Auguste Comte - Discurso Sobre o Espírito Positivo ÍNDICE Discurso preliminar sobre o espírito positivo Documentos anexos I Carta de Comte propondo um curso de Astronomia para os operários de Paris II Anúncio de Comte sobre a associação livre para a instrução positiva do Povo em todo o Ocidente europeu III O fundador da Sociedade Positivista a quem desejar incorporar-se a ela IV Depoimento de Fabien Magnin, operário marceneiro, ouvinte do Discurso Preliminar sobre o Espírito Positivo. V Trecho de uma carta de Comte a Clotilde de Vaux sobre a Educação DISCURSO PRELIMINAR SOBRE O ESPÍRITO POSITIVO Considerações fundamentais sobre a natureza e a destinação do verdadeiro espírito filosófico; apreciação sumária da extrema importância social apresentada hoje pela propagação universal dos principais estudos positivos; aplicação especial destes princípios à ciência astronômica, segundo a sua verdadeira posição enciclopédica. O conjunto dos conhecimentos astronômicos, até aqui considerado demasiadamente isolado, de agora em diante deve constituir apenas um dos elementos indispensáveis de um novo sistema indivisível de filosofia geral (Emprego o termo filosofia na acepção que lhe davam os antigos, particularmente Aristóteles, designando o sistema geral das concepções humanas), preparado gradualmente pelo concurso espontâneo de todos os grandes trabalhos científicos peculiares aos três últimos séculos, e que finalmente chegou hoje à sua verdadeira maturidade abstrata. Em virtude desta íntima conexão, ainda muito pouco compreendida, a natureza e a destinação deste Tratado não poderiam ser suficientemente apreciadas se este preâmbulo necessário não se consagrasse sobretudo a definir convenientemente o verdadeiro espírito fundamental desta filosofia, cuja instalação universal deve, no fundo, tornar-se o objetivo essencial de tal ensino. Como ela se distingue principalmente por uma contínua preponderância, a um só tempo lógica e científica, do ponto de vista histórico ou social, devo inicialmente, para melhor caracterizá-la, lembrar sumariamente a grande lei que estabeleci em meu Sistema de filosofia positiva sobre a inteira evolução intelectual da Humanidade, lei a qual, aliás, nossos estudos astronômicos em seguida recorrerão frequentem ente. Segundo esta doutrina fundamental, todas as nossas especulações, quaisquer que sejam elas, estão inevitavelmente sujeitas, quer no indivíduo, quer na espécie, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes, que as denominações habituais de teológico, metafísico e positivo poderão aqui qualificar suficientemente, pelo menos para aqueles que lhes tiverem compreendido o verdadeiro sentido geral. Embora de início indispensável em todos os aspectos, o primeiro estado deve doravante ser sempre concebido como puramente provisório e preparatório; o segundo, que constitui apenas uma modificação dissolvente do primeiro, nunca comporta senão uma simples distinção transitória a fim de conduzir gradualmente ao terceiro; é neste estado, único plenamente normal, que consiste, em todos os gêneros, o regime definitivo da razão humana. Em seu primeiro surto, necessariamente teológico, todas as nossas especulações manifestam espontaneamente uma predileção característica pelas questões mais insolúveis, sobre os assuntos mais radicalmente inacessíveis a qualquer investigação decisiva. Por um contraste que atualmente deve parecer primeiramente inexplicável, mas que, no fundo, está em plena harmonia com a verdadeira situação inicial de nossa inteligência, num tempo em que o espírito humano ainda está aquém dos mais simples problemas científicos, ele busca avidamente, e de maneira quase exclusiva, a origem de todas as coisas, as causas essenciais, tanto primeiras, quanto finais, dos diversos fenômenos que o atingem e seu modo fundamental de produção, numa palavra, os conhecimentos absolutos. Esta necessidade primitiva é naturalmente satisfeita, tanto quanto possa sê-lo jamais, por nossa tendência a transportar por toda parte o tipo humano, assimilando todos os fenômenos, quaisquer que sejam eles, àqueles que nós mesmos produzimos, e que, a este título, começam por nos parecer bastante conhecidos, segundo a intuição imediata que os acompanha. Para bem compreender o espírito, puramente teológico, resultante do desenvolvimento cada vez mais sistemático desse estado primordial, não nos devemos restringir a considerá-lo em sua última fase, que está findando, sob nossos olhos, nas populações mais avançadas, mas que não é, longe disso, a mais característica. Torna-se indispensável considerar o conjunto de sua marcha natural, a fim de apreciar a sua identidade fundamental nas três formas principais que sucessivamente lhe são próprias. A mais imediata e mais pronunciada constitui o fetichismo propriamente ditos, que consiste sobretudo em atribuir a todos os corpos exteriores uma vida essencialmente análoga à nossa, mas quase sempre mais enérgica, segundo sua ação comumente mais potente. A adoração dos astros caracteriza o grau mais elevado dessa primeira fase teológica que, no início, mal difere do estado mental em que estacionam os animais superiores. Embora essa primeira forma da filosofia teológica se encontre com evidência na história intelectual de todas as nossas sociedades, hoje ela já não domina diretamente a não ser entre a menos numerosa das três grandes raças que compõem a nossa espécie. Em sua segunda fase essencial, que constitui o verdadeiro politeísmo, muito amiúde confundido pelos modernos com o estado precedente, o espírito teológico representa nitidamente a livre preponderância especulativa da imaginação, ao passo que até então foram sobretudo o instinto e o sentimento que haviam prevalecido nas teorias humanas. A filosofia inicial passa nesse ponto pela mais profunda transformação que possa comportar o conjunto de sua destinação real, pelo fato de que aí a vida é enfim retirada dos objetos materiais para ser misteriosamente transportada para diversos seres fictícios, habitualmente invisíveis, cuja ativa intervenção contínua se torna a partir daí a fonte direta de todos os fenômenos humanos. E principalmente durante essa fase característica, hoje mal apreciada, que cumpre estudar o espírito teológico, que nela se desenvolve com plenitude e homogeneidade posteriormente impossíveis. Esse tempo é, em todos os aspectos, o de sua maior ascendência, ao mesmo tempo mental e social. A maioria de nossa espécie ainda não saiu de tal estado, que hoje persiste na mais numerosa das três raças humanas, além de persistir da raça negra na elite da raça negra e na parte menos avançada da raça branca. Na terceira fase teológico, o monoteísmo propriamente dito, começa o inevitável declínio da filosofia inicial que, mesmo conservando por muito tempo grande influência social, todavia ainda mais aparente do que real, sofre a partir daí rápido decréscimo intelectual, por um prosseguimento espontâneo dessa simplificação característica, em que a razão restringe cada vez mais o domínio anterior da imaginação, deixando desenvolver-se gradualmente o sentimento universal, até então quase insignificante, da sujeição necessária de todos os fenômenos naturais a leis invariáveis. Em formas muito diversas, e mesmo radicalmente inconciliáveis, esse modo extremo do regime preliminar ainda persiste com energia muito desigual entre a imensa maioria da raça branca; mas, se bem que assim ele seja observado com mais facilidade, essas mesmas preocupações pessoais/ levantam hoje um obstáculo muito frequente à sua judiciosa apreciação, por falta de uma comparação bastante racional e bastante imparcial com os dois modos precedentes. Por mais imperfeita que possa parecer agora tal maneira de filosofar, importa muito vincular indissoluvelmente o estado presente do espírito humano ao conjunto de seus estados anteriores, reconhecendo convenientemente que ela deve ter sido por muito tempo tão indispensável como inevitável. Limitando-nos aqui à simples apreciação intelectual seria supérfluo insistir de início sobre a tendência involuntária que, mesmo hoje, nos leva todos evidentemente às explicações essencialmente teológicos, assim que queremos penetrar diretamente o mistério inacessível do modo fundamental de produção de quaisquer fenômenos, sobretudo daqueles cujas leis reais ainda ignoramos. Os mais eminentes pensadores podem então constatar a própria disposição natural para o mais ingênuo fetichismo, quando essa ignorância se encontra momentaneamente combinada com alguma paixão pronunciada. Portanto, se todas as explicações teológicas sofreram, entre os modernos ocidentais, um desgaste crescente e decisivo, foi unicamente porque as misteriosas investigações que tinham em vista foram cada vez mais descartadas como radicalmente inacessíveis à nossa inteligência, que foi se habituando gradualmente a substituí-las irrevogavelmente por estudos mais eficazes e harmoniosos com as nossas verdadeiras necessidades. Mesmo num tempo em que o verdadeiro espírito filosófico já havia prevalecido sobre os mais simples fenômenos e num assunto tão fácil como a teoria elementar do choque, o memorável exemplo de Malebranche lembrará para sempre a necessidade de recorrer à intervenção direta e permanente de uma ação sobrenatural, todas as vezes que se tenta remontar à causa primeira de um acontecimento qualquer. Ora, por outro lado, tais tentativas, por mais pueris que justamente pareçam hoje, constituem certamente o único meio primitivo de determinar o desenvolvimento contínuo das especulações humanas, libertando espontaneamente a nossa inteligência do círculo profundamente vicioso em que no início está necessariamente envolvida pela oposição radical de duas condições igualmente imperiosas. Pois, se os modernos tiveram de proclamar a impossibilidade de fundar uma teoria sólida, a não ser num suficiente concurso de observações convenientes, não é menos incontestável que o espírito humano nunca poderia combinar, nem sequer reunir, esses indispensáveis materiais, se não continuar sendo dirigido por algumas concepções especulativas previamente estabelecidas. Assim, estas concepções primordiais só podiam, evidentemente, resultar de uma filosofia dispensada, por sua natureza, de toda longa preparação e, numa palavra, suscetível de surgir espontaneamente apenas pelo impulso de um instinto direto, por mais quiméricas que devessem ser as especulações assim desprovidas de todo fundamento real. Este é o feliz privilégio dos princípios teológicos, sem os quais devemos estar certos de que a nossa inteligência nunca poderia sair de seu torpor inicial, e que foram os únicos que puderam permitir, ao dirigir sua atividade especulativa, a preparação gradual de um melhor regime lógico. Essa aptidão fundamental foi, aliás, poderosamente secundada pela predileção originária do espírito humano pelas questões insolúveis, as mais requestadas por essa filosofia primitiva. Só poderíamos medir nossas forças mentais e, por conseguinte, circunscrever-lhes sabiamente a destinação, após tê-las suficientemente exercitado. Ora, este exercício indispensável não podia ser determinado de início, sobretudo nas faculdades mais fracas da natureza, sem a enérgica estimulação inerente a tais estudos, em que tantas inteligências mal cultivadas ainda persistem em procurar a mais pronta e mais completa solução das questões diretamente usuais. Por muito tempo foi mesmo preciso, a fim de vencer suficientemente a nossa inércia nativa, recorrer também às poderosas ilusões que tal filosofia suscitava espontaneamente sobre o poder quase indefinido do homem para modificar à vontade um mundo então concebido como essencialmente ordenado para o seu uso, e que nenhuma grande lei ainda podia subtrair à arbitrária supremacia das influências sobrenaturais. Mal faz três séculos que, entre a elite da Humanidade, as esperanças astrológicas e alquímicas, derradeiro vestígio científico desse espírito primordial, cessaram realmente de servir à acumulação cotidiana das observações correspondentes, como Kepler e Berthollet respectivamente indicaram. O concurso decisivo destes diversos motivos intelectuais seria, ademais, poderosamente fortificado se a natureza deste Tratado me permitisse assinalar suficientemente a influência irresistível das altas necessidades sociais, que apreciei convenientemente na obra fundamental mencionada no início deste Discurso. Pode-se primeiro demonstrar plenamente como o espírito teológico teve de ser por muito tempo indispensável à combinação permanente das ideias morais e políticas, ainda mais especialmente do que à combinação de todas as outras, quer em virtude de sua complicação superior, quer porque os fenômenos correspondentes, primitivamente muito pouco pronunciados, poderiam adquirir desenvolvimento característico só depois de um crescimento muito prolongado da civilização humana. É uma estranha inconsequência, apenas escusável pela tendência cegamente crítica (Crítico significa aqui "negativo", "destruidor", "incapaz de construir". Esta última incapacidade implica uma "cegueira" a respeito do futuro e do passado. "Crítico" opõe-se a "orgânico". Estes termos pertencem ao vocabulário saint-simoniano) de nosso tempo, reconhecer, para os antigos, a impossibilidade de filosofar sobre os mais simples assuntos a não ser segundo o modo teológico, e não obstante desconhecer, sobretudo entre os politeístas, a insuperável necessidade de um regime análogo para as especulações sociais. Mas cumpre perceber, ademais, embora eu não o possa estabelecer aqui, que essa filosofia inicial não foi menos indispensável ao crescimento preliminar de nossa sociabilidade do que ao de nossa inteligência, quer para constituir primitivamente algumas doutrinas comuns, sem as quais o vínculo social não poderia ter adquirido nem extensão nem consistência, quer suscitando espontaneamente a única autoridade espiritual que então pudesse surgir. Por mais sumárias que sejam aqui estas explicações gerais sobre a natureza provisória e sobre a destinação preparatória da única filosofia realmente conveniente à infância da Humanidade, elas fazem perceber facilmente que esse regime inicial difere muito profundamente, em todos os aspectos, daquele que veremos corresponder à virilidade mental, para que a passagem gradual de um para outro pudesse operar-se originariamente, no indivíduo ou na espécie, sem a assistência crescente de uma espécie de filosofia intermediária, essencialmente limitada a esta função transitória. Tal é a participação especial do estado metafísico propriamente dito na evolução fundamental de nossa inteligência que, antipática a qualquer mudança brusca, pode assim elevar-se quase insensivelmente do estado puramente teológico ao estado francamente positivo, embora esta situação equívoca aproxime-se, no fundo, muito mais do primeiro do que do segundo. As especulações dominantes conservaram nele o mesmo caráter essencial de tendência habitual aos conhecimentos absolutos; apenas a solução passou por uma notável transformação, capaz de facilitar mais o surto das concepções positivas. De fato, como a teologia, a metafísica tenta sobretudo explicar a natureza íntima dos seres, a origem e a destinação de todas as coisas, o modo essencial de produção de todos os fenômenos; mas em vez de para isso empregar os agentes sobrenaturais propriamente ditos, ela os substitui cada vez mais por essas entidades ou abstrações personificadas cujo uso, realmente característico, frequentemente permitiu designá-la com o nome de antologia. E fácil demais observar hoje comodamente tal maneira de filosofar que, ainda preponderante para os fenômenos mais complicados, oferece diariamente, mesmo nas teorias mais simples e menos atrasadas, tantos traços apreciáveis de sua longa dominação. (Quase todas as explicações habituais relativas aos fenômenos sociais, a maioria daqueles concernentes ao homem intelectual e moral, grande parte de nossas teorias fisiológicas ou médicas, e também até várias teorias químicas, etc., ainda lembram diretamente a estranha maneira de filosofar caracterizada com tanta graça por Molière, sem nenhum exagero grave, por ocasião, por exemplo, da virtude dormitiva do ópio, em conformidade com o abalo decisivo que Descartes acabava de fazer todo o regime de entidades sofrer). A eficácia histórica dessas entidades resulta diretamente de seu caráter equívoco, pois em cada um desses seres metafísicos, inerente ao corpo correspondente sem sé confundir com ele, o espírito pode à vontade, conforme esteja mais perto do estado teológico ou do estado positivo, ver ou uma verdadeira emanação da potência sobrenatural, ou uma simples dominação abstrata do fenômeno considerado. Então já não é a pura imaginação que domina, e não é ainda a verdadeira observação; mas o raciocínio adquire muito mais extensão e se prepara confusamente para o exercício verdadeiramente científico. Aliás, deve-se observar que sua parte especulativa se encontra primeiramente muito exagerada, em consequência dessa tendência renitente para argumentar em vez de observar que, em todos os gêneros, caracteriza habitualmente o espírito metafísico, mesmo entre os seus órgãos mais eminentes. Uma ordem de concepções tão flexível, que de forma alguma comporta a consistência por tanto tempo própria do sistema teológico, deve aliás chegar muito mais rapidamente à unidade correspondente, pela subordinação gradual das diversas entidades particulares a uma única entidade geral, a natureza, destinada a determinar o fraco equivalente metafísico da vaga ligação universal resultante do monoteísmo. Para melhor compreender, mormente em nossos dias, a eficácia histórica de tal aparelho filosófico, importa reconhecer que, por sua natureza, só é espontaneamente suscetível de uma simples atividade crítica ou dissolvente, mesmo mental, e com maior razão, social, sem nunca poder organizar nada que lhe seja próprio. Radicalmente inconsequente, esse espírito equívoco conserva todos os princípios fundamentais do sistema teológico, Suprimindo-lhe porém cada vez mais o vigor e a fixidez indispensáveis à sua autoridade efetiva. É numa alteração semelhante que consiste, de fato, em todos os aspectos, a sua principal utilidade passageira, quando o regime antigo, por muito tempo progressivo para o conjunto da evolução humana, se encontra inevitavelmente nesse grau de prolongamento abusivo, no qual tende a perpetuar indefinidamente o estado de infância que no início dirigira com tanta felicidade. Portanto, a metafísica é realmente no fundo, uma espécie de teologia gradualmente debilitada por simplificações dissolventes, que lhe suprimem espontaneamente o poder direto de impedir o surto especial das concepções positivas, ao mesmo tempo, entretanto, que lhe conserva a aptidão provisória para manter certo exercício indispensável do espírito de generalização, até que ele possa afinal receber uma melhor alimentação. Em conformidade com seu caráter contraditório, o regime metafísico ou ontológico encontra-se sempre diante dessa inevitável alternativa de tender ou a uma vã restauração do estado teológico para satisfazer às condições da ordem, ou de levar a uma situação puramente negativa, a fim de escapar do domínio opressivo da teologia. Essa oscilação necessária, que agora só é observada relativamente às teorias mais difíceis, outrora existiu igualmente mesmo a respeito das mais simples, enquanto durou a sua idade metafísica, em virtude da impotência orgânica sempre própria de tal maneira de filosofar. Se a razão pública não a houvesse há muito afastado de certas noções fundamentais, não deveríamos temer garantir que as dúvidas insensatas que suscitou, há vinte séculos, sobre a existência dos corpos exteriores, ainda subsistiriam essencialmente, pois certamente ela nunca as dissipou com nenhuma argumentação decisiva. Pode-se pois finalmente encarar o estado metafísico como uma espécie de doença crônica, naturalmente inerente à nossa evolução mental, individual ou coletiva, entre a infância e a virilidade. Como as especulações históricas quase nunca remontam, entre os modernos, além dos tempos politeicos, o espírito metafísico deve parecer-lhes quase tão antigo como o próprio espírito teológico, porquanto ele necessariamente presidiu, embora de maneira implícita, à transformação primitiva do fetichismo em politeísmo, a fim de já suprir a atividade puramente sobrenatural que, assim diretamente retirada de cada corpo particular, devia espontaneamente deixar nele alguma entidade correspondente. Todavia, como essa primeira revolução teológica não pôde então ocasionar nenhuma verdadeira discussão, a intervenção contínua do espírito ontológico só começou a tornar-se plenamente característica na revolução seguinte, na redução do politeísmo ao monoteísmo, do qual teve de ser o órgão natural. Sua crescente influência de início devia parecer orgânica, enquanto ele permanecia subordinado ao impulso teológico; mas a sua natureza essencialmente dissolvente teve em seguida de se manifestar cada vez mais, quando tentou gradualmente impelir a simplificação da teologia para além mesmo do monoteísmo vulgar, que constituía, com toda a necessidade, a extrema fase verdadeiramente possível da filosofia inicial. Assim é que, durante os últimos cinco séculos, o espírito metafísico secundou negativamente o surto fundamental de nossa civilização moderna, decompondo pouco a pouco o sistema teológico, que finalmente se tornou retrógrado desde que a eficácia social do regime monoteico se viu essencialmente esgotada, no final da Idade Média. Infelizmente, depois de ter desempenhado em cada gênero esse trabalho indispensável mas passageiro, a ação demasiado prolongada das concepções ontológicas sempre precisou tender a impedir também qualquer outra organização real do sistema especulativo; de sorte que o mais perigoso obstáculo para a instalação final de uma verdadeira filosofia resulta hoje, de fato, deste mesmo espírito que amiúde se atribui ainda o privilégio quase exclusivo das meditações filosóficas. Esta longa sucessão de preâmbulos necessários conduz afinal nossa inteligência, gradualmente emancipada, a seu estado definitivo de positividade racional, que deve ser caracterizado aqui de uma maneira mais especial que os dois estados preliminares. Tendo tais exercícios preparatórios constatado espontaneamente a inanidade radical das explicações vagas e arbitrárias próprias da filosofia inicial, quer teológica, quer metafísica, o espírito humano renuncia a partir de agora às investigações absolutas que convinham apenas à sua infância, e circunscreve seus esforços ao âmbito rapidamente progressivo da verdadeira observação, única base possível dos conhecimentos verdadeiramente acessíveis, sabiamente adaptados a nossas necessidades reais. A lógica especulativa até então consistira em raciocinar, de uma maneira mais ou menos sutil, conforme princípios confusos que, não comportando nenhuma prova suficiente, sempre suscitavam debates sem saída. Reconhece a partir de agora, como regra fundamental, que toda proposição que não seja estritamente redutível à simples enunciação de um fato particular ou geral não pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. Os próprios princípios que ela emprega não são mais que verdadeiros fatos, só que mais gerais e mais abstratos do que aqueles cujo vínculo devem formar. Aliás, qualquer que seja o modo, racional ou experimental, de proceder à sua descoberta, é sempre de sua conformidade, direta ou indireta, com os fenômenos observados que resulta exclusivamente a sua eficácia científica. A pura imaginação perde, então, irrevogavelmente a sua antiga supremacia mental, e se subordina necessariamente à observação, de maneira a constituir um estado lógico plenamente normal sem cessar, entretanto, de exercer nas especulações positivas um trabalho tão capital como inesgotável, para criar ou aperfeiçoar os meios de ligação, quer definitiva, quer provisória. Numa palavra, a revolução fundamental que caracteriza a virilidade de nossa inteligência consiste essencialmente em substituir por toda a parte a inacessível determinação das causas propriamente ditas pela simples busca das leis, isto é, das relações constantes que existem entre os fenômenos observados. Quer se trate dos menores ou dos mais sublimes efeitos, tanto do choque e da gravidade quanto do pensamento e da moralidade, deles só podemos conhecer realmente as diversas relações mútuas adequadas à sua realização, sem jamais penetrar o mistério de sua produção. Não só nossas pesquisas positivas devem reduzir-se essencialmente, em todos os gêneros, à apreciação sistemática daquilo que é, renunciando a descobrir-lhe a primeira origem e a destinação final, mas também importa, igualmente, sentir que este estudo dos fenômenos, ao invés de poder tornar-se de algum modo absoluto, deve sempre permanecer relativo à nossa organização e à nossa situação. Reconhecendo, neste duplo aspecto, a imperfeição necessária de nossos diversos meios especulativos, vemos que, longe de poder estudar completamente alguma existência efetiva, não poderíamos de forma alguma garantir a possibilidade de constatar assim, mesmo muito superficialmente, todas as existências reais, cuja maior parte talvez deva nos escapar totalmente. Se a perda de um sentido importante basta para nos ocultar radicalmente uma ordem inteira de fenômenos naturais, cabe pensar, reciprocamente, que a aquisição de um sentido novo nos desvendaria uma classe de fatos dos quais agora não temos a menor ideia, a menos que creiamos que a diversidade dos sentidos, tão diferente entre os principais tipos de animalidade, tenha sido levada em nosso organismo ao mais alto grau que a exploração total do mundo exterior possa exigir, suposição evidentemente gratuita e quase ridícula. Nenhuma ciência pode manifestar melhor do que a astronomia esta natureza necessariamente relativa de todos os nossos conhecimentos reais, já que, não podendo a investigação dos fenômenos operar-se senão por um único sentido, é muito fácil nela apreciar as consequências especulativas de sua supressão ou de sua simples alteração. Uma espécie cega, por mais inteligente que a supuséssemos, não poderia ter astronomia alguma, nem para astros obscuros, que são talvez os mais numerosos, nem sequer se apenas a atmosfera através da qual observamos os corpos celestes permanecesse sempre e em todos os lugares nebulosa. O curso inteiro deste Tratado nos oferecerá oportunidades frequentes de apreciar espontaneamente, da maneira menos equívoca, esta íntima dependência em que o conjunto de nossas condições próprias, tanto exteriores quanto interiores, refreia cada um de nossos estudos positivos. Para caracterizar suficientemente esta natureza necessariamente relativa de todos os nossos conhecimentos reais, importa perceber, além disso, ao ponto de vista mais filosófico, que se quaisquer de nossas próprias concepções devem ser consideradas também como fenômenos humanos, tais fenômenos não são simplesmente individuais, mas também e sobretudo sociais (Considerando quaisquer das nossas concepções como fenômenos "sobretudo sociais", Comte situa-se entre os precursores da sociologia do conhecimento), pois que resultam, de fato, de uma evolução coletiva e contínua, da qual todos os elementos e todas as fases são essencialmente conexos. Portanto se, neste primeiro aspecto, reconhecemos que nossas especulações devem sempre depender das diversas condições essenciais de nossa existência individual, é preciso admitir igualmente, no segundo, que elas não estão menos subordinadas ao conjunto da progressão social, de maneira a nunca poder comportar essa fixidez absoluta que os metafísicos supuseram. Ora, a lei geral do movimento fundamental da Humanidade consiste, a este respeito, no fato de que as nossas teorias tendem cada vez mais a representar exatamente os assuntos exteriores de nossas constantes investigações, sem que entretanto a verdadeira constituição de cada um deles possa, em caso algum, ser plenamente apreciada, devendo a perfeição científica limitar-se à aproximação desse limite ideal tanto quanto exigem as nossas diversas necessidades reais. Este segundo gênero de dependência, próprio das especulações positivas, manifesta-se tão claramente como o primeiro no curso inteiro dos estudos astronômicos, ao considerarmos, por exemplo, a sequência das noções, cada vez mais satisfatórias, obtidas desde a origem da geometria celeste sobre a figura da Terra, sobre a forma das órbitas planetárias, etc. Assim, embora por um lado as doutrinas científicas sejam necessariamente de natureza bastante móvel para dever afastar qualquer pretensão ao absoluto, por outro suas variações graduais não apresentam nenhum caráter arbitrário que possa motivar um ceticismo ainda mais perigoso; cada mudança sucessiva conserva, aliás espontaneamente, para as teorias correspondentes, uma aptidão indefinida para representar os fenômenos que lhes ser viram de base, ao menos enquanto não se deve ultrapassar O grau primitivo de sua precisão efetiva. Desde que a subordinação constante da imaginação à observação foi unanimemente reconhecida como a primeira condição fundamental de toda sã especulação científica, uma viciosa interpretação levou muitas vezes a abusar muito deste grande princípio lógico para fazer a ciência real degenerar numa espécie de estéril acumulação de fatos incoerentes, que não poderiam oferecer outro mérito essencial além da exatidão parcial. Importa, pois, perceber bem que o verdadeiro espírito positivo no fundo não está menos afastado do empirismo do que do misticismo; é entre estas duas aberrações, igualmente funestas, que ele sempre deve caminhar. A necessidade de tal reserva contínua, tão difícil como importante, bastaria, aliás, para verificar, em conformidade com as nossas explicações iniciais, quanto a verdadeira positividade deve ser maduramente preparada, de maneira a não poder de modo algum convir ao estado nascente da Humanidade. E nas leis dos fenômenos que consiste realmente a ciência, à qual os fatos propriamente ditos, por mais exatos e numerosos que possam ser, nunca fornecem senão materiais indispensáveis. Ora, considerando a destinação constante destas leis, pode-se dizer sem exagero algum que a verdadeira ciência, muito longe de ser formada por simples observações, tende sempre a prescindir, tanto quanto possível, da exploração direta, substituindo-a por essa previsão racional que constitui, sob todos os aspectos, o principal caráter do espírito positivo, como o conjunto dos estudos astronômicos nos fará perceber claramente. Tal previsão, consequência necessária das relações constantes descobertas entre os fenômenos, nunca permitirá confundir a ciência real com essa vã erudição que acumula maquinalmente fatos sem aspirar a deduzi-los uns dos outros. Este grande atributo de todas as nossas sãs especulações não importa menos à sua utilidade efetiva do que à sua própria dignidade, pois a exploração direta dos fenômenos realizados não bastaria para nos permitir modificar-lhes a realização, se ela não nos levasse a prevê-la convenientemente. Assim, o verdadeiro espírito positivo consiste sobretudo em ver para prever, em estudar o que é a fim para daí concluir o que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais. (Sobre esta apreciação geral do espírito e sobre o andamento próprio do método positivo, pode-se estudar, com muito proveito, a