porque, a partir do momento em que se estabelece uma língua, começam a existir dados imediatos para o estudo do desenvolvimento da civilização, de maneira que já não existe lacuna no conjunto das considerações. Convém acrescentar ao que precede, para obter uma visão completa da verdadeira função da fisiologia na física social, que, como foi muito bem pressentido por Condorcet, o desenvolvimento da espécie, não sendo senão a resultante dos desenvolvimentos individuais, que se encadeiam de uma geração para outra, deve necessariamente apresentar traços gerais de conformidade com a história natural do indivíduo. Por esta analogia, o estudo do homem isolado fornece ainda certos meios de verificação e de raciocínio para o estudo da espécie, distintos daqueles que acabam de ser indicados, e que, se bem que menos importantes, têm a vantagem de se alargar a todas as épocas. Em resumo, se bem que a fisiologia da espécie e a do indivíduo sejam duas ciências absolutamente da mesma ordem, ou antes, duas posições distintas de uma ciência única, nem por isso deixa de ser indispensável concebê-las e tratá-las separadamente. Importa que a primeira tome a sua base e o seu ponto de partida na segunda, para ser verdadeiramente positiva. Mas, depois, deverá ela ser estudada de maneira isolada, apoiando-se sobre a observação direta dos fenômenos sociais. Era natural que se procurasse fazer entrar inteiramente a física social no domínio da fisiologia, porque não se via outro meio de lhe imprimir caráter positivo. Mas este erro já hoje não seria desculpável, pois é fácil ao estudioso convencer-se da possibilidade de tornar positiva a ciência política, fundando-a sobre a observação imediata do passado social. Em segundo lugar, no momento em que o estudo das funções intelectuais e afetivas saiu do domínio da metafísica, para entrar no da fisiologia, era muito difícil evitar qualquer exagero na delimitação da verdadeira esfera fisiológica sem nela compreender também o exame dos fenômenos sociais. A época das conquistas não pode ainda ser a dos limites precisos. Assim Cabanis, que foi um dos principais cooperadores desta grande revolução, nos parece particularmente desculpável de ter tido a este respeito algumas ilusões. Mas hoje, que uma análise severa pode e deve suceder aos efeitos da primeira impulsão, nenhuma causa poderá impedir de desconhecer a necessidade de uma divisão indispensavelmente exigida pela fraqueza do espírito humano. Nenhum motivo real poderá levar a isolar, no estudo do indivíduo, os fenômenos morais, ou assim designados, dos outros fenômenos sociais. A revolução científica que os ligou todos, por leis necessárias, deve ser considerada como o passo mais essencial que a fisiologia haja até agora dado na linha do progresso filosófico. Pelo contrário, considerações de primeira importância demonstram a absoluta necessidade de distinguir o estudo dos fenômenos coletivos e de não o confundir com o estudo dos fenômenos individuais, o que não impede que se estabeleça e defina a relação natural entre estas duas grandes reações da fisiologia total. Esta indispensável distinção não pode desaparecer, e pretender anulá-la seria cair num erro análogo, se bem que inferior, àquele, tão justamente combatido pelos verdadeiros fisiologistas, que apresenta o estudo dos corpos vivos como uma consequência e um apêndice do estudo dos corpos inertes. Tais são as quatro tentativas principais que até agora foram feitas na intenção de elevar a política ao plano das ciências de observação, e cujo conjunto constata, da maneira mais decisiva, a necessidade e a maturidade deste grande empreendimento. O exame especial de cada uma dessas tentativas confirma, sob um ponto de vista distinto, os princípios anteriormente expostos neste capítulo sobre o verdadeiro meio de conferir à política científica um caráter positivo, e, por conseguinte, de elaborar com certeza a concepção geral do novo sistema social, aquele e só aquele que pode ser o fim da crise atual da Europa civilizada. Podemos, pois, dar por estabelecido, a priori e a posteriori, sobre demonstrações reais, que, para alcançar o seu fim capital, devemos ter a ciência política como uma física particular, fundada sobre a observação direta dos fenômenos relativos ao desenvolvimento coletivo da espécie humana, tendo por objeto a coordenação do passado social, e por resultado a determinação do sistema que a marcha da civilização tende hoje a produzir. Esta física social é, evidentemente, tão positiva como qualquer outra ciência de observação. A sua certeza intrínseca também é igualmente real. (Será sem dúvida supérfluo determo-nos a refutar as objeções infinitamente exageradas, apresentadas por vários autores, e sobretudo por Volney, contra a certeza dos fatos históricos. Ainda que concedêssemos a tais objeções toda a latitude que os escritores lhe conferiram, elas não atentariam de modo algum contra os fatos de tão elevado grau de importância e de generalidade, como aqueles que são dignos de ser considerados na história da civilização). As leis que ela descobre, porque