preciosa obra intitulada A system of logic, ratiocinative and inductive, recentemente publicado em Londres (john Parker, West Strand, 1843) por meu eminente amigo John Stuart MiII, de agora em diante plenamente associado à fundação direta da nova filosofia. Os sete últimos capítulos do primeiro tomo contêm uma admirável explanação dogmática, tão profunda como luminosa, da lógica indutiva, que jamais poderá, ouso assegurar, ser mais bem concebida, nem mais bem caracterizada, permanecendo-se no ponto de vista em que o autor se colocou). Este princípio fundamental de toda filosofia positiva, sem que ainda se estenda suficientemente, longe disso, ao conjunto dos fenômenos, felizmente está começando, há três séculos, a tornar-se tão familiar que, em consequência de hábitos absolutos anteriormente enraizados, quase sempre desconhecemos até agora a sua verdadeira fonte, empenhando-nos, segundo uma vã e confusa argumentação metafísica, em representar como uma espécie de noção inata, ou pelo menos primitiva, o que só pôde certamente resultar de uma lenta indução gradual, ao mesmo tempo coletiva e individual. Não só nenhum motivo racional, independente de qualquer exploração exterior, nos indica de início a invariabilidade das relações físicas, como é incontestável, pelo contrário, que o espírito humano experimenta, durante sua longa infância, uma inclinação muito viva para desconhecê-la, justamente no ponto em que uma observação imparcial já lha demonstraria, se ele não fosse então levado por sua tendência necessária a relacionar todos e quaisquer acontecimentos, sobretudo os mais importantes, com vontades arbitrárias. Em cada ordem de fenômenos existem, por certo, alguns bastante simples e bastante familiares para que a sua observação espontânea sempre tenha sugerido o sentimento confuso e incoerente de certa regularidade secundária; de sorte que o ponto de vista puramente teológico nunca pôde ser rigorosamente universal. Mas essa convicção parcial e precária limita-se por tanto tempo aos fenômenos menos numerosos e mais subalternos, que nem sequer pode então preservar-se das frequentes perturbações atribuídas à intervenção preponderante dos agentes sobrenaturais. O princípio da invariabilidade das leis naturais só começou realmente a adquirir alguma consistência quando os primeiros trabalhos verdadeiramente científicos puderam manifestar a sua exatidão essencial numa ordem inteira de grandes fenômenos; isso só poderia resultar suficientemente da fundação da astronomia matemática durante os derradeiros séculos do politeísmo. Segundo esta introdução sistemática, este dogma fundamental por certo tendeu a estender-se, por analogia, a fenômenos mais complicados, antes mesmo que suas leis próprias pudessem ser de algum modo conhecidas. Mas além de sua esterilidade efetiva, essa vaga antecipação lógica tinha então pouquíssima energia para resistir convenientemente à ativa supremacia mental que as ilusões teológicas ainda conservavam. Um primeiro esboço especial do estabelecimento das leis naturais em relação a cada ordem principal dos fenômenos tornou-se em seguida indispensável para proporcionar a tal noção esta força inabalável que começa a apresentar nas ciências mais avançadas. Esta convicção nem sequer poderia tornar-se bastante firme enquanto semelhante elaboração não fosse estendida verdadeiramente a todas as especulações fundamentais, devendo então a incerteza deixada pelas mais complicadas afetar mais ou menos cada uma das outras. Não se pode desconhecer essa tenebrosa reação, mesmo hoje, quando, em consequência da ignorância ainda habitual das leis sociológicas, o princípio da invariabilidade das relações físicas por vezes permanece sujeito a graves alterações, até nos estudos puramente matemáticos, em que vemos, por exemplo, a preconização diária de um pretenso cálculo dos acasos, que supõe implicitamente a ausência de qualquer lei real acerca de certos acontecimentos, sobretudo quando o homem intervém neles. Mas quando esta extensão universal está por fim suficientemente esboçada, condição atualmente preenchida entre os espíritos mais avançados, este grande princípio filosófico adquire imediatamente uma plenitude decisiva, embora as leis efetivas da maioria dos casos particulares devam permanecer por muito tempo ignoradas; porque uma irresistível analogia então aplica de antemão a todos os fenômenos de cada ordem aquilo que foi constatado apenas para alguns dentre eles, contanto que tenham uma importância conveniente. Após ter considerado o espírito positivo relativamente aos objetos exteriores a nossas especulações, cumpre acabar de caracterizá-la apreciando também a sua destinação interior, para a satisfação contínua de nossas próprias necessidades, quer se refiram à vida contemplativa, quer à vida ativa. Conquanto as necessidades puramente mentais sejam por certo as menos enérgicas de todas as necessidades inerentes à nossa natureza, sua existência direta e permanente é, no entanto, incontestável em todas as inteligências; constituem o primeiro estímulo indispensável a nossos diversos esforços filosóficos, com muita frequência atribuídos sobretudo aos impulsos práticos, que os desenvolvem muito, é verdade, mas não poderiam fazê-las nascer. Estas exigências intelectuais, relativas, como todas as outras, ao exercício regular das funções correspondentes, exigem sempre uma feliz combinação de estabilidade e atividade, da qual resultam as necessidades simultâneas de ordem e de progresso, ou de ligação e extensão. Durante a longa infância da Humanidade, as concepções teológico-metafísicas eram as únicas que podiam, conforme nossas explicações anteriores, satisfazer a esta dupla condição fundamental, embora de maneira extremamente imperfeita. Mas quando a razão humana está afinal bastante amadurecida para renunciar francamente às buscas inacessíveis e para circunscrever sabiamente a sua atividade ao campo verdadeiramente apreciável por nossas faculdades, a filosofia positiva proporciona-lhe certamente uma satisfação muito mais completa sob todos os aspectos, assim como mais real, destas duas necessidades elementares. Tal é, evidentemente, sob este novo aspecto, a destinação direta das leis que ela descobre sobre os diversos fenômenos e da previsão racional que lhe é inseparável. Para cada ordem de acontecimentos, estas leis devem, a este respeito, ser distinguidas em duas espécies, consoante ligam por similitude aqueles que coexistem, ou por filiação, aqueles que se sucedem. Esta indispensável distinção corresponde essencialmente, para o mundo exterior, àquela que este nos oferece sempre espontaneamente entre os dois estados correlativos de existência e de movimento; do que resulta, em toda ciência real, uma indiferença fundamental entre a apreciação estática e a apreciação dinâmica de um assunto qualquer. Os dois gêneros de relações contribuem igualmente para explicar os fenômenos, e do mesmo modo levam a prevê-los, conquanto as leis de harmonia pareçam de início destinadas sobretudo à explicação e as leis de sucessão, à previsão. Realmente, quer se trate ou de explicar ou de prever, tudo sempre se reduz a ligar: qualquer ligação real, estática ou dinâmica, descoberta entre dois fenômenos quaisquer, permite ao mesmo tempo explicá-los e prevê-los um após o outro, pois a previsão científica evidentemente convém ao presente e mesmo ao passado, assim como ao futuro, consistindo sem cessar em conhecer um fato independentemente de sua exploração direta, em virtude de suas relações com outros já dados. Assim, por exemplo, a assimilação demonstrada entre a gravitação celeste e a gravidade terrestre levou, de acordo com as variações pronunciadas da primeira, a prever as pequenas variações da segunda, que a observação imediata não podia desvendar suficientemente, conquanto as tenha em seguida confirmado; assim também, em sentido inverso, a correspondência outrora observada entre o período elementar das marés e o dia lunar foi explicada logo que se soube que a elevação das águas em cada ponto era resultado da passagem da Lua pelo meridiano local. Todas as nossas verdadeiras necessidades lógicas convergem, essencialmente, pois, para esta destinação comum: consolidar, tanto quanto possível, mediante nossas especulações sistemáticas, a unidade espontânea de nosso entendimento, constituindo a continuidade e a homogeneidade de nossas diversas concepções, de modo a satisfazer igualmente às exigências simultâneas da ordem e do progresso, fazendo-nos encontrar a constância no meio da variedade. Ora, é evidente que, neste aspecto fundamental, a filosofia positiva comporta necessariamente, entre os espíritos bem preparados, uma aptidão muito superior àquela que jamais conseguiu oferecer a filosofia teológico-metafísica. Mesmo considerando-a na época de sua maior ascendência, a um só tempo mental e social, isto é, no estado politeico, a unidade intelectual aí se encontrava certamente constituída de uma maneira muito menos completa e menos estável do que lhe permitirá proximamente a preponderância universal do espírito positivo, quando ele enfim houver se estendido habitualmente às mais eminentes especulações. Então reinará de fato em toda parte, de diversos modos e em diferentes graus, esta admirável constituição lógica, cujos mais simples estudos, por si só, podem hoje nos dar uma ideia justa, em que a ligação e a extensão, cada qual plenamente garantida, sejam, ademais, espontaneamente solidárias. Este grande resultado filosófico não exige, aliás, outra condição necessária além da obrigação permanente de restringir todas as nossas especulações às pesquisas verdadeiramente acessíveis, considerando que essas relações reais, quer de similitude, quer de sucessão, não podem constituir em si mesmas para nós senão simples fatos gerais, que é preciso sempre tender a reduzir ao menor número possível, sem que o mistério de sua produção jamais possa ser de forma alguma penetrado, em conformidade com o caráter fundamental do espírito positivo. Mas esta constância efetiva das ligações naturais é a única que nos é verdadeiramente apreciável, e só ela também é plenamente suficiente para nossas verdadeiras necessidades, quer de contemplação, quer de direção. Entretanto, importa reconhecer em princípio apenas que, sob o regime positivo, a harmonia de nossas concepções se encontra necessariamente limitada, em certo grau, pela obrigação fundamental de sua realidade (Nossas concepções não podem ser suficientemente harmônicas entre si porque devem conformar-se com realidades distintas de nós, as quais não são inteiramente harmônicas entre si. Em suma, nossa necessidade de unidade subjetiva não encontra uma justificativa suficiente na unidade objetiva.), isto é, de uma insuficiente conformidade a tipos independentes de nós. Em seu cego instinto de ligação nossa inteligência aspira quase a poder sempre ligar entre si dois fenômenos quaisquer, simultâneos ou sucessivos; mas o estudo do mundo exterior demonstra, pelo contrário, que muitas dessas aproximações seriam puramente quiméricas, e uma profusão de acontecimentos se realiza continuamente sem nenhuma verdadeira dependência mútua; de sorte que esta propensão indispensável tem tanta necessidade quanto qualquer outra de ser regulada mediante uma sadia apreciação geral. Por muito tempo habituado a uma espécie de unidade de doutrina, por mais vaga e ilusória que fosse, sob o domínio das ficções teológicas e das entidades metafísicas, o espírito humano, ao passar para o estado positivo, tentou primeiro reduzir todas as diversas ordens de fenômenos a uma única lei comum. Mas todas as tentativas efetuadas durante os dois últimos séculos para obter uma explicação universal da natureza só redundaram em desacreditar radicalmente tal empreendimento, de agora em diante abandonado às inteligências mal formadas. Uma judiciosa exploração do mundo exterior apresentou-o como sendo muito menos ligado do que supõe ou deseja o nosso entendimento que, por sua própria fraqueza, propende mais a multiplicar relações favoráveis a seu andamento e, sobretudo, a seu repouso. Não só as seis categorias fundamentais que distinguiremos mais adiante entre os fenômenos naturais não poderiam, certamente, ser reduzidas a uma única lei universal, mas convém ainda assegurar agora que a unidade de explicação, ainda procurada por tantos espíritos sérios para cada uma dessas categorias tomada à parte, nos está finalmente proibida, mesmo neste campo muito mais restrito. A astronomia fez nascer, a este respeito, esperanças demasiado empíricas, que nunca poderiam realizar-se para os fenômenos mais complicados, não só quanto à física propriamente dita, cujos cinco ramos principais (Barologia, termologia, acústica, óptica e eletrologia) sempre permanecerão distintos entre si, apesar de suas incontestáveis relações. Frequentemente estamos dispostos a exagerar muito os inconvenientes lógicos de tal dispersão necessária, porque apreciamos mal as vantagens reais apresentadas pela transformação das induções em deduções. No entanto, cumpre reconhecer francamente esta impossibilidade direta de reduzir tudo a uma única lei positiva como uma grave imperfeição, consequência inevitável da condição humana que nos força a aplicar uma inteligência muito fraca a um universo muito complicado. Mas esta incontestável necessidade, que é importante reconhecer para evitar qualquer vão desperdício das forças mentais, de modo algum impede que a ciência real comporte, sob outro aspecto, suficiente unidade filosófica, equivalente àquelas que a teologia ou a metafísica constituíram passageiramente, e aliás muito superior a elas, tanto em estabilidade quanto em plenitude. Para perceber a sua possibilidade e apreciar a sua natureza, é preciso primeiro recorrer à luminosa distinção geral esboçada por Kant entre os dois pontos de vista objetivo e subjetivo, próprios de qualquer estudo. Considerada neste primeiro aspecto, isto é, quanto à destinação exterior de nossas teorias, como exata representação do mundo real, nossa ciência certamente não é suscetível de uma plena sistematização, por causa de uma inevitável diversidade entre os fenômenos fundamentais. Neste sentido, não devemos procurar outra unidade além daquela do método positivo considerado em seu conjunto, sem a pretensão de uma verdadeira unidade científica, aspirando somente à homogeneidade e à convergência das diferentes doutrinas. A situação é totalmente diferente no outro aspecto, isto é, quanto à fonte interior das teorias humanas, encaradas como resultados naturais de nossa evolução mental, ao mesmo tempo individual e coletiva, destinadas à satisfação normal de nossas próprias necessidades, sejam quais forem. Assim relacionados, não com o universo, mas com o homem, ou antes, com a Humanidade, nossos conhecimentos reais, tendem, ao contrário, com evidente espontaneidade, a uma inteira sistematização, tanto científica quanto lógica, Já não devemos então conceber, no fundo, senão uma única ciência, a ciência humana, ou mais exatamente social, da qual nossa existência constitui o princípio e o objetivo ao mesmo tempo, e à qual vem agregar-se naturalmente o estudo racional do mundo exterior, a duplo título de elemento necessário e de preâmbulo fundamental, igualmente indispensável quanto ao método e quanto à doutrina, como explicarei mais adiante. Somente assim nossos conhecimentos positivos podem formar um verdadeiro sistema que ofereça um caráter plenamente satisfatório. A própria astronomia, apesar de objetivamente mais perfeita do que os outros ramos da filosofia natural, em razão de sua simplicidade superior, só é verdadeiramente tal no aspecto humano, pois o conjunto deste Tratado fará perceber nitidamente que ela deveria pelo contrário, ser julgada muito imperfeita se a relacionássemos com o universo e não com o homem, já que todos os nossos estudos reais são necessariamente limitados a nosso mundo, que contudo constitui apenas um mínimo elemento do universo, cuja exploração nos é essencialmente proibida. Tal é, pois, a disposição geral que deve finalmente prevalecer na filosofia verdadeiramente positiva, não só quanto às teorias diretamente relativas ao homem e à sociedade, mas também quanto àquelas concernentes aos fenômenos mais simples, mais afastados, na aparência, desta comum apreciação: conceber todas as nossas especulações como produtos de nossa inteligência, destinados a satisfazer a nossas diversas necessidades essenciais, nunca se separando do homem senão para voltar melhor a ele, após ter estudado os outros fenômenos na medida em que seu conhecimento é indispensável, quer para desenvolver as nossas forças, quer para apreciar a nossa natureza e a nossa condição. Podemos desde logo perceber como a noção preponderante da Humanidade deve necessariamente constituir, no estado positivo, uma plena sistematização mental, ao menos equivalente àquela que a idade teológico finalmente comportara consoante a grande concepção de Deus, substituída tão fracamente em seguida, a este respeito, durante a transição metafísica, pelo vago pensamento da Natureza. Após ter assim caracterizado a aptidão espontânea do espírito positivo para constituir a unidade final de nosso entendimento, torna-se fácil completar esta explicação fundamental estendendo-a do indivíduo à espécie. Esta indispensável extensão era até agora essencialmente impossível para os filósofos modernos que, não tendo conseguido sair suficientemente do estado metafísico, nunca se instalaram no ponto de vista social, o único suscetível, entretanto, de plena realidade, quer científica, quer lógica, pois o homem não se desenvolve isoladamente, mas coletivamente. Afastando como radicalmente estéril, ou antes, profundamente nociva - essa viciosa abstração de nossos psicólogos ou ideólogos, a tendência sistemática que acabamos de apreciar no espírito positivo adquire afinal toda a sua importância, porque indica nele o verdadeiro fundamento filosófico da sociabilidade humana, ao menos na medida em que esta depende da inteligência, cuja influência capital, embora não seja de modo algum exclusiva, não poderia ser contestada. De fato, trata-se do mesmo problema humano, em diversos graus de dificuldade, constituir a unidade lógica de cada entendimento isolado ou estabelecer uma convergência duradoura entre entendimentos distintos, cujo número só poderia influir essencialmente na rapidez da operação. Dessa forma, em todas as épocas, quem conseguiu tornar-se suficientemente consequente adquiriu, por isso mesmo, a faculdade de congregar gradualmente os outros, segundo a similitude fundamental de nossa espécie. A filosofia teológica foi, durante a infância da Humanidade, a única capaz de sistematizar a sociedade, apenas por ser então a fonte exclusiva de certa harmonia mental. Portanto, se o privilégio da coerência lógica doravante passou irrevogavelmente para o espírito positivo, o que, seriamente, é quase incontestável, cumpre desde já reconhecê-lo também como o único princípio efetivo desta grande comunhão intelectual que se torna a base necessária de toda verdadeira associação humana, quando está convenientemente ligada às outras duas condições fundamentais: suficiente conformidade de sentimentos e certa convergência de interesses. A deplorável situação filosófica da elite da Humanidade bastaria hoje para dispensar qualquer discussão a este respeito, pois que já não se observa verdadeira conformidade de opiniões a não ser sobre os assuntos já convertidos às teorias positivas, os quais não são, longe disso, os mais importantes. Aliás, uma apreciação direta e especial, que aqui estaria deslocada, faz perceber facilmente que apenas a filosofia positiva pode realizar gradualmente este nobre projeto de associação universal que o catolicismo, na Idade Média, esboçara prematuramente, mas que no fundo era necessariamente incompatível, como constatou plenamente a experiência, com a natureza teológica da sua filosofia, a qual instituía uma coerência lógica fraca demais para comportar tal eficácia social. Como a aptidão fundamental do espírito positivo já está bastante caracterizada relativamente à vida especulativa, só nos resta apreciá-lo também com relação à vida ativa que, sem poder mostrar nele nenhuma propriedade verdadeiramente nova, apresenta, de maneira muito mais completa, e sobretudo mais decisiva, o conjunto dos atributos que nele reconhecemos. Embora as concepções teológicas tenham sido, mesmo neste aspecto, por muito tempo necessárias para despertar e sustentar o fervor do homem, através da esperança indireta de uma espécie de império ilimitado, foi entretanto a esse respeito que o espírito humano teve de testemunhar primeiramente a sua predileção final pelos conhecimentos reais. Com efeito, é sobretudo como base racional da ação da Humanidade sobre o mundo exterior que o estudo positivo da natureza começa hoje a ser estimado universalmente. Nada é mais sábio, no fundo, do que este juízo vulgar e espontâneo, pois tal destinação, quando apreciada convenientemente, exige necessariamente, mediante o resumo mais feliz, todas as grandes marcas do verdadeiro espírito filosófico, tanto no tocante à racionalidade quanto à positividade. A ordem natural resultante em cada caso prático do conjunto das leis dos fenômenos correspondentes deve evidentemente nos ser primeiro bem conhecida para que possamos modificá-la em nosso proveito ou, pelo menos, adaptar nossa conduta a ela, se qualquer intervenção humana for então impossível, como no caso dos acontecimentos celestes. Tal aplicação é sobretudo adequada para tornar familiarmente apreciável esta previsão racional que vimos constituir, em todos os aspectos, o principal caráter da verdadeira ciência: pois a pura erudição, em que os conhecimentos reais, mas incoerentes, consistem em fatos e não em leis, evidentemente não poderia bastar para dirigir a nossa atividade; seria supérfluo insistir aqui numa explicação tão pouco contestável. E verdade que a exorbitante preponderância concedida agora aos interesses materiais levou com muita frequência a compreender esta ligação necessária de modo a comprometer gravemente o futuro científico, tendendo a restringir as especulações positivas apenas às pesquisas de utilidade imediata. Mas esta cega disposição só resulta de uma maneira falsa e estreita de conceber a grande relação da ciência com a arte (A arte é entendida aqui no sentido de aplicação técnica ou, mais exatamente, de relação com os problemas da ação. Esta se estende do mundo inorgânico ao mundo orgânico e humano. Trata-se, então, de moral e de política), por não se terem apreciado ambas com profundidade suficiente. O estudo da astronomia é o mais apropriado de todos para retificar tal tendência, seja porque sua simplicidade superior permite apreender-lhe melhor o conjunto, seja em virtude da espontaneidade mais íntima das aplicações correspondentes que, há vinte séculos, nele se encontram com evidências ligadas às mais sublimes especulações, como este Tratado fará perceber nitidamente. Mas importa sobretudo bem reconhecer, a este respeito, que a relação fundamental entre a ciência e a arte não pôde até agora ser convenientemente concebida, mesmo pelos melhores espíritos, por consequência necessária da insuficiente extensão da filosofia natural, que ainda permanece alheia às pesquisas mais importantes e mais difíceis que envolvem diretamente a sociedade humana. De fato, a concepção racional da ação do homem sobre a natureza ficou assim essencialmente limitada ao mundo inorgânico, do que resultaria uma excitação científica por demais imperfeita. Quando esta imensa lacuna tiver sido suficientemente preenchida, como começa a ser hoje, poder-se-á perceber a importância fundamental desta grande destinação prática para estimular habitualmente, e muitas vezes até para melhor dirigir, as mais eminentes especulações, com a única condição normal de uma constante positividade. Pois a arte já não será então unicamente geométrica, mecânica ou química, etc., mas também, e sobretudo, política e moral, devendo a principal ação exercida pela Humanidade consistir, em todos os aspectos, no melhoramento contínuo de sua própria natureza individual ou coletiva, entre os limites indicados, assim como em todos os outros casos, pelo conjunto das leis reais. Quando esta solidariedade espontânea da ciência com a arte puder ser convenientemente organizada, não se pode duvidar de que, bem longe de tender a restringir de algum modo as sãs especulações filosóficas, ela lhes destinará, ao contrário, uma tarefa final muito superior a seu alcance efetivo. Isso se de antemão se tiver reconhecido, como princípio geral, a impossibilidade de um dia tornar a arte puramente racional, isto é, de elevar as nossas previsões teóricas ao verdadeiro nível de nossas necessidades práticas. Mesmo nas artes mais simples e mais perfeitas, um desenvolvimento direto e espontâneo permanece constantemente indispensável, sem que as indicações científicas possam, em caso algum, supri-las completamente. Por mais satisfatórias, por exemplo, que se tenham tornado as nossas previsões astronômicas, sua precisão ainda é, e provavelmente sempre será, inferior a nossas justas exigências práticas, como terei várias oportunidades de indicar. Esta tendência espontânea para constituir diretamente uma inteira harmonia entre a vida especulativa e a vida ativa deve ser finalmente encarada como o mais feliz privilégio do espírito positivo, do qual nenhuma outra propriedade pode manifestar tão bem o verdadeiro caráter e facilitar a ascendência real. Nosso fervor especulativo fica assim mantido, e mesmo dirigido, por uma poderosa estimulação contínua, sem a qual a inércia natural de nossa inteligência a disporia frequentemente a satisfazer suas fracas necessidades teóricas com explicações fáceis, mas insuficientes, ao passo que o pensamento da ação final lembra sempre a condição de uma precisão conveniente. Ao mesmo tempo, esta grande destinação prática completa e circunscreve, em cada caso, a prescrição fundamental relativa à descoberta das leis naturais, tendendo a determinar, segundo as exigências da aplicação, o grau de precisão e de extensão de nossa previdência racional, cuja justa medida não poderia, em geral, ser fixada de outra maneira. Se, por um lado, a perfeição científica não poderia ultrapassar tal limite, abaixo do qual, ao contrário, ela sempre permanecerá, por outro lado, não poderá transpô-lo sem cair logo numa apreciação minuciosa demais, não menos quimérica do que estéril, e que até comprometeria finalmente todos os fundamentos da verdadeira ciência. Isso porque nossas leis só podem representar os fenômenos com certa aproximação, além da qual seria tão perigoso como inútil desenvolver as nossas pesquisas. Quando esta relação fundamental da arte com a ciência estiver convenientemente sistematizada, por certo tenderá a desacreditar algumas tentativas teóricas cuja esterilidade radical seria incontestável. Mas, longe de oferecer algum inconveniente real, esta inevitável disposição tornar-se-á então muito favorável a nossos verdadeiros interesses especulativos, evitando o vão desperdício de nossas fracas forças mentais que hoje resulta quase sempre de uma cega especialização. Em sua evolução preliminar, o espírito positivo teve de ligar-se em toda parte a quaisquer questões que se lhe tornassem acessíveis, sem indagar muito sobre sua importância final, derivada de sua própria relação com um conjunto que não podia ser percebido de início. Mas este instinto provisório, sem o qual teria faltado frequentemente alimento conveniente à ciência, deve acabar por se subordinar habitualmente a uma justa apreciação sistemática, assim que a plena maturidade do estado positivo tiver permitido suficientemente apreender sempre as verdadeiras relações essenciais de cada parte com o todo, de maneira a oferecer constantemente uma ampla destinação às mais eminentes pesquisas, evitando contudo todas as especulações pueris. A respeito desta íntima harmonia entre a ciência e a arte, importa enfim observar especialmente a feliz tendência que dela resulta para desenvolver e consolidar a ascendência social da sã filosofia, em virtude do prolongamento espontâneo da vida industrial em nossa civilização moderna. A filosofia teológica só podia convir a esses tempos necessários de sociabilidade preliminar, em que a atividade humana deve ser essencialmente militar, a fim de preparar gradualmente uma associação normal e completa, de início impossível, conforme a teoria histórica que estabeleci em outro lugar. O politeísmo adaptava-se sobretudo ao sistema de conquista da Antiguidade, e o monoteísmo à organização defensiva da Idade Média. Fazendo prevalecer cada vez mais a vida industrial, a sociabilidade (O termo sociabilidade designa mais do que a aptidão para o social, prende-se sobretudo à forma das relações inter-humanas numa determinada sociedade) moderna deve, pois, secundar poderosamente a grande revolução mental que hoje eleva definitivamente a nossa inteligência do regime teológico ao regime positivo. Não só esta ativa tendência cotidiana para a melhoria prática da condição humana é necessariamente pouco compatível com as preocupações religiosas, sempre relativas, mormente sob o monoteísmo, a uma destinação completamente diferente, mas, além disso, tal atividade é de natureza a suscitar uma oposição universal, tão radical como espontânea, a todas as filosofias teológicas. Com efeito, em primeiro lugar, a vida industrial é, no fundo, diretamente contrária a qualquer otimismo providencial, já que pressupõe necessariamente que a ordem natural é bastante imperfeita para exigir uma contínua intervenção humana, ao passo que a teologia não admite logicamente outro meio de modificá-la a não ser a solicitação de um apoio sobrenatural. Em segundo lugar, essa oposição, inerente ao conjunto de nossas concepções industriais, reproduz-se continuamente, em formas muito variadas, na conclusão especial de nossas operações, quando devemos considerar o mundo exterior não como dirigido por quaisquer vontades, mas sim como submetido a leis capazes de nos permitir suficiente previsão, sem a qual a nossa atividade prática não comportaria nenhuma base racional. Assim, a mesma correlação fundamental que torna a vida industrial tão favorável à ascendência filosófica do espírito positivo imprime-lhe, sob outro aspecto, uma tendência antiteológica mais ou menos pronunciada, porém, mais cedo ou mais tarde inevitável, quaisquer que possam ter sido os esforços contínuos de sabedoria sacerdotal para conter ou temperar o caráter anti-industrial da filosofia inicial, com a qual a vida guerreira era a única suficientemente conciliável. Tal é a íntima solidariedade que faz involuntariamente todos os espíritos, mesmo os mais grosseiros e mais rebeldes, participarem da substituição gradual da antiga filosofia teológica por uma filosofia plenamente positiva, doravante a única suscetível de uma verdadeira ascendência social. Somos assim levados a completar afinal a apreciação direta do verdadeiro espírito filosófico com uma última explicação que, embora sendo sobretudo negativa, se torna hoje realmente indispensável para acabar de caracterizar suficientemente a natureza e as condições da grande renovação mental agora necessária à elite da Humanidade, ao manifestar diretamente a incompatibilidade final das concepções positivas com todas