satisfazem o conjunto de fenômenos observados, merecem inteira confiança na sua aplicação. Esta ciência possui, como todas as outras, meios gerais de verificação, até mesmo independentemente da sua relação necessária com a fisiologia. Tais meios estão fundados sobre o fato de que, no estado presente da espécie humana, considerada na sua totalidade, todos os graus de civilização coexistem nos diversos pontos do globo, desde o dos selvagens da Nova Zelândia até ao dos Franceses e dos Ingleses. Assim, o encadeamento estabelecido segundo a sucessão dos tempos, historicamente, pode ser verificado pela comparação dos lugares, geograficamente. À primeira impressão, esta nova ciência parece estar reduzida à simples observação, e privada totalmente do auxílio das experiências, o que não a impediria de ser positiva, tal como a astronomia. Mas, em fisiologia, independentemente das experiências sobre os animais, os casos patológicos formam realmente um equivalente de experiências diretas sobre o homem, porque não alteram a ordem habitual dos fenômenos. Do mesmo modo, e por um motivo semelhante, muitas das épocas em que as combinações políticas tenderam, mais ou menos, a travar o andamento da civilização, devem ser olhadas como aptas para facultar à física social verdadeiras experiências, porque se prestam muito mais do que a observação pura a desvelar, descobrir, ou desenvolver, as leis naturais que presidem à marcha coletiva da espécie humana. Se, como ouso esperar, as considerações apresentadas neste capítulo chegarem a dar aos sábios a imagem da importância e da possibilidade de estabelecer uma política positiva, na acepção que já ficou indicada, apresentarei então, com pormenores e minúcias, a minha opinião sobre o modo de executar esta primeira série de trabalhos. Mas antes de terminar, creio útil relembrar a necessidade de dividir antes de tudo, a tarefa em duas ordens: a dos trabalhos gerais e dos trabalhos particulares. A primeira ordem deve ter por objeto estabelecer a marcha geral do espírito humano, com abstração de todas e quaisquer causas que possam modificar a velocidade da civilização, e, por conseguinte, de todas as diversidades observadas de povo para povo, por maiores que possam ser. A segunda ordem terá por fim apreciar a influência das causas modificadoras, e, por conseguinte, formar o quadro definitivo, no qual cada povo ocupará o lugar especial que corresponda ao seu próprio desenvolvimento. Uma e outra classe de trabalhos, mas sobretudo a última, são possivelmente situáveis, na sua execução, em vários graus de generalidade, cuja ordem será particularmente sensível aos verdadeiros sábios. A obrigação de executar a primeira ordem de trabalhos antes da segunda está fundada sobre este princípio evidente, tão aplicável à fisiologia da espécie como à do indivíduo, de que as idiossincrasias devem ser estudadas só após o estabelecimento de leis gerais. Se esta regra for violada, renunciar-se-á absolutamente a obter qualquer noção nítida e precisa. Quanto à possibilidade de proceder assim, diremos que ela resulta de que há já hoje um grande número de pontos particulares bem esclarecidos para que nos possamos ocupar diretamente de uma coordenação geral. Os fisiologistas não esperaram, para formar uma ideia do conjunto da organização, que estivessem conhecidas todas as funções especiais. O mesmo terá de acontecer na constituição da física social. Ao precisar muito mais as considerações precedentes, vê-se que elas tendem a estabelecer que, na formação da ciência política, convém proceder do geral para o particular. Ora, se examinarmos este preceito de uma maneira direta, fácil nos será reconhecer que é inteiramente justo. A marcha que o espírito humano persegue na inquirição das leis que regem os fenômenos naturais, apresentará, no aspecto que nos ocupa, uma importante diferença, conforme estudar a física dos corpos brutos ou a física dos corpos organizados. Na primeira, o homem não é mais do que um fragmento imperceptível de uma sequência imensa de fenômenos, e não tem a louca presunção de chegar algum dia a perceber o conjunto imenso do universo; vê-se portanto, obrigado a começar por estudá-los com espírito positivo, isto é, a coordenar primeiro os fatos mais particulares para se elevar em seguida e gradualmente até à descoberta de algumas leis gerais, que mais tarde se tornariam como o ponto de partida para as suas pesquisas. Pelo contrário, na física dos corpos organizados, como o homem forma o tipo mais completo do conjunto dos fenômenos, começará necessariamente a fazer descobrimentos positivos pelos fatos mais gerais, que lhe prestam a seguir uma luz indispensável para esclarecer o estudo de um gênero de pormenores, cujo conhecimento, por natureza, lhe será para sempre interdito. Numa palavra, nos dois casos, o espírito procede do conhecido para o desconhecido; mas, no primeiro caso, começa por ascender do particular para o geral, porque o conhecimento dos pormenores é mais imediato do que o conhecimento das massas; ao passo que, no segundo, começa por descer do geral ao particular, porque ele conhece mais diretamente o conjunto do que as partes. O aperfeiçoamento de cada uma das duas ciências consiste essencialmente, sob o aspecto filosófico, a permitir-lhe adotar o método da outra, sem que este lhe venha a ser mais próprio do que o seu método primitivo. Assim, após haver considerado do ponto de vista mais elevado da filosofia positiva esta lei superior, poderemos verificá-la facilmente ao observar a marcha que até hoje se seguiu no desenvolvimento das ciências naturais, desde o momento em que cada uma delas cessou definitivamente de ter caráter teológico ou metafísico. Com efeito, no estudo dos corpos brutos, considerando apenas as divisões principais, vê-se na astronomia, na física e na química ciências absolutamente isoladas umas das outras, mas que depois se aproximam reciprocamente em aspectos que se multiplicam, e de modo tal que já hoje elas tendem a formar um só corpo de doutrina. Do mesmo modo, considerando à parte cada uma delas, vemos nascer o estudo dos fatos, que de começo parecem incoerentes, chegando por graus sucessivos às generalidades atualmente conhecidas. Foi somente na astronomia, e em algumas secções da física terrestre, que o espírito humano pôde seguir até aqui, sob aspectos fundamentais, a marcha oposta. Podemos até dizer que, na astronomia, a marcha primitiva não foi alterada pela lei da atração universal; foi-o apenas numa relação realmente secundária, quanto ao conjunto dos fenômenos, se bem que principal, relativamente a nós. Porque esta lei ainda não abraça, e provavelmente jamais chegará a abraçar, nas suas aplicações, os fatos astronômicos mais gerais, que consistem nas relações dos diferentes sistema solares, e acerca dos quais não obtivemos ainda qualquer ordem de conhecimentos. Esta observação, que incide sobre o ramo mais perfeito da física inorgânica, oferece uma verificação saliente do princípio que expus. Se examinarmos agora a parte deste princípio que se relaciona com o estudo dos corpos vivos, também se tornará sensível a respectiva confirmação. Em primeiro lugar, o encadeamento geral das funções de que se compõe um organismo está hoje muito mais conhecido do que a ação parcial de cada órgão; mas também, sob um ponto de vista mais extenso, o estudo das relações gerais que existem entre as diversas organizações, quer animais quer vegetais, está, sem dúvida, muito mais adiantado do que o estudo de cada organismo em particular. Em segundo lugar, os principais ramos de que hoje se compõe a física orgânica foram primitivamente confundidos; e só graças aos progressos da fisiologia positiva foi possível chegar a analisar com precisão os diferentes pontos de vista gerais sob os quais um corpo vivo pode ser encarado, de maneira a fundar sobre estas distinções uma divisão racional da ciência. Isto é de tal maneira exato que, apesar de ter passado pouco tempo depois de a física dos corpos organizados se ter tornado verdadeiramente positiva, a distribuição das suas partes principais ainda não está concluída nem chegou à forma definitiva. O fato torna-se muito mais sensível se passarmos da ciência para os cientistas, porque estes são evidentemente muito menos especialistas na ordem dos seus trabalhos do que os sábios dedicados ao estudo dos corpos brutos. Podemos, pois, considerar como estabelecido, pela observação e pelo raciocínio, que o espírito humano procede principalmente do particular para o geral, na física inorgânica, e, pelo contrário, do geral para o particular na física orgânica; que, pelo menos, é seguindo incontestavelmente esta marcha que se efetuam há muito tempo os progressos da ciência, pelo menos desde o momento em que ela tomou o caráter positivo. Se a segunda parte desta lei foi desconhecida até ao presente, se foi sempre tido por verdadeiro que, numa ordem qualquer de pesquisas, o espírito humano procede sempre e necessariamente do particular para o geral, este erro explica-se de uma maneira muito natural, por imitar a física dos corpos brutos, a qual foi a primeira a desenvolver-se, isto é, a praticar a observação da marcha que foi própria àquela ciência, e assim foram fundados os primeiros preceitos da filosofia positiva. Mas o prolongamento de tal erro já não tem desculpa alguma, hoje que a observação filosófica pode já incidir sobre as duas ordens de ciências humanas. Aplicado à física social, que não passa de um ramo da fisiologia, o princípio que acabo de estabelecer, ele presta-se evidentemente a demonstrar a necessidade de começar, no estudo do desenvolvimento do espírito humano, pela coordenação dos fatos mais gerais, para descer em seguida e gradualmente a um encadeamento cada vez mais apertado e preciso. Mas, a fim de não deixar nenhuma incerteza sobre este ponto essencial, convém verificar o princípio de maneira mais direta neste caso particular. Todas as obras históricas que até hoje foram escritas, até mesmo as mais recomendáveis, tiveram e mantiveram o caráter de anais, já que nem necessária nem essencialmente lhes era exigida outra função; obedeciam à descrição e à