e quaisquer opiniões teológicas: monoteicas, politeicas ou fetichistas. As diversas considerações indicadas neste Discurso já demonstraram implicitamente a impossibilidade de qualquer conciliação duradoura entre as duas filosofias, tanto no tocante ao método quanto à doutrina, de sorte que qualquer incerteza a este respeito pode ser aqui dissipada com facilidade. Por certo, a ciência e a teologia não estão desde o início em oposição aberta, visto que não se propõem as mesmas questões; foi isso que permitiu por muito tempo o desenvolvimento parcial do espírito positivo, apesar da ascendência geral do espírito teológico, e até mesmo, em muitos aspectos, sob a sua tutela prévia. Mas quando a positividade racional, inicialmente limitada a humildes pesquisas matemáticas que a teologia desprezara atingir especialmente.começou a estender-se ao estudo direto da natureza, sobretudo mediante as teorias astronômicas, o choque, embora latente, tornou-se inevitável em virtude do contraste fundamental, a um só tempo científico e lógico, que desde então se foi desenvolvendo progressivamente entre as duas ordens de ideias. Os motivos lógicos pelos quais a ciência se proíbe radicalmente, os misteriosos problemas de que a teologia se ocupa essencialmente são por sua vez capazes de desacreditar, mais cedo ou mais tarde, entre todos os bons espíritos, especulações que só descartamos por serem necessariamente inacessíveis à razão humana. Além disso, a sábia reserva com que o espírito positivo procede gradualmente nos assuntos muito fáceis deve levar indiretamente à apreciação da louca temeridade do espírito teológico a propósito das mais difíceis questões. Todavia, é sobretudo pelas doutrinas que a incompatibilidade das duas filosofias deve revelar-se para a maioria das inteligências, normalmente muito pouco interessadas em simples dissidências de método, embora estas no fundo sejam as mais graves, por serem a fonte necessária de todas as outras. Ora, neste novo aspecto, não se pode ignorar a oposição radical das duas ordens de concepções, em que os mesmos fenômenos são umas vezes atribuídos a vontades diretrizes e outras submetidos a leis invariáveis. A mobilidade irregular, naturalmente inerente a toda ideia de vontade, não pode de modo algum conciliar-se com a constância das relações reais. Assim, à medida que as leis físicas foram sendo conhecidas, o domínio das vontades sobrenaturais ficou cada vez mais restrito, sendo sempre aplicado sobretudo aos fenômenos cujas leis permaneciam ignoradas. Tal incompatibilidade torna-se diretamente evidente quando opomos a previsão racional, que constitui o principal caráter da verdadeira ciência, à adivinhação mediante revelação especial, que a teologia deve representar como a que oferece o único meio legítimo de conhecer o futuro. E verdade que o espírito positivo, tendo chegado à sua inteira maturidade, tende também a subordinar a própria vontade a verdadeiras leis, cuja existência está de fato tacitamente suposta pela razão vulgar, uma vez que os esforços práticos para modificar e prever as vontades humanas sem isso não poderiam ter nenhum fundamento racional. Mas tal noção não leva de forma alguma a conciliar os dois modos opostos pelos quais a ciência e a teologia concebem necessariamente a direção efetiva dos diversos fenômenos. Pois semelhante previsão e a conduta que dela resulta exigem evidentemente um profundo conhecimento real do ser em cujo seio as vontades se produzem. Ora, este fundamento prévio só poderia provir de um ser ao menos igual, julgando-se assim por similitude; não podemos concebê-lo por parte de um inferior, aumentando a contradição com a desigualdade de natureza. Por isso a teologia sempre repeliu a pretensão de penetrar de algum modo os desígnios providenciais, assim como seria absurdo supor que os últimos animais têm a faculdade de prever as vontades do homem ou dos outros animais superiores. Contudo, é a essa louca hipótese que seríamos necessariamente conduzidos para conciliar finalmente o espírito teológico com o espírito positivo. Historicamente considerada, esta oposição radical, aplicável a todas as fases essenciais da filosofia inicial, há muito tempo tem sido geralmente admitida para as fases completamente superadas pelas populações mais avançadas. E mesmo certo que, a este respeito, se exagera muito tal incompatibilidade, em virtude desse desdém absoluto que nossos hábitos monoteicos inspiram cegamente pelos dois estados anteriores do regime teológico. A sã filosofia, sempre obrigada a apreciar o modo necessário segundo o qual cada uma das grandes fases sucessivas da Humanidade concorreu efetivamente para a nossa evolução fundamental, retificará com cuidado esses injustos preconceitos, que impedem toda verdadeira teoria histórica. Mas, se bem que o politeísmo e mesmo o fetichismo tenham de início secundado realmente o surto espontâneo do espírito de observação, devemos mesmo assim reconhecer que não podiam ser verdadeiramente compatíveis com o sentimento gradual da invariabilidade das relações físicas, assim que este conseguiu adquirir certa consistência sistemática. Por isso, devemos conceber esta inevitável oposição como a principal fonte secreta das diversas transformações que foram sucessivamente decompondo a filosofia teológica, reduzindo-a cada vez mais. Cabe completar aqui a indispensável explicação sobre este assunto, indicada no início deste Discurso, na qual esta dissolução gradual foi atribuída especialmente ao estado metafísico propriamente dito que, no fundo, só podia ser o mero instrumento dela, e nunca o verdadeiro agente. De fato, cumpre observar que o espírito positivo, em consequência da falta de generalidade que devia caracterizar a sua lenta evolução parcial, não podia formular convenientemente suas próprias tendências filosóficas, que mal se tornaram diretamente sensíveis nos últimos séculos. Daí resultava a necessidade especial da intervenção metafísica, a única que podia sistematizar convenientemente a oposição espontânea da ciência nascente à antiga teologia. Mas, embora este trabalho tivesse de exagerar muito a importância efetiva deste espírito transitório, ainda assim é fácil reconhecer que o progresso natural dos conhecimentos reais era o único a dar uma séria consistência à sua ruidosa atividade. Este progresso contínuo, que no início até determinara, no fundo, a transformação do fetichismo em politeísmo, em seguida constituiu sobretudo a fonte essencial da redução do politeísmo ao monoteísmo. Como a colisão teve que ocorrer principalmente através das teorias astronômicas, este Tratado me fornecerá a oportunidade natural de caracterizar o grau preciso de seu desenvolvimento, ao qual cumpre atribuir, na verdade, a irrevogável decadência mental do regime politeico, que reconheceremos então ser logicamente incompatível com a fundação decisiva da astronomia matemática pela escola de Tales. O estudo racional desta oposição demonstra claramente que ela não podia limitar-se à teologia antiga, devendo estender-se em seguida ao próprio monoteísmo, conquanto sua energia devesse decrescer com a sua necessidade, à medida que o espírito teológico continuava a decair por causa do mesmo prodígio espontâneo. Por certo, essa fase extrema da filosofia inicial era muito menos contrária do que as precedentes ao desenvolvimento dos conhecimentos reais, que já não encontravam, a cada passo, a perigosa concorrência de uma explicação sobrenatural especialmente formulada. Por isso, foi sobretudo sob esse regime monoteico que teve de realizar-se a evolução preliminar do espírito positivo. Mas a incompatibilidade, mesmo sendo menos explícita e mais tardia, não deixava de ser finalmente inevitável, mesmo antes do tempo em que a nova filosofia viesse a ser geral o bastante para assumir um caráter verdadeiramente orgânico, substituindo irrevogavelmente a teologia tanto em sua função social quanto em sua destinação mental. Como o conflito precisou operar-se sobretudo através da astronomia, demonstrarei aqui com precisão qual evolução mais avançada estendeu necessariamente ao mais simples monoteísmo a sua oposição radical, antes limitada ao politeísmo propriamente dito; reconheceremos então que esta inevitável influência resulta da descoberta do duplo movimento da Terra, logo seguida pela fundação da mecânica celeste. No estado atual da razão humana, pode-se garantir que o regime monoteico, por muito tempo favorável ao surto primitivo dos conhecimentos reais, entrava profundamente a marcha sistemática que eles devem doravante seguir, impedindo o sentimento fundamental da invariabilidade das leis físicas de adquirir afinal a sua indispensável plenitude filosófica. Pois o pensamento contínuo de uma súbita perturbação arbitrária na economia natural sempre deve permanecer inseparável, pelo menos virtualmente, de toda e qualquer filosofia, mesmo que reduzido o quanto for possível. Com efeito, sem tal obstáculo, que só pode deixar de existir com o inteiro desgaste do espírito teológico, o espetáculo cotidiano da ordem real já teria determinado uma adesão universal ao princípio fundamental da filosofia positiva. Vários séculos antes que o desenvolvimento científico permitisse apreciar diretamente esta oposição radical, a transição metafísica tentara, sob seu impulso secreto, restringir, no próprio seio do monoteísmo, a ascendência da teologia, fazendo prevalecer abstratamente, no derradeiro período da Idade Média, a célebre doutrina escolástica que sujeitava a ação efetiva do motor supremo a leis invariáveis, que este teria estabelecido primitivamente, impedindo-se de modificá-las jamais. Mas essa espécie de transação espontânea entre o princípio teológico e o princípio positivo não comportava, evidentemente, senão uma existência passageira, apropriada para facilitar ainda mais o declínio contínuo de um e o triunfo gradual de outro. Seu domínio limitava-se essencialmente aos espíritos cultos, pois, enquanto a fé subsistiu realmente, o instinto popular sempre teve de repelir com energia uma concepção que, no fundo, tendia a anular o poder providencial, condenando-o a uma sublime inércia que deixava toda a atividade habitual à grande entidade metafísica; assim a Natureza ficava regularmente associada ao governo universal, a título de ministro devedor e responsável, ao qual se deveria dirigir desde então a maior parte das queixas e das súplicas. Vê-se que, em todos os aspectos essenciais, esta concepção se assemelha muito àquela que a situação moderna fez prevalecer cada vez mais a propósito da monarquia constitucional; esta analogia não é de modo algum fortuita, pois o tipo teológico forneceu de fato a base racional do tipo político. Esta doutrina contraditória, que arruína a eficácia social do princípio teológico sem consagrar a ascendência fundamental do princípio positivo, não poderia corresponder a nenhum estado verdadeiramente normal e duradouro; constitui apenas o mais poderoso dos meios de transição próprios do último ofício necessário do espírito metafísico. Enfim, a incompatibilidade necessária da ciência com a teologia teve de se manifestar também numa outra forma geral, especialmente adaptada ao estado monoteico, fazendo ressaltar cada vez mais a imperfeição radical da ordem real, oposta, assim, ao inevitável otimismo providencial. Este otimismo, por certo, teve de permanecer muito tempo conciliável com o crescimento espontâneo dos conhecimentos positivos, porque uma primeira análise da natureza devia então inspirar em toda parte uma ingênua admiração pelo modo de realização dos principais fenômenos que constituem a ordem efetiva. Mas essa disposição inicial tende a desaparecer em seguida, não menos necessariamente, à medida que o espírito positivo, assumindo um caráter cada vez mais sistemático, vai substituindo aos poucos o dogma das causas finais pelo princípio das condições de existência, que lhe oferece, num grau mais alto, todas as suas propriedades lógicas, sem apresentar nenhum de seus graves perigos científicos. Deixamos então de estranhar que a constituição dos seres naturais se encontre em cada caso disposta de maneira a permitir a conclusão de seus fenômenos efetivos. Estudando com cuidado esta inevitável harmonia com o único propósito de melhor conhecê-la, acabamos em seguida por observar as profundas imperfeições que apresenta, em todos os aspectos, a ordem real, quase sempre inferior em sabedoria à economia artificial que nossa fraca intervenção humana estabelece em seu campo limitado. Como esses vícios naturais devem ser tanto maiores quando se trata de fenômenos mais complicados, as indicações irrecusáveis que nos oferecerá, neste aspecto, o conjunto da astronomia, bastarão aqui para que se pressinta o quanto tal apreciação deve estender-se, com nova energia filosófica, a todas as outras partes essenciais da ciência real. Mas importa sobretudo compreender, em geral, a respeito dessa crítica, que ela não tem apenas uma destinação passageira, a título de meio antiteológico. Está vinculada, de maneira mais Íntima e mais duradoura, ao espírito fundamental da filosófica positiva, na relação geral entre a especulação e a ação. Se, por um lado, nossa ativa intervenção permanente estriba-se antes de tudo no exato conhecimento da economia natural, da qual nossa economia artificial deve constituir, em todos os aspectos, apenas o aperfeiçoamento progressivo, por outro lado, não é menos certo que supomos, assim, a imperfeição necessária desta ordem espontânea, cuja modificação gradual constitui o objetivo diário de todos os nossos esforços individuais ou coletivos. Abstraindo-se todas as críticas passageiras, a justa apreciação dos diversos inconvenientes próprios da constituição efetiva do mundo real deve ser concebida de agora em diante como inerente ao conjunto da filosofia positiva, mesmo no tocante aos casos inacessíveis a nossos fracos meios de aperfeiçoamento, a fim de melhor conhecer tanto a nossa condição fundamental quanto a destinação essencial de nossa atividade contínua. O concurso espontâneo das diversas considerações gerais indicadas neste discurso basta agora para caracterizar aqui, em todos os aspectos principais, o verdadeiro espírito filosófico que, após uma lenta evolução preliminar, atinge hoje seu estado sistemático. Dada a evidente obrigação que temos doravante de qualificá-lo por uma curta denominação especial, tive de preferir aquela a que essa preparação universal proporcionou cada vez mais, durante os últimos três séculos, a preciosa propriedade de resumir o melhor possível o conjunto de seus atributos fundamentais. Como todos os termos vulgares assim elevados gradualmente à dignidade filosófica, a palavra positivo apresenta em nossas línguas ocidentais várias acepções distintas, mesmo descartando o sentido grosseiro que os espíritos mal-cultivados vinculam inicialmente a ela. Mas importa notar aqui que todos estes diversos significados convêm igualmente à nova filosofia geral, da qual indicam alternativamente diferentes propriedades características; assim, esta aparente ambiguidade não trará mais nenhum inconveniente real. Cumprirá ver nisso, pelo contrário, um dos principais exemplos da admirável condensação de preceitos que, nas populações avançadas, reúne numa única expressão usual vários atributos distintos, quando a razão pública conseguiu reconhecer sua ligação permanente. Considerado primeiro em sua acepção mais antiga e mais comum, o termo positivo designa o real, em oposição ao quimérico; sob este aspecto, convém plenamente ao novo espírito filosófico, caracterizado assim segundo a sua dedicação constante às pesquisas realmente acessíveis à nossa inteligência, com a exclusão permanente dos impenetráveis mistérios que eram a ocupação principal de sua infância. Num segundo sentido, muito próximo do anterior, mas ainda assim distinto, este termo fundamental indica o contraste do útil com o desnecessário; lembra então, em filosofia, a destinação necessária de todas as nossas sãs especulações para a melhoria contínua de nossa verdadeira condição individual e coletiva, ao invés da vã satisfação de uma curiosidade estéril. Segundo um terceiro significado usual, esta feliz expressão é frequentemente empregada para qualificar a oposição entre a certeza e a indecisão; indica também a aptidão característica de tal filosofia para constituir espontaneamente a harmonia lógica no indivíduo e a comunhão espiritual na espécie inteira, ao invés dessas dúvidas indefinidas e desses debates intermináveis que devia suscitar o antigo regime mental. Uma quarta acepção comum, muito amiúde confundida com a anterior, consiste em opor o preciso ao vago; este sentido lembra a tendência constante do verdadeiro espírito filosófico para obter em toda parte o grau de precisão compatível com a natureza dos fenômenos e conforme a exigência de nossas verdadeiras necessidades, ao passo que a antiga maneira de filosofar levava necessariamente a opiniões vagas, só comportando uma indispensável disciplina com base numa opressão permanente, apoiada numa autoridade sobrenatural. Cumpre por fim notar especialmente uma quinta aplicação menos empregada que as outras, embora igualmente universal, quando se usa a palavra positivo como o contrário de negativo. Nesse aspecto, indica uma das mais eminentes propriedades da verdadeira filosofia moderna, mostrando-a destinada sobretudo, por sua natureza, não a destruir, mas a organizar. Os quatro caracteres gerais que acabamos de lembrar distinguem-na ao mesmo tempo de todos os modos possíveis, quer teológicos, quer metafísicos, próprios da filosofia inicial. Este último significado, indicando aliás uma tendência contínua do novo espírito filosófico, oferece hoje uma importância especial para caracterizar diretamente uma de suas principais diferenças, não mais em relação ao espírito teológico, que por muito tempo foi orgânico, mas em relação ao espírito metafísico propriamente dito, que nunca conseguiu ser mais do que crítico. De fato, qualquer que tenha sido a ação dissolvente da ciência real, esta influência sempre foi nela puramente indireta e secundária; seu próprio defeito de sistematização impedia até agora que pudesse ser de outro modo; e o grande ofício orgânico que agora lhe cabe se oporia de agora em diante a tal atribuição acessória, que aliás tende a se tornar supérflua. A sã filosofia descarta radicalmente, é verdade, todas as questões necessariamente insolúveis, mas, ao motivar a sua rejeição, evita nada negar a respeito delas, o que seria contraditório com este desgaste sistemático, o único pelo qual devem extinguir-se todas as opiniões verdadeiramente indiscutíveis. Mais imparcial e mais tolerante para com cada uma delas, dada a sua comum indiferença, de que podem sê-lo os seus partidários opostos, ela se aplica a apreciar historicamente sua influência respectiva, as condições de sua duração e os motivos de sua decadência, sem nunca pronunciar nenhuma negação absoluta, mesmo quando se trata das doutrinas mais antipáticas ao estado presente da razão humana entre as populações de elite. E assim que ela faz escrupulosa justiça, não só aos diversos sistemas de monoteísmo diferentes daquele que está expirando hoje entre nós, mas também às crenças politeicas, ou mesmo fetichistas, relacionando-as sempre com as fases correspondentes da evolução fundamental. Aliás, no aspecto dogmático, professa que quaisquer concepções de nossa imaginação, tão logo a natureza delas as torna inacessíveis a toda observação, deixam de ser susceptíveis de negação ou de afirmação verdadeiramente decisivas. Ninguém, por certo, jamais demonstrou logicamente a não existência de Apolo, de Minerva, etc., nem a das fadas orientais ou das diversas criações poéticas, o que não impediu de modo algum o espírito humano de abandonar irrevogavelmente os dogmas antigos, quando estes enfim cessaram de convir ao conjunto de sua situação. O único caráter essencial do novo espírito filosófico que ainda não está indicado diretamente pelo termo positivo consiste em sua necessária tendência para substituir em toda parte o absoluto pelo relativo. Mas este grande atributo, a um só tempo científico e lógico, é tão inerente à natureza fundamental dos conhecimentos reais, que sua consideração geral não tardará a se ligar intimamente aos diversos aspectos já combinados nessa fórmula, quando o moderno regime intelectual, até aqui parcial e empírico, passar comumente ao estado sistemático. A quinta acepção que acabamos de apreciar é apropriada sobretudo para determinar esta última condensação da nova linguagem filosófica, desde então plenamente constituída, segundo a evidente afinidade das duas propriedades. Concebe-se, com efeito, que a natureza absoluta das antigas doutrinas, tanto teológicas como metafísicas, determinava necessariamente cada uma delas a tornar-se negativa para com todas as outras, sob pena de ela mesma degenerar num absurdo ecletismo. E, ao contrário, em virtude de seu gênio relativo que a nova filosofia sempre pode apreciar o valor próprio das teorias que lhe são mais opostas, sem entretanto chegar jamais a uma vã concessão, capaz de alterar a nitidez de suas concepções e a firmeza de suas decisões. Convém portanto presumir, de acordo com o conjunto de tal apreciação especial, que a expressão aqui empregada para doravante qualificar habitualmente esta filosofia definitiva lembrará a todos os bons espíritos a inteira combinação efetiva de suas diversas propriedades características. Quando se procura a origem fundamental de tal maneira de filosofar, não se tarda a reconhecer que a sua espontaneidade elementar coincide realmente com os primeiros exercícios práticos da razão humana; pois o conjunto das explicações indicadas neste Discurso demonstra claramente que todos os seus atributos principais são, no fundo, os mesmos que os do bom senso universal. Apesar da ascendência mental da mais grosseira teologia, a conduta cotidiana da vida ativa sempre teve de suscitar, acerca de cada ordem de fenômenos, certo esboço das leis naturais e das previsões correspondentes, em alguns casos particulares, que então pareciam somente secundários ou excepcionais. Ora, são estes, de fato, os germes necessários da positividade, que por muito tempo deveria permanecer empírica antes de poder tornar-se racional. Importa muito perceber que, em todos os seus aspectos essenciais, o verdadeiro espírito filosófico consiste sobretudo na extensão sistemática do simples bom senso a todas as especulações verdadeiramente acessíveis. O campo delas é radicalmente idêntico, já que as maiores questões da sã filosofia se relacionam em toda parte com os fenômenos mais vulgares, diante dos quais os casos artificiais constituem apenas uma preparação mais ou menos indispensável. Têm, de ambas as partes, o mesmo ponto de partida experimental, o mesmo objetivo de ligar e de prever, a mesma preocupação contínua com a realidade, a mesma intenção final de utilidade. Toda a diferença essencial consiste na generalidade sistemática de um, proveniente de sua abstração necessária, oposta à incoerente especialidade do outro, sempre ocupado com o concreto. Encarada em seu aspecto dogmático, esta conexão fundamental representa a ciência propriamente dita como um simples prolongamento metódico da sabedoria universal. Dessa forma, longe de questionar o que esta verdadeiramente decidiu, as sãs especulações filosóficas devem sempre tirar da razão comum as suas noções iniciais, para lhes fazer adquirir, através de uma elaboração sistemática, um grau de generalidade e de consistência que não podiam obter espontaneamente. Durante todo o curso de tal elaboração, o controle permanente dessa vulgar sabedoria conserva, aliás, alta importância, a fim de prevenir tanto quanto possível as diversas aberrações, por negligência ou por ilusão, suscitadas frequentemente pelo estado contínuo de abstração indispensável à atividade filosófica. Apesar de sua afinidade necessária, o bom senso propriamente dito deve permanecer preocupado sobretudo com a realidade e com a utilidade, ao passo que o espírito especialmente filosófico tende a apreciar mais a generalidade e a ligação, de sorte que a sua dupla reação cotidiana se torna igualmente favorável a ambos, consolidando-lhes as qualidades fundamentais que naturalmente se alterariam. Tal relação logo indica como são necessariamente vazias e estéreis as pesquisas especulativas dirigi das, num assunto qualquer, para os primeiros princípios, que, devendo sempre emanar da sabedoria vulgar, nunca pertencem ao verdadeiro campo da ciência, de que constituem, ao contrário, os fundamentos espontâneos e consequentemente indiscutíveis; isto suprime radicalmente grande número de controvérsias, inúteis ou perigosas, que nos deixou o antigo regime mental. Podemos também perceber assim a profunda inanidade final de todos os estudos prévios relativos à lógica abstrata, nos quais se trata de apreciar o verdadeiro método filosófico, isoladamente de qualquer aplicação a uma ordem qualquer de fenômenos. De fato, os únicos princípios verdadeiramente gerais que se possam estabelecer a este respeito reduzem-se necessariamente, como é fácil de verificar nos mais célebres desses aforismos, a algumas máximas incontestáveis mas evidentes, tiradas da razão comum, e que não acrescentam realmente nada de essencial às indicações resultantes, para todos os bons espíritos, de um simples exercício espontâneo. Quanto à maneira de adaptar estas regras universais às diversas ordens de nossas especulações positivas, o que constituiria a verdadeira dificuldade e a utilidade destes preceitos lógicos, esta só poderia comportar verdadeiras apreciações depois de uma análise adequada à natureza própria dos fenômenos considerados. A sã filosofia, portanto, nunca separa a lógica da ciência, pois o método e a doutrina só podem ser bem julgados em cada caso, segundo as suas verdadeiras relações mútuas; não é mais possível, no fundo, dar nem à lógica nem à ciência um caráter universal mediante concepções puramente abstratas, independentes de todos os fenômenos determinados. As tentativas desse gênero indicam ainda a secreta influência do espírito absoluto inerente ao regime teológico-metafísico. Considerada agora pelo aspecto histórico, esta íntima solidariedade natural entre o gênio próprio da verdadeira filosofia e o simples bom senso universal mostra a origem espontânea do espírito positivo, em toda parte resultante de uma reação especial da razão prática sobre a razão teórica, cujo caráter inicial foi assim sempre modificado cada vez mais. Mas esta transformação gradual não podia operar-se ao mesmo tempo, nem sobretudo com igual velocidade, nas diversas classes de especulações abstratas, todas primitivamente teológicas, como já sabemos. Este constante impulso concreto só podia fazer o espírito positivo penetrá-las segundo uma ordem determinada, conforme a complicação crescente dos fenômenos, a qual será explicada logo adiante. A positividade abstrata, nascida necessariamente nos mais simples estudos matemáticos, e propagada em seguida através de afinidade espontânea e de imitação instintiva, poderia, pois, oferecer de início apenas um caráter especial e até, em muitos aspectos, empírico, que deveria dissimular por muito tempo para a maioria de seus promotores, quer a sua incompatibilidade inevitável com a filosofia inicial, quer sobretudo a sua tendência radical para fundar um novo regime lógico. Seus progressos contínuos, sob o impulso crescente da razão vulgar, não podiam então determinar diretamente senão o triunfo prévio do espírito metafísico, destinado, por sua generalidade espontânea, a servir-lhe de órgão filosófico durante os séculos decorridos entre a preparação mental do monoteísmo e a sua plena instalação social. Depois disso, tendo obtido toda a ascendência comportada por sua natureza, o regime ontológico tornou-se logo opressivo para o desenvolvimento científico, que até então secundara. Desse modo, o espírito positivo só pôde manifestar suficientemente a própria tendência filosófica quando se encontrou afinal levado, por esta opressão, a lutar especialmente contra o espírito metafísico, com o qual parecera muito tempo confundir-se. É por isso que a primeira fundação sistemática da filosofia positiva não poderia remontar a além da memorável crise em que a totalidade do regime ontológico começou a sucumbir, em todo o Ocidente europeu, sob o concurso espontâneo de dois admiráveis impulsos mentais, um científico, emanado de Kepler e Galileu, o outro filosófico, devido a Bacon e Descartes. A imperfeita unidade metafísica constituída no fim da Idade Média foi então irrevogavelmente dissolvida, como a ontologia grega já havia destruído para sempre a grande unidade teológica correspondente ao politeísmo, Desde essa crise realmente decisiva, o espírito positivo, crescendo muito mais em dois séculos do que conseguira crescer durante toda a sua longa carreira anterior, tornou impossível qualquer outra unidade mental além daquela que resultaria de sua própria ascendência universal. Cada novo campo sucessivamente conquistado por ele nunca mais pôde voltar à teologia nem à metafísica, em virtude da consagração definitiva que as suas conquistas crescentes encontrava cada vez mais na razão vulgar. É somente mediante tal sistematização que a sabedoria teórica restituirá verdadeiramente à sabedoria prática um equivalente digno, em generalidade e em consistência, do ofício fundamental que dela recebeu, em realidade e em eficácia, durante a sua lenta iniciação gradual, pois as noções positivas obtidas nos últimos dois séculos são, a bem dizer, muito mais preciosas como materiais ulteriores de uma nova filosofia do que por seu valor direto e especial, visto que a maioria delas ainda não conseguiu adquirir um caráter definitivo, nem científico, nem sequer lógico. II O conjunto de nossa evolução mental e, sobretudo, o grande movimento realizado na Europa ocidental desde Descartes e Bacon não deixam pois, daqui para frente, outra saída possível senão constituir afinal, após tantos preâmbulos necessários, o estado verdadeiramente normal da razão humana, proporcionando ao espírito positivo a plenitude-e a racionalidade que ainda lhe faltam para estabelecer entre o gênio filosófico e o bom senso universal uma harmonia que até agora nunca pudera existir suficientemente. Ora, estudando essas duas condições simultâneas, de complemento e de sistematização, que hoje a ciência real deve preencher para se elevar à dignidade de uma verdadeira filosofia, não se tarda a reconhecer que ambas finalmente coincidem. Com efeito, por um lado a grande crise inicial da positividade moderna só deixou essencialmente de fora do movimento científico propriamente dito as teorias morais e sociais, que consequentemente permaneceram num isolamento irracional, sob a estéril dominação do espírito teológico-metafísico. Logo, levá-las também ao estado positivo deveria ser, na época atual, a última prova do verdadeiro espírito filosófico, cuja extensão sucessiva a todos os outros fenômenos fundamentais já se encontrava bem esboçada. Mas, por outro lado, esta última expansão da filosofia natural tendia espontaneamente a sistematizá-la logo, constituindo o único ponto de vista, tanto científico como lógico, que possa dominar a totalidade de nossas especulações reais, sempre necessariamente redutíveis ao aspecto humano, isto é, social, o único capaz de uma ativa universalidade. Tal é o duplo objetivo filosófico da elaboração fundamental, a um só tempo especial e geral, que me atrevi a empreender na grande obra indicada no início deste Discurso. Os mais eminentes pensadores contemporâneos julgam-na assim suficientemente realizada por já ter assentado as verdadeiras bases diretas da completa renovação mental projetada por Bacon e Descartes, mas cuja execução decisiva estava reservada para o nosso século. Para que esta sistematização final das concepções humanas fique suficientemente caracterizada, não basta apreciar, como acabamos de fazer, a sua destinação teórica; cumpre também considerar aqui, de uma maneira distinta embora sumária, sua aptidão necessária para constituir a única saída intelectual que possa realmente ser comportada pela imensa crise social que se desenvolve há meio século no conjunto do Ocidente europeu, sobretudo na França. Enquanto se efetuava gradualmente, durante os cinco últimos séculos, a irrevogável dissolução da filosofia teológica, o sistema político, cuja base mental ela formava, sofria uma decomposição progressiva não menos radical, igualmente presidida pelo espírito metafísico. Esse duplo movimento negativo tinha por órgãos essenciais e solidários, de um lado, as universidades, de início emanadas do poder sacerdotal mas depois suas rivais; do outro lado, as diversas corporações de legistas, gradualmente hostis aos poderes feudais. Entretanto, à medida que a ação crítica se ia disseminando, seus agentes, sem mudar de natureza, tornavam-se mais numerosos e mais subalternos, de modo que, no século XVIII, a principal atividade revolucionária teve de passar, na ordem filosófica, dos doutores propriamente ditos para os simples literatos, e em seguida, na ordem política, dos juízes para os advogados. A grande crise final (A grande crise final designa a Revolução francesa de 1789) começou necessariamente quando essa comum decadência, primeiro espontânea e depois sistemática, para a qual, aliás, todas e quaisquer classes da sociedade moderna concorreram diversamente, chegou afinal ao ponto de tornar universalmente irrecusável a impossibilidade de conservar o regime antigo e a necessidade crescente de uma ordem nova. Desde a sua origem, essa crise sempre tendeu a transformar num vasto movimento orgânico o movimento crítico dos cinco séculos anteriores, apresentando-se como destinada sobretudo a operar diretamente a regeneração social, cujos preâmbulos negativos se encontravam então suficientemente concluídos. Mas essa transformação decisiva, embora cada vez mais urgente, teve de permanecer até agora essencialmente impossível, por falta de uma filosofia verdadeiramente apropriada para fornecer uma base intelectual indispensável. Ao mesmo tempo em que a suficiente realização da decomposição prévia exigia o desgaste das doutrinas puramente negativas que o haviam dirigido, uma fatal ilusão, então inevitável, levou, ao contrário, a conceder espontaneamente ao espírito metafísico, único ativo durante esse longo preâmbulo, a presidência geral do movimento de reorganização. Quando uma experiência plenamente decisiva constatou para sempre, aos olhos de todos, a total impotência orgânica de tal filosofia, a ausência de qualquer outra teoria não permitiu satisfazer de início às necessidades de ordem que já prevaleciam, a não ser por uma espécie de restauração passageira desse mesmo sistema mental e social cuja irreparável decadência ocasionara a crise. Por fim, o desenvolvimento dessa reação retrógrada determinou em seguida uma memorável manifestação (Está expressão designa a Revolução de 1830) que as nossas lacunas filosóficas tornavam tão indispensável como inevitável, a fim de demonstrar irrevogavelmente que o progresso constitui, tanto quanto a ordem, uma das duas condições fundamentais da civilização moderna. O concurso natural destas duas provas irrecusáveis, cuja renovação agora se tornou tão impossível como inútil, levou-nos hoje a esta estranha situação em que nada de verdadeiramente grande pode ser empreendido, nem para a ordem nem para o progresso, por falta de uma filosofia realmente adaptada ao conjunto de nossas necessidades. Todo sério esforço de reorganização logo cessa diante dos temores de retrocesso que ele deve inspirar naturalmente, num tempo em que as ideias de ordem ainda emanam essencialmente do tipo antigo, que com razão se tornou antipático às populações atuais. Assim também, as tentativas de aceleração direta da progressão política não tardam a ser radicalmente entravadas pelas inquietações muito legítimas que devem suscitar acerca da iminência da anarquia, enquanto as ideias de progresso permanecem sobretudo negativas. Como antes da crise, a luta aparente continua sendo travada entre o espírito teológico, reconhecido como incompatível com o progresso que ele foi levado a negar dogmaticamente, e o espírito metafísico, que, após redundar, em filosofia, na dúvida universal, só pôde tender, em política, a constituir a desordem ou um estado equivalente de desgoverno. Mas, consoante o sentimento unânime de sua comum insuficiência, nem um nem outro pode mais inspirar, de agora em diante, entre os governantes ou governados, profundas convicções ativas. Contudo, seu antagonismo continua a alimentá-los mutuamente, sem que nenhum deles possa comportar tanto um verdadeiro desgaste quanto um triunfo decisivo. Isso porque a nossa situação intelectual ainda os torna indispensáveis para representar, de um modo qualquer, as condições simultâneas da ordem e do progresso, até que uma mesma filosofia possa satisfazê-las de modo uniforme, tornando igualmente inúteis a escola retrógrada e a escola negativa, escolas que hoje se destinam sobretudo a impedir a completa preponderância uma da outra. No entanto, as inquietações opostas, relativas a essas duas dominações contrárias, deverão persistir natural e simultaneamente enquanto durar este interregno mental, como consequência inevitável desta cisão irracional entre as duas faces inseparáveis do grande problema social. De fato, cada uma das duas escolas, em virtude de sua preocupação exclusiva, já não é nem sequer capaz de doravante conter suficientemente as aberrações inversas de seu antagonista. Apesar de sua tendência antianárquica, a escola teológico mostrou-se, em nossos dias, radicalmente impotente para impedir o surto das opiniões subversivas que, depois de se terem desenvolvido sobretudo durante a sua principal restauração, são com frequência propagadas por ela, por frívolos cálculos dinásticos. Da mesma forma, qualquer que seja o instinto antirretrógrado da escola metafísica, ela já não tem hoje toda a força lógica exigida por seu simples ofício revolucionário, porque a sua inconsequência característica a obriga a admitir os princípios essenciais desse mesmo sistema cujas verdadeiras condições de existência ela ataca sem cessar. Esta deplorável oscilação entre duas filosofias opostas que se tornaram igualmente vãs e só podem extinguir-se ao mesmo tempo deveria suscitar o desenvolvimento de uma espécie de escola intermediária, essencialmente estacionária, destinada sobretudo a mobilizar diretamente o conjunto da questão social, proclamando enfim como igualmente necessárias as duas condições fundamentais isoladas pelas duas opiniões ativas. Mas, à míngua de uma filosofia apropriada para realizar esta grande combinação do espírito da ordem com o espírito do progresso, esse terceiro impulso logicamente ainda permanece ainda mais impotente do que os dois outros, porque sistematiza a inconsequência, consagrando simultaneamente os princípios retrógrados e as máximas negativas, a fim de poder neutralizá-los mutuamente. Longe de tender a terminar a crise, tal disposição só poderia acabar por eternizá-la, opondo-se diretamente a toda verdadeira preponderância de um sistema qualquer, se não se restringisse a uma simples destinação passageira, para satisfazer empiricamente às mais graves exigências de nossa situação revolucionária, até o advento decisivo das únicas doutrinas que possam daqui por diante convir ao conjunto de nossas necessidades. Mas, assim concebido, este expediente provisório tornou-se hoje tão indispensável como inevitável. Sua rápida ascendência prática, implicitamente reconhecida pelos dois partidos ativos, constata cada vez mais nas populações atuais o arrefecimento simultâneo das convicções e das paixões anteriores, retrógradas ou críticas, gradualmente substituídas por um sentimento universal, real apesar de confuso, da necessidade, e mesmo da possibilidade, de uma conciliação permanente entre o espírito de conservação e o espírito de melhoria, igualmente adequados ao estado normal da humanidade. A tendência correspondente dos homens de Estado para impedir hoje, na medida do possível, todos os grandes movimentos políticos está, aliás, espontaneamente conforme às exigências fundamentais de uma situação que comportará realmente apenas instituições provisórias, enquanto uma verdadeira filosofia geral não tiver congregado suficientemente as inteligências. A revelia dos poderes atuais, esta resistência instintiva concorre para facilitar a verdadeira solução, impelindo à transformação de uma estéril agitação política numa ativa progressão filosófica, de maneira que se siga afinal a marcha, prescrita pela natureza, apropriada à reorganização final, que deve primeiro operar-se nas ideias para passar em seguida aos costumes e, em último lugar, às instituições. Tal transformação, que já tende a prevalecer na França, deverá naturalmente desenvolver-se cada vez mais em todos os lugares, dada a necessidade crescente em que se encontram nossos governos ocidentais de manter com grandes gastos a ordem material em meio à desordem intelectual e moral, necessidade que pouco a pouco deve ir absorvendo essencialmente os seus esforços cotidianos, levando-os a renunciar implicitamente a toda séria presidência da reorganização espiritual, assim entregue daí em diante à livre atividade dos filósofos que se mostrarem dignos de dirigi-la. Esta disposição natural dos poderes atuais está em harmonia com a tendência espontânea das populações para uma aparente indiferença política, motivada pela impotência radical das diversas doutrinas em circulação, que deve sempre persistir enquanto os debates políticos continuarem, por falta de um impulso conveniente, a degenerar em vãs lutas pessoais cada vez mais miseráveis. Tal é a feliz eficácia prática que o conjunto da nossa situação revolucionária proporciona momentaneamente a uma escola essencialmente empírica que, no aspecto teórico, nunca pôde produzir senão um sistema radicalmente contraditório, não menos absurdo e não menos perigoso, em política, do que é, em filosofia, o ecletismo correspondente, também inspirado por uma vã intenção de conciliar, sem princípios próprios, opiniões incompatíveis. Segundo este sentimento, cada vez mais desenvolvido, de igual insuficiência social oferecido hoje pelo espírito teológico e pelo espírito metafísico, os únicos que até aqui disputaram ativamente o domínio, hoje a razão pública deve encontrar-se implicitamente disposta a acolher o espírito positivo como a única base possível de uma verdadeira resolução da profunda anarquia intelectual e moral que caracteriza sobremaneira grande crise moderna. Mantendo-se ainda alheia a tais questões, a escola positiva preparou-se gradualmente para elas, constituindo tanto quanto possível durante a luta revolucionária dos três últimos séculos o verdadeiro estado normal de todas as classes mais simples de nossas especulações reais. Extraindo sua força de tais antecedentes científicos e lógicos, livre, ademais, das diversas aberrações contemporâneas, ela se apresenta hoje como tendo acabado de adquirir a total generalidade filosófica que lhe faltava até aqui; por conseguinte, ela ousa empreender por sua vez a solução ainda intacta do grande problema, transportando convenientemente para os estudos finais a mesma regeneração que já realizou relativamente aos diferentes estudos preliminares. Não se pode, em primeiro lugar, ignorar a aptidão espontânea de tal filosofia para constituir diretamente a conciliação fundamental, ainda procurada em vão, entre as exigências simultâneas da ordem e do progresso; já que lhe basta para tanto estender aos fenômenos sociais uma tendência plenamente conforme à sua natureza e que agora tornou muito familiar em todos os outros casos essenciais. Seja qual for o assunto, o espírito positivo leva sempre a estabelecer uma exata harmonia elementar entre as ideias de existência e as ideias de movimento; daí resulta mais especialmente, no tocante aos corpos vivos, a correlação permanente das ideias de organização com as ideias de vida e, em seguida, mediante uma última especialização própria do organismo social, a solidariedade contínua das ideias de ordem com as ideias de progresso. Para a nova filosofia, a ordem constitui sem cessar a condição fundamental do progresso e, reciprocamente, o progresso torna-se o objetivo necessário da ordem, como no mecanismo animal o equilíbrio e a progressão são mutuamente indispensáveis, a título de fundamento ou de destinação. Em seguida, considerado especialmente quanto à ordem, o espírito positivo apresenta-lhe hoje, em sua extensão social, poderosas garantias diretas, não só científicas mas também lógicas, que logo poderão ser julgadas muito superiores às vãs pretensões de uma teologia retrógrada, que há vários séculos se degenera cada vez mais em elemento ativo de discórdias, individuais ou nacionais, já incapazes de conter as divagações dos seus próprios adeptos. Atacando a desordem atual em sua verdadeira fonte, necessariamente mental, ele constitui tão profundamente quanto possível a harmonia lógica, regenerando primeiro os métodos antes das doutrinas, através de uma tríplice conversão simultânea da natureza das questões dominantes, da maneira de tratá-las e das condições prévias de sua elaboração. Por um lado, de fato, demonstra que as principais dificuldades sociais não são hoje essencialmente políticas, mas sobretudo morais, de modo que a sua - solução possível depende realmente muito mais das opiniões e dos costumes do que das instituições, o que tende a extinguir uma atividade perturbadora, transformando a agitação política em movimento filosófico. No segundo aspecto, encara sempre o estado presente como um resultado necessário do conjunto da evolução anterior, fazendo prevalecer constantemente a apreciação racional do passado no exame atual dos negócios humanos; isto afasta logo as tendências puramente críticas, incompatíveis com esta sadia concepção histórica. Enfim, ao invés de deixar a ciência social no vago e estéril isolamento em que ainda a colocam a teologia e a metafísica, ele a vincula irrevogavelmente a todas as outras ciências fundamentais, que constituem gradualmente, para esse estudo final, outro tanto de preâmbulos indispensáveis, nos quais nossa inteligência adquire ao mesmo tempo os hábitos e as noções sem os quais não se pode abordar utilmente as mais eminentes especulações positivas. Isso já institui uma verdadeira disciplina mental, apropriada para melhorar radicalmente tais discussões, desde então racionalmente proibidas a uma profusão de entendimentos mal organizados ou mal preparados. Aliás, estas grandes garantias lógicas são em seguida confirmadas e desenvolvidas pela apreciação científica propriamente dita que, tanto para os fenômenos sociais quanto para todos os outros, representa sempre a nossa ordem artificial como devendo consistir sobretudo num simples prolongamento judicioso, primeiro espontâneo e depois sistemático, da ordem natural resultante, em cada caso, do conjunto das leis reais, cuja ação efetiva é comumente modificável pela nossa sábia intervenção, entre limites determinados, tanto mais afastados quanto mais elevados forem os fenômenos. O sentimento elementar da ordem é, numa palavra, naturalmente inseparável de todas as especulações positivas, constantemente dirigidas para a descoberta dos meios de ligação entre observações cujo valor principal resulta de sua sistematização. Ocorre o mesmo, e com mais evidência ainda, no tocante ao Progresso, que, apesar de vãs pretensões ontológicas, encontra hoje a sua mais incontestável manifestação no conjunto dos estudos científicos. Segundo a sua natureza absoluta, e por conseguinte essencialmente imóvel, a metafísica e a teologia não poderiam comportar, uma não muito mais que a outra, um verdadeiro progresso, isto é, uma progressão contínua para um objetivo determinado. Pelo contrário, suas transformações históricas consistem sobretudo num desgaste crescente, mental ou social, sem que as questões ventiladas nunca tenham podido dar um passo real, em razão mesmo de sua insolubilidade radical. E fácil reconhecer que as discussões ontológicas das escolas gregas se tenham reproduzido essencialmente sob outras formas entre os escolásticos da Idade Média, e encontramos hoje o equivalente entre nossos psicólogos ou ideólogos. Isso porque nenhuma das doutrinas controversas pôde, durante esses vinte séculos de debates estéreis, levar a demonstrações decisivas, não somente no que concerne à existência dos corpos exteriores, ainda tão problemática para os argumentadores modernos quanto para os seus mais antigos predecessores. Foi evidentemente a marcha contínua dos conhecimentos positivos que inspirou, há dois séculos, no célebre preceito filosófico de Pascal (...acontece a mesma coisa na sucessão dos homens e nas diferentes idades de um particular. De sorte que toda a sequência dos homens durante o curso de tantos séculos deve ser considerada como um mesmo homem que subsiste sempre e aprende continuamente. (Pascal, Fragment d'un traité du vide. Pensées et Opuscules, ed. L. Brunschvicg, p. 80).), a primeira noção racional do progresso humano, necessariamente alheia a toda a antiga filosofia. Estendida em seguida à evolução industrial e mesmo estética, mas permanecendo muito confusa no campo do movimento social, ela tende hoje vagamente a uma sistematização decisiva, que pode emanar apenas do espírito positivo, afinal convenientemente generalizado. Em suas especulações cotidianas, ele reproduz espontaneamente o ativo sentimento elementar dela, representando sempre a extensão e o aperfeiçoamento de nossos conhecimentos reais como o objetivo essencial de nossos diversos esforços teóricos. No aspecto mais sistemático, a nova filosofia aponta diretamente como destinação necessária a toda a nossa existência, ao mesmo tempo pessoal e social, o melhoramento contínuo não só de nossa condição, mas também e sobretudo de nossa natureza, tanto quanto comporta, sob todos os ângulos, o conjunto das leis reais, exteriores ou interiores. Elevando assim a noção de progresso a dogma verdadeiramente fundamental da sabedoria humana, prática ou teórica, ela lhe imprime o caráter mais nobre e ao mesmo tempo mais completo, representando sempre o segundo gênero de aperfeiçoamento como superior ao primeiro. De um lado, de fato, como a ação da Humanidade sobre o mundo exterior depende sobretudo das disposições do agente, seu melhoramento deve constituir o nosso principal recurso; de outro lado, como os fenômenos humanos, individuais ou coletivos, são de todos os mais modificáveis, é neles que a nossa intervenção racional comporta naturalmente maior eficácia. Logo, o dogma do progresso só pode tornar-se suficientemente filosófico depois de uma exata apreciação geral daquilo que constitui sobretudo este melhoramento contínuo da progressão humana. Ora, a este respeito, o conjunto da filosofia positiva demonstra plenamente, como se pode ver na obra indicada no início deste Discurso, que este aperfeiçoamento consiste essencialmente, quer para o indivíduo, quer para a espécie, em fazer prevalecer cada vez mais os eminentes atributos que distinguem a mais nobre humanidade da simples animalidade, isto é, de um lado a inteligência, de outro a sociabilidade, faculdades naturalmente solidárias que se servem mutuamente de meio e de fim. Se bem que o curso espontâneo da evolução humana, pessoal ou social, desenvolva sempre sua comum influência, sua ascendência combinada não poderia entretanto chegar ao ponto de impedir que a nossa principal atividade derive habitualmente de inclinações interiores, que a nossa constituição real torna necessariamente muito mais enérgica. Assim, esta preponderância ideal de nossa humanidade sobre nossa animalidade preenche naturalmente as condições essenciais de um verdadeiro tipo filosófico, caracterizando um limite determinado de que todos os nossos esforços devem nos aproximar constantemente, sem poder, entretanto, atingi-lo jamais. Esta dupla indicação da aptidão fundamental do espírito positivo para sistematizar espontaneamente as sãs noções simultâneas da ordem e do progresso basta aqui para assinalar sumariamente a alta eficácia social própria da nova filosofia geral. Seu valor, a este respeito, depende sobretudo de sua plena realidade científica, ou seja, da exata harmonia que estabelece sempre, tanto quanto possível, entre os princípios e os fatos, tanto no tocante aos fenômenos sociais quanto a todos os outros. A reorganização total, a única que pode terminar a grande crise moderna, consiste de fato, no aspecto mental que deve de início prevalecer, em constituir uma teoria sociológica capaz de explicar convenientemente o conjunto do passado humano. Este é o modo mais racional de colocar a questão essencial, para melhor afastar dela toda paixão perturbadora. Ora, é assim que a superioridade necessária da escola positiva sobre as diversas escolas atuais pode ser apreciada com maior nitidez. Pois o espírito teológico e o espírito metafísico são ambos levados, por sua natureza absoluta, a só considerar a porção do passado em que cada um deles dominou com preponderância; aquilo que precede e o que se segue oferece-lhes apenas uma tenebrosa confusão e uma desordem inexplicável, cuja ligação com esta estreita parte do grande espetáculo histórico só pode, a seus olhos, resultar de uma miraculosa intervenção. Por exemplo, o catolicismo sempre mostrou, a propósito do politeísmo antigo, uma tendência tão cegamente crítica como aquela que censura justamente hoje ao espírito revolucionário propriamente dito ter para com ele. Uma verdadeira explicação do conjunto do passado, conforme às leis constantes de nossa natureza, individual ou coletiva, é, pois, necessariamente impossível para as diversas escolas que ainda dominam; na verdade, nenhuma delas tentou suficientemente estabelecê-la. O espírito positivo, em virtude de sua natureza eminentemente relativa, é o único capaz de representar convenientemente todas as grandes épocas históricas como outras tantas fases determinadas de uma mesma evolução fundamental, em que cada uma resulta da precedente e prepara a seguinte, de acordo com as leis invariáveis que fixam a sua participação especial na comum progressão, permitindo sempre, sem inconsequência nem parcialidade, fazer exata justiça filosófica a todas e quaisquer cooperações. Embora este incontestável privilégio da positividade racional deva de início afigurar-se puramente especulativo, os verdadeiros pensadores logo reconhecerão nele a primeira fonte necessária da ativa ascendência social reservada finalmente à nova filosofia. Pois se pode garantir hoje que a doutrina que tiver explicado suficientemente o conjunto do passado obterá inevitavelmente, por causa desta única prova, a presidência mental do futuro. Tal indicação das altas propriedades sociais que caracterizam o espírito positivo não seria ainda bastante decisiva se não lhe acrescentássemos uma apreciação sumária de sua aptidão espontânea para afinal sistematizar a moral humana, o que constituirá sempre a principal aplicação de toda verdadeira teoria da Humanidade. No organismo politeico da Antiguidade, a moral, radicalmente subordinada à política, nunca poderia adquirir nem a dignidade nem a universalidade convenientes à sua natureza. Sua independência fundamental e mesmo sua ascendência normal resultaram enfim, tanto quanto era então possível, do regime monoteico próprio da Idade Média; esse imenso serviço social, devido mormente ao catolicismo, formará sempre o seu principal título ao eterno reconhecimento do gênero humano. Foi somente depois dessa indispensável separação, sancionada e completada pela divisão necessária das duas potências, que a moral humana pôde realmente começar a assumir um caráter sistemático, estabelecendo, ao abrigo dos impulsos passageiros, regras verdadeiramente gerais para o conjunto de nossa existência pessoal, doméstica e social. Porém, as profundas imperfeições da filosofia monoteica que então presidia a essa grande operação alteraram muito a sua eficácia e até comprometeram gravemente a sua estabilidade, logo provocando um conflito fatal entre o crescimento intelectual e o desenvolvimento moral. Ligada assim a uma doutrina que não podia continuar progressiva por muito tempo, a moral devia em seguida ver-se cada vez mais afetada pelo descrédito crescente que necessariamente ia sofrer uma teologia que, já retrógrada, se tornaria afinal radicalmente antipática à razão moderna. Exposta desde então à ação dissolvente da metafísica, a moral teórica, de fato, recebeu durante os últimos cinco séculos, em cada uma de suas três partes essenciais, ataques gradualmente perigosos, que nem sempre puderam ser bastante sanados, para a prática, a retidão e a moralidade naturais do homem, apesar do feliz desenvolvimento contínuo que o curso espontâneo de nossa civilização devia então proporcionar. Se a ascendência necessária do espírito positivo não viesse pôr termo a essas anárquicas divagações, elas imprimiriam certamente uma flutuação mortal a todas as noções um tanto delicadas da moral usual, não só social, mas também doméstica e mesmo pessoal, deixando subsistir em toda parte somente as regras relativas aos casos mais grosseiros, que a apreciação vulgar poderia garantir diretamente. Em tal situação, deve parecer estranho que a única filosofia que possa de fato consolidar hoje a moral se encontre, ao contrário, tachada a este respeito de incompetência radical pelas diversas escolas atuais, dos verdadeiros católicos até os simples deístas, que, no meio de seus vãos debates, se conciliam sobretudo para proibir-lhe essencialmente o acesso a estas questões fundamentais, baseando-se no único motivo de que o seu gênio muito parcial se limitara até aqui a assuntos mais simples. O espírito metafísico, que amiúde tendeu a dissolver ativamente a moral, e o espírito teológico, que há muito tempo perdeu a força para preservá-la, persistem entretanto em fazer dela uma espécie de apanágio eterno e exclusivo, sem que a razão pública ainda tenha julgado convenientemente essas pretensões empíricas. Deve-se reconhecer, é verdade, em geral, que a introdução de toda regra moral em toda parte teve de efetuar-se de início sob as inspirações teológicas, então profundamente incorporadas ao sistema todo de nossas ideias, e também as únicas capazes de constituir opiniões suficientemente comuns. Mas o conjunto do passado demonstra também que essa solidariedade primitiva sempre decresceu, assim como a própria ascendência da teologia; os preceitos morais, como todos os outros, foram progressivamente reduzidos a uma consagração puramente racional, à medida que o vulgo se foi tornando mais capaz de apreciar a influência real de cada comportamento na existência humana, individual ou social. Separando irrevogavelmente a moral da política, o catolicismo teve de desenvolver muito essa tendência contínua, porquanto a intervenção sobrenatural se viu assim diretamente reduzida à formação das regras gerais, cuja aplicação particular estava desde então confiada essencialmente à sabedoria humana. Dirigindo-se a populações mais avançadas, ele entregou à razão pública uma profusão de prescrições especiais que os antigos sábios haviam acreditado nunca poder prescindir das injunções religiosas, como ainda pensam os doutores politeístas da Índia, por exemplo, quanto à maioria das práticas higiênicas. Assim podemos observar, mesmo mais de três séculos depois de São Paulo, as sinistras predições de vários filósofos ou magistrados pagãos sobre a iminente imoralidade que a próxima revolução teológica necessariamente acarretaria. As invenctivas atuais das diversas escolas monoteicas não serão empecilhos maiores para o espírito positivo consumar hoje, em condições convenientes, a conquista, prática e teórica, do campo moral, já espontaneamente entregue cada vez mais à razão humana, da qual só nos falta afinal sistematizar as inspirações particulares. Por certo a Humanidade não poderia permanecer indefinidamente condenada a basear as suas regras de conduta apenas em motivos quiméricos, eternizando uma desastrosa oposição, até aqui passageira, entre as necessidades intelectuais e as necessidades morais. Como a experiência demonstra, a assistência teológica, ao contrário de ser para sempre indispensável aos preceitos morais, tornou-se, entre os modernos, cada vez mais nociva a eles, fazendo-os inevitavelmente participar, por causa dessa funesta adesão, da decomposição crescente do regime monoteico, sobretudo durante os três últimos séculos. De início, essa fatal solidariedade devia enfraquecer diretamente, à medida que a lei se ia extinguindo, a única base em que repousam regras que, amiúde expostas a graves conflitos com impulsos muito enérgicos, precisam ser preservadas com cuidado de qualquer hesitação. A antipatia crescente que o espírito teológico inspirava justamente à razão moderna afetou gravemente muitas importantes noções morais, não somente relativas às maiores relações sociais, mas também concernentes a mais simples vida doméstica e mesmo à existência pessoal. Aliás, um cego ardor de emancipação mental levou, de modo excessivo, a erigir às vezes o desdém passageiro por essas máximas salutares numa espécie de louco protesto contra a filosofia retrógrada de que pareciam exclusivamente emanar. Até entre aqueles que conservavam a fé dogmática, essa funesta influência fazia-se sentir indiretamente, porque a autoridade sacerdotal, após perder a sua independência política, também via decrescer cada vez mais a ascendência social indispensável à sua eficácia moral. Além dessa impotência crescente para proteger as regras morais, o espírito teológico também os prejudicou frequentemente de maneira ativa, pelas divagações que suscitou desde que deixou de ser suficientemente disciplinável, sob o inevitável surto do livre exame individual. Exercido assim, ele realmente inspirou ou secundou muitas aberrações antissociais que o bom senso, entregue a si mesmo, teria evitado ou rejeitado espontaneamente. As utopias subversivas que vemos hoje propagar-se, seja contra a propriedade, seja quanto à família, etc., quando nunca emanaram das inteligências plenamente emancipadas, nem são por elas acolhidas, apesar de suas lacunas fundamentais; emanaram, pelo contrário, daquelas que perseguem ativamente uma espécie de restauração teológica, baseada num vago e estéril deísmo ou num protestantismo equivalente. Enfim, essa antiga adesão à teologia também se tornou necessariamente funesta à moral num terceiro aspecto geral, ao se opor à sua sólida reconstrução sobre bases puramente humanas. Se esse obstáculo só consistisse em cegas