disposição cronológicas de uma sucessão de fatos particulares, mais ou menos importantes, mais ou menos exatos, mas sempre isolados, sem relação lógica ou científica. Sem dúvida que tais livros incluíram considerações relativas à coordenação e à filiação dos fenômenos políticos, as quais não foram inteiramente desprezadas, sobretudo de há meio século para cá. Mas é claro que tal miscelânea ainda não deixou de ser literária, isto é, ainda não recebeu as regras próprias para refundir este gênero de composição. (Trata-se apenas de apontar um fato; não de julgá-lo. Estou, aliás, muito convencido da utilidade e até da necessidade absoluta desta classe de escritos como trabalho preliminar. Espero que não me atribuam o erro de pensar que poderia ter havido história sem anais, ou crônicas. Mas é igualmente certo que as memórias, as crônicas e os anais ainda não são história, tal como coletâneas de observações meteorológicas não são propriamente livros de física). Ainda não tivemos, nem ainda temos, uma verdadeira história, concebida por um espírito científico, quer dizer, tendo por fim a pesquisa das leis que presidem ao desenvolvimento social da espécie humana, o que é precisamente o objeto da série de trabalhos considerada neste capítulo. A distinção precedente bastará para explicar porque é que se acreditou quase universalmente até agora que também na história se deve proceder do particular para o geral; e porque, pelo contrário, devem hoje os historiadores proceder do geral para o particular, sob pena de a ciência não chegar a resultado algum. Porque, quando se tratar somente de construir com exatidão os anais gerais da espécie humana, será evidentemente indispensável começar por formar monografias dos diferentes povos, e estas não podem ser senão fundadas sobre crônicas, das províncias e das cidades, ou até sobre meras biografias. Igualmente, mas sob outro aspecto, para formar os anais completos de cada fração qualquer da população será indispensável reunir uma série de documentos separados mas relativos a cada um dos pontos de vista sob os quais a população deverá ser considerada. É assim que se deve necessariamente proceder para chegar a compor os fatos gerais; e estes são os verdadeiros materiais da ciência política, ou antes o objeto sobre o qual incidem as suas combinações. Mas a marcha inteiramente oposta torna-se também indispensável logo que se vai de encontro à formação direta da ciência, quer dizer, ao estudo do encadeamento dos fenômenos. Com efeito, e pela sua própria natureza, todas as classes de fenômenos sociais se desenvolvem simultaneamente, e sob a influência uns dos outros, de maneira tal que é absolutamente impossível explicar a marcha seguida por cada uma delas, sem ter primeiramente concebido de maneira geral a progressão do conjunto. Cada qual reconhece hoje, por exemplo, que a ação recíproca dos Estados europeus é tão importante que as respectivas histórias não podem ser verdadeiramente separadas. Importa, também, reconhecer que a mesma impossibilidade não é menos sensível no que diz respeito às diversas ordens de fatos políticos que observamos numa sociedade única. Os progressos de uma ciência ou de uma arte não estarão em conexão evidente com os das outras ciências ou das outras artes? O aperfeiçoamento do estudo da natureza, e o da ação sobre a natureza, não dependem ou do outro? Não estarão ambos estritamente ligados com o estudo da organização social, e reciprocamente? Assim, até para conhecer com precisão as leis reais do desenvolvimento especial do membro mais simples do corpo social, seria necessariamente indispensável obter simultaneamente a mesma precisão para todos os outros, o que é de manifesta absurdez. Devemos pois, pelo contrário, propor-nos em primeiro lugar conceber na sua máxima generalidade o fenômeno do desenvolvimento da espécie humana, quer dizer, observar e encadear na série os progressos mais importantes que ele realizou sucessivamente nas principais direções diferentes. Tentar-se-á em seguida e gradualmente aplicar a este quadro histórico uma precisão cada vez maior subdividindo-o sempre, e segundo os intervalos da observação e as classes dos fenômenos a observar. Igualmente, e por conclusão prática, o aspecto do porvir social, determinado primeiramente de uma maneira geral, em resultado de um primeiro estudo do passado tornar-se-á cada vez mais minucioso na medida em que o conhecimento da marcha anterior da espécie humana se desenvolver cada vez mais. A última perfeição da ciência, que provavelmente nunca será realizada de maneira completa, consistiria, sob aspecto teórico, em fazer conceber com exatidão, desde a origem, a filiação dos progressos de uma geração para outra, quer para o conjunto do corpo social quer para cada ciência ou para cada arte, quer ainda para cada parte de organização política; e, sob o aspecto prático, em determinar rigorosamente, em todos os seus pormenores essenciais, o sistema que a marcha natural da civilização há de tornar dominante. Tal é o método estritamente ditado pela natureza da física social.