invectivas com muita frequência oriundas das diversas escolas atuais, teológicas ou metafísicas, contra o pretenso perigo de tal operação, os filósofos positivos poderiam limitar-se a repelir odiosas insinuações através do irrecusável exemplo de sua própria vida cotidiana, doméstica e social. Mas essa oposição, infelizmente, é muito mais radical, pois resulta da incompatibilidade necessária que evidentemente existe entre as duas maneiras de sistematizar a moral. Como os motivos teológicos devem naturalmente oferecer, aos olhos do crente, uma intensidade muito superior à de todos os outros, sejam quais forem, eles nunca poderiam tornar-se os simples auxiliares dos motivos puramente humanos; não podem conservar nenhuma eficácia real assim que deixam de dominar. Não existe, portanto, nenhuma alternativa duradoura entre fundamentar enfim a moral no conhecimento positivo da Humanidade e deixá-la estribar-se na injunção sobrenatural; as convicções racionais puderam secundar as crenças teológicas, ou melhor, substituí-las gradualmente, à medida que a fé se foi extinguindo; mas a combinação inversa por certo constitui apenas uma utopia contraditória, em que o principal estaria subordinado ao acessório. Uma judiciosa exploração do verdadeiro estado da sociedade moderna mostra, pois, estar cada vez mais desmentida pelo conjunto dos fatos cotidianos a pretensa impossibilidade de dispensar doravante qualquer teologia para consolidar a moral, porquanto essa perigosa ligação se tornou, desde o fim da Idade Média, triplamente funesta à moral, quer debilitando ou desacreditando as suas bases intelectuais, quer suscitando-lhe perturbações diretas, quer impedindo-lhe melhor sistematização. Se, apesar de ativos princípios de desordem, a moralidade prática melhorou realmente, este feliz resultado não poderia ser atribuído ao espírito teológico, então degenerado, pelo contrário, num perigoso dissolvente. Tal resultado deveu-se essencialmente à ação crescente do espírito positivo, já eficaz em sua forma espontânea, que consiste no bom senso universal, cujas sábias inspirações secundaram o impulso natural de nossa civilização progressiva para combater utilmente as diversas aberrações, sobretudo as que emanavam das divagações religiosas. Quando, por exemplo, a teologia protestante tendia a alterar gravemente a instituição do casamento com a consagração formal do divórcio, a razão pública neutralizava muito seus funestos efeitos, impondo quase sempre o respeito dos costumes anteriores, únicos conformes ao verdadeiro caráter da sociabilidade moderna. Aliás, irrecusáveis experiências provaram ao mesmo tempo, em ampla escala, no seio das massas populares, que o pretenso privilégio exclusivo das crenças religiosas de determinar grandes sacrifícios ou ativos devotamentos também podia pertencer a opiniões diretamente opostas, e se prendia, em geral, a toda profunda convicção, fosse qual fosse a sua natureza. Aqueles inúmeros adversários do regime teológico que, faz meio século, garantiram com tanto heroísmo a nossa independência nacional contra a coalizão retrógrada não mostraram, por certo, uma abnegação menos plena e menos constante do que os bandos supersticiosos que, no seio da França, secundaram a agressão externa. Para acabar de apreciar as pretensões atuais da filosofia teológico-metafísica de conservar a sistematização exclusiva da moral usual, basta considerar diretamente a doutrina perigosa e contraditória que o inevitável progresso da emancipação mental logo forçou a estabelecer a esse respeito, consagrando em toda parte, sob formas mais ou menos explícitas, uma espécie de hipocrisia coletiva, análoga àquela que se supõe erradamente ter sido habitual entre os antigos, conquanto nunca tenha comportado senão um sucesso precário e passageiro. Não podendo impedir o livre desenvolvimento da razão moderna entre os espíritos cultos, propôs-se assim obter deles, visando ao interesse público, o respeito aparente das antigas crenças, a fim de manter, entre o vulgo, a sua autoridade tida como indispensável. Essa transação sistemática não é de modo algum particular aos jesuítas, embora constitua o fundo essencial da sua tática; o espírito protestante também lhe imprimiu, à sua maneira, uma consagração ainda mais íntima, mais extensa, e sobretudo mais dogmática; os metafísicos propriamente ditos adotam-na do mesmo modo que os próprios teólogos; o maior dentre eles, se bem que a sua alta moralidade fosse verdadeiramente digna de sua eminente inteligência, foi levado a sancioná-la essencialmente, estabelecendo, de um lado, que quaisquer opiniões teológicas não comportam nenhuma verdadeira demonstração e, do outro, que a necessidade social força a manter indefinidamente o seu domínio. Ainda que tal doutrina possa tornar-se respeitável entre aqueles que não vinculam a ela nenhuma ambição pessoal, não deixa de tender a viciar todas as fontes da moralidade humana, fazendo-a necessariamente repousar num estado contínuo de falsidade, e mesmo de desprezo, dos superiores para com os inferiores. Enquanto aqueles que deveriam participar dessa dissimulação sistemática permaneceram pouco numerosos, a sua prática foi possível, embora muito precária; mas ela tornou-se ainda mais ridícula do que odiosa quando a emancipação se estendeu o bastante para que essa espécie de piedoso complô tivesse de abranger, como seria preciso hoje, a maior parte dos espíritos ativos. Afinal, mesmo supondo realizada essa extensão quimérica, esse pretenso sistema deixa subsistir toda a dificuldade no caso das inteligências liberadas, cuja própria moralidade fica assim abandonada à sua pura espontaneidade, já justamente reconhecida insuficiente entre a classe submissa. Se for preciso admitir também a necessidade de uma verdadeira sistematização moral entre esses espíritos emancipados, esta só poderá então repousar sobre bases positivas, que finalmente serão julgadas indispensáveis. Quanto a restringir a sua destinação à classe esclareci da, além de tal restrição não poder mudar a natureza dessa grande construção filosófica, ela seria evidentemente ilusória num tempo em que a cultura mental, pressuposta por essa fácil liberação, já se tornou muito comum, ou antes, quase universal, pelo menos na França. Assim, o expediente empírico sugerido pelo vão desejo de manter a qualquer preço o antigo regime intelectual só pode acabar por deixar a maioria dos espíritos ativos indefinidamente desprovidos de qualquer doutrina moral, como se vê com muita frequência hoje. E, portanto, sobretudo em nome da moral que cumpre, de hoje em diante, trabalhar ardentemente para constituir por fim a ascendência universal do espírito positivo, para substituir um regime decaído que, ora impotente, ora perturbador, exigiria cada vez mais a repressão mental como condição permanente da ordem moral. Só a nova filosofia pode estabelecer hoje, acerca de nossos diversos deveres, convicções profundas e ativas, verdadeiramente capazes de resistir com energia ao choque das paixões. Segundo a teoria positiva da Humanidade, irrecusáveis demonstrações, apoiadas numa imensa experiência que agora nossa espécie possui, determinarão exatamente a influência real, direta ou indireta, privada e pública, própria de cada ato, de cada hábito e de cada tendência ou sentimento; daí resultarão naturalmente, como outros tantos inevitáveis corolários, as regras de conduta, quer gerais, quer especiais, mais conformes à ordem universal e que, por conseguinte, deverão mostrar-se normalmente as mais favoráveis à felicidade individual. A despeito da extrema dificuldade deste grande assunto, ouso garantir que, tratado de modo conveniente, ele comporta conclusões tão certas quanto às da própria geometria. Por certo não se pode esperar tornar um dia suficientemente acessíveis a todas as inteligências essas provas positivas de várias regras morais, contudo destinadas à vida comum. Isso já ocorre porém, com diversas prescrições matemáticas, que mesmo assim são aplicadas sem hesitação nas mais sérias ocasiões, quando, por exemplo, nossos marinheiros arriscam diariamente a existência confiando em teorias astronômicas que de modo algum compreendem. Por que igual confiança não seria concedida a noções mais importantes? Aliás, é incontestável que a eficácia normal de tal regime exige, em cada caso, além do potente impulso resultante naturalmente dos preconceitos públicos, a intervenção sistemática, ora passiva, ora ativa, de uma autoridade espiritual destinada a lembrar com energia as máximas fundamentais e a dirigir sabiamente a aplicação delas, como expliquei em especial na obra indicada acima. Cumprindo assim o grande ofício social que o catolicismo não mais exerce, este novo poder moral utilizará cuidadosamente a feliz aptidão da filosofia correspondente para incorporar espontaneamente a sabedoria de todos os diversos regimes anteriores, conforme a tendência comum do espírito positivo acerca de um assunto qualquer. Quando a astronomia moderna descartou irrevogavelmente os princípios astrológicos, não deixou de conservar preciosamente todas as noções verdadeiras obtidas sob o seu domínio; o mesmo sucedeu com a química, em relação à alquimia. Sem poder empreender aqui a apreciação moral da filosofia positiva, é mister, entretanto, assinalar a tendência contínua que resulta diretamente de sua própria constituição, seja científica, seja lógica, para estimular e consolidar o sentimento do dever, desenvolvendo sempre o espírito de conjunto que naturalmente está ligado a ela. Este novo regime mental dissipa espontaneamente a fatal oposição que desde o fim da Idade Média existe cada vez mais entre as necessidades intelectuais e as necessidades morais. A partir de agora, pelo contrário, todas as especulações reais, convenientemente sistematizadas, concorrerão sem cessar para constituir, tanto quanto possível, a preponderância universal da moral, uma vez que o ponto de vista moral se tornará necessariamente o vínculo científico, e o regulador lógico de todos os outros aspectos positivos. E impossível que tal coordenação, desenvolvendo familiarmente as ideias de ordem e de harmonia, sempre ligadas à Humanidade, não tenda a moralizar profundamente, não só os espíritos de elite, mas também a massa das inteligências, que deverão em sua totalidade ter uma participação maior ou menor nessa grande iniciação, consoante um sistema conveniente de educação universal. Uma apreciação mais íntima e mais extensa, a um só tempo prática e teórica, mostra o espírito positivo como o único capaz, por sua natureza, de desenvolver diretamente o sentimento social, a primeira base necessária de toda moral sadia. O antigo regime mental só podia estimulá-la por meio de penosos artifícios indiretos, cujo sucesso real devia ser muito imperfeito, dada a tendência essencialmente pessoal de tal filosofia, quando a sabedoria sacerdotal não continha a sua influência espontânea. Reconhece-se agora essa necessidade, pelo menos empiricamente, quanto ao espírito metafísico propriamente dito, que nunca conseguiu levar, em moral, a nenhuma teoria efetiva que não o desastroso sistema do egoísmo, tão usual hoje, apesar das muitas invectivas contrárias; mesmo as seitas ontológicas que protestaram seriamente contra semelhante aberração substituíram-no finalmente apenas por vagas ou incoerentes noções, incapazes de eficácia prática. Uma tendência tão deplorável, e entretanto tão constante, deve ter raízes mais profundas do que se supõe comum ente. Com efeito, ela resulta sobretudo da natureza necessariamente pessoal de tal filosofia, que, sempre limitada à consideração do indivíduo, nunca pôde abranger realmente o estudo da espécie, por uma consequência inevitável de seu vão princípio lógico, essencialmente reduzido à intuição propriamente dita, que não comporta evidentemente a menor aplicação coletiva. Suas fórmulas comuns apenas traduzem ingenuamente o seu espírito fundamental; para cada um de seus adeptos, o pensamento dominante é sempre o do eu; todas e quaisquer outras existências, mesmo humanas, são confusamente envolvidas numa única concepção negativa, e seu vago conjunto constitui o não eu; a noção de nós não poderia encontrar nenhum espaço direto e distinto. Mas, ao examinar este assunto com maior profundidade ainda, cumpre reconhecer que a este respeito, como em qualquer outro aspecto, a metafísica deriva, tanto dogmática quanto historicamente, da própria teologia, da qual nunca poderia constituir senão uma modificação dissolvente. De fato, esse caráter de personalidade constante pertence sobretudo, com energia mais direta, ao pensamento teológico, sempre preocupado, em cada crente, com interesses essencialmente individuais, cuja imensa preponderância absorve necessariamente qualquer outra consideração, sem que o mais sublime devotamento possa inspirar-lhe a abnegação verdadeira, justamente encarada então como uma perigosa aberração. Somente a oposição frequente desses interesses quiméricos com os interesses reais forneceu à sabedoria sacerdotal um poderoso meio de disciplina moral, que conseguiu amiúde conduzir, em proveito da sociedade, a admiráveis sacrifícios, que no entanto só o eram em aparência, reduzindo-se sempre a uma prudente ponderação de interesses. Os sentimentos benevolentes e desinteressados, próprios da natureza humana, decerto tiveram de manifestar-se através de tal regime e até mesmo, em certos aspectos, por seu impulso indireto; mas conquanto o seu desenvolvimento não possa ter sido assim reprimido, seu caráter teve de receber uma grave alteração, que provavelmente ainda não nos permite conhecer plenamente a sua natureza e a sua intensidade, por falta de um exercício próprio e direto. Aliás, cabe presumir que esse hábito contínuo de cálculos pessoais acerca dos mais caros interesses do crente desenvolveu no homem, até mesmo em qualquer outro aspecto, mediante uma afinidade gradual, um excesso de circunspecção, de previdência, e finalmente de egoísmo, que sua organização fundamental não exigia; e que, por conseguinte, poderá um dia diminuir sob um melhor regime moral. Seja como for essa conjetura, permanece incontestável que o pensamento teológico é, por sua natureza, essencialmente individual, e nunca diretamente coletivo. Aos olhos da fé, sobretudo a monoteica, a vida social não existe, por falta de um objetivo que lhe seja próprio; a sociedade humana só pode então oferecer imediatamente uma simples aglomeração de indivíduos, cuja reunião é quase tão fortuita como passageira, os quais, ocupados cada qual apenas com a sua salvação, não concebem a participação na salvação de outrem senão como um poderoso meio de melhor merecer a sua, obedecendo às prescrições supremas que lhe impuseram essa obrigação. Sem dúvida, sempre deveremos ter uma respeitosa admiração pela prudência sacerdotal, que, pelo feliz impulso de um instinto público, soube retirar por tanto tempo uma alta utilidade prática de tão imperfeita filosofia. Mas este justo reconhecimento não poderia chegar a prolongar artificialmente esse regime inicial além de sua destinação provisória, quando enfim chegou a idade de uma economia mais conforme ao conjunto de nossa natureza intelectual e afetiva. O espírito positivo, ao contrário, é tanto quanto possível diretamente social, e isso sem nenhum esforço, por causa de sua realidade característica. Para ele, o homem propriamente dito não existe, só pode existir a Humanidade, já que todo nosso desenvolvimento se deve à sociedade, por qualquer ângulo que o consideremos. Se a ideia de sociedade ainda se afigura uma abstração de nossa inteligência, é sobretudo em virtude do antigo regime filosófico, pois, a bem dizer, é à ideia de indivíduo que pertence tal caráter, pelo menos em nossa espécie. O conjunto da nova filosofia tenderá sempre a ressaltar, tanto na vida ativa quanto na vida especulativa, a ligação de cada um com todos, numa profusão de aspectos diversos, de maneira que se torne involuntariamente familiar o sentimento íntimo da solidariedade social, convenientemente estendida a todos os tempos e a todos os lugares. Não só a ativa procura do bem público será sem cessar considerada o modo mais apropriado para garantir comumente a felicidade privada, mas também, graças a uma influência ao mesmo tempo mais direta e mais pura, finalmente mais eficaz, o mais completo exercício possível das inclinações generosas se tornará a principal fonte da felicidade pessoal, ainda que não devesse proporcionar excepcionalmente outra recompensa além de uma inevitável satisfação interior. Pois se, como não se poderia duvidar, a felicidade resulta sobretudo de uma sábia atividade, deve portanto depender principalmente dos instintos simpáticos, embora a nossa organização não lhes conceda normalmente uma energia preponderante. Isso porque os sentimentos benévolos são os únicos que podem desenvolver-se livremente no estado social, que naturalmente os estimula cada vez mais, abrindo-lhes um campo indefinido, ao passo que exige, com toda necessidade, certa repressão permanente dos diversos impulsos pessoais, cujo desenvolvimento espontâneo suscitaria conflitos contínuos. Nessa vasta expansão social, cada qual encontrará a satisfação normal dessa tendência para se eternizar, que de início podia ser satisfeita só com a ajuda de ilusões doravante incompatíveis com nossa evolução mental. Já não podendo prolongar-se a não ser através da espécie, o indivíduo será assim obrigado a se incorporar a ela do modo mais completo possível, ligando-se profundamente a toda a sua existência coletiva, não apenas atual, mas também passada, e sobretudo futura, de modo a obter toda a intensidade de vida que comporta, em cada caso, o conjunto das leis reais. Essa grande identificação poderá tornar-se ainda mais íntima e mais bem sentida porque a nova filosofia atribui necessariamente às duas espécies de vida uma mesma destinação fundamental e uma mesma lei de evolução, que sempre consistem, quer para o indivíduo, quer para a espécie, na progressão contínua cujo objetivo principal foi acima caracterizado, isto é, a tendência para fazer prevalecer tanto quanto possível, de ambas as partes, o atributo humano, ou a combinação da inteligência com a sociabilidade, sobre a animalidade propriamente dita. Como quaisquer de nossos sentimentos se desenvolvem apenas por um exercício direto e constante, tanto mais indispensável por serem eles de início menos enérgicos, seria supérfluo insistir mais sobre isto com quem possua, mesmo que empiricamente, um verdadeiro conhecimento do homem, para demonstrar a Superioridade necessária do espírito positivo sobre o antigo espírito teológico-metafísico, acerca do desenvolvimento próprio e ativo do instinto social. Esta proeminência é de natureza tão evidente que, por certo, a razão pública a reconhecerá suficientemente muito antes que as instituições correspondentes possam ter realizado convenientemente as suas felizes propriedades. Segundo o conjunto das indicações precedentes a superioridade espontânea da nova filosofia sobre cada uma das que hoje disputam entre si o domínio encontra-se agora tão caracterizada no aspecto social como o estava do ponto de vista mental, pelo menos tanto quanto comporta este Discurso, excetuando-se o recurso indispensável à obra citada. Terminando esta sumária apreciação, importa observar a feliz correlação que se estabelece naturalmente entre este espírito filosófico e as disposições sábias mas empíricas que a experiência contemporânea doravante faz prevalecer cada vez mais, tanto nos governados quanto nos governantes. Substituindo diretamente uma estéril agitação política por um imenso movimento mental, a escola positiva explica e sanciona, consoante um exame sistemático, a indiferença ou a repugnância que a razão pública e a prudência dos governos concordam em manifestar hoje por qualquer elaboração séria e direta das instituições propriamente ditas, numa época em que só podem existir instituições eficazes com um caráter puramente provisório ou transitório, por falta de base racional suficiente, enquanto durar a anarquia intelectual. Destinada a dissipar finalmente esta desordem fundamental pelos únicos meios capazes de superá-la, esta nova escola necessita antes de tudo da manutenção contínua da ordem material, tanto interior quanto exterior, sem a qual nenhuma grave meditação social poderia ser convenientemente acolhida e nem sequer suficientemente elaborada. Portanto, ela tende a justificar e a secundar a preocupação muito legítima que hoje é inspirada em toda parte pelo único grande resultado político imediatamente compatível com a situação atual, que, aliás, lhe confere um valor especial pelas graves dificuldades que suscita, sempre colocando o problema, insolúvel com o tempo, de manter certa ordem política em meio a uma profunda desordem moral. Além de seus trabalhos futuros, a escola positiva associa-se imediatamente a esta importante operação por sua tendência direta para desacreditar radicalmente as diversas escolas atuais, já cumprindo melhor do que cada uma delas os ofícios opostos que ainda lhes restam, e que apenas ela combina espontaneamente, de maneira a logo se mostrar mais orgânica do que a escola teológica e mais progressiva do que a escola metafísica, sem nunca poder comportar os perigos de retrocesso ou de anarquia que lhes são respectivamente próprios. Desde que os governos renunciaram essencialmente, embora de maneira implícita, a qualquer séria restauração do passado, e as populações desistiram de qualquer subversão grave das instituições, a nova filosofia só tem de requerer a ambas as partes as disposições habituais que as pessoas no fundo estão preparadas para lhe dar em todos os lugares (pelo menos na França, onde deve sobretudo realizar-se primeiramente a elaboração sistemática), isto é, liberdade e atenção. Com estas condições naturais, a escola positiva tende, por um lado, a consolidar todos os poderes atuais entre seus possessores, sejam eles quem forem; e por outro lado, tende a impor-lhes obrigações morais cada vez mais conformes às verdadeiras necessidades dos povos. Estas disposições incontestáveis de início parecem não deixar à nova filosofia outros obstáculos essenciais além daqueles que resultarão da incapacidade ou da incúria de seus diversos promotores. Mas uma apreciação mais madura mostra, pelo contrário, que ela deve encontrar enérgicas resistências em quase todos os espíritos atualmente ativos, por causa da difícil renovação que exigiria deles para associá-los diretamente à sua principal elaboração. Se essa inevitável oposição se limitasse aos espíritos essencialmente teológicos ou metafísicos, ofereceria pouca gravidade real, porque restaria um poderoso apoio daqueles, cujo número e influência aumentam diariamente, que se dedicam sobretudo aos estudos positivos. Mas, por uma fatalidade facilmente explicável, é destes mesmos que a nova escola talvez deva esperar menos assistência e mais entraves; uma filosofia diretamente emanada das ciências provavelmente encontrará os inimigos mais perigosos entre aqueles que as cultivam hoje. A principal fonte deste deplorável conflito consiste na especialização cega e dispersiva que caracteriza profundamente o espírito científico atual, de acordo com a sua formação necessariamente parcial, segundo a complicação crescente dos fenômenos estudados, como indicarei expressamente mais adiante. Essa marcha provisória, que uma perigosa rotina acadêmica hoje se empenha em eternizar, sobretudo entre os geômetras, estende a verdadeira positividade, em cada inteligência, somente a uma pequena porção do sistema mental, deixando todo o restante sob um vago regime teológico-metafísico, ou abandona-o a um empirismo ainda mais opressivo. Assim sendo, o verdadeiro espírito positivo que corresponde ao conjunto dos diversos trabalhos científicos no fundo não pode ser plenamente compreendido por nenhum daqueles que assim o prepararam naturalmente. Cada vez mais entregues a essa inevitável tendência, os cientistas propriamente ditos são comumente levados, em nosso século, a uma insuperável aversão por qualquer ideia geral, e à impossibilidade total de apreciar realmente qualquer concepção filosófica. Aliás, perceberemos melhor a gravidade de tal oposição ao observar que, nascida dos hábitos mentais, teve de estender-se em seguida aos mais diversos interesses correspondentes, que nosso regime científico vincula profundamente, sobretudo na França, a essa desastrosa especialidade, como demonstrei cuidadosamente na obra citada. Assim, a nova filosofia, que exige diretamente o espírito de conjunto e faz prevalecer para sempre, sobre todos os estudos hoje constituídos, a ciência nascente do desenvolvimento social, encontrará necessariamente uma íntima antipatia, ativa e passiva ao mesmo tempo, nos preconceitos e nas paixões da única classe que poderia oferecer-lhe diretamente um ponto de apoio especulativo, e da qual ela por muito tempo só pode esperar adesões puramente individuais, talvez mais raras aí do que em qualquer outra parte. (Esta empírica preponderância do espírito de detalhe entre a maioria dos cientistas atuais, a sua cega antipatia para com toda e qualquer generalização, encontram-se muito agravadas, sobretudo na França, por sua reunião habitual em academias, onde os diversos preconceitos analíticos se fortalecem mutuamente, onde, aliás, se desenvolvem interesses com muita frequência, abusivos, onde, afinal, se organiza espontaneamente uma espécie de motim permanente contra o regime sintético que de agora em diante deve prevalecer. O instinto de progresso que caracterizava, meio século atrás, o gênio revolucionário, havia percebido confusamente estes perigos essenciais, de maneira que determinou a supressão direta dessas associações atrasadas que, sendo convenientes apenas para a elaboração preliminar do espírito positivo, se tornavam cada vez mais hostis à sua sistematização final. Conquanto essa audaciosa medida, geralmente tão mal apreciada, fosse então prematura porque esses graves inconvenientes ainda não podiam ser suficientemente reconhecidos, mesmo assim é certo que essas corporações científicas já haviam desempenhado o principal ofício que sua natureza comporta. Desde a sua restauração, sua influência real foi, no fundo, muito mais nociva do que útil à marcha atual da grande evolução mental). Para sobrepujar convenientemente este concurso espontâneo de resistências diversas que hoje lhe apresenta a massa especulativa propriamente dita, a escola positiva não poderia encontrar outro recurso geral que não organizar um apelo direto e firme ao bom senso universal, esforçando-se de agora em diante em propagar sistematicamente na massa ativa os principais estudos científicos apropriados para constituir a base indispensável de sua grande elaboração filosófica. Estes estudos preliminares, até aqui naturalmente dominados por esse espírito de especialidade empírica que preside às ciências correspondentes, são sempre concebidos e dirigidos como se cada um deles devesse preparar sobretudo para uma certa profissão exclusiva; isso evidentemente elimina a possibilidade, mesmo entre aqueles que tivessem mais tempo livre, de abranger vários deles ou, pelo menos, tantos quanto exigiria a formação posterior de sadias concepções gerais. Mas isso não pode continuar assim, uma vez que tal instrução se destina diretamente à educação universal, que lhe muda necessariamente o caráter e a direção, apesar de todas as tendências contrárias. Com efeito, o público que não quer tornar-se nem geômetra, nem astrônomo, nem químico, etc., sente a necessidade contínua e simultânea de todas as ciências fundamentais, cada qual reduzida às suas noções essenciais; precisa, segundo a notável expressão de nosso grande Molière, das clarezas de tudo. Esta simultaneidade necessária não existe apenas para ele, quando considera estes estudos em sua destinação abstrata e geral, como a única base racional do conjunto das concepções humanas; encontra-a ainda, embora menos diretamente, mesmo nas aplicações concretas, cada uma das quais, no fundo, ao invés de se referir exclusivamente a certo ramo da filosofia natural, também depende em maior ou menor grau de todas as outras. Assim, a propagação universal dos principais estudos positivos hoje não se destina unicamente a satisfazer uma necessidade já muito pronunciada entre o público, que percebe cada vez mais que as ciências já não são reservadas exclusivamente aos cientistas, mas que elas existem sobretudo para ele próprio. Por uma feliz reação espontânea, tal destinação, quando estiver desenvolvida de modo conveniente, deverá melhorar radicalmente o espírito científico atual, despojando-o de sua especialidade cega e dispersiva, fazendo-o adquirir pouco a pouco o verdadeiro caráter filosófico indispensável à sua principal missão. Este caminho é realmente o único que pode, em nossa época, constituir gradualmente, fora da classe especulativa propriamente dita, um vasto tribunal espontâneo, tão imparcial como irrecusável, formado pela massa dos homens sensatos, diante do qual virão extinguir-se irrevogavelmente muitas falsas opiniões científicas, que as concepções próprias da elaboração preliminar dos dois últimos séculos tiveram de mesclar profundamente nas doutrinas verdadeiramente positivas, que serão necessariamente alteradas por elas enquanto essas discussões não estiverem afinal submetidas ao bom senso universal. Num tempo em que se pode esperar eficácia imediata apenas de medidas sempre provisórias, bem adaptadas à nossa situação transitória, a organização necessária de tal ponto de apoio para o conjunto dos trabalhos filosóficos vem a ser, em minha opinião, o principal resultado social que pode agora produzir a total vulgarização dos conhecimentos reais. Assim, o público restituirá à nova escola um equivalente pleno dos serviços que esta organização lhe prestar. Este grande resultado não poderia ser suficientemente obtido se este ensino contínuo permanecesse destinado a uma única classe, seja ela qual for, por mais ampla que seja; deve-se, sob pena de abortamento, ter sempre em vista a universalidade das inteligências. No estado normal que este movimento deve preparar, todas, sem nenhuma exceção nem distinção, sempre sentirão a mesma necessidade fundamental desta filosofia primeira, resultante do conjunto das noções gerais, e que deve então tornar-se a base sistemática da sabedoria humana, tanto ativa como especulativa, de modo a cumprir da maneira mais conveniente a indispensável função social antes vinculada à instrução cristã universal. Portanto, é muito importante que, desde a origem, a nova escola filosófica desenvolva, tanto quanto possível, este grande caráter elementar de universalidade social que, finalmente relativo à sua principal destinação, constituirá hoje a sua maior força contra as diversas resistências que deve encontrar. A fim de melhor marcar esta tendência necessária, uma íntima convicção, primeiro instintiva e depois sistemática, determinou-me, há muito tempo, a representar sempre o ensino exposto neste Tratado como dirigindo-se sobretudo à classe mais numerosa, que a nossa situação deixa desprovida de toda instrução regular, por causa do desgaste crescente da instrução puramente teológica que, substituída provisoriamente, apenas para os letrados, por cena instrução metafísica e literária, não pôde receber, mormente na França, nenhum equivalente parecido para a massa popular. A importância e a novidade de tal disposição constante, meu vivo desejo de que esta seja convenientemente apreciada e, até mesmo, ouso dizer, imitada, obrigam-me a indicar aqui os principais motivos deste contato espiritual que a nova escola filosófica deve especialmente instituir hoje com os proletários, mas sem que o seu ensino deva jamais excluir qualquer classe que seja. Sejam quais forem os obstáculos que a falta de zelo ou de nobreza de caráter de ambas as partes possam realmente trazer a tal aproximação, é fácil reconhecer que, em geral, de todas as porções da sociedade atual, o povo propriamente dito deve ser, no fundo, a mais bem disposta, dadas as tendências e as necessidades que resultam de sua situação característica, a acolher favoravelmente a nova filosofia, que finalmente deve encontrar nele o seu principal apoio, tanto mental quanto social. Uma primeira consideração que importa aprofundar, ainda que sua natureza seja sobretudo negativa, resulta, a este respeito, de uma judiciosa apreciação daquilo que, à primeira vista, poderia parecer oferecer uma grave dificuldade, ou seja, a ausência atual de toda cultura especulativa. Sem dúvida, é lamentável, por exemplo, que este ensino popular da filosofia astronômica ainda não encontre entre todos aqueles a quem é principalmente destinado alguns estudos matemáticos preliminares que o tornariam mais eficaz e mais fácil e que sou forçado mesmo a pressupor. Mas a mesma lacuna também seria encontrada entre a maior parte das outras classes atuais, num tempo em que a instrução positiva permanece limitada, na França, a certas profissões especiais, vinculadas essencialmente à Escola Politécnica ou às escolas de Medicina. Logo, aí não há nada que seja verdadeiramente particular a nossos operários. Quanto à sua falta habitual dessa espécie de cultura regular recebida hoje pelas classes letradas, não temo cair num exagero filosófico ao afirmar que daí resulta, para os espíritos populares, uma notável vantagem, ao invés de um inconveniente real. Sem voltar aqui a uma crítica infelizmente muito fácil, bem consumada há muito tempo, e que a experiência cotidiana confirma cada vez mais aos olhos da maioria dos homens sensatos, seria difícil conceber agora uma preparação mais irracional, e, no fundo, mais perigosa para a condução normal da vida real, tanto ativa, quanto até mesmo especulativa, do que aquela que resulta dessa vã instrução, primeiro de palavras e depois de entidades, na qual ainda se perdem tantos anos preciosos da juventude. A maioria daqueles que a recebem, não inspira muito mais do que uma aversão quase insuperável por todos os trabalhos intelectuais durante todo o curso de sua carreira; mas estes perigos tornam-se muito mais graves entre aqueles que se dedicaram especialmente a ela. A inaptidão para a vida real, o desdém pelas profissões vulgares, a incapacidade de apreciar convenientemente qualquer concepção positiva, e a antipatia que daí logo resulta, dispõem-nos hoje com muita frequência a secundar uma estéril agitação metafísica, que inquietas pretensões pessoais desenvolvidas por essa desastrosa educação não tardam a tornar politicamente perturbadora; isso pela influência direta de uma viciosa erudição histórica que, fazendo prevalecer uma falsa noção do tipo social próprio da Antiguidade, comumente impede a compreensão da sociabilidade moderna. Considerando que quase todos aqueles que, sob diversos aspectos, agora dirigem os negócios humanos foram preparados assim, para isso não é de surpreender a vergonhosa ignorância que manifestam com muita frequência acerca dos menores assuntos, mesmo materiais, nem a sua frequente disposição para negligenciar o fundo em proveito da forma, colocando acima de tudo a arte de bem dizer, por mais contraditória ou perniciosa que venha a ser a sua aplicação, nem, afinal, a tendência especial das nossas classes letradas para acolher avidamente todas as aberrações que surgem diariamente de nossa anarquia mental. Tal apreciação predispõe, pelo contrário, ao espanto de que esses diversos desastres não sejam normalmente maiores; leva a admirar profundamente a retidão e a sabedoria naturais do homem que, pelo feliz impulso próprio do conjunto de nossa civilização, refreiam espontaneamente, em grande parte, essas perigosas consequências de um absurdo sistema de educação geral. Como esse sistema foi, desde o fim da Idade Média, e ainda o é, o principal ponto de apoio social do espírito metafísico, primeiro contra a teologia, depois também contra a ciência, imagina-se facilmente que as classes que não puderam ser desenvolvidas por ele devem encontrar-se, por isso mesmo, muito menos afetadas por essa filosofia transitória e, por conseguinte, mais bem dispostas ao estado positivo. Ora, esta é a importante vantagem que a ausência de educação escolástica confere hoje aos nossos proletários e os deixa, no fundo, menos acessíveis do que a maior parte dos letrados aos diversos sofismas perturbadores, consoante à experiência cotidiana, apesar de uma excitação contínua sistematicamente dirigida para as paixões relativas à sua condição social. Antigamente eles tiveram de ser profundamente dominados pela teologia, mormente católica; mas, durante a sua emancipação mental, a metafísica não conseguiu causar quase nenhuma impressão neles, por não encontrar a cultura especial em que se baseia; apenas a filosofia positiva poderá, de novo, assenhorear-se radicalmente deles. As condições prévias, tão recomendadas pelos primeiros pais desta filosofia final, devem assim encontrar-se aí exercidas melhor do que em qualquer outra parte; se a célebre tabula rasa de Bacon e de Descartes fosse um dia plenamente realizável, seria com certeza entre os proletários atuais que, principalmente na França, estão muito mais próximos do que qualquer outra classe do tipo ideal dessa disposição preparatória à positividade racional. Examinando num aspecto mais íntimo e mais duradouro esta inclinação natural das inteligências populares para a sã filosofia, reconhece-se facilmente que ela sempre deve resultar da solidariedade fundamental que, segundo as nossas explicações anteriores, vincula diretamente o verdadeiro espírito filosófico ao bom senso universal, sua primeira fonte necessária. Além do mais, de fato, este bom senso, tão justamente preconizado por Descartes e por Bacon, deve hoje encontrar-se mais puro e mais enérgico entre as classes inferiores, em virtude precisamente dessa feliz falta de cultura escolástica que os deixa menos acessíveis aos hábitos vagos ou sofísticos. A esta diferença passageira, que se dissipará gradualmente com uma melhor educação das classes letradas, cumpre acrescentar outra, necessariamente permanente, relativa à influência mental das diversas funções sociais próprias dos dois tipos de inteligência, conforme o caráter respectivo de seus trabalhos habituais. Desde que a ação real da Humanidade sobre o mundo exterior começou, entre os modernos, a organizar-se espontaneamente, ela exige a combinação contínua de duas classes distintas, muito desiguais em número, mas igualmente indispensáveis: por um lado, os empreendedores propriamente ditos, sempre pouco numerosos, que, possuindo os diversos materiais adequados, o dinheiro e o crédito inclusive, dirigem o conjunto de cada operação, assumindo consequentemente a principal responsabilidade de quaisquer resultados; por outro lado, os operadores diretos que, vivendo de um salário periódico e formando a imensa maioria dos trabalhadores, executam, numa espécie de intenção abstrata (A expressão caracteriza muito bem aquilo que os sociólogos chamam hoje de trabalho parcelar), cada um dos atos elementares, sem ter uma preocupação especial com o seu concurso final. Estes últimos são os únicos imediatamente às voltas com a natureza, ao passo que os primeiros lidam sobretudo com a sociedade. Como uma consequência necessária destas diversidades fundamentais, a eficácia especulativa, que reconhecemos ser inerente à vida industrial para desenvolver involuntariamente o espírito positivo, normalmente deve ser mais palpável nos operadores do que nos empreendedores, pois os trabalhos que lhes cabem oferecem um caráter mais simples, um objetivo nitidamente determinado, resultados mais próximos e condições mais imperiosas. Portanto, a escola positiva deverá encontrar neles um acesso mais fácil para o seu ensino universal e uma simpatia mais viva por sua renovação universal, quando puder penetrar convenientemente nesse vasto meio social. Aí deverá encontrar, ao mesmo tempo, afinidades morais não menos preciosas do que essas harmonias mentais, segundo essa comum despreocupação com as coisas materiais que aproxima espontaneamente nossos proletários da verdadeira classe contemplativa, pelo menos quando esta tiver enfim adotado os costumes correspondentes à sua destinação social. Essa feliz predisposição, tão favorável à ordem material como à verdadeira felicidade pessoal, adquirirá um dia muita importância normal, de acordo com a sistematização das relações gerais que devem existir entre esses dois elementos extremos da sociedade positiva. Mas, a partir deste momento, ela pode facilitar essencialmente a sua união nascente, suprindo o pouco lazer que as ocupações cotidianas deixam a nossos operários para a sua instrução especulativa. Se, em alguns casos excepcionais de extrema sobrecarga, este obstáculo contínuo parece, de fato, dever impedir todo desenvolvimento mental, ele é comumente compensado pelo caráter de sábia imprevidência que, em cada intermitência natural dos trabalhos obrigatórios, confere ao espírito plena disponibilidade. O verdadeiro lazer só deve faltar habitualmente na classe que se crê especialmente dotada dele, pois, em razão precisamente de sua fortuna e de sua posição, ela permanece comumente preocupada com ativas inquietações que quase nunca comportam uma calma verdadeira, intelectual e moral. Este estado deve ser fácil, pelo contrário, tanto para os pensadores quanto para os operadores, segundo a sua emancipação espontânea das preocupações relativas ao emprego dos capitais, e independentemente da regularidade natural de sua vida cotidiana. Quando estas diferentes tendências mentais e morais tiverem agido de maneira conveniente, é portanto entre os proletários que se deverá realizar melhor a propagação universal da instrução positiva, condição indispensável para a realização gradual da renovação filosófica. E também entre eles que o caráter contínuo de tal estudo poderá tornar-se mais puramente especulativo, porque aí se encontrará mais isento dessas visões interesseiras trazidas, mais ou menos diretamente, pelas- classes superiores, quase sempre preocupadas com cálculos ávidos ou ambiciosos. Após ter primeiramente procurado nesse estudo o fundamento universal de toda a sabedoria humana, nele virão haurir em seguida, como nas belas-artes, Uma doce diversão habitual para o conjunto de suas penas cotidianas. Como a sua inevitável condição social deve tornar muito mais preciosa tal diversão, científica ou estética, seria estranho que as classes dirigentes quisessem ver nisso, pelo contrário, um motivo fundamental para mantê-los essencialmente privados dela, recusando sistematicamente a única satisfação que possa ser indefinidamente compartilhada com aqueles que devem renunciar sabiamente aos prazeres menos comunicativos. Para justificar tal recusa, com muita frequência ditada pelo egoísmo e pela irreflexão, por vezes se tem objetado, é verdade, que esta vulgarização especulativa tenderia a agravar profundamente a desordem atual, desenvolvendo a funesta disposição, já demasiado pronunciada, à desclassificação universal. Mas esse temor natural, única objeção séria que, a esse respeito, mereceria uma verdadeira discussão, resulta hoje, na maioria dos casos de boa fé, de uma confusão irracional entre a instrução positiva, ao mesmo tempo estética e científica, e a instrução metafísica e literária, a única organizada agora. Esta, com efeito, que já reconhecemos exercer uma ação social muito perturbadora entre as classes letradas, se tornaria muito mais perigosa se a estendêssemos aos proletários, em quem desenvolveria, além da aversão pelas ocupações materiais, exorbitantes ambições. Mas, felizmente, em geral eles estão muito menos dispostos a exigi-la do que se estaria a conceder-lhas. Quanto aos estudos positivos, sabiamente concebidos e convenientemente dirigidos, não comportam de modo algum tal influência; aliando-se e aplicando-se, por sua natureza, a todos os trabalhos práticos, tendem, pelo contrário, a confirmar ou mesmo inspirar o gosto por eles, quer enobrecendo seu caráter habitual, quer amenizando suas penosas consequências. Conduzindo, aliás, a uma sadia apreciação das diversas posições sociais e das necessidades correspondentes, dispõem a sentir que a felicidade real é compatível com todas e quaisquer condições, contanto que sejam desempenhadas honrosamente e aceitas suficientemente. A filosofia geral que daí resulta representa o homem, ou antes, a Humanidade, como o primeiro dos seres conhecidos, destinado pelo conjunto das leis reais a sempre aperfeiçoar, tanto quanto possível, sob todos os aspectos, a ordem natural, ao abrigo de todas as inquietações quiméricas; isso tende a resgatar o ativo sentimento universal da dignidade humana. Ao mesmo tempo, ela tempera espontaneamente o orgulho muito exaltado que ele poderia suscitar, mostrando, sob todos os aspectos, e com evidência familiar, o quanto devemos, permanecer sem cessar aquém do objetivo e do tipo assim caracterizados, tanto na vida ativa, quanto até na vida especulativa, na qual sentimos quase a cada passo que os nossos mais sublimes esforços nunca conseguem ultrapassar senão uma pequena parte das dificuldades fundamentais. Apesar da alta importância dos diversos motivos precedentes, considerações ainda mais poderosas determinarão mormente as inteligências populares a secundar hoje a ação filosófica da escola positiva mediante o seu ardor contínuo na propagação universal dos estudos reais, que estão relacionados com as principais necessidades coletivas próprias da condição social dos proletários. Podemos resumi-los neste apanhado geral: até agora não foi possível existir uma política especialmente popular, e a nova filosofia é a única que pode constituí-la. Desde o começo da grande crise moderna, o povo até hoje só interveio como simples auxiliar nas principais lutas políticas, com a esperança, por certo, de com elas obter algumas melhorias em sua situação geral, mas não conforme enfoques e para o objetivo que lhe fossem realmente próprios. Todos os debates habituais ficaram essencialmente concentrados entre as diversas classes superiores ou médias, porque se prendiam sobretudo à posse do poder. Ora, o povo não podia por muito tempo interessar-se diretamente por tais conflitos, já que a natureza de nossa civilização evidentemente impede os proletários de esperar, e mesmo de desejar, alguma importante participação no poder político propriamente dito. Desse modo, depois de ter realizado essencialmente todos os resultados sociais que podiam esperar da substituição provisória da antiga preponderância política das classes sacerdotais e feudais pelos metafísicos e legistas, tornam-se hoje cada vez mais indiferentes ao estéril prolongamento dessas lutas cada vez mais miseráveis, agora quase reduzidas a vãs rivalidades pessoais. Sejam quais forem os esforços cotidianos da agitação metafísica para fazê-los intervir nesses frívolos debates, mediante o engodo do que chamam os direitos políticos, o instinto popular já compreendeu, sobretudo na França, quão ilusória ou pueril seria a posse de tal privilégio que, mesmo em seu grau atual de disseminação, não inspira habitualmente nenhum interesse verdadeiro à maior parte daqueles que o usufruem de maneira exclusiva. O povo só pode interessar-se essencialmente pelo uso efetivo do poder, quaisquer que sejam as mãos em que este resida, e não por sua conquista especial. Logo que as questões políticas, ou melhor, sociais, se reportarem comumente à maneira pela qual o poder deve ser exercido para melhor atingir sua destinação geral, principalmente referente, entre os modernos, à massa proletária, não se tardará a reconhecer que o desdém atual não se deve de modo algum a uma perigosa indiferença; até lá, à opinião popular continuará alheia a esses debates que, na opinião dos bons espíritos, aumentando a instabilidade de todos os poderes, tendem especialmente a retardar esta indispensável transformação. Numa palavra, o povo está naturalmente disposto a desejar que a vã e tempestuosa discussão dos direitos seja enfim substituída por uma fecunda e salutar apreciação dos diversos deveres essenciais, quer gerais, quer especiais. Tal é o princípio espontâneo da íntima conexão que, percebida mais cedo ou mais tarde, unirá necessariamente o instinto popular à ação social da filosofia positiva; pois esta grande transformação equivale evidentemente àquela, mais acima motivada pelas mais altas considerações especulativas, do movimento político atual num simples movimento filosófico cujo primeiro e principal resultado social consistirá, com efeito, em constituir solidamente uma ativa moral universal que prescreva a cada agente, individual ou coletivo, as regras de conduta mais conformes à harmonia fundamental. Quanto mais meditarmos sobre esta relação natural, melhor reconheceremos que esta mutação decisiva, que só podia emanar do espírito positivo, não pode hoje encontrar um sólido apoio senão no povo propriamente dito, o único disposto a bem compreendê-la e a interessar-se profundamente por ela. Os preconceitos e as paixões peculiares às classes superiores ou médias opõem-se conjuntamente a que ela seja suficientemente percebida de início, porque essas classes devem ser comumente mais tocadas pelas vantagens inerentes à posse do poder do que pelos perigos resultantes de seu exercício vicioso. Se o povo está agora, e deve continuar no futuro, indiferente à posse direta do poder político, jamais pode renunciar à sua indispensável participação contínua no poder moral; este, que é o único verdadeiramente acessível a todos, sem perigo algum para a ordem universal, trazendo-lhe, pelo contrário, uma grande vantagem cotidiana, autoriza cada qual, em nome de uma comum doutrina fundamental, a exigir convenientemente das mais altas potências seus diversos deveres essenciais. Na verdade, os preconceitos inerentes ao estado transitório ou revolucionário tiveram de encontrar também algum acesso entre nossos proletários, fomentando, de fato, deploráveis ilusões sobre o alcance indefinido das medidas políticas propriamente ditas; impedem-nos de apreciar o quanto a justa satisfação dos grandes interesses populares depende hoje mais das opiniões e dos costumes do que das próprias instituições, cuja verdadeira regeneração, atualmente impossível, exige antes de tudo uma reorganização espiritual. Podemos garantir, porém, que a escola positiva terá muito mais facilidade para fazer este ensino salutar penetrar nos espíritos populares do que em qualquer outro, tanto porque a metafísica negativa não conseguiu enraizar-se muito neles, quanto sobretudo pelo impulso constante das necessidades sociais inerentes à sua situação necessária. Estas necessidades prendem-se essencialmente a duas condições fundamentais, uma espiritual, outra temporal, de natureza profundamente conexa: trata-se, de fato, de garantir convenientemente para todos, primeiro a educação normal, depois o trabalho regular, sendo este, no fundo, o verdadeiro programa social dos proletários. Agora só pode existir verdadeira popularidade para a política que tender necessariamente a esta dupla destinação. Ora, é este, evidentemente, o caráter espontâneo da doutrina social peculiar à nova escola filosófica, devendo as nossas explicações anteriores dispensar aqui, a este respeito, qualquer outro esclarecimento, reservado, aliás, à obra tantas vezes indicada neste Discurso. Importa somente acrescentar sobre este assunto que a concentração necessária de nossos pensamentos e de nossa atividade na vida real da Humanidade, descartando todas as vãs ilusões, tenderá especialmente a fortalecer muito a adesão moral e política do povo propriamente dito à verdadeira filosofia moderna. De fato, seu judicioso instinto logo sentirá aí um motivo forte e novo para dirigir sobretudo a prática social ao sábio melhoramento contínuo de sua própria condição geral. As quiméricas esperanças inerentes à antiga filosofia com muita frequência levaram, pelo contrário, a negligenciar com desdém tais progressos, ou a afastá-los por uma espécie de adiamento contínuo, de acordo com a importância mínima relativa que essa eterna perspectiva devia naturalmente lhes deixar, perspectiva que servia de imensa compensação espontânea a todas e quaisquer misérias. Esta sumária apreciação basta por ora para assinalar, nos diversos aspectos essenciais, a afinidade necessária das classes inferiores com a filosofia positiva, que, assim que o contato puder estar plenamente estabelecido, encontrará aí o seu principal apoio natural, a um só tempo mental e social, ao passo que a filosofia teológica convém agora apenas às classes superiores, cuja preponderância política tende a eternizar, e a filosofia metafísica se dirige sobretudo às classes médias, cuja ativa ambição apoia. Todo espírito meditativo deve, assim, compreender afinal a importância verdadeiramente fundamental apresentada hoje por uma sábia vulgarização sistemática dos estudos positivos, essencialmente destinada aos proletários, a fim de preparar entre eles uma sadia doutrina social. Os diversos observadores que podem libertar-se, ainda que momentaneamente, do turbilhão cotidiano concordam agora em deplorar, e decerto com muita razão, a anárquica influência exercida atualmente por sofistas e retóricos. Mas essas queixas justas permanecerão inevitavelmente vãs enquanto não se tiver percebido melhor a necessidade de sair, enfim, de uma situação mental em que a educação oficial só pode redundar, comumente, em formar retóricos e sofistas, que em seguida tendem espontaneamente a propagar o mesmo espírito, através do tríplice ensino emanado dos jornais, dos romances e dos dramas entre as classes inferiores, que nenhuma instrução regular protege do contágio metafísico, repelido somente por sua razão natural. Embora se deva esperar, a este respeito, que os governos atuais logo sintam o quanto a propagação universal dos conhecimentos reais pode auxiliar cada vez mais os seus esforços contínuos para a difícil manutenção de uma ordem indispensável, ainda não se pode esperar deles, nem mesmo desejar, uma cooperação verdadeiramente ativa nesta grande preparação racional, que por muito tempo deve resultar sobretudo de zelo livre e privado, inspirado e sustentado por verdadeiras convicções filosóficas. A imperfeita conservação de uma grosseira harmonia política, comprometida sem cessar em meio à nossa desordem mental e moral, absorve com toda justiça a sua solicitude cotidiana, e até os mantém num ponto de vista muito inferior para que possam compreender dignamente a natureza e as condições de tal trabalho, do qual só se pode exigir que entrevejam a importância. Se, por um zelo intempestivo, tentassem hoje dirigi-lo, só poderiam acabar por alterá-lo profundamente, comprometendo muito a sua principal eficácia, ao não vinculá-la a uma filosofia decisiva o bastante, o que o faria degenerar logo num incoerente acúmulo de especialidades superficiais. Assim, a escola positiva, resultante de um ativo concurso voluntário de espíritos verdadeiramente filosóficos, por muito tempo só poderá exigir de nossos governos ocidentais, para cumprir convenientemente a sua grande função social, uma plena liberdade de exposição e de discussão, equivalente àquela que já desfrutam a escola teológica e a escola metafísica. Uma pode, todos os dias, em suas mil tribunas sacras, preconizar a seu bel-prazer a excelência absoluta de sua eterna doutrina, e condenar todos e quaisquer adversários a uma irrevogável danação. A outra, nas numerosas cátedras mantidas pela munificência nacional, pode diariamente desenvolver diante de imensos auditórios a universal eficácia de suas concepções ontológicas e a preeminência indefinida de seus estudos literários. Sem ter pretensões a tais vantagens, que apenas o tempo deve propiciar, a escola positiva hoje pede, essencialmente, só um simples direito de asilo regular nas localidades municipais, para aí fazer diretamente que apreciem a sua aptidão final à satisfação simultânea de todas as nossas grandes necessidades sociais, propagando com sabedora a única instrução sistemática que possa doravante preparar uma verdadeira reorganização, primeiro mental, depois moral, e afinal política. Desde que este livre acesso lhe fique sempre aberto, o zelo voluntário e gratuito de seus raros promotores, auxiliado pelo bom senso universal, e sob o impulso crescente da situação fundamental, nunca temerá sustentar, mesmo a partir deste momento, uma ativa concorrência filosófica com os numerosos e poderosos órgãos, até mesmo reunidos, das duas escolas antigas. Ora, não é mais de se temer que de agora em diante os homens de Estado afastem-se gravemente, a este respeito, da imparcial moderação cada vez mais inerente à sua própria indiferença especulativa. A escola positiva tem até motivos de contar, a este propósito, com a benevolência habitual dos mais inteligentes dentre eles, não só na França, mas também em todo o nosso Ocidente. Sua vigilância contínua desse livre ensino popular logo se restringirá a prescrever-lhe apenas a condição permanente de uma verdadeira positividade, afastando com inflexível severidade a introdução, muito iminente ainda, de especulações vagas ou sofísticas. Mas, a este respeito, as necessidades essenciais da escola positiva coincidem diretamente com os deveres naturais dos governos, pois se estes devem repelir tal abuso em virtude de sua tendência anárquica, aquela, além deste justo motivo, o julga plenamente contrário à destinação fundamental de tal ensino, porque reanima aquele mesmo espírito metafísico no qual ela vê hoje o principal obstáculo para o advento social da nova filosofia. Sob este aspecto, assim como qualquer outro, os filósofos positivos se sentirão sempre quase tão interessados quanto os poderes atuais pela dupla manutenção contínua da ordem interior e da paz exterior, porque as consideram a condição mais favorável para uma verdadeira renovação mental e moral; entretanto, do ponto de vista que lhes é próprio, devem perceber com mais acuidade o que poderia comprometer ou consolidar este grande resultado político do conjunto de nossa situação transitória. III Já caracterizamos o bastante, em todos os aspectos, a importância capital apresentada hoje pela propagação universal dos estudos positivos, mormente entre os proletários, para constituir daqui para frente um indispensável ponto de apoio, ao mesmo tempo mental e social, para a elaboração filosófica que deve determinar gradualmente a reorganização espiritual das sociedades modernas. Mas esta apreciação ainda ficaria incompleta, e mesmo insuficiente, se o fim deste Discurso não fosse diretamente dedicado a estabelecer a ordem fundamental que convém a esta série de estudos, fixando a verdadeira posição que deve ser ocupada, em seu conjunto, pelo estudo de que este Tratado tratará exclusivamente em seguida. Esta ordenação didática está longe de ser quase indiferente, como nosso vicioso regime científico faz muito amiúde supor, e podemos garantir, pelo contrário, que é principalmente dela que depende a principal eficácia intelectual ou social desta grande preparação. Aliás, existe uma íntima solidariedade entre a concepção enciclopédica de que resulta e a lei fundamental de evolução que serve de base à nova filosofia geral. Tal ordem deve, por natureza, preencher duas condições essenciais, uma dogmática, outra histórica, das quais cumpre primeiramente reconhecer a convergência necessária. A primeira consiste em ordenar as ciências conforme a sua dependência sucessiva, de sorte que cada uma repouse na precedente e prepare a seguinte; a segunda prescreve dispô-la segundo a marcha de sua formação efetiva, passando sempre das mais antigas para as mais recentes. Ora, a equivalência espontânea destas duas vias enciclopédicas deve-se, em geral, à identidade fundamental que existe inevitavelmente entre a evolução individual e a evolução coletiva, as quais, tendo igual origem, semelhante destinação e um mesmo agente, devem sempre oferecer fases correspondentes, excetuando-se apenas as diversidades de duração, de intensidade e de velocidade, inerentes à desigualdade dos dois organismos. Este concurso necessário permite, pois, conceber estes dois modos como dois aspectos correlativos de um único princípio enciclopédico, de maneira que se possa habitualmente empregar aquele que, em cada caso, manifestar melhor as relações consideradas, e com a preciosa faculdade de poder constantemente verificar por meio de um o que resultará do outro. A lei fundamental desta ordem comum de dependência dogmática e de sucessão histórica foi completamente estabelecida na grande obra acima indicada, que lhe determina o plano geral. Consiste em classificar as diferentes ciências segundo a natureza dos fenômenos estudados, consoante a sua generalidade e a sua independência decrescente ou a sua complicação crescente; daí resultam especulações cada vez menos abstratas e cada vez mais difíceis, mas também cada vez mais eminentes e completas, em virtude de sua relação mais íntima com o homem, ou melhor, com a Humanidade, objeto final de todo o sistema teórico. Esta classificação tira seu principal valor filosófico, científico ou lógico, da identidade constante e necessária existente entre todos estes diversos modos de comparação especulativa dos fenômenos naturais; daí resultam outros tantos teoremas enciclopédicos, cuja explicação e uso pertencem à obra citada, que, ademais, no aspecto da ação, lhe acrescenta a importante relação geral de que os fenômenos se tornam assim cada vez mais modificáveis, oferecendo um campo cada vez mais amplo para a intervenção humana. Basta indicar sumariamente aqui a aplicação deste grande princípio à determinação racional da verdadeira hierarquia dos estudos fundamentais, daqui para a frente diretamente concebidos como os diferentes elementos essenciais de uma ciência única, a da Humanidade. Este objeto final de todas as nossas especulações reais exige, evidentemente, por sua natureza ao mesmo tempo científica e lógica, um duplo preâmbulo indispensável, referente, de um lado, ao homem propriamente dito, do outro, ao mundo exterior. De fato, é impossível estudar racionalmente os fenômenos estáticos ou dinâmicos da sociabilidade se antes não se conhece suficientemente o agente especial que os opera, e o meio geral em que se realizam. Daí resulta, portanto, a divisão necessária da filosofia natural, destinada a preparar a filosofia social, em dois grandes ramos, um orgânico, o outro inorgânico. Quanto à disposição relativa desses dois estudos igualmente fundamentais, todos os motivos essenciais, sejam científicos, sejam lógicos, concorrem para prescrever, na educação individual e na evolução coletiva, que se comece pelo segundo, cujos fenômenos mais simples e mais independentes em virtude de sua generalidade superior são os únicos que comportam de início uma apreciação verdadeiramente positiva, ao passo que suas leis, diretamente relativas à existência universal, exercem em seguida uma influência necessária sobre a existência especial dos corpos vivos. A astronomia constitui necessariamente, sob todos os ângulos, o elemento mais decisivo dessa teoria prévia do mundo exterior, quer como a mais suscetível de plena positividade, quer enquanto caracteriza o meio geral de todos e quaisquer dos nossos fenômenos e manifesta, sem nenhuma outra complicação, a simples existência matemática, isto é, geométrica e mecânica, comum a todos os seres reais. Mas, mesmo condensando o mais possível as verdadeiras concepções enciclopédicas, não poderíamos reduzir a filosofia inorgânica a esse elemento principal, porque ela ficaria então completamente isolada da filosofia orgânica. Seu vínculo fundamental, científico e lógico, consiste sobretudo no ramo mais complexo da primeira, o estudo dos fenômenos de composição e de decomposição, os mais eminentes daqueles que a existência universal comporta, e os mais próximos do modo vital propriamente dito. E assim que a filosofia natural, encarada como o preâmbulo necessário da filosofia social, decompondo-se de início em dois estudos extremos e um estudo intermediário, compreende sucessivamente estas três grandes ciências, a astronomia, a química e a biologia, das quais a primeira se refere imediatamente à origem espontânea do verdadeiro espírito científico, e a última à sua destinação essencial. Seu respectivo desenvolvimento inicial reporta-se, historicamente, à Antiguidade grega, à Idade Média e à época moderna. Tal apreciação enciclopédica ainda não preencheria suficientemente as condições indispensáveis de continuidade e de espontaneidade apropriadas para tal assunto; por um lado, deixa uma lacuna capital entre a astronomia e a química, cuja ligação não poderia ser direta; por outro lado, não indica o bastante a verdadeira fonte deste sistema especulativo como um simples prolongamento abstrato da razão comum, cujo ponto de partida científico não podia ser diretamente astronômico. Mas, para completar a fórmula fundamental, basta, em primeiro lugar, colocar no início deste vasto conjunto a ciência matemática, único berço necessário da positividade racional, tanto para o indivíduo como para a espécie. Se, por uma aplicação mais especial de nosso princípio enciclopédico, decompusermos, por sua vez, essa ciência inicial em seus três grandes ramos, o cálculo, a geometria e a mecânica, determinaremos afinal, com maior precisão filosófica, a verdadeira origem de todo o sistema científico; de fato, inicialmente oriundo das especulações puramente numéricas que, sendo de todas as mais gerais, as mais simples, as mais abstratas e as mais independentes, quase se confundem com o ímpeto espontâneo do espírito positivo entre as inteligências mais vulgares, como é confirmado ainda, sob nossos olhos, pela observação cotidiana do desenvolvimento individual. Conseguimos, assim, descobrir gradualmente a invariável hierarquia, a um só tempo histórica e dogmática, igualmente científica e lógica, das seis ciências fundamentais, a matemática, a astronomia, a física, a química, a biologia e a sociologia. A primeira delas constitui necessariamente o ponto de partida exclusivo e a última o único objetivo essencial de toda filosofia positiva, encarada agora como algo que forma, por sua natureza, um sistema verdadeiramente indivisível em que qualquer decomposição é radicalmente artificial, sem ser, aliás, de modo algum arbitrária, pois que tudo está finalmente relacionado com a Humanidade, única concepção plenamente universal. O todo desta fórmula enciclopédica, exatamente conforme as verdadeiras afinidades dos estudos correspondentes, e que, aliás, compreende evidentemente todos os elementos de nossas especulações reais, permite afinal a cada inteligência renovar a seu bel-prazer a história geral do espírito positivo, passando, de maneira quase insensível, das menores ideias matemáticas para os mais altos pensamentos sociais. Está claro, de fato, que cada uma das quatro ciências intermediárias se confunde, por assim dizer, com a precedente no tocante a seus mais simples fenômenos, e com a seguinte no tocante aos mais eminentes. Essa perfeita continuidade espontânea se tornará sobremaneira irrecusável a todos aqueles que reconhecerem na obra acima indicada que o mesmo princípio enciclopédico fornece também a classificação racional das diversas partes constituintes de cada estudo fundamental, de modo que os graus dogmáticos e as fases históricas podem aproximar-se tanto quanto exigir a precisão das comparações ou a facilidade das transições. No presente estado das inteligências, a aplicação lógica dessa grande fórmula é ainda mais importante do que seu uso científico, pois o método é, em nossos dias, mais essencial do que a própria doutrina, e, aliás, o único imediatamente suscetível de plena regeneração. Portanto, a sua principal utilidade consiste hoje em determinar rigorosamente a marcha invariável de toda educação verdadeiramente positiva, em meio a preconceitos irracionais e hábitos viciosos próprios do surto preliminar do sistema científico, formado assim gradualmente por teorias parciais e incoerentes, cujas relações mútuas deviam até aqui permanecer despercebidas a seus fundadores sucessivos. Todas as classes atuais de sábios violam agora, com igual gravidade, se bem que de diversas maneiras, esta obrigação fundamental. Restringimo-nos aqui a indicar os dois casos extremos: os geômetras, justamente orgulhosos de estarem colocados na verdadeira fonte da positividade racional, obstinam-se cegamente em deter o espírito humano nesse grau puramente inicial do verdadeiro crescimento especulativo, sem nunca considerar o seu único objetivo necessário; ao contrário, os biologistas ao preconizar, com toda razão, a dignidade superior de seu assunto, imediatamente próximo dessa grande destinação, persistem em manter seus estudos num isolamento irracional, eximindo-se arbitrariamente da difícil preparação que a natureza deles exige. Estas disposições opostas, mas igualmente empíricas, levam com muita frequência uns a um vão desperdício de esforços intelectuais, consumidos então, na maior parte, em pesquisas cada vez mais pueris, e outros a uma instabilidade contínua das diversas noções essenciais, por falta de um andamento verdadeiramente positivo. Sob este último aspecto, principalmente, deve-se de fato observar que os estudos sociais agora não são os únicos que permanecem exteriores ao sistema plenamente positivo, sob a estéril dominação do espírito teológico-metafísico. No fundo, os próprios estudos biológicos, mormente os dinâmicos, embora estejam academicamente constituídos, tampouco atingiram até agora uma verdadeira positividade, pois que nenhuma doutrina capital está hoje suficientemente esboçada, de sorte que o campo das ilusões e dos malabarismos ainda permanece quase indefinido. Ora, o deplorável prolongamento de tal situação deve-se essencialmente, em ambos os casos, ao cumprimento insuficiente das grandes condições lógicas determinadas por nossa lei enciclopédica; pois, de há muito, ninguém mais contesta a necessidade de um andamento positivo; mas todos lhe desconhecem a natureza e as obrigações, que apenas a verdadeira hierarquia científica pode caracterizar. O que esperar, com efeito, tanto para os fenômenos sociais, quanto mesmo para o estudo, mais simples, da vida individual, de uma cultura que aborda diretamente especulações tão complexas, sem para isso estar devidamente preparada por uma sadia apreciação dos métodos e das doutrinas relativas aos diversos fenômenos menos complicados e mais gerais, de modo que não pode conhecer suficientemente nem a lógica indutiva, no estado rudimentar caracterizada principalmente pela química, pela física e, de início, pela astronomia, nem sequer a pura lógica dedutiva, ou a arte elementar do raciocínio decisivo que apenas a iniciação matemática pode desenvolver convenientemente? Para facilitar o uso habitual de nossa fórmula hierárquica, é muito conveniente, quando não se necessita de grande precisão enciclopédica, agrupar os termos de dois em dois, de forma que fiquem reduzidos a três pares, um inicial, matemático-astronômico, o outro final, biológico-sociológico, separados e reunidos pelo par intermediário, físico-químico. Esta feliz condensação resulta de uma irrecusável apreciação, já que existe, de fato, maior afinidade natural, quer científica, quer lógica, entre os dois elementos de cada par do que entre os próprios pares consecutivos, o que é confirmado frequentemente pela dificuldade que se sente em separar nitidamente a matemática da astronomia, e a física da química, por causa dos hábitos vagos que ainda dominam todos os pensamentos de conjunto; a biologia e a sociologia, em especial, continuam a quase se confundir para a maioria dos pensadores atuais. Sem nunca chegar a essas viciosas confusões, que alterariam radicalmente as transições enciclopédicas, será frequentemente útil reduzir a hierarquia elementar das especulações reais a três pares essenciais; cada um deles poderá, aliás, ser brevemente designado por seu elemento mais especial, que é sempre efetivamente o mais característico e o mais adequado para definir as grandes fases da evolução positiva, individual ou coletiva. Esta sumária apreciação basta aqui para indicar a destinação e assinalar a importância de tal lei enciclopédica, em que reside finalmente uma das duas ideias mestras cuja íntima combinação espontânea constitui necessariamente a base sistemática da nova filosofia geral. O término deste longo Discurso, em que o verdadeiro espírito positivo foi caracterizado em todos os aspectos essenciais, aproxima-se assim de seu começo, pois que esta teoria de classificação deve ser encarada, em último lugar, como naturalmente inseparável da teoria de evolução exposta inicialmente, de sorte que o discurso atual forma ele próprio um verdadeiro conjunto, imagem fiel, embora condensada, de um amplo sistema. E fácil compreender, com efeito, que a consideração habitual desta hierarquia deve tornar-se indispensável, tanto para aplicar convenientemente a nossa lei inicial dos três estados quanto para dissipar suficientemente as únicas objeções sérias que ela pode comportar; pois a frequente simultaneidade histórica das três grandes fases mentais no que diz respeito a especulações diferentes constituiria, de qualquer outra maneira, uma inexplicável anomalia que é resolvida pelo contrário espontaneamente por nossa lei hierárquica, relativa tanto à sucessão quanto à dependência dos diversos estudos positivos. Concebe-se do mesmo modo, em sentido inverso, que a regra da classificação supõe a da evolução, pois todos os motivos essenciais da ordem assim estabelecida resultam, no fundo, da rapidez desigual de tal desenvolvimento nas diferentes ciências fundamentais. A combinação racional destas duas ideias mestras, ao constituir a unidade necessária do sistema científico cujas partes concorrem todas cada vez mais para um mesmo fim, garante também, por outro lado, a justa independência dos diversos elementos principais, muito amiúde ainda alterada por aproximações viciosas. Em seu desenvolvimento preliminar, único concluído até agora, o espírito positivo teve de estender-se gradualmente dos estudos inferiores aos estudos superiores, e assim estes ficaram inevitavelmente expostos à opressiva invasão daqueles, contra a ascendência dos quais a sua indispensável originalidade não encontrava de início outra garantia senão um prolongamento exagerado da tutela teológico-metafísica. Essa deplorável flutuação, ainda muito sensível na ciência dos corpos vivos, caracteriza hoje aquilo que contêm de real, no fundo, as longas controvérsias, aliás tão inúteis sob qualquer outro aspecto, entre o materialismo e o espiritualismo; estes representam, de maneira provisória, em formas igualmente viciosas, as necessidades igualmente graves, embora infelizmente opostas até agora, da realidade e da dignidade de quaisquer de nossas especulações. Tendo chegado hoje à sua maturidade sistemática, o espírito positivo dissipa ao mesmo tempo esses dois tipos de aberrações, terminando esses conflitos estéreis mediante a satisfação simultânea dessas duas condições viciosamente contrárias, como logo indica a nossa hierarquia científica combinada com a nossa lei de evolução, já que cada ciência não pode chegar a uma verdadeira positividade senão na medida em que a originalidade de seu caráter próprio está plenamente consolidada. Uma aplicação direta desta teoria enciclopédica, ao mesmo tempo científica e lógica, condu-lo enfim a definir exatamente a natureza e a destinação do ensino a que é consagrado este Tratado. Com efeito, resulta das explicações precedentes que a principal eficácia; primeiro mental e depois social, que devemos hoje procurar numa sábia propagação universal dos estudos positivos depende necessariamente da estrita observância didática da lei hierárquica. Para cada rápida iniciação individual, assim como para a lenta iniciação coletiva, será sempre indispensável que o espírito positivo, ao desenvolver o seu regime à medida que vai aumentando seu campo, se eleve pouco a pouco do estado matemático inicial ao estado sociológico final, percorrendo sucessivamente os quatro graus intermediários: astronômico, físico, químico e biológico. Nenhuma superioridade pessoal pode verdadeiramente dispensar esta gradação fundamental, a cujo respeito temos muitíssimas oportunidades de constatar hoje, nas grandes inteligências, uma lacuna irreparável, que por vezes neutralizou eminentes esforços filosóficos. Tal marcha deve tornar-se, portanto, ainda mais indispensável na educação universal (A formação do homem social - do "servidor da Humanidade" abrangendo todo o curso da vida e estendida ao conjunto dos homens. Só pode ser plenamente realizada no estado normal), em que as especialidades têm pouca importância, e cuja principal utilidade, mais lógica do que científica, exige essencialmente uma racionalidade plena, sobretudo quando se trata de constituir por fim o verdadeiro regime mental. Assim, este ensino popular deve hoje referir-se principalmente ao par científico inicial; até que este se encontre convenientemente vulgarizado. E nele que todos devem extrair primeiramente as verdadeiras noções elementares de sua positividade geral, adquirindo os conhecimentos que servem de base a todas as outras especulações reais. Se bem que esta estrita obrigação conduza necessariamente a colocar no início os estudos puramente matemáticos, importa, entretanto, considerar que ainda não se trata de estabelecer uma sistematização direta e completa da instrução popular, mas somente de transmitir de modo conveniente o impulso filosófico que deve levar a isso. Por conseguinte, reconhece-se facilmente que tal movimento deve em especial depender dos estudos astronômicos, que, por sua natureza, oferecem necessariamente a plena manifestação do verdadeiro espírito matemático, do qual constituem, no fundo, a principal destinação. Há tanto menos inconvenientes atuais em caracterizar assim o par inicial apenas pela astronomia, quanto os conhecimentos matemáticos verdadeiramente indispensáveis para a sua judiciosa vulgarização já estão bastante difundidos ou bastante fáceis de adquirir, para que possamos hoje nos restringir a supô-los resultantes de uma preparação espontânea. Esta preponderância necessária da ciência astronômica na primeira propagação sistemática da iniciação positiva está plenamente conforme à influência histórica de tal estudo, até aqui o principal motor das grandes revoluções intelectuais. O sentimento fundamental da invariabilidade das leis naturais devia, de fato, desenvolver-se inicialmente acerca dos fenômenos mais simples e mais gerais, cuja regularidade e grandeza superiores nos manifestam a única ordem real completamente independente de qualquer modificação humana. Antes mesmo de completar algum caráter verdadeiramente científico, esta classe de concepções determinou principalmente a passagem decisiva do fetichismo ao politeísmo, resultante em todos os lugares do culto dos astros. Seu primeiro esboço matemático, nas escolas de Tales e de Pitágoras, constituiu em seguida a principal fonte mental da decadência do politeísmo e da ascendência do monoteísmo. Enfim, o surto sistemático da positividade moderna, que tende abertamente a um novo regime filosófico, resultou essencialmente da grande renovação astronômica começada por Copérnico, Kepler e Galileu. Logo, não é de surpreender que a iniciação positiva universal, sobre a qual deve apoiar-se o advento direto da filosofia definitiva, se encontre inicialmente na dependência de tal estudo, segundo a conformidade necessária da educação individual com a evolução coletiva. Este é, por certo, o último ofício (Durante o período de transição, ainda longe do estado normal, a astronomia pode abrir vantajosamente o caminho para a iniciação positiva universal; mais tarde, porém, quando o espírito humano tiver atingido a verdadeira positividade, a ciência final- a sociologia - poderá assumir a presidência normal e conferir diretamente à razão o impulso decisivo) fundamental que lhe deve ser próprio no desenvolvimento geral da razão humana, que, uma vez tendo conseguido para todos a verdadeira positividade, deverá marchar em seguida sob um novo impulso filosófico, diretamente emanado da ciência final, daí em diante investida para sempre de sua presença normal. Tal é a eminente utilidade, não menos social do que mental, que aqui se trata de retirar afinal de uma judiciosa exposição popular do sistema atual dos sãos estudos astronômicos. DOCUMENTOS ANEXOS DOCUMENTO I Ao Senhor Presidente da Associação polytechnique, Hôtel de Ville, Sala Saint-Jean. Paris, terça-feira 14 de dezembro de 1830. Senhor Presidente, Quando pela primeira vez a Associação ia estabelecer cursos científicos destinados aos operários de Paris, lamentei profundamente que minhas ocupações me impossibilitassem totalmente qualquer cooperação imediata nessa patriótica tentativa; acreditei mesmo não dever fazer oferta alguma para um futuro próximo, persuadido que estava de que as duas noites de que eu rigorosamente podia dispor por semana seriam prontamente absorvidas, e por todo o inverno, pelo curso que vou abrir no Athénée esta semana, e para o qual faz muito tempo estava comprometido. Mas como este curso deve, pelo contrário, realizar-se este ano apenas uma vez por semana, apresso-me em propor à Associação dedicar a noite que esse arranjo imprevisto me deixou à apresentação aos operários de um curso elementar de astronomia geral, tendo por principal objeto a exposição racional dos fenômenos essenciais do sistema do mundo, acompanhada da indicação das mais importantes aplicações. Se bem que tal curso não possa ser de uso imediato para os operários, não há dúvida sobre a sua utilidade, pois que tem por objetivo dar-lhes noções justas e claras sobre um assunto que, mesmo involuntariamente, fixa a atenção de todos os homens. Assim sendo, na falta de ideias sadias a este respeito, eles têm outras necessariamente absurdas, que exercem inevitavelmente uma influência funesta sobre o sistema geral de sua inteligência. Quanto à aptidão dos operários para um ensino desta natureza, estou certo de que, se nos livrássemos das prevenções derivadas de nossos hábitos sociais, os encontraríamos realmente mais bem dispostos a conceber nitidamente tal exposição do que as pessoas de sociedade que não fizeram os estudos preliminares adequados, e a quem, entretanto, dirijo todos os dias cursos com o mesmo objeto. Ninguém percebe mais profundamente do que eu o quanto é importante manter com severidade a hierarquia natural das ciências num sistema completo de instrução. Mas ainda não está em nosso poder organizar para os operários uma série natural de estudos científicos; e, até lá, estou convencido de que devemos essencialmente ater-nos a difundir entre eles noções positivas, apropriadas para despertar em seu espírito o gosto e a necessidade de estudos racionalmente dirigidos sobre todos os ramos fundamentais da filosofia natural. O curso que ofereço parece-me eminentemente adequado a semelhante destinação. Espero, aliás, que ele suscite o interesse dos operários e possa despertar-lhes um justo sentimento de sua dignidade, graças ao atrativo que lhes será oferecido por um novo ensino essencialmente teórico, exclusivamente destinado até agora ao uso dos senhores. Queira aceitar, Senhor Presidente, a afetuosa consideração de seu devotado, Auguste Comte Rua Saint-Jacques, 159. DOCUMENTO II ORDEM E PROGRESSO ASSOCIAÇÃO LIVRE PARA A INSTRUÇÃO POSITIVA DO POVO EM TODO O OCIDENTE EUROPEU A reorganização prévia das opiniões e dos costumes constitui a única base sólida sobre a qual possa efetuar-se a regeneração gradual das instituições sociais, à medida que o espírito público for adotando livremente os princípios fundamentais do regime final ao qual tende o conjunto do passado da elite da humanidade. Assim, a sadia instrução popular torna-se hoje a primeira condição do verdadeiro caráter apropriado para o término orgânico da grande revolução. Esta necessidade é compreendida sobretudo pelos próprios operários que, apesar da admirável espontaneidade de seus nobres instintos, percebem o quanto a cultura sistemática é indispensável para isso. De acordo com um duplo direito, agora incontestável, ao livre ensino e à livre associação, venho pois anunciar a recente fundação de uma Associação independente que, sob a divisa característica "Ordem e Progresso", desempenhará, tanto quanto possível, tal função social. Ela se dedica exclusivamente a desenvolver, em cursos sempre gratuitos, cujo livre acesso nunca será restringido, a instrução positiva propriamente dita. Compreende, de um lado, os estudos matemáticos, inorgânicos e biológicos; do outro, a história que, embora habitualmente empírica, contém, o preâmbulo necessário da verdadeira ciência social. Mas, descartando todo princípio indiscutível, tem o cuidado de proibir-se todos os assuntos que não comportam verdadeiras demonstrações. Longe de dissimular jamais a tendência diretamente social de seu ensino, esta Associação se empenhará sem cessar em nele subordinar profundamente a inteligência à sociabilidade, considerando sempre o espírito como o principal ministro do coração. A seus olhos, só existe, no fundo, uma única ciência, a da Humanidade, para a qual todos os outros estudos reais não constituem senão preâmbulos indispensáveis, cuja especialidade atual só pode ser corrigida por essa destinação contínua. Mas, com exceção desse princípio universal, a convergência habitual dos diversos cursos permanecerá sempre confiada exclusivamente às livres convicções dos professores, sejam quem forem, sem que nenhum programa lhes seja jamais imposto. Esta Associação positiva compreende, pela mesma razão, dois tipos de membros, em número ilimitado; uns consagram uma porção regular de seu tempo ao ensino popular, ao passo que os outros lhe facilitam, mediante todos os meios legítimos, o exercício e a extensão. Conquanto ela deva considerar Paris como a sede essencial de suas operações, seu serviço não se restringe à França. Abrange as cinco populações avançadas que, sempre mais ou menos solidárias, a partir da assimilação romana, compõem, desde Carlos Magno, a grande república ocidental, em cujo seio, apesar das diversidades nacionais, agravadas depois pelas dissidências religiosas, se realizou um desenvolvimento intelectual e social de que o restante da humanidade ainda não oferece, mesmo na Europa, um verdadeiro equivalente. Assim, reservando ao centro francês a iniciativa natural que a primeira parte da Revolução lhe conferiu para sempre, a Associação ocidental estenderá as suas funções habituais, de um lado à Alemanha e à Inglaterra, do outro à Itália e à Espanha. Esta indispensável extensão de uma tarefa urgente em todos os lugares exige necessariamente que a Associação positiva, sem recusar nunca a assistência dos diversos governos ocidentais, se mantenha sempre independente de qualquer um deles. Neste grande empreendimento social, invoco diretamente a cooperação de todos aqueles que, a qualquer título que seja, podem concorrer utilmente para ele. Mas convido mais especialmente, de um lado, para as ciências inorgânicas, meus antigos colegas ou alunos da Escola Politécnica que se sintam dispostos a secundá-lo, e, do outro lado, para os estudos biológicos, os médicos ou naturalistas que possam cooperar nisso. Quaisquer solicitações de admissão serão recebidas em minha casa (Rua Monsieur-le-Prince, 10), todas as noites, das 7h às 9h ou por correspondência. Paris, sexta-feira 25 de fevereiro de 1848 Auguste Comte DOCUMENTO III ORDEM E PROGRESSO O FUNDADOR DA SOCIEDADE POSITIVISTA A QUEM DESEJAR INCORPORAR-SE A ELA Paris, quarta-feira 8 de março de 1848 Acabo de fundar, sob a divisa característica Ordem e Progresso, uma Sociedade política destinada a desempenhar, para a segunda parte, essencialmente orgânica, da grande revolução, uma função equivalente à exerci da tão utilmente pela Sociedade dos Jacobinos na primeira parte, necessariamente critica. Sua ação será até mais puramente consultiva, sem qualquer intervenção temporal, já que repousará numa nova doutrina geral, cujos partidários ainda são muito pouco numerosos para obter outra influência social além daquela que poderá emanar de uma livre apreciação pública da sabedoria de seus juízos e de suas opiniões. Esta doutrina está exposta em meu tratado fundamental de Filosofia positiva. Está caracterizada sobretudo pela elaboração histórica dos dois últimos volumes, que, conforme o conjunto do passado humano, determina sem utopia o futuro social, de maneira que se funde a verdadeira ciência política, base racional da arte correspondente. A Sociedade Positivista propõe-se, pois, a fazer com que os princípios dessa nova ciência prevaleçam gradualmente, aplicando-os com oportunidade ao curso natural dos acontecimentos, quer para apreciar os fatos consumados e as medidas adotadas, quer sobretudo para assinalar as tendências reais e indicar melhores meios de regularizá-las. Conquanto deva consagrar-se sobretudo às questões colocadas pela situação geral e nas quais a atenção pública se fixa por si mesma, reserva-se o direito de também introduzir às vezes assuntos de discussão que ainda não estiverem na ordem do dia, contanto que tenha reconhecido a sua aptidão para esclarecer os debates espontâneos. Numa palavra, tem por objetivo geral facilitar o advento do novo poder espiritual que o positivismo mostra ser o único apropriado para terminar a revolução, através da fundação direta do regime final a que hoje tende a elite da humanidade. Para tanto, aplicará a doutrina fundamental a fim de esboçar espontaneamente, tanto quanto comporta o meio atual, as funções de apreciação, de conselho e de preparação, que esse poder definitivo em seguida deverá efetuar sistematicamente, sob a assistência contínua das simpatias universais. De acordo com tal destinação, a tarefa espiritual da Sociedade Positivista não se restringirá à França. Abrangerá naturalmente todas as populações avançadas que agora participam, a despeito de suas diversidades nacionais, da mesma necessidade fundamental de regeneração social, como prova hoje a ampliação gradual da crise revolucionária. Assim, deve compreender o conjunto da grande república ocidental que, preparada pela incorporação romana, e diretamente constituída sob Carlos Magno, em toda parte, realizou, desde a Idade Média, um desenvolvimento intelectual e social, negativo e positivo ao mesmo tempo, de que o restante da humanidade ainda não oferece, mesmo na Europa, um verdadeiro equivalente. Esta família de elite compreende, em torno do centro francês, de um lado a Alemanha e a Inglaterra com seus anexos naturais, do outro a Itália e a Espanha. Tal é, segundo a sã teoria histórica, a extensão necessária da função espiritual que a Sociedade Positivista hoje acaba de esboçar, adaptando-se sempre às conveniências reais de cada nacionalidade. A primeira parte da revolução devia ser essencialmente francesa, pois seu impacto inicial não podia ser tão decisivo em outro lugar por não se encontrar bastante preparado para isso. Mas a sua segunda parte apresenta-se, pelo contrário, como necessariamente comum a todo o Ocidente, visto que a reorganização espiritual, que deve caracterizá-la particularmente, já se mostra urgente em toda parte. A conciliação fundamental entre os instintos ainda opostos da ordem e do progresso só pode ser concebida e realizada elevando-se habitualmente a um determinado ponto de vista histórico, o único ao mesmo tempo bastante definido e bastante extenso para indicar convenientemente o mal e o remédio. Já que a demolição do regime antigo começou, no século catorze, pela desorganização espontânea de suas funções ocidentais, é realmente preciso que a construção do novo sistema siga hoje a mesma marcha. Assim, a Sociedade Positivista não será, em seus sentimentos e em seus pensamentos, nem nacional, nem cosmopolita, mas ocidental. Aliás, ela considera que a regeneração final deve em seguida estender-se, conforme uma progressão determinada, a todo o restante da humanidade, sob a sábia assistência do Ocidente reunido. Para os observadores racionais, a segunda parte da revolução, que deve ser, mormente hoje, mais espiritual do que temporal, já começou desde que a fundação da ciência social revelou o verdadeiro caráter geral do futuro humano, tão confusamente entrevisto até então, mesmo por meu principal precursor, o ilustre e infeliz Condorcet. Mas essa condição intelectual não motivava o bastante a formação da Sociedade Positivista até que a maravilhosa transformação política que acaba de operar-se na França tivesse mostrado tanto a possibilidade como a urgência de tal associação. A proclamação, de agora em diante irrevogável, da República Francesa, constitui, em todos os aspectos, o maior acontecimento sobrevindo no Ocidente desde a queda de Bonaparte. Resume nitidamente o conjunto da parte negativa da revolução, destruindo radicalmente as esperanças e as ilusões retrógradas que, a partir da segunda metade do reino de Luís XIV, se vinculavam, na França, exclusivamente ao nome da realeza, qualquer que fosse a forma em que ela se mantivesse. Por outro lado, o título de República apresenta, em sua feliz acepção orgânica, o programa universal, antes sentimental do que racional, do verdadeiro futuro social. Anuncia, assim, a subordinação contínua da política à moral, admiravelmente esboçada na Idade Média, sob o princípio católico, mas que só seria plenamente realizável com um regime espiritual melhor e num meio mais favorável. A reorganização das opiniões e dos costumes, única base sólida da regeneração gradual das instituições sociais, acaba, pois, de se colocar naturalmente na ordem do dia com muito mais energia e nitidez do que comportava há pouco a preponderância factícia de um regime contrário ao conjunto do passado francês, e que entretanto pretendia oferecer o desfecho final. Assim como mais urgente, a reorganização espiritual torna-se mais fácil, dada a ausência total de convicções sistemáticas que distingue este sadio abalo de todos os anteriores. Uma doutrina verdadeiramente completa e coerente em todas as suas aplicações deve, então, encontrar muito mais acesso junto aos espíritos cansados da anarquia mental, e incapazes de resistir profundamente às demonstrações filosóficas. Embora a necessidade de preceitos, sejam quais forem, pareça, precisamente por causa dessa imensa lacuna, suscitar hoje uma espécie de volta oficial às doutrinas metafísicas que foram convenientes à parte negativa da revolução, todos afora alguns homens atrasados e pouco influentes; sabem que essas teorias superadas não determinam nenhuma fé séria naqueles que são assim forçados a recorrer provisoriamente a elas. A preponderância habitual e unânime dos sentimentos de ordem logo fará ressaltar; em todos os aspectos, como essa impotente restauração de uma filosofia puramente revolucionária é antipática às necessidades e às tendências que caracterizam o nosso século, sobretudo na França, em que a anarquia não é menos repelida do que a retrogração. Todas as inquietações que esse despertar passageiro dos princípios negativos já excita terminarão necessariamente por facilitar a ascendência da filosofia positiva, daqui em diante a única fonte possível de convicções sistemáticas capazes de refrear iminentes aberrações, contra as quais as crenças teológicas não oferecem mais, faz muito tempo, nenhuma garantia real. Assim, por exemplo, se travarão em nossa próxima Assembleia Nacional graves debates a propósito da divisa republicana, entre os partidários da fórmula revolucionária que acaba de ser momentaneamente restabelecida, e os defensores da divisa provisória que o feliz instinto da classe média adotou espontaneamente sob o regime decaído. Essa luta inevitável permitirá naturalmente que a Sociedade Positivista já espere a unânime consagração de sua própria divisa (Ordem e Progresso), que corresponde certamente ao verdadeiro caráter do futuro social, por anunciar a conciliação fundamental, a um só tempo política e filosófica, das duas necessidades gerais da humanidade. Assim também as íntimas dificuldades industriais, que serão cada vez mais agravadas pela tendência metafísica em prescrever legalmente aquilo que deve ser regrado sobretudo pelos costumes, fornecerão à nova sociedade muitas oportunidades decisivas de fazer com que os trabalhadores e os empresários sintam claramente o quanto esta disciplina tão desejável depende de uma verdadeira reorganização espiritual, a única capaz de estabelecer tanto os princípios que devem presidir a ela quanto a autoridade, tão imparcial como esclarecida, que pode aplicá-los sabiamente em cada conflito. No que diz respeito ao progresso em especial, falta-nos uma derradeira garantia essencial para completar a liberdade de discussão indispensável à regeneração final, estendendo convenientemente à exposição oral a justa independência já própria da exposição escrita. Ora, só a Sociedade Positivista pode hoje solicitar, com a infatigável energia inspirada por uma convicção plena, a consagração legal das condições necessárias à liberdade de ensino e de associação, que o feliz abalo de fevereiro espontaneamente nos proporcionou. Todas as outras escolas atuais repugnam mais ou menos a esta plenitude de exame que as suas teorias não poderiam suportar. Sem especificar aqui outras aplicações, concebe-se, em geral, que esta sociedade fará com que a sua doutrina universal intervenha utilmente em todas as ocasiões decisivas que forem apresentadas pelo desenvolvimento espontâneo de nossa anarquia espiritual para manifestar a necessidade de verdadeiros princípios sociais, adequados para fornecer uma base sólida de juízo e de conduta. Ainda que a situação pareça favorecer as utopias de qualquer natureza, possibilitando-lhes de agora em diante um livre crescimento teórico, ela lhes suprime, por isso mesmo, o atrativo involuntário resultante de uma opressiva proibição e a ilusão natural de uma remota perspectiva. Colocadas assim diante da realidade, já não poderão sustentar, aos olhos do público imparcial, o exame racional a que só a nova filosofia pode submetê-las dignamente. De acordo com a sua destinação, a Sociedade Positivista exercerá a sua tarefa espiritual, não só através de suas discussões internas, mas também de seus escritos e discursos públicos, de suas petições sistemáticas à Assembleia Nacional ou ao poder central, etc.; em uma palavra, através de todos os modos apropriados para a influência teórica e consultiva, isenta de qualquer intervenção prática. Até que tenha adquirido bastante amplitude e importância, suas sessões continuarão a ser realizadas em minha casa, todo domingo à noite, das sete horas em ponto às dez horas. Mas como nada pode doravante tornar-se eficaz, como perceberam os jacobinos, além daquilo que se realiza em público, sua missão só frutificará plenamente quando as suas reuniões forem consagradas pela silenciosa presença de um livre auditório, SÓ então é que ela acabará de preparar uma verdadeira reorganização espiritual, esboçando em seu seio o culto final da Humanidade, mormente segundo um sistema geral de comemoração pública, que a sã teoria histórica lhe permitirá estender, sem nenhuma inconsequência, a todas as fases da evolução humana. Para melhor garantir a unidade de composição indispensável à Sociedade Positivista, ficarei o único juiz da aptidão intelectual e moral de todos aqueles que solicitarem fazer parte dela. Mas embora o número dos membros deva permanecer ilimitado, importa também garantir especialmente a fraternidade de suas relações mútuas. E por isso que cada uma das minhas novas escolhas será sempre submetida à aceitação dos antigos membros. As explicações precedentes indicam evidentemente, como primeira condição indispensável, suficiente adesão ao espírito geral do positivismo. Aqueles que sentirem um desejo verdadeiro de agregar-se à nova Sociedade, sem ainda ter estudado meu grande tratado, deverão ao menos adotar plenamente o Discurso sobre o espírito positivo, que publiquei há quatro anos para caracterizar sumariamente o positivismo, e o eminente opúsculo da Filosofia positiva publicada um ano depois por Littré, a respeito de minha obra fundamental. Todo aquele que não aderir completamente às cinco conclusões essenciais desse pequeno escrito deveria renunciar desde logo a tal incorporação, pelo menos de imediato. De resto, publicarei logo um Discurso sobre o conjunto do positivismo que, em todos os grandes aspectos filosóficos e políticos, poderá, como prova dessa admissão, dispensar o longo e difícil estudo de um tratado pouco acessível à maioria dos leitores atuais. Todos os filósofos positivos que queiram a partir de agora devotar seriamente a vida inteira ao sacerdócio da Humanidade devem renunciar sistematicamente a toda posição política propriamente dita, mesmo àquela que lhes fosse proposta pela confiança direta de seus concidadãos. Em seu nome, bem como no meu, proclamei recentemente, numa ocasião decisiva, este solene compromisso, resultado necessário das profundas convicções que há mais de vinte anos me familiarizaram com as condições básicas desta separação contínua dos dois poderes elementares em que vejo o princípio fundamental da sã política moderna. Está claro, no entanto, que nenhuma renúncia semelhante nunca poderia ser imposta à maioria dos membros da Sociedade Positivista, porquanto seria diretamente contrária ao objetivo geral desta associação: a ascendência universal da nova filosofia. Destinados, não a fundar uma doutrina que já existe, nem sequer a desenvolvê-la e a aperfeiçoá-la, mas somente a fazê-la prevalecer graças a uma aplicação contínua e especial ao curso natural dos acontecimentos, esses membros emanarão indiferentemente de todas as classes atuais. A classe ativa deverá fornecer o maior número deles, mormente entre esses nobres proletários franceses que estão tão dispostos, de coração e de espírito, a tal missão. Muito longe de esquecer seu caráter prático em nossas sessões positivistas, eles ali virão retemperar periodicamente sua energia mental e moral, para melhor desempenhar suas diversas funções públicas, fazendo penetrar em toda parte o espírito fundamental do positivismo. Conforme a extensão ocidental acima atribuída a suas funções essenciais, a Sociedade Positivista não se compõe exclusivamente de franceses. Seus membros podem pertencer a qualquer uma das cinco populações que formam a vanguarda da humanidade e mesmo àquelas que emanaram delas pela colonização moderna. Todavia, como a sua principal atividade deve hoje exercer-se na França, onde aliás reside o centro normal dessa grande família, sempre terei cuidado de manter uma grande maioria francesa. Ao invés de introduzir na sociedade-mãe muitos outros ocidentais, será preferível estender o seu território principalmente mediante a formação gradual de sociedades afiliadas nas diversas capitais do Ocidente, assim como nas principais cidades da França; de sorte que o centro parisiense possa facilmente difundir em todos os lugares o seu impulso sistemático, e também submeter-se, por sua vez, a todas as reações parciais convenientes à sua destinação. A associação de que acabo de delinear a natureza e o objetivo sempre se honrará de sua afinidade natural com a enérgica predecessora que concorreu de modo tão feliz para o triunfo inicial da mesma causa. Desempenhando espontaneamente, para a nossa gloriosa assembleia republicana, a função de um poder espiritual, tanto quanto permitiam a época e a situação, os jacobinos completaram a admirável instituição, ainda muito pouco apreciada, do governo revolucionário. Para dirigir hoje o término orgânico da revolução, os positivistas vêm exercer uma tarefa equivalente junto ao novo poder temporal, local ou central, cuja principal destinação, sempre necessariamente provisória, consiste em garantir a ordem material enquanto durar o interregno intelectual e moral. Se os jacobinos tiveram sobre nós a vantagem de aplicar uma doutrina previamente adotada, que os dispensava de toda forte discussão de princípios, a nossa compensa a sua novidade e a sua dificuldade com seu caráter evidentemente definitivo e com a sua aptidão para tudo abranger. Preenche mesmo, com toda a energia conveniente, e no entanto ao abrigo de qualquer tendência anárquica, o gênero de atribuições sociais ainda conservadas pelo espírito revolucionário propriamente dito, que assim pode extinguir-se sem perigo. Ambas as doutrinas convêm de tal modo à sua principal destinação, de um lado crítica, do outro orgânica, que creio poder garantir que quase todos os verdadeiros jacobinos seriam hoje zelosos positivistas. A despeito da grande diversidade de suas respectivas opiniões, ambas perseguem, no fundo, o mesmo objetivo essencial com meios adaptados aos tempos e às situações. A principal diferença filosófica consiste no espírito anti-histórico exigido pelo abalo inicial em que a humanidade, para sair energicamente do regime antigo, devia então estar animada por um ódio cego contra o passado; ao passo que de agora em diante o espírito dominante deve, pelo contrário, tornar-se profundamente histórico, quer para fazer ao passado uma justiça indispensável à nossa completa emancipação, quer para fundamentar nosso futuro numa única base sólida, ligando-o sempre ao conjunto da evolução humana, apreciada mediante uma teoria que não teria sido, no início da revolução, nem possível nem oportuna. Auguste Comte Autor de Sistema de Filosofia Positiva Rua Monsieur-le-Prince, 10 DOCUMENTO IV DISCURSO DE FABIEN MAGNIN OPERÁRIO MARCENEIRO POR OCASIÃO DO VIGÉSIMO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO DA MORTE DE AUGUSTE COMTE 25 GUTEMBERG 90 (5 DE SETEMBRO DE 1878) Como o número dos positivistas que tiveram a honra e a felicidade de conhecer Auguste Comte está sempre diminuindo, pensei que seria útil contar o que vimos no início das relações diretas do grande filósofo com os proletários parisienses. Quando, por volta de 1840, os saint-simonianos, depois de ter abandonado a propaganda de sua doutrina, perturbavam toda a harmonia social para conseguir apoderar-se da riqueza, duas outras doutrinas substituíram o saint-simonismo no espírito dos homens ativos preocupados com as questões sociais. Foram, de um lado, o fourierismo, que se apoderava facilmente do espírito de grande número de burgueses e de alguns proletários e, do outro, o comunismo, em suas diversas formas, mas sobretudo o comunismo icariano, recrutado entre os mais devotados homens da elite do proletariado. As duas escolas desenvolveram-se paralelamente até 1848 quando, vindo a reação em auxílio da insuficiência de suas doutrinas, ambas resultaram fatalmente na imigração e passaram para a América, em grande detrimento do partido republicano. Entretanto, dentre os proletários ativos que haviam visto nascer e crescer as duas escolas de que acabo de falar, alguns não quiseram seguir a doutrina fourierista, achando que esta cultuava demais a personalidade. Do mesmo modo, acreditaram que não deviam seguir a doutrina comunista, achando que esta não levava muito em conta a independência necessária à dignidade. Estes esperavam que se fizesse luz para tomar uma determinação, e procuravam instruir-se para não perder seu tempo. Era esta, em geral, a situação mental da parte mais ativa do proletariado. Era esta também a situação particular de um pequeno grupo de proletários de que eu fazia parte, que seguiam juntos os cursos do Conservatório de Artes e Ofícios, onde pedíamos sem cessar um curso de astronomia, que nos parecia fazer falta no programa daquele magnífico estabelecimento. Estávamos nesse ponto quando, por volta do fim de abril de 1843, em virtude de um feliz acidente que contarei noutro lugar, embora por si mesmo ofereça apenas interesse secundário, Pierre Buisson, operário funileiro, do beco Guémenée, nos anunciou que havia descoberto um curso de astronomia popular ministrado gratuitamente todos os domingos, ao meio-dia, na prefeitura do 3º distrito, pelo Senhor Auguste Comte da Escola Politécnica, autor do Curso de filosofia positiva. Imediatamente, alguns de nós aproveitaram essa informação; e, no terceiro domingo do mês de maio de 1843, um grupo de sete proletários sentava-se, um pouco à esquerda do professor, nos primeiros bancos da sala dos casamentos da prefeitura do 3º distrito, situada então no antigo convento dos Petits-Peres, perto da igreja de Notre-Dame des Victoires. Até então, Auguste Comte tivera isoladamente relações filosóficas diretas com três operários. Um deles era, creio, alfaiate; o outro, gráfico; o terceiro, relojoeiro. Este último era Francel, que foi, mais tarde, membro da Sociedade Positivista, e o primeiro que se casou segundo os nossos ritos. Quanto ao auditório de Auguste Comte, ele era composto de burgueses, mais ou menos eruditos ou letrados, mas mostrava pouco ardor em propagar a sua doutrina. Alguns, entretanto, pareciam muito simpáticos e, entre eles; um inglês e a filha pareciam adotar com fervor as ideias do filósofo. Outros admiravam-se de que Auguste Comte desse um curso de astronomia, ao invés de ensinar diretamente a nova filosofia. Mas se inquietavam sem razão; Auguste Comte não se enganara na escolha do meio. Sabia muito bem que a astronomia havia sido o grande motor que, transformando a mente das populações, as levara ao estado racional em que as vemos; e que os principais progressos que desfrutamos têm por base a difusão dos princípios gerais da astronomia nas populações, nas quais faz desabrochar os germes de aptidão teórica que há em todos os cérebros. Enfim, Auguste Comte sabia muito bem que a astronomia é o melhor meio para reconhecer, entre os espíritos dotados para a abstração, aqueles que são capazes de abordar francamente os difíceis problemas de sociologia e de moral, e para distinguir, entre eles, aqueles que são ao mesmo tempo bastante modestos e bastante enérgicos para cingir-se por si mesmos a afirmar sempre só aquilo que é exatamente conhecido. E isso, ao contrário das tendências dos adeptos do teologismo e da metafísica, dispostos sem cessar a perturbar todas as noções reais, afirmando sobretudo aquilo que menos sabem. Auguste Comte não era homem de se deixar afastar de seu objetivo por algumas conversas irrefletidas, tampouco pela conspiração do silêncio que já estava organizada ao seu redor. Nada alterava a serenidade e a franqueza de sua linguagem. Enquanto escutávamos a sua fala simpática, ardente e precisa, que nos causava muitas surpresas, mas que nos dava ainda mais esperanças, surpresas e esperanças que nossas fisionomias refletiam sucessivamente, Auguste Comte compreendeu bem depressa que um novo elemento se havia introduzido entre seus ouvintes. Sem presunção de nossa parte, pareceu-nos que ele levava em consideração a nossa presença, ao ouvi-lo entremear frequentemente em suas lições reflexões morais e sociais completamente ao nosso alcance. Como quer que seja, seguíamos aquele ensino com atenção crescente, e nosso grupinho quase dobrara. Enfim, quando, para encerrar a sua última sessão, Auguste Comte havia resumido o conjunto da obra que havia empreendido, quando, num rápido improviso, nos havia mostrado, como num quadro mágico, todo o Positivismo, todos os seus resultados principais, todos os seus meios de ação, a parte ativa do auditório, encantada, pareceu-nos inteiramente conquistada pela nova doutrina. Para nós, o resumo da situação foi "que com um homem e um programa daqueles, estávamos salvos". De fato, se Auguste Comte não se enganou sobre os motivos de nossa assiduidade, nós também não nos enganamos sobre o valor do homem que tivemos a felicidade de encontrar. Ainda estávamos longe de ser positivistas, mas havíamos compreendido que ele era republicano, tinha uma resposta positiva para cada pergunta, suas convicções eram imutáveis e prosseguiria a realização da sua obra até o fim de sua vida. Os acontecimentos demonstraram toda a justeza de nossas previsões. Em 1844, o curso de astronomia foi precedido por quatro sessões preliminares, impressas à parte, com o título de Discurso sobre o espírito positivo, cujo texto também se encontra no início do Tratado filosófico de astronomia popular, publicado no mesmo ano. Em 1845, o mesmo curso de astronomia teve cinco ou seis dessas sessões preliminares relativas às questões filosóficas, políticas e sociais, que não foram publicadas. O curso efetuou-se com seu sucesso habitual; o número de ouvintes aumentava sensivelmente, mas não tanto quanto teríamos desejado. Durante aqueles três primeiros anos, nosso reconhecimento e nossa admiração por Auguste Comte e por sua obra só se manifestaram através do que podiam lhe exprimir as nossas fisionomias e os nossos aplausos. Mas, no fim do curso daquele ano de 1845, estando reunidos num cabaré da vizinhança, como era nosso hábito após cada sessão, para trocarmos as nossas reflexões, Alphonse Darche, de Jouarre (de Seine e Marne), operário mecânico em Paris, propôs irmos em grupo à casa de Auguste Comte para lhe agradecer os serviços sociais e particulares prestados por seu ensino. Adotamos a proposta e, no domingo seguinte, mais de vinte dos nossos encontravam-se no local marcado. Infelizmente, haviam-nos informado errado o domicílio de Auguste Comte, e perdemos mais de três horas em procuras infrutíferas, durante as quais o nosso grupinho foi se dispersando aos poucos. Quando chegamos à rua Monsieur-le-Prince, lá pelas quatro horas, não éramos mais do que oito. Eis os nomes desses oito ouvintes: Senhores Darche, Buisson, Fili, Lefêvre, Guilbert, Gros-Jean, Simon, Magnin. Auguste Comte nos acolheu com muita cordialidade e ficou tocado com nossa iniciativa. Tivemos com ele uma conversa longa e interessante e quando o deixamos, deu um exemplar do Discurso sobre o espírito positivo para cada um de nós. A partir daquele dia, houve constantemente relações diretas entre Auguste Comte e os proletários, sobretudo parisienses. Por volta dos primeiros dias de janeiro de 1846, comunicamos a Auguste Comte o nosso projeto de mandar imprimir a nossa custa um pequeno anúncio de seu curso, que distribuiríamos em todas as oficinas. Ele aprovou o nosso projeto e, por esse meio, levamos a seu curso um grande número de proletários, alguns dos quais ficaram definitivamente conquistados pela nova escola. Em 1846, o curso de astronomia foi precedido por oito sessões filosóficas para servir de preâmbulo à explanação científica e preparar a da política positiva. Foi numa dessas sessões que Auguste Comte, tendo de apreciar a influência fatal exercida pelo primeiro Bonaparte sobre os eventos políticos de sua época, declarou que ao invés de elevar tanto o homem que melhor personificava o egoísmo, seria melhor celebrar a incomparável heroína cujo devotamento salvara a França. "Espero, disse ele, que uma manifestação pública em honra de Joana D'Arc compense logo a vergonhosa apoteose de Bonaparte." Mal acabara esta frase e os aplausos explodiram em todos os pontos da sala. Quem deu o sinal foi um proletário, já muito idoso, que exercia a profissão de ajudante-mecânico em Paris, Gros-Jean, antigo prisioneiro de guerra nos navios-prisões ingleses. Aqueles aplausos que, em nossos dias, não surpreenderiam ninguém, tinham então importância real. Não era nada fácil atacar um chauvinismo ainda muito ardente, cuja influência impedia que se apreciasse em seu justo valor o fatal aventureiro que tentara abafar a Revolução e comprometera o futuro da França. "Meu público, disse Auguste Comte ao sair, é mais avançado do que eu supunha. Esperava, pelo contrário, murmúrios." No final do curso, fizemos outra vez a nossa visita de agradecimento ao mestre, e sucedeu o mesmo todos os anos, enquanto durou o seu ensino oral. Pouco a pouco, outros ouvintes juntaram-se a nós para essa manifestação. Visitas anuais da mesma natureza ao novo chefe espiritual também foram feitas, no primeiro dia do ano, a partir de 1º de janeiro de 1849, e desde então foram se repetindo. Em 1847, houve doze sessões preliminares que foram publicadas em 1848 com o título de Discurso sobre o conjunto do positivismo, e reproduzidas, em 1851, com o título de Discurso preliminar, no início do primeiro volume da Política positiva. Foi numa dessas doze sessões, cerca de um ano antes da revolução de fevereiro, que Auguste Comte expôs o plano de um governo transitório, prevendo o restabelecimento da República. Se esse plano tivesse sido adotado pelos homens de Estado de 1848, teríamos certamente conservado a República e evitado o Império assim com as suas fatais consequências. Em 1848, em 30 de janeiro, Auguste Comte fundou um curso filosófico sobre a história geral da Humanidade. Quanto aos outros acontecimentos sobrevindos naquele ano memorável, sobre os quais documentos de todo tipo são prolíficos em todos os sentidos e em toda parte, direi apenas algumas palavras para mostrar que se, em muitos aspectos, eles foram favoráveis ao Positivismo, em alguns aspectos também lhe foram desfavoráveis. Primeiramente tivemos de constatar que a conspiração do silêncio se acentuava cada vez mais em torno de Auguste Comte e de sua obra, e que a coalizão do mundo científico estava a ponto de despojá-lo completamente de seus meios de subsistência. Foi então que foi fundado o subsídio positivista, cuja finalidade, organização e progressos estão mencionados nas circulares anuais relativas a isso. A iniciativa pública fora tomada por Littré; mas no pequeno grupo operário fora feita a mesma proposta, no mesmo dia, por um operário de Saint-Pierre-lês-Calais, Louis-Joseph Mignien, mecânico, então residente em Paris. Nosso auxílio material não foi muito eficaz, pois a reação e as ameaças de golpe de Estado quase haviam destruído nossos meios de subsistência. Mas Auguste Comte não tinha apenas necessidade de assistência material; necessitava estar rodeado por pessoas, ser ouvido; era preciso que pudesse dar informações e dar a conhecer a sua maneira de ver. Com este objetivo, em 8 de março de 1848, fundou a Sociedade Positivista tal como ela existe hoje. Apesar das dificuldades crescentes, fizemos o melhor que pudemos para assistir a todas as reuniões dessa sociedade e para não faltar a nosso mestre. Em 1849, Auguste Comte retomou o seu curso filosófico sobre a história geral da Humanidade. Foi Bineau, então ministro das Obras Públicas, que mandou pôr à sua disposição, para isso, uma das grandes salas do Palais Royal. Entretanto, toda a benevolência de Bineau não conseguiu manter para Auguste Comte o uso dessa sala até o término completo do curso, que teve de ser concluído em sua residência particular, à rua Monsieur-le-Prince nº 10. Nos anos seguintes, o mesmo curso ainda foi realizado, na mesma sala, e igualmente com peripécias de interrupção momentânea. Foi nesse local que Auguste Comte deu a esse ensino uma amplitude verdadeiramente extraordinária, sem no entanto assustar seus ouvintes, já que estes seguiram, atentos e benevolentes, sessões de quatro a cinco horas e às vezes mais, interrompidas somente por um intervalo de quinze minutos. A linguagem firme e elevada, dirigindo-se a uma população inteligente e devotada, podia produzir imensos resultados; mas aquela enxurrada de verdades, indo esclarecer e coordenar todos os atos da vida real, não podia convir por muito tempo a um governo desconfiado, oriundo de um golpe de Estado noturno. A partir de 1851, o ensino oral de Auguste Comte foi suprimido. Felizmente, não foi levantado nenhum obstáculo à livre publicação de tudo o que pôde escrever. DOCUMENTO V TRECHO DE UMA CARTA DE AUGUSTE COMTE A CLOTILDE DE VAUX (Numa carta de 20 de julho de 1845, Clotilde de Vaux anunciava a Comte que Marrast, o diretor do National, lhe oferecera o encargo de uma colaboração habitual. Clotilde devia ficar encarregada do "folhetim de terça ou quarta-feira dedicado a passar em revista tudo o que se escreve e se publica sobre a educação, tanto sobre a educação religiosa quanto a secular, e sobre a das mulheres em particular". Comte respondeu-lhe em 22 de julho de 1845, desaconselhando-a de aceitar a proposta do National porque o "imenso assunto" da educação não pode ser tratado eficazmente na imprensa. Esta carta, escrita um ano depois da publicação do Discurso sobre o espírito positivo salienta o interesse que Comte dava ao problema da educação, que é precisamente a preocupação essencial do Discurso.) Terça-feira à tarde, 22 de julho de 1865, 5h. ...Quanto ao projeto principal, que consiste em confiar a você uma espécie de ministério crítico da educação, pelo menos feminina, não posso, depois de refletir, aprová-lo seriamente. Pois, se esse ofício hoje convém muito pouco a uma senhora, creio, no fundo, que mesmo um homem sensato deveria recusá-lo, por falta de princípios suficientemente sólidos sobre esse imenso assunto. Carente de toda verdadeira disciplina intelectual, o jornalismo atual leva com frequência a abordar estouvadamente todos os assuntos interessantes, com tão pouco discernimento como o existente na conversa habitual das pessoas de sociedade; isto é, sem quase nunca distinguir entre o que é verdadeiramente acessível e o que é prematuro, ou mesmo quimérico, nem entre aquilo que já admite a intervenção parcial da imprensa cotidiana e o que ainda deve pertencer por mais ou menos tempo às elaborações sistemáticas. Nenhum assunto comporta mais tal observação do que a grande questão da educação, certamente muito pouco, ou mesmo muito mal elaborada até agora em grossos livros, para ser habitualmente introduzida em quaisquer jornais, sobretudo cotidianos. Considerada relativamente à base, a educação constitui sempre, por sua natureza, a principal aplicação de todo sistema geral destinado ao governo espiritual da Humanidade. Como nenhum sistema parecido domina realmente hoje, o resultado é a impossibilidade de qualquer educação regular, enquanto durar este fatal interregno. Até aí a educação religiosa, apesar de excessivamente atrasada, permanecerá a única coerente, a despeito de sua deplorável influência mental e da nulidade de sua ação moral, que logo resulta numa ativa desmoralização prática assim que o inevitável contato do mundo abale os frágeis fundamentos de uma fé já factícia. Aquilo que se chama de educação secular não passa de uma espécie de tintura metafísico-literária, matizada aqui e ali com um fraco verniz científico, aplicado sobre esse velho fundo teológico, cujo caráter intelectual modifica um pouco, mas à custa de sua tendência moral. Não poderá portanto tratar-se seriamente de regenerar a educação, pública ou privada, senão quando uma nova filosofia tiver estabelecido suficientemente uma verdadeira sistematização duradoura das concepções humanas. Eu mesmo, que devotei minha vida a esta obra fundamental, considerava prematura hoje a elaboração imediata da educação. Conquanto este deva ser o assunto próprio de uma das quatro obras prometidas no final de meu grande tratado, não creio poder abordá-lo convenientemente a não ser depois daquele que agora me ocupa. Julgue você com que deplorável ligeireza tentam introduzir tais discussões no campo atual do jornalismo. Se você considerar em seguida a educação no tocante à sua marcha geral, toda a sua teoria positiva repousa naturalmente neste princípio fundamental: a educação do indivíduo, seja espontânea, seja mais ou menos sistemática, reproduz, necessariamente, em suas grandes fases sucessivas, a educação da espécie, tanto no que concerne aos sentimentos quanto às ideias. Ora, segundo esta regra incontestável, nenhum plano de educação completa poderia ser sabiamente concebido enquanto a evolução geral da Humanidade não tiver sido suficientemente concentrada numa verdadeira teoria histórica, Veja, assim, em que isso nos lança, antes que essas discussões se tornem racionalmente abordáveis pelo jornalismo. Como todo o bom espírito deve, portanto, encarar hoje este assunto capital como essencialmente prematuro, quer quanto ao fundamento, quer quanto ao plano, e como os maiores esforços devem concentrar-se agora na sistematização filosófica que deve em seguida dirigir esta imensa elaboração, todo o atrativo atual se restringiria, neste aspecto, a uma pura crítica do presente. Ora, esta crítica, enquanto desprovida de intenções orgânicas, ou vinculada a pensamentos vagos demais de regeneração, o que equivale quase ao mesmo, já se encontra realizada, naquilo que oferece de essencial, por nossos precursores voltairianos. Que atrativo encontraria você em rodar nesse círculo esgotado, sem no entanto poder sair dele? Tudo a que já se pode tentar de verdadeiramente interessante a esse respeito consistiria em vincular o conjunto dessa crítica prévia a uma justa apreciação histórica da situação atual; isto é, em constatar com detalhes o que acabo de indicar por alto, a impossibilidade de constituir alguma educação sem antes ter estabelecido Unia verdadeira filosofia duradoura; daí a necessidade de voltar as forças a este fundamento universal. Mas esta importante conexão poderia ocasionar somente cinco ou seis artigos essenciais, sem comportar nenhuma elaboração semanal, Fora disso, você volta forçosamente ao puro negativismo do século passado. Deixe portanto, assim que puder, todas essas vãs e aborrecidas reproduções de um voltairianismo que se tornou maquinal à estranha preceptora que perorava ontem diante de nós sobre a insipidez da vida domestica...